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O PROCESSO E O SUJEITO DO ENVELHECIMENTO
Ninguém me fará calar, gritarei sempre
Que se abafe um prazer, apontarei os desanimados,
Negociarei em voz baixa com os conspiradores,
transmitirei recados que não se ousa dar nem receber,
serei, no circo, o palhaço,
serei médico, faca de pão, remédio, toalha,
serei bonde, barco, loja de calçados, igreja, enxovia,
serei as coisas mais ordinárias e humanas, e também as excepcionais.
[Carlos Drummond de Andrade]
Quem é, como é vista, como é representada a velhice no momento atual. E os sujeitos
do processo?
Definir a velhice parece, a primeira vista, uma tarefa bastante simples, de afirmações
quase óbvias. No entanto, a velhice é uma temática imensamente complexa, que requer uma
análise mais aprofundada e detalhada nas múltiplas dimensões: a biológica, a psicológica, a
existencial, a cultural, a sociológica, a econômica, a política, entre outras, para se chegar a uma
conceituação que melhor expresse a realidade.
A leitura de obras a respeito da velhice mostra a dificuldade em delinear um conceito
preciso – fundamental para situar o objeto da pesquisa – dada a parcialidade de diferentes
disciplinas que tratam da questão e às especificidades próprias do processo de
envelhecimento. Fundamentalmente, a dificuldade primordial para categorizar a velhice consiste
em não poder enxergá-la como unicamente um estado, mas um constante processo de
permanente construção e reconstrução que leva a inúmeras subjetivações. Uma visão unilateral
impossibilita, assim, construir uma categorização que valorize o velho e a velha em todas as
suas dimensões e todas as suas experiências acumuladas ao longo dos anos e seu conteúdo
em termos de vivência.
Paradoxalmente, o problema da velhice é novo. Do ponto de vista histórico-cultural, a
velhice, tanto científica como socialmente falando, é o período etário do qual se dispõe de
menos conhecimentos e só recentemente, vem se constituindo em objeto de estudos
sistemáticos. Além disso, populações compostas por um grande número de pessoas idosas são
um advento recente na evolução da sociedade.
Várias são as indagações que surgem sobre a categoria da velhice ao longo de todo o
processo de envelhecimento. Busca-se neste estudo uma conceituação, pois é dela que podem
surgir diferentes interpretações da realidade e, conseqüentemente, extrair critérios que possam
orientar uma intervenção organizada e eficaz. As questões que o problema suscita: O que é
velhice? Quando a pessoa se torna velha? De que realmente se fala quando se fala da velhice?
De que formas se pode abordar o tema - velhice e os sujeitos do processo? Com o
intuito de responder a essas questões, o estudo selecionou alguns autores para apresentar
suas conceituações, interpretações e reflexões visando obter maiores informações em um
diversificado leque de opções.
Para Simone de Beauvoir (1990), a velhice é como um fenômeno biológico com reflexos
profundos na psique do homem, perceptíveis pelas atitudes típicas da idade não mais jovem
nem adulta, da idade avançada (p.15). A autora mostra a sua compreensão da velhice como
algo pouco preciso, nada comum, esquadrinhado dentro de parâmetros relacionais e funcionais,
portanto carregada de subjetividade.
Ariès (1981) conceitua velhice em um plano bem distanciado do biológico quando diz: A
velhice é uma criação cultural podendo encobrir significados diversos (p.36). De acordo com
essa afirmação, Simone de Beauvoir (1990) propõe que a velhice só pode ser compreendida
em sua totalidade; não representa somente um ato biológico, é também um fato cultural (p.18).
Mesmo porque, como ainda afirma a autora, a velhice aparece mais claramente para os outros
do que para o próprio sujeito; ela é um novo estado de equilíbrio biológico: se a adaptação se
opera sem choques, o indivíduo que envelhece não percebe. As montagens e os hábitos
permitem amenizar durante muito tempo as deficiências psicomotoras (p.348).
Para Messy (1993) a velhice não é um processo como o envelhecimento, é um estado
que caracteriza a posição do indivíduo idoso. E ainda, completa, é o registro social portador de
designações, que é quem define a “pessoa idosa”, de acordo com um estatuto político e
econômico (p.17). Dessa forma, a aposentadoria frisa a ocorrência da velhice, assim como a
maturidade faz do adolescente um adulto por meio do voto. Essas marcações autoritárias,
cronológicas e arbitrariamente impostas nem sempre convêm ao conjunto dos interessados.
Assim, o envelhecimento caracterizado e definido como um processo sugere, não a
compreensão do sujeito velho, mas, sim, da dinâmica do sujeito na processualidade do
envelhecimento – o ser envelhecendo num permanente, mutante e inacabado processo.
Confrontando idéias e informações o autor afirma: Se o envelhecimento é o tempo da idade que
avança, a velhice é o da idade avançada, entenda-se, em direção à morte (ibid. p.33).
Fraiman (1995), confirma a idéia anterior, quando diz que: O envelhecer não é somente
um “momento” na vida de um indivíduo, mas um “processo” extremamente complexo e pouco
conhecido, com implicações tanto para quem o vivencia como para a sociedade que o suporta
ou assiste a ele (p.19).
Salgado (1982) sustenta que a atitude mais acertada está em entender a velhice como
uma circunstância ampla com múltiplas dimensões. O autor propõe que a velhice seja
entendida como uma etapa da vida na qual, em decorrência da alta idade cronológica, ocorrem
modificações de ordem biopsicossocial que afetam a relação do indivíduo com o meio (p.29).
Declara, ainda, que o século atual recebeu e reforçou uma imagem negativa da velhice,
sobretudo a fragilidade biopsíquica e a decadência: Isso aconteceu exatamente em uma época
em que crescia a moral que valorizava os homens pela sua força física e capacidade de
produção. Como resultado, a importância social dos idosos e as funções a eles atribuídas se
tornaram praticamente inexpressivas. [...] Ressaltaram-se, no velho, apenas as perdas. Nunca
se enaltecem as conquista [...] (1992, p.158).
A velhice na visão de Mascaro (1997), é uma fase natural da vida e não há como fugir
deste ciclo: nascimento, crescimento, amadurecimento, envelhecimento e morte (p.09). Um
ciclo evidente que deve (ou deveria) seguir uma trajetória progressiva e continua, salvo
alterações no curso de vida que possam antecipar o processo. Esse pensamento é reforçado
por Simone de Beauvoir (1990) quando afirma o inexorável: morrer prematuramente ou
envelhecer, não existe outra alternativa (p.124).
Assim encarada, a velhice faz parte do desenvolvimento humano integral e não
representa simplesmente uma predestinação ao fim. É o resultado dinâmico de um processo
global de uma vida, durante a qual o indivíduo se modifica incessantemente. Para Bobbio
(1997), a velhice não é uma cisão em relação à vida precedente. É uma continuação da
adolescência, da juventude, da maturidade que podem ter sido vividas de diversas maneiras
(p.IX). As mudanças que um ser humano experimenta em qualquer idade podem ser lentas ou
abruptas, conscientes ou inconscientes, culturais, históricas, sociais, psicológicas ou biológicas.
Quando conscientizadas, requerem dele um confronto, um diálogo entre a sua situação
vivencial presente e a anterior.
A velhice e o envelhecimento, para Neri (1999), são realidades heterogêneas, isto é,
variam conforme os tempos históricos, as culturas e subculturas, as classes sociais, as histórias
de vida pessoais, as condições educacionais, os estilos de vida, os gêneros, as profissões e as
etnias, dentre outros aspectos que configuram as trajetórias de vida dos indivíduos e grupos.
A autora retrata a concepção de velhice sugerindo a preservação do potencial para o
desenvolvimento do indivíduo (velhice bem-sucedida), e ainda, constata que o modo de
envelhecer: [...] depende de como o curso de vida de cada pessoa, grupo etário e geração é
estruturado pela influência constante e interativa de suas circunstâncias histórico-culturais, da
incidência de diferentes patologias durante o processo de desenvolvimento e envelhecimento,
de fatores genéticos e do ambiente ecológico (p.121).
Para Marilena Chauí, ser velho é lutar para continuar sendo homem. Para Ecléa Bosi
(1994), ser velho é sobreviver, referindo-se à sociedade capitalista, que ardilosamente penaliza
aqueles que nada têm a produzir, nos termos do capital (p.18).
Se se entender que velhos e velhas são os guardiões do passado, como lembra Bosi, e
os guardiões da tradição, como afirma Bobbio (1997), e que estes só não realizam sua função
social porque desarmados estão, então entender-se-á a destruição dos suportes materiais da
memória que a sociedade capitalista fez e faz questão de apagar, antes mesmo de se
presentificar, concretamente (de forma transparente e verdadeira), podendo unir o começo e o
fim, ligando o que foi e o porvir (uma reaparição do feito e do ido), enquanto sujeitos produtores
de história – história viva de sujeitos cidadãos. Conseqüentemente, os sujeitos envelhecidos
sem projeto, impedidos de lembrar e de ensinar, sofrendo as adversidades de um corpo que se
desagrega à medida que a memória vai-se tornando cada vez mais viva, a velhice, que não
existe para si, mas somente para o outro (opressor), deixa de ter sentido na e para existência
humana (ibid. p.19). Fica claro o desmoronamento cultural da velhice, como categoria oprimida,
despojada e banida da sociedade, que inevitavelmente, privilegia o jovem e o novo. Como bem
salienta Simone de Beauvoir (1990), é preciso romper o silêncio opressor que opera na velhice.
É preciso dar a palavra a vozes que foram silenciadas por tanto tempo.
Situando a velhice num patamar de positividade, a autora abre caminhos para a
compreensão desse momento da vida, a partir de uma concepção reflexiva, salientando sua
contribuição para a coletividade social, sobretudo quanto aos aspectos relacionados à
experiência e à capacidade de julgamento, componentes estes altamente valorizados em
sociedades organizadas e repetidoras. Entretanto, o valor social dessas mesmas qualidades,
em sociedades divididas, como a nossa, recai sobre os mais jovens:
Tanto a etnologia como a biologia mostram que a contribuição positiva
dos idosos para a coletividade é sua memória e sua experiência que, no
campo da repetição, multiplicam suas capacidades de execução e de
julgamento. O que lhes falta é a força e a saúde; e também a faculdade de se
adaptar à novidade, e, com muito mais razão, de inventar. Pode-se presumir,
a priori, que os adultos se apoiarão nos velhos, nas sociedades fortemente
organizadas e repetidoras. Nas sociedades divididas, nos períodos
conturbados ou revolucionários, a juventude tomará a dianteira. O papel que
os homens de idade representam privadamente, na família, reflete o que o
Estado lhes confere. Examinando através do tempo a condição dos velhos,
teremos uma confirmação desse esquema (p.112).
A autora ainda define a velhice como [...] uma fase da existência diferente da juventude
e da maturidade, mas dotada de um equilíbrio próprio, deixando aberta ao indivíduo uma ampla
gama de possibilidades (p.300). Já para Ana Fraiman (1995), ser velho não é uma abstração,
porém uma condição visível, aparente e que determina, de certo modo, as possibilidades de
ação e inter-relacionamento social (p.19). As autoras alargam o entendimento da velhice, com
imagens positivas, baseadas nos fatos e na grandeza das experiências vividas, vislumbrando
aspectos desmistificadores de concebê-la, desvelando condições e oportunidades objetivas de
valorizar a dinâmica da vida desses sujeitos.
Por um lado, pôde-se ver as conceituações da velhice como um estado, do
envelhecimento como um processo e este último podendo ser entendido em diferentes
dimensões e vertentes do conhecimento. Por outro lado, encontram-se os sujeitos do
envelhecimento, podendo ser analisados nas subjetividades do processo.
Apresenta-se aqui três depoimentos que retratam a concepção de velhice na visão
própria do sujeito do processo.
Sobre a velhice [...]. Ah! Eu não me sinto velha [...] mesmo tendo idade.
Eu tenho 72 anos. Se a gente pensar em idade, cabelo branco, rugas [...] em
dores, desânimo [...] aí eu posso pensar se eu sou velha [...]. Eu tenho tudo
isso. Velhice é um tempo da nossa vida. A gente tem que saber adaptar. Eu
acho que nunca vou ficar velha [...]. Sabe por que? [...]. Eu procuro me distrair
[...] procuro ver todas as coisas que acontecem (acontece) comigo de forma
“boa”. Se a gente pode ver a velhice assim [...] eu sou velha [...] uma velha
“regateira”[...]. É assim que minha amigas me chamam (chama) (D. Amélia, 72
anos).
[...] velhice para (prá) mim [...] eu não acho que sou velha! Velhice para
mim é ter que ficar parada, esperando todo mundo fazer as coisas (coisa)
para (prá) gente. Se a gente para [...] aí tudo fica sem graça. Eu gosto de
movimento! Hoje eu faço de tudo [...] a única diferença é que eu sou mais
lenta (não quer dizer que sou mole, viu D. Geni!). Velha para mim é aquela
pessoa que não gosta de nada. Por exemplo [...] eu sempre morei na roça
quando eu era mais moça [...] lá tinha muita fartura [...] eu acostumei [...] com
a facilidade que a gente tem na cidade [...] a gente tem que aprender com as
mudanças da vida [...]. Eu acho, então que fica velha “boboca” [...] só que quer
(D. Diva, 74 anos).
Velhice para mim [...] é apenas um momento na nossa vida. Se eu
tivesse que mostrar um velho [...] eu falaria que era o Papa (com o devido
respeito). Ele é tão devagar! Mas, ele é muito culto e muito inteligente. Ele
ainda dá conta do recado dele [...]. Eu acho que ele ficou mais decadente
depois do tiro que ele levou. Eu não me vejo velho [...]. As vezes [...] me sinto
[...] apenas gasta! (D. Rose, 71 anos).
Uma outra questão, bastante discutida, nada precisa e não consensual sobre o
fenômeno da velhice é a datação de seu início. Quando é possível determinar o início da
velhice? Quando o indivíduo se torna velho/velha? E quando é possível se perceber
velho/velha?
A respeito da velhice própria, Sartre (1992), pouco antes de sua morte, refletindo sobre a
questão de ser velho, afirmava nunca se sentir velho e só se via assim com os olhares do outro.
Esse depoimento sartreano representa o ponto nevrálgico dessas indagações. Assim dizia o
filósofo:
Nem todo mundo me trata como velho. Acho graça disso. Por quê? Por
que um velho nunca se sente um velho. Compreendo, a partir dos outros, o
que a velhice implica para aquele que a olha de fora. Mas eu não sinto a
minha velhice, logo, a minha velhice não é algo que, em si mesmo, me ensine
alguma coisa. O que me ensina alguma coisa é a atitude dos outros em
relação a mim. Em outras palavras, o fato de que ser velho para outrem é ser
velho profundamente. A velhice é uma realidade minha que os outros sentem;
eles me vêem e dizem “este velho senhor”; são amáveis porque vou morrer
logo, e são também respeitosos, etc; os outros é que são a minha velhice
(p.114).
A delimitação do marco inicial da velhice determinado em idade cronológica desconhece
a dimensão temporal subjetiva dos sujeitos do processo. Simone de Beauvoir (1990) resgata
depoimentos que definem a idade para o envelhecimento a partir da constatação pessoal ou de
situações estabelecidas nas relações sociais: Sabem qual é o maior de todos os vícios? Ter
mais de 55 anos lamentava-se Trostsky (p.349). Casanova, aos 68 anos, respondeu a um
sujeito que o chamou de “venerável velho”: eu ainda não cheguei à idade miserável na qual não
se pode mais pretender à vida (p.353). A autora lembra, também, que quando alguém pela
primeira vez a descreveu como velha, ela tinha 50 anos e sentiu a observação como um
desastroso insulto. Essa atitude de sobressalto que invade homens e mulheres pode ter
explicação: o fato das mudanças (metamorfoses no corpo) produzirem efeitos contínuos e
lentos, que mal podem ser percebidas pelos sujeitos no avançar dos dias é que fazem os
comentários (do outro) soarem pejorativamente. A velhice, como já foi dito, chega sem que
queiramos, mas inevitavelmente ela se concretiza e, de diferentes formas, atinge a todos com
sua força dilaceradora (multidimensional). Sempre haverá algo que motive a chegada da
velhice, como afirma Goldfarb (1998). Pelo fato de ter vivido muitos anos, nos “sabemos”
velhos, no espelho podemos “ver” que o somos, mas podemos jamais nos “sentir” velhos se
algum acontecimento – que será sempre anunciado pelo outro e que se inscreve no registro
das perdas – não vier a construir este marco (ibid.,p.116).
As aparências informam com mais clareza os contrastes que se operam entre os
diferentes tempos da vida, mas é a partir de mudanças brutais e inesperadas, capazes de
destruir a tranqüilidade dos indivíduos que se encontra o estremecimento do sentido da
existência, como forma de repúdio natural do inevitável. Aos 60 anos, Lou Andreas Salomé
perdeu os cabelos em conseqüência de uma doença; até ali, ela sentia-se “sem idade”;
confessou, então, que se encontrava “do lado mau da escada”. E conclui Simone de Beauvoir
(1990): [...] a menos que haja um acidente análogo, para nos fazer parar diante do reflexo que
nos propõe o espelho, e nele descobrir nossa idade, é preciso já ter razões para interrogá-lo
(ibid. p. 352). Sabe-se, e é normal e de livre consentimento, que a revelação da idade do
“Eu/Nós” venha traduzida na observação do “Outro”, uma vez que em nós é o outro que é velho
(ibid).
O tempo cronologicamente delimitado pode não corresponder à dinamicidade jovem
interior, que mantém um indivíduo de idade avançada em sintonia direta com as transformações
socioculturais. Também, essa mesma idade pode não corresponder ao envelhecimento dos
músculos, artérias, órgãos, dentre outros. O tempo cronológico e o tempo do espírito estão
intimamente relacionados, na medida em que se concebem as idades humanas como
composições e não como identidades unitárias. É possível pensar em uma situação complexa e
cambiante em que convivam tempos pessoais diferenciados que se articulam e se afastam ao
longo da vida. Tal composição, em sua variedade e complexidade, impede (ou ao menos
dificulta) que se façam generalizações demasiadas e amplas e se nomine grupos humanos
vastíssimos de modo apressado.
Um enfoque objetivo da velhice, é levar em conta o fato cronológico do decorrer do
tempo em contato com as outras dimensões da vida das pessoas, para que o conceito
resultante represente a totalidade, e não somente aquela dimensão que impressione mais o
observador. Para isso é necessário uma mentalidade aberta, que supere preconceitos e
atitudes negativas em relação à velhice e que considere a idade não como algo determinante
das possibilidades vitais do sujeito, mas como uma variável acrescida às que condicionam sua
situação.
Neri (1995) confirma a observação com relação ao conceito de tempo quando diz que,
um dos conceitos científicos essenciais da atualidade é que qualquer conceito do tempo seja
ele social, biológico ou psicológico, é sempre uma variante da escala de tempo dos calendários.
A idade cronológica é, então, apenas um indicador e não uma variável independente do
desenvolvimento (p. 28). Nesse sentido, o envelhecimento e o desenvolvimento são eventos
correlatos (eventos de duração), relativos a transformações em padrões comportamentais.
Se a idade cronológica não consegue representar a categoria da velhice, por outro lado
a construção social e cultural do curso de vida, também, segundo Featherstone (1994), não
consegue atuar de forma menos traumática e segregadora. Essa invenção social não pode
constituir-se arbitrariamente como um processo unilateral alterado de acordo com interesses
sociais, pois, como afirma o autor, um cidadão respeitável necessita de competências que
deverão ser reconhecidas nos sujeitos pela sociedade, tais como: 1) Habilidades cognitivas –
baseadas no uso da linguagem e na capacidade de comunicação, vitais para uma pessoa
tornar-se autônoma e aceita. 2) Controle do corpo: – a necessidade de controlar os movimentos
do corpo, os movimentos dos nossos membros, rosto e cabeça, o grau de capacidades motoras
que envolvem sentar, ficar de pé e andar, tanto quanto a capacidade de conter e reter os fluídos
corporais. 3) Controles Emocionais – a necessidade de controlar a expressão das emoções –
raiva, ira, inveja, ódio, choro, amor, desejo – de modo que explosões emocionais e perda de
controle somente tomem lugar em ocasiões e de formas que possam ser socialmente
sancionadas e aceitáveis (p.64).
Este estudo não pretende diminuir a importância da idade, mas somente percebê-la em
sua autêntica dimensão, sem, contudo, menosprezá-la. Ela deve ser entendida como uma
condição pessoal a mais que proporciona informação sobre o sujeito e deve ser considerada
como quaisquer outras variáveis que concretizam a própria existência: raça, sexo, gênero,
etnia, etc. Essas variáveis dão origem ao status imaginário, sobre o qual o indivíduo não tem
controle, visto que lhe foi atribuído sem que tivesse direito à participação ou eleição. Essas
variáveis, ainda produzem, automaticamente, uma posição social com determinados direitos e
obrigações que o indivíduo pode ou não aceitar, mas que irão acompanhá-lo por toda a vida.
Outras questões e realidades intervenientes como educação, valores culturais e sociais,
herança genética e geracional (fonte de continuidade social e de identidade pessoal), “status”
social (lugar ocupado na sociedade), modos de vida, ambiente ecológico, etc., devem ser
também observadas e enfocadas, quando se pretende apreender a velhice em seu complexo,
interminável e inacabado processo.
O processo de envelhecimento natural pode ser considerado “normal”, uma vez que as
transformações somáticas, como também as mudanças psicossociais não estão intimamente
relacionadas a doenças. A esse processo de envelhecimento dá-se o nome de senescência1 que é inexorável na velhice. As indisposições devidas à senescência podem não ser quase
percebidas, e passadas em silêncio. São tomadas por perturbações superficiais e curáveis. É
preciso já ter consciência da própria idade para decifrá-las no corpo. E, mesmo nesse caso,
este nem sempre nos ajuda a interiorizar nosso estado. Tais reumatismos e tal artrite se devem
à senescência, sabemos; e, no entanto, fracassamos ao tentar descobrir através deles uma
nova condição. Permanecemos o que éramos, só que com reumatismos a mais (p.349). Aqui,
1
A senescência, que é um fenômeno fisiológico, arbitrariamente identificado pela idade cronológica, pode
ser considerado um envelhecimento sadio, em que o declínio físico e mental é lento, sendo
compensado, de certa forma, pelo organismo (Nadeau, 1985). Salgado (1985), sugere a compreensão
do envelhecimento de forma coincidente com o que outros autores conceituam a senescência: o
tempo da vida humana em que o organismo sofre consideráveis mutações de declínio na sua força,
disposição e aparência, as quais, porém, não incapacitam ou comprometem o processo vital (p.30).
Simone de Beauvoir (1990) desliza, sensível, sutil e delicadamente por entre os acometimentos
comuns na senescência e as possibilidades de resistir a eles ou de conformar-se com o novo
estado (não significa entregar-se).
