marxismo: história, política e método.

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marxismo: história, política e método.
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MARXISMO: HISTÓRIA, POLÍTICA E
MÉTODO.
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Walmir Barbosa
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO
1 – BREVE BIOGRAFIA DE MARX
2 – CAPITALISMO E MARXISMO
2.1 – Capitalismo e crise
2.2 – Capitalismo e Experiências Pós – Revolucionárias
2.3 – Capitalismo e Conflito Social
2.4 – O Marxismo Reprimido
2.5 – Construir a Autonomia do Marxismo
3 – DIALÉTICA E HISTÓRIA
3.1 – Sociedade e Totalidade em Marx
3.2 – O Método Dialético
3.3 – A Concepção Materialista da História
3.3.1 – O Conceito de “Modo de Produção”
3.3.2 – Modo de Produção e Transformação Histórica
3.3.3 – Modo de Produção e Formação Social
3.3.4 – O Conceito de “Classe Social”
3.3.5 – O Conceito de “Ideologia”
3.3.6 – O Conceito Estado
3.3.7 – Práxis e Política
4 – CONCEPÇÃO MARXISTA DE POLÍTICA E DE ESTADO
4.1 – A Influência de Hegel
4.2 – O Estado no “Jovem Marx”
4.3 – A Concepção de Estado no Marx de 1848 – 1852
4.3.1 – Dezoito Brumário de Luiz Bonaparte
4.3.2 – O Golpe do 18 Brumário e o Bonapartismo
4.3.3 – Estado e Representações de Classe no Bonapartismo
4.4 – A Origem do Estado: A Contribuição de Engels
4.5 – A Concepção de Estado em Lênin
4.5.1 – Lênin e o Estado
4.5.2 – Lênin e os Sovietes
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4.6 – As Contribuições de Gramsci
4.7 – A Violência
5 – VERTENTES E INFLUÊNCIAS HISTORIOGRÁFICAS MARXISTAS
5.1 – Escola Annales e o Marxismo
5.1.1 – A Influência da Escola Annales na Historiografia Marxista
5.1.2 – Contradições na Relação Annales/Marxismo
5.2 – Historiografia Marxista Inglesa
5.2.1 – Vertentes da Historiografia Marxista Inglesa
5.2.2 – A História de Baixo para Cima
5.2.3 – Objeto de Investigação
5.3 – Historiografia Marxista Soviética
5.4 – Problemas e Perspectivas das Vertentes Historiográficas Marxistas
5.5 – O Horizonte Historiográfico Marxista
6 – ESTADO E AUTORITARISMO NO BRASIL: O QUE COMEMORAR?
6.1 – Sociedade e Estado Escravista Moderno no Brasil
6.2 – Sociedade e Estado Burguês no Brasil
6.3 – Estado e Rebeldia Popular
6.4 – A Necessária Desconstrução dos Mitos
BIBLIOGRAFIA
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APRESENTAÇÃO
Convivemos com um período histórico particularmente difícil para o mundo do
trabalho. A democracia liberal reduzida a um caráter formal e a economia de mercado global
acima da política de sentido público e das necessidades humanas, têm determinado aspectos
como o acirramento das contradições e conflitos sociais, a busca pelas soluções individuais, a
desideologização do debate político e o avanço do relativismo, do irracionalismo e do niilismo
no meio acadêmico.
Uma overdose de cinismo percorre o pensamento e a ação social de grande parte de
indivíduos e grupos sociais que têm conservado o acesso aos bens materiais e culturais neste
período histórico. Legitimam e justificam, de forma ativa ou passiva, direta ou indireta,
explícita ou implícita, a democracia liberal formal e economia neoliberal global, arquitetas do
fascismo social em curso em todo o mundo.
Com o presente texto pretende-se uma contribuição de caráter introdutório ao
marxismo. Por meio dele busca-se alcançar dois objetivos: permitir uma compreensão de
aspectos da teoria e metodologia marxista e proporcionar uma instrumentação teórica e
metodológica de abordagem crítica da realidade atual.
O texto distribui-se por meio de seis temáticas, a saber: uma breve reconstituição da
trajetória intelectual e política de Marx, de forma a evidenciar o seu compromisso com a
transformação social e com a articulação entre o pensamento e a ação; uma abordagem do seu
método de análise e dos conceitos básicos para a investigação da formação social, de forma a
permitir a compreensão da interpretação marxista do processo histórico; uma caracterização
da crítica marxista do capitalismo e das experiências de luta formada no seu interior, de forma
a demonstrar a pertinência da crítica (teórica e prática) marxista do capitalismo e dos
problemas e limites com os quais ela convive; uma identificação da concepção marxista de
Estado, de forma permitir a crítica ao contratualismo e o papel que o Estado exerce como
instrumento de construção de uma hegemonia social; uma qualificação da influência que o
marxismo exerce na Ciência da História, de forma a identificar as contribuições, problemas e
limites decorridos desta relação; e uma leitura marxista de caráter panorâmico da relação
estabelecida entre Estado e sociedade (de classes) no Brasil, de forma a proporcionar um
exemplo de interpretação da realidade histórica a partir da teoria e metodologia marxistas.
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Em que pese os limites de um texto de caráter introdutório e do próprio autor é
necessário que se registrem as contribuições dos amigos Sônia Lobo, Paulo Augusto de Faria,
Ricardo Orsini, Sebastião Cláudio Barbosa e Gilda Guimarães.
1 - BREVE BIOGRAFIA DE MARX
Karl Marx nasce em Treves, uma pequena cidade de 12.000 habitantes e de cultura
franco-germânica, capital da província alemã do Reno, em 5 de maio de 1818. Sua família
pertence à pequena burguesia judia próspera. Embora descendendo de uma longa linhagem de
rabinos (tanto do lado paterno quanto materno), não sofre uma forte doutrinação em favor do
judaísmo.
O pai de Marx, o advogado Hirschel Marx, adere intelectualmente a um racionalismo
tipicamente iluminista. Posteriormente, quando Treves passa a sofrer a dominação prussiana
de Frederico Guilherme III, que era anti-francês e anti-semita, converte-se ao protestantismo e
muda o seu nome para Heinrich Marx, possivelmente em decorrência de motivos materiais,
visto que convive com a ameaça de não poder exercer a sua profissão porque é vedado à
época acesso a cargos públicos aos judeus que habitam a província do Reno (Bottomore,
1988, P. 239).
Marx conduz seus estudos primários e secundários na cidade de Treves, quando esta
se encontra mergulhada sob a administração absolutista prussiana marcadamente
autoritária/burocrática e anti-industrial (para a região do Reno). A resistência à administração
prussiana, embora desorganizada, se estende para diversos setores, a exemplo do Ginásio do
Estado, no qual Marx estuda. Marx envolve-se com esta resistência.
Mesmo antes de seguirem estudos em nível universitário Marx já mantém leituras
clássicas. Por meio do pai conhece Lessing, Voltaire e Rousseau, e por meio do amigo e
futuro sogro, o barão Ludwig Von Westphalen, conhece Homero e Shakespeare. Nesta fase,
por meio de dissertações realizadas no Ginásio de Treves, já é possível identificar duas idéias
que marcariam profundamente o pensamento de Marx. A primeira é a idéia de que o homem
feliz é aquele que busca fazer todos os homens felizes, isto é, que trabalha em prol da
humanidade. A segunda é a idéia de que os homens não podem determinar, em grande
medida, o seu desenvolvimento, isto é, estão profundamente condicionados pelo estado social
da sua existência.
Em 1835, aos 17 anos Marx é enviado para a pequena cidade de Bonn, dando início
ao curso de direito na Faculdade de Direito da Universidade de Bonn, com a intenção de
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estudar jurisprudência. O romantismo do ambiente, não raramente marcado por bebedeiras,
declarações amorosas e “duelos” compromete o desempenho acadêmico de Marx. No ano
seguinte é encaminhado por seu pai para a cidade de Berlim, com os seus 300 mil habitantes.
Na Universidade de Berlim Marx passa os quatro anos seguintes conduzindo seus estudos. A
adesão ao romantismo, na sua estadia em Bonn, é abandonada em favor do hegelianismo, na
sua estadia em Berlim, bem como os estudos de jurisprudência em favor dos estudos de
História e Filosofia.
Marx abandona a carreira de advogado e pretende conquistar uma cátedra
universitária. Além da satisfação intelectual Marx procura as condições econômicas
necessárias para viabilizar o seu casamento com Jenny Westphalen cujo noivado oficial
ocorre em 1837. Para tanto, depende do doutoramento. Conduz os estudos durante os anos de
1838,1839 e 1840. Ao final redige a tese de doutorado entitulada Diferença entre a Filosofia
da Natureza de Demócrito e de Epicuro em 1841. Marx louva o fato de Epicuro ter buscado
encontrar um lugar para a liberdade do homem em face da natureza, opondo-se ao
determinismo natural de Demócrito.
Segundo Giannotti, esta obra recupera uma problemática levantada por Hegel1 na
Fenomenologia do Espírito, na qual este autor considera o estoicismo e o ceticismo grego
como etapas do desenvolvimento do Espírito, momentos em que a consciência de si liberta-se
de seu vínculo com o mundo e se afirma soberana. O sábio estóico, recolhido em si mesmo, e
o filósofo cético, armando seu pensamento sobre a dúvida, estariam dando prova de intensa
liberdade individual, inovadora, mesmo no âmbito da Pólis grega (Marx, 1978, P. IX e X).
Marx, por meio de um diálogo filosófico crítico com Hegel, percorre outro caminho.
Busca identificar as diferentes funções desempenhadas pelo atomismo naqueles dois filósofos
racionalistas e conclui que o átomo em Demócrito (Séc. V-IV a.c.) representaria uma
categoria abstrata, isto é, que é apenas uma hipótese a exprimir uma dimensão empírica
(sensível) da natureza. Em Epicuro (Séc. IV-III a.c.), por sua vez, o átomo representaria uma
forma natural que a consciência assumia de si mesma. Com Epicuro, na interpretação de
Marx, a atomística transformaria-se em um princípio absoluto, rompendo a separação entre
espírito e matéria.
A defesa da tese de doutorado prevista de início para a Universidade de Berlim é
transferida para a Universidade de Iena e ocorre em 15 de abril de 1841. Isto porque as
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Hegel (1770-1831) desenvolve um sistema filosófico no qual o Estado moderno é concebido como encarnação
dos ideais da moral mais objetivos e manifestação da razão no domínio da vida social. A sua filosofia se
convertia em uma espécie de ideologia oficial legitimadora do Estado prussiano (Marx, 1978, P. VIII e IX).
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esperanças de uma maior abertura do regime absolutista prussiano alimentado pelos círculos
liberais se frustra com a ascensão de Frederico Guilherme IV ao poder em 1840, ano da morte
de Frederico Guilherme III, o que veio a refletir no ambiente acadêmico da Universidade de
Berlim. Marx recusa-se a se submeter e expor a este ambiente e a professores encarregados
das qualificações do doutorado, a exemplo do professor conservador Stahl.
O doutoramento de nada adiantou para Marx obter a cátedra universitária. No ano de
1841 frustra o empenho do seu amigo Bruno Bauer em ajuda-lo a obter a cátedra. No mesmo
ano Bruno Bauer perde seu emprego e é proibido de continuar lecionando na Universidade de
Bonn.
Marx integra-se no movimento intelectual denominado Esquerda ou Jovens
Hegelianos2. Este grupo busca submeter os textos sagrados e a propriedade privada à crítica,
conduz uma crítica radical do cristianismo e valoriza a luta política. Este grupo também
conduz, de um ponto de vista liberal, oposição a autocracia prussiana.
Marx dá início a uma fase de transição quanto às suas reflexões e ocupações no
âmbito do próprio movimento da Esquerda Hegeliana. Os problemas políticos e sociais
assumem progressivamente a centralidade no seu pensamento.
Problemas esses que nesta fase assumem uma abordagem pública por meio do
envolvimento de Marx com a imprensa.Marx tem consciência da importância da imprensa
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Hegel compreendia o Estado, a religião e a filosofia como supremas manifestações de Deus, entendido como o
absoluto. A religião cristã se apresentava como a mais completa revelação da razão enquanto Espírito Universal.
Nesse processo de manifestação, Jesus desempenharia o papel de mediador entre a generalidade abstrata de
Deus-Pai e a individualidade concretíssima do espírito santo. Após a morte de Hegel em 1831, seus discípulos
estão divididos. Alguns, denominados direita hegeliana, prendem-se a elementos conservadores da filosofia de
Hegel,à apologia do Estado prussiano, a defesa da ordem constituída, outros, denominados esquerda hegeliana,
procuram aplicar o método historicista de Hegel a análises das questões sociais. A esquerda ou jovens
hegelianos dão início a uma revisão crítica do seu sistema filosófico.
David Strauss (1808-1874) busca separar a figura histórica de Jesus de sua interpretação religiosa e
filosófica. O resultado é, de um lado, a retomada da luta pelo direito de submeter os textos sagrados à crítica
histórica e, de outro, a revolução da doutrina hegeliana provocando-lhe a crítica política. Seguindo o caminho
aberto, Bruno Bauer (1809-1872) procura separar o desenvolvimento do espírito do desenvolvimento do mundo,
transferindo para a consciência de si a tarefa de determinar o curso da História. Arnold Ruge (1802-1880) trouxe
a luta contra o pensamento conservador hegeliano para o terreno propriamente político frente ao endurecimento
do governo de Frederico Guilherme IV da Prússia. Moses Hess (1812-1875) e Max Stirner (1806-1856) refletem
acerca da propriedade e debatem aspectos do socialismo e anarquismo.
Ludwig Feuerbach (1804-1872), busca mudar os sinais do sistema elaborado por Hegel, de modo que,
ao invés de partir-se do espírito, partiria-se da natureza e do homem. Feuerbach privilegia o mundo sensível, a
sensibilidade e o coração, deslocados para o nível do intelecto. Tal concepção traduz-se em um programa
político: o princípio feminino, o coração, sede do materialismo francês, deveria aliar-se ao intelecto, princípio
masculino, sede do idealismo alemão. O programa político de Feuerbach não é assumido politicamente por seu
criador, ou seja, não é para o terreno da luta política. Ludwig Feuerbach recolhe-se no seu isolamento e declinase de imiscuir em política. Surpreende a muitos quando, ao final da sua vida, filia-se ao Partido SocialDemocrata Alemão (Marx, 1978, IX e X).
como veículo
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com capacidade de informar com objetividade e de criticar com
independência, uma necessidade inadiável em sociedades em que a censura, a corrupção, a
hipocrisia, o cinismo convertem-se em instituição. Todavia, Marx condena a liberdade da
imprensa como uma liberdade comercial, isto é, de converter a imprensa em uma “indústria”
movida pela lógica do mercado, do lucro e do poder. Dessa forma não seria possível informar
com objetividade e criticar com independência (Konder, 1968, p. 47-49).
No período de edição da Gazeta Renana3 Marx depara-se com os chamados
“interesses materiais”4. Na província alemã do Reno os camponeses continuam recolhendo
lenha nas florestas como se estas estivessem submetidas ao direito consuetudinário, enquanto,
de fato, encontram-se, agora, subordinadas a outro tipo de propriedade, de caráter privado e
alienável. Como resultado, e atendendo a apelos de proprietários, o Estado move processos
contra o “furto” de madeira realizado pelos camponeses. Conforme Giannotti, a investigação
que Marx inaugura por meio da análise da condenação dos camponeses pela Dieta Renana,
abria o caminho para a idéia de uma revolução social; e para que esta viesse modificar a
própria estrutura da sociedade como um todo (Marx, 1978, P. X e XI).
As publicações de Introdução a uma Crítica da Filosofia do Direito de Hegel e
A Questão judaica, no primeiro e único número dos Anais Franco-Alemães5, traz em si uma
nova noção de crítica, o que conflitua Marx com a Esquerda Hegeliana. Para Marx, a crítica
da Filosofia do Direito de Hegel deveria partir da crítica do Estado real. Uma crítica
desalienada, porque recusaria mover-se exclusivamente no âmbito do discurso.
A crítica, movendo pensamento e prática política, poderia assumir concretude,
penetrando as massas populares e convertendo-as em força social capaz de mudar a sociedade.
Portanto, para Marx, toda crítica seria inócua enquanto não atingisse a raiz do próprio homem
enquanto ser concreto e a sociedade na qual este vive.
A noção de crítica de Marx, ancorada na unidade dialética estabelecida entre teoria e
práxis e na desconstrução/construção do Estado e das relações sociais sobre os quais este se
apoia, conduz Marx a identificar a luta de classes como o motor da História e o proletariado
como o ator fundamental da crítica e da subversão da estrutura da sociedade moderna (nela
incluída o próprio Estado). A noção de crítica de Marx completa-se com a contribuição de
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Diário liberal radical, apoiado por industriais renanos e publicado na cidade de Colônia. Marx ocupa a função
de redator-chefe desse diário. 4Por interesses materiais, Marx concebe os interesses de classes que emergiam das
condições materiais, qual seja, o conjunto das condições econômicas acumuladas, a forma de apropriação e
distribuição dos excedentes e o estágio da consciência social.
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Órgão da propaganda revolucionária e comunista, que se pretendia uma ponte entre o socialismo francês e o
hegelianismo radical, dirigido por Marx em Paris no ano de 1844.
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Engels, para o qual a sociedade civil é o terreno no qual os homens se defrontam como
particulares e proprietários, mergulhados na alienação. Para Engels, a Economia Política de
Adam Smith e David Ricardo, enquanto ciência da sociedade civil, não poderia ser nada mais
do que o lugar da alienação visto que, por não ter posto em causa o postulado da propriedade
privada e por não ter anteposto ao privatismo da sociedade civil a universalidade do homem,
não conseguiria conduzir a crítica da sociedade moderna (Marx, 1978, P. XIII e XIV).
Marx incorpora a noção de crítica de Engels mas a ultrapassa, visto que reconhece
que a forma de trabalho do sistema capitalista, orientado para a acumulação privada e para o
mercado, mergulha o homem na alienação. O homem, sob relações de assalariamento,
produziria uma mercadoria para trocá-la por outra mercadoria. A apropriação de poucos em
detrimento de muitos se, por um lado, conduziria o homem à alienação, por outro, não poderia
impedir a recriação da necessidade das mercadorias que se encontrassem em outras mãos, de
forma que criaria um espaço e um ambiente de tensão nas relações sociais que projetaria a sua
solução para além da propriedade privada e do mercado. Nos Manuscritos Econômicos e
Filosóficos, elaborados na sua estadia em Paris (somente publicado em 1930), Marx identifica
um contraste entre a natureza alienada do trabalho no capitalismo e uma sociedade comunista
na qual os seres humanos desenvolveriam livremente sua natureza em produção cooperativa.
O pensamento de Marx apresenta-se maduro. Completa-se, portanto, o processo de
ruptura com a sua base de origem, inaugurada no âmbito da Esquerda Hegeliana. A própria
influência de Ludwig Feuerbach é superada. No período compreendido entre 1842 e 1847,
Marx converte-se em um intelectual e ativista político com uma concepção humanista do
comunismo (Bottomore, 1988, P. 239).
A prática intelectual e política (e, provavelmente, a sua etnia) rende a Marx
perseguição e exílio. Marx busca ter acesso à carreira universitária, mas é impedido pelo
governo prussiano; converte-se em editor da Gazeta Renana, mas teve o jornal fechado pelo
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A divisão da sociedade em classes ou estamentos concorre decisivamente para a separação entre a sociedade
política ou Estado (organização dos que mandam) e uma sociedade civil (conjunto em nome do qual se governa).
Hegel atribui ao conceito sociedade civil uma significação econômica e jurídica, onde os indivíduos singulares se
opõem em função de seus interesses particulares. O Estado aparece como a verdade da sociedade civil, que não
é, graças ao jogo da astúcia da razão, mais do que seu próprio fenômeno, nele realizado. A sociedade civil é um
instante de uma processos que atinge seu ponto máximo na sua absorção pelo Estado (Althusser, 1979, P. 97).
Marx cria duas novas concepções de sociedade civil. A primeira identifica sociedade civil com a estrutura
econômica da sociedade. A sociedade civil seria o “mundo das necessidades, do trabalho, dos interesses
particulares, do direito privado” (Marx, 1987, P. 483) ou ainda que ela abarcaria “(...) todo o intercâmbio
material dos indivíduos, em uma determinada fase de desenvolvimento das forças produtivas” (Marx e Engels,
1974, P. 38). A Segunda identifica sociedade civil com o conjunto de partidos, jornais, clubes e associações. Para
Marx da “Crítica do Programa de Gotha”, “(...) o Estado deve ser um órgão subordinado à sociedade”. (Marx,
1946, P. 30).
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governo; emigra para Paris em 1843 e passa a dirigir os Anais Franco-Alemães, mas tem o
periódico fechado e é expulso da capital francesa.
Radicado em Bruxelas, Marx dedica-se a um estudo intensivo de história e cria a
teoria que ficou conhecida como a concepção materialista da história. Por meio da obra A
Ideologia Alemã, escrita em parceria com Engels, chega a duas conclusões básicas: “que a
natureza dos indivíduos depende das condições materiais que determinam sua produção”; e
que na história da humanidade sucedem-se vários modos de produção, sendo o próprio
capitalismo um modo de produção de caráter transitório7.
Entre 1847 e 1852, Marx e Engels ingressam na Liga Comunista8; elaboram o
Manifesto Comunista, publicado em 1848; participam intensamente da “Primavera dos
Povos” - denominação dada às revoluções de 1848 - em Paris e em Colônia; e fundam em
Colônia a Nova Gazeta Renana sob uma orientação democrática radical contra a autocracia
prussiana. A vitória da contra-revolução reconduz Marx ao exílio em maio de 1849, agora em
Londres, de onde ele não mais sai. Marx elabora, no período imediatamente subsequente, às
obras As Lutas de Classe na França de 1848 a 1850 e Dezoito Brumário de Luís
Bonaparte.
Marx reconhece na derrota da “Primavera dos Povos” a fragilidade da classe
operária, ainda pequena quantitativamente e dispersa geográfica e politicamente; o
esgotamento da trajetória revolucionária da burguesia, transformada definitivamente em
classe dominante e abertamente contra-revolucionária; e a vitalidade do capitalismo, que
promovia a industrialização em vários países (EUA, Alemanha, França, Itália, Bélgica) e dá
início ao novo expansionismo colonialista na África e Ásia. Esse reconhecimento desperta em
Marx a necessidade de conduzir estudos econômicos de maior fôlego acerca do capitalismo e
de criar uma organização internacional dos trabalhadores.
As obras Esboços da Crítica da Economia Política (produzido entre 1857 e 1858,
mas somente publicado em 1941) e O Capital (o primeiro livro é editado em 1867; quanto
aos livros segundo e terceiro são concluídos por Engels após a morte de Marx) jogam novas
luzes sobre a dinâmica de expansão e de crise do capitalismo. A participação na fundação da
Primeira Associação Internacional dos Trabalhadores (AIT) em 1864, para o qual é eleito para
o seu Conselho Geral e onde convive com intensas disputas políticas contra a ala anarquista
liderada por Bakunin, confirma o seu compromisso com a construção de uma personalidade
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O ideal burguês concebe o capitalismo como etapa final das transformações da sociedade humana, restando a
este apenas o seu próprio aperfeiçoamento. A ‘era das revoluções’, segundo essa concepção, não teria mais lugar
na história da humanidade.
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política revolucionária, libertária e internacionalista dos trabalhadores. A elaboração da sua
última obra expressiva, A Guerra Civil em França, onde aborda a Comuna de Paris de 1871,
é acompanhada do progressivo esvaziamento da AIT.
Nos últimos dez anos de sua vida, Marx não produz nenhuma obra expressiva e não
consegue concluir O Capital. A saúde abalada, a perda da esposa e filhos, o esgotamento de
anos de trabalho intelectual extenuante, entre outros fatores, o impedem de conduzir esforços
continuados de sínteses ricas de elementos e que, de maneira tão evidente, haviam
caracterizado sua obra até então (Bottomore, 1988, P. 240). Marx morre na cidade de Londres
em 1883.
2 – CAPITALISMO E MARXISMO
As teses sobre as quais se apóia análise marxista sobre o sistema capitalista mantém a
sua atualidade. As relações sociais entre os homens no capitalismo são reguladas pelo valor de
troca antes do que pelo valor de uso das mercadorias e serviços que eles produzem. Em
síntese, as necessidades humanas encontram-se na dependência direta do poder de compra das
pessoas no mercado.
A satisfação das necessidades humanas apresenta-se como resultado secundário da
produção e do lucro mediado pelo sistema de trocas. É o capital e os bens, não o homem e a
vida, que encontram-se no centro da atividade econômica no sistema capitalista.
O processo de desenvolvimento do capitalismo acirra a dupla contradição presente na
sua base de reprodução. Primeiramente, a contradição estabelecida entre a crescente
produtividade do trabalho social, por um lado, e seu o uso repressivo e destrutivo, por outro.
Em segundo lugar, a contradição estabelecida entre o caráter social da produção e a
apropriação privada dos excedentes.
O capitalismo somente pode resolver essa contradição temporariamente, de forma a
aumentar o seu caráter repressivo e destrutivo por meio do desperdício, do luxo e da
destruição das forças produtivas. A corrida competitiva pelo armamento, pela produção e pelo
lucro proporcionam um elevado grau de concentração do poder econômico - via
centralização/concentração oligopolista e financeira do capital. A expansão econômica
agressiva para o exterior, os conflitos regionais criados e/ou incentivados e as disputas por
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Organização de trabalhadores alemães emigrados e sediada em Londres.
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influência continental entre os países de capitalismo central, tendem a formar ciclos
recorrentes de dependência, de guerras e de depressões.
A quinta tese sobre a qual se apóia a análise marxista sobre o sistema capitalista
insere a idéia da possibilidade da transformação social. Segundo Marx, o ciclo de reprodução
do capital carrega a possibilidade histórica de ser interrompido pelo mundo do trabalho em
aliança com outros
setores populares. Isto porque as classes do mundo do trabalho suportam o peso da
exploração econômica, o que as tende levar à perspectiva da transformação social, de forma a
assumir o controle do aparato produtivo e a desencadear a superação das contradições básicas
do sistema capitalista de produção. Por um lado, liquidando com o sistema social de produção
mas de controle e apropriação privados e, por outro, libertar o desenvolvimento das forças
produtivas e estabelecer a integração entre o desenvolvimento das forças produtivas e as
necessidades humanas.
Capitalismo e Crise
Marx e os intelectuais críticos do capitalismo que se referenciam no marxismo clássico
concebem o ‘fenômeno’ crise em função do capital, tema fundamental para a reflexão social e
econômica no âmbito do capitalismo. Portanto, em termos do marxismo clássico, a abordagem
do fenômeno crise deve partir, necessariamente, da negatividade constitutiva do capital.
O capital constitui o fundamento do processo da reiteração e expansão das suas próprias
condições de existência. Cumprida a etapa da acumulação primitiva de capital, o capital se
materializa nos meios de produção que se coloca à frente da força de trabalho como algo
estranho e com poder de obrigá-lo a produzir; e na própria força de trabalho, adquirida pelo
capitalista no mercado e integrada ao capital como capital variável. Enquanto materialização da
riqueza social e enquanto proprietário das faculdades do produtor, o capital constitui-se, em um
determinado sentido, no ‘sujeito’ que transforma a produção e a circulação das mercadorias em
meios para a sua reprodução expansiva. Assim, todas as formas econômicas, das atividades
econômicas em sentido restrito às formas de organização (tecnológica e organizacional) do
trabalho, são simples mediadoras da referida expansão (Coggiola (Coord.), 1996, p. 291-302).
O movimento do capital engendra uma contradição. Para recriar o fundamento da sua
valorização o capital necessita, concomitantemente, de criar e subordinar a força de trabalho e
encontrá-la como seu oposto no mercado e no processo de produção. Dessa forma, reduzindo o
trabalho à condição de mercadoria poderá absorvê-lo como capital variável.
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Por outro lado, a partir desta transformação o capital busca valorizar-se
crescentemente, o que leva ao progressivo predomínio do capital constante em relação ao capital
variável. Dito de outra forma, o domínio do trabalho vivo pelo morto (capital), com o
progressivo predomínio do capital constante em relação ao capital variável (como uma tendência
à negação do trabalho vivo pelo morto), constitui-se na manifestação da contradição, visto que é
o trabalho a fonte do valor e, portanto, do próprio capital.
