Revista Linha Mestra Ano VII. No. 23

Transcrição

Revista Linha Mestra Ano VII. No. 23
Revista Linha Mestra
Ano VII. No. 23 (ago.dez.2013)
ISNN: 1980-9026
Gustavo Torrezan
http://www.gustavotorrezan.com/
Revista Linha Mestra No. 23
SUMÁRIO
Expediente .................................................................................................................................. 8
Apresentação ............................................................................................................................ 10
Editorial .................................................................................................................................... 11
Artigos ...................................................................................................................................... 12
Sessão 1 – Geografias de experiência ...................................................................................... 12
Geografia experimental do corpo ou de como se chega a dizer outra coisa da geografia, da
terra, do mundo... ................................................................................................................. 12
Danilo Stank Ribeiro
Raphaela Desiderio
Ana Maria Hoepers Preve
Geografia de encontros! Incompreensões cartográficas na sala de aula e a invenção de
resistências ........................................................................................................................... 20
Karina Rousseng Dal Pont
Estrangeiridades em terras conhecidas ................................................................................. 25
Luíza Nunes Silva Fonseca
“A imagem que dança com a morte” ................................................................................... 32
Larissa Corrêa Firmino
Viviane Lima Ferreira
Plano-Sequência: o contato com realidades justapostas no espaço urbano ......................... 36
Karen Christine Rechia
Sessão 2 – Tempos e territórios das homossexualidades ......................................................... 42
A fofoca enquanto protagonista do jornal O Bonde ............................................................. 42
Jairo Barduni Filho
Telenovelas e homossexualidades e relações de poder e produções de subjetividades e... . 47
Marcelo Faria dos Anjos
Blogs e Internet: novos arranjos e territórios para as homossexualidades ........................... 52
Anderson Ferrari
Sessão 3 – Fotografias em fuga na/da geografia escolar .......................................................... 56
Transfigurando vazios escolares .......................................................................................... 56
Anabê Pinheiro Guimarães
Ana Maria Hoepers Preve
Versa vice – imagens e a percepção espacial ....................................................................... 72
Ludmila Santos
Carina Merheb
Entre imagens ....................................................................................................................... 75
Ivânia Marques
Alexsandro Sgobin
LINHA MESTRA, N.23, AGO.DEZ.2013
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Sessão 4 – Rizoma: saúde coletiva e instituições - multiplicidades possíveis na formação em
saúde ......................................................................................................................................... 84
Estágio Docência: a autonomia e a roda de conversa .......................................................... 84
Thiago de Sousa Freitas Lima
Juliana Pereira Simões
Mariana Andrade dos Santos
Helena de Arruda Penteado
Túlio Alberto Martins de Figueiredo
Saúde e Dança: movimentos e sensibilidades ...................................................................... 88
Thiago de Sousa Freitas Lima
Juliana Pereira Simões
Mariana Andrade dos Santos
Helena de Arruda Penteado
Túlio Alberto Martins de Figueiredo
Formação em Saúde Coletiva: novos dispositivos em análise................................................. 92
Thiago de Sousa Freitas Lima
Juliana Pereira Simões
Mariana Andrade dos Santos
Helena de Arruda Penteado
Túlio Alberto Martins de Figueiredo
Sessão 5 – Expressão, ruptura e colapso do pensamento linear em Gilles Deleuze ................ 96
Michelangelo Antonioni intercessor de Deleuze ................................................................. 96
Adriano Ricardo Mergulhão
Estilo e não-estilo nos personagens conceituais da filosofia.................................................... 101
Rubens José da Rocha
Vencer o clichê a partir do acaso: Deleuze, Bacon e Cage ................................................ 104
Fernando Sepe
Heterogênese: do começo da filosofia como acontecimento em Gilles Deleuze ............... 107
Caio A. T. Souto
Sessão 6 – Oficina, exposição, situação: territórios (e fugas) educativos da cidade nas imagens
................................................................................................................................................ 110
A arte em devir e outros devires para a espacialidade ....................................................... 110
Suianni Macedo
Os situacionistas: outros sentidos, num devir errante ........................................................ 114
Renata Lanza
Caio Gusmão Ferrer de Almeida
Plano de eXperimentação: oficina de desacostumar os olhos sobre o lugar ...................... 119
Cristiano Barbosa
Eduardo de Oliveira Belleza
Sessão 7 – Literatura e filosofia: intercessões ........................................................................ 124
Apesar dos “mortos embaixo”: considerações sobre a vida e a primavera em Húmus, de
Raul Brandão ...................................................................................................................... 124
Sérgio Henrique da Silva Lima
Um pouco de possível na obscenidade: processos de singularização em Fragmentos de um
discurso amoroso ............................................................................................................... 129
Rafael Lovisi Prado
E o porco se fez verbo: reflexões sobre o corpo a partir da ficção de Murilo Rubião ....... 135
LINHA MESTRA, N.23, AGO.DEZ.2013
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Cleber Araújo Cabral
Sessão 8 – Sobrepor um desatino vermelho... (ou ex-capando das capas) ............................ 140
Esperanças de um des(a)tino .............................................................................................. 140
Elenise Cristina Pires de Andrade
Renato Salgado de Melo Oliveira
Chapeuzinho Vermelho e os (in)significantes desenhos infantis ....................................... 148
Giovana Scareli
Soprepor? Transpor? Dispor? Imagens ressoam ................................................................ 155
Elenise Cristina Pires de Andrade
Erica Speglich
Sessão 9 – Desterritorializando a pornografia........................................................................ 162
Pós pornografia .................................................................................................................. 162
Fabiane M. Borges
Lady Incentivo: sexo, violência e alucinação..................................................................... 168
Fabiana Faleiros
Amor inorgânico ................................................................................................................ 173
Juliana Dorneles
Sessão 10 – Cartografias: território EJA ................................................................................ 177
A grade ............................................................................................................................... 177
Thiago Donda Rodrigues
Surfando a onda EJA .......................................................................................................... 181
Simone Moura Queiroz
Dispositivo educação de jovens e adultos .......................................................................... 187
Paola Amaris Ruidiaz
Sessão 11 – Território e vida .................................................................................................. 191
Vidas e territorialidades da rua: caminhos da redução de danos........................................ 191
Tadeu de Paula Souza
Máscara, simulacro e território: uma experiência de teatro na fundação casa ................... 196
Márcia Cristina Baltazar
Na trilha de outros Territórios: por um reencantamento da produção da existência.......... 202
Camila Cristina de Oliveira Rodrigues
Musicalidade e vida: territorializações e desterritorializações ........................................... 207
Ludimila Palucci Calsani
Sessão 12 – Território educação matemática: multiplicidades e singularidades ........................... 211
O que pode a Educação Matemática? ................................................................................ 211
Antonio Carlos Carrera de Souza
Movimento transversal na ATPC de matemática: território das afetações ........................ 216
Michela Tuchapesk da Silva
A coragem da verdade no olhar para o outro e nossas multiplicidades ............................. 220
Nadia Regina Baccan Cavamura
A Pantera Cor de Rosa na formação de educadores matemáticos ..................................... 225
Tassia Ferreira Tartaro
LINHA MESTRA, N.23, AGO.DEZ.2013
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Sessão 13 – Para uma escrita delirante pelas linhas da diferença: novos modos de pensamento
................................................................................................................................................ 229
Capturando corpos nas páginas pré-textuais de trabalhos acadêmicos .............................. 229
Lucineide Nascimento
Blocos de sensações: imagens e experiências em fotografias, dilatações... ....................... 234
Maria dos Remédios de Brito
Manoel Neto
As filosofias da diferença de Nietzsche e de Deleuze: para construir outros modos ......... 240
Isabella Vivianny Santana Heinen
Ingrid Larissa Santana Heinen
Sessão 14 – Filosofia, cinema e literatura .............................................................................. 245
O Processo segundo Franz Kafka e Orson Welles ............................................................. 245
Prof. Dr. Charles Feitosa
Esgotar as palavras... rachar o pensamento ........................................................................ 248
Profa. Dra. Angela A. Donini
Deleuze entre os Beats e o Road Movie: Considerações .................................................... 252
Prof. Dr. Alessandro Sales
Sessão 15 – Entre afetos e encontros com imagens ............................................................... 258
Possíveis conexões para uma aprendizagem afetiva no encontro entre pintura e cinema . 258
Marcus Novaes
Personagens desterritorializadas em imagens e tempos ..................................................... 264
Pamela Sanches
Terràvista ............................................................................................................................ 268
Marcelo de Albuquerque Vaz Pupo
Arte de rua e Conexões ...................................................................................................... 272
Juliana Aparecida Jonson Gonçalves
Sessão 16 – Subjetividade e identidade: linhas duras, linhas de flexíveis e linhas de fuga no
contemporâneo ....................................................................................................................... 277
