GT15 Violência, Segurança Pública e Direitos Humanos

Transcrição

GT15 Violência, Segurança Pública e Direitos Humanos
Anais do VIII Encontro da ANDHEP
ISSN: 2317-0255
VIII Encontro da ANDHEP
“Políticas Públicas para a Segurança
Pública e Direitos Humanos”
GT15
Violência, Segurança Pública
e Direitos Humanos
28 a 30 de abril de 2014
São Paulo – SP
Faculdade de Direito da USP
ISSN: 2317-0255
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Anais do VIII Encontro da ANDHEP
ISSN: 2317-0255
Direitos Humanos, Gênero e Violência
Lorena Sales de Almeida
(UFBA)
RESUMO
Este trabalho é um estudo sobre violência doméstica contra as mulheres na cidade
de Feira de Santana/BA, busca analisar a relação entre os diferentes tipos de
violência doméstica e a denúncia. A pesquisa foi executada em três momentos
compostos por Pesquisa de Vitimização, investigação na DEAM (Delegacia
Especializada de Atendimento à Mulher) e entrevistas com mulheres em situação de
violência. Portanto, este trabalho buscou investigar a relação entre vítimas e
agressores, os motivos que desencadearam as agressões, as percepções das
mulheres sobre a violência vivida, bem como as ocorrências registradas na DEAM.
Palavras-Chave: Violência Doméstica; Violência Contra a Mulher; Gênero; Feira de
Santana; Lei Maria da Penha.
INTRODUÇÃO
Este artigo é fruto do trabalho de conclusão de curso de Bacharelado em
Ciências Sociais, realizado na Universidade Federal do Recôncavo da Bahia. Os
principais objetivos deste trabalho foram identificar o perfil dos agressores e vítimas
que utilizaram a DEAM (Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher) para
resolver seus conflitos, tais como classe social, faixa etária e cor da pele; Investigar a
relação entre vítimas e agresores; Averiguar os motivos que desencadearam as
agressões e as percepções dessas mulheres sobre a violência experienciada. Este
estudo teve como locus a cidade de Feira de Santana/BA, Feira de Santana é um
município do estado da Bahia localizado na Mesorregião Centro Norte Baiano e na
Microrregião de Feira de Santana. Para realizar este trabalho delineou-se um estudo
que compreende três momentos distintos: I. .Pesquisa de Vitimização na cidade - esta
realizada através de um survey. A partir de uma amostragem domiciliar, com 615
questionários, envolvendo questões mais gerais sobre a segurança dos cidadãos
como relação com a polícia, violência e vitimização; II. Pesquisa na DEAM da cidade –
onde foram averiguados registros de violências domésticas por tipo e informações
sobre os envolvidos nos casos, além da realização de observações participantes na
instituição. III. Pesquisa em profundidade com mulheres que sofreram vitimização
direta – através de entrevistas semi-estruturadas, mulheres, que passaram por algum
tipo de violência doméstica e denunciaram, informaram sobre a dinâmica dos conflitos
vividos.
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As questões norteadoras deste trabalho foram investigadas neste conjunto que
envolve pesquisa quantitativa e qualitativa, porém as entrevistas em profundidade
tiveram papel incomparável para as análises sobre o fenômeno pesquisado. Neste
trabalho também foram levados em consideração as categorias raça e classe, visto
que as raízes do patriarcalismo oprimem sujeitos, que no contexto brasileiro e baiano,
se constituem de classificações múltiplas, por isso devem ser pensados em sua
interseccionalidade – neste caso – gênero, raça e classe.
UM TIPO PARTICULAR DE VIOLÊNCIA
A violência contra a mulher é todo ato de violência física, moral, sexual ou
psicológica praticado pelo homem, que de alguma forma prejudicam a mulher. Dentro
destas relações violentas pode-se categorizar diversos tipos de violência como a
doméstica, violência familiar, violência conjugal, o assédio e violência sexual que
podem se manifestar como violência física, violência moral, violência simbólica ou
violência psicológica. A violência doméstica é mais conhecida através dos casos que
ganham visibilidade na mídia, como os casos de abusos e maus-tratos contra
crianças, mulheres e idosos. Tais atitudes são reflexo remanescente de uma cultura
que entendeu os castigos, punições e humilhações como práticas educativas. A
violência doméstica pode ser entendida segundo Narvaz e Koller (2006) como “ todo o
tipo de violência que inclui membros do grupo, com ou sem função parental, que
convivam no espaço doméstico, incluindo pessoas que convivam esporadicamente
neste espaço.”
Até hoje o material sobre violência contra a mulher,
produzido dentro do
campo da sociologia do crime é recente e compreende um número pequeno de
pesquisas.
Tais
produções
procuram
investigar
principalmente
os
aspectos
crimininológicos, a relação com os aparelhos repressivos e de administração desses
conflitos, aprofundando pouco nas relações de gênero inseridas nesses conflitos. Os
trabalhos sobre este tipo de violência, que penetram nas raízes históricas e nas
questões de gênero pertencem à Sociologia e Antropologia do Gênero, as quais
abrangem um número maior de trabalhos sobre a temática e uma quantidade
significativas de intelectuais que estudam o tema. Com a intensificação dos debates
sobre os Direitos Humanos e conbate à violência de gênero, surgiram as tentativas
de pensar a violência levando em consideração seus aspectos subjetivos, este
trabalho é resultado desta tentativa.
É certo que os padrões de comportamento e as consequências geradas pelos
conflitos são diferentes na violência de gênero e na violência urbana contemporânea,
a violência urbana desperta questões que envolvem desigualdade econômica,
consumo, pobreza e outros fatores que
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dizem respeito ao espaço público da cidade. A violência dita de gênero tem relação
com questões mais subjetivas e difíceis de se identificar, problemas de ordem cultural,
que moldam desde comportamentos cotidianos aos conflitos pessoais. A violência de
gênero também tem relação com a violência urbana, ao passo que a ocorrência de
algum tipo de violência urbana pode manifestar ou intensificar a violência de gênero,
concomitantemente. A violência contra a mulher, constitui um tipo de violência de
gênero.
Entende-se aqui por violência de gênero “ações ou circunstâncias que
submetem unidirecionalmente, física e/ou emocionalmente, visível e/ou invisivelmente
as pessoas em função de seu sexo” (Werba e Strey, 2001). A violência de gênero não
compreende apenas violência contra mulheres, mas a violência sofrida por indivíduos
que independente do sexo pertencem ao gênero feminino, historicamente subalterno
ao masculino. A violência doméstica é o ato efetivado dentro do ambiente privado,
dentro do domicílio da vítima. Já a violência familiar é toda ação que prejudique o
bem-estar, a integridade física, psicológica bem como a liberdade e direito causada
por um membro da família. A violência familiar pode ocorrer dentro ou fora do espaço
doméstico e pode ser exercida por um membro da família mesmo que sem laços de
consanguinidade.
A categoria gênero é central neste trabalho, pois o processo que reproduz a
violência contra a mulher tem suas bases nesta categoria social/sociológica e nas
implicações geradas pelas sua incorporação nas práticas sociais patriarcais. Como
referencial adota- se Joan Scott que, introduz a dimensão histórica nos estudos de
gênero a partir do seu famoso trabalho “Gender a Useful Category of Historical
Analysis”. Sobre a definição de Gênero afirma a autora:
O coração da definição reside numa ligação
integral entre duas proposições: gênero é um elemento
constitutivo das relações sociais, baseado nas diferenças
percebidas
entre
os
sexos
[...]
Entretanto,minha
teorização de gênero está na segunda parte: Gênero
como uma forma primária de significação de relações de
poder. Talvez fosse melhor dizer que gênero é um
campo primário no qual ou através do qual o poder é
articulado. (Joan Scott , 1992, p. 42-44)
Para Scott (1992), gênero é uma percepção sobre as diferenças sexuais,
hierarquizando essas diferenças dentro de uma maneira de pensar engessada e dual.
Tendo em vista que gênero é um saber sobre as diferenças sexuais, Scott associa
este saber a uma forma de poder polarizado pelo gênero masculino sobre o feminino.
Convencionou-se associar sexo (natural) a gênero (social) e relacionar a figura
feminina características como passividade, dependência e determinação “natural” à
maternidade. O gênero sublinhava também o aspecto relacional das definições
normativas das feminilidades. As que estavam mais preocupadas com o fato de que a
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femininos centrava-se sobre as mulheres de forma muito
estreita e isolada, utilizaram o termo “gênero” para introduzir uma noção relacional no
nosso vocabulário analítico. As pesquisadoras feministas assinalaram muito cedo que
o estudo das mulheres acrescentaria não só novos temas como também iria impor
uma reavaliação crítica das premissas e critérios do trabalho científico existente Scott
(1992) conceitua gênero como elemento constitutivo das relações sociais, com base
nas diferenças compreendida entre os sexos e como uma forma inicial de confirmar as
relações de poder.
Este poder está relacionado com o controle sobre a mulher e no Ocidente
surge uma forma de controle social da intimidade que permite a ampliação da
abrangência
da
vigilância
(Foucault,
1977)
sobre
as
relações
familiares,
principalmente os serviços públicos estatais de justiça e saúde, que tem assumido
papel relevante nos casos de violência familiar, assim o Estado passa a apropriar-se,
a regular e a normalizar a intimidade dos sujeitos (Foucault, 1979; Giddens, 1993).
Esta modernidade (Giddens, 1993) levou para a esfera pública temas (sexo, amor,
casamento, família, filhos etc.) até então restritos à esfera privada. Isso contribuiu para
transformar a intimidade, a identidade e as relações sociais entre os sexos. Muitas
transformações sociais geraram mudanças significativas no papel da mulher na
sociedade, conquistas foram alcançadas no âmbito sexual, econômico e político
somadas ao surgimento da sexualidade plástica – a sexualidade desvinculada da
reprodução -
implicaram em mudanças nas relações íntimas entre homens e
mulheres.
Apesar de cada contexto íntimo requerer negociações específicas, os homens
continuaram presos a laços de dominação masculina. Para Bourdieu (2005), esta
dominação masculina segue uma lógica de naturalização das desigualdades, este
arranjo parece natural e inevitável, como se estivesse na ordem das coisas,
incorporada nos corpos e nos habitus dos agentes e funcionando como esquemas de
percepção, de pensamento e de ação, nos quais o princípio masculino é tomado como
“medida de todas as coisas”. A ideia de patriarcado, cunhada por Saffioti, diz respeito
necessariamente a uma relação de opressão, de desigualdade, é uma possibilidade
dentro das relações de gênero. Para Saffioti (2004) pensar nesta realidade apenas em
termos de gênero distrai a atenção do poder do patriarca, em especial como homem/
marido, ‘neutralizando’ a exploração- dominação masculina.
Essa noção de
Patriarcado é muito importante para compreensão das violências estudadas neste
trabalho. Assim, se gênero é um conceito útil, rico e vasto, sua ambiguidade deveria
ser entendida como uma ferramenta para maquiar exatamente aquilo que realmente
interessa ao feminismo: o patriarcado, como um fato inegável para o qual não cabem
as imensas críticas que surgiram (Saffioti, 2004).
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VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER NO BRASIL
Na América do Sul, a partir de meados dos anos 60 países como Brasil, Chile,
Uruguai e Argentina passaram por anos de ditadura militar, onde muitos direitos
básicos dos cidadãos foram negados. Durante as duas décadas em que o Brasil
esteve sob o regime militar, as mulheres participaram de movimentos de mulheres
lutando por direitos sociais e transcendendo o cotidiano da vida doméstica, essas
mulheres reivindicavam por espaço próprio, por anistia política, por creches, por mais
participação política. Este movimento de mulheres no Brasil foi, segundo algumas
autoras, “o mais amplo, maior, mais diverso, mais radical e o movimento de maior
influência dos movimentos de mulheres da América Latina” (STERNBACH,1992, p.
414).
Em 1975 a ONU criou o primeiro Dia Internacional da Mulher, despertando
reflexões sobre desigualdades de gênero na comunidade internacional. Em 1979 foi
ratificada pela Assembléia das Nações Unidas a “Convenção de eliminação de todas
as formas de discriminação contra a mulher” também conhecida como “Lei
Internacional dos Direitos da Mulher”, que passa a reconhecer a discriminação sofrida
por mulheres, impondo aos Estados obrigação de criar meios de combate a estas
práticas. Mas foi apenas em 1993 que a Comissão de Direitos Humanos, reunida em
Viena, incluiu um capítulo que trata da violência de gênero. A Declaração sobre a
Eliminação da Violência contra as Mulheres foi um passo para tornar esta questão
caso de violação dos Direitos Humanos em todo o mundo. A Declaração Universal dos
Direitos Humanos adotada em 1948 diz que “ todos os seres humanos nascem livres e
iguais em dignidade e direitos” e “todo ser humano tem capacidade para gozar os
direitos e as liberdades estabelecidos nesta Declaração, sem distinção de qualquer
espécie, seja raça , cor, sexo, religião...ou qualquer outra condição”. Baseada na
Declaração, movimentos de proteção aos direitos humanos passaram a pensar
maneiras de diminuir a desigualdade e dar visibilidade às minorias.
Foi na década de 70 durante a ditadura militar que o feminismo se
desenvolveu no brasil e produziu argumentos contrários a violência contra a pessoa e
contra as mulheres no espaço doméstico, surgindo como um movimento
anticonservador. O desenvolvimento do feminismo neste período se deu em meio aos
partidos de esquerda engajados na conquista da democracia, criando assim um
feminismo brasileiro politizado. Em 1975 as Nações Unidas declararam a Década da
Mulher em prol da igualdade entre homens e mulheres, neste ano os grupos
feministas surgiram no espaço urbano e organizaram diversas reuniões, encontros,
seminários e passeatas.
Foi a partir da década de 90 que o movimento feminista brasileiro começou a
participar mais ativamente de reuniões internacionais e conferências, atuando em
consonância com movimentos de mulheres de outros países. Esta internacionalização
do debate “traz também a urgência das práticas e discursos transnacionalizados e em
rede como uma forma de resistência e também como forma propositiva de novo
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modelo de desenvolvimento”(Matos ,2010,p.75). Mas foi antes, nos anos 80, que a
violência doméstica começou a se tornar tema de discussões nos movimentos
feministas. O episódio do assassinato de Ângela Diniz, em 1976, e a absolvição do
agressor que usou o argumento de tê-la matado em legítima defesa da honra foi um
dos fatores importantes que impulsionaram as primeiras grandes campanhas públicas
das feministas no Brasil.
Surgiram no Brasil várias organizações, cujo principal objetivo era o
atendimento à mulher vítima de violência, estas foram criados no final da década de
70 no processo de luta pela redemocratização no Brasil. A primeira delas foi o SOSMulher que procurava se constituir como “um espaço de atendimento de mulheres
vítimas de violência e também um espaço de reflexão e de mudança das condições de
vida dessas mulheres” (Pinto, 2003, p. 81). A criação dos SOS-Mulher constitui um
marco no atendimento direto às mulheres vítimas de violência no Brasil. Neste período
quem tratava dos problemas relativos à violência sofrida por mulheres eram as ONGs,
pois o sistema judicial que existia até então não estava preparado para lhe dar com a
complexidade dos problemas que emergiam do ambiente privado, reproduzindo uma
dominação masculina e institucional sobre a mulher.
Como resultado de lutas pelos direitos das mulheres, foi criada em 1985 em
São Paulo a primeira Delegacia de Defesa da Mulher (DDM), uma experiência
pioneira no mundo. As DDMs deram maior visibilidade ao problema de violência
contra mulheres e possibilitou conhecer melhor suas vítimas, os agressores, os crimes
mais freqüentes e os contextos de agressão. As Delegacias passam depois a serem
chamadas de Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher
(DEAMs) e
surgem como novo modelo de polícia e de administração de conflitos, como uma
experiência de práticas de aproximação da polícia com os grupos vulneráveis e com
os movimentos sociais como. Nos anos 2000 as DEAMs passam a atuar na aplicação
da lei 11.340. A violência sofrida por mulheres no Brasil passa a ser assunto não mais
estritamente privado, mas policial-judicial com a aprovação em 2006 da Lei
11.340/2006 , a Lei Maria da Penha.
Pode-se considerar três eixos na Lei Maria da Penha, o primeiro contempla
medidas criminais visando punir a violência; o segundo diz respeito as medidas
assistenciais de caráter urgente oferecidas as mulheres, protegendo a integridade
física e os direitos da mulher; no terceiro eixo estão as medidas educativas de caráter
preventivas que buscam estratégias possíveis para coibir a reprodução da
desigualdade e violência de gênero. Apesar da Lei 11.340 e das Delegacias
Especializadas no Atendimento à Mulher constituírem grandes avanços no campo
institucional, a violência contra a mulher ainda é um problema que atinge muitas
mulheres, pondo em questão o modelo repressivo do direito penal aplicado à este tipo
de violência e a inoperabilidade desses novos mecanismos. É importante salientar
que nesta perspectiva, redimensionar um problema privado como um problema
público, não significa que o melhor meio de responder a este
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problema seja convertê-lo, quase que automaticamente, em um problema penal. A
articulação dos três eixos depende, em grande medida, da criação dos Juizados de
Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher que devem se organizar para que
ações e medidas previstas na lei sejam operacionalizadas de forma articulada,
proporcionando às mulheres acesso aos direitos e autonomia para superar a situação
de violência em que se encontram.
A promulgação da igualdade de direitos entre os gêneros, a condenação de
qualquer forma de violência de gênero através da Declaração dos Direitos Humanos,
o reconhecimento da violência contra a mulher como crime que precisa ser
investigado e a criação das delegacias especializadas marcam um período de
grandes avanços sociais no Brasil. A subnotificação das violências sofridas por
mulheres no país ainda é grande, muitas vítimas não denunciam por medo, vergonha
ou até falta de informação sobre os seus direitos, o que torna mais difícil o combate a
esse tipo de agressão.
MULHERES VÍTIMAS DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E A DENÚNCIA
A pesquisa de vitimização realizada no ano de 2012 na cidade de Feira de
Santana, fez parte do projeto de pesquisa Feira Viva-Comunidade Segura. Projeto
realizado pelo Grupo de Pesquisa em Conflito e Segurança Social (GPECS), que tem
por objetivo identificar os padrões de vitimização direta e indireta na cidade. O survey
realizado teve o número de questionários definidos por amostragem probabilística. A
margem de erro foi de 4% com 95% de confiança. O calculo amostral foi de 601
questionários, porém foram sorteados 625 domicíclios e aplicados 615 ao fim da
pesquisa. Neste trabalho não há a utilização de todas as entrevistas realizadas , o
recorte é apenas o sexo feminino, que correspondem a 410 questionários aplicados
na cidade.
Os dados da Pesquisa de Vitimização foram utilizados aqui para indicar um
padrão de vitimização feminino na cidade em questão, expressando dados sobre a
segurança das mulheres feirenses. Este estudo de caráter macrossociológico aponta
imformações importantes que refletem as peculiaridades da vitimização feminina. Do
perfil das mulheres em Feira de Santana, pode-se constatar que 81,6% se declararam
negras. Quanto ao estado civil:
52,2% das mulheres são casadas ou vivem em
relacionamento estável, 37,3% são solteiras, 7,6% viúvas e 2,7% são desquitadas.
Castro (2013) classifica o município de Feira de Santana em 4 regiões, os bairros
foram agrupados em regiões que possuem em comum habitantes com renda
domiciliar semelhante. Sendo o 1 o grupo com maior renda econômica e o grupo 4,
aqueles bairros mais vulneráveis social e economicamente. Com relação a questão :
A.1) Viu ou teve informação no seu bairro de mulheres que residem na sua
vizinhança, sendo agredidas por seus maridos ou companheiros ou por parentes?
Das mulheres que responderam este quesito, pode-se inferir que, de acordo com
Castro (2013), 16,1% das mulheres residentes nos bairros com maior renda
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domiciliar, responderam que sim. 27,1 % pertencentes ao grupo 2 responderam que
sim. 34,1% das entrevistadas que residem nos bairros do grupo 3 deram uma
resposta positiva e 34,9% das mulheres do grupo mais vulnerável economicamente,
responderam que viram ou tiveram informação de mulheres na vizinhança, que foram
agredidas por seus companheiros. A medida que a renda diminui, há uma maior
tendência a resposta ser positiva, porém não se pode dizer que o número de
ocorrências de violência conjugal nos bairros de classe média sejam menores do que
naqueles menos favorecidos economicamente. O que muda é a relação com que cada
mulher, inserida em determinada classe socioeconômica, tem com o conflito e com a
preservação da intimidade.
É sabido que a relação de vizinhança é menos intensa nos bairros de classe
média e classe média alta. Desta forma, o fato de valorizarem uma maior preservação
dos valores da família burguesa e manterem suas relações pessoais íntimas no
espaço privado, pode ser um dos motivos que levam as mulheres de bairros pobres a
passarem por mais experiências indiretas de violência feminina. Silva (2007) já
apontou, em seu estudo com mulheres de classe média que passaram por situações
de violência, que “ os valores da família burguesa podem ser explicados a partir da
influência da ideologia da família burguesa sobre as pessoas, ou seja, ainda se
acredita no ideal da família nuclear...Essses valores também prezam o isolamento e a
privacidade, deste o tipo de família, além do amor romântico como base do
casamento.” (p. 108). No que diz respeito à vitimização direta, as questões sobre
agressão e ameaça - A.2) Nos últimos 12 meses foi vítima de espancamento ou
tentativa de estrangulamento? ; A.3) Nos últimos 12 meses foi vítima de ameaça com
faca ou arma de fogo? e a questão sobre ofensa sexual – A.4) Sobre ofensa sexual,
nos últimos 12 meses, alguém fez ou tentou fazer isto com a senhora? Apesar de não
ter número expressivo de respostas positivas, em termos relativos, em valores
absolutos representam uma parcela significativa das mulheres. Com relação as
perguntas anteriores, 1% das mulheres entrevistadas foi vítima de espancamento,
2,5% sofreram ameaça com faca ou arma de fogo e 2,5% foi vítima de ofensa sexual.
Como a pesquisa é representativa da população de mulheres de Feira de Santana,
visto que a cidade possui 237.000 mulheres que residem na área urbana, pode- se
afirmar que aproximadamente 2.4000 mulheres foram vítimas de espancamento ou
tentativa de estrangulamento, 6.000 foram ameaçadas com faca ou arma de fogo e
6.000 foram vítimas de ofensa sexual, no ano de 2012.
A pesquisa de vitimização revela ainda, alguns dados importantes sobre a
segurança das mulheres, confirmando o ambiente doméstico como lócus de violência
contra a mulher. Das mulheres que afirmaram ter sofrido algum tipo de violência nos
últimos dois anos, 62% sofreu insulto,humilhação ou xingamento, seguido de ameaça
com faça ou arma de fogo e ameaça de bater,empurrar ou chutar. Com relação ao
sexo dos agressores, 64% dos agressores são do sexo masculino e conhecidos da
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vítima, quanto ao local de ocorrência, o ambiente privado, a casa , é o local que a
maioria das mulheres sofreu algum tipo de violência.
Enquanto os padrões de criminalidade urbana afetam mais pessoas do sexo
masculino, morrem mais homens em função disso, para as mulheres a casa acaba se
tornando um local pouco seguro. Os dados da pesquisa confirmam os mesmo
padrões nacionais. Os agressores geralmente moram no mesmo domicílio da vítima, o
local de ocorrência das agressões é o domicílio da própria mulher e há um alto índice
de violência não física, como a violência verbal, moral e psicológica. A pesquisa
demonstra também que o agressor é, predominantemente, do sexo masculino.
Num segundo momento da pesquisa, a intenção foi estar mais próximo dos
casos de violência e a pesquisa se estendeu à Delegacia Especializada.
As
delegacias especializadas surgem para suprir uma demanda de administração de
conflitos que envolvem grupos vulneráveis. Depois da criação da Lei Maria da Penha,
a DEAM funciona para vigorar esta lei. A cidade de Feira de Santana tem uma
Delegacia Especializada no Atendimento à Mulher que trabalha em conjunto com os
juizados especializados e o Centro de Referência da Mulher. Também estabelece uma
estreita relação com uma Organização Não Governamental, o Coletivo de Mulheres,
que encaminha mulheres para o Centro de referência ou à DEAM. As Delegacias
Especializadas no Atendimento à Mulher ( DEAMs) surgem como uma nova proposta
de administração de conflitos, como um espaço de representação dos direitos
femininos e acesso à justiça. Para Debert (2006) as DEAMs representam a mulher
como uma totalidade, como um grupo oprimido, e atendem majoritariamente mulheres
de classes populares, com um nível relativamente baixo de escolaridade que recorrem
as delegacias para dar queixa da violência cometida por maridos ou companheiros
Apesar da DEAM de Feira de Santana ter sido uma grande conquita para as
mulheres da cidade há na DEAM , assim como nas delegacias de outras cidades, uma
insuficiência de profissionais especializados, falta de infra-estrutura para atuar de
forma mais eficaz ,a inexistência de políticas preventivas de combate à violência e de
empoderamento da mulher são problemas simples, mas persistentes. Investigou-se
aqui os crimes de violência doméstica contra a mulher registrados no ano de 2012 e a
eficiência da nova instituição e sua organização. A pesquisa foi realizada através de
observação participante e levantamento de dados junto ao setor de estatística da
DEAM. A estrutura da DEAM é composta por um quadro de funcionários em sua
maioria do sexo feminino e a sobrecarga de atividades por cargo é comum. Há falta
de profissionais especializados na delegacia, como assistentes sociais, psicólogas e
advogadas. O apoio psicosocial é encontrado no Centro de Referência da Mulher,
onde as vítimas podem encontrar Assistência psicológica, financeira, jurídica, além de
um abrigo caso seja necessário que a mulher
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saia de casa. A DEAM funciona como espaço de denúncia e investigação criminal,
porém reafirma o compromisso das novas instituições democráticas para grupos
vulneráveis, a DEAM é entedida pelas mulheres como espaço de mediação do conflito
privado e não apenas como lugar de investigação policial. Em conversa, uma
funcionária da Delegacia afirma que “ muitas querem apenas um apoio moral, uma
conversa para depois tomar uma atitude. Muitas não conhecem muito bem a lei e
querem uma orientação.”
Apesar das melhorias necessárias para conquistar o modelo previsto de
Delegacia da Mulher, a DEAM de Feira de Santana demonstrou ser uma delegacia
diferenciada, preparada para tratar das especificidades deste tipo de violência. As
mulheres que ali chegam para denunciar passam primeiro pelo atendimento, uma
espécie de triagem, se caso não se enquadre em violência doméstica contra a mulher
então ela seria encaminhada à outra delegacia. Apesar da lei 11.340 atuar em
qualquer caso de violência contra a mulher, a delegacia de Feira de Santana só atua
nos casos de violência doméstica contra a mulher, podendo ser enquadrados como
agressores não só companheiros, mas pais, tios, cunhados, irmãos, namorados, excompanheiros e inclusive em casos de casais homoafetivos, companheiras que
agridem a outra. Na delegacia, a figura da delegada é bastante respeitada e simbolo
de poder feminino. Enquanto aguardam a delegada chegar, as mulheres conversam
sobre assuntos corriqueiros, sobre o futuro, muitas chegam ali com filhos, com fome,
chorando. A maioria delas jovens e reincidentes na DEAM, a maioria delas com
conflitos conjugais. Os companheiros e ex-companheiros são os principais agressores
e elas são, a maioria, dependentes deles, principalmente financeiramente.
Com relação às denúncias na DEAM, sabe-se que há um grande número de
mulheres que não denuncia a violência sofrida, porém o registro do ano de 2012
chega a mais de 3.500 denúncias. Percebeu-se que as denúncias relativas à ameaças
foi a que teve o maior número de ocorrências, seguido da violência física. Apesar do
maior número de denúncias de ameaças, este tipo de crime na maioria das vezes só é
exposto pelas mulheres depois da denúncia de agressão física. A violência
moral,psicológica e patrimonial também são denunciadas quando são acompanhadas
da agressão física.
A grande maioria das mulheres que recorrem a DEAM são
reincidentes, poucas são as que denunciam apenas uma vez. Em 2012 ,as ameaças
atingem 48% das denúncias, violência física 35%, Violência moral e psicológica 14%,
Violência patrimonial 2% e Violência sexual 1% .
Segundo os registros da DEAM,
63% das mulheres que denunciaram
pertencem à faixa etária de 25 à 34 anos e 81% se autodeclaram negras ( pretas e
pardas). Uma pequena parcela das mulheres que registrou ocorrência na DEAM é de
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classe média alta, a maioria das vítimas são pobres e além de registrarem denúncia
elas procuram por medidas protetivas e assistenciais. O caso de Feira de Santana
não é diferente da média nacional, mulheres jovens são mortas no Brasil por seus
parceiros e ex-parceiros. O ambiente doméstico que remete uma idéia de segurança
e confiança é para as mulheres ambientes onde elas sofrem mais riscos de violência.
Os serviços estatais de administração dos conflitos servem como tutores, é o
Estado exercendo a sua tutela sobre as mulheres e famílias. Muitas mulheres que
denunciam seus companheiros, pais, amigos, ex-maridos, querem além da denúncia,
medidas protetivas, ajuda assistencial para as necessidades básicas, como cestas
básicas, abrigos, creches. Além daquelas que querem apenas um conselho, uma
ajuda, por isso as Delegacias Especializadas precisam ser minunciosas em suas
ações, necessitam de profissionais especializados, pois a DEAM não cumpre apenas
o dever do Direito Penal, da denúncia, ela é parte de uma rede de enfrentamento que
envolve também assistência.
Foram realizadas entrevistas semi-estruturadas na DEAM e seis mulheres, que
se tornaram assíduas na DEAM, contaram sobre suas situações de violência. Os
problemas com os agressores as levava a ir pelo menos uma vez por semana naquela
delegacia. Os nomes aqui utilizados são fictícios, afim de manter a integridade das
entrevistadas .Essas mulheres são em sua maioria negras, de nível econômico baixo,
com pouco tempo de estudo e metade delas trabalha no mercado informal. São
jovens, com exceção de Rita que possui 58 anos. Através de um roteiro de entrevista,
esta pesquisa foi dividida em 4 questões fundamentais: Perfil socioeconômico;
experiência com a violência; percepção sobre a violência e grau de satisfação com os
aparatos legais.
Ao serem questionadas sobre a violência denunciada e a relação com o
agressor, a maioria diz ter denunciado agressão física, e apenas uma tentativa de
violência sexual.
“Eu denunciei aqui uma agressão que sofri do meu
companheiro. Ele me bateu duas vezes já. Eu tinha saído
nesse dia e quando eu cheguei recebi foi isso. Ele já tava me
esperando dentro de casa com um pau na mão. [...] Ele mora
comigo, nós somos casados. Tem 5 anos que nós moramos
juntos, foi quando eu fiquei grávida que eu casei.[...] Ele me
bateu dentro de casa, dentro da minha própria casa. Foi
quando eu ia chegando que ele já estava me esperando, ele já
pediu desculpa e tudo...[...] Antes ele nunca me bateu não. A
gente tinha aquelas briginhas de casal, ele me xingava, a gente
brigava muito. Mas ele nunca me bateu, só agora que começou
isso. Ele sai muito de noite, sai com os amigos pra beber,
chega tarde... Quando eu reclamo ele fica procurando
confusão. Ele me bateu com um pau e uma vez ele me deu um
tapa na cara e me jogou na parede, bati minha cabeça e
tudo.” ( Maria)
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Quando questionada sobre o motivo que desencadeou a agressão ela diz:
“Eu não sei direito se ele tá com ciúmes ou o que é.
Ele quer ser dono de mim! Ele sai com os amigos e eu não
posso sair? Nesse dia que ele me bateu eu fiquei toda roxa das
paulada. Ele ficou retado porque ele chegou e eu não tava em
casa. [...] Nesse dia que ele me bateu foi nessa época de são
joão, eu resolvi sair. Deixei meu filho com minha mãe e fui pro
aniversário de um colega do trabalho, foi festa o dia todo.
Cheguei tarde em casa, quando eu chego em casa ele já tinha
voltado da rua e tava me esperando pra me bater. Quando eu
abri a porta, ele foi batendo com o pau na minha cabeça, eu cai
no chão e começei a gritar. Foi cena de filme de terror aquilo
ali. Ele me bateu tanto que eu fiquei sem reação, no chão
caída. Eu toda roxa das porrada e ele fugiu de moto. Meu filho
vendo tudo correu pra casa da vizinha chorando coitado, a
vizinha foi que me levou pro hospital. Depois disso eu vim aqui
denunciar ele.” (Maria)
Já Rita, passa por uma situação um pouco diferente e conta:
“Eu já denunciei aqui cinco vezes. A primeira vez foi
quando ele tentou me matar com uma garrafa quebrada dentro
da minha casa, foi minhas filha que ligou pra polícia e aí ele
fugiu. Eu fiz a denúncia dos corte que ele fez em mim, me
cortou toda e ainda queria cortar minha filha também. Ele já me
ameaçou de morte, ele me segue na rua. Uma vez eu
denunciei uma ameaça que ele fez pra mim com uma faca, ele
arrombou minha casa e me xingou toda nesse dia. Xingou
minha neta, e nesse dia ele até jogou um copo pra pegar em
mim e acabou cortando minha filha, isso eu não desejo a
minguém, é um inferno esse homem.” (Rita)
Porém, o agressor de Rita não está mais em um relacionamento com ela, eles
já estão separados há algum tempo, Rita se emociona ao contar sua experiência e
afirma ser infeliz por conta da violência.
“É meu ex-marido. Aquele homem é um bicho, desde
quando eu era casado com ele que ele era agressivo, mas ele
só me xingava, me empurrava, mas ele nunca me cortou como
dessa vez. Ele bebe muito e fica agressivo, ele já é bruto sem
beber... Eu casei com ele com 19 anos e me separei dele em
1992. Depois que a gente se separou ele não se conformou,
ele
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fica me agredindo, fica invadindo minha casa, ele tem outra
mulher mas mesmo assim fica achando que é meu marido
ainda. Se eu tiver na rua , em qualquer lugar ele fica me
xingando, me ameaçando.Eu tenho medo de acontecer coisa
pior.” (Rita)
Elas foram questionadas sobre o que é violência contra a mulher; se acreditam
que violência contra a mulher pode não ser apenas física; Se já passaram por alguma
situação de violência não-física. Olga afirma:
“Olha, antes eu pensava que eu só podia denunciar
ele se ele fosse uma agressão física, mas depois que eu fui no
centro de referência eu aprendi muito. Eu sei que agressão
verbal também pode ser denunciado. Mas eu sei que ninguém
denuncia, só quando está morrendo é que elas vem pedir
ajuda. [...] Esse meu marido me xingava quando a gente
brigava, me falava um monte de coisa.Mas era briga de casal,
todo casamento tem. Como é que eu vou denunciar isso? A
gente tem que deixar pra lá as vezes. Depois ficava tudo bem e
pronto.” (Olga)
A maioria delas não sabia sobre os outros tipos de violência doméstica, depois
que tiveram contato com a delegacia e o centro de referência elas receberam
informações. Em muitos casos as próprias mulheres rotinizam as práticas de
submissão e violência. Muitas delas demoram a tomar uma posição radical contra a
rotina de violência, a submissão, principalmente econômica, patrimonial é um entrave
para a questão feminina. Rita, Ana e Olga tinham ou tem laços de dependência
financeira e patrimonial com os agressores. Rita contou que, antes dela se separar ela
não tinha um emprego e dependia dele para sobreviver. Ana não tem outra casa ou
condições econômicas para sair da casa do companheiro, ela não tem renda e aliado
a isso ela tem medo das ameaças dele. Olga só começou a trabalhar para conseguir
viver longe do agressor. Hoje ela é casada com outra pessoa, mas mantêm a renda.
Quanto ao grau de satisfação com as instituições, com o andamento do caso e
sobre a Lei Maria da Penha:
“É bom que tenha essa delegacia pra nos ouvir. As
pessoas aqui são muito boas com a gente, nos ajudam mesmo.
Aqui é diferente de outras delegacias, o pessoal é mais legal,
entende a gente. A delegada é muito boa! Só acho que os
policiais poderiam trabalhar final de semana também, no dia
que meu marido me bateu mesmo foi sábado, tava fechada já.
E só pode prender em flagrante, eu vim aqui na segunda
denunciar, tô aqui até hoje nesse caso.” (Joana)
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“A Lei é ótima! Essa lei tinha que ter antes, tinha tinha
que ser mais dura com esses homem. Mas se não fosse ela,
eu não estaria aqui. Foi muito bom ter essa lei, as mulheres
agora tem um lugar pra ajudar.” (Maria)
Essas mulheres passam por várias situações de violência moral, psicológica,
patrimonial e até sexual por seus parceiros e ex-parceiros. Quando chegam a
delegacia, elas já passaram por uma série de violências não-físicas e até violências
físicas consideradas “normais” como empurrões, tapas, puxões de cabelo.
O
agressor mantêm a mulher num ciclo de dependência e sentimento, é comum, após
as brigas os companheiros pedirem perdão e relembrarem coisas bonitas do casal,
fazer com que a mulher se sinta culpada e atraída pelo sentimento demonstrado.
Após o perdão a tensão aumenta, e as agressões verbais podem evoluir para uma
agressão fatal.
“Eu nunca quis brigar com ele, eu gsoto dele, mas ele
é muito possessivo. Eu já estou cansada disso, dessas brigas.
Tudo começou com aquelas brigas de casal, a gente nunca
brigou assim de verdade. Só essa vez que ele ficou furioso,
virou um bricho. Ele tava com ciumes. Um dia antes eu peguei
carona com meu colega do trabalho, ele ficou com muito ciume,
isso foi acumulando. Mas depois que ele relaxa, que passa
aquele momento ele vem me abraçar, me beijar. Mas dessa
vez eu não sei se vou perdoar ele, tô pensando muito sério
sobre isso.” (Joana)
A maioria dessas mulheres acabam reincidindo às DEAMs. O poder masculino,
presente nessas decodificações, investe fortemente na construção e perpetuação de
uma rede de cumplicidades com a criminalidade sexista.É preciso pensar em
mudanças muito mais profundas, que mudem não só as práticas masculinas como ,
mudanças que tornem as mulheres mais autônomas e consciente desses processos.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Como matriz geradora de conhecimento sobre o mundo neste
esquema de ação/percepção sobre a realidade, pode-se inferir algumas conclusões a
apontamentos. Com base em categorias já apresentadas neste trabalho, pode-se
pensar o processo de continuidade e perpetuação da violência contra a mulher como
uma problemática interdisciplinar e dinâmica, localizado-a em contexto histórico e
temporal.
Primeiro, este trabalho sinaliza que : Há uma estreita relação entre as
diferentes expressões da violência contra a mulher, como a violência simbólica, a
violência psicológica, a
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violência moral, a violência patrimonial, a sexual e a física. Este processo é ciclico e
gera dependência de diversas ordens. Os dados aqui apontam para um maior número
de conflitos conjugais que cuminam nas violências, esses conflitos conjugais são de
difíceis dissolução, pois estão engendrados a outras questões, questões sentimentais,
econômicas, familiares, trabalhistas. Desta forma, a violência contra a mulher interfere
em todos estes aspectos da vida da agredida, e junto a isso há o fator fundamental a
esta questão, que são as estratégias hierarquicas criadas para dominar e oprimir um
gênero.
Os casos em que há denúncia e posterior perdão, estão engendrados
fortemente
nas relações de dependência. Há um ciclo vicioso, em que a mulher
denuncia e depois reata o relacionamento, neste momento os dois vivem por algum
tempo sem violência e mais tarde surgem novamente as agressões, que vão se
intensificando. O fator dependência econômica se mostrou relevante para entender
este processo de continuidade. Muitas mulheres que não tem autonomia financeira e/
ou não conseguem sobreviver economicamente
sem o sustento do homem,
sobretudo se envolver os filhos, acabam convivendo com o parceiro nesta situação
por não terem poder suficiente para mudar sua condição.
Pode-se identificar aqui que: As mulheres e o homens envolvidos no processo
são jovens, uma maioria com menos de 35 anos de idade, são negros e de classe
baixa. Esta relação pode ser entendida pelo fato de, as mulheres de classe mais
favorecida não necessitam da tutela do Estado para garantir seus direitos, não
necessitam de medidas assistenciais, nem protetivas. Preferem resolver seus conflitos
no âmbito do privado, enquanto que as mulheres pobres necessitam desta
administração de conflitos, umas desejando proteção na vida privada, outras afim de
criar uma alerta ao agressor para ele não infrigir seu direito.
A maior parte das mulheres que chegam a DEAM, chegam com casos
extremos de violência física, de tentativas de morte e de ameaças. Elas não
reconhecem as outras formas de violência que não atingem o seu corpo, isso dificulta
o processo de resolução do problema, pois muitas chegam lá quando estão sendo
perseguidas e ameaçadas de morte. O alto índice de registros referentes a ameaças e
violência moral não configuram as primeiras ocorrências de uma vítima, geralmente
essas mulheres chegam na DEAM para denunciar um abuso, um espancamento e
acabam registrando as outras violências também. A denúncia é tardia e por isso
também é preciso pensar em como proteger esta mulher, pois está mais vulnerável.
A Delegacia da Mulher se mostra como uma alternativa necessária, porém
que ainda precisa de fiscalização e investimento, As DEAMs estão com suas
estruturas imcompletas, falta pessoal especializado,viaturas, policiais, psicólogos. Há
a necessidade de se fazer cumprir as dimensões educativas e de formação de
autonomia feminina, proposto na Lei 11.340/2006. Apenas a punição não extingue o
problema do patriarcado, das relações de gênero desiguais.
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Algumas mulheres utilizam a denúncia para dar um alerta aos agressores, uma
espécie de susto, ameaça. A rigidez na Lei Maria da Penha que vem sendo
construída, dificulta mais este processo. Agora não se pode mais retirar a queixa que
você prestou na DEAM, pois muitas mulheres tiravam a queixa, também, por
imposição do agressor, ou ameaça.
Os principais motivos desencadeantes das agressões são o sentimento de
posse sobre a mulher, a falta de obediência feminina, a quebra das regras
hierárquicas e a possibilidade de perda desta posse compõem a lógica que gera tais
agressões.
É preciso pensar nos Direitos Humanos como forma de emancipação
feminina, mas é preciso pensar também, muito além do Estado e das Leis. Pensar em
formas de construir uma autonomia feminina, pois só a partir do momento em que o
ser humano se desprende das amarras ideológicas é possível falar em mudança, uma
mudança de dentro para fora. O patriarcado vive desses aparatos ideológicos, e para
por fim neste modelo, só construindo uma nova forma de saber-poder, onde as
diferenças de gênero não se tornam desigualdades.
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Anais do VIII Encontro da ANDHEP
ISSN: 2317-0255
A POLÍCIA PODE SER DEMOCRÁTICA?
Verena Holanda de Mendonça Alves
Mestranda em Direito pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da
Universidade Federal do Pará/ Bolsista CAPES
Jean-François Yves Deluchey
Cientista Político/ Universidade Federal do Pará
Centro de Estudos sobre intervenção Penal - CESIP
Introdução:
O filósofo Alain Badiou tem nos alertado: hoje em dia “todo mundo é
“democrata””, a tal ponto que a democracia passou a ser “o emblema dominante da
sociedade política contemporânea” (2009, p. 15). Aparentemente, não há escapatória.
Caso certo indivíduo seja visto como “não democrata”, irá amargar imediatamente a
desqualificação de seu discurso, ou seja, a não recepção deste pela “sociedade
democrática”. A sua voz de ser racional (logos) apenas será ouvida enquanto grito
animal (phoné), mas nunca será escutada e processada, por não corresponder ou não
respeitar o emblema que supostamente reúne a todos.
Nessas condições, há de se perguntar se a democracia, aparentemente
apoiada por todos, possui algum conteúdo mínimo, ou se ela se apresenta como um
conceito vazio (com intuito de servir apenas de emblema para consolidar o mito de
uma comunidade política). A prática governamental, para ser recebida como
mensagem válida na comunidade cidadã, há também de se representar como
fundamentalmente democrática.
Não é diferente na aplicação de penalidades e no cometimento de ilícitos
penais. Em livro recente publicado com Badiou e outros, o filósofo italiano Giorgio
Agamben apresenta o seguinte argumento:
O mistério central da política não é a soberania senão o governo, não é
Deus senão o anjo, não é o rei senão o ministro, não é a lei senão a polícia
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– ou, para ser mais preciso, a dupla máquina governamental que estes
formam e mantêm em movimento (2009:12).
Contudo, considerando certo esvaziamento do conceito de “democracia”, em
que condições e com quais critérios podemos afirmar que determinada atuação policial
é “democrática”?
No Brasil, desde os meados anos 1990, e mais recentemente com a
disseminação das conhecidas Unidades de Polícia Pacificadora – UPP, a ideia de um
policiamento denominado de comunitário vem tomando cada vez mais força, como
uma via policial supostamente garantidora de direitos que possibilitaria o avanço na
construção de uma polícia cidadã, uma polícia democrática.
No intuito de tentar responder, mesmo que parcialmente, à pergunta “A polícia
pode ser democrática?”, inicialmente, analisaremos o que seria compreendido como
polícia e como democracia, destacando que neste manteremos a análise apenas na
via liberal amplamente difundida. Para tanto, nos apoiaremos em reflexões originais de
Goldstein e de Foucault na tentativa de introduzir tais conceitos. Em um segundo
momento, caberá apresentar e discutir a oposição entre os conceitos construída pelo
filósofo francês Jacques Rancière. A partir desses referenciais teóricos, na terceira
parte, tentaremos iniciar uma análise sobre as possibilidades de existência de uma
polícia democrática. Por fim, observaremos em particular o modelo do “policiamento
comunitário”, apresentado diversas vezes como o modelo de policiamento considerado
como supostamente mais democrático.
A polícia como “modalidade pastoral do poder”
A polícia pode ser descrita como uma força discriminatória, classificatória e
garantidora de uma ordem social e política consensual, traduzida no ordenamento
jurídico pela constituição do regime político a ser preservado – este geralmente
chamado de “democrático”.
Na atualidade, percebemos um problema, uma vez que muitos dos textos que
relacionam polícia e democracia o fazem a partir de uma definição liberal, e
geralmente encontram o principal ponto de análise na incompatibilidade entre os
abusos da força policial e o regime de liberdades individuais que associamos, a partir
desta doutrina, ao conceito de democracia.
A doutrina liberal se apresenta como pragmática e neutra, não insiste tanto no
sentido lato sensu da polícia e define claramente a finalidade de uma força policial em
um regime democrático liberal. Talvez o melhor teórico liberal da polícia seja o
sociólogo Egon Bittner, o qual apresentou a definição desta como um martelo, que não
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possuiria finalidade própria, servindo àquelas impostas por quem o detém. Mediante
esta concepção, a polícia poderia ser utilizada por qualquer forma de regime
governamental, democrático ou não. Ou seja, possuiria um poder neutro tanto para
reprimir quanto para garantir direitos e prerrogativas individuais.
Para Bittner (2003, p.17), a definição oficial de polícia seria o de agência de
aplicação da lei, mediante as formas de policiamento. Contudo, o próprio autor
salienta que, na prática diária, a maior parte dos policiais tem muito pouco de suas
tarefas versando exatamente sobre esta visão estrita da função policial, uma vez que
o verdadeiro engajamento destes versaria sobre a ideia de manutenção da paz e da
ordem,
atividades
que
abarcam
enorme
número
de
possibilidades
e
responsabilidades.
O poder discricionário e coercitivo também seria parte inerente dos exercícios
da função. Sobre o tema, Bittner (2003, p. 19) afirma que tais agentes estatais teriam
plena consciência de que são percebidos socialmente como “aqueles que podem
intimidar a sociedade”. Ou seja, aqueles que têm acesso aos meios coercitivos de
restrição de liberdades individuais, mediante o uso de força física ou não, para
alcançar os fins pretendidos.
Destaca-se que, para o autor, tal poder de coerção acaba se mostrando como
uma via impositiva, mas não completamente repudiada pela coletividade, pois
quando um membro da sociedade acionasse a polícia, este já estaria esperando a
possibilidade do uso da força de intimidação e coerção para a resolução de sua
aflição.
Bittner (2003, p. 20) destaca que a polícia englobaria três qualidades distintas
que deveriam estar presentes no agente no momento em que este realiza seu
trabalho. A primeira seria a necessidade de uma abordagem envolta em técnicas de
negociação, empregadas como uma via de persuasão para assegurar a submissão.
A segunda seria a capacidade de utilizar antecipadamente os meios coercitivos como
uma forma de intimidação na busca pela submissão. A terceira seria a capacidade do
uso da proeza física. Para o autor, nenhum policial em campo poderia se dar ao luxo
de evitar ou barganhar o uso da intimidação e desprezar a confiança na força física.
Tal visão concederia aos policiais um grande poder de variante entre uma atuação
menos coercitiva para uma mais coercitiva.
A partir da definição de Bittner, Muniz e Proença Júnior explicam que a polícia
também “responde por qualquer exigência, qualquer situação de perturbação de um
determinado status quo que corresponde, em termos amplos, à paz social” (MUNIZ &
PROENÇA JÚNIOR, 2012: 7, grifo dos autores).
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Neste momento, podemos observar que a polícia é dotada de um dever de agir
essencialmente no sentido de preservar a ordem social. Talvez por isto devamos
entender a nossa reflexão além da teoria liberal.
Para Goldstein, a função da polícia seria a de prevenir contra fatores externos,
dando uma sensação de segurança à sociedade, de forma a manter um ir e vir, frente
a resolução de litígios e a proteção de importantes processos e direitos, cuja
manutenção se baseia uma comunidade livre (2003:13).
Não podemos deixar de registrar aqui o caráter essencialmente liberal (e até
neoliberal) da definição de Goldstein. Segundo este, primeiro importa proteger a
propriedade (“pilhagem de coisas alheias”), a liberdade de intervenção de cada um no
mercado e, essencialmente, a liberdade de consumação dos objetos das trocas
mercadológicas (“sensação de segurança”, liberdade de “ir e vir”). Vale notar, em
negativo, que a palavra “igualdade”, pilar do projeto democrático, encontra-se ausente
da definição de “polícia” de Goldstein.
Por segundo, caberia à polícia proteger o próprio mercado, isto é, o processo
das trocas econômicas, cuidando especialmente de “resolver os conflitos” e “proteger
os mais importantes processos e direitos” – estes últimos compondo a exata tradução
jurídica de uma ordem social fundada na “livre concorrência”, isto é, na competição
generalizada entre indivíduos livres (eleições livres e liberdades de expressão e
associação).
O caráter liberal e conservador da definição de Goldstein aparece ainda mais
nitidamente quando ele atribui à polícia a função de “proteger os mais importantes
processos e direitos [...] em cuja continuidade está a base da sociedade livre”. Nota-se
que, para o autor, nem todos os processos e direitos são de tamanha importância para
que mereçam a proteção da polícia, assim como a função desta seria a de preservar a
continuidade destes processos e direitos, os quais corresponderiam claramente à
ordem social fundada em uma economia de mercado.
Pelo exposto, percebe-se um caráter profundamente pastoral da polícia: há de
se guardar as ovelhas no pasto que lhes é atribuído (por lei, por origem social, por
questões culturais ou geopolíticas, etc.) em nome da preservação da liberdade de
todos mediante a limitação da liberdade de cada um. Tal origem pode ser percebida
nas relações entre o sentido lato sensu e stricto sensu da palavra “polícia”.
Sobre o tema, Foucault adverte que o que alguns autores dos séculos XVII e
XVIII compreendiam por polícia seria uma técnica de governo do Estado, não uma
instituição ou mecanismo que funciona no seio deste (1980-1988: 153-154). Na teoria
foucaultiana, a “polícia” acaba por designar “o conjunto de novo domínio no qual o
poder político e administrativo centralizado pode intervir” (FOUCAULT, 1994: 157). Por
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consequência, podemos considerar que a polícia pode ser definida, ao mesmo tempo,
como uma força policial e como um domínio sobre o qual se exerce esta força.
Aliás, Foucault nos apresenta que, em nome do controle pastoral, a polícia tem
necessariamente uma pretensão totalitária:
A polícia engloba tudo, mas de um ponto de vista extremamente particular.
Homens e coisas são considerados em suas relações: a coexistência dos
homens sobre um território; suas relações de propriedade; o que produzem;
o que se troca no mercado. Ela se interessa também pela maneira como
eles vivem, pelas doenças e pelos acidentes aos quais estão expostos. É
um homem vivo, ativo e produtivo que a polícia vigia (1980-1988: 155).
Fica evidente que a força policial é decorrência deste conceito englobante da
política lato sensu, o que cria uma primeira brecha na compatibilidade da polícia com a
democracia, esta última sendo associada normalmente a um regime fundamentado no
respeito das liberdades individuais.
Isto posto, vale se perguntar em que medida e de que forma a polícia é
compatível com a definição liberal da democracia e, logo mais, com a definição
apresentada por Rancière.
Regime democrático e igualdade liberal
Desde Platão e Aristóteles, a democracia é vista como um regime político; uma
organização que apoia o exercício do poder supremo na soberania do demos (o povo)
em oposição à oligarquia (governo dos ricos), à aristocracia (governo dos virtuosos), e,
depois, à tirania ou à monarquia (governo de um só, em caráter excepcional ou
ordinário). No entanto, se a democracia pode ser vista como constituição política, ela
também deve corresponder a um tipo particular de forma de governo ou, melhor, de
prática governamental. Para Giorgio Agamben:
O sistema político ocidental resulta da ligação de dois elementos
heterogêneos, os quais se legitimam e se dão mutualmente consistência:
uma racionalidade político-jurídica e uma racionalidade econômicagovernamental, uma “forma de constituição” e uma “forma de governo”.
Porque a politeia encontra-se presa nesta ambiguidade? O que dá ao
soberano (ao kyrion) o poder de permitir e garantir sua união legítima? Isto
não seria uma ficção, visando à dissimular o fato que o centro da máquina é
vazia, que não há, entre os dois elementos e as duas racionalidades,
nenhuma articulação possível? E que é justamente de sua desarticulação
que deve-se fazer emergir este ingovernável, o qual é ao mesmo tempo a
fonte e a saída de toda política? É provável que enquanto o pensamento
não tentar desatar esse nó [...], todo debate sobre a democracia – como
forma de constituição e como técnica de governo – levará consigo o risco de
cair na conversa fiada (2009:12-13).
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Fundada originalmente no princípio da igualdade do demos, a democracia
moderna progressivamente desvirtuou o princípio central igualitário da democracia
para impor como principal referência o exercício das liberdades individuais. Na
doutrina liberal, a igualdade apenas é pensada enquanto igualdade de direitos; ou
seja, como a garantia da preservação da isonomia das capacidades de expressão das
liberdades individuais. A igualdade liberal apenas é relacionada com a expressão livre
e isonômica da liberdade dos indivíduos da comunidade política.
Assim, a consolidação concomitante do capitalismo e da democracia moderna
(liberal) não é apenas um acaso: a democracia, enquanto forma de exercício do poder
soberano e enquanto projeto político, se modificou desde o final do século XVIII para
se adaptar à consolidação de um modo de produção capitalista que necessitava, para
tanto, promover alguns valores e princípios, assim como desvirtuar outros valores que
poderiam constituir um perigo direto à acumulação capitalista fundada no princípio da
mais valia.
Por isso que a ideia de igualdade, pilar de um modo de produção socialista ou
comunista, foi reduzida na prática governamental moderna ao seu mínimo necessário,
a igualdade de direitos, tanto na sua dimensão positiva (todos são iguais perante a lei)
quanto na sua dimensão negativa (cada um é responsável por seus atos, por sua sorte
e por seu grau de gozo dos direitos proclamados). Este conceito de igualdade
contribuiu para assentar as condições de exercício das relações sociais no ambiente
capitalista, este sendo caracterizado por uma competição generalizada entre
indivíduos “livres e iguais”. A igualdade, para resumir, aparece na democracia liberal
como a condição jurídica de expressão da liberdade de cada um enquanto agente da
competição mercadológica.
Justificou-se, desta forma, vários princípios que servem diretamente à
expansão do mercado e à acumulação capitalista (e cuja lista exaustiva seria objeto de
pesquisa doutoral). Aqui, citamos alguns: segurança jurídica mínima aos agentes do
mercado; resolução pacífica dos conflitos interpessoais (pessoas físicas e pessoas
jurídicas); justificação da pobreza a partir de considerações referentes a pouca
capacidade do indivíduo pobre em buscar informações e desenvolver estratégias de
sucesso no mercado (figura do homo oeconomicus responsável, racional e fundado no
calculo de interesses individuais); substituição da universalidade dos direitos para a
universalidade do acesso aos direitos (igualdade de acesso, desigualdade de gozo);
desqualificação da importância das desigualdades originárias e dos determinismos
sociais para a fundação e a reforma da ordem social; justificação de uma
hierarquização social dos indivíduos a partir do valor dinheiro (valor permitindo a
conversão entre desiguais); negação das desigualdades referentes às capacidades de
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intervenção dos indivíduos no mercado e no sistema político-eleitoral; reconhecimento
de uma igualdade eleitoral, permitindo manter uma ilusão de soberania popular e que
contribui na relegação de grande maioria do povo ao status de espectador, árbitro
passivo dos conflitos entre elites econômicas; etc.
O filósofo Alain Badiou bem qualificou a essência desta visão liberal da
igualdade:
A igualdade instituída entre o igual e o desigual não é nada mais, para nós,
que o princípio monetário, o equivalente geral que impede qualquer acesso
a diferenças reais [...].O que define o homem democrático, educado por
esta anarquia, é que ele subjetiva o seu princípio, o da substituibilidade de
qualquer coisa. [...] Ele não enxerga mais nada senão o símbolo da
circulação, o próprio dinheiro (2009: 20).
Este claro desvio principiológico da igualdade, no objetivo de construir as
condições ideais de expansão do mercado e de acumulação capitalista, contribuiu
também para o esvaziamento do conteúdo do projeto democrático fundado na
soberania popular. Por isso, para além da organização eleitoral e da manutenção de
um Estado de direito, temos de prestar maior atenção às condições de exercício da
soberania popular e da igualdade quando analisarmos o objeto “democracia”.
Sobre o tema, leciona Wendy Brown:
Se a democracia pré-moderna, republicana, era fundada na ideia de exercer
o poder em comum – o poder do povo para o povo – e era,
consequentemente, centrada em um princípio de igualdade, a promessa da
democracia moderna sempre foi o da liberdade. [...] Quais poderes
devemos exercer, [...] quais as forças devemos submeter às nossas
vontades para poder dizer, ainda que modestamente, que nos governamos
por nós mesmos? [...] Por um lado, os liberais consideram a eleição dos
legisladores como o principal ponto, com restrições claras concernindo às
transgressões nas atividades e nos fins individuais. Por outro lado, os
marxistas afirmam que a primeira condição da liberdade humana é que os
meios de existência sejam a propriedade da coletividade. Os democratas
radicais insistem sobre a participação direta à política, e os libertários
buscam reduzir o poder e as instituições políticas (2009: 67-69).
Nessas condições, para podermos responder à pergunta “pode existir uma
polícia democrática?” necessitamos definir de antemão qual democracia para, depois,
determinar qual polícia teria possibilidade de ser qualificada de democrática.
De forma resumida, para os liberais, a democracia seria o regime apoiado na
economia de mercado e à organização social que lhe é específica: a competição
generalizada entre indivíduos livres, iguais em direito, mesmo sendo desiguais
socialmente. Para os democratas radicais, a democracia seria a possibilidade de
qualquer um acessar ao poder (“o poder dos que não têm nenhum título para exercê-
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lo” diz Rancière), e a impossibilidade de representação do povo: é, na realidade, uma
democracia fundada no sorteio do corpo legislativo e associada a mecanismos de
deliberação popular nas decisões locais e nacionais. Para os marxistas, como o
afirmou Jean-Luc Nancy no livro Démocratie, dans quel état?, a democracia é o
comunismo: “o nome verdadeiro que a democracia deseja, e o que ela tem, da fato,
engendrado e carregado durante cento e cinquenta anos como seu horizonte, é o
nome de comunismo” (2009: 87).
Como pudemos observar, não existe uma única acepção do conceito
“democracia”. Por isto, não podemos enclausurar nosso pensamento nos quadros
estreitos da concepção liberal sobre o tema, apenas pelo motivo que ela nos é mais
familiar.
Da mesma forma, é nosso dever buscar contextualizar nossas reflexões sobre
a polícia, indicando cada vez mais qual o quadro de referência que usamos para
nossa reflexão. Desenvolver um pensamento sobre a polícia na “ordem democrática” a
partir do ponto de vista pragmático de uma associação entre “liberal” e “real” seria uma
negação da ambição científica de tal reflexão. Por isto, depois de ter apresentado de
forma sucinta frente à possibilidade deste trabalho e à inversa complexidade sobre o
tema, o quadro de referência (neo)liberal sobre polícia e democracia, tentaremos
analisar a visão mais heterodoxa apresentada pelo filósofo Jacques Rancière sobre os
sentidos dados à polícia e à política democrática.
Polícia e política democrática: para além da ordem e do regime
Jacques Rancière em seu texto “Polícia, identificação e subjetividade” atestou
que a ideia de “político” seria constituída pela conexão entre dois processos
heterogêneos.
O primeiro processo seria o que o autor denomina de “governança” ou “polícia”.
Neste, haveria a indução da criação de um consenso comunitário, por meio do qual
seria disseminada a distribuição dos lugares, hierarquias e funções, evocando a ideia
de Foucault de disciplinalização dos corpos ou de uma sociedade de vigilância. Tal via
receberia a denominação de “polícia”. Destaca-se aqui que essa forma de distribuição
de espaços e identidades seria uma via de enquadrar o visível (e o invisível) comum, a
isso o autor denominou de “partilha do sensível”.
Por sua vez, o segundo processo seria aquele pertencente à igualdade. Este
deveria ser compreendido como uma reunião de técnicas orientadas pela suposição
de que todos são iguais e detentores de idêntica capacidade para compreender e
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perceber tal presunção. Para Rancière, a denominação apropriada para este conjunto
de práticas deve ser “emancipação”.
O que existiria, então, seriam duas estruturas diferentes existentes no mesmo
mundo comum. A primeira apenas reconheceria a existência da regulamentação e
caracterização de movimentações e fluxos, impondo uma lógica de classificação,
invisibilidade e concordância. Enquanto a segunda versaria, de forma desincorporada,
apenas sobre a igualdade e suas formas de exteriorização no mundo pelos sujeitos
políticos, se revelando como um dissenso que buscaria retirar os indivíduos de seus
lugares determinados, impedindo a redução de suas funcionalidades. O universo
político, então, seria compreendido mediante esta dúplice forma de gerenciar o
comum.
É exatamente esta ligação que deve ser colocada à prova. Seria possível partir
de uma ideia massificada de que qualquer polícia nega a existência de uma igualdade,
o que traria como consequência a negativa em relação aos dois processos
apresentados. Rancière, contudo, acredita que a polícia confunde a igualdade e
considera o político como sendo o lugar onde a verificação da igualdade deveria ser
considerada como obrigada a encontrar o manuseio da injustiça.
Desta forma, quando compreendemos tais termos, percebemos que na busca
por satisfazer o debate sobre a antinomia existente entre polícia lato sensu e política
(aqui considerada como democrática), devemos vislumbrar três termos: polícia,
emancipação e político. Uma vez que tal processo de emancipação é o que se
compreende como política. O político, por sua vez, se apresentaria como o ambiente
comum de encontro entre tal emancipação e a polícia, frente o combate à injustiça.
Neste ponto, destaca-se que a política não pressupõe uma unidade como
podemos ser induzidos a crer. Pelo contrário, conduzida pelas práticas democráticas
que por si só defendem e conservam a existência de uma pluralidade de ideais e
planos de vida, a política não se apresenta como a unificação de um corpo ou a
aceitação de um único princípio justificador.
O autor defende que a tarefa da democracia seria representar um marco de
união na busca pela redução da dispersão, contudo sem desencadear a reunião do
ódio. Assim, não ocuparia o papel de responsável por qualquer autorregulação
consensual da pluralidade de paixões da multidão de indivíduos, tampouco tomaria
para si a competência por uma atuação no reino da coletividade unificada pela lei e
amparada pelas declarações de direitos. A democracia seria um regime de
acomodação múltipla, ou seja, seria a aceitação da concepção de que cada indivíduo
pode ponderar e existir de forma diversa aos demais.
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Mediante a percepção do sensível na obra do autor, depreende-se que o que
este considera como democracia não é um regime parlamentar ou eleitoral (por
exemplo), tampouco considera a existência estabelecida de um estado de direito ou de
um estado social individualista, capitalista e massificado, mas pondera, sobretudo,
acerca da existência de uma subjetivação própria da política, ou seja, a forma como
esta buscaria moldar o comum e os efeitos desestabilizantes da categorização que
realiza, provocando um movimento de inconformidade do sensível. Da mesma forma
que defende a emancipação e a igualdade, para Rancière, a democracia não poderia
ser institucionalizável.
Aqui, cumpre ressaltar alguns pontos. A democracia seria uma figura que teria
como norte a igualdade como uma forma de emancipação, não como um estado de
fato. Esta emancipação, por sua vez, deve ser compreendida como uma via de
reconfiguração subjetiva, não como qualquer instituto pedagógico. Como objeto, se
teria a busca pela partilha do sensível, mas esta não deve ser compreendida como
uma forma de estipulação de determinada força, mas como a administração de uma
forma desestabilizadora a caracterização.
Para Rancière, existiriam duas maneiras de contar as partes da comunidade. A
primeira só consideraria em seu computo as partes reais, como grupos efetivos
definidos por características e interesses iguais. A seguinte, por seu turno, contaria
além, para algo semelhante a “uma parte dos sem parte”. A primeira se chamaria
polícia, a segunda política.
Para o autor, a polícia não representaria uma função social ou uma constituição
simbólica do social, como pode ser defendido utilizando-se de uma visão
mercadológica liberal. Ao contrário de tal concepção, o essencial da polícia não é o
seu poder (ou direito) de utilizar-se da repressão, tampouco o controle que sua prática
pode exercer sobre qualquer indivíduo. A sua essência é um compartilhamento do
sensível, uma manutenção da classificação determinada do social.
Assim, a polícia lato sensu versaria sobre a categorização do social, ou seja, a
manutenção dos grupos em seus determinados locais e ambientes próprios, não
aceitando ambientes vazios ou vácuos em relação a indivíduos ou grupos. Um
excelente exemplo do momento policial são as eleições, eis que nessa todos são
colocados em suas determinadas categorias.
A intervenção policial no espaço público não consiste em desafiar ou estimular
as manifestações populares, pelo contrário, tal atuação se manifesta no objetivo de
dispersão destas movimentações. As palavras: “circulando, não há nada para olhar!”,
se tornaram vocábulos corriqueiros externados pelos agentes policiais. No momento
em que a polícia diz que não há nada para ser visto em uma calçada pública, nada
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para fazer além de circular, mantém as categorias e a atuação destas conforme um
modelo capitalista onde o indivíduo tem que ser mantido em uma rotina de
acumulação de capital e de manutenção de categorias, tendo sua possibilidade de
ação diária limitada à classificação que ocupa. O espaço público assume um papel de
mero ambiente de circulação de indivíduos entre dois espaços privados ou
domésticos, organizados segundo uma lógica policial (casa, trabalho, escola, etc.).
Aqui caberia relembrar a pergunta inicial sobre como uma força que tem como
função a negação do espaço público poderia ser considerada como condizente com
um projeto democrático? A política (democrática), então, consistiria em transformar tal
ambiente de circulação em um espaço de manifestação do sujeito: o povo, os
trabalhadores, os cidadãos. Consiste em reconfigurar o espaço, o que há para fazer,
para ver.
A verdadeira democracia constituiria a explosão de tais caracterizações, em
uma verdadeira descaracterização, na aceitação da pluralidade inerente a este projeto,
confrontando a caracterização imposta pela ordem policial.
Rancière afirma que o único universal na política deve ser a igualdade. A
igualdade existiria e faria valores universais existirem para além daquilo que é lei.
Igualdade não seria um valor que alguém faz aparecer, mas um universal que pode
ser suposto e verificado. Em uma sociedade democrática a desclassificação tem
tomado uma posição importante chamada de luta de classes.
Neste sentido, a subjetivação política seria o postulado da igualdade (ou o
enfrentamento da injustiça) pelo povo. Tal processo de subjetivação seria uma forma
de desidentificação ou desclassificação, ou seja, uma explosão da caracterização pela
igualdade. Haveria uma identificação, mas esta não poderia ser incorporada por
alguém que a assuma. A lógica da subjetivação sempre implica numa impossível
identificação.
Assim, a polícia seria a responsável pela caracterização dos indivíduos, dando
a cada grupo um nome “correto” que designaria estes, seus ambientes e suas
atividades a serem exercidas ou não. Por sua vez, a política democrática seria
considerada como a existência de nomes incorretos, termos impróprios, que articulam
um hiato e o conectam com a injustiça (como dispõe Rancière). É um âmbito comum,
mas desinteressado na busca de um consenso compreendido como a unificação das
opiniões ou a categorização destas em determinados grupos; isto é, o contrário do
“regime democrático” vigente, cujo objetivo permanente é a classificação e a paz
social.
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Como pode uma força policial promover e se inserir no confronto fundamental
para a prática democrática e a garantia de direitos fundamentais?
A lógica da subjetivação, da emancipação e da heterogenia, então, parte do
pressuposto de que o político é formado por processos heterogêneos: por um lado há
a polícia, por outro, a igualdade representada por um conjunto de práticas de
emancipação (este processo de emancipação compreendido como a política).
O processo de emancipação seria a verificação da igualdade (esta considerada
como o único universal da política) de qualquer ser humano com qualquer outro
indivíduo, estando sempre ligado àquelas categorias consideradas como negadas.
Conforme leciona Rancière, “o nome de uma comunidade humilhada que evoca seus
direitos é sempre o nome de qualquer um”.
Frente às regras caracterizadoras colocadas pela polícia, a subjetivação vem
como um postulado da igualdade (ou o enfrentamento da injustiça) para ocupar o lugar
de responsável pela negação de uma determinada identidade previamente
determinada. Ao contrário do que se poderia inferir, há uma identificação, contudo esta
não pode ser incorporada por alguém. A lógica da subjetivação sempre pressupõe a
impossibilidade de identificação, de caracterização do sujeito. Logo, o caminho desta
permeia as vias da desclassificação.
Deve-se ressaltar, neste ponto, que a democracia seria compreendida como
uma figura detentora do princípio da igualdade direcionada a busca por sua
emancipação, esta compreendida como uma via de reconfiguração subjetiva, com o
objeto de se buscar a partilha do sensível sobre a forma de administração de uma via
desestabilizadora da caracterização.
Atualmente, influenciado por um modelo individualista liberal, o discurso da
polícia sobre a política mostraria que o homem e o cidadão seriam o mesmo indivíduo
liberal que desfruta de valores universais incorporados por meio de constituições
consideradas como democráticas. Contudo, conforme dispõe Rancière:
Mas o estilo da politica como emancipação é outro: ele assume que a
universalidade da declaração de 1789 é a universalidade do argumento a
que deu forma e isto é devido ao intervalo entre dois termos, o qual abriu a
possibilidade de um apelar ao outro, de fazer eles como termos de
inumeráveis demonstrações de direitos, incluindo os direitos daqueles que
nunca foram contados como cidadãos nem como homens (1996: 10).
Em uma sociedade democrática, a pluralidade que lhe é intrínseca não permite
a existência de caracterizações de indivíduos ou do cerceamento de apreciação e
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utilização de ambientes públicos. Neste sentido, ao longo da história, tal
desclassificação necessária assumiu o papel das chamadas lutas de classes.
Rancière afirma que o esquema lógico do protesto social, genericamente, pode
ser definido assim: “nós pertencemos ou não a categoria homens ou humanos ou
seres humanos e quais consequências isto implica?” A universalidade não está
contida no ser humano ou na cidadania, ela está envolvida nas consequências de sua
representação prática e discursiva.
A existência de determinado conflito político não caracteriza a existência de
interesses conflitantes, mas supõe que a ocorrência de lógicas que se utilizam de vias
diversas as partes e a todos da comunidade. Neste sentido, o povo assume o
complemento que desengata a população de si mesma, suspendendo as lógicas de
legitimação.
Contudo, é cediço que o modelo liberal não permite a existência de hiatos, pois
o discurso policial caracterizador legitima a acumulação e assim determina para
facilitá-la. Dessa forma, percebe-se a existência de diversas praticas com caráter
claramente paliativo para buscar evitar qualquer dano a um modelo considerado como
democrático liberal. Tais vias incentivam a existência de uma unificação de opiniões
em determinado capital individualista (de um consenso) como uma busca constante de
impedir a existência de litígios.
Tais conflitos apresentam-se extremamente negativos para as lógicas de
mercado, haja vista apresentarem uma instabilidade não atrativa e que não deve
existir. Assim, é incentivada a unidade social em torno de determinado “bem-comum”.
A auto-compreensão unitária é impedida mediante a caracterização dos indivíduos.
Rancière já alertava sobre o risco crescente de um consenso estatal movimentado por
assertivas que atestam o fim da ilusão do social e o retorno a uma política pura.
A tentativa de estabelecer o ideal de determinada comunidade mediante a
definição de um bem comum próprio, acaba incentivando e embasando a democracia
moderna, que passa a ser entendida como instigadora de um reino das massas, do
capital e das necessidades. Conforme atesta Rancière, tal forma de atuação retira da
coletividade e entrega às oligarquias governamentais (regidas por princípios de
desigualdade), iluminada por seus especialistas, a virtude do bem político, ou seja,
acaba-se reduzindo o político ao estatal.
Contudo, destaca-se aqui a contradição e deturpação que esta dita democracia
liberal apresenta em relação ao que realmente seria democracia. Esta atual conjugaria
uma leve essência comunitária somada e invadida por um cálculo individual de custos
e benefícios de um universo liberal caracterizado pela existência de um poder que
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ajustaria os interesses de todos. Esquece-se, aparentemente, que a democracia é, na
verdade, um regime de acomodação múltipla.
O que se denomina de democracia atual não é nada além do liberalismo
manipulando a concepção originária desta (aquela encontrada em Aristóteles que
apresentaria o sujeito povo em constante presença), fazendo com que passe a
representar uma grande mentira direcionada aos interesses de determinados atores e
pequenos grupos cúmplices, domesticando, assim, até a via proletária.
A atuação da polícia, então, assume um papel de caracterizar grupos, manter
tais segregações e de movimentar a população para que não parem ou se reúnam em
ambientes públicos. O espaço público é travestido de um espaço de circulação. Desta
forma, a política democrática de acomodação múltipla (compreendida como aquela
que aceita a pluralidade de indivíduos e de seus planos de vida) possuiria como
escopo a transformação de tal espaço de circulação em um espaço de manifestação
de todos.
O autor leciona que a essência do que se considera como consenso não seria
a existência de uma discussão pacífica ou de um acordo razoável oposto ao conflito e
à violência. A essência do consenso é, na verdade, a busca pela anulação do
dissenso (da pluralidade) como distância do sensível com si mesmo. O consenso seria
a redução da política à polícia. O fim da política seria a borda sempre presente da
política.
A política não deve ser detentora de um lugar próprio, tampouco composta por
determinados
sujeitos
naturais
categorizados.
Uma
manifestação
deve
ser
considerada como realmente política não por ser realizada em determinado lugar
estabelecido ou porque verse sobre certo objeto. Pelo contrário, determinada
movimentação deve receber a intitulação de política quando sua forma é de
enfrentamento entre as distribuições do sensível, sem que seja exigida, para tanto,
qualquer vinculação a grupo ou argumentação existente.
Dessa forma, um sujeito político não seria um grupo de interesses ou de ideias
definidas, um operador de um dispositivo particular de subjetivação do litígio pelo qual
há politica. Se assim fosse, a manifestação política seria sempre pontual e composta
por um grupo precário, sempre versando sobre os mesmos temas e utilizando-se dos
mesmos argumentos.
O interior da política pode ser encontrado nas vias de subjetivação não
consensual que manifestação de forma sensível às diferenças da sociedade consigo
mesmo. Aqui no Brasil, podemos perceber tal movimento com as manifestações
populares que ocuparam as ruas das principais cidades nacionais, no ano de 2013.
Nestas, muitos foram censurados por não serem ocupantes de grupos específicos
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com reinvindicações determinadas. Contudo, o exercício da política democrática é
exatamente isso, o ser humano (descaracterizado de qualquer grupo pré-constituído)
como reconhecedor do sensível social exteriorizando tais sentimentos no espaço
público.
Dessa forma, para que uma força policial possa vir a ser considerada como
uma força política democrática deve-se disseminar a descaracterização do ambiente
social e dos indivíduos que o ocupam. Todas as categorias existentes devem explodir
como uma via de se alcançar o projeto igualitário que pode ser realmente considerado
como democrático e respeitador das garantias fundamentais do indivíduo. A
emancipação dependeria da desincorporação, por parte dos cidadãos, em relação às
partilhas e categorizações criadas e mantidas pela polícia. Verifica-se a necessidade
de um processo de desidentificação ou dessujeição, não da criação de novas formas
de subjetividade.
Ressalta-se, ainda, que tal forma só pode ser obtida se for preterida a busca
incessante pela existência de um bem-comum mediante a determinação de um
consenso e, no lugar disso, passar a ser promovido, constantemente, o confronto
entre o sensível dos indivíduos em um modelo de acomodação múltipla.
Policiamento Comunitário: a saída ideal para a fundação de uma polícia
democrática?
Defendido por muitos autores (Trajanowicz e Bucqueroux, Skolnick e Bayley)
como a superação de uma experiência promissora e a efetivação de uma verdadeira
onda para o futuro, o Policiamento Comunitário começou a ser considerado como uma
forma de atuação que efetivaria os preceitos democráticos e concretizaria direitos,
tudo isso aliado ao combate (de forma preventiva e repressiva) ao crime.
Conforme assevera Skolnick e Bayley: “entre as democracias industriais
mundiais, o policiamento orientado para a comunidade representa o lado progressista
e avançado do policiamento” (2003: p. 15).
Com uma definição demasiado vaga, o que se percebe, na prática, é a
existência de uma excessiva quantidade de programas que passam a ser
considerados como participantes de um policiamento dentro dos moldes comunitários
e supostamente democrático.
Na busca por uma melhor definição do que seria tal prática, Trajanowicz e
Bucqueroux apresentam uma definição ampla, caracterizando esta forma de
policiamento como uma filosofia e uma estratégia organizacional capaz de
proporcionar uma nova parceria entre a comunidade e a polícia. Tal forma tomaria
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como base a ideia de que ambas devem trabalhar juntas na busca pelo
aperfeiçoamento da relação destes e da solução de problemas como crime, drogas e o
temor social em relação à violência. Além disso, teriam com suposto objetivo comum à
melhora da vida (maior segurança) nos bairros.
Os autores prosseguem a explicação aduzindo que este policiamento
desafiaria vários grupos, a agirem de forma convergente na buscar por melhores
meios para expressar esta filosofia nos seus trabalhos diários, compensando a
necessidade de se buscar respostas efetivas aos incidentes criminosos individuais,
assim como às emergências que surgirem no cotidiano da atuação. Além disso, teria
como objetivo a exploração de novas técnicas preventivas e de uma tecnologia mais
apurada como forma de evitar o acontecimento do ilícito.
Ainda, tal forma de policiamento, para os autores, estabeleceria os policiais
como verdadeiros “mini-chefes” de polícia. Estes teriam uma atuação descentralizada
e se encontrariam em constante patrulhamento, além de serem detentores de
autonomia e liberdade para exercer seu labor, solucionando problemas da
comunidade local e trabalhando em contato permanente com essa na tentativa de
atuar de forma preventiva e repressiva.
Trajanowicz e Bucqueroux lecionam que:
O policiamento comunitário é uma maneira inovadora e mais poderosa de
concentrar as energias e os talentos do departamento policial na direção
das condições que geralmente dão origem ao crime e a repetidas chamadas
por auxilio policial [...] ajuda os policiais e seus colaboradores da
comunidade a analisar os motivos suscitados por certos incidentes e os
auxilia a conceber intervenções que reduzirão algumas de suas causas [...]
amplia significativamente a “caixa de remédios” do policial, substituindo
alguns dos “esparadrapos” pelo diagnóstico efetivo e por instrumentos de
prevenção e cura (1999: ii - iii)
Na busca pela estipulação de um “passo a passo” para a ocorrência de um
policiamento realmente democrático e comunitário, prevê-se que para que
determinada iniciativa deslanche na coletividade, é necessária uma atuação policial de
forma refletida aos padrões sociais desta, como se fosse necessário o disfarce por
parte desta instituição para maior manipulação dos indivíduos.
Além disso, para que determinada comunidade seja considerada como
receptiva aos esforços policiais, faz-se necessária à anuência de apenas (“pelo
menos”) dois dos maiores grupos da comunidade para que o projeto seja realmente
considerado como válido.
Por fim, dispõe que quanto mais membros da sociedade convergirem na
mesma opinião e dividirem os mesmos objetivos, melhor seria o desempenho desta
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via de policiamento. Ressalta, ainda, que é possível a existência de grupos
subsequentes que sejam detentores de opiniões diversas daquelas defendidas pelo
maior grupo. Contudo, apesar de dispor a existência de tal grupo minoritário, não
prevê o que poderia acontecer com as opiniões e sensibilidades que emanarem de tal
parte, apenas como se legitimasse a existência de um grupo que, sem voz, existiria,
mas não ocuparia qualquer posição opinativa nesta via supostamente democrática.
Pelo exposto, percebe-se que até a tentativa atual de apresentar uma forma de
policiamento que deveria ser compreendido como dentro dos parâmetros de um
projeto democrático, acaba sendo apenas mais uma tentativa de impor uma força
policial travestida que busca a classificação do social e a valorização de apenas
determinados grupos em detrimento da pluralidade de opiniões e sensibilidades que o
próprio modelo democrático pressupõe.
Em uma clara forma de categorização, esta via de policiamento busca trabalhar
conjuntamente com seis grupos, quais sejam: o Departamento de Polícia, a
comunidade, as autoridades cívicas eleitas, a comunidade de negócios, as instituições
e a mídia. Ainda, o “passo 3” do processo previsto para a efetivação do policiamento
comunitário em determinada sociedade dispõe a necessidade de “identificação dos
grupos relevantes” para a atividade de resolução de problemas. Somente os
pertencentes a estes grupos relevantes deveriam estar engajados com a filosofia e
com a prática desta em sua vida cotidiana, configurando assim, um “elemento
catalizador” como a própria dita filosofia prevê.
Aqui, resta clara que esta forma de policiamento em nada se difere das vias de
policiamento opostos a existência da igualdade e da política considerada como
democrática, uma vez que mantém sua essência de criador de grupos muito bem
definidos que devem ser considerados como merecedores de participação, assim
como sua função de manutenção destas alianças dentro do funcionamento social.
A estes grupos mais populosos seria concedido o direito de ser ouvido e de ter
sua atuação sobreposta a toda comunidade, se assim anuírem. Mesmo aceitando a
existência de grupos com opiniões divergentes, ignora estas no processo que
denomina de democrático e exige, ainda, a unificação das opiniões e objetivos para
que tal modelo consiga o êxito que deseja.
Além disso, a intitulação destes como “mini-chefes” ainda mantém a concepção
de que a polícia seria uma forma de poder que emanaria “de cima para baixo” sobre a
população, mas não de forma igual sobre todos os indivíduos.
A exigência de uma maior autonomia por parte desta sobre os cidadãos acaba
prevendo ainda, em contrário senso, a existência de uma menor liberdade para os
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indivíduos e de uma maior possibilidade de poder de repressão e de categorização por
parte dos policiais.
Sobre o projeto, o estado do Rio de Janeiro, por seu Instituto de Segurança
Pública, lançou uma cartilha, no ano de 2007, intitulada “Polícia e Comunidade: Temas
e Desafios na Implantação de Conselhos Comunitários de Segurança”. Nesta, previa
como uma das maiores dificuldades para a implantação do Policiamento Comunitário o
distanciamento existente entre a polícia e a comunidade. Tal hiato entre os dois
sujeitos seria derivado da existência de uma desconfiança mútua entre estas as
partes. Contudo, como poderia se esperar uma atuação diferente em um modelo
travestido do antigo e clássico modelo policial?
Ainda, o mesmo texto dispõe que, em determinadas situações, a atuação dos
policiais sobre “elementos suspeitos” (explicados como portadores de um conjunto de
variáveis como “vestuário, comportamento, situação, local de moradia, cor, etc.”) não
seria apenas uma atuação arbitrária, mas um processo social que condensaria
determinadas práticas sob uma “classificação social relativamente estável”.
Pelo exposto, percebe-se que o modelo de policiamento apresentado e vendido
como democrático, apenas alimenta (agora de forma disfarçada) o contrário da política
democrática, ou seja, mantém a categotização do social, a segregação de indivíduos,
ignora a sensibilidade destes e tenta manter um consenso de opiniões e objetivos
dentro da comunidade.
Considerações finais
Pelo exposto, percebe-se que a existência de dois processos diversos. Por um
lado, encontramos a polícia como força caracterizadora de espaços e identidades,
disseminando o consenso e restringindo o espaço perceptível dos indivíduos. Por
outro, a igualdade dos seres falantes é verificada por um conjunto de práticas de
emancipação, encontrando forte conexão com as categorias consideradas como
negadas.
Uma estrutura conheceria apenas a regularização dos indivíduos e seus fluxos,
enquanto outra pondera as vias da igualdade como formas de sentir o mundo comum
e acabar com qualquer caracterização existente, provocando uma verdadeira
desestabilização da distribuição de títulos. O jogo político, então, poderia ser
compreendido pela conexão (ou não) destas duas formas de compreender o
agenciamento da comunidade.
Nesse contexto, a subjetivação apresenta-se como um postulado da igualdade,
em contra partida às regras caracterizadoras disseminadas pela polícia, pois nessa
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ISSN: 2317-0255
haveria uma verdadeira impossibilidade de identificação, ou seja, de caracterização do
sujeito.
Quanto à democracia, está pode ser compreendida, conforme atestado por
Rancière, como um projeto que se encontra em constante debate consigo mesmo.
Uma democracia verdadeira seria aquela que contesta e até combate a si mesma, não
aceitando caracterizações, mas confrontando a ordem policial para que se possa
chegar em um projeto igualitário.
Assim como a emancipação depende da desincorporação do indivíduo. Para
que uma polícia seja realmente considerada como democrática, faz-se necessária
uma revisão em suas finalidades próprias, de forma que não acabe apenas travestindo
a antiga forma segregacionista e classificatória que classicamente possui. A própria
polícia precisa passar por uma reestruturação no sentido de se emancipar da
necessidade de identificação que lhe está impregnada. É necessário que esta não
estimule o consenso, mas aceite a pluralidade de formas de sentidos existentes na
coletividade e adeque suas funções como um meio de influenciar esta via
desclassificadora e, consequentemente, garantidora dos direitos e garantias de todos
os indivíduos (até daqueles considerados como “sem-parte”), garantindo, assim, certo
“desentendimento” necessário para a ordem democrática.
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ISSN: 2317-0255
Violência e (In) Segurança Pública no continente africano: O caso
da Guiné-Bissau
Frederico Matos Alves Cabral
Mestrando em Sociologia/Universidade Federal do Rio Grande do Sul
(UFRGS)
RESUMO
O presente texto é fruto do trabalho de Conclusão do Curso de Especialização
em Segurança Pública e Cidadania vinculada à Universidade Federal do Rio Grande
do Sul. O referido, parte a partir de um dos capítulos do mesmo, procurando analisar o
estado da arte da Segurança Pública e dos Direitos Humanos no continente africano,
tendo como o foco a Guiné-Bissau: as lutas pelo poder e as sucessivas instabilidades
políticas e militares. Foram realizados procedimentos metodológicos através de
pesquisa bibliográfica e levantamento de documentos e relatórios, junto aos principais
centros de pesquisa e imprensas nacionais e internacionais sobre o tema. Ao longo da
pesquisa os dados recolhidos apontam que a questão da Segurança Pública no
continente é algo preocupante aos olhos dos grandes Órgãos Internacionais
promotoras e defensoras dos Direitos Humanos. No caso da Guiné-Bissau, após
quarenta (40) anos de independência o país não conseguiu se estabilizar devido as
grandes rupturas políticas e militares que permearam no seu contexto histórico político
e social. Rupturas estas marcadas pelos Golpes de Estado e lutas de interesses
pessoais incorporados ao próprio aparelho estatal, colocando em desafio a construção
de um sistema democrático e igualitário. Ainda o país necessita de políticas públicas e
sociais por parte do Estado para os seus cidadãos, de modo a proporcionar o bem
estar destes.
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INTRODUÇÃO
A colonização não só arrancou do continente africano os seus filhos para o
resto do mundo, assim como criou clima bélico entre as etnias, privilegiado uma em
relação a outra. Nesse caso, podemos citar o conflito do atual Burundi e de Ruanda,
entre os povos Hutus e Tutsis, implantado pelo sistema colonial Alemão, depois
seguido pelo sistema colonial Belga.
Para além de outros fenômenos geradores deste genocídio, destaca-se a
perda da identidade criada pelos dois sistemas coloniais, que levou à exigência de
uma difícil prova de ancestralidade e características físicas indefinidas. Supunha-se
que os Tutsis tendiam a ser mais altos e magros que os Hutus e que tinham feições
mais finas, mas se aplicava uma fórmula simples: quem possuísse dez ou mais vacas
era Tutsi, quem possuísse menos era Hutu (SANTOS 2011).
Ao tratar dos conflitos que abalaram ou vem abalando o continente, os
problemas étnicos e lutas de classes são apresentados em primeiro lugar, deixando de
lado, “as mãos externas dos conflitos”. Trata-se nesse caso de atribuir uma certa
culpabilidade não só aos governantes africanos, mas também as grandes
manipulações externas, criadas pela forças imperialistas mundiais, afim de tirarem
qualquer vantagem nas crises internas do continente.
Segundo Silva (2005), a África não pode ser inteiramente responsabilizada por
seus problemas nas décadas recentes, pois seu passado colonial, o neocolonialismo e
a
dependência
externa
continuam
influenciando
o
continente.
Após
as
independências, os novos Estados pós-coloniais formados no continente tinham
grandes desafios na governança da máquina estatal.
Estima-se que, até a época da independência (anos 1960), apenas 16% da
população africana adulta era alfabetizada (Santos, 2011).
No final da década de 1950 havia apenas 8 mil africanos na África
subsaariana, com educação secundária, dentre uma população de
cerca de 200 milhões, e quase metade concentrava-se na Gana e
Nigéria. Não mais de 3% da população em idade escolar completava
a educação secundária. Os novos países apenas contavam com mais
de 200 estudantes universitários. A porcentagem da população com
idade escolar que frequentava a escola primária era apenas 1/3. Os
altos cargos no Governo e na iniciativa privada eram ocupados por
3/4 de estrangeiros (SANTOS, 2011, p.30).
A proibição de acesso às escolas imposta aos africanos demonstrava certa
inquietação dos colonizadores em deixar os seus dominados cientes das suas
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façanhas. Ao mesmo tempo, a metrópole precisava assimilar alguns para implementar
os seus interesses sugadores. Por outro lado, as políticas ou programas orientados
pelas grandes agências Internacionais, muitas vezes vistas como donas da verdade
ou donos dos ideais para uma boa governança, acabavam tendo efeitos
desmerecedores e, assim, dificultaram ainda mais os novos rumos a serem seguidos.
Afirma Silva (2005) que os custos da crise econômica mundial das décadas de
1970/1980 foram, em grande parte, repassados para o Terceiro Mundo.
Os países ricos conduziram uma política de redução das importações
e os países exportadores de matérias primas tiveram seus recursos
diminuídos em virtude da queda dos preços e do volume das
exportações. Os bancos privados com sede em países desenvolvidos
e as instituições de crédito internacionais, como o Banco Mundial e o
FMI, elevaram as taxas de juros provocando uma explosão das
dívidas externas. Para pagar o serviço da dívida, os países africanos
tinham que exportar cada vez mais. Como eram exportadores
basicamente de matérias primas e de produtos pouco elaborados, a
oferta destes aumentou no mercado mundial, desvalorizando seu
preço (SILVA, 2005.p.12).
O mundo atual exige inovação e competência por parte daqueles que quiserem
crescer sem esperar a orientação do mais forte. Nesse caso, vale a pena destacar
que, qualquer que for a cooperação exige uma troca (simbólica, política, ou
econômica). Esse tipo de pedido de orientação da periferia para metrópole,
principalmente
nos
casos
dos
programas
considerados
prioritários
para
o
desenvolvimento, acaba conferindo certo status de inferioridade aos países africanos
em relação aos demais desenvolvidos.
Após as independências, os novos Estados africanos mergulharam em vários
conflitos intraestatais marcados pelos desafios de administrar a nova máquina Estatal,
e pelas rivalidades ou lutas de classes antagônicas pelo poder, sem esquecer de
mencionar vários governos depostos por golpes de estado dirigidos pelos militares.
Ao longo dos anos 1960-2006, houve um total de 62 conflitos intraestatais
dentro do continente, às vezes travados temporariamente pelos tratados de paz que
duma hora a outra acabava por se romper. No processo da busca da pacificação,
foram mobilizadas um total de 40 operações de paz em diferentes Estados do
continente, durante os anos 2000-2009. Essas missões às vezes receberam séries de
críticas, desde as zonas estratégicas escolhidas como centro de ocupação para o país
anfitrião dirigente, até as suas principais falhas. Mas, por outro lado, ganharam elogios
devido à proteção proporcionada às populações inocentes locais dos lugares do
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conflito, sem esquecer de mencionar que elas serviram também como vias de
resolução dos conflitos.
Tab.2. Missões da Paz realizadas em África 2000-2009.
Missão
MINURSO
ECOMOG 2
MINURCA
MONUC a
UNAMSIL
CMC-OUA
UNMEE
OLMEE/AULMEE
OP
SAPSD
OMIC 2
Força CEN-SAD
ECOMICI
OL
FOMUC
JMC e IMU
OMIC 3
MINUCI
MONUC b
UNMIL
ECOMIL
AO/IEMF
AMIB
ONUB
ONUCI
AMIS
MIOC
UNMIS
EUPOL Kinshasa
EUSEC RD Congo
EU Apoio da AMIS 2
EUFOR-RD Congo
AMISEC
MAES
AMISOM
EUFOR-Chade
MINURCAT
UNAMID
ODIC
MICOPAX
EU SSR-Guiné-Bissau
Local
Saara Ocidental
Serra Leoa
República Centro Africana (RCA)
República Democratica do Congo (RDC)
Serra Leoa
República Democratica do Congo (RDC)
Etiópia, Eritreia
Etiópia, Eritreia
Serra Leoa
Burundi
Comoros
República Centro Africana (RCA)
Costa do Marfim
Costa do Marfim
República Centro Africana (RCA)
Sudão
Comoros
Costa do Marfim
República Democratica do Congo (RDC)
Libéria
Libéria
República Democratica do Congo (RDC)
Burundi
Burundi
Costa do Marfim
Sudão
Comoros
Sudão
República Democratica do Congo (RDC)
República Democratica do Congo (RDC)
Sudão
Repúbluca Democratica do Congo (RDC)
Comoros
Comoros
Somália
Chade
Chade/República Centro Africana
Sudão
Comoros
República Centro Africana (RCA)
Guiné-Bissau
1
Datas
1991
1997-2000
1998-2000
1999-2002
1999-2005
1999-2000
2000-2008
2000-2008
2000
2001-2003
2001-2002
2001-2002
2002-2004
2002
2002-2008
2002-2005
2002
2003-2004
2003
2003
2003
2003
2003-2004
2004
2004
2004-2007
2004
2005
2005-2007
2005
2005-2007
2006
2006
2007-2008
2007
2007-2009
2007
2008
2008
2008
2008
Fonte: Elaboração própria cf.Williams,2010.
Os desafios de segurança ainda presentes no continente são algo com que se
preocupar: embora existam países isolados com uma governança estável, outros
ainda, acabam mergulhando no mundo do jogo do poder (caracterizado pelas máfias
Missões da ONU
M issões Reconhecidas pela ONU
M issões Autorizadas pela ONU
1
Código das Cores
M issões Externas a ONU
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ditatoriais, pelo clientelismo ou pelo nível de corrupção elevado), protegidos pelos
grandes bancos mundiais. Às vezes surgem denúncias de contas de alguns dirigentes
africanos com milhões de dólares nos bancos do exterior, na maior parte dos casos
protegidos pelos status que ocupam ou pelas redes de alianças internacionais com
interesses afins.
Por outro lado, a taxa de homicídios no continente é de 20 por 100.000
habitantes, em comparação com a alcançada na Europa, que é de 5,4; na América do
Norte, 6,5; e na América do Sul, de 25,9 por 100.000 habitantes. Esta situação se
torna preocupante ao analisarmos casos isolados como o de Kinshasa com seus 112
homicídios por 100.000 habitantes (BAKER, 2010).
O referido, trabalho parte com o pressuposto de analisar o estado da arte da
violência e da insegurança pública na Guiné-Bissau a partir das lutas pelo poder e as
sucessivas instabilidades políticas e militares marcadas na memória histórica político e
social desta sociedade.
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O LEGADO DA GUINÉ-BISSAU
A Guiné-Bissau fica situada na costa ocidental da África, foi uma colônia
portuguesa por cinco (5) séculos (1445-1974), data da sua independência reconhecida
pelo Portugal, embora a mesma já tivesse sido reconhecida por muitos países, ainda
em Setembro de 1973, quão da sua proclamação pelo Partido Africano para
Independência de Guiné e Cabo-Verde (PAIGC2), após onze anos de Luta de
Libertação Armada (1963-1974).
As primeiras eleições multipartidárias aconteceram em 1994, por onde o então
Presidente em exercício (João Bernardo Vieira Nino3) acabou vencendo o seu
adversário Kumba Yala do Partido da Renovação Social (PRS).
O território nacional ocupa uma área total de 136.125 km², fazendo fronteira ao
Sul com Guiné Conakry (ex-colônia francesa) e ao Norte com a República de Senegal
(ex-colônia francesa).
Segundo os dados de WORLDBANK (2014), possui uma população de
aproximadamente 1.664 milhões de habitantes (2012), e a sua economia está
assentada na agricultura, responsável por 61,8% do PIB, contra 26,8% dos serviços e
7,2% apenas da indústria (CABRAL, 2011).
Para Lopes (1982), a luta contra o regime colonial, remonta a um passado
longínquo. Desde o início da ocupação portuguesa (a chamada “descoberta”), a região
que hoje é constituída pelo Senegal e a Guiné-Bissau consideradas um dos centros da
escravatura (LOPES, 1982, p.18).
Após a Independência, o país foi dirigido por Luis Cabral, irmão do líder
independentista Amilcar Cabral4, até 14 de Novembro de 1980, data em que o seu
governo foi deposto por Golpe de Estado dirigido pelo João Bernardo Vieira (Nino),
que também foi expulso no poder, através de um levante político e militar, em 7 de
junho de 1998, e só veio a terminar em 7 de maio de 1999.
Com o derrube do regime de Nino Vieira considerado mão de ferro, o respeito
às hierarquias começou a ser questionado dentro do seio das próprias forças armadas
e no próprio aparelho Estatal. Nesse caso, podemos dizer de que, o fim do conflito foi
registrado na memória histórica, política e social do país como o fim de um regime
considerado mão-de-ferro,dando início a uma governança sem destino registrado
pelas ondas de violência, golpes de estado, espancamentos e assassinatos.
2
O PAIGC foi fundado pelo Amilcar Cabral (1924-1973).
Do PAIGC.
4
Amilcar Cabral nasceu em 12 de Setembro de 1924 e foi assassinado antes da proclamação
da independência (24/09/1973), em atentado ocorrido no dia 20 de Janeiro de 1973, na GuinéConakry, país vizinho que servia como base do Quartel General do PAIGC.
3
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Para Djaló (2000), os novos heróis que derrubaram o Nino Vieira, conscientes
da força que representam no seio da sociedade, passaram não a reivindicar, mas a
exigir os seus direitos, correndo por vezes o risco de reduzir toda a ação heroica de
que fizeram prova a uma simples reivindicação de caráter corporativista (DJALÓ
2000,p.33).
Aqueles que um dia foram unidos pelo mesmo inimigo e mesma revolta,
começaram a não se respeitar, cada qual queria demonstrar a sua valentia perante
toda a sociedade, de modo a conseguir manter o seu status.
Logo após o conflito (1999), foram realizadas as eleições, no qual foi eleito
Kumba Yala como Presidente da República.
Durante o seu mandato, começaram a surgir algumas intrigas pessoais entre o
novo Presidente da República e o Brigadeiro General Anssumane Mané, líder vitorioso
do conflito contra o regime anterior. Esta rivalidade foi se alastrando criando um clima
bélico no relacionamento entre os dois. É de se lembrar que, a Junta Militar liderado
por Anssumane Mané, tinha prometido ao povo guineense, que após o derrube do
Regime de Nino Vieira, devolveria poder a sociedade civil e por outro lado, as forças
armadas submeteriam a classe política.
A referida promessa foi cumprida teoricamente, embora que na prática as
regras eram ditadas pelos militares em contribuição com alguns aliados políticos.
A maior rivalidade entre o General e o novo Presidente se deu após, este ter
promovido um elevado numero de patentes militares para alguns oficiais militares.
Segundo o General as patentes não poderiam ser distribuídas de tal forma porque
afetariam o tesouro público, ao contrario o Presidente justificava que os promovidos
mereceriam a recompensa devido as suas valentias prestadas ao Exército Nacional, e
ele como Comandante máximo das Forças Armadas poderia fazer a promoção. A
referida disputa acabou resultando num levante militar que culminou com o
assassinato do General Anssumane Mané.
O mesmo Presidente da República (Kumba Yala) não conseguiu concluir o seu
mandato ainda em 2003, devido ao outro Golpe de Estado desencadeado pelos os
Militares.
 Da (In) Segurança Pública aos Direitos Humanos.
A segurança pública dos povos, e das Nações tornou-se uma prioridade nas
agendas políticas mundiais, discutidas e implementadas pelos Governos, em parceria
com as ONGs, Movimentos Sociais, Universidades e Institutos de Pesquisa. A nova
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ISSN: 2317-0255
era da mundialização e as Desigualdades Sociais fizeram as sociedades urbanas e
rurais mergulharem no mundo da criminalidade, criando nas pessoas o receio de se
tornarem vítimas mortais e estamparem as páginas e sites dos jornais.
Para alguns teóricos, abordar o tema da Segurança Pública na sociedade
contemporânea significa considerar os fatores político, socioeconômico, tecnológico e
ambiental. No caso da Guiné-Bissau, podemos afirmar que, o elemento-chave para a
explosão das várias ondas de pânico e de insegurança é o fator político, seguido do
socioeconômico.
O nível socioeconômico da população e do próprio Estado guineense é muito
escasso (PIB per Capita de 539,45 USD5), e às vezes prejudicado pela ausência de
uma política de distribuição de renda igualitária, que ora acaba se concentrando em
pequenos grupos de elites, cujo padrão de vida pode ser equiparado aos grandes
empresários ou patrões das grandes potências mundiais (EUA, Alemanha, Inglaterra)
ou dos países emergentes como o Brasil.
O poder de aquisição de bens, concentrado nas mãos destes pequenos
senhores do poder, acaba declinando toda a sociedade em um Estado degenerado de
corrupção, muitas vezes mencionado como um Estado falível.
Esta irregularidade no aparelho Estatal é mencionada pelo grande compositor
guineense Zé Manél, através da sua obra musical intitulada “Bardade de dentro di
Bardade6“. Nessa obra o grande músico aponta as falhas do sistema Estatal
guineense, mostrando a diferença entre tratamento dado pelo sistema judicial aos
considerados “ladrão de tabanca”7 e aos denominados “ladrão diplomata”, cuja ação é
mais desastrosa (contas no exterior, crimes de colarinho branco), mas acabam saindo
ilesos devido os seus status.
Conforme o documento da Política Nacional para o Setor de Justiça (PNSJ,
2010-2015), o setor judiciário, por ser tão sensível e dispor de poder de decisão, não
deve nem pode ficar à mercê da boa vontade estatal no cumprimento de suas
obrigações financeiras. O custo muito alto para toda a sociedade, já que se abre uma
porta para a corrupção, o que favorece os poderosos e prejudica os mais necessitados
(MJ, 2010).
Várias manchetes de jornais denunciam casos de corrupção em todas as
esferas públicas do país, só que estas denúncias nunca foram investigadas ou
julgadas pela Justiça Nacional, devido à impunidade existente e à falta de capacidade
dos Tribunais para exercer as suas funções. De certa forma, essa realidade acaba
5
Dados referentes a 2012. Disponível em: <http://www.worldbank.org/>.
Significa em crioulo, verdade dentro da verdade.
7
Ladrões de tabanka são os pequenos ladrões dos bairros.
6
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contribuindo para o alargamento da corrupção dentro do próprio sistema, através de
organizações mafiosas nele instalados, facilitando o enriquecimento de algumas
pessoas (funcionários internos), cuja ação ilícita demonstra a apropriação do
patrimônio
público
em
privado,
culminando
em
extravios
de
documentos
comprometedores que levariam à execução das sentenças dos infratores (QUADÉ8,
2013).
Atualmente 70% dos tribunais do país estão com as portas cerradas devido à
falta de instalações físicas para os seus funcionamentos. Esta situação se agrava
principalmente nas regiões e interior do país, onde as populações acabam usando as
próprias mãos para fazerem a justiça.
Afirma o Ministério da Justiça (2010) de que, a (in) segurança institucional
compromete as relações exteriores do país, com reflexos internos, dificultando os
acordos de cooperação internacional com países parceiros, e investimentos
estrangeiros e nacionais. Por outro lado, a criminalidade organizada, os crimes de alta
complexidade e nomeadamente o narcotráfico e a instabilidade política fazem com que
a imagem externa do país seja violento e inseguro (MJ, 2010, p.5).
Para Touraine (1996), a democracia deve ser sempre social, uma vez que é ali
que os direitos universais do homem tornam-se eficazes: quando são defendidos
principalmente em situações particulares e contra forças não menos concretamente
definidas de dominação.
No caso da Guiné-Bissau, ao analisarmos a inclusão da democracia, podemos
dizer que este visto pelo povo como uma das esperanças para um futuro melhor,
garantindo a igualdade de oportunidades a todos, acabou beneficiando só a um
pequeno grupo, tornando-os mais rico e mais elitizado.
Segundo Cardoso (1996): quando começou a se falar em multipartidarismo nos
anos 1990, muitos dirigentes do PAIGC, inclusivamente, pensavam na altura que ele
representava certos perigos, particularmente em África, onde, na opinião destes
políticos, a vida econômica, política e social é muito diferente da dos países europeus,
podendo a multiplicidade de partidos conduzir ao tribalismo e à guerra civil
(CARDOSO,1996,p.267). Após este ser conquistada nos anos 1990, a democracia
não impediu que as rivalidades internas e as ambições de interesses pelo poder à
custa do fogo viessem a se manifestar.
No sistema judiciário guineense um dos elementos necessários a destacar para
a sua desfuncionalidade é a impunidade, um fenômeno preocupante e comum nas
governanças de muitos países africanos. Nas arenas judiciais de muitos países
8
Domingos Quadé é Bastonário da Ordem dos Advogados do país.
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africanos, alguns barões do poder são considerados intocáveis, razão pela qual a
população local não sentem protegidas pela lei. Essa atitude é um descumprimento ao
artigo VII da Declaração Universal dos Direitos Humanos, que garante que,
todos são iguais perante a lei e têm direito, sem qualquer distinção, a
igual proteção da lei. Todos têm direito a igual proteção contra
qualquer discriminação que viole a presente Declaração e contra
qualquer incitamento a tal discriminação (Art.VII da Declaração
Universal dos Direitos Humanos).
Nas cartas constitucionais das maiorias das democracias do mundo vemos
explícitos direitos humanos e sociais que, muitas vezes, não são postos em prática
pelos seus governos (CABRAL, 2011). No caso da Guiné-Bissau, podemos afirmar
que a Declaração Universal dos Direitos Humanos, ainda possui diferentes graus de
funcionalidade perante o Estado Nacional, não só em termos judiciais, mas também na
própria atribuição dos direitos básicos (saúde, moradia, educação e alimentação) a
todos os cidadãos.
Sustenta Amartya Sen (2010), na sua obra “Desenvolvimento como Liberdade”
de que,
as conquistas alcançadas pelas pessoas são influenciadas, muitas
vezes, pelas oportunidades econômicas, liberdades políticas, poderes
sociais e por condições habilitadoras como saúde de qualidade,
educação básica e incentivo ao aperfeiçoamento das iniciativas (SEN,
2010, p.19).
Djaló (2000), ao analisar a história contemporânea do país, afirma que este tem
sido uma sucessão de violência política e Institucional marcado profundamente na
memória coletiva do seu povo, influenciando assim a sua cultura política (DJALÓ,
2000).
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Tabela 1. As principais instabilidades políticas e militares na Guiné-Bissau (1980-2010).
Ano
1980
1986
1998
2000
2001
2001
2002
2003
2003
2004
2004
2005
2007
2008
2008
2009
2009
2009
2009
2010
Acontecimento
Golpe do Estado 14 Novembro ( Movimento Reajustador )
Tentativa de Golpe do Estado “ caso 17 de Outubro “
Conflito Militar 7 de Junho
Assassinato de CEMGFA Ansumane Mane
Demissão do Primeiro Ministro Caetano N´tchama
Demissão do Primeiro Ministro Faustino Imbali
Demissão do Primeiro Ministro Alamara N´hassé
Demissão do Primeiro Ministro Mario Pires
Golpe do Estado Presidente da República Kumba Yalá
Demissão do Primeiro Ministro Artur Sanha
Assassinato de CEMGFA Veríssimo Seabra
Demissão do Primeiro Ministro Carlos Gomes Jr.
Demissão do Primeiro Ministro Aristides Gomes
Demissão do Primeiro Ministro Martinho N´dafa Kabi
Demissão do Primeiro Ministro Carlos Correia
Assassinato CEMGFA Tagme na Waie
Assassinato do Presidente da República Nino Vieira
Assassinato do Ex.Dep. Cand.Presidencial Baciro Dabó
Assassinato de Ex-Ministro de Defesa Helder Proença
Prisão do CEMGFA Zamora Induta
Fonte: Cabral, 2011.
Para ele, Independentemente das causas ou ideias defendidas por cada
movimento político, vale a pena observar que as grandes rupturas políticas do país se
fizeram não só à base de negociação e de compromisso, mas também de violência
política. Fenômeno marcante em vários momentos históricos do país: luta de
libertação nacional, golpe de estado de 14 de novembro de 1980 (movimento
reajustador), conflito político-militar de 7 de junho de 1998 e os seguidos assassinatos
e derrubadas de governos até o último golpe de estado desencadeado em 12 de abril
de 2012 (DJALÓ, 2000,p.26).
Segundo Cardoso (2002), com a conquista da independência, o poder político
e as posições-chave foram arrebatados por indivíduos oriundos, na sua maioria, das
camadas mais baixas (camponeses, assalariados, lumpemproletariado), que, na maior
parte dos casos, tiveram menos possibilidades para se educar durante a época
colonial, mas que, durante a luta, tinham oportunidade de fazê-lo (CARDOSO, 2002,
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Anais do VIII Encontro da ANDHEP
ISSN: 2317-0255
p.11). Oportunidade conseguida graças ao esforço do próprio partido ou movimento
em emancipar a educação para todas as camadas guineenses, principalmente nas
zonas consideradas libertadas.
Este esforço, por outro lado consistia em preparar futuros quadros para a
administração do novo aparelho Estatal, após independência, uma vez que o regime
colonial tinha reservado as escolas só para uma pequena parcela da população.
Até o início da luta de libertação em 1963, o número de analfabetos no país
situava-se em torno de 98%. Essa taxa drástica só diminuiu com a construção de
escolas nas zonas considerados libertadas pelo PAIGC. Também, por ter sido o único
que assumiu de uma maneira conseqüente a luta pela libertação nacional e ter
praticamente eclipsado os outros movimentos de libertação nacional, os quadros do
PAIGC chegaram à independência política comportando-se como a única organização
política capaz de assumir as tarefas de reconstrução do país, isolando e, nalguns
casos, perseguindo, todos aqueles que, por uma razão ou outra, não tinham
participado nessa luta (CARDOSO, 2002, p.11; CÁ 2005). Essa situação criou e vem
criando um tipo de clima de ódios e de vinganças oportunas nas memórias dos
vitimizados e injustiçados pelo próprio sistema judicial.
Por outro lado afirma Bobbio (1992), de que, os direitos humanos ainda não
contemplam todos os cidadãos, de modo que a sua legalidade se encontra em
beneficio de alguns, contrariando assim a sua funcionalidade, uma vez que estes
(direitos humanos) são aqueles que pertencem ou deveriam pertencer a todos os
homens, de forma justa e igualitária.
No contexto africano, perante a nova era da globalização e da difusão de
informação e do conhecimento, muitos jovens africanos ainda se encontram fora do
alcance de redes de políticas publicas e sociais de qualidades devido ao
enfraquecimento do próprio Estado nas suas funções de dar acesso aos direitos
básicos de qualquer ser humano. Nesse caso, Sen (2010), sustenta de que, a
liberdade de participação política ou a oportunidade de receber educação básica ou
assistência médica estão entre os componentes constitutivos do desenvolvimento, por
isso os Estados e as Nações precisam apostar nelas (SEN, 2010, p.19).
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CONCLUSÃO
Podemos afirmar a luz desta situação de que a (in) segurança pública na
Guiné-Bissau coloca em desafio a garantia do bem estar de todo o povo guineense. O
próprio Estado nacional, através das lutas internas, pessoais e partidárias
incorporados no seu aparelho acaba utilizando a população como escudo das suas
intrigas, tornando-a vitima do próprio sistema Estatal.
Desde a proclamação da independência em 1973, e mesmo com a abertura
democrática ocorrida a partir dos anos 1990, culminando depois nas primeiras
eleições democráticas em 1994, nenhum governo eleito democraticamente conseguiu
terminar o seu mandato.
Durante os anos 2009 registrou-se uma serie de prisões arbitrárias e violações
dos Direitos Humanos, desde a morte do Presidente da República Nino Vieira, do
Chefe de Estado-Maior General Batista Tagme na Wai, do candidato presidencial
Baciro Dabó e do ex-Ministro de Defesa Helder Proença.
Com o ultimo Golpe de Estado presenciado recentemente em 12 de abril de
2012, por onde foi derrubado o governo de Carlos Gomes Junior, o país viveu dois
anos (2012-2014) isolados de Comunidade Internacional. Só agora é que as
credibilidades internacionais estão voltando ao país devido o marcar das eleições para
esse ano (2014).
Ao longo dos últimos anos ocorreram vários casos de assassinatos e
espancamentos, mas nunca os réus destes crimes, foram levados ao tribunal para que
sejam pelo menos ouvidos ou julgados.
A questão dos Direitos Humanos muitas vezes mencionados no país, acabam
centralizando mais nas quedas dos regimes derrubados (Golpes dos Estados) e
espancamentos de altas figuras publicas, esquecendo assim por lado, exigir uma
funcionalidade da verdadeira Direitos Humanos garantidos segundo o sufrágio
Universal a todos os cidadãos guineenses.
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Anais do VIII Encontro da ANDHEP
ISSN: 2317-0255
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3841
Anais do VIII Encontro da ANDHEP
ISSN: 2317-0255
A legitimidade da polícia e os direitos humanos
José Bento de Oliveira Camassa1
Palavras-chave: Polícia; Legitimidade; Confiança institucional; Estado Democrático de
Direito; Direitos humanos
Resumo
Este trabalho consistirá em uma revisão da literatura sobre a legitimidade das
instituições policiais em governos democráticos. O tema ainda é pouco explorado nos
estudos brasileiros, mas conta com inúmeros trabalhos internacionais, sobretudo nos
Estados Unidos e no Reino Unido.
A legitimidade política reside na crença de que a autoridade estatal seja
apropriada e aja de forma considerada justa, o que, nas democracias, implica uma
cultura de confiança institucional. Um fator que contribui para que as ações das
instituições-chave democráticas, realizadas por seus agentes, ocorram de modo mais
apropriado ao que é regulado pela lei e esperado pelo público, é a existência de
mecanismos de controle de sua própria conduta. Isso acarreta que ações institucionais
legítimas sejam pautadas não só por seus resultados, mas, sobretudo, pelo modo de
sua execução: pela justificação normativa e pela justiça procedimental, conforme
apontada por Tom R. Tyler (2006a).
Entre as instituições-chave, versaremos sobre a polícia, na relação entre sua
legitimidade e os direitos humanos, para a promoção e garantia desses. Trataremos
como a legitimidade da polícia se relaciona com uma maior democratização dessa
instituição e com um maior cumprimento, por parte de seus agentes, da legalidade.
Isso posto, indicaremos como os estudos sobre a legitimidade podem ter utilidade para
se repensar a polícia no país, melhorando sua relação com a população.
Os estudos sobre polícia no Brasil
A polícia consiste em um objeto de estudo relativamente recente nas ciências
sociais brasileiras. Como tema de pesquisa acadêmica, sua aparição só se deu em
meados da segunda metade século passado e foi se intensificando apenas em suas
1
Graduando no Bacharelado em História da Universidade de São Paulo (USP). Bolsista
FAPESP de iniciação científica nº 2013/24239-2 “O impacto do contato em nível local entre os
cidadãos e as instituições: pesquisa exploratória relacionada aos serviços de polícia locais”,
pesquisa realizada no Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo,
NEV/USP.
3842
Anais do VIII Encontro da ANDHEP
ISSN: 2317-0255
últimas décadas, com a emergência na sociedade dos problemas relacionados à
segurança pública, mas hoje já se encontra como questão científica consolidada.
Nesse percurso intelectual, a abordagem mais tradicional e recorrente sobre a
polícia brasileira se centra na repressão por ela praticada. Tal enfoque se insere em
dois contextos históricos. O primeiro é o da perseguição política oficial implantada e
amplamente utilizada pela Ditadura Civil-Militar (1964-1985), exemplificada em órgãos
como DOPS – Departamento de Ordem Política e Social2. Subsequente, o segundo
contexto é o do período da consolidação da democracia, na década de 1990, no qual
conforme despontava uma escalada da criminalidade nas crescentes metrópoles
nacionais, concomitantemente crescia a prática da violência policial3. Apesar de alguns
avanços, o país segue, em considerável medida, com esse cenário de uso exacerbado
da força pela polícia4, mantendo aquecidos os debates sobre a violência
policial5, sobre os desafios e as iniciativas para reduzi-la.
Entretanto, o problema da violência cometida por agentes da polícia não é um
fenômeno isolado, visto que transpõe o enfoque do resultado do trabalho policial em
si. Remete a problemas da instituição que, de alguma forma, afetam influenciam nos
resultados. Assim, também foram produzidos diferentes estudos que procuram
analisar a fundo questões como a ética e cultura policial vigente no meio policial entre
a prática informal e a regulamentação formal do policiamento e o cotidiano profissional
dos agentes. Autores como Roberto Kant de Lima6 e Guaracy Mingardi7 são exemplos
dos que levaram a cabo pesquisas sobre tais aspectos.
Um tema ainda incipientemente desenvolvido na literatura especializada que se
produz no país é a percepção da legitimidade da instituição policial. O que leva a
sociedade a ver ou não a polícia como autoridade apropriada, justa e necessária para
2
Ver: FICO, Carlos. Como eles agiam: os subterrâneos da ditadura militar: espionagem e
polícia política. Rio de Janeiro: Editora Record, 2001.
