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Recebido: 02/05/2013
Aprovado: 10/06/2013
A INICIAÇÃO MAÇÔNICA:
UMA ANÁLISE DE SUA MITOLOGIA POR MEIO DA JORNADA DO HERÓI
Rafhael Guimarães¹
Resumo
O presente artigo visa realizar análise das diferentes etapas da iniciação maçônica no grau de Aprendiz Maçom do Rito Escocês Antigo e Aceito por meio da mitologia existente nos ciclos da jornada do herói, de forma a verificar a mitologia maçônica do primeiro grau com o conceito de monomito e compreender o ritual
de iniciação do Rito Escocês como processo de evolução psicológica do iniciando.
Palavras-chave: mitologia; iniciação; Maçonaria.
Abstract
This article aims at analyzing the different stages of Masonic initiation in the Entered Apprentice degree of
the Ancient and Accepted Scottish Rite through cycles of mythology exists in the hero's journey, in order to
verify the mythology of the first masonic degree with the concept of monomyth and understand the initiation ritual of the Scottish Rite as a process of neophyte’s psychological evolution.
Keywords: mythology; initiation; Freemasonry.
¹ Rafhael Guimarães é Mestre Maçom, membro da GLMEES, e Maçom do Real Arco, filiado ao SGCMRAB. Além de pertencer a outras Ordens Iniciáticas, ministra cursos e palestras sobre Cabala, Astrologia e Tarô.
FinP | Rio de Janeiro, Vol. 1, n.1, p. 15-22, Mai/Ago, 2013.
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Introdução
Este estudo tem por objetivo analisar as influências arquetípicas e, consequentemente, mitológicas sobre a iniciação maçônica no Rito Escocês Antigo e Aceito, por intermédio da teoria conhecida por
Jornada do Herói.
Muitos talvez possam julgar os rituais maçônicos como obsoletos, sem sentido ou mesmo inúteis.
Serão apontadas as evidências de que os rituais maçônicos e a mitologia que os estruturam têm forte
efeito sobre o inconsciente de seus praticantes
(JUNG, 2005).
Há, sem dúvida, inúmeras diferenças entre as
religiões e mitologias da humanidade, e todas essas,
de uma forma ou de outra, podem ser encontradas
em alguma medida, representadas nas alegorias maçônicas (MAXENCE, 2010).
Ao contrário da escola freudiana, que afirma
que os mitos estão profundamente enraizados dentro de um complexo do inconsciente, para Jung, a
origem atemporal dos mitos reside dentro de uma
estrutura formal do inconsciente coletivo. Torna-se
assim uma diferença considerável para Freud, que
nunca reconheceu a autonomia congênita da mente
e do inconsciente, enquanto que, para Jung havia
uma dimensão coletiva inata e com autonomia energética.
a iniciação maçônica sob a luz da jornada do herói.
Compreende-se a validade e relevância de tal abordagem pelo fato da literatura maçônica publicada no
Brasil privilegiar as interpretações ritualísticas que
seguem um raciocínio estrito ao entendimento consciente de seus ensinamentos morais (ISMAIL, 2012),
desconsiderando os efeitos psicológicos produzidos
pela prática ritualística (JUNG, 2005).
Depois do trabalho de psicanalistas que tanto
utilizaram da mitologia para embasar seus argumentos, como Sigmund Freud, Carl G. Jung, Wilhelm Stekel, Otto Rank, e muitos outros, os quais desenvolveram teorias substancialmente fundamentadas de interpretações de mitos, faz-se necessário explorar tais
conhecimentos, empregando-os numa melhor compreensão dos rituais e, finalmente, da Maçonaria em
si.
Há, sem dúvida, inúmeras diferenças entre as
religiões e mitologias da humanidade, e muitas dessas estão de alguma forma presentes nas alegorias
maçônicas (MAXENCE, 2010), seja de forma direta ou
indireta. Conquanto, neste estudo em particular, serão discutidas as semelhanças que há nos rituais maçônicos, em especial no de Iniciação do Rito Escocês
Antigo e Aceito, as demais mitologias do mundo. Nas
palavras ad-referendum do erudito norte americano,
Joseph Campbell (2007):
As ideias apresentadas por Jung foram o embasamento científico que o estudioso das Religiões e
Mitologias Comparadas, Joseph Campbell, adotou
para sustentar as similaridades existentes entre todas
as religiões e mitologias da história. Tal conceito chamado anteriormente de “Monomito”² por Jaymes
Joyce, foi esmiuçado por Campbell, que mostrou todo o roteiro da manifestação arquetípica do herói,
que se encontra presente na sociedade como um arquétipo do Inconsciente Coletivo (JUNG, 2005; JUNG,
2011a).