Produção de subjetividades contemporâneas e a indústria farmacológica ......................... 277
Izabela Orlandi Môro
Carolina Pimentel Batitucci
Fernanda Negri Smith
Luana Moura Garcia
Nathália Nunes Pirola
Produção de subjetividades contemporâneas e tecnologias diet/light ................................ 283
Carolina Pimentel Batitucci
Izabela Orlandi Môro
Fernanda Negri Smith
Luana Moura Garcia
Nathália Nunes Pirola
Produção de subjetividades contemporâneas e literatura de autoajuda.............................. 287
Nathália Nunes Pirola
Luana Moura Garcia
Izabela Orlandi Môro
Fernanda Negri Smith
Carolina Pimentel Batitucci
LINHA MESTRA, N.23, AGO.DEZ.2013
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Produção de subjetividades contemporâneas e mídia ........................................................ 292
Fernanda Negri Smith
Nathália Nunes Pirola
Luana Moura Garcia
Izabela Orlandi Môro
Carolina Pimentel Batitucci
Sessão 17 – Territórios do cuidado: espaço, cultura e produção de subjetividade ................ 296
Territórios e sentidos: espaço, cultura e cuidado na atenção em saúde mental ................. 296
Elizabeth Maria Freire de Araújo Lima
Silvio Yasui
O ato em cena ..................................................................................................................... 301
Rafael Michel Domenes
Tessituras de territórios de vida nos espaços urbanos ........................................................ 305
Juliana Araújo Silva
A Rede de Sustentação do PACTO: acompanhamento terapêutico e agenciamento de redes
no território ......................................................................................................................... 313
Erika Alvarez Inforsato
Renata Monteiro Buelau
Elizabeth Maria Freire de Araújo Lima
Sessão 18 – Poesias, imagens e africanidades: desequilíbrios nos territórios identitários e
autorais ................................................................................................................................... 317
Coletivo Fabulografias: que potências, que fronteiras? .................................................... 317
Alik Wunder
Alessandra Melo
Escritas ao vento................................................................................................................. 322
Alda Romaguera
Davina Marques
Que áfricas fotografam melhor você? Uma didática menor a partir do Projeto Fabulografias
............................................................................................................................................ 327
Glauco Roberto da Silva
Sessão 19 – Corpos a traçar linhas desterritorializadas.......................................................... 333
Acontecimentos nas superfícies: desterritorializações de corpos-clichês na performance 333
Juliana Soares Bom-Tempo
Pensamento besteira em corpos fílmicos ou como fazer um filme ..................................... 338
Laisa Blancy de Oliveira Guarienti
A figura genealógica do monstruoso: corpos deformados, desmedidos e repugnantes ..... 343
Alexandre Filordi de Carvalho
Corpos abandonados na escrita .......................................................................................... 348
Vivian Marina Redi Pontin
Sessão 20 – Cuidado e produção de linha de fuga ................................................................. 353
Produção de redes e produção do comum .......................................................................... 353
Bruno Mariani de Souza Azevedo
Michele Eichelberger
Sérgio Resende Carvalho
A rede de centros de convivência no SUS: linhas de fuga da superfície-tratamento ......... 359
Sabrina Ferigato
LINHA MESTRA, N.23, AGO.DEZ.2013
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Sergio Resende Carvalho
Clínica e Dança: Um ensaio sobre rupturas e contágios .................................................... 365
Bruna Martins Reis
Sérgio Resende Carvalho
Sessão 21 – Formação como processo ético-estético-político ................................................... 370
Ato de Criação: desterritorialização e descodificação de uma linha de pesquisa .............. 370
Tarcísio Moreira Mendes
O devir da cultura e a formação de territórios existenciais ................................................ 374
Marcos Vinícius Leite
Um menino que servia para UMA teia E uma teia que servia para UM menino E um... que
servia para aranha... que servia... ....................................................................................... 379
Leandro Barreto Dutra
Margareth A. Sacramento Rotondo
Tamiris Taroco Marocco
Território boca .................................................................................................................... 385
Fabrício Carvalho
Formação como processo ético-estético-político... E... E... ............................................... 399
Travessia Grupo de Pesquisa ...................................................................................... 399
Sonia Maria Clareto
Margareth A. Sacramento Rotondo
Leandro Barreto Dutra
Marcos Vinícius Leite
Tarcísio Moreira Mendes
Tamiris Taroco Marocco
Sessão 22 – Corpo e experiências de desterritorialização ...................................................... 404
Corpos sem órgãos e fronteiras .......................................................................................... 404
Paola Sanfelice Zeppini
A propósito de tener un cuerpo: Deleuze y Leibniz ........................................................... 408
Gonzalo Montenegro
LINHA MESTRA, N.23, AGO.DEZ.2013
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EXPEDIENTE
Editoras:
Alda Regina Tognini Romaguera
Alik Wunder
Comitê Científico:
Diretoria da ALB
Colegiado de Representantes da ALB
Participação Especial nesta Edição
Equipe Técnica - Comissão Organizadora do V Seminário Conexões:
Wenceslao Machado de Oliveira Jr (FE/Unicamp)
Antônio Carlos Rodrigues de Amorim (FE/Unicamp)
Sílvio Gallo (FE/Unicamp)
Daniel Lins (UFC)
Claudio Benito Ferraz de Oliveira (UNESP/Pres. Prudente)
Gisele Girardi (UFES)
Davina Marques (IFSP)
Alunos da FE/Unicamp:
Cristiano Barbosa
Maria Aparecida de Almeida Gonçalves
Carina Merheb de Azevedo Souza
Suianni Macedo
Ludmila Sarraipa
Eduardo de Oliveira Belleza
Ivânia Marques
Caio Ferrer Gusmão
Lincoln John Leite Medeiros
Técnicos:
Carmen Lúcia Rodrigues Arruda
Thaís Rodrigues Marin
Jórgias Alves Ferreira (Mike)
Roberta Rabello Pozzuto
Lucy Rudék
Comissão Científica:
Ada Kroef (UFC)
Alik Wunder (PUCCamp e Unicamp)
Ana Lúcia de Godoy Pinheiro
Ana Maria Hoepers Preve (UDESC)
David Le Breton (l’Université de Strasbourg)
Eduardo Pellejero (UFRN)
Elenise Cristina Pires de Andrade (UEFS)
Ester Maria Dreher Heuser (UNIOESTE)
Eugénia Vilela (Universidade do Porto)
Flaviana Gasparotti Nunes (UFGD)
Guilherme Correa (UFSM)
Henrique Parra (UNIFESP)
Jones Dari Goettert (UFGD)
José Gil (Universidade de Lisboa)
LINHA MESTRA, N.23, AGO.DEZ.2013
8
Renata Lima Aspis (UFMG)
Rodrigo Pelloso Gelamo (Unesp-Marília)
Susana de Oliveira Dias (Unicamp)
Walter Omar Kohan (UERJ)
Arte:
Gustavo Torrezan
http://www.gustavotorrezan.com/
Editoração:
Nelson Silva
LINHA MESTRA, N.23, AGO.DEZ.2013
9
APRESENTAÇÃO
O Seminário Conexões, momento e lugar de encontro e proliferação de ideias do
pensamento filosófico, chegou à sua quinta edição a partir do tema “Deleuze e Territórios e
Fugas e…”. Desde 2009, o Conexões é organizado pelo Laboratório de Estudos Audiovisuais
(OLHO) e pelo grupo Diferenças e Subjetividades em Educação (DiS), ambos grupos de
pesquisa do Programa de Pós-Graduação em Educação da Unicamp, em torno de conceitos de
Gilles Deleuze; essa escolha se justifica pela relevância contemporânea de sua obra e pela
possibilidade de ramificações que ela permite com outros pensadores, como Michel Foucault,
Friedrich Nietzsche, Giorgio Agamben, por exemplo. O “e” permite transitar no meio,
enfatizar as possíveis e inimagináveis conexões, potencializando o movimento. Busca-se,
nesse seminário, não a defesa de um fundamento enraizante, mas um movimentar-se entre
ideias, levar a pensamentos, produzir encontros, sínteses disjuntivas. Assim, múltiplas
conexões são realizadas em cada uma de suas edições. Além do “e”, destaca-se na proposta do
Seminário Conexões a pontuação final, as reticências, porque a filosofia de Gilles Deleuze
não pressupõe nunca o ponto final ou a conclusão, mas se abre e convida a proliferações. Em
2013 o V Seminário Conexões: Deleuze e Território e Fugas e… salientou a dimensão
geofilosófica que atravessa o pensamento deleuziano e sua realização se efetuou em direta
sintonia e participação dos pesquisadores do Projeto “Imagens, Geografias e Educação”
(CNPq 477376/2011-8), que envolve pesquisadores de dez universidades brasileiras. Em
resumo, esse projeto busca a consolidação de uma rede de pesquisa entre seis núcleos
acadêmicos – Campinas [UNICAMP/USP/UNIFESP], Dourados [UFGD/UNESP-Presidente
Prudente], Vitória [UFES], Florianópolis [UDESC/Colégio de Aplicação-UFSC], Natal
[UFRN] e Crato [URCA] propondo o estudo e a criação visual e audiovisual de obras que
venham a potencializar novas maneiras de imaginar o espaço (Massey, 2008), bem como
novos percursos educativos onde as imagens ganhem outros sentidos e forças. O Conexões
ocorreu também, nesta edição, em rizoma com o XII Simpósio Internacional de Filosofia
Nietzsche/Deleuze, que, desde 1999, organiza-se na interação entre as Ciências Sociais e a
Filosofia, trabalhando com os intercessores/pensadores referenciados em seu nome.
Nietzsche, por sua inserção na ideia segundo a qual a Filosofia, o pensamento, não é alheia à
vida em todas as suas dimensões – artísticas, históricas, econômicas e sociais…; Deleuze,
filósofo da diferença e da multiplicidade, porque pareceu corresponder às vinculações
necessárias entre a Filosofia e aquilo que comumente se nomeia não Filosofia, e que
representa os “intercessores” primordiais à construção do pensamento da diferença. Desde
2009, o Simpósio Internacional de Filosofia Nietzsche/Deleuze acontecia em Fortaleza/Ceará,
mas a partir de 2011, passou a ser nômade e bienal. Com alegria, o V Conexões, em
Campinas, conectou-se a esse simpósio, em novas composições.
Mais informações sobre o evento no blog http://conexoes2013.wordpress.com/.
LINHA MESTRA, N.23, AGO.DEZ.2013
10
EDITORIAL
A publicação on-line da revista Linha Mestra efetiva uma das propostas editoriais da
Associação de Leitura do Brasil (ALB), que é ampliar o acesso e a circulação de textos
voltados à educação e leitura, em conexão como outras temáticas contemporâneas.
Neste número 23, a Revista Linha Mestra apresenta com muita satisfação os artigos e
resumos expandidos referentes às comunicações orais de dois eventos que ocorreram
conjuntamente em agosto de 2013 na Universidade Estadual de Campinas: o V Seminário
Conexões – Deleuze e Território e Fugas e… e o XII Simpósio Internacional de Filosofia –
Nietzsche/Deleuze.
A Revista está organizada em sessões de três a quatro textos, agrupados por tema, grupo
de pesquisa, instituição ou outra conexão apontada pelo coletivo organizador. Os trabalhos
movimentam-se de forma criativa, instigante e singular por conceitos de Deleuze e Nietzsche
entre outros autores, e por temas variados como educação, imagens, geografias, corpos, saúde,
sexualidades, mídias e artes e...