No plano das relações econômicas este ‘sujeito’ se expressa por meio dos capitalistas
individualmente e enquanto grupo social. Cada capitalista em particular deve se confrontar com o
trabalhador para que possa obter a mais-valia (fundamento oculto do capitalismo, ao mesmo
tempo sua força propulsora e fonte da sua reprodução expansiva). Neste sentido, aumentar a
duração e a intensidade do trabalho e, acima de tudo, a sua produtividade é a garantia da sua
extração (e, possivelmente, expansão). O capitalista deve se confrontar também com os demais
capitalistas para preservar suas taxas de lucratividade e assegurar mercados. Para tanto, ele deve
necessariamente baixar os seus custos de produção.
Como ‘sujeito’ da auto-valorização, que confronta consigo mesmo e com a sua
negação, o capital subordina a produção e a circulação de mercadorias como fases do processo
pelo qual ele se acumula e reproduz. Fases estas que, se reproduzindo sob uma relativa
autonomização e sob o impulso desmedido de auto-valorização, não se determinam pelo
consumo e necessidades sociais.
A economia capitalista, apoiada na sua intrínseca anarquia em termos da produção, da
circulação e da produção/circulação, concorre para crises recorrentes (Marx, 1984, v. I, p. 26).
O fato da determinação do que, como e quando produzir residir no âmbito de cada
unidade de produção e destas competirem entre si, inviabiliza processos de crescimento
equilibrado entre e inter departamentos e setores econômicos. Indicadores de mercado como
preços, custos e juros, que sob certas condições estimulam a expansão mais ou menos rápida da
acumulação, não podem revelar barreiras como os limites de demanda ou de insumos básicos no
mercado. Dessa forma, normalmente a uma fase de expansão sucede uma fase de desaceleração
da expansão, que pode ser um decréscimo de ritmo da expansão, uma recessão, ou ainda uma
depressão, condicionada pelo grau da intensidade da fase expansiva precedente, pelos
desequilíbrios estruturais, pela mobilidade do Estado enquanto agente produtivo, pelas formas
assumidas pela luta de classes, entre outras variantes.
Na esfera da circulação do capital, a crise aparece de modo privilegiado como paralisia
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do movimento de compras e vendas entre os departamentos econômicos. Os departamentos
9
econômicos, que idealmente precisam produzir conforme as necessidades um do outro, de fato
determinam sua produção de acordo com o impulso de valorização dos seus próprios capitais;
visam seus lucros, sem considerar ex ante que os mesmos tem que se realizar por meio da venda
do seu produto aos outros departamentos econômicos (Singer, 1989, p. 17-20).
Na fase de expansão, o sistema dispõe de reservas da fase precedente de desaceleração
como excedente de mão-de-obra, capacidade produtiva ociosa, matéria-prima estocada, terra
improdutiva, às quais se agrega a ‘poupança’ pública e privada como pedra de toque da retomada
da expansão. A nova expansão pode ter início a partir de setores produtivos que possuem grande
repercussão na estrutura de reprodução material da sociedade. A indústria da construção civil,
por exemplo, capaz de provocar, por meio da sua rápida expansão, uma demanda importante
para o Departamento I, como canos, máquinas, cimento, vidros, azulejos etc;
para o
Departamento II, como tecidos e alimentos, decorrentes do maior volume de emprego e,
possivelmente, de salários dos trabalhadores empregados neste setor; e para o Departamento III,
como eletrodomésticos, carros etc, consumidos por capitalistas, gestores intermediários da
produção e trabalhadores em geral. Uma onda de expansão iniciada em alguns setores tende, por
um efeito cascata, a estender-se sobre todos os demais setores e departamentos econômicos.
Quando as reservas precedentes à fase de expansão esgotam-se, quando uma expansão
reiterativa da produção dá lugar à acumulação real, os problemas começam a ser gerados. Os
capitais, procurando os investimentos de retorno maior, mais rápido e mais seguro, tendem a se
concentrar em determinados setores e ramos de atividades, em detrimento de outros. ‘Gargalos’
gerados em setores e ramos de atividades que exigem investimentos de grande monta e de
retorno a longo prazo (como as atividades do Departamento I) podem não mobilizar os capitais
necessários para a sua expansão.
A mobilização dos capitais pode não ser o bastante para conter a interrupção precoce de
uma fase de expansão real, visto que o tempo de ampliação e/ou montagem de novas unidades
produtivas, especialmente em se tratando do Departamento I, é sempre de médio a longo prazo.
A escassez e elevação de preços decorrentes podem transformar seus produtos em mercadorias
proibitivas a diversas empresas, desencadear falências, elevar custos gerais de toda a estrutura
produtiva, provocar ciclos de inflação e retomar as grandes taxas de desemprego.
9
O conceito ‘departamento econômico’ é primeiramente formulado por Marx (1973, vol. II, 3 seção). Para
compreender a reprodução ampliada do capital em escala nacional, Marx opera uma separação da economia em
Departamento I, produtor de bens de produção e Departamento II, produtor de bens de consumo. Kalecki (1983,
p. 35-55) propôs um novo esquema, desmembrando o segundo departamento econômico (originalmente
15
A mobilização e adequado investimento da poupança social em atividades do
Departamento I, materializada em uma satisfatória ampliação da sua produção, pode acarretar
uma carência de recursos nos Departamentos II e III, formadores da sua demanda. Além disso, a
sua própria acumulação e dos seus agentes financeiros pode ser comprimida pela pressão de
custos que exerce sobre os demais. De uma forma, ou de outra, a crise e os seus sintomas tendem
a reaparecer. Em outras palavras, em uma economia de mercado a cada ‘gargalo’ superado em
um dado período outros se formam.
Na esfera da produção mais ampla (que engloba como etapas a da circulação e a da
produção imediata de mercadorias pelo capital), a crise econômica capitalista se expressa de
forma mais completa e complexa. É nesta esfera que a negação do trabalho vivo pelo morto
(capital) se manifesta na tendência ao crescimento proporcional do valor do capital constante em
relação ao capital variável, levando à queda da taxa média de lucro mesmo com um possível
aumento da taxa de mais-valia.
Para conservar/ampliar a taxa de mais-valia extraída e conservar/baixar custos de
produção, o capitalista recorre ao aumento de capital fixo. O crescimento do capital fixo em
relação ao trabalho - tecnologização da produção - é o principal meio para aumentar a
produtividade do trabalho, e o crescimento do capital fixo em relação ao produto - a capitalização
da produção - é o principal meio para reduzir os custos unitários de produção.
O crescimento do capital fixo por produto unitário é o elemento mais importante para se
obter economias de escala. As empresas sob economias de escala viabilizam o crescimento do
volume de matérias-primas processadas por trabalhador. Como resultado, tanto as matériasprimas como a produção de mercadorias tendem a aumentar por unidade de trabalho.
Concomitantemente, o maior volume de capital fixo por produto unitário implica maior despesa
de depreciação do referido capital e maiores custos de materiais auxiliares (eletricidade,
combustível, instalações prediais etc) por produto unitário.
Conforme indicou Bottomore,
(...) para métodos mais avançados, a maior capitalização (capital adiantado por produto
unitário) implica maiores custos unitários não relativos a trabalho (capital constante
unitário C), enquanto a maior produtividade implica menores custos unitários com o
trabalho (capital variável unitário V). No salto, o custo unitário de produção C+V deve
declinar, de modo que o último deve mais do que compensar o primeiro. Sob condições
trabalhado por Marx) em Departamento II, produtor de bens de consumo corrente e Departamento III, produtor
de bens de consumo duráveis. Adotaremos o esquema desenvolvido por Kalecki.
16
técnicas determinadas, no momento em que os limites do conhecimento e da
tecnologia existentes forem alcançados, os aumentos subseqüentes no investimento por
produto unitário provocaria reduções cada vez menores nos custos unitários de produção
(Bottomore, 1988, p. 372).
A conseqüência principal desta dinâmica é que os métodos mais avançados tendem a
proporcionar menor custo unitário de produção em detrimento da taxa de lucro (que tende a cair).
Ainda que os salários e a intensidade e duração da jornada de trabalho se conserve, o aumento da
composição orgânica do capital (capital constante suplantando crescentemente o capital variável
na composição do capital) tende a elevar-se mais rapidamente do que a taxa de mais-valia,
determinando a queda da taxa geral de lucro.
Em que pese todo este quadro, a concorrência capitalista empurra os capitalistas a
adotarem a capitalização (ou tecnologização) da produção. Aqueles que primeiramente adotam
os ‘novos’ métodos de capital mais intensivo, ao reduzir custos podem reduzir também seus
preços abocanhando parte do mercado junto aos seus concorrentes. Podem também manter por
um determinado período uma acumulação relativamente elevada para os padrões gerais da ‘nova’
realidade da acumulação. Aqueles capitalistas que lhes seguem na aplicação do referidos
métodos não dispõe desta acumulação relativamente elevada, visto que recoloca-se uma nova
guerra de preços, reduzindo a acumulação. Aqueles capitalistas que não conseguem aplicar os
novos métodos vão à falência ou restringem-se a um papel econômico periférico e quase tãosomente reiterativo.
Para o capitalista individual que primeiramente adota estes métodos de capital
intensivo, o menor custo unitário obtido permite reduzir preços e expandir-se a expensas de seus
concorrentes, compensando sua menor taxa de lucro (por unidade produzida), por meio de uma
fatia maior do mercado. Aqueles que adotam os referidos métodos tardiamente e/ou estão
sujeitos a pressões financeiras, estão sujeitos, ao mesmo tampouco, a uma taxa de lucro ainda
menor e a uma acumulação igualmente menor no conjunto do ciclo econômico.
No sistema como um todo, o resultado é a queda da taxa média de lucro. Este resultado
determina um desestímulo crescente à acumulação, ou seja, da realização de novos
investimentos, tendo em vista a manutenção/ampliação da massa de lucros.
A estagnação da massa total de lucro, enquanto uma ‘onda longa’ no sistema, tende a
conduzir, em um certo momento, a uma crise geral do sistema. Conforma-se, portanto, a
tendência secular de queda da taxa média de lucro (processo ao longo do qual ‘ondas longas’ de
crise e de acumulação necessariamente ocorrem).
17
A tendência de queda da taxa média de lucro convive com contra-tendências
neutralizadoras (Coggiola (Coord.), 1996, p. 194-195; Bottomore, 1988, p. 371-373; Sweezy,
1976, p. 125-128). A contenção salarial; a intensificação do processo de exploração da força de
trabalho; a eliminação de conquistas trabalhistas; a recriação de formas de exploração e
dominação extra-econômica (escravidão, servidão, etc); a geração de capital constante mais
barato por meio de uma determinada tecnologia disponível; a migração de empresas para espaços
sócio-econômicos e territoriais com força de trabalho e recursos naturais mais baratos; o
desenvolvimento de novos métodos de gestão da produção que alcançam maior racionalização da
produção e intensidade do trabalho; a terceirização de fases da atividade produtiva barateando
custos de serviços e produtos; a importação de bens de consumo para assalariados e meios de
produção mais baratos; o desenvolvimento de indústrias complementares nas quais a composição
orgânica de capital fosse relativamente baixa, entre outros processos, podem contribuir para a
elevação da taxa de lucro, aumentando a taxa de exploração e/ou baixando a composição
orgânica do capital. Tais processos são tão importantes para o capitalista individual como para o
sistema como um todo.
Os referidos processos (entre outros) podem compor um processo mais amplo, qual
seja, a reestruturação produtiva. Enquanto tal será, necessariamente, um mecanismo voltado para
assegurar, de um lado, o avanço das forças produtivas, e, de outro, a re-subordinação do trabalho
ao capital com novos métodos organizativos/administrativos que esvaziem o potencial de
resistência dos trabalhadores.
A reconstituição e/ou ampliação do exército industrial de reserva nos quadros da crise
possui uma importância particular enquanto uma contra-tendência à tendência de queda da taxa
média de lucro. A perda de estímulo para novos investimentos e a destruição de forças produtivas
(falências, concordatas, desvalorização e/ou destruição dos excedentes etc) provocados pela
crise, proporciona um ambiente extremamente favorável para a diminuição dos salários e para a
queda das condições de trabalho graças à super-oferta da força de trabalho. Tal processo diminui
o custo do trabalho no âmbito dos custos da produção e é um importante fator de ampliação das
taxas de extração de mais-valia.
Destacamos também enquanto contra-tendência à tendência de queda da taxa média de
lucro o papel que o Estado passa a cumprir a partir da crise de 1929. A conversão do fundo
público em fundo de financiamento da acumulação, a possibilidade de mobilizar capitais
especulativos e canalizá-los para a produção, por meio da emissão de títulos, a transformação do
Estado em agente produtivo que pode determinar sob certas conjunturas o perfil da conjuntura ou
período econômico e/ou abrir mão dos seus ganhos em benefício da iniciativa privada, o
18
desenvolvimento de pesquisas tecnológicas e científicas para o capital, a condição de grande
comprador e impulsionador/contratador de obras públicas, entre outras condições e atribuições,
edifica o Estado como uma instituição anti-crise e de contra-tendência à queda da taxa média de
lucro.
É necessário reconhecermos, ainda, que a crise, enquanto realidade do sistema
capitalista e independentemente de ser mais ou menos destrutiva, será parte constitutiva do
processo de concentração e centralização de capitais (Coggiola (Coord.), 1996, p. 303-315). O
referido processo, em termos econômicos globais de cada país (não de cada empresa enquanto
unidade produtiva), apresenta uma fase em que predomina a concentração e outra em que
predomina a centralização de capitais. Na fase da concentração de capitais - precedida por uma
fase de centralização de capitais e desencadeada por uma nova etapa de competição oligopolista
e monopolista e/ou pela atuação de governos por meio da manipulação de políticas econômicas as reservas de capitais acumulados por parte das empresas e presentes na órbita financeira são
aplicados na ampliação quantitativa e/ou qualitativa das empresas, verticalizando e/ou
horizontalizando os espaços de atuação dos seus capitais. Nesta fase, o crescimento das despesas
ocorre passo a passo com o aumento das receitas.
A rigidez relativa entre a estrutura de custos e o nível das receitas determina uma
instabilidade para as empresas que necessitam contar com provisão financeira - com exceção dos
oligopólios e uma parte dos monopólios, a maioria das empresas necessitam da referida provisão,
obtida junto ao sistema financeiro. As empresas não monopolistas ou monopolistas sem suporte
de autofinanciamento somente dispõem de duas alternativas: ingressar na fase da concentração
de capitais (sob pena de reduzir suas receitas em relação às demais empresas) ou amargar uma
gradual marginalização no mercado.
Desencadeado o processo, conforma-se a tendência à homogeneização das taxas de
retorno imposto pelos oligopólios e monopólios, com grandes conseqüências econômicas. As
empresas que não efetuam despesas, embora com taxas de retorno superiores à taxas de retorno
média imposto pelos oligopólios e monopólios possuem receitas infinitamente inferiores.
Aquelas empresas monopolistas ou não que recorreram intensamente aos empréstimos junto ao
sistema financeiro também apresentam uma receita inferior aos oligopólios e monopólios que se
auto-financiaram. No curso do processo da concentração de capital - no qual ocorre a reprodução
ampliada do capital, ou seja, expansão que ultrapassa a pura e simples reiteração econômica - o
impacto desencadeado pela nova taxa de retorno e os custos financeiros de muitas empresas será
a falência e conseqüente incorporação daquelas despreparadas para a competição nos termos
ditados pelas maiores e mais capitalizadas. Em conseqüência, diminui o número de empresas e
19
intensifica o controle dos oligopólios e monopólios sobre o mercado.
Consumado o processo tem início novamente a fase de centralização de capitais, ou
seja, de capital líquido na forma de lucros das empresas diretamente produtivas que ampliam
suas receitas - oligopólios e monopólios - ou empresas financeiras que partilham dos lucros das
empresas que recorrem a financiamentos - bancos, bolsas de valores etc. A nova massa de
capitais não diretamente aplicado, ou reserva de poupança, começa a ser recomposto preparando
as condições para uma nova fase de concentração de capitais.
A crise, independentemente da sua extensão e natureza, cumpre sempre um importante
papel na reprodução ampliada do capital, qual seja, o de destruir para construir em novas bases.
A crise (incompatibilidade entre produção e consumo; interrupção do fluxo de compras e vendas
ou de pagamentos; desproporcionalidade e desequilíbrio entre os departamentos econômicos em
que se divide o capital social; queda da taxa média de lucro; sobre-acumulação; desvalorização
do capital existente e contradições inerentes à dinâmica de concentração e centralização de
capitais) será, portanto, fruto da contradição constitutiva do capital.
As crises não levam a um colapso econômico final capaz de destruir completamente e
de uma só vez o sistema. Para Marx, o fim das crises somente pode advir do trabalhador, que
tomando consciência de si mesmo e das relações sociais que o envolvem, edifica-se como o
sujeito real e verdadeiro da produção (dominando o sujeito abstrato, representado pelo capital). O
capitalismo, cuja essência é a (relação de) contradição inscrita na sua própria origem, desaparece
com a eliminação da referida contradição; o que equivale reconhecer que a crise no capitalismo
somente seria superada por meio da superação do próprio sistema.
A concepção de crise em Marx, conforme identificamos, não pode ser separada da
dinâmica do capital e, nem tampouco, a superação definitiva da crise no capitalismo fora da
superação do próprio capitalismo. Neste ponto reside a unidade dialética da concepção marxista a
cerca do capital e da crise. As teorias que se encontram fora desta concepção (incluindo aquelas
que se reivindicam da teoria econômica de Marx), de forma explícita ou não, conformam-se
enquanto teorias (ou metodologias) para o capital.
Em nossa perspectiva, cada processo de crise no capitalismo compõe uma teia
específica de articulação destes elementos `estruturais´ identificados por Marx. A crise, portanto,
deve ser compreendida enquanto crise das relações capitalistas de produção e que, como tal, pode
encontrar, como obstáculos conjunturais à sua reprodução, realidades econômico-sociais e/ou
institucionais.
Os obstáculos à reprodução capitalista poderão inviabilizar ou imprimir um curso
particular ao desenvolvimento capitalista. A forma e o sentido da superação destes obstáculos
20
serão, necessariamente, uma conseqüência da interferência das classes, movimentos, grupos
sociais e partidos políticos, em uma dada conjuntura nacional e internacional e sob uma
determinada correlação de forças, em nível das superestruturas sociais.
Postas estas considerações gerais, é necessário que superemos alguns equívocos quanto
ao entendimento do conceito crise no sistema capitalista. Primeiramente, é necessário que se
compreenda que a crise não é algo anormal ao sistema capitalista. Ela compõe a essência do
referido sistema e é necessária à sua própria reprodução.
Em segundo lugar, compreender que cada crise possui a sua especificidade. Uma crise
poderá ser induzida ou não pelo poder público, como também ser mais ou menos duradoura.
Em terceiro lugar, devemos distinguir as crises em função do grau e profundidade da
sua repercussão. Neste sentido, as crises podem ser de repercussões mais imediatas e de curto
prazo, que decorrem de flutuação dos indicadores econômicos e da re-acomodação produtiva das
atividades econômicas; de repercussão mais ampla, que podem findar/criar novos ciclos
expansivos no âmbito de um padrão de acumulação e financiamento; e, finalmente, de
repercussão muito ampla, que caracterizam o esgotamento de um padrão de acumulação e
financiamento capitalista.
Em quarto lugar, devemos reconhecer que a crise no capitalismo não possui
causalidades puramente econômicas e que estas podem não encontrar-se entre os fatores mais
importantes na deflagração de uma crise econômica. O que implica orientarmo-nos por uma
perspectiva de totalidade, ou seja, localizar fatores sociais, políticos, econômicos e ideológicos
que concorram para uma crise, bem como hierarquizá-los segundo a sua importância na
conjuntura.
Em quinto lugar, a crise provoca, inexoravelmente, uma estagnação ou acumulação
restrita de capital em termos econômicos globais. Comumente ocorre, paralelamente a este
processo, a transferência de mais-valia e rendas para os grupos monopolísticos e oligopolísticos
assegurando-lhes elevadíssima acumulação.
Em sexto lugar, uma crise econômica pode estar criando condições sociais, políticas,
econômicas e ideológicas para uma nova fase de acumulação do capital. Neste sentido, a
destruição desencadeada pela crise pode ser um pressuposto para uma nova construção (ou
expansão das relações capitalistas de produção).
Capitalismo e Experiências ‘Pós-Revolucionárias
As contradições emergidas do capitalismo e indicadas por Marx dão conta de evoluir
21
para processos revolucionários no século XIX e, principalmente, no século XX. Alguns
destes processos são derrotados, a exemplo da Comuna de Paris de 1871, outros nos legam as
experiências ‘pós-revolucionárias’, a exemplo do leste da Europa e da China.
As experiências ‘pós-revolucionários’ denominadas ‘socialismo real’ não logram
realizar a utopia socialista. O burocratismo, as relações autoritárias de poder, a corrida
armamentista, o desequilíbrio do desenvolvimento do processo produtivo, o atraso técnicocientífico comparado aos centros dominantes do capitalismo, são demonstrações inequívocas
da deturpação e desvirtuamento das sociedades ‘pós-revolucionárias’.
E trivial - senão conservador - fixarmos apenas nas condições objetivas para explicar
os ‘desvios’ e ‘insuficiências’ dos processos de construção do socialismo nas sociedades ‘pósrevolucionárias’. É necessário salientarmos a distância estabelecida entre essas experiências
históricas e a utopia socialista, especialmente a violentação da práxis da transformação social
pela ação das vanguardas políticas. Em outras palavra, é menos importante compreender a
superioridade tecno-científica dos centros imperialistas quando comparado com a
identificação dos obstáculos que as estruturas de poder construídas nas experiências ‘pósrevolucionárias’ acarretam no sentido da incompetência, acomodamento, desilusão e
desperdícios, tendo em vista a compreensão da crise das referidas experiências.
A transição do capitalismo para o socialismo somente poderá assegurar a superação
da propriedade e do controle privado dos meios de produção se tal processo encontrar-se
integrados coerentemente com o caráter social da produção e basear-se em uma hegemonia do
mundo do trabalho. A contradição dialética entre a intervenção direta do mundo do trabalho
(expresso no conceito ‘controle social da produção’) e os centros de poder externo ao mundo
do trabalho (expresso na nova estrutura de poder construída) deve ser superado pela gestão
direta da produção já nos primeiros ‘momentos’ da transição para o socialismo. Dessa forma,
poderá ser possível libertar e harmonizar o desenvolvimento das forças produtivas com as
necessidades da sociedade humana. Nada disto ocorre nas sociedades ‘pós-revolucionárias’ do
século XX.
A práxis política de transformação social deve superar qualquer prática política
sectária e golpista, de forma a orientar-se pela ética e pela autonomia do movimento. O
sentido estratégico da práxis pode significar a realização da utopia socialista ou a sua negacão,
a transição para o socialismo ou a crise de definição e de perspectivas em sociedades ‘pósrevolucionárias’.
Os equívocos das concepções predominantes nas experiências ‘pós-revolucionárias’
não permite que a tese de Marx, segundo a qual a propriedade dos produtores sobre os meios
22
de produção libertaria o desenvolvimento das forças produtivas, fosse confirmada ou
refutada pela ação concreta dos atores sociais do mundo do trabalho.
Capitalismo e Conflito Social
O papel transformador do mundo do trabalho e a transição para o socialismo sofrem
uma crise para algumas análises marxistas sobre sociedades capitalistas de intermediário e de
elevado grau de desenvolvimento das forças produtivas. Para situarmos o debate necessitamos
identificar alguns aspectos da sociedade capitalista do final do século XIX e do século XX.
Marx previa um conteúdo revolucionário e permanente do capitalismo no plano do
desenvolvimento das suas forças produtivas. Para Marx, o capitalismo removeria a camisa-deforça sob a qual as forças produtivas encontrariam-se submetidas nas sociedades précapitalistas e as conduziria de tal forma que as contradições, no que concerne às relações
capitalistas de produção, estabeleceriam um período revolucionário de transição para o
socialismo. A tendência de proletarização crescente de amplas camadas da sociedade e a
internacionalização do espaço e política revolucionárias haveriam de se constituir em uma
conseqüência dialética do processo.
Essas previsões de Marx não se confirmam plenamente. No seu processo de
desenvolvimento o capitalismo mundializa-se definitivamente, estende os seus tentáculos
sobre todas as esferas da vida social e alcança o estágio de capitalismo monopolista de Estado.
Mas nesse processo (e como reação a estratégia socialista) produz-se um conjunto de
iniciativas e instrumentos no sentido de garrotear a contradição fundamental capital versus
trabalho, de forma a buscar a subordinação do desenvolvimento das forças produtivas às
relações capitalistas de produção.
No plano técnico e científico o desenvolvimento das forças produtivas encontra-se
deprimidas por que estão vinculadas necessariamente ao desperdício e ao luxo elevado e
irrestrito. Grandes somas de excedentes são transferidas para financiar e manter a indústria da
guerra; indústrias locomotivas do sistema, como a de automotores, produtoras de veículos de
luxo e de decrescente duração, secundarizam a produção de meios de trabalho produtivo e de
transporte de massa; informática e eletrônica, sob os limites das relações capitalistas de
produção, canalizam-se muito mais para área de distribuição, serviços e pesquisas, do que
para os processos de produção propriamente ditos, e assim por diante.
A sociedade norte-americana, locomotiva do capitalismo e paraíso do ‘modus
vivendi’ burguês ocidental é paradigmática. O elevado grau de desenvolvimento das suas
23
forças produtivas expressam esse conteúdo repressivo e destrutivo, por meio do luxo e
desperdício nacionais, financiados graças a um sucateamento do sistema produtivo e
pauperização social da periferia do mundo capitalista (América latina, África, etc) e pela
‘guetificação’ social de parcelas da população da própria sociedade norte-americana. O
‘irracionalismo econômico’ atinge o seu clímax e dramaticidade no próprio déficit público
anual dos Estados Unidos, no momento superior a um terço da dívida externa fixa do
chamado ‘terceiro mundo’.
No plano político o desenvolvimento das forças produtivas encontra-se deprimido,
primeiramente, pela institucionalização das lutas sociais. As reformas eleitorais e trabalhistas
conduzidas na Alemanha no final do século XIX por Otto von Bismarck e posteriormente
exportadas para outros países são capazes, respectivamente, de integrar/subordinar a ação
política da esquerda ao campo institucional e de lançar as bases das progressivas reformas
sociais e de seguridade social que redundaria mais tarde no Estado do bem-estar social. A
carência de uma política econômica coerente com estas reformas e a necessidade de controlar
a instabilidade depressiva e as crises termina por proporcionar a teoria keynesiana de
regulação econômica.
A revolução produtivista proporcionada pelos métodos fordista e taylorista de gestão
produtiva integra estas mudanças institucionais. A divisão técnica do trabalho realizado por
estes métodos assegura a ampliação da produção sem que para tanto tenha que assegurar um
trabalhador com ampla consistência intelectual e motivado pelo trabalho coletivo.
Combinadamente, o fordismo, o taylorismo e, a partir das últimas décadas, o toyotismo
advoga nos países de capitalismo central a produção em massa e consumo em massa, nela
incluído os trabalhadores.
Amplia-se progressivamente a partir do final do século XIX as reservas sociais e
políticas da hegemonia burguesa. O capitalismo encontra um meio de integrar, sob
determinados limites, as expectativas individuais de consumo e conforto das pessoas em geral
e dos trabalhadores em particular com a necessidade de reprodução material dele mesmo. Este
processo, consolidado nas décadas de 50 e de 60 na forma dos chamados anos dourados do
capitalismo, provavelmente teria ocorrido antes não fosse as duas grandes guerras mundiais.
No plano da formação da consciência o desenvolvimento das forças produtivas
encontra-se reprimido devido a manipulação científica das necessidades, dos desejos, das
satisfações, dos prazeres. Esta manipulação representa um reforço complementar à unificação
e integração da sociedade. Surgida da combinação entre a mídia eletrônica e a psicologia
comportamental - manipuladas cientificamente - ela opera em nível da publicidade, da
24
indústria da diversão, etc, de forma a gerar o nó górdio entre a superestrutura políticoideológica e a base do processo produtivo. Esse padrão ‘americanista’ da sociedade de trocas,
emergido da concepção liberal do trabalho e da reificação do mercado, tem funcionado como
um importante pára-choque das contradições e conflitos sociais.
A razão crítica transformadora, que se apresenta como algo irresistível para os
marxistas do final século XIX e início do século XX, dá lugar à uma razão crítica
instrumental, fruto da coisificação humana na sociedade de trocas. A perspectiva do
desenvolvimento da consciência ‘em si’ para a consciência ‘para si’ - transformadora e
internacionalista - não se realiza na sociedade da Revolução de Outubro. Na Europa
Ocidental, após as tentativas revolucionárias das primeiras décadas, podemos mesmo concluir
ter ocorrido um refluxo da consciência ‘em si’ para a consciência ‘corporativa’.