A esperança que acalento é a de que um esclarecimento realizado em termos de comparação possa contribuir para a causa, talvez não
tão perdida, das forças que atuam no mundo
de hoje, em favor da unificação, não em nome
de algum império político ou eclesiástico, mas
com o objetivo de promover a mútua compreensão entre os seres humanos. Como nos dizem os Vedas: "A verdade é uma só, mas os
sábios falam dela sob muitos nomes” (CAMPBELL, Herói de mil faces).
Dessa forma, o presente estudo se embasará nos trabalhos de Campbell e Jung, analisando e comparando
² O termo “Monomito” é de autoria de James Joyce, da obra “Finnegans Wake”.
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A Jornada Arquetípica do Herói na Mitologia Maçô- lica e não literal (CAMPBELL, 2002; CAMPBELL, 2008).
nica
Conforme descreve Arthur E. Waite, em “A
Jornada do herói X Iniciação Maçônica
New Encyclopedia of Freemasonry”:
O intitulado “Herói” na análise psicológica da sua manifestação, pode ser compreendido como um arquétipo dentro da psique coletiva (JUNG, 1978). Para reforçar tal teoria, Campbell indica sua representação
nas mais conhecidas culturas e religiões ao redor da
terra (CAMPBELL, 2007). Também poderemos encontrá-lo em ordens iniciáticas como a Maçonaria.
Conforme o autor, o herói é encontrado essencialmente nas histórias de Atum, do Antigo Egito;
de Marduk, dos Mistérios Sumerianos; de Apolo, Febo, Héracles, Dionísio e Orfeu, da Mitologia GrecoRomana; de Krishna, da Religião Hinduísta; de Baldur,
dos Mistérios Nórdicos; de Amaterasu, na religião
Xintoísta; de Oxalá, Oxalufã, e Oxaguiã, das Religiões
Afro-brasileiras; de Rei Arthur, Galahad e Persival, na
história mitológica do Santo Graal; na verídica história de Jacques DeMolay, nos Cavaleiros Templários;
em Christian Rosenkreuz, nas Núpcias Alquímicas da
Tradição Rosa Cruz; em vários heróis cinematográficos, como Luke Skywalker, Indiana Jones, James
Bond, Superman, Harry Potter, Frodo Bolseiro e Aragorn; além de Jesus o Cristo, da Religião Cristã (DEL
DEBBIO, 2008). Em todas estas histórias, encontramse similaridades que podem ser compreendidas pelo
conceito de Inconsciente Coletivo. Por fim, na Mitologia Maçônica tem-se a lenda de Hiram Abiff, mito esse exclusivo da Maçonaria (STAVISH, 2011).
Embora a Mitologia Maçônica utilize do contexto contido no Antigo Testamento, pouco se tem
no mito de conteúdo especificamente bíblico, haja
visto que o enredo principal é composto por mitos
elaborados. Malgrado, muitos são os maçons que insistem em fundamentar a maçonaria na bíblia, ou,
pior ainda, fundamentar a história pela Maçonaria
(ISMAIL, 2012). O maior exemplo de elaboração mítica na Maçonaria é a de Hiram Abiff, o protagonista da
lenda do grau de Mestre Maçom. Não há, logicamente, registros históricos de tais eventos, e interpretálos no sentido literal é um erro crasso, pois mitos devem ser interpretados, como já dito, de forma simbó-
A lenda do mestre construtor é a grande alegoria maçônica. Sucede que essa história figurativa baseia-se num personagem mencionado
nas sagradas escrituras, mas o pano de fundo
histórico é acidental e não essencial, assim o
importante é a alegoria e não um ponto histórico qualquer que esteja por trás dela” (1921,
p.366-267)
O Monomito
Assim como a psique humana é dividida em
três partes pela Psicologia Analítica, a Jornada do Herói também o é, podendo ser classificada como: a)
separação ou partida; b) iniciação ou provas e vitórias; e c) o retorno (CAMPBELL, 2007). Esse ternário
constitui a base essencial do mito, bem como dos Rituais de Passagem (VAN GUENNEP, 2011). No que
concerne a Iniciação Maçônica, essa pode perfeitamente ser enquadrada neste postulado, como o estudo demonstrará abaixo.