Desejamos uma leitura de bons encontros e potentes conexões!
Alik Wunder
Alda Romaguera
LINHA MESTRA, N.23, AGO.DEZ.2013
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ARTIGOS
SESSÃO 1 – GEOGRAFIAS DE EXPERIÊNCIA
GEOGRAFIA EXPERIMENTAL DO CORPO OU DE COMO SE CHEGA A
DIZER OUTRA COISA DA GEOGRAFIA, DA TERRA, DO MUNDO...
Danilo Stank Ribeiro 1
Raphaela Desiderio 2
Ana Maria Hoepers Preve 3
E ai! Parou? Agora que parou, dê um tempo. Feche os olhos, inspire...
Expire... Respire. Sinta o corpo. Somente sinta. De uma pausa nas coisas do
dia. É tanta informação, tanta coisa se mexendo que não dá tempo nem de
pensar.
Então
simplesmente pare. E somente experimente dar um tempo e relaxar.
Fazendo um gesto com as mãos simbolizando uma barriga, a aluna falou: mas o corpo
também tem seus relevos! Isso aconteceu quando um de nós fazia uma atividade 4 da oficina
através do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência (PIBID subárea
Geografia) numa turma de 5º ano do Ensino Fundamental. E a resposta inesperada reverbera
até hoje como uma pergunta: o corpo também tem suas geografias, também experimenta
geografias? Que geografias são essas que vibram no corpo quando ele se relaciona e se
envolve com outro, com o espaço, com a terra, com o mundo? Essa geografia que a gente
experimenta com o corpo, esses estímulos espaciais diários que nos aproximam do espaço,
que nos forçam a conhecê-lo de outro modo. Experimentar. Isso é o que permeia a ideia
fundamental da oficina “Geografia Experimental do Corpo”.
Sentir é, antes de tudo, se aproximar, de algum modo (e são muitos os modos), do
mundo. A terra molhada entre os dedos dos pés descalços, um banho de mar, uma comida boa
ou amarga, a coceira de uma picada de mosquito, uma lembrança que nos chega quando
sentimos um cheiro de nossa infância, o cansaço e o calor que sentimos quando percorremos
páginas de um livro que se passa no deserto, tristezas e/ou alegrias que visitamos quando
assistimos a um filme, a dor e o prazer que experimentamos quando amamos alguém, ou a
sacies tomando um gole de água depois de ter percorrido uma longa jornada sob o sol a pino...
detalhes que o corpo experimenta quando se permanece por algum tempo nesses percursos
1
Acadêmico da 5ª fase de curso do curso de Geografia/Faed/Udesc, membro da Rede Nacional de pesquisas em
Geografias, Imagens e Educação, Polo Santa Catarina, articulado ao grupo Geografias de Experiência vinculado
ao Laboratório de Estudos e Pesquisas de Educação em Geografia/Lepegeo/Faed/Udesc. Bolsista no Programa
Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência (Pibid), subárea Geografia, sob a orientação da Profª Dra. Ana
Maria H. Preve. E-mail: [email protected]
2
Doutoranda no Programa de Pós-graduação em Geografia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul,
pesquisadora do Laboratório de Estudos e Pesquisas de Educação em Geografia – Faed/Udesc e membro da
Rede Nacional de pesquisas em Geografias, Imagens e Educação, Polo Santa Catarina, articulado ao grupo
Geografias de Experiência, vinculado ao Laboratório de Estudos e Pesquisas de Educação em
Geografia/Lepegeo/Faed/Udesc. E-mail: [email protected]
3
Professora do Departamento de Geografia e do Programa de Pós Graduação em Educação, Faed/Udesc,
membro da Rede Nacional de pesquisas em Geografias, Imagens e Educação, Polo Santa Catarina, articulado ao
grupo Geografias de Experiência, vinculado ao Laboratório de Estudos e Pesquisas de Educação em
Geografia/Lepegeo/Faed/Udesc. E-mail: [email protected]
4
Atividade realizada por Danilo Stank Ribeiro na Escola de Educação Básica Simão José Hess em
Florianópolis/SC.
LINHA MESTRA, N.23, AGO.DEZ.2013
12
GEOGRAFIA EXPERIMENTAL DO CORPO...
intensivos, nisso que se faz por vezes sem sair do lugar, e que com nosso olhar distante,
apressado, mal conseguimos notar. São essas coisas que nos dizem muito sobre o mundo,
sobre nós mesmos, e que desafiam nosso senso, nossa certeza sobre as coisas. Porque
experimentar não tem nada a ver com estar informado.
O trabalho que propusemos juntos trata de, ao interromper os esquemas sensóriomotores, ativar o aparecimento de imagens ótico-sonoras, conforme Deleuze em A
imagem tempo. Em um momento no qual há excesso de informações, no qual o contato
com o mundo passa a ser mediado por meios de comunicação (TV, computador), e a
velocidade/validade das coisas e pessoas parece passar cada dia mais depressa, o que
significa dar um tempo e experimentar o corpo no espaço (ou experimentar o espaço com
o corpo) sem o uso da visão?
Com uma venda nos olhos, ver (o sentido da visão) – que antes dominava o conceito
sobre as coisas, e que atestava o domínio de nossas certezas – torna-se abstrato, confuso,
escuro. Nisso o corpo pede outras referências, pede pelos outros sentidos e as dimensões (do
mundo experimentado) ‘se resumem’ ao que tocamos, cheiramos, e ao longe, o que ouvimos.
Cada objeto, lugar, paisagem, espaço (todos estes grandes conceitos geográficos) adquirem
novos usos, novos significados, únicos talvez, assim como são únicas as experimentações que
fazemos no mundo.
***
Uma turma de crianças de 5º ano do Ensino Fundamental de uma escola pública, uma
prática e seus desdobramentos. Uma proposição, uma iniciação cartográfica a partir de
sensações corporais. Crianças, ideias, anotações, planos e apontamentos compõem um mapa
inicial para a partida. Um mapa que, segundo Preve (2010), é um indicador de como
determinada coisa (qualquer coisa), fenômeno, lugar, situação se distribuem na superfície da
Terra e/ou dos corpos. Mapa como Geografia das coisas e dos acontecimentos, como uma
possibilidade de expressar a nossa realidade, de conhecer o que os outros têm observado e ou
imaginado sobre o mundo (WOOD, 2013). A cartografia, a arte da produção dos mapas, não
se restringe ao mapa representacional utilizado na geografia, mas também exprime relações
que constituem uma topografia das forças invisíveis. A este respeito, Godoy (2013, p. 209)
diz: “menos que descrever o já visto, ou dar um contorno e uma localização ao já existente,
parece haver nela [na cartografia], primeiro, o impulso de trazer algo novo para o mundo.”
Fotografias (outras) como mapas! Desenhos de crianças e desenhos de adultos – após terem
percorrido sem o uso comum da visão – trazem à tona a topografia das forças invisíveis das
paisagens.
De olhos vendados, uma turma de alunos da 1ª fase do curso de Licenciatura em
Geografia da UDESC. Um trajeto inventado, previamente demarcado com algumas
estacas e cordas, noutros trechos totalmente destituídos de marcadores espaciais. Percurso
definido cujo indicativo inicial era: desfazer os pontos cardinais dos alunos, girando-os
sobre si algumas vezes, retirando deles a possibilidade de saber para onde estavam
partindo, sabendo apenas que partiriam para um percurso no lugar de todos os dias. Sons
diferentes produzidos pelos oficineiros com o uso de objetos, cheiros provocados por
cascas e raspas de uma fruta, algum incenso, conchas tocando as orelhas e deslocando
mais ainda os experimentadores do espaço... um cheiro, o barulho do mar, um saquinho
com pedrinhas e/ou feijão para que as mãos tocassem, uma corda para segurar, por aí
outras combinações foram feitas. Nesse movimento de andar-experimentar ficamos algum
tempo daquela noite. Trechos de leituras do livro Caminhando no gelo, de Werner Herzog,
e de Andara, de Vicent Franz Cecin...
LINHA MESTRA, N.23, AGO.DEZ.2013
13
GEOGRAFIA EXPERIMENTAL DO CORPO...
Como cartografar essa experiência e produzir mapas com essas topografias em
evidência? O desafio talvez seja o mesmo que Deleuze nos apresenta na Lógica da sensação
quando diz do pintar as forças.
Uma oficina, um espaço em educação para proporcionar experiências ligadas às
relações sensitivas do corpo com o espaço. Nesta, propomos a exclusão do ver, do ver com os
olhos, e com isso ativamos um ‘ver a mais’ apoiado no que o corpo tem disponível para
explorar o mundo e que na maioria das vezes está adormecido. Porque um corpo pode mais
do que está previsto.
Provocar uma experiência, inventar modos e jeitos de experimentar o espaço com o
corpo, traçar um percurso sensitivo, problematizar a dificuldade de pensar e produzir
Geografia para além do visual, do externo, do longínquo, compor por estímulos sensoriais
mapas.
***
Uma venda preta, noite escura, os estudantes de mão dadas esperavam aflitos.
Reunidos na entrada da Faculdade de Educação e Ciências Humanas da Udesc alguns
diziam “o que vocês vão fazer com a gente?”, “isso é trote!”, outros aguardavam em
silêncio, demonstrando um misto de ansiedade e nervosismo diante do desconhecido ou
simplesmente daquilo que não podiam ver. Pedíamos que, a partir do momento que
tivessem os olhos vendados, dessem as mãos a quem estivesse mais próximo e acionassem
os ouvidos, se deixassem guiar apenas pelas coordenadas oferecidas, que deixassem o
corpo aberto ao percurso que se iniciava.
Cordas demarcavam alguns pedaços de caminho dentro do campus, incensos, frutas,
sementes, grãos, folhas secas, instrumentos musicais, trechos de textos e coisas que
encontrávamos ao andar, compunham aquele espaço de sensações que eram provocadas e
acionadas também por outros estudantes que se envolveram voluntariamente em nossa
experiência, querendo participar e fazer coro a uma experiência que não acontece nas aulas
que compõe a grade curricular do curso de Geografia. Ao caminhar, barulhos, odores,
sensações eram ativadas e somavam-se ao andar guiado apenas pelas coordenadas novas e,
muito mais, pelo toque das mãos desajeitadas que se uniam, formando um grande cordão.