O capitalismo monopolista de Estado - proveniente da fusão das instituições e órgãos
públicos com os núcleos dirigentes dos monopólios e oligopólios - consegue reprimir o
desenvolvimento da contradição estabelecida entre as forças produtivas e as relação de
produção capitalistas por meio da combinação entre a planificação econômica e aparelhos
públicos e privados de hegemonia. A concepção marxista da passagem do capitalismo para o
socialismo passa a conviver, a partir de então, com abalos emergidos da nova configuração do
capitalismo.
Ao construir novas reservas políticas e ideológicas a classe dominante não perde de
vista o terreno nacional como a base fundamental para a realização do seu domínio. Os países
de economia central buscam garantir índices de bem estar para parcelas substanciais das suas
populações, visando promover altos níveis de estabilidade política e o tempo e espaço
necessário para fortalecer sua hegemonia ideológica. O capital oligopolista e financeiro
internacional compreende que a coesão interna dos países de capitalismo central é
fundamental para manutenção do domínio do capital em plano mundial.
Nos países de capitalismo periférico a ‘pauperização progressiva’ é real para amplos
setores. Contudo, os aparelhos de hegemonia, a militarização do Estado, os recursos da
política tradicional, a constituição de segmentos sociais médios privilegiados, entre outros
elementos, constituem-se em amortecedores das contradições sociais, isto é, convertem em
mecanismos de contenção do desenvolvimento da luta de classes na perspectiva da
transformação social.
O capitalismo não pode conter ad eterno a contradição fundamental estabelecida
entre as forças produtivas e as relações de produção. A subordinação das forças produtivas às
relações de produção pode estar sendo abalada por meio da globalização da economia, do
25
acirramento da competitividade, da reestruturação produtiva, da desregulamentação
econômica, da demolição e/ou minimização do Estado do bem-estar social em diversos países,
da desregulamentação do mercado de trabalho, entre outros processos, em curso a partir dos
anos 70 na Europa Ocidental e Japão e anos 80 e 90 do século XX no restante do mundo. As
crises econômicas periódicas, o acirramento da disputa de hegemonia entre os blocos
imperialista, a elevação do movimento operário internacional, a luta pela garantia das
conquistas conduzidas pelo ‘socialismo real’ no leste da Europa, são exemplos de processos
que expressam luta de classe e que são capazes de proporcionar acirramentos da contradição
fundamental.
Em que pese o contexto histórico favorável para o desenvolvimento do capitalismo
no início do século XXI, não há como não reconhecer que ele sofre derrotas importantes. O
movimento anti-globalização, a internacionalização da luta pelo socialismo, os limites da ação
imperialista no mundo muçulmano, etc, evidenciam, por um lado, processos históricos que
não podem simplesmente ser removidos pelo capitalismo e, por outro, as condições básicas e
fundamentais destes conflitos não possuem solução no seu interior.
O Marxismo Reprimido
A dinâmica de reprodução ampliada do capital e as novas configurações sociais,
políticas, econômicas e ideológicas do desenvolvimento capitalista proporciona um ambiente
que pode desencadear a superação de alguns conceitos e categorias do marxismo. Na verdade,
uma previsão feita pelo próprio marxismo. Todavia, a crítica a conceitos e categorias
marxistas esta dando lugar a crítica ao método e a própria práxis política da transformação
social.
Os maiores adversários do marxismo emergem, não raramente, por dentro dele
próprio. O revisionismo de Bernstein, Kautsky ou Mach, que buscam criticar o núcleo central
das estruturas de análise que compõem o método e filosofia, são exemplos desta realidade. Os
ideólogos da Teologia da Libertação reivindicam o ‘método marxista’ destituído da sua
filosofia. Na verdade, propõem um retorno à um paraíso perdido: o hegelianismo de esquerda.
Para os magos da ‘nova esquerda’, o marxismo é superado enquanto doutrina e filosofia
revolucionária, restando um referencial - junto a outros - para interpretação e crítica do
capitalismo. O marxismo - como momento da práxis revolucionária -, é dispensado, em
função de um ecletismo metodológico e humanista neo-idealista. A ala esquerda da social-
26
democracia (e aliados), questionam para além do método. Conceitos universais como: luta
de classes, ruptura, revolução, entre outros, para esses setores fazem parte do grande sistema
mitológico representado pelo ‘marxismo revolucionário’. Conforme Lukács,
A função do marxismo ortodoxo - superar o revisionismo e o utopismo - não é a liquidação, de uma vez por
todas, de falsas tendências, mas sim uma luta incessantemente renovada contra a influência corruptora de formas
do pensamento burguês sobre o pensamento do proletariado.
Manter o ‘alvo final’ ou a ‘essência’ do proletariado isentos das distorções do materialismo vulgar, significa a
compreensão da realidade, a atividade crítica prática, a superação da dualidade utópica do sujeito e do objeto, da
teoria e da práxis
Esse quadro emerge de um duplo processo. De um lado, a crise das experiências
‘pós-revolucionárias’ expressa, principalmente, por meio das burocracias autoritárias, das
contradições nacionais e do atraso técnico e científico dessas sociedades. De outro lado, pela
enorme capacidade repressiva desenvolvida pelo capitalismo junto às suas contradições
básicas e fundamentais. A crise das sociedades ‘pós-revolucionárias’ e os novos obstáculos à
luta pelo socialismo nos países periféricos e, principalmente, centrais do capitalismo, gera
uma perplexidade no movimento socialista, de forma a expressar concepções revisionistas.
Recriadas tendo como referência a social-democracia européia e desenvolvidas em novas e
diversas formas, estas concepções estão quase sempre preocupadas com as ‘antinomias do
marxismo’.
Os críticos do marxismo ‘ortodoxo’ ampliam a sua influência, principalmente por
meio da academia. O marxismo universitário desloca o centro de reflexão do movimento
social e da luta de classes, como determina a melhor tradição marxista, para a academia.
E como tal reivindica a separação da dialética do materialismo; da interpretação da
realidade da articulação à perspectiva do mundo do trabalho; e do mundo do trabalho da
transformação social. Esta é sempre o centro da ação política, teórica e filosófica de
inspiração pequeno-burguesa contra o marxismo clássico. Não mais se estabelece uma relação
dialética entre sujeito e objeto; quem conhece, conhece para si e para a academia e não para a
classe. O conhecimento reflui para o plano da especulação e da ‘objetividade’ científica.
Em certa medida, o marxismo universitário expressa o próprio processo de cooptação
ideológica desenvolvido pela hegemonia burguesa, de forma a reduzir o marxismo a um
método, concepção e teoria especulativa. A décima primeira tese sobre Ludwig Feuerbach é
rejeitada, consciente ou inconscientemente, por amplos setores. Ainda segundo Lukács,
27
O marxismo ortodoxo refere-se ao seu método. Implica na convicção científica de que com o marxismo
dialético encontrou-se o método correto de investigação e de que este só pode ser desenvolvido, aperfeiçoado e
aprofundado no sentido indicado por seus fundadores; mais ainda: implica na convicção de que todas as
tentativas de ‘superar’ ou ‘melhorar’ este método conduziram e necessariamente deveriam fazê-lo – a sua
trivialização, transformando-o num ecletismo
A denominada crise do ‘marxismo’ surge da incompreensão, em uma perspectiva
histórica, da contradição formada entre o desenvolvimento crescente das forças produtivas e
os obstáculos representados pelas relações de produção. Contradição esta relegada pelos
novos revisionistas de sempre. Marx indica na obra Para a Critica da Economia Política
(1858) as tendências econômico-tecnológicas internas ao desenvolvimento capitalista e que
proporcionariam a sua tendencial dissolução: (Marx, 19.., p...).
A medida que a grande indústria se desenvolve, a criação de riqueza real depende menos do tempo de trabalho e
da quantidade de trabalho empregado e mais da potência dos instrumentos colocados em operação durante o
tempo de trabalho. Esses instrumentos e a sua poderosa eficácia não são proporcionais ao tempo de trabalho
imediato requerido pela produção; sua eficácia depende antes do nível científico adquirido e do progresso
tecnológico, ou seja, da aplicação da ciência a produção.. – O trabalho humano não mais aparece então encerrado
no processo de produção; é antes o homem que é ligado a esse processo apenas como supervisor e regulador. Ele
está fora do processo de produção, ao invés de ser o seu agente principal... Nessa transformação, a base da
produção e da riqueza não é mais o trabalho imediato realizado pelo homem, nem o seu tempo de trabalho, mas a
apropriação de sua produtividade universal (poder criador), isto é, de seu conhecimento e de seu domínio da
natureza através de sua existência social; em suma, do desenvolvimento do indivíduo social (das muitas
capacidades). O furto do tempo de trabalho de um outro homem, sobre o qual se funda ainda hoje a riqueza
social, aparece então como uma base bastante miserável, em comparação com a nova base criada pela grande
indústria. Tão logo o trabalho humano, em sua forma imediata, deixe de ser a grande fonte de riqueza, o tempo
de trabalho deixará de ser e de um modo necessário – a medida da riqueza; e o valor de troca deixará de ser a
medida do valor de uso. O sobre-trabalho da Massa (da população) cessará de ser a condição para o
desenvolvimento da riqueza social, e a situação privilegiada de alguns deixará de ser a condição para o
desenvolvimento das faculdades intelectuais universais do homem. Então, cai o modo de produção baseado sobre
o valor de troca
O colapso do capitalismo em Marx está ligado a tendência de crescente automação
fruto da enorme centralização/concentração do capital, no qual o produtor estaria cada vez
mais livre do processo de produção. O produtor poderia, desta forma, desenvolver a crítica
radical da sociedade capitalista e burguesa e construir a consciência de classe ‘em si’ e a
consciência de classe ‘para si’, de forma a compreender o sentido ‘pré-histórico’ da
28
apropriação privada dos frutos do trabalho e apreender a necessidade de remover a
contradição em favor do desenvolvimento humanizado das forças produtivas. A modernidade
do capitalismo tem evidenciado a tendência, mas contraditoriamente, tem desenvolvido
instrumentos para reprimi-la.
Objetivamente, o revisionismo enfraquece o marxismo como teoria da crítica radical
e priva o próprio método da práxis da perspectiva da transformação social. Por não
compreender esta dinâmica do processo histórico, o resultado tem sido um retorno ao tipo de
orientação política que majoritariamente grassa no Partido Social-Democrata Alemão, sob a
direção de Kautsky e Bernstein. A estratégia gradualista para o socialismo no plano da tática
política é orientado por uma política institucional-parlamentar, respaldado por um movimento
sindical reivindicativo-imediatista. Em nível da ciência priva o trabalho científico do seu
sentido de classe e transformador, de forma a reduzir-se a um conhecimento ‘objetivo’. Em
outras palavras, reduz o marxismo a uma manifestação ‘positivista’ de esquerda.
Libertar o marxismo do revisionismo ocupa grande importância na práxis voltada
para a transformação social. A exemplo de Lukács e da Escola de Frankfurt é necessário que
sejamos ‘ortodoxos’ na defesa da sua essência, o método. Combinadamente, é necessário
desenvolver uma estratégia político-cultural mediada por uma camada de intelectuais
orgânicos de classe, capazes de proporcionar a construção de um movimento social amplo e
radical o bastante para efetuar a crítica ao capitalismo e dirigir a construção da consciência de
classe ‘em si’ e ‘para si’. Enfim, articular uma intervenção ao nível da infra e superestrutura
social, informado por uma nova concepção de mundo, social-revolucionária, que permita a
conformação de um novo bloco histórico capaz de remover os obstáculos criados pelo
capitalismo para o avanço do processo histórico.
Construir a Autonomia do Marxismo
Até a década de 30 do século XX partidos comunistas, a exemplo do italiano,
exercem uma influência criativa no desenvolvimento do marxismo. O marxismo se articula à
prática social e deste processo resultam transformações que o enriquecem.
Posteriormente, sob a influência dos conflitos estabelecidos entre a II e a III
Internacionais e, principalmente, por causa da relação burocrática, autoritária e a-crítica
estabelecida entre a III Internacional e os partidos comunistas e destes para com seus
militantes, grande parte da atividade teórica marxista acaba por se transferir para as
universidades e se desvincular da prática política. Como conseqüência emergem novas
29
concepções a cerca do marxismo e que não raramente divergia do pensamento original de
Marx e Engels.
O desvirtuamento do marxismo encontra a partir de então um campo fértil. Isto
porque o acadêmico não leva muitas vezes em conta as conseqüências práticas do seu
pensamento, de forma a desautorizar um aspecto central do marxismo, qual seja, articular
criativamente a teoria e a prática. O marxismo universitário haveria de enriquecer e, ao
mesmo tempo, desviar o curso do marxismo. Superar o marxismo universitário é um passo
importante no sentido do resgate da práxis transformadora.
Outra iniciativa importante é libertar o marxismo da camisa de força representado
pelo leninismo. O conceito ‘leninismo’ não possui um sentido de ‘universalidade’ na
perspectiva de uma práxis transformadora. Formado no período da III Internacional a partir da
necessidade de desenvolver uma organização partidária para a luta da transformação social em
um contexto caracterizado por uma profunda repressão política, tal conceito prolonga-se para
uma determinada concepção da internacional, do Estado soviético e de direções partidárias,
cujas únicas interpretações válidas passam a ser aquelas emergidas da estrutura partidária.
O ‘marxismo’ enquanto teoria leninista da revolução e amalgamado na política do
partido perde a sua flexibilidade e autonomia como método de análise perante as práticas de
partido. Não é casual a crise de elaboração ao nível da teoria e filosofia marxista ao longo do
período, na medida em que um aspecto essencial à teoria crítica, qual seja, a liberdade de
interrogação, encontra-se condicionado a estrutura orgânica do partido, a sua prática social, a
sua concepção e o seu programa.
Libertar o marxismo do leninismo não significa o retorno a um marxismo contemplativo. A superação do leninismo poderá proporcionar espaços para a reafirmação do método
de análise marxista, condição necessária para a construção de uma teoria critica superior do
capitalismo, para a construção de novos instrumentos de luta do mundo do trabalho e para a
derrota estratégica do social-reformismo. A articulação destas diversas frentes de intervenção
política do marxismo deve partir da sua própria crítica e convergir no reconhecimento da
realidade nacional, de forma a identificar o novo estágio do capitalismo e suas contradições
básicas; apreender a superestrutura vigente, em especial os modernos aparelhos privado e
públicos de hegemonia; e compreender a estrutura de classes e a diversidade de expressões
políticas e ideológicas que dela emergem.
O marxismo há de ser ‘militante’. Deve contribuir para o aprofundamento da crítica
das experiências ‘pós-revolucionárias’ e para a compreensão dos processos sociais que
reprime o desenvolvimento das forças produtivas, em especial a formação da consciência de
30
classe, tendo em vista supera-los. Combinadamente, deve buscar contribuir para a
construção de referenciais gerais para o enfrentamento com capital em sua dimensão global.
31
3 – DIALÉTICA E HISTÓRIA
Marx, por meio do diálogo crítico com os pensadores que o precedem e do
compromisso com o mundo do trabalho, confecciona um novo método de análise. Método
este que proporciona uma nova concepção de homem e de sociedade, uma interpretação
dialética da história e uma crítica da economia política.
3.1 - Sociedade e Totalidade em Marx
Identificar o método de análise de Marx nos impõe, de início, expor o seu conceito de
“sociedade”. Para Marx, a sociedade, articulada por meio de uma formação social concreta e
específica, seria produto do desenvolvimento individual e da ação recíproca dos homens,
tenham eles consciência disso ou não. Entretanto, não poderiam eleger a formação social em
que se encontram nem tampouco arbitrar livremente sobre suas forças produtivas. A formação
social e as forças produtivas seriam o resultado, respectivamente, das lutas sociais e da ação
sobre a natureza conduzidos por parte dos homens que os precederam.
A sociedade se conformaria em um todo complexo e interdependente, sujeita a
múltiplas determinações. A um determinado nível do desenvolvimento das forças produtivas,
corresponderia um determinado desenvolvimento da produção, do comércio e do consumo.
Um determinado nível do desenvolvimento da produção, do comércio e do consumo,
corresponderia a um determinado desenvolvimento das formas de organização social –
organização da família, das classes sociais etc. Um determinado nível de desenvolvimento das
formas de organização social, corresponderia a um determinado Estado. Um determinado
desenvolvimento das forças produtivas e das relações de produção, corresponderia a
determinadas expressões ideológico-culturais (Marx e Engels, 1952, p. 414-424).
A sociedade, articulada por meio de uma formação social concreta e específica,
encontrar-se-ia em constante movimento. Portanto, qualquer formação social seria sempre
transitória e histórica.
Este conceito de “sociedade” é uma construção proporcionada pelo método dialético
e compõe a concepção materialista da história. A compreensão das sociedades de classes, por
exemplo, não pode ocorrer, portanto, abstraindo a gênese da sociedade, o modo como ela é
produzida e o modo como ela opera em função da sua própria gênese.
3.2 - O Método Dialético
32
Marx busca, em diversas oportunidades, distinguir o método dialético de Hegel do
seu próprio método dialético. Uma destas oportunidades surge por meio do posfácio da
segunda edição de O Capital para o alemão (Marx, 1988, p. 21-27).
Para Hegel, segundo Marx, o processo do pensamento, identificado com a Idéia (ou
Razão Absoluta), transformar-se-ia no sujeito, no demiurgo do real, do material; todo o real
seria apenas uma materialização externa da Idéia. O movimento do real, do material seria, por
assim dizer, uma realidade derivada, visto que seu fundamento e determinação se daria na
Idéia. O homem histórico, portanto, seria apenas um instrumento do qual se valeria a Idéia
para se desenvolver.
Para Marx, a idéia não pré-existiria ao real, ao material. A idéia seria o próprio real
transposto e traduzido no pensamento do homem. Marx excluía o sublime do existente, do
real, contrapondo a dialética mistificada de Hegel à dialética calcada no real.
Essa leitura dialética e materialista da relação entre idéia e real determinaria o
método de análise de Marx, de modo que este partiria sempre da investigação preliminar do
real e do concreto. Não do real e do concreto idealizado, como poderia sugerir o termo
“população”, quando abstraído das suas classes sociais, das relações de produção sobre as
quais se apoia etc, que, segundo Marx, somente poderia permitir atingir abstrações frágeis e
progressivamente mais simples. Mas do real e do concreto enquanto uma rica totalidade de
determinações e diversas relações. (Marx, 1982, p. 14).
(...) o concreto aparece no pensamento como o processo da síntese, como resultado, não como ponto de partida,
ainda que seja o ponto de partida efetivo e, portanto, o ponto de partida também da intuição e da representação.
No primeiro método, a representação plena volatiliza-se em determinações abstratas, no segundo, as
determinações abstratas conduzem à reprodução do concreto por meio do pensamento. Por isso é que Hegel caiu
na ilusão de conceber o real como resultado do pensamento que se sintetiza em si, se aprofunda em si, e se move
por si mesmo; enquanto que o método que consiste em elevar-se do abstrato ao concreto não é senão a maneira
de proceder do pensamento para se apropriar do concreto, para reproduzi-lo como concreto pensado. Mas este
não é de modo nenhum o processo da gênese do próprio concreto
Partir do real e do concreto permitiria, segundo Marx, apreender dinâmicas10 e
formular conceitos, enquanto expressão de múltiplas determinações do real captado e
10
Marx em diversas passagens utilizou o termo “lei” para retratar a dinâmica de um modo de produção ou uma
formação social concreta e específica, provavelmente influenciado pelo cientificismo do século XIX. Lei não no
sentido que o positivismo atribuía a essa palavra, ou seja, algo constante, necessário e determinado pela coisa em
si, que poderia ser reconhecido pelo homem através da observação direta dos fenômenos sociais e naturais. Para
33
(re)construído no pensamento. Para Marx, expressaria “o curso do pensamento abstrato que
se eleva do mais simples ao complexo” – e que corresponderia, efetivamente, ao próprio
processo histórico (Marx, 1982, p. 15). Encerrado esse momento retornar-se-ia ao real, mas
agora enquanto real reconstruído e conhecido.
O real se apresentaria enquanto um fluxo permanente de movimento e de
contradição. Movimento e contradição seriam dados objetivos do real, visto que emergiriam
das próprias bases sobre as quais historicamente se configuraria o real. Portanto,
independentemente da própria compreensão da idéia de movimento e de contradição (ou das
representações construídas no âmbito do pensamento, tendo em vista expressá-las), elas
percorreriam o pensamento e a prática do homem.
Movimento e contradição expressar-se-iam em um período ou etapa histórica
dominado por um modo de produção. Esse, por sua vez, se manifestaria por de formações
sociais concretas e específicas. O modo de produção, bem como as formações sociais
concretas e específicas, seriam estruturas sociais historicamente determinadas.
Marx concebe o real (a sociedade concreta em seu movimento e sob contradições)
como um processo histórico. Esse real estaria regido por dinâmicas históricas. Não dinâmicas
gerais, a-históricas que, emergidas de leis naturais, regeriam para todo o sempre o real, mas
dinâmicas específicas a cada período ou etapa histórica e que se expressariam por meio de
modos de produção e de formações sociais concretas e específicas. Essas dinâmicas regeriam
o movimento social, por um lado, como um processo, em grande medida, independente da
vontade, consciência e intenção dos homens; mas, por outro, capazes, ao mesmo tempo, de
determinar concretamente a vontade, a consciência e as intenções dos homens como agentes
sociais diferenciados.
Esgotado historicamente um modo de produção, novas dinâmicas se conformariam
ao longo do processo de surgimento de um novo modo de produção. Assim, por exemplo, as
dinâmicas que regulamentariam o comércio, a população, a moeda, no mundo medieval
ocidental, não poderiam ser transpostas para compreender o comércio, a população e a moeda,
no mundo capitalista ocidental. Categorias que encerram sentidos genéricos, como comércio,
por exemplo, deveriam, por sua vez, ser investigadas dentro da especificidade que assumiriam
em cada modo de produção.
o positivismo, as leis naturais e sociais seriam idênticas. Já para Marx, as “leis” ou dinâmicas sociais seriam
históricas e transitórias, expressando movimentos passíveis de transformação pela ação humana, não possuindo
um sentido de exatidão matemática, mas de coerência geral determinada pelo todo interdependente dos
elementos que compõe a sociedade.
34
Para Marx, o fundamental na pesquisa científica seria, portanto, descobrir as
dinâmicas que regeriam e modificariam os fenômenos estudados. Dinâmicas que atuariam nas
condições e interesses materiais, inclusive no âmbito do próprio pensamento. Assim, a crítica
do próprio pensamento, idéia, cultura, da sociedade moderna, somente poderia surgir do real,
do material que o determina e não do pensamento refletindo diretamente sobre si mesmo. É da
sua base material, o real, desvendado pela pesquisa, que o pensamento poderia auto-criticar-se
e desalienar-se. Assim, o pensamento, a idéia, a cultura, em princípio fora de ‘lugar’,
poderiam ser colocadas em seus devidos ‘lugares’.
Marx cuida de distinguir, ainda, o método da pesquisa do método de exposição. Para
Marx, “a pesquisa tem de captar detalhadamente a matéria, analisar as suas várias formas de
evolução e rastrear sua conexão íntima. Só depois de concluído esse trabalho é que se pode
expor adequadamente o movimento real” (Marx, 1988, p. 26).
Marx dá exemplo concreto desta prática científica no estudo da economia política.
Anteriormente à confecção da obra O Capital, Marx conduz estudos amplos e profundos
sobre a mercadoria, o valor, a mais-valia, a reprodução (simples e ampliada) do capital, o
dinheiro, entre outros temas, como podemos confirmar nos esquemas de estudo pessoal que
tomam a forma das obras Para a Crítica da Economia Política e Teorias da Mais-Valia.
Elas culminam, por meio do método dialético, na apreensão das dinâmicas que regem o
capitalismo e que podem proporcionar condições sociais capazes de modificá-lo.
A conquista do conhecimento do real e a sua exposição ordenada no plano do
pensamento, podem criar a ilusão de uma construção a priori, de esquemas dedutivos. Mera
ilusão, se pensarmos que uma obra, quando finalizada, nada mais é do que fruto de intensa
pesquisa e exposição articulada por meio de uma coerência discursiva interna.
Marx, conforme observamos, apresenta o seu método dialético dentro de uma
configuração racional, empírica e materialista. Movimenta suas pesquisas do particular para o
geral e vice-versa, busca apreender dinâmicas e formular conceitos por meio de estudos
comparados dos fenômenos sociais, esforça para demonstrar a coesão entre o que anda nas
‘cabeças’ e as bases materiais sobre as quais se localizam os ‘pés’ e coloca a temporalidade
dos fenômenos sociais no centro do seu pensamento.
3.3 - A Concepção Materialista da História
Os debates sobre a destruição furtiva e o parcelamento da propriedade do solo, em
curso na Província Renana, desperta em Marx uma preocupação com os chamados “interesses
35
materiais” (Marx e Engels, 1983, Volume 1, p. 300 e 301). O recolhimento de lenha por
parte de um camponês em uma propriedade, considerada furto pela Dieta Renana, conduz
Marx à tomada de consciência de que o direito protegia a propriedade. Esse processo ocorre
na sua experiência como redator da Gazeta Renana, entre os anos de 1842-43.
Em 1844, por meio dos Anais Franco-Alemães, as investigações desembocam na
conclusão “(...) de que tanto as relações jurídicas como as formas de Estado não podem ser
compreendidas por si mesmas nem pela chamada evolução geral do espírito humano (...)”.
Segundo Marx, elas “(...) se baseiam, pelo contrário, nas condições materiais de vida (...)”.
Ainda segundo Marx, “(...) a anatomia da sociedade civil precisa ser procurada na economia
política” (Marx e Engels, 1983, Volume 1, p. 301).
A continuidade dos seus estudos permite a Marx concluir que “(...) na produção
social da sua vida, os homens contraem determinadas relações necessárias e independentes da
sua vontade, relações de produção que correspondem a uma determinada fase de
desenvolvimento das suas forças produtivas materiais” (Marx e Engels, 1983, Volume 1, p.
301).
As relações de produção seriam as relações concretas que os homens estabeleceriam
em uma determinada sociedade, tendo em vista a produção e reprodução dos indivíduos, das
classes sociais e da sociedade. As relações de produção se expressariam na forma de
propriedade, na forma de produção e distribuição dos excedentes sociais e na forma de
organização das relações de trabalho entre as classes sociais. As relações de produção
condicionariam profundamente as relações sociais em geral.
As relações de produção encontrar-se-iam correlacionadas no seu desenvolvimento
com as forças produtivas, que seriam os recursos tecnológicos, o conhecimento científico, as
estruturas de produção rural e urbana, o nível de consciência social11 etc. Para Marx, não seria
possível forças produtivas desenvolvidas, a exemplo do nível conquistado no capitalismo,
coexistindo com relações de produção ‘atrasadas’ historicamente se comparadas a estas, a
exemplo das relações de produção feudais. Portanto, relações de produção e forças produtivas
determinar-se-iam no desenvolvimento da sociedade humana.
As relações de produção e as forças produtivas, em suas relações concretas e
11
O conceito de “consciência social” em Marx incorporaria as formas de expressão da subjetividade humana
(expressões literárias e filosóficas, romances, doutrinas religiosas, criações artísticas etc), bem como o nível de
consciência e conhecimento da relação homem/natureza e das relações sociais. Essas manifestações da
consciência social seriam ideológicas e mais ou menos racionais, humanistas e críticas, segundo o grau de
desenvolvimento da estrutura econômica, da experiência e de amadurecimento das classes sociais. Enfim, do
estágio de desenvolvimento da sociedade humana.
12
socialmente estabelecidas, formariam a estrutura
36
(ou base) econômica da sociedade.
Sobre a estrutura “(...) se levanta a superestrutura jurídica e política e à qual correspondem
determinadas formas de consciência social” (Marx, 1983, Volume 1, p. 301).
Marx concebe uma interação e uma interdependência profunda entre a estrutura,
responsável pela produção e reprodução da vida material, e a superestrutura, responsável pela
produção e reprodução da vida política e espiritual. A relação dialética que Marx estabelece
entre estrutura e superestrutura não exclui a ontologia. Neste ponto, Marx é categórico quando
afirma que “(...) não é a consciência do homem que determina o seu ser, mas, pelo contrário, o
seu ser social é que determina a sua consciência” (Marx, 1983, Volume 1, p. 301).
Dito de outra forma, Marx não reconhece nas leis, nas formas do Estado, nas
expressões subjetivas dos indivíduos, segmentos e classes sociais uma autonomia e
independência da estrutura, ou seja, das condições materiais de existência da sociedade. Para
Marx, a compreensão das superestruturas exige, necessariamente, um movimento de
investigação que parta da estrutura.