A teoria da Jornada do Herói teve por base a
ideia do Monomito difundida por James Joyce, vindo
a ser aperfeiçoada por Campbell pela associação com
o conceito freudiano de forças do Inconsciente, alcançando seu embasamento científico com a psicologia analítica ou arquetípica de Jung, que propõe o
conceito psicológico de Arquétipos e Inconsciente
Coletivo. A estruturação dos Ritos de Passagem pelo
antropólogo Arnold Van Guennep possibilitou a análise das diferentes fases da aventura do herói, bem
como as diversas manifestações do mesmo, nas sociedades tribais (VAN GUENNEP, 2011).
Para tanto, será apresentada a constituição
básica da Jornada do Herói, seus significados psicológicos e antropológicos, que estão presentes em formas disfarçadas nos contos e mitos, além é claro, de
exemplificar o contexto maçônico da mitologia, ideia
central deste artigo.
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Partida ou Separação: O chamado da aventura
Eu o proponho, na devida forma, como um
candidato apropriado para os mistérios da
Maçonaria. Eu o recomendo, como digno de
compartilhar privilégios da Fraternidade, e,
em consequência de uma declaração de suas
intenções, feita de forma voluntária e devidamente atestada, eu acredito que ele seguirá
estritamente em conformidade com as regras
da Ordem (Illustrations of Masonry, PRESTON,
1867, p.26)
outros interesses. A recusa à convocação acaba por
aprisionar o herói mitológico, seja pelo tédio, pelo
trabalho duro ou pela ignorância. A recusa é uma negação à atitude de renunciar àquilo que a pessoa
considera interesse próprio, e tal recusa caracterizase, essencialmente, pela identificação da persona³
com seu ego´ o que acarretaria no conceito psicológico de Inflação (HALL; NORDBY, 2010).
Como exemplo, pode-se citar o caso da esposa de Ló, que se tornou uma estátua de sal por ter
olhado para trás, desobedecendo assim a instrução
recebida. A forte emoção que dominou Ló tornar-seA primeira tarefa do herói, no caso maçônico, ia uma “recusa do chamado”, pois poderia efetivao candidato à iniciação, consiste em retirar-se da ce- mente ter rompido com a jornada. ⁵
na mundana, do mundo comum, e iniciar uma jornaA recusa do chamado na maioria das vezes é
da pelas regiões causais da psique (templo maçôni- representada pelo medo em suas várias manifestaco), onde residem efetivamente as dificuldades, para ções. É dessa forma que, muitas vezes, ocorre a
torná-las claras, conscientes e erradicá-las em favor “recusa do chamado” na jornada maçônica. Se por
de si mesmo (CAMPBELL, 2008). Normalmente um algumas vezes o medo do desconhecido ou oculto
problema se apresenta diante do herói a fim de con- impede candidatos de iniciar, outras vezes a própria
vocá-lo a cumprir sua missão, mas também poderá cultura de certas sociedades trata de cumprir esta
ocorrer um fator incisivo para o crescimento do he- função.
rói, como curiosidade, sonhos ou desejos. Deste modo, conforme o procedimento maçônico padrão
(PRESTON, 1867), o candidato é geralmente convida- O auxílio sobrenatural
do a iniciar na Sublime Ordem. O convite parte do
Para aqueles que não recusam o chamado, o
chamado no meio maçônico de padrinho, o qual figu- primeiro encontro da jornada do herói se dá com
ra a função de arauto. E na aceitação do convite resi- uma figura protetora, que fornece ao candidato ajude o “chamado da aventura” (CAMPBELL, 2007), que, da para lhe proteger na jornada que estará prestes a
em outras palavras, é um sinal enviado pelo inconsci- deparar-se.
ente.
As mitologias mais elevadas desenvolvem o
papel na figura de uma espécie de guia ou de mestre.