3
Chevigny, P. Definindo o papel da polícia na América Latina. In: MENDEZ, Juan E.;
O’DONNEL, Guilhermo; PINHEIRO, Paulo S. (Orgs.). Democracia, violência e Injustiça: o não
Estado de Direito na América Latina. São Paulo: Paz e Terra, 2000, pp. 65-87
4
A letalidade policial paulista, por exemplo, mesmo que tenha sido mais alta em momentos na
década de 1990 e na de 2000, seguem alarmantes. Em 2012, 578 foram vítimas fatais das
polícias civil e militar, dentro e fora de serviço. Isso corresponde quase a 10% do total de
mortes (vítimas fatais da polícia somadas a homicídios dolosos e latrocínios) no estado. Ver:
CUBAS, Viviane de O.. ‘Violência policial em São Paulo – 2001-2011’, 5º Relatório Nacional
Sobre os Direitos Humanos no Brasil (2001-2010), pp. 104-111, São Paulo: Universidade de
São Paulo, 2012, http://www.nevusp.org/downloads/down265.pdf. Acesso em 06/04/2014.
5
Ver: Neme, C., 2008. Reforma en la policía: control de la violencia policial en São Paulo.
Revista Latinoamericana de Seguridad Ciudadana. Urvio, no. 2, FLACSO Ecuador, septiembre,
2007, p.85-98
6
Ver: LIMA, Roberto Kant de. A polícia da cidade do Rio de Janeiro: seus dilemas e paradoxos.
2ª edição revista. Rio de Janeiro: Forense, 1995
7
MINGARDI, Guaracy. Tiras, gansos e trutas: Cotidiano e reforma na Polícia Civil. São Paulo:
Ed. Página Aberta (1992)
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a realidade social? O que leva a população a ter confiança e a atribuir credibilidade a
essa instituição? Seria o seu desempenho, a legalidade a que se submete ou o modo
pelo qual age no contato com os cidadãos? Esses questionamentos, ainda pouco
desenvolvidos na comunidade acadêmica brasileira, têm ganhado os holofotes
internacionais, destacadamente nos países anglo-saxões8.
O advento de uma nova abordagem: a legitimidade da polícia
Um dos pesquisadores pioneiros nessa perspectiva é o estadunidense Tom R.
Tyler, professor dos cursos de Direito da New York University e de Yale. Psicólogo de
formação, Tyler, desde a década de 1980, tem buscado enfatizar as relações
psicossociais que são estabelecidas entre os cidadãos e os funcionários públicos
institucionais e como elas atuam na construção da legitimidade política. O alvo dos
seus estudos se concentra na análise das percepções que motivam as pessoas a se
sentirem obrigadas a deferir decisões e regras das instituições. Seus trabalhos
procuram destrinchar as razões de ordem psicológica pelas quais se estabelece a
confiança institucional e se adere às leis, normas e princípios democráticos básicos.
Tyler ainda pode ser apontado como a principal referência para os trabalhos na
área
da
legitimidade.
Sua matriz
teórica
da
justiça
procedimental
segue inquestionavelmente como a mais prestigiada na área, visto que tem sido objeto
de diálogo por parte de investigações com abordagem análoga. Jonathan Jackson9
tem estudado temas próximos, como as vias de construção da confiança e da
credibilidade da polícia e Justice Tankebe10 tem produzido papers sobre a reaplicação
dos modelos explicativos de Tyler – forjados nos Estados Unidos e na Inglaterra – e na
bem distinta realidade social de Gana.
Mapeando a ideia de legitimidade política e de confiança institucional:
perspectivas clássicas
Antes de entrarmos na questão de como, para Tyler, se processa a legitimação
da polícia e quais suas relações com os direitos humanos, vamos inseri-la em um
8
Cabe mencionar que uma iniciativa inovadora de apropriação dessa temática para a pesquisa
no âmbito nacional é o projeto CEPID “Building Democracy Daily: human rights, violence and
institutional trust” do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo, NEV/USP,
que objetiva compreender como se constrói ou se compromete a legitimidade de variadas
instituições – entre as quais a polícia – nas interações entre seus funcionários públicos e os
cidadãos, cotidianamente.
9
Jackson, Jonathan, Aziz Z. Huq, Ben Bradford and Tom R. Tyler, 2013. Monopolizing force?:
police legitimacy and public attitudes towards the acceptability of violence. Psychology, public
policy and law.
10
Ver: Tankebe, J., 2008. Police effectiveness and police trustworthiness in Ghana: An
empirical appraisal. Criminology & Criminal Justice, 8(2), 185-202.
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Anais do VIII Encontro da ANDHEP
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panorama mais amplo: o do peso que a legitimidade política e a confiança institucional
detêm no exercício da autoridade. Elas remontam a vastos campos teóricos da
filosofia política moderna e a estudos mais empíricos das ciências sociais da
atualidade. Assim, faremos um breve mapeamento desses campos e buscaremos
situar Tyler nele.
Para tanto, devemos ter em conta, primeiramente, duas grandes vertentes do
pensamento ocidental que têm contribuído para a teoria e a ação políticas na
Modernidade. São essas as linhas intelectuais traçadas por Immanuel Kant e por
Georg Hegel. De maneira bastante genérica, bem como passando ao largo de suas
respectivas especificidades, podemos agrupá-las em duas categorias: de um lado, o
individualismo e o universalismo teórico e moral kantianos, marcados pelo
racionalismo e pelo idealismo, e, de outro, o coletivismo e o contextualismo histórico
hegelianos, caracterizados por um maior empirismo. Ainda que essas duas correntes
dialoguem entre si, podemos apontar que se o pensamento de Kant segue uma
tendência mais preocupada com o raciocínio científico e com a busca pela verdade, a
filosofia de Hegel se atenta ao concreto e ao efetivo, de modo mais materialista. Ao
passo que a corrente kantiana possui uma dimensão do universal, a hegeliana se
concentra a uma mais particular11.
Disso decorre a possibilidade de situarmos as teorias desses filósofos sobre a
legitimidade da autoridade política em dois eixos. O primeiro, já apresentado, se refere
à oposição universal-particular. O segundo, por sua vez, se dá entre os polos validade
e eficácia. Com uma visão universal e idealista, as correntes kantianas enveredam
pela validade como justificativa para existência das autoridades políticas e da
subordinação a elas. Por outro lado, as linhas de pensamento próximas à de Hegel,
influenciadas pela ideia de ação finalística, tendem a ver na eficácia a razão
fundamental da legitimação política.
Tais teses têm grande repercussão na tradição das ciências sociais. Émile
Durkheim e Max Weber, dois dos mais clássicos autores da Sociologia, por exemplo,
encontram amparo nos filósofos já citados. Para o primeiro12, as raízes da percepção
da legitimidade – e da consequente obediência às leis – se situam na
institucionalização de formações sociais pré-existentes, o que se assemelha a noção
hegeliana de contextualismo histórico.
11
Ver: KANT, Immanuel. Ideia de uma história universal de um ponto de vista cosmopolita. 3ª
edição. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2011; HEGEL, Georg Wilhelm Friederich. Filosofia da
História. Brasília: Editora UnB, 2008
12
Ver: DURKHEIM, Émile. A Ciência Social e a Acção. São Paulo: Difel, 1975;
_________________. Lições de Sociologia. São Paulo: Edusp, 1983
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Já para Weber13, a legitimidade carrega uma justificativa aceitável para
permanência da dominação, a qual o autor concebe como a forma fundamental do
exercício do poder. Poder, esse, que consiste no meio pelo qual se pode tecer
relações em uma sociedade com certa durabilidade no tempo. Uma vez conseguida a
manutenção da dominação, a Sociologia de Weber vê a possibilidade de, por meio de
mecanismos institucionais, se gerar a adesão necessária para que aquele que exerce
o poder tenha validade.
Mapeando a ideia de legitimidade política e de confiança institucional: os
estudos sobre a democracia
Mas, o tema da legitimidade política não está restrito aos clássicos. Nas últimas
décadas, novos estudos têm surgido sobre o assunto, atrelando-o a uma forma de
autoridade política específica: os regimes democráticos. É aqui que Tyler se faz
presente.
Porém, devemos pontuar que a democracia, segundo alguns autores, não
necessariamente, contribui para a legitimidade política, nem é sinônimo dessa. JeanMarc Coicaud14 defende que a associação entre legitimidade e democracia consiste
mais em um pressuposto teórico do que uma realidade fática. Coicaud também indica
que a legitimidade pode ocorrer em vias e governos não democráticos. De maneira
análoga, David Beetham15 argumenta que em um regime democrático, diferentes
públicos – grupos étnicos, socioeconômicos, mídia – reivindicam e demandam
legitimidade de um Estado, porém suas concepções de legitimidade podem ser
distintas e até mesmo contraditórias. Além disso, Beetham argumenta que uma
instabilidade
sociabilizada,
resultante
de
uma
crise
de
legitimidade,
não
obrigatoriamente é contraproducente a uma democracia.
Feita essa ressalva, passemos a falar dos trabalhos que tratam da relação
entre legitimidade e democracia. Um aspecto tem sido destacado: a confiança
institucional, que se apresenta como elemento essencial para a viabilidade e
legitimidade das democracias.
Um dos principais autores brasileiros que advoga para essa interpretação é
José Álvaro Moisés. Segundo ele, o fortalecimento da democracia demanda uma forte
cultura de confiança política, o que, entretanto, não constitui uma mera ausência de
13
Ver: WEBER, Max. Economia e Sociedade. Brasília: Editora UnB, 2009
Coicaud, J.M. Crime, Justice and Legitimacy: A brief Theoretical Inquiry. In: TANKEBE,
Justice and LIEBLING, Alisson (eds.). Legitimacy and Criminal Justice. Oxford: Oxford
University Press, 2013
15
Beetham, D. Revisiting Legitimacy, Twenty Years on. In: TANKEBE, Justice and LIEBLING,
Alisson (eds.). Legitimacy and Criminal Justice. Oxford: Oxford University Press, 2013
14
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Anais do VIII Encontro da ANDHEP
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questionamento perante as autoridades estatais. Muito menos, um fruto direto da
confiança social. Para Moisés, confiar em um regime político democrático passa
necessariamente por confiar em suas instituições, o que se configura como ato bem
distinto da confiança interpessoal. Elas devem ser a mediação entre as escolhas da
sociedade e seus desafios políticos. As instituições públicas não deveriam agir, pois,
de maneira neutra, porém em benefício dessa interação, que é sua missão
fundamental (MOISÉS, 2010).
O autor reitera: a confiança política não é cega. É preciso que se conheçam os
embasamentos e funções permanentes das instituições para se depositar a confiança
nelas. Os regimes democráticos são tributários da premissa liberal de que aqueles que
possuem o poder não seriam confiáveis e de que a disputa por esse nem sempre
atenderia aos interesses públicos. Ou seja, se teria como pressuposto uma
desconfiança política por parte dos cidadãos. Diante disso, para o processo histórico
de
consolidação
da
democracia,
argumenta
Moisés,
foi
necessária
a
institucionalização dessa desconfiança. Isso pressupôs mecanismos institucionais de
proteção às liberdades e de fiscalização dos Estados, entre os quais: eleições
imparciais, garantias de liberdade de expressão, separação de poderes, probidade
administrativa. Somente dessa forma se poderia garantir direitos e haver a
incorporação de uma cultura de confiança política democrática pela população
(MOISÉS, 2010).
Dado a posição nevrálgica que a confiança institucional assume para as
democracias, devemos questionar como ela se constrói. Aponta-se a coerência das
instituições com os seus fins – genericamente, promover a mediação entre o poder
público e a sociedade – como razão para terem respaldo junto à população. E essa
coerência
das
instituições
depende
do
desempenho
dos
seus
respectivos
funcionamentos. Contudo, a performance institucional, entendida estritamente como
resultado – e eficácia, numa perspectiva hegeliana –, não basta. A eficiência é
entendida como o desempenho das instituições com base na normatividade, o que na
adoção de medidas de acordo com os regulamentos internos e os princípios
institucionais. Essa ressalva se faz primordial para a decisão dos cidadãos de confiar
ou não nas instituições, dado que o cumprimento da normatividade imprime
consistência à coerência interna das instituições (MOISÉS, 2010).
Portanto, o aparato institucional e a sua coerência interna são fundamentais
para que haja nas sociedades uma cultura de aquiescência voluntária às autoridades.
Essa voluntariedade de obediência, condição sine qua nom para a existência das
democracias, remete à questão da legitimidade política:
3847
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Esse esquema conceitual supõe que a aceitação e a identificação dos
cidadãos com os princípios que justificam as instituições estão
relacionadas com o compromisso moral que os vincula à sua
comunidade política. Em última análise, a razão para as pessoas
confiarem em instituições estaria no fato de elas serem definidas por
leis adotadas em referência aos princípios de liberdade e igualdade, e
uma vez que sua legitimidade tenha sido socialmente reconhecida.
(MOISÉS, 2010, p.55)
Tyler – normatividade e legitimidade política das instituições democráticas
Essa proximidade entre legitimidade, normatividade e confiança institucional
também é cara a Tyler. Baseado em uma série de enquetes e pesquisas sobre o
comportamento dos cidadãos perante as leis e suas experiências com as instituições,
o psicólogo corrobora a tese a respeito do peso da normatividade para a confiança nas
instituições e para legitimação um regime político democrático. Entretanto, refina de
dois modos essa interpretação: primeiro, por fazer uma comparação mais aguçada
entre o fator da normatividade, associada à ideia de legitimidade, e o da
instrumentalidade no que diz respeito às posturas diante da lei; segundo, por defender
a tese de justiça procedimental como elemento crucial da legitimidade e,
consequentemente, ser fundamental para a adesão às leis e para a confiança
institucional. Analisemos esses dois aspectos.
Primeiramente, Tyler evidencia o quão importante é a interiorização da
consideração de legitimidade política para o respeito à ordem legal de uma sociedade.
Dialogando com trabalhos anteriores sobre a postura dos cidadãos diante das leis, seu
livro Why people obey the Law (TYLER, 2006a) refuta a suposta tese de que a adesão
às leis poderia se dar por uma perspectiva instrumental, baseada em premiação e
punição – frequentemente adotada pelos Estados, visando à diminuição da
criminalidade apenas por meio de uma repressão mais bruta. Todavia, a obra mostra
que, no caso de as pessoas modelarem seu comportamento diante de perdas e
ganhos, obtém-se, no máximo, um respeito à lei imediato, volúvel e parcial.
Exemplifica-se essa postura no cidadão que dirige em uma estrada acima da
velocidade permitida por ser pequena a chance de ser pego, porém, se recusa a
roubar um banco, na medida em que há grande probabilidade de ser descoberto.
Em contraste, mostra-se que a deferência das leis e das instituições de um
Estado, se assentada na crença de que elas seriam apropriadas e justas – ou seja,
legítimas – torna-se amplamente mais sólido e duradouro. Uma vez internalizado esse
compromisso com a normatividade, tende-se a ter maiores autocontrole e senso de
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obrigação perante o Estado de Direito, o que não só aumenta a probabilidade de se
portar conforme a legalidade, como também abre portas para a criação de uma cultura
cívica socialmente enraizada, dado que não se viola as leis não pela certeza da
punição, mas pela imoralidade que esse ato representa (TYLER, 2006a)
Podemos ver, aí, uma influência de Weber, na medida em que se confere
importância à validade normativa e à autorregulação em substituição ao controle por
fatores externos:
Like Freud and Durkheim, Weber argues that social norms and values
become a part of people’s internal motivational systems and guide
their behavior separately from the impact of incentives and sanctions.
As a result, “control by others is replaced by self-control, as social
norms and values are internalized and become part of the individual’s
own desires concerning how to behave” (Hoffman 1977, p. 85).
People who internalize social norms and values become selfregulating, taking on the obligations and responsibilities associated
with those norms and values as aspects of their own motivation. One
aspect of values—obligation—is a key element in the concept of
legitimacy. (TYLER, 2006b, p.378)
Também percebemos traços weberianos no modo como Tyler considera a
legitimidade importante para os governos. Ele indica a inviabilidade de se tentar
angariar influência e promover um comportamento desejado nas sociedades
baseando-se exclusivamente na posse de poder e em medidas polarizadas em
recompensa e coerção, o que é visto como custoso e ineficiente (TYLER, 2006b, p.
377). Essa colocação se aproxima da distinção que Weber faz entre poder e
autoridade, tendo em vista que o primeiro se vale predominantemente do uso da força,
ainda que regulada por meio da lei (MOISÉS, 2010, pp. 55-56). A autoridade,
contrariamente, se concentraria na relação entre cidadãos e Estados por meios não
coercitivos. Entre esses meios, podemos incluir a legitimidade. Diferentemente da
forma instrumental de seguimento da legalidade, que estimula uma sociedade
dependente de uma vigilância estatal constante para não praticar o crime, a percepção
da legitimidade política fortalece a normatividade e favorece uma maior estabilidade.
Como se processa essa percepção de legitimidade por parte dos cidadãos
diante de autoridades legais, como as que compõem as instituições democráticas? A
resposta a essa indagação é uma segunda contribuição que Tyler traz ao debate.
Postula-se que, em uma perspectiva normativa, a legitimidade das ações institucionais
não deve se deter à favorabilidade dos resultados obtidos nos contatos com as
instituições, mas sobretudo aos meios pelos quais se chega aos resultados. Seu foco
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recai sobre os procedimentos utilizados por representantes das instituições – em
outras palavras, funcionários públicos – na prestação de serviço junto aos cidadãos.
Enfatiza-se o embasamento processual e empírico das ações pelas quais as
instituições exercem suas funções e produzem resultados. Tal é a tese tyleriana da
justiça procedimental, segundo a qual a justiça dos resultados e decisões tomadas –
justiça distributiva – afeta menos a percepção de legitimidade do que a justiça dos
procedimentos pelos quais foram conduzidos:
During the past several decades, a large literature on procedural
justice has developed within social psychology (DeCremer &Tyler
2005; Tyler 2000, 2004b; Tyler&Blader 2003; Tyler&Lind 1992; Tyler&
Smith 1998). A core finding of that literature is that authorities and
institutions are viewed as more legitimate and, therefore, their
decisions and rules are more willingly accepted when they exercise
their authority through procedures that people experience as being fair
(Tyler 2001). This procedural effect is widespread (for recente
reviews, see Cohen-Charash&Spector 2001, 2002; Colquitt et al.
2001, 2005). (TYLER, 2006b, pp. 379-380)
Pode-se dizer que Tyler, desse modo, amplia a noção de justificação
normativa, indo além da legalidade em si. Atrela à normatividade o papel da
moralidade e do senso de obrigação para um respeito consistente aos ordenamentos
jurídicos, bem como a percepção da legitimidade política das instituições
democráticas. Legitimidade, essa, que depende principalmente da justiça dos meios
utilizados para a execução de seus serviços durante os contatos com os cidadãos.
Como se constrói a legitimidade das instituições policiais?
Os estudos de Tyler possuem um caráter mais empírico na abordagem da
legitimidade. Levam em conta a ideia da possibilidade de se intervir nas instituições
com o propósito de aumentar a legitimidade dessas. Objetivam, com isso, identificar
possibilidades concretas de melhorias institucionais.
Considerando que os procedimentos justos assumem grande relevância para
as instituições serem avaliadas como legítimas pelo público, quais as repercussões
desse tipo de justiça para a instituição policial? Como as autoridades policiais devem
proceder com o público para se construir uma polícia mais legítima? Tyler (2004)
aponta quatro elementos como chave para ela atender os cidadãos de maneira justa.
O primeiro consiste em procedimentos que permitam a participação das
pessoas nas interações com os funcionários, para explicar suas situações e comunicar
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Anais do VIII Encontro da ANDHEP
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suas opiniões sobre essas. De modo geral, diz o autor, a sensação de participação
junto à polícia não está relacionada ao controle sobre os resultados, mas que os
policiais sejam solícitos com os indivíduos atendidos: que atuem no sentido de tomar
decisões que considerem os problemas apresentados e que busquem resolvê-los.
O segundo elemento chave para o procedimento ser considerado justo é a
neutralidade. É fundamental que as autoridades não se mostrem tendenciosas, de
modo a não se valerem de opiniões meramente pessoais no processo de tomada de
decisão. Uma tomada de decisão neutra demanda o uso de indicadores objetivos e
ponderação entre argumentos divergentes. Garantem-se, dessa forma, evidências de
imparcialidade e transparência, o que fortalece a percepção de justiça, na medida em
que ninguém obtenha vantagens pessoais. Argumenta o autor que isso influencia mais
do que a visão finalística da justiça de resultados:
Because people are seldom in a position to know what the correct or
reasonable outocome is, they focus on evidence that decision-making
procedures are arrived at show evidence of fairness. Transparency
provides an opportunity to make that judgement, while evidence of
factuality and lack of bias suggest that those procedures are fair.
(TYLER, 2004, p. 94)
Um terceiro quesito é o tratamento dispensado com dignidade e respeito pelas
autoridades policiais. Este fator é fundamental, na medida em que se relaciona
fortemente com o quesito da participação, ou seja, para se garantir que a pessoa se
posicione, é preciso que seja tratada minimamente bem, que, por exemplo, não seja
interrompida. O tratamento é um elemento de grande importância, que indo além da
qualidade do processo de tomada de decisão, constitui um diferencial. À parte e acima
da estrita resolução de problemas, as pessoas valorizam o bom tratamento
interpessoal junto às instituições estatais. Tais relações de contato carregam consigo
importantes mensagens sobre como os responsáveis por uma instância do Estado – e,
por extensão, o próprio Estado – vê uma pessoa, o que traz grande repercussão
psicológica e social:
(...) Their treatment during this experience carries for them important
messages concerning their social status, their self-worth, and their
self-respect. In other words, reaffirming one’s sense of his or her
standing in the community, especially in the wake of demean status,
such as crime victimization or being publicly stopped and questioned
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by the police, can be a key issue to people dealing with legal
authorities. (TYLER, 2004, p. 94)
Por isso, o tratamento tem uma dimensão que extrapola a funcional e toca
questões de grande sensibilidade, como a autoestima. Assim, iniciativas que
promovam interações mais individualizadas e com mais respeito junto ao cidadão,
portanto, são amplamente recomendadas para se ter uma conduta institucional mais
legítima.
Um quarto aspecto listado está na crença e na confiança dos cidadãos nos
motivos e intenções dos funcionários públicos ao tomarem decisões e proverem um
serviço. As pessoas atendidas raramente possuem conhecimentos técnicos
especializados para julgar se as decisões e ações das mais diversas instituições são
justas ou não. Por isso, dependem majoritariamente de impressões sobre as intenções
dos funcionários institucionais. Assim, para os cidadãos terem noção de justiça dos
procedimentos utilizados, contribui em muito a percepção de que as autoridades se
preocupam com o bem-estar dos envolvidos e suas necessidades, atuando de forma
sincera e benevolente.
A confiança institucional é reiterada como uma questão central, pois em um
survey apresentado em “Why People obey the Law”, os entrevistados reconheceram
que o tratamento injusto estava disperso entre os tribunais e as polícias. No entanto,
mais de 90% respondeu que, em caso de futuro contato com tais instituições,
esperava receber tratamento justo. Isso mostra o quão resistente pode ser uma
confiança institucional (TYLER, 2006a).
Todos esses aspectos indicados por Tyler para aumentar a legitimidade da
polícia estão fortemente ligados à garantia e à efetivação dos direitos humanos. Entre
os direitos humanos que aqui consideramos, destacamos os relacionados à redução
da criminalidade e da truculência policiais, como os direitos à dignidade humana, à
vida, à segurança pessoal e a não submissão a tortura e a tratamentos degradantes16.
Vale ressaltar também a amplitude que essas descobertas possuem. A
abordagem de base processual e procedimental da legitimidade da polícia se aplica
igualmente a diferentes grupo sociais. A aceitação das decisões policiais pelos fatores
elencados pelo acadêmico ultrapassam divisões étnicas, de gênero, renda, educação,
16
Ver: CÓDIGO DE CONDUTA PARA OS FUNCIONÁRIOS RESPONSÁVEIS PELA
APLICAÇÃO DA LEI, Organização das Nações Unidas (ONU), 1979. O artigo 2º, versa sobre o
respeito à dignidade humana; O 3º trata das restrições ao uso da força física; O 5º prescreve a
intolerância quanto à tortura.
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idade, ideologia e preferências por partido político (TYLER, 2004, p. 95). Isso ressalta
como seus estudos são basilares para uma melhor conduta da polícia.
Implicações e contribuições da legitimidade da polícia para o respeito aos
direitos humanos
Como vimos, os trabalhos de Tyler sobre a construção da legitimidade são
muito relevantes. Entretanto, o que significaria, na prática, uma polícia percebida pelos
cidadãos como mais legítima? Quais são as implicações da legitimidade da instituição
no que diz respeito aos direitos humanos?
Devemos considerar que a avaliação por parte da população da legitimidade da
polícia guarda estreita relação com os princípios democráticos segundo a definição de
Trevor Jones et. al. (JONES ET. AL., 1996). De acordo com eles, as possibilidades de
se reformar a polícia britânica, desenvolvendo um policiamento mais democrático, têm
implicações
na
legitimidade,
uma
vez
que
seus
processos
estimulam
os
procedimentos justos.
A central part of the relationship between policing and democracy
thus concerns the way in which 'democratic' pressures and
processes bear on the legitimacy of the police. This raises interesting
questions about the circumstances under which people will abide by
or appeal to rules and regulations and vice versa, and what factors
motivate such decisions. Tyler (1990) (…) found that perceptions of
procedural fairness rather than actual outcomes were the key
determinants of people's behaviour (1990: 178). (JONES ET. AL., p.
188)
As percepções de legitimidade e justiça procedimental da polícia, assim, estão
bem próximas dos preceitos democráticos, ainda que Jones et. al. alertem que esses
não são consensuais:
In view of this, proposals to change the organization and structure of
the police service in a modern state, raise complex issues about the
nature of the state itself. There appears to be universal agreement
about the desirability of ‘democratic policing', but equally universal
disagreement about what exactly this would constitute. (JONES ET.
AL., p. 180)
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A partir disso, os autores esboçam quais seriam os fundamentos da
democracia de acordo com teóricos apresentados – tais Dahl e Held17 – e como eles
se aplicariam a um serviço público institucionalizado específico: a polícia. Tais valores
seriam, em escala de maior para a menor importância18: equidade, prestação de
serviço, responsiveness, distribuição de poder, informação, correção e participação.
Jones et. al. também expõem que esses valores podem orientar reformas na polícia
britânica, por meio da criação de estruturas de accountability, isto é, prestação de
contas para a sociedade. A seguir, detalharemos como o zelo por esses valores pode,
na visão do autor, dar sustentação para a construção de uma polícia mais
democrática. Cabe dizer, antes, que Jones et. al. enfatizam a instância local para
viabilização de tais valores, defendendo o modelo de policiamento comunitário19.
Primeiramente, o valor democrático da equidade pode servir de referência para
um policiamento adequado a diferentes tipos de crimes e a diferentes setores sociais.
Seria capaz de embasar políticas que incluam e busquem promover o tratamento
respeitoso a grupos étnicos e sociais marginalizados:
Structures which will allow this imbalance to be addressed are,
therefore, to be encouraged, all the more so if they bring the voices of
marginalized minority groups to the attention of framers of policy.
However, we should not be deceived into thinking that new forms of
representation which will serve such a purpose can easily be created.
The history of community politics tells us otherwise (Alinsky 1969).
(JONES ET. AL, 1996, p. 194)
Um segundo valor que assume grande importância no que tange à
concretização de novas políticas na polícia é o da entrega de serviço. Em se
almejando que essas tenham efetividade na garantia e na promoção dos direitos
humanos, é preciso que haja controle da atuação institucional. Nesse contexto, se
fazem necessárias estruturas que proporcionem uma maior fiscalização dos policiais,
17
DAHL, Robert. Who Governs? Democracy and Power in an American City. New Haven e
Londres: Yale University Press, 1961; HELD, David. Models of Democracy. Londres: Polity
Press, 1987
18
Os autores fazem ressalvas a essa classificação dos valroes: “The fact that some criteria
come lower down the list is not intended to imply that they are of negligible importance, simply
that there are 'democratic criteria' which may be more important in relation to policing. Neither is
it intended to imply that this list is exhaustive; simply that it covers some of the essential themes
which have run through thinking about democracy.” (JONES ET. AL, 1996, p. 190)
19
A valorização do policiamento comunitário consiste em uma proposta interessante ao Brasil,
onde ainda não se enraizou. Ver: Mesquita, P., 2001. Community Policing in São Paulo, Brasil:
Problems of Implementation and Consolidation. Seminário Polícia Comunitária: un análisis
comparativo de programas en cuatro ciudades de America Latina. Washington, DC: Banco
Interamericano de Desenvolvimento.
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limitando seu poder de discricionariedade. Do mesmo modo, uma estratégia apontada
para melhorar a prestação de serviço britânica, indo ao encontro das demandas da
sociedade, consistiria em realizar sondagens para ter um feedback da opinião pública
– por meio de surveys –, bem como de grupos específicos, como o de vítimas e de
testemunhas, o que aproximaria a polícia dos que mais foram atingidos pelos
problemas na segurança pública. (JONES ET. AL, 1996, p. 194).
Uma polícia mais democrática, além disso, precisa de maior responsiveness,
terceiro valor. Disso decorre a sugestão de criar mais e atribuir maiores poderes e
recursos às polícias comunitárias. Jones et. al. também sugerem que membros das
polícias comunitárias sejam eleitos, desde haja consultores técnicos. A presença dos
membros eleitos contribui fortemente para se estabelecer uma maior accountability da
polícia perante a sociedade, visto que colabora para se criar uma relação mais
próxima entre ambas.
Já o quarto valor, a distribuição de poder deve ser garantida com vistas ao
poder de coerção não ficar concentrado nas mãos de um único partido. Para tanto,
sugere-se que as autoridades de polícia locais tenham de fato poderes significativos
para resistir a esse cenário, bem como para fazerem valer as demandas de suas
localidades. Vemos, então, mais uma defesa do policiamento comunitário pelos
autores no contexto britânico.
A aplicação do quinto valor democrático, informação, na polícia se constitui
imprescindível para a prestação de contas. Indica-se que é preciso haver divulgação
de como as instituições policiais prestam seu serviço cotidianamente, como tomam
suas decisões e como desenvolvem políticas. No intuito dessa visibilidade, sugere-se
que se tenha maior abertura à mídia, maior possibilidade de visitação da polícia e
produção de vídeos institucionais. Isso ajuda para que a accountability não se restrinja
a situações após os resultados do serviço, mas também se dê na rotina policial.
A inserção do sexto valor, a correção, numa reforma que pretenda construir
uma polícia mais democrática, segundo Jones et. al., deve ser aplicado a todas as
instâncias do serviço policial. Primeiramente, isso exige que as os agentes policiais
locais não tenham cargos vitalícios, pois, tendo condutas inapropriadas, devem ser
sancionados e retirados dos seus cargos. Além disso, há a necessidade de se criar um
sistema de reclamações independentes, para se controlar adequadamente o porte de
violência por parte da polícia:
Police powers to deprive individuals of their liberty and to use force
(Bittner 1974) mean that a fully effective complaints mechanism—one
that is seen to be effective—is a key part of a system of democratic
3855
Anais do VIII Encontro da ANDHEP
ISSN: 2317-0255
accountability. The current system, in addition to providing too few
opportunities for redress, also fails on the grounds that the information
that it provides to complainants is considered by them to be
insufficient (Maguire and Corbett 1991). (JONES ET. AL.,1996, p.
196)
Cabe fazer uma observação sobre o sétimo valor: a participação. Tyler julga-a
essencial para a justiça procedimental da polícia. Jones et. al. também consideram o
ideal da participação em uma reforma policial, mas ficaria implícito, visto que se
concretizaria na operabilidade dos valores expostos acima, como no tratamento
dispensado na entrega de serviço.
Vemos, assim, que uma polícia democrática abre portas para uma maior
legitimidade, assentada em um maior controle da atividade policial, bem como em uma
maior accountability em relação ao público. A legitimidade, por sua vez, pode
incentivar a deferência ao próprio Estado de Direito.
David Bayley (2002) mostra que, em um contexto norte-americano, existe uma
lacuna entre as percepções de justiça e legitimidade sobre a polícia e o modo como
essa age. Ao passo que as percepções dos cidadãos parecem estabelecer uma
relação de proximidade com os princípios da democracia, dos direitos humanos e do
Estado de Direito, os agentes policiais, de modo geral, creem que é preciso, ao menos
ocasionalmente, extrapolar os limites das leis para prover a segurança efetiva dos
cidadãos. Essa cisão entre a opinião do público e a conduta da instituição tende a
gerar uma imagem consideravelmente negativa acerca da polícia, deslegitimando-a:
Police complain almost everywhere about the uncertainties of criminal
justice processing-slipshod prosecutions, inept and venal judges,
unwilling witnesses, cumbersome procedures, and laws loaded in
favor of suspects. Police are regularly accused, even in countries with
human rights records that are good by world standards, of engaging in
unjustified stops and seizures (Bayley, 1996a). They have been found
to fabricate evidence and testify falsely in order to gain convictions.
(…). Intimidation is especially disturbing when it is directed at whole
classes of individuals, as when police say that “those people only
understand force” or “people like that” have to be taught respect for
the law. (BAYLEY, 2002, pp.133-134)
Como exposto, esse comportamento de agentes pode violar brutal e
dramaticamente os direitos civis, piorando a percepção de sua legitimidade. Mas as
3856
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violações também podem ser mais rotineiras e difíceis de serem percebidas. Bayley
(2002) evidencia isso pelo caso de um policial texano que, para justificar paradas de
carros sem causa provável, mexia propositadamente num farol traseiro de freio, de
forma a deixá-lo sem funcionar. Com esse artifício, o policial aconselhava o motorista
a repará-lo, maquiando a parada ilegal e dando a impressão de uma ajuda bem
intencionada.
Por que se age de tal maneira? Usualmente, estudiosos apontam que a polícia
age dessa forma por não diferenciar o certo do errado, nem ter escrúpulos quanto aos
direitos humanos e às leis. O problema, logo, seria de caráter de consciência
normativa: seria preciso conscientizar a polícia, em um contexto norte-americano, de
seu dever duplo de promover a segurança pública e de seguir a legalidade. Bayley,
porém, acredita que essa interpretação é equivocada:
I think this diagnosis is mistaken. The problem is not normative, but
cognitive. The police generally know what behaviors are right and
wrong. The problem is that they believe that the violation of law and of
human rights is sometimes required for effective law enforcement. In
other words, many police have concluded, and are willing to admit it to
anonymous telephone surveyors, that rigid adherence to the rule-oflaw
is
sometimes
contrary to
their
responsibility to
protect
communities effectively. (BAYLEY, 2002, p. 134)
Logo, para se aumentar a legitimidade da polícia, algo que pode ser feito,
então, é demonstrar, com base em evidências concretas, de que pode haver
compatibilidade entre a retidão com a legalidade e a efetividade da polícia. Essa
demonstração seria uma forma mais consistente de as polícias adotarem um
comportamento institucional com potencial de colaborar na construção da sua
legitimidade perante o público e, desse modo, estar em maior consonância com o
cuidado com os direitos humanos.
Assim, se dá uma relação entre a legitimidade policial, o Estado democrático
de Direito e o respeito aos direitos humanos. Na medida em que ela pode ser
estimulada por reformas democráticas na polícia – como propõem Jones et. al., para a
Grã-Bretanha – e demanda o cumprimento do Estado de Direito – como Bayley
verificou nos Estados Unidos –, a legitimidade se torna basilar para a efetivação dos
direitos humanos. Seja pela via da maior democratização das estruturas policiais, seja
pela via da deferência aos direitos já assegurados pela lei.
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Embora a literatura até aqui apresentada sobre a polícia democrática e o
seguimento do ordenamento diga respeito a países anglo-saxões, vale dizer que há
alguns indícios de que ela também pode apontar para transformação na realidade
policial brasileira contemporânea. As poucas pesquisas realizadas no Brasil dedicadas
às percepções sobre a polícia e à confiança nessa parecem fornecer indícios de que
princípios democráticos, na opinião da população, não têm vigorado nos últimos anos.
Oliveira (2011) trabalha com dados coletados pelo Instituto de Pesquisas
Econômicas Aplicadas (IPEA) na pesquisa realizada para o projeto “Sistema de
Indicadores de Percepções Sociais do Serviço Público” (SIPS), com base em uma
amostra de 2.888 questionários, distribuídos entre as cinco regiões geográficas do
Brasil. A partir disso, busca verificar, entre outras, a seguinte hipótese: se a percepção
de desempenho (percepção geral) e qualidade dos serviços policiais (percepção
específica) é impactada por características individuais. O autor conclui que as
variáveis sociodemográficas são pouco significantes. Contudo, a única variável que se
faz relevante explicar a satisfação com as experiências com a polícia é a “cor de pele”:
a chance de uma atitude positiva é menor quando o entrevistado não é branco. Esse é
um possível indicativo de que as polícias brasileiras não tratam os cidadãos com
equidade, dispensando um tratamento menos respeitoso a não brancos.
No mesmo sentido, a pesquisa “Abordagem Policial, Estereótipos Raciais e
Percepções da Discriminação na Cidade do Rio de Janeiro” (RAMOS E MUSUMECI,
2004), realizada com base em pesquisa de opinião e entrevistas qualitativas, aponta
que mais da metade (55%) das pessoas autoclassificadas como pretas e metade dos
jovens de 15 a 24 anos parados pela Polícia, a pé ou em outras situações, disseram
ter sofrido revista corporal, contra 33% do total de brancos parados e 25% de pessoas
na faixa etária de 40 a 65 anos. Tais dados denotam a existência de um “tipo
suspeito”, cujo perfil é negro e jovem, na orientação da ação policial. Esse
superpoliciamento de uma parcela da população se opõe ao valor da equidade
descrito por Jones et. al.
Além da equidade, pesquisas denotam que as polícias brasileiras também
apresentam considerável falha em garantir um bom relacionamento com os cidadãos.
Utilizando dados produzidos pelo DataUFF, da Universidade Federal Fluminense,
coletados em 2002, Lopes (2013) sustenta que a desconfiança na polícia por parte dos
brasileiros não ocorre por fatores sociodemográficos, mas por déficits institucionais,
entre os quais a incapacidade de controlar a criminalidade, o tratamento díspar entre
cidadãos, corrupção, uso abusivo da força, entre outros. Lopes descobriu que
conforme aumentavam a avaliação do desempenho da polícia como insatisfatório e a
de seu tratamento como injusto, cresciam também as chances de não se confiar.
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No entanto, tais fatores não têm influência uniforme: enquanto que o
desempenho insatisfatório aumenta por volta de 11% a desconfiança na polícia
(LOPES, 2013), o tratamento insatisfatório dispensado pelos policiais praticamente
dobra a probabilidade de as pessoas desconfiarem da instituição. Vemos, com isso, o
grande peso que a população nacional dá à maneira pela qual a polícia exerce seu
poder. Essa é uma boa evidência de como os procedimentos salientados por Tyler
podem ser importantes para se criar uma confiança institucional no país.
Outro dado que advoga para isso as estatísticas que se encontra em um
survey feito pelo NEV/USP (CARDIA; CINOTO ET. AL., 2012) em 1999 e 2010 sobre
os julgamentos feitos sobre o uso da força por parte da polícia que implique ações
como “invadir uma casa”, “atirar em um suspeito”, “agredir um suspeito” e “atirar em
suspeito armado”. De acordo com as enquetes realizadas em onze capitais brasileiras,
os cidadãos do país em 2010, concordavam total ou parcialmente com essas três
primeiras ações mais do que em 1999. Porém, a maior parte dos entrevistados, em
2010, ainda afirma discordar totalmente dos quatro usos da força por parte de agentes
policiais: 63, 8% discorda de invasões de residências, 68,6% discorda de tiros em
suspeitos, 67,9% discorda de agressões a suspeitos e 38% de tiros a suspeitos
armados (CARDIA; CINOTO ET. AL., 2012, pp. 185-186). Isso reforça a ideia de que
uma considerável parte da população tem uma preocupação no sentido de restringir o
uso da força nos meios empregados pelos policiais no exercício de sua atividade.
Conclusão
Podemos dizer que nos estudos sobre a legitimidade da polícia, existem
elementos que se sobressaem e que possuem relação direta com aspectos
relacionados à democratização das forças policiais e às orientações fundamentadas
no respeito aos humanos. Como mostrado, o modelo proposto por Tom Tyler baseado
nos contatos entre cidadãos e instituições e os procedimentos utilizados por elas na
prestação de serviços se mostra bastante relacionado a reformas democratizantes da
instituição policial, bem como ao maior seguimento do Estado de Direito, ainda que
deva ser reaplicado em realidades em observância a realidades sociais muito distintas
da dos países anglo-saxões. Esses estudos sobre a justiça procedimental, sem
embargo, têm considerável valia para o cenário brasileiro contemporâneo, no qual se
pode perceber práticas iníquas da polícia e sinais de um mau relacionamento dessa
com a população, fatores que minam a confiança institucional.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Anais do VIII Encontro da ANDHEP
ISSN: 2317-0255
Contextos de entrada e saída das gangues de bairro
José Tiago de Queiroz Mendes Campos
Universidade Federal do Ceará (UFC)
Conversa no Banco da Pracinha
Quando em agosto de 2011 estabeleci residência em meu campo de pesquisa, o
Serviluz, tive a oportunidade de colher depoimentos gravados de quatro jovens que têm as
histórias de vida marcadas pelo pertencimento ao universo das gangues do bairro. Pretendo
promover uma discussão em torno desses depoimentos, cujo sucesso poderá ser medido
pela contribuição para um melhor entendimento das lógicas culturais de membros de
gangues.
Ouvi dos jovens entrevistados narrativas sobre o desejo de vingança, que pode se
transfigurar em obrigação; sobre a emoção, a “adrenalina” de realizar missões; sobre
conflitos com gangues rivais ou com a polícia; sobre o medo de morrer, que muitas vezes é
negado por representar sinal de fraqueza ou covardia. Deparei, portanto, com conflitos
humanos que antes de se expressarem de modo irracional, animalesco ou cruel, refletem
práticas culturais, formas de lidar com o mundo, vivenciada desde o início das vidas de cada
um daqueles jovens. Nessas vidas, a guerra entre gangues não é notícia distante de jornal,
pelo contrário, é a vida cotidiana deles. Suas narrativas servem de meio, através do qual
procuro me aproximar de suas representações do mundo.
Porém, como se sabe, as representações do mundo são formuladas em contextos
específicos por noções de regime moral oriundas desses contextos. Assim sendo, procuro
pôr em evidência os contrastes existentes entre o regime moral do contexto social desses
jovens e o do regime moral do contexto social dominante.
Nesse percurso, realizo também uma busca por eventos críticos, ou seja, aqueles
eventos que por se tornarem mais significativos, fazem com que seus significados
extravasem sua especificidade, redefinindo as formas de compreensão e ação, nas demais
esferas da vida (DAS, 1995).
Entrei em contato com três jovens, sendo que dois deles estavam passando por um
complexo processo de ruptura com o pertencimento ao microcosmo de uma gangue do
Serviluz, a Galera da Pracinha. Meu contato com eles se deu através da intermediação do
esportista, antigo morador da Pracinha. A conversa/entrevista se passou em um banco de
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praça, ao lado da avenida Zezé Diogo, no período da noite. Dezenas de crianças brincavam
pela praça e por vezes me preocupava o fato de eu poder estar gravando mais o barulho de
suas brincadeiras do que as vozes de meus entrevistados.
Expliquei aos jovens que se dispunham a ter as vozes fixadas por meu gravador que o
objetivo era conhecer suas narrativas, o lado dos ditos marginais, dos fora da lei de nossa
sociedade e dos “envolvidos” do Serviluz.
Naquele momento a etnografia de Bourgois (2001, p. 371), sobre um grupo de
vendedores de crack no bairro East-Harlem, em Nova York, me influenciava. Sobretudo,
quando em sua conclusão ele nos indica:
[...] Mon but le plus immédiat dans ce livre est d‟humaniser les ennemis américains
sans chercher ni à les censurer ni à les rendre plus presentables. [...] Plus
subtilement, je voudrais aussi placer les revendeurs de drogue et les petits
criminels à leur juste place dans la société de ce pays. Ce ne sont pas des
<<autres exotiques>> opérant dans un enfer irrationnel. Au contraire, ils sont made
in America.1
Em quais condições foram criados? De que maneira conheceram o Estado, isto é, que
tipo de participação as instituições estatais tiveram em suas vidas? Da infância ao momento
da entrevista, de que forma suas trajetórias pessoais foram influenciadas por instituições de
ordem mais abrangente? O que os levou à criminalidade? Quais os seus desejos para o
futuro? Essas interrogações certamente não poderão ser respondidas de modo definitivo,
mas possivelmente nos ajudarão a compreender como a opção pelo comércio de drogas
ilícitas e pelo combate armado pôde tornar-se irresistível para esses jovens.
Esclareço que não caberia em minhas proposições nenhuma tentativa de explicação
pelo princípio de causa e efeito. O que se tenta demostrar, com o auxílio de perspectivas
como a de Deleuze e Guattari (1995a), é o funcionamento de máquinas abstratas (Deleuze;
Guattari,1995a), com seus múltiplos e simultâneos agenciamentos compondo as
engrenagens que põem em movimento uma infinidade de signos interagindo com símbolos
na produção de significantes, estando em mútua dependência todos os elementos em sua
cadeia de produção. Passando de sua matéria-prima, os signos, ao produto final, os
significantes. Mas não se deve pensar em cadeias lineares, sendo a perspectiva mais
apropriada a da interdependência e interação mútua entre cada elemento. Partindo daí, o
1
Tradução livre: Meu objetivo, mais imediato neste livro é humanizar os inimigos dos americanos sem
tentar censura-los ou torná-los mais apresentáveis. [...] Mais sutilmente, eu também gostaria de
colocar os traficantes de droga e os pequenos criminosos em seu legítimo lugar na sociedade deste
país. Eles não são os <<outros exóticos>> operando em um inferno irracional. Ao contrário, eles são
made in America.
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que tento capturar é o traçado da dinâmica própria do pensamento humano que tal
perspectiva nos propõe, buscando compreender o traçado de diferentes planos de
representações. O que se tenta responder é: como se dá o agenciamento maquínico na
produção das subjetividades desses jovens, inexoravelmente imersos em seus contextos
específicos? Quais os planos de ação? Ora, os dois autores nos deixam a pista de que as
máquinas abstratas traçam planos “ou „diagramatizam‟ o que se passa (linhas de fuga ou
desterritorializações absolutas)” (Deleuze; Guattari, p. 89). Quais seriam as linhas de fuga
destes jovens? A que territorializações e desterritoritarizações eles apontam em seus
devires?
As entrevistas visam deparar com situações em que as linhas de fuga e os processos,
seja de desterritorialização ou de territorialização, expressam-se com maior clareza no
cotidiano dos jovens. Sendo a descrição desses processos o que realmente nos importa,
viso possibilitar um passeio por suas histórias de vida. Sigamos, então, pela infinidade de
linhas
de
fuga,
criadoras
de
devires
que
se
expressam
em
processos
de
desterritorialização/territorialização, sendo, por conta disto, consequentemente, um espaço
de invenção, da criatividade. Passo às palavras de meus colaboradores: o rapaz sentado no
banco, o rapaz em pé e o rapaz de bicicleta.
RAPAZ SENTADO NO BANCO: Tenho 23 anos, já trafiquei, já atirei nos outros, já
deixei aleijado, sou marcado quase em todo o canto do meu bairro...
TIAGO: Marcado como? O que é marcado?
RAPAZ SENTADO NO BANCO: É, conflito entre gangue. Tenho uma família que
mora ai em baixo eu não posso visitar porque eu sou marcado lá, aí eu não posso.
Eu entrei nisso porque mataram um primo meu. Aí eu peguei, morava lá, também
né, nas áreas que os caras mataram meu primo. Ali no Titanzinho. Aí andava lá e
eles botavam queixo comigo. Eu trabalhava, era trabalhador, cidadão, né, aí de
repente comprei logo um revólver, ai fui atrás logo do que não presta, aí de lá pra
cá, quando eu ia lá, era só pra querer matar os outros. Atirei num bocado de
gente, fiz vários inimigos, aí pronto. Aí viajei um tempo, viajei...
O rapaz em pé tomou a palavra, fazendo com que a sua entrevista se cruzasse com a
do rapaz sentado no banco. Resolvi mantê-las assim, afinal, em suas trajetórias de vida
quantas vezes seus caminhos não teriam se cruzado?
RAPAZ EM PÉ: Tem quando o cara, quando o cara começa, quando o cara é
muito novo o cara começa por aventura...
TIAGO: Foi assim que tu começou?
RAPAZ EM PÉ: Porque o cara acha tudo aquilo massa, não é por nada, o cara
não tá precisando de nada, mas quer fazer aquilo pra se sentir, adrenalina. Mas
ele acha que aquilo ali... lá na frente é que o cara vai ser nada. Mas só que ele se
engana, é uma coisa que está se aprofundando, igual uma coisa entrando numa
areia movediça assim. E quando ele menos perceber ele já tá aqui... O mundo
oferece muita coisa fácil. O cara entra tão de um jeito assim, que ele nem percebe
que já... tá entendendo? Pra voltar vai ser difícil, por isso que eu digo que a
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juventude não cresce mais nem até mais trinta anos. Eu tenho vinte e cinco. Eu
passei três anos, agora tá com quinze dias que eu saí, eu tava lá no IPPS.
TIAGO: Porque tu foi preso?
RAPAZ EM PÉ: 157 aí na praia.
TIAGO: 157 é?
RAPAZ EM PÉ: Assalto.
TIAGO: Assalto. E a polícia pegou em flagrante?
RAPAZ EM PÉ: Com certeza.
Gostaria de pontuar este trecho na fala do rapaz em pé, quando ele nos diz: “não é por
nada, o cara não tá precisando de nada. [...] lá na frente é que o cara vai ser nada”.
Pareceu-me intrigante como se fez marcante a presença do “nada” em seu discurso. É
evidente que esse nada não seria um vazio. Pelo contrário, o lugar que ocupa o “nada” em
seu discurso parece possuir uma importância central. Busquei compreender atento às
entrelinhas quais valores, expectativas e motivações estariam por trás da superfície de sua
primeira fala. Não desprezei a importância da busca por adrenalina. Tal busca o faz “se
sentir”, trata-se de um tipo de realização pessoal que me remeteu à lógica do guerreiro
selvagem (CLASTRES, 2004). Essa lógica explica como a busca por prestígio pode levar o
sujeito a realizar feitos cada vez maiores com o intuito de manter o seu reconhecimento por
parte dos pares. Seguindo então por essa via que faz o “bichão” ser reconhecido, quanto
maiores forem os feitos de suas missões, maior será o prestígio dentro de seu grupo. Em
contrapartida, justamente por isso, o desejo de seus inimigos em lhe ver morto torna-se
mais destacado. Arriscaria dizer que existe uma correlação entre prestígio e ódio por parte
dos inimigos. Dessa forma, o membro mais poderoso de uma gangue é também o mais
cobiçado pelos inimigos. Temos, portanto, uma mescla de sentimentos antagônicos
compondo o fenômeno de reconhecimento social intrínseco aos jovens armados do Serviluz.
É por isso que a busca por “adrenalina”, não pode ser entendida aqui como uma mera busca
pelo aumento da produção desse hormônio a ser lançado no sangue. Não, a busca por
adrenalina o faz “se sentir”! Se sentir reconhecido, considerado.
Passo a palavra ao rapaz em pé:
RAPAZ EM PÉ: O sistema é desse jeito. Essa via só dá dois caminhos: morte ou
cadeia. Quem entra é sabendo, só morte ou cadeia. Tudo ele vai ganhar, mas
tudo ele vai perder. Desde os 15 anos o máximo que eu passo, assim, que eu
passei até agora foi um ano.
TIAGO: Um ano dentro de casa?
RAPAZ EM PÉ: Como assim? Sai, passa um mês, dois mês, três mês... É o
sistema, que aí o cara sai e começa a drogar de novo, se o cara aguentar. Desde
os 15 anos, tá entendendo... O máximo que eu passei foi um ano na liberdade
direto, nunca passei disso. Agora eu vou passar, se Deus quiser.
TIAGO: E o que te fez testar essa adrenalina aí que tu disse?
RAPAZ EM PÉ: É o convívio, é as amizade, tem muita coisa cara, eles incentivam,
o cara começa a pichar aqui, o cara quer pichar naquele prédio mais alto lá, só pro
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cara ver o nome dele, mais ele nem se intera que se ele escorregar ele vai pro
fundo.
TIAGO: Pela consideração dos outros?
RAPAZ EM PÉ: Podes crer... ninguém nem precisa não, a mãe do cara dá tudo,
dá tudo...
O que a mãe do cara não pode dar é a consideração da galera, esta, assim como o
prestígio do guerreiro selvagem, não se herda.
Dando continuidade aos distintos processos de imersão, pude ver que –
diferentemente da busca de vingança do rapaz sentado no banco e da “busca de
adrenalina” do rapaz em pé, o rapaz de bicicleta nos narra a seguir como se envolveu na
teia armada das disputas de gangues:
TIAGO: Como teu irmão entrou nisso?
RAPAZ DE BICICLETA: Não, não sei dizer.
TIAGO: Ele é mais velho?
RAPAZ DE BICICLETA: Não, ele é mais novo. Eu tenho 21, e ele tem 19. Ele
começou primeiro que eu, muito antes, aí depois eu vi que os caras tavam
querendo matar ele, ai eu... Num sei o que é que deu em mim, me envolvi.
TIAGO: Pra proteger...
RAPAZ DE BICICLETA: Proteger o meu irmão. Eu comecei nessa vida por causa
do meu irmão, porque os caras... Os inimigos do meu irmão queriam matar o meu
irmão, e pra não ver o meu irmão morrer, aí eu entrei nessa mesma vida. Mas se
eu fosse olhar agora, eu, o que eu queria agora pra mim mesmo era a vida que eu
estou levando agora. Porque entrei na igreja, tô trabalhado, tô conseguindo agora
as minhas coisas, como eu não consegui na vida do crime, por quê? Porque tudo
que eu passei, passava preso, levei tiro, já passei muitos dias no hospital…
As histórias de vida desses três jovens estão marcadas não apenas por conflitos entre
gangues, ou seja, fora da família, mas também por conflitos dentro do núcleo familiar. O
julgamento moral de suas atitudes não pode ignorar as suas condições de vida. E mais:
àqueles que argumentem que a violência é por si mesma uma ação contra a moral, recorro
ao campo da filosofia para lembrar com Nietzsche (2009, p. 83) que
[...] a submissão a uma norma fixa, de uma população que até então carecia de
norma e de freio, tendo começado por um ato de violência, só podia ser levada a
cabo por outros atos de violência: e que, por conseguinte, o “Estado” primitivo
entrou em cena com todo o caráter de uma espantosa tirania, de uma máquina
sangrenta e desapiedada, e teve que continuar assim, até que, por fim, uma tal
matéria brutal de animalidade foi abrandada e tornada manejável, e finalmente
modelada. (...) Tal é a origem do “Estado”.
Ora, mesmo que se ignore essa interpretação da origem do Estado e se insista na
idéia de que o hoje independe do passado, na atualidade, o chamado “homem de bem” é
caracterizado majoritariamente na sociedade por sua subordinação às leis estatais.
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Continuando a percorrer trechos das histórias de vida dos personagens, é possível observar
claramente como essa distinção pode tornar-se obscura.
TIAGO: O que é que tu achava do teu pai vender droga?
RAPAZ SENTADO NO BANCO: Pra mim... Eu era avião dele. Eu ia deixar quilos e
quilos de maconha daqui, daqui do Serviluz lá pra Messejana. Eu tinha o quê?
Acho que uns 11 anos, 12 anos. Com a mochila nas costas... roupa da escola,
botava uma calça, um sapato, uma blusa, uma blusa da escola, uma mochila, ia,
cansei de ir. Ganhava nada. Só porque era meu pai, só porque ele mandava.
Nesse caso, o rapaz sentado no banco, aos 11, 12 anos era “aviãozinho”, transportava
maconha na mochila escolar pela cidade, em obediência ao pai. O que lhe aconteceria caso
se negasse a transportar as drogas? Sofreria punições bem mais severas do que as
prescritas no Código Penal? Ora, este Código provavelmente era tão desconhecido e
distante de sua realidade quanto o auxílio que ele poderia obter através do Estatuto da
Criança e do Adolescente, constituído na Lei n° 8.069, de 13 de julho de 1990. É preciso
pensar através de sua realidade na qual as punições do pai certamente se apresentavam
mais factíveis que as do Código Penal.
Na busca de uma maior compreensão dos percursos traçados por estes jovens,
retomo a noção de carreiras morais elaborada por Becker (2008) que tem o mérito de
desvelar os regimes morais como fenômenos moldados pela contingência histórica e social.
Os regimes morais são influenciados tanto por aspectos relacionados aos planos de análise
de
uma
macrossociologia
quanto
pela
microanálise.
Através
da
perspectiva
macrossociológica, por exemplo, o contexto econômico em suas repercussões se estende e
marca diversos outros planos de nossa sociedade. Partindo da perspectiva de uma
microssociologia, é possível perceber as condições e possibilidades que foram postas ao
longo das vidas dos entrevistados, sendo esta a perspectiva a que me dediquei com mais
ênfase.
A proposta é apresentar alguns pontos de interseções dessas perspectivas nos quais
os fenômenos da vida cotidianas destes jovens entram em contato com imperativos
coletivos deontológicos, imperativos estes que perpassam os diversos segmentos da vida
social, a fim de, como propõe Florence Weber (2004, p. 42), “mettent en evidénce les
violences matérielles et symboliques subies au quotidien par les classes sociales les plus
dominées.” 2 . Aparece notória aqui, a idéia de Bourdieu acerca de seu conceito de
dominação simbólica.
2
Tradução livre: Pôr em evidência as violências físicas e simbólica sofridas diariamente pelas classes
sociais mais dominadas.
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Jovens marcados como agentes de carreiras morais desviantes (BECKER, 2008),
marginalizados no plano social, narram experiências de vida na infância, no momento da
tomada de decisão de se identificar com membros de gangues. Além disso, dois dos três
entrevistados narram também o que os motivou a dar início a um complexo processo de
desligamento de relações sociais que compõem as gangues do Serviluz.
Seguindo o relato da trajetória familiar do rapaz sentado no banco:
RAPAZ SENTADO NO BANCO: A minha família, né, não tinha onde eu morar não,
minha mãe foi embora pra casa dela por causa que meu pai, meu pai vendia
droga, ficou devendo traficante. O traficante disse que se minha mãe não pagasse
ia matar eu e meus irmãos, aí meu pai pegou, vendeu a casa dele pra pagar a
divida, entendeu? Vendeu a casa dela. Eu não tava nem sabendo... de trás da
casa dela tinha o meu quarto, ela vendeu foi meu quarto e a casa dela junto... eu
nem sabia. Quando eu me acordei de manhã, o dono, o cara que tinha comprado
a casa já tava lá, né, mandando nós sair. Eu saí, né, que ela já tinha ido embora,
saí da casa que minha mãe tinha vendido pra ele. Aí nós foi embora. Por isso que
eu não falava com o meu pai, tá entendendo? Dava vontade de matar ele. Tinha
muita vontade de matar ele, agora não, agora já passou, já falo com ele, pouco
tempo que eu falo com ele...
Após o episódio o rapaz sentado no banco passou a viver só. Viria a encontrar nas
amizades uma segunda família. Tornou-se membro de gangue. A gangue compunha uma
família na qual desde cedo seus membros aprendem a se proteger e atacar os inimigos para
demonstrar coragem, bravura, vingar os mortos. Nos trajetos cotidianos, precisam estar
atentos às demarcações territoriais que se enquadram nos espaços de pertença de grupos
armados. Ruas, avenidas, prédios de maior porte, pontos específicos do relevo servem
como fronteiras dos territórios das gangues.
No novo grupo no qual o rapaz sentado no banco foi acolhido, as demonstrações de
valentia fazem parte da rotina da luta pela sobrevivência em um cenário repleto de
adversidades.
TIAGO: Tinha alguém te perseguindo, te ameaçando?
RAPAZ SENTADO NO BANCO: Não, eu já era marcado assim mesmo, como eu
sou hoje né... Mas pra mim num tava dizendo nada não, pra mim era mesmo que
nada... pra mim, eu pensava assim “que nada, eu não compartilho desse bicho
não”. Eu pensava assim “que nada...” no meu pensamento né. Quando eu tava no
mundo era assim: “que nada esse menino num tem coragem de ir me matar não,
se vier também, eu mato”. O pensamento do cara é esse. O cara não tem medo
não, até antes de... a gente pode andar ali até o Marzim. Eu ia até a rua do
Bagulho. Só pra andar, sem nada, desarmado, só pra ir arengar com os caras
mesmo.
TIAGO: Tu era marcado por lá?
RAPAZ SENTADO NO BANCO: Era. Eu ia atrás do cara lá, tacava bala no cara,
era, querendo mandar no cara, e era assim [Pausa]. Aí eu só me afundando, só
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me afundando, aí pronto fiquei sozinho no mundo. Quando a minha mãe foi
embora, foi a parte que eu me senti mais só assim, a minha família foi só as
amizades, as amizades que eu tinha.
TIAGO: E o que foram as tuas amizades?
RAPAZ SENTADO NO BANCO: Eles que foram o quê? Foram a minha família, né.
[Outra pausa]. No dia onze de agosto de 2009 eu me envenenei mah. Sabia?
TIAGO: Tentou se matar?
RAPAZ SENTADO NO BANCO: Tentei. Veneno, chumbinho, tomei. Mas eu não
morri não.
TIAGO: Levaram pro hospital?
RAPAZ SENTADO NO BANCO: Levaram.
TIAGO: Quem foi que te levou?
RAPAZ SENTADO NO BANCO: Quem levou foi o meu cunhado, me levou lá, aí
quando chegou lá, cheguei cinco horas da tarde lá, quando foi seis horas da
manhã do outro dia, eu saí, bonzinho.
TIAGO: E por que tu fez isso?
RAPAZ SENTADO NO BANCO: Vai sair no jornal minha historia... Eu fiz isso por
que eu acordei num dia meio atribulado assim pensando só na minha mãe, com
saudade, todo dia quando eu me acordava, eu tinha minha mãe perto de mim, eu
tinha tudo, né, minha mãe, quando eu me acordava, minha mãe já tinha feito meu
café, tinha roupa lavada, e eu sozinho eu num tinha não.
TIAGO: Com saudade da tua mãe, né?
RAPAZ SENTADO NO BANCO: É. Era falta dela mesmo, aí eu peguei e tomei.
De um lado, o destemido, corajoso a ponto de andar desarmado nas áreas do inimigo
só para “arengar”, aquele que for atrás de matá-lo, ele mata. Do outro, a solidão, a saudade
dos cuidados da mãe, de seu afeto, levando-o a uma tentativa de suicídio. Há, portanto,
casos em que agressões físicas e psicológicas sofridas na família, na escola, nas mãos da
polícia ou dos grupos rivais, ou seja, em diversos segmentos da rede de socialidade, podem
levar o indivíduo ao suicídio.
Outro efeito das agressões é o de provocar uma familiaridade, uma adaptação à rotina
do “mundão”. Sá (2010, p. 261-262) nos contextualiza:
O que é o mundão? Mundão é o que se diz de boca cheia, “eu vim do mundão”,
“eu fui do mundão”, “me criei no mundão”, “aprendi com o mundão”. palavra cheia
que representa simbolicamente tudo o que se sofreu e o que se tem para sofrer,
mas também representa a dor e o sofrimento individual, que, no Serviluz é
parecida com a de todos. O mundão é o lugar da irmandade no crime. Mas
também da irmandade na sobrevivência, o que implica principalmente receber
afeto, carinho e atenção de alguém. Os jovens do sexo masculino, por exemplo,
ao mesmo tempo em que são guerreiros, são muito carinhosos entre si, inclusive
com contatos corporais, abraços e acolhimentos, como se fossem de uma
carência afetiva sem fim ou então afeitos a dar afeto para quem é considerado um
irmão.
Por tudo isso o mundão não poderia jamais ser entendido como um espaço físico mais
ou menos delimitado onde se passam determinados tipos de eventos. O mundão não
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corresponde apenas ao local onde seus personagens são criados, ele também diz respeito a
uma determinada maneira de integrar-se ao mundo, sob condições bastante desfavoráveis.
Pensando-se com o auxílio de Bourdieu (1974), diria que os indivíduos que
compartilhavam o habitus interiorizado no “mundão”, encontram-se despotencializados de
capital simbólico que lhes garanta boas oportunidades para além de seus campos.
Seguindo o raciocínio de Bourgois (2001, p. 60) seria como se eles estivessem “dépourvu
du <<capital culturel>> necessaire pour réussir dans l`univers de la classe moyenne, ou
même de la classe ouvrière.”3.
São sujeitos que reagem aos poderes dominantes que os oprimem social e
culturalmente. Opressão esta que dificulta ainda mais a obtenção do capital cultural que lhes
possibilitaria maiores chances de sucesso em contextos que fogem das representações
coletivas do mundão. Dessa forma, ficam sujeitos a uma série de dificuldade em situações
que exigem todo um savoir faire, que com frequência lhes é negado. Consequência disso é
o aumento da dificuldade para obtenção de capital cultural, e a dominação simbólica tende a
tornar-se cada vez mais opressora.
O mundão lhes é uma escola de vida, algumas vezes, a única à qual tiveram acesso.
As lições aprendidas no mundão são levadas aonde quer que seus sujeitos estejam. Isto
não significa que eles não possam aprender lições diferentes e adotem novas maneiras de
lidar com o mundo, modos mais pacíficos e ordenados, no sentido formal do termo, o que é
um desejo expresso de muitos. Observe-se, contudo, que o pacifismo não é exatamente o
que está melhor estabelecido no mundão, tampouco as regras formais nas quais se apoiam
diversos setores da sociedade dominante. Isso não lhes foi oferecido ou ensinado. No
mundão a fome é uma ameaça real que deve ser vencida a cada dia. Mãe, pai, filhos, filhas,
avôs, netos, primos, tios dividem o mesmo teto, quando não acontece o pior que é o
abandono da casa, a fragmentação da família, marcada por problemáticas como a do crack,
do alcoolismo, das prisões, dos assassinatos etc. Observe-se o que o rapaz de bicicleta
relata.
RAPAZ DE BICICLETA: Meu pai mora no Rio Grande do Norte. E até pra lá eu fui
também, tentar mudar de vida, mas não consegui. A minha coisa era mais pra cá,
pra fazer maldade, fazer mal pra outras pessoas, e até isso, quando eu fui pro Rio
Grande do Norte, eu voltei mais por causa de que tinham baleado meu irmão, eu
já tava muito revoltado... atiraram nas costas do meu irmão, nas costas dele, e até
por isso eu vim pra cá, pra mim querer ir atrás dos caras. E aí, quando tava com
uma semana aqui, aí fui eu, meu irmão e outras pessoas, fomos atrás desses
3
Tradução livre: desprovidas do << capital cultural >> necessário para ter sucesso no universo da
classe média, ou mesmo da classe operária.
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caras que atiraram no meu irmão. Encontramos eles, mas não conseguimos
matar, nós erramos os tiros. Era eu e mais cinco dentro dum carro.
TIAGO: Vocês atiraram de dentro do carro?
RAPAZ DE BICICLETA: Não, nós saímos de dentro do carro, corremos atrás
deles, mas nós num conseguimos pegar eles. Até hoje nós temos marcas de bala
do passado.
Estas marcas de balas do passado, traçadas no corpo do rapaz de bibicleta,
irromperam o que Das (1995) chamaria de eventos críticos. O que viria a ocorrer quando o
próprio corpo é alvejado? O rapaz de bicicleta pode responder:
RAPAZ DE BICICLETA: Atiraram em mim.
TIAGO: Levou o tiro aonde?
RAPAZ DE BICICLETA: Um faz quatro anos. Foi perto do coração, faltou um
centímetro pra pegar no meu coração e os outros foi no ano passado quando eu ia
saindo da igreja... tava saindo da vida... tava saindo da igreja, eu e minha
namorada, em frente à casa da minha namorada, chegaram quatro caras em duas
motos, olharam pra mim, aí gritaram logo o meu nome, “Oh „rapaz de bicicleta‟!”, aí
atiraram em mim, aí deram seis tiros, aí pegou dois. Pegou um no meu braço, e
pegou outro nas minhas costelas que ficou alojada no meu peito. E a que faz
quatro anos atrás também está alojada no meu peito.
TIAGO: Tem duas balas aí contigo?
RAPAZ DE BICICLETA Tem. Uma de oitão [revólver calíbre 38mm] e outra de
três dois [revólver calibre 32mm]. E agora, depois que eu saí daquela vida, que
eu... como eu digo, né, apanhei muito, quebrei a cara, pra mim ver
verdadeiramente o caminho certo; é servir a Deus e construir uma família, como
eu tô tentando fazer agora, eu já tô conseguindo as minha coisas, já tô
trabalhando, graças a Deus, Deus abriu uma porta de emprego, e tô caminhando
a vida. É como diz né, é empurrando com a barriga. E agora eu penso mais em
só construir uma família mesmo e não voltar mais pra aquela vida, por quê? Como
eu já fui preso, já sei como é que é lá...
TIAGO: Você trabalha?
RAPAZ DE BICICLETA: Agora eu trabalho.
TIAGO: Em quê?
RAPAZ DE BICICLETA: Trabalho como ajudante de garçom, auxiliar. Ganho
super-bem agora. Era quando eu era do mundo, quando eu era do tráfico, eu
ganhava bem, mas era aquele dinheiro que era sujo, vinha fácil, ia fácil, e agora
não, agora eu sei valorizar o meu ganho, né, o meu suor. Que eu vejo,
antigamente, eu pegava meu dinheiro, usava droga, outra hora eu comprava uma
roupa, gastava só com besteiras, agora não. Quero fazer agora uma casa pra mim
e quero mudar de vida, cada dia mais.
A partir da irrupção de eventos críticos, dois dos entrevistados foram lançados no
“mundão”. No caso do rapaz sentado no banco, a morte de um primo o fez pegar em armas
para sair “atrás de matar os outros” – não podemos desprezar aqui o contexto familiar e
social no qual se passa sua história. Lembro que seu bairro vivia um contexto marcado por
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acaloradas disputas de gangues; que o pai era traficante e usuário de drogas, que vendeu a
casa sem aviso para evitar que suas dívidas fossem pagas com o sangue da família.
A realidade desses jovens não é marcada por notícias distantes de uma violência
abstrata. Pelo contrário, o contato com a violência se faz por meio de balas que lhes
marcam o corpo ou tiram suas vidas. Quando não as suas, de amigos, parentes, inimigos ou
de um pedestre que ia passado pela rua no momento errado e recebeu no corpo uma das
balas que não alcançaram o alvo: o rapaz de bicicleta. Ele conta o episódio.
RAPAZ DE BICICLETA: Muitas vezes teve polícia mesmo atirando em mim. Eu
tinha roubado e a polícia correu atrás de mim e começou a atirar. E naquele
momento ali eu e meu irmão, ele olhou pra polícia e me disse: “Ei mah, se abaixa
que é melhor pra tu...” Por que eu tava mais perto da polícia, que a polícia tinha
me pegado e eu me joguei no chão, pegaram meu irmão lá na frente, deram uma
pisa na gente, mas num quiseram levar nós porque nós era de menor. Como diz
na lei, né... que de menor não responde nada, a coisa pequenas, então os
policiais só quiseram bater na gente mesmo, bateram na gente e depois soltaram.
Mas teve muitas vezes que, como eu falei, depois desses tiros também,
aconteceram muitas coisas, ficaram correndo atrás de mim. Até mesmo aqui
nessa pracinha, eu sentado naquele banco ali, chegaram uns caras lá daquela
esquina ali, correram, chegaram naquela esquina e eu bem ali, eu corri, pra cá,
cheguei aqui na frente e os caras começaram a atirar e assim, não pegou nenhum
tiro em mim, mas o cara que ia passando de bicicleta, pegou um tiro, ele não tinha
nada a ver na história... aí eu, aquele mesmo cara que ia passando na bicicleta,
ele caiu no chão, eu ainda pulei em cima dele, por que o tiro pegou, era pra pegar
em mim, mas pegou num inocente.
TIAGO: Ele morreu?
O RAPAZ DE BICICLETA: Não, graças a Deus não, pegou de raspão na espinha
dele, aí ele perdeu o movimento das pernas na hora que ele ia passando de
bicicleta. Até aqui mesmo aqui, nas praias mesmo, também, nas praias mesmo
aconteceu isso já comigo, os caras correrem atrás de mim e eu correndo e os
caras atirando em mim...
TIAGO: Isso foi que horas?
O RAPAZ DE BICICLETA: Era... aqui na pracinha, foi de noite, esse horariozinho
já, de oito e meia para nove horas. Ali na praia foi de dia já, era umas dez horas
pra onze horas. Os caras vieram e me viram no meio do caminho e começaram a
atirar em mim.
Lidando com a Polícia
Na rede de socialidade das gangues do Serviluz, a força policial, aquela que possui o
monopólio da legitimidade da violência, atua como uma força repressora. Contudo, sua
atuação não se faz fora do contexto do mundão, de tal modo que menos comum do que se
observar policiais seguindo as regras oficiais do código de conduta policial, que visa impedir
atos como os de abuso de poder, corrupção e tortura, a polícia, tanto quanto os
“envolvidos”, os “marcados”, atua segundo as regras do mundão.
Notar-se-á, por conta disso que a instituição policial, submetida duplamente aos
agenciamentos da sociedade dominante e às regras do mundão, não mantém a legitimidade
intacta perante os jovens “envolvidos” do mundão. Observa-se nas redes tecidas na esfera
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local do mundão a polícia realizando atuações em um nível não-especializado. Ainda assim,
as ações policiais estão inseridas em processos políticos cuja manifestação se enquadra no
tipo trans-institucional.
RAPAZ SENTADO NO BANCO: Primeira vez que você paga “pedágio” pros canas
[policiais], toda vida eles quer, toda vida, onde vê o cara. Se pegar o cara com
droga ai o cara paga pedágio pra ele, né, paga um dinheirinho pra ele, onde ele vê
o cara ele quer o mesmo dinheiro, fica cobrando direto.
TIAGO: Aí é melhor não pagar?
RAPAZ SENTADO NO BANCO: É, melhor dizer que não tem. Porque ou o cara
paga ou o cara vai pra cadeia, aí tem uns que paga, né? Pra não ir pra cadeia,
paga. Uns tem medo de ser preso... Aí num quer ser preso não, paga mesmo, aí
onde ele vê o cara...
TIAGO: Você já pagou alguma vez?
RAPAZ SENTADO NO BANCO: Nunca fui pego assim vendendo droga não. Fui
pego só querendo matar os outros, armado...
TIAGO: E se for pego vendendo droga é pior? É, por que ai tem o dinheiro no
meio, né? Que ai o cara tá comercializando, né? Pra matar o outro o cara num tá
com o dinheiro, né?
RAPAZ SENTADO NO BANCO: É. Pra matar um eles querem só a arma. Se vão
só pra limpeza, leva só a arma e dispensa o cara, mas tem uns que leva pra casa
deles, é porque as vezes você num dá valor pro cara, assim, assim também,
pegar o cara, bota o cara na cadeia por besteira, qualquer coisa quer botar na
cadeia, mas tem policial, tem uns policial que paga moto pro cara mah, aí só
porque conhece o cara, sabe o que o cara já fez na vida, aí num pode ver o cara
não...
Chama a atenção nessa fala perceber que a ação policial pode ser bastante maleável
diante de uma situação de tentativa de homicídio, enquanto que, numa situação de trafico, a
ação policial pode se estabelecer numa configuração econômica marcada pelo ilegalismo.
Retornando à fala do rapaz sentado no banco sobre sua relação com a polícia:
TIAGO: Tem algum assim contigo?
RAPAZ SENTADO NO BANCO: Não. Graças a Deus. Porque quando eu via a
policial assim, eu não ficava muito não. Eu num gosto muito de se amostrar pra
policia não, eu me escondia, eu me saía...
TIAGO: E tem gente quem goste?
RAPAZ SENTADO NO BANCO: É, os cara vê a polícia, ai fica lá parado, pra levar
geral, num gosto de levar geral não.
TIAGO: E por que tem gente que gosta disso? Que vai pra...
RAPAZ SENTADO NO BANCO: Sei não, pra ficar conhecido, sei não, se acha, pra
ganhar fama, o pai dele é bandido...
TIAGO: Pra ganhar fama de bandido?
RAPAZ SENTADO NO BANCO: É, é, pra ganhar fama de bandido.
TIAGO: E isso é bom?
RAPAZ SENTADO NO BANCO: Pra eles, eles pensam que lucram muito, mas
num lucra nada não. É só ilusão da mente dele, só ilusão.
TIAGO: Ganha consideração da galera?
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RAPAZ SENTADO NO BANCO: Pronto.
TIAGO: Mulher?
RAPAZ SETADO NO BANCO: Pronto. As mulher cai em cima viu. Se o cara for
vagabundo, for um cidadão num arruma nem namorada, mas se for vagabundo...
Porque se o cara for vagabundo, se o cara roubar, ou gangueiro, o cara tem duas
ou três mulher, mah, essa é sagrado. Ou o cara vender droga, ou o cara ser
gangueiro, ou o cara rouba, o cara tem duas ou três mulher.
TIAGO : Por que tu acha que as mulheres gostam disso?
RAPAZ SENTADO NO BANCO: Ah... Porque elas são mais vagabundas ainda.
São, são mais vagabunda ainda.
TIAGO: É que o cara é valente, né?
RAPAZ SENTADO NO BANCO : É, pra dizer assim: “Ai, eu fico é com um bichão
ali que já matou um” Ai se acha, pra elas também é um lucrão sabe. Mas pensa
ela que vai ser muita coisa, vai dar muito é peia também, é.
Gostaria de acrescentar que não percebi nas narrativas que venho reproduzindo a
sensação de impunidade, tantas vezes apontada como a causa dos altos índices de
criminalidade pelos discursos mais conservadores. Nota-se que mesmo a punição não
sendo aplicada de acordo com o que as leis do código penal orientam, muitas vezes ela
assume formas mais duras, até cruéis, podendo inclusive resultar na morte por
espancamento, mortes anunciadas em conversas de rua.
Ciclope4 matou outro. Só tinha golpe no rosto, no resto do corpo não tinha nada.
Só as mãos furadas, o Ciclope sempre anda com uma faca. O médico disse que
todos os ossos da face estavam quebrados. Quando ele tentava respirar chega
fazia bolhas de sangue pelo nariz e pela boca. Parece que viram que foi ele,
quando baixar a poeira o povo começa a falar, que agora o povo tem medo.
Sete dias depois encontro com pessoas com a foto da vítima estampada em uma
camisa que lhe faz homenagem. Entre elas, um de meus colaboradores. É ele quem nos
conta o que teria acontecido:
Ele não gostava de polícia e não aceitou passar pelo “baculejo” [revista]. Começou
a discutir com a polícia, trocaram empurrões e ele foi levado pela viatura.
Apareceu cinco horas da manhã com o rosto muito inchado, mas sem hematomas.
Ele não andava armado, era trabalhador. Católico e família protestante, foi rezada
uma missa pra ele ontem e hoje um culto. A família e os amigos esperam o laudo
do IML para entrar com um processo. Seus órgãos foram doados conforme a sua
vontade. Só as córneas não puderam ser aproveitadas por causa do
espancamento.
4
Ciclope é o apelido usado pelos moradores do Servuiluz para se referir a um policial do batalhão de
choque a quem se atribui supostamente a autoria de uma série de assassinatos.
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Não é de estranhar que crimes desta natureza vitimando morador de favela não
cause maior repercussão social? Ou tal estranhamento já estaria banalizado pelos efeitos
do estigma da pobreza anteriormente citado? Como nos propõe Foucault (1974, p. 242),
Diante da disciplina com aspecto de lei, temos a ilegalidade que se impõe como
um direito. A ruptura se dá mais pela indisciplina do que pela infração. Indisciplina
de linguagem: a incorreção gramatical e o dom das respostas, indicam uma cisão
violenta entre o acusado e a sociedade.
Essa cisão acaba sendo preenchida por confrontos entre diferentes visões do mundo.
O resultado são conflitos entre razões sociais antagônicas, nas quais se opõe, de um lado, a
liberdade de ação aprendida na realidade do mundão, do outro lado, a disciplina respaldada
pela sociedade dominante.
RAPAZ DE BICICLETA: Aí rola bala, rola bala, se tiver de cima [portando arma ou
droga], se não quiser ir preso, vai e troca bala com a polícia. E muitas vezes
também... os policiais também já invadiram lá em casa, levaram até já minha mãe
presa...
TIAGO: Por quê?
RAPAZ DE BICICLETA: Pra minha mãe entregar eu e meu irmão, mas a minha
mãe não quis entregar nós dois, por que meu irmão tinha....
TIAGO: E ia entregar como? Falar por onde é que vocês estavam... Falar que
vocês tavam fugindo...
RAPAZ DE BICICLETA: Era. Que nós, eu e meu irmão, eu, meu irmão e mais
dois, tinham ido lá na área dos nosso inimigos e tinha atirado lá, e os pessoal lá
reconheceram a gente, e os policiais vieram e pegaram minha mãe dentro de
casa, tinha acabado de chegar do trabalho, quando os policiais invadiram a casa,
a minha mãe na hora que bota a bolsa em cima da cama, quando os policiais
chegam chutando a porta, e pegam ela. E lá dentro de casa pegaram...
TIAGO: Mas bateram nela?
RAPAZ DE BICICLETA: Não, não. Só pegaram as... Tinha drogas, tinha umas
balas, levaram umas roupas da gente, e levaram uns cordão da gente, meu e do
meu irmão. E aí ele pediu... Aí na mesma hora chegou minha cunhada, levaram
minha cunhada também presa, pra minha cunhada entregar o meu irmão, mas
nenhuma das duas entregaram e ficaram até duas horas [da madrugada], com ela
lá pra ela entregar nós.
TIAGO: E ela não entregou...
RAPAZ DE BICICLETA: Depois soltaram elas...
TIAGO: E que horas elas foram pra lá?
RAPAZ DE BICICLETA: - Foram na faixa de nove e meia.
TIAGO: Da manhã ou da noite?
RAPAZ DE BICICLETA: Não, da noite.
TIAGO: Nove e meia da noite até duas horas?
RAPAZ DE BICICLETA: Ficaram lá com ela. Pra ela entregar a gente. Por causa
de nós, de mim e do meu irmão, nós não queria mudar de vida. Porque a gente só
queria saber de droga, mulher, armas.
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Tal descrição nos aproxima da representação que o mundão faz das atuações
policiais. A forma agressiva de participação da polícia no mundão é praticamente
naturalizada por aqueles que estão imersos nesse contexto marcado pelo comércio ilegal de
drogas e de armas, por ameaças, mortes e torturas. Por tudo isso, uma vez tendo o
pertencimento atrelado a este contexto, faz-se necessário aprender não só a se defender de
gangues rivais, mas aprender a ter trato com a polícia. Lidando com a polícia, o rapaz
sentado no banco relata:
RAPAZ SENTADO NO BANCO: A vida é essa mesmo, muitos meninos aí,
novinho ai ó, tá, vê o mundo aí ó, vê muito camarada do cara morrendo e cara
novinho vê os amigos morrendo assim, os cara num quer se sair não, os cara quer
entrar mais mah, que nada eu vou entrar também, eu vou é ficar nessa também e
entram, mah. Aí ó, essa aula num dura não mah, num dura não. Eu tenho o quê?
Eu tenho 23 anos, mah, eu, tenho 23 anos mah, e eu acho que eu tenho uns dez
nessa vida ai roubando, querendo matar os outros, os outros querendo me matar,
já levei papoco, mas, graças a Deus, nunca pegou em mim, já fui preso, por quê?
Porque quis matar os outros, aí a vida é essa aí mah.
TIAGO: E a polícia, como é a relação com ela? Tem algum já conhecido?
RAPAZ SENTADO NO BANCO: Tem, quando os caras “veve” ver os cara assim,
os cara quer bater, vem com o...
TIAGO: Arranca dinheiro?
RAPAZ SENTADO NO BANCO: Só dos que vende drogas assim, levei um chute
aqui na minha cara ó, eu levei um chute na cara, eu desmaiei, mah, desmaiei duas
vezes, eu levei foi saco d´água... Da polícia. Levei foi saco d´água! Nunca tinha
levado na minha vida...
TIAGO: Saco d´água, como é isso?
RAPAZ SENTADO NO BANCO: Bota o saco aqui ó [no pescoço], e acocha aqui ó
e o cara fica sem ar. Eu fiquei foi se batendo lá e eu ia... Pensei que ele ia matar,
me leva num canto distante, que não tem ninguém...
TIAGO: Que local era, tu conhecia?
RAPAZ SENTADO NO BANCO: Eles me levaram lá pra Cidade Fortal...
TIAGO: Cidade Fortal onde tem a micareta?
RAPAZ SENTADO NO BANCO: Pronto. Lá tem a famosa Bica. Bica é o quando
que eles espancam os caras. Lá é, a tortura é lá. Aí é peia. O policial me pegou,
né, queria tirar minha roupa pra enfiar o cassetete na minha bunda pra mim
entregar o revólver, que eu tinha atirado no cara, pegaram sem nada, tiraram foi
minha roupa, fiquei só de cueca. Pra dizer “Não, tem revolver não, cidadão” “Tem
não?” “Não, tem não” e viraram, queriam botar na minha bunda, num botou por
que o que mandava mais naquela criatura não deixou. Se não, tinha botado, pra
mim entregar.
TIAGO: E tava aonde o revólver?
RAPAZ SENTADO NO BANCO: Tava, já tava guardado.
TIAGO: Guardado, tu num ia dizer nem a pau né?
RAPAZ SENTADO NO BANCO: Pode dizer não, né? Porque o cara se torna
cabuete. Cabuete não é bem visto na favela não. Aí os camarada vai ficar logo:
“ixi...” já não tem confiança no cara. Aí qualquer coisa: “Olha o cabuete, olha o
cabuete” Qualquer coisa vai chamar de cabuete.
TIAGO: E pro cabuete virar alvo...
RAPAZ SENTADO NO BANCO: É. Apagar cabuete é bem rasim.
Gostaria de aproveitar este trecho da narrativa do rapaz sentado no banco para refletir
sobre um argumento bastante disseminado no senso comum da sociedade brasileira. Pelo
que nos permite inferir a sua narrativa, o seu cotidiano não é especialmente marcado por um
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sentimento de impunidade por seus atos. Pelo contrário, há uma série de precauções a
serem tomadas com relação ao trato com a polícia e com relação às regras do mundão. E
pelo que nos é relatado, a punição pode vir dos dois lados.
TIAGO: E você acha que não tem como sair não? Você já tentou sair?
RAPAZ EM PÉ: Assim, o cara acalma, deixa a poeira baixar, o cara num pode ser
afoito de uma vez não que malandro demais vira bicho.
TIAGO: Malandro demais vira bicho?
RAPAZ EM PÉ: É. A gente num pode só querer ser não, que lá na frente tem um
que é mais que o cara, mah. Até poder botar a cabeça assim e dormir na
limpeza... saber que não tem ninguém querendo tirar onda, ou ficar atrás. Aí só os
fortes sobrevive.
TIAGO: Aí só os fortes sobrevivem...
RAPAZ SENTADO NO BANCO: É mesmo viu, mah. Nós vê muito aí, muito
amigos nossos ai...
RAPAZ EM PÉ: Uma hora tá com a corda no pescoço...
TIAGO: Você conhece alguém que já fez isso?
RAPAZ EM PÉ: Com certeza. Faz parte, isso dentro da cadeia.
TIAGO: E porque ele fez isso?
RAPAZ EM PÉ: Depressão, a mulher deixou e tal, muitos anos sozinhos e tal,
muitos anos de cadeia pra puxar, ele achou melhor antecipar, mah. É o currículo
mais paia que ele fez. Muito paia, né, bastante. Lá eu vi dois se matar, né. Um foi
no Ano-Novo, o outro foi...
TIAGO: Na cadeia também?
RAPAZ EM PÉ: Sim, na cadeia.
RAPAZ SENTADO NO BANCO: É Babilônia, outro mundo, dia de defunto. Tá
assim na mão do inimigo assim, ele que sustenta...
TIAGO: Lá dentro?
RAPAZ EM PÉ: É.
TIAGO: Tem uma hierarquia entre os presos?
RAPAZ EM PÉ: Não, tô dizendo assim, na mão do inimigo, tá entendendo?
TIAGO: Ahh, da polícia...
RAPAZ EM PÉ: É. É perverso, é perverso... só quem passa assim, uns diazinhos,
que sente mesmo como é que é, criar calos nos pés dormindo no chão.
A impunidade também não está presente na fala do rapaz de bicicleta. Em sua
narrativa despontam algumas considerações sobre o irmão preso:
RAPAZ DE BICICLETA: Meu irmão agora tá no presídio. Porque ele roubou e
matou uma pessoa, na mesma hora. Aí os homens pegaram ele lá em frente de
casa. Foi lá na praia do Futuro e ele correu aqui pro Serviluz. Eu, graças a Deus,
tô aqui, né, tentando construir uma família, e meu irmão tá lá né, preso, doido pra
sair, mas não consegue por quê? Porque o caso dele é muito pesado.
TIAGO: Tem quantos anos que ele tá lá?
RAPAZ DE BICICLETA: Vai entrar em dois anos já. É assim mesmo, a filha dele
vai lá, visitar ele, ele tem uma filha, vai fazer um ano e meio já. Ela vai visitar ele
lá, mas é um desgosto né? A filha visitar o pai, que a menina inocente, num sabe
o que está acontecendo, né, lá. Doido querendo que o pai dela passeie com ela,
mas ele disse pra ela que não pode. Ela chama ele pra ir andar: “Bó pai, andar!”
“Não, minha filha, posso não”.
TIAGO: Ela vai toda semana lá?
RAPAZ DE BICICLETA: Não, quase toda semana ela vai com a minha mãe.
TIAGO: E quanto tempo mais ele tem que ficar lá?
RAPAZ DE BICICLETA: Porque ele foi preso, como eu falei, com roubo e tráfico,
foi, roubou e matou uma pessoa, o latro, e lá mesmo, o policial aqui da área
mesmo, como tinha muita raiva do meu irmão, foi lá e abriu um outro processo em
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cima dele, de um roubo que ele fez também, duas semanas antes ele roubou
umas bolsas duns gringo, aí os policial soube que tinha sido ele, e foi lá e abriu
outro processo em cima dele. Só nesse processo, nesse primeiro processo, ele
pegou cinco anos, cinco anos fechado e fora esse que ele foi preso mesmo.
TIAGO: Esse que ainda tá rolando aí?
RAPAZ DE BICICLETA: Que ainda tá rolando, enquanto isso, eu acho que vai
puxar um bocado de tempo, por que o processo... Até mesmo o advogado falou:
“Olha o teu irmão vai puxar muito tempo viu”.
TIAGO: E tu confia no advogado, acha que ele é bom ou faz corpo mole?
RAPAZ DE BICICLETA: Rapaz, dizem que ele é bom.
TIAGO: Dizem que é bom né?
RAPAZ DE BICICLETA: É.
TIAGO: Mas e vocês que pagam ou é do...
RAPAZ DE BICICLETA: Não, é do governo mesmo, público...
TIAGO: Mas ele atende legal? Quando vocês querem alguma coisa ele...
RAPAZ DE BICICLETA: Atende. Ele mesmo transferiu o meu irmão pra outro lugar
melhor ainda, melhor assim, entre aspas né, porque lá onde ele tava era mais
ruim, comiam pouco, e lá, onde ele tá agora, come melhor, tem mais, tem visita
mais, que é uma vez na semana e uma no final de semana, é melhor, né.
Pareceu-me especialmente interessante a participação do policial em sua narrativa: “o
policial [...] tinha muita raiva do meu irmão”. Por meio dessa organização dos fatos a raiva
que o policial tinha do irmão do rapaz de bicicleta é apontada como elemento decisivo.
Trata-se de uma explicação na qual o traço de pessoalidade sobressai ao da formalidade.
A Saída
O processo de desterritorialização do mundão é acompanhado, inexoravelmente, por
um processo de territorialização. Passa-se a dar prioridade a um novo plano de imanência
em suas vidas. Os agenciamentos se transformam, podendo levar seus sujeitos a seguir,
por exemplo, linhas de fuga que se territorializam em uma vocação religiosa ou no
estreitamento dos laços com pessoas de outros campos de intensidade. Os laços de
amizade, nesse processo de desterritorialização, mais do que em quaisquer outros, estão
ameaçados.
Para se deixar as teias de socialidade do mundão é necessário passar por um
complexo processo de desligamento das linhas que as constituem. É mister estar atento
para que rupturas bruscas de convívio não sejam mal interpretadas pelos amigos ou sirvam
de oportunidade para a vingança do inimigo. Portanto, não é um processo que se complete
do dia para noite. É necessário que alguma mudança na visão de mundo de quem quer se
desligar do mundão tenha ocorrido, mudança tal como as geradas por eventos críticos (Das,
1995).
TIAGO: Mas o que é que tu acha que mudou quando tu levou o tiro?
RAPAZ DE BICICLETA: Foi. Assim, depois desses tiros, eu comecei a andar
nesses outros cantos que eu não andava, os caras viram que eu não fui atrás, que
eu não fui atrás de confusão, nem nada.
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TIAGO: Tu começou a valorizar outra coisa? Tu sabe dizer o que foi?
RAPAZ DE BICICLETA: Foi. Não, não sei o que foi que aconteceu. Eu não sei
dizer [pausa] Veio uma coisa dentro de mim mesmo. Porque, primeiro de tudo, eu
me afastei daquelas pessoas que queriam só o meu mal, que queria só me levar
cada vez mais pro mal... isolei aqueles que diziam que eram meus amigos, mas
quando a gente tá na pior, quando a gente tá preso, quando a gente tá precisando
de um, num chega pra ajudar. Mais a minha família que sempre tava pra ajudar,
minha família é só minha mãe. Minha família é só eu, minha mãe, meu irmão.
Morava só nós três. Até hoje nós temos marcas de bala do passado.
TIAGO: E tu acha que um dia essa marcação sai? Algum dia vai poder andar
tranquilo em todo canto?
RAPAZ DE BICICLETA: É, já andei, nas áreas que eu não andava, que eu fiz mal
pros caras lá eu tô andando.
TIAGO: Mas tu encontrou algum ou...
RAPAZ DE BICICLETA: Encontrei. Até armado um tava. Mas ele olhou para mim e
disse “É, [rapaz de bicicleta], enquanto você tiver na igreja, nós num faz nada
contigo, mas se tu sair...” E ele armado. Com o revólver na cintura e eu vendo o
revólver na minha frente e o cara que eu atirei.
TIAGO: Tu já tinha atirado nele?
RAPAZ DE BICICLETA: Atirei nele, eu e meu irmão.
TIAGO: Ai te respeitou porque tu tá na igreja?
RAPAZ DE BICICLETA: Respeitou porque eu tava na igreja e tava vendo que eu
tô mudando de vida, num era aquele velho [rapaz de bicicleta], e assim mesmo,
porque quando eu levei esses tiros, muitos perguntaram se eu ia voltar pro mundo,
voltar pra aquela vida, mas eu disse para mim mesmo que eu não ia voltar. Muitos
me chamaram de medroso, enquanto eu tava em cima da cama, disseram assim
“Ei mah, tu num vai cobrar não? Olha aí como tu tá mudado” Por quê? Porque eu
quis uma melhora pra mim, se eles fizeram isso comigo, não é desejando mal,
mas lá na frente eles vão colher os deles também, como eu colhi, eu plantei o mal
e colhi o mal. Agora eu tô tentando ajeitar, já tô colhendo coisa boa.
Algumas formas de sair são bem aceitas e respeitadas pelos membros das gangues,
como a conversão ao evangelho. Contudo, caso a conversão não seja convincente, poderá
ser mal vista por aqueles que compartilham da solidariedade do mundão. Nesse caso, o
pseudoconvertido poderá ser visto pelos parceiros como “laranja”, covarde, traidor, egoísta
etc. Quanto a seus inimigos, não haverá o reconhecimento de uma mudança a ser
respeitada. Deste modo, quem do mundão se declara “mudado”, tocado pelo Senhor, passa
por uma espécie de quarentena, um período de observação, suspeita, estranhamento de
sua nova atitude. Durante este período, caso seja visto, por exemplo, em bares bebendo,
consumindo drogas ou com armas na mão estará pondo a perder sua tentativa de
redefinição social. Em casos assim, a morte do membro desertor pode ser uma solução
adotada por quem desconfie ou não reconheça como legítimas as suas ações. Trata-se de
um perigo real o de ser mal interpretado quer pelos amigos, quer pelos inimigos. Quem se
desarma torna-se alvo fácil para os inimigos. É preciso, então, para aqueles que querem sair
do mundão, que algo, agora, além das armas lhe ofereça alguma segurança. O rapaz de
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bicicleta está passando pelo processo de saída da gangue. É possível que na busca do
“algo mais que lhe dê segurança” ele tenha passado a frequentar uma igreja o que lhe deu
força para se declarar decidido a sair. Mas tem de sair aos poucos.
RAPAZ SENTADO NO BANCO: Eu já frequentava lá, já gostava de ir pra igreja já,
aí foi quando eu pensei em me sair mesmo [do mundão] eu entrei mesmo [na
igreja]. Aí daí eu tô me saindo devagarzinho, dá pra sair de uma vez não porque já
pensa em sair e ver um inimigo seu quer... Vai querer pisar em cima de você...
TIAGO: Se aproveitar, né, que você tá saindo...
RAPAZ SENTADO NO BANCO: É. Pensa que o cara vai deixar, né, aí tem se
enganado, né.
TIAGO: E como é que sai devagarzinho?
RAPAZ SENTADO NO BANCO: Só se sair das amizades...
TIAGO: Vai deixando a amizade de lado?
RAPAZ SENTADO NO BANCO: É porque a pessoa, se ficar junto ali, se afunda
mais, tem que se sair devagarzinho, não deixar de falar, mas sair devagarzinho.
TIAGO: Se o cara deixar de falar ...
RAPAZ SENTADO NO BANCO: Vão chamar o cara de otário, de laranja, você me
vê e chama de laranja...
TIAGO: Aí te chamaram?
RAPAZ SENTADO NO BANCO: Já, um bocado de vez, mah.
TIAGO: Aí tem que falar com o cara e...
RAPAZ SENTADO NO BANCO: É, mas eu não ligo não, entra aqui e sai aqui ó...
TIAGO: E por que laranja?
RAPAZ SENTADO NO BANCO: Porque o cara quer se sair, porque o cara tem
medo, pensa que o cara tem medo...
TIAGO: Aham, pensa que o cara tá se acovardando, né?
RAPAZ SENTADO NO BANCO: Pronto, exatamente, pensa que o cara tá com
medo, ele fala “Ser laranja cara, deixa eles pegar tu, eles te mata, tu pensa o
quê?”
TIAGO: Mas sem medo, é só aquela coisa que viu que ali num tem futuro...
RAPAZ SENTADO NO BANCO: É. Num tem futuro não.
TIAGO: Procurando paz?
RAPAZ SENTADO NO BANCO: Tem que procurar a paz, porque, Graças a Deus,
aqui tá muito calmo, já foi muito violento, aqui era demais, uma hora dessa num
tava assim não a pracinha...
Não basta, portanto, simplesmente declarar-se convertido e frequentar os cultos. A
conversão é posta à prova. Há uma quarentena, quem se serve da igreja apenas para se
proteger do grupo rival terá de incorporar as práticas instituídas pela igreja. Caso seja
flagrado em uma atividade que indique que sua identidade permanece atrelada ao mundão
e que a conversão não passa de uma fachada, as dívidas deixadas serão cobradas. Caso a
conversão tenha sido sincera é possível o perdão das dívidas pelos membros do mundão,
mantendo-se com isso uma linha de fuga da guerra que se trava no mundão.
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Quem decide sair tem de tomar cuidado para não ser confundido com traidor, o que
pode ser bastante preocupante, considerando-se que os membros do grupo conhecem
detalhadamente os percursos, as táticas e as estratégias do grupo ao qual se vinculam.
Acredito que seja esse o motivo que faz com que, em casos de traição, a execução seja a
melhor resposta. Quem está saindo está dando as costas para um grupo que conhece
intimamente, a rotina de seus membros, seus esconderijos, por tudo isso a saída tem de ser
gradual. Trata-se de um empreendimento delicado, uma vez que quem sai de uma gangue
torna-se um risco potencial para ela, caso resolva “abrir o bico”. Provavelmente por isso, a
igreja seja importante para quem esteja saindo, não se trata simplesmente de uma questão
de fé. Trata-se do envolvimento com um outro poder que de alguma maneira lhe dá
legitimidade, proteção e autoestima moral. Há um complexo código a se seguir, constatado
no encontro do rapaz de bicicleta com um membro armado de uma gangue rival, em quem o
próprio rapaz de bicicleta havia atirado, e, em vez de bala ele recebeu um aviso, repito o
trecho: “É, enquanto você tiver na igreja, nós não faz nada contigo, mas se tu sair...” A igreja
lhe salvou a vida nesse encontro.
Do Desamparo ao Mundão
Generalizar o conflito entre gangues a todos os moradores do Serviluz seria de um
reducionismo tal que qualquer reflexão crítica que procure superar os preconceitos de
classe será suficiente para demonstrar a inviabilidade dessa generalização. Contudo é
preciso estar atento, pois, como Castro (2011, p. 315-316) explica, “concepções imaginárias
(mas todas o são) produzem efeitos reais (e todos o são)”.
O conflito entre gangues não ocorre por iniciativa única dos membros de gangues.
Uma série de fatores, tais como o convívio dentro e fora de casa com armas e drogas,
permite que estes dois produtos, menos do que símbolos de crueldade e decadência moral,
tornem-se um meio de sobrevivência. Trata-se de uma maneira de lidar com o mundo,
dialogando e relacionando-se com situações específicas.
Nesses contextos há casos em que tanto a dissolução do núcleo familiar, quanto a
ruptura de linhas trançadas na rede das relações familiares encaminham o sujeito ao
“mundão”, consolidando seu sentimento de pertença a ele. Um exemplo disso é o caso do
rapaz sentado no banco, que teve como evento crítico a venda da casa por seu pai.
Já no caso do rapaz de bicicleta, foi justamente a consolidação do núcleo familiar, a
demonstração da força coercitiva de suas linhas na trama da rede que acabaram por
encaminhá-lo para o mundão, pois o que levou o rapaz de bicicleta, irmão mais velho, a
ingressar como sujeito actante na rede de socialidade das gangues do Serviluz foi a
necessidade de proteger o irmão caçula, jurado de morte.
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Assim, múltiplos fatores fazem com que diferentes sujeitos ingressem na guerra do
mundão: se o pai vende a casa para pagar dívida de droga e a mãe deixa o filho para trás,
resta, no desamparo, recorrer à solidariedade do mundão. Se o irmão corre risco de morte,
a polícia é vista como inimiga e os policiais como torturadores, algo precisa ser feito para
além do que está prescrito pelas leis para a proteção dos membros das próprias famílias.
Demonstrações de violência, invasões do território inimigo não podem ser reduzidas
apenas a perturbações mentais provocadas pelo efeito de drogas ou atos de rebeldia sem
causa. Trata-se, antes disto, de demonstrações de poder por parte daqueles que são
despotencializados de poder simbólico no contexto da cidade. Suas práticas não são vazias
de conteúdo, para quem as escute. Passam o recado de quem aprendeu a viver desafiando,
desafiado pela morte: “quem mexer comigo ou com a minha galera a gente vai e mata”.
Bibliografia:
BECKER, Howard. Outsiders: estudos de sociologia do desvio. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Editor, 2008.
BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 1974.
BOURGOIS, Philippe. En quête de respect: le crack à New York. Paris: Seuil, 2001.
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antropologia. São Paulo: Cosac Naify, 2011.
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DAS, Veena. Critical events: an anthropological perspective on contemporary India. New
Delhi: Oxford University Press, 1995.
DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia, 1. São Paulo:
Editora 34, 1995a
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 2008.
NIETZSCHE, Friedrich. A genealogia da moral. Petrópolis: Vozes, 2009.
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LX, n° 680-681, janvier-février 2004.
SÁ, Leonardo Damasceno de. Guerra, mundão e consideração: uma etnografia das relações
sociais no Serviluz. Tese (Doutorado em Sociologia) - Universidade Ferderal do Ceará,
Fortaleza, 2010.
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“MARCHA SOLDADO, CABEÇA DE PAPEL, QUEM NÃO MARCHAR DIREITO VAI
PRESO PRO QUARTEL”:
Direitos Humanos e reconhecimento na profissão policial militar
Priscilla Alves Carício, Universidade Federal da Paraíba
Fábio Gomes de França, Universidade Federal da Paraíba
Introdução
Este artigo é fruto dos primeiros escritos realizados para o trabalho de conclusão do
Curso de Especialização em Segurança Pública e Direitos Humanos, o qual se encontra em
andamento pela Universidade Federal da Paraíba. Além disso, trata-se, pois, do resultado
das vivências intra corporis dos autores como agentes de Segurança Pública, ou melhor,
como policiais militares no Estado da Paraíba, onde exercem atualmente funções atinentes
ao posto de Capitães na Polícia Militar do referido Estado.
Nesse sentido, as observações e reflexões adquiridas ao logo de dez anos no
cotidiano intramuros da caserna PM passam aqui a serem tratadas por uma perspectiva
objetiva, de modo que o campo das ciências sociais e jurídicas não impossibilita a relação
que se estabelece entre o pesquisador e o seu mundo profissional, o que nos leva a seguir a
assertiva de que é possível tornar o “familiar em exótico”.1
Pretende-se, neste caminho, retroceder-se aos acontecimentos históricos que
desencadearam o surgimento dos Direitos Humanos, bem como destacarmos, no que tange
aos direitos fundamentais da pessoa humana, os conceitos filosóficos da “razão” e do
“respeito” a partir de Kant. Por esse escopo, temos que tais conceitos serviram para balizar
os ideais que justificam os Direitos Humanos na tradição filosófica kantiana, o que nos
permite aplicá-los à realidade vivenciada pelos policiais militares.
Em sequência, serão traçadas noções sociológicas sobre a Teoria Crítica surgida na
Alemanha, a qual se notabilizou pelos pensadores da Escola de Frankfurt, entre os quais
podemos destacar nomes como o de Horkheimer e Adorno, ambos seguidores de uma
tradição voltada para o “hegelianismo de esquerda”.2 Desse modo, mostrar-se-á a transição,
por uma perspectiva de ordem moral, do pensamento de tradição marxista para o projeto
filosófico defendido por uma teoria social pós-metafísica de luta por reconhecimento, cujo
expoente encontra-se em Axel Honneth.
1
2
Ver Da Matta (1978), Velho (1981), Mendonça (2010), Silva (2002), Souza (2012), França (2013a).
Para um melhor conhecimento ver Redyson (2011).
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Por fim, sob a perspectiva honnethiana, analisaremos algumas situações referentes
às práticas cotidianas das Polícias Militares, o que nos leva a enxergar que, o não
reconhecimento dos direitos policiais militares torna-se um obstáculo para que esses
profissionais também não reconheçam o significado do que é respeitar e ser respeitado.
Como efeito desse processo, ocorre o distanciamento entre servidores policiais militares e a
população civil.
1. Percurso Histórico dos Direitos Humanos
O surgimento dos Direitos Humanos é permeado pelo debate que remete a duas
correntes, quais sejam: a Jusnaturalista e a Historicista. Segundo a primeira, representada
por filósofos como Hobbes e Kant, desde a Antiguidade, todo ser humano tem direitos
naturais implícitos encontrados em um Estado de Natureza e o papel do Estado é somente o
de reconhecer tais direitos e não mais criá-los. Torna-se claro, assim, o entendimento do
que defende a referida corrente quando revisitamos a obra de Sófocles, intitulada Antígona 3,
no momento no qual a filha de Édipo deseja enterrar seu irmão, Polinices, mesmo indo de
encontro à lei de Creonte, tornando-se latente a discussão, desde então, das leis naturais
em contraposição às leis positivas.
Já a corrente historicista se posiciona para o surgimento dos Direitos Humanos na
Modernidade, representando fonte de seu desenvolvimento os acontecimentos históricos e
os conflitos sociais, “por isso, a história conceitual, ou história das ideias, deverá ser lida
sempre mostrando a relação e a vinculação com a história social” (TOSI, 2005, p. 107),
estando sempre direcionada para uma técnica que foque nas forças sociais, ou seja,
Melhor dizendo, por um método de estudo que procure compreender como,
e por quais motivos reais ou dissimulados, as diversas forças sociais
interferiram, em cada momento, no sentido de impulsionar, retardar ou, de
algum modo, modificar o desenvolvimento e a efetividade prática do „direitos
humanos‟ na sociedade. (TRINDADE, 2002, p. 16).
Partindo deste entendimento, parece-nos indiscutível que foi como resposta aos
horrores dos regimes totalitários, das duas grandes guerras mundiais, dos genocídios e
extermínios de povos considerados “inferiores”, que surgiu no momento pós-guerras, em
1945, a Organização das Nações Unidas - ONU e por ela instituída, três anos depois, a
Declaração Universal dos Direitos Humanos - DUDH. Nesta última, ficou clara a intenção
3
Para conhecer a tragédia grega ver Sófocles
http://www.ebooksbrasil.org/adobeebook/antigone.pdf>.
Antígone
(2005).
Disponível
em
3883
<
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dos legisladores de integrar os três lemas da Revolução Francesa de 1789, como nos
esclarece Bobbio (2003):
Não hesito em afirmar que a proclamação dos direitos humanos é um
divisor de águas no curso histórico da humanidade no que se refere à
concepção das relações políticas. E é um sinal dos tempos que, para tornar
sempre mais irreversível esta inversão, se conjuguem até encontrar-se, sem
se contradizerem, as três grandes correntes do pensamento político
moderno: o liberalismo, o socialismo e o cristianismo social. (p. 206)
Não sendo por acaso, pois, que se traçado um mapa das gerações de direitos
humanos, podemos destacar: uma primeira dimensão, de efetividade forte e de natureza
liberal, representada pelos direitos civis e políticos; uma segunda geração, de caráter
socialista e efetividade mediana, ligada aos direitos sociais, econômicos e culturais e uma
terceira dimensão com fraca efetividade, com viés cristão, relacionada a valores como a
solidariedade e a fraternidade para uma nova ordem internacional.
A fim de exemplificar o que está sendo dito acima, destaca-se o artigo 1º da
Declaração Universal dos Direitos Humanos4 que reza: “todas as pessoas nascem livres e
iguais em dignidade e em direitos. São dotadas de razão e de consciência e devem agir em
relação umas às outras com espírito de fraternidade” (grifos nossos).
Retomando o debate das duas correntes que discutem a origem dos Direitos
Humanos, cabe-nos ainda salientar, localizada a discussão agora dentro do que preconiza o
artigo 1º do dispositivo legal acima citado, o tão latente entrelaçamento entre os
pensamentos desenvolvidos nas duas doutrinas, fato este observado na positivação, em um
documento legal internacional, de uma referência jusnaturalista quando prevê que todos os
indivíduos nascem livres (grifos nossos).
Por fim, analisando criticamente o percurso histórico dos Direitos Humanos e a
fundamentação dos movimentos sociais envolvidos nesse processo, imbuídos da invocação
dos Direitos Humanos para legitimar a vitória desses direitos, em uma verdadeira
reformulação histórica, temos que “as mesmas ações que, vistas da perspectiva de outras
concepções de dignidade humana, eram ações de opressão ou dominação, foram
reconfiguradas como ações emancipatórias e libertadoras, se levadas a cabo em nome dos
direitos humanos” (SANTOS, 2013, p. 46).
Portanto, em complemento ao que foi exposto anteriormente, e diante da indagação
de Trindade: “O que pretendiam e por quais causas lutavam aqueles franceses que, em
nome dos direitos humanos, fizeram uma revolução tão sangrenta? Contra que lutavam?”
(TRINDADE, 2002, p. 18), impossível não ponderar conforme Boaventura de Sousa (2013,
p. 42): “Será a hegemonia de que goza hoje o discurso dos direitos humanos o resultado de
4
Disponível em: <http://www.onu-brasil.org.br/documentos_direitos humanos.php>.
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uma vitória histórica ou, pelo contrário, de uma derrota histórica?” Afinal, segundo Tosi
(2005), ao discorrer sobre a afirmação histórica dos direitos humanos, tem-se que “essa
história é complexa, ambígua, ao mesmo tempo de emancipação e opressão, de inclusão e
de exclusão, eurocêntrica e cosmopolita, universal e particular” (p.108)
No entanto, o que não pode ser esquecido é a influência iluminista principalmente no
século XVIII, que acabou por consolidar ideais como o de progresso e felicidade atrelados à
razão de modo que, por esse prisma, para Kant (1784), em sua obra “Ideia de uma história
universal com um propósito cosmopolita”, “a razão é a faculdade de ampliar as regras e os
propósitos do uso de todas as suas forças muito além do instinto natural, e não conhece
nenhum limite para seus projetos” (p. 5). Dentro de uma visão cosmopolita, como verdadeiro
cidadão do mundo, o filósofo enxerga o indivíduo voltado para um propósito maior, o uso da
razão nas disposições naturais humanas. Desta forma, partindo de um entendimento desta
história universal como sendo um percurso natural do progresso da razão,
[...] temos que reconhecer que foi a partir desse pensamento racional que
se desenvolveu ideais como o progresso, a felicidade, a liberdade e o
desenvolvimento humanos, todos esses elementos amadurecidos dentro do
processo de modernidade (FRANÇA, 2013b, p. 62).
Nesse sentido, o que estava em jogo era a busca por uma sociedade voltada para o
desenvolvimento material e moral dos homens mediante a razão e, consequentemente, a
condução da sociedade por parâmetros racionais fez eclodir o entendimento de que é
necessário aos homens estabelecer direitos fundamentais que garantam a paz e a harmonia
sociais. Se a razão tornou-se o elemento principal para a manutenção da crença de que os
homens poderiam respeitar uns aos outros por um princípio de igualdade jurídico-estatal
sem que um homem se torne um meio para o alcance dos objetivos de outrem, o surgimento
das
instituições
modernas,
ao
contrário,
trouxe-nos
outra
perspectiva
com
o
desenvolvimento de organizações baseadas em princípios racional-burocráticos, impessoais
e hierárquicos, entre as quais podemos encontrar as atuais Polícias Militares. E, por esse
foco, a garantia dos Direitos Humanos nessas organizações passou a ser um problema a
ser debatido atualmente.
Trazemos tal discussão pelo fato das instituições policiais militares em nosso país,
com a abertura político-democrática, terem passado por um processo de reformulações para
que se adequassem ao regime democrático vigente. Só que, exigir dos profissionais policiais
a interiorização e prática de princípios como liberdade e cidadania coloca-se a exigência,
também, de que os PM‟s vivenciem tais práticas no ambiente e nas relações intramuros das
casernas.
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Não obstante, o que ocorre é um paradoxo entre o que se exige dos policiais
militares em suas atuações na sociedade e o que eles experienciam nos quartéis, pois, tal
qual descreve Muniz (2008) o que se desenvolve no universo da cultura profissional PM é
“um mundo de obrigações refratário às conquistas cidadãs”. O que resta aos policiais
militares nessa conjuntura diz respeito a uma adequação superficial com o Estado
Democrático, onde se tem como função precípua legitimar valores humanitários na
sociedade sem ao menos ser experimentada tal realidade na sua formação e no seu
vivenciar dentro dos quartéis de polícia, fomentando, ainda mais, entre a classe policial
militar, o fortalecimento da perversa opinião de que os Direitos Humanos servem somente
para proteger os bandidos
Diante da negação contínua em democratizar algumas instituições ainda engessadas
pelo regime ditatorial vivido no Brasil entre 1964-1985, a exemplo das instituições policiais
militares, parece- nos salutar tomar nota das lições de José Damião de Lima Trindade, que
nos ensina que,
Parece claro que os oprimidos, os exploradores e humilhados de todos os
tempos sempre estiveram „preparados‟ para obter liberdade, igualdade,
respeito- quase nunca deixaram de aspirar a isso ou de lutar por isso. Uma
outra parte da humanidade – os que foram, são ou pensam que poderão vir
a ser beneficiários da exploração, opressão ou intolerância que exercem – é
que parece estar sempre „despreparada‟ para aceitar que aquela maioria
tenha acesso a tudo isso (2002, p. 17).
Entendemos, pois, que sem o respeito aos direitos fundamentais do policial militar,
não haverá o sentimento por parte deste como pertencente a uma sociedade democrática
de direitos, já que “as relações de poder existentes na instituição produzem no sujeito
policial o sentimento de impotência diante das ordens recebidas” (RIQUE; SANTOS, 2004,
p. 151), submetendo o agente de segurança pública “a um conjunto de forças impostas em
um campo hierárquico no qual ele é o elemento mais frágil” (Ibidem, p.151). Tal fato
descortina-se como vetor de interferência direta na qualidade da prestação dos serviços à
comunidade, pois,
A forte hierarquia existente na instituição, na qual ele é o último elemento da
cadeia, parece ser extrapolado para a sociedade. Reprimido na instituição,
ele pode afirmar seu poder na sociedade, à qual muitas vezes ele provoca
medo e exerce a repressão. (RIQUE; SANTOS, 2004, p.152).
Um registro claro de que essa convivência interna tensa, com práticas que violam os
direitos fundamentais refletem diretamente na sociedade é o estudo do professor Adriano
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Oliveira, fruto de uma experiência em sala de aula com policiais militares, que “demonstra
claramente que os policiais justificam suas ações violentas no espaço público e,
consequentemente, na sociedade civil pelas „práticas internas‟ da instituição” (OLIVEIRA,
2002, p. 200). Então, em meio a essa problemática, como compreendermos o que vem a ser
o “reconhecimento” dos direitos dos policiais militares?
2. Pressupostos Teóricos da Escola de Frankfurt e a Teoria Social da Luta por
Reconhecimento
A Teoria Crítica, desenvolvida entre os pensadores do que foi conhecido como
Escola de Frankfurt, nasceu na Alemanha como um movimento intelectual que fundamentou
críticas à razão que dá sustento à Modernidade. O marco da origem de tal posicionamento
teórico nos remete ao ano de 1937, quando foram apresentadas as bases teóricas desse
movimento através da publicação de um artigo intitulado Tradizionelle und kritische Theorie
(Teoria tradicional e Teoria crítica), de Max Horkheimer. Para Nobre (2003), a Teoria Crítica
“não se limita a descrever o funcionamento da sociedade, mas pretende compreendê-la à
luz de uma emancipação ao mesmo tempo possível e bloqueada pela lógica própria da
organização social vigente” (p. 9). Desse modo,
Por se tratar de um „projeto científico‟ que habilita suas formulações por
meio de uma„filosofia social‟, a Teoria Crítica surge, portanto, como tentativa
de estabelecer parâmetros que pudessem realizar um programa teórico
interdisciplinar que abarcasse a crítica filosófica com as diversas ciências
empíricas, de forma a basear-se no materialismo marxista (FRANÇA, 2013,
p. 64).