O Conceito de “Modo de Produção”
Marx formula o conceito “modo de produção” para retratar a totalidade social
representada pela estrutura e pela superestrutura. Marx integra, portanto, totalidade e estrutura
para a compreensão, em grandes traços, dos longos períodos históricos de permanência ou
conservação – entendidos como movimentos que não alterariam a essência de uma estrutura,
mas que coexistiriam com a acumulação quantitativa de condições materiais e espirituais, que
levariam a um ponto de ruptura num futuro indeterminado – ou breves períodos históricos de
transformações bruscas ou revolucionárias – entendidos como movimentos que alterariam a
essência de uma estrutura, ou seja, rupturas qualitativas das condições materiais e espirituais
responsáveis pela edificação de uma nova totalidade e estrutura.
Marx indica que os grandes períodos históricos estariam estruturados a partir dos
modos de produção comunal, asiático, antigo (escravo), feudal, e burguês. Modos de
produção, social e historicamente determinados, mutáveis, portanto, contrariando o ideal
12
O conceito de “estrutura” pode receber diversos sentidos e dimensões na teoria e metodologia marxista. Pode
significar estrutura (base) econômica; superestrutura (estrutura fruto da materialização de instituições e formas
de consciência social); estrutura global e abstrata identificada com o conceito de “modo de produção”; estrutura
global identificada com uma formação social (ou sócio-econômica) específica e concreta. O fundamental é que o
conceito de “estrutura” remete sempre para um conjunto complexo de elementos interdependentes e estáveis (o
que não significa eterno) no tempo; a estrutura pode ser pensada em si própria ou em relação a outras estruturas.
37
burguês da naturalização das relações sociais, da sociedade burguesa e capitalista etc.
Modo de Produção e Transformação Histórica
Marx identifica contradições e conflitos na estrutura econômica da sociedade. Para
Marx, as forças produtivas tenderiam para o desenvolvimento, o que as faria colidir com as
relações de produção, que qualificaria e conservaria o modo de produção.
Essa contradição, emergida da estrutura econômica, prolongar-se-ia para além das
condições materiais da sociedade, penetrando na superestrutura e se expressando no âmbito
jurídico, político e ideológico. Isto porque Marx entende a sociedade como uma totalidade, na
qual a estrutura econômica exerce um profundo condicionamento sobre a superestrutura. A
contradição surgida entre as forças produtivas e as relações de produção, responsáveis pelo
prolongamento da contradição para o todo social, criaria um ambiente propício para
transformações. Nas palavras de Marx, (Marx, 1983, Volume 1, p. 302).
(...) abre, assim, uma época de revolução social. Quando se estudam essas revoluções, é preciso distinguir
sempre entre as mudanças materiais ocorridas nas condições econômicas de produção e que podem ser
apreciadas com a exatidão própria das ciências naturais, e as formas jurídicas, políticas, religiosas, artísticas ou
filosóficas, numa palavra, as formas ideológicas em que os homens adquirem consciência desse conflito e lutam
para resolvê-lo
Assim, a contradição que nasceria no âmbito da estrutura econômica e que se
prolongaria para a superestrutura, não poderia ser superada por ela mesma. A contradição
acima referida apenas criaria o espaço e o ambiente propício para as transformações. A
transformação dependeria da ação do sujeito social, de forma a dar um sentido e uma direção
para a remoção dos obstáculos que as relações de produção (em um determinado nível de
desenvolvimento
das
forças
produtivas)
representariam
no
sentido
do
posterior
desenvolvimento das forças produtivas.
Para Marx, o termo sociedade expressaria um sujeito social genérico. Compreender a
história a partir desse sujeito social como um todo indiferenciado seria idealismo. A sociedade
se manifestaria, de fato, por meio de sujeitos sociais concretos, ou seja, das classes sociais
antagonizadas pela propriedade privada e em conflitos explícitos – revoltas, revoluções,
greves etc – e ocultos – inculcação de valores ideológicos, remanejamentos políticoinstitucionais etc.
38
As lutas de classes seriam conduzidas pelas classes dominantes e dominadas.
Expressariam a práxis, ou seja, ações sociais (políticas, culturais etc), intencionais ou não,
sempre ideológicas, com o propósito de conservar ou revolucionar as relações de produção.
Marx supera, por meio da sua interpretação dialética do curso da história, o
economicismo, que atribui ao fator econômico a responsabilidade pelas transformações, o
evolucionismo, que reconhece uma dinâmica evolutivo-natural comandando o curso das
mudanças, e o voluntarismo, que personifica as mudanças por meio da ação de determinados
personagens e pequenos grupos, desprezando as estruturas econômicas e os embates de
classes.
Modo de Produção e Formação Social
A distinção entre modo de produção e formação social não se apresenta clara para
diversos cientistas sociais marxistas - incluindo historiadores. Alguns cientistas sociais
marxistas reduzem o conceito de “modo de produção” a estrutura econômica. Reconhecem no
conceito de “superestrutura” (formas de consciência e instituições) uma dimensão que se
encontraria fora do conceito de “modo de produção”. Para esses cientistas sociais, modo de
produção (estrutura econômica) e superestrutura (formas de consciência e instituições) se
comporiam de forma interdependente em uma estrutura mais ampla denominada formação
social - conjugação, portanto, do modo de produção e da superestrutura em uma realidade
concreta e específica (Gorender, 1985, p. 1-35).
Na concepção de Marx, modo de produção englobaria de forma integrada a estrutura
(ou base) econômica e a superestrutura. O modo de produção seria o objeto teórico, genérico e
abrangente. Uma elaboração teórico-abstrata em nível do pensamento que se prestaria a
contribuir com os estudos de uma formação social (ou econômico-social) concreta e
específica. Enquanto conceito teórico-abstrato estaria em constante construção, visto que os
estudos sócio-históricos permitiriam a descoberta de novos elementos e relações no âmbito do
conceito de “modo de produção” (Vilar, 1988, p. 173 e 174).
O conceito de “formação social” encerraria a realidade social concreta e específica.
Seria, portanto, um conceito menos abrangente e que nos remeteria a uma formação histórica
concreta e específica, a exemplo da formação social portuguesa do século XVI ou da
formação social capitalista brasileira do século XX.
O conceito de “modo de produção” seria, portanto, um instrumento operatório, tendo
em vista o estudo de uma formação social concreta e específica.
39
O Conceito de “Classe Social”
O termo classe social não é criado por Marx. Os enciclopedistas franceses e Adam
Smith se referiam a “estados” ou “ordens”, enquanto que Babeuf e os socialistas franceses
falam de classes de possuidores e laboriosas. A contribuição de Marx para a construção do
conceito de “classe social” surge, primeiramente, da identificação e localização social das
classes sociais a partir das relações de produção, ou seja, da forma de propriedade e das
relações que os homens estabeleceriam em torno dela, tendo em vista a geração e apropriação
dos excedentes sociais. As classes sociais seriam definidas, em primeira instância, sobre as
condições materiais em que se inseriam.
Marx define as classes sociais também em termos políticos. As classes sociais,
distribuídas em termos de dominantes e dominadas, se relacionariam de uma determinada
forma com o poder em cada período histórico. As classes sociais se expressariam por meio de
“partidos”, estabeleceriam alianças, conformariam regimes políticos etc. “A história de todas
as sociedades que existiram até nossos dias tem sido a história das lutas de classes”, diria
Marx (Marx e Engels, Volume 1, p. 21, 1983).
A partir das relações de produção e das lutas políticas que lhes seriam inerentes,
Marx identifica as classes em termos de classes sociais fundamentais, em torno das quais a
qualidade das relações de produção e dos conflitos seriam definidos, e classes sociais não
fundamentais, periféricas no âmbito das relações de produção e incapazes de definir um
projeto social alternativo às relações sociais dominantes e conduzir um bloco de alianças em
torno do mesmo. Portanto, as relações de produção e a identidade e consciência acumuladas
por meio da experiência política definiriam a posição e a função das classes sociais na
formação social concreta e específica.
Marx não reconhece a existência de classes sociais nas sociedades que não se apoiam
na propriedade privada (comunidades tribais dos celtas, germânicos, eslavos; povos pastores
do oriente; índios da América; sociedades despóticas orientais etc). As sociedades despóticas,
embora coexistindo com a desigualdade social, não assumiria a forma completa de
desigualdade social, na medida em que a unidade centralizadora – Estado – se ergueria sobre
as pequenas comunidades concentrando a propriedade, mas estabelecendo relações de
tributação/reciprocidade. Para Bourdé e Martin, se Marx e Engels tivessem possuído mais
informações históricas teriam dissociado “estados”, “ordens”, “castas” etc, de classes sociais
40
propriamente ditas nas formações pré-capitalista de produção (Bourdé e Martin, 1983, p.
159-164).
Como esboço de uma sociologia das classes a partir de Marx, é possível identificar
que:
a. a definição de uma classe social implica na referência a aspectos sociais, econômicos,
políticos e ideológicos;
b. seria pertinente considerar as classes em função da estrutura de classes e não
isoladamente;
c. as lutas de classes determinam, em grande medida, os conflitos e dinâmicas do nível
político e dos demais níveis da sociedade. Tais conflitos e dinâmicas não podem,
entretanto, ser interpretados como mero prolongamento das lutas de classes.
O Conceito de “Ideologia”
Marx parte da compreensão de que existiria um elo entre formas ‘invertidas’ de
consciência e a existência material dos homens. Essa compreensão nasce da crítica a
Feuerbach e a Hegel.
Marx apreende a tese materialista de Feuerbach de que os homens criam Deus e as
religiões, e não o contrário. Distancia-se deste quando demonstra que tal inversão não é uma
pura construção do pensamento, mas que encontra-se no mundo real, que é um bálsamo criado
pelos homens para compensar as contradições do mundo real.
Marx submete o próprio pensamento de Hegel a esta crítica. Hegel supôs que a Idéia
ou Razão Absoluta se manifestaria no mundo empírico e que o Estado prussiano seria a autorealização da Idéia objetivada. Marx busca demonstrar que a idéia do Estado enquanto
“universal absoluto” que determina a sociedade civil, não seria apenas uma ilusão. Que havia
um real sob aquela ilusão e que somente poderia ser encontrada nas bases concretas de
edificação da sociedade civil e de Estado prussianos.
Entre 1845 e 1857 Marx formula o conceito de “ideologia” para demonstrar que a
precariedade do desenvolvimento material e as contradições emergidas na vida prática,
levariam os homens a criar e a projetar formas ideológicas de consciência. Formas espirituais
e discursivas que ocultariam ou disfarçariam a existência e o caráter dessas contradições. E
que concorreriam, nesta medida, para assegurar a reprodução das relações sociais, de forma a
servir aos interesses dominantes (Bottomore, 1988, p. 184).
A partir dos estudos das relações sociais capitalistas expressas nas obras Grundrisse
41
e O Capital, Marx chega a conclusão de que a “consciência invertida” é fruto da “realidade
invertida”. Assim, a ideologia burguesa expressaria essa inversão quando apregoa que “(...) a
igualdade e a liberdade são, assim, não apenas aperfeiçoadas na troca baseada em valores de
troca, como também a troca dos valores de troca é a base produtiva real de toda igualdade e
liberdade” (Marx, apud Bottomore, 1988, p. 185).
Engels concorre também para a construção do conceito de “ideologia” por meio do
estudo sobre a guerra camponesa da Alemanha. Demonstra que, sob a chama da guerra de
religião no século XVI, encontram-se interesses materiais de classes e que (Engels, apud
Bourdé e Martin, 1983, p. 166).
(...) se as lutas de classes tinham, naquela época, um caráter religioso, se os interesses, as necessidades, as
reivindicações das diferentes classes se dissimulavam sob a máscara da religião, isso nada altera a questão
Encontra-se implícita nessa passagem a compreensão de que o fenômeno ideológico
também poderia se expressar enquanto valores e concepções de resistência das classes
dominadas. Engels demonstra, ainda, a exemplo da ação crítica de Marx sobre a ideologia
burguesa, que o fenômeno ideológico não seria algo exterior às relações sociais quando
explica que na Idade Média (Engels, apud Bourdé e Martin, 1983, p. 167).
(...) os padres receberam o monopólio da cultura intelectual e a própria cultura tomou um caráter essencialmente
teológico (...). Os dogmas da Igreja eram igualmente axiomas políticos e as passagens da Bíblia tinham força de
lei perante os tribunais (...). Consequentemente, todas as doutrinas revolucionárias, sociais e políticas, deviam
ser, ao mesmo tempo e principalmente, heresias teológicas
O conceito de “ideologia” conserva em Marx uma conotação crítica e negativa
porque foi utilizado para a compreensão das distorções relacionadas com o ocultamento de
uma realidade contraditória e invertida. Não seria correto, portanto, atribuir ao conceito de
“ideologia” o sentido de falsa consciência.
Podemos chegar a três definições de ideologia em Marx e Engels:
a) ideologia enquanto parte ou conjunto das superestruturas: as formas ideológicas
enquanto a qualidade da consciência social possível dentro de uma determinada
estrutura sócio-econômica; uma determinada visão de conjunto de uma sociedade,
época ou classe determinada por suas condições materiais de existência;
b) a ideologia enquanto ocultamento da realidade: ora como imposição das classes
dominantes para criar, legitimar e justificar as relações sociais dominantes (a exemplo
42
das Cruzadas, do levante da Vendéia etc), ora como forma de expressão de lutas de
resistência dos dominados enquanto conhecimento imperfeito (a exemplo da revolta
camponesa da Alemanha);
c) a ideologia enquanto um sistema de valores sociais impostos: seriam os valores sociais
impostos, indiretamente, por meio das relações sociais de produção, e, diretamente,
por meio dos instrumentos ideológicos públicos e privados
O conceito Estado
O conceito “Estado” ocupa grande importância no pensamento de Marx e Engels. O
Estado é concebido como uma instituição acima de todas as outras, com a função de assegurar
e conservar a dominação e a exploração de classe. Para Engels, o Estado é um instrumento
(Marx e Engels, 1983, Volume 3, P. 137 ).
(...) da classe mais poderosa, economicamente dominante, que, por meio dele, torna-se igualmente a classe
politicamente dominante, adquirindo com isso novos meios de dominar e explorar a classe oprimida
Essa conclusão não impede que o próprio Engels a relativizasse por meio do estudo
de uma realidade concreta, a guerra civil na França e as lutas políticas subsequentes que
resultam no golpe do 18 Brumário e no bonapartismo. Engels reconhece que (Marx e Engels,
Volume 3, 1983, P. 137).
(...) ocorrem períodos nos quais as classes em luta se equilibram tão bem que o poder do Estado, como mediador
ostensivo, adquire, por momentos, uma certa margem de independência em relação a ambas (Marx e Engels,
Volume 3, 1983, P. 137).
Marx, também estudando a realidade que redunda no bonapartismo, chega mesmo a
atribuir interesses “próprios” ao Estado por meio da sua burocracia civil e militar. Marx
reconhece no Estado bonapartista francês uma máquina de Estado engenhosa, de amplas
bases, com um “exército” de funcionários e soldados de 1 milhão de homens. Uma máquina
com determinados interesses e objetivos próprios, que conforma “(...) um corpo parasitário
terrível que cerca o corpo da sociedade francesa como um casulo e sufoca todos os seus
poros” (Marx e Engels, Volume 1, 1983, P. 234 e 235).
De fato, Marx e Engels não encerram o conceito Estado em uma camisa de força
dogmática. Lênin, Gramsci, a Escola de Frankfurt, entre outros pensadores e vertentes
43
marxistas, dão continuidade ao estudo do Estado e ampliam o próprio conceito.
Práxis e Política
O conceito de “Práxis” representa um elemento central da filosofia marxista.
Exprime o poder que o homem tem de transformar o ambiente externo, tanto natural como
social.
Marx define a práxis, primeiramente, como atividade prático-crítica. É a atividade
humana por meio da qual se busca resolver o real concebido subjetivamente. O lugar da
práxis é o processo histórico como resposta contínua à tirania das necessidades naturais e
sociais.
Para Marx a humanidade está em luta consigo mesma, isto é, com as condições
sociais e naturais, por ela criadas e/ou modificadas. Segundo (Bobbio, 1992, p. 987 e 988).
(...) práxis é a identificação da mudança ambiental com a atividade humana, ela surge como autotransformação
ou como atividade que se modifica a si mesma ao modificar o ambiente. A terceira tese de Feuerbach oferece a
este respeito algumas indicações claras: é verdade que os homens são condicionados pelo ambiente e pela
educação, mas também é verdade que são justamente eles que modificam as próprias condições ambientais
Para Marx não existe na realidade uma natureza pura, isto é, não modificada pela
história humana. Não existe, também, um único campo de ação onde não se possa descobrir
dinâmicas. A práxis é ação/investigação, fundamentada no movimento histórico.
Marx define práxis como encontro entre razão e história, isto é, o lugar da construção
da humanidade como obra de uma vontade expressa racionalmente. Construção suscitada por
um pensamento historicamente determinado, acolhido pela grande maioria por responder às
necessidades manifestadas em um contexto (natural e social) marcado pela intervenção do
homem e que se transforma por isso em instrumento de ação. Nesta definição, o conceito de
“Práxis” se aproxima do conceito “teoria”, sendo a primeira uma prática racionaltransformadora e a segunda um pensamento historicizado e realístico.
Marx também define práxis como luta de classes, isto é, um instrumento motor da
história da humanidade. A concepção de práxis como ação do gênero humano indiferenciado
socialmente e transformador das condições naturais e sociais ao longo da história da
humanidade, conjuga-se também com a concepção de práxis como oriunda da humanidade
como sujeito histórico diferenciado por meio das classes sociais em suas relações conflitantes,
44
na qual ocorre uma ação de supressão por parte de uma delas das formas de organização
social que a outra instaura. Esses conflitos entre as classes se exprimem na tensão constante
que existe entre as forças produtivas, tendentes ao desenvolvimento e as relações de produção,
tendentes a conservação.
O conceito de “práxis” recebe outras abordagens no âmbito da tradição marxista.
Lukács define práxis como a eliminação da indiferença da forma em relação ao conteúdo.
Para o autor Marx teria desmistificado a lógica idealista da idéia, isto é, desenraizado
socialmente o idealismo, e demonstrado que as classes subalternas são os sujeitos da história,
em especial o proletariado. Assim, teria-se estabelecido no pensamento uma nova lógica da
totalidade, isto é, da unidade do objeto (realidade natural e social) que é posto e do sujeito
(proletariado) que o põe. É a totalidade não como idéia que se faz espírito, mas como
realidade do processo histórico (Bobbio, 1992, p. 989).
Para Lukács a Práxis em Marx seria o ato que realiza a unidade entre o sujeito e o
objeto, na medida em que traduz em nova estrutura social e econômica a consciência das
relações estabelecidas entre os homens. Nela coincidiriam as determinações do pensamento e
do desenvolvimento da história. Por isso, a Práxis seria a consciência da totalidade e sua
realização. Todavia, a consciência não precederia a ação, mas fundaria-se no ato. O
proletariado conheceria a própria situação enquanto luta contra o capitalismo e agiria
enquanto conhece a própria situação (Bobbio, 1992, p. 989).
Lukács faz, enfim, o uso de três temas: o pensamento socialmente determinado; a
realidade em sua dinâmica; e, o sujeito em sua ação. A Práxis seria o ato revolucionário que
realiza o sujeito (o proletariado) como conhecedor e agente ao mesmo tempo e que,
simultaneamente, fundamenta a identidade do pensamento e da história.
Korsch define práxis como sendo a própria teoria marxista. Para Korsch “o
marxismo é a teoria da transição da sociedade capitalista para a sociedade socialista e assume
aspectos diversos, como, por exemplo, a social-democracia e o leninismo, destinados a
sucederem-se um ao outro, segundo a evolução do movimento operário” (Bobbio, 1992, p.
989).
A teoria marxista não seria apenas uma expressão das condições atuais das relações
entre as classes sociais, mas também a alavanca de uma futura ação revolucionária. Deste
modo, a teoria é Práxis, isto é, luta social de classes. Se, por um lado, ela é um aspecto da
consciência social da situação vigente, até o ponto de se identificar com a consciência de
classe, por outro, é apenas uma teoria, não uma teoria positiva mas crítica, que resolve as
representações estáticas em processos dinâmicos e em conflitos sociais. “Os elementos nela
45
envolvidos, conquanto aparentemente neutros, assumem uma específica conotação de
classe; o Estado é o Estado burguês; o direito é o direito burguês” (Bobbio, 1992, p. 990).
Para korsch a teoria marxista seria Práxis, não só por estar intimamente relacionada
com os conflitos sociais, dos quais é expressão, mas também por elaborar os meios de uma
forma alternativa de sociedade.
4 – CONCEPÇÃO MARXISTA DE POLÍTICA E DE ESTADO
A concepção marxista de Estado se insere no processo de debate sobre a relação
estabelecida entre Estado e sociedade inaugurada com a modernidade. A dinâmica
produtivista do capital e a liberalização do indivíduo dá base para a formação da concepção
contratualista moderna, com a qual Marx dialoga criticamente.
Hobbes, por meio do método dedutivo, constrói uma leitura da relação estabelecida
entre Estado e sociedade calcada no contrato social estabelecido entre os indivíduos. Graças à
transferência da liberdade e de direitos dos indivíduos em favor do Estado e da constituição do
mesmo como um poder exterior e acima da sociedade e dos indivíduos particulares, seriam
dirimidos os conflitos e promovida a cooperação.
Locke, desenvolvendo um diálogo teórico e filosófico com Hobbes, problematiza a
relação estabelecida entre Estado e sociedade. Se o Estado é fruto da transferência de
liberdade e de direitos - em decorrência da escassez e dos conflitos em curso entre os homens,
porque estes são egoístas e ambiciosos em sua natureza - e seria formado por homens, quem
então o controlaria? Locke propugna o controle dos cidadãos sobre o Estado por meio do
parlamento.
Montesquieu e Rousseau também se inserem no debate contratualista moderno.
Propõem, respectivamente, a divisão e equilíbrio entre os poderes e o princípio da vontade
geral (soberania popular), tendo em vista salvaguardar os cidadãos frente ao Estado
Marx e Engels fazem a crítica do contratualismo, em grande medida influenciados
pelas contradições sociais geradas pelo capitalismo e pela emersão social e política do
proletariado moderno. Para Marx e Engels o Estado possui uma origem calcada na
desigualdade e no conflito de classe; constitui-se como uma instituição acima de todas as
outras, com a função de assegurar e conservar a dominação e a exploração de classe; e
assumir uma certa margem de independência em relação às classes, especialmente em
conjunturas de intenso conflito social.
46
A tradição teórica marxista, a partir de então preserva estas idéias acerca do
Estado. Elas revelam as continuidades que Lênin, Gramsci e outros assumem em relação às
idéias que Marx e Engels desenvolvem sobre o Estado.
4.1 - A Influência de Hegel
Hegel, analisando o Estado moderno, concreto, na sua organização interna e nas suas
relações com a sociedade, o concebia como uma manifestação da Razão Absoluta ou Eterna.
Desta forma, se contrapunha à tradição iluminista fundada na “gênese lógica” do poder
político - contratualista - e à tradição de modelos ideais de Estado - a exemplo de Kant (Saes,
1994, p. 56).
Hegel restabelece a distinção entre Estado e sociedade civil formulada pelos
pensadores iluministas. Sociedade civil em Hegel decompõe-se em classes, enquanto homens
distribuídos em ramos da atividade econômica - agricultura, indústria, comércio, atividades
burocráticas. A classe industrial envolveria, por exemplo, proprietários e não proprietários ao
mesmo tempo. Hegel não identifica interesses comuns, coletivos conformados a partir da
posição que os homens ocupam em relação à propriedade dos meios de produção.
A sociedade civil seria o domínio das carências individuais e fins particulares, ou
seja, uma conjunção de necessidade natural e vontade arbitrária (Saes, 1994, p. 57 e 58). Para
Hegel, entretanto, a sociedade civil não existiria se não existisse o Estado que a construísse,
que a conformasse e que a integrasse. É o Estado que fundaria o povo; é o Estado que fundaria
a sociedade civil. O Estado incorporaria a sociedade civil; esta teria sentido, se realizaria e se
aniquilaria no Estado, expressão objetiva da Razão Eterna.
É possível duas conclusões quanto a este ponto. Primeiramente, os dois momentos Estado e sociedade civil - são distintos apenas enquanto conceitos, visto que eles são unidos e
inseparáveis na Razão. Em segundo lugar, é possível identificar uma concepção organicista e
ampliada de Estado, visto que o mesmo abarcaria toda e qualquer forma de organização
humana, ou seja, expressão das carências individuais e fins particulares.
O Estado em Hegel é ético. O Estado concretizaria uma concepção moral e
organizaria/dirigiria os homens em direção à plena realização da Razão Eterna - a conquista
da felicidade e da liberdade ao término do seu processo de auto-conhecimento.
É possível identificar contradições entre Hegel e os pensadores iluministas.
Rousseau, apegado à relação indivíduo e poder político nos termos do contrato social,
realçaria o princípio da “vontade geral” ou “soberania popular”, de maneira que o Estado
47
dissolver-se-ia na sociedade e a sociedade civil triunfaria sobre o Estado. Para liberais
ingleses, a exemplo Locke, o legislativo (parlamento) deveria estar acima do executivo
(monarca), sendo este subordinado àquele poder. Para Adam Smith, o Estado liberal não seria
ético, não educaria, deveria tão somente assegurar as liberdades e garantias individuais, o livre
jogo das forças do mercado e a soberania da nação frente às demais. Para Locke, o legislativo
(parlamento) deveria estar acima do executivo (monarca), sendo este subordinado àquele
poder. Para Hegel, o Estado fundaria o povo, portanto, a soberania seria do Estado; soberania
que criaria e expressaria ética, concretizadora da moral; o Estado, personificado no monarca,
teria neste a representação da soberania, cabendo a ele mesmo (monarca) a outorga da
constituição que fixaria os direitos e funções em geral e dele mesmo em particular.
Os vínculos de Hegel com o absolutismo prussiano não o situa completamente fora
do iluminismo. Podemos concebê-lo como um momento de transição entre a sociedade
ocidental - liberal e capitalista - e a sociedade oriental - absolutista e não capitalista -, como de
fato a Prússia o é, tanto em termos geográficos quanto históricos.
A superestimação do Estado em detrimento da sociedade civil é acompanhado,
contraditoriamente, pela defesa de reformas moderadas do Estado prussiano. A mais
importante certamente é a defesa da abertura do aparelho do Estado (burocracia civil, militar e
judiciária) para todos os homens. Hegel recusa o recrutamento dos membros do aparelho de
Estado a partir do nascimento e da personalidade natural. O preenchimento das funções do
Estado poderia ser exercido por qualquer indivíduo pertencente à classe universal dos
cidadãos, por meio da competência e exame público. Assim, Hegel “dissocia” o aparelho de
Estado da classe dominante, permitindo o Estado ser representado dentro de uma autonomia
completa ou relativa. Hegel propõe, ainda, a monarquia constitucional. Busca compatibilizar a
forma do Estado absolutista com a emergência do Estado burguês. A rigor, compatibilizar a
conservação do status quo da aristocracia com a ascensão burguesa (Saes, 1994, p. 56 e 57;
Gruppi, 1985, p. 24 e 25).
Para Hegel (Saes, 1994, p. 59).
(...) nega em termos práticos a existência de grupos sociais, de interesses de grupo social e de
conflitos entre os grupos sociais em função de tais interesses: e preconiza a ascendência do
interesse geral (pura forma sem conteúdo) sobre os interesses particulares
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A resposta que Hegel dá para a relação entre o indivíduo e o poder político é
conservadora. Para Hegel a sociedade civil estaria absorvida na sociedade política e a ela seria
subordinada.
4.2 - O Estado para o “Jovem Marx”
Marx preserva os conceitos de “sociedade civil” enquanto o conjunto das relações
econômicas e interesses privados e de “sociedade política” correspondendo ao Estado. Marx,
por um lado, concebia uma profunda conexão entre os dois conceitos, por outro, atribuía à
sociedade civil o momento decisivo da relação. Afirma Marx, (1978, p. 129).
Minha pesquisa chegou à conclusão que as relações jurídicas, bem como as formas do Estado, não podem ser
compreendidas por si só, nem pela assim chamada evolução geral do espírito humano, mas têm suas raízes nas
relações materiais da existência - cujo conjunto Hegel inclui no termo de sociedade civil, seguindo o exemplo
dos ingleses e franceses do século XVIII - e que a anatomia da sociedade civil deve ser procurada na economia
política.