A um sinal diferente todos paravam. Sentados ouviam barulhos que denunciavam o
deslocamento e que acionavam a imaginação, como o barulho da concha próxima aos
ouvidos, dos carros que transitavam. Sentiam cheiros. Degustavam maracujá, castanha-dopará, uva, e tocavam noutras texturas.
Outro sinal e novamente as mãos se unem e o percurso se refaz. Dessa vez o caminho
passa por um espaço arborizado, com o mato chegando próximo aos joelhos. “Onde
estamos?”, perguntam alguns aflitos e curiosos, quase sujos pelo capim-graxa. “Ai meu
deus!”. “Abaixem-se, há obstáculos!” As mãos unidas serviam como um rumo, uma
orientação em um caminho que não se pode olhar.
“Não aguento mais ficar de olhos vendados!”. “Vai demorar muito ainda?!”. Alguns
demonstram a dificuldade de estar desprovido da sua principal forma de olhar o mundo. Mais
uma vez pedimos que sentassem e desatassem as mãos. Enquanto outros silenciosamente
andavam, abertos aos toques.
Um toque:
“Peguei um casaco, uma bússola e uma sacola com o indispensável”
“Tanta coisa passa pela cabeça de quem caminha”, “Vê-se nos rostos o
quanto nos tornamos parecidos com os carros em que andamos” (Herzog,
1982, p. 7, 10 e 12).
LINHA MESTRA, N.23, AGO.DEZ.2013
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GEOGRAFIA EXPERIMENTAL DO CORPO...
“Andara às vezes não é nada
É só uma estrada” (Cecin, 2006, p.161)
Barulhos agitavam os estudantes. Grãos de milho choviam sobre seus corpos. Tirem as
vendas! “Ufa, não aguentava mais!”. Ou, “ai que bom, por que não continuam?, “Nossa,
onde estamos?”. Antes disso, após a leitura destes trechos, houve emissões coletivas de sons,
como gritos, uivos, berros, produzindo uma experiência única, como se tivéssemos criado um
corpo único.
Rolou ali mesmo uma conversa sobre um percurso experimentado. O exercício que
solicitamos vinculava-se às atividades realizadas na disciplina de História do Pensamento
Geográfico. Discutíamos o quanto a observação, o olhar, era condição básica para a
elaboração de trabalhos que tinham um caráter especificamente geográfico, das detalhadas e
exaustivas descrições, dos relatos e das narrativas dos viajantes que eram consideradas
Geografia antes mesmo de ser nomeada como ciência, a observação segue sendo importante.
O viajante, o explorador, o pesquisador volta do campo e registra/descreve/enumera aquilo
que observou ao seu modo. E, às vezes, um registro era composto apenas por traços
expressando perfis de solo ouuma descrição minuciosa de determinada paisagem.
Expressar um trajeto percorrido de olhos vendados era então um problema a ser
resolvido por esses estudantes da primeira fase, por nós também: como cartografar a
experiência e produzir mapas com essas topografias experimentadas? Inspirados por um
“como pintar as forças?”.
Elaborar um mapa! Nós, de posse dos mapas elaborados, apresentamos as soluções
encontradas por esses viajantes, diante da solicitação de cartografar sensações, de produzir
mapas das topografias das forças invisíveis.
***
Mapas reais, mapas imaginados
O mapa [da geografia] não nos deixa ver coisa
alguma. Mas ele nos deixa saber o que os outros têm
visto ou imaginado [...]. Ele nos deixa saber o que os
outros têm sonhado ou inventado [...].
Denis Wood
“Que registro difícil!”, diz uma estudante diante do problema a resolver! Cores, lápis
de cor, massa de modelar, folhas secas recolhidas da rua, cartolinas e algumas ideias. Um
barco, a sensação de estar à deriva, sem rumo, um barco que navega numa superfície terrestre,
marcada no desenho como por um caminho traçado. Um pedaço de maracujá para expressar
os sabores do percurso e algumas folhas secas que ocupam o espaço do som, do barulho.
“Usamos as folhas para o barulho”, barulho que provocou sensações, sensações de angústia,
de raiva. “Eu senti raiva”, relatou uma das cartógrafas, referindo-se ao barulho de um dos
instrumentos utilizados no trajeto que, segundo ela, parecia um barulho de pato.
LINHA MESTRA, N.23, AGO.DEZ.2013
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GEOGRAFIA EXPERIMENTAL DO CORPO...
O barulho e os sabores como aberturas, a busca por equilibro diante da ausência do
olhar apresentado por símbolos. O barulho das ondas, do instrumento musical e das folhas.
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GEOGRAFIA EXPERIMENTAL DO CORPO...
Aqui, as linhas são labirintos, a mão aparece como elemento central que abriga um olho.
A expressão da importância do toque das mãos como forma de “visualizar” o percurso. Nas
falas, ficava clara a importância das mãos unidas como uma segurança, uma referência para
enfrentar o caminhar pelo desconhecido. Assim, ”enxergava-se com as mãos!”.
As cores, as linhas, a invisibilidade. O cérebro colorido, colorido que é a imaginação.
Imaginamos quando não podemos ver, todas as cores juntas expressam os sentidos, tudo
misturado na cabeça.
LINHA MESTRA, N.23, AGO.DEZ.2013
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GEOGRAFIA EXPERIMENTAL DO CORPO...
Começamos com uma pergunta-reverberação: o corpo também tem suas geografias,
também experimenta geografias? Que geografias são essas que vibram no corpo quando ele se
relaciona e se envolve com outro, com o espaço, com a terra, com o mundo, com...?
Na ordem ‘normal’ das coisas se espera um fechamento para um texto, uma resposta,
algo que aponte para alguma direção... Mas, como quem percorre um caminho de olhos
vendados, só podemos supor, desconfiar. E, nessa suposição, nossas dúvidas é que apontam,
referem (de referência). Deixamos uma dúvida porvir. Como carto(grafar), expressar esse
fenômeno espacial-corpóreo quando ele se dá em um instante, quando ele não é fixo e sim
móvel, quando ele se dá em 1:1? Como fazer um mapa cujas qualidades da coisa a ser
mapeada é a mobilidade, o movediço??
Referências
HERZOG, Werner. Caminhando no gelo. Trad. Lúcia Nagib. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1982.
WOOD, Denis. Dogma visualizado. Estado-nação, Terra, Rios. In. CAZETTA, Valéria;
OLIVEIRA JR., Wenceslao M. (Orgs.). Grafias do Espaço: imagens da educação geográfica
contemporânea. Campinas, SP: Alínea, 2013.
LINHA MESTRA, N.23, AGO.DEZ.2013
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GEOGRAFIA EXPERIMENTAL DO CORPO...
CECIN, Vicente Franz. Viagem a Andara - o livro invisível. São Paulo: Iluminuras, 1988.
DELEUZE, Gilles. Francis Bacon. Lógica da sensação. Coord. da Trad. Roberto Machado.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007.
______. A imagem-tempo. Trad. Stella Senra. São Paulo: Brasiliense, 2007. (Cinema 2)
PREVE, Ana Maria H. Mapas, prisão e fugas: cartografias intensivas em educação. 2010.
268f. Tese (Doutorado em Educação) - Faculdade de Educação, Universidade Estadual de
Campinas, Campinas, São Paulo, 2010.
GODOY, Ana. Mídia, Imagens, Espaço: notas sobre uma poética e uma política como
dramatização geográfica. In: CAZETTA, Valéria; OLIVEIRA JR., Wenceslao (Orgs.).
Grafias do espaço: imagens na educação geográfica contemporânea. Campinas, SP: Alínea,
2013.
LINHA MESTRA, N.23, AGO.DEZ.2013
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GEOGRAFIA DE ENCONTROS!
INCOMPREENSÕES CARTOGRÁFICAS NA SALA DE AULA E A
INVENÇÃO DE RESISTÊNCIAS
Karina Rousseng Dal Pont 1
O primeiro encontro
Durante os deslocamentos pela 8ª Bienal do Mercosul (2011, Porto Alegre) o encontro
com a obra Geografia de Encontros de Mayana Redin 2, provocou questionamentos sobre as
possibilidades de intersecções entre a arte contemporânea e a cartografia escolar. Trata-se de
uma série de desenhos de nanquim sobre papeis vegetais sobrepostos (29,7 cm x 42 cm) em
que a artista “cria cartografias a partir da sobreposição de lugares e paisagens – ou das linhas
que circunscrevem suas formas e definem suas fronteiras. São essas abstrações, limites
observáveis apenas no papel [...] que escrevem as aproximações promovidas pela artista”
(Ramos, 2011, p.212). Assim foi possível observar encontros entre lugares reais que a
cartografia oficial jamais possibilitaria como “Encontro de países sem mar” (2011), ou
“Mônaco encontra a Rússia” (2011) (Figura 01).
A desobediência às regras de configuração de um mapa oficial como escalas, legendas,
fontes, nestas obras atuam como ferramentas que deslocam a cartografia oficial, e,
consequentemente, as formas de pensar o espaço e nos modos de produzir suas apresentações.
Pois, a cartografia oficial pela força que possui em sua perspectiva vertical de representar o
espaço provoca achatamentos ao tornar os relevos, depressões, movimentos de crosta,
sensações e dinâmicas, tudo que é vivo na superfície da Terra em elementos estáticos.
Imobiliza a formação de um pensamento espacial ao dar aos mapas oficiais a verdade sobre as
formas de apresentar o espaço, dando a impressão de que este é apenas uma superfície, uma
esfera de uma completa horizontalidade (Massey, 2008, p.160). Faz obliterar pela força da
ordem as subjetividades humanas que também são necessárias aos processos de produção,
apresentação e compreensão do espaço 3. Ou seja, as relações que os sujeitos criam através das
experiências cotidianas com as ruas, os monumentos, as praças, as esquinas, os relevos, na
sua maioria são negligenciadas num mapa oficial.