Uma constante ameaça para a categoria é a velhice patológica, que
preconceituosamente é vista como regra única para todos. A velhice associada a doenças,
comuns ou crônicas, verificadas no processo, como uma desorganização biológica passa a ter
uma conotação diferenciada, à qual dá-se o nome de senilidade2.
Há, que ressaltar que o ritmo do declínio, além do que já foi dito, pode ser determinado,
também, pelo nível motivacional que o idoso é capaz de imprimir à sua vida. Se o indivíduo, a
rigor, se fixa nas atitudes pessimistas e depreciativas em relação à própria vida, ao futuro, a si
próprio e aos outros ele pode exacerbar os sintomas e acelerar o processo da senilidade. Já a
velhice ótima é concebida como estado ideal de bem-estar pessoal e social. A relação que se
estabelece entre a velhice, a doença e a morte tem um vínculo historicamente marcado entre os
mitos e as verdades sobre o envelhecimento veiculados pela sociedade mercantilista.
Os fatores individuais, como temperamento, personalidade, família, saúde, e fatores
sociais, como classe social, condições econômicas, tipo de trabalho, entre outros, interagem e
tornam variável o conceito de envelhecimento. Percebe-se o distanciamento dos conceitos
quando em programas televisivos, em muitos casos, atores e atrizes desempenham papéis de
jovens enamorados, esportistas ou empresários em plena vitalidade, quando, na realidade,
somam mais idade do que a que representam. O desgaste aparente pode ser amenizado de
acordo com o empreendimento que se estabelece como forma de trabalho. As condições
favoráveis de vida podem propiciar que algumas pessoas envelheçam de forma mais lenta,
conservando a aparência jovem por mais tempo. No entanto, há que salientar que a miséria
fragiliza os povos e pode provocar desgastes avassaladores (metamorfoses que o tempo urge
em tecer) produzidos pela vida e pelo trabalho adverso, em condições precárias (camponeses,
pedreiros, garis, dentre outras atividades), inutilizando socialmente o “velho” trabalhador, que
prematuramente se torna cansado e, conseqüentemente, excluído.
A geriatria3 concebe a velhice fundamentalmente pelas características biológicas, nos
aspectos patológicos e patogênicos do envelhecimento. Por outro lado, a gerontologia4 não
2
A senilidade caracteriza-se pelo declínio físico acompanhado de patologias associado à desorganização
mental (Pikunas, 1979). Curiosamente, a senilidade não é exclusiva da idade avançada. Pode ocorrer
prematuramente em qualquer indivíduo, pois as desorganizações biológicas e/ou funcionais não
necessariamente, acometem apenas pessoas idosas (a exemplo: Mal de Alzheimer, Mal de
Parkinson).
3
A Geriatria é uma expressão que foi introduzida em 1909 pelo médico Nascher, que, inicialmente, se
referia a “estudo clínico da velhice”. Para a OMS, essa é uma área de estudo, um setor da Medicina
que se ocupa da saúde das pessoas de idade avançada, nos aspectos preventivo, clínico, terapêutico
e de reabilitação e vigilância contínua.
4
A Gerontologia: historicamente a palavra apareceu em 1903 e é entendida como a ciência que estuda o
envelhecimento. A Gerontologia Social estuda as mudanças que acompanham o envelhecimento do
ponto de vista psicológico e sociológico, a adaptação do indivíduo em suas transformações e na
evolução de sua personalidade (Nicolas Zay). As duas áreas atuam de forma diferenciada, mas não
excludentes. Para Salgado, a Gerontologia significa, pois, o estudo dos processos de envelhecimento,
com base nos conhecimentos oriundos das ciências biológicas, psicocomportamentais e sociais. A
Gerontologia, para Fraiman (1995), é uma macrociência que estuda o envelhecimento nos seus
múltiplos aspectos biopsicossociais, enfocando tanto grupos de idades, quanto as fases ou ciclos do
desenvolvimento humano (p.26). Debert (1999) afirma que só no pós-guerra é que a Gerontologia e a
Geriatria se transformaram em campos práticos profissionais, de pesquisa e de formação acadêmica,
na Inglaterra e Estados Unidos. No Brasil, a primeira sociedade de geriatria é fundada em 1961.
Aberta a partir de 1978, também para gerontólogos, A Sociedade Brasileira de Geriatria e
Gerontologia (SBGG), conta hoje com cerca de 1500 associados – médicos e não médicos – publica
compreende a velhice apenas do ponto de vista biológico, mas, principalmente a partir de uma
ótica social e existencial, o que com certeza ultrapassa a idéia do envelhecimento vinculado à
decadência de forças.
Norberto Bobbio (1997), em uma reflexão autobiográfica descreve a sua própria velhice
com intrigantes confidências de um homem de 87 anos, que lucidamente percebe (com
realismo, ironia e humor) as suas próprias transformações. Assume uma velhice que transita
por entre aspectos múltiplos e é ao mesmo tempo particular e singular.
[...] vocês sabem muito bem que, ao lado da velhice censitária ou
cronológica da velhice burocrática, existe também a velhice psicológica ou
subjetiva. Biologicamente, considero que minha velhice começou no limiar dos
oitenta anos. No entanto, psicologicamente, sempre me considerei um pouco
velho, mesmo quando jovem. Fui velho quando era jovem, e quando velho
ainda me considerava jovem até há poucos anos. Agora penso mesmo ser um
velho-velho. Exercem importância determinante sobre estes estados de ânimo
também as circunstâncias históricas, aquilo que acontece à nossa volta, tanto
na vida privada (por exemplo a morte de uma pessoa querida), quanto na vida
pública. Não escondo que nos anos de contestação, quando surgiu uma
geração rebelde aos pais, senti-me de súbito envelhecido (eu já completara
sessenta anos) (p.18).
Uma definição mais psicológica, tomando por base certas intercorrências comuns como
a depressão e o isolamento; ou uma definição mais biologicizada com atenção voltada para
graus de decréscimo e disfunções orgânicas; ou, ainda, uma análise da velhice sob o ponto de
vista social (quase sempre associada ao desligamento do trabalho) pode não retratar a
realidade totalizadora do ser envelhecido. Sob essas óticas, as análises em nada resultam
como definição, a menos que se queira delinear as negatividades evolutivas do processo e/ou
salientar a perversidade e o descaso que a sociedade imprime aos seus idosos. Também, em
termos de uma concepção universal, não é possível delinear uma definição precisa e
categorizante da velhice (apesar da existência de sinais semelhantes).
Sendo assim, faz-se, então, necessário um recorte (acolhimento das ações singulares),
levando-se em consideração as conceituações atuais sobre o envelhecimento que se fundam
num campo amplo de valores culturais, sociais e políticos, implicando uma ética, uma política e
uma estética da existência (Birman, 1995). A velhice e o envelhecimento, dessa forma, devem
ser analisados a partir das variáveis circundantes ao processo. Estas, por sua vez, interferindo
no modo de ser no mundo dos sujeitos velhos, podem ser de inclusão ou exclusão social.
CONSTRUÇÃO E DESCONSTRUÇÃO DA VELHICE
As próprias sociedades criam, por meio de mecanismos de produção de imagens,
representações de si mesmas, buscando formar núcleos unitários, com valores comuns
(nacionais), favorecendo, dessa forma, a instalação do poder, da dominação.
Na medida em que o poder5 está disseminado por toda a estrutura social (Foucault,
1979), as organizações sociais e culturais se encarregam de privilegiar certas idades, como
5
uma revista trimestral, é filiada à Internacional Association of Gerontology e é autorizada pela
Associação Médica Brasileira a credenciar o especialista em Geriatria (p.196).
É interessante salientar que os poderes, na visão de Foucault (1979), não estão localizados em
nenhum ponto específico da estrutura social. Eles funcionam como uma rede de dispositivos ou
mecanismos a que nada ou ninguém escapa, a que não existe exterior possível, limites ou fronteiras
sendo as desejáveis para todo o sistema. Debert (1999) denuncia a tendência atual de
homogeneização das idades, concomitante e contraditória com o movimento de transformação
das idades em um mecanismo privilegiado na criação de atores políticos e na definição de
novos mercados de consumo (p.58).
Na verdade, o poder se encarrega em tornar o envelhecimento um processo
horizontalizado, nada funcional e pouco operacional, a serviço do ritmo frenético imposto pela
tecnologia do processo produtivo, mas sem dele poder participar. O mais perturbador dessa
realidade é que, os mesmos sujeitos, sem crítica reflexiva e sem consciência total dos fatos,
não conseguem reatar seu status de cidadão de direito, pois o mundo atual celebra os valores,
o comportamento, a aparência e a moda dos jovens.
A determinação e institucionalização do curso de vida, própria da modernidade, não
apenas regulamenta os estágios da vida ordenando-os em uma seqüência retilínea, mas
também delineia perspectivas e projetos que devem servir de guias na elaboração, tanto
individual como coletiva, de ações particularizadas. A relação instalada entre os recortes de
idade e as práticas legitimadas e definida para cada etapa da vida não está diretamente
envolvida com a evolução biologicizada da velhice.
A manipulação e classificação das categorias de idade, ressalta Bourdieu (1983), estão
diretamente relacionadas com as lutas políticas, nas quais, pela disputa do poder, os grupos
sociais encerram seus desejos e, arbitrariamente, definem e/ou dividem por idade os diferentes
momentos do ciclo da vida. A idade cronológica é o principal mecanismo de atribuição de poder
e prestígio no interior das classes sociais. O autor afirma que as classificações por idade
(também por sexo e classe) acabam sempre impondo limites e produzindo uma ordem em que
cada um deve se manter [...] em seu lugar (ibid, p.112).
Na modernidade capitalista outras configurações particulares demarcatórias de funções,
atitudes de direito e de dever ou atribuições comportamentais são produzidas de forma
ritualizada: idade para votar, para aposentar em entidades públicas e privadas, idade para
dirigir automóveis, para casar, para ingressar ou sair do mercado de trabalho, idade para
realizar compras com cartão de crédito (limite máximo - 70 anos), entre outros. Essa situação
cambiante e transitória entre classificação etária e/ou geracional dos indivíduos pode ser
representada por Bourdieu (1983), quando diz: Somos sempre o jovem ou o velho de alguém
(p.113).
A visão da velhice como um conjunto de perdas e disfunções leva a uma concepção
estigmatizadora6 dos velhos. Ao deixar de projetar na sociedade seus atributos qualitativos, sua
independência e sua parcela produtiva, os velhos deixam de ser reconhecidos como cidadãos e
os estereótipos negativos passam a determinam o processo. A sociedade, por sua vez,
abandonando os valores permanentes, o respeito ao passado e o culto à reflexão, internaliza os
valores da juventude, do consumo, do descartável, da tecnologia e legitima-os como modelos
adequados e representativos do comportamento social.
(p.XIV). O poder é algo que se exerce, que se concretiza, que funciona em esferas distintas e
dicotômicas (não excludentes), entre uma situação central ou periférica, em um nível macro ou micro.
6
Para o estudo, optou-se em utilizar o termo estigma, a partir da definição de Goffman (1975). Sugere a
autora que o mesmo seja usado em referência a um atributo profundamente depreciativo, mas o que é
preciso, na realidade, é uma linguagem de relações e não de atributos (p.13). Portanto, não se pode
explicar o termo apenas pelos seus atributos negativos; ele não é visto como uma qualidade ou traço
depreciativo de forma absoluta, mas também pelas relações sociais estabelecidas. Na relação entre
os indivíduos, existe uma preocupação mútua em adequar seu interlocutor a uma categoria
preconcebida na qual o indivíduo com seus atributos deve ser colocado. Há, porém, situações em que
algum atributo o indivíduo não o faz ser incluído na categoria que deveria servir-lhe; nesse caso, o
atributo é um estigma e o indivíduo é estigmatizado.
A velhice como estigma não está, necessariamente, ligada à idade cronológica. Os
contornos estigmatizadores, tendo sempre como parâmetro os atributos da juventude
(concepções autopreservativas do corpo), evidenciados na literatura analisada, bem como nos
relatos dos sujeitos, ligam-se a valores e conceitos depreciativos (a doença, a feiúra, a solidão,
a desesperança, depressão, a falta de consciência de si,). Por outro lado, Barros (1998)
salienta que é possível não haver estigma da velhice entre os indivíduos que ocupam posições
superiores na vida política ou entre os artistas e intelectuais. O acolhimento da sabedoria, da
experiência acumulada, por alguns setores da sociedade (Universidades, meios artísticos e
intelectuais), pode reverter o processo, possibilitando ao velho/velha, além do status que a
posição lhe confere, um grau hierárquico maior que aos iniciantes na carreira. O sujeito, por ter
se tornado um sábio, conhecer do que faz, tende a ter um status especial adquirido pela
persistência na atividade e acúmulo de idade. Entretanto, esse não é o caso dos idosos
participantes dessa pesquisa. Uma vez que, pertencentes a classes sociais menos favorecidas
esses sujeitos tendem a não ter oportunidades de desenvolverem tais habilidades seja por
desconhecimento cultural, inadequada educação seja por condições financeiras desfavoráveis.
Essa situação cambiante entre a juventude e a velhice, entre o tempo interior e o exterior
e o modo como a sociedade trata o idoso se transformam a cada período sócio-histórico, e
novos elementos são adicionados quando a cultura se massifica e a comunicação se
industrializa.
A produção ideológica da sociedade, através dos estereótipos negativos que marcam a
experiência do envelhecer; define o perfil identitário dos sujeitos do processo.
Assim, ser velho significa dizer ter sua identidade definida a partir da relação que
estabelece com o outro – uma alteridade jovem. Ligia Py (1999), descrevendo sobre o pulsar da
vida do homem, situa, também, de forma elucidativa, o percurso da constituição da identidade
humana. Assim, diz a autora:
É na perspectiva psicanalítica que se centram essas reflexões sobre a
constituição da identidade do ser humano, que ao longo da vida precisa
seguir, reconhecendo-se ele mesmo, no confronto dessa imagem idealizada
com a verificação realista das suas capacidades e limites, ao mesmo tempo
em que precisa satisfazer as exigências do outro, que é, afinal, a condição
para que seja aceito (p.47).
Cabe aqui lembrar que, para os participantes do projeto AFRID/UFU, com os quais a
pesquisa se desenvolve, a velhice não lhes confere uma identidade negativa (ideologicamente
é esperada), pelo contrário, eles conseguem identificar ganhos com o processo, reconhecem
atrativos sensuais no corpo envelhecido e demonstram uma certa satisfação com o seu novo
estado. A velhice não é o fio condutor de suas identidades.
A desvalorização, a descaracterização e o preconceito determinantes da velhice na
atualidade, segundo Ariès (1981), sofre influência significativa quanto a valores sociais, à
periodização particular da vida humana e à idade privilegiada de cada época. Para o autor, a
demanda demográfica, mesmo que interpretada ingenuamente, anuncia e determina as
inquietações prementes do momento histórico vivido e analisado. Ele propõe, resumidamente,
uma demarcação temporal relacionada às “idades da vida” e determina as idades privilegiadas
de cada época: a “juventude” é a idade privilegiada do século XVII; a “infância”, do século XIX;
e a “adolescência”, do século XX (p.48). Para o autor, essas variações de um século para o
outro
[...] dependem das relações demográficas. São testemunhos da
interpretação ingênua que a opinião faz em cada época da estrutura
demográfica, mesmo quando nem sempre pode conhecê-la objetivamente.
Assim, a ausência da adolescência ou o desprezo pela velhice, de um lado,
ou, de outro, o desaparecimento da velhice, ao menos como degradação, e a
introdução da adolescência exprimem a reação da sociedade diante da
duração da vida (p.48-49).
Do mesmo modo, Ariès (1981), traçando a evolução das idades da vida, notabiliza as
imposições de cada época e comprova a desatenção e o descaso com que a velhice vem
sendo tratada. Dessa forma, o velho ressentido e deslocado do ambiente social, timidamente
rejeita a própria imagem e tenta rejuvenescer-se para manter-se ativo na sociedade. Essa
evolução citada pelo autor ocorreu em duas etapas:
[...] primeiro houve o ancião respeitável, o ancestral de cabelos de
prata, o Nestor de sábios e prudentes conselhos, o patriarca de experiência
preciosa: o ancião do século XIX. Ele não era ainda muito ágil, mas também
não era mais tão decrépito como o ancião dos séculos XVI e XVII. Ainda hoje
resta alguma coisa deste respeito em nossos costumes. Mas, esse respeito,
na realidade, não tem mais objeto, pois, em nossa época, [...], o ancião
desapareceu. Foi substituído pelo “homem de uma certa idade” e por
“senhores ou senhoras muito bem conservados”. Noção ainda burguesa, mas
que tende a se tornar popular. A idéia tecnológica de conservação substituiu a
idéia ao mesmo tempo biológica e moral da velhice (p.48).
Em suma, o autor faz uma análise minuciosa, perpassando as etapas da vida, situandoas no tempo e no espaço, de forma definida e datada. Demonstra, através dos ditos e interditos,
que houve um tempo em que se podia associar velhice a respeito e dignidade, entretanto esse
tempo já se foi e, com novas roupagens e linguagens, a ideologia dominante apodera-se da
figura dos velhos e constrói uma nova concepção de velhice, oferecendo àqueles uma série de
procedimentos capazes de evitar ou retardar o envelhecimento. Essa nova imagem da velhice
desemboca na idéia de que os corpos devem se manter sempre jovens e ativos, valor que é
disseminado e legitimado pelo novo mercado de consumo. Daí a idéia de que, para
sobreviverem a essas alterações, nas comunidades sistematizadas, conforme convenções
socioculturais, os velhos devem utilizar máscaras juvenis ou isolarem-se no seu mundo.
Canoas (1983) enfatizou que a atitude de negação da própria velhice pelos seus sujeitos
(como forma de afastá-la) pode se tornar circunstancialmente perigosa por aproximar os
sujeitos a comportamentos ridicularizantes, pois, na tentativa de igualar-se ao jovem, se
transformam em homens e mulheres travestidos, não de indumentárias e aparências juvenis,
mas de atitudes arrojadas, esforçando-se em mostrar um dinamismo (jovialidade) e uma
satisfação que não lhes são próprios. Nesse processo de construção e desconstrução da
velhice o poder se instala e, ardilosamente, apresenta uma ideologia subjacente, capaz de
recodificar a velhice de acordo com interesses sócio-políticos. Caso isso não ocorra, a grande
maioria dos velhos/velhas, ao isolar-se, perde a razão e o prazer de viver e se entrega ao
dissabor do nada fazer. Vai-se anulando de acordo com as razões sociais prescritas. No
decorrer do século XX, a velhice vai se tornando cada vez mais rejeitada, embora os avanços
das ciências e da tecnologia dilatem o tempo de vida da existência.
Simone de Beauvoir (1990) faz uma denúncia sobre a percepção negativa da velhice,
sustentando que, em todos os tempos, a ideologia da classe dominante visa sempre a justificar
suas condutas: quando é governada por pessoas idosas, ela valoriza a idade avançada (p.243).
Em outras palavras, transferindo tal proposição para a sociedade atual, significa dizer que
semelhante conotação ideológica é evidenciada, uma vez que a situação estigmatizada dos
velhos, sujeitos despossuídos de importância social, ainda, permanece fortalecida no ideário
estrutural da sociedade. A ideologia da velhice que predomina na classe dominante se
transforma, ideologicamente, em valor para toda a sociedade. Haddad (1986) sustenta que a
classe dominante, tentando conservar sua hegemonia, provoca a mais sólida e cruel
degradação do homem velho.
É a partir da representação social da velhice que circula em nossa sociedade que se
pode compreender o peso do envelhecimento, a criação do indivíduo nos significados atuais da
velhice e o peso da pressão social que a encerra em um grupo de referência negativa.
É possível relacionar alguns escritores, poetas e músicos que tratam a velhice e o
envelhecimento das mais variadas formas: ora descrevem sentimentos melancólicos e áridos,
ora cômicos e humorísticos ou, apenas, tratam a velhice como uma fase natural e serena.
Retratam, de forma franca e poética, o significado e o sentido que esta tem para o mundo, para
o outro e para si. Esses artistas, homens e mulheres (quiçá idosos), dotados de sensibilidade e
arte, exercem o poder através da comunicação e de maneira sábia e contundente anunciam a
velhice, dando a ela um significado especial e singular.
Toma-se alguns representativos exemplos da visão poética sobre a velhice. Os
mendigos maiores vivem fora da vida: fizeram-se excluídos. Cecília Meireles, em sua poesia
Estirpe, configura a marginalização e a exclusão a que são submetidos velhos/velhas. Talvez
eu morra antes do horizonte / Memória, amor e o resto onde estarão? Em Despedida, a mesma
autora, comenta sobre a desesperança e afeto dilacerados no tempo. Trabalhas sem alegria
para um mundo caduco / onde as formas e as ações não encerram nenhum exemplo. Em
Elegia 1938, outro poeta, Carlos Drummond de Andrade reforça o valor das determinantes
ações juvenis e o desprestigio insensível da sociedade. Uma situação carregada de
distanciamento ou indiferença velados em relação à competência. E nada esperas de teus
amigos. / Pouco importa venha a velhice, que é a velhice? Teus ombros suportam o mundo. Em
Teus Ombros Suportam o Mundo, o mesmo autor proclama a indiferença e o silêncio que
congela as esperanças. Despe o meu ser cansado e humano / E deita-me na tua cama / E
conta-me histórias, caso eu acorde / Para eu tornar a adormecer. Em O Guardador de
Rebanhos, Fernando Pessoa nos fala sobre a certeza da finitude por fazer parte de nossas
possibilidades imediatas. Todos os homens são mortais e nós pensamos nisso com muita
lucidez. No caso do autor, a serenidade no trato foi sublime. Ser velho, antes dos trinta. João
Cabral de Melo Neto, em Morte e Vida Severina, mostra-nos como a miséria deprecia, desgasta
e amargura os indivíduos. Ah! A gente, na velhice, carece de ter uma aragem de descanso / O
homem velho deixa vida e morte para trás. Guimarães Rosa, em Grande Sertão Veredas,
reivindica o reconhecimento das ricas experiências que dominam os velhos e cansados
homens, solicitando apenas momentos de serenidade. Cabeça a prumo segue rumo e nunca,
nunca mais. / Lembranças tardias do que ficou. O músico Caetano Veloso, em O Homem
Velho, salienta que os instantes não são eternos e que não podem mais ser absolutos. As
lembranças devem constituir-se em um sentimento profundo e intransferível. A melhor coisa do
envelhecer é que não se perdem as outras idades que tivemos. Madeleine L’Engle, em seu
verso, ironiza as vicissitudes do processo, mas resguarda valores de cada fase vivida. Com o
perdão da palavra, quero cair na vida. Essa afirmação de Adélia Prado, em Terra de Santa Cruz
fortalece a convicção de que é possível encontrar vida prazerosa e excitante nas diferentes
etapas da vida (ela se referia à velhice própria). Minha morte é imprevisível para todos, mas
para mim é também indizível, diz Bobbio, em O Tempo e a Memória, com 87 anos, referindo-se
à sua morte como destino incerto, envolto em um mistério peculiar de que só os outros podem
falar. Dizia ele lastimar não poder contar sobre a sua própria morte. Todo mundo quer viver
muito tempo, mas ninguém quer ficar velho. Para Jonathan Swift, a velhice é dispensável.