Entretanto, devido às lacunas deixadas por autores como Horkheimer e Adorno
(considerados como autores da 1ª geração da Escola de Frankfurt) e Habermas (que
passou a ser visto como representante da 2ª geração) Axel Honneth pôde desenvolver um
projeto teórico direcionado para pontos que estabelecem “a afirmação de uma razão
universal que torna inteligíveis os movimentos sociais; a atuação em desconformidade a
esta razão como fundamento de uma patologia; e um interesse emancipatório identificado
como um sofrimento” (BATISTA, 2012, p. 15). Nesse esteio, o crítico alemão encontrou o
vetor passível de experimentação para formular a sua teoria social, já que pressupõe como
força emancipatória um outro sofrimento social a ser identificado, diferente daquele
estabelecido pelo materialismo histórico marxista como sendo um sofrimento decorrente de
uma desigualdade social, sentido pela classe proletária, até porque
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Por conta disso, quando a classe proletária transformou seu sofrimento em
apoio à ascensão do fascismo, o conteúdo positivo inicialmente assumido
pela teoria crítica tornou-se inadequado à compreensão e transformação da
sociedade; a história havia mostrado a incorreção da teoria (BATISTA,
2012, p.15).
Ademais, Habermas já havia concluído, partindo da constatação de que o Estado já
havia passado a regular o capitalismo, “que as duas tendências fundamentais para a
emancipação presentes na teoria marxista - a do colapso interno, em razão da queda
tendencial da taxa de lucro, e aquela da organização do proletariado contra a dominação do
capital – tinham sido neutralizadas” (NOBRE, 2003, p. 15). Neste sentido, pois, o que era
pensado como prioridade até então, enquanto havia o predomínio do marxismo e a
influência de Rawls na América, como uma ideia influente de justiça, vislumbrando uma
igualdade social através de uma redistribuição das necessidades materiais, passou a ser
discutido, por Axel Honneth, em uma ideia nova. “Seu objetivo normativo não mais parece
ser a eliminação da desigualdade, mas a anulação da degradação e do desrespeito, suas
categorias centrais não são mais a „distribuição igual‟ ou a „igualdade econômica‟, mas
„dignidade‟ e „respeito‟” (HONNETH, 2007, p. 79).
Desta feita, estava posta uma verdadeira redefinição para a fundamentação dos
Direitos Humanos, com destaque para o sentido valorativo da dignidade e do
reconhecimento da pessoa humana. Seria esta fundamentação decorrente de uma nova
sensibilidade moral por parte da sociedade, na qual os indivíduos devem ser respeitados em
suas diferenças, levando em conta aspectos simbólicos e multiculturais. Segundo o próprio
Honneth (2007, p. 79), “Nancy Fraser forneceu uma fórmula sucinta, quando se referiu a
essa transição como uma passagem da „redistribuição‟ para o „reconhecimento‟”.
Nesse direcionamento, a concepção de sociedade a partir das concepções da Teoria
Crítica possuía dois extremos, quais sejam: disposições econômicas postas e a socialização
do indivíduo; e nada mais entre eles no papel da mediação. Tal fato define o que Axel
Honneth chama “déficit sociológico da Teoria Crítica”. Em seu projeto sobre uma teoria
social crítica, Honneth (2007) busca o resgate do projeto filosófico hegeliano de uma luta por
reconhecimento de modo que, “tal fato não é de se estranhar, já que Hegel une pretensões
estritamente universalistas com a preocupação permanente com o desenvolvimento do
indivíduo, do singular” (NOBRE, 2003, p. 17). A nova teoria social crítica desenvolvida por
Honneth dialoga com a sociologia e busca, na psicologia social de G.H. Mead, a
sustentação de suas premissas metafísicas, são elas:
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A dependência do „eu‟ de um reconhecimento intersubjetivo, a existência
de diferentes dimensões de reconhecimento, de acordo com o nível de
autonomia garantido ao indivíduo; e o entrelaçamento entre estas diferentes
dimensões de reconhecimento e uma luta ética (BATISTA, 2012, p. 18).
Honneth faz uso das produções de outros saberes empíricos para fundamentar sua
tese e, “a preocupação primária da psicologia social de G. H. Mead é explicar o processo
pelo qual emerge no indivíduo a consciência de si” (Ibidem, p.18). Desta forma, direcionado
também pela visão de subjetividade proposta por Hegel, Honneth inova em uma concepção
intersubjetiva para a relação entre o indivíduo e a comunidade e vice-versa, posicionando o
conflito social como objeto central da Teoria Crítica.
Assim, para Honneth, a formação da identidade dos indivíduos integrantes de uma
comunidade é tida como produto de um histórico pré-estabelecido de relações de
reconhecimento
existentes.
Existindo,
pois,
três
dimensões
diferenciadas
de
reconhecimento, apesar de totalmente interligadas, quais sejam: o modo peculiar do
reconhecimento que ocorre no interior da família, ligada ao afeto, gerando uma confiança
em si; o reconhecimento social decorrendo em uma autoestima; e por fim, pelo
reconhecimento específico das leis é desenvolvido um autorrespeito. “No entanto, é
somente nas duas últimas dimensões que Honneth vê a possibilidade de a luta ganhar
contornos de um conflito social” (NOBRE, 2003, p. 18).
Portanto, de acordo com os nossos propósitos, destacamos a correlação entre o
autorrespeito estudado por Honneth (2007), observado pela esfera jurídico-moral e a
realidade vivenciada pelos policiais militares. Por esse mote, servem-nos de referência
alguns documentos próprios à instituição PM5, os quais carregam em si prescrições
normativas que direcionam o comportamento dos policiais em suas relações cotidianas.
3. Reconhecimento, Autorrespeito e as Polícias Militares
Sixto Martínez fez o serviço militar num quartel de Sevilha.
No meio do pátio desse quartel havia um banquinho. Junto ao banquinho,
um soldado montava guarda. Ninguém sabia por que se montava guarda
para o banquinho. A guarda era feita porque sim, dia e noite, todas as
noites, todos os dias, e de geração em geração os oficiais transmitiam a
ordem e os soldados obedeciam. Ninguém nunca questionou, ninguém
nunca perguntou. Assim era feito, e sempre tinha sido feito. E assim
continuou sendo feito até que alguém, não sei qual general ou coronel, quis
conhecer a ordem original. Foi preciso revirar os arquivos a fundo. E depois
de muito cavoucar, soube-se. Fazia trinta e um anos, dois meses e quatro
dias, que um oficial tinha mandado montar guarda junto ao banquinho, que
fora recém pintado, para que ninguém sentasse na tinta fresca. (GALEANO,
2012, p. 62)
5
Utilizamos aqui documentos pertencentes à Polícia Militar da Paraíba.
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Apesar da distância temporal e territorial da história narrada por Galeano, fatos
semelhantes são vivenciados ainda hoje nas instituições militares do país. Os recémchegados são treinados para obedecer, cumprindo às ordens dadas, não cabendo
explicações e/ou indagações aos que comandam. Já esclarece Foucault (2011, p. 164) que,
“o poder disciplinar é com efeito um poder que, em vez de se apropriar e de retirar, tem
como função maior „adestrar‟ ; ou sem dúvida adestrar para retirar e se apropriar ainda mais
e melhor”.
Não há espaços para a criatividade e para a liberdade, inovar é sinônimo de
subversão e insubordinação. As indagações são vistas como “ponderações”, já que o militar
deve cumprir ordens sem questionar, gerando, portanto, situações como a mencionada por
Eduardo Galeano, caracterizando tais instituições como impositoras de regras, legítimas ou
não, sem fundamentação ou justificativas plausíveis.
Como exemplo, e ao destacar nossas observações e vivências profissionais na
Polícia Militar da Paraíba, podemos afirmar que existe processo análogo no qual, os lemas
que identificam a boa convivência entre os diferentes graus hierárquicos estabelecidos
(Oficiais e Praças) consolidam-se como: “militar tem direito a não ter direitos”, “o militar é
superior ao tempo e inferior a bosta”, “o mundo gira e o Cadete6 se vira”.
Além disso, não são raros os casos em que o policial militar é cerceado da sua
liberdade, pela conhecida prisão administrativa, estando preso ou detido nos quartéis de
polícia, por fatos enquadrados como transgressões disciplinares, sendo estas normatizadas
pelo Regulamento Disciplinar da Polícia Militar (RDPM). 7
No artigo 13 do referido diploma legal define-se a transgressão militar como
“qualquer violação dos princípios da ética, dos deveres e das obrigações policiais-militares,
na sua manifestação elementar e simples e qualquer omissão ou ação contrária aos
preceitos estatuídos em leis, regulamentos, normas ou disposições, desde que não
constituam crime” (RDPM, 1981, p. 6). São exemplos de transgressões militares:
018 – Não cumprir ordem recebida; [...] 042 – Portar-se sem compostura em
lugar público; 043 – Freqüentar lugares incompatíveis com o seu nível social
e o decoro da classe; [...]111 – Embriagar-se ou induzir outro à embriaguez,
embora tal estado não tenha sido constatado por médico; [...] 113 – Usar,
quando uniformizado, barba, cabelos, bigode ou costeletas excessivamente
compridos ou exagerados, contrariando disposições a respeito. (RDPM,
1981, p. 21-29).
Ao todo, são cento e vinte seis itens previstos em um Anexo I do Regulamento como
transgressões militares, e além desses, o artigo 14 preconiza ainda como transgressões:
6
Designação do aluno policial militar em formação para ser Oficial.
Utilizamos aqui o RDPM da Polícia Militar do Estado da Paraíba. Disponível em
<http://www.pm.pb.gov.br/download/Decreto_8962-1981_Regulamento_Disciplinar_da_PMPB.pdf>.
7
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Todas as ações, omissões ou atos, não especificados na relação de
transgressões do Anexo I, que afetem a honra pessoal, o pundonor policialmilitar, o decoro da classe ou o sentimento do dever e outras prescrições
contidas no Estatuto dos Policiais-Militares, leis e regulamentos, bem como
aquelas praticadas contra regras e ordens de serviço estabelecidas por
autoridades competentes”. (RDPM, 1981, p. 6).
Diante das informações nas citações acima expostas, algumas inquietações nos
ocorrem. Elas podem ser explicitadas pelas seguintes indagações: afinal, diante da
subjetividade humana, no que consistem a honra pessoal, o pundonor policial militar, o
decoro da classe? A definição de “lugares incompatíveis” e “compostura” para uma pessoa
necessariamente são assim definidas para outras? O sentimento de dever mencionado é o
de quem e para quem? Ações, omissões ou atos praticados contra as regras e ordens de
serviço de que natureza? (Ilegais? Arbitrárias? Abusivas?). Desta forma, nenhum policial
militar poderá aderir à religião muçulmana e nenhum muçulmano poderá ser policial militar,
já que a barba é proibida na instituição? E o respeito ao direito constitucional da liberdade
religiosa?
Aliás, pelos itens 069 e 070, os autores deste trabalho já poderiam ser julgados como
transgressores ao escrever este artigo, a depender da interpretação do julgador, já que
também são transgressões disciplinares
069 - Dar conhecimento de fatos, documentos ou assuntos policiaismilitares a quem deles não deva ter conhecimento e não tenha atribuição
para neles intervir; 070 - Publicar ou contribuir para que sejam publicados
fatos, documentos ou assuntos policiais-militares que possam concorrer
para o desprestígio da corporação ou firam a disciplina ou a segurança.
RDPM, 1981, p. 25).
Segundo a visão de um Major da Polícia Militar da Paraíba, mais explicitamente
sobre o militarismo que aprisiona os policiais militares nos seus uniformes:
Somos militares porque os governantes de hoje, a esquerda que foi
oprimida pelos militares, e promulgou a Constituição de 1988, preferiu nos
deixar militares, pois assim não temos direitos de cidadão. Podemos ser
presos administrativamente, podemos ser presos por motim se recusarmos
cumprir ordens. Não temos direito a Habeas corpus se a prisão for
administrativa. Nosso regulamento discipĺinar tem o dobro da idade da
Constituição, e nada a ver com ela. Podemos ser expulsos por muito pouca
coisa, e ver nossas famílias à míngua. Estamos submetidos a dois códigos
penais (o civil e o militar). Não podemos nos filiar a partidos, nem a nos
sindicalizar, ou o direito a greve. Quando há manifestações nossas, somos
tratados como amotinados, e aí, como já houve em vários locais, o exército
é colocado contra nós, pois além de tudo, somos fiscalizados por eles.
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Enfim, somos cidadãos de 2ª classe, e com tão menos direitos do que
qualquer cidadão brasileiro, é muito difícil achar quem queira se colocar a
frente de qualquer coisa [sic].8
Partindo para a análise de uma outra fonte, parece-nos ainda salutar observar as
publicações dos Boletins Internos9 em site da instituição, observados sob o viés dos direitos
fundamentais, já que o policial militar em férias (direito este já solicitado previamente,
autorizado pelo Comandante Geral e publicado em boletim) tem o dever de pedir permissão
ao Comandante Geral da Polícia Militar para se afastar do Estado, independente da
natureza da viagem. Sendo, portanto, publicado em Boletim o destino final, a data de ida e o
dia do retorno.
Ademais, nas mesmas publicações internas, são tornadas públicas as punições aos
militares, sendo descritas cada pormenor que ensejou a sanção, fatos geradores estes que
vão desde um comentário em rede social da internet feita por um militar que não “agradou” a
algum Comandante, até uma discussão de casal envolvendo um militar que decorreu
procedimento em Delegacia e todos os integrantes da Corporação souberam mediante
publicação administrativa.
Por fim, faremos público os dizeres de um Soldado da Polícia Militar da Paraíba, ora
aluno do Curso de Especialização de Segurança Pública e Direitos Humanos na
Universidade Federal da Paraíba, já que o mesmo em conversa com um determinado Oficial
teve sugerido por parte deste que o soldado deixasse a Polícia Militar, uma vez que a praça
acredita na premente necessidade da desmilitarização da Polícia. Foram essas as palavras
do Oficial: “Soldado, não está satisfeito? Peça baixa”. O soldado relatou durante uma aula
da Especialização que foi inevitável o sentimento e o pensamento por analogia: Brasil,
“ame-o ou deixe-o”.
Considerações Finais
Como visto, foi traçado um recorte histórico que envolve a discussão do surgimento
dos Direitos Humanos, e a partir do pensamento racional kantiano foi proposto o debate
acerca da necessidade de democratização de algumas instituições. Neste caso específico,
tratamos das Polícias Militares do Brasil, tendo sido nosso entendimento a afirmação de que
para os policiais militares apreenderem o significado de respeito eles precisam
primeiramente ser respeitados.
8
Disponível em <http://www.paraiba.com.br/2013/06/17/92300-major-da-paraiba-diz-que-pm-ecidadao-de-2-classe-aprisionado-pelo-militarismo>. Acesso em 25 de Agosto de 2013.
9
Documento Oficial através do qual são noticiados os fatos inerentes ao policial militar, tais quais:
concessão de férias, licenças especiais, transferências, punições, autorizações, bem como os demais
atos administrativos da Instituição.
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Diante disso, mediante o pensamento sociológico desenvolvido pela Teoria Crítica no
século XX, e após o relato de algumas vivências por policiais dentro das instituições
militares, foi tratada a compreensão nossa sobre o vem a ser o “reconhecimento” dos
direitos dos policiais militares, destacando-se o reconhecimento por uma proposição
normativo- jurídica a qual visa principalmente a busca por autorrespeito.
Por esse esteio, esta pesquisa enxerga, portanto, nos trabalhos de Axel Honneth um
vetor de entendimento para a problemática da violação de direitos fundamentais dos
policiais militares, visto que o referido teórico crítico alemão fortalece a fundamentação da
luta por direitos humanos, através da formulação de uma teoria social da luta por
reconhecimento que afirma a importância do respeito à dignidade pessoal de todos os
indivíduos.
Por fim, registramos que não houve pretensão de esgotamento da discussão e, sim,
uma contribuição provocativa com a temática posta, tornando-a visível a novas inquietações
e abertas para outras formas de discussão e abordagem.
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A tecnologia para a garantia de direitos: O Sistema de Informação do PRO
PAZ Integrado para a garantia dos direitos humanos a partir das práticas de
controle e prevenção das violências.
Jadson Fernandes Chaves – ISCTE-IUL
Izabela Jatene de Souza – PUC-RJ
Valdemir Corrêa Monteiro – Governo do Estado Pará
Eugênia Sandra Pereira da Fonseca – Casa Civil da Governadoria
1 INTRODUÇÃO
A revolução tecnológica em evolução desde os anos 1970, a partir das mudanças
ocorridas no Vale do Silício (EUA) e ampliada com o advento da internet, criou condições
para que hoje se vivesse em tempos de democratização da informação, com acesso
facilitado a ela (CASTELL, 1999). Essa democratização vai além do conhecer pelo
conhecer, mas sendo instrumento de mudança e de busca pela garantia de direitos por
parte da sociedade civil, sendo um assunto muito debatido, mas pouco praticado. Dessa
forma, conhecer torna-se um direito:
Todo o ser humano tem direito à liberdade de opinião e de expressão;
esse direito inclui a liberdade de ter opiniões sem sofrer interferência e
de procurar, receber e divulgar informações e ideias por quaisquer
meios, sem limite de fronteiras (DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS
DIREITOS HUMANOS, 1948, art. XIX).
Outro ponto importante no que se refere ao acesso à informação foi a mudança para o
regime democrático de diversos países, um dos fatores causais para o avanço tecnológico,
principalmente no acesso à rede mundial de computadores, a internet, que mudou a forma
pela qual as sociedades se informam e disseminam informação, realidade do Brasil. Isso
aumentou o poderio da população de fiscalizar o poder público e participar dos processos de
tomada de decisão. Nesse cenário, ter informação de qualidade se tornou ainda mais
importante para os cidadãos.
3895
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Na região do Estudo desse trabalho, o Estado do Pará, o quadro acima não é
diferente. No entanto, cabe ressaltar que a velocidade com que se tem acesso a alguns
tipos de informações e a facilidade para isso contrapõe à dificuldade em levantamento de
dados e o acesso a eles quando se trata de assuntos relacionados à violência. O que
verifica são dados frágeis e pouco confiáveis, pois existe um grande número de sub-registro,
principalmente quando se trata de violência contra crianças, adolescentes e mulheres.
A falta de dados estatísticos consistentes e confiáveis relacionados, por exemplo, à
violência sexual contra crianças e adolescentes e as diversas violências cometidas em
mulheres fragiliza, do ponto de vista estratégico e operacional, o planejamento das ações
públicas para a prevenção e combate dessas práticas.
Há a necessidade de conhecer a realidade e suas particularidades, traduzidas em
números e análises de cenário, possíveis a partir do estudo de informações tratadas e
compiladas que promovam o gerenciamento da informação. Isso, aliado a uma estratégia
organizacional balizada na busca por soluções viáveis em relação à qualidade dos dados,
deram condições para que o governo do Estado, por meio do projeto PRO PAZ Integrado1,
criasse um Sistema de Informação capaz de contribuir para a melhoria da coleta e
tratamento das informações de violências cometidas contra crianças, adolescentes e
mulheres. Com esse sistema, é possível dar respostas a partir da sistematização de dados,
indicando as possíveis causas e consequências do cometimento dessas agressões e
implementando políticas e estratégias para auxiliar no combate à violação de direitos desse
público. A iniciativa é referência de como o tratamento e compilação de dados é
fundamental para a implementação e integração das Políticas Públicas - pelo entendimento
do papel do poder público nessas questões.
É importante ressaltar que o PRO PAZ Integrado promove o atendimento especializado
e centralizado em um único lugar, de forma integral e interdisciplinar às vítimas de violência
e suas famílias, por meio da prestação de serviços de acompanhamento médico e
psicossocial. Para que ele tenha resultados positivos, é preciso conhecer a realidade dos
casos cometidos. Justamente para isso foi criado o Sistema de Informação do PRO PAZ.
Por ser um bom exemplo, disseminar a experiência exitosa do Sistema de Informação
do PRO PAZ Integrado é um dever social, e este é o objetivo do presente trabalho, que
apresenta a forma de atuação do Sistema, mostrando como ele é importante para a prática
de controle e prevenção da violência contra mulher, criança e adolescente no Pará que, em
1
PRO PAZ Integrado-PPI - É um serviço que visa dar atenção integral às crianças, adolescente e
mulheres em situação de risco e violências, atuando, ainda, na prevenção, por meio da prestação de
serviços de acompanhamento médico, psicossocial, defesa social e perícia legal. Portanto, promove o
atendimento com envolvimento interdisciplinar em relação às vítimas e suas famílias em um mesmo
local.
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breve, será acoplado ao Sistema Integrado de Segurança Pública do Estado do Pará-SISP2,
tornando-se uma estratégia de segurança que facilitará a hospedagem dos dados em um
servidor especial. Isso vai garantir segurança e rapidez em na base dados, a partir do
monitoramento do mesmo.
Com a apresentação do Sistema, também se espera que ele seja um canal de
integração entre a rede de proteção3, para disseminação da informação com base no agir da
prevenção.
Para SOUZA e FONSECA (2013), essa violência cometida contra crianças e
adolescentes devem ser encaradas como uma questão de saúde pública. Segundo a
definição da 8ª Conferência Nacional de Saúde, de 1986, aprovada na Constituição de
1988, a saúde é resultante das condições de alimentação, habitação, educação, renda, meio
ambiente, trabalho, transporte, emprego, lazer liberdade, posse de terra e acesso a serviços
de saúde. Além disso, outras garantias são asseguradas na lei (n°8069/90) que dispõe
sobre o Estatuto da Criança e Adolescente, considerada, segundo especialistas, a
legislação mais avançada e moderna do mundo para crianças e adolescentes - o Estatuto
da Criança e do Adolescente (ECA), lei (promulgado 8069/90).
Não se pode esquecer-se da emergência da Lei Maria da Penha, que representou um
grande avanço no campo jurídico. Ela surgiu em um momento em que o governo brasileiro
era acusado de não cumprir as normas da legislação internacional no combate a violência
contra mulher. Essa lei é a maior medida protetiva para erradicar a violência contra mulher.
Nesse sentido, é necessário criar uma cultura de cumprimento da lei vigente, pois vivemos
num país onde há uma contradição entre a Lei e a realidade.
2 PROJETO PRO PAZ INTEGRADO
O PRO PAZ Integrado tem como missão a atenção a crianças, adolescentes e
mulheres em situação de risco e de violência, através da integração dos serviços médico,
psicossocial, de defesa social e perícia em um único espaço, promovendo o atendimento
integral, interdisciplinar e de qualidade às vítimas e suas famílias, formato que foi
considerado pelo Ministério da Saúde modelo na atenção à saúde integral das vítimas de
violência.
O programa oferece acolhimento psicossocial especializado; garante os direitos
básicos relacionados à saúde física, emocional, mental e reprodutiva; previne DST/AIDS e
2
É um conjunto de sistemas de informações que engloba a Segurança Pública do Pará.
As redes não são invenções abstratas, mas partem da articulação de atores/organizações, forças
existentes no território, para uma ação conjunta multidimensional, com responsabilidade
compartilhada (parcerias) e negociada (FALEIROS, 1997).
3
3897
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gravidez decorrente de estupro, através de medidas profiláticas, nos casos detectados até
72 horas; também interrompe a gravidez decorrente de violência sexual, conforme a
legislação vigente. A implantação do projeto vem ajudando a reduzir a revitimização, a
superação dos traumas das vítimas e seus familiares, além de incentivar as denuncias.
Atualmente, o projeto conta com unidades de atendimento em Belém, capital do Pará,
e em municípios do interior, funcionando através de uma Rede de Enfrentamento, em
parceria com vários órgãos governamentais e não-governamentais.
Em Belém, há dois núcleos: PPI Santa Casa de Misericórdia do Pará e Centro de
Perícias Renato Chaves. Já nos outros municípios do Estado, há, também, o Núcleo PRO
PAZ Integrado Baixo Amazonas, em Santarém, Oeste do Estado; o núcleo PRO PAZ
Integrado Zona Bragantina, em Bragança, Nordeste paraense; e o Núcleo PRO PAZ Xingu,
em Altamira, Sudoeste do Pará. Outros núcleos serão implantados ainda em 2014: PRO
PAZ Integrado região do Lago em Tucuruí e PRO PAZ Integrado Região do Capim, em
Paragominas. A média de atendimentos nesses núcleos são 10 casos por dia.
2.1 O atendimento especializado para crianças e adolescentes vítimas de violências
A „violência urbana‟ é um dos assuntos mais pautados nos debates mundiais. Essa
mesma violência (motivada por poder, inveja, ódio, ciúmes, comida, roubo, drogas, estupros,
entre outros fatores), vista como algo inadmissível em uma sociedade que tanto fala em
convivência harmônica, também é banalizada e se torna parte do cotidiano dos
relacionamentos sociais, diariamente. Segundo Galtung (1972), a violência se torna
estrutural na medida em que as imperantes relações socioeconômicas obstaculizam ou até
impedem o pleno desenvolvimento físico e mental das pessoas em seu cotidiano.
Além de corriqueiro, esse assunto também é inquietante e muito polêmico. Portanto,
aferindo valor ainda maior à paz como sua opositora, sendo considerada por estudiosos
como um fenômeno avassalador, que fere o bom convívio dos indivíduos.
Outra vertente da violência que caminha a passos largos é a violência contra crianças
e adolescentes. Para Souza e Fonseca (2013) essa violência caminha lado a lado com a
trajetória histórica até os tempos atuais e incrementa uma forma secular de relação com as
sociedades. Seu alcance se faz pela construção histórica que combate a cultura
adultocêntrica, dominadora e patriarcal do povo brasileiro. Eles afirmam também que
eventos como esses ocorrem por omissão dos mais próximos, como familiares, professores,
instituições e toda a sociedade em geral.
Visando combater essa forma de violência, O PPI facilitou o aumento do número de
denuncias espontâneas, quebrando o paradigma do “silencio”. Este é principal serviço que
faz a retaguarda para as instituições que atuam na área da violência contra crianças e
adolescentes.
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Nos núcleos, O atendimento inicial abrange o acolhimento, a notificação, os
encaminhamentos médico e psicológico, a ocorrência policial e médico legal. Na fase
seguinte, é realizado o acompanhamento psicossocial, o acompanhamento médico, a
instauração de inquérito policial, orientações sobre procedimento legais, monitoramento do
processo judicial, encaminhamento para rede de serviços e visita domiciliar, quando for o
caso. Sem deixar de lado o atendimento a familiares envolvidos no processo (CABRAL;
REIS; GARCIA, 2010).
No Pro Paz Integrado são oferecidos os serviços de acolhimento psicossocial
especializado, que garantem os direitos básicos relacionados à saúde física, emocional,
mental e reprodutiva. Também há a prevenção de DST/AIDS e gravidez decorrente de
estupro, através de medidas profiláticas, nos casos detectados até 72 horas; ou nos casos
de violência sexual, conforme a legislação.
Um aspecto importante que está sendo estudado é o agente da agressão. Estudos
estão sendo realizados na busca alternativas que possam diminuir o impacto social deixado
por esses agressores, pois, em sua maioria, são pessoas conhecidas ou parentes das
vítimas.
2.2 O atendimento especializado para mulheres vítimas de violência
Em relação à violência contra a mulher, cuja prevenção é trabalhada no PRO PAZ
Integrado, estudos revelam que ela é reflexo da herança conservadora do patriarcalismo
enraizado na sociedade brasileira, fazendo com que a sociedade regresse ao ponto de ver a
mulher exclusivamente como objeto de desejo.
Para Arendt (1991), a esfera privada é a casa da família, local onde somente o homem
exerce o poder. Assim, à mulher compete procriar e cuidar dos filhos e ao homem exercer
um poder totalitário sobre a família.
Diante de estatísticas que demonstram a necessidade de uma política voltada para a
prevenção e proteção das vítimas, foi criada, em 7 de agosto de 2006, A Lei Maria da
Penha, nº 11.340, que visa punir os agressores e diminuir os índices de violência contra a
mulher, conforme os tipos especificados, abaixo:
o
Art. 7 São formas de violência doméstica e familiar contra a mulher, entre
outras:
I - a violência física, entendida como qualquer conduta que ofenda sua
integridade ou saúde corporal;
II - a violência psicológica, entendida como qualquer conduta que lhe cause
dano emocional e diminuição da auto-estima ou que lhe prejudique e
perturbe o pleno desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar suas
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ações,
comportamentos,
constrangimento,
crenças
humilhação,
e
decisões,
manipulação,
mediante
isolamento,
ameaça,
vigilância
constante, perseguição contumaz, insulto, chantagem, ridicularização,
exploração e limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que lhe
cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação;
III - a violência sexual, entendida como qualquer conduta que a constranja a
presenciar, a manter ou a participar de relação sexual não desejada,
mediante intimidação, ameaça, coação ou uso da força; que a induza a
comercializar ou a utilizar, de qualquer modo, a sua sexualidade, que a
impeça de usar qualquer método contraceptivo ou que a force ao
matrimônio, à gravidez, ao aborto ou à prostituição, mediante coação,
chantagem, suborno ou manipulação; ou que limite ou anule o exercício de
seus direitos sexuais e reprodutivos;
IV - a violência patrimonial, entendida como qualquer conduta que configure
retenção, subtração, destruição parcial ou total de seus objetos,
instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou
recursos
econômicos,
incluindo
os
destinados
a
satisfazer
suas
necessidades;
V - a violência moral, entendida como qualquer conduta que configure
calúnia, difamação ou injúria.
Os diversos tipos de violência causam inúmeras consequências psicossociais que
podem alterar comportamentos, condutas, personalidade e a maneira de viver e não
somente afetam crianças e adolescentes, mas mulheres vítimas de violência sexual ou seus
familiares ou qualquer outro tipo4.
É importante ressaltar que a violência é produzida e reproduzida por homens e
mulheres e que, segundo Marilena Chauí (1985), diz respeito a uma ação que transforma
diferenças em desigualdades hierárquicas com o fim de dominar, explorar e oprimir.
Para enfrentar essas violações em relação às violências sofridas pelas mulheres
no Pará e dar uma resposta concreta ao problema é que surgiu a necessidade de criar um
atendimento diferenciado e especializado, visando garantir os direitos da mulher vitimada.
Já o PRO PAZ Mulher, que é um serviço que cuida especificamente de mulheres que
foram vítimas de violência e tem também atendimento integral, sendo que o psicossocial é
direcionado para os Centros de Referência.
4
Em relação à violência contra mulher ou violência de gênero, esta pode ser compreendida como
uma ação que resulta ou pode resultar em agressão (física, psicológica, sexual). Algumas dessas
violências se mostram através de “coerção ou privação arbitrária de liberdade em público ou na vida
privada, assim como castigos, maus tratos, pornografia, agressão sexual e incesto” (KRONBAUER;
MENEGHEL. 2005 p. 696). A Organização Mundial da Saúde – OMS (2001) apud Jordão (2004)
reconhece a violência doméstica-aquela no caso em que a vítima não pertence á família, mas vive no
mesmo domicilio do agressor- contra as mulheres como uma questão de saúde pública.
3900
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2.3 A rede como forma de enfrentamento
Para avançar no enfrentamento às violências, é preciso buscar alternativas e
Eixo de defesa dos
direitos
Conselhos Tutelares
Eixo de defesa do
Eixo da
atendimento
responsabilização
Saúde
Delegacias de
polícia
Varas da Infância e
Educação
Delegacias
estratégias em relação ao trabalho de rede. Nesse quesito, o mais importante é fortalecer os
laços entre as instituições governamentais e não-governamentais que, de alguma forma,
possam contribuir neste enfoque. Para Miyahara (2004 apud SOUZA;FONSECA,2013), o
fortalecimento da Rede de Enfrentamento ajuda a enfrentar as dificuldades nos
relacionamentos entre vítimas e agressores, apontar falhas e soluções nos atendimentos,
combater o preconceito, auxiliar na falta de informação e comunicação e ajudar a combater
a desvalorização de tal problemática.
A integração articulada entre os setores sociais é algo primordial para o
enfrentamento dessas políticas. Sem a união de todos os envolvidos é pouco provável
consolidar ações que permeiem avanços significativos. A aliança entre os setores devem
compor forças de cunho político, operacional e democrático, visando o fortalecimento das
ações de planejamento e controle.
3901
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Juventude
especializadas
Ministério Público
Assistência
Instituto Médico
Legal
Defensoria Pública
Trabalho
Varas Criminais
Centros de Defesa
Cultura
Varas de crimes
contra crianças e o
adolescente
Lazer
Vara da infância e
Juventude
Profissionalização
Ministério Público
Quadro 1-Eixos de enfrentamento das violências contra crianças e adolescentes e mulheres
Fonte: PRO PAZ Integrado
Figura 1- Rede PRO PAZ Integrado de enfrentamento
REDE - PRO PAZ INTEGRADO
Família/Comunidade
O
Escola/Igreja
Secretarias Municipais
: CREA/CRAS
Cheque
Moradia
e
SESI e SESC
PRO PAZ
INTEGRADO
Conselho
Tutelar
Equipe
Multidisciplinar
Instituto
Médico LEGAL
e
Delegacia de
proteção à
criança e ao
Adolescente
Defensoria
Pública/ Poder
Judiciário
Fonte: PRO PAZ Integrado
3 O SISTEMA DE INFORMAÇÃO DO PRO PAZ INTEGRADO
3.1 Fluxos da violência a partir das escolas
O fluxo 1, abaixo, mostra o caminho percorrido por vítimas de violência a partir das
escolas em relação às diversas instituições de atendimento no Estado do Pará. Em relação
ao fluxo que adolescentes cometem atos infracionais, é importante observar que o seu
destino final é aplicação de medidas socioeducativas. No fluxo de crianças que cometem
atos infracionais, o seu destino final pode ser o Centro de Referência Especializado em
3902
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Assistência Social-CREAS5 ou Centro de Referência de Assistência Social-CRAS6,
Ministério Público ou a família, mas todos apoiados por uma rede de proteção social.
Quando a criança ou adoldescente são vítimas de violência, o seu destino passa
pelo programa PRO PAZ Integrado, conselho tutelar ou a Delegacia de Proteção a Criança
ou Adolescente (DPCA), com o apoio da Rede de Proteção Social.
1 - Fluxo de atendimento em situações de violência a partir da escola
FLUXO DE ATENDIMENTO EM SITUAÇÕES DE VIOLÊNCIA A PARTIR DA ESCOLA
PM
Adolescente
cometeu ato
infracional
ou agressão
DATA
Ato Sem
Violência
Família
Ato com
Violência
FASEPA
CREAS
Escola
Criança que
cometeu ato
infracional
ou agressão
Conselho
Tutelar
Ministério
Público
Criança ou
adolescente
agredidos em
situação de
risco
Adultos,
idosos e
mulheres
vítimas de
violência
Abandono,
Maus Tratos
e violência e
risco social
Delegacias
Especializadas
Rede de
atendimento
Aplica medidas
Socioeducativas
•Proteção
Social
Família
Abuso
Sexual
Orientação e
repreensão
Conselho Tutelar
•Acesso à
REDE
PRO PAZ
INTEGRADO
DEACA
PRO PAZ
INTEGRADO
CRAS/CREAS/Centro
Maria do Pará
Fonte: Elaboração própria
3.2 Fluxos das unidades do PRO PAZ Integrado
Os Fluxos das unidades do PRO PAZ Integrado foram criados a partir da
necessidade de melhorar os indicadores de gestão, planejamento e a interatividade com a
Rede de Proteção do PRO PAZ Integrado. Antes do início do projeto, foram realizados
visitas técnicas e estudos das necessidades e operacionalização das ações, que tiveram
como resultado os fluxos de demanda.
5
O Centro de Referência Especializado de Assistência Social (Creas) configura-se como uma
unidade pública e estatal, que oferta serviços especializados e continuados a famílias e indivíduos em
situação de ameaça ou violação de direitos (violência física, psicológica, sexual, tráfico de pessoas,
cumprimento de medidas socioeducativas em meio aberto, etc.).
6
O Cras atua como a principal porta de entrada do Sistema Único de Assistência Social
(Suas), dada sua capilaridade nos territórios e é responsável pela organização e oferta de serviços da
Proteção Social Básica nas áreas de vulnerabilidade e risco social.
3903
Anais do VIII Encontro da ANDHEP
ISSN: 2317-0255
A figura abaixo mostra o fluxo normal programado para as unidades PRO PAZ
Integrado, gerado no dia de trabalho e seus respectivos caminhos até chegar ao
atendimento final.
Fluxo 2 - Atendimento unidades PRO PAZ Integrado
FLUXO DE ATENDIMENTO NAS UNIDADES PRO PAZ INTEGRADO
Usuário
- acolhimento;
- escuta
- orientação;
- preenchimento do instr. técnico;
- emissão de relatos/relatórios;
- encaminhamentos p/delegacia;
-encaminhamentos para a rede serviços;
-agenda de retorno
- participa de audiências qdo convocado.
- realiza consulta de enfermagem;
- cadastra perícia no sistema do CPC
- acompanha a perícia;
- preenche ficha de notificação;
- ministra medicação;
- pequenos curativos;
Acolhimento/Recepção
Acolhimento
(Assistente Social)
Delegacia
PRO PAZ
Integrado
Enfermagem
Boas vindas / Cadastro inicial;
- Encaminhamento p/ o Psicossocial;
- Agenda atendimento inicial/retorno;
- Elabora documentação;
-Elabora estatística mensal;
- registra B. O.
- solicita requisição de exames;
- encaminha ao psicossocial;
- instaura inquérito;
- encaminha Processo a Justiça;
- registra informações sistema SUS;
- realiza exame pericial;
- encaminha p/ enfermagem;
- emite solicit exames p/ LACEN;
- emite laudo pericial;
- participa de audiências qdo convocado
Medicina
Legal
- realiza consulta inicial;
- prescreve medicação profilática
- expede solicitação de exames;
- interconsulta;
- agenda retorno.
Médico
- acompanhamento psicológico;
- emissão de laudos;
- interconsulta;
- terapia de grupo;
- agenda retorno;
- participa de audiências qdo convocado.
Psicologia
Fonte: PRO PAZ Integrado
3.2.1 Fluxos das unidades do PRO PAZ Integrado Baixo Amazonas - Mulher e criança
Os fluxos 3 e 4 mostram o atendimento relacionado a mulheres e crianças na íntegra
na unidade PRO PAZ Integrado Baixo Amazonas – Santarém. O estudo foi realizado in locu
no momento do atendimento, mostrou como a rede funciona na prática e o tempo de
atendimento que leva o usuário até chegar ao primeiro atendimento.
Fluxo 3 - Atendimento unidades PRO PAZ Integrado/unidade mulher
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FLUXO DE ATENDIMENTO NA UNIDADE PRO PAZ INTEGRADO SANTARÉM-MULHER
Usuário/Mulher
MARIA
5min
Atendente/Recepcionista
UBS/Hospitais
40min
Acolhimento (Assistente
Social
ESTAÇÃO
CIDADANIA
Caso PRO
PAZ?
DEFENSORIA
PÚBLICA
Orientar e
encaminhar
NÃO
SIM
Se houver necessidade ?
Atendimento
médico e de
Enfermagem
Se houver necessidade ?
Psicológico
DEAM
45min
25min
Acolhimento,
atendimento e
preenchimento
do formulário
Faz o atendimento
ambulatorial e
preenche o SINAN
MARIA
CRAS
UBS/Hospitais
ESTAÇÃO
CIDADANIA
DEFENSORIA
PÚBLICA
Orientar e
encaminhar
CREAS
15min
REDE
CRAS
80% dos caso são
encaminhados
para o MARIA e
DEFENSORIA
Perícia Legal
45min
Procedimento da
Polícia Judiciária.
Exames
sexológicos
para
constatação
do fato.
Acompanhamen
to Médico e
psicológico
Consulta ,
orientações através
de medicamentos e
encaminhamentos
Fonte: PRO PAZ Integrado
Fluxo 4 - Atendimento unidades PRO PAZ Integrado/unidade criança
FLUXO DE ATENDIMENTO NA UNIDADE PRO PAZ INTEGRADO SANTARÉM-CRIANÇA
Média de atendimento
Em
minutos
Usuário/criança
5min
Atendente/Recepcionista
40min
Acolhimento Serviço Social
40min
Criança/Brinquedoteca
Conselho
Tutelar
Ministério
Público
Cras/Creas
UBS/Hospitais
CREAS
Caso PRO PAZ?
SIM
ESTAÇÃO
CIDADANIA
Orientar e
encaminhar
Se houver necessidade ?
Se necessário.
Acolhimento
(Psicologia)
Criança e
adolescente.
Atendimento
médico e de
Enfermagem
15min
45min
DEFENSORIA
PÚBLICA
25 min
Atendimento
DEACA
Procedimento da
Polícia Judiciária.
Perícia Legal
45min
Acompanha
mento
Médico e
Psicológica
20 min
Fonte: PRO PAZ Integrado
3.2 Fluxo e desenho do sistema de informação PRO PAZ Integrado
3905
Anais do VIII Encontro da ANDHEP
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O Sistema de informação PRO PAZ Integrado foi criado em uma plataforma livre e
desenvolvido
exclusivamente
em
linguagem
de
programação
7
PHP
(Hypertext
8
Preprocessor), agregado ao sistema de gerenciamento de banco de dados PostgreSQL.
Para a elaboração do fluxo de gerenciamento do sistema de dados, foram realizadas
visitas técnicas nas unidades do PRO PAZ Baixo Amazonas e na Sede Belém, para que se
compreendesse o ciclo de atendimento dos funcionários. A partir de então, foi construído um
fluxo que melhor se adequou à estrutura da unidade. A partir disso, surgiu a necessidade da
construção da agenda de atendimento aos técnicos para compor os indicadores do projeto.
Outra inovação importante do sistema é o atendimento em grupo, onde poderão ser
atendidas várias pessoas ao mesmo tempo, inclusive familiares. Outro aporte importante foi
a construção da ferramenta de georreferenciamento, que vai auxiliar nas análises em gestão
espacial.
Fluxo 5 – Cadastro do sistema de informação
FLUXO DE ATENDIMENTO DO SISTEMA INTELIGENTE-PRO PAZ INTEGRADO/Cadastro Novo - PPI
Construção da agenda do técnico
Pesquisar/novo
Pesquisar/Agenda do
técnico
Cadastrar
informações
Triagem;
Atendimento;
Visita domiciliar;
Palestra;
Reunião
Construção da agenda
de atendimento
Pesquisar/
Agenda de
atendimento
Pesquisa/
novo
Selecionar
Pesquisar
Pesquisar/
Novo
Preencher
Cadastrar
Selecionar agenda do
técnico
Preencher/
Agenda
Pesquisar
Incluir
Voltar
Cadastrar
Atendimento
Pesquisar
Preencher
Ir para
triagem
Cadastrar
/triagem
Voltar
Ir para ícones
usuários/
Abaixo da
agenda de
atendimento
Fonte: PRO PAZ Integrado
Fluxo 5 - Continuação do cadastro do sistema de informação
“É uma linguagem interpretada livre, usada originalmente apenas para o desenvolvimento de
aplicações presentes e atuantes no lado do servidor, capazes de gerar conteúdo dinâmico na World
Wide Web.2 Figura entre as primeiras linguagens passíveis de inserção em documentos HTML,
dispensando em muitos casos o uso de arquivos externos para eventuais processamentos de dados”.
8
“É um sofisticado sistema de gerenciamento de banco de dados relacional, orientado a
objetos e objeto-relacional, suportando quase todas as construções SQL” (PHP..., 2014).
7
3906
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CONTINUAÇÃO DO FLUXO DE ATENDIMENTO DO SISTEMA INTELIGENTE-PRO PAZ INTEGRADO/Cadastro Novo - PPI
Agora nos ícones
usuários/
Abaixo da
agenda de
atendimento
Alterar/
Usuário
Alterar/triagem
Preencher/dados/
usuário
Alterar/Atendimento/Cadastrar
informações
Usuária/Endereço/dependentes/
residentes
Alterar
Agente da agressão
Adicionar/
Agressor
Preencher/dados/
agressor
Alterar/agente da
agressão
Dados da ocorrência
Preencher/dados/
última ocorrência
Preencher/violências
Descrição sumária
do caso
Fechar
Alterar/final
Providências
tomadas
Plano de
segurança
PSP
Fonte: PRO PAZ Integrado
4 OS CAMINHOS DA VIOLÊNCIA GERADOS PELO SISTEMA DE INFORMAÇÃO PRO
PAZ INTEGRADO
Os fluxos 6 e 7, abaixo, mostram os indicadores registrados a partir da coleta de
informação gerada pelo sistema de dados do PRO PAZ Integrado. O fluxo 6 detalha o
caminho da violência em relação às mulheres nas unidades PRO PAZ Integrado Baixo
Amazonas. Quase a metade dos casos é formada por ocorrências envolvendo mulheres,
sendo que 46,9% é violência psicológica, seguidas de violência física (35%) e violência
moral (5,3%), entre outros tipos. A faixa etária de maior ocorrência fica entre 18 a 30 anos
(50,8%). Já as mulheres idosas, acima de 60 anos, registram o menor índice (2,7%). A
média de casos chega a 4 ocorrências, sendo que 1 é registrada a cada 5 horas e trinta e
cinco minutos.
Já o fluxo 7 detalha o PRO PAZ Integrado Santa Casa - violência cometida contra
criança e adolescente. Sendo que 86,5% dos casos são do registros de vítimas do sexo
feminino e 54,3% são crianças até 11 anos. Cinquenta e seis por cento das vítimas
registradas na unidade são crianças, sendo que, 41% dessas foram vítimas de abusos
sexuais e 15,3% de violência física. A maior parte dos agressores é formada por pessoas
3907
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conhecidas da família, que têm o papel de proteger, como padrastos e tios (11% cada),
seguidos de pais (9%) e primos (7%). Já a média de casos novos chega a 6 casos por dia, e
um caso é registrado a cada 4 horas.
Fluxo 6 - Indicadores gerados a partir da coleta de dados em relação a mulheres
FLUXO PRO PAZ INTEGRADO – O CAMINHO DA VIOLÊNCIA
Violência registrada contra Mulheres
nas unidades PRO PAZ Integrado
(48,4%) das ocorrências de violência são
registradas no PRO PAZ Baixo Amazonas
Do universo da violência registrada no PRO PAZ;
(43,5%) das vítimas são Mulheres
(4) casos novos são
registrados por dia nas
unidades PRO PAZ
(28) casos novos são
registrados a cada
semana
(1) caso novo é registrado
a cada 5 horas e trinta e
cinco minutos
Principais municípios
da origem da violência
(51,8%) são da faixa etária de 18 a 30 anos
(48,2%) são da faixa etária de 31 ou mais
(83,3%) Santarém
( 14%) Bragança
( 1%) Augusto Correa
(98,3%) de demanda espontânea
Fonte: PRO PAZ Integrado
Fluxo 6 - Indicadores gerados a partir da coleta de dados em relação à criança e
adolescente
FLUXO PRO PAZ INTEGRADO – O CAMINHO DA VIOLÊNCIA
Violência registrada contra
crianças e adolescentes nas
unidades PRO PAZ Integrado
Do universo da violência
registrada no PRO PAZ;
(56%) das vítimas são
crianças e adolescentes
(41%) São
vítimas de
abusos sexuais
(6) casos novos são
registrados por dia nas
unidades PRO PAZ
(42) casos novos são
registrados a cada
semana
(15,3%) são
vítimas de
violência física
(1) caso novo é
registrado a cada 4
horas e treze minutos
Sobre as vítimas
(85,6%) são do sexo feminino
(14,4%) são sexo masculino
Principais municípios
da origem da violência
(54,3%) são da faixa etária de 0 a 11 anos
(45,7%) são da faixa etária de 12 ou mais de 18 anos
(23%) de demanda espontânea
(50%) Belém
( 9,4%) Abaetetuba
( 8,5%) Ananindeua
(3,6%) Barcarena
Relação do
agressor com o
vítima
(88%) dos agressores
são pessoas conhecidas.
(9%) Pai
(11%) Padrasto
(9%) vizinho
(11%) Tio
(7%) Primo
Fonte: PRO PAZ Integrado
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As informações referentes à tabela abaixo, expressam os atendimentos realizados
de casos novos nos núcleos PRO PAZ Integrado no Estado a partir de novembro de 2004
até fevereiro de 2014. Os dados apontam que houve 16.317 atendimentos: Desses, 54,3%
foram atendidas no núcleo PRO PAZ Santa casa. Com destaque para o núcleo PRO PAZ
Baixo Amazonas com 26,2% dos atendidos.
Tabela 1 - Série histórica de casos novos de violência contra mulheres e crianças nos
núcleos PRO PAZ INTEGRADO no Pará até fevereiro de 2014
Total de pessoas
Total de
atendidas PRO
PAZ Integrado
SANTA
CASA/Violência
Total de pessoas
atendidas pelo PRO
PAZ CPC
pessoas
Total de pessoas
atendidas pelo
atendidas pelo
PRO PAZ
PRO PAZ ZONA
BAIXO
BRAGANTINA
Total de
pessoas
atendidas
Ano
Sexual
AMAZONAS
2004
83
83
2005
731
731
2006
1005
1005
2007
803
803
2008
936
936
2009
1267
1267
2010
1251
1251
2011
998
180
2012
732
1109
1966
222
4029
2013
686
1126
2128
417
4357
2014
117
182
270
108
677
Total
8609
2597
4364
747
16317
1178
Fonte: PRO PAZ Integrado
Gráfico 1 - Evolução dos atendimentos no programa PRO PAZ Integrado
Fonte: PRO PAZ Integrado
3909
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A tabela 2, abaixo, mostra o panorama evolutivo dos registrados sobre violência
sexual nas unidades PRO PAZ Integrado no Estado do Pará. De novembro de 2004 a
fevereiro de 2014 foram 10.930 atendimentos, sendo que a maioria (79%) foi registrado no
PRO PAZ Integrado Santa Casa.
Tabela 2 - Série histórica de casos novos de violência sexual cometidos contra crianças e
adolescente nos núcleos PRO PAZ INTEGRADO no Pará até fevereiro de 2014
Total de
pessoas
Total de pessoas
atendidas PRO
atendidas pelo
PAZ Integrado
PRO PAZ CPC
Total de pessoas
Total de pessoas
atendidas pelo
atendidas pelo
PRO PAZ BAIXO
PRO PAZ ZONA
AMAZONAS
BRAGANTINA
Total de
pessoas
atendidas
Ano
SANTA CASA
2004
83
83
2005
731
731
2006
1005
1005
2007
803
803
2008
936
936
2009
1267
1267
2010
1251
1251
2011
998
998
2012
732
841
200
28
1801
2013
686
865
149
49
1749
2014
117
140
39
10
306
Total
8609
1846
388
87
10930
Fonte: PRO PAZ Integrado
Gráfico 2 - Evolução dos atendimentos no programa PRO PAZ Integrado
Fonte: PRO PAZ Integrado
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Outro destaque é para o atendimento no núcleo PRO PAZ Integrado Baixo Amazonas
Mulher. De março de 2012,quando foi inaugurado, até fevereiro de 2014 registrou-se 3.297
atendimentos, principalmente na cidade-sede, que é Santarém, com um índice de 1.048
casos por 100 mil mulheres, em 2013.
Tabela 3 - Raking da violência contra Mulheres/ PRO PAZ Baixo Amazonas
Março a
Janeiro a
Janeiro e
Taxa
Dezembro de Dezembro
fevereiro/2014
100mil/2013
Ranking MUNICÍPIOS
2012
de 2013
Total
1
Santarém
1462
1604
2
Belterra
5
1
Monte Alegre
2
192
3258
1048,1
6
11
74,3
1
2
3
7,3
Alenquer
-
1
1
-
3
Prainha
-
2
2
-
4
Maringá/PR
-
1
1
-
5
Óbidos
-
1
1
-
6
Rurópolis
-
1
1
-
7
Oriximiná
-
-
1
-
1
Não há
Mojuí dos
registro da
campos
população
8
Total
-
10
7
1
18
Feminina
1478
1625
194
3297
-
Fonte: PRO PAZ Integrado/Baixo Amazonas
Já no núcleo PRO PAZ Zona Bragantina, de setembro de 2012, quando foi aberto, a
fevereiro de 2014 foram registrados 565 atendimentos. A taxa por 100 mil habitantes na
cidade-sede, Bragança, ficou em torno de 511,6.
Tabela 4 - Raking da violência contra Mulheres/ PRO PAZ - Zona Bragantina
Setembro a
Janeiro a
Janeiro e
Taxa
Ranking
MUNICÍPIOS
Dezembro/2012
Dezembro/2013
fevereiro/2014
Total
100mil/2013
1
Bragança
150
297
81
528
511,6
2
Tracuateua
3
12
1
16
88,2
2
15
3
20
74,0
Augusto
3
Correa
3911
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4
Viseu
0
1
Total
-
155
325
85
1
3,6
565
169,3
Fonte: PRO PAZ Integrado/Zona Bragantina
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A integração das políticas públicas para o enfrentamento das violências é um grande
desafio. Integração entendida como uma forma de estabeler redes formada por membros do
poder público, da sociedade organizada e da população-alvo, para definir metas e
planejamentos adequados, com intuito de viabilizar as melhores estratégias a serem
percorridas.
Nesse sentido, o Sistema de Informação criado pelo PRO PAZ Integrado tem
exercido o papel de fomentar a Rede de Enfrentamento, com informações confiáveis,
sugerindo alternativas viáveis para o combate dessa problemática, que é o enfrentamento
dessas violências contra mulheres, crianças e adolescentes.
O Sistema implantado consolidou com eficácia, eficiência e efetividade as lacunas
deixadas pela falta de informação específica em relação a esses conflitos. Além disso, a
coleta de informações foi enriquecida com dados mais detalhados e suas causas. A
digitação, o monitoramento, a segurança e a rapidez nas respostas dadas contribuem para o
avanço das políticas e garantem a qualidade no tratamento dos dados.
O estudo das informações de georeferenciamento nas regiões do acontecimento do
evento e o perfil das vítimas e dos agressores geraram indicadores que possibilitam e
possibilitarão ações de controle, prevenção e planejamento na gestão do PRO PAZ
Integrado, garantindo os direitos estabelecidos legalmente.
A partir dessa implantação do Sistema, o Estado age como agente de comunicação na
esfera pública, disseminando a informação sobre as políticas públicas em diversos setores
com intuito de esclarecer e informar a sociedade civil.
A integração da rede de serviços é, talvez, o maior obstáculo ainda a ser vencido,
com o intuito de garantir esses direitos - o resgate dessa união tecnológica de serviços que
envolvem a Saúde, Segurança Pública, Assistência Social, Meio Ambiente e Educação, é
um desafio que nos remete a todos e que precisamos integrar o mais rápido possível.
Ainda há muitos desafios a seres vencidos, mas o Sistema vem contribuindo para a
atuação do governo do Estado em prol da prevenção e combate à violência ao público do
PRO PAZ Integrado.
3912
Anais do VIII Encontro da ANDHEP
ISSN: 2317-0255
6 REFERÊNCIAS
[1] ARENDT, Hannah. A Condição Humana. Trad. Roberto Raposo. 5. ed. Rio de Janeiro:
Forense Universitária, 1991.
[2] BRASIL. Lei Federal n. 11.340, de 07 de agosto de 2006. Cria mecanismos para coibir
a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do § 8 o do art. 226 da
Constituição Federal, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de
Discriminação contra as Mulheres e da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e
Erradicar a Violência contra a Mulher; dispõe sobre a criação dos Juizados de Violência
Doméstica e Familiar contra a Mulher; altera o Código de Processo Penal, o Código Penal e
a
Lei
de
Execução
Penal;
e
dá
outras
providências.
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11340.htm.
Disponível
Acesso
em:
em:
10
abr.2014.
[3] BRASIL. Lei Federal n. 8.069, de 12 de julho de 1990. Estatuto da Criança e do
Adolescente-ECA.
Disponível
em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L8069.htm.
Acesso em: 10 abr.2014.
[4] BRASIL. DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS. Disponível em:
http://portal.mj.gov.br/sedh/ct/legis_intern/ddh_bib_inter_universal.htm.
Acesso
em:
10
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Crianças Vítimas de Violência. Uma abordagem interdisciplinar na Saúde. Belém,
Ed.2010.
[6] CASTELLS Manuel. A Era da Informação: Vol 1 Sociedade em Rede. Ed. Paz e Terra
Rj. 2007. 11º Ed.
[7] CHAUI, Marilena. Participando do debate sobre mulher e violência. In: CHAUI, Marilena;
CARDOSO, Ruth; PAOLI, Maria Célia (Orgs.). Perspectivas antropológicas da mulher:
sobre mulher e violência. Rio de Janeiro: Zahar, v. 4, 1985 .
[8] FALEIROS, Vicente de Paula. Estratégias em Serviço Social. 2. ed. São Paulo: Cortez,
1997.
[9] GALTUNG, J.: Theorien des Friedens, in.: Senghaas, A.: kritsche Friiedensforschung,
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[10] PHP (acrônimo recursivo). In: WIKIPÉDIA: enciclopédia livre, 2014. Disponível em: <
http://pt.wikipedia.org/wiki/PHP>.Acesso em: 10 abr.2014.
[11] PRO PAZ Integrado. Relatório anual Projeto PRO PAZ Integrado. Belém, 2014.
[12] SOUZA, Izabela Jatene; FONSECA, Eugênia Sandra Pereira. Programas de
Atendimento às Crianças Vítimas de Violência Sexual: Importâncias e Desafios. In: HAMOY,
3913
Anais do VIII Encontro da ANDHEP
ISSN: 2317-0255
Ana Celina Bentes (Org.). Direitos Humanos de Crianças e Adolescestes nos dias de
hoje entre o ideal e o real. Belém: Emaús, 2013. p. 197-212.
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Instituto
Patrícia
Galvão
Apoio:
Fundação
Ford.
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Acesso
Disponível
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08
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[14] KRONBAUER, J.F.D. & MENEGHEL, S.N. Perfil da violência de gênero perpetrada
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3914
Anais do VIII Encontro da ANDHEP
ISSN: 2317-0255
ANEXOS
3915
Anais do VIII Encontro da ANDHEP
ISSN: 2317-0255
Figura 1 – Porta de entrada do Sistema PRO PAZ Integrado
Fonte: PRO PAZ Integrado
Figura 2 – Agenda de atendimento do Sistema PRO PAZ
Fonte: PRO PAZ Integrado
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Anais do VIII Encontro da ANDHEP
ISSN: 2317-0255
Figura 3 – Atendimento individual do Sistema PRO PAZ
Fonte: PRO PAZ Integrado
Figura 4 – Atendimento das vítimas do Sistema PRO PAZ
Fonte: PRO PAZ Integrado
3917
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ISSN: 2317-0255
Figura 5 – Sistema de Georeferenciamento do PRO PAZ Integrado
Fonte: PRO PAZ Integrado
3918
Anais do VIII Encontro da ANDHEP
ISSN: 2317-0255
O que o policiamento das manifestações revela sobre a qualidade da nossa
democracia
Bruno Konder Comparato1
“Free speech includes not only the inoffensive but the irritating,
the contentious, the eccentric, the heretical, the unwelcome and
the provocative provided it does not tend to provoke violence.
Freedom only to speak inoffensively is not worth having.”2
Desde junho de 2013, quando um grande movimento popular de proporções
nacionais, despertado pelos integrantes do Movimento Passe Livre, canalizou a
insatisfação dos jovens que passaram a extravasar a sua revolta contra o sistema
político em grandes manifestações de rua que paralisaram as grandes cidades do país
por vários dias, a insatisfação com a qualidade de vida nos grandes centros urbanos
despertou a atenção da classe política brasileira. Simultaneamente, o policiamento de
manifestações entrou na pauta da agenda política nacional. O objetivo desta
comunicação é realizar uma reflexão sobre as propostas recentes das polícias dos
estados de São Paulo e Rio de Janeiro para fazer o policiamento de manifestações e
mostrar o que elas revelam sobre o conceito de cidadania e a qualidade da
democracia.
O policiamento de manifestações como objeto de reflexão sociológica
A questão é bastante séria e merece reflexão. De acordo com Donatella dela Porta e
Herbert Reiter, se num regime autoritário o único critério para a avaliação das forças
de segurança pública é a sua eficácia, numa democracia, ao contrário, o principal
indicador do sucesso democrático, tanto da instituição policial, quanto de todo o
Estado, é sua capacidade de conciliar o respeito das liberdades e dos direitos
individuais com a proteção da segurança e da ordem pública. (Della Porta e Reiter,
1999 e 2003) Por esta razão é que nas modernas sociedades democráticas o
policiamento das manifestações e dos protestos populares é uma das tarefas das mais
delicadas. O que está em jogo não são apenas as liberdades individuais, mas também
os direitos de participação política dos cidadãos que constituem a essência mesma do
1
Doutor em Ciência Política (FFLCH-USP) e professor do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais
da Universidade Federal de São Paulo (PPGCS-Unifesp).
2
Sedley LJ em Redmond-Bate v DPP (1999) 7 BHRC 375 (DC) at 20 (Mead, 2010: 6)
3919
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sistema democrático. A despeito da grande variedade de definições de democracia,
todas elas concordam com a afirmação de que “a democracia é um sistema que
permite lidar com as diferenças sem o recurso à violência”. Assim, o exercício do
protesto e a manifestação do dissenso são essenciais para a vitalidade de uma
sociedade democrática.
As estratégias de manutenção da ordem pública que a polícia adota influenciam a
percepção que os cidadãos têm sobre a maneira pela qual o Estado respeita os seus
direitos e as suas liberdades. Neste sentido, o policial que intervém para manter uma
manifestação popular sob controle é considerado não somente como um
representante do poder público, mas também como um indicador da qualidade da
democracia em um determinado sistema político.
O Programa do Conselho da Europa para a Polícia e os Direitos Humanos, inaugurado
no ano 2000, é claro quanto a esse ponto: “Cada vez que a polícia investiga um delito,
executa decisões judiciais ou entra em contato com os cidadãos a quem serve, a sua
conduta simboliza a maneira pela qual os direitos humanos são respeitados e
protegidos nos países em questão (...) A maneira pela qual a polícia desempenha o
seu papel é um indicador infalível do nível da qualidade da sociedade democrática,
bem como do seu grau de respeito pela preeminência do direito”.3
A função mais imediata da polícia é garantir o respeito das leis e a manutenção da
ordem pública. Trata-se de um segmento do Estado que está autorizado a empregar a
força, quando necessário. O que caracteriza uma polícia democrática, contudo, é o
consentimento e a independência. Consentimento dos cidadãos em serem vigiados e
protegidos pela polícia, e independência da polícia com relação ao governo. O
primeiro aspecto é o que garante a legitimidade das ações policiais e explica como
algumas dezenas de policiais são capazes de controlar agrupamentos de milhares de
cidadãos. O consentimento faz com que a autoridade do policial seja mais eficaz do
que o emprego da força. O segundo aspecto impede que a polícia seja
instrumentalizada pelo governo como estratégia de luta política. A independência da
polícia e a necessária prestação de contas a que ela deve ser submetida garantem
que ninguém esteja acima da lei, nem os governantes, nem os policiais.
Quando uma manifestação foge ao controle da polícia e desafia a ordem pública,
estes dois aspectos se rompem, pois a população deixa de consentir às ordens da
3
« Chaque fois que la police enquête sur un délit, exécute des décisions judiciaires ou entre en contact
avec les citoyens – u’elle se t –, sa o duite s
olise la faço do t les d oits de l’ho
e so t
espe tés et p otégés da s le pa s e uestio . La a i e do t la poli e s’a uitte de ses t hes est u
indicateur infaillible du niveau et de la qualité de la société démocratique, ainsi que de son degré de
respect pour la prééminence du droit. » O texto do documento pode ser consultado na íntegra no
endereço
. oe.i t/T/F/D oits_de_l’Ho
e/Poli e .
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Anais do VIII Encontro da ANDHEP
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polícia que não considera mais como legítima, ao mesmo tempo em que identifica as
forças policiais como defensoras dos interesses do governo que está sendo
contestado pelos manifestantes. Perde-se assim o consentimento e a independência.
Trata-se de algo grave porque uma manifestação de alcance limitado, direcionada
para um aspecto específico do governo, corre o risco de se transformar num plebiscito
contra o governo como um todo. A maneira pela qual é conduzida a intervenção
policial tem um forte impacto nas percepções dos manifestantes a respeito da reação
do governo aos seus protestos.
O despertar da reflexão sociológica sobre o policiamento de manifestações está
relacionado com as revoltas urbanas que surgiram em várias grandes cidades do
mundo a partir do ano de 1968. Os protestos contra a Guerra do Vietnã e o Movimento
pelos Direitos Civis, que arregimentaram jovens e militantes contra a segregação dos
negros nos Estados Unidos, repercutiram na revolta estudantil de maio de 1968 em
Paris, e em vários outros movimentos de desafio aos poderes constituídos mundo
afora. À época, vários analistas definiram aqueles acontecimentos como o resultado
de um conflito de gerações, que opunha uma geração de jovens que haviam crescido
na afluência das décadas de 1950 e 1960 na Europa e nos EUA. Sem maiores
preocupações com o emprego e a garantia da sobrevivência material, passaram a se
ocupar de novas questões como a defesa dos direitos humanos, o meio ambiente, a
causa feminista, constituindo o que se convencionou chamar de “novos movimentos
sociais”. O fato que aqui nos interessa é que as polícias e os responsáveis pela
manutenção da ordem se depararam com multidões de jovens que contestavam os
governos constituídos com palavras de ordem e um discurso que evidenciava que não
se tratava apenas de trabalhadores em conflito com os seus empregadores. O que
estava em jogo não era apenas uma contestação do sistema capitalista e interesses
econômicos de algumas categorias de trabalhadores, mas um desafio à própria
existência do regime democrático. Não se tratava mais de lançar mão das estratégias
já suficientemente postas à prova para lidar com movimentos grevistas, mas de testar
a própria essência do regime democrático, baseado no princípio do dissenso e na
possibilidade de expressar publicamente a discordância.
Pode-se considerar que a polícia representa a imagem mais imediata do Estado aos
olhos dos manifestantes e influencia diretamente o seu comportamento. É sabido que
ações repressivas resultam em uma radicalização nas formas de protesto. Por outro
lado, o policiamento das manifestações está na origem do desenvolvimento e da
institucionalização das polícias. Estudos recentes mostram que a gradual afirmação da
polícia como principal agência especializada no policiamento de protestos está na
origem da modernização e da profissionalização das forças policiais na Europa nos
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últimos dois séculos. (Aubouin et alii, 2005; Morgan, 1987) Com efeito, se a
capacidade de realizar investigações não é uma exclusividade da atividade policial, o
policiamento de protestos o é. A existência de um corpo de policiais treinados e
uniformizados se revelou uma alternativa necessária aos exércitos que eram até então
convocados sempre que fosse necessário conter grandes aglomerações de
manifestantes. Trata-se igualmente de um fato significativo que movimentos de
reforma das organizações policiais, com o objetivo de torná-las mais profissionais e
eficazes, sejam com frequência uma resposta a revoltas e desordens urbanas. O
relatório The Politics of Protest, foi encomendado em agosto de 1968 a Jerome H.
Skolnick pela National Commission on the Causes and Prevention of Violence de
maneira a fornecer subsídios para uma reformulação do modelo de policiamento nos
Estados Unidos. De maneira semelhante, o Scarman Report foi encomendado ao
Lorde Scarman pelo governo do Reino Unido em seguida aos distúrbios de Brixton,
ocorridos durante o final de semana de 10 a 12 de abril de 1981, quando um grupo de
jovens daquele bairro do subúrbio de Londres desafiou as forças policiais com pedras,
tijolos, barras de ferro e bombas caseiras, resultando em 279 policiais feridos.
(Skolnick, 1969; Scarman, 1982)
A partir desta perspectiva, e possível entender porque a reflexão sociológica sobre o
policiamento de protestos se consolidou ao longo das décadas de 1970 e 1980. Em
consequência da onda de protestos que culminou no final da década de 1960, a
estratégia de controle da ordem pública passou por transformações profundas. Ao
mesmo tempo que o conceito ainda bastante vago à época do direito de manifestar o
próprio dissenso passou a se tornar mais inclusivo, as estratégias de contenção dos
protestos se distanciaram do modelo coercitivo que havia predominado até então. Ao
longo dos anos 1970 e 1980, pode-se identificar uma tendência de tolerância
crescente com relações às ações de protesto que resultam em algum tipo de violação
das leis, mesmo que de forma limitada como a ocupação de prédios públicos ou o
bloqueio de estradas e vias públicas. A este movimento corresponde uma modificação
sensível, em várias democracias ocidentais, no que diz respeito às estratégias de
controle da ordem pública pela polícia:
- uma redução do emprego da força, na medida em que evita-se cada vez mais o
recurso a ações coercitivas, ao que corresponde uma maior tolerância com relação a
ações de protesto antes consideradas como intoleráveis;
- uma ênfase maior no diálogo, que permite negociar as condições de manutenção ou
subversão da ordem no espaço público;
- o investimento de recursos consideráveis na coleta de informações, hoje bastante
facilitada pelas novas tecnologias.
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Estas transformações não passaram despercebidas para os estudiosos dos
movimentos sociais e das instituições policiais. A evolução desta agenda de pesquisas
sobre o policiamento de manifestações pode ser avaliada pela publicação de trabalhos
recentes sobre a temática.4
Neste texto empregamos a expressão “policiamento de manifestações” onde os
representantes do Estado preferem os termos “manutenção da lei e da ordem”. Faz-se
necessário ressaltar, contudo, que para a maioria dos manifestantes trata-se pura e
simplesmente de ações de “repressão”. O título do livro do militante anarquista Victor
Serge, originalmente publicado em 1925, é bem significativo a este respeito: “O que
todo revolucionário deve saber sobre a repressão”. (Serge, 2009)
Os estudiosos dos movimentos sociais sabem que a repressão exerce um efeito direto
sobre a mobilização da população contra o governo. Com efeito, a possibilidade da
repressão é um dos fatores que contribuem para forjar as condições necessárias para
a mobilização de um movimento social. Se uma repressão muito severa torna
temerária qualquer tentativa de contestar a ordem estabelecida e consegue esconder
a insatisfação, sem um mínimo de repressão não há ordem contra a qual se insurgir.
Charles Tilly argumentou que quando a repressão se situa em um nível intermediário,
ela tem um efeito indesejado de provocar uma radicalização considerável nas atitudes
de vários movimentos sociais, como mostram os exemplos da Alemanha e da Itália
nas décadas de 1960 e 1970, quando protestos sociais deram origem a alguns grupos
radicais que não hesitaram em pregar a violência revolucionária como forma de
contestar o “sistema”. (Tilly, 1978)
4
Numa lista não exaustiva, pode-se mencionar alguns trabalhos relevantes sobre o assunto: Della Porta,
D., Reiter, H., Polizia e protesta: l’ordi e pu li o dalla li erazio e ai o glo al, Il Mulino, 2003; Della
Porta, D., e Reiter, H. (eds.), Policing Protest: the control of mass demonstrations in Western
democracies, University of Minnesota Press, 1998; Della Porta, D., Reiter, H., La protesta e il controlo:
ovi e ti e forze dell’ordi e ell’era della glo alizzazio e, Altreconomia, 1999; Davenport, C.,
Johnston, H., Mueller, C., Repression and mobilization, University of Minesota Press, 2005; Davenport,
C., State repression and the domestic democratic peace, Cambridge University Press, 2007; Waddington,
P. A. J., Liberty and order: public order policing in a capital city, University College London Press, 1994;
Bonner, M. D., Policing protest in Argentina and Chile, First Forum Press, 2014; Huggins, M. K., Political
Policing: the United States and Latin America, Duke University Press, 1998; Uildriks, N., Policing
insecurity: police reform, security, and human rights in Latin America, Lexington Books, 2009; Hunsicker,
A., Behind the shield: anti-riot operations guide, Universal Publishers, 2011; United States Army Military
Police School, Riot Control, Fredonia Books, 2011; Beene, C., Riot prevention and control, Paladin Press,
2006; Mead, D., The new law of peaceful protest, Hart Publishing, 2010; Morgan, J., Conflict and order:
the police and labour disputes in England and Wales 1900-1939, Clarendon Press, 1987; Busch, H., Funk,
A., Kauss, U., Narr, W. D., Werkentin, F., Die Polizei in der Bundesrepublik, Campus Verlag, 1985; Cowell,
D., Jones, T., Young, J. (eds.), Policing the riots, Junction Books, 1982; Lipsky, M., Protest in city politics,
Rand McNally & Company, 1970; Skolnick, J. H., The politics of protest, Ballantine Books, 1969; Etzioni,
A., Demonstration Democracy, Gordon and Breach, 1970.
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O comportamento das massas e a violência revolucionária
A bem dizer, esta sim constitui uma tradição antiga no pensamento sociológico. Uma
vez que a sociologia se constituiu a partir da necessidade de compreender as
transformações por que passavam o mundo e a sociedade em consequência da
revolução francesa e da revolução industrial, uma preocupação constante ao longo da
evolução histórica da disciplina tem sido o comportamento das massas de operários
ou de cidadãos que a qualquer momento podem querer mudar as regras do jogo.
Ao final do século 19, a temática do controle das multidões era extremamente
relevante, como pode ser comprovado pela repercussão do livro Psicologia das
multidões, publicado em 1895 por Gustave Le Bon. Para este autor, “em determinadas
circunstâncias, uma aglomeração de indivíduos possui características novas muito
diferentes daquelas de cada indivíduo que a compõe. A personalidade consciente se
esvanece, os sentimentos e as ideias de todas as unidades são orientados em uma
mesma direção. Forma-se uma alma coletiva, transitória sem dúvida, mas que
apresenta características muito precisas.” (Le Bon, 1963: 9) Para Le Bon, toda
multidão está em busca de um chefe, ao qual ela se submete de bom grado e passa a
seguir de maneira instintiva e como que hipnotizada. A aplicação política dos seus
ensinamentos é, para ele, imediata: “O conhecimento da psicologia das multidões
constitui o recurso do chefe de Estado que deseja, não mais as governar – coisa que
se tornou nos dias de hoje bem difícil – mas pelo menos não ser demasiadamente
governado por elas.” (Le Bon, 1963: 5)
Pode-se considerar, portanto, que a multidão sempre foi considerada por um prisma
negativo pelos donos do poder. Maleável, facilmente iludida e submissa aos caprichos
do primeiro chefe que assumir o seu controle, a multidão precisava ser controlada e
contida, seja pelo aliciamento do chefe, seja pela sua supressão. Em caso de dúvidas,
a repressão era sempre o melhor remédio.
Essa foi a estratégia utilizada para conter os grandes protestos populares até a
década de 1960. A radicalização revolucionária que empurrou para ações violentas
grupos políticos minoritários de contestação como a Fração do Exército Vermelho
Alemão (RAF) e as Brigadas Vermelhas Italianas (BR) é uma consequência direta de
reações excessivamente repressivas por parte das autoridades governamentais. O
processo de radicalização da RAF, em seguida ao assassinato do militante Benno
Ohnesorg, alvejado pela polícia alemã durante uma manifestação no dia 2 de junho de
1967, é bem parecido com o das BR, que se inicia após a brutal repressão contra os
manifestantes no episódio que ficou conhecido como a “batalha de Valle Giulia” em
Roma no dia 1º de março de 1967. Como explicitou o jornalista alemão Ulrike Meinhof,
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fundador da RAF, na revista Konkret em maio de 1968: “As balas que atingiram Rudi
acabaram com o sonho da não-violência. Quem não se arma morre, quem não morre
é enterrado vivo nas prisões, nas casas de reeducação, no concreto sinistro dos
prédios residenciais.” (Sommier, 2008: 61-62)
As reflexões contemporâneas sobre o policiamento de protestos
Nas últimas três décadas, o estilo de controle e policiamento das manifestações nos
países de democracia mais avançada mudou significativamente. Naqueles países, as
forças policiais desenvolveram novas estratégias de manutenção da ordem pública,
baseadas na busca do diálogo com os organizadores das manifestações e num
esforço de informação com auxílio de modernas tecnologias audiovisuais que
permitem identificar quem, porventura, viola a lei sem precisar intervir diretamente. O
preparo dos policiais que são destacados para acompanhar protestos e manifestações
é fundamental, pois estes devem ser treinados para controlar as suas emoções e
saber resistir a provocações.
Até os anos 1960, a polícia usava o modelo da força escalonada para reprimir
protestos. Este modelo se caracteriza por táticas de policiamento “linha dura”,
intolerantes e até ilegais. A partir do final dos anos 1970, sob uma pressão significativa
para modificar o modelo agressivo que estão na origem de várias revoltas urbanas, a
polícia passou a se direcionar para um modelo mais suave e tolerante de
administração negociada dos conflitos.
Quando se guia pelo modelo da força escalonada, a polícia demonstra ter pouca
tolerância com distúrbios e frequentemente aplica a lei de maneira muito rigorosa,
atropelando os manifestantes. Os policiais se consideram como defensores da ordem,
aos quais é confiada a manutenção da lei e a proteção da propriedade privada contra
a ação de vândalos e baderneiros. Eles se mantém à distância dos manifestantes
cujas ações consideram como ilegítimas, e que consideram como indivíduos
desviantes. Não há negociação antes, durante, ou depois do protesto, e o contato com
os manifestantes se limita à revista e à prisão. A principal tática utilizada para controlar
a manifestação é o emprego da força, o que inclui espancamentos, o uso de
cachorros, cavalos, e prisões em larga escala e de maneira indiscriminada. O objetivo
é eliminar o dissenso por todos os meios possíveis. O resultado é que os
manifestantes têm o seu direito de liberdade de expressão desrespeitado e são
sujeitos a ferimentos sérios e traumas psicológicos. (Fernandez, 2009; Davenport,
Johnston, Mueller, 2005)
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A partir da década de 1980, as polícias europeias e norte-americana se voltaram aos
poucos para o modelo de administração negociada. O ponto central desta abordagem
é o respeito ao direito de contestação e à liberdade de expressão. De acordo com este
modelo, a polícia oferece concessões aos líderes do protesto em troca do
compromisso de autopoliciarem os manifestantes e respeitarem o trajeto e os horários
previamente acordados. O processo de negociação entre a polícia e os manifestantes
se inicia com a requisição pelos organizadores da manifestação de uma autorização
legal para ocupar alguma área pública. Após este primeiro contato, a polícia mantém
contato permanente com as lideranças de maneira a reunir o máximo de informações
possíveis sobre a manifestação, o que ajudará a garantir a ordem durante a realização
da manifestação. (Waddington, 1994; Fernandez, 2009)
A solicitação de uma autorização é um detalhe decisivo para o modelo de
administração negociada, pois dá origem a um processo burocrático que obriga os
manifestantes a aceitar o diálogo. A concessão da autorização requer uma longa lista
de informações, que incluem o nome da liderança ou da organização em nome do qual
será dada a autorização oficial; a data, hora, localização e percurso exato da
manifestação; uma lista dos oradores e das atividades previstas; a quantidade de
público esperada; que tipo de material, faixas, cartazes serão utilizados; o número de
policiais necessários para acompanhar os manifestantes; e a possibilidade e
identidade de manifestantes rivais que podem querer sabotar o protesto. Em suma,
como afirma Luis Fernandez, “o processo de autorização força os manifestantes a
negociarem a sua presença na rua.” (Fernandez, 2009: 14)
Até recentemente, a maioria das análises sobre o policiamento de manifestações
consideravam que apenas o lado dos manifestantes está sujeito a instabilidades e
reações irracionais típicas das multidões descritas por Gustave Le Bon. O outro lado, o
dos representantes da ordem e das forças policiais era considerado como previsível e
racional. Em manuais destinados ao treinamento de policiais que vão atuar no
policiamento de distúrbios e manifestações publicados nos últimos anos, contudo,
enfatiza-se o fato de que as forças policiais devem atuar de maneira conjunta e coesa,
como pode ser comprovado no trecho a seguir, extraído de um “Guia para operações
anti-distúrbios”:
“Os policiais são treinados para trabalhar de forma individual, e para lidar com
indivíduos. Eles pensam mais em termos do indivíduo do que do grupo. Ao lidar
com o controle de multidões, os policiais devem atuar como membros de um
time. Lidar com um grupo deste tipo como indivíduos não é viável, por isso é
preciso lidar com o conjunto de manifestantes como integrantes de um grupo: o
grupo controlador. O grupo controlador deve ser bem organizado, e deve agir
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com precisão sincronizada se pretender ser eficiente. Esta mudança de atitude
ou abordagem é às vezes de aceitação difícil por parte dos policiais individuais.
Os policiais precisam de um treinamento especializado para se tornarem
proficientes enquanto time, ainda mais se forem destacados para fazer o
controle de multidões.” (Hunsicker, 2011: 78)
Dentre as recomendações que manuais deste tipo fazem, um lugar de destaque é
reservado à preparação física e ao treinamento psicológico dos policiais. Uma vez que
as operações de controle de distúrbios civis e manifestações expõem os policiais a
estresses tanto físicos quanto mentais, estes devem estar cientes da influência dos
fatores psicológicos sobre o seu próprio comportamento.
Quem já presenciou uma manifestação sabe que os policiais envolvidos com
operações de policiamento em eventos deste tipo vão inevitavelmente se deparar com
o barulho e a confusão criada sempre que há um grande número de pessoas:
“Os manifestantes provavelmente vão gritar, insultar os policiais, e se referir a
eles com termos de baixo calão. Os policiais precisam aprender a ignorar estas
provocações, e não devem permitir que os seus sentimentos pessoais
interfiram com a missão que devem desempenhar. É possível que os policiais
sejam alvejados por objetos lançados em sua direção, mas eles devem
aprender a evita-los com movimentos de esquiva. Sob nenhuma hipótese,
devem jogar os objetos de volta. Os policiais devem dominar as suas emoções,
e obedecer às ordens de maneira disciplinada e conservar uma atitude
professional.” (Hunsicker, 2011: 73)
Geralmente, uma multidão é perfeitamente ciente das leis, e na maioria das vezes
respeita os princípios da lei e da ordem. Pode acontecer, contudo, que a excitação se
torne tão intensa que a lei é simplesmente ignorada. Cabe aos policiais lembrar aos
manifestantes que a lei existe respeitando-as, e não cometendo mais atos ilegais.
As estratégias das polícias brasileiras para lidar com manifestantes
As polícias brasileiras, contudo, ainda permanecem adeptas da estratégia coercitiva,
que consiste no uso de armas e da força física para controlar e fazer refluir os
manifestantes. Quando se trata de impedir o avanço de uma passeata, a polícia não
sabe proceder de outra maneira. Diante da reação da sociedade, indignada com os
excessos cometidos pelas forças de polícia na contenção dos protestos, algumas
vezes os policiais se limitam a meramente acompanhar a movimentação dos
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manifestantes e a assistir como espectadores à destruição dos equipamentos públicos
por indivíduos mais exaltados.
No Brasil são realizados grandes eventos que levam centenas de milhares de
cidadãos às ruas, durante o carnaval e os jogos de futebol, por exemplo. Por que a
mesma polícia que é capaz de manter sob controle uma grande massa de foliões
enlouquecidos durante os vários dias que dura o carnaval, ou de milhares de
torcedores fanáticos pelo seu time de futebol, se sente impotente diante de
manifestantes? Por que o país que realiza a maior parada do orgulho LGBT do mundo,
que reúne todos os anos milhões de pessoas na cidade de São Paulo, não consegue
lidar de maneira pacífica com um punhado de manifestantes?
Na América Latina, as polícias ainda permanecem fortemente marcadas pelos
períodos ditatoriais recentes, durante os quais várias delas foram em parte
instrumentalizadas para a repressão política dos opositores dos regimes autoritários.
Um levantamento realizado com dados de relatórios da Anistia Internacional, do
Human Rights Watch e do Departamento de Estado dos EUA sobre esta questão
mostra que entre 1980 e 2011, e considerando apenas períodos posteriores aos
regimes autoritários, 1.005 cidadãos foram mortos pela polícia durante protestos, e
13.913 foram feridos, em 16 países da região, sendo que o destaque negativo fica
com a Venezuela, a Bolívia e o Brasil, que juntos somam 719 mortes e 7.903 feridos.
Esta questão está relacionada com o recente debate sobre a justiça de transição e a
reavaliação do processo de transição da ditadura para a democracia na América
Latina, pois estudos recentes têm mostrado que a não revisão das leis de anistia e a
não preservação da memória estão relacionadas com altos índices de violência e
impunidade. Pesquisas comparativas comprovam que nos países em que comissões
da verdade foram instaladas e que adotaram mecanismos de justiça de transição, a
violência policial foi significativamente reduzida. (Sikkink, K., Walling, C., “The Justice
Cascade and the Impact of Human Rights Trials in Latin America”, In: Journal of Peace
Research, 44(4), 2007) Pode-se afirmar, portanto, que a maneira pela qual são
reavaliados períodos autoritários e enfrentadas as feridas deixadas pelas ditaduras
está diretamente relacionada com a qualidade da democracia num determinado país.
Quando um processo de justiça de transição não é adequadamente realizado, a
mensagem que passa para a polícia, é que assim como durante o período autoritário,
os excessos cometidos por policiais podem permanecer impunes, pois estão além do
alcance da lei.
Estas considerações se tornam ainda mais significativas quando se lembra que o
governo norte-americano colaborou estreitamente com a ditadura militar brasileira ao
financiar e dar todo o apoio necessário para um programa de cooperação destinado a
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oferecer um adequado treinamento para a contenção de manifestações para oficiais
das forças policiais brasileiras. O financiamento se deu por meio de um convênio com
a agência norte-americana USAID. Além de ajudarem os militares a criarem o Serviço
Nacional de Informações (SNI), já em junho de 1964, dois meses apenas após o golpe
militar, que ao final da década de 1970 viria a contar com um contingente de 200 mil
colaboradores na folha de pagamento (entre funcionários administrativos, agentes,
informantes regulares ou ocasionais) e forneceria dois dos cinco presidentes generais,
os americanos acolheram em 1967 uma delegação de militares do Centro de
Informações do Exterior (CIEx) que integrava o Sistema Nacional de Informações
(SISNI) para serem treinados nos “métodos americanos de combate ao comunismo”.
(Huggins, 1998: 136) Em seguida, a mesma delegação seguiu para o Reino Unido
onde também foi treinada de acordo com os métodos de repressão utilizados contra os
rebeldes do Exército Republicano Irlandês (IRA), que incluíam práticas de
interrogatório mais sutis ao substituírem sessões de espancamentos por métodos que
não deixam marcas. Ao mesmo tempo, contudo, os militares brasileiros também
receberam aulas de tortura ministradas pelo general Aussaresses, que aperfeiçoou na
Argélia as técnicas de tortura desenvolvidas na Indochina.
Lamentavelmente, esta classificação dos cidadãos em cidadãos de bem e subversivos
veio se sobrepor à prática já bem arraigada nas forças da ordem no Brasil de distinguir
os cidadãos respeitáveis e os desordeiros, na mesma lógica dos capitães do mato que
caçavam implacavelmente os escravos fugidos sobre os quais se permitiam as piores
crueldades. Os dados mostram que durante a maior parte do tempo, a polícia do Rio
da cidade do Rio de Janeiro, se ocupava na perseguição de indesejáveis de todo tipo
(desordeiros, bêbados, capoeiras, acusados de porte ilegal de arma, vadiagem, prática
de jogo, prostituição) cujas prisões superavam em muito o número de presos por
crimes contra outras pessoas ou contra o patrimônio. (Holloway, 1993; Bretas, 1997)
Deve ter sido uma surpresa, portanto, para os policiais brasileiros o fato de terem sido
criticados por lidarem com os manifestantes da mesma maneira que sempre fizeram
quando desafiados por grupos de indivíduos que se recusavam ostensivamente a
obedecer às suas ordens.
Até agora as autoridades policiais têm mostrado um grande despreparo para lidar com
esta situação e multiplicaram iniciativas em várias frentes, enviando sinais
contraditórios.
Em dezembro de 2013 a Polícia Militar de São Paulo anunciou a intenção de adquirir
14 veículos blindados antimanifestantes equipados com jatos de água com capacidade
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para derrubar uma pessoa que está a mais de 30 metros de distância, além de
detectores de substâncias químicas contaminantes e de elementos radioativos.5
Em fevereiro de 2014, os governos do Rio de Janeiro e de São Paulo anunciaram a
formação de esquadrões policiais especializados no combate aos manifestantes
radicais inspirados em grupos similares na Alemanha e nos Estados Unidos, treinados
por cinco meses e que empregam 15 diferentes tipos de armas, cinco das quais não
letais destinadas ao “controle de distúrbios urbanos”.6
Um artigo publicado na pagina do coletivo dos Advogados Ativistas, formado na cidade
de São Paulo, em junho de 2013, na esteira dos protestos de rua e com a missão de
lutar pelo direito de expressão, reunião e dignidade da pessoa humana, afirma que “a
situação dos policiais civis e militares é dramática. Pesquisa realizada pela FGV revela
que 64% dos policiais assumem não ter treinamento adequado para lidar com os
protestos. Ou seja, mais da metade dos policiais que estão nas ruas não sabem o
porquê de estarem lá – para reprimir, controlar, acompanhar, bater, enfim, qual ação
eles devem tomar diante de uma manifestação. A falta de preparo e a estrutura militar
é criticada inclusive internamente. Recentemente, um policial militar publicou um livro
chamado “Militarismo: um sistema arcaico de segurança pública”. Resultado: foi
expulso da corporação e será processado por “criticar publicamente assunto atinente à
disciplina militar.””7
Considerações finais
Alguns avanços devem acontecer nesta área, à medida que as autoridades policiais se
mostram mais sensíveis com esta questão e acenam com uma formação específica de
grupos de policiais destacados para acompanhar as manifestações nas áreas
urbanas. Trata-se de uma boa oportunidade para promover uma reflexão ampla sobre
o nosso modelo de polícia em conjunto com a sociedade. Com um pouco de ousadia,
não seria por demais utópico pensar numa possível refundação das nossas
instituições policiais a partir do desafio posto pelos manifestantes nos grandes centros
urbanos do país desde o ano passado.
No livro Imagens da Democracia, Luciano Oliveira mostra que a esquerda brasileira
aprendeu a valorizar os direitos humanos a partir da descoberta, literalmente dolorosa,
da realidade da tortura durante a ditadura militar. Os direitos civis, até então
5
http://folha.com/no1382401
http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,nova-policia-contra-disturbios-violentos-exige-pessoalde-elite,1130157,0.htm#bb-md-noticia-tabs-1
7
http://ad ogadosati istas. o /a-hie a uia-do-desp epa o-64-dos-poli iais-a- e o he e /
6
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ISSN: 2317-0255
considerados como “direitos de burgueses” de acordo com o mais puro pensamento
marxista, tornaram-se importantes instrumentos de combate na luta por uma
sociedade mais justa. Agora, três décadas após o final do regime militar e o retorno da
democracia, descobrimos atônitos que o exercício do mais simples e legítimo direito
democrático, a expressão pública do dissenso, é vista com reservas por parte
considerável da população brasileira, que assimila os manifestantes a meros
baderneiros. Trata-se, na minha opinião, de mais uma prova do quanto as relações
entre o público e o privado permanecem problemáticas na nossa sociedade. Para
muitos de nós, quando os manifestantes ocupam o espaço público das ruas, só podem
estar querendo se apropriar deste recurso para fins particulares ou com o objetivo de
atingir propriedades privadas.
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Segurança Pública, Direitos Humanos e a experiência de
travestis e transexuais
Nicole Gonçalves da Costa
Rafaela Vasconcelos Freitas
Diego Patrick da Silva
(UFMG)
INTRODUÇÃO
O campo dos direitos, no Brasil, preza pela universalidade das garantias
fundamentais acima de qualquer quadro de discriminação e violência. Como descrito
pela Declaração Universal dos Direitos Humanos e reafirmado na Constituição
Federal: todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos.
Sabe-se ainda que, ao longo dos anos, a compreensão acerca dos direitos humanos
tem se transformado no sentido de fortalecer e promover a maior observância dos
ideais de equidade. Nessa perspectiva, além dos pressupostos contidos na
Declaração Universal dos Direitos Humanos, observamos, por exemplo, a Declaração
de Viena, constituindo-se um marco importante no sentido de afirmar a indivisibilidade
e a interdependência dos direitos e o papel do Estado e dos cidadãos como agentes
promotores das garantias fundamentais.
Neste contexto, entre várias resoluções pactuadas, é preciso destacar, por sua
inegável importância para ampliação do significado dos Direitos Humanos a nível
internacional, os Princípios de Yogyakarta (ONU, 2006), em que se expressam
diretrizes sobre a aplicação da legislação de Direitos Humanos em relação à
orientação sexual e identidade de gênero. O documento estabelece que:
Toda pessoa tem o direito de ser reconhecida, em qualquer lugar,
como pessoa perante a lei. As pessoas de orientações sexuais e
identidades de gênero diversas devem gozar de capacidade jurídica
em todos os aspectos da vida. A orientação sexual e identidade de
gênero autodefinidas por cada pessoa constituem parte essencial de
sua personalidade e um dos aspectos mais básicos de sua
autodeterminação, dignidade e liberdade (ONU, 2006, pp.13-14).
Toda pessoa tem o direito à liberdade de opinião e expressão, não
importando sua orientação sexual ou identidade de gênero. Isto inclui
a expressão de identidade ou autonomia pessoal através da fala,
comportamento, vestimenta, características corporais, escolha de
nome ou qualquer outro meio, assim como a liberdade para buscar,
receber e transmitir informação e idéias de todos os tipos, incluindo
idéias relacionadas aos direitos humanos, orientação sexual e
identidade
de
gênero,
através
de
qualquer
mídia,
e
independentemente das fronteiras nacionais (ONU, 2006, p. 27).
No Brasil o campo de políticas públicas voltados à identidade de gênero e
orientação sexual dos sujeitos tem ainda se limitado à educação e à saúde, neste
último caso, especificamente, a políticas de controle de DST/Aids. Em nível legislativo
a portaria nº 1.820/2009 do Ministério da Saúde assegura a travestis e transexuais o
direito de ter atendimento humanizado e livre de discriminação em relação a sua
identidade de gênero e identidade sexual. Na capital mineira, no campo da educação,
3934
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a Resolução CME/BH Nº 002/2008, garante a inclusão do nome social de travestis e
transexuais nos Registros Escolares da Rede Municipal de Educação.
A tímida articulação entre política pública e direitos humanos, considerando a
identidade de gênero e sexualidade, no campo da saúde e educação, não é observada
no âmbito da segurança pública. Apesar de ser um tema frequentemente pautado e
demandado pelos movimentos sociais em conferências e audiências, verifica-se que
são escassas as políticas voltadas para a prevenção e combate à homofobia e
promoção dos direitos humanos da população LGBT4 na área da segurança pública no
Brasil (MELLO, BRITO & MAROJA, 2012). Dentre elas, podemos citar o Programa
Brasil Sem Homofobia, o Plano Nacional de Promoção da Cidadania e Direitos
Humanos LGBT, Plano Nacional de Direitos Humanos – PNDH 3 - e a realização de
dois Seminários e um curso de educação à distância promovidos pela Secretaria
Nacional de Segurança Pública – SENASP. A escassez de propostas neste âmbito
revela ser a violência brutal sofrida por travestis e transexuais ainda invisível no que
tange as políticas do Estado.
De modo geral, tais dispositivos consolidam a perspectiva de que questões
relacionadas à identidade de gênero, antes vivenciadas primordialmente no âmbito
privado, passaram a fazer parte da vida política da nossa sociedade, cabendo às
pessoas e instituições a defesa intransigente
dos direitos,
sob pena
de
responsabilidade por ação ou omissão.
Contudo, apesar da existência de normativas locais, nacionais e internacionais
que garantem o respeito à identidade de gênero, este não tem sido reconhecido como
direito pelas instituições de segurança pública, o que implica, consequentemente, em
um quadro de negações e violações extremamente grave às travestis e transexuais.
Os dados obtidos em nossas pesquisas apontam para a existência de entraves,
enfrentados por travestis e transexuais, no acesso às políticas públicas. No caso deste
trabalho, especificamente, abordaremos a dificuldade de acesso aos equipamentos de
segurança pública em casos de violência contra elas.
O movimento social LGBT, desde os anos 1980, tem pautado o tema da
violência e tem feito denúncias que possibilitaram o acúmulo de dados sobre este tipo
de fenômeno, e a sua visibilidade no debate público. Recentemente, verifica-se a
participação da Academia, articulada aos movimentos sociais, na produção e análise
de dados sobre a violência que atinge a população LGBT, como o caso dos surveys
realizados nas paradas do orgulho LGBT desde 2003 (RAMOS, 2010). Neste contexto
de violência, denunciado pelo movimento social, as travestis e transexuais tem sido as
4
Lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais.
3935
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vítimas preferenciais de „violência homofóbica‟ (BRASIL, 2012; CARRARA & VIANNA,
2006), vivendo as experiências mais críticas dos chamados crimes de ódio (RAMOS,
2010).
Verificamos por meio do trabalho de campo realizado junto às travestis e
transexuais, que exercem trabalho sexual em Belo Horizonte e região metropolitana,
como tais violências se configuram na experiência desta população fora e dentro do
espaço da prostituição.
Travestis e transexuais estão expostas em seu cotidiano a vários tipos de
violências e violações de direitos, inclusive por parte de policiais. Em nível institucional
e estatal tais violências podem se expressar, inclusive, pela exclusão desta população
do acesso à Educação, Saúde, Trabalho, Lazer, Segurança e Cultura. Pela população
em geral são constrangidas a não circular pelos espaços públicos por meio de olhares
e comentários preconceituosos, e agressões verbais. Desde cedo são expulsas de
casa pela família, por parte de quem sofrem violência física e agressões verbais. Na
pista5 não é diferente, sofrem violências por parte de clientes, falsos clientes, cafetinas
e policiais, dentre muitos casos podemos citar: rapto seguido de violência sexual;
assaltos; clientes que não pagam pelo programa; assassinatos; agressão física por
parte de clientes, cafetinas e outras travestis; agressões físicas e verbais por parte da
população que circula a pé, de carro ou de ônibus; e violência policial. Em suas
relações de conjugalidade são agredidas por seus maridos que, como observou Kulick
(2008), tem sua importância residida no fato de que eles materializam sua condição de
mulher, no seu sentido subalternizado.
Estas violências se relacionam a um contexto social e político de
vulnerabilidade e exclusão em que as travestis e transexuais se encontram, contexto
este, que perpassa também a falta de serviços específicos de que necessitam. Diante
destas situações de violência elas relatam, em nossa pesquisa de campo, tentar
acionar as instituições de segurança pública, entretanto:


Quando acionados não comparecem ao local do crime;

denúncia;

Recusam-se a registrar o boletim de ocorrência, impedindo a realização da
As consideram como autoras quando na situação de vítimas;
Não respeitam o nome social e a identidade de gênero com a qual elas se
identificam;
5
Nome dado pelas travestis e transexuais ao local de prostituição em via pública.
3936
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
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Realizam revistas truculentas, sendo negada a elas a revista por policial
mulher.
De acordo com Carrara e Vianna (2006), há também uma reiteração por parte
dos policiais da ideia de que as vítimas, travestis e transexuais, contribuíram para sua
morte devido ao seu modo de vida. Isso fica evidente em nossas pesquisas quando
identificamos uma falta de compreensão, por parte dos policiais entrevistados, dos
conceitos de vulnerabilidade social e cidadania. Ao culpabilizá-las pela violência que
sofrem, o problema se configura em uma esfera individual e privada, retirando
qualquer responsabilidade da sociedade e do Estado. Os autores indicam ainda que
há um descaso policial em apurar e investigar os crimes tendo travestis como vítimas:
os casos de execução de travestis são em sua maioria arquivados, há um baixo
número de acusados identificados e condenados, e de vítimas são transformadas em
autoras perante as instituições de Segurança Pública e Justiça (CARRARA & VIANNA,
2006).
Uma análise mais específica desse fenômeno, buscando-se entender o
contexto macro de exclusão em que essa população se encontra, contribuiria para a
redução do estigma e do preconceito construído em torno dessa população, sempre
associado ao crime, tráfico de drogas e prostituição.
Neste sentido podemos nos questionar: em que medida os agentes de
segurança pública têm compreendido as travestis e transexuais como sujeitos de
direito, como merecedoras da proteção do Estado, como sujeitos dos direitos
humanos? Em que medida a segurança pública tem se articulado junto ao campo dos
direitos humanos no combate à violência transfóbica?
Pretendemos analisar a
repercussão dos direitos humanos nas políticas de segurança pública e na prática de
seus agentes, no que se refere especificamente às travestis e transexuais, tendo em
vista tanto a perspectiva desta população quanto das instituições de segurança
pública.
METODOLOGIA
Os dados discutidos neste trabalho derivam de duas pesquisas realizadas pelo
Núcleo de Direitos Humanos e Cidadania LGBT da Universidade Federal de Minas
Gerais. O NUH/UFMG é um núcleo interdisciplinar vinculado à Faculdade de
Filosofia e Ciências Humanas (FAFICH). Foi criado em agosto de 2007, por meio de
convênio com a Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República (SDH),
3937
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e desenvolve atividades de pesquisa, ensino e extensão pautando temas ligados à
sexualidade, gênero e direitos humanos. Desde 2010, este núcleo desenvolve
trabalhos com a população de travestis e transexuais na capital mineira e região
metropolitana com o objetivo de mapear seu acesso a políticas públicas de saúde,
educação e segurança pública, e explicitar os contextos de vulnerabilidade e
violências identificados.
Direitos e violência na experiência de travestis e transexuais na cidade de Belo
Horizonte: construção de um perfil social em diálogo com a população é uma
pesquisa em interface com a extensão, que, por meio de um questionário estruturado
levanta dados sobre escolaridade, família, religião, trabalho sexual, trabalho formal,
transformação do corpo, saúde, violência, políticas públicas e lazer. Posteriormente,
entrevistas em profundidade serão realizadas a partir dos dados obtidos com o
questionário. Para o trabalho de campo adotamos a inserção etnográfica e a
observação participante: uma vez por semana visitamos áreas de prostituição de
travestis e transexuais em Belo Horizonte, onde as entrevistamos. A pesquisa tem
como objetivos: identificar os contextos de vulnerabilidade em que se encontram
travestis e transexuais de Belo Horizonte e região metropolitana frente às áreas de
Saúde, Educação, Assistência Social, Segurança Pública, Emprego e Renda;
fomentar a discussão de temas relacionados ao combate do preconceito; inserir as
especificidades do universo das travestis e transexuais nas políticas públicas
vinculadas à noção de diretos humanos, no intuito de promover documentos que
refinem as estratégias de ações para estas populações.
A pesquisa Segurança pública e população LGBT foi realizada em 2013 junto à
Secretaria Nacional de Segurança Pública, o Instituto DH - Promoção, Pesquisa e
Intervenção em Direitos Humanos e Cidadania de Belo Horizonte e o Núcleo de
Direitos Humanos e Cidadania LGBT da Universidade Federal de Minas Gerais
(NUH/UFMG). A pesquisa buscou investigar a apropriação, em nível institucional e
formativo, das questões relacionadas à homofobia e aos direitos da população LGBT
pelas instituições de Segurança Pública. Buscou-se investigar, portanto, a formação
em direitos humanos e combate à homofobia dos agentes de segurança pública, o
fluxo das denúncias de crimes homofóbicos, as representações sobre as
experiências LGBT, bem como as representações de grupos do movimento social
LGBT sobre a atuação das instituições estudadas. A pesquisa contemplou as cinco
regiões brasileiras, se restringindo às seguintes instituições de Segurança Pública:
Polícias Civis (PC), Polícias Militares (PM) e Guardas Municipais (GM) das capitais
dos estados de Alagoas, Minas Gerais, Santa Catarina, Pará e Goiás. Os
procedimentos metodológicos utilizados foram: análise documental relativa à
3938
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formação básica e continuada; entrevistas com os cargos de comando das
Instituições de Formação e dos Comandos Gerais; e Grupos Focais com
profissionais da ativa, profissionais em formação e integrantes da população LGBT.
Para responder às perguntas deste trabalho selecionamos os discursos
recorrentes dos policiais sobre as travestis e transexuais, sobre direitos para pessoas
LGBT, sobre direitos humanos e sobre a forma de tratamento aos grupos
vulneráveis6. No que se refere aos relatos sobre como se dá a relação com as
travestis e transexuais na prática policial e institucional, consideramos tanto os
relatos da referida população quanto dos policiais entrevistados. Os dados deste
recorte advêm dos grupos focais, entrevistas e observações de campo, realizados
nas duas pesquisas mencionadas anteriormente.
RESULTADOS
De maneira geral, os policiais e guardas municipais entrevistados entendem os
direitos humanos para pessoas LGBT como um sistema de privilégios: afirmam que ao
dizerem de sua particularidade o grupo tenta obter mais que direitos, aproveitando de
sua condição para se livrarem de contravenções. Defendem a generalização e
universalização da forma de tratamento ao cidadão, pois acreditam que a lei comum
abrange também os LGBT. Argumentam, a partir da formação em direitos humanos
recebida nas instituições, ser suficiente repeitar o ser humano, a dignidade da pessoa
e a premissa formalista de que todos são iguais, portanto, têm direitos iguais. Afirmam
não ser necessário um atendimento especializado, uma vez que o respeito ao “bom
atendimento em geral” é suficiente para qualquer tipo de situação. Atribuem os casos
de mau atendimento a uma questão de “falta de educação da família” ou à
personalidade agressiva do policial, ao fazerem isso: justificam atitudes violentas,
homofóbicas ou discordantes, como algo natural, intrínseco e imutável, cuja formação
não conseguiria mudar; e invisibilizam a homofobia e a transfobia, tratando-as como
uma questão individual e privada. Fazem distinção entre como devem proceder
enquanto profissional e a opinião pessoal (o que realmente pensam sobre as travestis
e transexuais). A existência da homofobia, apontada por pessoas LGBT, é vista pelos
6
Verificamos, a partir da análise documental e das entrevistas nos setores de ensino das
academias, que a disciplina de direitos humanos ofertada nos cursos de formação policial,
geralmente, reserva uma pequena carga horária (referente a uma aula) para discutir o que eles
denominam grupos vulneráveis e como eles devem ser tratados. Eles consideram grupos
vulneráveis: mulheres, idosos, crianças, negros e LGBT‟s.
3939
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policiais como um erro de percepção da vítima, por que são exagerados como os
negros em relação ao racismo. O termo “normais” foi recorrentemente utilizado para
designar a experiência de heterossexuais, o que revela uma concepção patologizante
sobre as experiências não heterossexuais.
O direito à autodeterminação e escolha do nome, conforme a identidade de
gênero com a qual a pessoa se identifica, é violado pelas instituições de segurança
pública. Estas situações são descritas pelas travestis e transexuais como vexatórias e
degradantes, revelam tratamentos constrangedores no momento de acesso aos
serviços: os profissionais se recusam a se referirem a elas pelo nome social e se
recusam a acrescentá-lo no boletim de ocorrência, quando este possui campo para
isso. Em alguns casos, quando o nome social é utilizado, usa-se com tom de deboche,
sendo comuns e naturalizadas as piadas entre os profissionais e outros usuários – fato
que os próprios policiais mencionaram nos grupos focais.
A mesma alegação que é feita sobre a revista feminina é feita em relação ao
nome social: a de que para os policiais o nome de registro e o sexo biológico
(presença do órgão masculino) determinam o gênero, portanto, definem que elas são
“homens” e que devem, de acordo com a legalidade, serem tratadas pelo nome
masculino e serem revistadas por homens. A perspectiva dos policiais demonstra que
eles não fazem distinção entre sexo e identidade de gênero, algo importante para se
compreender a experiência de travestis e transexuais. Argumentam ainda que é
constrangedor para a policial feminina revistar uma travesti ou transexual, sendo o
constrangimento do profissional da segurança pública considerado mais legítimo do
que o constrangimento da travesti/transexual que será revistada.
Do ponto de vista institucional, percebe-se que os fluxos de atendimento a
denúncias sobre violências homofóbicas são bastante irregulares e os processos são
frequentemente abandonados, o que nos faz questionar como esse fluxo é processado
e se existe negligência por parte dos agentes ao registrar a denúncia. Sobre
instrumentos e procedimentos, constatou-se que a inclusão dos campos de orientação
sexual/identidade de gênero e motivação por homofobia é importante, porém
insuficientes se não forem articulados ao treinamento do operador quanto ao
preenchimento e importância daqueles dados para o combate e a prevenção de
crimes contra pessoas LGBT. Exatamente por isso, a política de segurança pública se
vê incapaz de gerar dados sobre assassinatos e violências contra esta população, o
que seria bastante simples caso os procedimentos usuais fossem atendidos. Estas
questões revelam que as formas de humilhação geradas pelo sistema de preconceito
homofóbico atingem não só indivíduos, mas constituem dinâmicas institucionais,
fazendo parte do ciclo de silenciamento tão perverso ao combate à violência. O
3940
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silenciamento, a partir da não existência de dados, retroalimenta o sistema de
humilhação, não gera reconhecimento desse tipo de violência por parte das
instituições públicas.
A partir do que foi dito à cima, fica evidente que o conteúdo ministrado sobre a
temática na formação sobre direitos humanos dos policiais e guardas municipais é
insuficiente e não teve repercussões na prática dos policiais. A máxima de que
“todos são iguais e têm direitos iguais” tem sido insuficiente para se considerar os
“sujeitos da diferença”, na prática travestis e transexuais tem sido excluídas. As
violações e violências cometidas pelos policiais evidenciam tal insuficiência e
distanciam a população de travestis e transexuais dos equipamentos públicos,
ameaçando seus direitos sociais e individuais; e as mantêm em um ciclo de
estigmatização, violência e vulnerabilidade social. Travestis e transexuais desistem
de acionar a polícia, o que faz com que as denúncias não sigam o fluxo necessário
para que medidas possam ser tomadas e números sejam gerados sobre esse tipo de
violência, que ainda não é tipificado como crime no Brasil.
O próprio caráter de vulnerabilidade da população, quando questionada e não
entendida em sua complexidade na dinâmica social, faz com que muitos crimes
sejam previamente descartados ou não investigados, pois não são considerados
homofobia e/ou transfobia, e sim “crimes passionais”; sendo uma leitura
descontextualizada sobre o que levou aqueles sujeitos estarem em situações mais
vulneráveis do que outros. É importante lembrar que a homofobia invisibiliza relações
e perda de direitos, naturalizando a violência e as desigualdades. Não existe,
portanto, a percepção, por parte dos policiais, de perda e falta de acesso a direitos e
cidadania em função da sexualidade e identidade de gênero.
DISCUSSÃO
Diante dos dados apresentados, nos questionamos se a inclusão da política
LGBT nas políticas nacionais de direitos humanos (e no caso da segurança pública, a
sua inserção transversal no conteúdo formativo dos agentes), tem implicado no
reconhecimento dos direitos LGBT como direitos humanos ou se esta lógica tem se
configurado como uma forma de inclusão perversa, um modo de cooptação e
silenciamento pelo Estado das pressões e demandas do movimento social LGBT
(PRADO, MACHADO & CARMONA, 2009).
O campo de direitos humanos é um campo de disputas, onde a distribuição
desigual de poder e de recursos, faz com que a reivindicação de direitos por
3941
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determinado grupo não modifique as hierarquias e as desigualdades existentes
(PRADO, MACHADO & CARMONA, 2009). O que significa que alguns grupos
adquirem mais legitimidade de fala e, consequentemente, mais escuta de suas
demandas pelo Estado do que outros.
Ao se questionarem sobre quais seriam as possibilidades reais dos direitos
humanos servirem de instrumento para dialogar com as diferenças e de propiciar uma
política interlocutora dos direitos LGBT, Prado, Machado e Carmona (2009) afirmam:
Da forma que têm sido institucionalizados os discursos e práticas
numa concepção universal dos direitos humanos, é possível constatar
que essa universalidade se encontra muito menos nas agendas
políticas, do que como um horizonte a ser percorrido, uma utopia
ativa por uma sociedade pluralista. Já que por esse viés,
compreendemos os direitos humanos como um campo de disputas
políticas, onde o que é possível de ser universalizado são as
particularidades. Por isso, talvez o caminho deveria ser inverso: de
que maneira os direitos LGBT e sexuais podem contribuir para a
garantia dos direitos humanos (PRADO, MACHADO & CARMONA,
2009, p.142).
Neste sentido, as particularidades podem ser consideradas instrumentos de
realização dos direitos humanos, não impeditivos destes, pois ampliam nossa
concepção pluralista e denunciam que o sujeito dos direitos humanos é um universal
particularizado.
Como vimos ao longo deste trabalho, a afirmação de uma igualdade formal
“todos são iguais perante a lei” e do respeito ao ser humano e à dignidade da pessoa,
não tem implicado na prática policial e institucional em reconhecimento e respeito aos
direitos de travestis e transexuais no âmbito da segurança pública: descaso e
negligência na investigação de denúncias; não comparecimento ao local do crime;
recusa em registrar o boletim de ocorrência; considerá-las autoras quando na situação
de vítimas; desrespeito ao nome social e a identidade de gênero com a qual elas se
identificam; revistas truculentas feitas por policiais homens; e violência policial são
alguns exemplos.
Diante da insuficiência de afirmação da igualdade e universalidade dos direitos,
no que tange o acesso de travestis e transexuais à segurança pública, é
imprescindível,
para
desdobramentos,
o
melhor
compreensão
questionamento
quanto
de
às
tal
insuficiência
concepções
de
e
de
sujeito,
seus
de
universalidade e igualdade dos direitos humanos. Uma noção de indivíduo abstrato,
universal e homogêneo, como concebe a perspectiva liberal dos Direitos Humanos,
acaba por dissolver a tensão entre diferenças e disputas identitárias. Contudo, é
exatamente a relação entre a afirmação da igualdade e da diferença e da tensão entre
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identidade e cidadania que garantem “a radicalização e a sobrevivência do político
como o lugar, por princípio, de radicalização dos princípios democráticos” (PRADO,
2003, p. 70).
Desta maneira, a concepção de direitos humanos dos policiais e guardas
municipais, que considera direitos LGBT como privilégios, além de não considerar
travestis e transexuais como sujeitos de direito, minam com qualquer projeto de uma
sociedade radicalmente democrática. Neste sentido, Mouffe (1996) nos aponta que:
A reformulação do projeto democrático em termos de democracia
radical exige a desistência do universalismo abstracto do iluminismo
quanto à indiferenciação da natureza humana. Embora o surgimento
das primeiras teorias da democracia moderna e do indivíduo como
titular de direitos fosse possibilitado por esses mesmos conceitos,
eles tornaram-se hoje o principal obstáculo à futura expansão da
revolução democrática. Os novos direitos que hoje são reclamados
são expressão de diferenças cuja importância só agora começa a ser
afirmada e deixaram de ser direitos que possam ser universalizados.
A democracia radical exige que reconheçamos a diferença – o
particular, o múltiplo, o heterogéneo -, tudo o que, na realidade, tenha
sido excluído pelo conceito abstracto de homem. O universalismo não
é rejeitado, mas particularizado; o que é necessário é um novo tipo de
articulação entre o universal e o particular (MOUFFE, 1996, p.27).
Mouffe (1996) lembra-nos, ainda, que essa mesma concepção universalista e
racionalista excluiu as mulheres da esfera pública, do exercício da cidadania, criando
uma cisão entre público e privado, o que, a nosso ver, contribuiu para a manutenção
das desigualdades de gênero. Para Ranciére (S/D) a única universalidade política
possível é a igualdade, porém, não como um fundamento, um ideal, um valor inscrito
na essência da humanidade ou da razão. Para este autor, ela se constrói
discursivamente e na prática quando se necessita, de forma argumentativa,
demonstrá-la e verificá-la a partir das consequências de se pertencer ou não a
determinada categoria humana ou cidadã, por exemplo.
Para além de incluir travestis e transexuais como parte deste universal, o que
realmente produz transformações sociais é a reivindicação pelos sujeitos, que têm
seus direitos violados, do status como cidadãos, uma disputa sensível que
desorganiza a ordem estabelecida. Mais do que leis e direitos, o que travestis e
transexuais reivindicam é a escuta, o reconhecimento de sua experiência como
legítima, visando à promoção da igualdade. As políticas da diferença, aparentemente
reconhecem as experiências, entretanto, apenas pautam que as diferenças existem, o
que não é suficiente para se alcançar a igualdade. Isso porque, esse reconhecimento
não implica em interpelação das hierarquias e das desigualdades sociais, portanto,
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não se questiona a distribuição dos lugares sociais, e nem visa à ressignificação da
experiência marginalizada para a vivência da cidadania.
Para tal ressignificação, é preciso se questionar: quem é considerado humano
pelas instituições de segurança pública e pelos direitos humanos? Quais vidas devem
ser protegidas? Ao analisar a perspectiva dos policiais e guardas municipais
verificamos que travestis e transexuais, por vários motivos, não são consideradas
merecedoras da proteção do Estado. Assim como indica a literatura (CARRARA &
VIANNA, 2006), uma das delegadas entrevistadas ao falar de seu trabalho afirma que:
“às vezes elas [travestis] chegam como réus e saem como vítimas das delegacias”.
Tendo em vista que as normas de gênero circunscrevem o humanamente
inteligível e delimitam o que iremos reconhecer e quais vidas iremos proteger
(BUTLER, 2011), podemos afirmar que este processo implica na exclusão da
experiência de travestis e transexuais da categoria “humano”, o que traz implicações
políticas, subjetivas e sociais para esses sujeitos. O conjunto normativo que temos não
reconhece a experiência de travestis e transexuais como legítima, consequentemente,
elas se tornam corpos ininteligíveis, abjetos. Os corpos abjetos não materializam a
norma e se tornam vidas que não importam, sua humanidade é questionada
(BUTLER, 2000), vivem em uma condição de não cidadania. Sem reconhecimento
social, não conseguem sobreviver com pleno acesso a direitos.
É, por isso, que Butler (2006) irá sugerir que mantenhamos em aberto nosso
conceito de humano, “dado que su futura articulación es essencial para el proyecto de
un discurso y una política de los derechos humanos con un carácter crítico e
internacional” (BUTLER, 2006, p.314). Segundo a autora, “La paradoja surge cuando
lo „humano‟ de los derechos humanos ya se conoce de antemano, ya está
previamente definido y, aun así, se supone que es la base para uma serie de derechos
y obligaciones que son internacionales” (BUTLER, 2006, p.314). Isto implica, para a
autora, que os conceitos que definem as condições e necessidades básicas de uma
vida humana precisam ser reinterpretados mediante as circunstâncias históricas e
culturais em que o humano também é ressignificado, para assim, incluir experiências
antes excluídas, possibilitando a redefinição de seus direitos básicos.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Fica evidente a urgência de se articular Segurança Pública e Direitos Humanos
no combate à violência transfóbica, sendo necessário, para isso, questionarmos o que
se entende por igualdade em direitos humanos. Como vimos, afirmar uma igualdade
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formalista e fomentar o respeito ao ser humano e à dignidade da pessoa, não está
implicando em respeito aos direitos de travestis e transexuais no âmbito da segurança
pública. A inclusão da política LGBT nas políticas de direitos humanos, inclusive em
relação à segurança pública, não tem implicado no reconhecimento dos direitos LGBT
como direitos humanos, configurando-se como uma inclusão perversa. Isso revela
para o campo dos direitos humanos a importância de se articular igualdade e
diferença. Porém, é preciso ir além: precisamos interpelar a ordem estabelecida e o
lugar que esses sujeitos ocupam na sociedade, deslocar esta experiência da abjeção
para a cidadania, ressignificá-la como uma existência possível. Para tanto, é preciso
ter como foco norteador uma perspectiva de Direitos Humanos que, ao fundamentar
políticas de segurança pública e práticas de prevenção à violência, não perca de vista
a afirmação da igualdade e da pluralidade, concebendo-as na relação entre identidade
e diferença como uma relação garantidora da tensão inerente à democracia.