1
Professora colaboradora no Curso de Pegadogia da Faed/Udesc e professora na Rede Pública Estadual de Santa
Catarina. Pesquisadora do Laboratório de Estudos e Pesquisas de Educação em Geografia – Faed/Udesc e
membro da Rede Nacional de pesquisas em Geografias, Imagens e Educação, Polo Santa Catarina, articulado ao
grupo Geografias de Experiência, vinculado ao Laboratório de Estudos e Pesquisas de Educação em
Geografia/Lepegeo/Faed/Udesc. E-mail: [email protected]
2
Mayana Redin (1984) é uma artista brasileira que trabalha com desenhos e “constrói geografias fictícias,
encontros impensados. Mares, montanhas, ilhas, buracos negros, vales e penhascos são alguns elementos que
integram seus trabalhos, realizados em nanquim, grafite, aquarela, ou ainda, por meio de vídeos e instalações”
(Ramos, 2011, p.211).
3
Neste texto utilizo de acordo com Wenceslao Oliveira Júnior, o termo “representação do espaço” relacionada à
cartografia oficial com todos seus aparatos de legitimidade: como legendas, escala, símbolos, etc. E o termo
“apresentação do espaço” rumo a outras cartografias para além da oficial, ou seja, aquela que escolhemos como
outras formas de dizer do espaço.
LINHA MESTRA, N.23, AGO.DEZ.2013
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GEOGRAFIA DE ENCONTROS!
Figura 01: Mônaco encontra a Rússia, 2011. Nanquim sobre papel vegetal, 29,7cm x 42 cm.
Foto: Cristiane Geraldelli. Fonte: 8ª Bienal do Mercosul: ensaios de geopoética: catálogo, 2011, p. 212.
A experiência realizada durante as aulas introdutórias de geografia com uma turma do 7º ano
do Ensino Fundamental a partir da obra de Mayana Redim foi uma forma de criar uma discussão,
inserida ao contexto escolar, sobre as produções de verdades que a cartografia oficial produz sobre o
espaço. Considerando o processo de alfabetização cartográfica como mais uma forma que tende a
limitar os sentidos da cartografia e da compreensão do espaço. Pois a cartografia como é ensinada
nas escolas deriva de uma ideia cartesiana e positivista de tomar o espaço como superfície, e a
imagem reproduzida nos mapas utilizados em sala de aula como verdade.
Nesse sentido, a partir do encontro com a arte contemporânea, não como o melhor ou
único meio de dizer as coisas do mundo, mas como possibilidade de intervenção na
cartografia oficial tomou-se, no sentido deleuziano, a arte como criação de outras cartografias,
como resistência ao que aí está posto, principalmente pelas obras didáticas. Resistir não
somente como uma situação de oposição ou negação a cartografia oficial, mas de acordo com
Paulo Domenech Oneto (2007, pág.210) “resistir é antes re-existir, se projetar para além do
presente, para além de nossas experiências já codificadas, para além de um domínio do
possível decidido de antemão nas esferas da moral e da política”.
Portanto, com esta experiência em sala de aula, desejou-se criar resistências frente às
forças de poder que dominam o fazer cartográfico e os modos como ele é ensinado,
considerado única forma de representar o espaço. Construir pelo sensível uma poética
cartográfica como uma singularidade que desloca coisas no mapa e no modo de pensar sua
produção ao “manter-nos ativos em nosso enfrentamento do que parece não querer mudar, ou
do que muda muito rapidamente para nós (o caos)” (ONETO, 2007, pág. 210). Uma poética
cartográfica que desloca coisas em nós.
Atlas escolar e “o modo certo” de representar o mundo
Desde a Educação Infantil através das brincadeiras entre si e com os objetos que as
rodeiam as crianças estabelecem relações com o espaço. Deslocam-se, engatinham,
LINHA MESTRA, N.23, AGO.DEZ.2013
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GEOGRAFIA DE ENCONTROS!
exploraram os espaços da casa, da creche, da rua, erguem o corpo, caminham, correm, enfim
experimentam livremente o espaço e criam relações com o mesmo, criam trajetos e misturamse com eles. Porém, o processo de alfabetização iniciada nos Anos Iniciais do Ensino
Fundamental acaba disciplinando o corpo, e de certa forma imobilizando os modos de
produzir um pensamento sobre o espaço.
Os desenhos, imaginações do percurso casa-escola, são feitos de acordo com
a maneira que o aluno se relaciona com o espaço, porém são, em regra,
posteriormente tomados como algo precário, pois não são constituídos com
elementos básicos da cartografia formal como norte, visão vertical e escala.
O conhecimento da linguagem cartográfica parte deste modo de grafar para
negar-lhe a legitimidade de linguagem a falar do espaço. (GIRARDI, 2011, p
02)
Essa negação se perpetua pelo Ensino Fundamental e Médio, às vezes até a
universidade, pois os mapas e as formas de produção dos mesmos raramente são
problematizados em sala de aula justamente porque nós, professores entregamos aos nossos
alunos o mapa pronto, tal qual eles nos chegam pelos materiais didáticos. Principalmente
pelos limites das imagens e textos que os livros didáticos oferecem, e pelo “poder
‘domesticador’ dos mapas escolares, como decalques da realidade” (Preve, 2010, p.81)
como única forma de apresentar o espaço aos alunos.
Assim buscamos a partir da experiência realizada com alunos do 7º ano do Ensino
Fundamental durante as aulas introdutórias deste ano, provocá-los sobre quais as finalidades e
funções dos mapas para a formação de um pensamento espacial. O comando para essa ação
era o de escolher o país que gostaria de conhecer através do uso do atlas escolar (que além de
um globo terrestre e alguns mapas temáticos de pendurar no quadro, são os únicos recursos
que a escola oferece para aulas de geografia), e em duplas promover um encontro entre eles,
buscando após esse encontro analisar o que esses países possuíam em comum. Num primeiro
momento o silêncio. O comando foi repetido como possibilidade de tornar mais claro o
pedido. Novamente o silêncio e olhares para o atlas na busca de entender o que a professora
havia solicitado. Alguns minutos depois as primeiras falas: “mas o modo certo de fazer um
isso é desenhar como está aqui no atlas, não é professora?” ou, “o mar nos mapas é sempre
azul”.
Ao manusear os atlas buscando encontrar seus países, se depararam com dúvidas se o
lugar escolhido era país, estado ou cidade. “Ah quero conhecer a África”, alguém gritou do
fundo da sala. “Mas a África é o que professora?”. “Quero conhecer os Estados Unidos,
porque a cantora Adele é de lá”. “Já sei Disneylândia!”, outro se manifestou eufórico como o
sonho de qualquer adolescente. “Vou para a França, minha mãe morou lá antes de eu nascer,
ela diz que é lindo lá. Tem até um mapa que ela guarda em casa de lá”. “Meu tio mora em
Dublin”. E assim as referencias da família, ou de um gosto musical (mesmo que Adele seja
inglesa e more em Londres) deram sentido ao tal pedido inusitado numa aula de geografia.
Pareceu inusitado pela possibilidade de deslocar coisas naquele atlas velho e empoeirado da
biblioteca. Faltavam páginas em alguns, outras páginas estavam coladas com fitas e os
contornos de alguns países acentuados tantas vezes por lápis que pareciam até mapas em
braile (muito provavelmente de tanto ser usados para a realização dos decalques em papel
vegetal). Tanto que a maioria procurou num primeiro momento obedecer à lógica dos mapas
como decalques da realidade:
LINHA MESTRA, N.23, AGO.DEZ.2013
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GEOGRAFIA DE ENCONTROS!
Figura 02. O mar nos mapas é sempre azul, 2013. Papal sulfite e lápis de cor.
Aos poucos ao longo da atividade alguns começaram a demonstrar pelas cartografias
apresentadas à desobediência as regras da cartografia oficial, tal qual a artista Mayana Redim
apresenta em suas obras. O Brasil encontrou o México (Figura 03), segundo os alunos, pois
ambos “são países pobres, porém o Brasil ainda é mais rico que o México, por isso ficou em
cima”. Assim como Maranhão encontrou o Rio Grande do Sul (Figura04), mesmo que o pedido
fosse de países que gostariam de conhecer, os dois alunos resolveram realizar um encontro entre
os estados que marcaram o começo de suas vidas e deixaram as saudades da família.
Figura 03: Brasil encontra o México, 2013. Folha sulfite, lápis e caneta vermelha.
LINHA MESTRA, N.23, AGO.DEZ.2013
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GEOGRAFIA DE ENCONTROS!
Figura 04: Maranhão encontra o Rio Grande do Sul, 2013. Folha sulfite, lápis de cor e canetinha hidrocor.
Nessa experiência a intersecção com as experimentações provocadas pela investigação
em processos criativos da arte contemporânea a partir do encontro com a Geografia de
encontro de Mayana Redim e a cartografia escolar, pode ser o convite à elaboração de outras
leituras espaciais junto com os alunos. Tratar dessas conexões como invenções de
resistências. Ou seja, é possível olhar para os mapas não como fórmulas prontas ou únicas
sobre o espaço, se apropriar da arte como criação de outras cartografias, ir além das suas
funções de leitura e comunicação que a cartografia escolar teima em reproduzir. Tirar do
mapa e do ensino de cartografia apenas a função instrumentalizadora e agregar a imaginação,
a sensibilidade, o afeto e a criação sobre um espaço complexo a partir das imagens
proporcionadas por esse exercício.
Referências
GIRARDI, Gisele. Mapas Desejantes: uma agenda para a Cartografia Geográfica. PróPosições. Revista Quadrimestral da Faculdade de Educação - Unicamp, v. 20, n.3(60) –
set/dez. 2009. (p.147-157).
_______________.Cartografias alternativas no âmbito da educação escolar. Revista
Geográfica de América Central. Número Especial do EGAL, Costa Rica, 2011. (p.1-15).
MASSEY, Doreen B. Pelo espaço: uma nova política de espacialidade. Rio de Janeiro:
Bertrand Brasil, 2008.
RAMOS, Alexandre Dias (Coord.). 8ª Bienal do Mercosul:ensaios de geopoética:catálogo.
Porto Alegre: Fundação Bienal do Mercosul, 2011.
PREVE, Ana Maria Hoepers Mapas, prisão e fugas: cartografias intensivas em educação.