No mito grego esse guia é Hermes-Mercúrio, e no
A recusa do chamado
mito egípcio sua contraparte é Thoth. Nas tradições
Sempre se tem, tanto na vida real como nos contos
judaicas, Noé contou com uma pomba. Na mitologia
mitológicos, o triste caso do chamado que não obtém
cristã encontramos como guia o Espírito Santo
resposta, havendo, pois, o desvio da atenção para
³ Em grego significa “máscara”.
´ Na visão de Jung, Ego é o nome dado à organização da mente consciente, constituindo-se de percepções conscientes, de recordações, pensamentos e sentimentos. A menos que o Ego reconheça tais percepções elas não chegariam a nossa consciência. Tais
reconhecimentos do Ego são estabelecidos pela função dominante de cada pessoa (sensibilidade, objetividade, etc.). Uma forte
experiência pode forçar entrada pelo ego ocasionando graves consequências (traumas). O Ego passa a falsa ideia de que ele é,
essencialmente, nossa inteira consciência, ou melhor, nossa Psique como um todo. (HALL; NORDBY, 2010)
⁵ Gênesis 19:26: “E a mulher de Ló olhou para trás e ficou convertida numa estátua de sal.”
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(CAMPBELL, 2007).
Na iniciação pelo Rito Escocês Antigo e Aceito
da Maçonaria, fica evidente a figura de auxílio na jornada na função do oficial chamado de Experto, que
conduz o iniciando por caminhos escabrosos, porém,
oferecendo-lhe a devida proteção: “Eu serei o vosso
guia, tendes confiança em mim, e nada receeis”. A
função do Experto durante a iniciação é conduzir o
candidato, que estando privado de certas faculdades,
necessita inexoravelmente do amparo do guia.
leia. O herói é comumente jogado no desconhecido,
dando a impressão de que morreu, ou, em alguns
casos, é submetido a testes e provações, de forma
que aprenda as regras deste novo mundo
(CAMPBELL, 2007).
Como exemplo pode-se citar alguns contos,
como do Chapeuzinho Vermelho, no qual ela é engolida pelo lobo. Da mesma forma, todo o panteão grego, exceto Zeus, foi engolido pelo pai Cronos. Já na
Bíblia e no Alcorão encontramos Jonas, que é engolido por um peixe e passa três dias e três noites em
suas entranhas, e acaba saindo de lá vivo.⁶ Arnold
A passagem pelo primeiro limiar
Van Guennep (2011), salienta que a morte momentâTendo resistido ao medo, muitas das vezes nea ou aparente é tema principal das iniciações tripersonificado como medo de morte, simbolizado no bais.
Rito Escocês pela passagem pela câmara de reflexões,
Na jornada maçônica o iniciando é colocado à
o herói segue em sua aventura até chegar ao conhe- prova por testes simbólicos, para que coloque a moscido na Jornada do Herói por “guardião do limi- tra sua coragem de forma a persistir na senda da virar" (CAMPBELL, 2008). Entende-se psicologicamente tude. Curioso que o ritual maçônico trata tais testes
pelo limiar como a passagem do consciente para o de forma a simbolicamente tentar afastar o candidainconsciente, onde se adentra a um mundo de fanta- to de seu caminho, como, por exemplo, fazendo-o
sias e imagens, semelhantes aos sonhos. Ou seja, um seguir por “caminhos escabrosos”.
mundo mítico.
No âmbito mitológico, esse primeiro limiar é
representado pela presença de um guardião e o mesmo está associado, variavelmente, a um posto que
pode ser uma porta, ponte ou lago, simbolizando o
limiar. Isto posto, na Iniciação pelo Rito Escocês a
passagem pelo primeiro limiar ocorre no momento
em que o candidato é levado à porta do templo e recebido pelo Guarda do Templo, também chamado
em algumas versões de rituais de Cobridor Externo.
Após sua passagem, ou seja, após ser franqueado seu
ingresso, o candidato passa a vivenciar uma nova e
única experiência, simbolicamente sobrenatural.
Provas e Vitórias: A Descida
Tendo sido vitorioso nos primeiros testes e
provas, ao cruzar por completo o limiar, o herói caminha por uma paisagem onírica povoada por formas
curiosamente fluidas e ambíguas, na qual deve sobreviver a uma sucessão de novas provas. O herói continua a ser auxiliado, de forma indireta, por Guias e
Mestres. Porém, aos poucos ele percebe que existe
um poder benigno, presente em toda parte, que o
sustenta em sua passagem sobre-humana
(CAMPBELL, 2008).