Bastaria apenas a longevidade para garantir a permanência do homem. Ah! Se eu pudesse
viver novamente / Viajaria mais leve / Contemplaria mais rios... montanhas.... Jorge Luís
Borges, instiga-nos com seus versos, a esquecer a indiferença com que vivemos o presente,
personificando um “outro” em mim, ou seja, vivendo às sombras das opressões e pressões
sociais, deixando de ser livre, de viver intensamente a própria vida. Gabriel Garcia Marquez,
que vive lúcido e consciente seus últimos dias de vida, vítima de um câncer linfático, vêm
emocionando a todos com sua despedida, considerada um instante inesquecível da
sensibilidade humana. Assim, diz o autor: Deus meu, se eu tivesse um pedaço de vida. [...]
Convenceria cada mulher e cada homem que são os meus favoritos e viveria enamorado do
amor. / Aos homens, lhes provaria como estão enganados ao pensar que deixam de se
apaixonar quando envelhecem, sem saber que envelhecem quando deixam de se apaixonar. /
A uma criança, lhe daria asas, mas deixaria que aprendesse a voar sozinha. / Aos velhos
ensinaria que a morte não chega com a velhice, mas com o esquecimento. Esse depoimento
demonstra o descontentamento de um ser velho com sua velhice. Ao realizar um balanço geral
de sua trajetória, ele descobriu que muito deixou de se fazer em vida: pouco ousou e em quase
nada se diferenciou dos demais mortais. Nesse estágio da vida, parece haver uma inversão de
valores, os quais passam a ter uma conotação mais ligada a efeitos emocionais e de liberdade,
que a resultados materiais ou estabelecimentos de padrões comportamentais.
Dessas narrativas poéticas, muitas delas escritas por sujeitos velhos, ficam o tom da
aridez e da melancolia e, em menor porção o brilho do humor. Parece que esses sentimentos
passam pela própria consciência do ato de envelhecer porque as metamorfoses lembrar
(insistentemente) a todo o momento a existência e o seu limite finito.
Enfim, para o estudo em questão, mais que uma definição ou conceituação teórica
interessam-nos as representações da velhice fundadas e edificadas numa lógica própria a
determinado grupo social (chamados grupos populares), tanto no discurso como na prática,
como é o caso dos velhos e velhas do projeto VIDA ATIVA AFRID/UFU. Empenha-se esta
pesquisa em saber como esses sujeitos são capazes de construir e reconstruir essa
representação em um determinado tempo social, período histórico e específico contexto
local/ambiental. Considerar a heterogeneidade do processo de envelhecimento (como ação
processual e peculiar de cada indivíduo), valorizar as características singulares desses sujeitos
e salientar as influências das atividades físicas sobre o comportamento e a identidade destes
são também, de interesse deste trabalho/pesquisa.
Pela abrangência e complexidade do assunto em seguida será abordado o processo de
envelhecimento trazendo informações sobre os aspectos biopsicossociais que corroborarão
para o pensamento de que a velhice é uma realidade que comporta simultaneamente ganhos e
perdas e que o desenvolvimento é sempre multidirecional e multifuncional.
O PROCESSO E O SUJEITO DO ENVELHECIMENTO
O ENVELHECIMENTO E AS DIMENSÕES PSICOLÓGICA, BIOLÓGICA E SOCIAL: por uma
perspectiva integrativa sobre a longevidade e a qualidade de vida dos mais velhos e
velhas.
A longevidade do homem é uma realidade incontestável. A cada nova época, vive-se
mais, prolonga-se o tempo da existência ao máximo, mas, por outro lado, ninguém quer ficar
velho – teme-se e despreza-se o desconhecido.
Teme-se pelas agruras comumente associadas ao envelhecimento (doenças crônicas,
perdas diversas, disfuncionalidades), e despreza-se por considerar que essas “imperfeições” só
acometem os “outros”. Tenta-se, ao máximo, distanciar-se desse acontecimento. Entretanto,
compreender esse processo natural, dinâmico, progressivo e lamentavelmente irreversível, é
um ato emergente e necessário.
A percepção e/ou concepção da velhice realiza-se de diferentes maneiras - uma relação
multidimensional e multireferencial. Isto quer dizer que a velhice não tem tempo (demarcação
cronológica) para se instalar ou começar, e cada sujeito se percebe no tempo do novo estado
de ser, situado em um tempo transcorrido da vida, de acordo com as suas limitações e os
indicativos socio-históricos impositivos que a sociedade estabelece para as criaturas em cada
fase da vida. Como todas as situações humanas, a velhice tem uma dimensão existencial, que
modifica a relação do indivíduo com o tempo e, portanto, sua relação com o mundo e com a
própria história.
A velhice como etapa da vida é um processo biológico inevitável, porém não é o único.
Implica não somente modificações somáticas como também mudanças psicossociais. No
processo de envelhecimento as dimensões são contempladas ininterruptamente, no sentido de
promover um processo contínuo da interação humana, como afirmam Barren e Schroots (apud,
Neri, 1988), em uma tríplice visão do envelhecimento.
Contempla as influências, biológicas, sociais e psicológicas: a
senescência, relativa ao aumento da probabilidade da morte com o avanço da
idade; a maturidade social, correspondente à aquisição de papéis sociais e de
comportamentos apropriados aos diversos e progressivos grupos de idade; e
o envelhecimento, correspondente ao processo de auto-regulação da
personalidade que preside a ambos os processos (p.28).
Existe, na verdade, uma interdependência de todas as dimensões. O ponto de análise,
mais importante é, segundo Spirduso (1995), saber se a qualidade de vida daqueles que
vigorosamente obtiveram mais anos de vida será notificada ou se esse prolongamento tratará
apenas de um período de aumento de estados patológicos e de morbidade que precede a
morte.
As mutações de ordem biológica verificáveis no declínio do organismo humano
decorrem, fundamentalmente, do processo de senescência, responsável por perdas orgânicas
e funcionais7. Entretanto, um organismo pode também decair em sua força e função por
moléstias, por utilização inadequada de medicamentos ou mesmo por má nutrição. Assim, nas
considerações sobre o decréscimo funcional do organismo humano, devem-se introduzir
questões que estabeleçam e distingam condições naturais e condições patológicas do
processo, a fim de se conhecerem as reduções irreversíveis e as que podem ser evitadas.
O homem não vive nunca em estado natural; na sua velhice, como em qualquer idade,
seu estatuto lhe é imposto pela sociedade à qual pertence. O que torna a questão complexa é a
estreita interdependência dos diferentes pontos de vista do meio social. Como é fato conhecido,
a idéia de considerar os dados fisiológicos e os fatos psicológicos em separado causa
estranheza, pois eles se embricam mutuamente. Há uma intensa relação entre as dimensões
que compõem o homem. São responsáveis pelo equilíbrio harmônico da conduta humana. Não
basta descrever os aspectos da velhice de maneira analítica porque cada um deles se relaciona
com todos os outros, ou seja, afeta e é afetado por eles. É no movimento dessa circularidade,
como afirma Simone de Beauvoir (1990), que é preciso apreendê-los, pois a velhice só pode
ser compreendida em sua totalidade (p.18).
7
Spirduso (1995) prefere a terminologia “diferenças Individuais” para retratar as concepções biológicas
ou funcionais do envelhecimento. O autor ainda confirma a existência de diferenças dramáticas na
maneira de ser de indivíduos da mesma idade (p.45).
As transformações no organismo avançam proporcionalmente ao desenvolvimento das
capacidades físicas do indivíduo, que está no auge de seu desenvolvimento em torno dos 20
anos (as mutações até aí são consideradas benéficas). Depois dos 20 anos, e sobretudo a
partir dos 30, inicia-se o declínio linear natural das capacidades funcionais Entretanto, ainda
não se pode falar em envelhecimento. Para Pescatello e Di Pietro (1993), a maioria das
transformações ocorridas nas estruturas e funções fisiológicas que ocorrem com o acúmulo de
idade resultam da inatividade física.
As perdas, as alterações, os enfraquecimentos (físicos/mentais) vão tomando volume,
mas podem ser compensados por um saber prático e intelectual. Quando adquirem importância
e se tornam irremediáveis, então, o corpo fica frágil e mais ou menos impotente: pode-se dizer,
com certeza, que ele declina. O organismo declina quando suas chances de subsistir se
reduzem.
Nesse ponto do estudo, não se pode deixar de relacionar os fatores constantes e
objetivos comuns que caracterizam os indivíduos que estão na velhice - “última fase da vida”.
Por outro lado, afirmações tão gerais sobre o que é semelhante nos indivíduos idosos não
impedem de acontecer inúmeras velhices, tendo em vista as diferentes formas de viver,
simbolizar e representar o envelhecimento em cada sociedade específica. Na tentativa de
universalizar pontos comuns em experiências distintas, segundo Geertz (1978), os
pesquisadores e estudiosos considerados “universais” acabam construindo as chamadas
“categorias vazias”, como mostra o autor:
O fato de que em todos os lugares as pessoas se juntam e procriam filhos,
têm algum sentido do que é meu e do que é teu, e se protegem, de alguma
forma, contra a chuva e o sol não é nem falso nem sem importância, sob
alguns pontos de vista. Todavia, isso pouco ajuda no traçar um retrato do
homem que seja uma parecença verdadeira e honesta e não uma espécie de
caricatura de um “joão universal”, sem crença e credos (p.52).
Geertz (1978) critica a concepção da universalidade do conhecimento e das
interpretações, porque não acredita ser nela que se encontra a essência do ser humano.
Percorrendo caminho inverso, o autor propõe que pode ser que nas particularidades culturais
dos povos – em suas esquisitices – sejam encontradas algumas das revelações mais instrutivas
sobre o que é ser genericamente humano (p.55).
À partir dessas considerações, entende-se que para obter informações fidedignas sobre
o processo de envelhecimento é preciso considerá-lo como uma heterogênea, processual e
singular maneira de adquirir mais anos a vida. Críticas têm sido feitas com relação à concepção
de modernização como um fenômeno homogêneo e negativo para os(as) velhos(as). Para uma
melhor apropriação e maior compreensão, tratar-se-á de apresentar uma formulação em
separado (não compartimentalizado), apenas para efeito didático, dos aspectos
biopsicossociais do processo de envelhecimento.
1 - LONGEVIDADE E A DIMENSÃO BIOLÓGICA DO SER
Algumas alterações morfológicas e funcionais, doenças crônicas prevalentes e
implicações das atividades físicas nos sujeitos do envelhecimento.
Fundamentalmente, marca-se o envelhecimento biológico pela diminuição da taxa
metabólica, o que se reflete na lentidão do intercâmbio de energia do organismo. A energia
(capacidade de reserva), quando usada em excesso, não é totalmente recuperada, uma vez
que o aumento da idade celular decorrente de menor capacidade para a divisão celular resulta
em desaceleração funcional. Assim, o envelhecimento do tecido é resultado da mudança das
células renováveis para não renováveis. Há uma diminuição marcada da capacidade de
regeneração celular. O progresso do tecido intersticial sobre os tecidos nobres é principalmente
surpreendente no nível das glândulas e do sistema nervoso. Ele acarreta uma involução dos
principais órgãos e um enfraquecimento de certas funções que não cessam de declinar até a
morte. Não há sincronicidade no processo de envelhecimento, isto é, cada setor do organismo
envelhece num dado tempo.
Biologicamente, envelhecer representa para o indivíduo um ameaçador desgaste das
suas capacidades fisiológicas globais, seja de um modo progressivo discreto ou grave,
culminando com a morte, quando esta ocorre por causas naturais. Essas perdas evolutivas
provocam no organismo modificações morfológicas (metamorfoses no corpo), fisiológicas
(modificações nas funções orgânicas) e bioquímicas (alterações nas reações químicas
presentes no organismo). Essa involução dinâmica e progressiva em termos de perdas não
significa que a velhice seja sinônimo de doença e incapacidade funcional e nem represente
regra única para todos os indivíduos.
Para a determinação da idade biológica, é necessário estabelecer parâmetros em
relação às ordens morfológica, fisiológica e psicológica. Elas são descritas como mudanças no
aspecto exterior, na fala, nos movimentos, na esfera emotivo-psicológica, nos tecidos, nos
órgãos e nos sistemas, enfim, com o envelhecimento de todo organismo. Assim, os seres
humanos começam com o passar do tempo a apresentar mudanças que são típicas do
processo da senescência: flacidez muscular, embranquecimento dos cabelos, aparecimento de
rugas, declínio em equilíbrio, força e rapidez de reação, além das perdas cognitivas. Como
mudanças internas apresentam-se tanto pelo mau ou irregular funcionamento de alguns órgãos,
como coração, fígado, rins, pulmões, como por alterações no metabolismo basal (respiração,
circulação, tônus muscular, temperatura corporal, atividade glandular), representantes naturais
na manutenção das funções vitais do organismo. A idade cronológica e a idade biológica estão
longe de coincidir sempre, porque a aparência física informa mais que os exames fisiológicos
sobre a nossa idade. Algumas pessoas podem ter o embranquecimento dos cabelos até bem
antes da Terceira Idade, enquanto outros, mais raramente, só irão começar a tê-lo depois dos
50, 55 anos. Em alguns casos a pessoa terá força muscular e rapidez de movimento até seus
70, 80 anos, enquanto outros, em maior número, logo cedo sentirão o cansaço, a fadiga, a
diminuição da força, principalmente de membros (inferiores e superiores) (Spirduso, 1995, p.
45). O único órgão cuja função desaparece são os ovários nas mulheres após a menopausa. A
capacidade da mulher de procriar tem um limite biológico. Há uma involução dos órgãos
sexuais, mas não há perda da sensibilidade e do prazer. A capacidade sexual completa não é
perdida durante o envelhecimento, em ambos os sexos. Por outro lado, a capacidade funcional
declina com a idade, mas nem sempre no mesmo ritmo para todas as pessoas. Pode ser
influenciada beneficamente por muitos fatores, tal como a atividade física, cuja prática regular
retém níveis mais altos de capacidade funcional, fundamentalmente, na função cardiovascular
(Spirduso, 1995; Shephard, 1997). A redução da capacidade de adaptação diminui a
flexibilidade que regula o equilíbrio necessário para manter constante o meio interno. Essa
diminuição funcional aciona fenômenos compensadores que podem assegurar, com maior ou
menor intensidade a integridade do indivíduo idoso.
Staudinger, Marsisk e Baltes (1993), com relação às perdas provocadas pelo
envelhecimento, afirmam que o que decresce com a idade
[...] é a plasticidade, ou seja, a flexibilidade e a rapidez com que o
indivíduo pode mudar em termos comportamentais, físicos e psicológicos, o
que se traduz em capacidade de ajustar-se fisicamente, crescer, aprender e
inovar. Decresce também sua resiliência, que é a capacidade de recuperação
do organismo depois de exposição a traumas ou pressões provenientes do
ambiente ecológico, do ambiente social, da dinâmica de sua personalidade e
do seu organismo biológico (apud, Neri, 1999, p.121).
Em uma análise do percurso de vida verifica-se que, em termos biológicos, em virtude
do incremento de produtos farmacológicos, das inovações e descobertas médicas e da atuação
de sanitaristas que caminham à frente das condições socioculturais, um avanço está sendo
alcançado no sentido de proporcionar aos indivíduos o bem-estar social e a elevada conquista
da proclamada qualidade de vida. Com esta expectativa, o homem não está vivendo para ser
cada vez mais velho, mas vivendo o bastante para alcançar a velhice saudável.
As modificações mais acentuadas são sofridas por volta dos 40 ou 50 anos. A coluna
curva-se para frente e a estatura, por volta dos 70 anos, sofre um pequeno encurvamento,
diminuindo de 2 a 2,5 centímetros. Esse encurvamento justifica-se pelo achatamento das
cartilagens intervertebrais. A marcha torna-se mais lenta, com passadas curtas, e pode
aparecer o tremor nas mãos. As alterações da marcha representam uma importante mudança
para os idosos. Muitas causas podem estar relacionadas a essas alterações, como problemas
articulares, que prejudicam a movimentação dos membros inferiores, dificultando a subida em
ônibus e escadas; visuais, que podem levar a acidentes em irregularidades do piso, buracos;
ambientais, como a existência de escadas sem corrimão, obstáculos à passagem, problemas
de iluminação. Essas alterações podem ser causadas também pela existência de doenças
neurológicas (Mal de Parkinson, Hidrocefalia de Pressão Intermitente ou deficiências da
circulação cerebral).
A doença de Parkinson é uma doença progressiva (difere de uma pessoa para outra),
que apresenta várias fases e acometimentos diversos. Admite-se que seus sintomas tenham
origem na insuficiência de uma substância no cérebro, a dopamina, que participa na
transmissão das informações nas células nervosas. As causas exatas desse distúrbio são
pouco conhecidas, apesar das numerosas pesquisas desenvolvidas nesse campo. Em alguns
casos, a doença pode ser associada a antecedentes de infecção viral, encefalite ou intoxicação.
É caracterizada por bradicinesia (lentidão dos movimentos), tremor de repouso, rigidez
(endurecimento das articulações) e alteração do equilíbrio e postura. Os músculos se tornam
entorpecidos e rígidos, o que torna o doente desajeitado. Ele apresenta perda de automatismo
(andar, sentar), tem os músculos da face rígidos e por isso tem a expressão fixa. Deprime-se
muito facilmente e isso faz com que o quadro da doença piore.
As alterações esqueléticas podem desencadear a osteoporose, que é redução da massa
óssea por unidade de volume de osso, ou seja, perda de cálcio depositado nos ossos. Trata-se
de uma doença “silenciosa”, que progride quase ou totalmente sem sintomas. É um dos
problemas mais sérios de saúde pública no mundo, uma vez que ela incapacita ou até mesmo
invalida grande número de pessoas, principalmente as mulheres após a menopausa, pois a ela
associam-se fraturas. A palavra osteoporose significa, literalmente, “osso poroso”, porosidade
esta resultante de áreas corticais mais finas e de conteúdo mineral ósseo reduzido, o que
transforma as áreas mais compactas em porosas. Essas manifestações resultam em ossos
frágeis, fracos, que se quebram facilmente, quando o desejável é que o indivíduo mantenha a
espessura e a densidade cortical ótima. Esse acometimento pode causar dor óssea e a
diminuição da estatura, pelas fraturas ocorridas e diminuição do tamanho do osso,
principalmente o da coluna vertebral. (Eckert, 1993). As mulheres têm aproximadamente 30% a
menos de massa óssea do que os homens. Os negros têm 10% a mais que os brancos
(Shephard, 1995).
A posição de diferentes autores com relação ao início da perda óssea relacionada à
idade é controvertida, o que resulta na determinação dessa idade, para uns, ao redor dos 20
anos, para outros, ao redor de 30 anos e, ainda, para outros por volta de 35/45 anos. De acordo
com Matsudo e Matsudo (1992), para ambos os sexos, o início do decréscimo ósseo se dá com
uma perda de massa óssea de menos de 0,5% ao ano, sendo alterada na pós-menopausa para
3% a 10% para o osso trabecular e 1% a 2% para o cortical. Smith e Tommerup, citados por
Okuma (1998), consideram que a perda nas mulheres é maior (1% ao ano) do que nos
homens, desde quando o problema se instala porque as mulheres atingem um limite menor de
massa óssea e a velocidade de perda feminina é maior do que a do homem. Assinalam os
autores a necessidade do estresse mecânico nos ossos, produzido pela atividade física, a
ingestão de cálcio durante a infância e os hormônios gonadais (sexuais) para se atingir um pico
ótimo de massa óssea. A conseqüência mais séria da osteoporose é o risco de fraturas. A
pessoa idosa apresenta um risco de quedas muito maior do que a pessoa jovem devido a
alterações no equilíbrio decorrente do envelhecimento. Uma queda envolvendo um osso
fragilizado aumenta a possibilidade de fraturas e estas podem restringir em graus variados a
mobilidade do idoso, tirando-lhe a autonomia. As quedas podem ser muitas vezes causadas por
problemas de orientação, vertigens, rigidez dos músculos, fragilidade do esqueleto. Os ossos
mais comumente afetados pela doença são as vértebras, fêmur, rádio, pelve, úmero e costelas.
A situação do idoso, na perspectiva dos argumentos circulatórios, é a de que os vasos
sangüíneos apresentam-se menos elásticos, tornando-se mais estreitos e aumentando, assim,
a resistência ao fluxo sangüíneo.
O coração não muda muito, mas seu funcionamento se altera, perde progressivamente
suas faculdades de adaptação; o sujeito reduz suas atividades para poder poupá-lo. Entre 30 e
70 anos, o sistema cardiovascular declina por volta de 30%, como resultado de mudanças no
sistema vascular do coração. No miocárdio aparecem áreas de fibrose e depósitos de
lipofucsina e de substância amilóide. As artérias perdem a elasticidade de suas paredes pelos
depósitos de cálcio e lipídios. Neste particular, o esforço causa alterações na aceleração da
freqüência cardíaca, uma vez que a capacidade do coração de aumentar a freqüência e a
pressão dos batimentos cardíacos nos esforços, após os 60 anos, está diminuída (Shephard,
1997). Portanto, qualquer pessoa com mais de 40 anos, ao iniciar uma atividade física, deverá
se submeter a um teste ergométrico para avaliar sua reserva cardíaca.
Sabe-se que, dentre as várias doenças que acometem o idoso, a hipertensão arterial é a
de maior prevalência, potencialmente danosa ao sujeito velho, independente de sexo ou raça. É
uma das doenças que mais se relaciona com mortalidade e morbidade e apresenta um risco
mais acentuado em homens do que em mulheres. A problemática da perda da elasticidade das
artérias resulta no aumento da pressão arterial. Aos 75 anos, mais de 75% das pessoas são
hipertensas. É preciso observar, aliás, que a hipertensão, tão perigosa para os adultos, pode
ser bem tolerada pelos idosos. As doenças cardíacas mais comuns, causadas pelo aumento da
pressão sistólica (aumento da máxima) são a angina e o infarto. Já o aumento da pressão
diastólica (pressão mínima) provoca as demais doenças cardíacas. As terapias mais
recomendadas para o controle da hipertensão são: a restrição de sódio, do consumo do álcool,
redução do peso corporal e prática de atividade física (Pescatello e Di Pietro, 1993). Há
evidências que sugerem que idosos ativos fisicamente têm pressão arterial mais baixa que os
sedentários.