Tese (Doutorado em Educação). Universidade Estadual de Campinas, Campinas, SP, 2010.
LINHA MESTRA, N.23, AGO.DEZ.2013
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ESTRANGEIRIDADES EM TERRAS CONHECIDAS
Luíza Nunes Silva Fonseca 1
Sobre a viagem e a geografia
Proponho uma experiência. Uma experiência de viagem e de geografia. Até que ponto a
geografia se relaciona com a viagem? O que essas duas coisas têm em comum? Não me refiro
aqui ao simples fato de viajar para tirar provas reais sobre um lugar (ou alguma coisa) tal qual
foi imaginada antes da partida, falo de estar presente em algum lugar e ver demoradamente o
que está a nossa frente, afinal fugir de nossas expectativas ou distanciarmos de nós mesmo
durante a viagem é essencial para que se possa pensar e produzir outro conhecimento sobre os
lugares e sobre nós. Demorar-se! Sim! Esta é a questão para poder extrair dos lugares
visitados uma paisagem não mostrada nos cartões postais. Querer mais de uma viagem, querer
experimentá-la em qualquer lugar mesmo que seja no mesmo lugar.
A ideia de buscar relações entre viagens e geografia surgiu a partir de uma proposta
durante a disciplina Estágio Supervisionado em Geografia, e coube a cada um da turma
elaborar uma aula sobre algo que se goste muito e que está para além do curso de Geografia.
Mais ou menos assim: o que você mais gosta de fazer? Pergunta um tanto difícil de
1
Acadêmica da 7ª fase de curso do curso de Geografia/Faed/Udesc, membro da Rede Nacional de pesquisas em
Geografias, Imagens e Educação, Polo Santa Catarina, articulado ao grupo Geografias de Experiência vinculado
ao Laboratório de Estudos e Pesquisas de Educação em Geografia/Lepegeo/Faed/Udesc. Bolsista no Programa
Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência (Pibid), subárea Geografia, sob a orientação da Prof.ª Dra. Ana
Maria H. Preve. [email protected]
LINHA MESTRA, N.23, AGO.DEZ.2013
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ESTRANGEIRIDADES EM TERRAS CONHECIDAS
responder, pois são muitas coisas. Logo me vi em viagens. É disso que gosto muito. Pensando
nas possíveis formas de viajar, procurei estabelecer conexões entre o deslocamento, ação pela
qual a viagem é dada, o espaço geográfico e possíveis práticas pedagógicas capazes de gerar
um estranhamento que desloque nossos pensamentos de forma tão intensa quanto o fazem as
viagens feitas ‘com os pés’. O geógrafo e o viajante se encontram quando se deslocam:
observando, compreendendo, pensando, fugindo para outro lugar.
Para os estranhamentos tenho usado como estratégia as intervenções urbanas.
Deslocar-se para conhecer, para aprender, para compreender. O deslocamento –
territorial ou mental – nos põe em movimento, em estado de pensamento ou mesmo num
estado de caos, quando não se conhece, não se entende, não se encontra. Num estado de estar
perdido e assim poder começar a viagem.
Você já viajou hoje? O que é viajar pra você?
As intensidades se distribuem no espaço ou em outros
sistemas que não precisam ser espaços externos.
G. Deleuze. O Abecedário de Gilles Deleuze 2
A viagem não está limitada apenas no campo territorial, espacial-concreto. A viagem
também está presente em nossos pensamentos, em nossos deslocamentos, por menores que
2
www.oestrangeiro.net/esquizoanalise/67-o-abecedario-degilles-Deleuze
LINHA MESTRA, N.23, AGO.DEZ.2013
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ESTRANGEIRIDADES EM TERRAS CONHECIDAS
eles sejam. Então, a partir daqui é possível levantar um questionamento sobre qual seria o real
sentido da viagem ou o que buscamos ao partir para uma.
Não apresento uma resposta para isso, porque só encontraremos os caminhos para ela em nós
mesmos. E cada um terá suas respostas. Mas a viagem nos proporciona sentimentos, e eles são
inúmeros. A viagem também é uma forma de expandir nosso olho, nossos pensamentos, sentidos e
sentimentos. Pergunto-me se essas mesmas sensações também não se fazem presentes enquanto
estamos parados, sonhando acordados, lendo um livro, conversando com alguém, ouvindo uma
música ou assistindo a um filme. Ou então andando pelas ruas rumo a nossos destinos, ou
simplesmente imóveis, em algum lugar. Essas expansões que as viagens nos provocam, não são as
mesmas que vivenciamos ao logo de nossas vidas, nas mais diversas situações? Pergunto: nossos
deslocamentos através das imagens, das músicas, das leituras ou dos filmes também nos
transportam para outros territórios, apontando estrangeirismos dentro do conhecido, provocando em
nosso corpo as mesmas sensações de uma viagem no espaço-concreto?
A viagem com sentido de deslocamento do pensamento tem tudo a ver com a geografia.
Quando estamos em contato com algum lugar e o percorremos, o nosso corpo já habilita um
campo geográfico, ele produz caminhos, destinos, metas, faz um mapeamento do lugar onde
estamos (quando já se compreende o lugar), identifica cores, sons, cheiros, formas,
temperaturas e é como se ele orientasse geograficamente esses nossos deslocamentos.
Rumo à viagem!
Para a realização de meu trabalho com a turma de alunos da escola onde desenvolvo o
estágio apropriei-me do trabalho e das imagens do grupo Poro, apropriei-me também da noção
intervenção no espaço urbano 3. O Poro é um grupo formado por uma dupla de artistas que atua
desde 2002 com intervenções urbanas e ações efêmeras, apontando sutilezas nos espaços urbanos,
criando para isso imagens poéticas e trazendo à tona aspectos da cidade que se tornaram invisíveis
no dia a dia. Com as produções do grupo, proponho deslocamentos mentais e territoriais capazes
de apontar essas estrangeiridades em terras conhecidas, algum estranhamento para nos retirar das
obviedades cotidianas, nos fazendo experimentar a cidade muito mais que saber coisas a respeito
dela. Assim como numa viagem a uma terra estrangeira.
A primeira experiência aconteceu com uma turma do segundo ano do Ensino Médio na
E. E. B. Simão José Hess, em Florianópois (SC). Selecionei imagens retratando algumas
intervenções feitas na cidade e imagens contendo apenas algum tipo de intervenção 4 e em
seguida distribuí para a turma afim de que pudessem olhá-las. Propus realizarmos um
deslocamento observando tais imagens, buscando perceber suas possíveis razões, seus
porquês. O objetivo era fazer com que os alunos captassem as mensagens contidas nas
intervenções e que, às vezes, não são tão explícitas, em cada uma daquelas artes que se
espalhavam pela sala de aula. Queria saber até que ponto aquilo que eles observavam se
relacionava com os lugares, as ruas, as calçadas nas quais eles transitam todos os dias. Queria,
obviamente, sensibilizar o olhar, produzir um outro olhar para qualquer lugar.
Não pisei naquela sala de aula acreditando que todos fossem gostar ou entender o que
eu pretendia fazer. Pisei nela com uma proposta de atividade, querendo sacudir aqueles alunos
para despertarem e observarem outras coisas, se deslocarem mentalmente por outros
caminhos. Muito mais do que dar uma aula de geografia ‘pura’, naquele momento eu queria
aproximá-los de algo de que eu gosto e que penso ser uma importante forma de aprendizagem
no mundo em que vivemos, de expressão entre nós, e os muros, postes e ruas das cidades
seriam como substratos para esse dizer diferente dos espaços.
3
Para saber mais consultar site do grupo Poro: intervenções urbanas e ações efêmeras em disponível em:
<http://www.poro.redezero.org>
4
Grande parte das imagens foram extraídas do site do grupo Poro.
LINHA MESTRA, N.23, AGO.DEZ.2013
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ESTRANGEIRIDADES EM TERRAS CONHECIDAS
O encontro com os alunos naquela aula superou minhas expectativas. Agora penso: de certa
forma criei alguma expectativa antes de embarcar nessa aula..., como costumamos fazer antes de
partir para uma viagem. E como quase sempre acontece, para o viajante, a superação das
expectativas e a aproximação de um lugar com o qual você não tinha tido contato antes, um lugar
que você não conhecia, traz a surpresa, a emoção, o encantamento ou mesmo a frustração.
Quando pisei em sala, senti certo afastamento dos alunos para comigo. Decidi testar mudar
a disposição das carteiras na sala. Enfileirados, eles me olhavam um pouco assustados, com
cautela, quase que prontos para receber ordens. Alterando a disposição das carteiras (para um
grande círculo), os campos de visão e de toque ampliavam-se, uns olhavam os outros, se tocavam,
interagiam. O olhar sobre mim mudara. Não digo que houve cem por cento de participação
durante a oficina, mas houve um número considerável de participantes interessados. Quis deixálos livres, à vontade para explorarem as imagens, pensar e estabelecer trocas com seus colegas.
Pensamentos com as imagens
Calma
Mais tempo!
Aproximação
Contato.
Criar um campo de desaceleração para experimentarmos as coisas, os lugares, e para nos
experimentarmos. Estabelecer elos, pontes, contatos nada didáticos com os conceitos e,
principalmente, com as ações. Sinto que ainda não criei espaço suficiente para abrir a cortina e
expor a geografia no palco, como cenário de tudo isso. Mas considerando Pensamentos com as
imagens, Calma, Mais tempo! Aproximação; Contato, sei que logo mais, porque isso demora, a
turma estará pronta e eu também para esta viagem. Ainda assim, foi possível colher alguns frutos
daqueles que já se sentiram seguros para falar algo sobre intervenção, algo sobre geografia e o
espaço urbano, e que conseguiram deslocar seus pensamentos através das imagens apresentadas
em sala. A fala de uma aluna me auxilia nisso: “Isso que você está trazendo são jeitos que as
pessoas encontram pra se expressar, expressar suas ideias, o que acham ou querem”.
E a viagem continua...