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S/D.
Traducción
de
Carissa Sims y Daniel Duque. (Una versión previa de este ensayo se publicó en el
libro Aux bords du politique de Jacques Rancière, Paris: La Fabrique ,1998).
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Determinantes de notificação, justificativas e resolutividade de
tentativa de homicídio nos municípios de Cariacica, Serra, Viana
Vila Velha e Vitória (ES): uma análise a partir da pesquisa de
Vitimização (2008)
Autor: Deivison Souza Cruz¹
Resumo: O presente artigo responde os fatores que levam as vítimas de
tentativa de homicídio a notificarem, as justificativas mobilizadas para notificar e
não notificar o crime, bem como as características relacionadas à
resolutividade policial. Variáveis relacionadas às características das vítimas, do
contexto criminal e do agressor afetaram cada uma dessas escolhas. Menos de
1/3 (29,4%) notificou o crime. Notificação elevou-se com maior idade da vítima,
vítimas que não estudam, maior renda, menor migração e maior dano/
seriedade do crime. Vítimas que deixaram de notificar por considerar baixa a
efetividade policial (39,4% do que não notificaram) apresentaram
características comuns pelo fato de serem solteiras, crimes ocorreram durante
o dia, convivem com menor número de residentes e apresentam menor índice
de migração. Mediação não policial (22,9% dos não notificantes) vinculou-se a
crimes em local público, uma vítima, maior número de residentes convivendo
com a vítima, menor dano/ seriedade e maior índice de migração. Notificação
por orientação normativa (71,2% dos que notificaram) preponderou entre
vítimas com menor índice de migração, estudantes, brancos, incidentes com
uma vítima apenas e maior idade. Por sua vez, resolutividade foi maior nos
crimes em local de convivência, que ocorreram a mais de um ano e menor
índice de migração por parte das vítimas.
1
Mestre em Ciência Política (UFMG) e Cientista Social (UFES). Contatos [email protected]
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1. Importância dos estudos de notificação de crime
Cidades que contam com iguais estatísticas de crime podem ter realidades distintas em
termos de criminalidade. Isso ocorre porque estatísticas de notificação representam
parte - e não o todo - das estatísticas de crime. Notificações são feitas em flagrantes ou
iniciativa de terceiros, ou mesmo ao longo das atividades policiais. Entretanto, a maior
fonte de informações advém das vítimas que decidem notificar. É o posicionamento das
apresenta impactos mais decisivos no sistema de justiça (Bennett; Wiegand, 1994).
Tão importante quanto saber os perfis de vítimas e não vítimas, importa saber as
diferenças entre incidentes notificados e não notificados e justificativas mobilizadas para
tanto. Isso significa mensurar – via pesquisas de vitimização - o impacto do tipo de crime,
perfis individuais, do contexto/local do crime, do agressor, família e comunidade (Felson;
Cohen, 1980; Felson; Paré, 2005; Rengifo; Bolton, 2012; Zhang; Messner; Liu, 2007).
Pesquisas de vitimização permitem compreender os limites e possibilidades das
estatísticas policiais (Tarling; Morris, 2010).
A importância da compreensão do processo de escolha das vitimas ajuda os operadores
a lidar com as mesmas e produzirem respostas padrão. Vitimas, como cidadãos,
esperam atendimento eficiente por parte da polícia. Se a reputação policial for ruim a
expectativa é de atendimento ineficiente, então é provável que a vítima deixe de
notificar. Se, ao notificar, sua expectativa é frustrada, é menos provável que ela notifique
um crime futuro. Nesse sentido, o conhecimento científico permite orientar melhor a
relação da policia com a vítima, e isso terá impactos decisivos em casos semelhantes
ao qual outras vítimas precisam decidir notificar ou não o crime.
O presente artigo identifica padrões de comportamento das vitimas quanto a notificar ou
não o crime de tentativa de homicídio. Esse conhecimento pode ser usado para orientar
respostas padrão e direcionamento institucional por tipo de crime, para perfis de vítimas
e contextos diversos. Resposta adequada às situações depende de habilidades
pessoais, e pode ser reforçada por treinamento. Ainda que princípios legais, éticos e
normativos sejam imprescindíveis aos operadores, o conhecimento científico ajuda a
melhorar a satisfação das vitimas com o atendimento policial.
De modo mais abrangente, a importância dos estudos de notificação criminal vincula-se
às estratégias de políticas públicas para a redução de crime. Controle social direcionado
a redução de crime é função precípua do Estado e tarefa dos governos, e envolve
redução das perdas sociais do crime. Perdas sociais abrangem perdas materiais e
cuidados em saúde pública, tempo despendido em atividades não produtivas e o
impacto do crime na mudança de comportamento da vítima (Bowles; Garcia Reyes;
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Garoupa, 2009; Kilpatrick et al., 1989; Lynch; Danner, 1993; Rossi et al., 1974; Winkel;
Wohlfarth; Blaauw, 2003).
Subnotificação sinaliza para descrença na efetividade policial, e o resultado é que os
dados oficiais de crime seriam menos úteis a alocação de recursos, perpetuando a
ineficiência (Brantingham; Brantingham, 1981; Skogan, 1984). No âmbito macrossocial
há o risco de enfraquecimento normativo e do controle social ao passo em se que
expandem subculturas do crime e a solução privada de conflitos (nem sempre
satisfatórias ou adequadas), vendetas e vigilantismo (Greenberg; Ruback; Westcott,
1982; Skogan, 1984; Tolsma; Blaauw; Grotenhuis, 2012).
Considerando municípios de Cariacica, Serra, Viana, Vila Velha e Vitória, a analise do
crime em questão é realizada em cinco seções. A primeira discute, do ponto de vista da
bibliografia, um conjunto de variáveis relacionadas às características das vitimas e
contexto do crime e seu efeito na notificação policial. A segunda seção apresenta os
resultados os resultados empíricos dos modelos logísticos, em especial as
características dos incidentes notificados e não notificados, as justificativas
apresentadas para notificar ou não o crime e as peculiaridades dos incidentes
relacionados a essas justificativas.
Discute-se, na terceira seção, os aspectos que diferenciam os incidentes que
apresentaram resolutividade frente aos casos sem resolutividade policial. Como
conclusão, a quarta seção reforça a ideia que as vitimas dos municípios analisados não
possuem características idiossincráticas que os diferenciam dos casos cobertos em
pesquisas internacionais. Portanto, medidas locais para melhorar o atendimento policial
podem tomar de empréstimo outras experiências.
Ressalva-se que estudos que especificamente tratam de notificação por tentativa de
homicídio não foram encontrados na bibliografia internacional. Em geral as pesquisas
lidam com vitimização agravada, e estudos sobre homicídios ajudam pouco. Homicídios
são notificados obrigatoriamente (o corpo define o fato), mas as razões das vitimas e
agressores contam apenas em inquéritos, mas não em pesquisas de vitimização. O que
aponta que há uma grande possibilidade de que a abordagem seja inédita.
2. O que explica e o que motiva a notificação criminal de tentativa de
homicídio?
Consideramos similaridades entre notificar por agressão física e tentativa de homicídios,
ao qual o segundo crime diferencia-se por haver maior seriedade e danos. Mas em
ambos, a premissa é que as vítimas devem notificar tendo em vista sua autoproteção,
punição do agressor e evitar crimes futuros. Notificação exerce pressão sobre as
agências policiais e de justiça para punir o agressor, exercer controle sobre espaços
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públicos e assim reduzir a criminalidade (Block, 1993; Goudriaan; Rechtsgeleerdheid,
2006; Skogan, 1984; Tarling; Morris, 2010).
Entretanto, a decisão da vítima de notificar envolve uma combinação de incentivos e
constrangimentos. Deixar de notificar não significa que as vítimas sejam passivas. A
depender do perfil do incidente, a vítima decide esquecer ou evitar o agressor e o local
crime, ou promover uma mediação informal com o agressor, diretamente ou com apoio
de terceiros. Mediação direta ocorre quando há menor assimetria de poder e maior
habilidade de negociação, e mesmo força e disposição para o confronto com o agressor.
Mediação informal indireta envolve amigos, parentes ou figuras informais de autoridade
que mobilizam proteção das vítimas contra ataques futuros. Entretanto, há vítimas que
mobilizam mediação informal para evitar a ação policial (Block, 1974; Kennedy, 1988).
Embora o desfecho seja satisfatório nos casos menos graves, em casos graves
mediação informal não é necessariamente uma alternativa à justiça, sobretudo em
casos de vitimização agravada.
Reconhecimento do incidente como crime consiste em etapa prévia à notificação, e varia
a depender do perfil da vítima, agressor (Kennedy, 1988; Robert et al., 2010). Mesmo
tentativa de homicídio pode envolver dificuldades de reconhecimento. É necessário que
a pessoa que sofreu uma ameaça crível ou agressão grave se veja como vítima.
Exemplo mais frequente dessa dificuldade ocorre quando agressões e ameaças
envolvem parceiros íntimos, conhecidos, temor à retaliação, vítimas infantis/jovens
(Finkelhor; Wolak, 2003; Wolak; Mitchell; Finkelhor, 2003).
Crianças e jovens dependem de suporte parental e supervisão de adultos. E por isso,
muitos incidentes são interpretados como conflitos da idade. Família e escola exercem
função de mediadores e conselheiros, e ambos têm poder para identificar, responder ou
se omitir em casos de vitimização juvenil (Black, 2010). Dificuldades ocorrem também
em vítimas adultas, sobretudo vitimização doméstica, em que a autocensura reduz a
notificação (Felson; Messner; Hoskin, 1999; Felson et al., 2002).
Pessoas evitam notificar quando há risco de que seja também acusada. Nesse sentido,
co-vitimização e envolvimento em subculturas desviantes reduz a notificação
(Anderson, 1999). Adicionalmente, Finkelhor e Wolak (2003) afirmam que experiência
prévia com a polícia eleva a notificação em incidentes com vítimas juvenis. Evidente
que, independente da idade dos envolvidos, qualidade do contato relaciona-se a
efetividade policial, e isso pode tanto elevar quanto reduzir a notificação.
Contato prévio com a polícia molda a crença na efetividade policial e da Lei, o que eleva
a notificação (Skogan, 1984). Inversamente, menor notificação associa-se à menor
confiança na polícia (Carcach; Criminology, 1997; Tarling; Morris, 2010). Todavia,
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mesmo em situações em que a intervenção policial não é desejada, danos evidentes,
incidentes em local público e necessidade de cuidados médicos de emergência tornam
inevitável a presença policial.
Se a policia é vista como ineficaz e corrupta, menor será sua legitimidade social, e menor
será a notificação (Sunshine; Tyler, 2003; Tyler, 2001). Sunshine e Tyler (2003).
Afirmam que menor reputação da policia reduz nas vítimas a expectativa de que um
crime será investigado. A degradação da reputação policial cristaliza na opinião pública
a opinião de que os governos são incapazes de proteger os cidadãos (Conaway; Lohr,
1994; Tarling; Morris, 2010). Todavia, a reputação de que a polícia não cuida do crime
possui efeito devastador (Skogan, 1984). E, com frequência, subnotificação adia a
intervenção policial, eleva vitimização repetida com maior dano/ seriedade do crime.
Há vítimas que decidem não notificar por que elas não conseguem mobilizar provas,
testemunhas ou apoio social, por temerem intimidações e retaliações, e devido ao stress
e a propensão de ser afetado emocionalmente devido a ativar a memória do crime
(Kilpatrick et al., 1989; Robert et al., 2010). Efeitos adicionais envolvem e baixa
escolaridade. Estudos diversos confirmam que privação socioeconômica reduz o
acesso à justiça (Zhang; Messner; Liu, 2007).
Notificação eleva-se quando há danos evidentes (hematomas, escoriações e danos
internos por exemplo), ocorrem em local público, agressores múltiplos, múltiplas vítimas
e arma de fogo (Lynch; Danner, 1993). Assimetria de força física entre agressor e vítima
eleva a identificação e notificação. Exemplos os casos de (a) jovens contra crianças,
(b) adultos contra jovens, (c) ou de um homem contra uma mulher (Kennedy, 1988;
Skogan, 1984).
Tentativas de homicídio podem envolver também co-vitimização (rixa) e menor
assimetria entre vítima e agressor (ambos do sexo masculino). Disputas entre pessoas
com iguais recursos tendem a ser resolvidas de modo informal, o que em parte explica
por que homens notifiquem menos embora envolvam-se mais em atividades delitivas
que mulheres. Se as vítimas não conseguem reagir de modo eficaz para se defenderem
e/ou evitarem vitimização futura -, então notificação é necessária.
Menor assimetria explica por que homens evitam ou negociam com o agressor, ou
mobilizarem terceiros como mediadores (Kennedy, 1988). Igualmente, assimetria leva
mulheres a evitarem resolução agressores homens, elevando a notificação (Skogan,
1984). Por fim, sabemos que há vítimas que não possuem meios para mobilizar a polícia
ou resolverem informalmente (Zhang; Messner; Liu, 2007).
Goudriaan e Rechtsgeleerdheid (2006) afirmaram que resposta legal é mais frequente
quando o crime envolve pessoa estranha e ocorreu fora de casa. Em tais incidentes o
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transgressor é desconhecido, o que reduz a efetividade policial. Incidentes com
conhecidos envolve status, questões de privacidade e empatia. Disputas entre parentes
e parceiros íntimos são tratadas informalmente, e as disputas entre amigos e
conhecidos seria ambígua. Em, síntese, trata-se da Tese de Black (2010) de que menor
distância relacional reduz a notificação.
Porém, Felson et al. (2002) diverge da hipótese de Black (2010) para agressões
domésticas. As mulheres denunciam mais seus parceiros íntimos(Felson; Paré, 2005)
porque consideram o crime como grave ao ponto de merecer proteção pública. Ainda
que deixem de notificar parceiros devido a dependência econômica, temor de retaliação,
exposição da vida privada, autoproteção e de filhos, e empatia com o agressor -, é difícil
evitarem o agressor o local do crime. A frustração das expectativas de segurança no
ambiente doméstico eleva a percepção de seriedade do crime (Felson; Paré, 2005;
Goudriaan; Rechtsgeleerdheid, 2006; Robert et al., 2010).
Outro aspecto é o impacto dos níveis de renda na propensão à notificação. Estudos
apontam que vítimas de menor renda e desempregadas notificam menos que outras
que trabalham e com maior renda (Kennedy, 1988; Zhang; Messner; Liu, 2007). Além
disso, Zhang, Messner e Liu (2007) concluíram que níveis menores de renda e
desemprego das vítimas reduz também a resolutividade policial. Desigualdade
econômica implica em desigualdade de acesso à justiça. Portanto, pessoas com
menores níveis de renda apresentem menor propensão a notificação e, dentre os que
notificam, teriam menor resolutividade.
Mulheres e idosos tendem a apresentar maior dano, medo do crime e assimetria de
recursos para se defender do agressor, elevando a notificação (Acierno et al., 2004;
Stylianou, 2003). Há suporte também de que, para diversos crimes, maior idade,
escolaridade, pessoas casadas notificam mais devido ao maior status social (Robert et
al., 2010; Zhang; Messner; Liu, 2007). Maior escolaridade implica em maior
conhecimento quanto a direitos e como lidar com a policia, e casamento eleva o
comportamento convencional.
Migração/ imigração e expansão urbana afetam os níveis de criminalidade (Brodeur,
2001; Park, 1922; Park et al., 1925), mas sabe-se pouco sobre como a condição
individual afeta a notificação. Migração é preponderantemente nas regiões
metropolitanas no Brasil e saliente nos municípios analisados. A pergunta é se migração
influência a notificação, justificativas e resolutividade policial. Estudos recentes apontam
que grupos imigrantes – frequentemente sobrepostos à discriminação racial –
apresentam dificuldades em notificar os crimes (Brodeur, 2001; Krohn et al., 2011;
Philpott, 1991; Rennison, 2010; Starrett et al., 1988).
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Rodríguez et al. (2001) concluiu que mulheres hispânicas com vitimização doméstica
foram mais reticentes em notificar o crime. A razão é que migrantes/ imigrantes
apresentam menor rede de apoio social para notificar (e mesmo problemas de
documentação). Migrantes/ imigrantes se veem, e são vistos, como estranhos frente à
burocracia que, de modo geral. Policia atende melhor os bairros de classe média e elite,
e os protegem diferencialmente.
No caso de tentativa de homicídio, magnitude do dano produz relação custo-benefício
diferenciada. Aspectos mais relevantes incluem influência social, influência emocional/
psicológica e processos de comunicação. Tais aspectos concorrem concomitantemente.
Dano/ seriedade do crime converte-se em custos financeiros, transtorno emocional e
Stress Pós-Traumático. Menor dano reduz notificação (Tarling; Morris, 2010).
A perspectiva racional da notificação considera que os custos de notificação devem ser
compensados pela expectativa da ordem pública e a satisfação com o cumprimento da
Lei, (Garoupa, 2001). Custos envolvem confiança na polícia, deslocamento e tempo, e
os retornos esperados relacionam-se a qualidade do atendimento e perspectiva de
resolutividade, punição do ofensor e proteção da vítima, evitando retaliações (Tolsma;
Blaauw; Grotenhuis, 2012).
Valores sentimentais que consideram a reputação policial, medidas de proteção e que
facilitem a notificação (internet, telefone e menor tempo despendido) elevam as chances
de que o crime será notificado (Skogan, 1984; Tolsma; Blaauw; Grotenhuis, 2012). Se
as perdas forem baixas e os custos de tempo e levantamento de provas não
compensarem, a vítima se absterá de notificar (Bowles; Garcia Reyes; Garoupa, 2009;
Felson et al., 2002; Lasley; Palombo, 1995; Levitt, 1998).
Uma segunda perspectiva considera a influência social na notificação (Anderson, 1999;
Dijk, Van; Steinmetz, 1983; Finkelhor; Wolak, 2003; Kennedy, 1988; Skogan, 1984;
Starrett et al., 1988). Vítimas recorrem as outros sobre o que fazer. Anderson(1999)
aponta que influência social varia conforme o bairro da vítima, podendo ser afetado por
segregação. Valores comunitários e familiares de tolerância com o crime, e subculturas
desviantes, de oposição à polícia, estigmatização de denunciantes reduz a notificação
(Brezina et al., 2004; Peterson; Krivo, 2005; Stewart; Schreck; Brunson, 2008).
Vítimas mostram-se emocionalmente desorientadas em agressões graves, e mais ainda
em casos de tentativas de homicídio. A premissa é que, quanto maior a afetação
emocional, maior a chance de a vítima depender de terceiros, e isso eleva a notificação
se o apoio social for positivo. O crime eleva sentimentos de desconfiança, ansiedade,
medo, raiva, stress, insônia e Síndrome de Pânico ou Transtorno Pós-Traumático
(Frieze; Hymer; Greenberg, 1987; Kilpatrick et al., 1989; Robert et al., 2010).
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Trata-se aqui de uma diferença crucial com os demais crimes, vítimas de tentativa de
homicídio apresentam maior propensão a traumas físicos e psicológicos que induzem
Síndrome de Transtorno Pós-Traumático(STPT) (Boudreaux et al., 1998; Freedy et al.,
1994; Zinzow et al., 2011). Sintomas incluem imagens intrusivas, revivescência do
evento, postura defensiva e hipervigilância, entorpecimento emocional e menor
habilidade emocional, hipervigilância (Kilpatrick et al., 1989).
Sentimentos negativos envolvem vítimas e parentes, tais como culpa, ansiedade, raiva,
desejo de vingança e suspeição (Asaro, 2001, 2009). Estressores adicionais envolvem
perda de recursos financeiros, contato com mídia, justiça, estigmatização e
administração de imagem (Zinzow et al., 2011). Mulheres sofrem mais do que homens
(Zinzow et al., 2011). O transtorno afeta o comprometimento profissional, social,
depressão, uso de álcool e necessidade de cuidados de saúde. (Adams, Boscarino, &
Galea, 2006; Breslau, Lúcia, & Davis, 2004; Cukor et al. , 2010; Stein, Walker, Hazen,
& Forde, 1997).
Estudos mais recentes consideram relevante como o processo de comunicação
constitui-se em uma dimensão independente no processo de notificação (Tolsma;
Blaauw; Grotenhuis, 2012). A notificação pode ser afetada pelo meios usados na
notificação e a discricionariedade policial. Simulando cenários diferenciados e variedade
de processos de comunicação (internet, telefone, ida a departamento policial, tempo
despendido e atenção policial), os autores descobriram que maior disponibilidade de
meios de comunicação, menor tempo de notificação, confiança na polícia e maior
atenção policial elevam a intenção de notificar.
3. Resultados empíricos
Nas últimas três décadas o estado e Espírito Santo e a sua Região Metropolitana
figuram dentre aqueles com maiores taxas de homicídio. Considerando dados do
Datasus, o Espírito Santo figura, em média, no terceiro lugar dentre os estados com as
maiores taxas de mortes por agressões no período 1980-2011. Nesse período a taxa de
crimes letais2 no ES manteve-se acima de 50 por 100 mil na última década (2000-2010).
O histórico das últimas três décadas mostra que situação do ES é grave o bastante para
justificar estudos aprofundados sobre o tema. Entretanto, o que é possível de estudar
no âmbito de Pesquisa de Vitimização são os homicídios tentados e relatados pelas
vitimas, e não, evidentemente, os homicídios de fato. Isso significa que as vítimas
podem interpretar ameaças, agressões físicas ou rixas como tentativa de homicídio.
2
Crimes letais: homicídios, lesão corporal seguida de morte, latrocínio e autos de resistência policial.
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Anais do VIII Encontro da ANDHEP
ISSN: 2317-0255
Do ponto de vista da vitima, a fronteira entre cada um desses crimes pode ser difícil de
definir e elas mesmas, dentre as que notificaram, podem ter registrado de modo diverso
à caracterização da pergunta. Mesmo essa dificuldade ocorre em notificações policiais,
e isso não invalida o valor das mesmas para as investigações posteriores. Em termos
práticos, tanto para as vítimas quanto para as agências de controle social, o problema
refere-se a presunção de agravamento das ofensas e agressões menos graves para
crime letal.
Por sua vez, a resposta metodológica presente em estudos de vitimização em países
desenvolvidos e adotada na Pesquisa de Vitimização implica que a identificação do
crime deve ser dada pela resposta da vítima à pergunta, e não pela clareza do recorte
jurídico do crime. Embora possa ser visto como limitação, essa estratégia tem a
vantagem de não constranger a vitima sobre o fato de a mesma ter ou não sofrido o
crime. Tomar como crível o relato da vitima é um ponto de partida consensual nas
pesquisas de vitimização em todo o mundo.
Evidentemente, o fato de 9/10, em média, das vitimas de homicídio sejam homens não
implica que 9/10 das tentativas de homicídio sejam com homens. A proporção 44,7% de
vitimas do sexo feminino para tentativa de homicídio detectado na pesquisa de
vitimização levanta a questão sobre o por que da diferença desse percentual para o
crime de fato (1/10 dos homicídios), bem como para a diferença dos restantes 55,3% de
tentativa de homicídio masculino e os 9/10 dos homicídio de fato. Essa é certamente
uma questão para pesquisas posteriores, sobretudo sobre o modo como as vitimas
reagem as ameaças contra sua vida.
Por hora, a presente seção limita-se a compreender as características que diferenciam
os incidentes que foram notificados a policia frente os não notificados, bem como as
justificativas para notificar ou não esse crime e, por fim, os fatores que explicam a
resolutividade policial. Em função do número reduzido de casos relatados pelas vitimas,
algumas dessas questões não puderam ser respondidas de modo suficiente, mas
acrescentaram conhecimento significativo sobre o fenômeno.
3.1.
Compreendendo notificação de tentativa de homicídio
A importância do crime de tentativa de homicídio é evidente. 1,3% dos entrevistados (63
casos) declararam terem sofrido tentativa de homicídio nos últimos cinco anos. Desses,
menos de 1/3 (29,4%) notificou à polícia. Embora o esperado fosse que a gravidade de
tentativa de homicídio elevasse os notificação (29,4% notificaram), os dados mostram
que, para esse crime, níveis de notificação são próximos aos crimes leves, pouco
superior a ameaça verbal (27,8%) ou furto (25,3%), e inferior a agressão física (32,6%)
e demais crimes listados a seguir.
3955
Anais do VIII Encontro da ANDHEP
ISSN: 2317-0255
Tabela 1 - Percentual de vitimas que notificam o crime, por tipo de crime (%)
Contra o
patrimônio
Contra a
pessoa
Furto
25,3
Furto/ roubo de veículo
83,7
Furto em residência
47,2
Roubo
44,5
Agressão física
Tentativa de homicídio
Ameaça verbal
32,6
29,4
27,8
Fonte: Pesquisa de Vitimização 2008 (UFES/SESP). Abrangência: Áreas urbanas de Cariacica,
Serra, Viana, Vila Velha e Vitória.
Os dados mostram que fatores intervenientes, relacionados ao tipo de crime,
influenciam a notificação policial de tentativa de homicídios de modo diferenciado frente
aos demais crimes. Primeiramente, implicou que os subgrupos que notificam e deixam
de notificar são mais diferenciados para esse crime do que par aos demais. Apesar de
contar com apenas 67 casos, o modelo apresentado mostrou-se significante, bem como
apresentou o maior acréscimo de poder explicativo (38,4%) frente à definição ao acaso.
Impactos dessa diferenciação para o presente estudo implicam que os modelo logístico
para notificação foi capaz de acrescentar quase 40% a mais de previsão que uma
definição aleatória entre notificar ou não o crime. Por ordem de importância, as
características que influenciam na notificação são a idade da vítima, o fato da mesma
não estudar, maior renda per capita familiar, menor índice de migração e maior dano/
seriedade do crime. Vítimas mais jovens, que estudam, de menor renda per capita
familiar e maior escore no índice de migração, ou de menor seriedade/ dano do crime,
tendem menos a notificar que o primeiro grupo.
Acréscimo da variável (exp.%)
Força da
variável |bheta|
+
-
3,38
1,68
1,20
0,38
0,23
Não
notifica
Idade menor da vítima
Vítima estuda
Menor renda per capita
Maior índice de migração
† Menor dano/ seriedade
97%
438%
70%
46%
21%
Idade maior da vítima
Vítima não estuda
Maior renda per capita
Menor índice de migração
Maior dano/ seriedade
Notifica
à polícia
Pseudo-R² = 0,460
Acréscimo do modelo= 38,4%
Figura 1 - Resumo do modelo logístico para notificação de tentativa de homicídio
O aumento de uma unidade no logaritmo da idade elevou em 97% a chance de
notificação. Isso significa que vítimas com idade de 60 anos, por exemplo, apresentam
quase o dobro de chance de notificarem o crime que vítimas jovens (de 20 anos).
Vítimas que não estudam tendem a notificarem 438% a mais que vítimas que estudam.
A elevação de um ponto no logaritmo da renda per capita familiar aumentou em 70% a
chance de notificar. Isso significa que vítimas cuja renda familiar seja de R$ 500,00 per
3956
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capita tem 2/3 a mais de chance de notificar o crime que outra vítima cuja renda seja de
R$ 200,00 per capita.
Cada ponto a menor no índice de migração teve efeito de reduzir em 46% a propensão
de a vítima notificar o crime. Em função disso, pessoas, ou seus pais, que tenham
nascido fora da região metropolitana tendem a comunicar menos à polícia que vítimas
cuja origem é preponderante da Região Metropolitana. Em contrapartida cada ponto a
mais na percepção de dano (apesar de não ser significativo) elevou em 21% a chance
de a vítima notificar o crime.
Idade maior da vítima aumenta notificação devido ao reforço do comportamento
convencional. Adicionalmente, maior efeito exponencial da não notificação pelo fato das
vítimas estudarem pode ser compreendido como um efeito conjunto de idade e renda.
Vítimas que estudam são possivelmente mais jovens e de menor renda per capita e,
portanto, dependentes economicamente, e tendem por isso a não notificarem por
motivos diversos, vide ignorar ou solucionar de modo particular do conflito, por temerem
retaliação do agressor ou por considerarem o crime pouco grave.
O efeito de migração é controverso. Vítimas de tentativa de homicídio com origens na
RMGV (nascimento seu e de seus pais na RMGV versus interior ou de outros estados)
tendem mais a notificarem, o que mostra que mesmo incidentes cuja gravidade é
patente apresentam fatores estruturais do histórico de vida dos indivíduos e suas
famílias frente às instituições de controle social. É possível que vítimas migrantes
apresentam menor conhecimento das instituições, e desconfiam também mais de
isonomia delas e, em função disso, tendem a ignorar o crime ou resolverem diretamente
com o agressor.
Por fim, embora não tenha sido significativo (possivelmente devido ao baixo número de
casos), maior seriedade/ danos aumentam as chances de notificação do crime, sendo
que os motivos são análogos aos citados nos outros crimes analisados. Incidentes
considerados de menor gravidade são em geral não notificados à polícia. As
justificativas e explicações para a não notificação será descrita seção seguinte.
3.2.
Justificativas para não notificar ou notificar tentativa de homicídio
Dentre as vítimas de tentativa de homicídio que deixam de notificar, o principal conjunto
de justificativas (próximo a 2/5) refere-se à baixa efetividade policial/ tribunais. Apesar
da gravidade do crime, quase 1/5 (17,4%) das vítimas consideram que notificar é perder
tempo. 12,1% avaliaram que a justiça é demorada e 6,8% que a polícia não poderia
fazer nada para resolver o caso.
3957
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Tabela 2 - Justificativas para não notificar o crime de tentativa de homicídio (%)
Considera perda de tempo
17,4
12,1
Justiça é demorada
(I-A) Baixa
6,8
efetividade policial Polícia não podia fazer nada
-tribunais
3,1
Polícia não cuida do problema
39,4
Subtotal
14,4
Resolveu com o agressor/agressor
(I-B) Mediação/
8,5
Família resolveu o problema
notificação não
Comunicou outros órgãos
policial
22,9
Subtotal
3,3
Não tinha prova do crime
(I-C) Ausência de
Não se sentiu seguro p/ denunciar
provas/ seguro
3,3
Subtotal
2,9
Tem medo da polícia
(I-D) Oposição a
5,8
Não gosta da polícia
policia
8,7
Subtotal
23
Teve medo de denunciar
(I-E) Outros
motivos
Ausência de dano/agravo
2,7
Não respondeu
Fonte: Pesquisa de Vitimização 2008 (UFES/SESP). Abrangência: Áreas urbanas de Cariacica,
Serra, Viana, Vila Velha e Vitória.
Mediação não policial foi citada por 22,9% das vítimas que não notificaram. 14,4% dos
incidentes de tentativa de homicídio não notificado tiveram o conflito resolvido
diretamente com o agressor, e em 8,5% dos casos a família foi quem mediou. 8,7%
apresentam oposição à policia. Por fim, 2,9% das vítimas que não notificam afirmaram
que temeram notificar. Nesses casos, é mais provável que esse temor dirija-se ao
agressor, pois temor à polícia era uma opção separada e não apontada nesses casos.
Tabela 3 - Justificativas para a notificação do crime de tentativa de homicídio (%)
Evitar que o crime se repita
17,5
(II-A)
Desejo de justiça
12,0
Orientação de
Deseja punição do agressor
41,7
justiça
Subtotal
71,2
Recuperar a propriedade
6,4
(II-B)
Devido ao dano/prejuízo
4,1
Orientação
utilitarista
Seguro do bem perdido
(custo-benefício) Subtotal
10,5
O cidadão deve denunciar
4,5
Tinha provas do delito
8,7
(II-C) Outros
Buscar ajuda
5,2
Subtotal
18,3
Fonte: Pesquisa de Vitimização 2008 (UFES/SESP). Abrangência: Áreas urbanas de Cariacica,
Serra, Viana, Vila Velha e Vitória.
Por sua vez, as justificativas para a notificação relacionam-se à busca de justiça,
concentrando 71,2% dos casos. 41,7 (2/5) notificaram por que desejavam a punição do
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agressor. 17,5% afirmaram que notificaram para evitar a repetição do crime e, em 12%,
a notificação representava, para essas vítimas, o desejo de justiça. 10,5% relataram
justificativas utilitaristas. De modo mais claro nesse sentido, 6,4% afirmaram que
notificaram por que desejavam recuperar alguma propriedade e 6,4% devido ao dano/
prejuízo (nos sentido físico e psicológico do termo). Das demais respostas, 8,7%
decidiram notificar por que tinham provas do delito, 5,2% para buscar ajusta e 4,5% por
que consideraram que era seu dever notificar.
3.3.
Compreendendo as justificativas para não notificar tentativa de homicídio
3.3.1. Compreendendo as justificativas para não notificar tentativa de homicídio
Crime de tentativa de homicídio é sério o bastante para que haja notificação policial.
Entretanto, como pouco menos de ¾ (71,6%) deixa de notificar, sendo necessário
compreender os fatores que impactam nas justificativas. Considerações quanto a baixa
eficácia policial e mediação não policial com agressores foram os grupos de respostas
mais citadas pelas vitimas que não notificaram.
O modelo logístico para não notificação por considerar baixa a efetividade policial
mostrou-se significativo (nível 0,009) e com considerável ajuste das variáveis ao
modelo, acrescentando 62,1% de capacidade explicativa comparado ao acaso. Isso
significa que, ao considerar as vitimas de tentativa de homicídio, o modelo é capaz de
acertar quase 2/3 a mais a imputação ao acaso. A principal característica que levou a
considerar baixa a resolutividade policial foi a vitima não ter cônjuge ou similar. Em
sequência destacam-se o fato do crime ter ocorrido durante o dia, a residência da vitima
contar com menor numero de residentes e a mesma contar com menor indicador de
migração. Um resumo do modelo pode ser visualizado na figura abaixo (detalhes na
tabela 30):
Força da
variável |bheta|
+
-
Acréscimo da variável (exp.%)
2,64
1,24
0,53
0,06
Outros
motivos
Vítima tem cônjuge/similar 1300% Vítima não tem cônjuge/similar
† Crime ocorreu à noite 264% Crime foi durante o dia
Maior número de residentes 41% Menor número de residentes
† Maior índice de migração 6% Menor índice de migração
Considera
baixa a
efetividade
policial
Pseudo-R² = 0,398
Acréscimo do modelo=62,1%
Figura 2 - Resumo do modelo logístico para justificativa de não notificação de tentativa de homicídio por considerar
baixa a resolutividade policial
Como se observa, vitimas que não notificam e que não possuem cônjuge/ similar
apresentam 13 vezes mais chance de considerarem baixa a efetividade policial que as
vitimas com cônjuge/ similar. Ao mesmo tempo, o fato do crime ter ocorrido durante o
dia elevou em cerca de 2,5 vezes (264%) essa avaliação (não significativo). Menor
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numero de residentes aumenta a avaliação que a policia é pouco eficaz em 41% a cada
residente a menos no domicílio da vitima. Por fim, menor índice de migração (não
significativo) reduziu em 6% por residente a cada ponto a menos no indicador.
Efeito dessas variáveis deve ser compreendido conjuntamente. Dentre as vitimas que
não notificaram as que são solteiras teriam menos status e apoio social, o que implica
em co-vitimização e comportamento de risco, e isso leva à menor mediação direta ou
de terceiros com o agressor. A menor confiança dessas vítimas para com a policia
relaciona-se à preempção de que a ação policia será inadequada.
Horário em que o crime ocorre influencia na gravidade do incidente e no comportamento
das vítimas. Maioria dos homicídios ocorre à noite. Uma hipótese é que tentativas de
homicídio durante o dia envolvem capacidade das vitimas citadas estarem sozinhas,
evitarem o crime, fugirem ou reagirem de modo eficaz contra o agressor. Em qualquer
desses casos, ela consideram que a polícia desconsidere seu relato – quando não tem
testemunhas - ou que não se empenhe em intervir contra o agressor. Inversamente,
incidentes à noite elevaram o stress emocional da vitima, haveriam testemunhas ou
terceiros e tornam mais provável a mediação com o agressor.
Uma hipótese para o efeito de menor numero de residentes é que essa variável desloca
o conflito para fora do núcleo familiar. Como se trata de vitimas mais jovens, esse
deslocamento pode envolver conflitos entre pares de mesma idade e, como já
apontando, co-vitimização e comportamento de risco, em qualquer um desses casos, a
confiança na policia é menor precisamente por que as vítimas se veem podem ser vistos
como pertencentes a comportamentos desviantes. Por fim, menor índice de migração
apresentou efeito residual no modelo, e considerações quanto ao efeito dessa variável
tornam necessário novos estudos sobre o modo como grupos migrantes e não
migrantes lidam com o conflito.
Um segundo modelo dentre os que não notificaram relaciona-se às tentativas de
homicídio em que houve mediação direta ou de terceiros com o agressor. O modelo
logístico mostrou-se significativo e bom ajuste das variáveis (Pseudo-R²=0,598) e
acréscimo de poder explicativo frente ao acaso de 44,4%. As características que
impactaram mais fortemente da mediação não policial foram o fato do crime ter ocorrido
em local público, haver apenas uma vitima, maior numero de residentes, menor dano/
seriedade e maior índice de migração. Um resumo do modelo pode ser visualizado na
figura 47 abaixo (detalhes na tabela 30):
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Acréscimo da variável (exp.%)
+
Força da
variável |bheta|
ISSN: 2317-0255
2,39
1,13
0,94
0,84
0,75
Outros
motivos
Foi em local de convivência
† Duas ou mais vítimas
Menor número de residentes
Maior dano/ seriedade
Menor índice de migração
-
91%
210%
157%
57%
111%
Ocorreu em local público
Houve
Uma vítima apenas
Maior número de residentes mediação
Menor dano/ seriedade
não policial
Maior índice de migração
Pseudo-R² = 0,598
Acréscimo do modelo= 44,4%
Figura 3 - Resumo do modelo logístico para justificativa de não notificação de tentativa de homicídio por fazer
uso de mediação não policial
Crime em local público elevou a probabilidade de mediação não policial em 91%. O fato
de envolver uma vítima apenas duplicou (210%) esse comportamento. Cada indivíduo
a mais na família da vitima acresceu 157% de chance de mediação não policial. Cada
ponto a menos no escore da dano/ seriedade do crime elevou em 57% a mediação
direta ou de terceiros com o agressor. Por fim, a variação de uma unidade a mais no
índice de migração aumentou em 111% a chance de mediação não policial para o crime
de tentativa de homicídio.
Explicação para o efeito dessas variáveis é aqui feita conjuntamente. Uma hipótese é
que incidentes em local público e com uma vitima apenas relacionam-se ao
comportamento de risco juvenil. Uma hipótese para o efeito de maior número de
residentes é que esse fator envolve maior stress nas relações intra-familiares, elevando
o comportamento conflituoso dentro e fora da família. Todavia, a relação dessa variável
com mediação não policial envolveria dois fatores positivos, dentro da família, de
contendores do conflito e, fora dela, a hipótese de que famílias ampliadas mobilizam
mediadores potenciais em situações de conflito. Ambas as possibilidades implicam em
corroboração via pesquisas posteriores.
Menor dano seriedade se relaciona com a escolha por não notificar o crime. E o fato das
vitimas com menor percepção de dano contarem com mediação não policial reforça
esse efeito, mas é provável também que o sentimento de proteção dada pela mediação
direta ou por terceiros com o agressor reduz também a percepção de dano. Por último,
menor índice de migração tem se relacionado a posicionamentos pró-institucionais em
vários crimes analisados. E uma explicação para a escolha de mediação não policial
para tentativa de homicídio relaciona-se tanto à preempção de que a intervenção seja
desnecessária, também, e mais frequentemente, inadequada, inexistente ou enviesada.
Ao mesmo tempo, sinaliza também para a menor habilidade de migrantes em lidarem
com essas instituições.
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3.3.2. Compreendendo as justificativas para notificar tentativa de homicídio
Justificativa para notificar o crime por razões normativas – que são 71% dos que
notificaram. O modelo logístico para essa mostrou-se significativo (nível 0,001), o ajuste
das variáveis mostrou-se elevado (Pseudo-R²=1) pelo fato dos subgrupos estarem
separados completamente para quatro variáveis significativas. As variáveis que se
mostraram completamente separadas foram migração, estudar, raça/ cor da vítima e
número de vítimas. A variável idade foi a única no modelo que não se mostrou
completamente separada entre os dois grupos. Um resumo pode ser visualizado na
figura 48 abaixo (detalhes na tabela 30):
Força da
variável |bheta|
+
Acréscimo da variável (exp.%)
30,9
24,5
21,1
19,0
7,6
Outros
motivos
-
Maior índice de migração
Vítima não estuda
Vítima é preto/ pardo
∞
∞
∞
Menor índice de migração
Vítima estuda
Vítima é branca
Duas ou mais vítimas ∞ Uma vítima apenas
Idade menor da vítima 1884% Idade maior da vítima
Justificativa
normativa
(princípio
de justiça)
Pseudo-R² = 1
Acréscimo do modelo= 66,2%
Figura 4 - Resumo do modelo logístico para justificativa normativa (princípio de justiça) de notificação de
tentativa de homicídio3
A separação completa implica que as vitimas que notificaram de modo normativo
(princípio de justiça) apresentam várias características em comum, tais como menor
índice de migração, estudam, são brancas e o incidente envolveu apenas uma vitima de
idade maior apenas. Vitimas com maior índice de migração, que não estudam, são
pretos ou pardos, em incidentes com duas ou mais vitimas jovens tenderam a justificar
por razões outras não normativa.
O que se observou na diferenciação das vitimas de homicídio que notificaram por
justificativas normativas é que as mesmas se aproximam mais do grupo populacional
socialmente “estabelecido” (Ver Norbert Elias), sendo esperado que as mesmas
apresentem comportamento convencional para reivindicar maior atuação policial em
casos de crimes que envolvam risco a sua vida. Em contrapartida, vitimas que
notificaram de modo diverso, incluindo razões utilitárias (como conflitos em torno de
bens e posse de provas contra o agressor), apresentam maior índice de migração. Ainda
que a análise componha-se de uma amostra pequena, mostram-se bastante
significativos em termos das diferenças entre quem notifica ou não e o porque da
notificação.
3
Separação completa.
3962
Anais do VIII Encontro da ANDHEP
ISSN: 2317-0255
3.4.
Compreendendo resolutividade de agressão física
Em função da gravidade do crime de tentativa de homicídio, a expectativa é que a
notificação à policia – que ocorre nos casos de maior dano/ seriedade - resultasse em
maior resolutividade. Entretanto, como se pode ver na tabela 29, pouco menos de 1/3
dos crimes de tentativas de homicídio notificados pelas vítimas contaram com alguma
resolutividade policial. Do total, esses crimes são apenas 9,7% do total relatados pelas
vitimas.
Tabela 4 - Situação das denúncias e resolutividade policial do crime de tentativa de
homicídio (%)
(i) Polícia resolveu
22,2
(ii) Investigação em andamento
(iii) Investigação parada
10,9
(iv) Ocorreu nada
(v) Deixou para lá
62,8
4,1
Resolutividade alta/ existente (i+ii+iii) 33,1
Resolutividade baixa/ ausente (iii+iv) 66,9
9,7
Resolução (total de crimes)
Fonte: Pesquisa de Vitimização 2008 (UFES/SESP). Abrangência: Áreas
urbanas de Cariacica, Serra, Viana, Vila Velha e Vitória.
Observa-se que somente 22,2% dos casos foram considerados pelas vitimas como
havido resolutividade policial satisfatória. Em 10,9% a investigação as vitimas afirmam
que a investigação está “parada”, somando menos de 1/3 do total de tentativas de
homicídio notificadas. Esse grupo será comparado com os incidentes em que não houve
resolutividade policial, que abrangeu (2/3) das respostas – ocorreu nada (62,8%) deixou
para lá (4,1%).
Complementarmente, usou-se um modelo logístico para compreender os fatores que
impactam mais detidamente na resolutividade de tentativa de homicídio. Buscou-se
retirar variáveis que se mostrassem completamente separadas entre os grupos que
houve resolutividade policial frente ao que não houve resolutividade. O modelo final
mostro-se significativo (nível 0,003) e com bom ajuste das variáveis (Pseudo-R²=0,694)
e acréscimo de 53,5% frente a imputação ao acaso. As variáveis que mais impactaram
na resolutividade foram o fato do crime ter ocorrido em local de convivência (casa,
escola ou trabalho), ter ocorrido a mais de um ano e menor índice de migração. A figura
exemplifica esse efeito (detalhes na tabela 30):
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Força da
variável |bheta|
+
Acréscimo da variável (exp.%)
8,47 Não houve
0,13 resolutividade
policial
3,09
Ocorreu em local público 64% Ocorreu em local de convivência
Crime
recente (12 meses) 42% Ocorreu a mais de um ano
†
† Maior índice de migração 9% Menor índice de migração
Houve
resolutividade
policial
Pseudo-R² = 0,694
Acréscimo do modelo= 53,5%
-
Figura 5 - Resumo do modelo logístico para resolutividade de tentativa de homicídio
Tentativas de homicídio em local de convivência elevaram em quase 2/3 (64%) a resolutividade
policial. Crimes que ocorreram a mais de um ano apresentaram resolutividade 42% acima dos
crimes recentes (últimos 12 meses) e, por fim, menor índice de migração elevou em 9% a
resolutividade do crime para cada ponto a menos nessa variável.
Interpretação para o efeito dessas variáveis expõe algumas limitações para a ação policial em
tentativa de homicídio. Incidentes em local de residência envolvem conhecidos diretos da vitima
ou de terceiros, sobretudo parentes, amigos ou conhecidos. Esse fator eleva tanto a
identificação do agressor e incentivos quanto o posicionamento de testemunhas.
Incidentes em locais públicos relacionam-se, com maior frequência, a comportamento de risco
por parte da vítima, vide envolvimento em delinquência juvenil. A intervenção é inevitável
quando incorre em danos graves à vítima, vide uso de arma de fogo ou armas brancas. Porém
o agressor foge do local do crime. Esses exemplos situacionais simples mostram que o meio
social influencia a resolutividade, mas ela é maior quando os constrangimentos do meio social
operam, e não a eficácia policial pura e simples.
Tentativa de homicídio demora de mais de um ano para que apresente resolutividade, e isso é
mostrado por que a resolutividade eleva-se após esse período. Por fim, migração menor levou
a notificação e a justificativa normativa, o que surpreende é que ela se relaciona a resolutividade
policial. Isso significa que o fato de vitimas com maior índice de migração, sendo minoria dentre
os notificantes, persistem ainda mais minoritários dentre os crimes com resolutividade.
Novamente, condição de migração baixa eficácia das instituições de controle social levantam a
hipótese de viés institucional.
4.
Conclusão
Gravidade do crime de tentativa de homicídio não eleva consideravelmente a
notificação. Notificação de tentativa de homicídio (29,4%) é menor do que de agressão
física (32,6%) e pouco maior que ameaça verbal. Exceto para furto (25,3%), é ainda
menor que para crimes contra o patrimônio – vide furto/ roubo de veículo (83,7%), furto
em residência (47,2%) e roubo (44,5%). Esse comparativo inicial mostra que, ao lado
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da efetividade para os crimes notificados, há um grande desafio de elevar a notificação
das tentativas como um dos meios principal para evitar homicídios.
As principais características que reduzem a notificação são a idade da vítima. Vítimas
mais jovens, que estudam, com menor renda per capita familiar, advindas de famílias
migrantes e que relatam menor dano/ seriedade são os que menos notificam o crime.
Comparativamente, esse perfil se mostra bastante parecido, em alguns aspectos, com
as vítimas de fato, e mostra que a menor de dano/ seriedade deve ser relativizado. Por
diversos fatores, as vítimas minimizam o dano real da agressão, e isso reduz a
notificação policial.
Consideradas as justificativas para não notificar, os que menos creem na efetividade
policial são os jovens sem cônjuge/ similar, vitimados durante o dia, que contam com
menor número de residentes em casa e apresentam menor índice de migração. Os que
deixaram de vitimar por haver mediação direta ou de terceiros com o agressor
(mediação não policial) foram aqueles cujos incidentes ocorreram em local público, com
uma vítima apenas, maior número de residentes, menor dano/ seriedade e maior índice
de migração.
Em ambos os aspectos, a notificação policia é desconsiderada por preempção de baixa
efetividade, intervenção inadequada ou mesmo por que as vítimas contam apoio social
e mediadores. Considerando as altas taxas de homicídio nos cinco municípios
abrangidos pela pesquisa, essa alternativa individual é certamente questionável em
termos de resultados sociais. Nesse sentido, estudos posteriores sobre a efetividade
dos mecanismos informais de mediação de conflitos mostram-se primordiais.
Notificação
mostrou-se
relacionada
com
aspectos
gerais
relacionados
ao
comportamento convencional. Em geral vítimas com idade maior também não estudam,
e maior renda per capita envolve inserção produtiva. Menor índice de migração implica
em conhecimento e confiança institucional. O fato de maior dano/ seriedade aparecer
em último em termos de ordem de importância reforça a ideia de que esse não é um
fator independente dos anteriormente listados.
Uma hipótese é que a percepção de dano/ seriedade da tentativa de homicídio
pressupõe tanto as evidências empíricas de ameaças, agressão física e danos
percebidos, mas também que o nível de seriedade envolve aspectos como idade da
vítima, renda e condição de migração individual/ familiar. Pesquisas posteriores devem
investigar se as vítimas que notificam superestimam a seriedade do crime, e se as
vítimas que não notificam tendem a subestimar o dano.
Justificativa normativa mostrou-se majoritária para a notificação de tentativa de
homicídio. E essa orientação relacionou-se fortemente com menor índice de migração,
3965
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vítima estudar, ser branca e ter sido vítima apenas uma vez. Para essas três variáveis
houve separação completa entre esse grupo e demais vítimas que justificaram a
notificação por outros motivos. Idade da vítima reforçou o posicionamento normativo.
Vítimas de 60 anos de idade tenderam a notificar 18 vezes mais por razões normativas
que vítimas de 20 anos de idade.
Resolutividade outros aspectos além dos citados no modelo, tais como haver apenas
uma vítima, o agressor ser branco, ser apenas um e maior de 24 anos de idade. Todavia,
houve separação completa entre os dois grupos e levantou problemas relacionados ao
número reduzido de casos (21 no total). Um modelo alternativo de resolutividade
apontou para incidentes em local de convivência, a mais de um ano e menor índice de
migração.
Expôs-se apenas o segundo modelo, mas analisando conjuntamente ambos os
resultados reforça-se a interpretação de que a resolutividade é demorada, e mostra-se
fortemente relacionada a incidentes domésticos, sobretudo entre brancos não
migrantes. Vítimas migrantes pretos/ pardos, que já comporiam uma minoria das
notificações, reduzem-se mais ainda quando se considera a resolutividade policial.
Assim como em outros crimes, estudos sobre efeito de atuação policial junto a
segmentos populacionais intergeracionalmente migrantes apontam para baixa
confiança institucional, dado pela interpretação de baixa eficácia, e viés, relacionado à
reduzida resolutividade dos crimes notificados por esses segmentos.
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Anais do VIII Encontro da ANDHEP
5.
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Anexo
1
(1,3%) SOFREU
TENTATIVA DE
HOMICÍDIO*
2
DECISÃO DE
NOTIFICAR OU
NÃO À POLÍCIA
+38,4%
Idade menor da vítima
Vítima estuda
Menor renda per capita
Maior índice de migração
Menor dano/ seriedade
4
3
(71,6%) NÃO
NOTIFICA À
POLÍCIA
(39,4%) Considera
baixa a efetividade
policial/ tribunais
5
6
Idade maior da vítima
Vítima não estuda
Maior renda per capita
Menor índice de migração
Maior dano/ seriedade
(22,9%) Houve
mediação não
policial
7
8
(29,4%)
NOTIFICA À
POLÍCIA
9
(71,2%) Orientação
normativa (princípio
de justiça)
11
12
RESOLUTIVIDADE
Relação ao notificado= 33,1%
Relação ao total= 9,7%
Ocorreu em local de convivência
Ocorreu a mais de um ano
Menor índice de migração
+53,5%
10
Vítima não tem cônjuge/similar
Crime foi durante o dia
Menor número de residentes
Menor índice de migração
Ocorreu em local público
Uma vítima apenas
Maior número de residentes
Menor dano/ seriedade
Maior índice de migração
Menor índice de migração
Vítima estuda
Vítima é branca
Uma vítima apenas
Idade maior da vítima
+62,1%
+44,4%
+66,2%
*O item refere-se a ter sofrido o tipo de crime nos últimos 5 anos.
nº Ordem de análise da informação;
(%) Percentual do subgrupo em relação ao nível acima tomado como 100%;
+% Acréscimo percentual de capacidade explicativa do modelo em relação à imputação ao acaso.
Fonte: Dados da Pesquisa de Vitimização - 2008
Figura 6- Síntese dos modelos logísticos para a explicação de notificação, justificativa e resolutividade do crime de tentativa de homicídio.
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Tabela 5 - Modelos logísticos multinomial para a notificação, justificativas de não notificação e notificação, e resolutividade do crime de tentativa de
homicídio
Justificativas para
Resolutividade
Tentativa de Homicídio
Justificativas para não notificar
notificar
Notificou (29,4%)
Covariatas
Fatores
Vítima tem cônjuge / similar
Vítima é preto/parda
Vítima estuda
Crime foi em local de convivência
Duas ou mais vítimas
Crime foi a noite
Notif. Justif. utilitarista
Idade da vítima(ln)
Nº de residentes
Renda per capita (proxy ln)
Tempo resid. no bairro (raiz)
Índice de migração (pontos)
Dano percebido
Intercepto
Significância do modelo
Pseudo-R² (Nagelkerke)
% acerto ao acaso (A); modelo (M)
Acréscimo de previsão (%) (M-A)/A
Casos usados no modelo
Total de casos
Mediação não policial
(24,0%)
Baixa resolutividade
(44,5%)
Normativa/ princípio de
justiça (72,5%)
Houve resolutividade
(33,1%)
-2,64*(13,99)
-21,07†( ∝)
24,50 (∝)
-1,68**(5,38)
2,39*(0,09)
-1,13†(3,10)
-19,0 (∝)
-1,24†(3,46)
3,38***(0,034)
7,60†(1984,7)
0,94***(2,57)
0,13†(0,88)
-8,47*(0,00)
-0,53**(0,59)
1,20***(0,300)
-3,09*(0,05)
-0,38**(1,46)
0,23†(0,79)
-18,29
0,000
0,460
58,5%; 80,9%
38,4%
63 (94,0%)
67(1,3%)
0,75**(2,11)
-0,84**(0,43)
-5,844(0,02)
0,000
0,598
63,5%; 91,8%
44,4%
44(95%)
46
-0,06†(0,94)
-30,92†(∝)
0,242(0,86)
0,009
0,398
51,0%; 81,6%
62,1%
38(82,7%)
46
19,242(1)
0,001
1,000
60,2%; 100,0%
66,2%
17(83%)
21
33,29(0,06)
0,003
0,694
(55,7%; 85,6%)
53,5%
21(100%)
21
(***) Significante ao nível 0,01; (**)significante ao nível 0,05; (*) 0,1; (†) não significante ρ>0,1. Efeito exponencial entre parêntesis.
Fonte: Pesquisa de Vitimização 2008 (UFES/SESP). Abrangência: Áreas urbanas de Cariacica, Serra, Viana, Vila Velha e Vitória.
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Variáveis e Modelo Logístico Multinomial
Perguntou-se aos entrevistados se os mesmos foram vítima de tentativa de homicídio.
Tentativa de homicídio difere de agressão física em termos de danos psicológicos e
físicos, maior privação e maior deficiência imputada às vítimas (OMS, 2000). Embora
do o crime de tentativa de homicídio apresente semelhanças em relação ao crime de
lesão corporal (Art. 129 do Código Penal), ele difere pela maior intensidade. Assim como
em outros crimes, a diferenciação é tarefa do entrevistado.
Ainda que análises sobre os fatores que impactam na vitimização de tentativa de
homicídio sejam relevantes, o presente estudo não pretende comparar as diferenças
entre vítimas e não vítimas. A resposta a essa questão excede o objetivo do presente
estudo. A meta é comparar o comportamento apenas das vítimas no que as diferencia
entre os que notificam ou não o crime, suas justificativas para a notificação e a
resolutividade policial.
O presente estudo não incluiu variáveis comportamentais das vítimas e agressores, mas
é focado nas principais características diretas das vítimas, contexto e agressor. Efeitos
adicionais não incluídos nos modelos relacionam-se à percepção de crime na
comunidade de residência da vítima. E deixou-se de ser realizado porque não foi
possível identificar se o crime ocorreu dentro ou fora na localidade de residência da
vítima. Aspectos esses que podem ser agregados em pesquisas futuras.
Outra limitação relaciona-se ao impacto de vitimização múltipla no comportamento de
notificação, justificativa e resolutividade de crime. Impacto de vitimização múltipla torna
necessário um desenho de pesquisa próprio para captar como o comportamento da
vítima é afetado por crimes iguais, diversos, ou combinados (a vítima sofre dois crimes
ao mesmo tempo) ao longo do tempo. Novas pesquisas podem agregar conhecimento
ao elevar o número de casos.
Portanto, o presente estudo trata todos os casos igualmente – considerando cada crime
isoladamente e desconsiderando o efeito iterado. Propõe-se que esse estudo seja feito
em outro momento. Além disso, variáveis relacionadas á criminalidade na localidade,
percepção de crime, estatísticas de vitimização ao nível local e características
socioeconômicas dos bairros/ comunidades podem ser operacionalizadas em estudos
futuros.
Variáveis presentes nos modelos logísticos referem-se ao crime notificado (furto, no
caso), notificação, justificativa (para notificar ou não) e a resolutividade do crime. As
variáveis e indicadores podem ser agrupadas em três conjuntos, compondo (A)
informações sobre a vítima, (B) informações do contexto, (C) informações do agressor.
3972
Anais do VIII Encontro da ANDHEP
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Ao todo há mais de 20 variáveis explicativas. O quadro de variáveis dos modelos –
presente no anexo - resume as características de cada um delas. Uma vez que o crime
de envolve contato com o agressor, o escore de dano/ seriedade pode chegar a cinco
pontos na variável.
Considerando o questionário original, grande parte das variáveis sofreu modificação
para que pudesse ser usada no modelo. O exemplo mais importante relaciona-se à
mensuração do dano/ seriedade do crime. Para tanto se usou uma métrica diferenciada
em relação às propostas pela bibliografia (ver Blumstein, 1974; Collins, 1988, 1988;
Epperlein; Nienstedt, 1989; Parton; Hansel; Stratton, 1991). A ideia foi mensurar
impactos emocionais e físicos de modo independente. Para o caso de crimes que
envolvem o contato com o agressor, implica que danos emocionais/ psicológicos do
crime e danos físicos encontram-se incluídos.
Crimes em que houve contato do agressor com a vítima responderam 10 perguntas
sobre consequências emocionais e físicas do crime, e crimes de furto, roubo,
arrombamento seguido de furto de residência reponderam apenas cinco itens. O
indicador de dano/ seriedade constitui-se na soma dos valores (0 ou 1) para as
respostas aos itens de dano/ seriedade presentes no quadro anexo. Como esperado,
houve significância maior dessa variável para vários crimes em comparação com a
adaptação de outras escalas de dano/ seriedade propostos pela literatura. Isso implica
que a estratégia metodológica da pesquisa mostrou-se adequada.
As regressões multivariadas apresentadas ao longo do texto foram calculadas com base
no modelo logístico multinomial. Esse modelo não faz suposições de normalidade,
linearidade e homogeneidade de variância para as variáveis independentes. É usado
casos quando se tem uma variável dependente não-métrica e variáveis explicativas
dicotômicas (fatores) e/ou métricas (covariatas). Quando necessário, usou-se o método
stepwise para selecionar o melhor ajuste dentre várias regressões para elevar o poder
explicativo do modelo.
O método stepwise permite a inclusão de variáveis como meio para aumentar o poder
explicativo do modelo. Informações adicionais sobre os modelos de regressão logística
podem ser visualizadas no anexo. O roteiro para a aplicação das técnicas de regressão
logística em estudos em Ciência Social foi extraído de Menard (2002) e Hair et al. (2007).
Como consequência, o fato de variáveis teoricamente importantes não constarem nos
modelos deve ser interpretado que seu impacto mostrou-se residual ou não significativo.
Como resultado, variáveis cuja significância estatística excedesse a 0,1 foram em geram
descartadas.
3973
Anais do VIII Encontro da ANDHEP
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Quadro 1 - Descrição de variáveis do modelo
Variável
Código da variável
Informações da vítima
Notificação, justificativa e resolutividade
Notificou o crime
0=Sim; 1=Não para os crimes de (a) furto, (b) furto/ roubo de
veículo, (c) arrombamento seguido de furto em residência, (d)
roubo, (e) ameaça verbal e (f) tentativa de homicídio.
Justificativa para
0=Justificativa escolhida; 1=Outras justificativa para (I) Baixa
não notificar
efetividade policial / tribunais; (II) Mediação/ notificação não
policial ou para respostas específicas. (a) considera perda de
tempo; (b) justiça é demorada; (c) polícia não podia fazer nada;
(d) Polícia não cuida do problema; (e) resolveu com o
agressor/aggressor; (f) família resolveu o problema; (g)
comunicou outros órgãos; (h) não tinha prova do crime; (i) não se
sentiu seguro p/ denunciar; (j) tem medo da polícia; (k) não gosta
da polícia; (l) teve medo de denunciar; (m) ausência de
dano/agravo
Justificativa para
0=Justificativa escolhida; 1=Outras justificativa para (I)
notificar
Orientação de justiça (orientação normativa) (II) Orientação
utilitarista (custo-benefício) ou para respostas específicas. (a)
evitar que o crime se repita; (b) desejo de justiça; (c) deseja
punição do agressor; (d) recuperar a propriedade; (e) devido ao
dano/prejuízo; (f) seguro do bem perdido; (g) civismo/ cidadão
deve denunciar; (h) tinha provas do delito; (i) buscar ajuda
Resolutividade
0=Houve resolutividade (polícia resolveu, investigação em
andamento ou investigação parada); 1=Não houve resolutividade
(Ocorreu nada ou deixou para lá)
Sexo da vítima
0=Masculino; 1=Feminino
Idade da vítima
Logaritmo natural da idade (maior que 14 anos0
Vítima é jovem
0=Menor que 25 anos de idade; 1=Vitima com 25 ou mais anos de
idade
Raça/cor da vítima 0=Não branco (preto ou pardo); 1= Branco
Situação conjugal 0=Não possui cônjuge ou similar (Solteiro, separado, desquitado/
da vítima
divorciado ou viúvo); 1= Possui cônjuge ou similar (casado,
amigado, amasiado, união consensual, vive junto sem ser casado)
Posse de veículo
0=Sim; 1=Não
0=Exerce alguma atividade remunerada; 1= Não exerce atividade
Trabalho/ exerce
remunerada;
atividade
remunerada
Escolaridade da
0=Não alfabetizado; 1=de 1ª a 4ª série; 2=Tem 1º grau
vítima
incompleto; 3=Tem 1º grau completo; 4=Tem 2º grau incompleto;
5=tem 2° grau completo; 6=Tem superior incompleto; 7=Tem
superior completo; 8=tem pós-graduação
Renda per capita
Logaritmo natural de “renda familiar/ numero de membros da
domiciliar
família”
Numero de
residentes no
Próprio numero
3974
Anais do VIII Encontro da ANDHEP
domicílio da
vitima
Tempo de
residência no
bairro
Informações do Contexto/ Informações do Agressor
Migração
ISSN: 2317-0255
Raiz quadrada do código da variável (1=Menos de um ano; 2=1-3
anos; 3=4-5 anos; 4=6-10 anos; 5=11-15 anos; 6=16-20 anos;
7=21-25 anos; 8=26-30 anos; 9=31-35 anos; 10=36-40 anos;
11=41-50 anos; 12=51-60 anos; 13=61 ou mais)
Varia de intervalo 0-6 relacionado à soma dos valores dos códigos
de três variáveis de migração. I 0=vítima nasceu na Região
Metropolitana de Vitória, 1= Vitima nasceu no interior do estado
do Espírito Santo, 2= Vitima nasceu fora do estado do ES; II
0=mãe da vitima nasceu na Região Metropolitana de Vitória,
1=mãe da vitima nasceu no interior do estado do Espírito Santo,
2=mãe da vitima nasceu fora do estado do ES; III 0=pai da
vitima nasceu na Região Metropolitana de Vitória, 1=pai da
vitima nasceu no interior do estado do Espírito Santo, 2=pai da
vitima nasceu fora do estado do ES;
0=foi vitima mais de uma vez; 1=foi vitima uma vez apenas;
Número de
vitimizações
Número de vítimas 0=duas ou mais vitimas; 1=uma vitima apenas;
Número de
0=dois ou mais agressores; 1=um agressor apenas;
agressores
Local do crime 1
0=local de convivência (1=Em sua casa
2=No seu trabalho, 3=Em sua escola, faculdade ou universidade
4=Casa de amigo, parente ou vizinho); 1=local público (5=Em
áreas públicas “ruas, avenidas e praças”; 6=No trânsito
“carro/moto” 7=Meio de transporte público ou terminal/rodoviária
8=Área comercial aberta/ centro 9=Áreas comerciais fechadas
(bares, restaurantes, boates, centros comerciais, banco/caixa
eletrônico, ou aeroporto))
Local do crime 1
0=Em sua casa; 1= outros locais
Horário do crime
0=durante a noite; 1=durante o dia
Uso de arma de
0=Sim; 1=Não
fogo
Dano/seriedade do Soma dos pontos de (i) Precisou de medico (0=não; 1=Sim); (ii)
crime
Ferimentos superficiais(0=não; 1=Sim); (iii) Hematomas(0=não;
1=Sim); (iv) Fraturas óssea(0=não; 1=Sim); (v) Ferimentos
internos(0=não; 1=Sim); (vi) Precisou de psicológico(0=não;
1=Sim); (vii) Teve insônia(0=não; 1=Sim); (viii) Teve
ansiedade(0=não; 1=Sim); (ix) Teve sensação de pânico(0=não;
1=Sim); (x) Teve trauma psicológico(0=não; 1=Sim);
0=Vitima conhece o agressor; 1=vitima não conhece o aggressor
Distância
relacional com o
agressor
0=masculino; 1=feminine
Sexo do ofensor/
agressor (dois ou
mais, principal
agressor)
3975
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Idade do ofensor/
agressor(dois ou
mais, principal
agressor)
Raça/cor do
agressor(dois ou
mais, principal
agressor)
Uso de álcool/
drogas pelo
agressor
ISSN: 2317-0255
0=Jovem (menor de 25 anos); 1=idade igual ou maior que 25 anos
0=não branco (preto/ pardo); 1=branco
0=Sim; 1=Não
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Anais do VIII Encontro da ANDHEP
ISSN: 2317-0255
REPRESENTAÇÕES DA VIOLÊNCIA E DA SEGURANÇA PÚBLICA NA
FRONTEIRA SUL DE MATO GROSSO DO SUL
André Luiz Faisting
[email protected]
RESUMO
O presente texto pretende apresentar parte de uma pesquisa em curso que tem como
objetivo compreender as diferentes representações da violência na fronteira sul de Mato
Grosso do Sul, articulando os “problemas” dessa fronteira às questões da diversidade e das
políticas públicas pensadas e desenvolvidas nessa região. Interessa-nos, sobretudo,
compreender como a proposição de políticas públicas genéricas e formais voltadas para a
segurança das fronteiras, em geral formuladas por quem não as conhece,
são
compreendidas e vivenciadas por aqueles que, de fato, vivem e atuam nelas, considerados
em suas múltiplas diversidades. Considera-se como as questões relacionadas à violência
articulam-se em torno dos problemas característicos dessa região, como a proximidade da
fronteira com o Paraguai e a existência de um mercado informal e de diversas formas de
“ilegalismos” como contrabando, tráfico de drogas e armas, a forte presença indígena e os
problemas de “invisibilidade” e conflitos daí advindos, as disputas em torno da posse de
terra e a criminalização dos movimentos sociais, a violência contra as mulheres e
envolvendo os jovens. Além da análise das propostas de políticas públicas de segurança
voltadas para a região de fronteiras, a pesquisa está sendo desenvolvida em 09 municípios
da região conhecida como Grande Dourados, através de entrevistas e grupos focais com
profissionais e atores da sociedade civil que vivem e trabalham nesse municípios.
Palavras-chave: violência; fronteira; representações sociais.
INTRODUÇÃO
De acordo com Barreira e Adorno (2010), desde fins da década de 1970 o crime e a
violência vem chamando a atenção dos cientistas sociais no Brasil, criando um amplo
campo de estudos desses fenômenos no país. Os autores recuperam as contribuições de
balanços anteriores sobre tendências teóricas, conceituais, metodológicas e temáticas que
caracterizaram esse campo desde os anos 1970 até o ano de 2000, e acrescentam novas
contribuições do período mais recente. E pensando nos desafios atuais, advertem:
Embora a sociedade brasileira venha conhecendo, há pelo menos duas décadas,
profundas transformações que incidem sobre sua inserção nos mercados
globalizados, sobre suas políticas de controle da inflação e de estabilização
monetária, sobre a expansão dos gastos públicos, sobre a estabilidade das
instituições e práticas democráticas, além de – tímidos é certo – ganhos na redução
das desigualdades sociais, o controle democrático da violência permanece como um
dos mais graves desafios às políticas governamentais (BARREIRA e ADORNO, 2010,
p. 335).
Os autores lembram que a emergência da criminalidade organizada no Brasil não
pode ser descolada das tendências existentes na sociedade contemporânea, em especial a
partir dos anos 1970, na esfera das mudanças neoliberais que inauguram a chamada era da
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Anais do VIII Encontro da ANDHEP
ISSN: 2317-0255
globalização. Embora estejam se referindo à criminalidade violenta nos centros urbanos, é
possível refletir sobre a violência nas fronteiras do Brasil também a partir desse contexto
mais amplo. Os próprios autores, ao indicarem a necessidade de novas investigações,
reforçam a importância de ampliação do conhecimento
para outras regiões do pais, e
argumentam que “no estágio atual, é impossível uma visão do território nacional como um
todo, o que nos permitiria melhor entender fenômenos contemporâneos como o fluxo de
migrantes, mercadorias e capitais nas fronteiras (BARREIRA e ADORNO, 2010, p. 343).
É dentro dessa lacuna de pesquisas sobre a violência nas fronteiras do Brasil que
estamos desenvolvendo, em diálogo com uma pesquisa nacional sobre segurança pública
nas fronteiras 1, um estudo sobre as representações da violência na fronteira na região
conhecida como a Grande Dourados. O presente texto pretende oferecer uma breve
caracterização da fronteira na qual se situa essa região, bem como algumas reflexões
teóricas e metodológicas que fundamentam nosso projeto, sobretudo no que se refere à
Teoria das Representações Sociais. Ou seja, importa ressaltar, para os propósitos dessa
breve reflexão, que a violência em geral, e no contexto das fronteiras em particular, não
pode ser analisada apenas em termos de sua objetividade e de seus indicadores
quantitativos, por mais importantes que essas dimensões sejam. A violência é, também, o
que se representa como violência. Nas palavras de Porto,
Interrogando o componente objetividade, violência seria o que os números e as
estatísticas assinalam como tal, fazendo ressaltar o caráter ´inegável´ da realidade do
fenômeno. Por outro lado, pensada de um ponto de vista subjetivo, a definição da
violência precisaria considerar, igualmente, o que diferentes indivíduos e sociedades
reputam (representam) como violência. Representação que poderia, em última
instância, interferir na própria realidade da violência (PORTO, 2010, p. 76).
Nesse sentido, cabe destacar, ainda que brevemente, esse referencial teórico e
metodológico no estudo da violência para, em seguida, apresentar alguns dados da faixa de
fronteira onde está situada a Comarca de Dourados, em temos dos problemas
característicos da região, da organização das forças de controle, das políticas públicas
propostas e desenvolvidas, bem como algumas das primeiras percepções de policiais e
juízes colhidas a partir da pesquisa de campo que estamos desenvolvendo nos municípios
da Grande Dourados.
1
O projeto “Pesquisa sobre segurança pública nas fronteiras” é financiado pelo Ministério da Justiça e
coordenado pelo Núcleo de Estudos da Cidadania, Conflito e Violência Urbana da UFRJ. A pesquisa de âmbito
nacional tem como objetivo realizar um diagnóstico da situação de segurança pública nos municípios da faixa de
fronteira de todo o país. Assim, o universo de pesquisa cobre os 588 municípios brasileiros da faixa de fronteira,
cujos levantamentos são realizados com base em dados secundários, em survey numa amostra de 178
municípios, e trabalho de campo qualitativo em 55 municípios desse universo. Durante o ano de 2013, atuamos
como pesquisador numa das duas equipes formadas para cobrir toda a faixa de fronteira do Estado de Mato
Grosso do Sul, levantando dados quantitativos e qualitativos em 23 municípios localizados no sul do Estado.
3978
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1. VIOLÊNCIA E REPRESENTAÇÕES SOCIAIS
Para Porto, “os vários enfoques a partir dos quais o fenômeno da violência têm sido
abordado, aquele centrado na análise das representações sociais não tem merecido
estatuto privilegiado na sociologia (PORTO, 2010, p. 67). Assim, embora o conhecimento
via representações sociais pode ser entendido como sendo de segundo grau, na medida em
que se chega a ele não através dos dados brutos da realidade mas a partir dos
questionamentos sobre esses dados no sentido do que se pensa sobre eles, no caso da
violência o conhecimento via representações torna-se tão importante quanto, na medida em
que permite conhecer quais crenças, valores e sentimentos fundamentam, orientam, e
muitas vezes tentam mesmo legitimar os atos de violência. Dai a importância em adotar a
noção de representações sempre no plural, ou seja, partimos do pressuposto que os blocos
de sentidos, crenças e valores, que constituem a matéria-prima das representações sociais,
não devem ser entendidos como enquanto blocos homogêneos de percepção e
(re)produção de uma dada realidade, mas como estando muitas vezes em conflito e em
oposição a outros blocos de sentidos, crenças e valores sobre o mesmo fenômeno.
Nestes termos, pensar em fenômenos como a violência na contemporaneidade
significa, também, pensar o problema da fragmentação e da diversidade. Assim, não há
como avançar no conhecimento de uma determinada realidade social, no caso a violência,
sem que busquemos compreender como essa realidade é percebida e reproduzida pelos
diferentes segmentos que a vivenciam. Em seu livro Sociologia da Violência: do conceito às
representações sociais (2010), Maria Stela Grossi Porto, no capítulo onde apresenta a teoria
das representações sociais como uma estratégia para abordagem da realidade social,
argumenta:
Reinserir a outrora recorrente questão das crenças e dos valores nos dispositivos
disponíveis à explicação sociológica, por meio da Teoria das Representações Sociais,
significa, igualmente, reinserir a discussão acerca do papel e do lugar da
subjetividade na teoria, em sua relação com o também recorrente requisito da
objetividade, como condição para a produção do conhecimento válido e relevante
para a compreensão sociológica (...) Crenças e valores são a matéria prima do fazer
sociológico, seguindo a trilha weberiana de que a objetividade do conhecimento nas
ciências sociais vincula-se ao fato do empiricamente dado estar em permanente
relação com idéias´ de valor, recolocando, assim, valores e crenças no interior da
explicação sociológica (...) A Teoria das Representações Sociais pode constituir-se
em um caminho fértil de análise, na medida em que, por seu intermédio, crenças e
valores são apreendidos em sua condição de princípios orientadores de conduta,
tratamento que se aproxima daquele da sociologia compreensiva (...) da mesma
forma como justificam e orientam práticas dos atores sociais, assim também, a
depender de como são apropriadas pelas instâncias institucionais, as representações
sociais podem justificar e orientar políticas públicas (PORTO, 2010,p. 63-64).
A partir desses trechos selecionados, podemos destacar a pertinência da
explicação sociológica da violência via representações sociais, tanto por parte dos agentes
3979
Anais do VIII Encontro da ANDHEP
ISSN: 2317-0255
da violência, na medida em que as representações “justificam e orientaram as práticas dos
atores sociais”, como por parte daqueles que tem a responsabilidade de propor e aplicar
políticas públicas de segurança e combate à violência. Contudo, como também ressalta a
autora, no caso das políticas públicas estas dependem da forma com as representações são
apropriadas pelas instâncias institucionais, ou seja, no caso da violência não há uma única
representação do fenômeno, mas essa depende de uma série de fatores que envolvem
diferentes interesses, crenças e valores.
Nesse mesmo sentido, a explicação e (re)produção dos fatos da violência, tanto
pelo senso comum quanto pelos meios de comunicação, movimentam-se dentro dessa rede
complexa de significações que caracteriza a violência como fenômeno empírico.
Para
compreender as bases de tais representações, também é ilustrativo o estudo de Caldeira
(2000) sobre a segregação espacial na cidade de São Paulo, no qual a autora revela que é
nas conversas diárias sobre o fenômeno da violência que normalmente se desenvolve a
chamada “fala do crime”.
A fala do crime – ou seja, todos os tipos de conversas, comentários, narrativas,
piadas, debates e brincadeiras que tem o crime e o medo como tema - é contagiante
(...) A fala do crime é também fragmentada e repetitiva. Elas surgem nas mais
variadas interações, pontuando-as, repetindo a mesma história ou variações da
mesma história, comumente usando apenas alguns recursos narrativos (...) Assim, a
fala do crime alimenta um círculo em que o medo é trabalhado e reproduzido, e no
qual a violência é a um só tempo combatida e ampliada (...) A fala e o medo
organizam as estratégias cotidianas de proteção e reação que tolhem os movimentos
das pessoas e restringem seu universo de interações. Além disso, a fala do crime
também ajuda a violência a proliferar ao legitimar reações privadas ou ilegais – como
contratar guardas particulares ou apoiar esquadrões da morte ou justiceiros -, num
contexto em que as instituições da ordem parecem falhar (CALDEIRA, 2000. p. 27).
Assim, através desta forma de discurso é possível a apreensão de categorias que,
concomitantemente, geram formas de conhecimento e “desreconhecimento” que, por sua
vez, justificam termos depreciativos utilizados contra determinados grupos e legitimam, com
isso, a violência. A fala do crime é composta por categorias rígidas, utilizadas para
classificar simbolicamente o mundo.
A fala do crime constrói sua reordenação simbólica do mundo elaborando
preconceitos e naturalizando a percepção de certos grupos como perigosos. Ela, de
modo simplista, divide o mundo entre o bem e o mal e criminaliza certas categorias
sociais. Essa criminalização simbólica é um processo social dominante e tão
difundido que até as próprias vítimas dos estereótipos (os pobres, por exemplo)
acabam por reproduzi-lo, ainda que ambiguamente (CALDEIRA, 2000, p.10).
Em pesquisa anterior na qual estudamos as representações da violência no âmbito
dos Juizados Especiais Criminais, percebemos em várias audiências de conciliação a forma
como as representações fundadas em crenças e valores da vida cotidiana se manifestavam
nas falas dos operadores do Direito. Por exemplo, num dos casos observados o juiz se
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ISSN: 2317-0255
dirige ao acusado de “atentado violento ao pudor” dizendo o seguinte: “gente igual ao
senhor vem muitas aqui, é vendedor de picolé, é catador de papelão que gosta de mexer
com as mulheres na rua”. Assim, representações como essas estão fundamentadas em
estereótipos que, por sua vez, (re)alimentam as representações da violência associadas a
determinados grupos sociais” (FAISTING e OLIVEIRA, 2011, p. 6).
Num contexto mais amplo,
2
marcado por um estado psicológico de medo e
insegurança, é comum o Estado responder com planos emergenciais de segurança, em
geral voltados tanto para o endurecimento da atuação das forças policiais quanto para
propostas ao legislativo, no sentido da mudança das leis e o também endurecimento das
penas. Nesse sentido, tão importante quanto compreender as diferentes formas de
manifestação e representação da violência, é considerar as diferentes formas punitivas e o
aspecto social da punição (FAISTING, 2009). E uma das maneiras de compreender a
natureza social da punição está, como sugere Garland (1990), nas correlações entre as
diferentes formas punitivas existentes e as questões políticas e morais relacionadas a elas. 3
Em entrevista à Revista ComCiência em 2008, ao fazer um breve relato de suas
reflexões mais recentes sobre a “cultura do controle”,
Garland argumenta que “uma
sociedade precisa refletir não somente a respeito de como os indivíduos devem ser punidos,
mas sim sobre questões mais amplas, como a política penal afeta comunidades, opiniões
políticas, economia e cultura da sociedade de maneira geral”. No que se refere ao propósito
de compreender como crenças e valores podem interferir na proposição de políticas
públicas, cabe destacar o seguinte argumento do autor:
Geralmente entendemos punição como uma maneira de responder a um indivíduo
criminoso – como um castigo por sua agressão, e esperamos que ela reduza o crime,
faça justiça e anuncie que esse tipo de comportamento é errado. O meu argumento é
que a punição tem efeitos sociais mais amplos que não estão confinados à punição
ou controle de indivíduos. Há usos políticos óbvios da punição, que operam na arena
política (...) Assim, a decisão sobre como punir ou que tipo de lei penal introduzir
podem ser maneiras simbólicas de marcar um bloco político inteiro de valores e
opiniões (GARLAND, 2008, s/p).
2
A observação das audiências de conciliação nos permitiu identificar que discursos semelhantes aos descritos
por Caldeira também se reproduzem no interior do sistema de justiça. O tratamento oferecido ao acusado no
exemplo descrito demonstrou que os operadores do Direito movem valores e crenças relativos ao universo
simbólico do qual são representantes para exercer suas funções, e com isso também reforçam estereótipos e
preconceitos. Deste modo, as representações sociais da violência e da punição por parte destes profissionais
revelam, também, suas próprias visões de mundo sobre a realidade social, não se limitando, portanto, às
questões técnicas e jurídicas, mas se valendo, também, nesses espaços menos formais, de suas próprias
crenças e valores.
3
Para Garland (1990), um obstáculo ao melhor entendimento da punição está no fato de que os esforços
empreendidos têm sido apenas no sentido de converter um assunto profundamente social em uma tarefa técnica
para instituições de controle social. Para tanto, o desafio inicial estaria em construir, de fato, uma sociologia da
punição para explicar a função social e o significado cultural deste fenômeno. É possível superar uma visão da
punição associada apenas ao sistema penal como um aparato de poder e controle, e reconhecer que leis
criminais e instituições penais incorporam valores morais e sensibilidade que são extensamente compartilhadas
pelos diferentes atores sociais.
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Em síntese, para concluir essa breve justificativa teórica e metodológica do uso da
noção de representações sociais para compreender a violência, recorremos novamente a
Porto que, ao finalizar suas considerações acerca da importância desse recorte, argumenta:
Reforça-se, assim, o pressuposto segundo o qual a ação social e representação
social são fenômenos solidários: as subjetividades presentes nas representações
sociais interferem, direta ou indiretamente, nos processos de organização das ações
e relações sociais, ou seja, nos espaços nos quais o social se produz e se reproduz
como espaço de interação. Afirma-se a relevância de centrar o foco da compreensão
nos indivíduos, sem desconhecer que eles não pairam no ar: movem-se e movem
suas práticas sociais em contextos específicos (PORTO, 2010: 84).
Estes contextos específicos dos quais fala a autora, em nosso caso pode ser
traduzido como a fronteira propriamente dita, que também pode ser analisada em sua dupla
dimensão: ela mesma enquanto uma representação social,
e como território onde a
violência se manifesta de maneira concreta e em suas múltiplas conexões com os demais
fatos da vida social e cotidiana. Cabe destacar, assim, algumas características da fronteira
como espaço de práticas e representações da violência, bem como um espaço para
proposição e aplicação de políticas públicas que estão, por sua vez, também
fundamentadas em normas e valores oriundos de outras representações sociais.
2. VIOLÊNCIA, FRONTEIRAS E POLÍTICAS PÚBLICAS NA GRANDE DOURADOS
A região conhecida como Grande Dourados é composta por aproximadamente 14
municípios, e conta com uma população total estimada em mais de 400 mil habitantes,
todos situados dentro dos limites do que se considera como faixa de fronteira.
4
No que se
refere à economia, a região se destaca como grande produtora de grãos - sobretudo soja destinados à exportação e fortalecimento do agronegócio. A região também tem sido palco,
mais recentemente, da expansão do plantio da cana de açúcar para produção de álcool,
com a instalação de várias usinas em diversos municípios, gerando vários problemas no
campo das relações de trabalho. Soma-se a isto o fato da região possuir uma expressiva
biodiversidade, caracterizada por ecossistemas constantemente afetados pela degradação
ambiental causada pela expansão das fronteiras econômicas.
4
No Brasil, integram a faixa de fronteira os municípios que estão localizadas até 150 km da linha limítrofe com
os países vizinho. A fronteira do Brasil com os demais países da América do Sul (exceto Chile e Equador) se
distribui ao longo de 16.886 quilômetros e a sua faixa interna, após ser modificada por diversas Constituições da
República, se estende por 150 quilômetros para o interior do território brasileiro. Tal delimitação abrange 588
municípios em 11 Estados Federados. Desses, 122 estão localizados na linha de fronteira sendo que 28 sedes
municipais ali situadas conformam com os entes territoriais vizinhos “cidades gêmeas. A Faixa de Fronteira pode
ser dividida em três grandes arcos: 1) Arco Norte (compreendendo a faixa de fronteira dos Estados do Amapá,
Pará e Amazonas, além da totalidade dos Estados de Roraima e Acre; 2) Arco Central (compreendendo a faixa
de fronteira dos Estados de Rondônia, Mato Grosso e Mato Grosso do Sul; 3) Arco Sul (inclui a faixa de fronteira
dos Estados do Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul).
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Assim, importa destacar que a configuração desse modelo socioeconômico na
região da Grande Dourados não ocorre de modo harmônico, gerando por vezes conflitos e
processos de exclusão. Exemplo disso é a presença de vários movimentos sociais no
estado que questionam o modelo vigente e reivindicam a execução de políticas públicas de
preservação ambiental, respeito à diversidade e inclusão social.
Por também estar inserida no cenário platino de fronteiras internacionais, a Grande
Dourados possui ainda uma posição geográfica estratégica para a consolidação do bloco de
países sul-americanos que fazem parte do Mercosul. Vale destacar que o Mato Grosso do
Sul
possui uma das maiores comunidades paraguaias do território brasileiro e alguns
índices parecem apontar que a região da Grande Dourados apresenta uma expressiva
população de paraguaios e seus descendentes.
Do ponto de vista da diversidade étnica e sociocultural, portanto, a região está
estabelecida em um contexto multicultural, marcada pela migração, imigração e forte
presença de povos indígenas. Estes estão estimados em cerca de 12.500 pessoas apenas
no município de Dourados, distribuídos entre as etnias Guarani ou Ñandeva, Kaiowá e
Terena, que vivem em duas reservas demarcadas pelo governo federal: Reserva Indígena
de Dourados e Reserva Indígena Panambizinho. Na região está a maior população de
índios falantes da língua guarani de todo o país, com uma demanda significativa por
reconhecimento e demarcação do território.
No que se refere ao fenômeno da violência propriamente dito, ao apresentarem os
primeiros resultados da pesquisa “Violência e Fronteiras” do Núcleo de Estudos da Violência
da USP, Salla e Alvarez (2011) destacam alguns casos que foram manchetes nacionais nos
últimos anos. Além das ocorrências nos estados do Acre, Rondônia e Amapá, também citam
dois municípios que se localizam na faixa de fronteira onde está a Comarca de Dourados. O
primeiro ocorreu em abril de 2010, em Pedro Juan Caballero, cidade paraguaia gêmea da
brasileira Ponta Porã, quando o senador paraguaio Robert Acevedo sofreu um atentado que
foi atribuído a traficantes de drogas. O segundo caso, um dois mais emblemáticos em
termos de corrupção no meio político local, ocorreu em setembro de 2010 justamente em
Dourados. Trata-se da chamada “Operação Uragano” da Polícia Federal, quando foram
presos 28 pessoas acusadas de envolvimento em fraudes em licitações, corrupção ativa e
formação de quadrilha (SALLA e ALVAREZ, 2011, p. 4). Essa operação desencadeou um
colapso político na cidade, pois foram presos o prefeito e o vice-prefeito, a primeira-dama,
quatro secretários e nove dos onze vereadores, incluindo o presidente da Câmara.
Ao analisar estes e outros eventos, os coordenadores da pesquisa do NEV indagam
se o contexto da fronteira não seria de algum modo uma dimensão com algum peso na
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explicação de tais acontecimentos. Além disso, ressaltam que “o que está em jogo também
é o próprio imaginário do Estado moderno, a forma de analisar seu papel e limites diante
das transformações da contemporaneidade” (SALLA e ALVAREZ, 2011, p. 4-5).
Nesse sentido, no caso da Grande Dourados é importante considerar como as
questões relacionadas à
violência articulam-se em torno dos problemas característicos
dessa região, por exemplo, a proximidade da fronteira com o Paraguai e a existência de um
mercado informal e de diversas formas de “ilegalismos” como contrabando, tráfico de drogas
e armas, a forte presença indígena e os problemas de “invisibilidade” e conflitos daí
advindos, as disputas em torno da posse de terra e a criminalização dos movimentos
sociais, a violência contra as mulheres e envolvendo os jovens, 5 entre outros.
Nesse contexto, há que se destacar a presença, atuação e articulação das forças de
controle que atuam no combate e prevenção da violência e da criminalidade na região. No
que se refere ao sistema policial, pela sua peculiaridade de região de fronteira Dourados
não se caracteriza apenas pela existência de forças convencionais, mas também pela
presença de outras forças bem como por uma experiência de integração das policias civil e
militar: trata-se do Departamento de Operações da Fronteira (DOF), uma integração entre
as duas polícias que, para muitos, constitui a única experiência concreta dessa integração
no Brasil.
6
Também há na região uma unidade da Força Nacional. Instalada em 2009 no
Assentamento Itamaraty, a Força Nacional tem a missão de vigiar a região de fronteira e
combater o tráfico, mas tem atuado principalmente nas comunidades indígenas.
Além das forças policiais, há ainda várias políticas públicas voltadas para a
segurança nas fronteiras, apontando para aquilo que Salla e Alvarez (2011) denominam de
“novas formas de gestão das fronteiras:
Novas formas de gestão política dos espaços fronteiriços têm sido propostas pelo
governo federal (em articulação com os governos dos estados) que combinam os
elementos de afirmação da soberania e de defesa do território com preocupações
específicas relativas à segurança pública – como o tráfico de drogas e de armas, o
abigeato, o contrabando etc. A faixa de fronteira, nas duas últimas décadas, tem se
tornado, também para o governo federal, uma área de intervenções que se volta para
5
Há vários anos Mato Grosso do Sul figura entre os Estados do país onde há maior número de homicídios contra
as mulheres. De acordo com o “Mapa da Violência 2012: os novos padrões da violência homicida no Brasil”, o
Estado ocupa o 5º lugar nesse ranking. No que se refere aos homicídios contra jovens, Dourados também se
destaca: o “Mapa da Violência 2013: homicídios e juventude no Brasil” aponta Dourados como a 94ª no ranking
das 100 cidades brasileiras, com mais de 10 mil jovens, que mais registraram mortes da população com idade
entre 15 e 24 anos. Segundo o estudo, em 2011 aconteceram 35 homicídios no município. Para o delegado
regional da Polícia Civil de Dourados: “Nos casos investigados pela polícia, tanto a vítima quanto o acusado
estão envolvidos com entorpecentes, principalmente por se tratar de uma cidade de médio porte e ficar próxima
da fronteira com o Paraguai” (Dourados News, 18/07/2013).
6
O DOF se tornou um departamento apenas em 2009, pois desde 1987 quando foi criado era apenas um grupo
de operações. Recentemente, suas atividades ampliaram-se também para a faixa de fronteira com a Bolívia.
Realiza policiamento ostensivo motorizado itinerante na faixa de fronteira do Brasil (MS) com o Paraguai e a
Bolívia. Realiza, ainda, eventualmente, policiamento nas divisas de SP e PR. A área de fronteira policiada e de
1.517 Km (zigue-zague), englobando 51 municípios.
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o incentivo ao desenvolvimento local, ao fortalecimento de organizações da
sociedade civil etc. dentro de uma perspectiva de integração tanto nacional como
internacional (SALLA e ALVAREZ, 2011, p. 14).
Nestes termos, os autores apontam para algumas iniciativas do governo federal que
vem sendo desenvolvidas: criação, em junho de 2011, do “Plano Estratégico de Fronteiras”,
que conta com a presença das Forças Armadas; implantação em 2009, pelo Ministério da
Integração Nacional, do Programa de Promoção do Desenvolvimento da faixa de fronteira, a
primeira iniciativa de alocação de recursos para o desenvolvimento desse território; adoção
pelo Ministério da Saúde, em 2005, do Sistema Integrado de Saúde das Fronteiras – SIS
Fronteiras, com desdobramentos para a formação de quadros profissionais de saúde para
atuação nas fronteiras; (SALLA e ALVAREZ, 2011, p. 14-20).
Acrescenta-se a essas políticas a implantação na região de Dourados, em agosto de
2011, do “Gabinete de Gestão Integrada da Fronteira” (GGI). Esse órgão foi o terceiro
implantado no país e o segundo no Estado, tem como objetivo inibir o crime organizado e é
formado pela União, Estado, Prefeitura e pelos países fronteiriços, que atuam em conjunto
para operações na fronteira.
Considerando esse complexo de instituições e políticas públicas existentes, poderia
se imaginar que os índices de violência nessa região são baixos se comparados a outras
regiões do país. Contudo, dados sobre homicídios no período de 2000 a 2007, organizados
pela pesquisa do NEV/USP, revelam que Dourados se destaca nesse quesito entre os
municípios de 100 a 200 mil habitantes, ocupando a 22ª. posição no ranking dos municípios
com as maiores taxas médias de homicídio (SALLA, ALVAREZ, OI, 2011, p. 26 e 33).
Dentro do objetivo de melhor qualificar esses indicadores, há que se destacar, ainda,
a situação dos povos indígenas na região.
Com efeito, Mato Grosso do Sul tem sido
destaque há vários anos como o primeiro no ranking com maior número de homicídios
contra indígenas. De acordo com o relatório “Violência contra os Povos Indígenas no Brasil”,
que é produzido anualmente pelo Conselho Indigenista Missionário (CIMI), 60 indígenas
foram assassinados em 2010 (dado que se repetiu pelo 3º ano consecutivo). Mato Grosso
do Sul é o campeão com 34 casos, o que representa 56% do total de assassinatos de
indígenas em todo país.
Em 2009 também foram registrados 60 assassinatos de indígenas, e mais uma vez a
grande maioria – 33 - ocorreu em Mato Grosso do Sul, sendo todas as vítimas pertencentes
à etnia Guarani-Kaiowá. Dos 33 casos ocorridos em 2009, 8 foram em Dourados, e dos 34
casos ocorridos em 2010, 10 foram em Dourados. Nos últimos dois anos a situação não
mudou, ou seja, dos 32 assassinatos ocorridos no Estado em 2011, 14 foram em Dourados,
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e dos 37 ocorridos em 2012, 18 foram em Dourados. Como ressalta o relatório do CIMI
produzido em 2012:
Também cresceu o número de assassinatos em Mato Grosso do Sul, com o registro
de 37 vítimas, contra os 32 casos registrados em 2011. O estado continua à frente no
número de casos no país, com mais de 60% das ocorrências. A grande maioria das
mortes ocorreu entre indígenas do povo Guarani-Kaiowá, com 34 pessoas
assassinadas. Também houve mortes entre os povos Terena (2) e Guarani
7
Nhandeva (1). (Relatório CIMI, 2012)
Uma das hipóteses que poderia contribuir para melhor compreender a violência
praticada contra os indígenas na região é que, além dos conflitos decorrentes da
demarcação de terras propriamente dita,
a “invisibilidade” social dos indígenas na região
contribui, também, para uma menor sensibilidade em reconhecer a gravidade do problema e
da situação de confinamento e miséria em que vivem esses povos, tanto pela população
local quanto pelas autoridades, o que sugere atenção especial também para a importância
das representações sociais sobre os indígenas e sua cultura, na medida em que essas
representações podem contribuir para alimentar, ou pelo menos justificar, as violências
praticadas contra eles.
3. O SISTEMA DE JUSTIÇA E DE SEGURANÇA PÚBLICA NA GRANDE DOURADOS
A participação na pesquisa sobre segurança pública nas fronteiras, realizada durante
o ano de 2013, nos permitiu conhecer um pouco da realidade de 23 municípios dos 44
localizados na faixa de fronteira do Estado de Mato Grosso do Sul. O diagnóstico foi
realizado com aplicação de questionários com questões objetivas sobre a estrutura do
sistema de justiça e da segurança pública local, e sobre as percepções dos profissionais
acerca da criminalidade e da fronteira nessa região.
8
Destes municípios, 14 integram a
região conhecida como a Grande Dourados. Contudo, considerando que a maior parte da
estrutura de justiça e segurança pública, incluindo as forças de atuação na fronteira, estão
7
Um dos casos que teve repercussão nacional e internacional ocorreu em 18 de novembro de 2011, quando o
cacique Nísio Gomes foi assassinado depois da invasão do acampamento Tekoha Guaiviry, em Amambai, por
cerca de 40 homens encapuzados. Com relatório em fase de conclusão pela FUNAI, a área ocupada pela
comunidade indígena está em processo de identificação desde 2008. A região do ataque fica a meia hora da
fronteira com o Paraguai. Termo de Ajustamento de Conduta do Ministério Público Federal, referente ao
processo de demarcação das terras, está em execução. Mais recentemente, embora também não tenha ocorrido
na região de Dourados, ganhou destaque na imprensa a ocupação, pelos índios da etnia Terena, de uma
fazenda localizada no município de Sidrolândia, que culminou, durante o processo de desocupação autorizado
pela justiça, na morte de um indígena. Ressalta-se que a referida fazenda já foi demarcada pela FUNAI como
território indígena, e estava aguardando recurso impetrado pelo proprietário, um ex deputado federal.
8
Os municípios cobertos pela equipe da UFGD foram os seguintes: Caarapó, Deodápolis, Douradina,
Dourados, Eldorado, Fátima do Sul, Glória de Dourados, Iguatemi, Itaporã, Itaquiraí, Japorã, Jateí, Juti, Laguna
Carapã, Mundo Novo, Naviraí, Novo Horizonte do Sul, Paranhos, Rio Brilhante, Sete Quedas, Tacurú, Taquarucú
e Vicentina. Nos municípios Dourados, Mundo Novo, Sete Quedas e Paranhos (os três últimos localizados na
linha de fronteira), além da aplicação do questionário, foram realizadas também entrevistas em profundidade e
grupos focais com profissionais de várias áreas e com representantes da comunidade local.
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localizadas na cidade-pólo de Dourados,
9
selecionamos para essa nova pesquisa, que
pretende aprofundar os aspectos mais qualitativos não contemplados pelo diagnóstico
anterior, os 09 municípios que estão mais próximos de Dourados, e que utilizam essa
estrutura com mais freqüência, não apenas no que se refere à segurança pública e ao
sistema de justiça, mas também de outras áreas como comércio, saúde e educação.
Como sugere Porto (2010, p. 84) ao afirmar a importância de se considerar os
contextos específicos nos quais os indivíduos movem suas práticas sociais, no caso em
questão é importante, antes de avançar no estudo das representações sociais, considerar
como estão estruturadas as forças de controle, prevenção e punição na região estudada.
Tabela 1: População dos municípios, distância da Comarca de Dourados e quantitativo
de alguns dos profissionais de justiça e segurança que atuam na região
Municípios
da Grande
Dourados
Dourados
População
Estimada
(2013)
207.498
Distância
de
Dourados
-
Polícia
Militar
Polícia
Civil
310
104
12
16
Rio
Brilhante
Caarapó
33.362
63 Km
30
10
02
27.554
54 Km
28
10
Itaporã
22.231
19 Km
11
Fátima do
Sul
Deodápolis
19.260
41 Km
12.534
Glória de
Dourados
Vicentina
Douradina
Total
Corpo de
Bombeiro
Guarda
Municipal
16
93
113
03
01
-
02
02
01
19
-
08
01
01
-
-
-
58
12
02
02
01
30
-
78 Km
18
09
01
-
-
-
-
10.025
74 Km
17
09
01
01
01
-
-
6.013
51 Km
11
07
-
-
-
-
-
5.616
33 Km
06
04
-
-
-
-
-
489
173
21
25
20
142
113
344.093
Juiz
Promotor
Público
Defensor
Público
Fonte: questionários aplicados pela “Pesquisa sobre segurança pública nas fronteiras” (2013)
De acordo com a tabela acima, a primeira constatação importante é a alta
concentração dos profissionais na Comarca de Dourados. No caso das forças policiais, 63%
dos policiais militares e 60% dos policiais civis estão nessa Comarca. No que se refere às
instituições de justiça a situação não é diferente, ou seja,
57% dos juízes, 64% dos
promotores e 80% dos defensores públicos estão fixados em Dourados. Destaca-se a
situação da defensoria pública, uma vez que, além de Dourados, apenas quatro dos outros
9
Como cidade-pólo e estratégico na área de segurança pública, esta concentrada em Dourados a maioria das
instituições de justiça e segurança da região. Por exemplo, apenas em Dourados existem delegacias
especializadas, como a delegacia de defesa da mulher e a delegacia da infância e juventude, assim como é o
único município que possui uma delegacia especializada nas operações de fronteira (DEFRON), que atua em
parceria com as demais forças, especialmente com o Departamento de Operações de Fronteira (DOF). Conta,
ainda, com uma unidade da Polícia Federal, da Polícia Rodoviária Federal, da Receita Federal e da Força
Nacional. No campo da Justiça conta também, e de forma exclusiva, com duas Varas da Justiça Federal e uma
unidade do Ministério Público Federal, com juízes e procuradores que tem competência para atuar nas questões
federais, como nos casos que envolvem a demarcação de terras indígenas e quilombolas.
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oito municípios contam com a presença desse profissional, situação não muito diferente da
promotoria pública, que não conta com esse profissional em três dos nove municípios.
Ressalta-se, ainda, que a grande maioria dos municípios da Grande Dourados que contam
com a presença de defensores e promotores públicos, não possuem sede própria.
Se considerarmos a dificuldade de deslocamento para Dourados, bem como o fato
de a região ser rota de passagem do tráfico de drogas e mercadorias ilícitas, e por isso
haver muitas prisões, é provável que muitos presos não sejam beneficiados pelos serviços
da defensoria pública, ou contam com ela de forma precária. Uma análise da situação dos
presos da maior penitenciária do Estado que está localizado em Dourados, o presídio Harry
Amorin Costa, pode ser reveladora dessa deficiência na prestação jurisdicional pelo Estado.
Situação ainda mais grave é àquela que envolve indígenas em situação de encarceramento,
como apresentado pelo relatório sobre a “situação dos detentos indígenas no Estado de
Mato Grosso do Sul” (CTI/UCDB, 2008), além de outros documentos que tratam da violência
contra os povos indígenas como os relatórios do CIMI.
Destaca-se ainda, no que se refere à grande concentração dos profissionais de
justiça e segurança em Dourados, a situação do Corpo de Bombeiros e da Guarda
Municipal. Quanto ao primeiro, observa-se que, além de Dourados, apenas dois dos nove
municípios selecionados contam com a presença dessa instituição. Como o atendimento
prestado pelo Corpo de Bombeiros em geral se dá em função de acidentes e situações mais
graves, pode se imaginar a conseqüência dessa ausência para os municípios que
dependem do deslocamento dessa força de Dourados. No mesmo sentido, apenas
Dourados conta com a presença da Guarda Municipal que, de acordo com vários
profissionais entrevistados, exercem um papel fundamental de apoio às demais forças de
segurança que atuam no município.
Ainda sobre a estrutura de funcionamento dessas instituições, cabe ressaltar a
evidência de maior precariedade da estrutura física e de pessoal existente nas delegacias
de polícia. Embora na tabela acima esteja registrado o total de policiais civis, não estão
identificados os municípios sem delegados titulares, ou os que contam parcialmente com
esse profissional. É o caso, por exemplo, de Glória de Dourados,
que na ocasião da
pesquisa não dispunha desse profissional no município, assim como de outros municípios
que contavam apenas parcialmente com esse operador do Direito, casos de Douradina e
Vicentina. Nestes três municípios, inclusive, os questionários foram respondidos pelos
escrivães de polícia, que são quem muitas vezes prestam o atendimento nessas delegacias.
Com efeito, foi recorrente nas entrevistas com muitos delegados a falta de estrutura
e de pessoal para atuarem na polícia civil. Muitos argumentam, inclusive, que o salário de
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delegado é superior ao de colegas de outros estados, mas que isso não garante que tenham
condições adequadas de trabalho. Além disso, não foi incomum perceber que muitos desses
profissionais vêem sua atuação na fronteira como um “pedágio” que têm que pagar para,
posteriormente, serem transferidos para outros locais. Estar na fronteira para muitos,
portanto, se traduz menos num desejo pessoal e mais numa imposição da carreira.
Ressalta-se que tais problemas de estrutura e falta de pessoal também se
apresentam para a polícia militar e para o sistema de justiça. Contudo, foi perceptível que no
caso da polícia civil as condições se apresentam de forma mais grave.
No que se refere à dimensão das representações sociais da violência e da
criminalidade na fronteira, por conta de toda a estrutura física e de pessoal para atuação
tanto em relação aos crimes comuns como aos crimes de fronteira, Dourados deve ser o
foco principal para o levantamento dessas representações, tanto por parte dos profissionais
como de outros sujeitos envolvidos direta ou indiretamente com esses fenômenos. Nesse
paper, contudo, apresentaremos apenas algumas manifestações de representantes das
polícias civil e militar, bem como de juízes que atuam nos municípios selecionados. Para
levantamento dessas percepções, recuperamos dos questionários aplicados quatro
questões formuladas para todos os profissionais. Com exceção da primeira questão, na qual
poderiam justificar suas respostas, nas demais deveriam apenas indicar se estão mais ou
totalmente de acordo, ou mais ou totalmente em desacordo com as afirmações feitas. Foram
as seguintes questões:
1.
O fato de estar próximo à fronteira é mais positivo para o desenvolvimento econômico
do município do que se não estivesse? Por que?
2.
Apesar de ilegais, atividades como o contrabando e tráfico de mercadorias ilícitas
dinamizam a economia desse município.
3.
É comum dizer das regiões de fronteira, que a posse de armas de fogo é mais freqüente
do que em outros municípios.
4.
Este município apresenta características únicas de criminalidade, se comparado com
municípios brasileiros que não estão na faixa de fronteira
A seguir, apresentaremos as percepções dos diferentes profissionais separadamente
para, na considerações finais, apresentar uma síntese geral dessas representações,
independentes das posições que ocupam no sistema de justiça e segurança pública locais.
3.1 - Representações da fronteira por parte de policiais militares da Grande Dourados
No que se refere aos policiais militares, sobre a primeira questão 77,8% dos
entrevistados responderam não, ou seja, estar próximo à fronteira não representa benefícios
para o desenvolvimento econômico do município. Entre as razões apresentadas para essa
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percepção estão as seguintes: “a facilidade de comércio no Paraguai atrapalha as cidades
próximas”; “deixam de comprar no comércio local para se descolarem para a região de
fronteira por conta da proximidade”. Por outro lado, os argumentos favoráveis à idéia de que
a proximidade da fronteira favorece a economia local foram: ”atração de pessoas, passagem
para compras”; “aquecimento da economia local”.
Sobre a segunda questão, ou seja, a afirmação de que apesar de ilegais as
atividades como contrabando e tráfico de mercadorias ilícitas dinamizam a economia local,
66,6% dos policiais militares se manifestaram como estando mais ou totalmente em
desacordo, enquanto 33,4% manifestaram estar mais ou totalmente de acordo com ela.
Assim como na questão anterior, o representante de Dourados está entre a minoria, ou seja,
acredita que o tráfico de mercadorias ilícitas pode, sim, dinamizar a economia local.
Na questão relativa à posse de arma de fogo, as opiniões dos policiais militares se
dividiram, sendo que 55,6% estão mais ou menos de acordo, ou seja, acreditam que nas
regiões de fronteira a posse de arma de fogo é mais freqüente do que em outros municípios,
enquanto que 44,4% acreditam que não há diferença entre os municípios quanto à posse
dessas armas. Dourados, nesse caso, está entre os que acreditam que há, sim, maior
concentração de armas em municípios localizados na fronteira.
Sobre a quarta e última questão, onde se indaga se o município apresenta
características únicas de criminalidade por estar na fronteira, a maioria dos policiais militares
estão mais ou totalmente em desacordo com essa afirmação, ou seja, 66,6% acredita que
não há especificidade na criminalidade de fronteira em termos da realidade do município em
que atuam. Já 33,4% dos policiais militares entrevistados acreditam que seus municípios
apresentam características únicas de criminalidade justamente por estarem situados na
faixa de fronteira. Dourados, novamente, está entre essa minoria, ou seja, entre aqueles que
acreditam existir certa especificidade da criminalidade de fronteira.
3.2 - Representações da fronteira por parte de policiais civis da Grande Dourados
Sobre a primeira questão, quase todos os policiais civis entrevistados manifestaram
discordância com o fato de que estar próximo à fronteira favorece o desenvolvimento
econômico do município. Apenas um dos entrevistados respondeu que não sabia. Entre as
justificativas apresentadas para as repostas destacam-se as seguintes: “a distância dos
grandes centros consumidores aumentam o custo de produção e os produtos sofrem forte
concorrência dos produtos importados”; “o consumo ocorre no Paraguai”; “não traz
benefício. É mais negativo porque “pega” os modos de vida dos paraguaios, a cultura de
viver de qualquer maneira”.
3990
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Ressalta-se essa última manifestação sobre os paraguaios, ou seja, o entrevistado
considera que o problema da proximidade da fronteira não contribui para o desenvolvimento
local justamente porque os brasileiros adquirem a “cultura de viver de qualquer maneira”. Tal
representação, de certa forma também um estereótipo, foi bastante evidenciada, explícita e
implicitamente, em muitas outras manifestações, não apenas por parte dos profissionais de
segurança e justiça, mas também de brasileiros que residem nas regiões de fronteiras e que
atribuem à cultura paraguaia e indígena não apenas à responsabilidade pela criminalidade
local, mas também a causa de um “atraso” cultural nessas regiões. Tais percepções foram
mais exploradas nas entrevistas em profundidade e nos grupos focais, sobretudo nos
municípios localizados na linha de fronteira. Apenas como ilustração, citamos mais uma
manifestação de outro delegado entrevistado que, ao tratar dos crimes mais recorrentes na
região afirma o seguinte: “índio mata por nada”.
Sobre a questão relativa ao contrabando e ao tráfico de mercadorias ilegais, os
policiais civis também foram quase unânimes em manifestarem mais ou total desacordo com
a afirmação de que tais atividades dinamizam a economia do município. Apenas um dos
entrevistados manifestou estar totalmente de acordo com essa afirmação. Já no que se
refere à questão da posse de armas de fogo, a maioria (66,6%) manifestou estar mais ou
totalmente de acordo com a afirmação de que a posse dessas armas é mais freqüente nos
municípios de fronteira, enquanto a minoria (33,4%) acredita que não há diferenças entre os
municípios no que se refere a esta questão. Muitos desses últimos disseram, inclusive, que
as taxas de criminalidade nos grandes centros urbanos são maiores do que nos municípios
de fronteira, e, ainda que as armas sejam traficadas pela fronteiras, em geral são enviadas
para outras regiões. Os que defendem o contrário argumentam que é necessário considerar,
também, os valores da cultura local onde a posse e o uso da arma de fogo para proteção
pessoal e resolução de conflitos ainda é uma realidade. O representante de Dourados está,
novamente, entre a minoria, ou seja, manifestou estar mais de acordo com a afirmação de
que a posse de armas de fogo é mais comum na fronteira.
Quanto a possibilidade do município no qual o entrevistado atua apresentar
características únicas de criminalidade se comparada a outros municípios brasileiros,
novamente as opiniões se dividiram. Enquanto 55,6% dos policiais civis entrevistados
manifestarem mais ou total discordância em relação a essa afirmação, 44,4% estão mais ou
totalmente de acordo com ela. O representante da polícia civil de Dourados, novamente,
está entre os que acreditam na existência de uma especificidade na criminalidade existente
na região de fronteira.
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3.3 - Representações da fronteira por parte dos juízes da Grande Dourados
No que se refere às manifestações dos juízes que atuam nos municípios da Grande
Dourados, cabe ressaltar também que nem todos os municípios contam com a presença
exclusiva desse operador do Direito. Na ocasião da aplicação dos questionários, Vicentina e
Douradina não possuíam fóruns e eram atendidas, respectivamente, pelas Comarcas de
Fátima do Sul e Itaporã. Ainda, o juiz de Itaporã foi o mesmo que respondeu o questionário
de Deodápolis, pois na ocasião estava substituindo o colega desse município.
Sobre a hipótese de a fronteira contribuir com o desenvolvimento econômico local, a
quase totalidade dos juízes manifestou-se de forma contrária, ou seja, tal proximidade não
representa para eles melhoria no desenvolvimento econômico do município em que atuam.
Nesse caso, o representante de Dourados foi o único que afirmou não saber. As razões para
a discordância foram as seguintes: “o município é mais ligado à agricultura e a fronteira
disponibiliza produtos importados”; o desenvolvimento econômico desse município não está
atrelado ao fator fronteiriço, mas a outros fatores”; “o Brasil é um país refratário ao comércio
mundial, isolacionaista de tendência marxista”.
Na questão relativa ao contrabando e ao tráfico de mercadorias ilícitas, os juízes
foram unânimes em manifestar total desacordo com a afirmação de que tais atividades
dinamizam a economia do município. Já no que se refere à posse de arma de fogo as
manifestações se dividiram, sendo que 57,1% dos juízes manifestaram estar mais ou
totalmente de acordo com a afirmação de que a posse dessas armas é mais freqüente em
municípios de fronteira, enquanto que 42,9% disseram estar mais ou totalmente em
desacordo com essa afirmação. Sobre essa questão, Dourados está novamente com a
minoria. Finalmente, no que se refere à afirmação de que há uma especificidade na
criminalidade na região de fronteira, 71,4% dos juízes manifestaram estar em desacordo
com essa afirmação. Dessa vez, o representante de Dourados acompanhou a maioria.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O objetivo desse texto foi apresentar resultados preliminares de uma pesquisa em
andamento que tem, entre outros, o objetivo de compreender como as representações
sociais da violência e da criminalidade na fronteira articulam-se com os problemas
característicos da região conhecida como a Grande Dourados. Para tanto, partimos das
contribuições de Porto (2010), para quem o recorte via representações sociais é
fundamental no estudo de fenômenos como a violência. Considerando, ainda, a importância
dos contextos específicos nos quais as representações são (re)produzidas, buscamos
também caracterizar as condições objetivas da fronteira na qual se situa a região estudada.
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No que se refere a essas condições objetivas, constatamos, inicialmente, a alta
concentração de profissionais na Comarca de Dourados em detrimento dos demais
municípios da região. Destaca-se, especialmente, a situação da Defensoria Pública, já que
não há defensores atuando em vários municípios. O mesmo ocorre com relação à policia
civil, pois há municípios que não contam com delegacias e outros que, embora tenham
delegacias instaladas, não contam com a presença de delegados titulares atuando nas
mesmas. Ainda que a falta de estrutura e de pessoal também tenham sido constatadas no
âmbito da polícia militar e do sistema de justiça, pareceu-nos, pela observação, que a
situação da polícia civil é de fato mais precária.
Sobre as representações sociais da fronteira por parte dos profissionais que atuam
nas polícias estaduais e no Judiciário, constatamos uma maior unidade de pensamento
tanto dos juízes quanto dos policiais civis, sugerindo que essa homogeneidade na forma de
ver a fronteira pode refletir menos suas convicções pessoais e mais as representações
sociais que sustentam seus discursos profissionais. Daí a importância em considerarmos
como as representações sociais são produzidas e reproduzidas em cada uma dessas
diferentes profissões do sistema de justiça e segurança.
Para os propósitos dessa breve reflexão, contudo, importa destacar como os
profissionais manifestaram, de forma geral, suas idéias e percepções sobre a fronteira. Em
síntese, e para além de algumas especificidades observadas no interior de cada grupo de
profissionais entrevistados, constatou-se que 91,3% deles não acreditam que a proximidade
com a fronteira é mais positivo para o desenvolvimento econômico local. Da mesma forma,
84% também não considera que, apesar de ilegais, atividades como contrabando e tráfico
de mercadorias ilícitas dinamizam a economia local. Sobre as armas de fogo, 60% dos
entrevistados concordam que a posse dessas armas é mais freqüente nos municípios de
fronteira. Por outro lado, para 64% dos entrevistados não há características únicas de
criminalidade nesses municípios, não os diferenciando, portanto, dos outros municípios
brasileiros no que se refere à criminalidade e à violência. Em síntese, independente dessas
variações, vale ressaltar que os entrevistados, em geral, não identificam em suas
percepções a possibilidade de formas múltiplas de sociabilidade na região de fronteira que
não sejam apenas aquelas marcadas pela violência e pelas atividades criminosas e ilegais.
Nesse sentido, podemos concluir, ainda que de forma preliminar, que para além da
violência e da criminalidade urbanas, bem como dos crimes associados ao tráfico de drogas
e outras formas de criminalidade, a região da Grande Dourados é marcada por práticas e
representações da violência ainda fundamentadas na idéia de fronteira como espaço da
“recriação/renovação do
arcaico” (MARTINS, 2008). Daí a importância de, além da
objetividade da violência que torna essa realidade objetiva e passível de ser medida,
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compreendermos, via representações sociais, quais crenças e valores estruturam as
práticas dos profissionais que atuam nessas regiões de fronteira.
Em síntese, pode-se dizer que, como ocorre em todo o país, a violência em Mato
Grosso do Sul é uma realidade que atinge a todos. Há, contudo, na região de fronteira em
geral, e na região da Grande Dourados em particular, uma especificidade nas práticas da
violência contra certos segmentos cujo recorte se explica também a partir relação
diferença/identidade, e em suas múltiplas conexões com as diferentes representações
sociais da violência.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALBUQUERQUE, J.L.C. 2010. A Dinâmica das Fronteiras: os brasiguaios na fronteira entre
o Brasil e o Paraguai. São Paulo, Annablume-Fapesp.
ALVAREZ, M.C. e SALLA, F. 2010. “Violência e Fronteiras no Brasil: tensões e conflitos nas
margens do estado-nação”. Anais do 34º. Encontro Anual da ANPOCS, Caxambu.
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3994
Anais do VIII Encontro da ANDHEP
ISSN: 2317-0255
Juventude, oportunidades e direitos - O Programa de Controle de Homicídio
Fica Vivo! no cenário da segurança pública de Minas Gerais
Bianca Márcia Ferreira (Instituto Elo)
Introdução:
Há um ano me tornei técnica social do Programa de Controle de Homicídios Fica
Vivo!, um dos programas da Política de Prevenção à Criminalidade do Governo Estadual de
Minas Gerais. Foi minha primeira experiência profissional fora da sala de aula e acredito que
a primeira lidando diretamente com pessoas. Cheguei em um contexto completamente novo
para mim, uma região periférica da Região Metropolitana de Belo Horizonte, uma
comunidade que, embora pequena, apresentava muitas vulnerabilidades.