Outras variáveis, além da hipertensão arterial, são igualmente importantes como a
diabetes mellitus, a hipercolesterolemia, o tabagismo, a obesidade e o sedentarismo, que hoje
são vistos como componentes de uma síndrome cujo resultado é o envelhecimento precoce e
acelerado das artérias no processo da arteriosclerose. Noventa e sete por cento das pessoas
não sabem que são portadoras de diabetes, pois ele é quase assintomático. O diabetes mellitus
é um poderoso fator de risco que conduz à doença cardiovascular, renal e arterosclerótica. A
hipertensão arterial é mais freqüente entre portadores de diabetes mellitus. Além do mais, a
hipertensão arterial em pacientes diabéticos aumenta o risco e acelera o curso da doença renal,
da arteriosclerose, da retinopatia, do acidente vascular cerebral e das doenças
cardiovasculares. O diabetes acelera a catarata, causando cegueira e a cicatrização fica
comprometida. O controle correto do diabetes sustenta-se sobre uma tríade: alimentação,
medicamento e atividade física (Costa e Almeida Neto, 1992). Vários são os benefícios da
atividade física para o diabético, tais como: queima da glicose pelos músculos, aumento da
ação dos medicamentos, redução da quantidade de insulina diária, redução do peso corporal,
aumento da remoção e tolerância à glicose.
Evidencia-se a hipercolesterolemia como sendo responsável pela gênese do processo
arterosclerótico (elevado nível de colesterol) e das doenças do sistema vascular. Na população
americana, segundo Pescatello e Di Pietro (1993), há índices elevados de colesterol em
aproximadamente 30% dos indivíduos com mais de 60 anos. As modalidades conhecidas de
tratamento, que influenciam os níveis de lipídios e lipoproteínas são a dieta e o exercício,
obtendo a dieta um impacto mais significante. Estudos epidemológicos comprovam níveis mais
baixos de lipídios e lipoproteínas em indivíduos de meia-idade e idosos ativos do que entre
sujeitos não-ativos.
A obesidade está associada a doenças crônicas tais como doenças cardiovasculares,
cérebro-vasculares, hipertensão, hiperlipidemia, diabetes mellitus tipo II e certos tipos de
câncer. O conjunto de evidências que implica a obesidade e o sedentarismo no processo de
endurecimento arterosclerótico das artérias é menos nítido. Porém, há um consenso de que o
aumento do tecido adiposo e a falta de exercícios físicos estão associados à elevação das
lipoproteínas séricas, aumentando, portanto, mesmo que indiretamente, o risco individual. A
adiposidade ganha na meia idade tende a acumular-se no tronco. Nesse padrão de gordura,
observa-se a inclusão de células hipertrofiadas, que estão associadas a efeitos deletérios para
a saúde (Pescatello e Di Pietro, 1993).
À medida que o indivíduo vai envelhecendo aumenta a sensibilidade ao frio e rápida
exaustão ao calor. Com a idade as glândulas sudoríparas diminuem, conseqüentemente,
acelera-se a exaustão pelo calor e, ao mesmo tempo, perde-se o revestimento gorduroso da
pele, daí o maior frio.
O cérebro, por volta dos 20 anos, pesa aproximadamente de 1375 g até 15oo g. A partir
dessa idade passa a ocorrer um contínuo decréscimo no peso, com cerca de 10% de perda por
volta dos 90 anos. Esta perda é evidenciada pelo alargamento de sulcos e ventrículos
cerebrais. Estudos comprovam que dos 20 aos 50 anos a substância cinzenta diminui mais
rapidamente que a substância branca. Após os 50 anos a relação se inverte. O cérebro idoso é
cinco vezes mais leve do que o do jovem, o qual tem mais ou menos dez bilhões de neurônios.
Ao longo da vida estima-se que cerca de 50.000 a 60.000 neurônios morrem diariamente
(Graaff, 1991; Brody, 1992). Com a idade ocorre a hipertrofia e proliferação de células da glia,
portanto encontra-se no idoso uma diminuição do número de neurônios, em comparação com
indivíduos mais jovens (Vernadakis, 1985). As mensagens são transmitidas com menos rapidez
pela má qualidade dos receptores. O funcionamento do cérebro é menos flexível dado ao
decréscimo de fluxo sangüíneo cerebral encontrado no envelhecimento, o que demonstra a
diminuição ou perda dos neurônios, levando a uma redução de consumo de oxigênio no
cérebro. As perdas podem ser compensadas por novas sinapses e progresso de axônios,
mesmo na presença de doenças neurodegenerativas (Cotman, 1990). A suboxigenação do
sangue acarreta uma diminuição da memória imediata e da retenção, um retardamento dos
processos ideativos, uma irregularidade nas operações mentais fáceis, violentas reações
emocionais: euforia ou depressão (Nadeau, 1991).
Nos estudos e pesquisas constata-se que a memória imediata (reserva temporária e
limitada) não é atingida; já a memória concreta (relacionada com dados bem conhecidos), que
localiza a capacidade consciente de recordar eventos anteriores, pode decair entre 30 e 50
anos, assim como a memória lógica. Em caso de alterações cerebrais mais acentuadas pode
aparecer a demência. Essa síndrome compromete as funções intelectuais como a memória, a
linguagem, a capacidade de conhecimento e de reconhecimento, a personalidade. A pessoa
demenciada perde habilidades e capacidades para a manutenção da vida diária (alimentar-se,
vestir-se) e tem dificuldade de relacionamento com a família, com amigos e com o trabalho. No
caso do idoso, a forma mais comum da demência é a doença de Alzheimer (aproximadamente
50% dos casos).
Com a idade, o número de junções entre os nervos e músculos (unidades motoras)
diminui, portanto tem-se menos ativação muscular, o que leva à perda do tecido muscular.
Assim, a coordenação sensório-motora gradualmente torna-se menos eficiente. O idoso precisa
de instruções claras e concretas, e não de movimentos rápidos, uma vez que se preocupa em
analisar a tarefa a ser executada antes de desempenhar ou não um ato motor (Pikunas, 1987).
Os nervos motores transmitem com menor velocidade as excitações e as reações são menos
rápidas. A força e a massa muscular diminuem, alterando a dinâmica dos movimentos, que
passam a ser morosos. As pessoas idosas têm muita dificuldade de se adaptar às situações
novas; elas reorganizam facilmente coisas conhecidas, mas resistem a mudanças. Para muitos
neurologistas, a suspeita maior de culpa desse desgaste no processo pode ser a inatividade e
não apenas uma conseqüência inevitável do envelhecimento (Spirduso, 1997). A perda de
equilíbrio depende do volume e da tonicidade músculos dos membros inferiores, mas tem
motivos evidentes na falha nos mecanismos de equilíbrio do cérebro, como conseqüência das
mudanças resultantes do envelhecimento nos condutores nervosos que vão do ouvido ao
tronco do cérebro e ao córtex cerebral. O cérebro amadurecido se atrasa na tarefa de manter
uma representação dinâmica da localização espaço/temporal do corpo.
Há evidências sobre as implicações das atividades físicas na qualidade e a expectativa
de vida. A atividade física moderada e regular contribui para preservar as estruturas orgânicas e
o bem-estar físico, levando à diminuição do ritmo da degeneração psicofisiológicos. Em
qualquer idade, as práticas corporais podem combater o ciclo pernicioso de inatividade física e
de danos resultantes da fragilidade, que são responsáveis por muitos dos casos de invalidez na
velhice. Desse modo, a atividade física assume papel preponderante na vida das pessoas,
tendo em vista as vantagens e os benefícios da sua prática evidenciados nas falas dos sujeitos
praticantes. Depoimento exemplar é o de D. Madalena:
Eu sei que sou nova (65 anos), mas tenho osteoporose e devo cuidar
muito bem desse meu problema. Quando o médico descobriu esse problema
em mim, eu era mais moça ainda. Eu tinha só 56 anos. O médico sugeriu e eu
comecei a fazer atividade física (hidroginástica), aqui no projeto (AFRID), e
tudo melhorou em mim. Minhas dores diminuíram, meus movimentos ficaram
mais leves, e, hoje, eu faço até parte de um grupo de dança (muito bom por
sinal), que é o grupo de dança moderna da Universidade. Na verdade, hoje eu
tenho menos medo de me machucar.
Relacionando longevidade e patologias pode-se salientar que, no Brasil, nos indivíduos
com 60 anos ou mais, a predominância de óbitos é dada por doenças crônico-degenerativas.
Em 1990, mais da metade dos óbitos nessa faixa etária foram causados por DAC8 e 15% por
neoplasias (Chamowicz, 1998, p.48).9
Enquanto as fórmulas milagrosas de rejuvenescimento e retardamento do
envelhecimento não surgem, médicos insistem na importância da prevenção desse novo estado
de ser. Foi lançado há poucos meses, nos EUA, o guia Reverse Aging (reverta o
8
9
Principais DAC: Doenças cérebro-vasculares, doenças da circulação pulmonar e outras formas de
doenças do coração; infarto agudo do miocárdio e doença hipertensiva.
Para Chamowicz e Berquó (1998), as estatísticas de mortalidade não são adequadas para caracterizar
o perfil de saúde em virtude da elevada prevalência de múltiplos problemas coexistentes (artrose,
artrite, depressão, problemas de visão, etc.) que, embora interfiram na qualidade de vida, raramente
causam a morte. Informações mais confiáveis vêm dos estudos de morbidade, que ao abordar
também as incapacidades, refletem mais adequadamente o impacto da doença sobre a família, o
sistema de saúde e a qualidade de vida dos idosos (p.50).
envelhecimento) – um programa de 26 semanas, vendido em supermercados, com dicas para
retardar os sintomas da velhice. Esse manual tem como objetivo propor uma mudança radical
do hábito de vida de qualquer pessoa, graças às melhorias que elas sentirão durante o período
de execução do programa. Algumas condutas são fundamentais para a obtenção de resultados
satisfatórios: manter uma dieta pobre em gorduras e rica em vitaminas e fibras, ingerir bastante
água mineral, praticar exercícios físicos, não fumar e saber administrar o estresse. Há, também,
que se considerar a circunstância das diferenças individuais (Spirduso, 1995) que, na velhice,
refletem todas as etapas anteriores da vida.
Ao findar esse século, cuidados especiais com relação à prevenção devem ser
prioritários, pois, com o ciclo de vida aumentando, nada mais justo que esse tempo que se
estende seja vivido de forma mais saudável. Para reverter o quadro de extenso período de
morbidade, no qual vive a população brasileira deve-se criar planos e programas preventivos
para essa situação. Okuma (1998), a respeito dos mecanismos preventivos diz:
É sempre tempo de rever estereótipos negativos vinculados à velhice e tentar superálos. Essa é a visão de um velho que não vive à sombra das perdas ou na apatia do nada fazer,
em razão da idade, pois ainda tem, mesmo com medo de arriscar, desejos e projetos de
realização pessoal.
2 - LONGEVIDADE E A DIMENSÃO PSICOLÓGICA DO SER
Sabedoria, qualidade de vida e bem-estar psicológico
Sabemos que com a chegada da velhice várias alterações vão sendo acrescentadas ao
corpo idoso, acarretando também conseqüências psicológicas, as quais modificam
comportamentos e atitudes diante de determinadas circunstâncias.
Verificar o processo de envelhecimento, cunhado em uma ótica psicológica, é aceitar seu
movimento dinâmico e sua complexidade. Não se trata apenas de descrever as mudanças
ocorridas nessa fase, mas de buscar reconhecimento e informações sólidas cientificamente
fundamentadas, refletindo a preocupação com o bem-estar e a trajetória de vida do crescente
número de brasileiros que vivem por mais tempo.
Teorias confirmam o fato de não haver relação direta entre o envelhecimento biológico e o
declínio de suas capacidades mentais. O que ocorre são certas exigências do meio que levam
os idosos a perderem a iniciativa, a motivação, a se sentirem bloqueados, inseguros e, então,
isolarem-se socialmente, como demonstra Salgado (1982): A pressão social e psicológica pode
ser tão forte que os envelhecidos preferem comportar-se de tal forma, pois manifestar
incompetência é encontrar, para muitas situações, a forma inteligente de ser aceito e viver
melhor (p.45).
Na evolução do campo da psicologia, principalmente na sistematização dos conhecimentos
acerca da psicologia do desenvolvimento geral, os estudiosos não se referem à população
idosa, uma vez que em sua maioria as temáticas abordadas são voltadas para a infância e a
adolescência, ou então a questões clínicas da vida adulta. Nessa mesma trajetória, a
psicologia, seguindo a perspectiva desenvolvimentista, assinalava a velhice como a etapa das
perdas (deterioração) e das limitações (incapacidade, incompetência), sem mesmo considerar o
potencial de desenvolvimento inerente à maturidade. Na história da psicologia do
envelhecimento, a atenção predominante foi dada ao declínio e às perdas associadas à idade.
A vida adulta e a velhice só obtiveram um caráter sistemático de estudos a partir do final dos
anos 50, portanto pode-se considerar recente o interesse da psicologia pela velhice. Essa área,
atualmente, está interessada na investigação das alterações comportamentais que
acompanham o gradual declínio na funcionalidade dos vários domínios do comportamento
psicológico nos anos mais avançados da vida adulta (Neri, 1995, p.13). Essa vertente se
relaciona com a psicologia do desenvolvimento e com a gerontologia – área multidisciplinar que
tem interfaces com a Biologia, a Psicologia, a Sociologia, a Antropologia e com várias áreas de
aplicação, o que torna o estudo do desenvolvimento bastante complexo.
Pode-se dizer que avanços significativos foram alcançados com a evolução do campo
da psicologia do envelhecimento, ocorrendo mudanças e acréscimos nos contextos de
desenvolvimento. Diante dessa nova abordagem, em decorrência da atenção proporcionada ao
desenvolvimento adulto e ao envelhecimento, os agenciamentos elucidativos do
desenvolvimento humano puderam ser ampliados, incluindo-se nele novos contextos de vida e
novos fenômenos evolutivos.
Em decorrência, surgem preocupações, por parte de estudiosos e pesquisadores da área,
diante da problemática que se instala - a elevada contingência de pessoas idosas. Com a
velhice em cena, uma nova área surge dentro da psicologia: a psicologia do curso de vida. Essa
linha do pensamento considera que a natureza do desenvolvimento envolve mudanças com
características qualitativas e não só quantitativas – o que leva a crer que cada período etário se
caracteriza por comportamentos e papéis singulares, além de considerar a interação e/ou a
interconexão entre sistemas de pessoas em desenvolvimento. A concepção emergente é a de
que o desenvolvimento comporta simultaneamente ganhos e perdas. A posição central dos
psicólogos de curso de vida é que não há ganho sem perda, e nem perda sem ganho. O
desenvolvimento é sempre multidirecional e multifuncional, afirma Neri (1995, p.11). Nessa
perspectiva, o envelhecimento é considerado uma fase do desenvolvimento como outra
qualquer, assim como a infância, a adolescência e a idade adulta. O desenvolvimento assume
um caráter de equilíbrio constante entre ganhos e perdas, em todas as faixas etárias, mantendo
sempre o indivíduo em adaptação frente às mudanças. Sendo a velhice um fato não estático,
passa a ser entendida como uma categoria, um movimento contínuo e dinâmico carregado de
subjetividades outras. É, portanto, o resultado e o prolongamento de um processo,
caracterizado primordialmente pela idéia de mudança, em que a cada instante o equilíbrio das
funções se perde e se reconquista através das mutações e adaptações biológicas.
Para Baltes (1993), à medida que os novos desafios foram tomando formas sólidas em
conhecimentos sobre o sujeito do processo de envelhecimento é que, lentamente, foi se
reconhecendo que o envelhecimento pode envolver avanços selecionados (como por exemplo
em sabedoria), que pode ser otimizado se os indivíduos e a sociedade forem capazes e tiverem
disponibilidade para investir mais recursos na geração de uma cultura positiva da velhice (apud
Neri, 1995, p.11).
O que se tem afirmado na contemporaneidade, do ponto de vista da qualidade de vida
defendido por Neri (1993) é a satisfação ou bem-estar psicológico, mais especificamente
denominado pela autora como velhice bem-sucedida.10 Seguindo uma trajetória ascendente de
significado e valores, o envelhecimento passa a ser enfocado sob outro ângulo, o da qualidade
de vida na idade madura. Essa perspectiva psicológica defende o equilíbrio entre as limitações
e as potencialidades do indivíduo, o que lhe permite lidar com as inevitáveis perdas que o
processo de envelhecimento pode provocar em diferentes situações e graus de eficácia. Viver
uma velhice satisfatória, pelo seu caráter sociocultural, excede a responsabilidade pessoal,
tornando-se, então, o resultado da qualidade da interação entre indivíduos em mudança em um
contexto em constante transformação (Neri, 1995).
10
A psicologia do curso de vida teve uma rápida evolução e deveu-se a duas fontes de interesse: Por
um ângulo, havia curiosidade relativa à repercussão da infância sobre o desenvolvimento ulterior. Por
outro ângulo, psicólogos que trabalhavam com a vida adulta e a velhice passaram a estender o âmbito
de seus conceitos e de suas investigações para a direção oposta do curso de vida, propondo
questões sobre os precursores da velhice ao longo do curso de vida, como por exemplo as condições
da inteligência e da personalidade que podem facilitar ou dificultar a ocorrência de uma velhice bemsucedida. Da confluência resultou uma nova área da psicologia do desenvolvimento: a psicologia do
curso de vida. (Baltes, 1993, apud, Neri, 1995, p.10).
Nesse sentido, o envelhecimento assume um caráter de experiência heterogênea e o
modo de envelhecer pode ou não garantir o envelhecimento saudável e satisfatório, que, na
verdade, depende da maneira como cada indivíduo organiza e vivencia seu curso de vida, das
circunstâncias histórico-culturais, dos fatores patológicos que podem interferir na sua saúde e
dos fatores genéticos e ambientais.
Com o envelhecimento, os sujeitos caracterizados pela idade madura são capazes de
superar, por reações adversas e compensatórias, as perdas decorrentes do processo. São
ações advindas da redução de certas capacidades funcionais. Ocorrem mecanismos de
compensação, que só podem ser caracterizados sob uma visão multidimensional.
Essa visão multidimensional do bem-estar psicológico e satisfação na velhice deverá
abarcar questões relacionadas com a satisfação pessoal – sentido e significado da existência
(saber lidar com a perda), bem como dimensões que envolvem a sensibilidade, as emoções, os
sentimentos, os desejos, indo de encontro às subjetividades manifestadas no sujeito singular.
Assim sendo, a velhice bem sucedida, por depender da história de vida de cada indivíduo,
assume um caráter subjetivo, que, por sua vez, depende do sistema de valores vigentes em um
determinado momento sócio-histórico. Se se aceita o bem-estar emocional como sendo o que
Simone de Beauvoir (1990) anuncia, é preciso, então, considerar a própria velhice como a
época privilegiada da existência: ela traz, [...] experiência, sabedoria e paz. Se compreendida
assim, a vida humana não conheceria declínio (p.20).
Por outro lado, os grandes e pequenos eventos que acompanham o envelhecimento
podem alterar o bem-estar, dependendo do modo como os idosos se vêem e como agem
diante de tais circunstâncias, como afirma Neri (1993):
Os pequenos e não os grandes eventos têm maior poder de afetar o
bem-estar dos idosos, em virtude da redução da sua capacidade de se
manterem ativos e de lidar com as pressões que acompanham o
envelhecimento. Além disso, os pequenos eventos (por exemplo, quebra de
um eletrodoméstico, perda de uma chave, chegada de um hóspede sem
avisar) tendem a ser mais maleáveis e controláveis do que os grandes (como,
por exemplo, morte do cônjuge, doenças prolongadas, divórcio dos filhos,
aposentadoria) (p.17-18).
As descontinuidades que permeiam o processo de envelhecimento devem ser
consideradas na sua provisoriedade, na sua temporalidade, permitindo aos sujeitos do
processo uma condição ímpar de suporte para seu crescimento pessoal por meio da
manutenção de atividades significativas.
O que parece evidente é que os velhos mais saudáveis são aqueles que, mesmo
conscientes de sua finitude, continuam realizando projetos possíveis, dentro dos limites de sua
particularidade com relação à expectativa de vida, de acordo com os seus interesses, suas
limitações corporais, suas preferências e os vínculos estabelecidos ao longo do tempo. Cria-se,
dessa forma, uma subjetividade especial de ser velho circunscrito em um processo de
subjetivação inesgotável da velhice.
Com relação a esse dinamismo na velhice, Baltes e Baltes (1990) apresentam um
modelo psicológico de velhice bem-sucedida, no qual a manutenção da competência em
domínios selecionados do funcionamento, através de mecanismos de compensação e
otimização, são providências fundamentais para uma boa velhice. De acordo com o modelo, a
velhice bem-sucedida
[...] depende da seleção dos domínios comportamentais em que o
indivíduo retém melhor nível de funcionamento e da otimização desse
funcionamento mediante estratégias de treino e ativação dos motivos para
aprender. O duplo movimento – seleção e otimização de capacidades em que
o idoso tem bom nível de desempenho – garante a compensação das perdas
ocasionadas pelo envelhecimento e, consequentemente, a continuidade da
funcionalidade em domínios selecionados e o aumento da motivação para a
realização (apud, Neri, 1999, p.117).
É conveniente lembrar que as providências sociais postas em prática, por preconceito,
realidade socioeconômica e até por desconhecimento, no sentido de viabilizar uma melhor
qualidade de vida para os mais velhos, raramente incluem oportunidades de treinamento ou
projetos de capacitação ou reciclagem profissional. Esses sujeitos, por sua vez, distanciados do
processo produtivo, são incentivados a envolver-se com atividades de lazer e de voluntariado
para ocupação do tempo ocioso.
Nesse contexto, pode-se afirmar que envelhecer bem e atividades físicas são realidades
fortemente associadas, pois são reconhecidos os efeitos benéficos do treinamento regular
dessas práticas para a manutenção do bem-estar e da funcionalidade do corpo do/da
idoso/idosa. Além de torná-los mais eficazes, o prazer em praticar uma atividade física resulta
da satisfação de necessidade biológica (ser ativo) ou da percepção de sucesso no
desempenho de habilidades em desafio ao ambiente, possibilitando mais envolvimento das
pessoas com o mundo social e o mundo da informação. Por outro lado, os programas de
ativação motora, ao envolverem todo o sistema muscular de forma generalizada, abrangem
também a memória, que, submetida a programas de treinamento, pode auxiliar os mais velhos
a organizarem suas vidas e assim sentirem-se competentes, satisfeitos e autodeterminados.
Resulta dessa circularidade um afeto positivo pela vida. Acrescentam-se a essa dinâmica, a
sabedoria e as especialidades (níveis de conhecimento especializado num domínio
selecionado) como possibilidades compensatórias importantes na velhice.