LINHA MESTRA, N.23, AGO.DEZ.2013
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ESTRANGEIRIDADES EM TERRAS CONHECIDAS
A segunda experiência aconteceu com uma turma do terceiro ano do Ensino Médio na
mesma escola. A proposta da oficina também era a mesma, mas a resposta dessa turma foi
bastante diferente da outra. Como eu havia obtido um resultado mais ou menos legal quando
alterei a disposição das carteiras em sala, repeti a mesma ação com essa turma, porém, o
efeito não foi o mesmo. Ao contrário da outra, esta turma é pequena, com cerca de quinze
alunos. A grande maioria permaneceu calada durante todo o período da oficina, alguns poucos
se manifestaram durante uma conversa e outra, porém sempre partindo de um esforço meu em
tentar trazê-los para a conversa, para olhar as imagens.
Essa apatia da turma dificultou o desenvolvimento da oficina para explorar as imagens,
conversar sobre elas, ouvir e expor ideias, sentimentos. Era como se eles se encontrassem
anestesiados diante do mundo, como se o deslocamento não acontecesse de nenhuma maneira,
como se permanecessem parados não só fisicamente, mas também mentalmente. Muito estranho!
Como se não ficassem surpresos ou tocados com nada. Mas nessa turma, ainda assim, uma aluna
respondeu de forma diferente dos outros. Entre as imagens que selecionei para trabalhar na
oficina, uma delas era uma fotografia de um band-aid gigante fazendo um curativo entre dois
pedaços de uma calçada que foram separados por uma grande rachadura. Essa imagem chamou
bastante a atenção da aluna, que disse: “uma forma de chamar a atenção para as ruas da cidade
que possuem buracos, rachaduras nas calçadas”. Nesse momento fiquei um pouco mais aliviada
ao ver que alguém ali estava acordado, pensando, observando atentamente e que, de certa forma,
estava identificando um determinado espaço, observando aquela imagem.
Buscando estabelecer uma troca de ideias, partindo das intervenções urbanas para fazer
uma leitura do espaço urbano – aquele que é o cenário de todas essas manifestações –,
procurei apresentar relações entre as imagens e as cidades, o urbano, os espaços vazios nas
cidades, e o que as intervenções trazem para as ruas, para estes espaços. Mais uma vez, a
participação foi mínima, e encontrei muita dificuldade para conseguir extrair da turma alguma
palavra, qualquer fala. É complicado identificar as causas desse estado de anestesia dos
alunos. Do desinteresse, do cansaço, da vontade de não estar ali, mesmo propondo uma aula
diferente daquelas longas horas de conteúdo distante deles, saídos de livros didáticos. Os
momentos em que eles demonstram alguma ação, qualquer que seja, são raros..., mas não é
desistindo que iremos encontrar soluções. Eles estão no meio da escola como nós,
professores; local difícil nos dias atuais, portanto estar aí é estar apressado no mundo, quase
como um turista em busca dos pontos turísticos numa viagem e só. Em busca de notas,
números, provas, término do ano..., essa não é lógica deles, mas a que a escola atual imprimi
em nós. O proponente de qualquer trabalho diferente em educação não pode se esquecer do
local onde está se dando esta viagem. Não pode mesmo!
LINHA MESTRA, N.23, AGO.DEZ.2013
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ESTRANGEIRIDADES EM TERRAS CONHECIDAS
Sobre estrangeiridades em terras conhecidas
Sobre estrangeiridades em terras conhecidas: causar estranhamentos, provocações,
extrair algum tipo de sensação sobre um lugar. Vive-lo, observá-lo, experimentá-lo de uma
outra forma, buscar detalhes, ocupar espaços de outros modos. O deslocamento atento é capaz
de nos apontar outros espaços antes não conhecidos, é capaz de nos transformar em
verdadeiros viajantes, sem sair do lugar. Imagina então quando resolvermos sair...
LINHA MESTRA, N.23, AGO.DEZ.2013
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ESTRANGEIRIDADES EM TERRAS CONHECIDAS
Ainda vão me matar numa rua.
Quando descobrirem,
principalmente,
que faço parte dessa gente
que pensa que a rua é a parte principal da cidade.
Paulo Leminski. Toda poesia
Como diz Deleuze, “a viagem [é] a transversal da multiplicidade dos lugares”. Assim,
algo em nós precisa se mover para que essa transversal seja traçada. Talvez esse movimento
seja mínimo, mas é com o mínimo, o quase insignificante ou imperceptível, que uma viagem
começa...
Referências
LEMINSKI, Paulo. Toda a poesia. São Paulo: Cia. Das Letras, 2013.
DELEUZE, Gilles. Proust e os signos. 2.ed. trad. Antonio Piquet e Roberto Machado. Rio de
Janeiro: Forense Universitária, 2003.
LINHA MESTRA, N.23, AGO.DEZ.2013
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“A IMAGEM QUE DANÇA COM A MORTE”
Larissa Corrêa Firmino 1
Viviane Lima Ferreira 2
Quando chegamos a um local desconhecido...
“Todavia, porque era uma fotografia,
eu não podia negar que eu tinha estado lá”
Roland Barthes
Este estudo faz parte de uma entrada sutil nos domínios de conhecimento da imagem.
Aqui vamos nos questionando como ela funciona, como comunica do seu jeito único e como é
difícil lê-la. Partimos rumo a uma imagem que é o objeto visto, que é fotografia ou parte de
um áudio visual.
A palavra imagem, de origem latina, vem de um objeto, a máscara mortuária, o imago,
recolhido de um corpo falecido através da cera ou do gesso e depois utilizado como
ornamento nas casas. Pensando à sombra de Roland Barthes, desde as origens de suas
inquietações referentes à imagem, esta se configurava sempre como morte. A imagem para
Barthes é a morte.
No fundo, o que encaro na foto que tiram de mim (“a intenção”, segundo a
qual eu a olho) é a Morte: a Morte é o eidos desta Foto. Assim,
estranhamente a única coisa que suporto, de que gosto, que me é familiar,
quando me fotografam, é o ruído da máquina. (BARTHES, 1984, p.23)
Apesar de sua aversão em ser fotografado, a fotografia era algo que movimentava
profundamente o intelecto, a escrita e o pensamento de Barthes, pois entendê-la em sua
essência lhe instigava. Tudo aquilo que a fotografia apresentava em sua matéria, não
correspondia à sua essência, “Seja o que for o que ela dê a ver e qualquer que seja a maneira
uma foto é sempre invisível: não é ela que vemos.” (BARTHES, 1984, p.15)
Em meio aos deslocamentos percorridos na academia através de leituras, conversas,
filmes e oficinas, uma colcha de retalhos foi sendo tecida por nós. Esta colcha tem ponto de
partida na questão da imagem estar sempre flertando com a morte. Porém, isso ficou mais
evidente após assistirmos o filme Hanami – Cerejeiras em flor 3.
Em Hanami acompanhamos a tocante experiência de (des)territorialização vivida por
Rudi, partindo da noção de Deleuze e Guattari de que territorializar-se é um constante
processo de tornar-se, já (des)territorializar-se é a constante de desfazer-se, de deixar para
trás, assim como nos reforçam Félix Guattari e Suely Rolnik,
O território pode se desterritorializar, isto é, abrir-se, engajar-se em linhas de
fuga a até sair de seu curso e se destruir. A espécie humana está mergulhada
num intenso movimento de desterritorialização no sentido de que seus
1
Mestranda do Programa de Pós Graduação em Educação – PPGE da Universidade Federal de Santa Catarina –
UFSC, membro da Rede Nacional de pesquisas em Geografias, Imagens e Educação, Polo Santa Catarina,
articulado ao grupo Geografias de Experiência, vinculado ao Laboratório de Estudos e Pesquisas de Educação
em Geografia/Lepegeo/Faed/Udesc e membro do Grupo Tecendo/UFSC. Email: [email protected]
2
Mestranda do Programa de Pós Graduação em Educação – PPGE da Universidade Federal de Santa Catarina UFSC. Email: [email protected]
3
Hanami – Cerejeiras em flor (2008) – Doris Dörrie – Japão/Alemanha. Filme assistido na disciplina de
Seminário “Imagem e cultura visual nas pesquisas em educação ambiental e educação científica e tecnológica”
ministrada pelos Professores Doutores Leandro Belinaso Guimarães e Cláudia Regina Flores.
LINHA MESTRA, N.23, AGO.DEZ.2013
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“A IMAGEM QUE DANÇA COM A MORTE”
territórios originais se desfazem ininterruptamente com a divisão social do
trabalho, com a ação dos deuses universais que ultrapassam os quadros da
tribo e da etnia, com os sistemas maquínicos que a levam a atravessar,cada
vez mais rapidamente, as estratificações mentais e materiais. (GUATTARI e
ROLNIK, 1986, p.186)
Ao longo do filme, Rudi vive e convive com a imagem que ele mesmo criou da esposa.
No decorrer da trama e com a morte da amada, o protagonista descobre maneiras de se
encontrar com o invisível de sua companheira. O invisível se configura aqui como aquilo que
já era parte existente da esposa de Rudi, mas que nunca fora vivido por ele.
Tendo como processo de escrita o método cartográfico de Deleuze e Guattari, nos
deixamos atravessar pelo invisível deste filme, e dele poder trazer criações imagéticas que nos
mobilize o pensamento.
A cartografia é um método formulado por Gilles Deleuze e Félix Guattari
(1995) que visa acompanhar um processo, e não representar um objeto. Em
linhas gerais, trata-se sempre se investigar um processo de produção. De
saída, a ideia de desenvolver o método cartográfico para utilização em
pesquisas de campo no estudo da subjetividade se afasta do objetivo de
definir um conjunto de regras abstratas a serem aplicadas. Não se busca
estabelecer um caminho linear para atingir um fim. A cartografia é sempre
um método ad hoc. Todavia, sua construção caso a caso não impede que se
procurem estabelecer algumas pistas que têm em vista descrever, discutir e,
sobretudo, coletivizar a experiência do cartógrafo. (KASTRUP, 2009, p.32)
A morte como eixo norteador de um filme, e a vida também. Uma viagem como
pretexto para viver um pouco mais. Rudi, um funcionário público de uma pequena cidade
Alemã possui uma doença e está em estado terminal sem saber disso. Trudi, sua esposa,
sabendo de sua condição, o leva contrariado para uma viagem. Primeira parada: Berlim, onde
vive dois de seus filhos que friamente os recebem meio ao caos da capital. Segunda parada: o
mar Báltico, onde Trudi vem a falecer.