Um mito interessante sobre esse caminho de
provas, e um dos mais antigos da história, é o registro
Provações e testes: O ventre da baleia
sumeriano da descida ao mundo inferior pelos porA ideia de que a passagem pelo limiar é uma tais da metamorfose, pela deusa Inana. Tal mito era
passagem para uma esfera de renascimento é simbo- ritualisticamente praticado na antiguidade pelas
lizada na imagem mundial do útero ou ventre da ba⁶ Jonas 1:17: “O Senhor fez que ali se encontrasse um grande peixe para engolir Jonas, e este esteve três dias e três noites no ventre do peixe.”
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Prostitutas Sagradas⁷ (VAN GUENNEP, 2011), que foi
profanado e hoje é categorizado como striptease e
conhecido como a “Dança dos Sete Véus”. Muitas mitologias retratam neste momento uma descida ao
submundo, quando na verdade, tal descida retrata a
descida aos domínios da psique (CAMPBELL, 2002).
Essas novas provas, cada vez maiores em níveis, representam no processo iniciático maçônico a
passagem pelos quatro elementos, onde o iniciando
vivencia e supera, simbolicamente, os elementos. No
passado, relatos indicam que os iniciandos de fato se
colocavam à prova, seja de um incêndio, a nado, ou
tempestade (LEVI, 2012).
ouro e a prata, e, em outras palavras, o encontro do
Cavaleiro com a Princesa, ou a descoberta do elixir da
longa vida dos alquimistas (JUNG, 2012).
A mulher representa, na linguagem pictórica
da mitologia, a totalidade do que pode ser conhecido, e o herói é aquele que a compreende. Segundo
Jung, havendo o equilíbrio total na psique, atinge-se
o si mesmo, ou seja, a totalidade do ser, torna-se
consciente de todo o inconsciente (HALL; NORDBY,
2010). Na mitologia maçônica o iniciando, torna-se
iniciado, havendo completado o processo que Jung
chamou de processo de individuação (JUNG, 2012).
Sobre o encontro com a Deusa - fim do primeiro ciProvação difícil ou traumática: O encontro com a clo da Jornada Maçônica
Deusa
O casamento, união – o supracitado conheciA aventura última, quando todas as barreiras
foram vencidas, aparecerá como a experiência mais
profunda e traumática do enredo mitológico. Normalmente é representado por uma morte efetiva e
momentânea, ou mesmo por um renascimento miraculoso (CAMPBELL, 2007). Em diversos ritos maçônicos e em diferentes graus encontramos encenações
de todo o tipo para representar esta etapa, seja por
mais provas iniciáticas ou por demonstrações fúnebres, funestas e sombrias, de forma que, pela última
vez, é dada a chance ao iniciando de desistir da senda
da virtude, rendendo-se ao medo. .
Sendo persistente, o iniciando compreende
depois o sentido simbólico ou mesmo psicológico de
suas provações e testes, e, no ápice da aventura, é
apresentado diante da Deusa. Tal passagem costuma
ser representada por um “Casamento Místico”, conhecido nos mitos por hierosgamos⁸.
mento da Anima –, representa o domínio total da vida pelo herói. Na Mitologia Maçônica a mulher é o
símbolo da Vida e o herói o seu conhecedor e mestre,
ou, em outras palavras, a mulher é o templo e o herói
seu sacerdote. Daí que muitas representações de
templo em culturas antigas são em forma de uma
mulher grávida dando a luz (MURPHY, 2007), bem
como de sempre se ter sacerdotes, e nunca sacerdotisas.
Assumindo o Templo Maçônico as características e conceitos de Anima, conforme esclarecido, o
iniciando, após ter superado todos os testes e provações do processo iniciático da Maçonaria, recebe como prêmio da jornada o encontro com a Anima, que
nada mais é do que, a “Luz da Maçonaria”, passando
este a enxergar e conhecer o Templo Maçônico e comungar de sua Egrégora. Ele ganha também a sua
completa liberdade, ficando livre da corda e aprendendo a sair e entrar na Loja na devida forma maçônica.