Desse resultado positivo é possível obter um envelhecimento bem-sucedido, que para
alguns é uma utopia, para outros uma possibilidade e uma realidade concreta e satisfatória,
nas palavras de Shakespeare: Há homens que nunca parecem envelhecer. Sempre
mentalmente ativos, sempre prontos para adotar idéias novas; satisfeitos e, contudo, querendo
mais; realizados e, contudo, cheios de aspirações, sabem gozar o melhor do que há e ser os
primeiros a descobrir o melhor do que há de vir.
O envelhecimento psíquico, paralelamente às mudanças físicas que ocorrem durante o
processo de envelhecimento, é um processo extraordinariamente complexo, muito influenciado
por fatores individuais. Enfocar-se-ão, aqui, as principais alterações no cérebro amadurecido
em algumas das funções mentais dessa condição senescente: a inteligência, a memória, a
personalidade/identidade (estes aspectos estão diluídos e permeando todo o texto).
2.1 - INTELIGÊNCIA FLUÍDA E INTELIGÊNCIA CRISTALIZADA
A medida mais importante das funções superiores do cérebro é a da inteligência. O
estudo da inteligência no idoso deve avaliar separadamente seus múltiplos aspectos, pois as
modificações que ocorrem no envelhecimento não são globais. Schaie (1990) relata que
praticamente nenhum indivíduo apresenta deterioração em todas as habilidades mentais até os
80 anos. 75 % dos indivíduos de 60 anos manterão seus níveis de funcionamento por mais de
sete anos em ao menos 80% das funções mentais. Os indivíduos testados aos 81 anos
mantiveram seus níveis em 50% das funções. Os dados obtidos não mostram evidências de
diferenças entre os sexos nas alterações intelectuais relacionadas ao envelhecimento. No
contexto dos modelos multifatoriais da inteligência, a distinção entre inteligência fluida e
cristalizada é uma das mais produtivas criações organizacionais e conceituais próprias para
trabalhar os domínios da inteligência (capacidades intelectuais) que circulam na literatura do
curso de vida.
A distinção entre um tipo e outro de inteligência, fundamentada em pesquisas e
verificadas por testes, é oferecida por Cattell-Horn, para quem a inteligência fluida constitui-se
no processamento básico da informação; refere-se à capacidade de raciocinar, perceber a
relação entre objetos, criar novas idéias e adaptar-se a mudanças (organização da informação
em situações concretas). Adquire seu ponto máximo na adolescência (ápice aos 25 anos),
começando, a partir daí, o seu declínio gradual. Já a inteligência cristalizada (aumenta durante
toda a vida), constitui-se no processo do conhecimento cultural; baseia-se no produto da
educação (acúmulo de informações), no conhecimento e na experiência que os indivíduos
adquirem no seio sociocultural (apud, Baltes, 1995).
Baltes (1995) acrescenta uma distinção entre os dois constructos idealizados e amplia a
conceituação original da teoria de Cattell-Horn, propondo nova formulação: inteligência fluídamecânica e a inteligência cristalizada-pragmática. Nesse esquema, a mecânica cognitiva reflete
a arquitetura neurofisiológica do cérebro resultante do processo da evolução e é desse fato que
decorre o relativo prejuízo do funcionamento do sistema de processamento básico da
informação na medida em que se envelhece. A pragmática cognitiva depende da influência de
fatores socioculturais, conhecimentos e informações que as culturas oferecem sobre o mundo e
os assuntos humanos que os indivíduos adquirem como participantes de um processo de
socialização associado à cultura. O progresso da cristalizada-pragmática está ligado à
possibilidade de especialização cognitiva em domínios selecionados de atuação como a
sabedoria e a revisão da vida.
Baseado nessa posição teórica, o autor assume que os dois aspectos da inteligência do
idoso apresentam diferentes trajetórias de desenvolvimento. A mecânica-cognitiva e a
inteligência fluida, captadas pela velocidade e precisão no processamento da informação
(coleta e utilização de informações novas), demonstram declínio associado à idade desde o
início da meia-idade. Entretanto, em face às circunstâncias culturais e pessoais positivas há
evidências crescentes de que pode-se esperar estabilidade e até desenvolvimento da
pragmática-cognitiva, verificada, por exemplo, por meio de testes de vocabulário, de
conhecimento especializado ou de compreensão verbal.
As pesquisas de Baltes (1995) sobre os domínios da inteligência se complexificam e,
surge, então, a teoria da sabedoria das pessoas mais velhas. Nesse ideal teórico, a sabedoria
é defendida como:
[...] um sistema de conhecimento especializado. Especificamente, vemos a
sabedoria como um sistema altamente desenvolvido de conhecimento relativo
a procedimentos e relativo a fatos, e de julgamento para lidar com o que
chamamos de pragmática fundamental da vida. A pragmática da vida diz
respeito a assuntos de vida importantes, mas controvertidos. Envolve
conhecimento e julgamento sobre o curso, variações, condições, conduta e
significado de vida (p.41).
As idéias centrais de Baltes (1995) estão alinhavadas de modo tal, que a sabedoria dos
mais velhos e velhas é considerada como um crescimento, uma especialização na pragmáticacognitiva na vida adulta (inteligência cristalizada). Engloba critérios que indicam essa
capacidade no que se refere ao conhecimento sobre a condição da vida (imprevisibilidade e
finitude biológica), sobre a sua origem, sobre os fatores e condicionamentos culturais que a
moldam, sobre como lidar com problemas complexos e sobre como se organiza a vida de tal
maneira que se possa interpretá-la e imprimir-lhe significado (conhecimento amplo relativo a
fatos
e
procedimentos,
contextualismo
do
curso
de
vida,
relativismo
e
incerteza/imprevisibilidade).
A sabedoria foi a preocupação de toda uma vida para Paul Baltes, do Instituto Max Planck, em
Berlim. O estudioso desenvolveu pesquisas com diferentes coortes populacionais com
objetivos direcionados a uma elaboração teórica da sabedoria. Em um de seus estudos, Baltes
descobriu que pessoas mais velhas (média de 72 anos) tinham um desempenho tão bom
quanto o dos voluntários jovens (média 32 anos) ao lidarem com resolução de problemas
sociais (componente importante da sabedoria). Uma pessoa mais velha saudável tem
desempenho inferior quanto à aferição mecânica-cognitiva, mas, por outro lado, na aferição da
sabedoria, os escores são superiores. Ressalta Baltes (1994) que o recorde mundial em
conhecimentos e habilidades relativo à sabedoria pode perfeitamente ser alcançado por
alguém que está vivendo a última fase da vida, desde que tenha sido afetado por
circunstâncias favoráveis e facilitadoras à emergência da sabedoria e que não tenha sido
atingido por nenhuma patologia cerebral (p.36).
Baltes investigou também o funcionamento intelectual de pessoas idosas e bem idosas que
participaram do estudo sobre o envelhecimento em Berlim (516 pessoas cuja idade variava
entre 70 e 103 anos, com uma média de 85 anos). Foi realizada uma bateria de testes para
avaliar cinco habilidade cognitivas: o raciocínio, a memória, a inteligência fluída, a rapidez de
percepção e a inteligência cristalizada (conhecimento). Obteve-se como resultado uma grande
variação entre os participantes – outra indicação de que as pessoas envelhecem em ritmos
diferentes (o envelhecimento é sempre processual e singular) e de que um declínio geral não é
uma conseqüência inevitável do envelhecimento.
A manutenção da eficiência mental dependerá do nível de intelectualidade do indivíduo
(Morris, 1991). A educação e o aprendizado contínuo aumentam a capacidade de reserva
cognitiva, graças aos efeitos que produzem na estrutura e funcionamento cerebral. Há que
ressaltar que a educação não envolve, necessariamente, apenas o aprendizado tradicional, ou
seja, não envolve apenas qualificações acadêmicas. Experiências socioculturais, em qualquer
idade, podem compensar as limitações da educação formal (em oportunidade e conteúdo),
podendo abranger desde o conhecimento de como coordenar a preparação de eventos
comemorativos até a administração e o gerenciamento de investimentos na bolsa de valores. A
educação, entendida nesses moldes, passa a ser um poderoso determinante da velhice bemsucedida, que, pelo caráter social e dinâmico, deve ocorrer durante toda a vida (Telford, 1976).
As atividades intelectuais desempenhadas no passado impõem-se no presente,
delineando uma forma mais rica e variada de experenciar o novo estado de ser com a chegada
da velhice (Restak 1999). Contrapondo a essa noção de permanente movimento e estímulo
intelectual, Simone de Beauvoir (1990) lembra os trabalhadores manuais, que, segundo a
autora, passam muito tempo sem nada fazer. Há, nesse sentido, uma alta porcentagem de total
inatividade entre os velhos. E, com relação a isso, pode-se falar também num “turbilhão de
decadência” (p.334). A autora ainda completa o pensamento afirmando que a polivalência de
interesses dos sujeitos é um processo mediador e facilitador na ressignificação de papéis
sociais: os indivíduos cuja velhice é mais favorecida são aqueles que têm interesses
polivalentes. Uma readaptação é mais fácil para eles do que para outros. Se é politicamente
engajado, um sábio que viu diminuir suas atividades sempre encontra um meio de atuar (ibid.
p.555).
A inatividade acarreta uma apatia que mata todo o desejo de movimento. A indiferença
intelectual e afetiva do homem idoso pode reduzi-lo a uma total inércia. (ibid. 556). Por outro
lado, em oposição, maior quantidade de atividades realizadas, seja de qual for a natureza, traz
melhoria ao conjunto de suas funções, inclusive as intelectuais, e, conseqüentemente, a
manutenção da eficiência mental. Um ambiente estimulante pode prevenir a degradação da
inteligência global que normalmente surge por volta dos 70, 80 anos de idade (Morris, 1991).
Embora todos os processos cognitivos estejam intimamente relacionados, as alterações
de memória no idoso têm recebido especial atenção dos pesquisadores.
2.2 - MEMÓRIA: DA PERFORMANCE INTELECTUAL À FUNÇÃO SOCIAL
A memória é a faculdade mental que mais sofre com o envelhecimento, e é também a
que causa maior preocupação, uma vez que aquilo de que não se pode lembrar não existe,
seja para elucidar uma questão, para resolver um problema ou para dar veracidade a um
conceito.
O estudo das funções da memória requer a adoção de modelos teóricos do
funcionamento desse sistema. Para a análise da memória relacionada ao envelhecimento
utiliza-se, preferencialmente, o modelo linear, o qual apresenta a memória dividida em três
tipos: memória primária (ou imediata) – tem uma reserva de capacidade limitada e não se fixa
sem repetição; memória secundária (ou de fixação) – responsável pelo armazenamento de
informações recentes; memória terciária (ou de evocação) – armazena as informações bem
aprendidas, mais antigas e pessoais.
Vários estudos têm sido realizados, a partir desse modelo, no sentido de avaliar e
quantificar as alterações no processo mnêmico que ocorrem com o envelhecimento. A mais
alterada é a memória que implica a formação de novas associações, como por exemplo, a
aquisição de uma nova língua. Um ponto relevante a ser destacado é a diferença existente,
sobre na perda das memórias entre intelectuais e trabalhadores braçais. Destaca-se para os
intelectuais um grau inferior de perdas. Trabalhos intelectuais e artísticos11 podem ser
realizados sem limite de tempo e, ainda, podem lhe conferir a seu autor um status especial e
superior, porque certos setores da sociedade difundem a sabedoria da experiência (Morris,
1991). Resultados obtidos dessas investigações demonstram um declínio geral, com a idade,
na velocidade de recuperação (retardamento) das várias reservas de memória. Verifica-se
declínio maior na memória secundária causada pelo retardo nos sistemas sensório-motores
relacionado à idade. Esse retardo observado não afeta sensivelmente as capacidades de
memória sensorial, primária ou terciária. (Siegler & Poon, 1992). Entretanto, os ganhos no
domínio da inteligência prática, referentes à organização e ao manejo do ambiente podem
compensar as perdas cognitivas decorrentes do envelhecimento.
Não é possível prever quando e como as alterações de memória relacionadas ao
envelhecimento vão surgir, mas pode-se atribuir a elas uma função decisiva no processo
psicológico total, como Ecléa Bosi (1994) esclarece quando afirma:
[...] a memória permite a relação do corpo presente com o passado e,
ao mesmo tempo, interfere no processo “atual” das representações. Pela
memória, o passado não só vem a tona das águas presentes, misturando-se
com as percepções imediatas, como também empurra, “desloca” estas
últimas, ocupando o espaço todo da consciência. A memória aparece como
força subjetiva ao mesmo tempo profunda e ativa, latente e penetrante, oculta
e invasora (p.45).
11
A exemplo, apresentam-se aqui casos de homens e mulheres (intelectuais e artistas) que figuram a
história com suas notáveis representações de velhice dinâmica e bem-sucedida. Charles Chaplin,
após um longo trabalho de setenta anos dedicados ao cinema, morreu lúcido aos 88 anos (1997).
Platão morreu com 81 anos, escrevendo. Sófocles se aproximava dos 90 anos quando escreveu sua
tragédia Édipo Rei e faleceu com quase cem. Michelangelo, com a idade de 71 anos projetou a
Basílica de São Pedro. Faleceu aos 89 anos e quatro dias antes do seu falecimento pintava a famosa
Pietà inacabada do Palácio Sforza, em Milão. Goethe resolveu escrever a segunda parte de sua
célebre obra Fausto, quando completou 82 anos. Até os últimos instantes de sua vida conservou a
criatividade, interesse pelas mulheres e disposição para o trabalho.
Assim, com o envelhecer, ocorre a dimensão psicológica do futuro. O idoso, por ter
vivido por mais tempo o passado, tem uma vivência de tempo passado. Difere do jovem, que
pode ver suas possibilidades e desejos adiados por terem chances outras no tempo. A
proximidade com a morte é percebida, não só pelo declínio, mas pela ausência de convívio com
pessoas do mesmo grupo etário – sensação pervasiva de finitude. Ao idoso não é permitido
pensar num “depois” já que o “depois” da velhice é a morte (Ramadam, 1984).
Para a antropologia, interessa muito toda a discussão que circunda a velhice, no que
tange às representações sociais, aos sujeitos do envelhecimento, às classificações etárias e às
modificações nos códigos de valores. A memória e a lembrança aparecem com ênfase
reforçada. Ferreira (1998) faz uma análise da memória no espaço social e afirma:
[...] discutir o papel da memória no processo de envelhecimento significa,
pois, abordar o locus privilegiado de construção da identidade do ser velho e
as estratégias de afirmação nos espaços sociais. Refletindo todo um universo
de representações e significados, a memória atualizada pela categoria
lembrança constitui, ela própria, uma representação que os sujeitos fazem de
sua própria vida (p.208).
Assim, num recorte analítico, a memória, sempre acionada no presente, é vista como
uma ligação forte entre o indivíduo e seu mundo, disposta na interface entre o indivíduo e o
social. A idéia de um indivíduo desmemoriado vem sempre associada com a idéia de seu
deslocamento do mundo dos significados sociais, de sua fragmentação como sujeito, em
decorrência da perda de sua história pessoal, de sua trajetória social, de suas referências de
pertencimento. Essa idéia de falta de memória (capacidade associativa), assimila-se à
deterioração entre a ligação do ser individual e o social, o comprometimento da pessoa social e
o marco do ingresso no universo dos socialmente alijados.
Sabe-se que a memória vem estruturada por categorias sociais que configuram sua
moldura social. Os depoimentos do sujeito evocador não têm sentido senão relacionando-os
com o grupo do qual faz parte, pelo fato de este necessitar de um quadro de referência. A
lembrança vem ao presente, traduzida em linguagem (veículo primeiro de socialização das
lembranças), reelaborando e ressignificando o passado evocado. Na velhice o contato com os
idosos se apresenta muito mais como ato de escuta do que propriamente um diálogo, pois a
evocação do tempo pretérito se dá com maior ênfase. Os idosos, obscurecendo o momento
presente – mecanismo de fuga do momento atual - tendem a supervalorizar e manter a
memória ligada a fatos passados, que aconteceram em uma época de plenitude e de aceitação.
Essa tendência talvez seja a forma que muitos velhos encontram para tentar manter a própria
valorização.
As lembranças12 dos velhos e velhas são evocadas a partir de mecanismos externos que
desencadeiam no pensamento uma atitude convidativa de lembrar os atos e fatos do passado,
provocadas por situações do presente. O maior número de nossas lembranças nos vem quando
nossos pais, nossos amigos ou outros homens no-las provocam (Bosi, 1994, intro VIII).
A respeito da lembrança e da freqüência de sua evocação, há que se pensar também
nos efeitos opressores que os mecanismos do sistema sociocultural exercem sobre os sujeitos.
A hipótese que se pode verificar na sociedade em que vivemos, afirma Bosi (1994), é a que o
homem ativo (independente de sua idade) se ocupa menos em lembrar, exerce menos
freqüentemente a atividade da memória, ao passo que o homem já afastado dos afazeres mais
prementes do cotidiano se dá mais habitualmente à refacção do seu passado (p.63). Com o
12
Para Ecléa Bosi (1994), a lembrança é a sobrevivência do passado. O passado, conservando-se no
espírito de cada ser humano, aflora à consciência na forma de imagens-lembrança (p.53).
sujeito da velhice o processo se repete com mais ênfase. Daí ser possível relacionar a velhice
às perdas sociais, principalmente com a chegada da aposentadoria, que, com o desligamento
do mundo produtivo, também faz desligar dos valores sociais, vivendo os sujeitos, portanto,
mais de lembranças do que de idealizações de projetos prospectivos. Portanto, as identidades
se constroem e se afirmam no mundo vivido, vivificado e experenciado e é do passado que os
velhos se nutrem. Essa união promove a idéia do EU individualizado, caracterizado a partir dos
papéis que irão dimensionar essa identidade.
Considerando o caráter livre da memória e ao mesmo tempo sinalizando as interferências
que alteram as lembranças contidas nela, pode-se dizer que as alterações do ambiente atingem
a qualidade íntima da memória. Seguindo essa trajetória, Halbwachs interliga a memória da
pessoa à memória do grupo, e esta última à tradição, que é a memória coletiva de cada
sociedade.
O caráter livre, espontâneo, quase onírico da memória é, segundo
Halbwachs, excepcional. Na maior parte das vezes, lembrar não é reviver,
mas refazer, reconstruir, repensar, com imagens e idéias de hoje as
experiências do passado. A memória não é sonho, é trabalho. Se assim é,
deve-se duvidar da sobrevivência do passado, “tal como foi”, e que se daria
no inconsciente de cada sujeito. A lembrança é uma imagem construída pelos
materiais que estão agora, à nossa disposição, no conjunto de
representações que povoam nossa consciência atual. Por mais nítida que nos
pareça a lembrança de um fato antigo, ela não é a mesma imagem que
experimentamos na infância, porque nós não somos os mesmos de então e
porque nossa percepção alterou-se e, com ela, nossas idéias, nossos juízos
de realidade e de valor. O simples fato de lembrar o passado, no presente,
exclui a identidade entre as imagens de um e outro, e propõe a sua diferença
em termos de ponto de vista (apud, Bosi, 1994, p.55).
Ao lembrar, cada sujeito busca realizar, agora, aqui no presente, o que representa tal
ocorrência ou atitude no passado. Essa interação que emoldura as memórias é justamente a
moldura social, que, quando solicitada, traz a cena na rememorização (em diferentes
situações). Os idosos procuram encontrar nexo entre o próprio indivíduo e os significados
subjacentes nas novas ações e quando se vêem distanciados da experiência vivida e presos a
um contexto historicamente marcado por alterações, pela imposição constante do novo sobre o
antigo, do presente sobre o passado, se percebem fora do contexto, ou seja, alijados da
sociedade. Ampliando essa reflexão, Ferreira (1998) completa o pensamento, afirmando que,
se a memória é justamente identificada com sensibilidades, inscrita, portanto, no campo da
subjetividade, ela não se cristaliza na permanência pura e simples, mas é constantemente
renovada pelos novos sentidos e significados que adquire no momento contemporâneo (p.221).
Se, para Bosi (1994), a função social do velho é lembrar e aconselhar, Bobbio (1997)
assume, definitivamente esse papel, ao fazer recomendações pertinentes e desejáveis na
obtenção de um envelhecimento satisfatório. O autor reafirma a importância da memória, do
lembrar, do relembrar, das lembranças e das recordações como atitudes impulsionadoras do
bem viver.
Concentremo-nos. [...]. Percorramos de novo nosso caminho. As recordações
virão em nosso auxílio. No entanto as recordações não aflorarão se não as
fomos procurar nos recantos mais distantes da memória. O relembrar é uma
atividade que não exercitamos com freqüência porque é desgastante e
embaraçosa. Mas é uma atividade salutar. Na rememoração encontramos a
nós mesmos e a nossa identidade. [...] Cumpre-nos saber, porém, que o
resíduo, ou o que logramos desencavar desse poço sem fundo, é apenas
uma ínfima parcela da história de nossa vida. Nada de parar. Devemos
continuar a escavar! Cada vulto, gesto, palavra ou canção, que parecia
perdido para sempre, uma vez reencontrado, nos ajuda a sobreviver (p.55).
A memória, nesse sentido, toma vulto de história viva e sua preservação reivindica a
construção da identidade social. Cada fato ou imagem resgatada do passado pelos mais
velhos tende a ter um significado especial porque essa história nada oficial fala sempre das
origens e da identidade dos sujeitos. Firma-se, aqui, um valor social e relacional para a
reminiscência.
A entrevista que se segue ilustra o pensamento deste estudo, o qual defende a idéia de
que além de ser possível manter uma velhice ativa é, também necessário preservar a memória
dos idosos. Entretanto, viabilizar a manutenção da atividade na velhice é uma ação que deve
ser incrementada a partir de uma verdadeira demanda social em benefício dos idosos (que já
são muitos), pois neles existem grande potencial, força de trabalho e liberdade de expressão.
Finalizando, quando voltam à entrevista, após uma pequena pausa, inicia-se um “bate
bola” (dinâmica televisiva), que consiste em perguntas e respostas rápidas, quase que sem
tempo de formulação técnica. As perguntas eram evocadas por vocábulos iniciados com a letra
M (mania, mentira, medo, mito, etc.).
A cada breve pergunta, prontamente surgia uma curta resposta. Duas das respostas
impressionaram mais. Para o vocábulo mito, a resposta foi Tônia Carrero, com a justificativa de
sua imortalidade diante do espelho e da sua arte. Num segundo momento, mais surpresa ainda,
a palavra mentira recebia como resposta um dos sonhos mais antigos da humanidade – a
juventude eterna.
Na verdade, ao dialogarem na entrevista, fica clara a significação fria e estática da
velhice percebida e assumida por um velho próprio. Esse significado, carregado de sutilezas e
de máscaras jovens, não abranda os sentimentos amargos que acompanham a velhice,
impingidos pela força da tradição, do hábito, da história. São incorporações que se estabelecem
no sujeito como amálgamas que vão se solidificando ao longo de toda a história de vida.