Nos primeiros contatos com os jovens moradores da Vila União já foi possível
perceber a deficiência dos serviços públicos que atendiam o território, faltavam espaços
públicos de esporte, cultura e lazer, as ofertas de cursos e trabalhos não atendiam às
expectativas e ambições daqueles garotos.
É nesse cenário que os Centros de Prevenção à Criminalidade, equipamento público
onde funciona o Fica Vivo!, são instalados em Minas Gerais. Um cenário onde os números
da violência e, principalmente os homicídios chamam a atenção O mesmo cenário que é
encontrado nas cidades que ainda não tem o Programa, e o mesmo cenário de tantas outras
regiões brasileiras. Silveira (2007), compila as características destes territórios apontadas
por diversos estudiosos da segurança e da saúde:
Embora assustador este cenário não constitui exatamente uma
novidade e vem sendo descrito por pesquisadores das áreas de
saúde e segurança pública para o restante do Brasil e de outros
países da América Latina que apontam a distribuição heterogênea da
violência, dos homicídios em particular, no interior destes países e
das cidades, principalmente nos grandes centros urbanos onde a
morte violenta tende a se concentrar em áreas fisicamente
deterioradas e que compartilham outros indicadores de
vulnerabilidade social, tais como baixos índices de escolaridade de
suas populações, taxas elevadas de desemprego e informalidade no
mercado de trabalho, acesso precário a serviços públicos essenciais,
baixo padrão de acabamento das moradias, grande percentual de
jovens na população, alta densidade populacional dentre outros (...)
Além disto, estas áreas se caracterizam por constituir foco de
atividade intensa do tráfico de drogas, atividade esta, que emprega
grande número de jovens. Os conflitos gerados em torno desta
atividade ilegal transformam os jovens nos maiores envolvidos na
epidemia de homicídios, seja na posição de vítimas ou de autores.”
(Silveira, 2007p. 13)
Esse texto é bastante preliminar, praticamente um resumo do que li e aprendi no
meu primeiro ano de trabalho no programa Fica Vivo!, minhas percepções sobre sua
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Anais do VIII Encontro da ANDHEP
ISSN: 2317-0255
atuação e importância nos territórios e um esforço para resumir alguns trabalhos
anteriormente elaborados que tem ajudado no desenvolvimento do meu próprio.
Jovens e homicídios - Contextualização:
O índice crescente de homicídios no Brasil já é fato que preocupa os pesquisadores
da área da saúde e da segurança desde os anos 80, chegando a ser causa de 33% das
mortes por causas externas nos anos 90. Desde 2004 os números tem diminuídos,
entretanto, continuam atingindo médias inaceitáveis, consideradas epidêmicas pela
Organização Mundial de Saúde. O limite aceitável para a OMS é de 10 homicídios para
cada 100 mil habitantes, no ano de 2012 o Brasil teve em torno de 50 mil mortes violentas,
cerca de 25 para cada 100 mil habitantes.
Evolução das taxas de homicídios e de mortes em acidentes de transportes.
Brasil 1980/2011
Fonte: SIM/SVS/MS – Mapa da Violência 2013
Mesmo em um país tão grande e diverso, o perfil das vítimas é bem homogêneo.
São quase sempre homens jovens entre 15 e 24 anos, com baixa escolaridade, negros ou
pardos, desempregos ou atuando em atividades de baixa qualificação profissional. O local
do homicídios é geralmente um bairro ou favela com intenso movimento do tráfico de drogas
3996
Anais do VIII Encontro da ANDHEP
ISSN: 2317-0255
e as motivações para o crime mais comuns são as dívidas de drogas, vinganças, conflitos e
desentendimentos subjetivos e brigas antigas. (Nunes; Paim, 2005).
O Mapa da Violência 2013: Homicídios e Juventude no Brasil traz que a morte não
natural e violenta de jovens – acidentes, homicídios e suicídios - aumentou 207,9% entre
1980 e 2011. Quando considerados apenas os números de homicídios, o crescimento chega
a 326,1%.
Número de óbitos segundo causa – População Jovem e Não Jovem
Fonte: SIM/SVS/MS - Adaptado do Mapa da Violência 2013
As pesquisas mais recentes mostram claramente o padrão que se repete nestas
mortes. A faixa etária mais propensa a ser vítima de homicídio é a de 15 a 24 anos. O
Estatuto da Juventude, promulgado em 2013, considera como jovens os indivíduos com
idade entre 12 e 29 anos, o que coloca a maioria das vítimas de mortes violentas no grupo
JOVENS.
A categoria Raça/Cor no Mapa da Violência tem dados a partir de 2002, ano em que
90% dos registros de homicídio passaram a ter essa categoria, anteriormente deficiente. Os
resultados demonstram uma acentuada queda no número de homicídios de brancos
(-26,4%) e uma crescente na categoria negros (30,6%), neste caso, somatório das
categorias preto e pardo. Essas mudanças já vem acontecendo há alguns anos, como é
possível observar na tabela a seguir, assim como a diferença entre o número de mortes de
negros e brancos. Em 2002 morriam 45,8% a mais de negros do que de brancos, em 2005
essa diferença sobe para 67,1%, em 2008 chega a 103,4% e em 2011 a diferença é de
153,4%, ou seja, para cada morte de brancos aconteciam três mortes de negros. Essa
diferença não se explica pela característica populacional brasileira.
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Evolução do número de homicídios, da participação e da vitimização por raça/cor das
vítimas na população total – Brasil 2002/2011
Fonte: SIM/SVS/MS – Mapa da Violência 2013
Estes número são ainda maiores quando separada a população Jovem. Os
homicídios de jovens brancos tem uma queda de 39,8%, enquanto o de jovens negros
aumenta 24,1%. Com esse diferencial de ritmos, a vitimização de jovens negros passa de
71,6% em 2002 para 237,4% em 2011, maior ainda que a pesada vitimização na população
total, que nesse ano foi de 153,4%.
Falando da questão de gênero, os homicídios de homens ainda representam a
esmagadora maioria, cerca de 92%. No entanto, o que as estatísticas mostram é que o
aumento das mortes de mulheres é quase duas vezes maior que a de homens.
O que tem sido notável nos últimos anos é um inversão do papel do jovem,
principalmente o negro, de classe baixa e morador de favelas, no quadro dos homicídios no
Brasil. A atenção da mídia e da sociedade se volta para esses sujeitos apenas quando são
cometedores do crime e, principalmente, quando este crime acontece em áreas mais
nobres.
As vítimas mais frequentes são invisibilizadas e as mortes contam apenas como
números nos relatórios finais da segurança pública. O historiados Pablo Mattos escreve no
fórum eletrônico Pambazuka News sobre essa invisibilidade e o estigma por trás de ser
negro e pobre no Brasil:
Ser “Favelado” e negro, no Brasil, representa uma dupla
estigmatização. Segundo o dicionário Aurélio, estigma significa
“cicatriz; marca; sinal; sinal infamante”. Estigmatizar era prática
3998
Anais do VIII Encontro da ANDHEP
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utilizada na Grécia Antiga e, naquela sociedade, estigmas eram
“sinais com os quais procurava evidenciar alguma coisa de
extraordinário ou mau sobre o status moral de quem os apresentava.
Os sinais eram feitos com cortes ou fogo no corpo e avisavam que o
portador era um escravo, criminoso ou traidor – uma pessoa
marcada, ritualmente poluída, que devia ser evitada, especialmente
em lugares públicos”. (MATTOS, 2013)
Percebendo que não apenas os crescentes índices de homicídios são um problema,
mas também a centralidade em um grupo, surge a necessidade e, por fim, a implantação de
políticas públicas que visam enfrentar esses números por meio da prevenção. Ações que
reconheçam e insiram o jovem na agenda pública, obrigando o Estado a garantir aos jovens
oportunidades para seu desenvolvimento integral, sempre observando e respeitando as
suas particularidades enquanto jovem, mas também os aspectos sociais, culturais e
econômicos de cada território. Um destes programas é o Fica Vivo!, do qual falo a seguir.
Fica Vivo!:
O programa de Controle de Homicídios Fica Vivo! é parte da Política de Prevenção à
Criminalidade do Governo de Minas Gerais. No ano de 2002, após pesquisa realizada pelo
Centro de Estudos de Criminalidade e Segurança Pública da Universidade Federal de Minas
Gerais (CRISP/UFMG), fica claro que os números de homicídios em Minas Gerais vinham
aumentando significativamente desde a década de 90, chegando a 856 homicídios apenas
em Belo Horizonte em 2002, e que o padrão já era o encontrado nas últimas pesquisas
nacionais, jovens negros, so sexo masculino, entre 15 e 29 anos. Muitos desses crimes
aconteciam entre jovens que morava no mesmo território ou muito próximos, e por algum
motivo eram rivais. Foi então proposta a criação de um programa de prevenção de
homicídios, e um dos maiores aglomerados de Belo Horizonte foi escolhido como projeto
piloto, o Morro das Pedras.
Já no primeiro ano de Projeto Piloto, o número de homicídios do Morro das Pedras
diminuiu 47%, e a circulação dos moradores pelas vilas do aglomerado voltou a acontecer.
Em 2003 então, o Projeto Controle de Homicídios foi institucionalizado pelo DecretoLei n.43.334, de 20 de maios de 2003, já com o nome escolhido pelos moradores do
território piloto, Fica Vivo!. Ele se torna então um dos programas componentes da Secretaria
de Defesa Social, a SEDS, criada em janeiro de 2003, composição que se deu via
Superintendência de Prevenção à Criminalidade. Além do Fica Vivo!, outros dois programas
faziam parte da SPEC naquele momento, O Programa de Reintegração Social do Egresso
3999
Anais do VIII Encontro da ANDHEP
ISSN: 2317-0255
do Sistema Prisional (PRESP) e a Central de Acompanhamento de Penas e Medidas
Alternativas (CEAPA). Estes dois últimos tem atuação municipal, diferentemente do Fica
Vivo e do Programa Mediação de Conflitos, incorporado a SPEC em 2005, que tem atuação
local, ou seja, em partes menores e delimitadas.
Desde o início o Programa foi estruturado sobre dois eixos da de atuação, a proteção
social e a intervenção estratégica.
O eixo da Proteção Social constitui-se do trabalho da equipe técnica e do trabalho
em rede com as outras instituições locais. Baseado nos dados encontrados na pesquisa do
CRISP ficou determinado que a faixa etária atendida seria de 12 a 24 anos. Existem várias
formas de atendimento aos jovens, as principais são:
- O atendimento psicossocial, realizado pela equipe técnica, normalmente formada por dois
técnicos de formação superior e dois estagiários. É também função do técnico capacitar,
orientar e supervisionar o trabalho do oficineiro, bem como discutir com o mesmo os
atendimentos realizados na oficina ou em outros espaços da região onde o Programa está
implantado.
- Projetos Locais que são planejados e executados duas vezes por ano de acordo com
alguma demanda da equipe técnica, da comunidade ou dos jovens atendidos em cada
região.
- Os projetos institucionais, ações encabeçadas pela diretoria do Programa e que envolvem
todos os centros de prevenção ao mesmo tempo. Hoje acontecem apenas as Olimpíadas,
evento que reúne as oficinas de esporte em competições.
Final do Futebol de Campo nas Olímpiadas do Fica Vivo em 2013
4000
Anais do VIII Encontro da ANDHEP
ISSN: 2317-0255
Final do Futebol de Campo nas Olímpiadas do Fica Vivo em 2013. Jovens do Palmital,
campeões no Estádio Independência.
- As oficinas, que são o “carro chefe” do Programa, uma vez que é onde acontece o maior
número de atendimentos e onde atuam os Oficineiros, pessoas que atuam ensinando algum
ofício mas, ao mesmo tempo, servindo de ponte para a aproximação da equipe técnica e da
rede com os jovens atendidos.
4001
Anais do VIII Encontro da ANDHEP
ISSN: 2317-0255
Número de oficinas no Programa Fica Vivo! – 2004 a 2014
Ano
Número de oficinas
2004
100
2005
210
2006
456
2007
548
2008
649
2009
-
2010
640
2011
664
2012
545
2013
535
2014
511
Fonte: Programa de Controle de Homicídios - Fica Vivo! – SEDS
As oficinas são implantadas em diferentes locais de cada território de abrangência,
de forma a suprir as demandas dos jovens e promover ou facilitar a circulação destes. A
metodologia do Programa Fica Vivo! de 2009 traz os objetivos específicos das oficinas no
programa, são eles:
Prevenir a criminalidade;
Promover e/ou facilitar a circulação dos jovens;
Potencializar o acesso dos jovens aos serviços e aos espaços públicos;
Garantir aos jovens o acesso ao esporte, lazer, cultura e formação profissional;
Possibilitar a vivência do direito de ir e vir;
Favorecer a inserção e a participação dos jovens em novas formas de grupos;
Trabalhar temas relacionados à cidadania e aos direitos humanos;
Possibilitar a criação de espaços de discussão e resolução de conflitos e rivalidades.
4002
Anais do VIII Encontro da ANDHEP
ISSN: 2317-0255
Oficina de Capoeira de um dos Centros de Prevenção se apresentando na Praça Raul
Soares, em Belo horizonte, um dos pontos turísticos e centrais da cidade.
O eixo da Intervenção Estratégica tem o objetivo de articular e promover a integração
dos órgãos do Sistema de Defesa Social e Justiça Criminal, é responsável pelos estudos
técnicos, inclusive os que subsidiam a chegada do Fica Vivo e a Implantação dos Centro de
Prevenção em cada território. Dentre as ações desse eixo destaca-se criação e
operacionalização de Grupos de Intervenção Estratégica.
Compõem esses Grupos de Intervenção Estratégica a Secretaria de Estado de
Defesa Social; a Polícia Militar, representada pelos Comandantes de Batalhão, os
Comandantes de Companhia e os Comandantes do Grupo Especializado em Patrulhamento
de Áreas de Risco, o GEPAR; a Polícia Civil, representada pelos delegados responsáveis
pelas Delegacias de Polícia, Tóxicos, Homicídios e Orientação da Criança e do Adolescente;
O Ministério Público, Promotorias Criminais, Tóxicos, Infância e Juventude e Combate ao
Crime Organizado; Judiciário, com Juízes Criminais, de Execução Criminal, da Infância e
adolescência e da Vara de Tóxicos.
A mesma Metodologia do Programa citada anteriormente traz também a função do
Grupo de Intervenções Estratégicas:
4003
Anais do VIII Encontro da ANDHEP
ISSN: 2317-0255
Promover a operacionalização de ações de repressão qualificada, através de
levantamento de inteligência policial e do modus operandi de alvos envolvidos com a
dinâmica criminal dos locais onde o Programa está implantado;
Proporcionar a integração dos órgãos de Defesa Social e Sistema de Justiça Criminal;
Fazer levantamento das gangues, identificando quem são seus membros, apresentando
organogramas com a ligação entre eles e delimitando o território de atuação das mesmas.
Isto com o objetivo de monitorar os frequentes enfrentamentos entre elas e a possibilidade
de revide quando ocorre homicídio provocado por disputa de poder ou território entre estes
grupos;
Identificar as demandas das instituições e encaminhar aos responsáveis fomentando uma
rede de co-responsabilização.
O Programa Fica Vivo! funciona nos territórios dentro de um equipamento chamado
de Centro de Prevenção à Criminalidade de base local, junto com o Mediação de Conflitos
(que só não está presente em um dos CPCs). Atualmente existem 43 CPCs, 31 de base
local, todos com a presença do Fica Vivo!, 11 de base municipal, onde funcionam o PRESP
e a CEAPA, e um CPC de base estadual, onde funciona o Programa de Enfrentamento ao
Tráfico de Pessoas, último programa incluído na Política de Prevenção em 2012.
Número de Jovens atendidos no Programa Fica Vivo! – 2004 a 2014
Ano
Número de jovens
2004
2.214
2005
4.814
2006
11.645
2007
13.293
2008
15.124
2009
13.620
2010
13.420
2011
13.586
2012
12.166
2013
11.445
2014
10.767 * até março
Fonte: Programa de Controle de Homicídios - Fica Vivo! – SEDS
4004
Anais do VIII Encontro da ANDHEP
ISSN: 2317-0255
O número de jovens atendidos contabiliza os números absoluto, ou seja, cada jovem
é contado individualmente, mesmo que participe de mais de uma oficina, seja atendido pela
equipe técnica e participe dos projetos locais e institucionais. Entre os anos de 2007 e 2011
foram registrados os maiores números de atendimentos, isso talvez seja reflexo da grande
quantidade de oficinas deste mesmo período. A média de jovens atendidos nos 10 anos
contabilizados é de 12.498 jovens por ano.
Os números de Atendimento são definidos à partir da quantidade de vezes que os
jovens acessam o programa, seja qual for a forma de atendimento. Até o mês de maio deste
anos, 1.557.785 atendimentos no total.
Número de atendimentos no Programa Fica Vivo! – 2004 a 2014
Ano
Número de atendimentos
2004
2.214
2005
24.646
2006
105.193
2007
181.191
2008
200.640
2009
228.439
2010
227.058
2011
195.140
2012
164.822
2013
195.916
2014
72.526 * até março
Fonte: Programa de Controle de Homicídios - Fica Vivo! – SEDS
Conclusão:
Os dados dos homicídios dos últimos anos deixam claro que, mais do que nunca, é
preciso ações e atitudes para mudar a situação dos jovens no Brasil. O prefácio do Mapa da
Violência 2013, escrito pela secretária nacional de juventude, Severine Carmem Macedo,
diz:
4005
Anais do VIII Encontro da ANDHEP
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Por essa razão, os homicídios de jovens representam uma questão
nacional de saúde pública, além de grave violação aos direitos
humanos, refletindo-se no sofrimento silencioso insuperável de
milhares de mãe, pais, irmãos e comunidades. A violência impede
que parte significativa dos jovens brasileiros usufrua dos avanços
sociais e econômicos alcançados na última década e revela um
inesgotável potencial de talentos perdidos para o desenvolvimento
do País. (MACEDO apud WAISELFISZ, 2013)
Somado a isso, ainda existe invisibilidade, ou melhor, a visibilidade momentânea e
focada apenas nos momentos em que esses jovens, negros e de baixa renda, são
causadores das violências. No último ano cresceu ainda mais as discussões sobre a
diminuição da maioridade penal, impulsionada por uma mídia que só mostra estes jovens no
delito.
As políticas de prevenção à criminalidade, sobretudo o Programa Fica Vivo!, que foi
apresentado, demonstram ser estratégias efetivas para a diminuição das mortes violentas
entre jovens.
Esse tipo de política atua em conformidade com diversos direitos, como a
Declaração Universal dos Direitos Humanos, que já no Artigo I diz: “Todas as pessoas
nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotadas de razão e consciência e
devem agir em relação umas às outras com espírito de fraternidade.”
E no Artigo III salienta que: “Toda pessoa tem direito à vida, à liberdade e à
segurança pessoal.”
A Constituição Federal de 1988, no artigo 227, diz:
É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança,
ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida,
à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à
cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar
e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de
negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e
opressão.
O Estatuto da Criança e do Adolescente, criado em 1990 já para enfrentar o grande
número de mortes de crianças e adolescente, no artigo 7º diz:
A criança e o adolescente têm direito a proteção à vida e à saúde,
mediante a efetivação de políticas sociais públicas que permitam o
nascimento e o desenvolvimento sadio e harmonioso, em condições
dignas de existência.
O Estatuto da Juventude foi instituído em 2013 com o objetivo de dispor sobre os
direitos dos jovens entre 15 e 29 anos, e sobre as principais diretrizes das políticas públicas
4006
Anais do VIII Encontro da ANDHEP
ISSN: 2317-0255
de juventude, nos artigos 37 e 38 fala sobre os direitos à segurança pública e acesso à
justiça:
Art. 37. Todos os jovens têm direito de viver em um ambiente seguro, sem violência,
com garantia da sua incolumidade física e mental, sendo-lhes asseguradas a igualdade de
oportunidades e facilidades para seu aperfeiçoamento intelectual, cultural e social.
Art. 38. As políticas de segurança pública voltadas para os jovens deverão articular
ações da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios e ações não
governamentais, tendo por diretrizes:
I - a integração com as demais políticas voltadas à juventude;
II - a prevenção e enfrentamento da violência;
III - a promoção de estudos e pesquisas e a obtenção de estatísticas e informações
relevantes para subsidiar as ações de segurança pública e permitir a avaliação periódica
dos impactos das políticas públicas quanto às causas, às consequências e à frequência da
violência contra os jovens;
IV - a priorização de ações voltadas para os jovens em situação de risco,
vulnerabilidade social e egressos do sistema penitenciário nacional;
V - a promoção do acesso efetivo dos jovens à Defensoria Pública, considerando as
especificidades da condição juvenil; e
VI - a promoção do efetivo acesso dos jovens com deficiência à justiça em igualdade
de condições com as demais pessoas, inclusive mediante a provisão de adaptações
processuais adequadas a sua idade.
Mesmo representando um grande avanço para a prevenção e a diminuição dos
homicídios de jovens no estado de Minas Gerais, o Fica Vivo! Ainda tem muito que
caminhar. Por ser um programa novo em se tratando de segurança pública, é compreensível
que ainda esbarre em muita desconfiança e até mesmo algum desprezo. Os altos números
de atendimento, no entanto, demonstram uma boa aceitação do programa no territórios, e
uma legitimidade por parte das comunidades.
4007
Anais do VIII Encontro da ANDHEP
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A PEDAGOGIA DO SOFRIMENTO E A CONSTRUÇÃO DO
ETHOS GUERREIRO: Uma discussão sobre Segurança
Pública e Direitos Humanos
Fábio Gomes de França
Universidade Federal da Paraíba
Introdução
Após a retomada da democracia em nosso país a formação dos policiais militares
passou a ser tema não só nos debates acadêmicos, mas também motivo de preocupação
por parte de professores e militantes de Direitos Humanos. Isso se deveu ao fato de que se
passou a considerar que existe uma correlação entre o modelo formativo nas PM’s advindo
da cultura herdada do Exército e a violência praticada pelos policiais nas ruas no contato
com a sociedade, a qual passa a ser vítima do ideal belicista construído durante o processo
pedagógico policial militar.
Assim, para entender e mostrar a origem desse ethos guerreiro na formação policial
militar primeiramente remetemo-nos a Elias e sua análise sobre a sociedade alemã do
período bismarckiano, a qual se estruturou historicamente com base na valorização de
ideais belicistas em detrimento de valores considerados humanitários.
Em sequência, destacamos as peculiaridades do culto da virilidade nas instituições
PM’s como forma de construir de “corpo e alma” um policial militar. Nesse momento,
enfatizar-se-á a importância das relações de gênero no ambiente das casernas com
predominância do “ser homem” como elemento identitário a partir da corporeidade e de
valores morais vinculados à profissão policial militar.
Por fim, descreveremos a semana zero do CFO e como a mesma vincula-se ao que
chamamos de pedagogia do sofrimento, a qual se torna imprescindível para a interiorização
e desenvolvimento do ethos guerreiro por parte dos alunos policiais. Esse fato nos levou a
concluir, com base em nossas observações, que existe um paradoxo entre a valorização
dessa pedagogia do sofrimento por parte dos policiais militares e a resistência na
publicização desse processo, o que deve ser problematizado para pensarmos numa relação
entre a formação de agentes de Segurança Pública e Direitos Humanos.
O ethos guerreiro e a formação para o combate
A história nos revela diversos momentos (a Segunda Guerra seria um deles) nos
quais a lógica militarista e belicista estiveram unidas para propiciar a ausência de valores
humanos que possam garantir o exercício de princípios como o respeito recíproco entre as
pessoas e o exercício da dignidade e da liberdade. Nesse contexto, a sociedade alemã
tornou-se referência para observarmos o quanto a eclosão de valores voltados para a guerra
precisam de um processo de construção e formação históricos a partir dos quais gerações
de indivíduos são preparadas para seguirem ideologias que reforçam a luta em nome de
ideais como o progresso e um Estado forte. Em sua obra “Os alemães” (1997), Elias analisa
um período histórico da sociedade alemã – o segundo império alemão entre 1871 e 1918 –
que serviu para preparar toda a sociedade alemã para incorporar um padrão social que tinha
nas classes cortesã-aristocráticas e, principalmente militares, o seu modelo mais distinto de
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superioridade. Para tanto, teve papel destacado nesse processo as confrarias estudantis
duelistas que, por serem associações de jovens estudantes, foram locais importantes para a
introjeção de características próprias ao universo militar.
O treinamento da corporação e das confrarias nacionalistas era muito mais
dirigido para a formação de uma personalidade dependente em grande
parte, para o controle de seus impulsos ou controle por outras pessoas. A
autonomia da consciência individual era limitada. Numa palavra, a
sociedade estava estruturada de tal modo, que em cada pessoa criada
dentro dela era produzida a necessidade de uma sociedade dessa espécie.
A autoridade da consciência individual dependia das diretrizes que lhe eram
fornecidas por essa sociedade. A formação de consciência plasmada em
pessoas pelo treinamento de caráter nas confrarias mostra, portanto, uma
estreita afinidade com a de oficiais, que também estavam submetidos a uma
hierarquia de comando e obediência desde o começo (ELIAS, 1997, p. 9596).
Nesse período da história do povo alemão “a educação preparava as pessoas para
uma sociedade com pronunciadas desigualdades hierárquicas, onde uma pessoa que era
superior em qualquer momento dado comportava-se como se fosse uma pessoa superior e
melhor o tempo todo” (Ibidem, p. 100-101). Nesse direcionamento, percebe-se que o habitus
guerreiro influenciou uma dupla condição em que o autocontrole e a coação externa
andaram juntos para estruturar as relações sociais. Dessa forma, essa sociedade de
influência militarizada privou seu povo de um contexto de relações mais humanitárias.
Nessa sociedade, na qual os grupos cortesão-aristocráticos deviam a
continuação de sua supremacia à vitória na guerra, as formas militares de
comportamento e sentimento desempenharam papel de destaque.
Usualmente, não havia reflexão adicional sobre as concepções das relações
entre seres humanos incorporadas ao quadro de regras desses estratos e
ao modo como as pessoas, por conseguinte, se comportavam em seu
relacionamento mútuo. A sociedade exige submissão incondicional às
regras do código. As transgressões são punidas, inexoravelmente, e sem
piedade (Ibidem, p. 109).
Esse processo de incorporação de um ethos militarista se consolidou ainda mais
quando a classe burguesa passou a ser reconhecida pelas classes superiores da sociedade
alemã, pois, com essa aproximação, todos os segmentos sociais passavam a entrar na
lógica de um povo fortalecido pelos ideais da força, da violência, da obediência e da
hierarquia.
A inclusão de um crescente número de estudantes burgueses como
membros quer de confrarias nacionalistas, quer de corporações duelistas,
mostra em poucas palavras a diferença entre a classe média educada do
século XVIII, a qual estava largamente excluída do establishment e da boa
sociedade do tempo, e a classe média do final do século XIX que
participava do establishment e da boa sociedade (Ibidem, p. 112).
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Nessa conjuntura histórica, em que, segundo Elias (1997), a honra era componente
fundamental em detrimento de questões morais que norteassem parâmetros humanizadores
de convivência, a sociedade alemã do final do século XIX e início do século XX serve de
exemplo para percebermos como o autodisciplinamento é um elemento fundamental de
aceitação aos padrões sociais vigentes que, nesse caso, gerou um modelo de convivência
em que “problemas de humanidade e identificação mútua entre pessoas desapareceram de
vista, e esses antigos ideais eram geralmente desprezados como fraquezas de classes
socialmente inferiores (Ibidem, p. 112). É por essa perspectiva histórica que também
observamos fenômeno semelhante nas Polícias Militares em nosso país. Mas no caso
dessas instituições, como se consolida o ethos guerreiro?
A modelação corporal e o ideal de virilidade nas polícias militares
O processo de socialização próprio às escolas policiais militares em nosso país é um
modelo formativo herdado dos moldes organizacionais do Exército. Desse modo, o que
temos nesse princípio pedagógico é um processo eivado por relações de gênero onde
prevalece “a fabricação dos machos” (FALCONNET & LEFAUCHEUR, 1977), onde o “ser
homem” diz respeito a atributos específicos que emergem da competição própria entre os
machos. Para se ter uma vida de homem deve-se seguir o mundo simbólico de estar
sempre pronto a guerrear, a utilizar-se de armas e de lutar com afinco pelo poder. A
“virilidade” é algo estreitamente relacionada aos militares e, como a hierarquia é um
princípio basilar da vida da caserna, os homens “gostam de ganhar, de dominar, e não
questionam a hierarquia social quando esta joga em seu benefício. Não procuram escapar
às relações de domínio senão quando estas lhes são desfavoráveis” (FALCONNET;
LEFAUCHEUR, 1977, p. 57). Nesse contexto, o sistema militar demonstra como se
configuram as relações sociais de domínio e como essas são fortalecidas pelo
reconhecimento de que atividades sem sentido podem ganhar importância para provar o
exercício da autoridade:
Os depoimentos sobre os estágios-comando do exército francês e os
métodos ali utilizados para acertar os passos dos jovens soldados o
confirmam: medir um pátio de caserna com um fósforo não parece uma
atividade indispensável à sobrevivência da espécie ou ao bom desempenho
da economia, mas é sempre um recurso para obrigar ao reconhecimento da
autoridade e das relações de domínio (Ibidem, p. 59).
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Para Falconnet e Lefaucheur (1977), exércitos e polícias usam de elementos como a
força e a violência para incutir o papel de virilidade aos rapazes que incorporam nessas
instituições, o que acaba por fortalecer a ideologia dominadora dos homens. Loriga (1996)
também contribui para ampliar essa visão ao analisar a inserção dos jovens na experiência
militar nos nascentes exércitos europeus que surgiram com a dissolução do Ancien Régime,
já que nesse período eram admitidos além de homens jovens, adultos e velhos. Com o
recrutamento obrigatório a partir de fins do século XVIII que estipulou a conscrição entre os
20 e 25 anos, a virilidade masculina passou a ser um componente norteador do “espírito
militar” e ela era buscada nas formas de educar os soldados física e moralmente. Essa
educação para a virilidade baseada no recrutamento para o combate adquiriu ritualidade
existencial e, o campo de guerra tornou-se local de prova sexual, por sancionar a inserção
dos jovens na fase viril de suas vidas.
No tocante à realidade das Polícias Militares brasileiras, acrescentamos que um
exemplo par excellence na construção dessa identidade masculina pode ser vista no
constante exercício dos corpos nos cursos de formação. Para além das atividades físicas
que fazem parte do currículo, alguns ritos informais aceitos e defendidos pela cultura
militarista como as flexões de braço, que no seio policial militar é comumente chamado de
“pagar”, acompanha os alunos em todos os momentos e lugares. Isso implica dizer que,
caso um superior hierárquico ordene ao aluno que ele “pague”, não importando o local ou
circunstância, ele terá que cumprir a “missão”. Essa situação acontece em muitos casos
quando um superior hierárquico ou aluno precedente1 se utiliza desse recurso corporal que
exige um certo esforço físico, e até mesmo psicológico, para fazer o subordinado ser
retaliado por algo que fez de errado, ou ainda pode acontecer em situações que servem
para destacar o brio, a força, o vigor, o orgulho pelo fato de ser um policial militar. As
“pagações” podem ser individuais ou em grupos sempre com um superior à frente
ordenando o exercício.
1
Entre os alunos do Curso de Formação de Oficiais, o qual funciona durante um período de três
anos, o que existe entre eles é a precedência hierárquica, ou melhor, o aluno do 3º Ano, que está
prestes a concluir o curso e se formar deve ser obedecido pelos alunos do 2º e 1º Ano, assim como
os do 1º obedecem aos do 2º. Nesse caso, se diz que os alunos precedentes são mais antigos em
relação aos seus inferiores de anos anteriores, os quais são chamados de mais modernos. A mesma
lógica funciona entre alunos de outros cursos como o de soldados e sargentos, onde os últimos em
contato com aqueles podem prescrever-lhes ordens. Além disso, esse tipo de classificação
hierárquica acompanha os policiais militares durante toda a permanência na instituição, desde o
ingresso até a ida à reforma (aposentadoria), em todos os postos e graduações.
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FIGURAS 1(Esquerda) e 2 (Direita): Cadetes “pagam” flexão durante a semana zero.
FONTE: Arquivos do autor (2013).
Para Oliveira (2010a), o que está em jogo é a visão que se cria em relação ao corpo
pela sociedade e, em particular, pelos policiais militares, pois, para os últimos, é algo
corriqueiro a assertiva que se traduz num corpo que “quanto mais malhado e forte, mais
disposição o possuidor deste demonstra ter para enfrentar a criminalidade. Nesse sentido, é
comum a associação entre o corpo e um ideal de masculinidade comum à instituição
policial” (OLIVEIRA, 2010a, p. 2). Ainda alude o mesmo autor para o fato de que “para
muitos policiais, um corpo malhado é um ideal que precisa ser atingido através de um duro
trabalho. Por outro lado, o corpo malhado mostra a classe social dos indivíduos” (Ibidem, p.
2). Está-se a falar de um corpo, pois, que paradoxalmente se encontra entre uma condição
atrelada à natureza humana e, ao mesmo tempo, é resultado de uma construção social.
Essa realidade na construção corporal dos policiais militares como mecanismo de distinção
nos remete a Wacquant (2002) quando o mesmo etnografou uma Academia de boxe e
constatou que, sobre o fato de se tornar um boxeador ocorre uma imbricação entre práticas
corporais e disposições mentais que conforma um modelo adequado às exigências do
campo, no sentido bourdieusiano, de modo que “o salão de boxe é o vetor de uma
desbanalização da vida cotidiana, porque ele faz da rotina e da remodelagem corporal o
meio de acesso a um universo distintivo, em que se misturam aventura, honra masculina e
prestígio” (WACQUANT, 2002, p. 32, grifos do autor). E ainda se estabelecem similitudes
entre o mundo policial militar e o universo pugilístico quando os próprios boxeadores
acreditam que a Academia de boxe funciona como uma instituição quase total, à
semelhança do Exército, já que, o que se pretende no treinamento é “regulamentar toda a
existência do boxeador – seu uso do tempo e do espaço, a gestão de seu corpo, seu estado
de espírito e seus desejos” (Ibidem, p. 75).
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FIGURAS 3 (Esquerda) e 4 (Direita): Atividades durante a semana zero. Alunos policiais militares
pagam flexão com roupas civis e um outro aluno rasteja durante exercício à noite.
FONTE: Arquivos do autor (2013).
Essa construção da virilidade masculina atrelada a uma cultura militarista encontra
nas Polícias Militares terreno fecundo para concretizar-se e, pelo fato das instituições
policiais militares reforçarem a crença dos valores masculinos, a violência policial então
surge como um valor intrínseco a esse “estilo de masculinidade” (OLIVEIRA, 2010a). Nesse
âmbito descortina-se, a partir de um saber prático adquirido nas ruas, e orientado pelo
senso de distinção aprendido durante as fases iniciais de inserção no mundo policial militar,
um olhar por parte dos policiais militares em relação à sociedade e aos diversos segmentos
que a compõem, num tipo de relação baseada
Na “lógica da desconfiança” e da “confiança” comum em ambos os lados. É
comum os policiais identificarem corpos de traficantes a partir de
características ligados aos estilos juvenis de masculinidade das classes
populares. Nesse sentido, os policiais normalmente abordam homens
negros que estejam com os cabelos pintados de loiro A princípio essas
associações não têm nenhuma razão para o leigo, mas no “saber das ruas”
elementos que a priori não tem nada em comum, ganham significados
diferentes e assim um sentido especial que é utilizado para classificar o
público, as coisas, os gestos, as ações, enfim, a sociedade (OLIVEIRA,
2010a, p. 5).
No que concerne às questões de gênero, as relações intra corporis também fazem
parte do arcabouço cultural construído para legitimar o ethos guerreiro. O que ocorre na
construção desse imaginário é que, além da estigmatização para com as mulheres no que
concerne ao desempenho do serviço ordinário nas ruas, para as mesmas destacarem-se
como “policiais de verdade”, ou devem adotar posturas masculinizadas no seio dos ritos
cotidianos inerentes ao uso de símbolos e posturas corporais exigidos pelo disciplinamento
militar, ou devem agir nas ruas para conquistar espaço entre os homens como policiais
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operacionais, ou seja, imitando o ethos guerreiro para o combate tão enaltecido pelos
policiais masculinos. Ou melhor,
O universo da APM2 é representado como um espaço social essencialmente
masculino, no qual a mulher eventualmente sobrevive. Esta percepção tem
gerado algumas estratégias de comportamento por parte das cadetes
femininas, como a de tentar apresentar as mesmas expressões marciais
com as quais o cadete masculino é representado. Isso se torna mais fácil de
3
observar, à medida que a FEM se apresenta com trejeitos masculinos,
como, por exemplo, a impostação grave da voz, a prestação automática da
continência, enfim, com atitudes viris exigidas pelo militarismo. Esses fatos
contrariavam “outros objetivos” que orientaram o ingresso das mulheres nas
PMs brasileiras, “o de modernizar as PMs e ‘humanizar’ sua imagem social,
fortemente marcada pelo envolvimento com a ditadura” (SILVA, 2011, p.
164-165).
Por esse viés, segundo Bourdieu (2002), o exercício da “coragem”, exigido e
aplicado pelas forças armadas ou pelas polícias, legitima-se de forma contraditória no medo
que existe para não se perder a estima ou a consideração do grupo, o que pode
negativamente suscitar o reconhecimento por uma atitude de ordem feminina, como
categorias que remetem a “fracos”, “delicados”, “mulherzinhas” ou “veados”. Nesse
entendimento, “o trabalho da polícia é guiado por uma ética interna que valoriza aspectos da
masculinidade e atitudes sexistas com o lugar diminuto das mulheres, não só do ponto de
vista numérico, mas também simbólico” (SOUZA, 2012, p. 220). Em meio ao enaltecimento
de uma cultura de valorização da virilidade, vejamos como o sofrimento surge como outra
característica importante na formação PM para a consolidação do ethos guerreiro, pois,
como nos diz Bertaud (2013) sobre se conseguir um “brevê de virilidade militar”, “os
recrutados não o obtêm senão após um rude aprendizado em que não faltam nem os
sofrimentos físicos nem as dores morais. Os ritos de passagem aos quais são submetidos
transformam seu corpo e marcam para sempre seu espírito” (p. 80).
A “semana zero” e a pedagogia do sofrimento
A semana zero trata-se do primeiro momento, ou melhor, do primeiro contato dos
alunos recém-incorporados em instituições de pedagogias baseadas em princípios
militaristas. Nesse sentido, essa semana inicial de contato dos neófitos com os ambientes
de uma caserna faz parte de um rito de passagem, o qual se consolida como um estado de
mudança a realizar-se a partir de três fases: a separação, a margem ou “limem” e
agregação (VAN GENNEP 2011). Na primeira fase o indivíduo afasta-se do mundo no qual
2
Academia de Polícia Militar.
Forma abreviada de feminino e expressão comum para os policiais militares se referirem às
mulheres policiais.
3
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até então vivera, o que pode ser compreendido como o início de uma “morte social”. Na fase
liminar, o indivíduo passa a ocupar uma posição de transição, que serve de preparação para
ele ser agregado no novo mundo que o espera e que constitui a terceira fase. Nos termos de
Berger (2012), estaríamos a falar de uma “alternação” e, para Goffman (2007), ao relatar a
chegada de novatos no que ele chama de instituições totais, o que ocorre é uma
“mortificação do eu”. Devido às características que apresentam Silva (2002) considera que
os quartéis de formação para policiais militares se tratam de instituições totais.
O que passa a acontecer em específico com os alunos policiais militares assim que
passam a vivenciar o cotidiano da formação profissional é uma reconstrução identitária ou
“socialização secundária” (BERGER; LUCKMANN, 1985) que visa à aprendizagem de um
novo habitus (BOURDIEU, 2001, 2007, 2009), cuja interiorização se consolida de “corpo e
alma” (ROSA & BRITO, 2010; WACQUANT, 2002) de forma a naturalizar comportamentos
que se exteriorizam para consolidar o “ser militar”. Como relata Foucault (1987), o soldado é
algo que se fabrica e, no início de sua moldagem a partir da semana zero, pode-se perceber
que essa, enquanto uma fase liminar trata-se de um “processo ritual” (TURNER, 1974) no
qual os indivíduos
Como seres liminares, não possuem “status”, propriedade, insígnias, roupa
mundana indicativa de classe ou papel social, nada que as possa distinguir
de seus colegas neófitos ou em processo de iniciação. Seu comportamento
é normalmente passivo e humilde. A liminaridade implica que o alto não
poderia ser alto sem que o baixo existisse. Outras características são a
submissão e o silêncio. Os ordálios e humilhações, com freqüência de
caráter grosseiramente fisiológico, a que os neófitos são submetidos,
representam em parte a destruição de uma condição anterior e, em parte, a
têmpera da essência deles, a fim de prepará-los para enfrentar as novas
responsabilidades e refreá-los de antemão, para não abusarem de seus
novos privilégios (p. 117-127).
Ainda para Turner (1974), na fase liminar os indivíduos agrupam-se em uma
“communitas”, onde a ausência de hierarquia coloca os neófitos em posições igualitárias,
em oposição às condições hierárquicas encontradas em determinadas estruturas sociais
nas quais eles estão acostumados a conviver como a família, escola, enfim. Só que, “a
“communitas” em pouco tempo se transforma em estrutura, na qual as livres relações entre
os indivíduos convertem-se em relações, governadas por normas, entre pessoas sociais”
(Ibidem, p. 161). A relação dialética entre estrutura social e a “communitas” enquanto uma
anti-estrutura, acaba por fim por fortalecer a primeira revigorando os padrões existentes e
compartilhados pela coletividade, assim como demonstrou Storani (2008) ao estudar o
processo de formação dos policiais do Curso de Operações Especiais do BOPE do Rio de
Janeiro. Ao considerarmos o grupo de alunos da semana zero do CFO como uma
“communitas”, como nos ensina Turner (1974), estamos a também dizer que esta semana
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comum às formações policiais militares trata-se de um “ritual de elevação de ‘status’”, o que
Goffman (2007) interpreta como sendo as “boas vindas” nas instituições totais. Essa
semana de adaptação, pois, estabelece um “vínculo ritual” (KOURY, 2006) entre os
pleiteantes a futuros cadetes4 da PM, já que na semana-zero passam a ser chamados de
aluno zero-ano e, segundo as palavras de um dos coordenadores do CFO quando da
apresentação aos novatos no primeiro dia, essa semana serve para “adaptar à rotina
militar”.
E foi com a proposta de adaptação ao novo mundo da PM que a semana zero
iniciou-se no dia cinco de maio do ano de dois mil e treze e perdurou por nove dias. Era
domingo. Em meio à ansiedade dos novatos por não saber o que os esperava e por outro
lado, à vontade do 3º ano em querer demonstrar o que prepararam para os novatos,
aconteceu a apresentação à noite, já que estava marcada para as vinte horas. Chegavam
muitos carros com os familiares que traziam os novos cadetes. Todos os alunos que
chegavam passavam a esperar numa sala de aula e colocavam o enxoval5 num alojamento
separado para eles (com homens e mulheres em lugares apartados). O primeiro ato dos
novatos foi, após o encontro com os coordenadores e alunos do 3º ano, fazer a conferência
do material que foi pedido a todos. Foi explicado ao aluno zero-um6 para o mesmo
“conduzir” os demais para a conferência do material na garagem. Dos trinta novatos, metade
deles já tinha experiências militares, tanto na PM como nas Forças Armadas. Foi ordenado
que os novatos fizessem um círculo para a conferência do material. A partir daí, a pressão
constante por parte dos cadetes do 3º ano começou a ser exercida. Foi dito por um dos
cadetes do 3º ano que “se não consegue levantar o caderno, imagina uma arma”. Os
objetos eram levantados e permaneciam assim até que fosse mandado pegar outro objeto e
baixar o braço. Tudo acontecia com muita gritaria, de forma ininterrupta, por parte dos
alunos do 3º ano.
Um apito vez ou outra era acionado pelos coordenadores para indicar pressa aos
alunos. As luzes da garagem foram apagadas para que os alunos usassem a lanterna.
Soltou-se uma bomba no escuro. Logo após, foi feito um exercício em que foram dados dois
minutos, no escuro, para todos ajeitarem o material. Depois que alguns itens foram deixados
para trás, os cadetes determinaram aos novatos que conferissem pra saber a quem
pertencia o material esquecido na garagem. Conversando com um cadete do 3º ano ele
confidenciou-me: “na minha época o Capitão C...... me dizia: você é um inútil. Eu tinha
4
Cadete e aluno são formas similares de denominar os participantes do CFO.
Trata-se de um conjunto de materiais desde objetos de uso escolar a produtos de limpeza e
acessórios para higiene pessoal, além de roupas como o bichoforme que é o uniforme usado pelos
novatos antes de receberem o fardamento policial militar. Para uma descrição do bichoforme ver
França (2012).
6
Primeiro colocado no Concurso vestibular, que foi a forma de entrada para o CFO.
5
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vontade de dar um murro nele”. As atividades prosseguiram até chegar a hora de organizar
os armários nos alojamentos. Faltavam cinco minutos para a meia-noite. Os cadetes do 3º
ano faziam pressão psicológica a todo o tempo para que os novatos apressassem a
arrumação. A pressão no aluno zero-um era maior que em relação aos demais. Os alunos
foram ordenados a sair do alojamento sob a gritaria dos cadetes. A euforia era notória.
Depois fui até o alojamento feminino e, minha presença não foi questionada. Uma das
novatas teve problemas para abrir o cadeado. O nervosismo era tanto que nenhuma das
outras ouviu o pedido de ajuda dela.
Na próxima atividade, já no início da madrugada, cada novato era testado como
“xerife”.7 Todos pagavam flexão toda vez que erravam exercícios de ordem unida como
colocar em forma8 os alunos na posição de sentido e descansar. Numa situação, uma
cadete do 3º ano diz que um dos novatos “parece uma mocinha” porque gritava baixo ao
pedir para entrar em forma. Dois alunos foram colocados de frente à tropa porque estavam
com o par de tênis que usavam branco ao invés do preto que foi a cor estipulada para todos
e que constava do enxoval. As bombas eram frequentes para criar um clima de pressão
psicológica. Os cadetes tiveram a ideia de “infiltrar” um cadete do 3º ano entre os novatos.
De início não desconfiei, mas uma cadete do 3º ano depois me confidenciou. Num instante
em que ele encontrava-se sozinho perguntei sobre sua percepção em relação aos novatos e
ele disse-me que “alguns deles estavam tremendo e o zero-um estava muito agitado”. Um
outro cadete do 3º ano falou-me que um dos novatos era amigo do seu irmão e, segundo
ele, “o coração dele estava a 120 por hora”.
Muitas das situações criadas pelos cadetes se pautavam em brincadeiras e chacotas
com os novatos. A posição comum dos alunos novatos esperarem os demais atrasados
quando no desempenho de alguma atividade era a de flexão.
Um dos coordenadores
passou a chamar os novatos individualmente dentro do alojamento para confiscar objetos
pessoais, especialmente os aparelhos celulares, para que eles cortassem em definitivo o
contato com o mundo externo. Às duas horas da madrugada, os alunos encontram-se na
garagem, em forma, com os cadetes ainda fazendo pressão. Frases são ditas: “segura a
moral, não dá pra morrer não”. Para um dos coordenadores, o novato que não conseguisse
completar a série de flexão deveria gritar: “Eu sou um morto!”. As atividades se findaram
pelas quatro horas da manhã da segunda-feira.
7
Para melhor entender a função de xerife ver França (2012).
Estar em forma é o mesmo que estar em um dispositivo (tropa) em que os alunos ficam dispostos
em colunas e linhas geralmente num formato retangular, obedecendo distâncias iguais uns dos outros
podendo estar na posição de sentido ou descansar – imóveis – ou à vontade, quando podem se
mexer mas sem deixar o lugar que ocupam.
8
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FIGURAS 5 (Esquerda) e 6 (Direita): Durante a semana zero, os alunos doentes (“baixados”) são
motivo de brincadeiras por parte de alunos mais antigos e coordenadores. Em um desses momentos,
é jogada água na cabeça de uma aluna como justificativa para testar sua concentração.
FONTE: arquivos do autor (2013).
Todas as situações citadas anteriormente, durante o restante da semana zero
repetiram-se, variando as formas das atividades, mas sempre com muita pressão
psicológica por parte dos cadetes do 3º ano, num resumo de gritaria com explícitas
humilhações verbais. Trata-se, na verdade, do que eles denominam de “muído”. Com a
intenção de entender o significado do muído, perguntei a diversos cadetes sobre o que era o
muído ou qual seria sua finalidade, o que muitos me responderam “nenhuma”, “Não tem
objetivo, é o muído pelo muído”, “Pra nada!” “É tradição, tem de manter”. E foi para cumprir
a tradição que o coordenador falou na madrugada do segundo dia: “Ontem não foi nada, o
muído é hoje!”. E tal muído se traduziu, por exemplo, em molhar os alunos com água gelada
estando todos passíveis e imóveis, além de receberem gritos efusivos e “pagarem” flexões.
Ao chegar ao Centro de Educação9 todos os dias eu geralmente perguntava quais seriam as
atividades programadas para aquele dia e eu obtinha como resposta que, à noite, haverá
“teste de reação”, ou seja, o “muído”.
Durante toda a semana, o muído caracterizou a semana zero sempre ocorrendo à
noite, especialmente pela madrugada. Durante o dia e no início da noite aconteciam muitos
exercícios militares de ordem unida e atividades outras como aprender hinos (nacional, da
Paraíba) e canções militares. Apreendemos também, em outra situação, no terceiro dia, o
que poderíamos considerar como sendo um “muído psicológico”, pois, foi passado um filme
que, na opinião dos cadetes do 3º ano deveria ser chato, mostrado à noite, “para testar a
atenção dos alunos”. Essa atividade foi desenvolvida após um dia exaustivo e era proibido a
todos de dormir na sala de aula durante o filme, já que depois foi pedido um resumo do
filme.
9
Quartel de formação da Polícia militar paraibana.
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Muitas das ações dos cadetes do 3º ano em relação aos novatos se configuram em
fazê-los crer que coisas sem sentido são carregadas de valores positivos como
responsabilidade e respeito à hierarquia e disciplina. No segundo dia, por exemplo, o
“cadete de dia”, no rancho, colocou sua “boina”10 à vista, como se esse objeto fosse um
superior hierárquico e mandou que os novatos ao “saírem do recinto” pedissem permissão à
boina. Enquanto um novato se “apresentava” para a boina, os demais olhavam desconfiados
e apreensivos a cada apresentação. Quem errava na forma de se apresentar voltava para o
final da fila. Castro (2004, p. 31) relata fato semelhante em sua etnografia na AMAN quando
nos conta que “o bicho pode também ter que ficar contando piadas para uma estátua até ela
rir”. No conjunto dessas perspectivas tem-se que,
A relação entre equipe dirigente e internos é marcada por hostilidades e
humilhações que culminam na mortificação do self, sobretudo nos primeiros
dias do interno, isto é, durante o período de adaptação. A equipe dirigente
faz uso da hierarquia e da disciplina, de forma legítima ou não, para
construir uma nova identidade em seus internos. Esta nova identidade é
marcada pela obediência e pelo culto do subordinado ao superior. Nesse
processo de construção da identidade policial militar a equipe dirigente
recorre e até mesmo ultrapassa os regulamentos e normas da Polícia
Militar. A posição ocupada na escala hierárquica pode ser um fator decisivo
para que uma determinada ordem seja cumprida, mesmo contrariando os
estatutos e regimentos internos da corporação (SILVA, 2002, p. 16).
Entre os objetivos finais dessa “pedagogia do controle” (FRANÇA, 2012), destaco o
que observei em uma das “instruções” ministradas no sexto dia pelos cadetes do 3º ano. A
aula tinha como foco o conhecimento dos símbolos nacionais e a importância das
instituições. Foi demonstrado o conceito de pátria e de instituições, sendo essas últimas
“organizadas sob a forma de regras e normas”. Foi mostrada a importância da religião, da
família, da política enquanto democracia e das instituições militares, além das instituições
econômicas: propriedade privada e livre iniciativa. Um dos cadetes do 3º ano falou que os
símbolos nacionais estão carregados de emoção e amor. Vários novatos mostravam estar
com sono e pediam para ficar de pé no fundo da sala. Um deles me confidenciou que da
madrugada da quinta para a sexta eles não dormiram.
Por fim, no penúltimo dia, em contato com o Major Comandante da Academia onde
são formados os cadetes, os novatos ouviram das palavras daquele que “vocês estão mais
fortes”. Além disso, ele afirmou: “se respeitem, se ajudem, aproveitem esse espírito de
corpo”. Disse ele: “já são vencedores, já chegaram aqui vencedores”. Tais palavras se
juntam àquelas proferidas pelo Comandante do Centro de Educação quando o mesmo
recepcionou os familiares dos novatos que, no último dia da semana zero, pela manhã,
aguardavam os mesmos voltarem do batismo, que foi feito com um banho de mar pela
10
Cobertura utilizada na cabeça pelos policiais militares.
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madrugada e após passariam por um teste físico final quando chegassem ao quartel. Os
familiares ficaram escondidos no Auditório do quartel para realizar uma surpresa aos
novatos, momento em que o Comandante falou que “era preciso que os alunos soubessem
se realmente era aquilo que eles queriam”. Ele ainda afirmou que os policiais militares
trabalham sob estresse e têm determinadas situações que eles têm que passar e, “Os mais
velhos recebem os mais novos com o dever de protegê-los”.
No rito final, como citei, conhecido por batismo e ocorrido de madrugada nas águas
de uma praia de João Pessoa, após os novatos deslocarem-se correndo à mesma
monitorados pelos coordenadores e pelos cadetes do 3º ano, eles entravam na água
juntamente com os cadetes do 3º ano como uma corrente, todos de braços dados,
mostrando-nos a finalização do processo liminar e a agregação dos novatos para fortalecer
a estrutura que regimenta a cultura dos alunos do CFO. Agora eles deixavam de ser alunos
zero-ano para serem cadetes do 1º ano.
Dias depois da semana zero ter acabado eu procurei os alunos do 3º Ano para
conseguir as fotos que foram tiradas durante os nove dias e, a resposta que obtive de um
dos alunos responsáveis pelas fotos é que ele não podia entregar-me. Na verdade, isso só
poderia ser feito após ser realizada uma triagem pelos coordenadores, pois existiam
imagens que não podiam ser divulgadas. Esse fato se aliou às observações dos cadetes do
3º ano durante minha presença para acompanhar a semana zero. Um deles perguntou
sobre o que eu fazia na Academia e, ao respondê-lo, o mesmo fez um gesto de
desconfiança e falou sei!!!????, além de acrescentar: “vai nos entregar para a corregedoria”.
Outro cadete, ao se reportar a mim falou em tom de brincadeira que “não poderia falar nada
na frente do Capitão”.11 Mais um dos alunos do 3º ano me confidenciou que “hoje será o dia
das contradições” porque alguns alunos só reconheciam os direitos humanos quando era
para si mesmos. No dia posterior, muitos cadetes fizeram o comentário de que quem
estivesse no caderninho do Capitão estaria “ferrado”, iria atrasar a promoção de muita
gente, o que era respondido que no caderno existiam anotações simples que descreviam a
semana zero. Ao que uma cadete asseverou no terceiro dia: “Capitão, não pode falar tudo
senão ninguém vai sair Aspirante!”12
O que deve ser questionado nesse processo é que, se o CFO está a formar agentes
de segurança pública que afirmam defenderem a sociedade, nada mais legítimo do que a
própria sociedade ter acesso às formas como esses profissionais são treinados, visto que
são os impostos que cobrem a manutenção e existência de um aparato policial estatal. E
11
Aqui destaco o fato de que tal pesquisa foi facilitada pelo acesso que tive à semana zero por eu ser
um Capitão da Polícia Militar da Paraíba.
12
Aspirante a Oficial é a função exercida pelos cadetes depois que terminam o curso. O Aspirantado,
como é reconhecido no seio policial militar, na realidade trata-se do período de estágio de oito meses
após o qual os Aspirantes são promovidos (ou não, caso sejam reprovados) ao posto de 2º Tenente.
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ainda mais, se os próprios policiais militares têm orgulho do modelo formativo que adotam,
especialmente durante a semana zero, não se justifica ocultar o sofrimento pelo qual
passam os alunos que ingressam no processo pedagógico PM. O que observamos foi a
existência de uma contradição entre o orgulho pela defesa de uma pedagogia baseada no
sofrimento, mas que se justifica pois a mesma serve para fortalecer os futuros policiais e, ao
mesmo tempo, o medo de publicizar essa pedagogia como se a mesma não estivesse
sendo regida por valores que enalteçam o respeito para com os alunos. No entanto, após
ingressarem no curso de formação, os alunos passam a naturalizar e interiorizar o
sofrimento como mote para ser um bom policial e, passado todo o primeiro ano eles
reproduzirão o mesmo rito com os neófitos que chegarão no ano posterior.
Considerações finais
A partir de etnografia realizada durante a semana zero do Curso de Formação de
Oficiais na Paraíba, no ano de 2013, pudemos constatar que essa semana desenvolve-se
com base no que aqui chamamos de “pedagogia do sofrimento” e como esse modelo
formativo dos policias militares possibilita a consolidação de um ethos guerreiro.
Nessa visão, mostramos por uma perspectiva eliasiana como o período histórico que
marcou o II Reich alemão (durante o governo de Bismarck) serve-nos de exemplo para
visualizarmos como a valorização social de princípios militaristas caminha na direção
contrária de uma convivência voltada para valores humanitários.
Ademais, ao voltarmos nosso olhar para o regime intramuros das casernas policiais
militares, mostramos também como o ethos guerreiro se fortalece a partir do exercício
constante do corpo e da interiorização de condições morais sustentadas pelo ideal de
virilidade masculina. Essa forma de se construir um policial militar acaba, pois, por
estabelecer um tipo de pedagogia, como ressaltamos, no qual o sofrimento é visto como
elemento indissociável da formação PM.
Portanto, ao observar a semana zero do CFO constatamos não só a humilhação e o
sofrimento enfrentados pelos neófitos durante a fase de adaptação, os quais, na verdade,
são vistos como fatores positivos pelos coordenadores policiais, mas ao mesmo tempo, a
resistência por parte dos mesmos coordenadores em não divulgar cenas que mostrem o
processo enfrentado pelos alunos em sua chegada na caserna policial militar.
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Sofrimento no Trabalho Policial e Direitos Humanos
Martim Cabeleira de Moraes Jr.1
Há todo um velho mundo ainda por destruir e todo um novo mundo a construir. Mas nós
conseguiremos, jovens amigos, não é verdade?
Rosa Luxemburgo
INTRODUÇÃO
A segurança pública se mostra cada vez mais uma preocupação constante, tanto em
nível nacional quanto internacional.
A América Latina possui traços históricos que apontam para crescente e atual
participação popular na gestão da segurança pública, como se pode perceber nos
Conselhos Comunitários de Segurança, bem como em outras entidades semelhantes, tanto
no Brasil quanto no Peru, Chile, Argentina e outros países. Isto se percebe, sobretudo nas
políticas públicas de segurança dos anos 1990 do século XX em diante.
No Brasil, um dos marcos históricos na mudança de rumo das políticas de segurança
pública foi a Constituição de 1988. A Carta Magna brasileira inaugurou uma nova era de
mudanças nas concepções de segurança social.
Mesmo com as mudanças apontadas em toda a América Latina, do final dos anos
1980, do século XX em diante, ainda são necessárias consolidações de várias reformas, das
quais só algumas estão em andamento. A concepção de novos conceitos, por exemplo,
ainda não está em processo. Temos, no Brasil a Lei 11.530, de 24 de Outubro de 2007, que
institui como Política de Segurança Pública a ser seguido pelas Unidades da Federação o
Programa Nacional de Segurança com Cidadania (PRONASCI). Porém ainda trabalhamos
com o conceito de ordem pública e não de ordem cidadã ou cidadania segura.
Assim como os países da União – européia, os países da América – latina possuem
uma configuração social, econômica e política que guarda diversos fatores em comum,
constituindo uma identidade com características que permitem um estudo em nível geral.
1
Policial Militar no Rio Grande do Sul, Mestre em Sociologia pela UFRGS e Doutorando em Serviço Social
pela PUC-RS.
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As rotinas e as relações de trabalho dos profissionais de segurança pública no mundo
estão sempre, de alguma maneira, ligadas às polícias, que são principal foco desse projeto,
porém não se esgota somente naquelas instituições.
Para efeitos deste estudo, as entidades ou órgãos de segurança pública
consideradas, são instituições públicas que, por si só já merecem uma análise científica.
Análises mais específicas podem ser feitas para percepção e estudo de problemas mais
pontuais. O que se deseja aqui é discutirmos as questões mais gerais. Principalmente as
que envolvem todos os órgãos policiais e de outras atividades de segurança pública na
América Latina.
Na sociedade dita globalizada os processos de trabalho sofrem recíprocas
influências de uma maneira bastante acentuada, o que acaba causando certa opacidade em
alguns fatores que causam sofrimento no trabalho de certos profissionais.
No contexto da América Latina, nos últimos vinte e três anos (1990 a 2013), a busca
por uma consolidação das democracias tão arduamente conquistadas induzem as
estratégias de segurança pública a busca de novos desafios, para mudanças que as tornem
instituições adequadas ao quadro social geral que se apresenta.
Repetimos que, uma passagem da segurança pública para segurança cidadã, bem
como a noção de ordem pública para cidadania segura, são necessárias.
Assim coloca-se o tema deste trabalho, no sentido do que ensinam Brumer et al
(2009, p. 126):
O tema é delimitado de forma concreta, em âmbito espacial e temporal, e
diz respeito ao objeto da pesquisa, que pode ser um fenômeno, um
processo, um grupo ou uma instituição. A determinação precisa das
fronteiras desse objeto leva à superação da visão ampla, genérica,
abrangente e superficial própria dos momentos iniciais da pesquisa.
Os processos de trabalho na contemporaneidade sofrem profundas influências dos
contextos econômico, social e político internacional.
Os profissionais de segurança pública se encontram em um campo de difícil
execução de tarefas de seus cotidianos, uma vez que devem adaptar suas ações a cada
tipo específico de demanda social. Porém cada local, período e situação acabam
oferecendo uma demanda de natureza diferente, decorrente das múltiplas influências dos
cenários nacionais e internacionais que atingem toda a sociedade chamada globalizada.
O estudo proposto pretende tornar visíveis fatores que estão presentes nas relações
de trabalho dos profissionais de segurança pública neste contexto de globalização. Daí a
importância de se conhecer melhor a rotina e as minúcias dos processos históricos e
contemporâneos do trabalho dessas categorias de trabalhadores.
A escolha de estudar o trabalho na área da segurança pública também se figura
adequada, eis que representa uma das principais preocupações sociais do mundo moderno,
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tanto para as teorias mais amplas, conforme se pode observas nos estudos de Bauman
(2009 e 2008), por exemplo, quanto nas teorias de médio alcance (utilizando um termo de
Robert King Merton), como se observa nos dois últimos planos nacionais de segurança
pública brasileiros.
A necessidade de estudos que tratem dos processos de trabalho nas instituições de
segurança pública, considerando seu contexto social, bem como as suas referências de
identidade nacional e transnacional se coloca como algo adequado aos tempos do século
XXI, onde se contemplam novos desafios e se propõem novas metas de vida para a
humanidade moderna.
Hagen (2006) é uma das autoras que se aventurou a dissecar o trabalho policial
como tema de trabalho científico. Hagen percebeu, como muitos outros autores, que a
discussão sobre a natureza da atividade policial suscita uma difícil definição acerca de ser
um trabalho, uma relação de atividades ou uma profissão.
As dificuldades de percebermos a natureza da atividade policial nos leva ao conceito
de algo que está em modificação. Em processo de modificação, o que acaba refletindo
muito nas questões de sofrimento e prazer no trabalho. Uma das primeiras perguntas que
poderíamos levantar é:
“Como estabelecer bases conceituais fortes, como é a noção de ordem pública, se
estamos em processo de mudança de paradigmas na área?”
Trabalho, segundo Kosik (apud Mendes, 2003, p. 22):
[...] é procedimento ou ação em que de certo modo se constitui a
unidade do homem e da natureza na base de sua recíproca transformação;
o homem se objetiva no trabalho, e o objeto arrancado do contexto natural e
original é modificado e elaborado. O homem alcança no trabalho a
objetivação e o objeto é humanizado.
Modo de produção, segundo Johnson (1997, p. 153):
[...] é a maneira como uma sociedade é organizada para produzir
bens e serviços. Consiste em dois aspectos principais: as forças de
produtivas e as relações de produção. As forças produtivas incluem todos
os elementos que são reunidos na produção – da terra, matérias-primas,
combustível, qualificações e trabalho humano à maquinaria, ferramentas e
fábricas.
Em relação a produção de bibliografia sobre o presente estudo, pode-se distribuir da
seguinte maneira: obras com teorias sobre trabalhadores de segurança pública em nível
mundial; obras sobre as segurança pública de países Latino – americanos; e obras sobre a
segurança pública brasileira, conforme segue.
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Em Bauman (2008) aparece a violência urbana apenas em um contexto de medo
generalizado, pois todo o mundo está atento ao terrorismo, às catástrofes da natureza, as
mazelas geradas pela gestão financeira e econômica e até nas relações afetivas do homem
moderno. O que acaba refletindo em demandas contraditórias pelas diferenças dos diversos
atores sociais que acorrem aos profissionais de segurança pública, gerando um desconforto
por não saber como atender à todos.
O Autor traz a tona o termo “modernidade líquida”, como o símbolo de um tempo
onde nada é sólido o bastante para servir de base para valores e ações humanas.
Já em outra obra, Bauman (2009) trata dos institutos do medo e da confiança entre
as pessoas no meio urbano moderno.
Monjardet (2003) teoriza sobre o que chama de “uma sociologia da força pública”,
percorrendo os caminhos weberianos sobre o monopólio do uso da força e da difícil tarefa
de estruturar o trabalho policial enquanto ofício.
Goldstein (2003) também trata do ofício de polícia, percorrendo temas como: a
função da polícia; seus principais problemas; relações da polícia com outros organismos
sociais e as perspectivas de mudanças.
Bayley (2001) é um dos principais pesquisadores sobre polícia no mundo
atualmente. Em sua obra Ele coloca, de maneira muito objetiva e precisa, “uma teoria de
policiamento”, através do estudo da função, evolução dos órgãos policiais, bem como das
relações entre polícia e política.
Gabaldón e Birkbeck (2003), renomados pesquisadores sobre polícia e segurança
pública, apresentam uma coletânea de artigos sobre polícia e força física, englobando ações
policiais e pesquisas no Canadá, Brasil, Reino Unido, Caribe e Venezuela.
Em parceria entre O Centro de Estudios Legales e Sociales (CELS) argentino e a
Human Rights Watch (HRW) (1998) foi produzido um estudo sobre a inseguridade policial,
tendo como subtítulo: “violência de lãs fuerzas de seguridad em la Argentina”.
Em relação a identidade das instituições policiais pode-se citar a tese de
doutoramento de Jaqueline Muniz (1999) intitulada emblematicamente de: “Ser Policial é,
Sobretudo, Uma Razão de Ser: Cultura e Cotidiano da Polícia Militar do estado do Rio de
Janeiro”.
Sobre as propostas de modificação nas polícias brasileiras pode-se citar a coletânea:
“As universidades e a construção de novos modelos de polícia”, como resultado de
seminários realizados pelo governo gaúcho para discutir tal tema em 2001.
Outras propostas de modificação nas polícias brasileiras se pode encontrar em
Neves et al. (orgs) (2002); Ratton e Barros (2007).
O texto-base da 1ª Conferência Nacional de Segurança Pública, realizada em 2009,
em Brasília, traz uma síntese dos principais anseios da sociedade brasileira no que se refere
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ao melhor atendimento das demandas da segurança pública, bem como relata algumas
boas práticas na área.
Finalmente, como aporte teórico sobre modelos de estratégias de segurança pública
em relação a toda a América – latina cita-se com destaque os membros da Rede de
Policiais e Sociedade Civil: Caruso, Muniz e Blanco que organizaram uma obra (Haydee
Caruso; Jacqueline Muniz; Antonio Carlos Carballo Blanco. (Org.). Polícia, Estado e
Sociedade: Saberes e Práticas Latino-americanos. 1 ed. Rio de Janeiro: Publit Seleções
Editoriais, 2007) onde foram expostas várias experiências profissionais de policiais de vários
países da América Latina, havendo inclusive um texto do Autor deste projeto. O Objetivo foi
exatamente tratar de experiências de segurança com cidadania protagonizadas pelos
próprios policiais.
Elbert (2002) traz um panorama das principais concepções criminológicas dos atores
sociais na América-latina.
Soares (2006) que trata de uma “legalidade libertária”, onde as polícias passam a
fazer parte de um contexto que esteja muito atento para as demandas sociais gerais, e não
somente aos governos.
Garland (2007) que traz uma sociologia do crime e do castigo no que chama de
“modernidade tardia”, tratando da formação de uma cultura de controle social nos países
com altas taxas de criminalidade, bem como da necessidade da adoção da “segurança
cidadã”.
Tavares dos Santos (2009) que traz as questões referentes aos novos paradigmas
da violência e das conflitualidades.
Fandiño Marino (1999) que trata dos ciclos de violência na Colômbia.
Domingues (2009) discorre sobre a “América – Latina e a Modernidade
Contemporânea”, trazendo conceitos próprios, como os “giros modernizadores” e
“subjetividade coletiva” no contexto da colocação da América – latina como uma cultura
histórica.
1 SER PROFISSIONAL DE SEGURANÇA PÚBLICA NA CONTEMPORANEIDADE
O que é a contemporaneidade? Esta parece uma pergunta com resposta óbvia,
bastando-se definir o tempo e o espaço em que se deseja caracterizar e pronto. No entanto,
mesmo considerando-se a contemporaneidade referenciada dos anos 1980 do século
passado, até a primeira década do século XXI, autores das mais variadas áreas se dividem
no que se refere a caracterizar a contemporaneidade.
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Alguns
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cientistas
sociais
tratam
os
tempos
contemporâneos
como
“pós-
modernidade”, tais como David Harvey (1992) e Boaventura Souza santos. Um tempo onde,
apesar da utilização das categorias analíticas modernas ainda persistirem, estão um tanto
inadequadas para explicar os fenômenos atuais.
Bauman (2003) usa o termo modernidade líquida, descrevendo um tempo em que a
solidez da racionalidade moderna não tem rigidez suficiente para sustentar as crenças e
convicções científicas, sociais, etc. As relações com o tempo, o trabalho e todas as demais
relações sociais não são sólidas, dada a flexibilidade e permeabilidade que atingiram.
Lipovetsky (2004) usa o termo hipermodernidade para caracterizar a dependência da
razão e o individualismo na sociedade.
Anderson (1992) baseando-se em Fukuyama e Hegel trata do fim da história, como
um tempo em que a sociedade humana chegou a uma espécie de ponto final, enquanto
ponto máximo possível em sua evolução.
A resenha da Editora Boitempo caracteriza muito bem a idéia de Zizek2 da vida “no
fim dos tempos”:
Não deveria haver mais nenhuma dúvida: o capitalismo global está
se aproximando rapidamente da sua crise final. Slavoj Žižek identifica neste
livro os quatro cavaleiros deste apocalipse: a crise ecológica, as
consequências da revolução biogenética, os desequilíbrios do próprio
sistema (problemas de propriedade intelectual, a luta vindoura por matériasprimas, comida e água) e o crescimento explosivo de divisões e exclusões
sociais. E pergunta: se o fim do capitalismo parece para muitos o fim do
mundo, como é possível para a sociedade ocidental enfrentar o fim dos
tempos?
Não é pretensão deste texto fazer uma revisão da literatura sobre o contemporâneo,
porém caracterizar a diversidade de raciocínios desenvolvidos em profundidade, mas em
direções diferentes no que se refere a caracterização da sociedade nos dias atuais.
Wieviorka (2006) trazendo o conceito de “mundialização” demonstra muito bem o
debate em torno do que significa (ou significou) a modernidade.
Algumas características estão presentes nas diferentes concepções do que seja a
contemporaneidade, quais sejam, em linhas bem gerais:
A incerteza sobre a interpretação do passado, da compreensão do
presente e da projeção do futuro;
A relativização do poder emancipatório e esclarecedor da razão em
relação às explicações metafísicas ou espirituais;
O direito não pode estar sustentado apenas no poder coativo das leis;
Direitos humanos devem se constituir como universais e inalienáveis.
2
Disponível: < http://www.boitempoeditorial.com.br/livro_completo.php?isbn=978-85-7559-212-0>. Acesso em
02 abr 2014.
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Poder-se-ia reunir outras características em comum das diversas teorias da pósmodernidade, hipermodernidade, fim da história, globalização, etc., porém o que interessa
aqui é traçar uma associação inicial entre o contemporâneo e o trabalho dos profissionais da
segurança pública.
Sob o signo da incerteza, das mudanças rápidas e da flexibilização dos processos de
trabalho é que precisamos perceber a dificuldade de trabalho com conceitos, tais como:
“segurança pública” e “ordem pública”, tomados como definições fechadas e acabadas,
porém abstratas e em movimento.
Neste sentido o percurso apontado é o das conceituações básicas, para depois
estabelecerem-se as relações a analisar.
Amador (2002) é que nos mostra, da maneira mais clara e precisa as dicotomias do
trabalho policial. Ao estudar as origens da violência policial ela percebe que um dos
principais fatores impulsionadores da violência perpetrada por policiais contra outras
pessoas é, nada mais, nada menos que, a violência simbólica sofrida pelos próprios
profissionais da segurança pública. As violências nas relações de trabalho estão
demonstradas em suas conseqüências e ações pela autora, que em suas páginas finais
(2006, p. 163) diz:
É preciso coragem para enfrentar esta realidade. Mas, como diz
Bertold Brecht, citado em epígrafe deste livro, “em tempo de desordem
sangrenta, de confusão organizada, de arbitrariedade consciente, de
humanidade desumanizada, nada deve parecer natural, nada deve paraecer
impossível de mudar”. A sociedade clama por aliados que se intriguem com
atrocidades cotidianas cometidas, muitas vezes, sob o véu do bem. Este
livro propôs-se ser um passo nessa direção. Resta, agora, continuar a
caminhada.
Chamamos a atenção na citação para ambas as idéias expressas pela Autora: tanto
é necessário perceber o problema da violência policial como ligado ao das relações e
condições de trabalho, quanto modificarmos estas relações e condições.
2 O TRABALHO NA SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA
Grande parte dos escritos científicos sobre o trabalho foram desenvolvidos para
caracterizar e analisar o trabalho industrial ou comercial. Muito pouco ou quase nada se
escreveu sobre o trabalho no setor de serviços, quanto menos dos serviços públicos.
Existem pesquisas, livros e artigos sobre alguns fenômenos relacionados ao trabalho no
serviço público, mas pouquíssimo em profundidade sobre o trabalho público em si.
Enquanto Karl Marx e seus seguidores (pós ou contras) trataram em profundidade das
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questões da significação do trabalho na modernidade, muito pouco ocorreu em relação ao
trabalho dos servidores públicos.
Daí a necessidade de uma nova teoria dos serviços públicos, o que suscita aqui uma
adaptação das significações do trabalho para tratar do tema.
Neste texto não será feita uma abordagem da história do trabalho, mas apenas
tangenciar está trajetória referindo-a aos fatores de prazer e sofrimento no cotidiano laboral
dos profissionais de segurança pública da América Latina.
Sobre as condições e estruturação do trabalho no Brasil, Crespo Merlo (2000, p. 277)
diz:
No, entanto, é importante lembrar que a realidade da grande maioria
das condições e organizações do trabalho que nos rodeiam – e aqui falando
especificamente
da
realidade
brasileira
,
são
de
uma
taylorização/fordização quase absoluta, dentro de ambientes de trabalho
insalubres, perigosos, sem nenhum respeito pela legislação de saúde e
segurança, e onde o trabalhador não tem as mínimas possibilidades de
opor-se a elas.
Rondon Filho (2013) sua tese de doutorado reflete muito bem sobre as tensões entre
reconhecimento e desrespeito no trabalho dos agentes de segurança pública. Rondon,
como policial, captou muito bem a enorme tensão que é gerada no ambiente de trabalho dos
policiais brasileiros. Analisou extenso material produzido através de questionários,
entrevistas, grupos focais e bibliografia, percebendo que os discursos dos policiais traduzem
muita tensão acumulada pela indefinição do que fazer; pelo desrespeito aos seus direitos e
outros fatores.
3 PRAZER E SOFRIMENTO NO TRABALHO
Seguindo as perspectivas de Dejours (1994) e Dimatos (1999) parazer no trabalho
estaria ligado à capacidade da atividade laboral em permitir ao trabalhador a expressão dos
seus desejos enquanto ser social em todos os sentidos. A expressão da criatividade, da
produção útil e o tempo de participação na vida social e individual. Enquanto o sofrimento
seria justamente o oposto, ou seja, a atividade laboral organizada e executada de maneira
que não seja possível a inovação, a criatividade e a participação social plena do trabalhador.
Em palavras de Marx, a própria idéia do trabalho alienado, separando o produto final do
trabalhador.
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4 FATORES DE SOFRIMETO NO TRABALHO DOS PROFISSIONAIS DA SEGURANÇA
PÚBLICA
Conceituados prazer e sofrimento no trabalho, vejam-se as relações que esses
conceitos encontram com as atividades laborais dos profissionais de segurança pública na
América Latina (e muito provavelmente em outras partes do mundo).
Cita-se a América Latina como local de estudo pela semelhança social e histórica
das trajetórias dos órgãos de segurança pública e seus modelos originais até hoje.
São as mais variadas profissões que se encaixam na categoria de servidores da
segurança pública, portanto, serão tratados genericamente através das denominações
brasileiras, preservando-se aquilo que há em comum nas atividades laborais respectivas.
Os fatores que veremos a seguir foram coletados de pesquisas bibliográficas,
sobretudo em estudos universitários sobre diferentes profissionais da segurança pública nos
países da América Latina. Também foram considerados os resultados preliminares da
aplicação de um questionário (Anexo único) de 2006 a 2013 em mais de 400 policiais e
outros profissionais da segurança pública brasileiros.
4.1 PRAZER E SOFRIMENTO NOS PROFISSIONAIS DO ENSINO EM SEGURANÇA
PÚBLICA
Como principais fatores que afetam professores da área da segurança pública estão
os seguintes, resultado da experiência do autor do texto como diretor de órgãos de ensino
policial e também como professor na s áreas de direito, sociologia e policiamento:
 Indefinição, ou definição muito vaga do que se pretende ensinar objetivamente,
dificultando a montagem de currículos que gerem uma aprendizagem significativa;
 Diferenciação
nos
alunos
e
em
toda
comunidade
profissional
(culturas
organizacionais?) entre o que é estudado, pesquisado e comentado em sala de aula
e o que se faz no dia a dia profissional;
 Caracterização dos professores entre “práticos” (Uso da arma, defesa pessoal, etc.)
e ”teóricos” (direito, sociologia, ética, etc.);
 Dificuldade estrutural em saber-se o que se espera de um profissional de segurança
pública diante de situações extremas, já que a literatura, a imprensa e a população
em geral, ora agridem ora aplaudem situações similares, sem estabelecimento de
um norte para as ações de segurança pública.
Como fatores de prazer estão:
A solidariedade entre colegas;
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O status de uma profissão que trabalha com emergências;
A sensação de possibilidade de salvar pessoas e melhorar o mundo;
A satisfação da prioridade de direito em estar em locais e saber de informações
restritas.
4.2 PRAZER E SOFRIMENTO NOS PROFISSIONAIS DAS PERÍCIAS EM SEGURANÇA
PÚBLICA E DA MEDICINA FORENSE
Entre os peritos estão presentes, em geral os fatores de sofrimento:
 Convívio com tecnologias obsoletas, enquanto são conhecidas no setor privado e em
outros países ferramentas de trabalho muito melhores;
 Constante desvalorização do trabalho pericial em detrimento de outras provas
criminais menos confiáveis;
 Divergências entre colegas que são resolvidas não baseadas em critérios científicos;
 Desconsideração dos peritos como responsáveis pela segurança pública, como se
fossem uma espécie de subpoliciais;
 Trabalho em ambientes insalubres física e mentalmente.
Entre os fatores de prazer estão:
Sensação de produção de informações puras, inatingíveis, tendo em vista o uso de
raciocínio científico;
Solidariedade entre colegas;
Sensação de possibilitar a resolução de autorias de delitos.
4.3 PRAZER E SOFRIMENTO NOS PROFISSIONAIS DAS POLÍCIAS PRISIONAIS
Entre os policiais que tratam do caótico sistema prisional que se encontram na maior
parte dos países da América Latina, os fatores de sofrimento são:
 Convívio por anos em ambientes tensos, insalubres e conturbados;
 Responsabilidades por pessoas que são, em regra indesejadas pela maior parte da
sociedade;
 Convívio com orientações paradoxais no sentido de tratar com respeito pessoas que
ninguém mais tratou assim;
 Assédio moral constante por superiores, imprensa e população em geral;
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 Sensação de uma profissão que não trata de algo valoroso para sociedade, perante
outras consideradas mais nobres, tais como advocacia, magistratura, ministério
público e outras.
Eis um segmento profissional que não reconhece fatores de prazer no trabalho.
4.4 PRAZER E SOFRIMENTO NOS PROFISSIONAIS DA INVESTIGAÇÃO CRIMINAL
Os policiais que trabalham com investigação criminal, em geral convivem com:
 Baixos salários em relação a outras profissões do mesmo nível;
 Principalmente no Brasil, produção de peças judiciais que são repetidas durante o
processo criminal pelos promotores, juízes e advogados;
 Convívio com técnicas e instrumentos de trabalho defasados em relação às
tecnologias disponíveis atualmente;
 Ascensão na carreira prejudicada por ingerências políticas e má gestão pública;
 Ambientes insalubres física e mentalmente;
 Ambiente de disputa com outras instituições de segurança pública;
 Tratamento negativo por parte da imprensa e setores do serviço público em geral,
como se fosse um trabalho menos qualificado e especializado;
 Enfrentamento de riscos físicos e mentais constantes.
Porém também encontram:
Solidariedade entre colegas;
Possibilidade de satisfação em tarefas onde há muito contato com fatores proibidos a
outras pessoas;
Satisfação de uma espécie de desejo por emoções mais fortes.
4.5 PRAZER E SOFRIMENTO NOS PROFISSIONAIS DO POLICIAMENTO DE RUA
Em geral, não há separação entre policiais que investigam e os que executam
policiamento de rua, porém no Brasil, como no Chile e em outros locais isso ainda ocorre,
sendo então, os mesmos fatores de sofrimento e prazer.
Moraes Jr. et al. (2013, p. 235), sobre as contradições destes policiais, afirma:
Neste sentido, um policial militar que desenvolve uma carga horária
de trabalho além de suas possibilidades físicas e psicológicas, para ver
somado em seu contracheque mensal um valor pecuniário a título de horas
extras, vive em conflito interior, de um lado, afasta-se do necessário
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convívio familiar, do lazer e por outro lado se sente impotente por não lhes
dar melhores condições financeiras. Isso gera uma sensação de fracasso,
tanto profissional quanto familiar, afastando-se cada vez mais da sociedade
e do convívio com o grupo.
Os policiais que trabalham com policiamento nas ruas, em geral convivem com:
 Baixos salários em relação a outras profissões do mesmo nível;
 Início de trabalho que passará pela administração e decisão de outros profissionais
do sistema criminal, tais como investigadores, promotores, juízes e advogados;
 Convívio com técnicas e instrumentos de trabalho defasados em relação às
tecnologias disponíveis atualmente;
 Ascensão na carreira prejudicada por ingerências políticas e má gestão pública;
 Ambientes insalubres física e mentalmente;
 Constante crítica por todos os órgãos do sistema criminal, pela imprensa e pelo meio
acadêmico, mesmo antes de quaisquer investigações ou pesquisas sobre as ações
realizadas.
 Enfrentamento de riscos físicos e mentais constantes.
Porém também encontram alguns fatores de prazer:
Solidariedade entre colegas de farda;
Construção de uma imagem que goza da simpatia (as vezes) da população;
Possibilidade de satisfação em tarefas onde há muito contato com fatores proibidos a
outras pessoas;
Satisfação de uma espécie de desejo por emoções mais fortes.
4.7 PRAZER E SOFRIMENTO NOS GÊNEROS DOS PROFISSIONAIS DE SEGURANÇA
PÚBLICA
Atualmente são freqüentes as pesquisas que tratam das questões da masculinização
das profissões policiais, fazendo com que as mulheres assumam algumas formas de se
fazerem respeitar dentro dos ambientes laborais, tais como:
 Assumir uma postura masculinizada;
 Exagerar na racionalidade para compensar a idéia da feminilidade emocional;
 Adoecimento por conflitos internos.
Já se tem a noção de o quanto as defesas apresentadas causam sofrimento maior
do que nos homens, às mulheres que escolhem as carreias da segurança pública.
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5 REFERÊNCIAS EM FILMES E OUTRAS FONTES
São diversos os filmes e documentários que tratam de descrever fatores de
sofrimento no trabalho policial.
Recentemente percebe-se uma onda de renascimento dos temas policiais antigos,
fazendo releituras das dificuldades dos profissionais da área.
Nos dois famosos filmes do diretor brasileiro José Padilha: “Tropa de Elite 1” e
“Tropa de Elite 2”, mostram os enormes conflitos culturais e psicológicos dos policiais do
batalhão de Operações especiais do Rio de Janeiro. Estes conflitos demonstrados nos
filmes são tão fortes e contraditórios que os protagonistas que deram origem aos
personagens principais acabaram saindo da polícia, tal a pressão social e consigo mesmo
em conviver com a situação de tanto sofrimento e pouco prazer no trabalho.
Quem já vive neste mundo há mais tempo poderia lembrar das mesmas leituras de
um trabalho com enormes contradições encontradas na polícia americana, através do filme
chamado no Brasil de “Sérpico: a história de um policial honesto”, que tratou nos 1970 do
século passado da narrativa da vida profissional de um policial infiltrado entre criminosos
para descobrir maneiras de punir policiais corruptos e traficantes de drogas.
Em muitos outros casos percebem-se sempre as mesmas contradições:
 Uma luta absurdamente brutal para tentar manter uma proibição do uso de algumas
drogas, enquanto o poder dos narcotraficantes, inclusive coptando policiais para
seus serviços, em nome do capital só aumenta;
 Dificuldades em saber quais são os valores sacrificáveis para conquista de objetivos
sociais não muito claros.
São também bastante ilustrativos dos fatores de prazer e sofrimento no trabalho dos
profissionais da segurança pública os documentários. Destaca-se o premiadíssimo;
“Notícias de uma Guerra Particular”, onde o Ex-Chefe de Polícia Carioca Hélio Luz explica
com muita objetividade e clareza os meandros da polícia civil do Rio de Janeiro, bem como
expõe os motivos mais escabrosos da crescente criminalidade que lá continua.
Os filmes considerados mais populares e menos eruditos, em geral tratam de
apresentar uma clara divisão entre policiais do bem e bandidos do mal, o que está
extremamente distante da realidade, uma vez que esta separação nunca é tão fácil de fazer,
mesmo baseando-se na lei. Também há a idéia disseminada de que, no final a polícia
sempre descobre o assassino e ele é punido. Os interrogatórios permitem violência em
nome de bens considerados maiores, como se isto fosse aceitável racionalmente.
Estas concepções advindas dos filmes mais corriqueiros causam enorme frustração
naqueles que formam uma idéia completamente equivocada do que significa ser um
profissional da segurança pública.
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6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Conclui-se com a mesma sensação de sempre, ou seja, este é um tema instigante,
porém pouco pesquisado em profundidade, mesmo pelas instituições policiais, que inclusive
não costumam acreditar ou trabalhar com avaliações científicas ou critérios racionais.
Entre os fatores principais de sofrimento no trabalho percebidos em pesquisas
desenvolvidas nas polícias da América Latina estão, como algo que atingem todos os
segmentos policiais, no sentido amplo:
Desvios de função;
Trabalho sem saber onde chegar exatamente:
Assédio moral constante;
Trabalho sem medição e correta avaliação de objetivos;
Critérios de ascensão na carreira por apadrinhamentos e outros fatores
que privilegiam o clientelismo e o fisiologismo;
Ausência de assistência social;
Ausência de assistência psicológica, mesmo que a legislação, tanto em
nível nacional, quanto internacional tenha previsão expressa para tal;
Atual avaliação baseada na taxa de homicídios local, como se todos os
homicídios fossem resultado da ausência de trabalho policial;
Segurança cidadã sem policiais considerados como cidadãos, pois
constantemente seus direitos são desrespeitados impunemente;
Modelos de gestão de órgãos de segurança pública muito fechados e
pouco participativos, verticalizando as relações de trabalho;
Equipamentos defasados e treinamento inadequado.
Parece que o investimento tem ocorrido com muita ênfase em tecnologias, porém
pouquíssima atenção ao treinamento, ao ensino e principalmente à qualidade de vida dos
profissionais da área.
A qualidade de vida no trabalho depende de investimento primordial nas pessoas
que estão por trás dos equipamentos, das ações e do gerenciamento da segurança pública.
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ANEXO ÚNICO – Questionário
TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO
Você está sendo convidado a participar de uma pesquisa sobre condições e
relações de trabalho dos profissionais de segurança pública. O trabalho é
desenvolvido pelo Pesquisador: Martim Cabeleira de Moraes Júnior (Oficial da Brigada
Militar).
O objetivo deste estudo é Compreender sobre as principais características das
formas de violência contra os profissionais de segurança pública. Sua participação
nesta pesquisa será voluntária e consistirá em responder o questionário que segue.
Não existem riscos relacionados a sua participação na pesquisa. Haverá, por parte do
pesquisador, o devido cuidado ético com os sujeitos da pesquisa, garantindo-lhes a
assistência necessária em qualquer evento desfavorável, embora não previsto,
decorrente da pesquisa.
Garanto o sigilo de seus dados de identificação primando pela privacidade e por seu
anonimato. Você tem a liberdade de optar pela participação na pesquisa e retirar o
consentimento a qualquer momento, sem a necesidade de comunicar-se com o
pesquisador. Este Termo de Consentimento deve ser assinado abaixo caso aceite participar.
Telefone do pesquisador responsável: +55051-99787173; E-mail: [email protected].
MUITO OBRIGADO
Declaro que li o Termo e concordo com o que me foi exposto e aceito participar da
pesquisa proposta.
_________________________________________
Assinatura do sujeito da pesquisa
PROFISSÃO:__________________________CARGO_____________________________________
__ Idade:________ Sexo:__________________________ TEMPO SERVIÇO:
______________________ CIDADE ONDE TRABALHA:
______________________________________________________
ESTADO CIVIL:___________________
Escolaridade: ( )Doutorado completo ou em andamento ( ) Mestrado completo ou em curso
( ) Especialização completa ou em andamento ( ) Superior completo ou em andamento
( ) Ensino Médio ( ) Ensino fundamental
RESPONDA DE ACORDO COM SUA CONCORDÂNCIA, OU NÃO.
1-concordo 2-concordo
3
4
5 discordo
AFIRMATIVAS
totalmente
neutro
discordo
totalmente
A violência da criminalidade é um dos principais fatores
que causam tensão no trabalho. (1)
As relações com colegas são difíceis e me causam
desconforto no trabalho. (2)
As relações com meus superiores causam desconforto
no trabalho.(3)
No meu local de trabalho é oferecida assistência
psicológica. (4)
Eu utilizo algum meio de assistência psicológica.
(psicólogo psiquiatra, etc.) (5)
No meu local de trabalho são oferecidas atividades
físicas ou desportivas relaxantes (futebol, artes
marciais, etc.). (6)
Para o trabalho na segurança pública é necessária
alguma ajuda ou acompanhamento psicológico. (7)
Recebo reconhecimento por um bom trabalho. (8)
Recebo punição por um mau trabalho. (9)
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SE QUISER, USE O VERSO DAS FOLHAS PARA RESPONDER
1. Dê uma sugestão para melhorias na Qualidade de Vida dos profissionais de segurança pública.
2. Você já sofreu violência psicológica no trabalho? Quantas vezes?
3. Se já sofreu violência psicológica, descreva sucintamente a que julgou mais grave?
4. Você já sofreu violência física no trabalho? Quantas vezes?
5. Se já sofreu violência física, descreva sucintamente a que julgou mais grave?
6. O horário de trabalho lhe dá oportunidades de descanso necessárias?
7. Cite três fatores que lhe causam sofrimento no trabalho.
8. Você sente alguma conseqüência física decorrente do trabalho policial (dor, lesão, deficiência
visual, etc.)? Descreva brevemente.
9. Você sente alguma conseqüência psicológica decorrente do trabalho policial (dor, lesão,
deficiência visual, etc.)? Descreva brevemente.
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OS MOVIMENTOS SOCIAIS ENTRE AS REIVINDICAÇÕES E A IMPLEMENTAÇÃO DE DIREITOS
AMEAÇADOS PELAS EXECUÇÕES SUMÁRIAS, ARBITRÁRIAS OU EXTRAJUDICIAIS NO BRASIL
1
Ingrid Viana Leão•
1 Apresentação
Este texto é uma leitura das recomendações da ONU ao Brasil sobre
execuções sumárias. É parte da pesquisa de mestrado concluída em 2011. O trabalho
se desenvolveu com base nas atividades da Relatoria da ONU sobre execuções
sumárias, arbitrárias ou extrajudiciais (Special Rapporteur on extrajudicial, summary or
arbitrary executions). Essa Relatoria realizou missão no Brasil por duas vezes, em
específico, nos anos de 2003 (visita de Asma Jahangir) e 2007 (visita de Philip Alston).
Ao final dessas visitas, com base nas informações de campo colhidas (fact-finding)
pelos relatores, foram apresentadas ao Brasil recomendações que buscam aprimorar
as instituições, mecanismos e políticas de direitos humanos. São recomendações
específicas ou gerais que indicam ações ao Estado brasileiro referentes às execuções
sumárias, arbitrárias ou extrajudiciais.Recomendações semelhantes podem estar em
outros mecanismos da ONU e no sistema interamericano2.
Nesse estudo, os movimentos sociais foram localizados como: (i) sujeitos
atingidos pelo conteúdo desses documentos, em situações que envolvem ameaças e
assassinatos, procedimentos típicos do que
indivíduos e grupos que participaram da construção dessas recomendações. Essa
participação ocorre tanto com envio de documento a ONU como em encontros com o
expert da ONU durante a visita no Brasil. Com isso, o presente artigo apresenta as
recomendações ao Brasil segundo um tema - execuções sumárias – associada a
atuação de defensores de direitos humanos no Brasil.
O texto apresenta os espaços de atuação dos movimentos sociais e direitos
1
Este texto foi desenvolvido com base na pesquisa de mestrado "Execuções Sumárias,
Arbitrárias ou Extrajudiciais: a efetividade das recomendações da ONU ao Brasil", na PósGraduação em Direito da Faculdade de Direito da USP, área de concentração Direitos
Humanos, defendida em 2011.
•
Doutoranda e Mestre em Direitos Humanos pela Faculdade de Direito da USP, área Direitos
Humanos. Advogada, educadora, co-coordenadora do Comitê da América Latina e do Caribe
para Defesa dos Direitos da Mulher (CLADEM-Brasil). Contato: [email protected]
2
Foram estudadas as recomendações dos Comitês que monitoram diretamente o direito à vida
e à integridade física (Comitês de Direitos Humanos e Comitê contra a Tortura), bem como dos
Comitês que observam o exercício desses direitos segundo os sujeitos envolvidos (Comitê da
Criança e Comitê contra o Racismo) ou trazem questões de fundo quanto à prática das
execuções sumárias (Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais).
4044
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humanos, de acordo com uma temática - execuções sumárias. Após um panorama
dessa estrutura normativa e institucional que as recomendações da ONU encontram,
serão expostos os conteúdos dos relatórios da ONU, após visita ao Brasil, que
informam sobre execuções sumárias. Tais documentos permitiram agrupar as
características das execuções sumárias e as circunstâncias dessas práticas em
relação a atuação dos movimentos sociais no Brasil. Com base nessa sistematização,
apresentamos os direitos atingidos pelas execuções sumárias e a participação dos
movimentos sociais nas práticas nacionais e na interação com a ONU.
As execuções sumárias podem ser compreendidas, de forma sucinta, como
homicídios com autoria ou participação de agentes do Estado, habitualmente agentes
de segurança e justiça (polícias, agentes penitenciários) no exercício da função ou em
beneficiados pela ocupação que exercem (grupos de extermínio, milícias) contra civis
(LOZANO BENDOYA, 2009; PIOVESAN et alli, 2001). Não se trata apenas de risco ao
direito à vida para se afirmar que um homicídio é uma execução sumária, deve-se
considerar o contexto, relacionando a forma e a autoria do crime, em termos gerais, e
se apresentado como violação de direitos humanos consagrados em tratados
internacionais. Violações de direitos humanos são expressões usadas propriamente
no diálogo no âmbito internacional (LOZANO BENDOYA, 2009; ALTEMIN, 1991).
As recomendações da ONU são tratadas como uma fonte de informações
sobre práticas de direitos humanos no Brasil, e assim permitem indicar características
das ações violetas segundo um contexto a favor de violações de direitos humanos ou
processos de exclusão social. No decorrer do trabalho, as referências aos defensores
de direitos humanos, integrante de determinado grupo e organizações de direitos
humanos são usadas para designar a ação dos movimentos sociais, tal qual é
apresentado nos documentos da ONU.
2 EXECUÇÕES SUMÁRIAS E MOBILIZAÇÃO TRANSNACIONAL
Reivindicações de direitos e denúncias de violações de direitos encontram um
respaldo normativo e institucional que não se limita ao âmbito nacional. O
mapeamento proposto por este artigo se dá em face de uma movimentação sobre
direitos humanos que ultrapassaram as fronteiras nacionais.
As recomendações da ONU ao Brasil e o tema dos movimentos sociais,
especialmente em relação aos direitos humanos, encontram no ativismo transnacional
uma chave de leitura mais abrangente que a divisão “âmbito internacional” ou “âmbito
nacional”. Nessa direção, a expressão transnacional se baseia em processos que não
se restringem a atuação internacional e não se restringe a relação entre Estados, bem
4045
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como a concepção de mobilização jurídica não se restringe a litigância judicial
).
A complexidade da questão é explicada por Cecília Macdowell Santos (2012, p.
14):
A mobilização transnacional do direito refere-se, por sua vez, às mobilizações do
direito que vão além das fronteiras do estado-nação (...). As mobilizações sociais de
âmbito nacional ou internacional que têm por objeto ou se valem de referenciais
jurídicos supranacionais, tais como os movimentos sociais que incorporam em seu
repertório de ação os valores, os ideais e as conceções globalizadas dos direitos
humanos (sic), também exemplificam ou se relacionam com práticas de mobilização
transnacional do direito.
Existem referenciais normativo e institucional que se afirmam em uma
linguagem internacional sobre reivindicações que também são locais. Os mecanismos
e procedimentos3 da ONU são um exemplo da internacionalização de denúncias de
violações de direitos humanos. Tais mecanismos da ONU recebem informações sobre
as práticas abusivas nos países nacionais, ademais de seu propósito de proteger a
pessoa humana e responsabilizar agentes por violações de direitos humanos.
Antes da institucionalização de mecanismos de monitoramento por temas em
4
1980 na ONU, tal qual a Relatoria Especial sobre Execuções Sumárias, Arbitrárias ou
Extrajudiciais, esses homicídios eram o centro das denúncias e mobilizações
internacionais, bem como a tortura, desaparecimento forçado e prisões arbitrárias,
ameaças aos direitos civis e políticos em contexto de abusos dos Estados latinoamericanos
!" # #
. A difusão de violações de direitos
humanos já se configurava como uma estratégia das redes de direitos humanos para
pressionar os Estados (leveraging), precede o estabelecimento dos Procedimentos
Especiais da ONU, dessas relatorias (SIKKINK, 2006).
Quanto aos Relatores Especiais da ONU, o surgimento do mecanismo foi em
um momento em que a busca pelos fatos era pouco questionada, somado à tentativa
de convencer os governos de que se buscavam apenas fatos, e não se tratava, assim,
de uma intervenção política – preocupação dos Estados para apoiar o mecanismo. A
3
Diferentes métodos: petições ou comunicações, relatórios ou investigação. Métodos estes
que são determinados pelo tipo de mecanismo que se pretende acionar e que divergem.
4
Em 1967, a ONU cria os procedimentos especiais por países (Resolução 1235, ECOSOC).
Os mandatos temáticos surgem a partir de 1980: desaparecimentos forçados (1980),
execuções sumárias (1982) e tortura (1985).Atualmente, existem 39 procedimentos especiais
(31 mandatos temáticos e 8 por países), a maioria surgiu após 2000.
4046
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tarefa desempenhada pelos relatores hoje é muito maior que descobrir fatos (factfinding), cujo propósito inicial carece de condições para se realizar quando se observa
$
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5
permite “avaliar” as
informações que já foram apuradas por outros atores locais e fazer um trabalho de
classificação (ALSTON, 2010). Nesse ponto, é possível dizer que a experiência do
especialista também permite contribuir com o olhar de quem conhece outras
experiências, bem como trazer novos conteúdos aos trabalhos dos demais atores
locais. A importância das visitas aos países não se restringe a fazer levantamento da
situação dos direitos humanos naquele país, estende-se à formação de bases para
estabelecer um diálogo construtivo com os Estados, pautado na cooperação.
Quanto à relação execuções sumárias e movimento social, as ameaças aos
direitos dos ativistas são reconhecidas em várias partes do mundo como uma
preocupação em torno dos riscos que essas pessoas – de organizações
governamentais, movimentos sociais ou ONGs – vivenciam em função da atividade
que desempenham. Acrescenta-se que as organizações de direitos humanos
mobilizadas na busca por respostas internacionais são também caracterizadas como
redes, mesmos assim, "suas identidades, suas ações políticas e suas estratégias se
ajustam mais á imagem de um movimento social", conforme os estudos de Sikkink
(2006, p. 102) sobre a formação de redes internacionais de direitos humanos.
A preocupação com a vida e segurança de ativista se tornou centro de um dos
mandatos temáticos da ONU6 – Representante Especial para Situação dos Defensores
de Direitos Humanos desde 2000 (Resolução n. 2000/61) e, no âmbito das Nações
Unidas, o primeiro documento foi estabelecido em 1998. Trata-se da Declaração sobre
Defensores de Direitos Humanos que nomeia expressamente a proteção que as
atividades desempenhadas pelos defensores de direitos humanos requerem, ou seja,
nomeia a obrigação de os Estados protegerem as singularidades desses sujeitos.7 Ao
observar o lapso temporal entre a criação da Relatoria da ONU sobre execuções
sumárias e a Declaração sobre Defensores, pode-se dizer que as ameaças às
atividades dos movimentos sociais se tornam preocupação institucionalizada vinte
5
A missão de Philip Alston no Brasil foi de 04 a 14 de novembro de 2007, e a de Asma
Jahangir, de 16 de setembro a 08 de outubro de 2003.
6
No âmbito regional, a preocupação com os defensores de direitos humanos é o centro de
uma Unidade Especial da Secretaria Executiva da CIDH, criada em 2001, que, somadas às
medidas cautelares e aos casos em andamento no Sistema Interamericano, informa sobre as
diferentes violações e riscos a que os defensores de direitos humanos são submetidos.
7
Declaração dos Direitos e Responsabilidades dos Indivíduos, Grupos e órgãos da Sociedade
para Promover e Proteger os Direitos Humanos e Liberdades Individuais Universalmente
Reconhecidos, adotada pela Assembléia Geral das Nações Unidas, na Resolução 35/144 de
09 de dezembro de 1998.
4047
Anais do VIII Encontro da ANDHEP
ISSN: 2317-0255
anos após o estabelecimento do procedimento temático na ONU, mesmo com uma
relação próxima entre os dois temas, como veremos a seguir.
A construção dessa estrutura institucional, a favor da proteção da pessoa
humana, encontrou fundamentos no contexto de Pós-Guerra. O momento é visto como
um marco para um novo paradigma de proteção da humanidade e mobilização que
permitiu a relativização da soberania estatal em face dos direitos da pessoa (LAFER,
1988). Essas bases normativas e institucionais implicam diálogos entre Estados,
denúncias da realidade e uma capacidade de diálogo, onde os Estados não são os
únicos agentes. Apresentam-se ao individuo "diversas modalidades para ser ouvido"
no Sistema Internacional de Direitos Humanos (RAMOS, 2004), o que pode ser
considerada "uma base sólida legal e institucional" para a ação das redes de direitos
humanos (SIKKINK, 2006).
Acionar esses mecanismos é uma experiência recente e condicionada aos
processos de redemocratização do Brasil e da região. As recomendações da ONU, ora
analisadas, fazem parte da estrutura do Sistema ONU, de âmbito global. No âmbito
internacional, os direitos se afirmam de forma crescente por meio de tratados
internacionais de direitos humanos, que permite vislumbra uma outra escala para
debates, defesa e questionamentos de direitos. No caso da ONU, os tratados
apresentam uma estrutura de acompanhamento ou monitoramento internacional de
seu conteúdo. No âmbito interno, os Estados-partes desses tratados assumem o
compromisso da incorporação dos conteúdos sobre direitos humanos que vai da
revisão de leis e constituições a implementação das decisões judiciais para compor o
ordenamento jurídico de proteção dos seres humanos (CANÇADO TRINDADE, 1997).
Diferentes situações de violência perpetradas pelo Estado brasileiro já foram
levados tanto ao Sistema ONU como ao Sistema OEA, o que explica um volume
considerável de recomendações sobre execuções sumárias dos Comitês de Tratados
especiais da ONU, das Relatorias Especiais e da Comissão Interamericana de Direitos
Humanos ao Brasil.
As denúncias de violações de direitos humanos no Brasil já chegavam aos
Procedimentos Especiais da ONU antes da Constituição de 1988 – condicionadas pela
adesão do País à Carta da ONU, condição para acesso de casos no sistema
extraconvencional –, mas foi apenas uma década após ratificar os dois Pactos que o
Brasil intensificou a recepção de missões de relatores especiais da ONU. Foi depois
de 2001 que a participação brasileira nesses mecanismos especiais se intensificou
favorecida pelo convite aberto (standing invitation) aos procedimentos especiais, com
a missão no País de até dois relatores por ano, inclusive a mesma Relatoria temática,
como foi o caso da Relatoria sobre Execuções Sumárias, Arbitrárias ou Extrajudiciais.
4048
Anais do VIII Encontro da ANDHEP
ISSN: 2317-0255
De 1995 a 2010, quinze relatores especiais visitaram o País, entre estes, treze já
apresentaram relatórios com, 217 recomendações. Somadas as observações finais,
aqui denominados recomendação, dos Comitês da ONU, tem-se um total de mais de
350 recomendações sobre direitos humanos ao Brasil. Estas, direta ou indiretamente,
relacionam-se à violência. Tratam-se de ações indicadas ao Estado para responder às
execuções que também configuram informações sobre os atores envolvidos e
atingidos no país.
No caso brasileiro, devemos levar em conta um lapso temporal entre a
ratificação e a apresentação dos relatórios pelo Estado brasileiro, o que explica as
recomendações dos Comitês da ONU a partir de 1996, quando foi apresentado o
primeiro informe ao Comitê para Eliminação da Discriminação Racial (CERD). 8
Acompanhando esse crescimento da participação do Brasil, as organizações
brasileiras enviaram informações − relatório alternativo ou relatório sombra − pela
primeira vez em 2001, o que pode ser visto como um processo recente e que passa
por aprimoramentos, incluindo participação oral nas sessões ou em reuniões
informais. Ademais, existem procedimentos importantes realizados no próprio País,
como participar de consulta sobre o relatório elaborado pelo Estado ou após
apresentação das recomendações e sessão no Comitê, e envolver-se em ações de
seguimento das recomendações (fallow-up).9
Quanto as missões de Relatorias da ONU, as visitas no Brasil são antecedidas
por uma aproximação entre o mecanismo especial e a sociedade civil. Essas
organizações geralmente apresentam documentos sobre a situação nacional dos
direitos humanos (no contexto do mandato da Relatoria) e indicam casos
paradigmáticos de violações desses direitos, que também justificam a indicação da
visita ao País, uma vez que o relator fundamenta suas preocupações pelo número e
gravidade dos casos de que toma conhecimento.
A visita também conta com a
participação das organizações de direitos humanos na agenda do relator em missão,
em encontros com o expert ou prestando esclarecimentos quanto às principais
questões que implicam o mandato da Relatoria. Nos documentos encontrados, que
incluem publicações e relatórios construídos em consórcio com organizações e
movimentos, logo é possível associar o trabalho dessas organizações a um
engajamento direto na missão da ONU ou a ações de seguimento. No Brasil, as
organizações de direitos humanos prepararam publicações e relatórios que
8
Ver GELMAN, M.. Direitos humanos: a sociedade civil no monitoramento. Curitiba: Juruá,
2007.Para consultar a data de entrega dos relatórios e informações sobre data das sessões ver
www.monitoramentodhi.org.
9
Mais informações em: INTERNATIONAL SERVICE FOR HUMAN RIGHTS (ISHR). Simple
guide to the UN treaty bodies.Geneva, jul. 2010.
4049
Anais do VIII Encontro da ANDHEP
ISSN: 2317-0255
documentam violações de direitos humanos no Brasil segundo um mandato temático
ou que buscam dar seguimento às recomendações da ONU10. Da mesma forma, as
ONGs e os movimentos mobilizam-se em busca de informações sobre o tema, que,
inclusive, fazem uso de dados produzidos pelo próprio Estado brasileiro, como os
dados sobre o Estado do Rio de Janeiro. Outro cuidado é produzir documentos em
inglês para garantir o acesso do relator a essas informações
A difusão de informações sobre violações de direitos humanos é a estratégia
base das redes de direitos humanos no inicio do estabelecimento dos mecanismos de
proteção dos direitos humanos, como mencionamos no item anterior. Posteriormente,
com o desenvolvimento dos sistemas regionais de proteção, a responsabilização dos
perpetradores pode ser vista como uma etapa adicional e nova da atuação da
sociedade civil ao peticionarem nas Cortes de Direitos Humanos, desta vez contra o
Estado em regimes democráticos e com novas estratégias e objetivos que passam a
compor um ativismo jurídico transnacional (SANTOS, 2007).
No âmbito do Sistema Regional (Comissão Interamericana de Direitos
Humanos e Corte Interamericana de Direitos Humanos), os movimentos sociais
também estão entre os peticionários. Embora o acesso ao Sistema seja aberto para
todos, sabemos que para chegar a instância internacional estamos diante de um
conhecimento e recursos restritos a especialista internacionalistas e de direitos
humanos. Apesar disso, podemos reconhecer a articulação entre organizações
internacionais especializadas e movimentos sociais nacionais, o que pode fortalecer a
legitimidade da atuação de uma ONG internacional dependendo da temática sob
análise, mas sobretudo porque para dar seguimento as decisões e recomendações no
âmbito interno, são as organizações de atuação local que apresentam condições de
diálogo interno (PIOVESAN, 2010).
Conforme explica André Carvalho Ramos (2004), as recomendações podem
ser vistas como um “produto” dos processos de responsabilidade internacional por
violação dos direitos humanos.
10
Ver PIOVESAN, Flávia et al. Execuções sumárias, arbitrárias ou extrajudiciais..., cit.
Independência dos juízes: aspectos relevantes, casos e recomendações / organização: Jayme
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9 Análise do cumprimento pelo Brasil das
Recomendações do Relator Especial da ONU sobre Execuções Extrajudiciais, Sumárias ou
Arbitrárias.
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<http://monitoramentodhi.org/arquivos/resultados/RESUMO-Relatorio-Execucoes-ONU2005.pdf>. Acesso em: 25 out. 2010
4050
Anais do VIII Encontro da ANDHEP
3
ISSN: 2317-0255
Execuções sumárias no Brasil: disputas por direitos e limites a atuação
dos movimentos sociais
As recomendações da ONU ao Brasil, tanto de Relatorias como Comitês de
Tratados11, são, em resumo, um conjunto de ações que versam sobre investigação e
responsabilização nos casos de execuções sumárias e questões de segurança
pública, bem como propõem ações que envolvem instituições – Secretaria de
Segurança Pública, Corregedorias de Polícia, Ouvidoria, Instituto Médico-Legal – que,
no plano interno, são os organismos competentes nos procedimentos de investigação
e responsabilização, incluindo agentes públicos, especialmente policiais civis e
militares.
Apesar do texto não buscar detalhar as recomendações ao Brasil, vale
mencionar que são ações preocupadas com: a) reformas de instituições responsáveis
pelo controle e prevenção de mortes por agentes do Estado ou uso excessivo da
força; b) procedimentos de investigação independente humanos, proteção às
testemunhas; c) responsabilização dos acusados; d) educação e direitos humanos
para agentes do Estado como resposta às práticas discriminatórias; e) proteção de
pessoas ameaçadas (testemunhas e defensores de direitos humanos ou lideranças)
ou que sofrem discriminação (criança e adolescentes, negros, indígenas e
quilombolas).
As ações identificadas nesses documentos são conseqüências das análises de
práticas locais, tanto ao considerar cartas enviadas a ONU, como os encontros
proporcionados pela visita in locu. Todos esses canais, como explicado no item
anterior, são espaços de interação entre sociedade civil e ONU, bem como ONU e os
Estados.
O estudo do conteúdo dos relatórios das missões da ONU no Brasil e dos
relatórios temáticos sobre execuções sumárias apresentados pela Relatoria da ONU
sobre o tema, viabilizaram mais informação sobre o contexto que se busca responder,
em matéria de proteção, defesa e responsabilização por direitos humanos. Tal
levantamento permitiu identificar três circunstâncias que podem auxiliar na
compreensão das características de ameaças e assassinatos no Brasil e a
compreender o contexto em que as Recomendações da ONU estão inseridas (LEÃO,
2011):
(i)
O direito à vida se relaciona com outro direito. As execuções sumárias são
um procedimento usado em face de um interesse em disputa.
Por
11
Uma avaliação das principais potencialidades do Brasil sobre questões de direitos humanos,
realizada pela Equipe Local das Nações Unidas (UNCT) em 2005, faz um resumo do conteúdo
das recomendações dos relatores da ONU até aquela data. Cf. UNCT. Uma Leitura das
Nações Unidas sobre os Desafios e Potenciais eo Brasil, agosto, 2005.
4051
Anais do VIII Encontro da ANDHEP
ISSN: 2317-0255
exemplo, a disputa pela terra, pano de fundo de assassinato de
camponeses, indígena ou comunidades tradicionais;
(ii)
Os direitos em risco anteriormente a morte ou ameaça. As execuções são
uma forma de atingir a investigação e responsabilização dos perpetradores
da violação primária. Por exemplo, quando defensores de direitos
humanos e testemunhas são mortos em face das informações que
detinham ou em face de denúncias realizadas contra grupos ou pessoas
envolvidos em atividades criminosas, não necessariamente assassinatos;
(iii)
Os grupos atingidos por serem considerados “indesejáveis” na sociedade
(moradores de favelas, meninos e meninas de rua, negros, condenados
por crime) e, assim, não “dignos” de direitos nem titulares de direitos
humanos. Os grupos e as pessoas identificados nas situações 1 e 2
também encontram processos de estigmatização e criminalização − por
serem consideradas “indesejáveis” − que podem “justificar” suas mortes.
Essas três situações serão explicadas a seguir, tendo como base os documentos
da ONU e com o foco no trabalho local desenvolvido pelos movimentos sociais.
As recomendações ao Brasil permitem destacar grupos – defensores de
direitos humanos, testemunhas, negros, pobres 12 – diretamente beneficiados pelo
conjunto de ações indicadas ao Estado brasileiro para resguardar alguns direitos em
disputa – meio ambiente, direito à terra, por exemplo. Esse grupos e pessoas são
beneficiados das recomendações na medida em que são atingidos por ações
violentas. Apesar dos diferentes sujeitos, o presente texto se concentrará em dar
ênfase nas formas e situações em que os defensores de direitos humanos estão
envolvidos, com base nos relatórios da ONU.
A relatora Asma Jahangir fez considerações nesse sentido, ao analisar que a
violência policial está em regiões diferentes e que os alvos desses assassinatos
podem variar: conflitos pela posse da terra com morte de trabalhadores rurais ou
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situações em que defensores de direitos humanos são “silenciados”.
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13
Essas
considerações também estão em recomendações de outras Relatorias temáticas e
podem reforçar ou complementar o conteúdo das recomendações da Relatoria sobre
Execuções Sumárias, Arbitrárias ou Extrajudiciais, como a explícita preocupação da
Relatoria Especial sobre as Formas Contemporâneas de Racismo, Discriminação
12
A/HRC/11/2/Add.2, par.8.
E/CN 4/2004/7/Add.3, pars. 36-41.
13
4052
Anais do VIII Encontro da ANDHEP
ISSN: 2317-0255
Racial e Xenofobia e Representante Especial sobre a Situação dos Defensores de
Direitos Humanos.
Flávia Piovesan (2011), ao estudar os casos contra o Brasil após a abertura
democrática, apresenta o perfil das vítimas de violações de direitos humanos como
socialmente pobres, com exceção dos defensores de direitos humanos e lideranças
rurais. Essa conclusão pode se relacionar com a ideia de que a "eliminação" da
existência de um defensor de direitos humanos está mais associada aos direitos sob
disputa, como nos conflitos agroamabientais, do que a pessoa do defensor dos direitos
humanos. Essa segunda relação (pessoa do defensor) irá se vincular às execução
sumárias quando formos pensar as dificuldades de apuração e responsabilização do
assassinato ou ainda pela "legitimidade" de assassinatos ou negação do acesso à
justiça, o que ocorre com a criminalização da atuação desse grupos ou de atividade
dessas pessoas.
a. Conflito agroambiental, mortes e violência no campo
Disputas judiciais ou enfrentamento de camponeses com forças de segurança
privadas não é um assunto novo no Brasil. Porém, a dimensão dessas práticas, com
participação de policiais militares, ganhou repercussão internacional com o que
conhecemos por Massacre de Eldorado dos Carajás, em 1996, e Corumbiara, em
1993.
A violência relacionada ao conflito agroambiental está associada a uma
complexa análise dos direitos econômicos, sociais e culturais, bem como a processos
de violência e fraude que marcam a disputa pela terra, envolvendo trabalhadores
rurais, indígenas e quilombolas. Nesse sentido, há uma crescente preocupação pelas
mortes por conflito no campo, o que preferimos chamar de conflitos agroambientais,
para não resumir a questão às disputas pela propriedade ou posse da terra. O tema é
posto como uma questão de fundo da violência, em que não são feitas
recomendações direcionadas às execuções sumárias, mas, sim, que se relacionam ao
contexto dessas mortes, como colocado nos informe de Asma Jahangir e Philip Alston.
Philip Alston, Relator da ONU, menciona os conflitos no campo como um cenário
que não pode ver as mortes como ações inevitáveis desse contexto, menciona
expressamente no relatório da missão14:
Ainda que as mortes individuais sejam o resultado de problemas
estruturais de conflito de terras, de antigos e complexos sistemas de
uso e propriedade da terra, isso não deve ser usado como uma
desculpa para esquivar-se de tomar medidas imediatas para a
prevenção, o julgamento e a sanção das execuções extrajudiciais que
14
A/HRC/11/2/Add.2, par.40.