Para Marx, seria por meio da sociedade civil - o conjunto das relações econômicas e
interesses privados -, fundadora do Estado, que se poderia compreender o surgimento do
Estado, o seu caráter de classe, a natureza de suas leis, as representações sobre as quais ele se
apoiaria, e assim por diante. E mais, o Estado, “criatura” da sociedade civil, constituiria-se
num instrumento voltado para a garantia das próprias bases sobre as quais se apoiaria a
sociedade civil. O Estado burguês, por exemplo, protegeria as relações capitalistas de
produção, de forma a assegurar a reprodução ampliada do capital, a acumulação privada do
produto social, a redistribuição do fundo público em benefício do grande capital, a exploração
da renda fundiária etc. Portanto, o Estado seria, ao mesmo tempo, parte integrante das
relações capitalistas de produção e instrumento de defesa das mesmas.
O “jovem Marx” contesta a dominação do Estado (burocracia) sobre a sociedade
civil e defendia a supressão do Estado moderno. Para o Marx de 1843-44, a extinção do
Estado (burocracia e mecanismos de representação política) seria a pré-condição da
verdadeira democracia, de maneira que cada homem poderia ser burocrata e representante de
si mesmo.
Em que pese esta perspectiva, que coloca Marx e Hegel em campos distintos quanto
às opções políticas e compromissos sociais, Marx não rompe completamente com Hegel no
49
tocante a sua concepção de Estado. Marx admitia que sociedade civil e sociedade política
seriam duas esferas sociais separadas.
Marx, embora não rompa com Hegel no tocante à concepção de Estado, o supera no
âmbito da referida concepção. Apoiando-se na crítica feuerbachiana da alienação, avança mais
do que Hegel e o submete à crítica, quando reconhece na referida separação a origem da
alienação política. A criação do Estado e a disposição da burocracia contra a sociedade civil
seria a gênese da dilaceração da essência humana. A expressão acabada desta relação seria a
criação da relação entre governantes (burocracia) e governados (sociedade civil expressa nos
burgueses, proletários etc.). A burocracia perseguiria a sociedade civil. Portanto, suprimir a
burocracia seria suprimir o próprio Estado.
O conceito de sociedade civil também conserva-se no universo filosófico e teórico de
Hegel. “O jovem Marx”, tal qual Rousseau e Hegel, não rompe com o formalismo. “Interesse
geral” versus “interesse particular” ainda é uma forma sem conteúdo, conforme demonstra a
afirmação de Marx de que a sociedade civil seria o campo do “interesse concreto do povo” em
contraposição ao “interesse particular” da burocracia. Marx ainda não concebia a sociedade
civil enquanto realidade conformada por classes sociais sob relações conflitantes, calcadas nos
interesses de classes.
Saes chama a atenção para o fato de que Marx, em A Questão Judaica, qualifica a
propriedade privada, a cultura e a ocupação como premissas ou pressupostos do Estado
político moderno. Mas indaga: Há uma relação entre base (econômica) e superestrutura
conforme é demonstrada no “prefácio”? Há uma relação entre Estado e propriedade, sendo o
primeiro guardião da segunda? Para Saes, as premissas, tanto os elementos materiais
(propriedade, ocupação) quanto os espirituais (religião, cultura) estariam apresentadas lado a
lado, separadas e sem estabelecer qualquer hierarquia de relação. As diferenças e
particularismos, persistindo no Estado moderno, levaria os homens em direção a uma solução
ilusória, de forma a acreditar em uma comunidade aparentemente universal - o Estado,
guardião do interesse geral da sociedade. Então, para Marx, (Saes, 1994, p. 65).
(...) a relação que se estabelece entre o Estado político e as suas premissas não é a relação entre os atos de
governo (política implementada pela burocracia) e os interesses dos proprietários dos meios de produção; é,
antes, a realimentação contínua da comunidade imaginária (Estado) pela subsistência de diferenças materiais e
espirituais entre os homens
Estado e sociedade civil não formam para “jovem Marx” uma unidade de contrários,
50
mas um círculo vicioso no qual a sociedade civil, alienada, permitiria o robustecimento do
Estado, ao mesmo tempo causa e efeito da alienação. No texto A Introdução à Crítica da
Filosofia do Direito de Hegel, a introdução da figura histórica do proletariado, em que pese o
amadurecimento da análise, ainda não permite superar o círculo vicioso. Em primeiro lugar, o
proletário é o homem destituído de propriedade, não uma classe social inserida numa
determinada relação de produção, a exemplo do operário fabril. Em segundo lugar, Marx
afirma que, eliminada a propriedade privada, se estaria suprimindo o Estado, mas, como Marx
não estabelece a relação que o Estado mantém com a sociedade, ou seja, seu guardião, de
forma a reconhecer nela apenas uma das várias premissas do Estado moderno, não haveria
porque acreditar que o mesmo desapareceria em se conservando as demais premissas. Em
terceiro lugar, ainda que se considere a supressão do Estado como um objetivo instrumental,
tendo em vista abrir caminho para que o proletariado suprimisse a propriedade privada,
haveria um problema: tal idéia pressuporia o Estado como guardião da propriedade privada,
mas esta ainda não havia sido elaborada por Marx. O que se depreende é que ele atribui tal
função à sociedade civil, que protegeria a propriedade privada. Em quarto lugar, o papel do
proletariado não fica claro, visto que ele próprio seria parte da sociedade civil e encontraria-se
alienado, não podendo ser o dirigente do processo por sua própria força. Poderia apenas
impulsionar a ação por meio da crítica da propriedade e do Estado moderno conduzido pelos
filósofos (Saes, 1994, p. 67).
Marx ainda se encontra submetido a uma contradição intelectual e política. A adesão
ao comunismo, em uma perspectiva proletária, conflitua com a concepção hegeliana de
Estado, que é uma concepção burguesa.
4.3 - A Concepção de Estado em Marx - 1848-1852
Saes situa o pensamento político do “jovem Marx” como uma variante do
radicalismo pequeno-burguês. Para o autor, o pequeno burguês, enquanto produtor
independente, viveria em um quadro de isolamento econômico. Como resultado, sua ação
política tendia a ser individualizada em relação ao Estado. A relação Estado e classe social
tendia a não ser construída, o que culminaria em uma relação Estado/indivíduo marcado pelo
estadismo, seja por sua confirmação ou por sua negação. Concretamente, a pequena burguesia
conservadora tenderia ao bonapartismo, com o reforço da burocracia e com crença na
representação supra classe social do Estado; a pequena burguesia reformista tenderia ao
populismo, a exemplo do republicanismo radical e democrático; e a pequena burguesia
51
revolucionária tenderia ao anarquismo. O pensamento de Marx coincidiria, em suas linhas
gerais, com a pequena burguesia revolucionária (Saes, 1994, p. 71 e 72).
A grande expansão das forças produtivas a partir dos anos 40 e 50 na Europa
Ocidental e EUA, as revoluções operárias e populares de 1848 e 1871 e o descortinamento da
máquina do Estado (1848-1852), proporciona a formação de um movimento social proletário
revolucionário. O pensamento de Marx, de 1843-44 a 1848-52, reflete esta passagem, ou seja,
o movimento comunista estaria em transição - uma ideologia pequeno-burguesa radical dá
lugar a uma ideologia proletária revolucionária. Conforme o conceito de “intelectual
orgânico” de Gramsci, Marx incorpora/reflete, por assim dizer, esta nova realidade sócioeconômica e política, conservando/superando o “jovem Marx”.
Por meio das obras As lutas de Classes na França de 1948 a 1950 e Dezoito
Brumário de Luís Bonaparte Marx supera a separação polarizada entre Estado (burocracia)
e sociedade civil, bem como a existência da dominação da burocracia sobre a sociedade civil
no Estado moderno. Realça, ainda, o caráter instrumental que a ação política da burocracia de
Estado assume, tendo em vista assegurar os interesses das classes dominantes, quais sejam, a
propriedade privada burguesa e as relações de exploração.
Para Marx, os limites estabelecidos para a atuação da burocracia de Estado - a
preservação da propriedade e das relações de exploração - permitia a esta burocracia uma
grande margem de iniciativa. A burocracia de Estado assumia, por assim dizer, os limites de
consciência possível das classes dominantes, ou seja, superaria os interesses burgueses
corporativos e imediatos na defesa da sociedade burguesa. Ela poderia, inclusive, reprimir
politicamente ou ferir interesses econômicos particularistas da classe burguesa, contraditórios
com a preservação da ordem social e com a acumulação de capital a longo prazo. Tudo seria
lícito, desde que assegurasse a ordem social e a acumulação.
Marx destaca o parasitismo da burocracia de Estado, burocratismo parasitário
acionado pelo poder executivo cuja função básica seria vigiar e punir a sociedade. Trata-se de
um parasitismo de novo tipo. Enquanto no período de vigência do Estado absolutista o fundo
público é redistribuído na forma de rendas asseguradas pelos títulos, funções e cargos
remunerados, ocupados unicamente pela aristocracia, com a ascensão burguesa a
redistribuição passa a se dirigir, indiretamente, à tecnocracia - o staff superior da burocracia
civil e militar -, e, diretamente, à classe burguesa via financiamentos, superfaturamentos de
obras, serviços e mercadorias realizadas e/ou adquiridos via contratos etc. O parasitismo passa
a servir, ainda, como instrumento voltado para cooptar as classes populares por meio de
serviços sociais prestados e para reprimir os movimentos sociais de forma a assegurar a
52
‘ordem’ e a ‘acumulação’.
Marx também aborda o exercício do poder político pelas classes dominantes por
meio dos poderes executivo e legislativo. O exercício indireto do poder político - executivo - e
o exercício direto - legislativo – por parte das classes dominantes cumpriria a função
ideológica de ocultar a dominação. A representação popular na definição do poder executivo o
apresentaria como um poder legítimo e acima dos interesses imediatos de qualquer grupo,
sendo que de fato seus limites de ação estariam definidos e submetidos ao poder legislativo.
Em condições especiais, a exemplo de poderosos movimentos sociais insurgentes, as
classes dominantes poderiam transferir o seu poder político direto para o poder executivo
(burocracia). De fato, é o que ocorre no golpe do 18 Brumário.
Teoricamente, o Marx de 1848-1852, também neste ponto, incorpora/supera o
“jovem Marx”. Enquanto que para o “jovem Marx” o parlamento encontraria-se emasculado
de poder decisório, dominado pela burocracia (manietado pelo executivo) e reduzido à função
ideológica de ocultar o exercício do poder, para o Marx de 1948-52 o parlamento seria o
poder que as classes dominantes dominariam diretamente e que também poderiam,
eventualmente, governar diretamente por meio dele (Saes, 1994, p. 71).
Dezoito Brumário de Luiz Bonaparte
A obra Dezoito Brumário de Luiz Bonaparte possui grande importância para o
pensamento de Marx como um todo e para a consolidação da sua concepção de Estado em
particular. O Dezoito Brumário de Luiz Bonaparte, de um lado, revela a crise do novo
Estado em consolidação, que substituíra o Estado absolutista. De outro, ocorre em uma
conjuntura de intervenção clara e direta das classes subalternas, ou seja, pela primeira vez na
história essas classes colocam em questão o poder e de forma laica.
A história, portanto, desvela o caráter do novo Estado (burguês) em consolidação (e
em crise), bem como instrumentaliza em termos práticos e teóricos a classe proletária (ou pelo
menos seus setores mais politizados e esclarecidos) em relação à disputa do poder. De certa
forma Marx, na obra Dezoito Brumário de Luiz Bonaparte é, por assim dizer, um
instrumento deste duplo processo, ou seja, um intelectual orgânico que pôde conduzir uma
leitura desta conjuntura, descortinando-a em uma determinada perspectiva de classe.
O novo Estado é burguês. O Estado absolutista é derrubado por meio da Revolução
Francesa de 1789 graças à atuação de setores republicanos, populares e jacobinos. A derrota
53
dos jacobinos ao término da fase da Convenção (1793-94) da Revolução Francesa, a
Constituição de 1795 e a fase do Diretório (1794-99) define claramente o caráter do novo
Estado. O Estado comandado por Napoleão Bonaparte na fase do Consulado (1799-04) é um
Estado burguês, apoiado em uma forte burocracia civil e militar e que se impôs sobre a
sociedade. Este Estado cresce e se fortalece em termos econômicos, políticos, nacionais e
burocráticos. Sob a construção do Estado burguês e de uma sociedade civil burguesa,
construía-se uma hegemonia burguesa.
A desconstrução de uma hegemonia e a construção de outra ocorre em um contexto
de crise. E não poderia ser diferente, visto que interesses de classes estão sucedendo no poder
de Estado, tendo em vista conquistar condições favoráveis para a reprodução das relações
sociais que mais podiam satisfazer seus interesses materiais.
A classe dominante tradicional e a emergente se enfrentam, as várias frações da
classe dominante emergente disputam a liderança da conquista e as classes subalternas se
inserem no processo. Conforme Marx chama a atenção, um dos grandes dilemas das crises
que antecede a ascensão do Primeiro e do Terceiro Napoleão é o fato de que a ascensão
popular tem como resultado o fortalecimento do Estado, visto que a incapacidade da conquista
do poder por parte deste movimento determinaria a sua derrota, por um lado, e a conservação
de uma cultura política e uma estrutura burocrático-militar qualificada para a subordinação
das classes subalternas, por outro. Escreve Marx, (1983, p. 234 e 235).
O poder executivo, com sua enorme organização burocrática e militar, com seu mecanismo complicado e
artificial, com um exército de meio milhão de funcionários ao lado de outro exército de meio milhão de soldados
- esse corpo parasitário medonho que envolve como um invólucro todo o organismo da sociedade francesa e
entope todos os seus foros - criou-se no período da monarquia absoluta, no fim do sistema feudal, aperfeiçoando
o centralismo estatal
O Estado burguês encontra-se montado na França de 1848.
O Golpe do 18 Brumário e o Bonapartismo
A revolução de 1848 desencadeia uma conjuntura crítica em termos políticos. As
lutas de classes se intensificam na França e na Europa. É a “primavera dos povos”, como fica
conhecida esta revolução.
A partir de 1849, com a eleição de Luíz Bonaparte graças ao dilúvio eleitoral dos
camponeses em seu favor - que o leva para a presidência da Segunda República recém criada -
54
tem início a contra-revolução. O processo da contra-revolução atinge o seu ápice com o
golpe do Dezoito Brumário, quando a Segunda República dá lugar ao Segundo Império e Luíz
Napoleão é sagrado Napoleão III.
Interpretando a revolução de 48, as lutas de classes subsequentes e o golpe de Estado
de Bonaparte, Marx identifica uma série de problemas. Aspectos que, por um lado, revela
características do Estado bonapartista, por outro, permite a identificação de características
típicas do Estado burguês em geral.
Em primeiro lugar, Marx destaca o problema da aparente autonomia do Estado. O
gigantesco aparato burocrático civil e militar que “envolve como um invólucro todo o
organismo da sociedade francesa e entope todos os seus poros”, ou seja, o Estado subordina a
sociedade civil. E mais, agora a espada domina e se sobrepõe a todos os indivíduos, setores e
classes sociais. O Estado que destrói a imprensa revolucionária (48 e 49), persegue a imprensa
burguesa; que submete à vigilância as reuniões populares, submete à vigilância os salões
burgueses; que reprime os movimentos subalternos, reprime os movimentos da sociedade em
geral. O Estado, que reprime as classes subalternas a pedido da burguesia, termina por acuar a
própria burguesia.
Marx demonstra que o crescimento da burguesia do Estado, quando o liberalismo
econômico pleiteia o Estado mínimo - restrito à função de preservar as regras do jogo, cujo
fundamento se apóia na idéia de que todos seriam iguais no mercado - quando o papel
coercitivo se prolonga para todas as classes sociais - inclusive indivíduos e setores da classe
burguesa - leva vários indivíduos e grupos sociais a acreditar no caráter autônomo do Estado,
que o mesmo encontra-se pairando sobre a sociedade. De fato, uma leitura empírica dos
processos e fatos em curso poderia levar a esta ilusão. Entretanto, uma leitura mais atenta
demonstra que o Estado encontra-se articulado em uma certa lógica, que esta organizado no
sentido de medidas, de critérios, de atuações cujo sentido é a reposição expansiva das relações
capitalistas de produção e a dinamização das forças produtivas. Ao término do Segundo
Império (1870) a França transforma-se na segunda nação industrial da Europa.
Esta problemática inseria uma outra: Quem é a classe dominante e como ela exercia
o poder? Marx demonstra que a classe dominante não existe enquanto uma classe homogênea.
A unidade desta classe em torno da defesa da propriedade e do status quo não se prolonga nas
opções e projetos políticos concretos.
A diversidade de segmentos, na forma de frações de classe e correntes políticas, para
Marx, emergia da forma concreta como os referidos segmentos inseriam na estrutura de
reprodução material da sociedade. Marx, enfim, encontra o elemento explicativo das lutas de
55
classes no âmbito da classe dominante, de forma a identificar a coincidência entre projeto
político e interesses sociais concretos.
Marx demonstra, ainda, que o exercício da dominação burguesa ocorria em um
contexto de uma aliança de classes, de forma que no Estado, no governo e na sociedade, o
domínio burguês incluía setores da pequena propriedade, intelectuais, setores médios,
latifundiários. A hegemonia pressupõe um conjunto de alianças e/ou cooptação social. Em
segundo lugar, a dominação não ocorria diretamente. O domínio, a exemplo da forma do
regime bonapartista, poderia ocorrer por meio de outras esferas de poder (judiciário e
legislativo) e de esferas da burocracia de Estado, ou da sociedade civil. Apenas
episodicamente a burguesia exercia diretamente o poder. Em terceiro lugar, a dominação
dependia direta ou indiretamente das forças armadas. A ‘espada’ não é uma característica
apenas dos Estados precedentes, mas de todo Estado. O Estado burguês aprimora em termos
organizacionais, estratégicos, doutrinários e bélicos o aparato repressivo do Estado. Em quarto
lugar, a dominação burguesa sob a forma bonapartista pressupõe uma base social de
sustentação política mobilizada e controlada. O campesinato, que projeta Napoleão Bonaparte
- responsável pela legalização da repartição da terra - no sobrinho Luíz Bonaparte, e que o
concebe como o protetor/salvador dos interesses da classe camponesa frente à rapinagem do
capital comercial, industrial e financeiro, proporciona ao Imperador uma base social de
sustentação política no campo. O lumpem proletário, formado por segmentos sociais
proletários despolitizados e imediatistas, mobilizados por meio de métodos demagógicos e
populistas, por sua vez, proporciona ao Imperador uma base social de sustentação política na
cidade. Em quinto lugar, o clero aparece como o intelectual orgânico deste Estado. O clero
busca proporcionar a legitimidade divina do Império e do Imperador na medida que os
concebe como fruto da manifestação da graça de Deus, que assegura a conduta dos homens de
acordo com as leis e a obediência ao Estado/governo e que monopoliza a educação e o saber
formal.
Estado e Representações de Classe no Bonapartismo
O Estado burguês, na forma do regime bonapartista, concorre decisivamente para o
ocultamente da realidade. Sob um discurso liberal, promove uma poderosa burocracia pública.
Sob uma aparente autonomia induzida por esta própria burocracia, efetivamente conduz a
proteção e expansão dos interesses dominantes na forma da progressiva acumulação
capitalista (expandindo as forças produtivas e repondo as relações capitalistas de produção).
56
Marx demonstra, ironicamente, que o ocultamento da realidade assume, nas várias
classes e grupos sociais, representações invertidas da realidade. Os camponeses apareciam
como inocentes, mas de fato, encontram-se no contexto de sua ideologia pequeno-burguesa e
da sua configuração sócio-econômica concreta (atomizados em pequenas unidades familiares
dispersas nas diversas localidades), projetando Napoleão I, guardião da propriedade e família
camponesa, no III como novo guardião. A burguesia, que com sua imprensa sob vigilância e
seus salões vasculhados, aparecia como vítima de um poder construído graças à disputa e ao
enfraquecimento das suas várias frações de classe, seria a grande beneficiária do poder. O
partido da ordem, aristocrático (ou aristocracia aburguesada), dividido por meio das casas de
Bourbon e de Orleans, que vêem no novo imperador sagrado o seu tutor, o teria de fato como
tal apenas na medida em que este protegesse a propriedade privada. O proletariado de 1948,
que partilharia do governo por meio de Proudhon e do ministério do trabalho, com a ilusão de
que por meio do governo de coalizão ocuparia uma parte do poder, não consegue nada além
do que concorrer, temporariamente, para fortalecer o mito do Estado como instituição acima
das classes sociais. O próprio exército, que aparecia como uma força própria e
monopolizadora da violência, que consolida a imagem de que a farda é o manto do poder,
nada mais é do que um instrumento da defesa da propriedade burguesa.
Marx demonstra, portanto, que uma leitura puramente calcada nos sentidos, empírica,
não poderia dar conta de toda complexidade que as lutas de classes e a relação Estado e
sociedade assumia na França do período de 1848-52 e na sociedade moderna em geral. Seria
necessário ultrapassar as aparências dos fenômenos por meio de uma abordagem de
totalidade, ou seja, a partir da localização da forma concreta em que cada classe ou grupo
social se insere na produção e as relações que essa produção estabelece com as instâncias da
superestrutura. Somente assim seria possível identificar a conjuntura da luta de classes e
projetar futuros cenários político.
4.4 - A Origem do Estado: A Contribuição de Engels
Engels, apoiando-se em estudos de Henry Morgan (1818-1881) e em anotações de
Marx, elabora em 1894 a obra A origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado.
Esta obra supre uma carência tendo em vista a interpretação e análise do Estado, qual seja, a
sua origem.
Engels demonstra que a sociedade é anterior a família. Que o desenvolvimento da
sociedade engendra o surgimento da família e que esta, por sua vez, é redefinida no tempo. A
57
sociedade originária, a tribo, sob propriedade comunal, não conhece as formas de
propriedade pública e privada, a desigualdade social, a opressão sobre a mulher, etc.
Com a domesticação dos animais e das plantas, com a conseqüente geração de
excedentes, forma-se a propriedade e começa o início da desigualdade social e de gênero.
Forma-se uma ordem patriarcal. Forma-se a família enquanto unidade que inclui a
propriedade e os homens - escravos e livres. O pater familias tem poder de vida e morte sobre
todos.
Para Engels o desenvolvimento econômico e social desencadearia transformações
nesta família que o próprio desenvolvimento na sua fase anterior havia criado. Esta família
entraria em crise e seria dissolvida, dando lugar a classes sociais definidas em torno da
propriedade privada que progressivamente se absolutiza em poucas mãos. De um lado,
escravos e proprietários e, de outro lado, proprietários de terra e os que não possuíam terra
alguma.
Começaria a surgir, a partir de um determinado desenvolvimento das forças
produtivas, uma instituição, que tendia a dominar e manter coesa a sociedade. O Estado,
historicamente formado, seria esta instituição. E como tal, nasceria no contexto do surgimento
das classes sociais em luta. Seria um instrumento nas mãos dos proprietários de terras e
escravos tendo em vista institucionalizar sua dominação. Esta ocorreria por meio do aparato
policial-militar, da estrutura jurídica e do sistema político.
Engels demonstra que o Estado nasce da sociedade cujo desenvolvimento das forças
produtivas engendra as classes, que o Estado é um instrumento em favor das classes
dominantes, que o Estado é uma estrutura de poder que procedia da sociedade mas que era
apresentado como estando acima dela e que esta estrutura de poder ficava ‘estranho’ à própria
sociedade, sendo apresentado como poder separado dela e como seu próprio criador. Engels
demonstra, ainda, que o Estado, expressão da dominação de uma classe, busca um equilíbrio
político-jurídico - contraditório, provisório, transitório - entre as classes em conflito, tendo em
vista assegurar condições mais adequadas para o desenvolvimento das forças produtivas e
para a conservação das relações de produção.
Engels reconhece, tal qual Marx, que o Estado, aparentemente separado da
sociedade, constituía-se como um organismo com suas próprias dinâmicas internas, com sua
burocracia civil e militar, com sua estrutura política, e assim por diante. Mas, de fato, seriam
aparências, visto que esta lógica interna do Estado, aparentemente em contradição com a
lógica da sociedade, corresponderia a uma determinada sociedade.
A sociedade concreta, portanto, diferenciada socialmente, ordenada a partir do
58
desenvolvimento das forças produtivas e das relações de produção e cujos níveis e formas
de organização da vida social - a propriedade, a família, o Estado, a religião, etc. - estariam
sobre uma profunda interdependência. A sociedade determinaria o Estado, estando a própria
sociedade sujeita a uma hegemonia social.
Conforme podemos verificar, Engels não dá grandes contribuições à descobertas que
Marx realiza no O Golpe do 18 Brumário. As suas contribuições significativas encontram-se
na distinção entre sociedade e família, na demonstração de que a família patriarcal
(organização gentílica) dá lugar às classes com a descoberta da propriedade e na relação
estabelecida entre a formação das classes e da luta de classes como determinantes do
surgimento do Estado.
4.5 - A Concepção de Estado em Lênin
A concepção de Estado em Lênin não é derivada diretamente de Marx e Engels.
Entre estes pensadores esta presente a II Internacional, a qual Lênin pertence.
A II Internacional é profundamente marcada por uma concepção particular acerca do
processo histórico. O desenvolvimento histórico-social é concebido como resultado de uma
evolução contínua, sem saltos, sem rupturas dialéticas. Tal concepção dá lugar a uma visão
determinista da relação entre a base econômica, por um lado, e as instituições sociais, o
Estado e as formas da vida cultural, por outro. O determinismo nesta relação redunda no
economicismo - quando são atribuídos aos processos econômicos a força impulsionadora
dominante do desenvolvimento histórico-social - ou no politicismo - quando é atribuído a luta
de classes e o destacamento de vanguarda a força impulsionadora dominante.
Kautsky, o principal e mais destacado representante da II Internacional, reproduz esta
concepção acerca do processo histórico. Abordando o Estado, Kautsky não rompe com Marx
e Engels quanto ao seu caráter. Afirma também que todo partido político almeja o poder
político, de forma a dobrar o Estado em seu proveito e em proveito das classes que representa.
Kautsky rompe com Marx e Engels explicita ou implicitamente em alguns aspectos.
Em primeiro lugar, absolutiza o poder, identificando-o com o Estado, o que dificulta perceber
as manifestações de poder no âmbito da sociedade como um todo - na sociedade civil, no
âmbito de uma classe nas relações de gênero, etc. Em segundo lugar, coisifica o poder, ou
seja, o reduz a uma “coisa” que se conquista e instrumentaliza em favor de uma determinada
classe dominante. Em terceiro lugar, não aparece em Kautsky a idéia do enfraquecimento
progressivo do Estado até o seu desaparecimento total. Para Marx, não seria possível apoderar
59
pura e simplesmente do Estado burguês, teria que ocorrer a quebra da centralização, da
burocratização e da estrutura coercitiva. Em Kautsky não aparece a necessidade da criação de
um Estado de novo tipo e antagônico em relação ao anterior, porque esse teria que ser
descentralizado, fundado em organizações autônomas da sociedade (sociedade civil), cujas
funções estatais seriam assumidas pela sociedade (a exemplo do exército, magistratura,
administração, educação, saúde, etc.).
Finalmente, Kautsky não assume a idéia de Marx e Engels de que o Estado, sob a
direção do proletariado, não seria mais um Estado no sentido clássico do termo. Ao se
descentralizar e transferir funções diretamente para a sociedade, o Estado proletário seria um
Estado que traria em si mesmo as dinâmicas e mecanismos da sua extinção (Gruppi, 1985, p.
51).
Lênin e o Estado
A obra O Estado e a Revolução de Lênin, escrita entre agosto e setembro de 1917, é
a obra em que este pensador aborda de forma central o Estado. O objetivo de Lênin por meio
desta obra é restabelecer a “verdadeira” concepção de Marx e Engels sobre o Estado, de forma
a se contrapor à deturpação e deformação sofrida por estes autores pela II Internacional e
precisar o sentido da revolução em curso na Rússia após a sua primeira revolução – a
Revolução Democrático-Burguesa de fevereiro de 1917. Lênin não conclui esta obra, visto
que a partir de setembro de 1917 as lutas amadurecem o desencadeamento da segunda
revolução - Revolução de Outubro de 1917 - tendo em Lênin o seu timoneiro.
Lênin, coerente a Marx e Engels reafirma a caráter de classe do Estado, reconhece
nele uma máquina para o exercício do poder e admite que sob situações de equilíbrio relativo
o Estado poderia assumir uma posição eqüidistante frente as classes. Lênin reconhece que
todo Estado seria uma ditadura de classe.
Para o autor da obra O Estado e a Revolução, mesmo na república democrática
parlamentar burguesa em que os direitos civis, liberdade de organização partidária e a
estrutura política mais avançassem, seria apenas uma aparência democrática, visto que a
dominação social da minoria sobre a maioria estaria presente. Portanto, uma grande
democracia e liberdade burguesa não seria nada mais do que um escamoteamento, de forma
que a própria lei mais democrática da república democrática burguesa, seria um instrumento
da arbitrariedade desenfreada de classe (Gruppi, 1985, p. 55 e 56).