De outra maneira, pode-se dizer que o maravilhoso mítico do passado reacende
fagulhas emotivas das lembranças adormecidas e faz brotar das rugas da história o poder
rejuvenescedor das utopias e dos desejos silenciados. Conseqüentemente, se não houver
aceitação da velhice, da forma como hoje é concebida, os mais velhos/velhas conseguem
implementar projetos de vida, reestruturá-los de acordo com suas necessidades e
possibilidades e, assim, dar prosseguimento aos desejos de viver bem.
As doces lembranças anunciadas pelo ator ao reviver o passado, tão bem descritas na
poesia selecionada, são realçadas captando, nos prenúncios da ilusão, a poeticidade de um
viver onde o novo e o velho se conjugam. Essa capacidade de rememorar o passado faz com
que o homem velho se mantenha ligado, porém não preso, harmonicamente, com o brilho, a
ludicidade e o sabor da festa de momentos anteriores. É a possibilidade de reatar,
intensamente, os fios que deixaram marcas no vivido.
O tédio e a indiferença que encobrem o sujeito envelhecido são sugeridos ao longo do
tempo, pela criação e legitimação de signos, estigmas e estereótipos negativos que exercem
pressão sobre os atores sociais. Bom seria se se pudesse trabalhar a velhice poeticamente,
tentando recuperá-la de modo criativo, pela força expressiva (vivenciada), explicativa e
discursiva do próprio velho.
2.3 - CUIDADANDO DA SAÚDE PSICOLÓGICA
DEPRESSÃO: Doença que mais acomete os idosos
Dentre os principais distúrbios mentais do idoso está a depressão e é ela um dos mais
importantes problemas de saúde dos mais velhos, alcançando índices que variam de 20 a 25%
na população idosa.
Para maiores esclarecimentos, procede-se inicialmente a uma análise sobre o
inadequado e confuso emprego do termo depressão. Segundo Gus (1990), o termo depressão
pode referir-se: a) à sintomas depressivos, b) a reações depressivas ou depressões reativas e
c) à doença depressiva.
O sintoma depressivo está vinculado a estados de tristeza ou alterações de humor
básico, com intensidade e duração suaves, e, normalmente, não merece tratamento
especializado. Por outro lado, as reações depressivas (transtornos afetivos) são representadas
pelos sinais somáticos como a alteração do padrão do sono, a perda da libido, a tristeza severa,
pessimismo, fadiga, anorexia, constipação intestinal, que surgem, concomitantemente, à
ocorrência de eventos como doenças físicas (perda da visão ou de um membro essencial) e
psíquicas importantes ou eventos relacionados a problemas morais, socioeconômicos de difícil
solução (atinge grande parte dos aposentados) ou ainda a morte do cônjuge ou de pessoas
muito próximas com largo laço afetivo. A preocupação e a sensibilidade ao perigo causam
retraimento diante de situações desafiadoras. Essas situações, consideradas por muitos como
naturais, podem agravar o processo de declínio do idoso, levando-o, em muitos casos, ao
estresse. Essas reações depressivas desaparecem quando o indivíduo adapta-se à nova
condição de vida, pois obtendo-se resultados desejáveis, recupera-se a auto-estima.
Entretanto, os sintomas físicos no indivíduo idoso merecem especial atenção porque as
alterações psicofísicas confundem-se com os chamados sintomas de depressão obtidos a partir
dos dados empíricos de indivíduos deprimidos jovens. Shroots e Birren (1990) salientam que a
desorganização de ritmos biológicos pode ocorrer em idosos, mesmo a partir de estímulos
considerados pouco importantes para os indivíduos jovens (apud, Stoppe e Louzã, 1999). O
indivíduo com alterações de ritmos biológicos é mais susceptível a doenças físicas e distúrbios
psíquicos como a depressão. Já a doença depressiva, refere-se a condições patológicas e
alterações clínicas. Nesse caso, a hereditariedade, a etiologia e a patogenia têm forte influência
nas manifestações depressivas e o início dos sintomas é, em geral, rápido.
No levantamento realizado sobre as causas que levaram os idosos a procurarem pelo
Projeto AFRID/UFU, entre os maiores motivos encontra-se a depressão, com grande vantagem
sobre os demais (outros motivos: problemas relacionados com a coluna vertebral, osteoporose,
hipertensão).
Essa incidência de sintomas de depressão é particularmente significativa em pessoas de
65 ou mais anos, sendo que mais de três quartos delas não são tratadas ou recebem
tratamento inadequado. Blazer (1992) afirma que episódios de depressão maior ocorrendo pela
primeira vez na velhice são comuns e nem sempre recebem tratamento em tempo hábil (apud.
Stoppe e Louzã 1999). A apresentação atípica da doença depressiva no velho leva médicos e
pacientes a não considerar a presença de distúrbio afetivo acompanhante ou atribuído
exclusivamente a causas somáticas, o que pode levar à cronicidade por falta de tratamento. A
coexistência de patologias e estresse psicossocial são fatores de risco.
Estudos epidemológicos sobre depressão têm demonstrado que, além da idade, o sexo
e o estado civil são fortes fatores de risco que levam à depressão. Percebe-se a maior
prevalência desse distúrbio entre viúvos e divorciados em relação aos outros grupos etários,
sem distinção de sexo.
Bromley (1990) afirma que a depressão no idoso é uma resposta não anormal às
múltiplas perdas e estresses associados aos envelhecimento. Esse distúrbio inclui desolação,
diminuição da atividade física, empobrecimento da saúde, restrição de oportunidades e
desligamento, na maioria das vezes total, das relações socioeconômicas. As medidas
terapêuticas para o tratamento são as mesmas, incluindo-se aqui as atividades físicas, embora
as causas das alterações no bem-estar sejam diferentes entre os indivíduos idosos e os mais
jovens.
A ocorrência de quadros depressivos de início precoce e tardio remete a uma importante
diferenciação. Essas duas formas de depressão nos idosos apresentam significativas
diferenças clínicas e evolutivas entre si. A depressão de início tardio (surge pela primeira vez na
velhice) apresenta particularidades mais biológicas ou ambientais específicas (alterações na
morfologia e função cerebrais) do que genética - não há história familiar de depressão. Além
desses componentes, as doenças crônicas associadas ao envelhecimento e de características
incapacitantes, como a artrite reumatóide, doença de Parkinson e doença de Alzheimer, estão
associadas a maior freqüência de sintomas depressivos e depressão (Stoppe e Louzã, 1999,
p.91).
O número de estudos é relativamente pequeno no que tange á relação entre atividades
físicas e depressão.
Martinsen (1994), numa revisão de 12 estudos sobre experiências clínicas e atividades
físicas realizada com sujeitos com idade variando entre 17 e 60 anos, comenta os dados e
afirma que todos os estudos indicam a atividade física no combate à depressão, ressaltando
que esta é mais eficaz do que qualquer outro tratamento psicoterápico observado em distúrbios
depressivos leves e moderados. Para os distúrbios de depressão severa, depressão
melancólica ou nos distúrbios bipolares, os efeitos das atividades físicas são limitados. O autor
salienta, ainda, ser a atividade física um forte aliado no combate à depressão; um coadjuvante
importante junto aos diversos processos de tratamento psicoterapêutico, entretanto não deve
ser entendida como uma única forma de tratamento (apud Okuma, 1998).
Bons exemplos dessa relação entre depressão e atividades físicas podem ser
encontrados nos relatos dos informantes pertencentes ao projeto AFRID/UFU:
Eu sempre fui muito alegre. Gostava de estar no meio de muita gente,
receber visitas e tudo mais. De uns tempos para cá me senti sozinha,
desamparada e sem vontade... de nada... até mesmo de levantar da cama (não
era acordar, não, porque eu quase não dormia). [...] Comecei a fazer atividades
físicas aqui e depois de um tempo o meu mundo, aos poucos, foi me retomando
[...] e eu pude voltar a ser eu mesma. [...] Hoje sinto vontade de viver (Luzia, 75
anos).
Depois que perdi meu marido, depois de 40 anos “bem juntinhos”, eu
fiquei meio perdida. Fiquei com um sentimento de vazio e aí... o médico disse
que era depressão. Comecei a esquecer as coisas, não queria mais arrumar a
casa (para quê ou para quem?). [...] Agora, as coisas estão melhorando. Adoro
vir aqui. Encontro gente, faço exercícios [...] Olha, filha, ocupo deliciosamente
minhas tardes e esqueço minha solidão (Lourdes, 67anos).
Eu tive câncer no útero há um ano. Quando recuperei da cirurgia (foi
muito grande, sofri muito, não quero nem lembrar),não queria viver. Acho que a
doença mexeu comigo, fiquei depressiva. Agora que meu médico me liberou
para fazer hidroginástica, sinto que tudo está sendo recuperado na minha vida.
Faço até aula de dança de salão (Carmem, 66 anos).
3 - O ENVELHECIMENTO E A DIMENSÃO SOCIAL DO SER
O destino dos velhos e velhas no mundo do capital
Vivemos hoje num mundo globalmente interligado, no qual todos os fenômenos tendem a
agrupar-se (biológicos, psicológicos, sociológicos e ambientais) e não podem mais ser
considerados independentes ou isolados. Essa organização totalizadora vem garantindo maior
expectativa e qualidade de vida para os mais velhos.
Esse prolongamento da existência, em termos de ciclo de vida, tem aproximado o
Brasil, nos estratos superiores, aos EUA, aos países europeus, onde prevalece a tríade:
formação, produtividade (lucros) e inatividade remunerada (aposentadoria).
Nas regiões mais desenvolvidas a tendência de alongar o período de formação é
bastante forte, e com ela, seguem maiores investimentos na saúde, na educação, no lazer,
dentre outros. É o período em que o consumo predomina, salvo nas populações mais carentes
que são sacrificadas em decorrência da baixa renda (em larga escala, inclui-se, aqui, a
população idosa).
Já o período de produção é cada vez mais encurtado pelo progressivo interesse
competitivo existente nas grandes empresas, em busca de maiores benefícios econômicos.
Nessas condições, prevalece a cessação da atividade, a aposentadoria (discutida no item
subseqüente), vista como uma inatividade mal remunerada, que convive numa grande
proximidade com o subemprego, até mesmo com o desemprego13.
Estudos não confirmam a idéia de que com o envelhecimento as condições sociais
pioram, mas os dados disponíveis são de países com estratos sociais muito além do que se
pode observar no Brasil (Estados Unidos, países Europeus). O aumento progressivo do
número de idosos na população pode levar a importantes alterações no quadro social, entre os
quais dois são de grande vulto: mudança no comportamento estereotipado da sociedade em
conceber e admitir o(a) velho(a) num convívio comum, bem como maiores dificuldades em
13
Os dados levantados pela pesquisa mensal de emprego do Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística (IBGE) indicam que a taxa de desemprego brasileira gira em torno de 8%, em
contraposição aos parcos 4% dos Estados Unidos. Empurradas pela concorrência, as pessoas estão
trabalhando cada vez mais, por mais tempo como forma de garantir o emprego e não serem
dispensadas. Segundo o mesmo Instituto, a média de horas trabalhadas bateu nas 41 por semana no
final dos anos 90, contra 39 do começo da década. Significam oito ou dez horas a mais por mês,
cerca de 100 horas por ano. Outro dado relevante refere-se aos 71% da população brasileira
economicamente ativa que trabalha mais de 40 horas por semana, sendo que para 39% a jornada é
de pelo menos 45 horas. Na escala dos países que mais trabalham (em média de horas por ano), o
o
Brasil está na linha de frente (1927 h.), ocupando a posição de 8 lugar, atrás dos Estados Unidos
(1966 h.) e na frente do México (1909 h.). Tem-se na dianteira Cingapura (2307 h.) e, ocupando o
último lugar, Nova Zelândia (1838 h.), segundo a OTI – Organização Internacional do Trabalho (dados
referentes aos anos de 1996 e 1997). Os dados levantados no Brasil indicam um salto gigantesco
para um prazo tão curto. Historicamente, as jornadas de trabalho têm-se alterado de acordo com o
período sócio-político vivido, juntamente com as conquistas sindicais. Na Inglaterra pós-Revolução
Industrial, o normal era o operário esfalfar-se no mínimo sessenta horas por semana, sem descanso
remunerado. No começo do século XX, reduzir essa jornada tornou-se o objetivo número 1 dos
sindicatos. Em 1938, estabeleceu-se a jornada de quarenta horas nos Estados Unidos. Em seguida foi
a vez de a Inglaterra estabelecer o mesmo limite e batizá-lo, instituindo-se a “semana inglesa”. No
Brasil de Getúlio Vargas, os trabalhadores ganharam direito a férias, descanso semanal remunerado e
jornada de 48 horas. O forte movimento sindical dos anos 80 conseguiu implantar na Constituição de
1988 o teto de 44 horas de trabalho semanal. Na época, ainda se pensava que o futuro era trabalhar
cada vez menos e ganhar cada vez mais. Nada disso aconteceu. Os movimentos sindicais perderam
força, a produtividade ideal aumentou vertiginosamente e a tecnologia, embora tenha de fato
diminuído alguns afazeres, aumentou outros (Aida Veiga, Revista Veja de 5 de Abril de 2000, p. 124125). Assim, o mundo do trabalho instiga as pessoas a lutarem por carreira, mais benefícios, salários
ascendentes, melhor status social, mesmo que para isso seja preciso trabalhar mais. Esse avolumado
de horas de trabalho para muitos pode resultar em garantia de emprego e, em contrapartida, pode se
transformar em desemprego para outros tantos.
relação à diminuição de aporte financeiro, fundamentalmente, com o advento da
aposentadoria. Veras (1994), a esse respeito, afirma que a pobreza acompanha o
envelhecimento da maioria dos sujeitos do processo: Apesar da heterogeneidade dos idosos,
uma característica recorrente da maioria das sociedades é que as pessoas idosas são, em
geral, menos aquinhoadas economicamente do que os adultos mais jovens da mesma
população (p. 56). No Brasil, como já foi dito, a taxa de desemprego geral é alta e a taxa de
idosos sem emprego vem aumentando. Muitos são os fatores que contribuem para que isso
ocorra: garantia de fundos de seguridade social para os idosos (principalmente em áreas
rurais), aumento do êxodo rural pela diminuição das atividades agrícolas; e, ainda o fato de as
pessoas idosas apresentarem menor qualificação educacional. A somatória desses requisitos
contribui para a acelerada exclusão desses sujeitos do mercado de trabalho.
3.1 - POLÍTICA NACIONAL DO IDOSO
Lei 8.842 de 04 de Janeiro de 1994
Para amenizar as dificuldades, tanto públicas quanto privadas (Hannah Arendt 1989), a
velhice, como realidade conhecidamente estigmatizada, passa a ser tratada de forma mais
contundente, face aos problemas gerados pela expansão demográfica idosa, a partir da
elaboração da Constituição Federal, com a Lei n. 8.842/94 de 4 de janeiro de 1994. Essa lei
dedica-se à implantação da Política Nacional do Idoso, a qual foi influenciada pelas
recomendações do documento Políticas Para a Terceira Idade redigido por volta dos anos 90
produzido pela Associação Nacional de Gerontologia (ANG).
A Lei 8.842 representa um passo inicial no sentido de reconhecer a importância desse
segmento populacional. A política, conforme regulamentada em lei, visa tratar as questões dos
idosos pautadas pelos Princípios das Nações Unidas em favor das Pessoas de Idade e foi
estabelecida na reunião geral da entidade, de 3 de dezembro de 1982. Esses princípios, os
quais foram amplamente utilizados pela PNI – Política Nacional do Idoso. O texto relaciona 18
itens e os cinco princípios básicos são: Independência – idosos devem ter acesso a comida,
água, abrigo, roupas e cuidados médicos; devem ter oportunidade de trabalho e estudo e
devem morar em sua própria casa o maior tempo possível. Participação – as pessoas de idade
devem permanecer integrada à sociedade, participando da elaboração e da implementação das
políticas que afetem diretamente o seu bem-estar; devem desenvolver maneiras de servir à
comunidade, dividir seus conhecimentos com os mais jovens e devem poder formar
movimentos ou associações de idosos. Bem-estar (cuidados) – as pessoas de idade devem ser
beneficiadas pela proteção dos familiares ou da comunidade, por serviços legais e de
assistência social, por planos de saúde; devem ter seus direitos humanos respeitados.
Desenvolvimento (auto realização) – idosos devem estar aptos a buscar oportunidade para
desenvolver seus potenciais e ter acesso aos recursos educacionais, culturais, religiosos e de
recreação que a sociedade ofereça. Dignidade – idosos devem viver com dignidade e
segurança, livres de explorações e maus-tratos; devem ser tratados com justiça,
independentemente de idade, sexo, raça ou origem étnica e dependência/incapacidade14.
A lei no 8.842/94 é um documento de extensas recomendações condizentes com as
necessidades emergentes da população idosa, e, sobre ela, neste momento, abordar-se-ão
alguns pontos mais importantes. Demarcando cronologicamente o início desta fase da vida, a
lei estabelece medidas e ações:
Art. 1o - A política nacional do idoso tem por objetivo assegurar os direitos sociais do
idoso, criando condições para promover sua autonomia, integração e participação efetiva na
sociedade.
14
Plano de Ação Internacional de Viena sobre o Envelhecimento - ONU.
Art. 2o - Considera-se idoso, para os efeitos desta Lei, a pessoa maior de sessenta anos
de idade.
A determinação da Lei urge ser entendida pelas diferentes esferas governamentais
(Federal, Estadual e Municipal), devendo dar maior sentido aos artigos 229, 23015 da
Constituição Federal, que não vinculava a cidadania à gente idosa, embora a Carta Magna
tivesse recebido a alcunha de Constituição do cidadão.
A cidadania, de uma forma geral, se caracteriza por estar imersa em uma complexa rede
de relações, em processos econômicos, sociais e políticos de acordo com a evolução do próprio
homem (sujeito da história), em busca da definição de seus direitos. A colocação de Couvre
(1991) sobre essa relação é que ela:
[...] depende da ação dos sujeitos e dos grupos básicos em conflito, e
também das condições globais da sociedade. Ela pode permitir uma práxis
que coaduna os pólos da construção social: o do indivíduo e o da coletividade,
quando se observa que o exercício contemporâneo da cidadania tende a ter
por suporte a pessoa (suas necessidades e desejos), ao mesmo tempo que se
desenvolve via organismos sociais que têm por referência o coletivo. O
exercício da cidadania extravasa o da classe social, mas não deixa de
permeá-la, assim como permeia vários organismos sociais, movimentos
sociais em geral, e os ditos novos, como o ecologista, o pacifista, o feminista,
etc, determinadas gestões públicas, algumas ONGs, etc. (p.69).
Nesse sentido, o exercício da cidadania, é tanto uma luta individual e pessoal, como
uma organização social e coletiva, cabendo a ambas as partes cumprirem seus papéis,
dependendo, fundamentalmente, da correlação de forças políticas e econômicas para se
concretizarem. Se, por um lado, a cidadania é um direito de todos os cidadãos, por outro,
quando vinculada à pessoa idosa, fica comprometida por depender em demasia de organismos
sociais. O art. 3o , inciso I retrata a questão da cidadania dos mais velhos quando estabelece: a
família, a sociedade e o Estado têm o dever de assegurar ao idoso todos os direitos de
cidadania, defendendo sua dignidade, bem-estar e o direito à vida.
O texto da Lei enfatiza o processo de envelhecimento relacionando-o à sociedade em
geral, cabendo a todos interessar-se pelo conhecimento de si próprio procedente de
informações que serão adquiridas durante toda a trajetória de vida, independente de sexo, cor,
raça, idade, origem étnica, formação acadêmica, nível sócio-econômico. Ressalta, ainda, a
importância da educação permanente como forma de preparo e amadurecimento para os
enfrentamentos comuns às sucessões de estados ou de mudanças que o envelhecimento pode
acarretar. Assim diz o art. 3o, inciso II: – o processo de envelhecimento diz respeito à
sociedade em geral, devendo ser objeto de conhecimento e informação para todos. A lei
determina, também, de forma categórica, que o idoso não deve sofrer discriminações de
qualquer natureza (inciso III). Resta a todos saber como essa regulamentação será conduzida
pelos setores sociais, embora não se possa negar o seu pleno vigor. Essa Lei é a primeira do
gênero que o país edita, com grande empenho e esforço das entidades gerontológicas,
15
O Art. 229 da Constituição Federal diz: Os pais tem o dever de assistir, criar e educar os filhos
menores; e os filhos maiores têm o dever de ajudar a amparar os pais na velhice, carência e
enfermidade.
Art. 230 – A família, a sociedade e o Estado têm o dever de amparar as pessoas idosas, assegurando
sua participação na comunidade, defendendo sua dignidade e bem-estar e garantindo-lhes o direito à
vida.
associações que mobilizam os grupos dos mais velhos, os Conselhos de Idosos e as
Universidades para a Terceira Idade para divulgá-la, esclarecê-la e torná-la mais conhecida.
Em se tratando, mais especificamente dos Conselhos Municipais do Idoso nas Políticas
Locais de Envelhecimento, nota-se que lhes falta uma regulamentação no texto da Lei
incluindo o funcionamento desses órgãos permanentes, o que se justifica pelo fato de o grande
contingente dos mais velhos estar nos centros urbanos. Os artigos que tratam desse assunto
na Lei 8.842/94 advertem sobre as funções e competências de cada Conselho sem uma
caracterização mais definida em termos de operacionalização efetiva nos municípios.
Determinam os artigos 6o e 7o, respectivamente: Os conselhos nacional, estaduais, do Distrito
Federal e municipais do idoso serão órgãos permanentes, paritários e deliberativos, compostos
por igual número de representantes dos órgãos e entidades públicas e de organizações
representativas da sociedade civil ligadas à área; compete aos conselhos de que trata o artigo
anterior a formulação, coordenação, supervisão e avaliação da política nacional do idoso, no
âmbito das respectivas instâncias político-administrativas.
Determina também a Lei que as pessoas de mais idade, membros interessados da
categoria, que são os próprios idosos participem da formulação das políticas que as afetem,
através de suas organizações representativas (art.4o, inciso II). Essa é uma proposição a ser
divulgada amplamente.
Há nesse documento uma preocupação em valorizar a longevidade bem como a
qualidade de vida dos mais velhos. Ele recomenda que o atendimento dispensado aos idosos
deve ter caráter atento e criterioso. Adverte, ainda, sobre o cuidado em entendê-los nas suas
singularidades, resguardando as condições físicas e materiais necessárias para que possam
desfrutar de vida plena e saudável, segura e satisfatória, junto às famílias e na comunidade
onde vivem.