Em termos psicológicos tal casamento representa a união-conhecimento com a Anima ou Animus, contidos em contos da heroína. Esta união reO encontro ou união com a Anima também
presenta o chamado “Casamento Alquímico” dos Al- pode ser chamado de “Encontro com a Verdade”,
quimistas, e retrata uma união indissolúvel entre o pois a totalidade do ser e o completo conhecimento
⁷ O termo Prostituta possuía outro significado diferente do que hoje é associado. Significava “aquelas que se prostram”, em referência a Deusa a qual elas eram oferecidas e tornavam-se sacerdotisas.
⁸ Significa “Casamento Sagrado" e se refere à cópula de um deus ou homem com uma deusa ou mulher.
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do inconsciente, além de libertar, proporciona ao he- sob a ótica da Psicologia Junguiana, como um sonho
rói um conhecimento novo e inexplicável.
grupal, sintomático dos impulsos arquetípicos exisOs testes que o herói passou, preliminares de tentes no interior das camadas profundas da psique
suas experiências e façanhas últimas, simbolizaram as humana (JUNG, 1978). Já numa visão religiosa, a micrises de percepção por meio das quais sua consciên- tologia pode ser tida como a revelação de Deus aos
cia foi amplificada e capacitada a enfrentar. Com isso, seus filhos.
ele aprendeu que ele e sua Deusa, ou ainda, Anima,
são um só, pois se casaram-uniram. Por derradeiro,
seu destino é tornar-se o Mestre, que, variando de
uma cultura para outra, pode ser um filósofo, ancião,
líder político ou religioso, entre outros tipos. Já no
caso maçônico, um Mestre Maçom, representante de
Hiram Abiff.
Tanto a mitologia, como os seus símbolos, são
metáforas reveladoras do destino do homem, e, nas
diversas culturas são retratadas de diferentes formas
(CAMPBELL, 2007). A ideia central da mitologia é de
que a mesma funciona como uma ferramenta para
promover e entender a evolução psicológica do individuo, sendo essa a função principal do mito
Desmistificando a mitologia, percebemos que (CAMPBELL, 2008).
o mistério do universo é retratado como Deus. Se paEm termos de interpretação psicológica da
ra o religioso o infinito é o Deus, para o ateu ou ag- mitologia, sempre vamos encontrar como chave esnóstico, o infinito é o Universo e suas infinitas mani- sencial a questão “Inconsciente = Reino metafísico”.
festações. O ego torna-se a figura do herói, por isso Em outras palavras, “Porque eis que o reino de Deus
quando se encontra com Deus-Deusa, ou seja, seu está dentro de vós”⁹. Assim, a análise para toda quespróprio inconsciente, toma-se conhecimento de todo tão mitológica, é o estudo da psique humana.
o universo ou infinito. O Eu Inconsciente em algumas
Em várias sociedades e cultos primitivos, a
passagens torna-se o velho sábio, que tudo sabe, e prática religiosa consistia em vivenciar a Mitologia de
conhece as fraquezas e desejos reprimidos pelo o he- forma direta, pois o mito o estaria influenciando de
rói (JUNG, 2011).
forma indireta no decorrer das cerimônias, por interDepois deste primeiro ciclo da Aventura do
Herói – ou Jornada Maçônica – o herói ainda é levado
a cumprir outros deveres no universo. Da mesma forma, o Maçom é instruído da existência de outros
graus a serem galgados, onde se encontra a continuidade da Jornada Maçônica. Entretanto, dificilmente
tem-se um final para a mitologia como um todo, pois,
conforme a própria dialética aristotélica, em todo fim
acha-se um novo início (CAMPBELL, 2007). Tendo o
final de cada grau maçônico como um novo começo,
pode-se compreender que, em outras palavras, tornar feliz a humanidade é um processo relativamente
infinito.
médio do inconsciente. Assim, o crescimento e finalidade da Mitologia acontece de forma particular em
cada um, como uma semente que aos poucos iria se
germinando (JUNG, 2005). A tradição maçônica conserva esses costumes como forma de instrução aos
seus membros, sendo, portanto, herdeira pedagógica
dessas antigas culturas (BLAVATSKY, 2009). E ao estudarmos a Maçonaria, seu ritual e simbologia, não podemos desconsiderar ou descartar esse viés, sob o
risco de abrirmos mão do real objetivo de nossos rituais.
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estudo
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⁹ Lucas 17:21.
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