Lênin dá ênfase ao aspecto de dominação/coerção e emascula o aspecto de
60
hegemonia/direção na abordagem do Estado. Esta abordagem certamente decorre do
contexto histórico vivido por Lênin, qual seja, intensa repressão e autoritarismo em curso na
sociedade russa anteriormente à Revolução Russa.
Lênin contrapôs democracia burguesa à democracia proletária - ou ditadura do
proletariado. Esta democracia (ou ditadura) asseguraria o máximo de liberdade - de reunião,
de organização social, de imprensa, etc. Asseguraria, ainda, o início da quebra do Estado
burguês e do Estado em geral.
Lênin, contraditoriamente, admite o conceito “centralismo do poder estatal”, fruto de
uma transferência para o debate sobre o Estado e da sua relação para com a sociedade, de um
outro conceito igualmente polêmico, o “centralismo democrático” do partido, desenvolvido
nos debates sobre a organização do partido sob domínio do czarismo. Tanto em um como em
outro conceito, haveria uma hierarquia de comando de tal maneira que os níveis inferiores das
estruturas se subordinariam aos superiores.
A confiança na vanguarda revolucionária como dirigente da classe proletária e do
Estado, e no sentido da ação da burocracia estatal sob o controle do governo formado pelo
partido, determina em Lênin a subestimação da necessidade do controle do Estado pela
sociedade. A necessária descentralização em comunas, que para Lênin se realizaria dentro do
marco da unidade nacional, não recebe um detalhamento.
Lênin aborda o Estado dentro do universo conceitual de Marx, mas com uma forte
presença de Kautsky. O poder estatal para Lênin fundaria-se no exército permanente, separado
do povo e profissionalizado, na burocracia e na política. A própria função de mediação, de
equilíbrio jurídico, sempre contraditório, instável e provisório, não recebe tratamento ou
mesmo presença constante na obra de Lênin. O Estado em Lênin, tal qual em Kautsky, se
apresenta como um poder absolutizado e coisificado.
Segundo Gruppi,
Lênin desvirtua de certa forma a própria concepção marxista (e, ainda mais,
engelsiana) do Estado. Ele deixa na sombra o aspecto de mediação que existe no
Estado, o elemento da hegemonia, da direção (Gruppi, 1985, p. 61).
Lênin e os Sovietes
Lênin concebe os conselhos de operários, soldados e camponeses da Revolução
Russa como uma continuidade histórica dos Conselhos da Comuna de Paris. Os sovietes
61
acabariam com a separação existente entre os poderes legislativos e executivo, e entre
Estado e sociedade.
Há em Lênin, contudo, um certo desvirtuamento do papel que Marx atribuía a estas
organizações – independentes e autônomas dos trabalhadores. Para Lênin os sovietes seriam
órgãos do governo exercido pelos trabalhadores. Mas, em face do baixo nível cultural das
massas, os sovietes seriam na verdade órgãos do governo para os trabalhadores. Estes órgãos
seriam exercidos pela vanguarda do proletariado, ou seja, pelos quadros do partido e não
diretamente pelas massas de trabalhadores. Para Lênin isto não se apresenta como um
problema, visto que concebia o partido como vanguarda destacada do proletariado, ou seja,
sua parte/representante.
O papel que Lênin atribui aos sovietes se circunscreve dentro de uma experiência
socialista que não se expande para outros países, o que certamente limitaria, na conjuntura
pós-revolucionária, a possibilidade de descentralização do Estado. Lênin não trata em termos
efetivos e práticos o papel dos conselhos e sua relação com o Estado.
4.6 - As Contribuições De Gramsci
Gramsci amplia consideravelmente a noção de Estado proposta por Marx. Sua
abordagem do conceito de Estado ocorre por meio do desenvolvimento de outros conceitos e
de outras problemáticas, usadas como instrumental teórico para um compreensão e
aproximação da realidade na perspectiva de uma transformação social. Tais conceitos são:
hegemonia e bloco histórico. As problemáticas mais abordadas: a questão do partido moderno príncipe - e dos intelectuais. Na obra A Questão Meridional, tais conceitos e
problemáticas se encontram inseridos numa abordagem histórica concreta, qual seja, a
situação do Mezzogiorno ou sul da Itália.
Tal como em Marx, o Estado é concebido por Gramsci como “organismo próprio de
grupo, destinado a criar condições favoráveis à expansão máxima desse grupo” (Gramsci,
1989, p. 50). Conserva, portanto, uma base classista. No entanto, a expansão máxima desse
grupo ocorre em conexão com os interesses do grupo subordinado e a
(...) vida estatal é concebida como uma contínua superação de equilíbrios instáveis (no âmbito da lei) entre os
interesses do grupo fundamental e os interesses dos grupos subordinados; equilíbrio em que os interesses do
grupo dominante prevalecem até determinado ponto, excluindo o interesse econômico corporativo estreito
De tal afirmação podemos tirar algumas informações básicas: a) O Estado, apesar de
62
representar uma classe ou grupo, necessita para manter o ‘equilíbrio’, superar os interesses
estreitos do grupo fundamental que o compõe e abarcar os interesses dos grupos
subordinados. Daí a quebra de uma das ortodoxias marxistas que vê no Estado um mero
defensor dos interesses de uma única classe; b) Apesar da superação dos interesses
econômico-corporativos estreitos do grupo fundamental, o Estado continua a visar a expansão
desse grupo, a questão é que para essa expansão ocorra de forma máxima, tais interesses
devem ser superados; c) A superação dos equilíbrios instáveis se dá no âmbito da lei, ou seja,
a nível superestrutural.
A esta fase em que determinada classe consegue superar os interesses econômicocorporativos, abarcar os interesses de outros grupos e se constituir em “Estado”, propriamente
dito, Gramsci atribui ao momento principal das relações-de-força, ou seja, ao momento das
relações de forças políticas. Para que esse momento realmente se concretize, o grupo
fundamental deve criar uma “hegemonia” com relação aos grupos subordinados.
O conceito hegemonia aparece assim claramente ligado a questão do Estado em
Gramsci. Em A Questão Meridional, o autor procura aplicar esse conceito à realidade
italiana. Ele afirma que “o proletariado pode tornar-se classe dirigente e dominante (ou seja,
hegemônica) na medida em que consiga criar um sistema de aliança de classes que permita
mobilizar contra o capitalismo e o Estado burguês a maioria da população trabalhadora...” (
). Assim, a conquista do poder por parte de uma classe, aqui no caso, o proletariado, passa
pela direção e dominação, que esse grupo é capaz de exercer sobre outros, o que ocorre por
meio da construção de uma aliança de classe. Essa aliança, muito mais que um agrupamento
ocasional em torno de questões esporádicas, é uma união de caráter orgânico, garantida pela
difusão de idéias unificadoras das classes em questão e pelo atendimento das reivindicações
básicas e materiais dos diversos grupos. Ao grupo principal cabe dar a direção ideológica aos
demais, superando para isso os seus interesses econômico-corporativos e se colocando como
grupo que pretende dirigir os demais. Pois, (Gramsci, 1989, p. 33).
O fato da hegemonia pressupõe indubitavelmente que se deve levar em conta os interesses, as tendências dos
grupos sobre os quais a hegemonia será exercida (...). É indubitável que os sacrifícios e compromissos não se
relacionam com o essencial, pois a hegemonia é ético-política mas também econômica
Essa linha de raciocínio nos leva a incorporar duas novas discussões: a) A questão da
identificação/direção/sociedade civil versus Estado/dominação/sociedade política; e b) A
questão da formação do “bloco histórico”.
63
Na primeira discussão podemos partir das seguintes afirmações de Gramsci: 1)
“Podemos distinguir dois grandes níveis na superestrutura, o que pode ser designado como
‘sociedade civil‘, isto é, o conjunto de organismos chamados internos e privados, e da
‘sociedade política’, ou Estado, correspondendo respectivamente a função de hegemonia que
o grupo dirigente exerce sobre o conjunto do corpo social e da dominação direta ou comando,
que se expressa através do Estado e do poder jurídico” ( ); 2)“(...) a noção de Estado
comporta elementos que devem ser vinculados à sociedade civil (no sentido de
Estado=sociedade política+Sociedade civil, isto é, uma hegemonia couraçada de coerção”
(Gramsci apud Buci-Gluckmann, 1980, p. 98).
A distinção realizada por Gramsci entre sociedade civil, identificada como espaço de
construção da hegemonia, e sociedade política, como espaço de coerção - criando o par
dominação/direção, presente em toda obra de Gramsci -, aparece aqui como pura distinção
formal, realizada apenas a nível metodológico, uma vez que na realidade concreta tal distinção
não existe. Tanto é que na segunda assertiva passa a identificar sociedade política e sociedade
civil como partes constitutivas do Estado.
Na verdade, a concretude do Estado se dá pela manifestação da hegemonia identificada como poder de direção; e pela coerção. Para Gramsci, um grupo que pretende se
constituir enquanto grupo dirigente de uma sociedade, deve se constituir também, e
principalmente, como grupo dominante, ou seja, deve ser portador da ‘vontade coletiva’. No
entanto, o momento da coerção não deixa de existir.
A hegemonia se constrói no interior do bloco histórico. Este, mais do que uma
aliança de classes realizada num determinado momento histórico, representa a unificação de
grupos em torno de um projeto histórico e classista. O que garante a união desse bloco é a
criação e ampliação da hegemonia pela classe fundamental; assim, na análise contida na obra
A Questão Meridional Gramsci caracteriza a sociedade meridional como ‘um gigantesco
bloco agrário’, constituído pelos grandes proprietários, pelos grandes intelectuais, pelos
camponeses, pela média burguesia e pela intelectualidade média. A união desse grupo
disforme sob a direção dos grandes proprietários, ligados aos grandes industriais do norte,
ocorre por meio da ação dos intelectuais, responsáveis pela criação de uma cultura que leva à
submissão da massa camponesa, que apesar de revolta, é desorganizada. O grupo de
intelectuais é responsável pela criação e manutenção da hegemonia do grupo dirigente no que
ela tem de ideológico, de superestrutural.
É tal a importância da criação da hegemonia para a manutenção do bloco histórico,
que Gramsci afirma nesse mesmo texto que o bloco intelectual é “a armadura flexível e
64
resistente do bloco agrário”. Para a destruição desse bloco e a criação de um novo, torna-se
necessária a conquista dos intelectuais, enquanto grupo, para uma nova proposta de ordenação
social, para a criação de uma nova hegemonia.
O papel do intelectual na obra de Gramsci, tem uma importância fundamental. Aos
intelectuais cabe a tarefa da construção de uma nova cultura política que, difundida, se
tornaria senso comum. O intelectual para Gramsci não é uma figura passiva, alheia à
realidade, e neutra na emissão de seus pareceres. É, ao contrário, elemento dinâmico dentro da
formação social; é ele que por meio de sua colaboração teórica e da sua ligação direta com a
massa cria e repassa ideologia13 da classe que se encontra no poder. É o intelectual quem tem
a capacidade de realizar a ligação entre infra e superestrutura, tornando o bloco histórico mais
homogêneo e coeso, e em última instância, garantindo a hegemonia da classe que se encontra
na direção do bloco.
Se o desenvolvimento da ideologia e sua homogeneização dentro da sociedade são as
principais provas da hegemonia de um grupo dirigente, seu enfraquecimento e a utilização da
força, são os sinais de debilitação da hegemonia e da passagem da ditadura.
Quando a classe fundamental conquista a hegemonia, ela consegue o consenso e o
controle da sociedade civil: consegue construir um bloco histórico homogêneo. O
desenvolvimento do controle ideológico gera então o enfraquecimento da sociedade política e
da coerção. A sociedade civil passa a ter, digamos, predominância sobre a sociedade política.
Em uma situação em que a hegemonia não está totalmente desenvolvida, em que o grupo
social principal domina mas não dirige a sociedade, temos uma situação de ditadura, onde a
coerção será amplamente utilizada para a manutenção do aparelho de Estado.
A situação de hegemonia e ditadura não estão totalmente separadas, a não ser em
casos históricos específicos. A classe dirigente mesmo quando hegemônica, não dirige toda a
sociedade, mas somente as classes auxiliares e aliadas. A hegemonia jamais é total, e um
mesmo grupo pode ser ao mesmo tempo dirigente e dominante. Daí a presença e utilização do
aparato repressivo por parte do Estado, quando a situação o exige.
13
Em Gramsci o “conceito de ideologia está relacionado a uma concepção de um mundo implicitamente
manifesta na arte, no direito, na atividade econômica e em todas as manifestações da vida individual e coletiva.
Mais do que um sistema de ideais, ela também está relacionada com a capacidade de inspirar atitudes concretas e
proporcionar orientação para a ação. A ideologia está socialmente generalizada, pois o homem não pode agir sem
regras de conduta, sem orientações. Portanto, a ideologia torna-se o “terreno sobre o qual os homens se
movimentam, adquirem consciência de sua posição, lutam, etc. É portanto na ideologia e pela ideologia que uma
classe pode exercer a hegemonia sobre as outras, isto é, pode assegurar a adesão e o consentimento das grandes
massas”. Dicionário do Pensamento Marxista. 2ª edição, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1988. 186p.
65
A concretização da hegemonia e a construção do bloco histórico, por meio da ação
da classe fundamental apoiada pelos intelectuais, se realiza fundamentalmente no partido.
Para Gramsci (1989, p. 102).
Na realidade de todos os Estados, o ‘chefe de Estado’, isto é, o elemento equilibrador dos diversos interesses em
luta contra o interesse predominante, mas não exclusivo num sentido absoluto, é exatamente o “partido político”;
ele porém, ao contrário do que se verifica, no direito constitucional tradicional, não reina nem governa
juridicamente: tem o poder de fato, exerce a hegemônica e, portanto, equilibradora de interesses diversos, na
‘sociedade civil’, mas de tal modo que está entrelaçada de fato com a sociedade política, que todos cidadãos
sentem que ele reina e governa
Na análise realizada por Gramsci no texto O Moderno Príncipe, o partido é visto
como o portador da vontade coletiva, definida como “a vontade como consciência atuante da
necessidade histórica, como protagonista de um drama histórico real e efetivo” (Gramsci,
1989, p. 7).
A criação dessa vontade coletiva passa por dois elementos a sem desenvolvidos pelo
partido: a) A formação de uma vontade coletiva nacional-popular; e b) Uma reforma
intelectual e moral.
Esses dois aspectos da vida do partido, remetem novamente à função dos intelectuais
na construção da hegemonia dentro do bloco histórico e à função educativa que o Estado se
reveste. O partido político, que detém o “poder de fato” tanto em relação à sociedade civil
quanto à sociedade política, é o grande articulador de uma nova concepção de mundo,
responsável pela aglutinação e criação de uma nova vontade coletiva que permita a unidade de
Estado enquanto representante de classe. O partido, mesmo que dividido em várias facções, na
realidade, só existe enquanto partido único e orgânico de uma única classe que representa, as
divisões internas de caráter superficial são superadas todas as vezes que o poder da classe
hegemônica se encontra ameaçado, nesse momento as diversas facções se unem formando um
bloco compacto que visa a manutenção do Estado.
Retornando à função educativa do partido e do Estado vamos encontrar tanto em O
Moderno Príncipe quanto no texto Americanismo e Fordismo, as indicações sobre o papel
desempenhado pelo Estado na formação e adequação das massa a uma nova ordem moralintelectual, quanto produtiva. No primeiro texto encontramos: (Gramsci, 1989, p. 91).
Missão educativa e formativa do Estado, cujo fim é sempre criar novos e mais elevados topos de civilização,
adequar a “civilização” e a moralidade das mais amplas massas populares às necessidades do desenvolvimento
66
continuado do aparelho econômico de produção, portanto elaborar também fisicamente novos tipos de
humanidade
No texto Americanismo e Fordismo essa situação é bem explicitada; as novas
formas
de
produzir
introduzidas
por
Ford,
com
o
respaldo
do
pensamento
político/econômico/ideológico do Estado americano passam a criar um novo tipo de
trabalhador. Mais capacitado e mais adequado ao desenvolvimento do Estado americano,
tanto que o autor chega a afirmar que a hegemonia vem da fábrica (
).
No entanto, essa adequação a um novo tipo de Estado e produção não ocorre
simplesmente em função da ‘educação’ a que o Estado submete as massas. O uso da força está
presente nesse processo. Para Gramsci, as mudanças do modo de viver se verificam por meio
de cruéis coerções proporcionadas pelo domínio de um grupo social sobre todas as forças
produtivas da sociedade. O surgimento de novos tipos de civilização, ou o curso do processo
de desenvolvimento são marcados por crises. Para ele, “quando a pressão coercitiva é exercida
sobre todo o complexo social, desenvolvem-se ideologias puritanas que moldam a forma
exterior de persuasão e do consentimento ao uso intrínseco da força” (Gramsci, 1989, p. 393 e
394).
A coerção combinada com a persuasão (que pode ser feita por meio da criação de
ideologias puritanas ou do pagamento de salários mais altos) tem a função de engajar as
massas trabalhadoras nas novas formas de produção. Passado o momento de crise, e estando
as massas enquadradas, podem diminuir tanto a pressão - o que gera o que o autor chama de
‘liberalismo’, após a imposição do puritanismo - quanto a redução dos meios persuasivos com
redução dos salários.
O que é importante notar ainda no texto é que o autor não desvincula o processo
produtivo do processo de construção e domínio do Estado sobre a massa. Pelo contrário, no
caso específico do americanismo, Gramsci é claro em destacar que para a imposição de uma
nova forma de produção necessita-se de um tipo especial de Estado; no caso, o Estado deve
ser liberal no sentido “da livre iniciativa e do individualismo econômico que alcança através
de meios próprios, como “sociedade civil”, através do próprio desenvolvimento histórico, o
regime de concentração industrial e de monopólio” (Gramsci, 1989, p. 388). Vê-se por essa
passagem a identificação de Estado como ‘sociedade civil’.
Ainda no que diz respeito à relação Estado/consenso/coerção, Gramsci é claro em
afirmar que o “centralismo democrático” é o elemento de instabilidade do Estado. O que
significa dizer que na luta entre a preponderância da coerção ou do consenso, consegue maior
67
equilíbrio o Estado que consegue ter como base um partido que se paute principalmente no
consenso, que seja um partido realmente orgânico no sentido de conseguir se adaptar às novas
realidades e necessidades das bases dos grupos que compõem o bloco histórico no poder.
Caso contrário, o centralismo burocrático - que ocorre em função do primarismo político das
bases e leva a formação de um Estado autoritário - passa a predominar e a minar a base de
sustentação do Estado. Resumindo, a construção da hegemonia pelo grupo fundamental é o
componente principal da manutenção de uma determinada ordem social e do Estado que lhe
corresponde.
4.7 - Contribuições Pós-Gramsci
Claus Offe parte do entendimento de que o Estado possui uma autonomia relativa em
relação aos interesses imediatos das classes dominantes nos momentos de acirramento das
lutas de classes, realizado Marx na obra o Dezoito Brumário de Luíz Bonaparte. Agrega a este
reconhecimento o papel da burocracia como agente organizador, racionalizador e
modernizador do capitalismo monopolista, realizado por Max Weber nos estudos sobre
burocracia.
Para Claus Offe a burocracia assume a função de mediador da luta de classes que se
desenvolve no processo de acumulação capitalista. Isto porque a contradição básica da
produção capitalista, qual seja, a crescente socialização da produção e a apropriação privada
dos excedentes, gera uma infinidade de crises políticas, econômicas e sociais que obriga ao
Estado construir mecanismos públicos e privados, externos e internos ao mercado, para detêlos (Carnoy, 1986, p. 169).
As funções do Estado como administrador das freqüentes crises do capitalismo, sob
etapa monopolista, seriam ampliadas. E tal ampliação comprometeria uma relação simétrica
entre os interesses da classe dominante e a atuação do Estado, a exemplo da era do pacto
fordista sob o denominado “Welfare state”. Seria, portanto, difícil perceber até que ponto o
Estado representaria o interesse social do capital, qual seja, a reprodução do modo capitalista
de produção, na medida em que ele transformaria-se em administrador de uma sociedade de
interesses diversos e conflituosos e em árbitro dos conflitos e disputas das diferentes
expressões sociais e políticas do mundo do capital e das diferentes expressões sociais e
políticas do mundo do trabalho.
Joachim Hirsh parte do entendimento de que a sociedade capitalista seria
profundamente marcada pela concorrência entre o capital industrial, financeiro e comercial.
68
Tal processo constituiria frações políticas burguesas disputando a orientação do Estado
(Carnoy, 1986, p. 181).
Para Joachim Hirsh o Estado reproduziria em si mesmo esta concorrência e conflito, o
que o impediria de representar os interesses gerais do capital. Todavia, a existência do Estado
burguês dependeria da reprodução da acumulação do capital – que é a reprodução expansiva
do valor, das relações capitalistas de produção e do domínio político e ideológico da classe
burguesa. A acumulação do capital, por sua vez, não seria possível sem o Estado burguês –
que é o direito (leis, instituições etc) e o burocratismo (aparato burocrático civil e militar,
modus operandi etc).
Nicos Poulantzas parte do entendimento de que o Estado, como ademais todas as
instituições sociais, seria um produto da luta de classes. Portanto, a forma e a estrutura do
Estado no capitalismo seriam construídos pela luta das classes presentes na sociedade
capitalista e pelo papel que o Estado desempenharia nessa luta.
Para Nicos Poulantzas a luta de classes nasceria das relações de produção e se
prolongaria para dentro de todas as instituições. Do que se conclui que ocorreria uma disputa
entre as diversas frações burguesas tendo em vista assegurar o domínio político, bem como
um grau de interferência da classe operária na moldagem do Estado.
Pietro Ingrão, que também reconhece o Estado como produto e modelador da luta de
classes, o concebe como campo político onde as camadas populares atuariam e onde poderiam
obter conquistas que alterasse o sentido e o conteúdo do desenvolvimento capitalista. A
democracia nas sociedades capitalistas, para ele uma conquista operária por meio das suas
lutas, seria o regime político que melhor adequaria às conquistas progressivas e à própria
redefinição continuada do desenvolvimento capitalista (Carnoy, 1986, p. 208).
4.8 - A violência
Historicamente o desenvolvimento do Estado o leva a ampliar a sua atuação até a
monopolização do aparato repressivo no período moderno ocidental. Na modernidade o uso
da violência sai do domínio privado e passa para o domínio público. O Estado passa a ter o
monopólio do uso da violência. Enzensberger em seu artigo “Reflexões diante de uma
vitrine”, reportando-se a Freud, considera que entre o assassinato e a política existe um
relacionamento antigo, estreito e obscuro. Essa situação foi conservada na estrutura
fundamental de todos os governos, e o governo pertence a quem quer que possa mandar matar
aqueles sobre quem reina (Enzensberger, 1991).
69
A soberania do Estado residiria justamente no poder de manipulação da violência,
que se expressa no direito de usar da pena de morte, de perseguir os “inimigos internos”- do
criminoso comum ao dissidente político – e em última instância no direito de morte sobre
populações inteiras, em caso de guerras. Essa violência legal exercida pelo Estado,
materializa-se, principalmente, na atuação das polícias, que no mundo moderno assumiriam
um roupagem requintada, que trabalha tanto com a delação quanto com a repressão pura e
simples.
Estabelece-se assim uma relação estreita entre poder e violência. Em Gramsci, tal
articulação também está presente e se refere a construção da supremacia de um determinado
grupo social que se baseia na coerção (dominação) e no consenso (direção). O Estado, na
construção e manutenção de seu poder, necessita tanto do consenso das massas, via
fortalecimento da sociedade civil, quanto de um poder de coerção, que se manifesta mais forte
quando do enfraquecimento dessa sociedade civil e do fortalecimento da sociedade política.
O fenômeno da ditadura refletiria justamente essa situação, onde a manutenção do poder se
daria via coerção e não consenso. Tal situação demonstraria o enfraquecimento da hegemonia
construída pelo Estado e uma crise virtual, só superável com a reconquista do consenso. No
entanto, o predomínio do consenso não significa o desaparecimento ou supressão do aparato
coercitivo, que em última instância serve à manutenção do poder da classe que dirige o Estado
4.9- Considerações Finais
Marx e Engels acentuam em suas análises a gênese do Estado, o seu caráter de classe,
a sua determinação material e a sua historicidade. Para Marx e Engels o Estado desaparecia
com o fim da “pré-história da humanidade”, isto é, como o fim da história humana
caracterizada pela propriedade privada e pela desigualdade social.
Os demais teóricos marxistas acentuam o Estado como espaço de luta de classes.
Determinados teóricos chegam mesmo a recusar a abordagem do Estado como um aparelho
repressivo da classe burguesa.
É possível reconhecer que na abordagem marxista atual predomina o entendimento de
que o Estado no capitalismo seria dominado pela burguesia; de que ele seria voltado para a
reprodução das relações capitalistas de produção; e de que ele concorreria para a criação de
um aparelhamento político e econômico voltado para a acumulação do capital. É possível
70
reconhecer, ainda, o entendimento de que o Estado, na medida em que seria espaço da luta
de classes, poderia ter suplantado a sua natureza burguesa.
71
5 - VERTENTES E INFLUÊNCIAS HISTORIOGRÁFICAS MARXISTAS
A influência de Marx no meio acadêmico no século XIX é modesta. A grande
influência do positivismo, a confiança na chamada civilização ocidental, a presença das
classes dominantes nos segmento médios vinculados à alta cultura, a hegemonia ideológica do
liberalismo, entre outros fatores, concorrem para tanto.
No final do século XIX e, principalmente, nas primeiras décadas do século XX o
quadro se altera. O positivismo revela-se insuficiente para compreender os fenômenos sociais
de uma sociedade que se complexifica; a conquista da África e Ásia e as guerras mundiais
abalam profundamente a confiança na civilização ocidental; a diferenciação social em nível
dos segmentos médios da sociedade, desencadeada pelas novas atividades e funções
proporcionadas pelo capitalismo na sua fase monopolista, prolonga-se no plano político e
ideológico; o caso Dreifus, a monopolização da economia, o socialismo, a realidade social do
proletariado etc, abalam a hegemonia liberal.
Estes e outros fatores concorrem para que o meio acadêmico, especialmente no
âmbito das chamadas ciências históricas - História, Sociologia, Economia e Antropologia estejam mais receptivos à investigação e influência do pensamento de Marx. Na ciência da
história, como nas demais ciências e áreas do conhecimento, essa influência não ocorre de
forma homogênea. Ela é indireta e difusa, a exemplo da Escola Annales; direta, concentrada e
flexível, a exemplo do grupo de historiadores marxistas ingleses; e direta, concentrada e
dogmática, a exemplo da historiografia marxista soviética.
5.1 - Escola Annales e o Marxismo
Os fundadores da Escola Annales, Lucien Febvre e Marc Bloch, recusam a adesão a
sistemas filosóficos ou modelos teóricos. Conscientes da complexidade dos fenômenos sociais
e da interdependência dos diversos níveis da vida social, ocupam-se da teoria e metodologia
da história a partir do ofício e prática do historiador. Contribuições possíveis são buscadas nas
grandes correntes teórico-metodológicas e nas demais ciências sociais, mas sempre no sentido
de esclarecer e instrumentalizar a teoria e metodologia da história emergida da prática do
historiador.
A proposta da Escola Annales é que o historiador construa o seu objeto de análise por
72
meio de um corpus de documentos (textos escritos, objetos, entrevistas etc), com o objetivo
de responder a uma questão emergida do passado, mas por ele reconhecida e formulada. É a
história-problema, obra de um investigador e analista (Bourdé e Martin, 1983, P. 142 e 143).
A influência do marxismo no surgimento da Escola Annales é grande. E não poderia
ser diferente, visto que é evidente nas primeiras décadas deste século a fragilidade da Escola
Metódica (também denominada “positivista”) de conduzir a interpretação da história.
Concomitantemente, ocorre a expansão da perspectiva de análise dialética e materialista no
meio intelectual e universitário.
Marx proporciona periodizações amplas, análise estrutural do social e perspectiva da
história global. As “descobertas” das profundezas da subjetividade coletiva, das estruturas
econômicas e da luta política (enquanto manifestação institucional e extra-institucional)
revolucionam o conhecimento. Os homens vulgares e os processos sociais transformam-se,
respectivamente, em sujeitos históricos e em movimentos sob causalidades explicáveis,
rompendo com a história dos grandes personagens e dos acontecimentos. Essa influência é
intensamente sentida por Lucien Febvre e Marc Bloch.