A Lei formula uma recomendação pertinente no que diz respeito à implementação do
sistema de informações que permita a divulgação da política dos serviços oferecidos, dos
planos, programas em cada nível do governo (art. 4o , inciso VI). Entretanto, há necessidade
de, além de revelar as intenções, como quer a Lei, divulgar amplamente a PNI - Política
Nacional do Idoso, suas medidas e seu alcance social.
Trata-se, no art. 4o, inciso I, da viabilização de formas alternativas de participação,
ocupação e convívio do idoso, que proporcionem sua integração às demais gerações. Nesse
caso, a proposta de atuação se aproxima do enfoque positivo do envelhecimento, no qual se
minimizam as perdas e potencializa-se a experiência de vida, havendo, portanto, através de
novos projetos de vida, chances de novo engajamento existencial e social. Se os setores
governamentais viabilizarem e implementarem essa recomendação, então é possível crer que
os idosos se transformem em atores políticos e lutem por direitos que afetam diretamente seu
bem-estar. A criação de um ator político, segundo Debert (1990), implica o estabelecimento de
laços sociais entre os indivíduos heterogêneos numa multiplicidade de outros aspectos. O
idoso como ator social converteu a solidariedade entre gerações e a dimensão moral das
políticas em uma questão central de cidadania (p.230).
O artigo 10o, no inciso III, estabelece medidas e ações na área da educação. Este, por
conseguinte, é de interesse particular, por se tratar de um eixo temático que delineia toda a
proposta deste estudo. De forma geral, verifica-se a preocupação em atender as demandas
mais emergentes da clientela no sentido de a) adequar currículos, metodologias e material
didático aos programas educacionais destinados a idosos; b) inserir conteúdos voltados para o
processo de envelhecimento, de forma a eliminar preconceitos e a produzir conhecimento
sobre o assunto; c) desenvolver programas educativos, especialmente nos meios de
comunicação, a fim de informar a população sobre o processo de envelhecimento e, por fim, d)
universalizar o acesso às diferentes formas do saber.
Essas proposições ensejam o pensamento desta pesquisa ao ressaltar a educação como
aparato informativo necessário para que os indivíduos tomem consciência de seu novo estado
e aproveitem as vantagens criadas para a velhice na sociedade contemporânea. Os programas
e currículos escolares (diferentes graus e níveis) revelam a ausência de disciplinas que
abordarem o processo de envelhecimento, bem como a velhice como categoria e estado, e
assim não favorecem maior produção e apreensão da temática. Acredita-se que, quanto mais
conhecimento especializado o indivíduo obtiver ao longo da vida, mais é possível valorizar a
idéia de que a educação deve ser uma atividade constante (permanente) e não somente
ocorrer em uma fase inicial da vida. É por meio dela que se pode, sobretudo, ressignificar o
envelhecimento diluindo o sentido amargo da inatividade em favor da idéia de que esse é um
momento propício a aprendizagens múltiplas, sejam elas quais forem.
No mesmo art. 10o, encontra-se, no inciso IV, item c, uma referência aos PPAs –
Programas de Preparação para a Aposentadoria16. Assim diz a Lei: criar e estimular a
manutenção de programas de preparação para a aposentadoria nos setores público e privado
com antecedência mínima de 2 anos antes do afastamento. Os PPAs são uma manifestação
concreta das novas práticas e concepções contemporâneas de entender o processo de
envelhecimento, o trabalho e a aposentadoria. São implantados pela área de recursos
humanos e serviço social e se destinam a trabalhadores em fim de carreira, entre 40 a 65 anos.
Stucchi (1998) faz um reflexão positiva sobre os PPAs, quando afirma que os programas
propõem-se a preparar os trabalhadores mais velhos para uma nova etapa da vida, que deveria
contemplar o planejamento do momento adequado para o abandono da vida produtiva na
empresa. Esse planejamento, quando feito de maneira correta, pode transformar a violência em
prêmio, propiciando ao aposentado uma nova experiência, um momento privilegiado para a
realização e a satisfação pessoal (p.37).
O inciso VII do art. 10o, que trata da área de cultura, esporte e lazer, refere-se, nos ítens
de a a e, a questões relacionadas a essas dimensões prazerosas promotoras de alegria,
satisfação e bem-estar (tão necessárias ao envelhecimento bem-sucedido): a) garantir ao idoso
a participação no processo de produção, reelaboração e fruição dos bens culturais; b)
proporcionar ao idoso o acesso aos locais e eventos culturais, mediante preços reduzidos, em
âmbito nacional; c) incentivar os movimentos de idosos a desenvolver atividades culturais; d)
valorizar o registro da memória e a transmissão de informação e habilidades do idoso aos mais
jovens, como meio de garantir a continuidade e a identidade cultural; e) incentivar e criar
programas de lazer, esporte e atividades físicas que proporcionem a melhoria da qualidade de
vida do idoso e estimulem sua participação na comunidade.
Analisando detalhadamente essas proposições, entende-se que propiciar acesso aos
locais e eventos culturais somente pela redução do preço é esgotar a análise apenas pelo lado
prático e racional da proposta legal, embora seja uma ação valorativa da categoria. Há uma
grande defasagem cultural relacionada às atividades extra-cotidiano para essa população,
portanto a iniciativa por parte dos idosos é incipiente, se se considera a fragilidade formativa de
hábitos culturais no passado, principalmente nas cidades do interior. A exemplo, pode-se citar
os participantes do Projeto AFRID/UFU, que, por desconhecimento ou por força cultural
vinculada à geração, na sua grande maioria nunca foram a um teatro ou show (muitos dizem
não entender o que vem a ser cultura, muito menos evento cultural). Alguns dizem conhecer
cinema, mas não o freqüentam por não entenderem as histórias. Outros não conseguem
acompanhar as legendas e outros tantos dizem não ter sentido ficar olhando uma tela “com
gente falando outra língua”. Dizem preferir a televisão.
A Lei parece esquecer que o reflexo do déficit cultural e educacional do passado toma
força na velhice (principalmente nas classes menos privilegiadas), porque, além do
16
Nos últimos 10 anos tem-se crescido o número de empresas que vêm implantando PPAs: em 1980,
duas ofereciam esse tipo de programa; em 1993, a Associação Brasileira das Entidades Fechadas de
Previdência Privada já registrava 89 empresas interessadas ou iniciadas no programa de implantação
dos programas de preparação para a aposentadoria. Para maiores informações ver IBGE, 1992.
distanciamento das informações técnicas do progresso, estão também os preconceitos com o
novo, o atual e o moderno por parte destes sujeitos. Urge a propagação de campanhas
educacionais que favoreçam um envelhecimento bem-sucedido, pois como diz o poeta
Fernando Pessoa, só se tem certeza de duas datas: [...] a de minha nascença e a de minha
morte. Entre uma e outra cousa, todos os dias são meus. De fato, todos os dias são nossos,
mas a liberdade de vivê-los como se gostaria é que deve ser posta em questão.
No item d a memória é valorizada, devendo ser registrada e transmitida aos mais jovens
que, inevitavelmente, estão inseridos num universo de profundas alterações, cujo ritmo
vertiginoso desafia a permanência de valores e representações sobre o mundo vivido. Trata-se
de reavaliar o flutuante deslocamento dos significados sociais, com relação aos conhecimentos
experenciados e formulados pelos mais velhos, como meio de garantir a continuidade e a
identidade cultural. Por conseguinte, muitas das funções socioculturais dos mais velhos ficam
limitadas nas relações intergeracionais porque, atualmente, em função da rápida mudança de
valores sociais e transformações tecnológicas, a comunicação e a identidade entre jovens e
velhos tem diminuído.
Um dos aspectos que contribui na perda desse reconhecimento simbólico da velhice é,
segundo Birman (1994), a passagem da memória social de uma dimensão de evocação
(importância da tradição oral) para a de registro de informação (sistema materializado nos
arquivos, livros, filmes, computadores). Diminui-se o valor da experiência dos mais velhos na
medida em que [...] a memória coletiva tende a não mais se fundamentar na potencialidade de
transmissão e de evocação dos valores da ancestralidade (p.20).
O item e trata do lazer, esporte e atividades físicas, especificamente. É uma indicação
chave para esta pesquisa em questão, tendo em vista o Projeto AFRID/UFU, que,
fundamentalmente, atende essa determinação da Lei, pelo fato de valorizar as atividades
físicas, recreativas e de lazer, as quais proporcionam participação na comunidade e estimulam
a qualidade de vida dos mais velhos. É inegável o valor dessa prática regular para a
manutenção e produção de corpos saudáveis. Talvez o maior benefício seja o grau de
independência que as pessoas fisicamente capazes revelam em sua luta pela sobrevivência do
corpo-sujeito no mundo. Não será demais lembrar que, se essas atividades apenas servirem
para distrair o idoso, ocupar seu tempo livre ou remodelar a idéia de rejuvenescimento corporal,
estar-se-á reproduzindo fielmente os interesses de uma sociedade estratificada, em que a
classe dominante normatiza valores de rendimento e incentiva a competição.
Enfim, em se tratando da Lei, num momento em que o Brasil enfrenta problemas
socioeconômicos críticos, que clamam por união política em favor da qualidade de vida dos
sujeitos do processo, surge o aceno de um rol de ações que podem impedir que a velhice deixe
de ser um intenso e perverso problema social. A PNI construída e alicerçada a partir de
demandas sociais é um documento importante para a população idosa, cabendo à Lei 8.842/94
a sua regulamentação e aos conselhos nacional, estadual, do Distrito Federal e os Conselhos
Municipais do Idoso sua urgente implementação. Nas disposições gerais, essas questões
podem ser tratadas e viabilizadas, pois o art. 9o estabelece: Os recursos financeiros
necessários à implantação das ações afetas às áreas de competência dos governos federal,
estaduais, do Distrito Federal e municípios serão consignados em seus respectivos
orçamentos.
3.2 - SITUANDO O SER NO SOCIAL: O idoso brasileiro e a sociedade atual
O dia do idoso é comemorado no dia 27 de setembro. Esse marco no calendário
comemorativo surgiu por iniciativa da Associação Luiza de Marilac, uma entidade internacional
composta por jovens que se dedicam às pessoas idosas carentes. Essa associação tem como
objetivo propagar uma relação de respeito e de valorização do idoso. Para Souza (1992) a
demarcação temporal ligada a São Vicente de Paulo já denota discriminação, pois o santificado
homem revolucionou a prática da caridade, em sua época. Daí decorre a forma paternalista e
assistencialista de tratar os idosos, o que, conseqüentemente, descaracteriza sua ação social,
gerando a exclusão; e ao tratá-los diferentemente dos demais, acaba-se por segregá-los. Na
verdade, a forma como a sociedade é organizada, com seu modelo econômico excludente é
que marginaliza prematuramente as pessoas de 40 anos, à medida que lhes tira as chances no
mercado de trabalho.
A sociedade atual vive um momento de transição. A passagem de um país jovem para
uma nação com crescente número de idosos causa grande desconforto e preocupação em
todos os setores e todo o pessoal envolvido e faz refletir, como o fez Ecléa Bosi (1994): O velho
não tem armas. Nós é que temos que lutar por ele (p.81). Lutar por eles porque, além de
desarmados, foram (ainda são) oprimidos, despojados e banidos pela sociedade. Luta-se por
eles porque são a fonte que emana toda a essência da cultura; ponto onde o passado se
conserva e o presente se prepara (p.18). A tendência atual na forma de ver a velhice decorre
mais da luta de classes (conflito social) do que do problema geracional. Prossegue a autora: é
preciso mudar a vida, recriar tudo, refazer as relações humanas doentes para que os velhos
trabalhadores não sejam uma espécie estrangeira (p.81). No sentido de alterar o quadro vigente
é que as minorias têm lutado e reagido contra os processos sociais discriminatórios que atacam
tanto mulheres, negros e velhos/velhas (dentro do padrão de envelhecimento normal/natural). E
quanto à questão do idoso deficiente físico e/ou mental?17 Se os velhos considerados “normais”
são segregados da sociedade, podendo vivenciar sérias privações afetivas e materiais, como
será no caso do(a) velho(a) deficiente? Com certeza será mais traumático porque há uma dupla
vulnerabilidade. Se por um lado, aliena-se o sujeito por sua condição de velho, por outro ele é
discriminado por carregar consigo a marca da deficiência que o distancia dos sujeitos comuns.
E se esse sujeito ainda for mulher e negra? Haverá mais elementos estigmatizadores? Será ele
ainda mais segregado? Não é intenção do estudo abordar a temática sobre esses aspectos,
entretanto não há como negar sua visibilidade refletida na sociedade atual. Esses são alguns
pontos para uma reflexão mais profunda.
Assim, fica demonstrado o desarmamento dos mais velhos diante dos constrangimentos
e limitações dos quais não tem domínio, nem controle. Mas, à medida que novas conquistas
sociais são incrementadas, mais conhecimento e informação são incorporados, o que, de certa
forma, torna as pessoas mais velhas mais conscientes de suas potencialidades e de seus
direitos, podendo, então, lutar conscientemente por causa própria.
Bosi (1994), tratando da segregação social dos sujeitos envelhecidos, leva todos a acreditar
que a sociedade capitalista desarma o velho mobilizando mecanismos pelos quais oprime a
velhice, destrói os apoios da memória e substitui a lembrança pela história oficial celebrativa
(p.77). Sua função social de lembrar e aconselhar é desprezada e usurpada pela sociedade que
regula e mantém a produção seletiva. Por outro lado, a conversa evocativa de um velho é
sempre uma experiência profunda. Para quem sabe ouvi-la, é desalienadora, pois contrasta a
riqueza e a potencialidade do homem criador de cultura com a mísera figura do consumidor
atual (p.83).
17
Constata-se, atualmente, um crescente número de deficientes idosos. Essa é uma boa notícia, porque,
por exemplo, há cerca de 40 anos a expectativa de vida de um portador da Síndrome de Down não
ultrapassava os 17 anos. Problemas cardiológicos e distúrbios digestivos estavam associados à
deficiência mental, sendo os principais motivos de morte. Fatores como tratamento médico e a
senilidade precoce aumentaram o contingente de excepcionais idosos. O processo de envelhecimento
para eles começa aos 25 anos, quando aparecem sintomas de doenças como arteriosclerose, Mal de
Alzheimer, artrose e outras. Como o tempo entre as fase do ciclo de vida desses sujeitos é curto, as
famílias se assustam quando descobrem que não se prepararam para conviver com a velhice dos
filhos deficientes. Se não houver amadurecimento suficiente poderá haver grandes conflitos de ambas
as partes.
De uma maneira geral, os valores e os significados construídos na contemporaneidade
desconfiguram, de forma lenta, dolorosa e intermitentemente as organizações do passado, as
lembranças transmutadas em sabedoria, enfim, a existência viva das memórias, colocando-as à
margem da ação. Afirma Bosi (1994):
A sociedade rejeita o velho, não oferece nenhuma sobrevivência à
sua obra. Perdendo a força de trabalho ele já não é produtor nem reprodutor.
Se a posse, a propriedade, constituem, segundo Sartre, uma defesa contra o
outro, o velho de uma classe favorecida defende-se pela acumulação de
bens. Suas propriedades o defendem da desvalorização de sua pessoa. O
velho não participa da produção, não faz nada: deve ser tutelado como um
menor. Quando as pessoas absorvem tais idéias de classe dominante, agem
como loucas porque delineia assim o seu próprio futuro (p.77).
Essa sociedade que discrimina a(o) velha(o) faz grandes investimentos nos jovens, por
representarem a força de trabalho produtiva da nação, e encara os maiores de 60 anos como
pessoas nas quais não compensa investir. A moral oficial discursa sobre o respeito em relação
ao velho, entretanto, dissimuladamente, tenta convencê-lo a se afastar dos cargos de
liderança/direção, alienando-o da autoridade e do poder, em favor dos mais jovens. A
sociedade hoje, [...] como afirma Simone de Beauvoir (1994), só concede lazeres aos velhos
tirando-lhes os meios materiais para aproveitá-los (p.550). Falta humanidade e reconhecimento
para com os sujeitos que, hoje envelhecidos, deixam de fazer parte do processo. São alijados,
na verdade. Não podem mais participar da construção da riqueza e do desenvolvimento da
sociedade (a mesma que o excluiu), tornando-se sujeitos socialmente indiferentes para as
gerações subseqüentes. Há que se duvidar que os promotores da verdadeira história (os
idosos), mesmo os privilegiados, sentem o gozo do momento presente de forma que os
satisfaça. A ruptura é drástica e penosa. Os que escapam à miséria e ao desconforto têm que
administrar um corpo que se tornou frágil, predisposto à fadiga, freqüentemente deficiente ou
tolhido por dores (p.550). Assim conclui Simone de Beauvoir (1990), analisando a angústia que
atormenta os idosos, provocada pelo desprezo e descompromisso social e pelas agruras e o
descompasso com que o corpo velho se transforma.
Distanciados dos processos decisórios, não tendo mais poder sobre o mundo e
condenados ao enfado, os idosos tendem ao isolamento. Deixando de conviver em um mundo
social dinâmico e amplo (enquanto ser que produz), no qual experimentava as situações ativas
da vida, transpondo-se para um outro mundo reservado, restrito e diferenciado, as pessoas
idosas não encontram espaços para uma convivência sadia e natural na sociedade. Observase, com freqüência, a transferência do interesse para o interior de si mesmo, em detrimento do
interesse para a ação e para os objetos do exterior, o que Erikson denomina “integração do eu”.
(Moragas, 1997). Procuram, através do isolamento refugiar-se de si, dos outros e do mundo;
fogem dos seus desejos, anseios e projetos de vida e convivem com mágoas dilaceradoras,
ideologicamente projetadas pelo meio social. Simone de Beauvoir (1990), atestando sobre
essas questões discriminatórias que avassalam o sentimento humano, sugere uma
compreensão do vazio que acompanha a pessoa mais velha: Quando não tem mais no coração
nem interesse, nem curiosidade, nem afeição, então, o indivíduo está maduro para a ambição
vazia e para a vaidade que é correlativo dela. Na maior parte das pessoas, vê-se estabelecer
um ciclo vicioso, proclama a autora, que continua seu pensamento: a inação desencoraja
curiosidade e paixão, e nossa indiferença despovoa o mundo no qual não percebemos mais
nenhuma razão para agir. A morte instala-se em nós e nas coisas (p.556).
A esse distanciamento que a sociedade provoca e a maioria dos mais velhos admite, Hanah
Arendt (1989) expõe questões pertinentes ao estabelecer uma diferenciação entre o homem
privado e público. A autora empenha-se em afirmar que o homem privado é a ausência do outro
[...] não se dá a conhecer, e portanto é como se não existisse (p.68). Nesse sentido, se no
espaço privado o velho não se dá a conhecer, vive isolado e, por privar-se de outros, priva-se
também de direitos, por outro lado, no espaço público, o velho se identifica e convive com seus
pares, se organiza em torno de interesses comuns movido pela solidariedade e pode reivindicar
consciente e conjuntamente seus direitos de cidadão.
Entre jovens e velhos (conflito intergeracional), a relação é distanciada e marcada pela
indiferença. Parece que a relação torna-se intolerável, uma vez que se verificam preconceitos
ostensivos e velados em relação à competência idosa para o trabalho, para a vida social,
política e cultural, ou para simples convivência no lazer. A sua sabedoria e suas experiências
são dispensadas, quando não desprezadas, nessa sociedade que valoriza o novo e subestima
o antigo. A característica da relação do adulto com o velho é a falta de reciprocidade que pode
se traduzir numa tolerância sem o calor da sinceridade. Não se discute com o velho, não se
confrontam opiniões com as dele, negando-lhe a oportunidade de desenvolver o que só se
permite aos amigos: a alteridade, a contradição, o afrontamento e mesmo o conflito (Bosi 1994).
Dessa forma, a autora salienta a questão da tolerância com os velhos/velhas, entendida como
uma abdicação ao diálogo (porque se desacreditados, então não há motivo para escutá-los):,
melhor seria, enfatiza ela, dar-lhe o nome de banimento ou discriminação (p.78).
Mesmo no seio da família há uma intolerância camuflada aos mais velhos. Este passa
de responsável pela constituição e manutenção da família, de elemento integrador e gerador de
equilíbrio, respeito e sobrevivência dos membros do grupo, para apenas ser um elemento
desse mesmo grupo. Seus conselhos já não têm valor ou utilidade e melhor será (para muitos),
de acordo com a ideologia dominante, se passivos e abnegados forem. Bosi (1994) explicita o
comportamento do adulto no interior das famílias afirmando que a cumplicidade dos adultos em
manejar os velhos, em imobilizá-los com cuidados para “seu próprio bem”, utilizando-se de
atitudes autoritárias, além de serem arbitrárias, são, sobretudo, ações desumanas. A autora
continua descrevendo os processos incontidos dos mais jovens de subestimar e subjugar os
mais velhos, de submetê-los pela força a privativas situações, quando insistem em
[...] privá-los da liberdade de escolha, em torná-los cada vez mais
dependentes, “administrando” sua aposentadoria, obrigando-os a sair do seu
canto, a mudar de casa (experiência terrível para o velho) e, por fim,
submetendo-os à internação hospitalar. Se o idoso não cede à persuasão, à
mentira, não se hesitará em usar a força. Quantos anciãos não pensam estar
provisoriamente no asilo em que foram abandonados pelos seus! (ibid. p.78).
Essa última argumentação está formulada nos termos da Lei 8.842/94, no art. 4o , inciso
III, nas diretrizes da PNI, a qual ressalta a importância do convívio familiar íntimo para a
manutenção e/ou restabelecimento dos idosos, quando considera imprescindível a priorização
do atendimento do idoso através de suas próprias famílias, em detrimento do atendimento asilar
à exceção dos idosos que não possuam condições que garantam sua própria sobrevivência.
Encontram-se nos escritos de Simone de Beauvoir (1990) reflexões profundas e
detalhadas sobre a transição conflituosa sofrida pelos jovens adolescentes e a relação que se
estabelece entre estes e o sujeito de mais idade. Considera-se nesta análise o equilíbrio
crescente e decrescente das oportunidades, das perdas e ganhos com a idade, enfim apontase o significado da própria existência comungada com os valores socioculturais de cada época.
Assim argumenta a autora:
Com efeito. Se a existência não se transcende em direção a fins, se ela
recai inerte nela mesma, provoca aquela “náusea” que Sartre descreveu. Os
jovens freqüentemente a sentem: eles ainda não têm poder sobre o mundo,
estão reduzido a sua presença nua; para eles, assim como para o velho, o
mundo se cala; por meio de um círculo do qual parece impossível sair, esse
silêncio congela suas esperanças. Eu me aborreci duramente durante dois ou
três anos da minha juventude porque, egresso do universo da infância, ainda
não tinha entrado no dos adultos, não tinha acesso a nada, e não imaginava
que algo poderia algum dia solicitar-me. Entretanto, sob esse ponto de vista, há
uma grande diferença entre o jovem e o homem idoso; o primeiro não é
indiferente ao mundo; projetos confusos e desejos precisos o agitam: ele se
aborrece porque a sociedade, seus pais e sua situação cerceiam seus
impulsos. Assim que a opressão afrouxa, que se propõe uma abertura, que
ocorre um encontro ou um acontecimento, propício, o círculo é quebrado,
reencontra-se a curiosidade, retorna-se o prazer de viver. Ao passo que o velho
se aborrece porque as circunstâncias ou sua indiferença o desligaram de seus
projetos, e porque sua curiosidade extinguiu-se (p.563).