4053
Anais do VIII Encontro da ANDHEP
ISSN: 2317-0255
ocorrem em tal contexto. Os conflitos pela terra são o contexto no
qual essas mortes acontecem. Mas, nos conflitos pela terra, não é
obrigatório que as execuções sejam inevitáveis. As execuções
ocorrem porque os mandantes e os assassinos sabem que ficarão
impunes. O Brasil precisa garantir que as ameaças de morte
relatadas sejam investigadas e os criminosos, punidos.
Mortes no campo são perpetradas contra indivíduos ou contra grupos. No caso
de mortes coletivas, também denominadas massacres 15 ou chacinas, em geral, a
visibilidade advém em razão do local em que ocorreram – Fazenda Ubá, Fazenda
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caso de indivíduos trata-se de assassinatos de lideranças – que neste trabalho
chamamos de defensores de direitos humanos. Ataíde Júnior (2006) ao estudar a
violência no sudoeste do Pará, buscou mencionar 11 casos considerados
paradigmáticos para a região. Desses casos, seis assassinatos contra indivíduos
tratavam-se de lideranças locais – Gabriel Pimenta, Irmã Adelaide de Molinar, Arnaldo
Delcídio Ferreira, Antônio Teles Saraiva, Onalício Araújo Barros e Valentim da Silva
Sena (estes últimos conhecidos por Fusquinha e Doutor), e Euclides Francisco Paulo.
Os conflitos agroambientais também fazem parte do contexto da morte de defensores
de direitos humanos, relatados como lideranças rurais e que se diferenciam das
mortes coletivas, configuradas como massacres ou chacinas no campo.
Uma outra marca dessa relação entre execuções sumárias e conflitos
agroambientais é a presença de grupos de extermínio, tal qual analisa o Relator:
Os grupos de extermínio são também responsáveis por assassinatos,
em áreas rurais, de trabalhadores sem-terra e de indígenas,
normalmente num contexto de disputa por terras. Mesmo que o
número anual de mortes de trabalhadores sem-terra e indígenas não
represente uma grande parte do número total de homicídios no Brasil,
as mortes servem para enfatizar um sistema mais amplo de
repressão, demonstrando as consequências letais para quem
desafiar os poderosos.
O especialista menciona as mortes no campo quando trata de grupos de
extermínio. Esses grupos possuem atuação e características relacionados à
pistolagem e às milícias privadas, marcados por uma relação de “cumplicidade” entre
setor público e privado que devem ser incluídos na leitura sobre “desafiar os
poderosos”. Tais situações, muitas vezes, podem, inclusive, refletir-se na investigação
e apuração dos fatos, prejudicando a assistência às vítimas e a seus familiares. Essa,
por exemplo, foi uma das conclusões da análise de mérito do Caso Corumbiara pela
15
Massacre é expressão utilizada para se referir a homicídios coletivos, não exclusivo às
execuções sumárias, arbitrárias ou extrajudiciais ver LOZANO BEDOYA, Carlos Augusto.
Justicia para ladignidad…, cit., p. 212-214.
4054
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Comissão Interamericana de Direitos Humanos.16
Essa mesma análise pode ser compreendida com base na literatura sobre
violência no campo (LOUREIRO, 2001) um contexto local que envolvem vendas
fraudulentas de terras sem considerar a presença de posseiros legítimos, com
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17
Especial
sobre
Contemporâneas
de
Racismo,
Discriminação Racial e Xenofobia analisa que os conflitos pela terra que envolvem
direitos de povos indígenas e de comunidades quilombolas são postos como um
reflexo das circunstâncias de discriminação em que vivem essas populações e como
são vistas na sociedade brasileira. Igualmente, a representante especial sobre
Defensores de Direitos Humanos (HinaJilani), em relatório da missão realizado em
2006, ao expor a relação entre os movimentos sociais e as ameaças que enfrentam,
apresentou recomendações direcionadas às pessoas atingidas por violências
associadas às questões de conflitos agroambientais, como quilombolas, trabalhadores
rurais e indígenas.18
O campo também é posto como um espaço de violência contra a pessoa com
elementos de racismo e discriminação. Dessa maneira, foram denunciados os
processos de discriminação e violência pelos quais passam os envolvidos diretos nos
conflitos agroambientais, tais como trabalhadores rurais, indígenas e quilombolas, com
ênfase em riscos de morte a que se submetem as lideranças desses movimentos, um
dos grupos atingidos por assassinatos ou ameaças à pessoa.
b. Ciclo da impunidade e ameaças de morte
A vitimização de defensores de direitos humanos e de testemunhas se
relaciona à intimidação de pessoas envolvidas em denúncias de diferentes violações
de direitos humanos – incluindo crimes de execuções sumárias –, o que dificulta,
assim, a investigação e a responsabilização por outro crime. O relator da ONU explica,
quando defende a proteção de testemunhas ameaçadas, que esta deve se dar em
resposta ao sacrifício pessoal que a testemunha se submete em benefício da
16
Ver Informe n. 32/2004,pars. 78-81, Caso n. 11.556, 11 de marzo de 2004, CIDH.
Ataíde Júnior acrescenta três outros elementos indicados por Violeta Loureiro. Cf.
LOUREIRO, Violeta. Estados, bandidos e heróis. Belém: CEJUP, 2001, p 354; ATAÍDE
JÚNIOR, Wilson Rodrigues. Os direitos humanos ..., cit., p. 245.
18
A/HRC/4/37/Add.2, par. 16. A par 23
17
4055
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sociedade, ou seja, trata-se da condição para quebra do “ciclo de impunidade” – “a
necessary condition for breaking the cycle of impunity”.19 Isso igualmente pode ser dito
sobre a importância do trabalho, sob ameaças, dos defensores de direitos
humanos.Como se vê, as situações de ameaças à pessoa relacionam-se aos
procedimentos de investigação de violações de direitos humanos.
Liberdade de associação, liberdade de expressão, direito de reunião, à vida
privada e à intimidade, são diferentes direitos violados ou postos em risco. No entanto,
é em função da necessidade de proteger a vida diante de ameaças de mortes aos
defensores que muitos casos chegam com pedidos de medidas cautelares à
Comissão Interamericana (OEA, 2006). Nesse sentido, políticas que previnem e
enfrentam a violência institucional e as execuções extralegais devem considerar
também os defensores de direitos humanos como um grupo vulnerável aos
assassinatos por ação ou omissão do Estado.
Ameaças ou assassinatos buscam impor limites à investigação e à
responsabilização dos acusados com base no uso ilegal da força. Essas pessoas têm
seus direitos mais vulneráveis em função de uma violência que antecede os riscos que
sofrem, correm riscos de morte diante das denúncias que realizam ou crime que
testemunharam no combate à impunidade. A propósito, casos de defensores de
direitos humanos – Caso Dorothy Stang e Caso Manoel Mattos – têm levantado o
debate sobre o deslocamento de competência, conhecido também como federalização
dos crimes contra os direitos humanos. A medida busca assegurar a investigação
independentemente do fato de as instituições locais responsáveis não possuírem
condições para prosseguir com o procedimento investigatório ou criminal, uma das
principais recomendações internacionais ao Brasil, bem como o reforço de ações em
prol da proteção de testemunhas ameaçadas.
Um exemplo importante da relação entre violação de direitos humanos e
ameaça a pessoa foi o assassinato de Manoel Mattos, em janeiro de 2009. Após
Manoel Mattos realizar denúncias e participar de investigação de grupos de extermínio
no interior da Paraíba e de Pernambuco, passou a receber reiteradas ameaças de
morte que se tornaram públicas e conhecidas de todo o Estado brasileiro, inclusive por
meio de Medida Cautelar na Comissão Interamericana de Direitos Humanos. O
trabalho de Manoel Mattos era reconhecido principalmente pela sua atuação na
Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) sobre Grupos de Extermínio no Nordeste,
concluída em 2004. A situação resume as dificuldades para se investigar mortes
cometidas por grupos de extermínio (violência primária), assassinato de defensores de
19
A/63/313.
4056
Anais do VIII Encontro da ANDHEP
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direitos humanos e ameaça de testemunhas (violência secundária), bem como a
federalização de crimes contra os direitos humanos (a qual assegura uma investigação
e julgamento independente).
Apesar das atividades de Manoel Mattos coincidem com uma defesa dos
direitos humanos no seu contexto profissional, não se trata de uma regra. A única
definição que temos diz respeito às características das atividades desenvolvidas pelos
defensores, segundo a Resolução n. 53/154 da ONU – Declaração sobre Defensores
de Direitos Humanos –, o que pode implicar atuação também fora da atividade laboral.
Por vezes, uma disputa de direitos pode levar a pessoa que tem seu direito ameaçado
a desempenhar um ativismo em prol dos direitos humanos e a realizar denúncias que
coloquem não apenas sua vida sob ameaça mas também a atividade de liderança que
desenvolve. Um exemplo é a medida cautelar do Caso Xucuru, citado pelo informe
específico sobre a situação dos defensores de direitos humanos na região. Tal fato
pode ser igualmente visto na situação das lideranças rurais já citadas.
Quando o intuito é proteger o defensor que também tem um direito em disputa
– como no Caso Xucuru ora relatado –, não se está avaliando o mérito da causa, mas,
sim, busca-se proteger a pessoa que sofre ameaça diante do direito humano que
defende.20 Em 2010, outro caso exemplar foi admitido na CIDH, complementando os
riscos às lideranças. Trata-se do Caso Gabriel Pimenta, diretamente associado à
disputa pela terra, o qual exemplifica a conexão entre violência por disputa de direitos
(conflitos de terra) e a expansão dessa situação para a vulnerabilidade de direitos da
liderança de um grupo ou movimento. No Caso Gabriel Pimenta, havia disputas de
terras por trabalhadores rurais, enquanto no Caso Xucuru estas ocorreram por
ameaças às terras indígenas.
Ressalte-se que mortes e ameaças aos defensores de direitos humanos
também encontram outra situação que busca justificar as execuções sumárias, qual
seja, a categorização dos defensores como “protetores de bandidos” ou como
“bandidos”, alimentando estereótipos também associados à criminalização dos
movimentos sociais e defensores de direitos humanos.
c. A relação entre criminalização de movimentos sociais e execuções
sumárias
Os dois itens que explicam a relação execuções sumárias e riscos para
defensores de direitos humanos se relacionam com discriminação e racismo.
20
OEA/Ser.L/V/II.124.
4057
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Conforme já mencionamos, são diferentes formas de violência e limitações de
direitos que atingem defensores de direitos humanos.21 Assim, a missão de HinaJilani
no Brasil não esgotou as questões de riscos 22 que envolvem as atividades desses
ativistas ou profissionais, embora a ênfase fosse para ameaças que sofrem os
principais grupos, mencionados como grupos atingidos pelo uso excessivo da força.23
Os defensores de direitos humanos que sofrem perseguições no espaço
urbano também foram incluídos na análise de HinaJilani, principalmente por
denunciarem assassinatos atribuídos a grupos de extermínio com envolvimento de
agentes públicos.24 Com atuação urbana ou rural, todos os movimentos encontram-se
em um processo de criminalização que não se dissocia do uso excessivo da força ou
do envolvimento violento de instituições públicas.25 Os funcionários dessas instituições
também não estão imunes a ameaças à integridade física e vida, uma das razões da
visita da Representante Especial para Situação dos Defensores de Direitos Humanos,
observação apresentada por Leandro Despouy em 2005 ao Brasil26 - Recomendação
106. Frente às ameaças e atos de violência sofridos por juízes, advogados e
defensores, sobretudo aqueles ligados a processos sobre questões sociais (como, por
exemplo, a da terra, a indígena e a dos defensores do meio ambiente), o Relator
Especial recomenda a realização de uma visita por parte da representante Especial do
Secretário Geral sobre a Situação dos Defensores de Direitos Humanos.
Em termos práticos, a recomendações da ONU indicou ações que buscam
responde a criminalização da atividades do defensores de direitos humanos e ações
que protejam vida e integridade física dos ativistas27. Para prevenir o uso excessivo
da força outras duas situações são consideradas importantes: a) uso excessivo da
força em protesto sociais que reforcem a criminalização de defensores de direitos
humanos 28 /
)
%
2
%
&
$ / 6
%
rurais,29 – por exemplo, situações vivenciadas pelos casos Eldorado dos Carajás e
Corumbiara, ambos amplamente difundidos pela imprensa nacional30.
21
A/HRC/4/37/Add.2, par. 11.
O informe na seção II menciona preocupações em torno de ataques contra a integridade
física, criminalização dos ativistas e de suas mobilizações, bem como a violência policial em
manifestações públicas.
23
A/HRC/4/37/Add.2, par.10.
24
Sobre defensores de direitos humanos no meio urbano ver A/HRC/4/37/Add.2, pars. 28-29.
25
Sobre Judiciário e ocupação de terras verE/CN.4/2005/60/Add.3, pars. 45, 83-84.
26
E/CN.4/2005/60/Add.3
27
As Recomendações ns. 101 e 103, apresentadas em 2006 por Hina Jilani:
28
A/HRC/4/37/Add.2, pars. 36-42.
29
A/HRC/4/37/Add.2, pars. 43-47.
22
30
Recomendações105 e 106, apresentadas em 2006 por Hina Jilani.
4058
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ISSN: 2317-0255
Teresa Caldeira,31 ao buscar compreender como o medo circula e a violência
prolifera diante de desigualdades sociais, explica a categorização de ações entre bem
e mal na expressão da criminalidade, dado que tudo o que é visto como mal ou ruim é,
portanto, criminoso. Dessa maneira, criminalização é um termo comum a ser
empregado quando se falar de violência contra negros, movimentos sociais ou
moradores de áreas periféricas. Considerando que, na pesquisa de Caldeira, uma de
suas conclusões é o fato de que a aplicação da lei aos “bandidos” é vista como um
privilégio e, portanto, não pode ser aceita pela sociedade. Além disso, acrescente-se
que a vitimização dessas pessoas “indesejáveis”, ora citadas, mobiliza pouco ou
quase nada a opinião pública, que associa as pessoas assassinadas a criminosos no
presente ou no futuro. Seguindo essa lógica, criminalizar é um caminho que “legitima”
a desproteção dos direitos humanos, processo também percebido quando se fala em
violência contra trabalhadores rurais, indígenas e defensores de direitos humanos,
sobretudo com o movimento atual, não exclusivamente brasileiro, de criminalização de
movimentos de direitos humanos.
A criminalização de movimentos sociais e estigmatização fundamentam a
morte de pessoas categorizadas como “indesejáveis”. Essa estigmatização torna-se
muito evidente com a abertura democrática, sobretudo quando os ativistas que
defendiam os presos políticos e o fim do regime militar, passam a defender outros
sujeitos de direitos – direitos de prisioneiros e de vítimas de tortura, por exemplo
(CALDEIRA, 2000). Em relação aos trabalhadores rurais também existe uma
associação dessas pessoas à categoria de criminoso tal como aquelas que cumprem
penas e “merecem” viver em condições desumanas e degradantes nas prisões32.
A criminalização dos movimentos sociais ou das atividades de defensores de
direitos humanos relaciona-se a ”legitimar” atos violentos e assassinatos, além de
estar ligada a outras violações de direitos humanos e interesses em disputas. Essa
complexidade em torno da violência contra as lideranças de movimentos sociais, por
exemplo, é uma das situações habitualmente mencionadas quando nos detemos na
31
CALDEIRA, Teresa. Cidade de muros..., cit.
“A tragédia que foi o massacre de pobres, trabalhadores rurais, os sem-terra, em Eldorado
dos Carajás, no Estado do Pará, mostra de maneira eloquente a brutalidade e a imoralidade a
que pode levar uma ação inspirada no preconceito. Os ditos proprietários das terras em
questão nem mesmo eram proprietários, pois se tratava de terras devolutas, pertencentes ao
patrimônio do Estado, que alguns ricos e poderosos donos de terras tomaram para si. Mas os
sem-terra são muito pobres e se movimentam à procura de um lugar para fixar suas famílias e
trabalhar. Além da corrupção econômica presente naquele massacre, é fato que, na
mentalidade daquela região, os sem-terra, exatamente por essa condição, são considerados
bandidos perigosos. Daí a facilidade para se aliarem latifúndiários, governantes, tribunais e
polícia, para matança dos que nem mesmo são vistos como seres humanos, pessoas e
famílias para quem não vigora o artigo 1˚ da Constituição, que declara a dignidade humana
como um fundamento da República” (DALLARI, Dalmo Abreu. Policiais, juízes e igualdades de
direitos. In: LERNER, Júlio. (Ed.). O preconceito. São Paulo: Imesp, 1996/1997, p 101).
32
4059
Anais do VIII Encontro da ANDHEP
ISSN: 2317-0255
análise dos conflitos no campo. Dessa maneira, a Relatoria Especial sobre Direito à
Alimentação – Olivier De Schutter – não deixou de notar “com preocupação que
situações politicamente tensas – particularmente as que envolvem disputas de terras e
a implantação de grandes projetos de infraestrutura – ainda podem resultar em
repressão violenta pelas forças de segurança do Estado”.33 Além disso, manifestou-se
sobre os protestos sociais com a perspectiva de que o ativismo e as manifestações
públicas devem ser protegidos segundo as normas de direitos humanos34. Apesar de
essa Relatoria temática centralizar seu mandato no direito à alimentação,35 ao tratar
das questões ligadas ao uso e propriedade de terra, manifestou-se acerca de
questões correlacionadas, tais como disputa pela terra e violência, uma das
preocupações da Relatoria sobre Execuções Sumárias.
4 Síntese Final
O conteúdo das recomendações de outros mecanismos especiais importa na
medida em que a Relatoria Especial da ONU sobre Execuções Sumárias, Arbitrárias
ou Extrajudiciais, ao enumerar os objetivos do seu mandato e explicar as
circunstâncias em que as execuções ocorrem, indica alguns grupos mais vulneráveis à
violência com essas características. Assim, mandatos temáticos sobre direitos
humanos de grupos específicos reforçam recomendações que enfocam a proteção de
pessoas ameaçadas e a não discriminação. Por conta disso, foram expostos
recomendações sobre: a) violência contra defensores de direitos humanos no espaço
urbano e rural; b) pessoas envolvidas em conflitos agroambientais, como
trabalhadores rurais, quilombolas e indígenas. Essas situações estavam relacionadas
também às situações discriminatórias analisadas pelos relatores, segundo o contexto
em que a violência se desenvolve.
Nossa atenção foi para assassinatos diretamente relacionadas as atividades
dos movimentos sociais segundo uma abordagem temática – execuções sumárias,
arbitrárias ou extrajudiciais, o que não significa que outras situações estejam fora da
agenda dos movimentos sociais, por exemplo as violência contra jovens negros e
pobres ou a violência nas prisões no País. Apesar de ocorreram em contextos
diferentes – discriminação racial contra adolescente, morte sob custódia e violência no
campo – podem revelar a mesma dificuldade de garantia de investigação, fato que foi
mencionado pela ONU.
Conforme exposto sobre a complexidade das execuções sumárias e suas
33
A/HRC/13/33/Add.6, par. 24.
A/HRC/13/33/Add.6, par. 25.
35
Relatoria Especial sobre o Direito à Alimentação, 1° a 18 de março de 2002. Relator: Jean
Ziegler.
34
4060
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características, existem circunstâncias em que pessoas ou grupos correm mais riscos
de serem assassinados ou sofrerem ameaças, associados a três situações,
identificadas como: a) morte por disputas de direitos – $ / 6
%
(%>+ (
b) morte por denunciar ou testemunhar uma violação de direitos humanos –
% 2 (
% %
$
(
$
$
(
$
/
2 (%
($ %
“menos humanos” ou “indesejáveis” – negros, pobres, moradores de favelas, crianças
e adolescentes, perspectiva que pode abranger as situações indicadas anteriormente
nas letras “a” e “b”.
Embora os tratados de direitos humanos protejam o indivíduo da prática de
execuções sumárias, arbitrárias ou extrajudiciais – assim como o ordenamento jurídico
brasileiro protege o direito à vida −, a complexidade em que essa violação de direitos
humanos ocorre no Brasil é informação que vem dos mecanismos de controle, tal qual
a Relatoria Especial da ONU sobre Execuções Sumárias, Arbitrárias ou Extrajudicias.
Pode-se dizer que aí reside um de seus valores, o qual agrega à normativa de
proteção internacional dos direitos humanos a dinâmica do exercício desses direitos
segundo contextos (países e temas) mais definidos.
Qual a centralidade das recomendações da ONU na ação dos movimentos
sociais? Ao longo de nossa exposição relacionamos execuções sumárias como uma
violação de direitos humanos, conteúdo protegido por um sistema específico no âmbito
internacional, e complementar ao ordenamento jurídico nacional. Com isso, a
centralidade da ação dos movimentos sociais é o próprio direito que são defendidos e
reivindicados no cotidiano das lutas dos diversos movimentos sociais. A expansão
dessa atuação para as recomendações da ONU implica uma série de circunstância,
entre ela a apropriação da argumentação jurídica que os direitos humanos propiciam
como fator para legitimar a fundamentação das causas sociais.
O Sistema de Proteção Internacional de Direitos Humanos se apresenta
fortemente como um espaço de protagonismos dos movimentos sociais, pela sua
própria configuração: proteger a pessoa humana. Diante da diversidade de demandas,
nosso estudo se concentrou nas execuções sumárias, arbitrárias e extrajudiciais, e
quanto ao tema, identificamos uma tipologia que inclui diferentes direitos ameaçados e
violados, com potencial para descrever os procedimentos adotados para solucionar
disputas por direitos ou para “silenciar” a ação dos ativistas sociais. Com isso, as
execuções sumárias atingem pessoa integrante de um movimento social como meio
de fragilizar os objetivos de luta dos movimentos.
Dessa maneira, as recomendações podem ser vistas como um parâmetro
adicional e próximo da realidade, para avaliar ações em favor dos direitos humanos, o
que transpõe a questão de mecanismo de proteção como eficaz.
4061
Anais do VIII Encontro da ANDHEP
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Apesar das críticas ao sistema de proteção dos direitos humanos como limitado, essa
avaliação depende do uso estratégico que esse mecanismo pode representar. No caso
de assassinatos e violência, este pode ser visto como um tema de maior
sensibilização da opinião pública do que outros (por exemplo, direito á terra), como
analisa James Cavallaro (2008) ao estudar os casos de litígio do MST no Sistema
Interamericano.
As recomendações sobre execuções sumárias ao Brasil não são simples produto
do acesso aos mecanismos de monitoramento dos direitos humanos. Tentamos
relacionar a atuação dos movimentos sociais tanto na incidência no conteúdo de
tratados e declarações, na difusão de praticas ameaçadoras aos direitos humanos. E
as diferenças entre atuação na justiça nacional e justiça internacional também não se
restringe a diferença entre advocacias, trata-se de objetivos atrelados à proteção da
pessoa humana, razão de existência e desenvolvimento do ordenamento de proteção
dos direitos humanos.
5. Referências
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4063
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Lucas Caetano¹
Sara Prado²
Ludmila Ribeiro³
Vinicius Couto4
Centro de Estudos de Criminalidade e Segurança Pública (CRISP)
da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
Como o Policial escolhe um suspeito?5
Introdução
A expressão de senso comum “bandido não tem estrela na testa” nos mostra a
existência de uma dificuldade de ordem empírica: como o policial define quem ele
deve abordar, uma vez que o simples ato de observar um indivíduo na rua não é
suficiente para saber se ele é um desviante. Mesmo com essa dificuldade, esse
mesmo senso comum elabora alguns tipos ideais de suspeitos, que muitas vezes são
baseados em preconceitos, mas se consubstanciam como representações sociais
indispensáveis na orientação do policial de linha de frente.
As estatísticas oficiais, tais como os censos do sistema prisional,também
constroem um perfil daqueles que cometem crimes. Segundo Coelho (2005) no caso
do Rio de Janeiro, no fim da década de 1970, esses dados apontavam para indivíduos
do sexo masculino, com baixo nível educacional que residiam em áreas mais pobres
da periferia. Esse perfil ainda permanece no país.Segundo dados de 2009, 93% dos
presos no Brasil eram homens, sendo que 59% destes apresentavam idades entre 18
e 29 anos e 53,7% não possuíam o ensino fundamental completo. 6
Para Coelho (2005), essas estatísticas são enviesadas por pelo menos três
fatores. Primeiramente, a tendência diferencial entre as classes sociais de registrar
queixas de certos crimes pode fazer com que a distribuição espacial da criminalidade
gerada a partir dos dados não represente o real. Um outro fator importante é a
capacidade organizacional da instituição policial, que tende a responder a pressões
políticas ou da opinião pública, intensificando a ação contra certos tipos de crime e
assim aumentando a representatividade destes nas estatísticas. O último dos fatores
apontados pelo autor e o mais importante para a nossa análise, são os estereótipos
¹Graduando em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) ²
²Graduanda em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)
³Professora Adjunta do departamento de Sociologia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)
4Doutorando em Sociologia pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)
5Trabalho desenvolvido com o apoio da Universidade Federal de Minas Gerais, a partir dos recursos do
Edital 12/2011 (Auxílio à Pesquisa de Doutores Recém- contratados) da Pró-Reitoria de Pesquisa (PRPq).
Gostaríamos de agradecer o apoio de toda equipe do Centro de Estudos de Criminalidade e Segurança
Pública (CRISP) da UFMG, em especial aos pesquisadores Cesar Velásquez, Valéria Cristina Oliveira e
Victor Neiva.
6Dados disponíveis em:
http://portal.mj.gov.br/data/Pages/MJD574E9CEITEMID2627128ED69E45C68198CAE6815E88D0PTB
RNN.htm acessado no dia 10 de abril de 2014
4064
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que os policiais têm do criminoso que constituem referências para atuação policial,
mas que muitas vezes significam o enfoque sobre determinado grupo da sociedade.
No entender de Beato (2012), esses estereótipos são derivados de rotulações
dadas aos grupos pouco organizados e que tem menos poder por aqueles que são
fortemente organizados e detém maior poder. Sendo assim, os grupos de menor
poder, possuem maior probabilidade de serem abordados, presos e condenados.
O caso brasileiro é útil para verificar essa teoria. A Lei Áurea (1888) e a
Proclamação da República (1889) dotaram de direitos as populações antes vistas
como simples mercadorias, que passaram a ser rotuladas pelas elites dominantes
como classes perigosas (Terra, 2010). Dessa forma, essas ditas classes perigosas
passaram por um processo de demarcação física, por meio de teorias como a de
Lombroso, e até mesmo moral, que culminaram na perseguição de capoeiristas e de
desempregados, a quem se atribuía a expectativa de ilegalidade (Terra,2010;
Silva,2009).
No entanto, alguns dados empíricos mostram que muito além da rotulação e de
viés existem alguns padrões comuns entre as pessoas que comentem crimes,
principalmente nos fatores idade, gênero e raça. Afinal, “crimes são universalmente
cometidos por pessoas jovens, do sexo masculino e, no caso americano, envolvendo
pessoas de raça negra” (Beato, 2012,p. 37).
Apesar de toda discussão sobre vieses e estereótipos sabemos que toda
atividade profissional cria conhecimentos próprios partindo da realidade com que é
obrigada a lidar. Os estudos etnometodologicos7 demonstram, por exemplo, que os
médicos possuem métodos de diferenciar suicídios de erros na automedicação ou até
de homicídios (Beato,1992) e que integrantes de um júri criam métodos para atuar em
um tribunal (Garfinkel,1967). Então, torna-se imprescindível esclarecer quais são os
conhecimentos utilizados e os elementos observados na prática pelos policiais para
qualificar alguém como suspeito.
A atividade policial
7
“Pesquisa empírica dos métodos que os indivíduos utilizam para dar sentido e ao mesmo tempo realizar
as suas ações de todos os dias” (Coulon, 1995 pág. 30)
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No Brasil, a Polícia Militar (PM) é a instituição do Estado que tem como missão
garantir a ordem e a segurança dos cidadãos.8 Isso implica que dentre as suas
funções esteja a realização do policiamento ostensivo, o que significa que os policiais
trabalham realizando várias abordagens diariamente com a finalidade de manutenção
da ordem pública.
Segundo Pinc (2007), na realização dessa atribuição constitucional, a Polícia
Militar do estado de São Paulo revistou mais de 7 milhões de pessoas no ano de 2006,
número que representa 18% da população paulista nesse período. Considerando outra
fonte de informação que não os dados oficiais, a autora constata que, do total de
indivíduos abordados, 55,8% eram homens com idades entre 16 e 29 anos. Mas no
que consiste exatamente a abordagem policial?
Nos cursos de formação de oficiais, os policiais recém-concursados recebem a
doutrina policial, que foi conceituada por Silva (2009) como um conjunto de
conhecimentos transmitidos aos policiais militares pelos diversos cursos autorizados
pelo comando da instituição. Esses cursos têm como objetivo passar conhecimentos
jurídicos, técnicos e humanitários necessários para o desempenho da profissão. Além
desses aspectos, existem também os ritos que marcam a passagem para a vida
militar, como a disciplina do corpo, que é controlada por regulamentos rígidos.
A doutrina policial militar de Minas Gerais (PMMG, 2011), determina que as
abordagens aos suspeitos sejam realizadas a partir de dados que configurem fundada
suspeita, observando elementos padronizados como a supremacia de força9, a
avaliação de riscos, as técnicas de busca pessoal, o posicionamento da arma e
principalmente o uso progressivo da força, que é demonstrado na figura abaixo.
8
Constituição Federal de 1988, Art 144. § 5º - “às polícias militares cabem a polícia ostensiva e a
preservação da ordem pública”.
9
“A supremacia de força é uma vantagem tática do policial em relação ao abordado para uma atuação
segura” (PMMG, 2011 pág. 62)
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Figura 1 - Pirâmide do modelo FLETC10
Fonte: Persson (2011)
A figura acima representa o modelo FLETC11 de uso progressivo da força, no
qual a aplicação do uso da força policial se dá em resposta à atitude do indivíduo
abordado. Na base da pirâmide encontram-se técnicas menos agressivas que vão
progredindo até o topo, onde se encontra o uso de força letal, que só deve ser
aplicada em caso de risco à vida do policial ou de terceiros. Assim o policial, treinado e
capacitado, deve reagir com proporcionalidade e legalidade diante de cada
situação(Silva, 2009; Pinc, 2007).
No entanto, Lima (2011) ressalta que os policiais novatos se sentem inseguros
em aplicar os procedimentos determinados pela doutrina policial, uma vez que a
prática desse trabalho apresenta desafios que não correspondem à teoria. Assim, os
novatos são incentivados pelos mais experientes a “esquecer” aquilo que aprenderam
com a doutrina policial.Nesse ponto percebemos a importância do que Silva (2009)
define como saberes policiais, ou seja, conhecimentos adquiridos pelos policiais por
meio da informalidade, da vivência do trabalho e da convivência dos policiais novatos
com os mais experientes.
10
Fonte: http://3.bp.blogspot.com/hPuMAcz6Tcg/TwkGKglZSRI/AAAAAAAAACo/KUXbQVBQtXA/s1600/Uso+progressivo+da+for%2
5C3%25A7a.gif acessado dia 11 de abril de 2014.
11
Federal Law Enforcement Training Center, Modelo desenvolvido na Universidade de Illinois em 1992.
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Nesse contexto, esses saberes vêm preencher lacunas deixadas pela doutrina
policial, por exemplo naquilo que fundamenta a escolha de determinado indivíduo para
ser abordado: a fundada suspeita, que é uma categoria que carece de maior definição.
Assim, dado que a abordagem é uma ação policial proativa, ou seja, que depende
exclusivamente da decisão de agir do policial (Pinc, 2007), este possui uma autonomia
muito grande para definição daquilo que é considerado suspeito. Dessa forma
podemos colocar a seguinte pergunta: quais são os critérios usados pelos policiais
para configurar a suspeita e consequentemente a realização da abordagem?
A suspeição policial
Embora esta pareça uma temática trivial e muito debatida, principalmente pelos
meios de comunicação, Pinc (2007) aponta que os estudos e a produção acadêmica
em torno dessa temática são muito recentes, uma vez que são poucos os interessados
no assunto.
Em seu estudo realizado com policiais militares do Distrito Federal, Silva (2009)
mostra como o processo de construção do suspeito policial se dá em contraste com o
processo de construção da identidade militar a partir da disciplina.
“[...] os suspeitos são os outros, os não policiais militares. Os outros
são os que não disciplinam os cabelos, que utilizam maquiagem
indiscretamente, que utilizam adornos de forma indiscreta e
desregrada, que têm a pele do corpo maculada (tatuagem, cicatrizes
de possíveis lutas e entre outros), que trajam roupas sujas ou que
andam de forma desajeitada, não tem a vida regrada.” (Silva, 2009, p.
65)
Portanto, os indivíduos que mais se aproximarem da identidade militar, serão
menos suspeitos para os policiais, já aqueles que se afastam constituem o tipo ideal
de suspeito. Segundo o autor, no Distrito Federal esse tipo ideal recebe o nome de
peba e é caracterizado por ser homem, pobre, jovem, tatuado, negro, pela forma de
andar e por usar vestes que são denominadas pelos policiais de kit peba. Esse kit
consiste em vestimentas geralmente identificadas com o movimento Hip Hop, como
roupas folgadas, bermudas grandes e boné (Silva, 2009).
Além do indivíduo suspeito, o autor categoriza outros dois tipos de suspeição, a
ação suspeita e a situação suspeita. A ação suspeita é caracterizada por alguma ação
de um indivíduo que demonstre desconforto ao se deparar com algum policial militar.
Esse tipo de suspeição se embasa nas predefinições dos policiais do que é uma ação
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normal e esperada. Dessa forma, indivíduos que correm, alteram seu trajeto ou tentam
esconder algo ao avistar uma viatura são enquadrados nessa categoria de ação
suspeita.
A situação suspeita, por sua vez, se embasa nas percepções que os policiais
militares têm sobre o cotidiano típico da cidade, dos lugares e do perfil das pessoas
que ocupam determinados espaços (Silva, 2009). Assim situações que ocorram fora
do roteiro normal desse cotidiano, como por exemplo, pessoas que transitam em
locais com os quais não tem vínculo ou em horários inusitados, são consideradas
suspeitas. Dentro dessa categoria podemos perceber que a ação dos policiais também
é guiada por controles sociais que também são destacados pelo autor, principalmente
os controles geográficos e os de horários.
Os policiais, através da experiência cotidiana, constroem certas representações
da cidade, classificando os lugares em mais ou menos suspeitos, constituindo assim
verdadeiros roteiros de suspeição policial em alguns lugares enquanto outros são
percebidos como não suspeitos. O tempo também é uma variável importante, uma vez
que o dia é visto como período de produção e trabalho, a noite é vista como horário de
reclusão e descanso. Assim, “os indivíduos que transitam no perigo da noite torna-se
suspeitos por expressarem atividades em horários de „não atividade‟ ou por
transitarem em horários próprios para o delito” (Silva, 2009,p. 130).
Lima (2011), em seus estudos sobre a formação da identidade profissional do
policial militar em Belém do Pará, mostra que nesse trabalho cria-se uma cultura de
estereotipação, levando em conta características do indivíduo, veículo de locomoção
usado e o lugar de trânsito e de moradia. As características observadas pelos policiais
são principalmente as vestes: indivíduos negros que se vestem com camisas e
bermudas largas, usam brinco e bonés e possuem os cabelos pintados são
automaticamente classificados como potenciais suspeitos. O veículo de locomoção
usado é observado pelos policiais, uma vez que existe a percepção entre eles de que
a maioria dos crimes é cometida de moto ou de bicicleta. O lugar de trânsito e de
moradia também é um dado observado pelos policiais, pois o simples fato de transitar
ou morar em determinada região aliado aos outros fatores torna o indivíduo suspeito.
Ramos e Musumesci (2005) conduziram um estudo sobre abordagens policiais
na cidade do Rio de Janeiro, revelando que muitos policiais possuem dificuldade em
responder quais são os critérios utilizados para se considerar alguém como suspeito.
Assim sendo, muitos preferem dar respostas defensivas, dizendo que não existem
pessoas suspeitas, apenas situações suspeitas. Porém, aspectos como idade e
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gênero aparecem como unanimidades para configurar a suspeição. Os jovens são
tidos como naturalmente transgressores, enquanto as mulheres são tidas como menos
perigosas. A suspeição com base na cor aparece como um tema desconfortável para
os policias militares do Rio de Janeiro, mas, apesar disso, a cor do indivíduo é um
atributo que influencia na abordagem.
O levantamento quantitativo com cidadãos da cidade Rio de Janeiro que,
também faz parte do estudo de Ramos e Musumesci (2005), demonstrou que o
gênero, a idade, a cor, a hora, o local e até mesmo a renda e a escolaridade são
fatores determinantes. Os homens jovens, negros, com menor renda e escolaridade
são mais abordados, sendo que a maioria dessas acontece no período da noite,
principalmente nas Zonas Oeste e Leste da cidade.
Podemos observar que existem características semelhantes na suspeição
policial, em Brasília, Belém e no Rio de Janeiro. Nessas três cidades, lugares mais
pobres são considerados mais suspeitos e o período da noite parece ser o mais
propício para o delito. Porém, o que mais chama atenção é o fato de que as
características do tipo ideal de suspeito são praticamente as mesmas: um indivíduo do
sexo masculino, negro, jovem, trajando camisas e bermudas folgadas, boné e brinco,
seria muito provavelmente alvo de abordagens em qualquer uma das três cidades.
Esse fato indica certo direcionamento da vigilância policial para determinada
camada da população, que por ser mais vigiada é também mais presa em flagrante ou
morta pela polícia. É o que demonstra a pesquisa “Desigualdade Racial e Segurança
Pública em São Paulo” (GEVAC/UFSCar, 2014), que utilizou dados da Ouvidoria da
Polícia do Estado de São Paulo. De 2009 a 2011, 61% das vítimas de morte em
decorrência da ação policial eram negras. Do total de vítimas, 78% possuíam entre 10
e 29 anos e 97% eram do sexo masculino (Tabela 1).
Tabela 1- Cor das vítimas de mortes em decorrência da ação policial
(Exclui informação ignorada). Estado de São Paulo, 2009 a 2011
Cor/ Raça
Negra
Branca
Total de Vítimas
Frequência
501
322
823
Percentual
61%
39%
100%
Fonte: GEVAC/ UFSCar - Desigualdade Racial e Segurança Pública em São Paulo, 2014
Baseados nas categorias acima descritas, tentaremos esclarecer como se dá a
construção do suspeito por parte da Polícia Militar de Minas Gerais na cidade de Belo
Horizonte.
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Suspeição Policial em Belo Horizonte
No site da Polícia Militar de Minas Gerais encontramos a seguinte definição de
abordagem:
“É o ato de uma Guarnição Policial Militar aproximar-se e interpelar
pessoa que apresente conduta suspeita, a fim de identificá-la e/ou
proceder à busca, de cuja ação poderá resultar a prisão, a apreensão
de pessoa ou coisa ou uma simples advertência ou orientação. É uma
das principais atividades realizadas pelos Policiais Militares em seu
trabalho diário, visando a prevenção de crimes e contravenções.”12
Como podemos observar, assim como nos estudos analisados anteriormente,
existe uma definição oficial precisa do que é a abordagem policial, tal como disponível
nos diversos materiais didáticos da própria polícia sobre os procedimentos
padronizados para essa situação. No entanto, esta definição oficial se ancora na
noção de comportamento suspeito, para o qual não temos uma definição precisa,
muito menos oficial, tornando essa uma questão muito subjetiva.
Para melhor ilustrar nosso artigo, coletamos informações em campo com
policiais da linha de frente da Polícia Militar de Minas Gerais, uma vez que são esses
os profissionais que efetivamente fazem o trabalho de abordagem aos indivíduos
suspeitos.Assim, foram realizadas 15 entrevistas semiestruturadas, entre abril de 2013
e abril de 2014, em variados locais e situações, tais como momentos de lazer e
durante atividades de rotina, visando conseguir o retrato mais fiel da ação desses
policiais.
A quantidade de entrevistas foi definida a partir das variações das respostas.
Quando chegamos a um patamar em que as respostas se repetiam, encerramos o
trabalho de campo e nos debruçamos na análise das entrevistas obtidas. Para uma
melhor exposição das narrativas dos policiais, criamos cinco categorias, são elas:
respostas evasivas, indivíduos suspeitos, atitudes suspeitas, local e horário e
conjunção de fatores.
12
Disponível em <https://www.policiamilitar.mg.gov.br/portal-pm/www.policiamilitar.mg.gov.br/portalpm/dicas.action> Acessado em: 1 de julho de 2013. Grifo nosso
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Respostas Evasivas
As respostas evasivas são, em sua maioria, as que se utilizam de argumentos
prontos, como subterfúgios para replicar a questão sem, no entanto, falar
objetivamente o que os policiais consideram um indivíduo suspeito.
Essas respostas foram dadas, em sua maioria por policiais, em horário de
trabalho e na presença de colegas, fato que pode ter influenciado as respostas.
Interessante destacar que, nesses casos, os entrevistados repetem quase que
literalmente algumas frases contidas nos materiais didáticos usados nos cursos de
formação, como é o caso da fala reproduzida abaixo:
“A suspeita é a conduta a qual o cidadão torna temporariamente.
Assim não há como dizer que a pessoa é suspeita, devido o cidadão
não carregar esta característica permanentemente, desta maneira a
suspeição não cai como uma adjetivação sobre o cidadão e sim recai
sobre suas condutas. Urge-se entender que não existem pessoas
suspeitas e sim atitudes suspeitas, tal diferenciação é necessária
para não haver correlação da suspeição a qual não guarda nenhuma
relação com sexo, raça, nível social e outros.”(Entrevistado 1,
Sargento da PMMG)
Outra estratégia adotada pelos policiais para dar uma resposta evasiva é fazer
menção as técnicas utilizadas para se realizar a abordagem e aos critérios de suspeita
que se baseiam em denúncias prévias, o que juridicamente configura a fundada
suspeita.
“A abordagem ela é feita sempre respeitando a supremacia da força,
usando de rapidez e do fator surpresa para eliminar ou diminuir a
reação do suspeito. Os critérios mais usados para abordar um
indivíduo é a suspeita fundada de que ela possa estar portando
drogas ou armas ou que seja pedido pela justiça.”(Entrevistado 2, 3º
Sargento da PMMG)
Muitos policiais, no entanto, apenas reconhecem que suspeição é algo
complexo e que depende dos conhecimentos práticos da atividade.
“Difícil explicar. É muito do tirocínio policial.” (Entrevistado 3, Soldado
da PMMG)
Então, a resposta evasiva é aquela que procura não comprometer o policial do
ponto de vista dos conhecimentos práticos adquiridos com a atividade de rua. É,
portanto, aquela que cita o regulamento ou que apenas diz ser difícil explicar uma
atividade que é realizada cotidianamente. Provavelmente, isso ocorre porque os
policiais foram entrevistados nos locais de trabalho, o que torna as suas respostas
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constrangidas pelas balizas dos manuais práticos que o policial deve empregar em
sua atividade de escolher pessoas a serem abordadas.
Individuo suspeito
Muito policiais revelaram a existência de um tipo ideal de suspeito,
caracterizado pelas vestimentas, pelo corte de cabelo e pelo veículo que conduz,
como exemplificam as falas abaixo.
“Se está vestindo camisa de time, bermuda, boné de aba reta.
Motoqueiro, porque moto é o veículo mais usado para cometer
crimes.”(Entrevistado 4, Soldado da PMMG)
“Normalmente eles são jovens em sua maioria, vestem um tipo de
roupa, bermudão e camiseta, tipo de basquete e possuem o cabelo
descolorido e um corte exótico de cabelo. “(Entrevistado 5,3º
Sargento da PMMG)
No tocante a raça/cor dos suspeitos obtivemos uma resposta muito
interessante por demonstrar uma contradição, negando a existência de estereótipos
ao mesmo tempo que os confirma.
“A maioria dos casos de confirmação da suspeita ocorre com negros,
mas isso não é uma questão de estereótipos ou racismo. Muitas
vezes quem nos passa as características do vagabundo é a vítima
que ele fez. 99% dos presos nas penitenciárias são negros e pardos,
mas não é uma questão de estereótipo, mas a maioria dos crimes
quem comete são eles.”(Entrevistado 3, Soldado da PMMG)
Como visto, o indivíduo suspeito da PMMG é o mesmo descrito pelos trabalhos
sobre abordagem policial no Brasil. Trata-se de homens jovens, de preferência de cor
escura, com roupas largas, usadas para esconder uma arma ou o produto do crime.
Em parte, essas narrativas parecem indicar para a existência de um conhecimento
tácito compartilhado por policiais militares em geral e advindos do senso comum sobre
quem é o criminoso. Assim, em que pese a ausência de descrição de tal indivíduo
suspeito nos materiais didáticos da corporação, as estatísticas oficiais parecem servir
a esse propósito, razão pela qual são mencionadas pelos entrevistados como
elemento “científico” que direciona a abordagem.
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Atitude suspeita
Muitos policiais negam a existência de um estereótipo e dizem que orientam a
sua ação através da percepção do comportamento suspeito dos indivíduos.
“Não é um indivíduo suspeito, as atitudes dele é que são
suspeitas.”(Entrevistado 6, Sargento da PMMG)
Assim, atitudes fora de contexto, como, por exemplo, medo ou tensão, são
elementos usados pelos policiais para configurar a suspeita.
“Vai muito da pessoa, aquela que está nitidamente assustada. 90%
dos casos conseguimos identificar essa reação e muitas vezes a
suspeita se confirma.” (Entrevistado 3,Soldado da PMMG)
Outra atitude observada pelos policiais é a reação do indivíduo ao perceber a
presença da viatura. Indivíduos que se sentem desconfortáveis são enquadrados na
categoria de suspeito.
“A pessoa em atitude suspeita, ao notar a presença da polícia se
comporta de tal modo, tentando não ser percebida.” (Entrevistado 2,
3º Sargento da PMMG)
“Considero uma atitude suspeita o comportamento do indivíduo ao
avistar a viatura. Se ele se assusta e fica olhando para os lados
preocupados. Eu considero isso uma atitude suspeita.” (Entrevistado
6, Sargento da PMMG)
Nesta categoria, o que é considerado pelo policial para a abordagem do
indivíduo é a sua inadequação ao meio ou à situação. Neste caso, qualquer reação à
presença da viatura ou da própria farda se configura como “atitude suspeita”.
Local e horário
A noção de tempo e de espaço “impróprios” também aparece como
importantes fatores. Transitar em locais tidos como suspeitos, principalmente no
período da noite são fatores determinantes para qualificar a suspeita.
“No meio policial é considerada suspeita a pessoa que apresenta
comportamentos estranhos, bem como atitude não compatível com
determinada situação.” (Entrevistado 7, Subtenente da PMMG)
“Muitas vezes o simples fato de a pessoa estar em local e horário
impróprio a torna suspeita.” (Entrevistado 2, 3º Sargento da PMMG)
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“A suspeita recai muito mais na pessoa por ela estar próximo à boca,
pelo horário em que ela está andando na rua.” (Entrevistado 4,
Soldado da PMMG)
O conhecimento que o policial constrói da região onde trabalha e do perfil das
pessoas que lá moram e transitam, também é um importante fator para a constituição
da suspeição.
“O fato de conhecermos a região e as pessoas que vivem aqui já
sabemos quem são os vagabundos, vagabundos não né,
infrator.”(Entrevistado 4, Soldado da PMMG)
“Tudo depende do ambiente em que o sujeito se encontra, porque na
Zona
Sul
é
mais
difícil
de
encontrar
indivíduos
suspeitos.”(Entrevistado 5, 3º Sargento da PMMG)
É interessante destacar que para os policiais a regra é a normalidade da rotina
dos locais, de acordo com os períodos do dia (manhã, tarde e noite). Então, circular
em uma área que não condiz com a aparente identidade social do indivíduo, bem
como estar em desacordo com o horário estipulado para o referido trânsito são
situações que configuram inadequação, suscitando uma determinada abordagem.
Conjunção de fatores
A realidade do trabalho policial faz com que essas categorias se apresentem
isoladamente ou de maneira combinada, tal como podemos observar nas falas
reproduzidas abaixo:
“Na maioria das vezes os abordados são escolhidos por estarem em
locais com alto índice de criminalidade e pelo estilo das vestimentas
inadequadas para a situação, „uma jaqueta de couro em plena tarde
de verão‟.”(Entrevistado 8, Cabo da PMMG)
“Aquela que se destaca das demais pessoas pelo comportamento,
atitudes e vestimentas. Porém nem sempre o abordado está
cometendo algo, mas quase sempre sim.”(Entrevistado 9, 3º Sargento
da PMMG)
Nessa situação, é possível afirmar que apenas uma das categorias
anteriormente mencionadas já justificaria, por si só, a realização da abordagem. A
combinação de todas elas, em um dado contexto de tempo e espaço, torna o
approach uma contingência do próprio trabalho policial, fazendo com que esse reaja
sem qualquer questionamento mais profundo ao contexto.
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Considerações finais
Como o policial escolhe o seu suspeito? Essa foi a questão que apresentamos
aos policiais de linha de frente da PMMG com vistas a compreendermos em que
medida o padrão de abordagem verificado na capital mineira se aproxima ou se
distancia do observado nas cidades de Brasília, Belém do Pará e Rio de Janeiro.
As narrativas recortadas das respostas dadas pelos policiais militares mineiros
reificam as categorias descritas por Silva (2009), Lima (2011) e Ramos e Musumesci
(2005). Dados como espaço, período do dia, comportamentos, vestimentas, idade,
gênero e cor da pele são determinantes para a construção da suspeição – seja ela do
elemento ou da situação – e, por sua vez, se configuram como normas cogentes para
a realização da abordagem.
Em todos os estudos realizados, constatamos que há uma construção de
estereótipos de lugares mais ou menos suspeitos e do período da noite como o mais
propenso ao cometimento de delitos. Porém os dados que mais chamam a atenção
são as características físicas dos indivíduos considerados suspeitos, principalmente as
vestimentas, que coincidem nas cidades de Belém (PA), Brasília (DF) Rio de Janeiro
(RJ) e Belo Horizonte (MG). Portanto, indivíduos jovens, do sexo masculino, negros
vestindo camisas e bermudas largas andando por determinados locais da cidade no
período da noite possuem, na visão dos policiais, uma estrela na testa que determina
sua condição de suspeito.
Desse modo, as categorias utilizadas pelos policiais para determinar o suspeito
e executar a abordagem nem sempre estão em consonância com os Direitos
Humanos e com o Estado Democrático de Direito, uma vez que a criação de
estereótipos que criminalizam ou colocam a expectativa de ilegalidade sobre setores
marginalizados da sociedade ferem o princípio da igualdade e da dignidade humana.
Os controles de horário e espaço também violam um direito garantido a todos os
cidadãos: o direito de livre circulação, todas as pessoas possuem o direito de transitar
por espaços públicos, mesmo que não tenham vínculos com esses lugares.
Uma outra questão que deve ser colocada é a causa da universalidade dessas
categorias em três cidades distintas, uma vez que o curso de formação de oficiais trata
apenas dos procedimentos para a realização das abordagens. O material utilizado na
formação dos policiais militares de Minas Gerais, além dos procedimentos, enfatiza o
respeito, a defesa e a promoção dos Direitos Humanos. No entanto a atividade diária e
a convivência com colegas mais experientes acabam por deturpar o aprendizado
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ISSN: 2317-0255
alcançado na academia, fazendo com que muitas vezes esse aprendizado se
transforme em uma justificativa cientifica para a seletividade policial. Assim, muito
além da postura oficial da instituição policial, devemos nos ater a cultura informal
desenvolvida pelos policiais durante a prática de sua profissão e como essa cultura se
reproduz e se renova.
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Referências
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Disponível
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TERRA, Lívia Maria. Identidade Bandida: A construção social do estereótipo marginal
e criminoso. Revista do Laboratório de Estudos da Violência da UNESP. Edição 6,
2010.
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Direitos humanos para humanos direitos? Linguagens e representações
policiais e suas implicações na atuação da Polícia Civil do Pará
Marilene Sousa Pantoja1
1. Introdução
Em 1991, logo após ter concluído minha graduação em Direito,
assumi o cargo de delegada de polícia civil. Na época, no Pará, assim como
na maior parte dos estados brasileiros, as policiais femininas eram minoria nos
quadros da instituição. Entretanto, minha turma da Academia de Polícia Civil
sinalizava uma mudança nesse panorama, já que era composta por muitas
candidatas ao cargo de delegada. Eram mulheres jovens, inteligentes e
dispostas a enfrentar todos os percalços impostos pela nova profissão.
Em que pese esses atributos (ou em função deles), necessitei
enfrentar algumas dificuldades para, assim, construir meu lugar na Polícia. À
minha maneira, consegui enfrentar essas dificuldades. Atravessei meus rituais
de iniciação, individualmente, para tornar-me policial, “de fato”. Orientada por
valores morais e pela minha bagagem cultural, fiz minhas próprias escolhas,
construí meus caminhos e defini, individualmente, meu lugar no universo
policial.
No exercício do cargo de delegada, grande parte das ações
policiais que eu testemunhava estavam contaminadas por alguma forma de
ilegalidade. Percebia que, por mais evidente que fosse a ilegalidade cometida
por um policial, havia uma espécie de justificativa para aquela ação,
sustentada pela percepção policial de sua utilidade. Assim, algumas
“verdades”, como “bandido bom é bandido morto”, “bandido só fala na
porrada”, “lugar de vagabundo é no xadrez”, pareciam dar sentido à violência
policial.
A naturalização dessas “verdades” na Polícia, em parte
resultante de uma demanda externa, propiciava continuamente a conversão do
1
Graduada em Direito (UNESPA) e Licenciatura Plena em Geografia (UFPA), especialista em
Direito Penal e Processual Penal e Direito Administrativo (Universidade Estácio de Sá/RJ) e
mestre em Antropologia (UFPA). Atualmente, exerce o cargo de delegada de Polícia Civil no
Pará e de professora de Processo Penal e Execução Penal (UNAMA).
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ilegal para o legítimo, o que permitiu a alguns policiais construírem uma justiça
própria, a partir de uma lógica orientada por suas ideologias e suas
representações.
Assim, inquietava-me o paradoxo de uma instituição que, tendo o
dever de agir sobre aqueles que violavam a lei, estabelecia uma negação
dessa lei, descumprindo-a reiteradamente.
Essa ambiguidade da Polícia ficou evidente num fato ocorrido
em 1995, que ficou conhecido como a “Chacina do PAAR”, por envolver
policiais que trabalhavam na Delegacia de Polícia do PAAR2. Esse fato
apresentou-se como um caso exemplar, por revelar um universo construído no
cotidiano policial, envolvendo violência, arbitrariedades e mortes, o que me
possibilitou transformá-la no objeto de minha análise neste trabalho.
A “Chacina do PAAR” caracterizou-se por uma sucessão de
fatos que se iniciou com a prisão ilegal de um homem, Joanilson, acusado de
ter roubado uma bicicleta e culminou com a morte de seis pessoas, dentre elas
três policiais.
Despertou-me o interesse, a forma como esse fato foi
apreendido pela polícia. Refiro-me ao assassinato de um delegado e de dois
investigadores, durante um plantão noturno, dentro de uma delegacia.
Enquanto os paraenses se perguntavam os “porquês” daquelas
mortes, alguns policiais imbuíram-se de um espírito justiceiro, que os impeliu
ao objetivo único de encontrar “quem” matou seus pares, para, assim,
submetê-los ao rigor do que acreditavam ser uma “justa punição”.
O fato de ser policial permite-me a dupla condição de
observadora e de observada, o que me inclui como parte das questões que
neste trabalho serão colocadas. Nesse sentido, recorro à minha própria
memória como material de pesquisa. Em vários momentos deste trabalho,
relato experiências que vivenciei na Polícia, relacionando-as com as questões
nele tratadas, com o objetivo não só de enriquecer o trabalho, mas também
como um recurso de inserção na problemática estudada, da qual me sinto
2
A “Invasão do PAAR”, como ficou conhecida na década de 80, resultou da ocupação de uma área
de propriedade do Estado, situada no município de Ananindeua, destinada à construção de um
conjunto habitacional voltado para famílias de baixa renda, que seria denominado “Conjunto
Habitacional Pará-Amazonas-Acre-Rondônia” (PAAR). Antes de serem construídas as primeiras
casas, a área foi ocupada e, de forma desordenada, expandiu-se geograficamente, chegando a ser
considerada, na década de 90, a maior área de ocupação da América Latina.
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parte. Revisitando essa memória, construída em mais de vinte anos de
profissão, necessitei atualizá-la a partir de uma orientação antropológica, que
me possibilitou uma releitura das minhas experiências como policial e me
permitiu olhar de dentro e por dentro e, ao mesmo tempo, de fora e por fora
uma instituição que também é “minha”.
Entrevistei alguns policiais que participaram efetivamente da
“chacina do Paar”, a fim de identificar e interpretar as suas versões acerca dos
fatos narrados, procurando explicitar as diferentes lógicas envolvidas,
restituindo seus pontos de vista.
Também entrevistei a escrivã Maria e a investigadora Erondina,
policiais que estavam na delegacia do Paar quando o prédio foi invadido e
seus colegas foram mortos. Finalmente, entrevistei Joanilson que, na ocasião,
estava encarcerado.
Quanto à análise documental, detive-me no estudo do inquérito
policial nº 138/95-SUCNOVA, que investigou a morte dos policiais. Além disso,
um vasto material divulgado pela imprensa da época auxiliou-me na restituição
dos fatos e na contextualização da “Chacina do PAAR”.
Porém, a questão metodológica central da pesquisa diz respeito
ao tratamento emprestado aos personagens envolvidos, procurando restituirlhes suas diferentes dimensões humanas, sem reduzi-los a duas espécies
antagônicas “policiais” e “bandidos”, que circulam em espaços não
comunicantes. Pelo contrário, partilham um mesmo mundo social, onde se
fazem e desfazem teias de relações. Partindo dessa construção, a etnografia
emerge como método indispensável de pesquisa.
Assim, pretendo apresentar um olhar diferenciado sobre a
Polícia, através da análise desse universo particular, construído de linguagens
e representações próprias.
Se o caminho percorrido no trabalho conduz para a existência de
ilegalidades e violência na prática policial, isso se deve a minha opção quanto
ao tema escolhido, já que decidi estudar a Polícia a partir de um caso concreto
que colocou em evidência os vieses da violência e da arbitrariedade.
Entretanto, em hipótese alguma, este fato sinaliza uma conduta unânime entre
os policiais que compõem os quadros da Polícia Civil do Pará.
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2. Policiais x “bandidos”: um confronto de mortes
A “Chacina do PAAR” foi um acontecimento de repercussão
nacional no qual se encadearam sucessivos eventos. Iniciou-se com a prisão
de um homem acusado de roubar uma bicicleta e terminou com a morte de
seis pessoas.
Durante o plantão noturno de 14.05.1995, os policiais Mauro
França, Paulo Jorge e Sérgio Rocha prenderam Joanilson Lopes Moreira, o
“Nego Jô”19, que foi reconhecido como a pessoa que teria roubado uma
bicicleta20.
Durante a prisão, Joanilson, ao resistir à ação dos policiais
Paulo Jorge e Mauro França, foi por eles agredido fisicamente, tendo este
último cuspido em seu rosto. Algemado, Joanilson foi levado à Delegacia de
Polícia do PAAR, onde foi apresentado ao delegado José Marques - chefe da
equipe plantonista daquele dia - e posteriormente colocado no xadrez. Na
delegacia, Joanilson alegou ter sofrido novas agressões físicas21 e, ainda, foi
obrigado, pelos mesmos policiais, a ingerir fezes e urina, com a finalidade de
forçá-lo a fornecer informações sobre “Paulo Mapará”, pessoa conhecida no
meio policial daquela época como “bandido perigoso”, por estar envolvido em
roubos a banco e outros crimes de maior repercussão, além de liderar um
grupo criminoso do qual Joanilson seria um dos integrantes.
Na manhã do dia seguinte, Joanilson, que ainda permanecia
detido, teria sido obrigado a capinar a área externa do prédio da delegacia22.
Como condição imposta para sua liberdade teve que pagar a quantia de
quatrocentos reais.
Na noite de 29.05.95, quinze dias após a prisão de Joanilson, a
mesma equipe estava de plantão na Delegacia do PAAR. Naquela noite, o
delegado José Marques e o investigador Mauro França estavam na sala do
delegado, assistindo televisão. A escrivã Maria e a investigadora Erondina (as
duas únicas mulheres da equipe) estavam no hall de entrada do prédio. Nesse
mesmo local, deitado em um colchonete, estendido no chão e encostado numa
parede, estava o investigador Paulo Jorge. O terceiro investigador e o
motorista policial da equipe tinham ido até um borracheiro consertar um dos
pneus do carro que atendia à delegacia.
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Portanto, às 23:30, horário aproximado da invasão, estavam no
prédio apenas cinco policiais. Ao ouvir que um carro estacionara em frente à
delegacia, a policial Erondina caminhou até a porta para ver quem havia
chegado. Surpreendeu-se quando viu cinco homens armados empurrarem-na
e entrarem na delegacia, perguntando pelos policiais. Em meio ao tumulto
causado por aqueles homens armados, Erondina correu para o quintal do
prédio, escondendo-se num matagal que ficava atrás da caixa d’água. A
policial Maria foi colocada contra a grade, enquanto era ameaçada com armas
para dizer onde estavam os policiais.
Nesse momento, um deles, seguido dos demais, empurrou a
porta do gabinete do delegado, onde os dois policiais assistiam a um programa
de televisão. O investigador Mauro França estava sentado em uma cadeira em
frente à mesa do delegado, enquanto este se encontrava deitado em um
colchonete estendido no chão. Vários tiros foram disparados contra eles,
sendo onze alvejaram o delegado e doze acertaram o investigador. O
investigador Paulo Jorge, que estava deitado, também foi morto, com sete
tiros.
Enquanto atiravam contra seus colegas, Maria escondeu-se
dentro do banheiro da delegacia, onde permaneceu até que os tiros
cessassem. Assim que Erondina percebeu que os homens haviam se retirado,
retornou para dentro da delegacia, solicitando, pelo rádio, ajuda aos outros
policiais, ao mesmo tempo em que tentava relatar o que havia acontecido25.
Assim que a informação sobre a morte dos policiais foi
divulgada, dezenas de policiais dirigiram-se para a delegacia do PAAR, de
onde iniciaram uma “caçada” aos responsáveis pelas mortes.
Uma grande operação composta por cerca de duzentos policiais,
entre civis e militares, foi organizada para encontrar Joanilson, “Paulo Mapará”
e seus companheiros. Depois de vinte horas de perseguição contínua, a
primeira morte aconteceria. “Ronaldo Mapará” foi morto próximo ao trapiche da
Ceasa, na madrugada de 31.05.95. Na manhã do mesmo dia, “Martinho Cara
de Lata” também morreria3. Quanto a “Paulo Mapará”, foi morto no início da
O laudo de e a e de o po de delito ealizado e Ma ti ho atesta a pe da do hemicrânio
es ue do , o e posiç o e pe da de assa e ef li a, alé de u a o de i a , o
evisceração. (IPL 138/95-SUCNOVA)
3
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madrugada do dia seguinte. Nessa mesma madrugada, seu corpo foi colocado
no porta-malas de um carro da polícia e exposto pelas ruas de Belém, numa
carreata policial animada por disparos de armas de fogo4.
3. Vivenciando a prática policial
A maneira como foi conduzida a abordagem da polícia na
“Chacina do PAAR” revela, dentre tantas outras questões, a insensibilidade
com que policiais agiram no desempenho de suas funções de ofício. Não
quero com isso levantar a tese de que policiais são pessoas truculentas e
insensíveis, mas mostrar como o enfrentamento diário do sofrimento alheio,
inerente ao trabalho policial, marca, de modo indelével, aquele que está
obrigado a uma convivência muito próxima à “miséria humana”. A primeira
experiência que vivenciei como policial pode demonstrar como se opera essa
circunstância.
Poucos meses depois de assumir o cargo de delegada,
executei, a primeira prisão em flagrante: tratava-se de um homem alcoolizado
que me havia sido apresentado por policiais militares, sob a acusação de ter
espancado sua mulher, que sangrando e aparentando estar machucada,
exigia providências contra seu agressor. Reconheço que os ensinamentos
adquiridos na faculdade de Direito e na Academia de Polícia, sucumbiram
naquele momento à inexperiência dos meus 23 anos de idade.
Absolutamente tomada pelo susto com o que eu via, olhava
para o policial militar que, sem perceber (ou talvez sem se importar com) a
angústia
refletida
em
meus
olhos,
relatava-me
apressadamente
as
circunstâncias do crime. Depois de um significativo esforço, consegui
organizar minhas ideias e estabilizar meus sentimentos, para assim poder
conduzir aquela situação, dentro da legalidade exigida, que culminou com a
prisão do acusado.
O recolhimento desse homem ao xadrez me impôs um estado
de sofrimento, advindo da culpa por tê-lo prendido. Passado o efeito do álcool,
ele não mais parecia agressivo, ao contrário, se mostrava acuado e assustado
4
A parte superior de seu corpo estava projetada para fora do porta-malas e seus braços,
abertos, estavam amarrados para trás por uma corda e entre seus lábios foi colocado um
cigarro. (Jornal O Liberal, de 02.06.1995)
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com sua condição. Minha alma se encheu de compaixão.
Ao retornar à delegacia, vinte e quatro horas depois, para
cumprir um novo plantão, fui direto ao xadrez, onde pude conversar com
aquele senhor, que dizia faminto, já que sua companheira, sua única amiga,
estava zangada com ele e, portanto, não lhe levaria alimento algum.
Conversamos por algum tempo, procurei saber sobre sua vida que se dizia
pobre e sem condições de prestar a fiança, que poderia garantir sua liberdade.
Sem nenhum constrangimento, retornei do almoço, naquele dia,
levando-lhe um alimento e, ainda, o ajudei, com meu dinheiro, a prestar a
fiança. É fato que essa conduta, partindo de uma delegada, reverberou
negativamente na Polícia e certamente me rendeu comentários depreciativos,
colocando em questão a minha capacidade profissional.
A partir dessa experiência,
percebi que revelar
minha
sensibilidade na Polícia, agravada pelo fato de ser muito jovem e mulher,
possibilitaria reforçar o preconceito que, de forma latente, já permeava minhas
relações no meio policial.
O receio de ser estigmatizada me fez, paulatinamente, ocultar
meus sentimentos e distanciar-me do sofrimento daqueles com quem, por
força do ofício, necessitava relacionar-me.
Assim, passados alguns anos, a repetição diária do ato de
prender pessoas erigiu em mim uma espécie de escudo, com que me protegia,
não somente me desviando da dor alheia, mas também do receio de uma
marca que eventualmente pudesse ser impressa em minha conduta
profissional.
4. A linguagem policial
Ao discutir sobre a importância da linguagem na origem da
religião, Durkheim ensina que a linguagem não é apenas a exteriorização do
pensamento, que se limita a traduzi-lo depois de concebido. Na verdade, a
linguagem serve, também, para produzir o próprio pensamento5.
Reforçando essa ideia, o filosofo francês, Pierre Bourdieu
adverte acerca da importância da palavra empregada como instrumento
5
DURKHEIM, Émile. As Formas Elementares da Vida Religiosa. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
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inconsciente de construção para pensar e falar do mundo social6.
Instigou-me a pensar sobre a maneira como a linguagem policial
opera no comportamento dos policiais, definindo posições, seja no falar, seja
no escrever, seja no agir.
Assim, utilizo os jornais da época para resgatar as falas dos
policiais que participaram efetivamente da “Chacina do PAAR”, buscando
restituir seus pontos de vista, a fim de estabelecer uma relação entre a
linguagem e a prática policial.
Lendo essas matérias jornalísticas percebi, na linguagem
policial, uma violência simbólica capaz de internalizar, em relação ao outro,
categorias depreciativas às quais o policial recorre sempre que necessita
justificar atos de violência física.
Assim, ao reclamar o apoio negado aos policiais, por alguns
segmentos da sociedade, que condenaram a maneira como Paulo Mapará e
seus companheiros foram mortos pela Polícia, um investigador justificou-se 57:
“Passamos três dias no mato, matamos o Cara de Lata que
estava no assalto a banco e ainda dizem que a gente não
trabalha”.
Mais adiante, prossegue referindo-se à falta de apoio do
Ministério Público:
“Se há corrupção, começa por lá, pelos que soltam os
bandidos. A gente não solta bandido, a gente mata”.
A linguagem policial parece estabelecer uma estreita relação
com a prática policial, podendo configurar-se, num mesmo momento, no seu
reflexo e na sua causa determinante. Ou seja, no momento em que o policial
recorre a uma linguagem depreciativa contra alguém, ele estabelece uma
relação de assimetria que irá colocá-lo num grau de superioridade em relação
ao criminoso e, portanto, justificar o uso da violência física. Conforme disse um
delegado, referindo-se à morte de “Paulo Mapará” e seus companheiros,
“Bandido comigo é na porrada ou, então, morre mesmo. A
Polícia está de parabéns pelo serviço que fez”.
Esse linguajar tem origem nas representações da Polícia e sobre
a Polícia, externando, através da palavra, o que está instituído nas práticas
policiais.
6
Ver, a respeito, BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003.
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A naturalização, quando verbalizada, reafirma práticas policiais
violentas. Por sua vez, essas práticas policiais naturalizadas são as
responsáveis pela produção desse discurso. No processo de reciprocidade
constante entre o discurso e a prática, alguns policiais constroem estereótipos
que irão nortear toda a sua vida profissional.
Assim, ao se referir às torturas praticadas contra Joanilson, na
delegacia do PAAR, um delegado, bastante conhecido na Polícia por seu
comportamento “destemido”, afirmou que:
“Bandido só é bom quando está morto. Na verdade, bandido
eu quebro no pau”.
A linguagem policial, como violência simbólica, parece servir a
um poder arbitrário que necessita depreciar o outro, que é sempre “o bandido”,
“o marginal”, “o safado”, para, assim, legitimar práticas ilegais e abusivas, de
acordo com as representações que os policiais guardam acerca de suas
próprias atividades.
Como ensina Goffman7, construímos uma ideologia para explicar
a inferioridade do estigmatizado e para demonstrar como ele pode ser
perigoso, para, eventualmente, podermos racionalizar a aversão originada em
outras diferenças como classe social.
5. A Polícia e suas representações
O estudo da “Chacina do PAAR” permite uma análise da
atuação policial em um caso concreto a partir das representações que os
policiais guardam de si e das suas atividades. Balizada pela percepção
distorcida de seu papel na sociedade, a Polícia, via de regra, extrapola os
limites de atuação legal, adotando práticas arbitrárias. Portanto, resgatar essa
percepção do policial pode favorecer o entendimento de algumas práticas na
Polícia.
A “Chacina do PAAR” revela, em dois momentos distintos, as
raízes dessa distorção, em que policiais agiram balizados por uma lógica
semelhante.
7
GOFFMAN, Erving. Estigma: Notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. Rio de Janeiro:
LTC Editores, 1988.
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O primeiro momento diz respeito à maneira peculiar com que os
policiais da Delegacia do PAAR conduziram a prisão e o interrogatório de
Joanilson, até aquele momento, apenas suspeito do roubo.
Inicialmente, havia o premente interesse de encontrar a bicicleta
roubada e restituí-la ao seu proprietário. Contudo, o interesse pela bicicleta
tornou-se secundário, quando os policiais reconheceram Joanilson; tratava-se
de alguém que poderia auxiliá-los a encontrar “Paulo Mapará”, pessoa
conhecida no meio policial pela prática de vários roubos.
Embora soubessem que jamais poderiam ter efetuado a prisão
de Joanilson, já que não se tratava de flagrante, não hesitaram em prendê-lo.
Aquela prisão estava justificada, vez que o marido da vítima era amigo dos
policiais. Na delegacia, ao ser reconhecido, Joanilson se tornou alvo de um
interesse maior que era encontrar Paulo Mapará. Por essa razão, o
submeteram a um interrogatório, sob violência física e psicológica, com o
objetivo de obrigá-lo a falar.
Essa prática, comum na Polícia, reflete uma rotina policial
perversa marcada pelo desrespeito a preceitos constitucionais basilares do
ordenamento jurídico, como o direito à liberdade, ao silêncio, ao estado de
inocência e à dignidade humana. Contudo, ao considerarmos a maneira como
o policial percebe o outro, o “bandido”, seria um contrassenso esperar que ele
pudesse dispensar um tratamento fundamentado em princípios de direitos
humanos, àquele a quem é negada, reiteradamente, a própria condição
humana.
Nesse tipo de interrogatório sob tortura, que Foucault chama de
“suplício da verdade”, encontra-se uma antecipação da punição que se aplica,
paradoxalmente, na mesma proporção em que o interrogado silencia. Assim,
quanto
menos
Joanilson
confessava,
menos
oferecia
provas.
Consequentemente, mais era torturado e, portanto, mais era punido.
A “Chacina do PAAR” revela um comportamento passional,
movido pelo ódio, que levou policiais a vingar a morte de seus colegas, não
apenas matando os infratores, mas também mutilando seus corpos com
exposição pública, uma adequação perfeita ao suplício foucaultiano, que,
segundo o filósofo, obedece a duas exigências: em relação à vítima, deverá
marcá-la ou fisicamente ou moralmente pela ostentação, tornando-a infame;
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em relação a quem o impõe, o suplício deve ser ostensivo e mostrar a todos o
seu triunfo.
Apesar de essas práticas policiais terem sido adotadas por
motivações distintas, já que no primeiro momento serviram como técnica de
interrogatório e, no segundo, como vingança, guardam em comum uma
particularidade: originaram-se a partir de um poder específico, que
denominarei “poder da polícia”, em contraposição ao “poder de polícia”8.
É a partir do poder da polícia, que se formam as representações
de alguns policiais. Refiro-me a um poder escorregadio e circulante que
transita pelos bastidores da Polícia, às vezes de forma velada, às vezes de
forma
explícita.
Parece
passar
pelos
policiais,
de
acordo
com
as
circunstâncias, mas sem se agregar a eles definitivamente, materializando-se
através de seu próprio exercício.
Essa ideia de poder como algo circulante, impossível de
apropriação por alguém, através de estratégias de dominação está presente
em Foucault. Ao desmistificar a representação social do poder como uma
coisa estática, passível de apropriação, com um lugar definido na sociedade e
resultante de uma outorga contratual, Foucault criou a teoria da microfísica do
poder, para fazer oposição à representação usual e dominante do poder9.
O trecho da entrevista concedida por “Nego Jô”, explicando
como foi preso pela Polícia, ilustra a dimensão desse poder:
“Eu já tava trabalhando, eu. Conheci um jovem aí, que eu
confiei nele e ele me entregou para a equipe do...[delegado
de polícia]. Parece brincadeira, né, mas se não é esse
delegado, eu tava morto. Iam me matar. Se não, tinham me
matado. Agradeço ao delegado...
Sobre este fato, um policial confidenciou-me:
“A gente ia para matar mesmo. Mas aí o delegado ligou para
gente e mandou que a gente levasse ele pra ser interrogado,
porque a morte dos outros bandidos já tinha dado muito
problema”
8
Não utilizo a expressão “poder de polícia” no sentido empregado pelo Direito Administrativo, mas
para designar as atribuições que o Estado, através de leis, confere à polícia civil, para investigar
crimes e identificar seus autores. Quanto à expressão “poder da polícia”, utilizo-a para definir um
poder que se sobrepõe ao aparelho estatal, cujo exercício por policiais se apresenta contrário à lei e se
materializa por atos arbitrários e violentos.
9
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 1987.
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É possível que essa seja uma das razões pelas quais a
linguagem policial assume uma importância muito evidenciada no meio
policial: ela reafirmaria a existência do poder da polícia, ainda que esse poder
estivesse momentaneamente ausente, devido ao seu caráter circulante,
cabendo ao linguajar policial falsear, através do discurso, a ideia de
permanência desse poder. Como na Polícia o poder está frequentemente
relacionado ao conhecimento do universo do crime e de suas especificidades,
quanto maior o número de informações que o policial detiver, maiores serão as
suas possibilidades de ser reconhecido como detentor de poder e, por
conseguinte, como um policial competente. Afinal, competente é o policial que
conhece a “bandidagem”, que “sabe dos esquemas”, enfim, que se apropria
desses conhecimentos e os usa de acordo com a ocasião.
A violência praticada contra Joanilson (por policiais da Delegacia
do PAAR) e contra “Paulo Mapará” e seu grupo (por outros policiais) revela,
em primeiro lugar, a existência de um poder da polícia, materializado através
das torturas, humilhações, mortes e mutilações. Em segundo lugar, demonstra
a maneira como ele circulou no meio policial: deslizando das mãos dos
policiais da delegacia do PAAR, torturadores que posteriormente estariam
mortos, para as mãos de seus colegas que iriam vingar suas mortes.
Assim, os discursos policiais identificados no contexto da
“Chacina do PAAR” parecem ter tido a função de sustentar o poder da polícia,
quando ele havia se tornado vulnerável pela morte dos três policiais.
Essas mortes não significaram, apenas, a cessação da vida em
si. Era mais que isso. A forma como os policiais foram mortos simbolizava a
fragilidade e a impotência de uma instituição, historicamente associada a
práticas violentas e sustentada por uma ideologia de força e poder. O
paradoxo dessa experiência vivenciada entre os policiais estimulou um clima
de revolta e definiu a maneira com que eles se posicionariam diante da
questão: deveriam reafirmar a ideologia policial, naquele momento, ameaçada.
No processo de reafirmação dessa ideologia sustentadora de
suas práticas arbitrárias, a Polícia recorreu à violência como o único caminho
factível para resgatar sua autoridade. Caso agisse dentro da legalidade,
prendendo Paulo e seu grupo, através dos procedimentos policiais previstos,
possibilitando, assim, a apreciação judicial de seus crimes, a Polícia estaria
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negando sua própria lógica, segundo a qual para cumprir a lei, o policial tem
que transgredi-la.
É a partir dessa lógica que os policiais se relacionam com o
ordenamento jurídico. A percepção distorcida das garantias do acusado,
reflete-se num discurso, comum na Polícia, de que a lei os impede de
trabalhar. É fato que uma lei, quanto mais seja garantidora, mais imporá
deveres àqueles que irão operá-la, a fim de que esses direitos por ela
assegurados possam ser respeitados.
Como a Polícia estabeleceu uma prática de trabalhar à margem
da lei, cada exigência a mais que lhe é feita pelo texto legal, implica não
somente num esforço maior para driblá-la, como também numa possibilidade
de agravamento da responsabilização, caso seja surpreendida na ilegalidade.
Como os policiais já sabem que irão, em parte, descumprir aquela lei, porque,
no imaginário da Polícia, ação policial eficiente não convive com respeito ao
ser humano, estabelecem-lhe uma oposição frontal.
Por ocasião da prisão de Joanilson, acusado de ter roubado uma
bicicleta, nenhuma dessas exigências constitucionais foi atendida pelos
policiais da delegacia do PAAR, os quais pareciam estar acima do
ordenamento jurídico, como se a ele não estivessem sujeitos, demonstrando
que agem investidos de um poder estabelecido a despeito da lei e
contrariamente a ela, em cuja ideologia se sustenta poder da polícia.
Nesse particular, ao estudar a Polícia Civil do Estado do Rio de
Janeiro,
o
antropólogo
Kant
de
Lima
percebeu
nos
policiais
uma
desobediência sistemática à lei. A princípio, o que lhe pareceu um descuido,
posteriormente se lhe apresentou como prática costumeira entre os policiais
cariocas, sustentada por um conjunto de regras paralelas ao ordenamento
jurídico, que ele definiu como a ética policial. Segundo o antropólogo, a ética
policial serviria de fundamento para uma interpretação autônoma da lei,
imprimindo, na sua aplicação, uma característica peculiar própria das práticas
policiais.10
Aliás, as ilegalidades apontadas por Kant de Lima entre os
policiais civis do estado do Rio de Janeiro são, em tudo, semelhantes àquelas
10
LIMA, Roberto Kant de. A Polícia da Cidade do Rio de Janeiro: seus dilemas e paradoxos. Rio de
Janeiro: Forense, 1995.
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praticadas por policiais civis do Pará, sustentando-se pelo mesmo discurso e
orientando-se pela mesma lógica. Esse fato pode sinalizar a existência de uma
“cultura policial” no país, ilegal na sua essência, mas legitimada pela
reprodução incessante de suas práticas.
Assim como acontece com a linguagem policial, o poder da
polícia está intimamente relacionado às representações sobre a Polícia.
Para ajudar nessa reflexão, a linguagem de um delegado,
registrada pela imprensa no dia seguinte à morte dos policiais, quando a
Polícia havia paralisado suas atividades anunciando greve, diante da recusa
do Secretário80de Segurança Pública em
atender
em
audiência os
representantes dos sindicatos policiais, é muito significativa. Na ocasião, disse
o delegado a um repórter:
“Os bancários que ficam cobrando o que não devem do
Secretário ele recebe, mas nós ele não recebe. Diz que nós
somos bárbaros, nós somos mesmo... Nós somos bichos,
somos todos animais; para caçar fera tem que ser fera... A
Comissão dos Direitos Humanos da OAB, os promotores
borra-botas não foram lá pro mato caçar mapará, que é
peixe reimoso. Nós predemos, eles soltam. Se há corrupção,
começa por lá, pelos que soltam os bandidos. A gente não
solta bandido, a gente mata...”
A leitura desse relato possibilita inúmeras reflexões e revela as
diferentes representações do delegado acerca de sua própria atividade
policial.
O primeiro detalhe, que me parece significativo, diz respeito à
pessoa que está falando: trata-se de um delegado de polícia, que frequentou
uma faculdade, graduou-se em Direito, foi aprovado em concurso público para
o cargo de delegado, participou do Curso de Formação de Policiais Civis na
Academia de Polícia Civil. Todas essas características parecem desassociar o
interlocutor de seu discurso, não fazendo crer que ele, de fato, se considere
um animal.
Entretanto, a linguagem do delegado parece revelar uma espécie
de necessidade imperiosa de moldar-se às exigências do meio policial, como
condição não só de sua própria sobrevivência na Polícia, mas também de seu
“bom” desempenho como policial. Acredita que, para exercer suas atividades
policiais, é necessário se tornar um infrator: “para prender fera, tem que ser
fera”.
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Quando o policial se refere à “omissão” da OAB (Ordem dos
Advogados do Brasil) e do promotor de justiça, ele marca a distinção entre
estes (que não se permitem “contaminar” pelo contato com os “Mapará”, já
estereotipado como peixe reimoso11) e ele próprio, policial, vítima da
metamorfose kafkiana, que, assim como Gregor Samsa12, sente-se solitário e
obrigado a aceitar, resignadamente, a inferioridade de sua nova condição.
Outro fator interessante no discurso do delegado, diz respeito à
maneira como ele interpreta a atuação do aparelho judicial como aquele que
parece situar-se do lado oposto ao seu, soltando os bandidos, enquanto ele se
desgasta para cumprir a lei, prendendo as “feras”.
Esse detalhe é importante para que possamos compreender
como a ideia de “justiça pelas próprias mãos” apresenta-se muito recorrente
na Polícia.
6. Ordem, justiça e direitos humanos
No processo de aplicar sua própria justiça, a Polícia construiu
uma noção particular de “ordem”. Trata-se de uma ordem imposta pela força,
que tem na intimidação, o recurso hábil para reafirmar o poder da polícia.
Apesar de ser ilegal, porque contrária à lei e imposta pela força, a “ordem
policial” não é aleatória; ela está balizada por uma ética que a reorganiza a
partir de uma ideologia sustentada, acima de tudo, pela demanda externa de
uma sociedade dominada pelo medo e pela sensação de insegurança.
Como
não
acredita
na
justiça
produzida
pelos
órgãos
jurisdicionais, a Polícia nutre-se da crença de que só ela própria pode aplicar
eficazmente a justiça, por entender que seus critérios de julgamento e punição
são os mais justos. É a proximidade com que o policial se relaciona com o
crime que o induz a pensar que ele - e somente ele – tem a exata percepção
do que seja um “verdadeiro criminoso” e, por essa razão, somente ele estaria
apto a punir com justiça.
Assim, é comum que alguns policiais, ao realizar a prisão de
uma pessoa, interessem-se, primeiramente em assegurar-se acerca da sua
condição socioeconômica. Caso percebam no suspeito uma boa condição
11
Utiliza-se essa expressão na Amazônia, para identificar alimentos, principalmente peixes, que
fazem mal à saúde.
12
Personagem de A Metamorfose, obra de Franz Kafka, publicada em 1915.
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financeira, um bom nível intelectual ou uma rede de relações influente,
entenderão que se trata de um “cidadão”, portanto, um ser humano, a quem
deverá ser dispensado um tratamento adequado.
Por outro lado, se nenhuma dessas características for observada
no suspeito e se este ainda tiver as agravantes de ser negro, desempregado
ou ter antecedentes policiais, por exemplo, receberá, de imediato, o rótulo de
“bandido”, um conceito que, na Polícia, se contrapõe ao de “cidadão” e impõe
a negação da condição humana do rotulado, fulminando-lhe a dignidade.
Esse momento goffmaniano de aniquilação do outro, tornando-o
inferior, é fundamental para legitimar as ofensas perpetradas por policiais,
sejam verbais ou físicas, independentemente de qualquer reação por parte do
inferiorizado que, com frequência, está algemado.
No contexto da “Chacina do PAAR”, policiais e “bandidos”
nivelaram-se pela barbárie. Da perspectiva policial, entretanto, a falta de
limites de Paulo e seu grupo, ao invadirem uma delegacia e executarem três
policiais, configurou-se em crime grave, passível de rigorosa punição. Em
contrapartida, a atuação da Polícia representou, na morte dos três “bandidos”,
a efetivação da justiça.
Dentro de sua própria lógica, a Polícia entende que, para travar
um “combate justo” contra criminosos que infringem a lei, não pode estar
atrelada a restrições legais, que lhe imponham limitações no seu agir. Colocase, então, no mesmo patamar dos violadores da lei, entendendo que somente
assim, estabelecerá uma relação de equidade com “bandidos”, onde poderão
recorrer igualmente a um mesmo recurso: o da desobediência à lei. Assim, ao
mesmo tempo em que infringem a lei, e nesse particular nivelam-se aos
“bandidos”, recorrem a ela para convalidar suas prerrogativas de policiais,
efetuando prisões, interrogando suspeitos ou indiciando eventuais infratores.
Esse parece ter sido o caminho percorrido pelos policiais que
participaram da “Chacina do PAAR”. Ao acreditarem que deveriam efetivar
suas próprias justiças, esses policiais decidiram abandonar suas prerrogativas
legais, ou seja, o poder de polícia, que lhes permitiria atuar de forma legal,
efetivando a prisão de Paulo e seu grupo, submetendo-os a julgamento pelo
Poder Judiciário. Ao executar Paulo, Ronaldo e Martinho, esses policiais
colocaram-se no mesmo nível daqueles que, de forma semelhante, haviam
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assassinado seus colegas, estabelecendo uma justiça peculiar, baseada na
vingança e no poder de intimidação, como medida punitiva exemplar.
Nesse particular, discordo do entendimento do sociólogo
Guaracy Mingardi13, quando ele afirma que a violência na Polícia é apenas um
“sintoma da verdadeira doença, que é a corrupção”. Para ele, é impossível
separar os objetos da violência policial e da corrupção por se tratarem de
práticas que guardam em si o mesmo objetivo: a concussão. Arrisco afirmar
que também é isso; mas não é só isso. Conforme foi demonstrado, o policial
não recorre à tortura apenas para obter vantagem financeira. Há também
questões morais em jogo, relacionadas à honra do policial, que suplantam
eventuais interesses financeiros. As execuções de Paulo, Ronaldo e Martinho
confirmam um modelo comportamental da violência policial nem sempre
relacionado a essas motivações. Em muitos casos, a violência policial está
apenas reequilibrando relações de poder.
7. Direitos humanos: para quem?
A obtusa visão da Polícia, que divide o mundo entre “cidadãos” e
“bandidos”, além instigar modelos de comportamento arbitrários, reforça o
preconceito, numa instituição que não reconhece diferenças.
Na sua rotina diária, a Polícia orienta-se por uma lógica própria,
que lhe permitirá definir quem é “cidadão” e quem é “bandido”. Através dessa
maneira discriminadora e superficial de julgar o outro, irá se relacionar com o
mundo. Como a percepção do policial está distorcida, seus atos configurar-seão no reflexo dessa distorção, o que continuamente reforçará a permanência
de uma polícia injusta em seus julgamentos e arbitrária em suas práticas.
Se considerarmos que o processo de desumanização – que
começa com a violação de suas prerrogativas legais e termina com a violência
- a que policiais submetem eventuais criminosos, é fundamental para que se
estabeleça uma relação de assimetria, que permite ao policial dispor daquele
que lhe é inferior - e, assim, legitimar possíveis práticas arbitrárias perceberemos que o resgate da condição humana dos “bandidos”, através do
reconhecimento de seus direitos, força o estabelecimento de uma indesejável
13
MINGARDI, Guaracy. Tiras, Gansos e Trutas: cotidiano e reforma na polícia civil. São Paulo: Ed.
Página Aberta, 1991, p.143.
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simetria entre eles e os policiais, na qual os “bandidos”, em tese, estarão em
condições de exigir a efetivação de seus direitos daqueles que historicamente
os mantiveram numa condição desfavorável.
Isso pode explicar o porquê da maioria dos policiais mostrar-se
indignada quando apelos humanitários reclamam proteção aos direitos de
pessoas, que eles consideram desafetos da Polícia. De fato, diuturnamente,
policiais se confrontam com essas pessoas, colocando em risco suas vidas, a
fim de garantir a segurança pública em favor de toda coletividade, que, por sua
vez, é vítima da ação desses delinquentes.
O policial percebe, então, que está sendo injustiçado, por ter
seus direitos, que ele acredita legítimos, preteridos em favor dos direitos de
“bandidos”, que ele julga inimigos da sociedade.
Dentro de sua própria lógica, a Polícia entende como absurda a
ideia da proteção dos direitos humanos daqueles que, sequer, são humanos e
questiona o porquê de se proteger “bandidos” com leis criadas para a proteção
de “cidadãos”. A aplicabilidade de leis protetoras de direitos humanos àqueles
considerados “bandidos” gera indignação nos policiais pelo simbolismo que ela
carrega: são normas que visam ao resgate do respeito e da dignidade
daqueles que têm seus direitos violados, pela própria Polícia, através do
reconhecimento e da proteção desses direitos. Configura-se, em última
análise, numa desaprovação expressa às práticas policiais arbitrárias.
Assim, a despeito dos apelos humanitários de respeito aos
direitos humanos, a Polícia continuará obediente a sua própria ética,
reproduzindo a ideologia da violência policial, que acredita legítima. Associa-se
a isso o fato do policial perceber que sua atitude atende à demanda de um
público externo tolerante - e muitas vezes conivente - o que reforçará nele a
crença de estar restabelecendo a ordem e consolidando a justiça: a “sua”
justiça.
A exposição do corpo de Paulo pelas ruas de Belém significou
mais do que uma punição exemplar, ela era necessária para restaurar a
ordem, materializada no corpo flagelado de um criminoso acusado de liderar
uma quadrilha que, ao matar três policiais, desordenou o universo policial. Na
concepção da Polícia, mantê-los vivos significaria garantir o direito à vida, a
quem não tinha direito a ter direitos, já que todos lhes foram suprimidos no
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intolerante julgamento policial.
8. Referências
BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar da pós-modernidade. Tradução Mauro Gama,
Claudia Martinelli Gama. Rio de janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998.
BECKER, Howard S. Uma teoria da ação coletiva. Tradução de Márcia
Bandeira de Mello Leite Nunes. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1977.
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policial no Rio de Janeiro: 1907-1930. Rio de Janeiro: Rocco, 1997.
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4098
Anais do VIII Encontro da ANDHEP
ISSN: 2317-0255
Violência doméstica contra a mulher: uma análise sobre a política de abrigamento em
Macapá
Ana Caroline Bonfim Pereira1
Jocenildo Teixeira de Souza2
Joice Cunha de Sousa3
Resumo: O presente artigo é o resultado prático de um projeto de pesquisa realizado na disciplina
Estágio Supervisionado I, do curso de Ciências Sociais da Universidade Federal do Amapá, no ano
de 2013. O projeto de pesquisa sobre abrigamento de mulheres na cidade de Macapá tem como
problemática por que as mulheres vítimas de violência doméstica em risco eminente de morte são
compelidas a deixar seu lar para “morar” em Casa Abrigo? O objetivo geral foi o de identificar os
critérios que levam às mulheres vítimas de violência doméstica a ficarem abrigadas em casas de
proteção. Este trabalho demandou pesquisa bibliográfica e de campo para obtenção dos dados.
Conduzimos entrevistas com as responsáveis das instituições de apoio e atendimento à mulher e às
vítimas de violência doméstica. Já foi possível perceber que alguns princípios, leis, ações merecem
ser revistos para um melhor atendimento às mulheres vítimas de violência. Em última análise nosso
intuito é o de suscitar debate em ambiente acadêmico, considerando que há necessidade de
promoção do mesmo, pois o dever do pesquisador é o de provocar e proporcionar questionamentos
que auxiliem a comunidade acadêmica e a sociedade em geral a avançar nas discussões pertinentes
ao tema, objetivando a promoção das garantias fundamentais de cidadania das mulheres, inclusive
contribuindo para a erradicação da violência doméstica.
Palavras-chave: Violência Contra a Mulher, Lei Maria da Penha, Política de Abrigamento.
Abstract: This article is the practical result of a research project conducted in the discipline
Supervised I of the Social Sciences, Federal University of Amapá, in 2013. The research project on
women's shelters in the city of Macapá is as problematic for women victims of domestic violence at
imminent risk of death are compelled to leave his home to "live" in Shelter? The overall objective was
to identify the criteria that lead to women victims of domestic violence to remain sheltered in homes for
protection. This work demanded bibliographical and field research to obtain data. We conducted
interviews with the leaders of supporting institutions and assistance to women and victims of domestic
violence. It has been possible to realize some principles, laws, actions deserve to be revised to better
care for women victims of violence. Ultimately our goal is to spark debate in academia, whereas there
is a need to promote it as the duty of the researcher is to provoke and provide questions that help the
academic community and society in general to advance in discussions relevant to subject, aiming to
promote the fundamental guarantees of women's citizenship, including contributing to the eradication
of domestic violence.
Keywords: Violence Against Women, Maria da Penha Law, sheltering Policy.
1
Acadêmica do Curso de Licenciatura e Bacharelado em Ciências Sociais da Universidade Federal do Amapá.
Bolsista do Programa de Educação Tutorial – PET. Membro Grupo de Estudo e Pesquisa sobre Violências e
Criminalizações (GEPVIC). E-mail: [email protected]
2
Acadêmico do Curso de Licenciatura e Bacharelado em Ciências Sociais da Universidade Federal do Amapá.
Membro Grupo de Estudo e Pesquisa sobre Violências e Criminalizações (GEPVIC). E-mail:
[email protected]
3
Acadêmica do Curso de Licenciatura e Bacharelado em Ciências Sociais da Universidade Federal do Amapá.
Bolsista do Programa de Educação Tutorial – PET. Membro Grupo de Estudo e Pesquisa sobre Violências e
Criminalizações (GEPVIC). E-mail: [email protected]
4099
Anais do VIII Encontro da ANDHEP
ISSN: 2317-0255
INTRODUÇÃO
Em meio às discussões atuais em torno da violência contra a mulher, à ampla
divulgação e da repercussão de crimes dessa natureza, o sentimento de revolta que atinge
parte da sociedade brasileira, foram as causas que nos motivaram a escolher a temática:
violência doméstica contra a mulher, em especial ao tratamento dispensado as que correm
perigo eminente de morte, tendo em vista que atualmente as brasileiras são amparadas
pelos direitos humanos fundamentais, bem como pela lei Maria da Penha e outros
dispositivos jurídicos. O presente artigo é o resultado prático de um projeto de pesquisa
realizado na disciplina Estágio Supervisionado I, do curso de Ciências Sociais da
Universidade Federal do Amapá, no ano de 2013.
Primeiramente, faz-se necessário para a compreensão da temática uma análise
histórica a respeito da violência doméstica contra a mulher no Brasil e a luta do movimento
feminista para a criação de políticas voltadas para as mulheres. Destaca-se a Lei Maria da
Penha, um exemplo de lei que visa ao estabelecimento de novas relações em meio às
conflituosas vivenciadas por mulheres vítimas de agressão doméstica intrafamiliar e o
pioneirismo do estado do Amapá no trato quanto à problemática da violência doméstica.
Posteriormente, aborda-se a política nacional e amapaense de abrigamento, as
Diretrizes Nacionais para o Abrigamento de mulheres em situação de risco e de violência e
o trabalho da Rede de Atendimento à Mulher em Macapá.
Por fim, destacam-se as percepções de campo em uma visão geral sobre o
atendimento oferecido às mulheres vítimas de violência doméstica nos órgãos de apoio e
atendimento à mulher, e a análise dos dados obtidos em campo.
HISTÓRICO DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A MULHER E AS NOVAS
PERSPECTIVAS JURÍDICAS
Historicamente a violência praticada contra as mulheres, especialmente a
doméstica, era tida como natural, de tal forma que os atos privados não tomavam o domínio
da esfera pública e os agressores não eram punidos por atos praticados que violassem a
dignidade, a moral e a vida das vítimas.
Não há dados sobre quantas mulheres ao longo da história, especificamente, no
Brasil foram vítimas de violência doméstica, desde tempos do Brasil colônia, quando as
mulheres não tinham personalidade jurídica de capacidade civil, pois as mesmas eram
tuteladas pelos pais e ao casarem-se a tutela passava ao marido.
4100
Anais do VIII Encontro da ANDHEP
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A capacidade jurídica da mulher era fruto das relações sociais patriarcais vigentes
em nossa sociedade. Somente com o advento de umas novas ordenações jurídicas e código
civil é que as mulheres passaram a ter autonomia, cidadania e capacidade civil
reconhecidas, entretanto esse processo foi muito lento e sua consolidação se deu no
período que ficou conhecido na historiografia como o Estado Novo.
Deduz-se que anteriormente a esse novo período as mulheres estavam sujeitas a
toda sorte de tratamento, sendo mesmo equiparadas à propriedade de seus maridos, o que
as tornava mais susceptíveis às vontades e despotismos maritais. Como não supor que a
violência doméstica intrafamiliar poderia ser prática recorrente e enublecida do espaço
público, visto que as questões familiares eram de foro privado, como ainda são, salvo se
houver qualificação de crime.
O movimento feminista, juntamente com o engajamento político de esquerda
contribuiu para que a partir de 1970, em plena ditadura, muitos direitos, de toda natureza,
civis, políticos fossem estabelecidos ou mesmo restaurados no país, a partir de então uma
nova perspectiva político-ideológica passa a fazer parte da pauta no quesito cidadania no
país, o direito das mulheres, entra definitivamente na agenda das discussões e ganha mais
força com a entrada de outros atores sociais que protestavam pelo fim da ditadura e a
redemocratização do país.
Com a abertura política e a outorga da nova Constituição Federal, tivemos,
finalmente, a equiparação jurídica em todos os sentidos entre homens e mulheres, conforme
disposto no Art. 5º, Inciso 1º: “homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações [...]”.
Combinado com o Art. 228, Inciso 8º4. Aparentemente algo banal, para nossos dias,
representou uma conquista e o reconhecimento da equidade entre homens e mulheres e a
partir de então outros ordenamentos jurídicos surgiriam para proteger a integridade das
mulheres em seus múltiplos aspectos.
Considerando o ambiente familiar em que as mulheres estão inseridas, constata-se
que o lar é na verdade um lugar em que as mulheres tornam-se potencialmente mais
suscetíveis à violência, segundo Saffioti:
Ao refletirmos sobre violência doméstica contra a mulher, os dados revelam
que a casa, espaço da família, antes considerada lugar de proteção e
próprio do mundo feminino, passa a ser um local de grande desproteção,
desamor e risco para as mulheres. Contrariando o senso comum, pesquisas
comprovam que o lugar menos seguro para a mulher é o seu próprio lar.
Tais dados reiteram que o risco de uma mulher ser agredida em sua
residência, pelo marido/companheiro, ex-marido/companheiro é nove vezes
4
§ 8º O Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos
para coibir a violência no âmbito de suas relações.
4101
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maior do que o de sofrer alguma violência na rua (SAFFIOTI apud GROSSI,
2008).
Essa insegurança no lar levou ativistas, juristas e legisladores a implementarem leis
que visam à proteção da vida das vítimas, em risco eminente de morte e graves ameaças. A
Lei Maria da Penha é um exemplo de lei que tem como objetivo estabelecer novas relações
em meio às conflituosas vivenciadas por mulheres vítimas de agressão doméstica
intrafamiliar.
A Lei 11.340/2006, conhecida como Lei Maria da Penha, surgiu do clamor de
ativistas e foi promulgada depois de vinte anos de tramitação no congresso, ainda sob fortes
pressões internacionais que exigiram do Brasil o desfecho de uma lei que desse maiores
garantias e proteção às mulheres vítimas de violência doméstica. A “Lei Maria da Penha”
destaca em seu Art. 1º:
Esta Lei cria mecanismos para coibir e prevenir a violência doméstica e
familiar contra a mulher, nos termos do § 8º da Constituição Federal, da
Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Violência contra a
Mulher, da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a
Violência contra a Mulher e de outros tratados internacionais ratificados pela
República Federativa do Brasil; dispõe sobre a criação de Juizados de
Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; estabelece medidas de
assistência e proteção às mulheres em situação de violência doméstica
familiar.
Os destaques da Lei Maria da Penha (Lei 11.340/2006) são, evidentemente, os
mecanismos para combater a violência contra a mulher que passa a ser considerada
“qualquer ação ou omissão que causa ou visa causar lesão, agressão física, sexual,
psicológica, morte, desvalorização, humilhação, dano moral ou patrimonial à mulher.” A
partir da Lei Maria da Penha, cria-se o Juizado da violência doméstica e familiar contra a
mulher, a pena do agressor passa a ser aumentada para três anos e este pode ser preso
em flagrante e ter sua prisão preventiva decretada e ainda afastado do lar.
Outro destaque refere-se a proteção efetiva às vítimas de violência doméstica no
Art. 23, que versa sobre o encaminhamento das mesmas para casas de proteção, o que
resulta na “reclusão” da vítima para sua própria segurança.
Apesar da criação da Lei 11.340/2006, percebe-se ainda haver a “cultura” da
violência doméstica contra a mulher. Somam-se a essa cultura o fato de
que
alguns
mecanismos e aparatos ainda não foram implementados, conforme consideram Maria del
Carmen Cortizo e Priscilla Larratea Goyeneche:
Faltam ainda políticas públicas e instituições do Estado que garantam a
efetividade e a eficácia da Lei Maria da Penha. Embora não dependa de
regulamentação, na prática, a efetivação da Lei tem se dado de maneira
lenta e desigual. Em algumas localidades faltam casas-abrigo, centros de
4102
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ISSN: 2317-0255
orientação e atendimento às vítimas, e centros de recuperação
dosagressores, e mais, muitas vezes, as mulheres agredidas são
orientadas, dentro da própria Delegacia, a não prestarem queixa contra
seus agressores. Além disso, falta a expansão de uma nova cultura
democrática com novos valores. Vivemos em um tempo de relações sociais
perversas, é preciso quebrar com este ciclo paternalista e machista que a
priori já violenta as mulheres aprisionando-as em papéis imaginários. É
preciso libertar nossos homens, também, igualmente vítimas deste sistema
que não os permite chorar, nem tampouco sofrer. Somente com a
passagem do tempo poderemos fazer uma análise mais detalhada da
eficácia da Lei Maria da Penha na prevenção e repressão da violência
doméstica contra a mulher. Porém o que já se pode dizer é que é
extremamente punitiva, introduzindo novos tipos penais e expandindo o
direito penal, impondo medidas privativas de liberdade quepossivelmente
não serão eficazes do ponto de vista psicossocial e sociocultural. Este
trabalho pretende trazer para a reflexão alguns dos paradoxos presentes na
Lei Maria da Penha, que são os paradoxos da nossa cultura jurídica eem
particular da cultura jurídica da administração dajustiça contemporânea.
(CORTIZO & GOYENECHE, 2010).
Semelhantemente à Lei Maria da Penha, a Política Nacional de Abrigamento
promulgada em 2011, tem por objetivos:
O presente documento tem por objetivos resgatar a Casa-Abrigo como
espaço de segurança, proteção, (re) construção da cidadania, resgate da
autoestima e empoderamento das mulheres, a partir de valores feministas.
Além disso, após a sanção da Lei Maria da Penha, é fundamental e
necessário redefnir, em linhas gerais, o atendimento nas Casas-Abrigo.
Assim como é necessário ampliar o conceito de ‘abrigamento’, incluindo
também outros tipos de violência contra as mulheres (como por exemplo, o
tráfico de mulheres) – e suas interfaces com a violência urbana (p.e.,
mulheres em situação de violência envolvidas com homens ligados ao
tráfico de entorpecentes). É importante notar que a Política Nacional de
Abrigamento deverá ser implementada, nos estados e nos municípios, sob a
coordenação do organismo estadual de políticas para as mulheres no
âmbito das ‘Câmaras Técnicas Estaduais e Municipais de Gestão e
Monitoramento do Pacto Nacional de Enfrentamento à Violência contra as
Mulheres’ e da rede estadual de atendimento à mulher em situação de
violência.
Ressalta-se que a implementação da Política de Abrigamento, apesar de ser um
ordenamento jurídico, relativamente, recente no Brasil, anteriormente questões de violência
doméstica já eram tratadas por Delegacias Especializadas, em vários estados da
Federação, inclusive no Amapá.
O estado do Amapá destaca-se nacionalmente por apresentar pioneirismo no trato
quanto à problemática da violência doméstica, visto que, além de possuir Delegacia
Especializada de Crimes contra a Mulher (DECCM) desde os anos de 1980, também criou a
Casa Abrigo Fátima Diniz através da Lei estadual 224 de 28 de agosto de 1995, e no ano de
2005 criou o CAMUF (Centro de Atendimento à Mulher e a Família) órgão de acolhimento
da mulher vítima violência. O CAMUF presta atendimento psicossocial e jurídico, focado na
educação em gênero, visando o rompimento da situação conflituosa e a equidade entre
4103
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gêneros. Para tanto se sustenta em um tripé de atendimento que envolve acolhimento e
cuidados à família em situação de violência doméstica, a educação em gênero.
Quando a situação de violência é extrema e oferece risco à vida da vítima, a
mesma pode ser acolhida pelos centros de atendimento a mulher (CRAM ou CAMUF, por
exemplo) e então é encaminhada a DECCM, ou por Ordem Judicial a Casa Abrigo Fátima
Diniz.
Percebe-se que no estado a política de abrigamento está sendo cumprida, apesar
de, no seu âmago, considerarmos uma contradição latente, pois a vítima de violência
doméstica é compelida a ficar reclusa em uma casa, ainda que de proteção, para garantir
sua segurança, pois este é o último recurso quando os demais não garantem a sua
proteção.
Assim, a Casa Abrigo cumpre uma função social importante, porém é o reflexo e
resultado último da “cultura” ainda presente de violência contra as mulheres. Os dispositivos
jurídicos são o último recurso para salvaguardar o que a cultura presente em nosso país
ainda não mudou. Enquanto houver essa referida cultura, haverá necessidade de
enfrentamento, seja com campanhas de esclarecimentos, conforme previsto na Lei
11.340/2006, Art. 8º, Inciso VIII, seja com medidas restritivas, elencadas no Art. 225 e/ou
protetivas previstas no Art. 236, sem prejuízo de outros enquadramentos jurídicos dispostos
no Código Penal.
POLÍTICA NACIONAL E AMAPAENSE DE ABRIGAMENTO
As Diretrizes Nacionais para o Abrigamento de Mulheres em Situação de Risco e
de Violência “tem por objetivos resgatar a Casa-Abrigo como espaço de segurança,
proteção, na construção e reconstrução da cidadania, resgate da autoestima das mulheres,
a partir de valores feministas”. E atualmente amplia o conceito de “abrigamento”, incluindo
5
Segundo o art. 22, as medidas protetivas de urgência que obrigam o agressor, incluem a: I – suspensão de posse
ou restrição do porte de arma; II – afastamento do lar, domicílio ou local de convivência com a ofendida; III –
proibição de determinadas condutas entre as quais: a) aproximação da ofendida, de seus familiares e
testemunhas, fixando o limite mínimo de distância entre estes e seu agressor; b) contato com a ofendida, seus
familiares e testemunhas por qualquer meio de comunicação; c) frequentação de determinados lugares a fim de
preservar a integridade física e psicológica da ofendida; IV – restrição ou suspensão de visitas aos dependentes
menores, ouvida a equipe de atendimento multidisciplinar ou serviço similar; V) prestação de alimentos
provisionais ou provisórios.
6
Constituem medidas protetivas de urgência à ofendida, segundo o previsto no Art. 23: I – encaminhar a
ofendida e seus dependentes a programa oficial ou comunitário de proteção ou de atendimento; II – determinar a
recondução da ofendida e de seus dependentes ao respectivo domicílio, após o afastamento do agressor; III –
determinar o afastamento da ofendida do lar, sem prejuízo de seus direitos relativos a bens, à guarda dos filhos e
aos alimentos; IV) determinar a separação de corpos.
4104
Anais do VIII Encontro da ANDHEP
ISSN: 2317-0255
também outros tipos de violência contra as mulheres (como por exemplo, o tráfico de
mulheres) – e suas interfaces com a violência urbana (por exemplo, mulheres em situação
de violência envolvidas com homens ligados ao tráfico de entorpecentes).
Ainda de acordo com Diretrizes Nacionais para o Abrigamento de Mulheres em
Situação de Risco e de Violência tem se buscado atualmente a implementação da Política
Nacional de Abrigamento em todos os estados e nos municípios do Brasil em virtude da
expansão das políticas para as mulheres e principalmente com a firmação de um Pacto
Nacional de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres e da criação de uma rede
estadual de atendimento à mulher em situação de violência e inclui quatro eixos para o
enfrentamento à violência contra as mulheres: a prevenção, o combate, a assistência (como
os centros de referência de atendimento à mulher, juizados especializados de violência
doméstica e familiar contra a mulher, Central de Atendimento à Mulher – Ligue 180, etc.) e a
garantia de direitos.
Quanto ao Pacto Nacional pelo Enfrentamento à Violência tem como prioridades a
garantia do acesso das mulheres aos serviços especializados e a do atendimento no âmbito
da rede de serviços, o abrigamento nesse sentido ganha destaque como política pública que
visa garantir o acesso ampliado das mulheres em situação de violência a locais seguros e
protegidos, assim como a medidas de proteção em relação às diversas formas de violência
contra as mulheres.
A promulgação da Lei nº 11.340/2006 (Lei Maria da Penha) representou um passo
importante para o enfrentamento da violência contra as mulheres no Brasil. Esta lei institui
mecanismos para coibir e prevenir a violência doméstica e familiar prevê a aplicação de
medidas protetivas de urgência (as que obrigam o agressor – Art. 22 e aquelas destinadas à
ofendida – Arts. 23e 247). Tais medidas são consideradas fundamentais para garantir os
direitos das mulheres e ampliar o seu acesso à rede de atendimento especializada, que
inclui desde o acolhimento psicossocial e jurídico até o abrigamento das mulheres e seus
filhos (as) nos casos de grave ameaça e risco de morte.
A Rede de Atendimento à Mulher (RAM) foi institucionalizada no estado do Amapá
pelo Governo do Estado em 2005 e se tornou referência nacional por conta de suas ações
no enfrentamento de crimes contra a mulher. A RAM é vinculada à Secretaria Extraordinária
7
Constituem medidas para a proteção patrimonial dos bens da sociedade conjugal ou daqueles de propriedade
particular da mulher no Art. 24: I – restituição de bens indevidamente subtraídos pelo agressor a ofendida; II –
proibição temporária para a celebração de atos e contratos de compra, venda e locação de propriedade em
comum, salvo expressa autorização judicial; III – suspensão das procurações conferidas pela ofendida ao
agressor; IV – prestação de causa provisória, mediante deposito judicial, por perdas e danos materiais
decorrentes da prática de violência domestica e familiar contra a ofendida
4105
Anais do VIII Encontro da ANDHEP
ISSN: 2317-0255
de Políticas para as Mulheres (SEPM), e oferece atendimento na maioria dos municípios do
estado.
A RAM é composta por vários órgãos do Estado, como DECCM, CAMUF e o
Centro de Referência e Atendimento à Mulher-Bem-Me-Quer (CRAM), Casa Abrigo Fátima
Diniz, entre outros. As portas de entrada para a denúncia de crimes contra a mulher no
Estado são as delegacias especializadas, postos de saúde municipais, Hospital da Mulher
Mãe Luzia (HMML) e Hospital de Emergência (HE), Corpo de Bombeiros Militar (CBM/A) e
unidades móveis da Polícia Militar (PM/AP).
Segundo as Diretrizes Nacionais para o Abrigamento de Mulheres em Situação de
Risco e de Violência:
No sentido de cumprir o previsto na Lei Maria da Penha, na Política e no
Pacto Nacional pelo Enfrentamento à Violência contra as Mulheres (e em
políticas afins), bem como de ampliar o acesso das mulheres à rede de
atendimento -, a SPM estabelece as Diretrizes Nacionais de Abrigamento às
Mulheres em situação de Violência, que redefinem as possibilidades de
acolhimento provisório para mulheres em situação de violência no intuito de
garantir-lhes segurança e proteção. (Secretaria de Políticas para as
Mulheres / Presidência da República - SPM/PR, 2011).
Neste sentido o conceito de abrigamento diz respeito a gama de possibilidades
(serviços, programas, benefícios) de acolhimento provisório destinado a mulheres em
situação de violência (violência doméstica e familiar contra a mulher, tráfico de mulheres,
etc) que se encontrem sob grave ameaça e risco de morte, ou não.
As Diretrizes Nacionais para o Abrigamento de Mulheres em Situação de Risco e
de Violência aponta que, no sentido de garantir às mulheres vítimas de violência, o acesso a
locais seguros e protegidos, foram criadas, as casas-abrigo, casas-de-passagem, casas de
acolhimento provisório de curta duração, albergues etc.
Na maioria dos casos de violência doméstica, alguns serviços têm utilizado
instrumentos para inferir os riscos aos quais a mulher está submetida, com
base nos seguintes critérios (relacionados ao comportamento/histórico do
agressor): uso de armas brancas ou de fogo; histórico criminal; abuso de
animais domésticos; histórico de agressões a conhecidos estranhos e/ou
policiais; tentativa ou ideação suicida recentes; não cumprimento de
medidas protetivas de urgência; ser autor de abuso sexual infantil; histórico
de agressão aos filhos; abuso de álcool ou drogas; minimização extrema ou
negação da situação de violência doméstica e familiar, entre outros.
(Secretaria de Políticas para as Mulheres / Presidência da República SPM/PR, 2011).
Segundo os dados do sistema da rede de atendimento à mulher da Secretaria de
Políticas para as Mulheres, as mulheres em situação de violência têm acesso a um número
reduzido de serviços de abrigamento no país. No caso específico de Macapá, a capital conta
4106
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apenas com a Casa Abrigo Fátima Diniz, referência no estado e no País, tendo em vista que
foi inaugurada no dia 16 de março de 2001, cinco anos antes da Lei Maria da Penha.
A Casa Abrigo Fátima Diniz é um espaço de acolhimento provisório (90 dias), em
caráter sigiloso, destinado ao atendimento de mulheres e seus filhos (de 0 a 12 anos) que
se encontram em situação de violência doméstica e familiar com risco de morte.
A casa abrigo presta serviço psicosociopedagógico; oficinas terapêuticas e
artesanais e temáticas; encaminhamento da mulher abrigada a RAM, para capacitação e
inserção no mercado de trabalho, acompanhamento e assistência à saúde, assistência
jurídica, entre outros serviços.
Os critérios de abrigamento do abrigo Fátima Diniz são: mulheres vítimas de
violência doméstica com risco de morte; que não tenha outro lugar que lhe ofereça
segurança; que seja maior de 18 anos e; que tenha registrado ocorrência na DECCM,
Macapá e Santana.
PERCEPÇÕES ANÁLISES DA PESQUISA DE CAMPO
Para uma visão geral sobre o atendimento oferecido às mulheres vítimas de
violência doméstica foi realizada uma pesquisa aos órgãos de apoio e atendimento à
mulher, para tanto foram visitados: CAMUF, CRAM, DECCM e SEPM.
No CRAM e no CAMUF são oferecidos alguns atendimentos psicológicos, jurídicos
e sociais, o CRAM, atende às mulheres vítimas de violência doméstica e tem crescido a sua
abrangência, bem como sua área de atuação. Atualmente há CRAMs em vários bairros de
Macapá, em Santana e alguns no interior, oferecendo maior facilidade de acesso às
mulheres. O CAMUF possui um diferencial em seu trabalho, pois além do atendimento à
mulher, também atende a família, proporcionando tratamento à mulher, ao agressor e aos
demais envolvidos, como os filhos.
A SEPM, é responsável pela elaboração e desenvolvimento de ações e políticas
públicas, articula campanhas educativas e de prevenção à violência doméstica.
Numa análise preliminar, constata-se a necessidade de mais órgãos de
atendimento à família, pois no caso de violência doméstica e familiar temos outros
envolvidos além do casal, como por exemplo: os filhos e outras pessoas, que se tornam
violentadas simbolicamente ou diretamente e que também precisam de acompanhamento. E
no Estado temos apenas um órgão que faz esse atendimento à família.
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Em todos os órgãos percebe-se um problema em comum: a falta de profissionais
no quadro efetivo, o corpo de funcionários que em sua maioria é do contrato administrativo
dificulta o desempenho dos trabalhos nesses órgãos, porque é feita a habilitação desses
funcionários que iniciam as atividades, fazem cursos de capacitação e são investidos neles
uma série de conhecimentos e depois são desperdiçados, perdidos, pois esses funcionários
saem do cargo e outros assumem, sendo necessário novo investimento em capacitação de
recursos humanos.
Esses órgãos fazem parte da rede de atendimento à mulher, os quais têm
participação atuante e envolvidos com os outros órgãos que visam à disseminação de
campanhas educativas e proteção às mulheres vítimas de violência doméstica.
Nas visitas à DECCM, foram presenciados três episódios que serão narrados
adiante. Registre-se a demora no atendimento, embora já houvesse agendamento para
entrevista com a administração, pois numa primeira diligência não fora possível tal feito.
Supondo que fosse uma vítima de agressão, como seria inconveniente, para não dizer
absurdo ter de esperar várias horas para conseguir um atendimento? Depois de várias
situações de violência sofridas, restando a possibilidade de até mesmo desistirem por causa
da espera, morosidade e desídia dos servidores públicos, além das péssimas instalações,
mobiliário e um banheiro quase inutilizável.
Episódio I: “Conflitos interpretativos da Lei”
Em meio a esse contexto, ainda no aguardo para entrevistar um administrador da
referida Delegacia, presencia-se a chegada de um casal acompanhado de policiais militares,
a mulher pretendia denunciar um homem, assim como ele também pretendia registrar
ocorrência contra sua denunciante, motivo de uma controvérsia na delegacia porque ela
podia denunciá-lo e ele não, posto que, no local ela era vítima, então ele não podia
denunciá-la, embora naquela circunstância tivessem vindo de outra delegacia da qual foram
encaminhados para a delegacia das mulheres. No fim o homem foi mandado para uma cela,
para a qual se negava a ir, afirmando não ser bandido para ser tratado daquela forma, ele
ofereceu resistência e os policiais o imobilizaram agressivamente, sendo conduzido à força.