A influência do marxismo na Escola Annales, salvo os historiadores assumidamente
marxistas dessa Escola (Guy Bois, Pierre Vilar etc), é indireta e difusa. A recusa da Escola
Annales em adotar sistemas filosóficos globais que se pretendem, segundo alguns de seus
principais membros, anunciadores do sentido da história, como de fato o positivismo e a
versão dogmática do marxismo (com sua visão linear e finalista da história) o são, é um fator
que concorre para a resistência ao marxismo - menos enquanto método e mais enquanto teoria
- por parte da maior parte dos seus membros.
A opção de classe que o marxismo trás em si mesmo também representa um
obstáculo a uma interação maior e mais explícita entre a Escola Annales e o marxismo
enquanto método de análise. Numerosos historiadores da Escola Annales recusam a opção (ou
mesmo simpatia) por qualquer grupo social. Consolida junto na Escola Annales, ou pelo
menos em grande parte dos seus membros, a compreensão de que a isenção política constitua
em um pressuposto da busca de objetividade e isenção científica.
Os marxistas, integrados ou não na Escola Annales, também edificaram “obstáculos”
para que essa influência se conformasse indireta e difusa. Para os marxistas, é inadmissível a
subestimação das contradições e conflitos sociais e das relações de produção para a
compreensão do global, prática comum em grande parte dos membros da Escola Annales. A
crítica dos métodos quantitativos, adotados na análise econômica e demográfica, desarticulado
de uma abordagem da estrutura econômica e social, também despertam a crítica marxista
73
sobre membros da Escola Annales.
A Influência da Escola Annales na Historiografia Marxista
A grande influência da Escola Annales na historiografia mundial ocorre na
denominada 2ª geração. O primeiro grande fator que concorre para tanto é o papel
desempenhado por Fernand Braudel à frente da VI Section da École Pratique. A capacidade
de organização de Braudel transforma a VI Section no principal centro dinâmico das ciências
sociais francesas. Outro fator importante é a herança do espírito de interdisciplinaridade de
Marc Bloch e Lucien Fevre, aliado a prática interdisciplinar que Braudel estabelece com a
geografia. A perspectiva de colaboração entre ciências rapidamente desperta a atração de
pensadores de outras ciências para colaborar no interior da VI Section da École Pratique.
Como conseqüência, novas temáticas, problematizações etc, são possíveis na ciência da
história.
A grande influência da Escola Annales é no terreno da história econômica e social.
Personalidades que encontram-se fora do marxismo, como Braudel, e outras que se encontram
dentro, como Labrousse, exercem forte influência em toda uma geração de jovens
historiadores. Na Inglaterra, segundo Hobsbawm, o diálogo e colaboração entre os já
consagrados historiadores da chamada 2ª geração dos Annales e os jovens historiadores
marxistas ingleses, os situam do mesmo lado nos embates historiográficos, ou seja, em
oposição à historiografia denominada positivista (e, provavelmente, às interpretações
historiográficas marxistas dogmáticas). A influência e intensa colaboração atinge tal ponto
que, para esse historiador, história econômica e social parecia um condomínio anglo-francês
nas décadas de 50 e 60 (Hobsbawm, 1998, P. 194 e 195).
Essa influência haveria de marcar profundamente a fisionomia da historiografia
inglesa e mundial. A própria preocupação com o tema da transição do feudalismo para o
capitalismo, a criação da economia e história mundial, as formas e dinâmicas da acumulação
primitiva de capital, a estrutura e os conflitos de classes, o papel e o caráter do Estado
moderno, entre tantas outras preocupações que soam tão profundamente inglesas e marxista,
surgem do diálogo entre a Escola Annales e os historiadores marxistas ingleses. O grande
debate acerca dos tempos modernos, inaugurado por meio da polêmica Maurice Dobb/Paul
Sweezy sobre o capitalismo e transição, não poderia adquirir o significado que adquire fora
dessa influência intelectual e historiográfica .
74
Contradições na Relação Annales/Marxismo
Ressalvas, conforme identificamos, são realizadas por marxistas sobre a Escola
Annales. Essa questão é primorosamente apresentada por Bourdé e Martin por meio da síntese
que realizaram sobre as críticas que Guy Bois (ele mesmo membro da Escola Annales e
marxista) traça quanto ao método, objeto e perspectiva de grande parte dos membros da
Escola Annales. (Bourdé e Martin, 1983, P. 144).
A sacrossanta quantificação não é ela prisioneira do estado das fontes e não arrisca privilegiar as realidades
sociais que emergem (...) à custa de outras, também essenciais, que continuam dissimuladas (...)? A sucessão dos
estudos seriais (...) não arrisca atomizar a realidade histórica, originar um eclodir das perspectivas e proibir
finalmente o recurso ao conceito unificante de modo de produção? O lugar concedido às profundezas mentais,
que adquirem por vezes o estatuto de infra-estruturas determinantes entre os novos historiadores, não vem
misturar os princípios de explicação marxista e não faz perder de vista a primazia das relações de produção?
Finalmente, as novas ciências não fazem figura de armas de guerra contra o marxismo, como uma certa étnohistória, que, à força de insistir no inconsciente coletivo, na sociabilidade e outros comportamentos perenes dos
grupos humanos, desvaloriza a explicação pelas relações de classes, quando não brande as relações de
parentescos contra as relações de produção?
5.2 - Historiografia Marxista Inglesa
A historiografia marxista inglesa forma-se a partir de um grupo de jovens
historiadores vinculados ao pequeno Partido Comunista Inglês. O seu objetivo é edificar uma
proposta teórico-metodológica alternativa à dominante concepção da história política,
diplomática e militar centrada nas personalidades, instituições, acontecimentos políticos e na
narrativa cronológica.
O referencial da proposta teórico-metodológica alternativa é o método marxista.
Concebido como estando em permanente construção graças às conquistas científicas, o
método marxista deveria concorrer para investigar e analisar a realidade enquanto totalidade
na qual se interagem os níveis da reprodução material e espiritual da sociedade. Coerente com
Marx, os historiadores marxistas ingleses rompem com determinismos em voga, mas
reconhecem a determinação do todo social a partir das relações de produção.
A influência da Escola Annales, na definição dessas características da historiografia
marxista inglesa, é significativa. Essa influência, segundo Hobsbawm, teria ocorrido,
principalmente, por meio da leitura e debate da revista Annales e do intenso colóquio anglo-
75
francês em torno da história econômica e social (Hobsbawm, 1998, p. 193 e 194).
O grupo organizado em torno da revista Past and Present incorpora na nova proposta
teórico-metodológica a dimensão econômica e social, recusa a pura e simples exposição e
narrativa em favor da interpretação dos processos histórico-sociais e combate as diversas
formas de determinismos então dominantes (geográfico, econômico, cultural etc). Busca
construir uma análise da sociedade enquanto uma totalidade em movimento, na qual a
experiência humana não se encontraria submetida a qualquer forma de determinismo.
A historiografia marxista inglesa recusa a teoria enquanto sistema explicativo a
priori construído. Valoriza, contudo, a teoria emergida da própria prática da pesquisa
orientada por historiadores que adotam o método de análise e investigação representado pelo
marxismo - o marxismo menos enquanto teoria e mais enquanto método. Esse quadro, por um
lado, gera concepções e práticas que não são totalmente idênticas porque não emergem de
uma teoria enquanto sistema explicativo, por outro, é capaz de proporcionar diversas linhas de
estudos e polêmicas teóricas de elevado alcance, enriquecendo a teoria da história e as novas
práticas de pesquisa.
Demarcar os campos de ciência da história e da ciência sociológica é outro desafio.
Para esses historiadores, a ciência da história se ocupa da historicidade dos fenômenos sociais
e suas raízes mais profundas, interpretadas a partir das totalidades sociais. A ciência
sociológica, por sua vez, se ocupa em conduzir interpretações da sociedade por meio de cortes
conjunturais, bem como definir teorias explicativas dos fenômenos sociais. Essa demarcação
não impede a busca de colaboração interdisciplinar entre estas ciências, destas para com
outras ciências e, nem tampouco, a valorização da teoria.
Vertentes da historiografia marxista inglesa
Estudiosos da historiografia marxista britânica costumam dividi-la em duas vertentes:
sócio-econômica e sócio-cultural. A vertente sócio-econômica estaria mais vinculado aos
estudos estruturais em torno do desenvolvimento do capitalismo, do Estado e das classes a
partir das dimensões econômicas, sociais e políticas. Fariam parte desta vertente os
historiadores Eric Hobsbawm, Perry Anderson etc. A vertente sócio-cultural estaria mais
vinculada aos estudos da formação e desenvolvimento das classes sociais, especialmente da
classe operária, a partir das suas experiências sociais e expressões ideológico-culturais.
Fariam parte desta vertente os historiadores E. P. Thompson, Christopher Hill, Rodney Hilton
etc.
76
Estudiosos têm insistido, ainda, que tal divisão refletiria, na verdade, uma
contradição metodológica, cuja raiz se encontraria no próprio método marxista, o qual
conviveria com um determinismo sócio-econômico. Segundo eles, estaria implícito na
vertente sócio-cultural a compreensão de que a experiência social de uma classe ou segmento
social não estaria, necessariamente, determinada pelas relações de produção. Reconhecem,
contudo, que para os historiadores marxistas britânicos como um todo, uma classe ou
segmento social não poderia elaborar cultura que não fosse, necessariamente, interagida com
as condições materiais, cuja qualidade estaria determinada pelas relações de produção.
A divisão dos historiadores marxistas britânicos nas vertentes sócio-econômica e
sócio-cultural não é bem recebida pelos principais expoentes do grupo.
A história de baixo para cima
A historiografia marxista inglesa busca, como vimos, uma percepção de totalidade a
partir das experiências vividas pelas classes trabalhadoras. Ela se ‘contrapôs’, de forma
explícita ou não, a diversas propostas teórico-metodológicas que, segundo a sua concepção,
comprometia uma leitura dialética (portanto, abordagem de totalidade calcada no conflito e no
movimento) do processo histórico. São elas, a saber:
- os estudos das estruturas do poder sob o modelo clássico da história de elite: investigariam,
de forma crítica, as estruturas do poder, mas que, com freqüência, se submetiam ao clássico
modelo de história de elite (elite versus massa), reproduzindo a concepção da história de
“cima para baixo”; nesses estudos não haveria um espaço para as vidas, atividades e
experiências das grandes massas sociais;
- estudos das “mentalidades”: poderiam possibilitar uma história a partir de “baixo” e
incorporar experiências e representações de mundo dos que se encontram fora das classes
dominantes quando orientados pela busca da coesão lógica interna entre pensamento e
comportamento e as condições materiais sobre as quais se vive; fora dessa coesão possuiria,
contudo, o inconveniente de eliminar a consciência, a ação e a dimensão política das classes
dominadas no âmbito das relações sociais, bem como o inconveniente de subsumir as
representações ideológico-culturais dessas classes em um plano mais amplo (espaço de uma
hegemonia cultural das classes dominantes), qual seja, a “mentalidade coletiva”;
- estudos da “cultura material”: concentrariam demasiadamente na reprodução das estruturas
econômicas e sociais na longa duração e no espaço geográfico, o que reduziria o significado
das experiências e das ações humanas, em especial das descontinuidades da história fruto das
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mesmas;
- estudos da modernização das sociedades modernas e contemporâneas: superestimariam a
dimensão econômica e urbana, e subestimariam a dimensão política e as identidades políticas
e ideológicas das gerações que se encontrariam no passado; não seriam estudos de uma
história crítica e se prestariam a “encobrir” as experiências vividas pelas gerações passadas;
- estudos populistas radicais: apresentariam as lutas e experiências das classes oprimidas
como se, além de serem capazes de suportar a opressão milagrosamente, criariam culturas
autônomas, opondo-se, com êxito, aos valores e aspirações de seus opressores.
Conforme Harvey J. Kaye, os historiadores marxistas britânicos desenvolvem seus
estudos históricos no contexto das relações e confrontos de classes, em uma dimensão
específica, qual seja, a perspectiva da história de ‘baixo para cima’; ampliam a concepção
acerca da experiência de classe, sem perder a dimensão política dessa experiência; supõem na
abordagem das relações e confrontos de classes, a dinâmica e o momento da
dominação/subordinação; insistem que as classes baixas tem sido participantes ativos nas
formações sociais concretas e específicas, mais do que suas vítimas passivas; e valorizam a
oposição e rebelião das classes baixas (Kaye, 1983, P. 7-40).
Objetos de investigação
A identidade com o marxismo como método de análise e a construção da teoria da
história a partir da pesquisa empírica orientada por esse método, permite uma grande abertura
de problemáticas teóricas e a condução de polêmicas que ultrapassam os limites do grupo.
Essa realidade não impede o grupo de encaminhar tarefas ao mesmo tempo amplas e comuns
no âmbito da ciência da história, a saber:
a) compreender as origens, desenvolvimento e expansão do capitalismo como uma totalidade
em movimento;
b) interpretar os movimentos da sociedade a partir da análise da luta de classes;
c) conceber uma história cuja perspectiva é a história de ‘baixo para cima’ ou história ‘desde
baixo’;
d) contribuir com a construção do método marxista – concebido como uma tarefa permanente
– e com a elaboração de uma teoria da história a partir da prática do historiador, orientada por
aquele método;
e) interferir na cultura e na política inglesa, em especial como contraponto ao pensamento
conservador, no sentido de contribuir com a formação de uma consciência histórica, socialista
78
e democrática na Inglaterra (Kaye, 1983, P. 7-40).
5.3 - Historiografia marxista soviética
A historiografia marxista soviética não é apenas soviética. Nascida da oficialização
da concepção materialista da história, ela influencia nos anos 40, 50 e, tardiamente, 60,
vertentes historiográficas nos países onde ocorre grande influência de partidos comunistas nos
meios intelectuais e estes são obedientes a Moscou.
A concepção materialista da história de Marx é transformada pela tradição marxista
soviética. É concebida como sendo uma ciência exata, capaz de estabelecer leis que
permitiriam conhecer o passado e prever o futuro. O cientificismo e determinismo do século
XIX converte-se em uma manifestação acanhada frente o cientificismo e determinismo da
teoria marxista de tradição soviética.
O papel dos produtores de bens materiais e dos povos oprimidos converte-se no
objeto da ciência da história. As lutas e revoluções são destacadas e significados irreais lhes
são atribuídos. O conhecimento totalizante termina por ser abandonado.
A luta de classes passa a ser concebida, em alguns estudos, como o motor da história,
o que criaria as novas formas sociais e políticas que assegurariam o progresso da humanidade
em direção ao inevitável: o socialismo e o comunismo. Se o processo histórico investigado
encontra-se próximo cronologicamente ao Partido Comunista, não raramente é atribuído a
influência deste e dos seus dirigentes no processo, destacando o surgimento do Partido como
“expressão do progresso” e do “amadurecimento de condições materiais e subjetivas” tendo
em vista novas transformações.
Em outros estudos, ou mesmo contraditoriamente num mesmo estudo, o motor da
história saía das classes e se transferia para as ‘leis’ que comandariam a estrutura econômica.
A ação dos homens passa a ser reduzida a meros reflexos dos estímulos das ‘leis’ invisíveis
que regeriam a dinâmica econômica. Uma espécie de retorno laico e materialista ao mundo
cristão sobre-determinado de Santo Agostinho.
A historiografia marxista soviética ou inspirada nela apresenta, conforme demonstra
Bourdé e Martin, algumas características nesse período, a saber:
a) a história é investigada e analisada nos quadros de uma visão linear e finalista da história;
b) a história passa a ser concebida como sendo a história das massas laboriosas na sua
caminhada libertária; a luta de classes invade todo o universo da explicação histórica;
c) o determinismo econômico compete em igualdade de condições com o determinismo
79
político (luta de classes); ora um, ora outro, sobressai nas interpretações dos processos
históricos;
d) a história transforma-se em uma disciplina voltada para fortalecer a nação e o ‘socialismo’;
o nacionalismo e o patriotismo são robustecidos;
e) as classes laboriosas facilmente dão lugar aos ‘gênios dos povos oprimidos’, a exemplo de
Stálin; a história, não raramente, reduz-se a uma história narrativo-política;
f) a historiografia, construindo e reconstruindo permanentemente o passado em relação ao
presente, “denunciando” ou “reabilitando” personagens e processos em relação ao fim
luminoso representado pelo comunismo, transforma-se instrumental e utilitária nas mãos de
grupos sociais dominantes, de dirigentes políticos, do partidos comunistas ou das “razões de
Estado” (Bourdé e Martin, 1983, P. 168-172).
5.4 - Problemas e perspectivas das vertentes historiográficas marxistas
A compreensão global do social, explícita ou implicitamente recorrendo a conceitos
como modo de produção, ideologia, classe social, tende a permanecer na historiografia
marxista. O tratamento dialético do social deve impor o aprofundamento da abordagem
interdisciplinar, em especial junto a sociologia, a economia, a antropologia, a psicologia e a
geografia. Esse compromisso ‘protocolado’ na essência da dialética materialista de Marx não
será um elixir para todos problemas e nem apresentará perspectivas seguras para a
historiografia marxista.
A correlação debate teórico-metodológico e pesquisa histórica é problemática na
historiografia marxista. A transição entre modos de produção, que se figura como um grande
desafio para a historiografia marxista, por exemplo, atesta essa problemática. Pierre Vilar
destaca o “avanço dos trabalhos sobre os tempos modernos com relação às análises sobre a
Idade Média e os tempos contemporâneos”, que resulta na “verdadeira história” da transição
do feudalismo para o capitalismo (Vilar, 1988, P. 172-174). Os estudos da referida transição
demonstram que a transição se consumou na Europa Ocidental mais tarde do que se pressupôs
de início (séculos XVII e XVIII), que a mudança na forma de extração do excedente não
modifica, necessariamente, o conteúdo da extração do excedente, que o Estado absolutista,
longe de ser um Estado de equilíbrio entre aristocracia e burguesia, é um Estado aristocráticofeudal reordenado e recolocado, que se gera em uma formação econômica e social como uma
complexa estrutura de estruturas, que a luta de classes é decisiva para a solução das
contradições e conflitos que se colocam e recolocam na estrutura etc.
80
Mas é possível uma teoria da transição dos modos de produção a partir dos estudos
da transição do feudalismo para o capitalismo? Em nossa compreensão esta não é possível e
nem é objetivo do método dialético. As conquistas realizadas no sentido da compreensão da
transição do feudalismo para o capitalismo são fruto de duas décadas (60 e 70) de debates
teórico-metodológicos e pesquisas históricas. Os seus resultados somente podem se constituir
em uma referência para outros estudos de transição que igualmente teriam que repetir a ‘boa
receita’, qual seja, debate teórico-metodológico qualificado e pesquisa histórica, de tal
maneira que estes conhecimentos se inter penetrassem e se inter esclarecessem. Segundo
Vilar, ( 1988, P. 175).
Para um historiador marxista, dois cominhos parecem-me excluídos: 1º a repetição de princípios teóricos a
serviço de construções esqueléticas quanto ao conteúdo; 2º uma prática da história que, isolada em hesitações em
torno de inovações técnicas, continua, de fato, fiel ao empirismo menos criador
O problema da história das mentalidades também merece destaque em função do
significado teórico-metodológico que ocupa. A história das mentalidades não é um privilégio
da 3ª geração da Escola Annales. Na França e na Inglaterra, historiadores marxistas e não
marxistas a praticam há várias décadas.
Certamente Marx, ao sublinhar a conexão absolutamente necessária entre o mundo
das idéias e sentimentos e a base econômica, por um lado, e ao formular o modelo de
interação entre base e superestrutura, por outro, de certa forma ‘descobre’ e ‘inaugura’ este
nível de ocupação da ciência da história. Essa ‘descoberta’ e ‘inauguração’ marxista assume
uma qualidade especial por meio do esforço de historiadores marxistas ingleses como
Raymond Williams, Edward Thompson, Christopher Hill, que, com uma tradição no estudo
da cultura, buscam abordar o universo mental em sua interação com a estrutura de classe, a
autoridade, os múltiplos interesses de governantes e governados e sua interação com o campo
das idéias.
Esse esforço é robustecido com o diálogo que essa vertente historiográfica mantém
com a antropologia social. A perspectiva é generalizar o estudo de cultura em uma história das
mentalidades (Burke apud Hobsbawm, 1998, P. 198).
Ocupa importância menor a desconstrução do mito de que marxismo e história das
mentalidades se opõem, como quer fazer crer determinadas vertentes historiográficas que
também se ocupam desse nível da vida social. Importância maior ocupa a demarcação acerca
de qual história das mentalidades praticar. Nesse ponto, a resposta marxista (se for possível
81
haver uma única resposta) parte da recusa da busca das estruturas inconscientes ou
profundas, a exemplo de historiadores influenciados por Freud, que se ocupam das
mentalidades como se esse campo de expressão pudesse ser compreendido por si mesmo. O
fundamental, na perspectiva marxista, é a compreensão do todo social como uma coesão
lógica dos diversos níveis da vida social. Conforme Hobsbawm, ( 1998, P. 199).
(...) o problema das mentalidades não é apenas o de descobrir que as pessoas são diferentes, e como são
diferentes, e fazer os leitores sentirem a diferença (...). Devemos encarar tais crenças não apenas como reação
emocional, mas como parte de um sistema coerente de crenças sobre a sociedade, sobre o papel daqueles que
acreditam e o papel daqueles em relação aos quais tais crenças são mantidas
Ainda segundo Hobsbawm, é necessário, (Hobsbawm, 1998, P. 200).
(...) encarar a mentalidade como um problema não de empatia histórica ou de arqueologia, ou, se preferirem, de
psicologia social, mas da descoberta da coesão lógica interna de sistemas de pensamento e comportamento que
se adequam ao modo pelo qual pessoas vivem em sociedade em sua classe particular e em sua situação particular
de classes, contra aqueles de cima, ou, se preferirem, de baixo
Outros problemas igualmente importantes se apresentam no campo da investigação
histórica. São vários, a saber:
a) a relação estrutura social global e estrutura regional: a estrutura social global, enquanto
determinante, não substitui e nem minimiza o necessário estudo de estrutura regional.
A própria estrutura social global é resultado da composição de estruturas regionais
(não simplesmente justapostas, mas articuladas por meio de divisões inter-regionais do
trabalho, de hegemonias regionais construídas etc), o que evidencia o poder de
determinação, de interferência que a própria estrutura regional exerce na estrutura
social global. Coloca-se, neste ponto, o tratamento dialético entre o todo e a parte. O
pressuposto da ontologia, qual seja, o princípio de determinação ou condicionamento
do todo sobre a parte, não pode ser entendido como determinismo, de forma a reduzir
a parte a um mero reflexo do todo.
b) a relação estrutura e conjuntura: a estrutura enfatiza a permanência, a reprodução mais
ou menos estável das relações sociais, das contradições e conflitos postos, repostos e
recontidos. A conjuntura, por sua vez, revela a superfície agitada dos processos
históricos, quando vários atores sociais individuais e coletivos elaboram opções e
conduzem, por meio da luta política e cultural, suas escolhas. O desafio do historiador
82
marxista é fugir da análise estruturalista e da análise politicista. Para tanto, deve
buscar investigar e analisar na conjuntura, ou seja, na ação dos grupos e personagens,
no acontecimento etc, a continuidade e a descontinuidade da estrutura. Deve também,
pelo contrário, investigar e analisar na estrutura, ou seja, nas relações sociais
estabelecidas, a sua resistência e prolongamento, bem como a ruptura e transformação
através dos atores sociais (coletivos e individuais) ao longo das conjunturas.
c) a relação estrutura, classe e personagem: para o marxista, o sujeito da história são os
sujeitos coletivos inseridos em uma trama social cuja qualidade é dada pelas relações
de produção. Essa trama é a estrutura da formação social concreta e específica. O
grande desafio para o historiador marxista é identificar, por meio da sua investigação e
análise, os vários projetos sociais em disputa, o acaso, o papel dos personagens no
processo histórico etc, de forma que, sob a trama, há o processo. Deve ser encerrada a
história marxista dogmática, portanto, linear, finalista e estruturalista, sem pessoas,
opções e escolhas.
d) a relação base e superestrutura: a determinação que a base econômica exerce sobre a
superestrutura, ainda que apreendida em uma perspectiva dialética, não se encontra
encerrada de forma alguma no âmbito do marxismo. A exemplo dos historiadores
marxistas ingleses, em especial os denominados sócio-culturais (E. P. Thompson,
Chistopher Hill etc), que recusam a determinação da base econômica em favor da
determinação do todo social, cresce no âmbito da historiografia marxista a crítica a
categoria determinação. O temor principal é a subestimação das ações humanas
expressas nas experiências dos grupos sociais, nas suas escolhas etc. A crítica
pressupõe a inexistência de prevalência de um nível do todo social. De qualquer
forma, além do próprio debate teórico-metodológico sobre a questão - de forma
alguma bizantina – cresce a atenção que o nível ideológico-cultural vem despertando
nas pesquisas históricas.
e) a relação entre longa, média e curta duração: essa relação não pode ser tratada fora da
relação estrutura/conjuntura. Deve-se também reconhecer que a questão da duração
histórica, na perspectiva da estrutura social global, violenta, em alguma medida, a
duração histórica em cada nível da vida social, visto que responde a tempos e
dinâmicas não apenas de intensidade e tempo diferentes, mas também de natureza
diferente (o tempo das mudanças econômicas, por exemplo, não é o mesmo tempo das
mudanças ideológicas; mesmo as mudanças de um determinado nível, o econômico
por exemplo, possui tempos diferentes como podemos concluir por meio da
83
comparação entre o tempo das atividades agrárias e o tempo das atividades
industriais).
f) a relação classe, etnia e gênero: A abordagem marxista não pode privar-se do conceito
classe social - ou da possibilidade de formulação de novos conceitos que o substitua
em determinadas formações sociais, mas que se conserve integrado ao conceito
relações de produção, sob pena de não poder se auto-referenciar marxista. A
abordagem marxista não pode, contudo, restringir-se a esse conceito ou a outros que
expressem existência de um estado de desigualdade e opressão social. O conhecimento
de totalidade deve levar, necessariamente, para novos horizontes de pesquisa. Estudos
de etnia e gênero, por exemplo, podem concorrer para a compreensão das
continuidades e descontinuidades históricas, do surgimento de uma formação social
concreta e específica etc, com o mesmo estatuto de importância se comparado aos
grupos sociais formados a partir das relações de produção. O grande desafio colocado
é a compreensão de como o elemento étnico ou gênero (ou temáticas que retratam
minorias sociais) se entrelaçam com a base material e a superestrutura, nelas incluídas
as classes sociais. De qualquer forma, uma coisa é certa, etnia e gênero não podem ser
preteridas ou subestimadas em favor dos grupos formados a partir das relações de
produção.
5.5 – O Horizonte Historiográfico Marxista
Problemas teóricos e metodológicos compõem qualquer concepção teóricometodológica que se deseja atual. O enfrentamento desses problemas poderá ser frutífero ou
não, a depender da forma como serão tratados.
Teorias e metodologias ditas marxistas, quando legitimamente coerentes com o
pensamento dialético de Marx, compreendem, de início, que nenhuma realidade é estável e
eterna, nem mesmo elas enquanto teorias e metodologias; e que devem estar abertas a crítica e
autocrítica, à construção permanente a partir da base filosófica e social de origem. A essas
premissas se reúnem duas outras: que na sociedade tudo deve ser interpretado historicamente
e que tal interpretação deverá partir das condições e interesses materiais.
As vertentes historiográficas, que legitimamente se reivindicam do marxismo, devem
encontrar-se coerente com esses ensinamentos que acompanharam a vida e obra de Marx.
Conforme Vilar, a tradição historiográfica marxista não dogmática possui um trunfo nessa
direção, qual seja, (Vilar, 1988, P. 178).
84
Tudo pensar historicamente, eis aí o marxismo. Que seja ou não, após isso tudo, um “historicismo”, trata-se
(como para o humanismo) de querela de palavras. Tenho desconfiança somente das negações apaixonadas. É
importante saber, parece, que o objeto de O Capital não era a Inglaterra. Naturalmente, pois era o capital. Mas a
pré-história do capital denomina-se Portugal, Espanha, Holanda. A história se pensa no espaço, como no tempo
85
6 - ESTADO E AUTORITARISMO NO BRASIL: O QUE
COMEMORAR?
Os donos do poder, os seus colaboradores e os ingênuos ou ignorantes (re)criam
mitos de ocasião. Nas chamadas “comemorações dos 500 anos” não poderia ser diferente. O
mito de que somos uma nação jovem; de que compomos um povo multi-étnico tolerante e
cordial; de que vivemos em uma sociedade democrática, são exemplos.