Essas crises de identificação verificadas nos diferentes estágios do ciclo de vida são
analisadas também por Bosi (1994), que destaca a dinâmica juvenil apenas como um período
de transição, não como declínio, como se observa nos mais velhos. Diz ela sentir o velho um
indivíduo diminuído, que luta para continuar sendo um homem. O coeficiente de adversidade
das coisas cresce: as escadas ficam mais duras de subir, as distâncias mais longas a percorrer,
as ruas mais perigosas de atravessar, os pacotes mais pesados de carregar. O mundo fica
eriçado de ameaças, de ciladas. Uma falha, uma pequena distração são severamente
castigadas (p.79).
Quando o quadro de alteração se aproxima com mudanças tensas e brutais, o idoso não
se vê enquadrado no processo, então surge (como já anunciado) a chamada “crise de
identidade”, acontecimentos que desequilibram a formulação da sua própria identidade e
sugerem uma reestruturação e/ou reformulação dos conhecimentos que a pessoa tem de suas
potencialidades físicas e mentais, das idéias, dos valores, dos significados das coisas e do
mundo, entre outros. A pessoa idosa, distanciada de sua identidade, desvinculada de um
conceito de circunscrição da realidade a quadros de referência (formulados no passado), ou
seja, da maneira como, em princípio todos os elementos que constituem o ego funcionam e se
articulam, se sente ultrajada, num conflito mais social que geracional (Moragas, 1997; Goldfarb,
1998).
O acelerado desenvolvimento tecnológico na atualidade com avidez invade o mercado
de trabalho, provocando necessidades drásticas de reajuste de pessoal, com especializações
apropriadas para o acompanhamento também acelerado da competitividade, da produtividade e
do lucro. Tudo se dá sem maiores discussões, em nome da expansão econômica e do
progresso. Mas que progresso é esse, que interessa ao consumo inesgotável e à destruição
dos valores e tradições culturais? Que evolução é essa, que para manter-se viva precisa negar
o passado? Nessa sociedade competidora, a lei da superação da geração mais velha pela mais
jovem é um ato humano? E os valores de reconhecimento e solidariedade entre elas?
A sociedade, com seus valores alterados, consegue hoje destruir a memória histórica e
viva dos idosos e com ela segue a morte de novos projetos de vida. Os idosos encolhem-se,
retraindo-se de seu lugar social causando um grande empobrecimento para todos. Essa
destruição faz os mais velhos sentirem-se como imigrantes perdidos no espaço (Magalhães
1998), pois, segundo Haddad (1986), na medida em que na sociedade industrial moderna o que
importa é produzir, os idosos são esquecidos o tempo todo porque não interessa a essa
sociedade investir em programas que não ofereçam retorno (p.32).
Atualmente, as mudanças no setor do trabalho conspiram contra as pessoas idosas
(Terceira Idade), ou seja, pessoas acima de 50 ou 60 anos, em termos de oportunidades
profissionais e manutenção de emprego, são negligenciadas e, naturalmente, são excluídas do
mercado de trabalho. Nessa época de desemprego, segundo Bosi (1994), os velhos são
especialmente discriminados e obrigados a rebaixar sua exigência de salário e aceitar
empreitadas pesadas e nocivas à saúde. Como no interior de certas famílias, aproveita-se dele
o braço servil, mas não o conselho (p.79)18.
Se, por um lado, enquanto trabalhadores ativos os idosos são esquecidos, por outro,
quando se desligam definitivamente ao se aposentarem, e já tendo absorvido os valores
ideológicos e juvenis da lucratividade e da eficácia, assumem o articulado comportamento
prescrito pelo poder social – se autodefinem como desqualificados, inúteis e “problemáticos”
com a chegada da velhice.
O depoimento que se segue, extraído de entrevistas realizadas com os participantes do
Projeto AFRID/UFU, é exemplar no que diz respeito à representação da velhice própria,
vinculada a estereótipos negativos impingidos ao consciente coletivo de uma determinada
população de uma sociedade:
[...] não tem problema... é assim mesmo que acontece com todos que
se aposentam. Ficamos esperando por este momento e quando chega é
assim... triste, pobre, até miserável e solitário ser aposentado. Como ficamos
decadentes com a chegada da idade, então, damos lugar aos meninos de
hoje. Coitados... eles são tão crianças; não sabem de nada. Vão ter que
aprender muita coisa e (o que é pior), sozinhos. [...] E ficar velho não é bom
não! Eu não quero arrumar namorada para mim, não! Velho dá muito trabalho!
Ela vai desistir logo de mim! (Sr. Sebastião, 71 anos).
A questão da velhice como autoconvencimento é perversa porque constitui em um
processo carregado de sentimentos político e existencial negativos, que coloca o indivíduo
como gestor de seus problemas, os quais, na maioria das vezes, são sociais e culturais, como
as baixas aposentadorias, as dificuldades de reinserção social, os preconceitos culturais com
relação à sexo, à vestimenta, ao isolamento, dentre outros. Essa postura de acomodação
dificulta, para os de mais idade, conscientizarem-se de que podem lutar por direitos que lhes
são próprios.
Para garantir esses direitos, a promoção da saúde e a qualidade de vida dos sujeitos
idosos, necessário torna-se extrapolar os limites da responsabilidade pessoal e atribuí-los à
dinâmica político-social dos tempos atuais.
Veras e colaboradores (1994) dizem a esse respeito:
Já é hora de nos estruturarmos para responder a mais esta importante
demanda social: a questão social do idoso, em face de sua dimensão, exige
uma política ampla e expressiva que suprima ou, pelo menos, amenize a cruel
realidade que espera aqueles que conseguem viver até idades mais
avançadas. Após tantos esforços realizados para prolongar a vida humana,
seria lamentável não se oferecer condições adequadas para vivê-la (p.07).
18
Hirshorn & Hoyer (1994) realizaram uma pesquisa com 197 empresas privadas e constataram que 94%
utilizavam aposentados em tarefas especializadas. Os autores, tentando analisar as razões por que as
empresas americanas passaram a contratar as pessoas mais velhas, concluíram: nas empresas de
grande porte tem-se elevada participação dos aposentados em cargos administrativos ou gerenciais.
Já nas empresas menores os aposentados são contratados mais para serviços inferiores (operários),
obtendo como justificativa o fato de os idosos não requisitarem treinamentos de alto custo e serem
mais acessíveis quanto às condições trabalhistas, enquanto os jovens reivindicam mais, são mais
suscetíveis a reclamações, são mão de obra mais cara e saem prematuramente das empresas (p.5058).
Após o enfoque dos aspectos biológicos, psicológicos e sociais que influenciam o
envelhecimento dos sujeitos, torna-se necessário discutir a aposentadoria como um
acontecimento, um marco social que atinge a todos de modo avassalador e conflitante. Nesta
parte do texto serão discutidas questões pertinentes ao tempo, trabalho, produção e
lucratividade.
3.3 - APOSENTADORIA COMO ACONTECIMENTO SOCIAL
Relações de trabalho, aposentadoria e tempo livre na nova realidade populacional
brasileira
A aposentadoria é um acontecimento extremo e brutal, normalmente associado à idade,
que acomete todos os trabalhadores e vários são os seus significados para o indivíduo que
envelhece. É a passagem da categoria de ativos para a inatividade remunerada (precária e
constrangedora), e, ainda, os velhos são considerados incapazes para defender com qualidade
seu encargo profissional. Significa, então, neste contexto, ter uma redução de recursos, o que
implica na redefinição do padrão de vida e/ou na busca de nova ocupação como meio de renda
complementar, além de acarretar conseqüentes danos psíquicos e morais.
A aposentadoria é um fato social novo, pois só a partir do século XX a maioria da
população assalariada no mundo inteiro passou a contar com a proteção da Previdência Social.
A exemplo do que ocorreu nos Estados Unidos e Europa, no Brasil foi a classe operária que
liderou a luta pela proteção do velho operário, luta que teve lugar no início neste século, até
meados dos anos 20, em favor da criação das Caixas e Institutos e da legislação
previdenciária.
Do processo do envelhecimento como subjetivação é possível verificar novas
singularidades estabelecidas pelas diferenças na multiplicidade e pluralidade de situações.
Supõe-se, nesse sentido, uma nova lógica, um outro tempo, porque são mediados pelos
significados dos sujeitos que os vivem. A aposentadoria, assim, pode ser vista como uma
estranha-em-nós. Desvinculada da processualidade profissional, ela é sempre desejada e
esperada, porém, na verdade, em muitos casos, os trabalhadores se afastam do mercado por
pressão de empregadores; pela aposentadoria incentivada (bônus convidativo), com objetivos
nítidos de redução e/ou renovação do quadro de funcionários; por motivo de saúde; ou por
incapacidade (menor proporção).
A decisão tomada (quando é possível opinar) com relação à aposentadoria retoma
questões básicas que podem interferir no ato de se aposentar: baixos salários (redução do
orçamento), perda de benefícios garantidos pelas empresas e instituições públicas ou privadas
(tickets alimentares, passe transporte, cesta básica, plano de saúde, dentre outros), além, é
claro, daquele sentimento, inerente a qualquer ser humano (de desprezo, de incompetência, de
desqualificação para o trabalho, de refugo), que inevitavelmente está relacionado à maneira
como é vivida e sentida a ação de desprendimento profissional no percurso institucional e/ou
empresarial.
Esse sentimento cambiante entre valores e tensões incorporadas pelo sujeito com o
advento da aposentadoria, como aponta Simone de Beauvoir (1990), traz consigo a própria
ambivalência que há, na maioria das vezes, no trabalho:
[...] que é ao mesmo tempo uma escravidão, uma fadiga, mas também
uma fonte de interesse, um elemento de equilíbrio, um fator de integração à
sociedade. Essa ambigüidade reflete-se na aposentadoria, que pode ser
encarada como grandes férias, ou como uma marginalização (p.325).
À medida que a nova condição se concretiza e a saída do mercado de trabalho se efetiva
o indivíduo, agora denominado inativo, tende a diminuir os seus contatos sociais e corre o risco
de mergulhar no vazio das relações, efeitos estes provocados pelo empobrecimento (perdas
salariais), pela baixa auto-estima e pela sensação de desqualificação.
No Brasil, essa redução salarial tem como agravante o grande achatamento na base da
pirâmide da camada dos trabalhadores, cujo salário é considerado um dos piores do mundo. A
condição econômica dos trabalhadores aposentados (inativos) é desalentadora, porque,
segundo Haddad (1992), cerca de 72% deles recebem apenas um salário mínimo.
O próprio termo inativo atribuído aos aposentados traz consigo um valor pejorativo. O
capitalismo, na velocidade crescente de aumentar o lucro, procura a todo custo aumentar a
produtividade. Nesta constante competitividade, que aniquila os velhos trabalhadores e
enaltece as qualidades dos jovens, é que a velhice se apresenta sempre distanciada,
negligenciada e em desarmonia com o mundo social. Abre-se um campo para preconceitos
sobre o potencial e a capacidade da população que se aposenta. A sociedade consegue
impedir os sujeitos de verem velhos e velhas como semelhantes. A esse respeito Veras e
colaboradores (1987) afirmam: A ideologia do saber atual é gerada pelo conhecimento técnicocientífico, dominado pelos jovens e que exclui quase que por completo o idoso. Muito poucos,
talvez somente alguns artistas, políticos e profissionais liberais, conseguem ser considerados
melhores nesta idade do que quando jovens (p.230).
De fato, a aposentadoria é um direito conquistado pelos trabalhadores, mas é
constantemente ameaçado pela desordem socioeconômica do país, no qual a realidade de
desemprego é algo lastimável. O medo que perturba os trabalhadores é o de não conseguirem
atingir o tempo da aposentadoria trabalhando, porque, se perderem o emprego quando já mais
velhos, sua reinserção no mercado de trabalho é quase impossível.
Para muitos aposentados, não mais ganhar a própria vida aparece como uma
decadência. O sentimento de desvalorização, comum à maior parte das pessoas idosas,
aumenta em número e grau nessa fase e é agravado, na maioria das vezes, pela precariedade
do salário. E este, percebido sem um “trabalho digno”, torna os sujeitos desajustados em
relação à sua própria percepção de homem ou de mulher público(a) e social. Decai, assim, a
auto-estima, alterando os valores, que, se antes eram fortalecidos pela força do trabalho, hoje
são aniquilados pela falta deste. Abordando esta questão, Simone de Beauvoir (1990) sustenta
que, se as pessoas aposentadas obtiverem uma formação crítica e política, podem considerar
a pensão como um direito adquirido, caso contrário, sem a devida compreensão do que venha
a ser cidadania, acolhem essa bonificação quase como uma esmola. Deixam-se levar pelas
agruras da vida, pelo enfraquecimento das forças materiais, esquecendo-se de que os
subsídios para uma sobrevivência digna foram conquistados ao longo de incansáveis anos de
trabalho decente, honesto.
Esse quadro de tensão permeia o estado de analfabetismo social no qual a maioria dos
sujeitos mais velhos vive. A situação tendeu a alterar-se quando o país, nos anos 90, passou
por transformações na Previdência Social19 e nas políticas de aposentadoria, marcadas pela
tendência à universalização desse direito. Os próprios aposentados e pensionistas foram os
responsáveis por essa mobilização, quando ocuparam as ruas (e a mídia), num movimento
unitário, com manifestações de protesto, cujos momentos mais marcantes foram a mobilização
pelos 147%, entre 1991 e 1992 (reivindicação redistributiva), a manifestação contra o arrocho
dos benefícios pagos pela Previdência Social e, por fim, contra o projeto de reforma da
Previdência Social do governo atual. Nesse período, as associações se organizaram em
Confederações e Federações e passaram a ser vistas pelo Estado, pelos políticos e pela mídia
19
A Previdência é um dos temas mais estudados na área de políticas públicas no Brasil. Para maiores
informações ver: Demandas Políticas versus Exigências Técnico-administrativas: A Questão da
Reforma da Previdência. Anpocs, GT. Cultura e Política, 1995.
como representantes legítimas das reivindicações, com reconhecida autonomia em relação
aos sindicatos e centrais sindicais20.
Os transtornos nas vidas das pessoas idosas com a chegada da aposentadoria são
inevitáveis. Como sua identidade está formulada a partir de sua profissão ou do trabalho diário,
ao romper esse vínculo o indivíduo se desagrega do mundo social. Na fase de vida ativa, o
trabalho tende a ser onipresente para os sujeitos, a ponto de confundir-se com a própria vida. É
pela identidade profissional que o indivíduo se vê partícipe da conjuntura social. O velho
incapaz de suprir suas necessidades representa sempre uma carga para a sociedade. Diante
de um tempo livre, conquistado e esperado, os idosos não conseguem administrá-lo, pois,
acostumados com os ditames do tempo cronológico dos relógios e das obrigações com o
trabalho formal, não encontram meios de se auto organizarem, tendo em vista o desânimo e os
sentimentos de tédio e de desvalorização que os acometem frente à atual situação. A
aposentadoria retira do indivíduo a identificação que durante anos lhe conferiu determinado
status e horizontaliza homens e mulheres num mesmo patamar rotulando-os de aposentados,
estado este, que a todos iguala.
De outra maneira, Simone de Beauvoir (1990) reforça a idéia da sociedade capitalista em
manter índices e graus elevados de valoração ao trabalho e ao lucro, o que, fundamentalmente
reafirma e conota a identificação profissional como realidade propulsora dos seres. Define
homem e mulher como indivíduos necessários para a produção e, ao mesmo tempo, manipula
os desejos, anseios, necessidades e valores de uma determinada classe. Diz a autora:
É através de sua ocupação e de seu salário que o homem define sua
identidade; ao se aposentar, perde essa identidade; um antigo mecânico não
é mais um mecânico: não é nada [...] Aposentar-se é, portanto, perder o lugar
na sociedade, perder a dignidade, e quase a própria realidade. Além disso, os
aposentados não sabem o que fazer do tempo livre, aborrecem-se (p.329).
Os indivíduos, na sua grande maioria, sem saberem preencher o tempo livre conquistado,
seguem trajetórias que levam à inatividade e ao isolamento, confirmando assim o valor
ambíguo da aposentadoria. Consequentemente à inatividade, surge a depressão que
marcadamente relaciona-se com o dinâmico movimento do passado.
Para esses sujeitos, a ociosidade21 pesa; mas o tema essencial do descontentamento é a
miséria com que passam a conviver. Como prêmio lhes é dado o tempo. Tempo do descanso,
do lazer, do devaneio. Isso faz pensar nas condições físicas, financeiras, psicológicas para a
utilização desse tempo prêmio, para o desfrute de tais oportunidades. Tem-se agora o que não
era possível antes - o tempo. Com as inúmeras reduções, declínios e perdas, como aproveitar
esse tempo de lazer, com prazer? Com qual condição financeira? (aquela da pensão irrisória?).
Com qual informação/educação sobre seus próprios direitos? Que lazer é esse que perpassa o
tempo de sobrevivência dos idosos?
Essas questões, mais que refletidas, devem ser analisadas de acordo com a legislação
brasileira, com a Política Nacional do Idoso, visando encarar seriamente as propostas e
mudanças sugeridas rumo a uma urgente implementação.
20
21
Segundo Simões (1998), os aposentados militantes autodenominam-se “a maior categoria do país” e
elaboram sua própria identidade política contrapondo-se, de um lado, aos grupos envolvidos com os
programas de terceira idade – classificados como “de lazer” e não “de luta” – e, de outro, aos ativistas
sindicais e trabalhadores da ativa – classificados como “corporativistas”, “economicistas”, como os que
“pensam que não vão envelhecer”, os que “querem manipular o aposentado”, os que desprezam a
experiência e a capacidade de organização e luta dos aposentados (p.32).
Ociosidade é um termo que pode ter significado negativo derivados do ócio: mãe de todos os vícios,
ocioso: desnecessário, pouco diligente. Estas acepções negativas não correspondem à importância
quantitativa e qualitativa que o lazer tem nas sociedades contemporâneas.
A reconfiguração do ser envelhecente, diante dessas proposições, poderá ser analisada
seguindo o pensamento de Simone de Beauvoir (1996), que descarta a idéia de aposentadoria
como tempo de início de lazer, pois é muito raro que o lazer permita o desabrochar de uma
vocação até então sufocada (p.329). A autora não despreza o direito ao lazer, mas não
encontra neste a dinâmica determinante de uma velhice bem-sucedida ou a qualidade
totalizadora do bem viver. A prática do lazer é um direito de qualquer cidadão, em qualquer
idade, em situações diversas, mas não deve transformar-se num “ópio do povo”. Numa
sociedade de massas, condicionadora de tantos aspectos do viver coletivo, as atividades de
lazer devem proporcionar uma oportunidade de realização pessoal livre e não há como negar
seu valor social e terapêutico inúmeras vezes comprovados por pesquisas e estudos.
Como alternativa, os velhos e velhas não conseguindo conviver na inoperância, buscam
um novo trabalho remunerado logo após o desligamento, e raras são as vezes em que o
conseguem. Em geral, não extraem desse novo trabalho as satisfações que lhes proporcionava
a profissão inicial. As atividades propostas normalmente não têm qualidade equivalente às
anteriores (salvo raras exceções minoritárias); as reduções orçamentárias são evidentes, as
condições de trabalho são precárias e desmotivadoras porque na realidade fogem dos padrões
almejados. Este não é, em geral, o caso dos participantes do projeto AFRID/UFU, tendo em
vista o avolumado contingente feminino que, por conseqüências geracionais, não realizaram
atividades extras, fora do lar, portanto não se enquadram na categoria dos aposentados, salvo
algumas contribuintes (cabeleireiras, massagistas). Em relação à clientela masculina, o número
não chega a ser significativo (10%) se comparado com o das mulheres e não exerce outras
atividades profissionais por precariedade na saúde. Há poucos, entre eles, que mantêm
trabalho liberal efetivo (donos de mercearias, bares, construtores de imóveis, barbeiros).
Entretanto, ocupar o tempo apenas porque está ocioso também não é a melhor saída.
Preencher espaços de tempo apenas para suprimir o tédio, a recusa do diálogo, o banimento e
a discriminação é fugir e reafirmar a incompetência própria e social. Novas formas de melhor
empregar o tempo devem ser incorporadas no cotidiano dos mais velhos, a partir de
preferências e eleições individuais, pois não há bem-estar emocional e psicológico distanciado
da atividade, seja ela qual for.
Falar em atividades remete a pensar em atividades físicas, as quais têm evidências de
implicações sobre a qualidade e expectativa de vida dos sujeitos. Portanto, a realização de
atividades sistêmicas ou regulares empresta significado e satisfação à existência, quer pelo
compromisso e responsabilidade social nela implícitos quer pela oportunidade de manter o
convívio social, ou quer, ainda, por valores preventivos, terapêuticos e lúdicos oportunizados
pelos exercícios físicos. (Neri, 1993, p. 60). A escolha das atividades deve seguir o estilo
próprio de cada idoso, de acordo com seus interesses e possibilidades. Espera-se que essas
atividades contribuam para reforçar o sentimento de valor pessoal, o bem-estar físico e a
dinâmica social entre pares.
Os programas para a Terceira Idade (a exemplo, o Projeto AFRID/UFU) criam ambiente
apropriados para que experiências de criação, autonomia e liberdade, que cada uma das
pessoas reconhece como possíveis, possam ser vividas coletivamente.
A ressignificação da velhice traz elementos que sustentam a continuidade efetiva de
uma educação permanente que surge, inevitavelmente, como possibilidades de informação,
valorização e acesso social.
Favorecer aos velhos/velhas condições de atingir uma velhice bem-sucedida, “bemeducada”, é dever das instituições governamentais, de toda a sociedade e familiares. É dar
condições de reapropriar com dignidade o sentido e o significado da velhice memoriosa,
revestida de sabedoria (conhecimentos experenciados e especializados), rumo a uma dinâmica
contínua e informativa.
Não se trata de preparar as pessoas para aceitarem sua condenação ao desemprego, a
não mais participação ativa, o desligamento profissional, o refugo de uma sociedade que preza
os valores da produtividade e da eficiência. Trata-se de dissociar a aposentadoria da idéia
desgastada da velhice, revelando que essa fase nada mais é que um intervalo entre a
maturidade e a velhice. A vida não se encerra na aposentadoria. Para além dessa etapa,
existem inúmeras outras coisas a serem realizadas que valorizam sensivelmente esse momento
da vida.

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