Por esse episódio, percebe-se a falta de preparo tanto da polícia e como dos servidores da
delegacia para lidarem com a situação deviolência conjugal, demonstravam não saber o que
fazer naquela na ocasião quando fora decidido mandar o homem para cela e a mulher ficou
esperando atendimento, enquanto esperava discutiu com uma senhora que estava também
aguardando e que achou errada a atitude da mulher de ter ido à casa dele atrás de dinheiro,
que resultou em toda a confusão que os levara à delegacia, à senhora dizia que a culpada
de toda aquela situação era a mulher e não o homem. Percebe-se a reprodução de uma
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cultura machista, que segundo Pierre Bourdieu, muitas vezes é reproduzida de forma
inconsciente entre homens e mulheres que vivem numa estrutura de dominação masculina,
que se estabelece, se “naturaliza” e se mantém no processo histórico e, como tal, se
adequou às mudanças sociais, bem como se reproduziu e continua se reproduzindo.
Episódio II: “Negação de direito e cidadania”
Ainda na espera, percebeu-se uma senhora que aguardava para ser atendida, com
aparência cansada e humilde, cuja mesma queria informações e já estava cansada de
esperar, então chamou um servidor o qual se dirigiu de forma agressiva e perguntou: “Qual
é o seu caso? É de violência doméstica?” A senhora respondeu que fora agredida por um
vizinho, de prontidão o servidor replicou em voz alta e ironicamente: “Minha senhora aqui
nós só atendemos casos de violência doméstica que está prevista na Lei Maria da Penha,
sabe?”, ou seja, só se o agressor for o marido, irmão, um parente ou alguém próximo de
você”. A senhora ficou indignada e disse que falaria com outra pessoa e não mais com
aquele servidor e retirou-se da delegacia.
Resta claro que a forma de tratamento na delegacia é diferente dependendo da
pessoa e que é difícil para mulheres que não têm conhecimento sobre os seus direitos
continuar o processo de denúncia, pois na delegacia é questionado que medida essa mulher
necessita (Art. 18, Lei 11.340/2006) e é o delegado ou delegada que faz essa análise.
Em conversa com o mesmo servidor, questionou-se: quais tipos de violências vocês
atendem? São somente as previstas na lei Maria da Penha? E o servidor respondeu: Não,
atendemos todos os casos e tipos de violência doméstica contra as mulheres. Há uma
contradição no que se observou momentos antes para com a senhora que não tinha
nenhum conhecimento e precisava de informação e para o que foi respondido para os
pesquisadores.
Segundo a lei Maria da Penha, o servidor prevaricou ao não cumprir o disposto no
Art. 5º, Inciso I, que trata sobre a violência doméstica e familiar contra a mulher, no âmbito
da unidade doméstica, compreendida como espaço de convívio permanente de pessoas,
com ou sem vínculo familiar, inclusive esporadicamente agregadas.
Episódio III: “Descaso e negligência com as vítimas de violência doméstica”
Em entrevista com uma servidora da delegacia, a mesma disse que a delegacia
atendia a todos os crimes conta à mulher, também foi questionada sobre que a Lei Maria da
Penha, ao que respondeu que: a lei beneficia, mas deve ser mais específica, principalmente
quanto às medidas protetivas, que deveria haver restrições quanto às mesmas, pois há
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mulheres que nem precisam dessas medidas de verdade, que muitas vezes o homem diz
que vai fazer algo e nem faz, é só ameaça verbalizada e que em muitos mandados de
prisão a mulher volta com o marido. E que ela não considera homem que bate em mulher
um bandido. E que alguns casos de violência doméstica "é caso amoroso e não crime". E
também a lei deveria prever como trabalhar a família. E quando questionada se os
servidores estavam preparados para atenderem às mulheres que procuram à delegacia, a
mesma respondeu que os servidores não estão qualificados. Esse episódio será analisado
adiante.
RESULTADOS E ANÁLISES DOS DADOS DA PESQUISA
Conforme exposto, este artigo foi o resultado de uma pesquisa extensa de cunho
qualitativo que demandou várias metodologias e análises. Inicialmente parte-se do
pressuposto de cinco hipóteses iniciais, para os motivos que levam às mulheres vítimas de
violência doméstica a ficarem reclusas em casas de abrigo, quais sejam:
1. Por não terem outro lugar seguro pra sua proteção;
2. Devido à morosidade e ineficiência do estado em garantir segurança às vítimas em
seus lares, bem como por não fazer cumprir as leis;
3. Devido ao medo de represália de seus agressores;
4. Devido à incredulidade das mulheres vítimas de violência nas medidas preventivas
de segurança e proteção e;
5. Devido à estrutura e aparato de segurança e leis estarem impregnadas pelo
patriarcalismo/machismo.
Para obtenção dos dados e comprovação das hipóteses previamente levantadas
foram diligenciadas visitas e entrevistas à DECCM, CAMUF, CRAM e SEPPM, em todos
esses órgãos buscou-se informações, dados estatísticos que pudessem subsidiar a
pesquisa.
Também foram efetuadas entrevistas com duas vítimas de violência doméstica que
passaram pela Casa Abrigo Fátima Diniz, entre 2012 e 2013, além de entrevistas os
agentes responsáveis pela segurança das mesmas; foram analisadas a Lei 11.340/2006 (Lei
Maria da Penha) e as Diretrizes Nacionais para o Abrigamento de Mulheres em Situação de
Risco e Violência.
As entrevistas foram o ponto mais crítico da pesquisa tendo em vista a dificuldade
ao acesso as ex-abrigadas, pois dependia-se exclusivamente da Casa Abrigo para obtenção
de informações de caráter sigiloso. Tornando-se possível o contato através da Diretora do
abrigo, de apenas duas ex-abrigadas.
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Para o escopo proposto para a pesquisa, em termos abrangentes, quando se
confrontam os dados estatísticos, relatórios e entrevistas infere-se que todas as hipóteses
foram confirmadas, da seguinte forma:
No episódio III que trata do “Descaso e negligência com as vítimas de violência
doméstica” foi possível confirmar a hipótese de que existe um certo "machismo" impregnado
nas leis e/ou nas pessoas que lidam com esse problema, pois esta servidora tem um papel
importante nesse processo, o que dificulta todo o trabalho que é feito de apoio às mulheres,
a desconstrução de uma cultura machista e todo o processo de prevenção e inibição da
violência doméstica e familiar contra as mulheres. As mulheres sofrem violência dupla, pois
quando chegam à delegacia são violentadas novamente, o que Pierre Bourdieu chama de
violência simbólica, violência doce, insensível, invisível para suas vítimas, que se exerce
essencialmente pelas vias simbólicas da comunicação e do conhecimento – ou, mais
precisamente, do desconhecimento, do reconhecimento ou, em última instância, do
sentimento.
Com base na própria Política Nacional de Abrigamento e no regimento interno da
casa abrigo Fátima Diniz foi possível constatar que as mulheres abrigadas são na sua
maioria provenientes de regiões próximas ou do próprio estado, que na sua maioria não têm
lugar para ficar no estado e quando têm não podem ficar por não terem segurança. Em duas
entrevistas realizadas com ex-abrigadas as mesmas informaram que não podiam ficar na
casa de parentes ou conhecidos porque não se sentiam seguras. A primeira
entrevistada8relatou que sofrera várias formas de violência infligidas pelo seu esposo, à
época, durante dezoito anos, quando ainda morava no município de Porto Grande, distante
100 km de Macapá, afirmou que não se sentia segura em nenhum lugar e que talvez um
único lugar em ela, estivesse segura fosse num presídio (até o momento do seu
abrigamento a mesma desconhecia a existência da casa-abrigo), tendo em vista que ela já
tinha uma medida protetiva contra o agressor e que o mesmo ainda assim a perseguia
constantemente e lhe ameaçava “se eu quiser te matar, eu mato! Não vai ser um pedaço de
papel que vai me impedir”.
A segunda entrevistada9 revelou que se sentia sufocada com o ciúme do seu
companheiro e que gostaria de “dar um tempo na relação” e provar que ela tinha direitos e
que não se submeteria aos seus caprichos, no entanto não tinha nenhum lugar para onde ir,
no dia em que a mesma foi encaminhada à Casa Abrigo seu agressor furou o tanque de sua
moto em frente à auto-escola que a mesma frequentava.
8
9
Entrevista realizada dia 19/12/2013.
Entrevista realizada dia 27/12/2013.
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Portanto resta claro que tanto a primeira entrevistada quanto a segunda não
possuíam outro lugar seguro para sua proteção. Quanto à situação da primeira entrevistada,
registra-se a morosidade e ineficiência do Estado em garantir segurança às vítimas em seus
lares, bem como por não fazer cumprir as leis, uma vez que o inquérito policial que tramitou
no município de Porto Grande não resultou em qualquer tipo de penalidade ao agressor
como será exposto adiante.
Apesar de a Casa Abrigo ser um lugar de proteção e segurança da mulher vítima
de violência doméstica e familiar, percebe-se que existem falhas na sua segurança,
principalmente no que se refere ao sigilo (o sigilo tem sido um pré-requisito para a
implantação e existência do serviço) o que coloca em risco a segurança das abrigadas.
A segunda entrevistada revelou que o seu companheiro sabia onde a mesma
estava, o mesmo lhe contou quando ela saiu da Casa Abrigo que ele sabia que ela estava
lá, inclusive ele havia ido ao abrigo prestar serviço pois trabalha no Corpo de Bombeiros.
Alguns servidores e responsáveis pela rede de atendimento a mulher revelaram
que isso é um problema tendo em vista que Macapá ainda é uma cidade pequena que
muitas pessoas sabem a localização da casa, apesar das mudanças de endereço.
A mudança de endereço tendo em vista essa busca de sigilo acarreta outro
problema, encontrar um prédio para alugar com as condições mínimas necessárias para
receber as abrigadas, seus filhos e a equipe do abrigo. Além de o aluguel consumir boa
parte dos recursos do abrigo.
Com as entrevistas, percebe-se até o momento em que a mulher decide romper o
ciclo de violência, leva tempo para que a mesma possa sair da relação com a sensação de
segurança. As que se encontram sob forte ameaça quando decidem por fim à violência nem
sempre recebem o atendimento esperado e em tempo. A primeira entrevistada contou que
após um processo demorado e difícil (esse foi o primeiro episódio em que a mesma contou
com a ajuda da filha para denunciar o agressor e, fato havia ocorrido em Porto Grande, o
que posteriormente iria ser motivo para que a prisão do agressor não fosse decretada).
Mesmo a vítima mudando de município o seu agressor a seguiu e só depois de uma
tentativa de homicídio a mesma foi amparada pelo Estado, sendo encaminhada para a casa
abrigo Fátima Diniz, depois que a mesma ameaçou ir comprar drogas para poder ser presa
e assim se ver livre do seu agressor.
O interessante nessa história é que apesar da
tentativa de homicídio o agressor não foi preso, porque não conseguiram localizá-lo e
também não haver provas suficientes para incriminá-lo, mesmo ele estando respondendo a
outro processo. A vítima relatou o fato de ele ter tentado matá-la não poderia ser
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acrescentado ao novo processo, tento em vista que outro processo fora iniciado em Porto
Grande e a ocorrência de tentativa de homicídio ocorreu em Macapá. Por fim o processo foi
encerrado e o agressor absolvido por falta de provas.
O que acabou de ser exposto acima demonstra a incapacidade do Estado em
garantir a segurança às vítimas de violência doméstica no país e a ineficiência em fazer
cumprir às leis, percebe-se que as queixas das vítimas da violência esbarram na burocracia
que em vez de ser ágil nesses casos, prolonga o sofrimento da vítima que se vê
desamparada, o que contribui para que muitas mulheres fiquem desacreditadas da lei e
assim desistam de lutar por seus direitos o que contribui também para que os agressores
tenham certeza da impunidade dos seus atos.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Quando se analisam os dados relativos aos registros de Boletins de Ocorrência
(B.O) na DECCM, que são em torno de 1000 (mil) por mês e o número de mulheres que
frequentam o CAMUF, menos de 20 (vinte) por mês e o número de apenas 4 (quatro)
mulheres abrigadas na Casa Abrigo Fátima Diniz, suscitam-se alguns questionamentos:

Primeiro: por que há uma disparidade enorme, entre o número de mulheres que
registram B.O e o número de mulheres que são atendidas posteriormente? Tanto no

CAMUF, quanto na Casa Abrigo?

jurídica recebem?
Segundo: como essas mulheres são tratadas e que tipo de orientação psicossocial e
Terceiro: essas mulheres que não frequentam o CAMUF ou não foram
encaminhadas à Casa Abrigo deixaram de sofrer violência?
Primeiramente é necessário elucidar os fatos por trás dos números, pois a simples
catalogação dos mesmos, sem o devido apreço de uma análise pode obscurecer um
norteamento pretensiosamente relevante e sério no âmbito da pesquisa.
Segundo, não há dados oficiais que indiquem o porquê dessas disparidades.
Portanto o Estado, através dos seus órgãos, não tem acompanhamento e não há
verdadeiramente como saber os motivos para tal.
Em terceiro lugar, pela pesquisa de campo empreendida junto ao CAMUF, fica claro
que muitas mulheres e seus companheiros começam a fazer os acompanhamentos
psicosociopedagógico e depois acabam perdendo o interesse ou há, primeiramente,
resistência dos companheiros e o referido órgão não tem poder de coercitivo para obrigá-los
a frequentar as reuniões e palestras.
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Outro aspecto que se deve levar em consideração é a estrutura da Casa Abrigo,
justamente, por ser uma casa não oferece condições para abrigar confortavelmente mais
que duas famílias, considerando que podem ficar até noventa dias, não haveria espaço para
novas famílias serem abrigadas nesse período. Levando às autoridades policiais e judiciais
a tomarem decisões de caráter classificatório e eliminatório, pois apesar dos critérios de
abrigamento serem claros e objetivos, serão essas autoridades que decidirão se haverá a
imperiosa necessidade para o mesmo.
Poder-se-ia inferir que as mulheres vítimas de violência doméstica que não
participam do CAMUF e não são abrigadas, não mais sofreram violência de seus
companheiros ou simplesmente pelo primeiro contato perceberam que não resultaria em
resultado positivo e seria perda de tempo? O que inferir se não há subsídios para tal
inferência?
Os fatos mais concretos que podem ser apreendidos a partir dessa pesquisa são os
que evidenciam a cultura do machismo, da dominação masculina, que resultam na opressão
das mulheres, vitimadas de várias formas, quer psíquica, moral, sexual, física, enfim
negando a condição das mesmas enquanto sujeito, portadoras de personalidade e
capacidades equivalentes à masculina.
Em entrevista com a própria diretora da casa-abrigo Fátima Diniz, foi revelado que
no período de abrigamento as usuárias ficam restritas às normas da instituição, situação que
pode gerar a sensação de prisão. Foi o caso da segunda entrevistada, a mesma revelou se
sentir presa na casa-abrigo, não só por estar em um ambiente que não era seu lar e de ter
que cumprir com as normas do abrigo, mas principalmente, pelo fato dela sentir que alguns
funcionários tratavam-na como uma detenta.
Ressalta-se que casa-abrigo cumpre uma função social importante, porém, a
política de abrigamento apresenta também algumas contradições, na medida em que
superproteger a mulher, a Lei nº 11.340/2006 viola princípios e normas assentados nas
declarações universais de direitos, exemplos: ao restringir ou suspender crianças e
adolescentes à convivência familiar; ao privar a mulher de exercer a liberdade de ir e vir.
Além de instrumentalizar a materialização de concepções discriminatórias, sob o pretexto de
tutelar ou proteger as mulheres vítimas de violência doméstica, tolhe, ainda que
indiretamente, a liberdade dessa mesma pessoa que a norma pretende proteger (KARAM,
2006).
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Para Maria Lúcia Karam (2006) o enfrentamento da violência de gênero, a
superação dos resquícios patriarcais, não ocorrerá através da sempre enganosa, dolorosa e
danosa intervenção do sistema penal.
Voltar-se somente para a vítima da violência doméstica também não resolve o
problema, faz-se necessário a criação de políticas públicas que visem a inserção de
medidas educativas para uma mudança de mentalidade dos autores da violência doméstica,
sob pena de em longo prazo, impor cada vez mais medidas privativas de liberdade que
possivelmente não serão eficazes do ponto de vista psicossocial e sociocultural (CORTIZO
& GOYENECHE, 2010).
Sirvinskas questiona até que ponto as medidas protetivas de urgência não
poderiam prejudicar terceiros, ou mesmo limitar a liberdade de tomada de decisão da vítima,
tornado-a incapaz de reger sua própria vida e do seu patrimônio.
Segundo Anjos (apud SIRVINSKAS), leis sozinhas não resolvem outros problemas
de cunho social e cultural, e nesse sentido, o combate à violência contra a mulher depende,
fundamentalmente, de amplas medidas sociais e profundas mudanças estruturais da
sociedade.
O processo cultural em vigor passa por transformações e a dinâmica da informação
pode contribuir para a diminuição em curto prazo e a erradicação em longo prazo da
violência doméstica contra a mulher. Esse processo já começou, foi lento no decorrer da
história, apenas a partir do final do século XX começou a se intensificar. Com as novas
relações culturais presentes e o nível de esclarecimento e de politização das pessoas,
abrem-se novas perspectivas para a equidade e o respeito de gêneros.
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REFERÊNCIAS
BOURDIEU, Pierre. A dominação Masculina. 3ª Ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003.
Constituição Federal de 1988
CORTIZO, Maria de Carmen. GOYENECHE, Priscila Larratea. Judiciarização do privado e violência
contra a mulher. Florianópolis: Revista Katál, v. 13 n. 1 p. 102-109 jan/jun. 2010. Disponível em:
http://www.scielo.br/pdf/rk/v13n1/12.pdf. Acesso em: 19/08/2013.
Diretrizes Nacionais para o Abrigamento de Mulheres em Situação de Risco e de Violência. Brasília:
2011. Disponível em: http://spm.gov.br/publicacoes-teste/publicacoes/2011/abrigamento. Acesso em:
19/08/2013
GROSSI, Patricia Krieger ET AL. A rede de proteção à mulher em situação de violência doméstica:
avanços e desafios. Athenea Digital – num. 14: 267-280 (otoño 2008) – CARPETA. Disponível em:
https://www.google.com.br/url?sa=t&rct=j&q=&esrc=s&source=web&cd=1&cad=rja&ved=0CCgQFjAA&u
rl=http%3A%2F%2Fdialnet.unirioja.es%2Fdescarga%2Farticulo%2F2736196.pdf&ei=0vdUoqhH5CikQe
drIHQBQ&usg=AFQjCNFIbshi-yHgBFgUKCQZA0Sb2vQa0A&bvm=bv.59568121,d.cWc.
Acesso
em:
19/08/2013.
KARAM, Maria Lúcia. Violência de gênero: o paradoxal entusiasmo pelo rigor penal. Boletim IBCC,
São Paulo, v. 14, n. 168, nov. 2006.
Lei
Maria
da
Penha.
Lei
Nº
11.340,
de
7
de
agosto
de
2006.
Disponível
em:
http://www.mulheresedireitos.org.br/publicacoes/LMP_web.pdf. Acesso em: 19/08/2013.
SIRVINSKAS, Luís Paulo. Aspectos polêmicos sobre a lei n. 11.340, de 7 de agosto de 2006, que
cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher. Disponível em:
http://www.ibccrim.org.br/site/artigos/_imprime.php?jur_id=9415. Acesso em: 03/07/2013.
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POLÍTICAS DE SEGURANÇA PÚBLICA E DIREITOS HUMANOS DE LÉSBICAS, GAYS,
BISSEXUAIS, TRAVESTIS E TRANSEXUAIS:
DA REIVINDICAÇÃO À IMPLEMENTAÇÃO
CLEYTON FEITOSA PEREIRA - UFPE│PPGDH
GUSTAVO GOMES DA COSTA - UFPE│PPGDH
INTRODUÇÃO
Desde a fundação do Movimento de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e
Transexuais no Brasil, na segunda metade do Século XX, a resistência contra a violência
homofóbica se configura como uma pauta central. Em tese, podemos dizer que o combate a
variadas formas de violência contra a população LGBT se constitui como um dos motivos
primordiais de LGBTs se organizarem politicamente.
Na ótica de Julio Simões “O que haveria em comum entre as pessoas LGBT seria a
sua constituição como sujeitos de direitos em face da condição que compartilhariam, de
“oprimidos” e “subalternos” nas hierarquias e nas estratificações de sexualidade e gênero”
(SIMÕES, 2011, p. 170). Essa constatação pode ser verificada a partir das ações de
ativistas, grupos e organizações não-governamentais em defesa da cidadania LGBT desde
a sua fundação. As reflexões de Simões convergem com as análises da antropóloga Regina
Facchini no que tange à centralidade da homofobia na pauta do Movimento LGBT:
De modo semelhante à “misoginia” ou o “machismo”, para o caso do
movimento feminista, e ao “racismo”, para o caso do movimento negro, a
homofobia aparece para o movimento LGBT como uma âncora a partir da qual
se procura estruturar as identidades coletivas associadas ao movimento e
legitimar a perspectiva de outras conquistas no campo dos direitos e da política.
(SIMÕES, FACCHINI, 2009, p. 25).
Não por acaso, a violência parece ser um fenômeno que acompanha universal e
cotidianamente este segmento da população. Daniel Borrilo em seu texto “Homofobia:
História e crítica de um preconceito” constata:
A violência e a discriminação em relação à homossexualidade ocorrem,
frequentemente, diante da maior indiferença da população. Com certa
regularidade, ficamos sabendo que numerosos gays, lésbicas, bissexuais,
travestis e transexuais vivem com temor de serem agredidos simplesmente
por causa de sua orientação sexual. Em um relatório terrificante, a Amnesty
International (1998) denuncia os assassinatos, as execuções legais, as
torturas, os estupros, as terapias forçadas, os despedimentos abusivos e os
insultos de que os homossexuais continuam sendo vítimas. Ainda é
reduzido o número de países que descriminalizaram a homossexualidade, a
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qual, na maior parte dos casos, é punida com detenção: no Afeganistão, no
Irã, na Mauritânia, na Tchetchênia e no Sudão, os homossexuais são
passíveis de dilapidação ou de flagelação e, até, podem ser condenados à
morte (BORRILO, 2010, p. 107 e 108).
Esse quadro desolador vai de encontro a princípios fundamentais presentes na
Declaração Universal dos Direitos Humanos (ONU, 1948) forjado após o genocídio das duas
grandes guerras mundiais. Naquele contexto, homossexuais eram perseguidos e mortos
pelo regime nazista, assim como outros grupos sociais, embora nem sempre mencionados
pelos que discutem o horror do holocausto.
Trazendo para o Brasil, a violência homofóbica ganha contornos singulares,
característicos da trajetória histórica e das contradições sociais fortemente presentes em
nossa nação. A colonização, a república oligárquica, as ditaduras e toda sorte de regimes
autoritários aliados à concentração fundiária, de renda, à escravidão, o patriarcado e a
outras desigualdades sociais resultaram um bojo cultural em que a violência é fomentada e
vivenciada de maneira naturalizada.
Embora não tenhamos leis formais que criminalizem orientações sexuais e
identidades de gênero no Brasil, a exemplo de outros países, vivemos sob a égide de
normas sociais que tipificam a diversidade sexual como desvios criminosos passíveis de
correção/eliminação. É possível detectar estas normas de maneira muito evidente através
de práticas, instituições e discursos que nos cercam desde a infância até a vida idosa:
família, religiões, mídia, escola, etc. A homofobia é uma componente cultural1.
Dados do 2º Relatório Sobre Violência Homofóbica: O ano de 2012, divulgados em
Junho de 2013 pela Coordenação de Promoção dos Direitos LGBT, da Secretaria de
Direitos Humanos da Presidência da República, apontam que o número de denúncias
cresceu 166% em relação a 2011, aumentando de 1.159 para 3.084 registros (BRASIL,
2012).
Ainda segundo o relatório, o número de violações também cresceu: partiu de 6.809
para 9.982, um aumento de 46,6%, sendo que em uma única denúncia pode haver mais de
um tipo de transgressão. As fontes do relatório são do Disque 100 (SDH/PR), do Ligue 180
(Secretaria de Políticas para as Mulheres - SPM) e da Ouvidoria do Sistema Único de Saúde
(SUS), do Ministério da Saúde.
Importante destacar que o levantamento da violência homofóbica realizado pelo
governo brasileiro é bastante recente e surge de fatores que pressionaram a estrutura do
Ministério da Justiça a desenvolver tal mapeamento, tais como:
1
Possivelmente por isso, o primeiro programa voltado para a população LGBT tenha como mote o combate a
homofobia. Referimo-nos ao Programa “Brasil Sem Homofobia”, lançado em 2004 pelo Governo Federal. Este
ano o programa completa 10 anos de existência o que seria muito interessante realizar um balanço sobre os
avanços e o impacto que tal iniciativa repercutiu na vida da população LGBT brasileira.
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A cobrança de grupos organizados do Movimento LGBT como o Grupo Gay da Bahia
- GGB que há anos contabiliza assassinatos contra LGBTs.
O argumento de parlamentares que representam o ideário conservador antagonista
ao Movimento LGBT no Congresso Nacional que alegavam ser a homofobia uma
falácia inventada pelos/as ativistas e agentes do governo.
A necessidade de compreender, de maneira racional e sistematizada, como esta
violência se manifesta, observando o perfil das vítimas e dos agressores, para fins de
elaboração e desenvolvimento de ações e políticas de enfrentamento ao problema.
Segundo o documento:
Apreender a realidade, suas contradições, avanços e violências, é essencial
no planejamento de objetivos, metas e estratégias que visem melhorá‐la.
Nesse sentido, as estatísticas são cruciais para dar visibilidade às violações
de direitos humanos cometidas contra populações vulnerabilizadas e,
assim, promover o controle e a participação social na construção de
políticas públicas que alterem essa realidade (BRASIL, 2013).
Face à conquista da visibilidade social e do fortalecimento paulatino do Movimento
LGBT, após a redemocratização brasileira, a violência vem se constituindo como problema
público e social, de responsabilidade do Estado. Parte considerável da mídia já noticia casos
de violência homofóbica como pauta jornalística estimulando possibilidades de sensibilidade
em massa da questão. Nessa direção, o governo federal afirma
O aumento significativo do número de violações noticiadas ao Poder Público
Federal é extremamente preocupante e exige uma postura firme e
comprometida, não só do Governo Federal, como também dos Governos
Estaduais e Municipais, dos demais Poderes da República, da sociedade
civil e de cada cidadão e cidadã individualmente (BRASIL, 2013).
De fato, o enfrentamento à violência homofóbica, por ser estrutural, requer esforços
coletivos, amplos e complexos. Essa compreensão, oriunda do Governo Federal, parece
não ser consensual entre os outros Poderes da República, nem entre todas as Instâncias
Federativas, sobretudo quando observamos o Poder Legislativo e sua recusa em aprovar
Projeto de Lei que vise beneficiar a população LGBT.
No âmbito do Legislativo e da segurança pública, o dispositivo mais reivindicado (e
conhecido) foi o Projeto de Lei da Câmara (PLC) 122/2006 que visava criminalizar a
homofobia. No entanto, após a ação de setores fundamentalistas contrários aos direitos de
LGBT, tal projeto foi apensado ao projeto de reforma do Código Penal brasileiro. A votação
do código penal pode durar décadas, considerando o interesse do Congresso Nacional e os
trâmites burocráticos ordinários daquela Casa.
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Encontrando um Legislativo indiferente as suas demandas e - pior - contrário às
reivindicações apresentadas pelos e pelas ativistas, o Movimento LGBT vê no Poder
Executivo uma possibilidade esperançosa de avançar na construção de políticas públicas
específicas que salvaguardem o seu direito à vida e a sua dignidade. É partindo dessa
contextualização que o presente artigo visa levantar as estratégias que o Movimento LGBT
tem adotado, com foco na relação com o Governo Federal e como essa instância tem
respondido (ou não) aos seus anseios, focando a segurança pública e o enfrentamento à
violência homofóbica.
Com nosso estudo, não pretendemos ignorar a importância que as políticas públicas
LGBT nas áreas da educação, da saúde, da assistência social, entre outras, exercem para o
arrefecimento da homofobia. Ao contrário, compreendemos que o desenvolvimento de
ações em todos os setores públicos é estratégico e necessário para a promoção da
cidadania e para a ruptura com normas excludentes de gênero e sexualidade.
No entanto, para fins de análise, buscamos delimitar o campo de investigação para a
área da segurança pública e suas questões e dinâmicas peculiares. Também nesse estudo,
a relação Estado-Sociedade Civil nos chama atenção, através da compreensão de que é na
negociação, no embate dialógico e na tensão, entre as diversas instâncias e partes, que
muitos dos processos são elaborados e desenvolvidos.
1. AS REIVINDICAÇÕES DO MOVIMENTO LGBT PARA A SEGURANÇA PÚBLICA
Para responder as inquietações levantadas nesse estudo, optamos por desenvolver
uma pesquisa documental interpretada à luz da abordagem qualitativa. Buscamos extrair
dados de documentos que expressam as demandas e ações na área da segurança pública,
considerando os contextos e lugares de onde foram produzidos, assim, utilizamos para
análise, um documento construído numa atividade coletiva sobre segurança pública LGBT
organizado pela sociedade civil, um documento construído pelo Governo Federal a partir da
I Conferência Nacional GLBT (2008) e um terceiro que apresenta o monitoramento das
ações previstas para a segurança pública da população LGBT.
Nesta seção vamos analisar o primeiro dos três documentos apontados. Fruto de
um seminário organizado pelo Movimento LGBT brasileiro com apoio do Governo Federal,
trata-se do I Seminário Nacional de Segurança Pública e Combate à Homofobia, orientado
sob o tema “unindo esforços, ampliando diálogos”.
Este evento ocorreu no Rio de Janeiro, no mês de abril do ano 2007 sob a
coordenação do grupo Arco-Íris de Conscientização Homossexual e Movimento D‟ELLAS
com apoio institucional da Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e
Transexuais (ABGLT) e financiamento da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da
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República e da Secretaria Nacional de Segurança Pública do Ministério da Justiça
(SENASP).
Também constam no apoio a Secretaria de Assistência Social e Direitos Humanos do
Governo Estadual do Rio de Janeiro (SEASDH), o Centro Latinoamericano de Direitos
Humanos e Sexualidade da UERJ (CLAM), o Centro de Estudos da Segurança e Cidadania
da Universidade Candido Mendes (Cesec), o grupo Criola – Articulação de Mulheres Negras
e o Programa Nacional de DST-Aids do Ministério da Saúde.
O evento contou com a presença de lideranças do Movimento LGBT, do Movimento
de Direitos Humanos, agentes de segurança pública como policiais civis e militares,
representantes de governo e de Universidades e seguiu uma metodologia baseada em
conferências, painéis, oficinas, grupos de trabalho e plenárias.
Como objetivo central, o documento aponta ter como meta:
Trocar informações e experiências para a articulação e o desenvolvimento
de estratégias comuns que consolidem e ampliem ações na área de
segurança pública visando o combate da discriminação e da violência
contra gays, lésbicas, travestis, transexuais e bissexuais nas esferas federal
e estadual, bem como à promoção da cidadania deste segmento da
população, de acordo com o Programa Brasil Sem Homofobia do Governo
Federal (SILVA, 2007, p. 4).
Trazemos essas informações por compreender que elas são necessárias para nos
situar no contexto do evento e possibilitam visualizar a dinâmica interna dessa construção.
Essas informações também são importantes para indicar o porquê de termos optado por
este documento para levantar as reivindicações do Movimento LGBT por políticas de
segurança pública no Brasil contemporâneo.
De modo resumido, as diretrizes construídas no evento foram divididas em 5 eixos e
trazem as seguintes defesas, quais sejam:
Eixo I – Formação Policial: Culturas das Instituições e Diversidade Sexual (19
propostas). Neste eixo, o documento apresenta uma breve discussão sobre o papel da
ignorância na relação LGBT X Polícias. Há um diagnóstico de que a polícia não compreende
as especificidades do segmento LGBT, assim como os homossexuais também não
conhecem a polícia em sua integralidade. Aponta a presença de LGBTs na formação de
policiais como uma troca intercambial interessante do ponto de vista formativo. De modo
geral, as propostas vão à direção de incluir no currículo de formação policial temáticas sobre
diversidade sexual, elaboração de materiais didático-pedagógicos, aproximação entre
instâncias da sociedade civil e Secretarias de Segurança Pública, abordagens e uso do
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nome social das pessoas trans, respeito à presença de LGBTs dentro das corporações e
reconhecimento e identificação dos crimes de ódio homofóbico.
Eixo II – Prevenção à Violência contra GLTB2: Experiências Policiais e
Comunitárias (8 propostas). Aqui a discussão centra-se para a prevenção da violência
homofóbica, ou seja, o cuidado antecipado para que crimes de ódio não aconteçam. O
documento, na discussão que antevê as propostas, sugere o estudo de mapeamentos de
crimes homofóbicos (locais, horários, práticas criminosas de agressores e territórios
recorrentes). Menciona ainda experiências consideradas exitosas como a presença de
policiais no carnaval e de agentes não uniformizados em espaços de sociabilidade LGBT.
As propostas giram em torno de campanhas preventivas e sensibilizadoras, reforçam a
necessidade de policiais em espaços e eventos LGBT, a divulgação de ações realizadas
entre agentes da segurança públicas e LGBTs, assim como apontam uma necessidade de
aprimorar diálogo com outros países para socializar experiências.
Eixo III – Atendimento, Investigação e Registro da Violência Homofóbica:
Diferentes Modelos (14 propostas). A apresentação no documento discute a acolhida da
rede de atendimento à LGBTs em situação de violência como ONGs, Centros de
Referências LGBT e práticas e dispositivos específicos. Além disso, indica a possibilidade
de reivindicação de delegacias especializadas, de novas práticas de investigação e de
registro para fins estatísticos. Em suas propostas encontramos a necessidade por estudos
de atendimento, registro e investigação da violência homofóbica, a incorporação de
experiências exitosas na delegacia da mulher, criação documentos de registro para a
violência homofóbica, o fomento de interlocuções com outros países que desenvolvem tais
políticas, ampliação do horário das delegacias da mulher, a inclusão de mulheres lésbicas e
transexuais nos Centros de Referência da Mulher, a formação de equipes multidisciplinares
para atendimento de LGBTs (psicólogos, assistentes sociais, advogados, etc.), declaração
opcional de usuário sobre sua orientação sexual/identidade de gênero, fortalecimento das
ouvidorias policiais e mecanismos de participação social.
Eixo IV – Violências Específicas e Políticas Diferenciadas de Prevenção e
Segurança (12 propostas). Este eixo reflete a partir das especificidades e diferenças
existentes dentro da população de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais. É
perceptível o esforço em compreender os fenômenos e as violências que recaem de
maneira diferenciada sobre cada identidade que compõe esta população. As propostas
apontam para ações que discutam violências no âmbito privado como na família e outros
espaços de sociabilidade (escolas, igrejas, no trabalho). Também indicam necessidades
como: o estímulo da participação da vítima no reconhecimento de agressores, maior
2
Sigla à época. Na I conferência GLBT em 2008, foi decidido que se passaria a utilizar a sigla LGBT,
de maneira a dar maior visibilidade ao segmento lésbico do movimento pela livre orientação sexual.
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punição no caso de violências homofóbicas, incluindo a prática conhecida por “Boa Noite
Cinderela”3, o acompanhamento e a punição justa contra policiais que agridem e abusam da
autoridade contra LGBTs, enfatizando as travestis e transexuais, envolvendo todo o sistema
de justiça (corregedorias, Ministério Público, Defensorias, etc.), possibilitar a visita íntima de
LGBTs a seus parceiros e parceiras em situação de privação de liberdade, fortalecer a
denúncia virtual e estimular a criação de conselhos de segurança pública.
Eixo V – Monitoramento, Avaliação e Controle Social das Políticas de
Segurança para GLTB (9 propostas). Por fim, neste último eixo, o tema da participação
social é tomada como necessária à efetividade das políticas de segurança pública,
compreendendo que a presença de LGBTs nos conselhos, Grupos de Trabalho, Câmaras
Técnicas, entre outros mecanismos de participação, é fundamental para o exercício
democrático da cidadania e o êxito na elaboração dessas políticas. As propostas apontadas
foram: a participação de LGBTs no direcionamento das políticas de segurança e no
orçamento público, o mapeamento da participação de LGBTs em conselhos de segurança
pública e de direitos humanos com vistas a estimular a criação destes conselhos onde não
existam, realização de estudos e pesquisas sobre o impacto das políticas de segurança na
vida da população LGBT, produção de relatórios governamentais para avaliação e
acompanhamento periódicos dos serviços, identificação de modelos já existentes de
participação social em outros países com foco no Mercosul e a construção de indicadores e
coleta de denúncias nas corregedorias, ouvidorias e Ministério Público.
Como se vê, o seminário construiu um documento rico em indicativos de políticas
públicas e ações que fortaleçam a segurança pública da população LGBT no seio de uma
sociedade opressora como é a brasileira. Embora não muito conhecida (se comparado ao
Plano Nacional LGBT ou o PNDH-3, por exemplo), essa confecção coletiva poderia ser
utilizadas pelos gestores e gestoras de direitos humanos e segurança pública por conter
interessantes contribuições à política de segurança pública, ultrapassando, inclusive, as
demandas exclusivas da população LGBT. Além das contribuições criativas, ela é fruto de
uma construção coletiva, o que lhe confere um caráter mais legítimo.
2. POLÍTICAS DE SEGURANÇA PARA LGBT: DA AGENDA DO MOVIMENTO PARA A AGENDA DO
ESTADO
No Brasil, na última década, avançamos consideravelmente no que diz respeito a
processos de participação social, a partir de mecanismos formais de participação, inclusive
especificamente da população LGBT. Podemos citar a realização das duas Conferências
3
Tipo de crime em que a vítima é induzida (explicitamente ou não) a ingerir substância sonífera para
possibilitar a extorsão e outras violências pelos criminosos.
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Nacionais LGBT (2008 e 2011) e a implementação do Conselho Nacional de Combate à
Discriminação de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (CNCD LGBT).
Estes espaços possibilitaram que grupos e entidades organizadas no Movimento
LGBT apontasse suas necessidades e as prioridades cidadãs presentes no segmento. No
entanto, carregamos um histórico de autoritarismo e centralização das decisões públicas, o
que incorre em dificuldades para incluir nas metas e orçamentos governamentais as
decisões colocadas nos fóruns participativos, a exemplo das conferências.
Nesta seção, utilizaremos como material indicador do nível de escuta, recepção e
incorporação governamental, o Plano Nacional de Cidadania e Direitos Humanos LGBT
(Plano Nacional LGBT), especificamente no que trata da segurança pública. Esta
observação nos ajudará a compreender em que medida a agenda de reivindicações do
Movimento LGBT tem se transformado em agenda pública governamental. Essa
compreensão diz muito do comprometimento governamental com a pauta de reivindicações
da população LGBT.
Publicado em 2009, um ano após a Conferência Nacional LGBT, o Plano reúne as
diretrizes construídas e apontadas pelo Movimento LGBT após um tratamento técnico
desenvolvido por uma comissão interministerial. Segundo o documento:
O Plano Nacional de Promoção da Cidadania e Direitos Humanos de
Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais, elaborado por
Comissão Técnica Interministerial, reflete o esforço do Governo e da
Sociedade Civil na busca de políticas públicas que consigam responder às
necessidades, potencialidades e direitos da população envolvida, a partir de
sua implementação, bem como do fortalecimento do Programa Brasil sem
Homofobia, implantado desde 2004, quando o titular da área Direitos
Humanos era o ministro Nilmário Miranda (BRASIL, 2009, p. 7).
O Plano é organizado a partir de dois eixos estratégicos e seus desdobramentos
intitulados de “estratégias”. Dentro das estratégias estão previstas as ações e políticas
incorporadas pelo Plano para ser executado com prazo previsto em cada ação/política.
Ilustrando:
Eixo Estratégico I - Promoção e socialização do conhecimento; formação de
atores; defesa e proteção dos direitos; sensibilização e mobilização.
Estratégia 1 - Promoção e socialização do conhecimento sobre o tema LGBT.
Estratégia 2 - Formação de atores no tema LGBT.
Estratégia 3 - Defesa e proteção dos direitos da população LGBT (integração de
políticas LGBT e políticas setorais).
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Estratégia 4 - Sensibilização e mobilização de atores estratégicos e da sociedade
para a promoção da cidadania e dos direitos humanos de LGBT.
Eixo Estratégico II - Promoção da cooperação federativa; Articulação e
fortalecimento de redes sociais; articulação com outros poderes; cooperação
internacional; gestão da implantação sistêmica da política para LGBT.
Estratégia 1 - Integração da política de promoção da cidadania e defesa dos direitos
humanos de LGBT com as demais políticas públicas nacionais.
Estratégia 2 - Promoção da cooperação federativa para a promoção da cidadania e
defesa dos direitos humanos de LGBT.
Estratégia 3 - Articulação e fortalecimento de redes sociais de promoção da
cidadania e defesa dos direitos humanos de LGBT.
Estratégia 4 - Articulação com outros poderes para a promoção da cidadania e
defesa dos direitos humanos de LGBT.
Estratégia 5 - Cooperação internacional para a promoção da cidadania e defesa dos
direitos humanos de LGBT.
Estratégia 6 - Gestão da implantação sistêmica da política LGBT.
O documento também indica qual Ministério/Secretaria ficará responsável por
determinada ação. Delimitando nossa análise e considerando que não há uma seção
específica para ações de segurança pública neste documento, optamos por levantar ações
de segurança pública capitaneadas pelo Ministério da Justiça (MJ) e pela Secretaria
Nacional de Segurança Pública (SENASP).
Nessa direção, nosso levantamento detectou a inclusão das seguintes agendas do
Movimento LGBT na pauta governamental através do Plano Nacional LGBT: inclusão de
temas sobre gênero e sexualidade no currículo dos cursos de formação de policiais civis,
militares e guardas municipais; capacitação e sensibilização de gestores, operadores do
direito e agentes sociais na área da segurança pública com recorte em diversidade sexual;
presença de policiais qualificados em espaços de sociabilidade LGBT; implementação de lei
que encaminhe infratores de cunho homofóbico para cursos de direitos humanos, fóruns
LGBT e prestação de serviço em organizações públicas e privadas de defesa dos direitos
LGBT; tornar obrigatória e visível a identificação de agentes da segurança pública e privada;
propor mudanças na legislação penal para atender políticas de segurança específicas para
LGBTs; incluir o nome social e a opção de identidade de gênero em delegacias;
encaminhamentos para presídios femininos travestis e transexuais mulheres; capacitação
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de serviços e órgãos especializados da mulher para o atendimento qualificado de lésbicas,
bissexuais e trans; promover formações para membros do Poder Judiciário;
Dentre outras agendas do movimento LGBT contempladas no plano temos:
Implantação de ouvidorias policiais em caso de discriminação policial; promoção de
campanhas junto a policiais; revogação de artigo do Código Penal Militar que criminaliza e
persegue homossexuais; promoção de campanhas publicitárias de sensibilização da
população em geral; inclusão em documentos policiais a possibilidade de autodeclaração de
orientação sexual/identidade de gênero; criação de cartilha para a população LGBT com o
tema segurança para que se criem mecanismos de defesa individual, de maneira preventiva;
aplicação de questionários para conhecer o perfil dos servidores públicos, visando trabalhar
o respeito à diversidade sexual e, por fim, a criação em lei de um fundo nacional de combate
à discriminação.
Como foi possível observar, o governo federal incluiu de maneira significativa as
demandas da população LGBT, no âmbito da segurança pública, em suas agendas e metas
governamentais. Algumas das metas previstas no Plano Nacional LGBT sequer fora
apontada no I Seminário Nacional de Segurança Pública e combate à homofobia.
Analisamos que, nessa perspectiva, o governo expressa uma mensagem simbólica
interessante do ponto de vista do comprometimento com o segmento LGBT.
Esse comprometimento, pelo menos no nível da retórica, independentemente de ser
executado ou não, sinaliza novas possibilidades e novos tempos considerando o ineditismo
de um documento do gênero no Brasil. Muitos sujeitos podem barganhar políticas
específicas tomando como base as diretrizes do Plano;, este também representa uma
responsabilidade e um guia a partir do qual todos os gestores e gestoras devem considerar
para garantir direitos da população LGBT em seus variados territórios de atuação. As
lacunas documentais convergem para a falta de indicação orçamentária. Essa ausência
pode ser interpretada como um documento “menor”, “sem valor” ou mera “carta de
intenções”.
3. IMPLEMENTAÇÃO DE POLÍTICAS DE SEGURANÇA PÚBLICA PARA LGBTS
Passados três anos desde a I Conferência Nacional GLBT, que contou com a
presença do ex-presidente Lula, a Presidenta Dilma Rousseff publica Decreto de
convocação para a II Conferência Nacional LGBT, mobilizando estados e municípios a
realizarem suas etapas antecipatórias à Conferência Magna. Diferente da primeira edição,
que tinha uma perspectiva mais propositiva, esta tinha como foco principal monitorar e
avaliar o I Plano Nacional LGBT.
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Na II Conferência Nacional LGBT, ocorrida entre os dias 15 a 18 de Dezembro de
2011 na cidade de Brasília, a comissão organizadora distribuiu o texto-base aos/às
delegadas/os participantes contendo informações de como estavam a execução das
políticas previstas no I Plano Nacional LGBT. Na seção “Resumo” desse documento, é
expresso o caráter avaliativo dele. Nele, os estados e municípios são convocados a assumir
compromissos políticos com a população LGBT, na direção da descentralização:
Desta vez, o desafio se situa na análise da realidade nacional, vivenciada
entre avanços e retrocessos,que por sua vez forma o cotidiano e influencia
as formulações das políticas publicas. A análise do Plano Nacional de
Promoção da Cidadania e Direitos Humanos de LGBT, através da avaliação
das ações de cada ministério e órgãos do Governo Federal, apontarão para
os desafios e os vácuos na implementação do referido plano, bem como o
papel de Estados e Municípios como um importante ponto a ser discutido
durante 2ª Conferência Nacional (BRASIL, 2011, p. 13)
Segundo o texto base, das 23 ações previstas no I Plano Nacional LGBT, 13 foram
realizadas, 3 parcialmente realizadas e 7 não foram realizadas. Nesta seção,
especificamente, gostaríamos de trabalhar de maneira ainda mais minuciosa, uma vez que
esse documento nos diz muito da implementação de políticas de segurança para LGBT no
Brasil (inclusive não detalhando algumas ações), cabendo uma rica análise.
Abaixo a relação literal das ações (apenas referentes à segurança pública), o seu
status e nossas ponderações:
Propor a inclusão de temas e disciplinas relativas à orientação sexual, diversidade
sexual e cultural e identidade de gênero nos currículos dos cursos de formação de
militares e de policiais civis e militares, extensivo às Guardas Municipais (Realizada).
Capacitar e sensibilizar gestores, operadores de direito e agentes sociais na área de
segurança pública com ênfase nas relações de raça, religião de matriz africana,
etnia, gêneros, orientação sexual, identidade de gênero e direitos humanos
(Realizada).
Inserir no currículo das academias de segurança pública capacitação, formação
inicial e contínua em direitos humanos e princípios internacionais de igualdade e não
discriminação derivada de homofobia, inclusive em relação à orientação sexual e
identidade de gênero (Realizada).
Aqui gostaríamos de ensaiar algumas reflexões na perspectiva de problematizar as
três ações acima tidas como realizadas. Na argumentação do documento, as matrizes
curriculares das polícias civil e militar e da guarda municipal são apresentadas como
contemplando as discussões de diversidade sexual. Temos uma questão. Será que essa
política curricular se materializa nos cursos de formação? De que maneira? Por que temos
ainda tantos exemplos de homofobia institucional oriundos de policiais? Essas questões nos
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fazem refletir até que ponto o monitoramento impresso no documento satisfazem os anseios
do Movimento LGBT. Sendo assim, como monitorar de maneira mais apurada e exercer o
controle social eficazmente? Ainda não temos respostas concretas, mas entendemos que
precisamos avançar e aprimorar tais questões.
Ainda nestas ações, o texto base informa que dois cursos à distância e uma PósGraduação (lato sensu) são ofertadas com conteúdos de diversidade sexual e direitos
humanos, no entanto, ficamos a nos perguntar: em que medida os agentes de segurança
pública realizam tais cursos? Sentimos falta de indicadores no texto. Tais dados
contribuiriam para apreender o universo real de profissionais existentes, de profissionais que
cursaram e de profissionais que não cursaram. Aprofundando: qual o impacto que tais
cursos desempenharam na prática profissional destes/as agentes? São feitas avaliações
antes e depois do curso para confrontar os novos (ou não) posicionamentos e
subjetividades?
Fomentar ações e estratégias para o acompanhamento parlamentar visando à
efetivação das leis vigentes, cujos dispositivos contenham previsão legal para
indiciar/multar estabelecimentos comerciais que discriminam no atendimento
promoção e/ou preços/valores de acordo com a orientação sexual e identidade de
gênero (Realizada).
Garantir a segurança em áreas freqüentadas pela população LGBT com grupos de
policiais especializados, sobretudo nas quais há grande incidência de discriminação
e violência, em decorrência de orientação sexual e identidade de gênero, raça e
etnia, entre outras, garantindo o policiamento proporcional ao número de pessoas
nos eventos (Realizada).
Na ação acima, o texto base informa que não compete à Secretaria Nacional de
Segurança Pública – SENASP, mas aos governos estaduais, no entanto diz que a SENASP
contribui através de seus processos formativos. Esse status da ação, apresentado como
realizado, não seria inadequado neste caso? Não transmitiria a ideia de que tal reivindicação
foi plenamente cumprida?
Fomentar ações e estratégias de ação para adotar cursos de direitos humanos e
fóruns de discussão LGBT além de prestar serviços às instituições públicas e
privadas de defesa dos direitos LGBT (Realizada).
Adotar indicadores que promovam a adoção da identificação, em local visível, dos
profissionais de segurança pública e privada com nome, patente ou cargo bordada à
roupa (Realizada).
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Nesta ação, o texto base diz não ter condições de garantir a demanda em função do
Pacto Federativo que prevê tal regulamentação aos governos estaduais, mesmo assim
apresenta a ação com o status “realizada”.
Mudar a metodologia de atendimento pedagógico em carceragens, visando
proporcionar melhor adaptação da população LGBT (Parcialmente Realizada).
Fomentar, por meio de Grupo Interministerial, ações e estratégias que visem
mudanças no código civil, na legislação processual penal e de execução penal que
atendam às políticas públicas direcionadas à população LGBT (Realizada).
O texto base indica que a Secretaria de Assuntos Legislativos desenvolve tal ação,
mas não apresenta quais iniciativas foram tomadas e nem apresenta mais de um Ministério
para ser considerado interministerial.
Fomentar, por meio de Grupo Interministerial, ações e estratégias que visem à
inclusão da identidade de gênero e nome social nos registros de ocorrência policial
em delegacias (Não Realizada).
Fomentar, por meio de Grupo Interministerial, ações e estratégias que visem
assegurar o encaminhamento para o presídio feminino mulheres transexuais,
readequadas ou não, e travestis que estejam em regime de reclusão (Realizada).
Embora considerada ação realizada, a justificativa do texto base não apresenta o
grupo interministerial nem aborda a reivindicação levantada, mas trata sim, das visitas
íntimas e da saúde de pessoas em situação de privação de liberdade. A explicação parece
estar deslocada da ação. Mulheres Travestis e Transexuais ainda são encaminhadas a
penitenciárias masculinas e lá passam por constrangimentos e possuem direitos violados.
Capacitar os serviços de disque-mulher, a Central de Atendimento à Mulher (Disque
180) e as delegacias especializadas de atendimento à mulher, Centros de
Referência e demais serviços de atendimento às mulheres, garantindo a acolhida
não discriminatória para mulheres lésbicas, bissexuais, travestis e transexuais na
aplicação da Lei Maria da Penha (Realizada).
Promover seminários e fóruns de discussão sobre reconhecimento dos direitos da
população LGBT com a participação de membros das Escolas de Magistratura e do
Poder Judiciário, objetivando subsidiar as novas gerações de magistrados e
membros do Ministério Público com elementos conceituais e empíricos sobre a
realidade da população LGBT (Não Realizada).
A resposta do texto base para a ação acima é “A Secretaria de Reforma do Judiciário
considerou inviável a execução da ação 1.3.6. e declinou da gestão de sua implementação
em decorrência da incompatibilidade com o papel institucional da Secretaria”. Ficamos a
refletir, outra Secretaria/Ministério não poderia executar a ação, como a própria Secretaria
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de Direitos Humanos, já que há incompatibilidade institucional entre a ação e a Secretaria
de Reforma do Judiciário?
Implantar na estrutura das instituições de defesa social ouvidorias que atuem como
centros de referência contra a discriminação objetivando o acolhimento, orientação,
apoio e encaminhamento de denúncias de crimes contra a população LGBT (Não
Realizada).
Prevenir a violência por meio de campanhas informativas anuais, próximas ao
período da Parada de Orgulho LGBT, com cartilhas e cartazes para orientar policiais
quanto aos direitos da população LGBT (Não Realizada).
Na ação acima, o documento não justifica o motivo da não-realização.
Fomentar, por meio de Grupo Interministerial, ações e estratégias para a promoção
em diversas mídias públicas e privadas, campanhas publicitárias de combate à
discriminação e de valorização da população LGBT, bem como de suas uniões
afetivas, garantido acessibilidade em libras, braile, letras ampliadas, bem como em
formato digitalizado e audiovisual (Não Realizada).
Assim como a ação anterior, na ação acima, o documento não justifica o motivo da
não-realização.
Adotar indicadores que promovam a adoção, nos documentos de registros policiais
espaços para declaração facultativa de orientação sexual e identidade de gênero
(Não Realizada).
Confeccionar cartilhas para a população LGBT com o tema segurança, de maneira a
criar mecanismos de prevenção e defesa (Não Realizada).
A ação reivindica cartilhas educativas direcionadas à população LGBT, mas aqui a
resposta trata de cartilhas que estão sendo desenvolvidas para policiais. Ainda assim, não
há previsão de lançamento. Outro deslocamento entre ação e justificativa.
Capacitar, monitorar, avaliar e divulgar regularmente a atuação das Delegacias
Especiais de Atendimento as Mulheres no que diz respeito ao atendimento das
lésbicas, bissexuais, negras, travestis e transexuais (Parcialmente Realizada).
Após as ponderações e problematizações acima desenvolvidas, concluímos as
análises documentais a partir da reflexão de Luiz Mello, Bruno de Avelar e Walderes Brito
em pesquisa sobre políticas públicas de segurança para a população LGBT que
desenvolveram na Universidade Federal de Goiás:
O número e a complexidade das propostas surgidas destes eventos
parecem repercutir diretamente no volume e na qualidade das diretrizes e
ações propostas em documentos do Governo Federal, como o Programa
Nacional de Direitos Humanos 3 (PNDH-3), o Programa Brasil Sem
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Homofobia e o Plano Nacional de Promoção da Cidadania e Direitos
Humanos de LGBT. A efetivação destas propostas, entretanto, ainda é
bastante inconsistente em termos de alcance e de escala, como se pode
perceber no Relatório de Monitoramento do Plano Nacional LGBT, em que
cartilhas e cursos de poucas horas e para poucas pessoas são tomados
como evidência da efetivação de uma ação que pretende lidar com
problemas estruturais como a BGLTfobia de Estado (AVELAR, BRITO,
MELLO, 2000, p. 352).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O estudo possibilitou algumas conclusões, que, embora longe de serem tomadas
como absolutas e fidedignamente precisas (porque parte de dados limitados obtidos apenas
com a pesquisa documental), nos aponta que ainda temos muito a avançar no que diz
respeito às políticas de Segurança Pública para a população de lésbicas, gays, bissexuais,
travestis e transexuais.
Muitas dessas lacunas podem ser respondidas a partir de análises que partem do
macro para o micro (e vice-versa). Está claro, por exemplo, para o Movimento LGBT (e para
os
gestores)
a
função
de
cada
ente
federado?
Nos
parece
que
há
uma
hiperdimensionalidade/hipervalorização da esfera de atuação do Poder Executivo, na
perspectiva de que essa instância seria capaz de responder por outras instituições e
instâncias.
Isso fica aparente nas propostas de intervenção estatal reivindicadas ao Governo
Federal quando deveriam ser destinadas a outras instâncias ou Poderes, em função da
competência de cada ente. A título de ilustração: na análise detectamos propostas de ação
de responsabilidade dos governos estaduais (presença de policiais em ambientes públicos
LGBT e identificação visível de agentes da segurança pública) e outra de competência do
Poder Legislativo (modificações em legislações como o código civil e processual penal).
Além disso, é preciso olhar a partir das corporações militares e suas normas (formais
e não-formais), sua dinâmica e sua cultura para poder intervir de maneira ainda mais
estratégica. Temos capacidade de transformar as estruturas militares solidamente
enraizadas em hierarquias e autoritarismos? Em que medida tais corporações estão
dispostas a flexibilizar e aprender a especificidade de sujeitos com identidades
historicamente subalternizadas?
Ainda assim, acreditamos que a participação social, forjada no princípio da
democracia participativa, possibilita articulações que ora transformam a sociedade, ora
educam os sujeitos envolvidos no processo. Trata-se, portanto, de ações que fazem parte
de um movimento mais amplo de dimensão político-pedagógica.
Esse estudo também nos mostra a competente capacidade de o Movimento LGBT
apontar as próprias soluções e alternativas para realidades opressoras construídas
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historicamente. Tal luta política pela garantia do direito humano à vida coloca os sujeitos
LGBTs no centro da arena e na condição de protagonistas de sua própria história.
Esperamos que outras análises, estudos e pesquisas consigam nos dar mais respostas para
o problema que é complexo, instigante e necessário.
REFERÊNCIAS
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Bissexuais, Travestis e Transexuais. Brasília: SEDH, 2011.
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SIMÕES, Julio Assis. Marcadores de diferença na “comunidade LGBT”: raça, gênero e
sexualidade entre jovens no centro de são paulo. In: COLLING, Leandro (Org.). Stonewall
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ISSN: 2317-0255
Juventude, Violência e Drogas: desafios as políticas de segurança com
cidadania
Antonio dos Santos Pinheiro (URCA/CE)
Introdução
Entre as diferentes definições sobre juventude há um consenso de que ser
jovem compreende uma fase de transição para vida adulta. O tempo das experiências
juvenis é compreendido, portanto, pelas mudanças em relação à sexualidade e ao
estilo de vida. Apontamos como uma nova problemática de estudo e reflexões a
questão dos conflitos e a violência juvenil.
A pesquisa realizada, entre agosto de 2010 a março de 2012, estabeleceu
como ponto de partida a questão da violência entre jovens no Estado do Ceará.
Problematizamos também ao longo da pesquisa o papel das políticas de segurança na
prevenção as práticas criminosas. Partimos do pressuposto de que os projetos e
programas governamentais adotados pelo estado e direcionados a juventude
enfrentam obstáculos, pois, a realidade do comércio de drogas tem contribuído para a
inserção precoce de jovens no tráfico e, consequentemente, atores ou vítimas da
violência.
Na metodologia da pesquisa adotamos alguns passos: 1) Levantamento de
inquéritos policiais já encerrados e emitidos à Justiça no período de 2008 a 2010 na
cidade de Juazeiro do Norte. 2) Grupos focais com agentes, profissionais ligados a
centros de reabilitação de jovens envolvidos com o consumo do crack 3)
Levantamento de matérias nos jornais que circulam no Estado do Ceará, tais como,
Diário do Nordeste, Jornal do Cariri e Jornal o Povo.
Questionamos, nesta pesquisa, sobre a necessidade de repensar as políticas
públicas direcionadas à juventude pelo governo cearense, bem como o lugar destas
políticas na prevenção a violência em decorrência da incidência de furtos, roubos,
lesões corporais.
Partimos do pressuposto de que quando se trata da associação entre
violência e drogas, é questionável se as políticas para juventude têm contribuído para
minimizar os efeitos da violência. Em um primeiro momento, o trabalho se propôs a
desconstruir a relação entre juventude, violência e drogas. Em outro momento, dados
mostraram uma que os jovens pesquisados estão diretamente envolvidos em práticas
criminosas em que, geralmente, as drogas aparecem como um problema.
Quando tratamos das instituições terapêuticas, na prática, a construção de
saberes juvenis revelaram estratégias discursivas do poder disciplinar, implícitos nas
instituições sociais, que a exemplo dos Caps, os profissionais de saúde compartilham,
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ISSN: 2317-0255
com base no diagnóstico, que o drogado é um paciente que necessita de assistência
médica e psicológica.
O envolvimento de jovens com drogas, além de ser um problema de saúde,
tem gerado casos de homicídios. No Ceará, as execuções extrajudiciais e outras
práticas criminosas que envolvem jovens com o uso de drogas, expõem não somente
a fragilidade do sistema judiciário e de segurança na efetivação de políticas públicas
de cunho preventivo, mas uma “cultura da punição” que tem como preço o
encarceramento dos pobres ou a eliminação física dos devedores.
Em relação às políticas de segurança adotadas pelo governo do estado do
Ceará, ressaltamos aqui o Programa de Resistência as Drogas – PROERD, cuja
missão, é levar orientação às escolas e as comunidades sobre os perigos e riscos das
drogas.
O presente trabalho está sendo realizado com o apoio da FUNCAP e do
Governo do Estado do Ceará.
Juventude e violência como objeto de investigação social
A juventude como categoria social contempla uma diversidade de valores e
definições. Ser jovem, por exemplo, é fazer parte de uma determinada faixa etária,
geralmente, utilizada pelos institutos de pesquisas populacionais como suporte para
fomentar políticas públicas nas áreas de saúde, educação, trabalho, lazer e segurança
pública.
Em contextos de incertezas relacionadas ao futuro, a juventude pode ser
representada também como principal protagonista de um período marcado pelas
disputas por oportunidades no mercado de trabalho, pelas lutas pela emancipação
política, reconhecimento profissional, e, em particular como um período da vida em
que o sentimento de vulnerabilidade a violência é mais expressivo (Novaes, 2008).
Por último, as representações sobre juventude, em uma esfera pública
democrática, configuram um espaço de disputas de poder em torno de interesses pelo
reconhecimento dos jovens como sujeitos “portadores de direitos” (Sposito, 2008).
Neste contexto, as recentes políticas para juventude têm sido respaldadas em
programas e projetos de inclusão social e prevenção a violência para jovens em
condição de vulnerabilidade social.
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No campo da sociologia da juventude, algumas vertentes explicativas
tornaram-se referenciais ao considerarem que no período de transição da fase juvenil
para fase adulta, as incertezas e os conflitos contribuíram para questionamentos sobre
a juventude como um problema social (Pais, 1990).
Em nossa pesquisa sobre juventude, violência e drogas, os “problemas
juvenis” podem ser perceptíveis nos conflitos violentos e execuções sumárias
decorrentes da inserção precoce de jovens como consumidores no mercado de
drogas.
Do ponto de vista sociológico, as políticas públicas para juventude,
particularmente, na área da segurança apontam desafios no que diz respeito a
prevenção a violência. Como hipótese, sugerimos a existência de um juvenescimento
da violência centrada no crescimento dos conflitos juvenis, o uso da violência
associado ao tráfico de drogas e as execuções sumárias.
No Brasil, as recentes pesquisas sobre vitimização chamam atenção para
dois fenômenos correlatos: o juvenescimento e a interiorização da violência. De
acordo com os dados apontados pelo Mapa da violência de 2011, ocorreu, nos últimos
anos, uma diminuição dos casos de homicídios nas grandes cidades, entre jovens de
15 a 24 anos do sexo masculino1, e, um aumento destas mortes violentas nas cidades
do interior relacionadas à mesma faixa etária.
Entre as causas apontadas pelo Mapa da Violência de 2011 para o
crescimento dos números de assassinatos no interior, a ausência de investimentos em
políticas públicas surge como um dado explicativo para o juvenescimento da violência.
O mapa alerta que nas capitais onde se percebeu a diminuição nos casos de
homicídios, a queda resultou na combinação em investimentos em políticas de
prevenção e repressão. Nestas cidades, medidas como programa contra o uso de
drogas, projetos de inclusão educacional e profissional, ocupação de territórios, entre
outros, representaram um passo importante na redução das mortes letais.
Nas cidades brasileiras onde foi perceptível a redução nos números de
homicídios a jovens, duas medidas foram fundamentais,
1
Para a OMS, o conceito juventude resume uma categoria essencialmente sociológica, que indica o processo de
preparação para o indivíduo assumir o papel de adulto na sociedade, tanto no plano familiar quanto no profissional,
estendendo-se dos 15 aos 24 anos. É nesta faixa que ocorrem o maior número de homicídios (63 por 100 mil).
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Em primeiro lugar, a emergência de polos de crescimento em
municípios do interior de diversos estados do país torna-se
atrativa para investimentos e para as migrações pela expansão
do emprego e da renda. Todavia, convertem-se, também, em
pólos atrativos, pelos mesmos motivos, para a criminalidade,
em ausência de esquemas de proteção dos aparelhos do
Estado. Em segundo lugar, investimentos nas capitais e nas
grandes Regiões Metropolitanas declaradas prioritárias a partir
do novo Plano Nacional de Segurança Pública de 1999, e do
Fundo Nacional de Segurança, instituído em janeiro de 2001,
fizeram com que fossem canalizados recursos federais e
estaduais, principalmente para aparelhamento dos sistemas de
segurança pública. (Mapa da Violência, 2011)
O consumo do crack e as práticas de “execuções sumárias”, através da qual,
o endividamento pela droga é, geralmente, pago com a própria vida nos faz pensar
que existem novos desafios no campo da segurança que expõem as dificuldades do
poder público e do sistema de justiça em assegurar o processo de pacificação social
que se exerce pelo monopólio da violência.
A construção social do drogado como “violento e perigoso”
O processo de construção social da juventude como “violenta” sugere a
existência de um saber prático, assentado na concepção de repressão a criminalidade.
Na realidade, a associação entre consumo de drogas e uso da violência não está
isenta de valores que buscam encobrir as dificuldades na implantação de políticas
preventivas aos jovens excluídos e vítimas do trafico.
A associação entre consumo de drogas e violência não está, portanto,
desvinculada de um conjunto de saberes e práticas sociais sobre juventude. Entre
outras variáveis explicativas, apontamos duas: 1) a droga como estilo de vida 2) a
droga como risco de vida. Em relação à primeira, o consumo de drogas aparece como
diretamente relacionado a um contexto histórico e político, tendo, a juventude como
ator principal. Em relação à segunda, com o aparecimento do tráfico e as práticas
criminosas, a droga passar a ser percebida como um problema de segurança pública.
Velho (2008) argumenta que, nas décadas de 70 e 80, o uso da maconha
entre jovens era representada como símbolo de rebeldia e crítica ao regime autoritário.
Foi ao longo destas décadas que a geração juvenil estabeleceu como bandeira de luta
a contestação ao regime político. Neste período, o consumo da droga simbolizava um
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mecanismo de resistência a um regime opressor, onde jovens de diferentes classes
sociais consumiam a maconha sem levar em conta a relação entre dependência e uso
da violência. Não existia uma relação direta entre prazer e risco, pois, o que estava em
jogo era a rebeldia a um sistema político pautado pela repressão violenta as
manifestações políticas contestatórias.
Posteriormente, com o surgimento de redes criminosas, o uso das drogas
passou a ser vista como perigosa a segurança da população. Por esta razão, Velho
(2008) sugere que é errôneo considerar o fato de que a droga em si produz a violência
e a criminalidade. Para este estudioso, a existência de um sistema criminoso
transformou a droga em mercadoria de consumo associado a outros produtos como o
tráfico de armas. Assim, se antes o uso da maconha, era visto como prática
subversiva, com a criminalização passou a incorporar novos rótulos sociais
estigmatizantes em razão da associação do consumo com uso da violência.
Na configuração das drogas como potencializadoras da violência, as práticas
dos saberes médicos e jurídicos surgem com estratégias do poder na construção
social dos drogados como objeto privilegiado da punição. Na condenação as drogas
por seus efeitos patologizantes, o saber médico contribuiu para repressão ao consumo
pelo fato de entendê-lo como nocivo ao organismo. Lembrando Foucault (1979), os
dispositivos punitivos recorreram aos diagnósticos médicos como peças adicionais no
desenrolar dos processos jurídicos.
A construção da categoria “juventude em perigo” ou “juventude perigosa” não
escapou, assim, de práticas discursivas de saberes médicos e jurídicos presentes na
constituição de uma verdade sobre os corpos dos consumidores e daqueles que
mercantilizam as drogas. Estes saberes configuram um campo de interesses, através
dos quais, os dispositivos de poder-saber incidem sobre os corpos dos dependentes e
dos males que os afetam na perspectiva de uma lógica do “normal” e “patológico”.
As
práticas
discursivas
de
saber-poder
utilizadas
no
processo
de
disciplinamento de “jovens drogados” funcionam como mecanismos produtores de
duas normas disciplinares: a medicalização dos dependentes e a penalização dos
drogados. Na primeira, o que está em jogo é a constituição de um saber médico que
objetiva recuperar os dependentes dos riscos causados a saúde em razão do
consumo de drogas, e, em relação à segunda, prolifera-se um saber jurídico que tem
como finalidade, vigiar e punir práticas criminosas.
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Nas instituições que tem como pacientes jovens drogados, a exemplo do
CAPS-AD (centro de apoio psicossocial - álcool e drogas), o processo de
individualização não foge a regra dos mecanismos disciplinares de boa conduta. Com
base no quadro clínico do paciente e nas estatísticas criminais, a estigmatização dos
sujeitos como “dependentes” ou como “drogados” configuram mecanismos de
assujeitamento à medida que os profissionais buscam ao longo do tratamento fazer
com que os usuários interiorizem a culpa pelos males causados ao organismo, bem
como os “riscos” e “perigos” que a droga pode proporcionar em termos de uso da
violência (prática de furtos e roubos) para suprir o vício.
Em Juazeiro no Norte o CAPS-AD teve inicio de suas atividades, a partir de
dezembro de 2004, na gestão do Prefeito Raimundo Antônio de Macedo, em parceria
com o governo Federal. Entre os motivos da construção da política de saúde do
CAPS-AD, estava o de oferecer á população do município um atendimento
especializado aos pacientes que apresentavam transtornos
decorrentes do uso e
dependência de substâncias psicoativas.
Nos últimos anos, o Governo Federal propôs mudanças e investimentos na
política de saúde direcionada ao tratamento das drogas ao estabelecer como
prioridade uma “guerra” ao consumo de drogas. Uma das medidas adotadas, em
2009, para o tratamento para pessoas dependentes de crack, álcool e outras drogas
foi o lançamento do Plano Emergencial para Ampliação do Acesso ao Tratamento e
Prevenção em Álcool e outras Drogas (PEAD).
Posteriormente, em 2010, com o lançamento do Plano de enfrentamento ao
Crack, o governo federal publicou a Portaria nº 2.841, de 20 de setembro de 2010,
que instituiu no âmbito do Sistema Único de Saúde - SUS, o Centro de Atenção
Psicossocial de Álcool e Drogas – 24 horas - CAPS AD III. Com base na orientação
do Governo Federal, a Secretaria Municipal de Saúde de Juazeiro do Norte tem
pleiteado a transformação do CAPS–AD em CAPS–AD III, com o objetivo de adaptar
o tratamento as condições atuais dos usuários, visando, assim, programar a rede de
saúde mental municipal. Como destacou a terapeuta do Caps em Juazeiro do Norte,
Agora melhorou muito, se tem o plano emergencial que
trabalha não só com a secretaria de saúde e nem com o
ministério da saúde, porque se juntou (justiça, ação social,
educação, saúde, ministério do planejamento) (...). Tem
municípios que não tem CAPS-AD e o CAPS-1, CAPS-2,
CAPS-3 têm que dar conta, tem que direcionar. Em todos os
municípios hoje em dia tem atenção básica, que através do
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plano emergencial é uma porta de entrada que é também
responsável pra acabar a violência e álcool e drogas (...). Pelo
o plano emergencial o CAPS-AD poderia virar CAPS-3 e
atender 24h. Então, a equipe toda se reuniu e fez o projeto e a
gente graças a Deus estamos alcançando nossa meta...
(Grupo Focal realizado em 13 de Dezembro de 2010)
Nos dados coletados nas fichas de avaliação do CAPS-AD, constatamos que,
no ano de 2010, os pacientes que estavam em tratamento intensivo tinham idade de
18 a 29 anos, sendo que, a maioria destes jovens se encontrava em situação
financeira difícil por conta da falta de vínculos empregatícios.
Outro dado é que a maioria dos pacientes reside em periferia da cidade de
Juazeiro do Norte. No quesito drogas, o crack, além é claro, da maconha e álcool
predomina entre os pacientes que se encontra em tratamento intensivo. Na fala do
psicólogo da instituição é possível perceber que a inserção dos jovens no consumo do
crack é preocupante,
Olha eu fiz quatro triagens, dois dos usuários eram de crack e
os outros de álcool. Só pra ter uma idéia, um desses jovens
que entrou aqui com 22 anos começou a usar maconha com 09
anos e, já faz quatro anos que está no uso abusivo do crack.
Então, tem uma relação com a violência (Grupo Focal realizado
em 13 de Dezembro de 2010)
.
Os jovens assistidos pelo Caps declararam nos relatos que começaram a
usar drogas por influência dos amigos, e, alguns deles disseram que praticaram certos
delitos. Acrescentaram ainda, que começaram com a maconha e depois utilizaram o
crack. Quando foram estimulados a falarem sobre qual seu maior medo em relação ao
mundo das drogas e quais drogas eles considerariam a mais perigosa apareceram
várias respostas. O crack é representado como uma das piores drogas por “fazer a
cabeça”, levando-os a um estado de delírio e perda de controle ou de “respeito às
normas sociais”, ou até mesmo a roubar nos locais de trabalho na rua ou em casa
para manter o vício.
De acordo com a equipe multidisciplinar que atua no CAPS-AD (enfermeira,
psicólogo, terapeuta ocupacional, terapeuta holístico e preparador físico), a
associação entre violência e uso de drogas representa uma realidade entre os jovens
que buscam apoio na instituição. Como afirma o psicólogo,
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Se você for ver o consumo de drogas em relação à violência há
uma relação diretamente proporcional, se você ver nas
triagens, existem pequenos furtos de celulares, bolsas etc.
Recebi hoje dois que fizeram roubos e pequenos furtos pra
adquirir a droga, se você for ver em todos os jornais, noticiários
é comum morte, acerto de contas, até porque no tráfico não
tem SPC é a vista mesmo. Você tem furtos de celulares,
assalto só pra manter o consumo, o usuário só pega pra
manter o consumo. Então há uma relação direta entre drogas e
violência. (Grupo focal realizado em 13/12/2010).
Na opinião da terapeuta ocupacional, muitos destes jovens assistidos pela
instituição estão inseridos em um contexto social marcado pela violência. Em suas
considerações, a terapeuta argumenta que a violência física resultante do
envolvimento com as drogas é apenas uma das formas de manifestação da violência,
existem, porém outras como, por exemplo, a tortura psicológica. Acrescente que, por
esta razão, os jovens usuários de drogas seriam duplamente vitimas: da violência
física e da violência psicológica.
Quando indagados sobre o papel das políticas públicas na prevenção a
violência e as drogas entre jovens, os especialistas da instituição argumentam que
apesar dos “avanços” com o plano emergencial aprovado pelo governo federal, o
serviço público não se encontra ainda em condições estruturais para atender as
demandas por atendimento as drogas.
Os problemas relacionados à dificuldade em implantar uma política
sistemática de capacitação dos profissionais e o número reduzido de leitos
psiquiátricos nos hospitais são vistos pelos profissionais do Caps como uma
deficiência, particularmente, quando a questão é o suprir as carências dos pacientes
dependentes de álcool e outras drogas. Como comentou a enfermeira, “se você ver
toda a saúde mental, desde a época de 70, houve avanços não é, principalmente, em
relação às políticas públicas, mas, esses avanços estão onde?” (Grupo focal realizado
em 13/12/2010).
Por fim, como argumentam os especialistas que atuam no CAPS-AD,
mudanças, seja na forma de tratamento a saúde dos dependentes, ou, na prevenção
dos jovens em condição de vulnerabilidade juvenil pressupõem, antes de tudo, a
existência de uma rede integrada constituída por diferentes protagonistas, tais como,
secretaria de ação social, ministério publico, secretaria de educação e instituição
familiar, entre outros.
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O comércio do crack e a violência juvenil no Estado do Ceará
Nos últimos anos, o consumo do crack surgiu como um problema de saúde e
de segurança. Assim como em outros estados brasileiros, no Ceará o consumo de
drogas como associado à violência expôs um problema: as oportunidades de vida com
o tráfico. Para os jovens pobres, a sedução pelo poder no tráfico tem se tornado
convidativo tanto para os excluídos e moradores das periferias.
A “democratização” ao consumo de drogas aponta que os riscos e perigos da
dependência ao crack entre jovens em geral surgem como desafios às políticas de
segurança preventivas e repressivas. Em matérias veiculadas em jornais do Ceará, os
“riscos” e “perigos” do consumo estão relacionados às duas práticas que se encontram
conectados: a dependência a substância e o extermínio resultante de dividas contraída
pelos consumidores com os traficantes.
Subiu para 145 o número de adolescentes mortos, neste ano,
na Grande Fortaleza. A mais recente vítima identificada como
Alexandro Aguiar, 16. O garoto foi assassinado, na última
quarta-feira, na Rua Souza Carvalho, Bonsucesso [...]. Uma
das hipóteses levantadas pelos inspetores é de que Alexandro
tenha sido morto por traficantes. (Jornal Diário do Nordeste,
05/11/2010).
Uma cobrança de dívida de drogas pode ter sido o motivo de
mais um duplo assassinato em Fortaleza. O caso ocorreu na
tarde de sábado último, quando dois jovens foram fuzilados em
plena rua repleta de testemunhas. Bandidos em uma
motocicleta mataram dois rapazes, identificados como João
Paulo da Silva e Jackson Mendes Feitosa, na Rua do Prado.
Ambos foram atingidos com vários disparos a curta distância.
(DiáriodoNordeste,16/05/2011).
As práticas de extermínio têm sido motivadas pelo endividamento dos
consumidores com os traficantes2. Em decorrência de seu poder de dependência, a
pedra do crack tem transformado o usuário em um agente em potencial da violência.
Se antes, com o uso da maconha os usuários se sentiam satisfeitos com os resultados
2
Em matéria publicada pelo Diário do Nordeste, destaca-se que na região metropolitana de Fortaleza, 212
jovens entre doze e dezoito anos incompletos foram assassinados no ano de 2010. Em 2009 foram
registrados 165 casos de mortes violentas. Na maioria dos casos notificados, os jovens foram eliminados
por ordem dos traficantes em decorrência de dívida com drogas.
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duradouros da nóia, com o crack a situação é bem diferente, pois, o usuário logo que
consome a pedra sente a necessidade em prolongar o seu efeito passageiro sendo,
portanto, necessário outra pedra.
A dependência a substância tem contribuído para o extermínio de jovens
consumidores fisgados pela rede do trafico. O extermínio justifica-se pela necessidade
do uso da violência como recurso do poder de comando dos traficantes em exigir do
dependente o pagamento de uma dívida. A dívida tem, geralmente, uma relação direta
com práticas delituosas, através dos quais, os jovens buscam suprir a fissura gerada
pelo consumo do crack.
Com base nos dados pesquisados nos Procedimentos Especiais Contra
Adolescentes (PECAS), verificou-se que, em Juazeiro do Norte, os jovens notificados
cometeram algum tipo de infração, seja o uso de crack e outras drogas, bem como
homicídios e a prática de furtos e roubos.
Os processos possibilitaram verificar também o uso de armas brancas e
armas de fogo, seja para intimidar as vitimas ou como instrumentos usuais nas
disputas pelo comércio das drogas. Em alguns relatos de ocorrência, os policiais
costumam apreender, entre outros objetos, facas, revolveres e balanças de precisão
usadas pelos traficantes para quantificar o valor a ser cobrado no varejo.
Conclusão
Por fim, as contribuições aqui apresentadas sugerem reflexões no campo da
sociologia da juventude. O nosso enfoque de estudo, neste artigo, estabeleceu como
ponto de partida a pesquisa “Juventude, violência e drogas – os desafios as políticas
públicas no Estado do Ceará”.
Sugerimos repensar sobre o papel das políticas de segurança adotadas pelo
estado do Ceará na prevenção a violência entre jovens e promoção aos direitos
humanos precisam ser repensadas com objetivo de fortalecê-las e torná-las acessíveis
aos que precisam. Em Juazeiro do Norte, alvo de nossa pesquisa, ações de ordem
governamental tem sido implantadas timidamente sem, contudo, resolver uma
realidade de exclusão social e desigualdade em contextos periféricos onde os jovens
estão, geralmente, inseridos e percebidos pelos aparelhos repressores como
“protagonistas da violência”.
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ISSN: 2317-0255
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Anais do VIII Encontro da ANDHEP
ISSN: 2317-0255
Qual discurso para uma crítica? Notas sobre a Unidade de Polícia
Pacificadora no Rio de Janeiro.
Rafael Oliveira dos Santos
Mestrando no Programa de Pós-Graduação em Serviço Social (UERJ);
Pesquisador no Grupo de Trabalho - Ontologia Crítica (UERJ),
coordenado por Mario Duayer; coordenador do Círculo de Estudos da
Ideia e da Ideologia/RJ.
Observado nesse momento, dias após sua renúncia, o governo Cabral não
parece ser um sucesso. E de fato não pode sê-lo. Mas é necessário considerar que a
atmosfera melancólica do dia 03 de abril de 2014 em torno de sua saída, após sete
anos e três meses de governo, obedecendo aspirações e estratégias eleitorais de seu
atual partido, deve-se em muito ao contexto de “crise” no qual toda representação
política no país foi lançada. Desde junho de 2013, na quase totalidade do país, a
presença de pessoas nas ruas, com seus slogans e bandeiras, abalou os alicerces da
vida política e institucional brasileira. Ou ao menos, assim parece. Pode ser uma
incorreção, mas em relação ao governo Cabral a coisa ocorreu desse modo: em
dezembro de 2013 sua aprovação, em pesquisa Ibope, foi de 18%1; em novembro de
2010 (última pesquisa Datafolha antes das manifestações de junho de 2013) esteve
avaliado como ótimo ou bom por 55% dos entrevistados 2. Os acontecimentos, é
verdade, não autorizam considerar que se tratava de ataques preferenciais à sua
administração. As manifestações no Rio ocorreram à feição do que houve no país: no
essencial, se dirigiam a “política realmente existente” na sociedade brasileira –
palavras de ordem tradicionalmente produzidas por segmentos sociais mais
radicalizados foram bradadas, sem qualquer conexão, junto a demandas daqueles que
não possuem (tradicionalmente) uma identidade ideológica consolidada.
O governo Sérgio Cabral, em meio a sua solvência, provavelmente tem na
política de segurança um trunfo ainda. Mesmo que haja outras ações pelas quais
queira se notabilizar (e certamente há). No entanto, não é crível que seus feitos nas
1
Ver em: http://www.ibope.com.br/pt-br/noticias/Paginas/Governadores-do-Amazonas,-Pernambuco-eAcre-sao-os-mais-bem-avaliados-do-pais.aspx.
2 Ver em: http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2013/07/aprovacao-de-sergio-cabral-cai-de-55-para25-aponta-datafolha.html.
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áreas da educação ou saúde motivem votos massivamente no eleitorado. Para além
de eventuais êxitos ou fracassos, assim o é, fundamentalmente, porque o debate
sobre violência prevaleceu em sua gestão. É razoável, por esse motivo, supor que seu
candidato ao governo do estado do Rio de Janeiro, Luís Fernando Pezão (seu vicegovernador), tem sua candidatura afiançada pelo projeto da Unidade de Polícia
Pacificadora. Os índices de aprovação à política de segurança tanto quanto a redução
de alguns indicadores de violência teve sensível impacto junto à população, localizada
dentro ou fora dessas áreas. Estatística também sustentada pelo trabalho de
propaganda realizado pelo governo, para a promoção de sua ideia de pacificação, que
foi amplamente difundida como demonstra o imenso material jornalístico disponível
sobre o assunto. É claro que a inferência da realidade social através de dados de
pesquisa possui seus problemas e dificuldades, porém, com devida atenção, é sempre
recurso satisfatório. Por exemplo, o site do Instituto Brasileiro de Pesquisa Social, na
pesquisa O Impacto das Unidades de Polícia Pacificadora nas Favelas da Cidade do
Rio de Janeiro (2009) revela que 50% dos moradores entrevistados em comunidades
sem UPP se sentem seguros; já em comunidades com UPP o índice é de 93%3. A
respeito dessa pesquisa, diz o jornal O Globo de 11 dezembro de 2010:
“(...) as UPPs são amplamente aprovadas em favelas com e sem as
unidades de pacificação (92% e 77%, respectivamente). Por outro
lado, em locais com UPPs, a confiança na PM é mais que o dobro da
registrada em favelas ainda não pacificadas (60% contra 28%) (...)”4
Nessa mesma matéria, Geraldo Tadeu Monteiro, cientista político e diretor do
IBSP, diante dos resultados da pesquisa (ver nota de rodapé 3), analisa:
“(...) A pesquisa derruba de vez o mito de que as comunidades são
contra as forças de segurança. Há claramente um apoio maciço à
presença do Estado. É uma reivindicação silenciosa pelo estado de
direito. Mostra também que as comunidades tinham uma relação muito
difícil com a polícia. A população sofria duplamente tanto com a
presença dos traficantes, quanto pelas ações esporádicas da PM (...)”
Sem contar os problemas inelimináveis de qualquer procedimento quantitativo
(com seus recortes e pressupostos metodológicos), normal à atividade científica, é
comum se ponderar sobre a natureza da interpretação dos dados (determinada por
premissas inerentes aos sujeitos). Porém, nos parece (socialmente) plausível o que é
apresentado nessa pesquisa. Ao mesmo tempo, no entanto, é também admissível
notar que essa mesma política – projeto que institui as possibilidades de sucesso da
permanência do PMDB por mais quatros no governo fluminense – serve como espaço
para que Cabral e aliados sejam criticados. É verdade que não se trata de uma
3
Ver em: http://www.ibpsnet.com.br/index.php/pesquisa/2009/114-o-impacto-das-unidades-de-policiapacificadora-nas-favelas-da-cidade-do-rio-de-janeiro.
4
Ver em: http://oglobo.globo.com/rio/pesquisa-mostra-alta-aprovacao-das-upps-em-favelas-sejampacificadas-ou-nao-2911694#ixzz2yGhAUkgF.
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Anais do VIII Encontro da ANDHEP
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posição generalizada, com forte penetração entre na população do estado, mas se
existe uma oposição discernível em meio às disputas eleitorais de sempre, será
localizada no debate sobre a atual política de segurança do estado. Se por um lado o
governo Cabral extraiu do tema insumos para sua aprovação continuada, por outro
lado, a oposição que se construiu a ele ao longo dos anos em torno tema não é
irrisória. Salvo “escândalos” ocorridos, midiaticamente explorados, como no caso de
sua relação com o empresário Eike Batista, entre outros, foi progressiva a circulação
social da posição que acusava de autoritária e militaresca as proposições de Cabral
sobre o assunto. Está para ser testada a hipótese da relação entre o governo Cabral
(2007-2014) e seu fim melancólico com a nomeação do Brasil como sede da Copa do
Mundo 2014 em 2007, a decisão em 2009 do Comitê Olímpico Internacional em levar
os Jogos Olímpicos e Paraolímpicos de Verão de 2016 para a cidade e a consolidação
de segmentos críticos à gestão da segurança. No entanto, o prefeito Eduardo Paes
(eleito em 2009 e reeleito no primeiro turno em 2012 pelo PMDB), que também
poderia ser incluído nessa mesma hipótese, segundo reportagem do The New York
Times, veiculada pelo O Globo5, disse ser uma má ideia realizar ao mesmo tempo
esses eventos.
Desconsiderando as manifestações de junho, até então, a maior dificuldade
enfrentada por Eduardo Paes deveu-se ao chamado Choque de Ordem: operação
criada pela prefeitura e coordenada pela Secretaria Especial de Ordem Pública que se
dispunha a acabar com a “sensação de insegurança pública” através, imediatamente,
da Guarda Municipal6. Igualmente à concepção e prática governamental do mandato
de Sérgio Cabral, Paes foi acusado de possuir uma visão de cidade elitizada. No
essencial, tanto Cabral quanto Paes se tornaram objeto de crítica de setores que
consideram a atual gestão política da cidade como expressão de sua subordinação a
uma lógica financeira ao se tornar epicentro de negócios (envolvendo agentes públicos
e privados, setores empresariais nacionais e internacionais) por conta dos grandes
eventos esportivos7. Nessa interpretação, os grandes empreendimentos no contexto
5
Ver em: http://oglobo.globo.com/rio/new-york-times-traca-perfil-de-paes-diz-que-prefeito-vive-crises-deestresse-com-grandes-eventos-11761391.
6 “(...) A desordem urbana é o grande catalisador da sensação de insegurança pública e a geradora das
condições propiciadoras à prática de crimes, de forma geral. Como uma coisa leva a outra, essas
situações banem as pessoas e os bons princípios das ruas, contribuindo para a degeneração,
desocupação desses logradouros e a redução das atividades econômicas. Com o objetivo de pôr um fim
à desordem urbana, combater os pequenos delitos nos principais corredores, contribuir decisivamente
para a melhoria da qualidade de vida em nossa Cidade, foi criada a Operação Choque de Ordem. São
operações realizadas pela recém criada Secretaria de Ordem Pública, que em um ano de existência vem
conseguindo
devolver
à
ordem
à
cidade
(...)”
Ver
em:
http://www.rio.rj.gov.br/web/guest/exibeconteudo?article-id=87137.
7
“(...) Essas operações estão em perfeita sincronia com a política genocida da gerência estadual de
Sérgio Cabral Filho, que diuturnamente joga sua polícia para o cerco e contenção das populações pobres
nas favelas com a desculpa de combater o tráfico de drogas. Está claro que a "ordem" e a "disciplina"
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dos eventos que a cidade sediará exigem do poder público certos compromissos que,
ao fim, resultam na dissolução do interesse comum em favorecimento do privado. Os
meses que antecederam à reeleição em primeiro turno do prefeito Paes foram
especialmente conturbados em relação ao modo pelo qual a Guarda Municipal do Rio
de Janeiro atuava nas ruas. Denúncias de abusos e excessos se acumularam e
conflitos, embates corpo à corpo, entre GM e população, foi observado pela cidade.
Momentos de tensão que contrastavam com o clima de relativo entusiasmo ou, como
se disse várias vezes, de elevada autoestima, que jazia no Rio de Janeiro.
“(...) O tumulto começou quando dois guardas tentaram afastar
camelôs que estavam na esquina das ruas, segundo eles,
atrapalhando o fluxo de pedestres. Depois de cerca de 30 minutos de
pancadaria, 150 guardas e apoio da PM contornaram a situação (...)”8
Em meio a todo esse processo, pode-se considerar também a consolidação do
PSOL como força política coadjuvante no Rio (sobretudo na cidade). Um feito
absolutamente notável em se tratando de uma legenda recente, vindicadora dos
emblemas da esquerda socialista e politicamente de oposição num contexto nacional
de hegemonia PT-PMDB e forte liderança e identificação com o presidente Lula.
Partido pequeno, mas que durante esse período foi se afirmando como oposição
política e ideológica ao PMDB entre cariocas e fluminenses – para além das disputas
eleitorais de sempre. Nesse sentido, atesta o diálogo entre a legenda e o sentimento
das ruas que, se minoritário, gerava lentamente sua consistência e dissenso em
relação à direção política do PMDB. É justo considerar que parte dessa articulação se
deve ao trabalho do deputado estadual Marcelo Freixo (notoriamente reconhecido por
seu esforço na presidência da “CPI das Milícias”, concluída em 2008) que serve como
medida, em verdade, do trabalho parlamentar de todo o partido. Sua história como
militante dos Direitos Humanos, muito anterior a sua carreira política, rendeu a posição
de prestígio junto aos cariocas e fluminenses tocados pelas lutas democráticas. A
afirmação do partido, inclusive, poderia ser medida na surpreendente campanha que
fez nas últimas eleições para prefeito. A grande notícia, ao fim do pleito, não foi os que
reelegeram Paes no primeiro turno com 64,60% de votos, mas os 28,15% que
optaram em Freixo – segundo colocado. E mais: a mobilização que conquistou e o
impacto político que produziu no cotidiano da cidade durante as eleições num período
em que os “grandes comícios” se tornaram memórias de nosso passado democrático.
Pode-se incluir, com vistas à sustentação desse argumento, que o PSOL/RJ
buscadas tanto por Paes como por Cabral e Luiz Inácio são as que excluem os pobres dos espaços ditos
públicos, como as praias, para que fiquem confinados nos morros e bairros distantes, sem direito ao
trabalho ou ao lazer (...)”. Ver em: http://www.anovademocracia.com.br/no-50/2053-qchoque-de-ordemqde-paes-e-crime-contra-o-povo.
8
Ver em: http://odia.ig.com.br/portal/rio/excesso-da-guarda-municipal-em-confronto-com-ambulantesser%C3%A1-investigado-1.489971.
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contabiliza na Câmara Federal dois deputados (Chico Alencar e Jean Wyllys), na
ALERJ três (Janira Rocha, Paulo Ramos e o próprio Freixo) e, considerando somente
a legislatura carioca, são quatro vereadores (Eliomar Coelho, Jefferson Moura, Paulo
Pinheiro e Renato Cinco).
Em 06 de junho de 2011, o PSOL/RJ organizou um debate com seu vereador
Eliomar e Nelma Gusmão de Oliveira do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano
e Regional.
“(...) A Copa do Mundo de 2014 e as Olimpíadas de 2016 estão
trazendo ao Rio de Janeiro uma série de reformulações urbanas. Seria
motivo
de alegria,
se essas
obras
não
atendessem
predominantemente aos interesses de construtoras e do mercado
imobiliário. Remoções de comunidades pobres estão em curso, e já há
indícios de superfaturamento e fraudes. Por isso, o PSOL organiza, na
próxima segunda-feira (6/5), o seminário „o Rio e os megaeventos‟
9
(...)”
As posições do partido, nesse particular, encontram sintonia e conexão com
outros setores. Representantes da sociedade civil organizada convergem num sentido
similar. Marco importante das lutas sociais recentes da cidade foi o lançamento do
dossiê (2012) sobre violações dos direitos humanos pelo Comitê Popular da Copa e
das Olimpíadas do Rio de Janeiro. Sob o título “Megaeventos e violações dos Direitos
Humanos”, pondera-se:
“(...) O que fica claro no caso do Rio de Janeiro é que o projeto de
atração de investimentos tão propagandeado pelo poder público
municipal e estadual com a realização da Copa do Mundo de Futebol
de 2014 e dos Jogos Olímpicos de 2016 tem como um componente
importante a expulsão dos pobres das áreas valorizadas ou que serão
10
contempladas com investimentos públicos (....)”
O dossiê, na página 51, problematizando o tema da Segurança Pública no
contexto dos megaeventos, em relação a UPP afirma:
“(...) o recente programa das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs)
(...) representa o maior investimento do Estado em segurança pública
(...) Embora venha tendo a aprovação da maioria da população, as
UPPs se tornaram objeto de grande polêmica, visto que ao mesmo
tempo em que trazem uma série de benefícios para os moradores,
como a redução dos homicídios decorrentes dos confrontos entre
policiais e traficantes e a sua inserção no mercado formal de bens e
serviços, o crescente processo de especulação imobiliária destes
espaços tem gerado, entre outros efeitos, a progressiva expulsão dos
mais pobres. Não é por acaso, aliás, que quase todas as primeiras 18
UPPs foram instaladas em favelas existentes nas regiões mais nobres
da cidade, formando um “cinturão” associado explicitamente às áreas
das competições Olímpicas, aos sistemas de transporte que os
entrelaçam e aos centros de maior poder aquisitivo (...)”
9
Ver em: http://www.chicoalencar.com.br/_portal/noticias_do.php?codigo=522.
Ver
em:
http://comitepopulario.files.wordpress.com/2012/04/dossic3aa-megaeventos-eviolac3a7c3b5es-dos-direitos-humanos-no-rio-de-janeiro.pdf.
10
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Admitindo que as UPPs obedecem tal lógica, segundo o dossiê, podemos
reconhecer um nexo entre sua interpretação com a ideia de que, na verdade,
representam um “projeto de cidade”. Como bem destaca Freixo, o mapa da UPP
revela geograficamente os compromissos aos quais está submetida.
“(...) Freixo afirmou que as UPP's devem ser compreendidas dentro da
lógica de uma cidade que se prepara para receber os megaeventos, já
que o seu mapa de instalação não é necessariamente o de
enfrentamento ao crime, mas acompanha as áreas de grande
investimento de capital (...)”11
Esse projeto, considerando o contexto dos megaeventos e da gestão política
do PMDB do tema da violência, segundo a professora Joana D‟Arc Fernandes, poderia
ser caracterizado como uma espécie de atualização do fascismo. O discurso
neofascista que atravessa todos os poderes da república se materializa nas práticas e
ações militares que, predominantemente, são realizadas em áreas que seriam
controladas por grupos criminosos. Nesse sentido, em artigo publicado no site da
Rede de Comunidades e Movimentos contra a Violência 12, a professora enumera “(...)
A forma como as favelas foram invadidas, a violação de domicílio, o desrespeito com a
população local, o medo e a insegurança que foram construídos, a identificação do
morador como um bandido (...)” (D‟ARC, 2010)13 como expressões da lógica fascista
subjacente às ações do Estado brasileiro (federal, estadual e municipal) em favelas.
No caso, atual e brasileiro, o fascismo não se apresenta em ataque às instituições
democráticas, mas ao que define como perigo à realização de seu projeto nacional de
desenvolvimento e crescimento econômico.
“(...) O pano de fundo desta articulação neofascista é a parceria
público-privado (...) A grande nação, que será palco de grandes
eventos esportivos mundo, trará para as nossas arquibancadas os
Jogos Mundiais Militares, em 2011; a Copa do Mundo, em 2014, e os
Jogos Olímpicos, em 2016. A grande nação, cuja força econômica se
faz presente (...) Precisa explicar para o mundo a indigência de grande
parcela da população. Precisa explicar para o mundo por que ainda
não conseguiu resolver problemas básicos como o déficit de habitação
14
(...)”(D‟ARC, 2010)
O ataque é perpetrado aos alvos historicamente preferenciais da sociedade
brasileira que compõem a paisagem urbana no Brasil moderno em comunidades e
favelas. Em artigo assinado pela própria Rede de Comunidades e Movimentos contra
a Violência é analisado que:
11
Ver em: http://www.marcelofreixo.com.br/portal/noticias_do.php?codigo=476#.
“(...) A Rede de Comunidades e Movimentos contra a Violência é um movimento social independente
do Estado, de empresas, partidos políticos e igrejas, que reúne moradores de favelas e comunidades
pobres em geral, sobreviventes e familiares de vítimas da violência policial ou militar, e militantes
populares e de direitos humanos (...)”. Ver em: http://www.redecontraviolencia.org/Home/10.html.
13 Ver em: http://www.redecontraviolencia.org/Artigos/780.html.
14
Idem.
12
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“(...) Há mais de 30 anos, a chamada “violência urbana” passou a
representar o principal problema do Rio de Janeiro e do Brasil. O
fenômeno passaria a articular tanto a percepção das pessoas em
relação à cidade e ao outro quanto dos aparatos de segurança
pública, responsáveis por dar alguma resposta a este problema (...)”15
Essas respostas, até por força de um contexto de ausência de dispositivos
institucionais fundados em premissas do Estado democrático de Direito, consolidaram
no imaginário social “o bandido”, como sujeito disposto à violência e ao crime, que,
organizadamente, teria na favela seu espaço de ação estabelecido. Argumenta o texto
citado acima:
“(...) A repressão, então, concentrar-se-ia nestas localidades.
Identificadas como o lócus da violência que se espalhava pela cidade
(essa é a interpretação dominante até hoje), seria ali que as ações do
Estado ocorreriam. Para tanto, as policias passaram a ser cada vez
mais incrementadas e transformadas em verdadeiras máquinas de
guerra (...)”
As chacinas em 1993 na Candelária e em Vigário Geral talvez se equivalham a
tantas outras ocorridas, e desconhecidas, nas periferias brasileiras desde sempre. Por
outro lado, pode-se dizer com alguma correção, sem maiores dificuldades, que
serviram de oportunidade para um momento de inflexão no tocante à cultura política
nacional. Muito provavelmente por terem acontecido num ambiente marcado pela
recente experiência de redemocratização do país, precedida por ampla mobilização
social e intenso debate público, essas execuções apareceram à sensibilidade de
inúmeros setores da sociedade civil brasileira como necessidade de se refletir sobre o
tema da violência/segurança sob outro critério (jurídico, político, ideológico) – que não
fosse o mesmo do tempo da ditadura militar (1964-1985). A crítica à atuação das
policiais (militar e civil), do modo como o Estado brasileiro se comporta em relação ao
tema da segurança, encontrou naquele episódio seu marco inaugural. Essas
execuções por agentes do Estado, ocorridas no Rio de Janeiro, mas com repercussão
nacional e internacional, marcam profundamente a crítica à Polícia Militar – com igual
projeção midiática, pode-se incluir também o Massacre de Carandiru em SP. A
instituição passou a ser objeto de estudo de pesquisadores e militantes que, em seu
trabalho e comprometimento, passaram a subsidiar o apelo daqueles que a
consideram um resquício da ditadura militar que precisaria ser superado no interior do
complexo estatal de que dispõe a sociedade brasileira. Uma espécie de fato-limite no
qual se evidencia a urgência de se repensar o paradigma de segurança pública a ser
exercido num país que acabara de restituir à normalidade democrática sua vida
política.
15
Ver em: http://www.redecontraviolencia.org/Artigos/896.html.
4150
Anais do VIII Encontro da ANDHEP
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“(...) No Brasil, somente uma década após a promulgação da
„Constituição Cidadã‟ que estabeleceu a segurança pública como „
dever do Estado e responsabilidade de todos‟, a política de segurança
pública passar a ser pensada sob o contexto de uma sociedade
democraticamente organizada (...)” (CARVALHO e SILVA, 2011, p.62)
Em 1996, no governo FHC, o Programa Nacional de Direitos Humanos é
criado. Já em 1995, o assunto produziu uma Secretaria de Planejamento de Ações
Nacionais de Segurança Pública no contexto institucional do Ministério da Justiça
brasileiro. Os resultados dessas ações e iniciativas estatais, evidente, foram de
alcance limitado porque, além de serem germinais, no quadro da história democrática
brasileira, se deram no interior da cultura política nacional – relativamente inábil,
segundo pesquisadores sociais e literatura especial, quando se trata de direitos
individuais e proteção à vida. No entanto, ao longo dos anos de 1990 muito se
acumulou sobre o assunto pela inclusão e contribuição da temática dos Direitos
Humanos que passou a animar as discussões sobre segurança/violência 16. Em 2007,
durante o segundo mandato de Luiz Inácio Lula da Silva, O Programa Nacional de
Segurança com Cidadania espelhava, em nível institucional, todo esse acúmulo. Como
o próprio nome do programa denotava, tratava-se de incluir no hall das políticas
públicas o tema da segurança como parte de um projeto societário balizado pelos
princípios democráticos e de direito no Brasil. Até como resultado das forças sociais
que produziram a primeira experiência administrativa em nível federal do Partido dos
Trabalhadores, o Pronasci encarna um conjunto de expectativas somadas na
sociedade brasileira cujo fundamento, por mais distintas fossem as leituras sobre o
problema da violência e de sua relação com as instituições democráticas, era a
necessidade de tratá-la sob coordenadas de uma política pública – cujo eixo, tal qual
toda política pública de Estado, fosse o conceito de cidadania.
“(...) O Pronasci apresenta uma forma e um olhar multidisciplinar em
relação à questão da segurança pública. Dessa maneira, pela primeira
vez após a promulgação da atual Constituição, surge a perspectiva de
democratização da política de segurança pública, com efetiva
possibilidade de exercício da cidadania por parte da sociedade nesse
processo apresenta-se como uma política de segurança pública,
baseada em princípios democráticos, interdisciplinares e humanitários,
tendo em vista a participação da sociedade na construção de uma
cultura de paz, a médio e longo prazo (...)”(CARVALHO e SILVA,
2011, p.62)
O Pronasci (programa encerrado, em 2011, pelo governo Dilma) em seu texto
de apresentação, informa:
“(...) O Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania
(Pronasci) foi um marco nas políticas públicas de segurança do Brasil,
“(...) As questões relacionadas à segurança pública não podem ser tratadas como política de governo,
mas como um processo amplo e complexo a ser enfrentado tanto pelo Estado quanto pela sociedade. Na
perspectiva de uma política de Estado, a política de segurança pública, para ser exitosa, não pode
dispensar a participação e a contribuição da sociedade (...)” (CARVALHO e Silva, 2011, p.63).
16
4151
Anais do VIII Encontro da ANDHEP
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uma vez que promoveu inúmeras inovações. Foi um grande
impulsionador da compreensão de que a segurança pública é uma
questão transversal, que demanda intervenção de várias áreas do
poder público, de maneira integrada, não apenas com repressão, mas
também com prevenção (...) mediante programas, projetos e ações de
assistência técnica e financeira e mobilização social, visando à
17
melhoria da segurança pública (...)”
É difícil mensurar em que medida algumas dessas iniciativas do poder público
brasileiro seriam possíveis sem o trabalho e compromisso de algumas organizações
sociais que impuseram ao debate sobre segurança e violência a temática da cidadania
e dos direitos. O Viva Rio (1993), por exemplo, é uma instituição
“(...) fundada em dezembro de 1993, por representantes de vários
setores da sociedade civil, como resposta à crescente violência que
assolava o Rio de Janeiro (...) Nessas quase duas décadas,
desenvolveu e consolidou atividades e projetos que se tornaram
políticas públicas reproduzidas pelo Estado, por empresas, mercado e
18
outras organizações (...)”
Desde 1997, o Instituto Sou da Paz:
“(...) [tem como missão] Contribuir para a efetivação de políticas
públicas de segurança e prevenção da violência, pautadas por valores
de democracia, justiça social e direitos humanos, por meio da
mobilização da sociedade e do Estado (...) [e como valores]
Compromisso com um Estado pautado por valores democráticos
(diálogo, participação, representação, igualdade), regido por regras e
controles (pacto social) e da Declaração dos Direitos Humanos como
19
referência principiológica das regras de ação do Estado (...)”
Desde então a ideia de “refundar a Polícia”, gradativamente, se tornou pauta no
debate público nacional. Referência importante para a tematização da violência sob
uma perspectiva democrática e transdisciplinar do combate ao crime, Luiz Eduardo
Soares é caso exemplar. Sua trajetória é uma síntese desse amplo processo, tenso e
contraditório, em que convergem iniciativas da sociedade civil e poder público-estatal.
Claro que jamais de modo inequívoco. Mas pode ser frisado que seu trabalho transita
entre esses dois níveis da vida política nacional e, por essa razão, indica consensos
elementares em torno da problemática. Sua respeitada trajetória acadêmica e exitosa
carreira literária soma-se um importante currículo como consultor e gestor de políticas
públicas na área de segurança20. Professor da UERJ e coordenador do curso à
distância de gestão e políticas em segurança pública na Universidade Estácio de Sá,
17
Ver
em:
http://portal.mj.gov.br/pronasci/data/Pages/MJ3444D074ITEMID2C7FC5BAF0D5431AA66A136E434AF6B
CPTBRNN.htm.
18
Ver em: http://vivario.org.br/quem-somos-2/.
19
Ver em: http://www.soudapaz.org/institucional/missao.
20
“(...) secretário nacional de segurança pública (2003) e coordenador de segurança, justiça e cidadania
do Estado do RJ (1999/março 2000). Colaborou com o governo municipal de Porto Alegre, de março a
dezembro de 2001, como consultor responsável pela formulação de uma política municipal de segurança.
De 2007 a 2009, foi secretário municipal de valorização da vida e prevenção da violência de Nova Iguaçu
(RJ) (...)”. Ver em: http://www.luizeduardosoares.com/?page_id=9.
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foi responsável pelo Mutirão pela Paz (1999)21 durante o governo de Anthony
Garotinho (1998-2002). Para Soares, em entrevista concedida à René Ruschel, o
projeto guarda em relação às UPPs algumas semelhanças.
Mas importantes
diferenças.
“(...) Em primeiro lugar, ambos são uma alternativa às incursões
bélicas às favelas e às áreas pobres. Em tais incursões, morriam e
ainda morrem suspeitos de envolvimento em práticas criminosas,
como o tráfico. Morrem também moradores da comunidade e policiais.
E a despeito de tantas mortes, nada acontece, do ponto de vista da
segurança ou da redução das dinâmicas criminais, porque depois de
subir o morro e matar –e, eventualmente, prender suspeitos e
apreender drogas e armas, as quais, com frequência, eram e ainda
são revendidas para o mesmo grupo de traficantes ou para grupos
22
rivais– a polícia retornava e retorna ao asfalto (...)”
E completa:
“(...) O modelo alternativo (Mutirão ou UPP) faz o contrário: oferece às
áreas pobres o serviço público de segurança, 24 horas, do mesmo
modo que oferece aos bairros de classe média. Um serviço que deve
ser caracterizado pela qualidade e pelo respeito à cidadania,
garantindo-se seus direitos (pois a segurança nada mais é ou deveria
ser senão a garantia dos direitos contra eventuais intervenções que os
desrespeitem). Ou seja, a polícia entra no território e não sai. E entra
avisando, evitando surpresas e procurando evitar confrontos, pois eles
só servem para colocar em risco a vida de inocentes. Idealmente,
tanto no Mutirão quanto na UPP, o policiamento deveria ser
comunitário ou orientado para a resolução de problemas, como é
23
desejável em uma democracia que respeite os direitos humanos (...)”
O que, no essencial, significa o estabelecimento da segurança como um direito
no quadro institucional e democrático disposto pelo Estado brasileiro. O Mutirão ao
contrário das UPPs, no entanto, não desfrutou do apoio e empenho governamental
que, segundo o autor de importantes livros sobre o segurança/violência, o Rio vive
com Cabral.
“(...) Cabral teve o mérito de impor a racionalidade do projeto da UPP
à PM, dobrando resistências. Para isso contou com a ajuda
imprescindível e a liderança de um homem honrado, bem
intencionado, que conquistou a admiração da sociedade. Refiro-me ao
secretário Beltrame (...) o que considero indispensável até mesmo
para que as UPPs tenham futuro (...)”24
Nessa mesma entrevista, após enumerar divergências em relação ao
secretário de segurança José Mariano Beltrame, que, segundo ele, não invalidam a
“(...) O Projeto Mutirão Pela Paz foi implementado em 1999 na favela do Pereirão, em Laranjeiras,
durante a gestão de Luiz Eduardo Soares na Secretaria de Segurança Pública do Estado, como
coordenador de segurança, justiça e cidadania. A descrição que Soares faz do projeto parece antecipar
em uma década os dizeres que seriam associados ao discurso da “pacificação” e à instauração das
UPPs: “O Mutirão associava polícia nas favelas à paz, não à guerra, e ligava paz a investimentos sociais,
não apenas à presença policial” (Soares, 2000, p. 280). A iniciativa de estendê-lo a outras comunidades
foi, segundo relata Soares, solapada pela dificuldade de obter-se apoio político (...)” (FICHINO, 2012, p.
27).
22
Ver em: http://www.luizeduardosoares.com/?p=854.
23
Idem.
24
Ibidem.
21
4153
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indispensabilidade de sua figura na consolidação do programa, ao comentar a
Ocupação do Complexo Alemão, afirma:
“(...) As UPPs são extremamente positivas, por mais que haja
problemas. Os problemas são e serão naturais, porque a realidade é
complexa, as ações sociais tardam e os policiais, mesmo diferentes de
seus colegas, acabam contagiados pela corporação. De todo modo,
enquanto houver acompanhamento de movimentos sociais e da mídia,
e enquanto a presença policial for tão permanente e numerosa quanto
é nas áreas nobres da cidade, uma UPP será infinitamente melhor
para a democracia e os direitos humanos do que o poder arbitrário
armado de um grupo qualquer (...)”
O caso da instalação da UPP no Complexo do Alemão foi emblemático. Ao
contrário do acontecido em outros territórios que receberam UPPs, foram registrados
alguns conflitos e denúncias de violação e abuso de autoridade por parte das forças
policiais. É verdade que a “retomada territorial” do Estado sempre foi objeto de críticas
e iguais denúncias desde início do programa, mas no Complexo do Alemão aquilo que
circulou marginalmente em outros processos de pacificação ganhou forma e se tornou
momento de ponderação.
“(...) Qual é oficialmente o número de mortos da pacificação do
Alemão, do primeiro massacre até o dia D, combinando chacinas e
massacres a conta-gotas? Na Folha apareceram matérias sobre os
relatos dos moradores do Alemão, denunciando a existência de
corpos na mata com a polícia impedindo o acesso ao local (...) É
incrível como meses depois vem à tona o conjunto de atrocidades,
roubos, extorsões cometidas contra os pacificados (...)” (BATISTA,
2011, p.9-10)
Vera Malaguti, reconhecida e respeitada pesquisadora, referência no âmbito da
criminologia crítica, interpreta os acontecimentos no Complexo do Alemão como
expressão da lógica dos megaeventos na cidade. Em verdade, a própria UPP ganha
centralidade não porque obedece a compromissos democráticos que o Estado
brasileiro teria assumido nas últimas décadas, visando à superação de práticas de
violação por parte dos agentes de segurança pública.
“(...) O fato das UPPs estarem restritas ao espaço de favelas, e de
algumas favelas, já seria um indício luminoso para desvendar o que o
projeto esconde: a ocupação militar e verticalizada das áreas de
pobreza que se localizam em regiões estratégicas aos eventos
desportivos do capitalismo vídeo-financeiro (...) É importante
esclarecer que o projeto não é nenhuma novidade, faz parte de um
arsenal de intervenções urbanas previstas para regiões ocupadas
militarmente no mundo a partir de tecnologias, programas e políticas
norte-americanas que vão do Iraque à Palestina. No caso, o projeto de
Medellín, foi este o paradigma. Governador e Prefeito para lá
marcharam, sempre com os sociólogos de plantão, trazendo para o
Rio de Janeiro um pacote embrulhado na „luta contra o crime‟ (...)”
(BATISTA, 2011)
A autora alude, portanto, ao que poderia ser identificado como a crítica
hegemônica às UPPs, a saber, o fato de obedecerem a uma visão de cidade-negócio,
onde a cidadania perderia seu lugar e o poder público estaria submetido ao interesse
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Anais do VIII Encontro da ANDHEP
ISSN: 2317-0255
privado de agentes financeiros. Mesmo que a crítica a UPP no Rio de Janeiro ainda
seja espectral, há que se considerar que ela se sustenta em coordenadas sólidas. Por
isso a Secretaria de Segurança do Estado do Rio de Janeiro, tendo à frente o
delegado da Polícia Federal Beltrame (desde primeiro de janeiro de 2007), continua a
ser objeto de crítica de grupos que entendem que outra política de segurança se faz
necessária porque as UPPs não representam uma inovação e nem o fim das práticas
de repressão históricas à sociedade brasileira. Nesse sentido, para seus opositores,
uma Unidade de Polícia Pacificadora apenas mantém em regiões abandonadas pelo
poder público o julgo das armas e da violência. O arbítrio passa a ser exercido através
de agentes do Estado que, comandados pelo modelo de gerência estabelecido na
cidade no contexto dos megaeventos esportivos, não transcende o modelo tradicional
de contato com a população por parte da Polícia Militar.
“(...) Nós detectamos que a relação entre polícia e comunidade em
geral melhora com a instalação da UPP, mas há muita diferença entre
uma e outra, não é linear. Em algumas UPPs a relação é boa, em
muitas há certa distância entre moradores e policiais e em algumas a
relação é extremamente tensa (...) Em geral, os dois lados se acusam
mutuamente, alegando falta de respeito. No caso dos policiais, muitos
deles ainda persistem num modelo onde o respeito é baseado no
medo e na intimidação. Então, quando eles acham que não estão
sendo “obedecidos” pelos moradores, consideram-se desrespeitados.
Por outro lado, os moradores também falam que muitos policiais
25
continuam tratando-os de forma agressiva e humilhante (...)”
Segundo o pesquisador Ignacio Cano, do Laboratório de Análise da Violência
da Universidade Estadual do Rio de Janeiro:
“(...) o sucesso global do projeto passa por dois elementos: um é a
possibilidade de transformar as políticas de segurança, mudar a
tradição de “guerra ao crime” e “guerra ao tráfico” para uma política de
polícia como serviço. É um desafio muito grande, a gente está
apostando nisso, mas certamente há muitas resistências e muitos
limites (...) A outra possibilidade, e é uma recomendação que fazemos
em nosso relatório, é de que as próximas UPPs sejam criadas em
áreas com alta letalidade (...)”26
A necessidade de “transformar as políticas de segurança”, tocando-as como
serviço público e não como “guerra ao tráfico”, principalmente, figura e predomina nas
atuais críticas às UPPs. Superar aquilo que o Estado historicamente legou à favela e
aos territórios em que o varejo de drogas é o desafio. Em entrevista ao jornal O
Globo27, o professor, geógrafo e um dos fundadores do Observatório de Favelas
(2001) Jailton de Souza e Silva diz:
“(...) Pensando na UPP, acho que é um grande avanço em relação à
lógica da guerra de extermínio. O problema é que continua a lógica da
25
Ver em: http://observatoriodefavelas.org.br/noticias-analises/este-e-o-momento-de-denunciar-osabusos-da-policia/.
26
Idem.
27
Ver em: http://oglobo.globo.com/rio/jailson-de-souza-silva-pensador-que-tenta-reinventar-periferia9028680#ixzz2yo1JXZ2j.
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Anais do VIII Encontro da ANDHEP
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ocupação policial. As regras deveriam chegar pela prefeitura, como no
resto do Rio, não pela polícia (...) Isso é uma violência com a própria
polícia. O estado não pode transferir para ela a responsabilidade de
organizar o território. A UPP que queremos é uma Unidade de Política
Pública. Queremos que o Estado deixe de ser partido e tenha políticas
iguais na cidade toda (...)”
O professor Jailton se dirige ao “Estado partido” para identificar aquilo que
poderia ser entendido como um comportamento prediletivo, não universal, do poder
público no país. A ocupação policial não pode constituir uma novidade na relação do
Estado com esses territórios porque o “braço armado” estatal sempre esteve presente
nesses espaços. Ao contrário, para Jailton, e muitos opositores da UPP, o que falta às
comunidades e favelas são políticas públicas que, finalmente, tornem essas regiões
lócus de políticas públicas e serviços28.
“(...) A favela não carece de "pacificação", nem de uma força de
ocupação militar, mas de uma política de segurança pública nos
mesmos termos do conjunto da cidade (...) integrada e centrada em
um projeto de desenvolvimento, de diferentes setores e instâncias do
Estado e não apenas a polícia (...)”