O propósito deste texto é bastante restrito: basicamente, constitui-se em um discurso
histórico-político de contraposição ao conteúdo mítico e falacioso presente nas chamadas
‘comemorações dos 500 anos’, tomando como referência a reconstituição teórico-histórica das
relações estabelecidas entre o Estado e a sociedade brasileira.
Na perspectiva dos construtores do Estado há muito o que comemorar nesses 500
anos: a propriedade da terra latifundiária e excludente; uma cidadania mínima e censitária;
uma dependência endêmica em relação ao capital financeiro internacional. Na perspectiva dos
‘de baixo’, só uma lembrança lastimosa dos projetos populares de nação e de sociedade
abortados.
6.1 - Sociedade e Estado Escravista Moderno no Brasil
A moderna sociedade brasileira se forma para o ‘outro’. Subjacente à epopéia da
conquista de povos e territórios, por parte dos portugueses, ocorre o empreendimento
mercantil, que é uma das formas básicas assumidas pela acumulação primitiva do capital e
pela afirmação progressiva da sociedade burguesa.
O caráter de uma sociedade formada para o ‘outro’ se conforma por meio de um
conglomerado de interesses poderosos, interna e externamente conjugados. Esses interesses
são capazes, por intermédio de adequações estruturais constantes nos diversos níveis da vida
social em face das transformações que ocorrem no mundo e dentro da própria sociedade
brasileira, de se perpetuar até nossos dias.
O século XVII representa uma fase crucial da história colonial brasileira. Uma
economia latifundiária, escravista e especializada encontra-se estruturada - o que não impede,
por exemplo, a existência de um campesinato com ou sem pequenas propriedades; uma classe
dominante local - senhorial e escravista - apresenta-se formada e ciente dos seus interesses e
limites definidos no âmbito do Império Português. Esta composta uma relação que percorreria
86
toda a nossa história: uma classe dominante local articulada a um poder dominante externo,
tendo em vista explorar os homens nativos e vindos de outros lugares para a ‘nova’ terra; e
uma sociedade voltada para consumir produtos e modelos culturais metropolitanos.
O processo de ‘independência’ do Brasil mantém essa estrutura. A novidade é o
afastamento dos interesses portugueses no Brasil, que encontram-se ameaçados e/ou
restringidos desde o início do século XVIII em favor da burguesia financeira e comercial
inglesa. Definitivamente, articula-se os interesses da classe dominante senhorial e escravista
com os interesses ingleses.
O Estado no Brasil colônia e no Brasil império encontra-se apoiado em um direito
escravista, que é uma variante de Estado de função estrita14, típico de uma sociedade précapitalista. Os homens são reconhecidos a partir de uma distinção absoluta entre aqueles que
possuem capacidades - os homens livres, reconhecidos como pessoas - e aqueles que não
possuem capacidades – os escravos, reconhecidos como coisas.
A composição do aparelho de Estado reflete essa distinção. É proibido o acesso de
escravos ao aparelho estatal na condição de funcionários. É restringida, também, a
participação de homens livres pobres - não originários da classe dominante - no aparelho de
Estado por meio de sanções de caráter estamental ou censitário. Conforme Décio Saes, (1999,
p. 113 e 114).
Na colônia, só podem integrar as Câmaras Municipais os “homens bons”; e estão excluídos dessa categoria os
homens livres que desempenhem “ofícios mecânicos”. No processo eleitoral imperial, vigoram restrições
censitárias (por exemplo, quanto ao nível de renda) que inviabilizam a participação eleitoral dos homens livres
pobres
A função estrita do Estado encontra-se articulada com um aparato social e cultural
igualmente coercitivo. A cultura patriarcal-cristã; a condição da mulher escrava e livre,
respectivamente, objeto sexual e reprodutora; a coisificação do escravo; a violência pública e
privada contra o escravo em geral e o escravo rebelde em particular, entre tantos outros
aspectos ideológico-culturais, atestam o caráter reificador e violento da sociedade brasileira
colonial e imperial.
O Estado no Brasil colônia e no Brasil império assume uma identidade direta e
abertamente classista entre a classe dominante e o seu corpo burocrático-funcional. Como
14
No Estado de função estrita ocorre uma identidade direta entre a classe dominante e o Estado. Este se constitui
em um aparelho essencialmente coercitivo. A forma de dominação assume, basicamente, uma dimensão extraeconômica.
87
conseqüência, os funcionários do Estado concebem como natural a submissão de homens
considerados como coisas à vontade dos seus proprietários, bem como tendem a naturalizar
naqueles essa condição.
6.2 - Sociedade e Estado Burguês no Brasil
Em meados do século XIX o capitalismo ingressa em uma nova fase de
desenvolvimento. A industrialização se estende para a maioria dos países da Europa ocidental
e para os EUA; a disputa industrial e comercial entre os países capitalistas centrais intensifica
a demanda por mercados fornecedores de produtos primários e consumidores de bens
industrializados; a revolução nos transportes e comunicações, representada pela locomotiva e
pelo navio a vapor, é responsável, respectivamente, pela integração do interior de países e
continentes às economias litorâneas e integra países e continentes à economia mundial.
Essa nova realidade do capitalismo internacional concorre para transformações
profundas na realidade brasileira do século XIX. O desafio colocado para a classe dominante
senhorial e escravista é ajustar a sociedade brasileira ao capitalismo internacional em
transformação e, ao mesmo tempo, preservar o caráter geral presente na própria gênese da
sociedade brasileira. A solução encontrada é a modernização conservadora. Processo de
mudança sem povo e sem democratização do poder ou da propriedade, de forma que as
mudanças institucionais encontram-se enclausuradas em um formalismo burocráticoconservador e as mudanças produtivas não incorporam progressiva participação do mundo do
trabalho nos excedentes econômicos.
A sociedade brasileira se transforma rapidamente ao longo da segunda metade do
século XIX. A interrupção do tráfico negreiro - fruto das pressões inglesas e que redundaria
na Lei Eusébio de Queiroz de 1850 -, a imigração européia, o crescente predomínio do
trabalho livre (assalariado, semi-assalariado e não-assalariado), o florescimento de uma
cafeicultura capitalista no oeste paulista e a metamorfose da classe dominante senhorial e
escravista em classe burguesa e capitalista, são algumas dessas transformações. Enfim, uma
nova configuração social e econômica brasileira encontra-se em curso.
Os processos sociais e econômicas em curso abrem caminho para a transformação da
sociedade brasileira em uma sociedade capitalista e burguesa. Esses processos haveriam de
redundar,
também,
em
transformações
institucionais,
de
forma
a
readequar
a
institucionalidade - o Estado em particular - a essa nova configuração social e econômica. Um
ambiente favorável a uma revolução política esta em curso no Brasil.
88
A revolução política de 1888-1891 - na forma da Abolição da Escravatura de
1888, da Proclamação da República de 1889 e da Assembléia Constituinte de 1891- coloca
um ponto final no Estado escravista moderno e edifica o Estado burguês no Brasil, que é uma
variante de Estado de função universal15, típico de uma sociedade capitalista e burguesa. O
direito burguês igualiza formalmente todos os homens perante a lei, ao reconhecê-los como
sujeitos individuais de direitos, e lança as bases para que a exploração do trabalho assumisse
um caráter contratual, fruto da negociação entre capital e trabalho no mercado (Saes, 1985, P.
181-192).
O modo de organização do aparelho de Estado, de forma a refletir os preceitos
liberais, passa a ser universalista e meritório, mas essencialmente excludente, uma vez que há
um processo de bestialização dos pobres livres e ex-escravos. Essa exclusão, em certa medida,
explica as primeiras revoltas populares na República, a exemplo da Revolta da Vacina. De
fato, não há uma cumplicidade entre o Estado e a sociedade, somente um formalismo
burocrático e conservador (Carvalho, 1987, p. 113-126).
Ainda no tocante à organização do Estado, conforme observamos, qualquer homem,
em princípio, poderia compor a sua burocracia a partir da sua seleção formalizada por meio de
critérios de competência. Ocorre, portanto, uma distinção entre o Estado e a classe dominante
em termos formais, de maneira que o Estado passa a ser representado como uma estrutura
supra classe social. Enfim, estão lançadas as condições para a recriação do mito do Estado
como expressão de um ‘contrato social’.
O Estado burguês no Brasil haveria de passar por diversos regimes políticos. Do
período da revolução política a 1930 articula-se o regime liberal oligárquico, hegemonizado
por uma burguesia financeira e comercial agroexportadora e compradora e pela burguesia
financeira e comercial inglesa compartilhada, agora, pela burguesia financeira e comercial
norte-americana. O compromisso desse Estado é assegurar a expansão da economia
agroexportadora em geral e da economia cafeeira em particular, de forma a proteger/expandir
os interesses nela envolvidos.
Esse compromisso é assegurado sob intensa coerção, de forma a combinar as esferas
pública e privada. No plano político, são exemplos desse compromisso a restrição e
manipulação do sufrágio com a exclusão dos analfabetos, mulheres e militares, a votação
aberta sob coação; o fisiologismo, o clientelismo, o ‘é dando que se recebe’, as perseguições
15
No Estado de função universal não ocorre uma identidade direta entre a classe dominante e o Estado. Este
tende a se constituir num aparelho coercitivo recoberto de hegemonia. A forma de dominação assume,
basicamente, uma dimensão econômica.
89
políticas, a fraude, etc, como método herdado do Império e ampliado com a República; a
diplomação dos eleitos como pré-condição para a ocupação da função parlamentar; o
impedimento de organização partidária do mundo do trabalho, entre outras formas. No plano
social, a intensa repressão aos movimentos sociais camponeses, aos operários e a segmentos
das camadas médias, a exemplo, respectivamente, de Canudos, dos sindicatos anarquistas e do
tenentismo, também atestam esse compromisso.
O compromisso na defesa dos interesses dominantes se prolonga, ainda, para esferas
microestruturais. São exemplos dessa realidade a reposição de expressões ideológico-culturais
patriarcal-cristãs herdadas do passado colonial e imperial, a exclusão das mulheres do
mercado de trabalho e da participação política e o preconceito racial.
A revolução de 1930, fruto de uma conjuntura de crise internacional e nacional que
abala os interesses do imperialismo e da oligarquia e que ameaça a reprodução da sociedade
brasileira, proporciona um espaço de intervenção política autônoma dos setores vinculados a
uma perspectiva industrializante. Após a queda dos setores burgueses vinculados à
agroexportação e à importação, tem início uma longa fase em que predomina um
compromisso de classe básico vinculado à industrialização substituidora de importações e ao
intervencionismo Estatal - planificando, financiando e investindo diretamente nessa direção.
Esse compromisso envolvia, sobretudo, a burocracia civil e militar, setores médios da
sociedade e industriais.
Os regimes formados ao longo desse compromisso são. É estabelecido um regime
político provisório e pouco institucionalizado entre 1931 e 1934. Este é suplantado por um
regime democrático representativo pluripartidário instável entre 1934 e 1937. Esse regime é
derrubado por um golpe civil-militar em 1937, sendo instituído o regime do Estado Novo
entre 1937 e 1945. Como podemos confirmar, trata-se de um período de intenso conflito
social entre as frações da classe dominante e destas em relação aos trabalhadores urbanos e
rurais organizados. A instabilidade dos dois primeiros regimes políticos do pós-1930 e a
ditadura varguista evidenciam, ainda, a carência de legitimidade do Estado de função
universalista.
Um novo regime democrático, mas ainda de participação política formal restringida,
vigora entre 1946 e 1964. A rearticulação dos interesses envolvendo a classe dominante local
e os interesses norte-americanos e europeus, abalados pela crise do capitalismo internacional
nos anos 30, pela Segunda Guerra Mundial e pela reconstrução européia, tem lugar
intensamente a partir do Programa de Metas do governo J.K.. A rearticulação assume, entre
outras formas, a constituição do tripé da industrialização brasileira (capital privado nacional,
90
capital privado estrangeiro e capital estatal), a multinacionalização da economia nacional e
o padrão de endividamento externo (Oliveira,1984, p. 76-92). Essa rearticulação se, por um
lado, evidencia a falta de disposição da classe dominante local em conduzir a luta antiimperialista e edificar um projeto nacional independente e autônomo, por outro, não a coloca
inteiramente identificada com os interesses do capital internacional.
A ampliação da participação de membros do mundo do trabalho na política
institucional, por meio da extensão dos direitos políticos às mulheres, é ‘compensado’ de
diversas formas. Podemos destacar a conservação da exclusão dos analfabetos do processo
político formal, o controle das entidades sindicais e sua redução à condição de células do
Estado e a política ideológica de massas, amplamente viabilizada por meio dos novos e
disseminados veículos de comunicação de massa.
Grande importância ocupa o denominado ‘pacto populista’, uma estratégia de
incorporação controlada dos trabalhadores urbanos e rurais no processo político por parte da
burocracia civil e partidos políticos burgueses, de forma a mobilizá-los contra resistências
corporativas e imediatistas do grande capital e impedi-los de trilhar um caminho de
organização independente e autônomo de classe. Segundo Oliveira, (1993, p. 88).
O pacto populista era a forma de hegemonia burguesa, uma hegemonia que se afirmara sem liquidar com o seu
antigo contendor, a oligarquia agrária cafeicultora; uma hegemonia que se afirmara dirigindo poderosamente a
ação e a intervenção do Estado sustentáculo e mola de sua expansão; uma hegemonia que se afirmara utilizando
o Estado para vigiar o proletariado urbano sem necessariamente ser repressor ostensivo (...)
Não menos importante, tendo em vista o controle do mundo do trabalho, é o
impulsionamento de um padrão sócio-cultural calcado no agora mundializado ‘American way
of life’ - ou seja, no individualismo, no consumismo, na maximização de ganhos e
propriedades -, no ‘dar um jeitinho’, no ‘levar vantagem em tudo’, entre outras formas. Esse
padrão, embora emergindo como parte da afirmação das relações capitalistas de produção,
tece raízes mais profundas e formas mais intensas se comparado a outros países.
Provavelmente uma decorrência do ‘contágio pelo exemplo de cima’, ou seja, a prática de
vilipendiamento e instrumentalização do Estado, por parte da classe dominante, passa a
introjetar valores e práticas anti-éticas sobre amplos setores sociais.
Com o golpe militar de 1964, tem início o regime militar que se estende até 1984.
Sob profunda coerção, é assegurado o compromisso de classe básico vinculado à
industrialização, ao intervencionismo estatal e à articulação de capitais inaugurado com o
91
Programa de Metas. A estrutura sindical e o arcabouço de seguridade social também é
preservado.
O caráter autoritário do regime militar não poderia eliminar a condição universalista
do Estado, mas lhe imprime características próprias. A realização de eleições controladas, o
bipartidarismo, etc, assegura a ritualização do Estado universalista. Na prática, contudo,
pouco se diferencia do Estado de condição estrita, visto que não possui uma dimensão
hegemônica subordinadora da dimensão coercitiva. Mais um golpe, enfim, é conduzido contra
os projetos populares que se desenvolviam nos primórdios dos anos 60.
Por fim, um novo regime liberal-democrático conservador tem início em 1985. Suas
bases institucionais são definidas somente em 1988 com a Assembléia Nacional Constituinte.
O caráter conservador do regime, evidenciado pela base política e social de sustentação,
fundamentalmente a mesma do período militar, confirmar-se-ia na constituinte por meio da
conservação do monopólio da terra, do caráter autocrático do governo federal, entre outras
formas.
Aspectos progressistas assegurados em alguns capítulos constitucionais, como a
proteção de setores estratégicos da sociedade brasileira da ação do capital internacional e a
extensão do direito de greve aos servidores públicos federais, ou são derrubados pela reforma
constitucional subsequente, a exemplo do primeiro, ou nunca são regulamentados, a exemplo
do segundo. Avanços reais coube às instituições criadas a partir de então e/ou que teve suas
atribuições e composição de quadros redefinidas, como os Procons e os Ministérios Públicos,
operadores de uma verdadeira ‘revolução silenciosa’ na sociedade. ‘Revolução’ atualmente
ameaçada pela chamada ‘lei da mordaça’.
Nos anos 90, ocorrem rupturas em relação às políticas iniciadas nos anos 30 e
redefinidas em alguns aspectos na segunda metade dos anos 50, como o papel do Estado
enquanto agente produtivo e regulador e a proteção da indústria e mercado interno. Tem início
uma política macroeconômica no sentido de, por um lado, eliminar a articulação instável do
tripé da industrialização brasileira iniciada no final dos anos 50 e, por outro, assegurar uma
profunda desnacionalização da economia brasileira. Esse duplo objetivo é alcançado por meio
da privatização do setor público, sob liderança do capital financeiro internacional e
participação subalterna de grandes capitais privados locais, e da aquisição de grandes
monopólios privados locais por corporações internacionais de atuação globalizada.
Configura-se uma processualidade, cuja direção tem sido a eliminação de uma
burguesia local com interesses contraditórios com o capital financeiro internacional e, ao
mesmo tempo, a transferência dos espaços econômicos fundamentais dentro do país em favor
92
desse capital. Política conduzida do ‘alto’ do Estado e dirigida pela tecnocracia, agora
renovada por meio de quadros formados nas instituições universitárias norte-americanas e de
trânsfugas da esquerda brasileira (Saes, 1999, p. 118 e 119).
De 1930 a 1990, tanto os regimes articulados sob a forma democrático-burguesa
quanto a forma autoritária, não restringem e/ou não podem restringir os regimes políticos às
recomendações clássicas do liberalismo político e econômico. Direitos são assegurados em lei
por meio de lutas sociais como os direitos previdenciários, o contrato indeterminado de
trabalho, entre outros.
Nos anos 90, em uma conjuntura desfavorável às lutas sociais, presenciamos uma
mudança também nesse plano. Esse processo decorre da progressiva identificação e
nivelamento dos regimes políticos democrático-burgueses ao propugnado pela teoria liberal,
ou seja, remover leis e instituições, fruto de lutas e pressões sociais, que objetivamente
representam obstáculos à hegemonia política burguesa e ao livre mercado. Efetivamente essa
realidade tem redundado na precarização do mundo do trabalho - na forma do avanço do
desemprego estrutural, do subemprego, da eliminação de direitos trabalhistas, etc. - no
aprofundamento das desigualdades sociais - na forma do distanciamento econômico entre as
classes sociais, exclusão e marginalização de amplos setores sociais, etc. - e no esvaziamento
das funções do Estado - na forma do sucateamento de serviços sociais básicos como saúde e
educação, restrição de programas sociais, redução/restrição do sistema previdenciário, etc.
Já em relação ao padrão sócio-cultural calcado em aspectos como o individualismo e
o consumismo, típicos do ‘American way of life’, é incorporado um irresistível processo de
coisificação e banalização do mundo e a cultura do descartável. A esse quadro se agrega, em
certa medida como desdobramento dele mesmo, a crise de instituições que secularmente
concorrem para a modelagem da sociedade brasileira, como a família, a igreja e a escola.
Uma perspectiva materialista vulgar, individualista e presentista de tempo e
sociedade, amplamente desenvolvida nos anos 90, tem concorrido para restringir o
envolvimento de membros do mundo do trabalho, da juventude e da intelectualidade com
projetos sociais coletivos orientados na direção da construção de uma sociedade justa e
democrática.
6.3 - Estado e rebeldia popular
A formação e o desenvolvimento do Estado escravista moderno no Brasil é
contestado inúmeras vezes. A luta indígena, ao longo de grande parte do período colonial,
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resistindo à conquista portuguesa e/ou a classe senhorial e escravista, representa a luta pela
defesa da liberdade do grupo tribal. Representa, também, a luta pela defesa da vida tribal
contra o Estado, ou seja, a defesa de uma sociedade organizada sem o Estado e contra o
Estado – ou a qualquer outra forma de poder que se sobrepusesse aos membros da
comunidade.
A resistência negra, na forma dos quilombos, e a insurreição pernambucana de 1817,
por sua vez, representam exemplos de lutas de classes e grupos sociais, resistindo à sociedade
e Estado escravista moderno. Prefiguram, de forma mais ou menos elaborada em termos
formais, um projeto de sociedade construído sobre novas bases.
A derrota das classes e grupos sociais dominados é uma pré-condição para a
manutenção do caráter geral assumido pela sociedade e Estado escravista moderno. Os
conflitos e contradições, no contexto de uma sociedade cuja modalidade de dominação social
são extra-econômica, não possui mediações típicas de uma dominação centrada sobre bases
consensuais.
Em uma sociedade que é escravista, o poder não poderia buscar uma legitimidade
junto às maiorias sociais a partir da conformação de uma subjetividade que se reconhecesse
como parte de uma racionalidade intrínseca dessa sociedade e na qual os indivíduos
encontrassem uma perspectiva de conciliação dos seus interesses privados no seu interior. Na
medida em que as maiorias sociais são compostas de escravos, a dominação somente poderia
ser direta e ostensiva, o que demanda, de um lado, um Estado de função estrita e, de outro, a
violência como método de contenção da resistência e da rebeldia.
O caráter da sociedade e do Estado escravista moderno no Brasil é suavizado por
Gilberto Freyre em Casa Grande e Senzala, obra responsável pela mais mitológica das
imagens de um Brasil tolerante. O conservadorismo político de Freyre é acompanhado da
visão da escravidão proporcionando uma herança positiva. Essa visão é consolidada com a
tese de que os negros acabam por colonizar os brancos, ou seja, que a cultura encarcerada nas
senzalas, metaforicamente falando, teria invadido a casa grande. Essa imagem do Brasil, na
ótica de Gilberto Freyre, seria completada com o seu mito da democracia racial brasileira.
Historiadores e sociólogos aglutinados em torno de Caio Prado Júnior e Florestan
Fernandes conduzem uma severa crítica a Gilberto Freyre. As pesquisas trazem à luz a dureza
da escravidão, a herança do escravismo no nosso tempo e a vitalidade do preconceito racial
contra os negros e possuidores de ascendência africana. Gilberto Freyre é colocado em xeque
(Gorender, 1990, p. 14).
A atual retomada de Gilberto Freyre nos meios acadêmico e intelectual pretende
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relativizar o que historicamente representam a sociedade e o Estado escravista moderno no
Brasil, bem como a herança recebida pela sociedade brasileira. A brutalidade da escravidão e
o legado perverso deixado pelo escravismo dão lugar à cumplicidade entre brancos e negros, à
tolerância cultural, às intercomunicações raciais, etc. Expressam, enfim, a forma requintada
do pensamento conservador, cujo objetivo, obviamente, não se encontra no passado, mas no
presente, na busca por ‘reconhecer’ e ‘compreender’ a identidade da ‘nação’ brasileira, a sua
cordialidade, a sua tolerância, a sua alegria, etc.
A formação e desenvolvimento da sociedade e Estado burguês no Brasil também são
contestados inúmeras vezes. A luta de Canudos, o movimento anarco-sindical do início do
século XX, as Ligas Camponesas dos anos 50, são exemplos dessas contestações. A
manutenção do caráter geral assumido pela sociedade e Estado burguês no Brasil,
caracterizado pela dependência e subalternidade de um capitalismo periférico, também
pressupôs a derrota das classes e grupos sociais dominados. Essas derrotas, contudo, não são o
resultado de uma ação unicamente coercitiva, como no passado colonial e imperial.
A relação estabelecida entre Estado e sociedade, após a revolução política de 18891891, é mais complexa. Esse Estado, ao fundar-se sobre princípios universalistas, edifica-se,
formalmente, como uma instituição de representação geral e que poderia ser composta por
qualquer cidadão, independentemente da sua condição social ou concepção de mundo. O
Estado não se apresenta como aparelho de coerção diretamente identificado com a classe
dominante e com estrito papel repressivo.
O Estado universalista proporciona, formalmente, condições para uma dominação
sobre bases predominantemente consensuais, ou seja, coerção revestida de hegemonia. Por
meio de aparelhos públicos e privados de hegemonia como, respectivamente, a escola e os
meios de comunicação de massa, a concepção de mundo e valores burgueses, transfigurados
de universais e naturais, seriam estendidos sobre toda a sociedade e moldariam a subjetividade
dos grupos sociais subalternos.
Desde a formação do Estado universalista ocorre, contudo, uma enorme distância
entre os princípios liberais universalistas, de um lado, e a sua legalidade restritiva e prática
política, do outro. Durante a vigência do regime liberal oligárquico, por exemplo, esta
presente uma dimensão abertamente coercitiva que se sobrepôs à dimensão consensual, como
os métodos e práticas do sistema político-eleitoral, a questão operária então tratada como um
caso de polícia, entre tantas outras formas. A universalidade do Estado em diversos regimes
políticos autoritários posteriormente articulados, como o do Estado Novo e o regime militar
inaugurado em 1964, fundamentalmente quase que se reduz a uma dimensão estritamente
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formal. O próprio regime liberal-democrático, de caráter conservador e inaugurado com o
fim da ditadura militar, possui na tutela militar um dos seus principais alicerces.
A história brasileira não possui exemplos de projetos e processos oriundos da classe
dominante ou do Estado burguês no sentido de redistribuir propriedade e poder. O Estado
universalista no Brasil, por sua vez, não é fruto de uma hegemonia burguesa previamente
construída e sobre a qual se legitimasse. Finalmente, a superexploração de grandes massas
populares, a exclusão social, o monopólio sobre propriedade, entre outros processos, não
proporcionam grandes reservas políticas e ideológicas para uma dominação de classes estável
e um campo favorável para a sedimentação de uma subjetividade profundamente marcada
pela naturalização e resignação. Esse contexto, conforme demonstramos, dá nos diversos
exemplos de lutas de resistência e, não raramente, de rebeldia popular.
A dominação de classes no Brasil contemporâneo convive, enfim, com uma
instabilidade intrínseca. Esse é o quadro que, em última instância, determina a centralidade
que o papel da força ocupa nessa sociedade e nesse Estado, em especial quando a intervenção
política das classes e grupos sociais subalternos ultrapassa limites sociais e institucionais préestabelecidos.
6.4 - A Necessária Desconstrução dos Mitos
A colonização brasileira, efetivamente, começa pelo menos um século antes da
colonização dos Estados Unidos e do Canadá, o que demonstra que não somos um povo
jovem. Possuímos uma das histórias nacionais mais violentas e opressoras do mundo
moderno, o que desautoriza o pretenso caráter de povo tolerante e cordial. O autoritarismo
presente nas nossas relações sociais está inscrito no nosso cotidiano, o que evidencia quão
distante nos encontramos de ser uma sociedade verdadeiramente democrática.
Responsabilizar unicamente a colonização portuguesa ou a herança colonial pela
tragédia revivida no nosso cotidiano, ou seja, enquanto uma herança da espoliação externa é,
no mínimo, um mito e uma grande falta para com a verdade histórica. A condição de uma
sociedade formada para o ‘outro’ é posta e reposta ao longo de 500 anos, sendo o Estado um
instrumento estratégico nessa direção. Essa condição social ocorre de forma mais ou menos
contraditória, por meio da convergência de interesses entre a classe dominante local e os
interesses internacionais. A história brasileira não nos deixa dúvidas: essa comunhão de
interesses operou e opera em detrimento das maiorias sociais.
A (re)criação dos referidos mitos (e de outros tantos) presta-se a escamotear o fato de
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que não compomos uma nação. Formamos uma sociedade enquanto um amálgama de
classes e grupos sociais profundamente diferenciados, no âmbito do qual o mundo do trabalho
encontra-se submetido a diversos níveis e formas de exploração econômica, de dominação
política e de opressão ideológica.
A construção da nação, entendendo por tal uma sociedade integrada, democrática e
participativa, constitui-se em uma possibilidade histórica. A sua efetivação está na direta
proporção da mobilização da maioria dos membros do mundo do trabalho, em aliança com
outros setores sociais, tendo em vista romper com a condição de povo formado para o ‘outro’,
conformando-se enquanto um povo formado para ‘si’ – conquistando participação
democrática e consciente das possibilidades históricas que se abrirão, tendo em vista a
construção de um projeto de sociedade alternativa à sociedade atual - e para ‘todos’ - sendo
parte da construção de um novo projeto civilizatório para a humanidade.
A construção da nação para ‘si’ e para ‘todos’ certamente não poderá aguardar um
grande projeto alternativo de sociedade e/ou o grande dia para a sua efetivação. Nem poderá
tão somente conceber o Estado e o governo como alvos. A construção da nação, nos termos
aqui propostos, passa pelas escolhas que realizamos em nosso cotidiano. Essas escolhas
poderão repor/ampliar as estruturas (sociais, econômicas, políticas e culturais) herdadas do
nosso processo histórico ou construir estruturas a partir de outras bases.
Somente por meio da mediação de uma práxis verdadeiramente democrática,
libertária e ética, desenvolvida no âmbito das relações de gênero, de etnia, de entidades e
movimento sociais, etc., é que poderemos transformar a realidade nacional e mundial. Boas
escolhas e práticas é um bom começo...
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