A falta de outros serviços, portanto, nas comunidades após a instalação de
UPPs comumente aparece nas posições daqueles que lhe são contrários. Importante
liderança popular no Rio de
–
(...)”29. A demanda por
outros serviços públicos como índice do comprometimento do Estado com a cidadania
dos moradores das áreas ocupadas constitui importante momento de crítica à
pacificação. Dessa demanda e denúncia, a “pacificação” aparece como projeto de
controle de amplos setores da população que, no atual contexto de investimentos,
precisam estar sob o poder estatal para sua rentabilidade. Nessa medida, a retomada
do controle territorial por parte do Estado seria, simplesmente, a ocupação militar com
vistas à construção de uma sensação de segurança necessária aos negócios que irão
acontecer e não o início de uma integração desses territórios no circuito dos direitos 30.
“(...) O principal limite das UPP‟s, desde sua origem, foi ter a ação policial militarizada, focada no
controle do território e das práticas cotidianas dos moradores como ponto de partida e de chegada. O que
gerou a falta de investimento do Governador, especialmente, e do prefeito nas necessárias ações
estruturantes, a serem coordenadas pela UPP social. Assim, a ocupação militar seria o ponto de partida
para a construção de um conjunto de ações integradas sustentadas em três eixos fundamentais: a
construção de formas de regulação do espaço público, especialmente, da favela de forma pactuada entre
o Estado, as instituições locais e os moradores; a oferta de serviços e equipamentos urbanos a qual os
residentes nas favelas não tiveram direito, historicamente; e a construção de um projeto integrado de
desenvolvimento econômico, social, cultural e ambiental que garantisse a inserção plena da favela ao
conjunto da cidade (...)” (JAILTON, 2014). Ver em: http://observatoriodefavelas.org.br/noticias-analises/osdesafios-da-upp-e-o-papel-da-upp-social/.
29
Ver em: http://www.brasil247.com/pt/247/favela247/133483/Cultura-na-favela-n%C3%A3o-%C3%A8assunto-de-pol%C3%ADcia.htm.
30
“(...)A isso se deve somar o fato de que o governo não complementa a pacificação com uma política
sustentável de recuperação social das favelas. Não se dá o sentido de comunidade a um lugar em que o
esgoto corre a céu aberto, a moradia é precária, não há serviços essenciais e está à mercê de bandidos e
28
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Anais do VIII Encontro da ANDHEP
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“(...) É preciso construir mais do que só a solução tópica de uma crise
episódica. Nem nas UPPs se providenciou ainda algo além da ação
policial. Falta saúde, creche, escola, assistência social, lazer.
O poder público não recolhe o lixo nas áreas em que a polícia é
instrumento de apartheid. Pode parecer repetitivo, mas é isso: uma
solução para a segurança pública terá de passar pela garantia dos
direitos básicos dos cidadãos da favela (...)” (FREIXO, 2010)31
O papel do deputado Marcelo Freixo nesse particular é central porque, hoje, é
importante voz não apenas de oposição eleitoral ao governo Sergio Cabral, mas
alternativa política e ideológica a ele – reconhecida, inclusive, por aqueles que
apresentam as UPPs como mais um episódio do autoritarismo nacional. Pondera
Freixo:
“(...) O que se espera? Que todo o Rio de Janeiro tenha uma UPP?
Que cada favela do Rio de Janeiro, das mais de mil, tenha uma UPP?
Um Estado Militar? Isso não é factível. Então, o debate da Segurança
Pública é muito mais profundo do que o debate das UPPs. O debate
das UPPs em si merece todo um acompanhamento, todo um conjunto
de críticas. Não pode ser visto como algo favorável ou contra, (como)
32
se isso resumisse todo o debate (...)”
A essa altura, seguindo a exposição do presente trabalho, o importante é
destacar que, se bem observado, esse conjunto de críticas constituem a razão para
implementação das UPPs pelo governo Cabral. Elas obedecem a premissa de que a
lógica do “combate ao tráfico”, militarizada, não é capaz de resolver o problema da
segurança. Nesse sentido, é herdeira de uma visão multidisciplinar do tema da
violência que, por sua vez, não esconde sua convicção acerca da necessidade de que
outros serviços públicos cheguem à população desses territórios. Ao menos
formalmente, é necessário, ao ver deste trabalho, considerar que:
“(...) As UPPs trabalham com os princípios da polícia de proximidade,
um conceito que vai além da polícia comunitária e que tem sua
estratégia fundamentada na parceria entre a população e as
instituições da área de segurança pública. A atuação da polícia
pacificadora, pautada pelo diálogo e pelo respeito à cultura e às
características de cada comunidade, aumenta a interlocução e
favorece o surgimento de lideranças comunitárias (...) A presença
ininterrupta da polícia tem sido essencial para que as comunidades se
integrem ao restante da cidade formal. Hoje, muitas comunidades
pacificadas recebem investimentos privados, têm agências bancárias,
TV a cabo por preços acessíveis e serviços públicos essenciais que,
33
antes, não chegavam por causa da violência (...)”
É interessante pensar que as 37 UPPs existentes sob administração do
governo Cabral são presididas por esses princípios e não a despeito deles. No site da
Secretaria de Estado de Segurança, pode-se acessar o site do Banco de Talentos34 da
de policiais corruptos (...)A descrença no poder público frutifica nesse terreno, levando os moradores a
aceitar a proteção e a estabilidade oferecidas pelos chefões do tráfico (...)”. Ver em:
http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,enxugando-gelo,1146086,0.htm.
31
Ver em: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/fz2811201007.htm.
32
Ver em: http://www.portugues.rfi.fr/brasil/20140319-rio-de-janeiro-enfrenta-crise-generalizada-naseguranca-publica.
33
Ver em: http://www.upprj.com/index.php/o_que_e_upp.
34
Ver em: http://www.bancodetalentos.seseg.rj.gov.br/.
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secretaria. Sob o gerenciamento da Subsecretaria de Educação, Valorização e
Prevenção, a formação dos agentes de segurança é tratada nessas mesmas
coordenadas. Vale ainda destacar que essa é uma ação pioneira no Brasil uma vez
que a formação destes agentes em outros estados da federação é de
responsabilidade integral das Polícias. Pode-se, infinitamente, discutir até que ponto o
governo Cabral trabalha “realmente” nessa direção35, mas o interessante é que da
crítica à UPP ou mesmo a PM (toda discussão acerca da ausência de serviços
públicos essenciais, da histórica inabilidade das operações policiais em exercer seu
dever num Estado democrático de Direito para com a cidadania dos moradores dessas
áreas etc) pode-se extrair, sem qualquer alteração substancial, a mesma estrutura
discursiva de sua defesa.
“(...) Os formandos passam a ter aulas com professores civis
contratados por um banco de talentos. Os docentes lecionam
disciplinas como Direitos Humanos, Sociologia, Filosofia e Psicologia,
entre outras (...) É sob essa filosofia que o aluno-oficial Diogo Bocks
está sendo treinado. Prestes a se graduar pela primeira turma formada
depois da reformulação, ele afirma que, durante as aulas, os
professores reforçam a importância de manter uma boa relação com
os cidadãos. Formando em Direito, Bocks acredita que experiência de
professores civis é fundamental para entender o que o povo espera do
36
trabalho da PM (...)”
Não se trata de aderir à UPP ou mesmo a gestão do tema da segurança no
governo Cabral. É do intuito deste trabalho apenas destacar que a crítica das UPPs,
em certa medida, desconsidera que suas premissas constituem os fundamentos
formais para concretização do projeto. Nesse sentido é que uma absurda hipótese
poderia ser ensaiada: até que ponto seus críticos, caso estejam certos, não deveriam
sucumbir junto ao fim da UPP? Para nós, considerando o exposto, deve haver uma
distinção entre a crítica da UPP enquanto tal e sua consecução prática. Isso é, se a
oposição às UPPs se define pelos princípios instituinstes que a possibilitam na prática
ou se tais princípios, apesar de adequados, não encontram junto aos seus
administradores atuais uma aplicação devida. Dependendo do que se decide frente às
perguntas, a relação crítica com a atual política de segurança pode mudar de figura,
acreditamos. Hipoteticamente, por exemplo, a política poderia ser mantida (em seus
fundamentos e referências) sob a guarda das forças que a denunciam, havendo, no
“(...)“(...) o Rio tenta romper com a história e estabelecer um novo tipo de presença do Estado em suas
favelas. Em 2008, o governo estadual do Rio de Janeiro inaugurou as Unidades de Polícia Pacificadora
(UPPs) com o objetivo de recuperar o controle de territórios tomados pelo crime organizado, desarmando
o tráfico de drogas e permitindo a integração social, econômica e política das favelas com a cidade. Essa
pacificação tinha como meta transferir o controle das favelas das gangues de traficantes e milícias para o
Estado brasileiro – literalmente de um dia para o outro – e proporcionar aos moradores o mesmo tipo de
direitos
de
cidadania
de
que
goza
o
resto
da
cidade
(...)”.
Ver
em:
http://www.upprj.com/upload/estudo_publicacao/O_retorno_do_Estado_%C3%A0s_favelas_do_Rio_de_J
aneiro_Banco_Mundial.pdf.
36
Ver em: http://www.sergiocabral.com.br/pm-e-populacao-mais-proximos-com-nova-formacao/.
35
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Anais do VIII Encontro da ANDHEP
ISSN: 2317-0255
entanto, a necessidade de correções com vistas à sua melhor consecução. Essa
hipótese se torna possível, num nível de especulação acerca da realidade social, se
admitimos que os pressupostos que põem a recusa das UPPs em circulação são
equivalentes aos mesmos que visam defendê-la, perpetuá-la etc. Ou seja, nesse
quadro, em última instância, a UPP é resultado do acúmulo na sociedade civil sobre o
tema dos direitos humanos. Se assim, suas insuficiências, poderiam (e, talvez,
devessem) ser pensadas à luz de sua tematização também. Em outras palavras, em
que medida a relação entre a denúncia do “Estado policial” e a UPP, como política
pública de uma secretaria de segurança, são excludentes? Não é possível acolhendo
esse fato histórico, a saber, a constância do “braço armado do Estado” nesses
territórios de modo a não garantir tanto quanto violar direitos de moradores, manter
essa política? Até que ponto a “pacificação”, nos termos dessa política de segurança,
pode responder pela ausência de outras políticas públicas que dizem respeito a outras
secretarias por definição?
4159
Anais do VIII Encontro da ANDHEP
ISSN: 2317-0255
Direitos Humanos e Policia Comunitária: indícios de uma segurança pública baseada
em princípios democráticos
Sérgio da Silva Santos
Universidade Federal de Sergipe
Introdução
O presente artigo tem o objetivo de realizar uma reflexão sobre os pressupostos
teóricos em torno dos direitos humanos, articulando com as produções sobre policiamento
comunitário. Como também, abordar de forma paralela a experiência desenvolvida pela
Policia Militar do Estado de Alagoas, no Conjunto Selma Bandeira, tendo como objeto
analítico a base comunitária atuante naquela localidade. Para esse artigo, utilizamos da
pesquisa bibliográfica e entrevista semi-diretiva com possíveis membros do Conselho de
Segurança Comunitária do Selma Bandeira.
Optamos por essa abordagem por compreender que é de fundamental importância
na atualidade observar as novas dinâmicas desenvolvidas pelas instituições para reproduzir
códigos e significados que dão ênfase aos direitos sociais e democráticos. Nesse sentido, o
policiamento comunitário nos apresenta como um mecanismo importante nesse processo
em que não apenas a policia, mas também as comunidades estão imersas nesta construção
que é complexa e se apresenta como um desafio permanente em nossa sociedade,
marcada fortemente pela cultura antidemocrática e de desrespeito aos direitos humanos.
O Complexo Benedito Bentes é um bairro de Maceió que conta com 27
comunidades, entre elas, estão os conjuntos residências Carminha e Selma Bandeira.
Ambas possuem bases
comunitárias
de
segurança
pública
e
ambas possuem
respectivamente 4 mil habitantes e 9 mil habitantes. O complexo Benedito Bentes, segundo
dados do IBGE (2010) possui uma população de aproximadamente 220 mil habitantes. O
Conjunto Habitacional Selma Bandeira surgiu em meio a algumas politicas habitacionais
desenvolvidas pela Prefeitura Municipal de Maceió no final da década de 1990.
Majoritariamente ocupada por moradores retirados da região do Centro da cidade,
especificamente moradores da área lagunar da cidade, que anteriormente moravam em
4160
Anais do VIII Encontro da ANDHEP
ISSN: 2317-0255
comunidades de pescadores, esse bairro não possui equipamentos públicos suficientes para
a comunidade.
O histórico de violência do Complexo Benedito Bentes, e principalmente os
constantes homicídios ocorridos especificamente no Conjunto Selma Bandeira fez com que
em 2009 o Governo Federal promovesse algumas iniciativas que pudessem minimizar os
crimes ocorridos neste bairro. Desde então, o Complexo Benedito Bentes se tornou parte do
programa “Território de Paz”. A partir de então surgiram as Bases Comunitárias de
Segurança, e a primeira experiência ocorreu no Selma Bandeira.
Discussões em torno dos direitos humanos e policiamento comunitário
Pensar sobre as novas formas de interação social aplicada pelo policiamento
comunitário em Alagoas, na base comunitária do Conjunto Selma Bandeira, localizada no
Complexo Benedito Bentes, nos é entendido como uma forma de refletir sobre as mudanças
que recentemente tomaram formas em Alagoas, como também, nos serve como um
pressuposto para reflexões sobre direitos humanos.
Pensar também sobre esse modelo de policiamento comunitário nos permite
adentrar em um universo inteiramente desenvolvido por práticas controladas sobre as
premissas teóricas dos direitos humanos. Há no contexto de discussão sobre policia
comunitária, variáveis importantes que devem ser discutidas, mas nosso interesse principal
é evidenciar os discursos atualmente hegemônicos no debate entorno dos direitos humanos
e formulações de política de segurança pública, especificamente o modelo de policiamento
comunitário.
O modelo de policiamento comunitário foi desenvolvido para atender localidades
onde a violência estaria descontrolada, como também, onde as relações entre a polícia
tradicional (ostensiva) e as comunidades estivessem desgastadas. É nesse contexto que
surgi o policiamento comunitário, a partir do discurso da diferença, da necessidade de uma
nova forma de se relacionar com um local diferente. Mas, sobretudo está imerso em um
contexto de práticas sociáveis de policiamento e de respeito a normas que pretendem
potencializar as relações de alteridade, ou seja, policia e sociedade, no intuito de dar direção
à humanização e legalidade às ações da policia, como agentes do estado dentro de um
contexto de direitos humanos.
4161
Anais do VIII Encontro da ANDHEP
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Quando nos remetemos à polícia estamos marcando todo um processo de
institucionalização e também de um modus operandi, que nos permite reconhecer o local de
onde se fala e se representa as ações. E a polícia comunitária surge a partir de um discurso
de mudança, de valorização dos direitos humanos e de integração com as comunidades em
que se insere. É nesse contexto que, pensar sobre alteridade nos permite discutir
criticamente sobre o modelo tradicional de policia, e transgredir um universo de
determinismo que permeia a produção de políticas públicas na área de segurança, para
enfatizar as novas práticas desenvolvidas em áreas em que foram introduzidas o modelo de
policiamento comunitário. É pensando no processo de reconhecimento do outro, na relação
policia e sociedade, que as ideias sobre direitos humanos tomam fôlego e força, evocando a
comunidade e as instituições com o objetivo de construir novas formas e novos ritos, e
construindo novos significados no contexto da segurança pública.
A emergência de uma policia voltada para o respeito os direitos humanos, advindas
de um histórico marcado por exemplos de violência e desrespeitos aos direitos humanos,
possibilitou a tentativa contemporânea de “humanizar” a policia. Sendo assim, o governo
brasileiro, fomentou a criação da polícia comunitária. Um modelo baseado no exemplo
americano e japonês, que enfatiza a ação policial em locais específicos e de um modo
diferenciado. Utilizando policiais militares que são capacitados, a partir de cursos, para agir
em áreas determinadas por superiores hierárquicos. A polícia comunitária está presente em
diversas comunidades do país, e esses lugares atendem um critério para que sejam
“beneficiadas” por uma Base Comunitária, que tem como referência um modelo chamado
Koban1 É importante ressaltar que nos Estados Unidos, esse tipo de sistema de
policiamento, foi direcionado em muitos casos, a cidades com altos índices de imigrantes e
um caso famoso é da cidade denominado Santa Ana que habita imigrantes de origem
hispânicas. Uma das perspectivas adotadas nessa cidade se baseava na ideia de ensinar a
língua inglesa para os imigrantes ilegais, para que houvesse por esses, um entendimento
das leis, culturas e hábitos do país e da cidade especifica, com objetivo de diminuir os
índices de ações conflituosa com as leis. Sobre essa experiência de uma policia de
diferença, podemos nos remeter a David H. Bayley e Jerome H.skolnick,
Parece que, quando está envolvida a comunidade de Santa Ana ou, melhor,
as subcomunidades dentro da comunidade – os empresários, os hispânicos,
os negros, as mulheres, os idosos – a combinação singular do valor
1
Por sistema Koban entende-se uma modalidade de policiamento peculiar do Japão. Os Kobans são pequenos
postos policiais localizados preferencialmente em áreas urbanas e servem a comunidades na preservação da
ordem pública
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„orientação para a comunidade‟ e do valor „alta tecnologia‟ sugere uma
história rara e retumbante de sucesso da polícia (BAYLEY; SKOLNICK,
2002, p. 62).
A ideia de política para a diferença presente no caso acima, nos possibilita pensar
que diante do sucesso dessa política de segurança, houve, em menor ou maior sentido, um
processo de alteridade, o que ocasionou a possibilidade de redução de crimes. Permitimosnos pensar que os significados foram negociados e contextualizado dentro de uma
conjuntura de redução de conflitos diante das leis e dos “costumes”. Para nosso objeto de
análise, é possível identificar elementos semelhantes e que fortalecesse nossa ideia de que
há um processo de alteridade no campo a partir de uma ótica que valoriza os direitos
humanos, ou seja, a participação dos moradores da comunidade e das instituições
presentes na comunidade no processo de construção de novas dinâmicas e relações com a
segurança pública. Entendemos e concordamos com a autora Ruth Vasconcelos (2011) que
afirma que a efetividade prática da democracia social e política garante uma convivência
social pautada no respeito à liberdade, à igualdade e à justiça social, assim como introduz o
elemento da responsabilidade social como um dever extensivo a todos os cidadãos. (p.25)
Para que esse processo de efetivação dos direitos humanos seja garantido no
contexto das Bases Comunitárias de segurança é preciso que os policiais e a comunidade
compreendam o sentido e as dinâmicas que emanam das práticas valorizadas nas reflexões
sobre direitos humanos, sendo assim, o estado deve garantir esse acesso de forma
indiscriminada e igual para os atores sociais envolvidos nesses cenários. O conceito de
policiamento comunitário para o Ministério da Justiça nos diz o seguinte:
Policiamento comunitário é um conceito de segurança pública que se baseia
na interação constante entre a corporação policial e a população. Os
policiais comunitários farão ronda na mesma região e serão capacitados em
temas como direitos humanos, ética e cidadania – construindo, assim, uma
relação de confiança com a população (MINISTÉRIO DA JUSTIÇA)
O conceito nos apresenta uma forma de se pensar o policiamento comunitário, ou
seja, passando pela capacitação de policiais na área de direitos humanos, para que a
comunidade possa confiar na mesma como detentora de um significado marcado pelas
relações de respeito e reconhecimento de moradores que possuem culturas diferentes,
cotidiano diferente e formas de compreender a vida diferente, e que de certa forma ver a
policia de forma diferente. Sendo assim, são as perspectivas dos direitos humanos que dar
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luz as novas relações, e que toca de forma incisiva a sociedade, que historicamente vive em
nosso país com um imaginário violento sobre a polícia. O que o policiamento comunitário
enfatiza no cotidiano é justamente o que Vasconcelos (2011) enfatiza:
A construção da vida em coletividade, dentro de parâmetros pacificadores,
pressupõe a comunhão de leis, normas e regras, bem como a pactuação de
códigos, crenças e valores que orientem respeito e responsabilidade em
relação ao outro e si mesmo. (p.27)
A garantia da participação da comunidade em decisões no que concerne a praticas
de segurança na comunidade é a garantia de que os valores, crenças e códigos,
construídos por determinada comunidade sejam respeitados, como também que esses
estejam expostos a uma possibilidade de resignificação. Esse mesmo processo quando
invertido a policia também deve estar em jogo, ou seja, representações violentas, que
desrespeitam os pressupostos dos direitos humanos e que são exalados pela policia
também devem estar expostos a uma resignificação, com o objetivo de serem sanados. É
nesse contexto e para realinhar as relações entre comunidade e policia que são previstos no
processo de construção de policiamento comunitário em determinada localidade a
efetivação de fóruns, como por exemplo, o Conselho Comunitário de Segurança. Esses
conselhos são espaços de diálogos e negociações sobre códigos, crenças e valores, e que
tem como objetivo processar e efetivar as perspectivas dos direitos humanos.
Base comunitária do Selma Bandeira: uma analise do objeto a partir dos direitos
humanos.
O policiamento comunitário em Alagoas está presente em cinco bairros da capital: o
Complexo Benedito Bentes, o Clima Bom, o Vergel do Lago, o Jacintinho e Cidade
Universitária. Esses bairros foram “contemplados” por uma base comunitária de policia, por
estarem dentro do contexto e dos pré-requisitos básicos para tal aquisição, ou seja, segundo
os dados estatísticos, são ou foram os mais violentos, principalmente casos de violência
letal e onde o tráfico de droga se concentra mais frequentemente. E um dado que não se
pode esquecer, são considerados bairros de periferia. Nesse sentido, ser um bairro de
periferia nos parece o dado mais importante, já que observamos atualmente índices altos de
4164
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problemas sociais nessas áreas. Do ponto de vista analítico podemos compreender que a
periferia é diferente, porque dentro de um contexto de políticas públicas observamos que há
uma necessidade de contextualização especifica para essa localidade.
Nesse sentido, a ideia de diferença está presente no pensamento dos que
reproduzem o policiamento comunitário. Acompanhando a polícia comunitária implantada no
Benedito Bentes em 2009, especificamente no Conjunto Selma bandeira, podemos observar
a partir da historia oral, condições de vida que são comuns a lugares que carregam marcas
de periferia, ou seja, está localizada longe do centro, não ter boas condições de
infraestrutura, etc. Nossas entrevistas com moradores e representantes do conjunto
constatam essas questões, como também relatam as diferenças temporais do antes e do
depois da instalação da base comunitária nessa localidade. Segundo a liderança
comunitária do conjunto:
(...) o conjunto tinha ruas de terra, não havia pontos de ônibus
determinado. Havia muitos roubos e assaltos, e vários homicídios,
havendo mais ou menos de seis a oito homicídios por semana. O conjunto
foi desvalorizado, todos queriam sair daqui, vendes as casas ou alugar.
Foi perdendo valor. As pessoas não ficavam na porta de casa, e dormiam
cedo, havia muitos tiros.(Entrevista concedida pelo Líder comunitário do
conjunto Selma Bandeira em dezembro de 2012)
Esse trecho acima, nos apresenta uma serie de problemas enfrentados por essa
comunidade, a presença do estado é mínima, ou nenhum. Os direitos fundamentais não
foram garantidos e o direito a segurança foram negados totalmente. A sensação de medo,
de insegurança foram marcas desse lugar. Nesse sentido, podemos pensar na
impossibilidade de ter nessa localidade a presença de equipamentos que valorizam o ser
humano? Que marque a sociedade por códigos dos direitos humanos? Pensamos que sim,
e é nessa perspectiva que pensamos a instalação da uma base comunitária, como um
mecanismo de reprodução de ações que evidenciam os direitos humanos e a democracia. A
presença do estado é moldada nesse caso pela presença da policia comunitária, com
preceitos que passam pela resolução de problemas de variadas espécies, ou seja, do ponto
de vista objetivo, de segurança, como também de uma possibilidade de articular outras
instituições para a resolução de problemas de infraestrutura, como iluminação, campanhas
de saúde, etc.
Outro importante dado colhidos a partir das entrevistas são as diferenças da ação
policial no cotidiano do conjunto a partir da implantação da base comunitária. Essa diferença
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pode ser notada em duas entrevistas concedidas por moradores. Segundo o líder
comunitário:
(...) a policia só vinha aqui quando morria gente. Ou então, quando a viatura
da policia parava todo mundo corria, hoje não é mais, há uma diferença
muito grande daquela policia repressiva e da policia comunitária. Há um
respeito muito grande da comunidade pela policia, e da policia pela
comunidade. Ela tá mais presente, faz visitas. (Morador do Conjunto Selma
Bandeira, 2012)
A fala do morador reflete justamente o que nos propomos a refletir, a participação e
as mudanças nas ações policiais são baseadas em preceitos a partir da ótica dos direitos
humanos, ou seja, o respeito ao ser humano e construção de um processo de alteridade.
Sendo assim, pensamos que a comunitarização do serviço de polícia vem para corrigir os
erros cometidos pelo praticas policias tradicionais ou autoritárias, que tanta antipatia causa
as comunidades que necessitam diretamente do serviço policial. A transformação do
comportamento, tanto da policia, através da policia comunitária, e da comunidade, a partir
das reivindicações por uma policia que respeite os direitos humanos possibilita o avanço no
dialogo e nas garantias de participação direta do cidadão em eventos que antes eram
apenas conduzidas pela polícia.
No que concerne a questão do policiamento comunitário e dos direitos humanos,
assim como, a participação da comunidade, podemos encontrar construções imaginarias
que nos dão elementos para uma discussão complexa sobre a relação entre polícia
comunitária e comunidade. Sendo assim, destacamos a entrevista de um morador do
conjunto Selma Bandeira para discutir sobre essa questão. Perguntado sobre a função da
polícia o morador respondeu da seguinte forma:
(...) A função da policia era pra pegar gente que não merecia conselho e
meter o cacete, porque se for pra passar a mão por cima, cabou-se. Pega
hoje, solta amanha, ele vai fazer a mesma coisa. Pegou, roubou, bota aqui.
Ah...amanha solta! Num vai fazer a mesma coisa? Volta pro mesmo lugar.
Vai fazer o mesmo roubo, vai matar, vai pintar o escambal, eu acho que
meu acordo era esse! Eu acho que sou da lei de antigamente. (morador do
Selma Bandeira, 2012)
O pensamento do entrevistado nos mostra um ponto importante da analise sobre
direitos humanos. Ou seja, como podemos a partir de mecanismos de reprodução de
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ISSN: 2317-0255
praticas de direitos humanos contribuírem para a efetivação de direitos. O policiamento
comunitário é um instrumento fundamental para tal. Como? O policial que trabalha na base
comunitária não deve reproduzir em suas ações no cotidiano, práticas violentas e
desrespeito ao ser humano. Ao produzir ações violentas o policia estará legitimando o
imaginário ontológico da policia que o cidadão guarda em seu pensamento, ou seja, uma
policia que bate e não valoriza o dialogo. O entrevistado no final de sua fala, diz que seu
pensamento é de antigamente, ou seja, mesmo defendendo o uso da violência, ele
reconhece que esse seu modo de pensar não corresponde com a realidade em que ele vive
no conjunto Selma bandeira. Esse reflexo de admitir que seu pensamento “é de
antigamente” acontece justamente por ele não presenciar e nem relatar na entrevista atos
de violência por parte dos policiais que trabalham na base comunitária do Conjunto Selma
Bandeira. Nesse sentido, compreendemos que o papel da comunitarização do policiamento
denota uma responsabilidade em efetivar os pressupostos dos direitos humanos.
O papel do imaginário social na efetivação dos direitos humanos passa também pela
compreensão de que as ações, seja dos policiais comunitários ou da comunidade, estejam
sempre em vigilância. Não podemos negar a existência de fatos que podem levar ao
desrespeito dos preceitos dos direitos humanos. Sendo assim, cabem às instituições que
fazem parte dos mecanismos de reprodução dos direitos humanos, capacitar, e promover
atividades que possam potencializar as praticas que humanizam as relações.
As reflexões em torno da policia comunitária são cada vez mais influenciadas por
novos olhares, novos tipos de abordagens. Esse fato dimensiona uma maior problemática
sobre o tema e constrói definitivamente vários pontos de vista. Pensar sobre policia e
sociedade, dentro de uma perspectiva dos direitos humanos se faz necessário para nossa
sociedade, que é marcada por uma cultura de desrespeito aos direitos fundamentais e
humanos. As políticas públicas na área de segurança pública segue esse sentido
avançando, já que propõe um olhar a partir dos direitos humanos e da democracia.
Um ponto importante a ser discutido são as relações de disputas entre a polícia
comunitária e jovens moradores que estimulam o surgimento de novas formas de relações.
A
compreensão desse fenômeno nos possibilita
também realizar propostas de
reformulações em alguns pontos de políticas públicas na área de segurança, e discutir sobre
novas perspectivas teóricas que permite uma abordagem diferente e alternativa as formas
deterministas de analises. O local onde a base comunitária está localizada trata-se de um
terreno em que muitos jovens realizam atividades esportivas e de lazer. Por quê? O
Conjunto Selma Bandeira não possui equipamentos de lazer, ou praças esportivas. Sendo
assim, o único local em que há possibilidade pratica esportiva é em frente a Base
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comunitária. Antes havia um estranhamento entre jovens e policiais já que os segundos,
ainda alimentavam o pensamento de que naquele local seria uma área militar. Esse
pensamento de área militar acabou por ocasionar um pensamento de estranhamento e de
disputa, que foram negociados a partir do entendimento e dos significados presentes no
local.
Atualmente o espaço é usado por jovens moradores de forma livre e respeitosa. O
avanço no pensamento dos policiais em relação a esse fato especifico, se deu a partir da
compreensão de que na comunidade há códigos que devem ser interpretado pelo estranho,
ou seja, quem chega depois ao lugar. O policiamento comunitário é regido pelos preceitos
dos direitos humanos e dessa forma, deve refletir cotidianamente sobre os valores culturais
do local em que está inserido. O reconhecimento de que há problemas a serem enfrentados
deve está acima de um significado ontológico.
Conclusão
A policia comunitária desenvolvida pela Policia Militar de Alagoas, carrega em seu
bojo elementos fundamentais dos direitos humanos, ou seja, o respeito a diferença e a
participação democrática. Esses elementos são fundamentais para o enfrentamento de
dificuldades ocasionadas historicamente por um tipo de policiamento voltado exclusivamente
para a repressão.
Em 2009, com a instalação da base comunitária do Conjunto Selma Bandeira, os
moradores puderam participar diretamente do processo de policiamento, dando sugestões,
dialogando e discutindo qual a melhor forma de prevenção a crimes e resoluções de
problemas. Em torno dessas possibilidades, pudemos observar um novo comportamento,
tanto da policia como da comunidade, e essas mudanças são claramente elucidadas a partir
dos discursos que são emanados pelos direitos humanos.
As entrevistas que foram realizadas com moradores do Conjunto Selma Bandeira
mostram como há esperança na comunidade que esse tipo de policiamento tenha sucesso,
como também demonstra que esse tipo de ação policial é de fato importante e eficiente, se
não um tipo ideal de policiamento. O cidadão se torna, nesse caso, o principal ator no
processo de mudança e no processo de elaboração de políticas de segurança, indica os
problemas e possibilita o dialogo permanente.
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Doutro lado, temos a instituição que diante desse processo aumenta sua
responsabilidade, como detentora da legitimidade do uso da forma e que se apropria de
preceitos de direitos humanos para qualificar o serviço para a comunidade. Esse
deslocamento aumenta a responsabilidade como também valoriza o âmago da instituição.
As experiências de policiamento comunitário em Alagoas tem mostrado que a
sociedade não permite outro tipo de ação da policia se não em função da ótica dos direitos
humanos. Experiências recentes em outros estados também segue a mesma dimensão.
Dessa forma, compreendemos que não há como pensar em redução de crimes, sem falar
em mudança no paradigma no policiamento, sendo essas mudanças sempre baseada em
preceitos de democracia e direitos humanos.
Bibliografia
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Reynaud; revisão técnica de Luiz Roberto Salinas Fortes. Rio de Janeiro: Paz e Terra. 1982
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construindo
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comunidades. Florianópolis: Insular, 2009.
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PINC, Tânia Maria. Treinamento Policial: um meio de difusão de políticas públicas que
incidem na conduta individual do policial de rua. 2011. Tese (doutorado) – Universidade
de São Pulo, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. São Paulo.
SKOLNICK, Jerome e BAYLEY, David H. Policiamento comunitário: Questões e Praticas
através do Mundo. Trad. Ana Luísa Amêndola Pinheiro. São Paulo: Editora da
Universidade de São Paulo, 2002
TROJANOWICZ, Robert; BUCQUEROUX, Bonnie. Policiamento comunitário como
começar. Rio de Janeiro: Policia Militar do Estado do Rio de Janeiro. 1994. P. 4.
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ISSN: 2317-0255
PREVENÇÃO À VIOLÊNCIA E REDUÇÃO DE HOMICÍDIOS DE ADOLESCENTES E
JOVENS NO BRASIL / organizadores: Raquel Willadino, João Trajano Sento-Sé, Caio
Gonçalves Dias, Fernanda Gomes. – Rio de Janeiro : Observatório de Favelas, 2011.
VASCONCELOS, Ruth; PIMENTEL, Elaine. As faces da segurança pública e dos direitos
humanos em Alagoas. Ed. EDUFAL, 2011. Maceió-Alagoas.
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ISSN: 2317-0255
Violência na Escola: segurança pública na busca pelos direitos humanos
Antonio Mateus de Carvalho Soares1
1-
O esgotamento da escola contemporânea
A escola contemporânea passa por um processo diluidor que se expressa pelo
esvaziamento da formação cidadã, tanto ao que se refere à ausência da promoção de um
ensino crítico, como à ineficácia da preparação de adolescentes e jovens para a inserção no
mercado de trabalho e para a efetivação dos direitos humanos. Situações que nos últimos anos
levaram a um descrédito social da escola, implicando no esgotamento da autoridade da
instituição, que passa a se caracterizar como uma instituição mais vulnerável ao crescimento
da indisciplina e mesmo da violência juvenil, que acabam se transformando em atos de
infração, assim como em atos de alta comoção social, como tentativas de homicídio e
homicidios2. Contexto que compromente a implicação desta instituição na luta pelos direitos
humanos como forma de liberdades básicas de todos os seres humanos, incluindo a liberdade
de pensamento, de expressão, e a igualdade perante a lei.
A vulnerabilização da escola e a manifestação de atos incontroláveis de conduta mais
violenta entre estudantes adolescentes e jovens mobilizou uma ação pública que articulou a
escola a instituições da ordem ligadas à segunça pública (delegacia e companhia de polícia
militar), com o objetivo de inibir, controlar e dar proteção às escolas, esta ação ao mesmo
tempo que indica uma “consciência política” em relação a violência na escola, demonstra a
intergração de órgãos na busca pelos direitos humanos.
Como produto deste processo diluidor de capturas e subversão de funções constatamos
a crise de autoridade pela qual passa a instituição escolar. A deslegitimação da autoridade das
instituições sociais, sobretudo a escola e a família, perante o adolescente e o jovem se institui
ou pelo excesso da presença dessas instituições na vida deles, o que pode gerar o
enfrentamento e a respectiva desobediência reiterada das ordens; ou pela ausência destas
instituições, como exemplo das famílias em que os pais trabalham muito, na perspectiva de
manter um determinado padrão de vida para seus filhos, e são impossibilitados de terem uma
relação com maior acompanhamento e influência disciplinar e afetiva na vida dos filhos. Em
ambas as situações, promovidas pelo excesso ou pela ausência, existe a possibilidade do
estabelecimento de uma convivência fragmentada, com possível influência no comportamento
e na percepção que este adolescente terá em relação ao controle e à autoridade familiar,
desdobrando-se na escola.
Doutor em Ciências Sociais pela Universidade Federal da Bahia – UFBA; Professor da Universidade Federal de
Alagoas – UFAL; Pesquisador do Observatório Interdisciplinar de Segurança Pública da UNIFACS; Líder do Grupo
do Pesquisa- Violência, Instituições Sociais, Adolescência e Juventude.
2
Como expressam as noticias veiculadas no jornal A Tarde: “Aluno dá facada no pescoço de professor em
Cajazeiras” (ALUNO..., 2010).; “Adolescente de 15 anos é atingido com um tiro dentro de escola”
(ADOLESCENTE..., 2010).
1
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Conforme Bauman (2004), a família contemporânea passa por reconfigurações de
papéis, um momento de complexo ajustamento, tanto em seu modelo como em sua
representação de autoridade. A inserção da mulher no mercado de trabalho e a própria
mudança de mentalidade quanto às funções tradicionais no ambiente doméstico tiveram efeitos
na alteração da família. Os ajustamentos que a família vem passando recaem no âmbito de
outras instituições sociais e expressam um processo de transição que deve ser compreendido
através das suas novas inter-relações com o conjunto da sociedade. Para Cynthia Sarti (2009),
as mudanças ocorridas na família se associam à perda do sentido de determinadas
convenções e, consequentemente, às alterações de funções preestabelecidas, que foram
completamente redirecionadas por novos princípios de natureza econômica.
A tentativa de restaurar a autoridade das instituições, enfraquecida por um conjunto de
alterações de valores (BAUMAN, 2004), através da negociação, como estratégia de
aproximação e estímulo ao diálogo entre pais e filhos, ou entre professores e alunos,
estabelece uma relação horizontal entre instituição e indivíduo, na qual muitas vezes o
indivíduo, adolescente, não está preparado para vivenciar e compreender a relação
estabelecida como se ele estivesse no controle da situação e pudesse influenciar na decisão
da família ou da escola. O respeito, como uma das formas de impor a legitimidade institucional,
é também comprometido quando a postulação de limites aos adolescentes e jovens é
desobedecida, promovendo o desrespeito da ordem e a deslegitimação, que acarretam a crise
de autoridade institucional e a não garantia dos direitos humanos. Conforme Dubet (2004), em
relação à escola, os professores e as autoridades são desvalorizados, ridicularizados,
deslegitimados como atores sociais, uma vez que os alunos concluem que têm direito a
defender-se, usando a violência. A ausência de identificação com a escola é mais que uma
simples desvinculação e falta de identificação com seus valores: vincula-se à desvalorização e
desapreço e ao não reconhecimento dos mediadores dos conflitos escolares.
A fragilização do princípio da autoridade em instituições sociais como a escola e a
família amplia a permissividade juvenil, que no ambiente escolar aparece através de reiteradas
práticas indisciplinares. A autoridade passou a ser desconsiderada e com ela o respeito e a
subordinação
às
regras
institucionais.
Nesse
sentido,
embora
próximos
em
suas
consequências, a noção e o sentido de autoridade difere do de poder. Ambos requerem a
obediência, mas o poder se utiliza da violência, e a autoridade se estabelece mediante o
respeito aos valores e à moral. A obediência, no caso do poder, é uma reação ao medo, e no
caso da autoridade, uma resposta à confiança. De acordo com o pensamento de Arendt (1992,
p. 240, grifo do autor).
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A perda de autoridade, iniciada na vida pública e política para desembocar na
vida privada, está no cerne da crise do mundo moderno, crise que se reflete
também na educação. Uma vez que a autoridade está associada com a
‘responsabilidade pelo curso das coisas no mundo’ [...]. A perda de autoridade,
ligada à rejeição da responsabilidade é sintoma de uma insatisfação com o
mundo.
A autoridade se origina no fortalecimento da confiança às instituições basilares, logo a
perda de autoridade significa também uma perda de confiança em relação à escola e à família.
Os modelos dessas instituições sociais parecem em geral não atender às novas linguagens
dos jovens, que se metamorfoseiam a cada instante, reproduzindo inquietações e crises de
valores, intercedidos por profundas alterações econômicas, científicas e tecnológicas que
estimulam a diluição dos valores tradicionais. Nessa transição, a família e a escola não
conseguem acompanhar as mutações juvenis e acabam perdendo representação e força de
comando, expressando dificuldades de comunicação, no sentido da linguagem e no
entendimento dialógico com os jovens, estabelecendo o enfrentamento conflituoso ou a
conivência como forma de relação.
A crise de autoridade das instituições enfraquece a família e a escola, fragiliza as
normas e os valores tradicionais e tem por consequência a desnormatização da vida social. As
famílias, que buscam incorporar os novos modelos da sociedade, deixam de lado o exercício
das disciplinas e dos controles preventivos e passam a adotar uma formação marcada pela
permissividade e até mesmo pela conivência. Na família esse comportamento se expressa na
falta de acompanhamento rigoroso do cotidiano dos adolescentes, não conhecendo seus
amigos e os lugares que frequentam, e, em alguns casos, deixando de corrigir determinados
vícios como uso abusivo de álcool ou outros tipos de drogas. O contato estabelecido durante a
pesquisa de campo deste estuto, nas escolas, deixa claro que a permissividade se expressa na
falta de medidas preventivas por parte da instituição, como controle ao acesso à escola,
aplicação de advertências para alunos que praticaram determinado tipo de indisciplina, falta de
cobrança da frequência e da assiduidade do aluno, ausência de controle no comprometimento
da entrega de trabalhos e avaliações. A relação de conivência se expressa na ausência de
uma conduta ativa por parte de professores e por parte da própria instituição escolar, que não
enfrentam aqueles alunos que possuem relação com o tráfico de drogas, participam de
gangues e já tenham se envolvido com situações de violência ou crime. Os casos de omissão
por intimidação, assim como a permissividade em algumas situações de escolas com elevado
índice de criminalidade, podem denotar receio ou medo do professor ou da instituição em
relação a represálias por parte de alunos, como relatou a diretora de uma das escolas públicas
pesquisadas: “a boa convivência é a melhor resposta para a violência na escola, pois ela pode
ser utilizada como própria forma de promover a nossa segurança”.3
3
Entrevista realizada com uma diretora de escola pública, que não deseja ser identificada, no dia 12 de setembro de
2011.
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Como instituições basilares da sociedade, a família e a escola operam na base da
reprodução das normas de civilidade e dos princípios de obediência e respeito. Quando sua
legitimidade entra crise, o descontrole dos comportamentos juvenis ganha força e passa a
reproduzir
agressividades.
“desinstitucionalização
do
A
crise
social”,
nas
que,
instituições
conforme
revela
Dubet
(2006),
uma
situação
aparece
com
de
as
transformações que ocorrem na sociedade e resulta em um esgotamento do programa
institucional,
que
passa
a
transmitir
responsabilidades
e
decisões
tradicionalmente
institucionais para a ação do próprio indivíduo sobre si mesmo. O problema advém do fato de
que muitas vezes o jovem não se encontra preparado para decidir sobre suas próprias ações,
instituindo uma crise de autonomia na condição juvenil.
O esgotamento institucional, como analisa Dubet (2006), acontece não porque as
instituições estejam em declínio, mas pelo fato de terem sua função de canal de mudança
social capturada e comprometida com a reprodução das novas tendências da sociedade
capitalista. Segundo Pais (2003, p. 316), “seria mais apropriado falar em uma ‘reinstitucionalização permanente’, uma vez que as instituições revelam uma propensão para a
crise, encontrando-se em uma permanente reconstrução”. As novas exigências demandadas
pela sociedade moderna e pelo Estado neoliberal subvertem as funções tradicionais dessas
instituições e repassam responsabilidades que não dependem apenas delas, a exemplo da
manutenção da frequência do adolescente na escola, controle da evasão, inserção do jovem
no mercado produtivo e a vigilância contínua para que os jovens não se envolvam com a
criminalidade e com o tráfico de drogas. Além da subversão das funções tradicionais e da
incorporação de novas responsabilidades externas, essas instituições e seus principais
agentes, pais e professores, têm suas autoridades fragilizadas, tendo em vista que suas
representatividades institucionais dão indícios que não acompanharam a dinâmica da
sociedade e seus desdobramentos no comportamento dos adolescentes e jovens.
2-
Dificuldade da escola no estabelecimento de vínculo social
As alterações sociais refletem-se nas funções sociais clássicas da escola e da família.
Os novos contornos apontam que a escola, tanto a pública como a privada, atendendo aos
princípios neoliberais do mercado, passam a dar mais relevância à formação de mão de obra
para atender a um mercado de trabalho cada vez mais seletivo e exigente, e a família, em seu
tenso processo de ajustamento, esforça-se para manter o seu papel de transmissora de um
padrão de vida digno para seus dependentes. Situações que pressionam os desafios destas
instituições, que passam a ter dificuldades para reproduzir os vínculos sociais em instâncias de
vida coletiva, inclusive no interior das famílias.
A noção de “vínculo social” utilizada encontra ancoragem no pensamento de Mauss
(2003), que defende que o vínculo social se estabelece através das relações de troca
4174
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instituídas de dar, receber e retribuir, em um sistema básico de relações e intercâmbios sociais,
medidas por papéis e representações pessoais, fortalecidas pela convivência, que é a condição
fundamental para relações efetivas de comprometimento e parceria entre as pessoas, e entre
essas e as instituições sociais. Em sua análise sobre o vínculo social, Mauss (2003) afirma que
a dádiva é uma das ações mais relevantes na constituição do vínculo social. Ela se define
através da obrigação de dar, receber e retribuir, instituída anteriormente aos interesses
contratuais e às obrigações legais. Mesmo a dádiva sendo um sistema de obrigação paradoxal,
que aguarda a “retribuição”, ela é fundamental “para acionar um conjunto de inter-relações que
ligam os indivíduos e os transformam em atores propriamente sociais” (MAUSS, 2003, p. 54),
instituidores do vínculo social que ocorre no interior das práticas sociais. Segundo Alain Caillé
(1998), o paradigma da dádiva permite pensar em um aspecto constituinte e intangível das
relações sociais, aquilo que na relação entre as pessoas escapa a qualquer “cálculo de
equivalência”, e é relevante ao surgimento de uma “obrigação moral” entre os envolvidos; este
autor pensa o vínculo a partir da singularidade que as pessoas lhe atribuem a partir da dádiva.
A dificuldade no estabelecimento de vínculos entre as instituições, escola e família, e
em alguns casos entre a escola e a comunidade, se manifesta na ausência de parcerias e
mobilização entre essas instituições para a resolução de problemas comuns, como a própria
violência na escola. A pesquisa de campo nas escolas de Salvador deixou evidente, com base
nas entrevistas realizadas com professores, diretores e com familiares de alunos, que a família
não legitima a escola enquanto instituição de transformação social, e, por outro lado, a escola
atribui os problemas vivenciados em seu cotidiano à ausência da família na formação dos seus
filhos, contextos que se polarizam e impossibilitam a retribuição como pressuposto para o
estabelecimento da relação de dádiva e vínculos entre essas instituições.
Para Luc Boltanski (2000), o vínculo nos termos da reciprocidade e das equivalências
da justiça se constrói em uma dimensão em que as instituições devem entrar em acordo
quanto a um princípio comum de julgamento e avaliação. Na relação estabelecida entre escola
e família, percebemos que o julgamento e as avaliações de responsabilidades são distorcidas,
e um entendimento de qual das duas instituições possui mais responsabilidades no
desempenho formativo do adolescente. Para Boltanski (2000), a referência à justiça é o
elemento central nas relações vinculativas, e a através dela há que se promover uma relação
entre “disputa” e “acordo”. Há dificuldade de vinculações entre a família e a escola; há disputa,
mas não há acordo. A disputa se estabelece quando escola e família competem em relação a
qual das instituições é a maior culpada pelos comportamentos indisciplinados praticados pelos
adolescentes, e, dessa forma, o jogo de culpabilização esvazia o sentido do acordo. E a
discórdia gerada pelo jogo da culpa não evolui para uma interpretação da solução do conflito e
para a construção do acordo.
A escola contemporânea apresenta um ambiente de convivência caracterizado por
incertezas, sobretudo ao que se refere à falta de eficácia no desempenho da disciplina escolar
4175
Anais do VIII Encontro da ANDHEP
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dos estudantes. Tal afirmativa se evidencia quando percebemos que o comportamento
estudantil cada vez mais expressa atos de indisciplina e desrespeito às normas de convivência,
exibidas nas estatísticas da Ronda Escolar, que registraram 488 ocorrências nas escolas de
Salvador em 2012, e 433 ocorrências em 2013, mais de dois chamados por dia, lembrando-se
que o apoio policial é solicitado apenas quando a instituição escolar não consegue controlar o
ato ocorrido.
3-Escola e a regulação da ordem social
Os princípios do mercado de caráter neoliberal, de eficiência e produtividade que
controlam a sociedade contemporânea e direcionam a reestruturação do mercado de trabalho
são encubados pela ação de um Estado cada vez mais implicado no alinhamento de diretrizes
para o controle social, possuindo impacto em todas as instâncias sociais. Nos últimos anos, a
defesa da “lei e da ordem” foi propagada como estratégia para minimizar os efeitos da
insegurança, que cresceu no mundo nos últimos anos. Nos Estados Unidos, segundo Loïc
Wacquant (2001), a aplicação da ordem social pela força (via maximização do sistema
carcerário) seria o “antídoto” divulgado por esse país para um maior controle da "violência
urbana" e da "delinquência juvenil". A ordem pela força seria aplicada mesmo quando os
índices de criminalidade não fossem elevados, promovendo uma política de “tolerância zero”.
O desenvolvimento desta “política da ordem” (WACQUANT, 2001), através de uma
eficácia no controle social pelo sistema de segurança, se ampliaria ao mesmo tempo em que
reduziria os investimentos no âmbito da assistência social, implementada por políticas sociais
oriundas do Estado do Bem-Estar Social, que seria substituído por um Estado Penal.
A escola passa a ter influência contraditória na regulação da ordem social, uma vez que
ela vivencia um conjunto de esgotamentos e crises produzidos pela mesma política econômica
que requer o seu serviço. Mesmo assim a escola passa a ser encurralada a promover a
regulação da ordem social (aprovação automática de alunos, gestão de fluxos de
escolarização, submissão a macroavaliações nacionais e pela comprovação de índices de
qualidades, como o Exame Nacional do Ensino Médio – ENEM e Índice de Desenvolvimento
Educacional – IDEB), direcionada por princípios liberais de avaliação que não buscam a
transformação social, mas o ajustamento de sua política econômica.Tendo como uma de suas
“funções” a preparação crítica para a cidadania, para a transformação social e para a
confirmação dos direitos humanos, a escola é contraditoriamente também responsável por
produzir os mecanismos que estabelecem a regulação da ordem social, através da obediência
das diretrizes neoliberais e da internalização em adolescentes e jovens de regras, valores e da
moral.
O conjunto de situações apresentadas em relação à escola – e seu ajustamento ao
novo ordenamento liberal – subverte princípios da cidadania, produz, muitas vezes e
paradoxalmente, uma crise de autoridade e dificuldades de estabelecimento de vínculos, ainda
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que se observe, ao mesmo tempo, a ação de fatores que produzem na escola um campo fértil
para a manifestação de diversas formas de desobediência e irrupções de agressividades, como
veremos adiante nos próximos itens.
4-Violência na escola e segurança pública
No Brasil, a questão da segurança pública aparece como um dos principais problemas
da sociedade contemporânea, o que mobilizou, na última década, o surgimento de uma rede
de Observatórios de Segurança Pública no país.4 Na Constituição de 1988, a Segurança
Pública é apontada como um direito social, uma das ações necessárias para a consolidação da
democracia em nosso país, levando em conta o pacto federativo e as responsabilidades dos
entes federados (União, Estado e Município). Conforme o texto constitucional em seu Artigo
144, “a segurança pública é dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida
para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio”
(BRASIL, 1988).
Para a Secretaria Nacional de Segurança Pública (SENASP), órgão normativo
vinculado ao Ministério da Justiça, “a segurança pública é uma atividade pertinente aos órgãos
estatais e à comunidade como um todo, realizada com o fito de proteger a cidadania” (BRASIL,
2013c). A questão é que tanto as garantias constitucionais como os intentos da Secretaria
Nacional na promoção de uma segurança que atenda às necessidades essenciais de todo ser
humano não se efetivam no âmbito das relações sociais. O aumento vertiginoso dos índices de
criminalidade e da violência, amplia o sentimento de insegurança vivenciado pela população
nos mais diversos lugares: no percurso do trabalho, na escola, no campo de futebol, em casa,
na praça. A falta de segurança rompe as mediações necessárias ao direito de uma cidadania
civil e de proteção à vida.
Estar em segurança é uma qualidade do que está seguro; e seguro é estar livre
do perigo. Ao aglutinar-se pública – é o que é destinado ou pertencente ao
povo, à população. Portanto a expressão segurança pública implicaria em
manter a todos livres do perigo. E qual perigo? Ser vítima de um ato violento,
da violência da natureza ou de acidentes, e da violência advinda da ação do
homem, neste caso é o constrangimento físico ou moral; uso da força; coação
em ato contrário ao direito à justiça. (GOMES, 2008, p. 14).
A complexidade em torno da promoção da segurança pública no Brasil se articula a um
conjunto de déficits cívicos, e se expressa pelas dificuldades na gestão dos próprios órgãos de
segurança, que além de heterogêneos (complexo sistema jurídico e sistema policial – federal,
militar, civil, guarda municipal), são desafiados pela amplitude e diversidade territorial do país,
o que acarreta, em dimensão nacional, a falta de unidade e de integração entre os órgãos de
4
Observatório Interdisciplinar de Segurança Pública do Território Bahia (OBSPBA); Observatório de Segurança
Pública de Vitória; Observatório de Segurança Pública do Distrito Federal (OBSPDF); Observatório de Segurança
Pública de Santa Catarina (OBSPSC); Observatório de Segurança Pública de Canoas/RS; Observatório de
Segurança Pública do Recife (OBSPE); Observatório de Segurança Pública da UNESP (OBSUNEP).
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segurança e a relação com o território. Recentemente, a questão da segurança pública foi
indicada pela população jovem brasileira como uma das prioridades para a ONU na elaboração
de uma nova Agenda de Desenvolvimento para 2015 (NAÇÕES UNIDAS, 2013).
No Brasil, os adolescentes e jovens são as maiores vítimas das falhas da segurança
pública. Em 2011, foram 18.436 jovens vítimas de homicídio; na Bahia foram 2.197 jovens
mortos. Além disto, nos últimos anos, segundo dados do Mapa da Violência 2013 – homicídios
e juventude no Brasil (WAISELFISZ, 2013), a taxa de criminalidade na Bahia cresceu 311,8%,
muito maior que o crescimento nacional, de 1,9%. Isso repercute no ambiente escolar, que
também é solapado pela insegurança e por constantes atos de violência e criminalidade,
reveladas tanto pelos registros da Delegacia do Adolescente Infrator (DAI) como pela Ronda
Escolar, ambos os órgãos ligados à Secretaria de Segurança Pública do Estado da Bahia.
O esgotamento da escola enquanto instituição social basilar, associada com outros
fatores comuns à condição juvenil (inconstância, agressividade, indisciplina, rebeldia), fragiliza
as relações de convivência instituídas neste espaço e produz uma constante sensação de
medo, potencializada pelo receio da manifestação de atos violentos e criminosas envolvendo
indivíduos na escola. Algumas entrevistas realizadas para este estudo, entre 2010 e 2012,
tendo como público professores e alunos de escolas públicas e privadas de Salvador, revelam
que a incerteza faz parte do cotidiano escolar, como relata uma professora: “não sabemos o
que pode vir a acontecer aqui na escola (brigas motivadas pelo tráfico de drogas, acertos de
contas com queimas de arquivos, agressões físicas, tentativas de homicídios, roubos, dano ao
patrimônio)”,5 situações que ampliam a sensação de insegurança no ambiente escolar.
A instituição escolar é o segundo ambiente de socialização do indivíduo, é onde o
sujeito institucionalizado, inicialmente pela família, se encontra com o diferente, tendo função
de grande importância no desenvolvimento humano. Como já referenciado, a instituição escolar
atualmente tem apresentado uma maior proporção de problemas associados à violência
escolar, entre eles a indisciplina e a incivilidade cometida por adolescentes que não
reconhecem a escola como espaço de convívio e compartilhamento da autoridade, mas como
espaço de tensão e insegurança. A indisciplina transgride as regras e rompe os limites
propostos, manifestando-se através de comportamentos que não seguem a norma e instituem
a desordem, o desrespeito, a agressividade e o desacato como práticas recorrentes na
convivência escolar.
5- Trâmites entre escola e delegacia – quando a disciplina se transforma em infração
A frequência da violência escolar, expressa por agravos físicos, materiais e
psicológicos, e explicitada por ameaças, agressões, roubos, arrombamentos, lesões, tentativas
de homicídios, entre outros atos, vem acarretando danos irreparáveis para a construção dos
5
Entrevista realizada com uma professora de escola pública, que não deseja ser identificada, no dia 29 de setembro
de 2011.
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direitos humanos, pois tem impactado na vida partilhada de adolescente e dos jovens.
Sobretudo àqueles das escolas públicas, uma vez que as escolas privadas, contam com uma
equipe de contenção que controla, através de intensa fiscalização, o comportamento dos
alunos para os efeitos deste tipo de indisciplina e incivilidade na vida dos adolescentes. A
violência na escola, radicalizada pela crise da instituição escolar e reflexo de uma “crise da
sociedade capitalista”, tem fragilizado códigos indispensáveis às relações de convivência e
solidariedade, a exemplo do respeito ao colega e ao professor, rompendo com parâmetros de
hierarquização e obediência institucional. Condições que denotam, em certa medida, que a
escola não consegue resolver essa questão sozinha, sobretudo quando a indisciplina se
transforma em infração mais grave e física, saindo do controle escolar. A externalização da
solução pelo recurso de uma associação a instituições da ordem, como a delegacia de polícia e
a ronda escolar (polícia militar), produz um reenquadramento e passagem das condutas
estudantis para atos infracionais, que passam a ser regulados por novos atores e agentes
públicos da área de segurança pública.
A indisciplina, a incivilidade e a agressividade, como fenômenos que ao mesmo tempo
em que contêm também reforçam os atos de violência, mobilizam uma heterogeneidade de
atos explícitos através de diversas situações e intensidades (insultos, xingamentos, brigas
verbais e físicas, depredações e roubos), incorporando também o que podemos chamar de
violência brutal, a exemplo de várias manchetes de jornal: “Aluno dá facada no pescoço de
professor em Cajazeiras” (ALUNO..., 2010); “Adolescente de 15 anos é atingido com um tiro
dentro de escola” (ADOLESCENTE..., 2010); “Estudante de 17 anos foi esfaqueada na sala de
aula” (ESTUDANTE..., 2012); “Assassinato de estudante dentro de escola em Salvador”
(ASSASSINATO..., 2013); “Vigilante de colégio estadual é baleado por aluno no subúrbio
de Salvador” (VIGILANTE..., 2013).
Estes atos de brutalização das relações sociais, além de gerar um grave dano físico,
rompem com a moral, a ordem e o padrão de civilidade esperado nas relações humanas,
situações que ampliam a comoção social por acontecerem dentro de uma instituição social
direcionada para a formação dos sujeitos. Esses atos de violência fogem ao controle da
instituição escolar, que se encontra despreparada para lidar com a radicalização desses tipos
de situação, necessitando, portanto, do apoio de instituições ligadas à segurança pública, com
a finalidade de prevenir, inibir e promover a restauração da ordem. Assim, a radicalização dos
atos de violência, o despreparo dos dirigentes em tratar as situações e até mesmo dos alunos
e famílias de alunos da escola, levam a que a escola mobilize outras instituições (polícia civil e
polícia militar) para que se restabeleçam a ordem. Paradoxalmente, essa via implica também
em transformar o ato indisciplinar em ato de infração, encaminhado, quando necessário, à
judicialização do fenômeno.
O trâmite que conduz a transformação do ato de indisciplina em ato de infração
acontece
mediante
o
“registro
da
ocorrência”,
que
implica
um
deslocamento
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da
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responsabilidade do âmbito pedagógico para o âmbito policial, através da atuação de
instituições da ordem pública. Tal trâmite promove a ressignificação do próprio ato, que passa
a ser operado por instituições controladoras da ordem pública, alterando uma estrutura de
sentido processualmente delineada por meio de regulações policiais e jurídicas, alterando os
“esquemas de interpretação” e os “quadros de sentido” (GOFFMAN, 1974).
O ato indisciplinar, após ser registrado na delegacia, transforma-se em ato infracional, o
sentido se altera. As providências que serão tomadas em relação ao ato envolvem, em
seguida, os agentes envolvidos para prestar esclarecimentos. A depender do ato, são
intimados o representante da unidade de ensino (diretor, vice-diretor, coordenador, professor),
o representante do agressor (pai, mãe, tio, irmão maior de idade ou responsável) e o
representante da vítima (pai, mãe, tio, irmão maior de idade ou responsável). Em alguns casos
o policial ou alguém que presenciou o fato servirá como testemunha. Após a apuração inicial
da ocorrência na delegacia, são feito os encaminhamentos para o Ministério Público, em
específico para as Varas Especializadas da Infância e da Adolescência, que dará
prosseguimento ao processo e, a depender do julgamento, o adolescente infrator poderá sofrer
sanções que vão desde medidas socioeducativas até internamento de no máximo três anos em
instituições competentes.
Em 2010, conforme registros da DAI, foram oficializadas 292 ocorrências; em 2011 elas
evoluíram para 331 ocorrências; em 2012 caíram para 203 ocorrências; e em 2013 foram
registradas 115 ocorrências. A diminuição em 2012 e 2013 se justifica por uma atuação mais
sistematizada da Ronda Escolar, que nestes mesmos anos registraram respectivamente 488 e
433 chamados para resolverem situações de violência nas escolas. Como o problema foi
resolvido in loco, não foi encaminhado para o registro na DAI. Este conjunto de dados ratifica
que a transformação da indisciplina e da incivilidade em ato de infração tem mobilizado a ação
da polícia militar, através da ronda escolar, e da polícia civil, através da DAI.
Outra questão relevante é que mesmo com um percentual expressivo de registros de
ocorrências, elas ainda não revelam a totalidade dos atos de indisciplina ocorridos no espaço
escolar, pois muitos destes atos não são oficializados, o que só ocorre quando a situação foge
ao total controle da escola. Algumas escolas fazem restrições ao registro da queixa; exemplo
disto é que as secretarias do estado e do município não têm qualquer tipo de registro em
relação aos casos de violência nas escolas, ou seja, há uma estratégia institucional de
“blindagem” dessas ocorrências nesse espaço, no que se refere a produção de dados oficiais
que comprovem a existência da violência escolar tão branda na rede pública. Por exemplo, a
Escola (C), pertencente à rede pública, confirma esse fato, pois ela apresenta em seu cotidiano
diversas situações de violência e não há nas bases de dados da DAI e da Ronda Escolar
registro destes atos. A rede privada também evita o registro das ocorrências, com receio de
macular a imagem da escola e perder alunos, como indicou a Escola (B), de nossa pesquisa de
campo.
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No trâmite entre a instituição socializadora (escola) e as instituições da ordem
(delegacia e ronda escolar) no combate à violência na escola, a ronda escolar ocupa uma
função de mediação. Ela recebe os chamados das escolas, notificando ocorrências através de
ligação telefônica, e, ao chegar e tentar intervir no controle da ocorrência decide se procederá
ou não ao encaminhamento do ato para o registro na delegacia. Segundo a Tabela 1,
produzida após a sistematização do banco de dados da DAI, referente aos anos de 2010 a
2013, a polícia, através da ronda escolar, aparece como a principal denunciante do ato
infracional. Não há nada que impeça que o chamado seja feito diretamente para a DAI, mas
com a otimização dos serviços da ronda escolar a partir de 2012, conforme depoimento do
comandante responsável, há uma maior rapidez no atendimento pelo chamado direto da ronda
escolar.
Tabela 1 – Denunciantes dos registros de ocorrências policiais na DAI – Salvador, 2010-2013
Os dados da DAI (Tabela 1) ratificam que a polícia é a principal “denunciante”,
responsável pelo registro dos atos de infração através da ronda policial, que, quando chamada
a tempo, conforme depoimento do comandante responsável, consegue, na maioria das vezes,
autuar o flagrante nos “infratores”, e só no caso de impossibilidade do tratamento da situação
ser feita no local é que o caso é conduzido à delegacia.
Vale acrescentar que o contato com a ronda policial é feito pela escola quando esta não
consegue controlar a ocorrência e busca reforço, ou seja, a polícia é chamada após a situação
deflagrada. Tal situação indica que a parceria estabelecida entre a escola e a polícia é apenas
tenuemente preventiva6, mas é exercida no sentido de impor a autoridade punitiva, o que
dificulta um maior controle das incidências. Segundo entrevista com a delegada titular da DAI,
“a família, em percentual relativamente baixo, registra a queixa, e quando o faz, tem a
expectativa de que o filho ou tutelado não seja mais vitimizado por situações de violência ou
humilhação, buscando proteção e segurança”.7 Entretanto, a partir de 2012, como indica a
(Tabela 1), mesmo com a redução geral do número de registros de ocorrências na DAI,
6
A partir de 2012, a ronda escolar passou a apresentar uma maior funcionalidade no tratamento da violência
escolar. Criou um plano estratégico e estabeleceu visitas ordinárias, com a finalidade de desenvolver ações
preventivas na escola. Mesmo assim, percebe-se, através dos casos apresentados, que ela ainda atua de forma
punitiva, mesmo que não haja o exercício da força física, a uma imposição de controle e punição pela representação
que ela possui.
7
Entrevista realizada com a Delegada Titular da Delegacia de Adolescentes Infratores (DAI), Dra. Claudenice Mayor,
no dia 04 de outubro de 2012.
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justificado por uma maior filtragem dos casos realizada pela ronda escolar, que passa a
resolver determinados casos in loco, o número de denúncias feitas pelas famílias vem
crescendo, apresentando um percentual, em 2012, de 25% dos registros na DAI, 13% maior do
que no ano anterior; em 2013, este percentual sobe para 30%, 5% maior do que o ano anterior
e o dobro do apresentado em 2010. Apesar do crescimento em termos absolutos, esses
números são baixos.
Como demonstrado (Tabela 1), os registros realizados por representantes da escola
possuem um percentual baixo. Os dirigentes, por medida de segurança, preferem transferir
essa responsabilidade diretamente para a polícia, e os poucos casos de registros realizados
diretamente por representantes da escola são apenas aqueles que envolvem agressão a
professores ou funcionários da instituição. Tal percentual diminuto pode expressar também o
receio que muitos dirigentes têm de expor a instituição de ensino, estigmatizando a escola
como lugar violento e sem autoridade.
Consideramos que os registros das ocorrências podem ser compreendidos como uma
medida de segurança, repreensão aos atos indisciplinares e busca de justiça. Assim, quando
avaliamos as estatísticas das ocorrências policiais disponibilizadas pela DAI, referentes aos
três últimos anos (2010, 2011, 2012), constata-se um número expressivo de registros, mesmo
com sua redução a partir de 2012, ano em que a ronda escolar começa a agir, propiciando
maior filtragem no encaminhamento das ocorrências. Mesmo assim algumas ocorrências ainda
continuam chegando à delegacia e sendo registradas.
Tabela 2 – Número de registros de ocorrências policiais na DAI – 2010-2013
Ao analisarmos os quatro últimos anos, observa-se um crescimento de 4,3 casos ao
mês, entre 2010 e 2011, anos cujo calendário letivo não foi submetido a interrupções, diferente
dos anos de 2012 e 2013, em que ocorreram diversas greves e uma maior ação da ronda
escolar, repercutindo numa redução de 11,8 casos por mês. Atos como lesão corporal,
ameaças, vias de fato, porte de armas, furtos, roubos, uso de drogas por alunos, além de
agressões verbais e físicas aparecem no cotidiano das escolas de Salvador, submetendo
alunos, funcionários e professores a uma situação permanente de medo e insegurança, que se
amplia quando a instituição escolar se mostra impotente para resolvê-los, como revelam os
dados da DAI, expostos anteriormente no terceiro capítulo desta tese.
O trâmite que conduz ao registro da ocorrência e à qualificação da infração implica no
encaminhamento de processo em relação ao ato cometido, que também pode ser denominado
de crime ou contravenção, podendo ser encaminhado a julgamento, e culminar em penalização
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para o infrator. Por se tratar de adolescente, a punição geralmente se estabelece com medidas
socioeducativas, que são atividades impostas aos adolescentes infratores com a finalidade de
reintegrá-los ao convívio social.
[...] asseguradas as garantias do devido processo legal, a autoridade judiciária
determinará o cumprimento de uma das medidas socioeducativas previstas no
Estatuto, Artigo 112, a saber: I – advertência; II – obrigação de reparar o dano;
III – prestação de serviços à comunidade; IV – liberdade assistida; V – inserção
em regime de semi-liberdade; VI – internação em estabelecimento educacional;
VII – qualquer uma das hipóteses previstas no art. 101, I a VI. (LIBERATI,
2002, p. 96).
As infrações que acontecem na escola representam uma brutalização que emerge no
comportamento de adolescentes e jovens, e se instituem nas relações de convivência e na
rotina escolar, colocando em questão a autoridade e a própria responsabilidade que esta
instituição tem em relação à formação do sujeito em seu processo de humanização.
A escola como agência formativa e responsável pela reprodução de códigos de
civilidade e princípios éticos acaba se transformando em uma instituição destituída de força
para impor limites e assegurar a norma em seu próprio espaço. O adolescente que pratica a
violência no espaço escolar rompe com um conjunto de regras e normas, atinge também a
representação da escola enquanto instituição basilar: ele não agride apenas aquele(a) a quem
atinge diretamente com sua ação, mas todo um coletivo. A oficialização dos dados e das ações
violentas no espaço escolar, através dos registros das ocorrências em órgão da Secretaria da
Segurança, eleva a indisciplina de um fato isolado, entendido como descontrole pedagógico, a
uma ocorrência policial, uma infração que necessita ser controlada pela Justiça. Situação que
evidencia que a instituição escolar sozinha não conseguirá conter a incivilidade e as práticas de
violência e desordem, que alteram as relações de alteridade e respeito entre professores e
alunos. Por outro lado, o poder de polícia, e sua forma punitiva e repressora, não é suficiente e
talvez não se proponha a resgatar a civilidade e o respeito da escola enquanto espaço virtuoso
de direitos, implicando na formação do sujeito para a vida em sociedade.
6-Mediação e denúncia: a mobilização da ação pública
A expressão do fenômeno da violência em escolas de Salvador, o esgotamento da
escola enquanto instituição socializadora e suas dificuldades no enfrentamento de atos de
desobediência civil e violência envolvem cada vez mais adolescentes e jovens. A consciência
dessa situação tem mobilizado um complexo sistema de proteção que operacionaliza um
conjunto de instituições da ordem, vinculadas à Segurança Pública, entre elas a Ronda Escolar
(polícia militar), a Delegacia do Adolescente Infrator (DAI) (polícia civil), o Ministério Público,
através da Vara da Infância e da Juventude, a Defensoria Pública e a Fundação da Criança e
do Adolescente (FUNDAC), instituições que vêm desenvolvendo um trabalho articulado com
foco no adolescente e no jovem.
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A Ronda Escolar desenvolve uma operação policial que tem sua origem vinculada ao
Programa Educacional de Resistência às Drogas e à Violência (PROERD), que desenvolve
ações educacionais voltadas à prevenção ao uso de drogas e à violência nas escolas. No
Brasil, sua implantação ocorreu na década de 1990, e foi implementada apenas em alguns
estados brasileiros. Na Bahia, ela foi implantada e operacionalizada pela Ronda Escolar em
2002, e em 2012 ela reestruturou o seu programa de atuação, criando diretrizes específicas
8
para o combate da violência na escola .
Conforme declaração do Major comandante da Ronda,
Antes de 2012 a Ronda Escolar era compreendida apenas pelo policiamento
ostensivo nas escolas, a fim de coibir delitos que aconteciam no âmbito interno
e externo das instituições. Agora contamos com um planejamento de operação
que conta com visitas programadas de cunho formativo e preventivo através de
palestras, orientação a pais e alunos, e visitas extraordinárias, via chamado de
urgência feito pela escola. Quando é verificada a necessidade, os policiais da
ronda intensificam a segurança na escola, com presença constante na unidade
e no seu entorno. Antes, a função da ronda era apenas a de encaminhar os
envolvidos para o registro da ocorrência na DAI, agora tentamos resolver a
situação na escola mesmo, avaliando assim a gravidade do ocorrido e se há
realmente a necessidade dos encaminhamentos para a delegacia.9
Segundo o Major,
A tropa que participa da Ronda Escolar é capacitada para trabalhar com um
público específico, e difunde entre a comunidade escolar conceitos de
disciplina e valorização da ética. Cada policial é orientado sobre como deve
agir e quais os casos que devem ser encaminhados para a delegacia de jovens
infratores.
Exercendo também função de segurança pública, a partir de 2010, a DAI, por iniciativa
da delegada titular, criou uma pasta específica para o registro de casos de violência
acontecidos no âmbito das escolas. A DAI não atende apenas casos específicos de violência
escolar, mas para ela são direcionados qualquer tipo de ocorrência em que adolescentes
tenham sido vítimas ou causadores de atos de infração. Logo, essa instituição, no âmbito de
registros, é a responsável pela oficialização de ocorrências na escola quando envolvem
menores. Segundo a delegada Dra. Claudenice Mayor: “foi criada uma pasta específica para os
casos de violência na escola, tendo em vista o crescimento destas ocorrências nos últimos
anos”.10 Nos primeiros dois anos de funcionamento dessa ação, em 2010 e 2011, foram
registrados 623 casos de ocorrências de violência no âmbito das escolas. Como justificativa
para o desenvolvimento dessa ação, que envolve uma equipe da polícia civil (delegada,
8
A Ronda Escolar conta com uma equipe de 520 policiais, está equipada com 15 viaturas e dez motos destinadas a
atender a rede escolar estadual, municipal e privada da capital e de Lauro de Freitas. A iniciativa é baseada no
radiopatrulhamento e atua das 6 às 22h, em parceria com a Secretaria Estadual da Educação do Estado da Bahia
(SEC).
9
Entrevista realizada com o Comandante da Ronda Escolar, Major Ricardo Santana, no dia 30 de outubro de 2013.
10
Entrevista realizada com a Delegada Titular da Delegacia de Adolescentes Infratores – DAI, Dra. Claudenice
Mayor, no dia 04 de outubro de 2012.
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investigador e escrivã), foi decisivo, segundo a delegada titular, “a preocupação social e a
aplicação da justiça, tendo em vista as elevadas ocorrências de casos de violência na escola”.
Ela acrescenta que esta ação “possui como objetivo oficializar através do registro policial e
encaminhar o processo para o tratamento jurídico necessário, através do Ministério Público e
das varas específicas”.
A DAI e a polícia militar, com base na atuação da Ronda Escolar, 11 têm desenvolvido
uma ação pública que envolve parceiras com as escolas na tentativa de minimizar os casos de
violência e infrações e promover a justiça. Essa parceria levou à criação de um banco de dados
específico para o registro das ocorrências nas instituições de ensino e a implicação de uma
equipe que adota um conjunto de procedimentos para a atuação, tendo em vista as
especificidades no tratamento com o adolescente (BAHIA, 2013).
Os registros estatísticos possibilitam uma melhor análise dos aspectos demográficos e
da tipologia das infrações no ambiente escolar. Nos casos em que há registros de ocorrências,
a delegada instaura o processo, ouve os envolvidos, investiga e os encaminha para o
Ministério Público, ou diretamente para as Varas específicas, neste caso a Vara da Infância e
da Juventude, para procederem aos encaminhamentos jurídicos. Acrescentamos que a Vara
da Infância e da Juventude é o único juízo competente para julgar adolescentes (pessoas entre
12 e 18 anos de idade) que praticam atos de infração. Os encaminhamentos a ela devem ser
feitos através da DAI, ou através de queixas ao próprio juízo, instaurando assim o devido
processo legal, com finalidade de promover o efetivo cumprimento de sua missão
constitucional (julgar adolescentes infratores, impor medidas socioeducativas e fiscalizar a sua
execução). A Vara da Infância e da Juventude conta com uma equipe de apoio interprofissional
composta por comissários de justiça efetivos, assistentes sociais, psicólogos, serventuários da
justiça, dentre outras categorias funcionais, que integram os vários setores de atendimento. Ela
tem competência para julgamento de todos os adolescentes que praticam atos infracionais e
também para controlar as medidas impostas às crianças infratoras (Art. 105 da Lei 8069/90)
executadas pelos Conselhos Tutelares (Art. 136, I, da Lei 8069/90) e aos próprios adolescentes
infratores (Art. 112 da mesma Lei), após o devido processo legal. Em se tratando de
adolescente, deve o mesmo ser submetido ao devido processo legal: apreendido, será
apresentado ao Ministério Público (art. 179 do ECA), que adotará as medidas cabíveis. Tanto o
adolescente vitimizado como o infrator pode contar com o serviço jurídico da Defensoria
Pública. Após a audiência de apresentação, havendo necessidade, será designada a audiência
11
A Ronda policial é um projeto do governo do estado que atua na prevenção e redução das ocorrências de
violência e criminalidade. Ela foi criada em 2010. Atualmente a Roda Policial conta com o efetivo de 520 policiais
militares, que atuam para prevenir e reduzir as ocorrências no entorno das unidades escolares da rede pública
estadual da capital e Região Metropolitana de Salvador. Essa ação policial inclui radiopatrulhamento, que ocorre das
6 às 22h.
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de instrução e julgamento; no caso de condenação, o adolescente é encaminhado para o
cumprimento de medidas socioeducativas, até mesmo internação e semiliberdade.
Na Bahia, a Fundação da Criança e do Adolescente (FUNDAC) é o órgão responsável
pela execução da política de atendimento ao adolescente condenado pelo envolvimento em ato
infracional, no cumprimento das medidas socioeducativas de semiliberdade e internação. É
vinculada à Secretaria Estadual de Desenvolvimento Social e de Combate à Pobreza (Sedes),
uma fundação com personalidade jurídica de direito público.
A função desempenhada pela Ronda Escolar e pela DAI, no âmbito da tentativa de
controle policial da violência na escola, envolve ações de mediação, denúncia, enquadramento
e encaminhamento de processo jurídico, mobilizando uma ação pública que envolve agentes
diferenciados e implicados na promoção da justiça. A ação pública mobilizada pela DAI e pela
Ronda Escolar é compreendida como um mecanismo de invenção, não resultante de uma
espontaneidade, mas de um saber prático que os agentes envolvidos acumulam ao longo de
sua trajetória no controle da ordem.
O desempenho da ação social é evidenciado através da necessidade de controle das
regras de convívio na escola, e dialoga com um conjunto de transformações sociais, com a
problemática das relações de trabalho na sociedade neoliberal, mas também com as formas de
exclusão social, injustiças e falta de efetivação de direitos na sociedade contemporânea, que
se refletem na deslegitimação da autoridade da instituição escolar. Dessa perspectiva,
Bourdieu (1994) apresenta questões importantes na reflexão da ação de atores sociais e nas
possibilidades de mudança em meio a uma estrutura ou sistema social. Para esse autor, o
agente é um ator que emerge em situações de dominação, e a violência na escola e a forma
que ela vem se instituindo pode ser considerada da perspectiva das formas de dominação, pois
exerce força de disciplina sobre o comportamento dos envolvidos. Segundo Bourdieu (1994),
os agentes realizam suas práticas no interior de um campo, onde adquirem interesses,
constróem estratégias delineadas pelo habitus internalizado durante sua trajetória de vida. A
ação desses agentes sociais, da escola e da política mediam a vivência entre instituições. No
caso em análise destacam-se a Delegada Titular da DAI e o Major Comandante da Ronda
Escolar, não como simples executores sociais da ordem, mas como agentes orientados com a
promoção da justiça, com o estabelecimento de formas de proteção social mais efetivas na
garantia do convívio escolar, que mobilizam ações partilhadas com a escola e vínculos
institucionais. Esses agentes concordam em agir como se as normas sociais existentes
necessitassem de um amparo para sua funcionalidade e legitimação.
Considerações finais
A relação entre a escola e as instituições de segurança pública, em prol da contenção
da violência crescente este espaço, ainda que expressem uma nova interseção da escola com
instituições de polícia, não confirma uma passagem ou subordinação das escolas ao controle
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da ordem policial. Exemplo disso são os esforços das escolas tentarem resolver os conflitos no
âmbito da própria escola, mesmo com a ajuda da ronda policial. Do lado dos órgãos de
segurança, representa uma nova atitude de responsabilidade quanto a uma ação preventiva e
especializada no provimento e controle da ordem. No entanto, essa ação, conquanto apresente
esses aspectos positivos, mostra também uma tendência e uma via de deslocamento de um
Estado social para um Estado punitivo. Essa ação está longe de encaminhar resultados
efetivos, vez que não resolve problemas estruturais e históricos.
A fragilização do princípio da autoridade e do respeito na escola, assim como a
subversão de sua função, ampliaram os espaços para a permissividade da rebeldia juvenil, o
que exerce efeito sob a subversão da escola. A autoridade passou a ser desconsiderada e com
ela o respeito e a subordinação às regras institucionais, criando um campo fértil para o
crescimento da violência no âmbito escolar. A escola vulnerabilizada mostra-se também
incapaz de controlar a violência que invade o seu cotidiano, levando-a a buscar parcerias com
outras instituições – DAI e Ronda Escolar. A interseção e colaboração entre a escola e
instituições policiais, se de um lado pode ser eficaz pontualmente no controle e inibição dos
atos de violência, por outro lado pode produzir por efeito a transformação do ato de indisciplina
em ato de infração, mediante o registro da ocorrência, implicando no deslocamento da
responsabilidade do âmbito pedagógico para o âmbito policial, através da atuação de
instituições da ordem pública. Essa afirmação, no entanto, tem que ser relativizada conforme a
análise efetiva dos dados e a forma como gradativamente eles vão dialogando.
A operação da Ronda Escolar foi criada para dar cobertura e proteção, prevenindo,
coibindo e colaborando para prevenir contra a radicalização do uso de violência no ambiente
escolar. A institucionalidade de uma delegacia especializada cria alternativa de proteção para a
escola, que ao recorrer a essa instância produz indiretamente um deslocamento de sentido e
prática de enquadramento de adolescente indisciplinado em adolescente infrator. Nessa
situação, a delegacia aparece como centro de convergência da institucionalização penal da
indisciplina escolar, assim como instituição voltada a promoção da busca pelos direitos
humanos. No entanto, nesse contexto observa-se uma tendência e cuidado da escola em
sustar esse processo, seja blindando a escola da ação de operações mais efetivas de controle
da ordem, seja pela busca, tanto da escola como da própria ronda policial, por negociar e
mediar o conflito no âmbito da própria escola, evitando a estigmatização dos envolvidos em
casos de infração e reforçando uma relativa autonomia do espaço escolar, como mostram os
dados da pesquisa de campo e a redução do número de registros.
O desenvolvimento dessa ação pública e a interseção entre instituições escolares e
instituições policiais especializadas para o atendimento dos jovens em situações de conflito
dialogam com um conjunto de transformações sociais, com as condições de inserção no
universo do trabalho das famílias dos alunos, com as formas de exclusão social e falta de
efetivação de direitos sociais
e humanos para as camadas populares na sociedade
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contemporânea, com as incertezas da condição juvenil e com a crise de legitimidade das
funções mais amplas da escola.
A ação das instituições de segurança pública podem também ser interpretada como a
busca pela efetivação dos direitos humanos e da cidadania, tendo em vista que a função da
escola, estando fragilizada pela o crescimento da violência em seu âmbito, precisa de apoio
para retomar sua função, assim como os diálogos com estes campos. A escola tem entre suas
funções basilares a transformação social e este dialoga com os direitos que os membros de
uma sociedade devem usufruir, afirmando a necessidade de se afirmar a cidadania e suas
interfaces com os direitos humanos, direitos fundamentais tanto a nível individual, coletivo ou
institucional.
Referências
ADOLESCENTE é atingido com tiro na escola. A Tarde, Salvador, p. 15, 15/5/2010.
ALUNO dá facada em professor em Cajazeiras. A Tarde, Salvador, p. 10, 10 mar. 2010.
ARENDT, Hannah.. Entre o passado e o futuro. São Paulo: Perspectiva, 1992.
ASSASSINATO de estudante dentro da escola em Salvador. A Tarde, Salvador, p. 8, 15 ago.
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Anais do VIII Encontro da ANDHEP
ISSN: 2317-0255
Atores, ideias e coalizações na política nacional de segurança pública
durante os governos FHC e Lula
Robson Sávio Reis Souza (PUC Minas)
1. Nota introdutória:
Este artigo explora alguns aspectos da pesquisa “Atores, ideias e coalizões na
política nacional de segurança pública nos governos FHC e Lula”, realizada para a produção
de nossa tese de doutoramento (SOUZA, 2014).
A tese propõe uma discussão sobre o processo de mudança na política nacional de
segurança pública durante os governos Fernando Henrique Cardoso (1994 – 2002) e Luís
Inácio Lula da Silva (2003 – 2010), a partir do Referencial de Coalizões de Defesa (RCD),
modelo teórico proposto por Sabatier e Jenkins-Smith. Tendo como pressuposto que as
políticas públicas são estruturadas em subsistemas formados por atores individuais e
coletivos, organizações públicas e privadas, que lidam com uma determinada área ou
problema de ordem pública, o RCD permite verificar a ocorrência de mudanças em
subsistemas de política, a partir de uma investigação sobre alianças ou coalizões (formais e
informais) e suas influências no modo como as políticas são formuladas.
Atores da Academia e da sociedade civil organizada, notadamente ligados a
movimentos de direitos humanos, foram fundamentais para alterações no campo da
segurança pública durante o período dos dois governos.
2. O que é segurança pública?
Definir segurança pública é uma tarefa bastante complexa. Mais que uma definição
conceitual, trata-se da compreensão do que vem a ser a efetivação de políticas associadas
a direitos e deveres dos cidadãos, acesso à cidadania, uso legítimo da força, limites do
poder estatal, lei e ordem, entre outros. Ademais, segurança pública na contemporaneidade
está relacionada ao fato de que a violência (principalmente urbana) associada à
criminalidade — um fenômeno mundial — também demanda uma resposta do Estado aos
clamores sociais que anseiam pela paz, ordem e pelo controle do crime.
Nesta perspectiva, segurança pública tem a ver com alguns dos dilemas das
sociedades contemporâneas, que ampliaram sobremaneira o escopo dos direitos humanos,
mas que se veem constrangidas por modalidades de violências e crimes cada vez mais
sofisticados. Para além das variadas formas de violência e dos crimes violentos, que
causam sérios custos sociais e econômicos à sociedade,1 observa-se nas três últimas
décadas a ampliação de poderosas redes criminosas: por exemplo, redes de tráfico de
drogas, de pessoas e de armas que se conectam com esquemas de corrupção de agentes
públicos, lavagem de dinheiro, evasão de divisas, sonegação fiscal, entre outros crimes.
1
Os cálculos dos custos da violência levam em conta o que se perde com a morte prematura de pessoas, longos
tratamentos de saúde, gastos com segurança pública e privada e os gastos privados com seguros, além das
perdas diretas. Não se contabilizam, geralmente, as perdas simbólicas que podem ser muito maiores.
4190
Anais do VIII Encontro da ANDHEP
ISSN: 2317-0255
Esse tipo de “empreendimento criminoso”, muitas vezes infiltrado dentro do aparelho do
Estado, demanda uma ação altamente qualificada do aparato de segurança pública. 2
Como afirma Soares (2006), a segurança pública é a estabilização de expectativas
positivas quanto à ordem e à vigência de uma sociabilidade cooperativa. Portanto, a
segurança pública demanda o equilíbrio de expectativas em duas vertentes: na esfera dos
fenômenos, ou seja, “na redução da quantidade de práticas violentas, especialmente
aquelas que se classificam como criminosas” (ameaça a vida ou são letais) e também na
esfera dos sentimentos e percepções, relacionadas não somente àquilo que é vivenciado
pelas vítimas, mas às experiências vividas por parentes, amigos e aquelas divulgadas nos
meios de comunicação social e, neste caso, “impõe-se reduzir o medo, a sensação de
insegurança e instabilidade de expectativas.” (SOARES, 2006, p. 460).
Por outro lado, na esfera jurídica, à medida que aumentam os problemas
relacionados à violência e ao crime, o direito liberal punitivo, fundado no princípio da
responsabilidade individual, dificilmente consegue dar respostas satisfatórias ao aumento
dos crimes. Constrangida pela baixa eficiência estatal no controle do crime, a sociedade,
principalmente os segmentos mais conservadores e abastados, apela progressivamente
para a segurança privada, com a anuência estatal, razão do rápido desenvolvimento de um
mercado e indústria altamente sofisticados do ponto de vista tecnológico (ADORNO, 2002).
Assim, a compreensão acerca do que vem a ser “segurança pública” é bastante
imprecisa. No caso brasileiro, ainda fica mais difícil determinar o significado do conceito haja
vista a indefinição, inclusive na legislação, das agências que são encarregadas de prover
segurança para os cidadãos:
Resumindo, segurança “pública” é ainda um conceito frouxamente formulado e recepcionado
na legislação brasileira e nas normas que regulam o funcionamento das instituições
encarregadas de garantir direitos, ordem e tranquilidade. Não há consenso sobre o seu
significado e as instituições não estão informadas por ele. Não à toa, desde o final dos 1990,
muitas organizações internacionais (PNUD, BID, BIRD, CAF, entre outras) têm tentado
disseminar não só no Brasil, mas em vários outros países da América Latina, o conceito de
segurança “cidadã”, na tentativa de provocar rupturas políticas neste cenário e, na sequência,
reformas policiais. (COSTA E LIMA, 2013, p. 03 e 04).
3. Alguns dilemas da segurança pública:
Um país que tem imensas desigualdades sociais e regionais já teria, naturalmente,
problemas dos mais variados no campo da segurança pública, haja vista que diferentes
realidades socioeconômicas e culturais, num território continental, produz variados
problemas de segurança, com demandas diversas para sua solução. Como se isso não
bastasse, no campo da segurança pública temos um dos arranjos institucionais dos mais
2
Ver cartilha do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (COAF), do Ministério da Fazenda em:
(http://www.coaf.fazenda.gov.br/links-externos/cartilha.pdf) e SANTOS (2007).
4191
Anais do VIII Encontro da ANDHEP
ISSN: 2317-0255
complexos, com instituições pouco articuladas e cooperativas, na medida em que cada
estado organiza o seu sistema de segurança, geralmente à revelia dos demais, conforme
quadro I.
Quadro I – Atores institucionais que participam direta e indiretamente dos sistemas de Justiça
Criminal e de Segurança Pública no Brasil
Executivo
Legislativo
Judiciário
Agências
Órgãos
Sociedade Civil
Executoras
autônomos
Congresso
Nacional
Federal:
Ministério
da Justiça
(Senasp)
Estadual:
Secretarias
de
Segurança
ou similares
Assembleias
estaduais
Municipal:
Secretarias
Municipais
de
Segurança
ou similares
Câmaras
Municipais
Justiça
Federal (+)
Supremo
Tribunal
Federal
Polícia Federal,
Polícia
Rodoviária
Federal, sistema
prisional federal,
Guarda Nacional
Ministério
Público,
Tribunais
de Justiça
Polícias Militar e
Civil, sistema
prisiona
Ministério
Público,
Defensoria
Pública
Defensoria
Pública
Guardas
Municipais
Conferência
Nacional,
Conselho
nacional
(CONASP),
Pesquisadores,
movimentos
sociais
Conferências
estaduais,
conselhos
estaduais,
pesquisadores,
movimentos
sociais
Conferências
municipais,
conselhos
municipais,
pesquisadores,
movimentos
sociais
Fonte: elaborado pelo autor.
Por outro lado, o combate ao crime — principalmente na sua modalidade de crime
organizado — demandaria uma articulação e cooperação entre todos os entes federados3.
Não há dúvida a respeito da necessidade de uma engenharia institucional capaz de
articular, em termos federativos, a política de segurança pública. Na verdade, vários óbices
dificultam uma gestão integrada e eficiente dessa política, justamente pela dificuldade de
uma concertação nacional. Parece que, para além de uma indefinição de papéis e
responsabilidades dos níveis de governo encarregados da execução da política, há um “jogo
de empurra”, ou, quem sabe, uma conivente omissão dos gestores da política tanto no
centro (União) como nos estados federados. Essa situação que conjuga indefinição,
omissão e escamoteamentos acerca dos papéis da União, dos estados e dos municípios na
gestão compartilhada da política, somada ao pragmatismo político (dos governos nos três
3
Sobre a questão do crime organizado e a segurança pública nas Américas, ver artigo de COSTA (2013).
4192
Anais do VIII Encontro da ANDHEP
ISSN: 2317-0255
níveis) — que sempre objetiva o máximo do êxito com o mínimo de custos —, frustrou a
efetiva implantação, por exemplo, de um Sistema Único de Segurança nos moldes do
Sistema Único de Saúde (no governo Lula). Isso porque a União sempre ressentiu dos
custos de evocar para si a gestão da política, preferindo atuar como coadjuvante e deixando
para os governadores a tarefa de organizar os sistemas estaduais de segurança pública.
Por sua vez, os chefes dos executivos estaduais não conseguem a governabilidade da
política, na medida em que não enfrentam mazelas históricas, como as disputas entre as
polícias civis e militares e os gargalos dos sistemas prisionais estaduais. Por seu turno, o
papel dos municípios na política ainda está indefinido. O que se observa nas últimas
décadas é a grande quantidade de tentativas pontuais de estruturação de um sistema
nacional de segurança a partir de iniciativas pontuais da Secretaria Nacional de Segurança
Pública (Senasp).
Ainda em relação à segurança pública, a autonomia das unidades federativas foi
parcialmente maculada à medida que as polícias militares continuaram como forças de
reservas do Exército. Além desse entrave formal (dado que na prática o Exército não
interfere na gestão das polícias militares estaduais — a não ser excepcionalmente, por
exemplo, em casos de greves de policiais), observamos uma ambiguidade, dado que a
Constituição consagrou a separação entre segurança pública e defesa nacional —
fundamentos da República, até então. Nesse sentido, observamos um movimento pendular
em relação à política de segurança pública. Num primeiro momento, em consonância com a
Constituição Federal de 1988, essa política passa a ser tratada como questão exclusiva dos
governos estaduais. Depois, à medida que a questão da violência urbana vai se constituindo
como importante pauta de reivindicação social (com o aumento da criminalidade violenta a
partir da década de 19804), o problema volta a ser da alçada federal e, mais recentemente,
também de competência dos municípios.
Portanto, no campo da segurança pública, uma questão, em certa medida dramática,
está posta: a consolidação da democracia brasileira e sua institucionalização dependem, em
grande medida, das relações com temas como violência, direitos, justiça, cidadania, estado
de direito e direitos humanos.
4. Atores e ideias nos governo FHC:
No período do governo Fernando Henrique Cardoso (1995 – 2002), observamos uma
série de mudanças de caráter incremental na política nacional de segurança pública. As
alterações na política — produzidas num momento crucial de democratização do campo da
segurança pública —, se constituíram como base e fundamento para mudanças mais
4
Segundo o Mapa da Violência 2012, entre 1980 e 2010 foram assassinadas 1,09 milhão de pessoas no Brasil.
4193
Anais do VIII Encontro da ANDHEP
ISSN: 2317-0255
profundas e substantivas, posteriormente. Paralelamente a tais mudanças, novos atores e
novas ideias foram sendo incorporados, lentamente, no campo da segurança pública.
Observam-se dois grandes movimentos que vão se fortalecendo no período: até o
início do segundo mandato, entre 1998 e 2000, o governo Fernando Henrique tratava a
questão da segurança pública como um problema dos estados da federação:
As principais políticas de cunho urbano-metropolitano fracassaram.
Poderíamos citar a Segurança Pública, na qual o Governo Federal descobriu
tarde seu papel, reduzido ao financiamento dos estados, quando deveria
atuar em rede na coordenação das polícias. (ABRUCCIO, 2002, p. 232).
Não obstante, ações estratégicas foram implantadas gradualmente pela União. Por
exemplo, em 1995, numa tentativa de articulação das políticas de segurança pública, o
governo federal criou um sistema nacional de informações na área da segurança pública, o
Infoseg5, antes mesmo da criação da Senasp.
Porém, as Forças Armadas, sobretudo o Exército, determinavam as ações de
segurança pública no âmbito federal, mesmo no início da Senasp. De certa forma, essa
Secretaria nasceu e foi estruturada por oficiais das Forças Armadas: o primeiro secretário
nacional de Segurança Pública foi o General Gilberto Serra. Inicialmente, portanto, a gestão
federal da segurança pública era vista como uma especialidade dos generais.
É preciso uma breve nota sobre esse período: até o final dos anos 1990 vários
secretários de Estados também eram generais ou coronéis do Exército. Tratava-se de um
período, após a chamada “abertura democrática”, ocorrida na segunda metade da década
de 1980, no qual as circunstâncias sociopolíticas e mesmo o pensamento mais dominante
das elites dirigentes apontavam como melhor caminho a militarização da segurança pública,
dado que os militares das Forças Armadas conheciam melhor o assunto, tinham mais
expertise e poderiam ser mais eficientes para a resolução dos vários dilemas que já se
apresentavam, principalmente os elevados indicadores de criminalidade violenta. Ademais,
as Forças Armadas seriam mais eficientes na resolução dos problemas da ordem pública6.
Até
então,
a
gestão
da
segurança
pública
era
compreendida
como
predominantemente de responsabilidade dos estados, haja vista que a Constituição Federal,
em seu artigo 144, determina que as polícias Civil e Militar, no âmbito estadual, gerenciam a
segurança pública7. No nível central, a Polícia Federal naquele momento encontrava-se
fracionada e bastante enfraquecida, com disputas internas entre vários grupos.
Paralelamente, algumas respostas no nível estadual, e mesmo no nível central, estavam
5
O Infoseg foi criado no âmbito do Ministério da Justiça por um decreto de 26 de setembro de 1995 que instituía
o “Programa de Integração das Informações Criminais”.
6
Os conceitos de “segurança pública” e “ordem pública” até hoje são objeto de polêmicas.
7
Costa e Lima (2013), numa análise de como a segurança pública é tratada nas Constituições Federais,
registram que “as polícias estaduais estavam menos orientadas pela “agenda” da segurança “nacional” e
pautavam – e por vezes ainda pautam - suas culturas organizacionais a partir da lógica da segurança “interna”,
de forte influência no meio policial”.
4194
Anais do VIII Encontro da ANDHEP
ISSN: 2317-0255
baseadas num certo fetichismo em relação à ideia segundo a qual novos sistemas de
informação seriam suficientes para a resolução dos problemas. É neste contexto, inclusive,
que foi desenvolvido o Infoseg.
É importante destacar que durante o Governo FHC o Ministério da Justiça teve vários
titulares. Com a posse de José Carlos Dias como Ministro da Justiça — (junho de 1999 a
abril de 2000), o sexto ministro a ocupar a pasta no Governo FHC —, começa-se a esboçar
algumas alterações importantes na política. “Novos” em pelo menos dois sentidos: primeiro,
porque se tratava de jovens pesquisadores oriundos da Academia e de movimentos sociais,
notadamente de direitos humanos; segundo, porque o grupo não tinha uma atuação anterior
na condição de operadores da segurança pública.
Esses novos atores, em parceria com outros gestores de órgãos do Governo
Federal, com a importante e fundamental parceria da equipe da então Secretaria Nacional
de Direitos Humanos, são responsáveis pelo primeiro Plano Nacional de Segurança Pública
(2000), fruto de uma série de reuniões que aconteceram entre os anos de 1999 e 2000 em
Brasília e em São Paulo.
Mas será pela ação de coordenação nacional de esforços da Secretaria Nacional de Direitos
Humanos e da Senasp que o campo organizacional [da segurança pública] começará a ganhar
um novo formato e irá fortalecer um novo discurso político que se tornou hegemônico; gerou
tensões nas formas autoritárias de organização e execução de políticas públicas [...]. Em suma,
frequentemente, a mudanças nas práticas institucionalizadas implica em transformações no
campo organizacional, seja pela incorporação de novos atores, seja pela reorientação das
estratégias organizacionais. (COSTA, LIMA, 2013, s/p).
Registre-se que os campos da segurança pública e dos direitos humanos sempre
foram objeto de intensa disputa no Brasil. O legado da Ditadura Militar radicalizou um
discurso que reforçava a dicotomia e incompatibilidade entre os dois campos. Por isso, para
reverter esse discurso, ainda mais num contexto de crescente criminalidade, no primeiro
mandato do governo FHC foi criado o Programa Nacional de Direitos Humanos – PNDH, de
1996, que já previa uma série de ações no campo da segurança pública. O governo ratificou
e implementou uma série de acordos e convenções internacionais, como, por exemplo, o
Decreto Nº 4.463/02, que reconheceu que a Corte Interamericana de Direitos Humanos
podia deliberar sobre todos os casos de violação de direitos humanos no país.
Há que se destacar, neste período, o papel importante de José Gregori, que foi chefe
da Secretaria Nacional de Direitos Humanos (1997 – 2000) e ministro da Justiça no
momento subsequente, entre abril de 2000 e novembro de 2001.
Em relação à Academia, pesquisadores e centros de pesquisa de alguns estados do
país que já realizavam parcerias com as polícias (cursos, pesquisas e projetos aplicados)
começaram a ampliar a comunidade da segurança pública. Alguns policiais que se
4195
Anais do VIII Encontro da ANDHEP
ISSN: 2317-0255
destacavam como lideranças passam a ter um papel mais ativo na formulação de
implementação de ações de segurança pública no nível central.
Nos Estados já havia algumas experiências exitosas de aproximação das
Universidades com o campo da segurança pública, principalmente com as polícias. O
Núcleo de Estudos da Violência, da USP; a Universidade Federal do Rio Grande do Sul; no
Rio de Janeiro, várias iniciativas, inicialmente capitaneadas pelo professor Roberto Kant de
Lima; em Minas Gerais, o trabalho pioneiro de Antônio Luiz Paixão e posteriormente do
Centro de Estudos de Criminalidade e Segurança Pública, da UFMG, em parceria com a
Fundação João Pinheiro, desde o final dos anos de 1970.
Também no âmbito das organizações policiais nos estados, algumas iniciativas são
dignas de nota, como a obrigatoriedade de publicação de estatísticas trimestrais pela
Secretaria de Segurança Pública de São Paulo, em 1995, ou a criação das Áreas Integradas
de Segurança Pública – AISP’s, no Rio de Janeiro (Costa, Lima. 2013). Antecedem estas
duas experiências as AISP’s criadas no estado do Espírito Santo, onde se começou também
a implantar sistemas de integração de atividades das polícias Civil e Militar e
compartilhamento de informações. O Espírito Santo e o Pará foram as duas primeiras
unidades da federação que fizeram uma ruptura: integrar a comunicação, as áreas
operacionais, o centro de despacho e a Academia das duas polícias. Claramente uma lógica
operacional baseada na gestão integrada da atividade policial.
O governo do Rio de Janeiro criou no final da década de 1990 o Instituto de
Segurança Pública (ISP), responsável pela consolidação de estatísticas criminais e em São
Paulo, em 1999, foi criado Infocrim, um sistema de informações criminais. Estas boas
práticas nos estados foram fundamentais para uma articulação entre as experiências locais
e o nível central de elaboração da política, com vistas às mudanças.
Até então, os grupos de acadêmicos trabalhavam de forma isolada e com projetos
solitários. A partir da abertura oferecida pelo Governo FHC, há uma tentativa de dar
organicidade à política e a Universidade passa a ser um ator fundamental no processo da
formulação e da implementação das políticas públicas de segurança.
Apesar da entrada da Academia, a discussão de que segurança era assunto militar
ainda dominava o campo da segurança pública.
A tentativa de superação desse discurso — que direcionava às polícias,
principalmente às polícias militares, a exclusiva responsabilidade pela execução das
políticas públicas de segurança pública — começou com a criação de canais de diálogo
entre policiais e acadêmicos que optaram por atuarem junto na gestão da política, no nível
central. Essa ideia partia da premissa segundo a qual algumas reformas estruturais se
faziam necessárias. Por exemplo, a necessidade de alterações, através de uma Proposta de
Emenda Constitucional (PEC), do artigo 144 da CF, que reforçava alguns antagonismos,
4196
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como o ciclo bipartido de policiamento entre as duas polícias que atuam nos estados (Militar
e Civil).
O novo grupo que atuava na recém-criada Senasp via-se impossibilitado de avançar
nas reformas estruturais, haja vista a grande resistência de grupos contrários a mudanças
de cunho estrutural, principalmente no âmbito do próprio Governo. Porém, os novos
gestores da Senasp partiram para a ideia da tentativa de institucionalização de mecanismos
de controle da força policial e de vários projetos de unificação e de integração operacional
das polícias.
Na época, alguns governadores de estado escolheram generais para assumirem o
cargo de secretários estaduais de segurança pública, com o objetivo de tentar manter certa
organicidade na política, enquanto outros estados caminhavam para um investimento mais
autônomo na gestão da segurança. Em termos de implementação das políticas públicas de
segurança no nível estadual, apesar de paradoxal, os caminhos não pareciam
contraditórios. Todos os governadores apostavam na lógica incremental em relação à
política de segurança pública: construção paulatina de um processo de modernização da
área, com a expectativa de que num determinado momento haveria um ponto de inflexão
possibilitando as reformas, naturalmente.
O fato é que o governo federal, nesse cenário, passa a ter cada vez mais um papel
de indução da política, qualificando algumas experiências já em curso e apoiando ações de
segurança pública de destaque em alguns estados.
A partir do primeiro Plano Nacional de Segurança Pública (2000), com 124 metas, o
governo central começa a financiar e induzir com recursos monetários algumas das
iniciativas locais gerenciadas por governos estaduais. Em 2001 tem-se a institucionalização
do Fundo Nacional de Segurança Pública8.
O então ministro da Justiça José Carlos Dias e sua equipe tiveram o mérito de
incentivar a aproximação entre a Universidade e os gestores da área. Iniciou-se, também, a
reprodução do modelo de investimento na gestão da segurança; investiu-se na integração
organizacional das polícias, e, gradualmente, os militares das Forças Armadas foram-se
deslocando do centro da política. Os atores que passaram a ocupar esse lugar são
pesquisadores ligados à Academia, policiais que se destacam em seus estados e,
paulatinamente, gestores que traziam em seus currículos boas práticas de administração da
política de segurança pública nas unidades federativas.
Portanto, só no segundo governo FHC que se investe no deslocamento do eixo da
política: da segurança como questão militar para uma perspectiva segundo a qual a
8
Também no governo FHC foi criado o Fundo Nacional Penitenciário com a finalidade de proporcionar recursos
para financiar e apoiar as atividades de modernização e aprimoramento do Sistema Penitenciário Brasileiro.
4197
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segurança pública é requisito democrático de acesso à justiça e garantia de direitos. Se sob
o ponto de vista legal e constitucional essa visão já estava consagrada na Constituição
Federal de 1988, sob o ponto de vista operacional e institucional o modelo até então era
pensado na perspectiva da segurança interna; ou seja, mantinha nos mesmos moldes o
modelo de segurança definido na Constituição Federal de 1967, que determinava a
competência das polícias militares de “manutenção da ordem e segurança interna nos
Estados, nos Territórios e no Distrito Federal” (COSTA, LIMA, 2013). Detalhe: mesmo com o
advento da Constituição de 1988, as polícias militares continuam como força de reserva do
Exército9.
Pode-se dizer, em resumo, que duas fases marcaram o governo FHC. Um momento
de reprodução do status quo, com a política dos generais (notadamente no primeiro
mandato); posteriormente, um movimento de ruptura e assunção de uma nova gramática,
com novos atores liderando a política.
A assunção dessa nova gramática na política nacional de segurança pública deve
ser creditada, também, à ação dos movimentos de direitos humanos. Neste sentido, o papel
do Núcleo de Estudos da Violência da USP (NEV) deve ser destacado. Os estudiosos desse
Núcleo, principalmente através da atuação na Secretaria Nacional de Direitos Humanos,
cujo primeiro Programa Nacional, de 1996, já apontava a necessidade de reformas na
segurança pública, impulsionaram reformas modernizadoras na área da segurança.
As ações dos movimentos sociais, especificamente os de direitos humanos,
possibilitaram a entrada da sociedade como outro novo ator na política nacional de
segurança pública. Mas não sem uma grande resistência.
Porém, “faltava autoridade política para promover ações integradas entre distintos
ministérios, no âmbito do Executivo federal, assim como condições políticas e mecanismos
institucionais capazes de reverter a fragmentação de programas e as rivalidades entre
governos federal, estaduais e municipais” (SOARES, 2010, p.105).
5. Atores e ideias no Governo Lula:
Observa-se que no governo FHC as mudanças na política nacional de segurança
pública foram se consolidando. As crenças que sustentavam a necessidade dessas
mudanças foram articulando novos atores e despontando como um anteparo para novas
mudanças no governo Lula.
As várias janelas de oportunidade naquele período possibilitaram inflexões na
política, abrindo caminho para novos ensaios e experimentações. Novos atores foram
assumindo papéis de destaque: em termos de vocalização por mudanças na política,
9
O art. 144, § 6º, da Constituição Federal de 1988, define as polícias militares e os corpos de bombeiros
militares como “forças auxiliares” e “reserva” do Exército.
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destaca-se a entrada no debate da Academia e da sociedade civil, através dos movimentos
de direitos humanos. Em termos operacionais, membros da Academia foram atuar na
Senasp na companhia de policiais e gestores que traziam novas experiências (áreas
integradas de segurança pública, integração policial, policiamento comunitário) nas polícias
de vários estados.
No processo eleitoral de 2002, um grupo de composição multipartidária, com o
auxílio de parte da equipe que já atuava na Senasp, construiu o programa do Instituto
Cidadania voltado para a segurança pública. Esse programa, elaborado em quinze meses
de atividades, foi liderado por Benedito Mariano, Antônio Carlos Biscaia, Roberto Aguiar e
Luiz Eduardo Soares e resultou em um amplo diagnóstico sobre o problema da segurança
pública brasileira e numa série de propostas que fizeram parte da plataforma da candidatura
de Lula e, posteriormente, foi aproveitado para a redação do Projeto Nacional de Segurança
Pública para o Brasil (2003).
Um dos líderes do projeto, Luiz Eduardo Soares acabou sendo confirmado como
Secretário Nacional de Segurança Pública, em 2003, logo que Lula assumiu a presidência.
Soares já atuara como secretário de segurança pública do Rio de Janeiro, durante o
governo de Anthony Garotinho.
O grupo liderado por Luiz Eduardo Soares, logo de início, apresentou uma agenda
de reformas estruturais para a segurança pública. Soares (2006) registra algumas dessas
reformas:
a primeira grande alteração deveria dar-se por meio de um projeto de emenda constitucional, submetida
à apreciação do Congresso Nacional pelo presidente da República, preferencialmente com o apoio
consensual dos governadores — apoio que havia sido obtido pelo primeiro secretário nacional de
Segurança Pública do governo Lula, ao longo de seus dez meses de gestão. Uma PEC propondo a
“desconstitucionalização das polícias”, o que significa a transferência aos estados do poder para
decidirem, em suas Constituições Estaduais, qual modelo de polícia desejam ter — entre as opções,
inclusive, evidentemente, a preservação do modelo atual. (...) Além da PEC em prol da
desconstitucionalização, seria necessário estipular algumas regras gerais, de validade nacional, para
garantir o salto de qualidade e para evitar que a criatividade e o experimentalismo – estimulados pela
PEC – gerem mais fragmentação e obstáculos à cooperação do que já temos hoje (o que certamente
seria difícil, dado o grau atual do problema). Essas regras gerais são as normas para a criação do
Sistema Único de Segurança Pública (SUSP), também postulado — como a própria
desconstitucionalização — no Plano Nacional de Segurança Pública do governo Lula. (SOARES, 2006,
pp. 101 – 102).
O conjunto das reformas estruturais sofreu muitas resistências e não vingou. Porém,
aconteceram reformas residuais, como por exemplo: o Fundo Nacional de Segurança
Pública sofreu ajustes e recursos da Senasp passaram a financiar pesquisas na área da
segurança pública. Em 2003 foi publicado o primeiro edital de pesquisas em parceria com a
Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (Anpocs). Foram
quatro milhões e meio de reais e quase sessenta projetos aprovados. A demanda dos
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pesquisadores, que há anos cobravam a produção de bons diagnósticos e estudos sobre
segurança pública, fora atendida e possibilitou novo arejamento na Senasp.
Luiz Eduardo Soares chegou à Senasp muito empoderado pelo fato de ter sido o
principal articulador das discussões que redundaram no plano de segurança pública do
candidato Lula. Também gozava de apoio dentro de segmentos de vanguarda do Partido
dos Trabalhadores. Esses dois fatores foram fundamentais para sua assunção como
Secretário Nacional de Segurança Pública. Porém, seu nome não era um consenso. O
próprio presidente Lula e seu principal auxiliar, homem de confiança e da cota do
presidente, o então ministro da Justiça Marcio Thomaz Bastos, sabiam dos custos de
eventuais reformas estruturais na área da segurança pública.
O ministro Marcio Thomaz Bastos, inicialmente, deu liberdade para que Luiz Eduardo
iniciasse um processo de mudanças. Porém, Bastos não priorizou o tema da segurança
pública como principal agenda do Ministério da Justiça. Na condição de um jurista de
renome nacional, privilegiou os temas da reforma do Judiciário, como criação do Conselho
Nacional de Justiça. A segurança pública ficou como um tema circunscrito à Senasp.
Ademais, uma das propostas defendidas por Luiz Eduardo Soares desde a elaboração do
Plano de Governo de Lula era a criação de um ministério da segurança pública.
Efetivamente, essa proposta era objeto de muita disputa dentro e fora do governo,
corroborando também o gradual desgaste do titular da Senasp.
Não obstante, paulatinamente, a Senasp passa a ocupar um papel mais central na
gestão da política nacional de segurança pública. A parceria com as Universidades, a partir
do momento que teve recursos para financiar pesquisas, corrobora o papel indutor das
novas ações da Secretaria. O tema Segurança Pública ganha ainda mais visibilidade.
Não tendo como avançar em reformas estruturais, a equipe da Senasp resolveu
investir pesadamente na gestão da segurança pública. Pautou a discussão da criação de um
Sistema Único de Segurança Pública (Susp) e investiu na implementação, no âmbito dos
estados, dos Gabinetes de Gestão Integrada (GGIs) como mecanismos de gestão.
Luiz Eduardo Soares resolveu contratar uma consultoria, com o apoio da Federação
das Indústrias do Estado do Rio de Janeiro (Firjan), para definir as bases do Susp. Intitulado
de “Arquitetura do Susp”, o documento apresentava um amplo diagnóstico da segurança
pública e propostas inovadoras. Mas mostrou-se demasiado frágil como instrumento que
viabilizasse a implementação de fato de um sistema único da segurança, nos moldes, por
exemplo, do Sistema Único de Saúde (SUS). Produzido de forma autônoma, por consultores
externos à Senasp, a Arquitetura do Susp não se constituiu num programa de trabalho da
Senasp.
Enfrentando muitas resistências, principalmente da burocracia entranhada no
Ministério da Justiça e noutros órgãos do governo, Luiz Eduardo Soares entra em rota de
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colisão com vários segmentos do Governo e grupos de pressão ligados aos setores
contrários às mudanças estruturais na segurança pública.
Temendo uma desestabilização da governança em relação às polícias e às alianças
políticas, Lula acaba demitindo Soares, em outubro de 2003.
Sob o ponto de vista da retórica da mudança, a entrada de Luiz Fernando Correa
como Secretário Nacional de Segurança Pública não significou uma alteração substantiva
na política. Policial federal de carreira, o novo secretário nacional sinalizava uma
continuidade nas ações da Senasp, principalmente na tentativa de focar na gestão da
segurança pública o principal eixo político de atuação da Secretaria. Por isso, o novo
secretário envidava esforços para melhorar a capacidade de execução dos projetos da
Secretaria.
Porém, uma ruptura importante aconteceu no período: a entrada da Polícia Federal
como um ator relevante na política de segurança pública brasileira. Até então, a Polícia
Federal (PF) constituía-se como um ator fragmentado, tomada por disputas internas. Na
gestão de Thomaz Bastos e com a assunção de Luiz Fernando Correa, a instituição foi
valorizada e ganhou gradual relevância nas ações do Ministério da Justiça e no governo
Lula. Houve aporte de recursos para uma reestruturação das carreiras profissionais e a
construção de uma imagem de instituição policial modelo. As famosas operações da PF,
midiatizadas, ganharam destaque progressivo no noticiário e no imaginário social. No
cenário nacional, a PF, no Governo Lula, assume o lugar (de referência na política nacional
de segurança pública) que, no início do governo FHC, era ocupado pelos generais.
Em agosto de 2007, num momento de uma grave crise gerada, em certa medida,
pela atuação da PF, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva decidiu trocar a cúpula da Polícia
Federal e da Agência Brasileira de Inteligência (Abin). Lula nomeou Luiz Fernando Corrêa,
então Secretário Nacional de Segurança Pública, para comandar a PF e deslocou o então
diretor-geral da polícia, Paulo Lacerda, para a Abin, em substituição a Márcio Buzanelli. O
fato é que Luiz Fernando Correa acaba assumindo a chefia da Polícia Federal e no período
entre setembro de 2007 e março de 2008 assumiu como Secretário Nacional de Segurança
Pública o ex-deputado federal do PT do Rio de Janeiro, Antônio Carlos Biscaia – que
participara da elaboração do projeto Segurança Pública para o Brasil, do Instituto Cidadania
e também da Arquitetura do Susp.
Em 16 de março de 2007, Tarso Genro toma posse como novo ministro da Justiça,
em substituição a Márcio Thomaz Bastos, cargo que ocupou até 10 de fevereiro de 2010.
Tarso Genro, também homem de confiança de Lula, viu na segurança pública uma
janela de oportunidade para tentar impor sua marca pessoal no Ministério. Observando que
a pauta da segurança pública podia render-lhe bons dividendos políticos, o então ministro da
Justiça desejou pautar essa política como principal mote do Ministério da Justiça, ao
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contrário de Márcio Thomaz Bastos, que havia priorizado a Secretaria Nacional de Justiça e
as reformas no Judiciário.
Para marcar e demarcar sua gestão, Tarso Genro veio com a ideia de inovar. Sua
principal bandeira foi a criação do Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania,
o Pronasci. O fundamento dessa nova visão já estava presente, em certa medida, nas
concepções e nas políticas que vinham sendo implementadas pela Senasp. A ideia era
articular e implantar uma política nacional de segurança pública cuja referência e base
fundante fossem a garantia e a ampliação dos direitos de cidadania, superando o velho
paradigma segundo o qual a segurança pública é “coisa de polícia”.
Tendo
como
base
experiências
exitosas,
recomendadas
por
organismos
internacionais, como o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), que
indicam a metodologia da chamada “segurança cidadã”, Tarso optou não só por adotar essa
metodologia, mas diferenciar, inclusive nominalmente, o novo programa, imprimindo sua
marca. Assim, o nome do novo programa deixa explícita a diferenciação: segurança COM
cidadania.
Para implementar novas mudanças na política, dado que já havia um esforço da
Senasp na tentativa de não só ampliar a concepção acerca de segurança pública, mas dar
novo enfoque nas políticas setoriais, o novo ministro trouxe um grupo político,
majoritariamente gaúcho e ligado ao Partido dos Trabalhadores (PT), para conceber e
implementar o Pronasci.
Acontece que o grupo, formado por cerca de 10 pessoas, não tinha o conhecimento
técnico suficiente e específico sobre segurança pública. Tentou por algum tempo trabalhar
sozinho e, a certa altura, aliou-se, meio que forçosamente, à equipe da Senasp. Afinal, não
só a concepção, mas, principalmente, a gestão do novo programa demandavam o
conhecimento técnico e especializado da área da segurança.
À época, Tarso Genro confirmou como secretá

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