Com a morte de Trudi, Rudi passa a cultivar estranhos hábitos, como carregar consigo
os objetos pessoais da falecida esposa. A insistência de carregar tais objetos tem um motivo
específico: substituir a presença de sua amada através destes. No texto “Trabalho sobre a
imagem” de Jacques Rancière, encontramos uma pista para a compreensão da angústia de
Rudi.
Nunca há uma representação: nunca temos nada senão a presença: as coisas,
as mãos que as tocam, as bocas que as falam, as orelhas que as escutam, as
imagens que circulam, os olhos nos quais prestamos atenção àquilo que é
dito ou visto, os projetores que dirigem os signos do corpo a outros olhos e
outras orelhas. (RANCIÈRE, 2010, p. 92)
Terceira parada: Tóquio - Japão, país o qual Trudi sempre sonhou conhecer pois
apreciava muito a cultura e também onde vive o filho mais novo do casal. Perturbado em
Tóquio, Rudi vem a tecer um novo território, a se (re)territorializar para atravessar
experiências perseguidas por ele mesmo desde a morte de Trudi, encontrá-la de alguma
forma. Através do seu próprio corpo juntamente às lembranças e os objetos deixados pela
amada, ele consegue traçar uma fuga meio ao novo e ainda desconhecido: uma dança, o Butô.
Hijikata Tatsumi, que criou uma nova dança no Japão nos anos 1960, estava
longe de ser simplesmente qualquer um que renovou a dança como gênero já
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“A IMAGEM QUE DANÇA COM A MORTE”
existente. Era preciso que sua experiência profundamente singular
encontrasse, antes de tudo, um meio de sobreviver ou uma saída e, para
tanto, precisava experimentar o corpo e ao mesmo tempo a percepção, o
pensamento e a linguagem. Nada era seguro. Em suas experiências e
pesquisas, que giravam o tempo todo em torno da questão do corpo, ele
desafiou muitas coisas simultaneamente, assim como a criação de uma nova
dança, que não era para ele nada além de uma parte, importante é claro, mas
apenas um dos frutos de tudo que ele buscava e experimentava. (UNO, 2012,
p.59)
O filme narra as experiências de Rudi na busca de uma (re)territorialização, que para
Deleuze e Guattari é a retomada na construção de um novo território, após a
(des)territorialização. Uma busca para reviver um elo perdido pela efemeridade da vida e pela
rapidez e redução dos significados da existência humana, com o intuito de experienciar a vida
rumo aos fazeres que movimentavam Trudi como ser humano.
Este espaço-corpo onde ocorreriam as travessias de compreensão do Butô é uma
minuciosa arte para o entendimento de Rudi, pois no começo, só existe a dúvida, o hesitar.
Trudi carregava “qualquer coisa de singular em sua experiência de corpo “que” (a) fazia
dançar. El(a) precisava dançar para saber e exprimir o que o corpo havia vivido de singular”
(UNO, 2012, p.61) e Rudi queria dialogar com esta expressão. Assim, o butô se configura
para Rudi como uma linha de fuga que o levaria ao encontro de sua esposa, da experiência
criadora que ela também cultivava.
No fundo, a vida e o corpo nada mais são que a mesma coisa, mas, para que
sejam verdadeiramente o mesmo e o corpo seja digno da vida, será preciso
descobri-lo em sua própria força de gênese, em seu próprio tempo. O corpo é
esse lugar único existencial (e até mesmo político) sobre o qual se
sobrecarregam, se recolhem e se curvam todas as determinações da vida. É um
campo de batalha onde se entrecruzam forças visíveis, invisíveis, a vida e a
morte, onde se encadeiam as redes, os poderes e todas as “bobagens” sociais.
(UNO, 2012, p.66)
O butô é uma experiência de encontros, do encontro da vida com a morte, é a imagem
dançando com a morte, juntas significando tudo aquilo que ela puder, mas sobretudo,
significando a vida em sua extensa gama de singularidades. É traçar uma linha de fuga, é
encontrar uma arma para viver a multiplicidade do real, da vida. Esta é a busca de Rudi, e é
no Butô que ele experiencia a multiplicidade da vida. As linhas de fuga, segundo Deleuze e
Guattari são criações de possibilidades para o real, para e da realidade e não uma atitude solta
e sem conexão alguma com realidade, como nos reforçam os mesmos
[...] de todas essas linhas, algumas nos são impostas de fora, pelo menos em
parte. Outras nascem um pouco por acaso, de um nada, nunca se saberá por
quê. Outras devem ser inventadas, traçadas, sem nenhum modelo ou acaso:
devemos inventar nossas linhas de fuga se somos capazes disso, e só
podemos inventá-las traçando-as efetivamente, na vida (DELEUZE &
GUATTARI, 1996, p. 76)
Para Spinoza, o corpo deve ser encarado “como potência de afetar e de ser afetado, o
corpo absolutamente fluido, composto de partículas infinitas que variam sem cessar.” (UNO,
2012, p. 60). O protagonista se deixa transformar na tentativa de conhecer sua esposa, ele não
se prende mais no que ele representa, muito pelo contrário, se desvia disso abrindo o seu
corpo para a passagem.
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“A IMAGEM QUE DANÇA COM A MORTE”
A dança representando a morte na imagem é o fio condutor deste artigo. Nestas
movimentações traçadas até então, há a preocupação de que a imagem não se paralise e se
reduza a mera representação, não se configurando como um dispositivo criador de
multiplicidades. Sabendo da potência das imagens para a educação, é inviável tratá-las como
simples ilustrações representativas. A imagem é vida, mas ao mesmo tempo é morte. A dança
destas duas condições existenciais é um significante e belo exercício de atravessamento das
imagens e de experiência através delas, com o intuito de produzir diferenças e multiplicidades
em educação através do filme Hanami – Cerejeiras em flor.
Referências
BARTHES, Roland. A câmara clara: notas sobre a fotografia. 3. ed. Rio de Janeiro (RJ):
Nova Fronteira, 1984. 185p.
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia, vol. 3.
Tradução de Aurélio Guerra Neto, Ana Lúcia de Oliveira, Lúcia Cláudia e Suely Rolnik. São
Paulo: Ed. 34, 1996.
GUATTARI, Félix; ROLNIK, Suely. Micropolítica: cartografias do desejo. Petrópolis:
Vozes, 1986.
KASTRUP, Virginia. Pistas do método da cartografia: Pesquisa-intervenção e produção
de subjetividade / Orgs. Eduardo Passos, Virgínia Kastrup e Liliana da Escóssia. – Porto
Alegre: Sulina, 2009. 207 p.
RANCIÈRE, Jacques. O trabalho sobre a imagem. Revista Urdimento, vol.15, UDESC,
2010.
UNO, Kuniichi. A gênese de um corpo desconhecido. São Paulo: n-1 Edições, 2012.
Filmografia
Hanami – Cerejeiras em flor (Kirschblüten). Doris Dörrie. Alemanha/Japão. 2008. 127
min.
LINHA MESTRA, N.23, AGO.DEZ.2013
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PLANO-SEQUÊNCIA: O CONTATO COM REALIDADES JUSTAPOSTAS
NO ESPAÇO URBANO
Karen Christine Rechia
Este texto versa sobre algumas imagens de uma experimentação em vídeo em um curso
de extensão (2011) junto ao Projeto Cinearth -FAED/UDESC 1 aberto à comunidade. O intuito
era selecionar cenas de filmes 2 que possibilitassem, aos participantes do curso, experiências
de vidência 3 por meio de situações e personagens. Não se tratava apenas de colocar em
prática o aprendizado do curso, mas criar problemas e acionar o pensamento, olhar a cidade
como um enigma. Na verdade era uma aposta na força do espaço urbano à semelhança das
locações dos filmes escolhidos: ao flanar por suas ruínas, que tipo de sensações seriam
despertadas, que ações desencadeadas, que reações seriam possíveis? Benjaminiamente
tentando tomar a cidade por seus fragmentos e ao reconstituí-la, perceber que ela é outra,
aliás, perceber que ela será sempre outra (1992). Dessa maneira o uso de elementos fílmicos –
técnicos e estéticos – como o plano seqüência, o claro/escuro/sombras, o enquadramento, o
tempo da imagem etc, constituíram-se como referenciais de análise que tinham como
objetivo, mais do que a semelhança com as cenas dos filmes escolhidos, evidenciar aquilo que
escapa deste aprendizado anterior, no sentido de apreender o que talvez sejam linhas de fuga.
Para esta reflexão destacou-se a noção de plano-sequência.
Vale dizer que considero o plano aqui, no caso das obras fílmicas, como uma unidade
técnica de tomada e montagem. O plano não é a imagem, ele produz imagens. No caso de
nosso exercício de filmagem tratado mais abaixo, as cenas foram capturadas e consideradas
em seu estado bruto, portanto o plano inclui as imagens e sons do momento de sua captura,
sem uma montagem técnica. (GARDIÉS, 2008, p. 17-18).
O último encontro do curso foi num sábado pela manhã, no centro da cidade. Qual era o
“plano”? Sair pelo centro filmando cenas que fossem inspiradas pelo que vimos no curso ou
que surgissem a partir de uma questão-problema. Filmar na cidade e também a cidade,
partindo das formas de filmar dos fragmentos fílmicos vistos e das noções acerca da vidência.
Quais eram os materiais? Câmeras que produzissem imagens em movimento: profissionais,
não-profissionais, filmadoras, câmeras fotográficas, de celular etc. Quais eram os
procedimentos? Partiríamos de um mesmo lugar e flanaríamos com nossos materiais cada
qual escolhendo seus lugares-enquadramento no espaço urbano.
Era final de outono e início de inverno. Saímos andando pela praça dos bombeiros.
Entra-se em uma espécie de delírio ambulatório. Afinal, o que era o delírio ambulatório de
Hélio Oiticica? Era uma espécie de relação do andar nas ruas, por meio de seus penetráveis,
proporcionando uma experiência de descoberta. 4 As máquinas de filmar usadas como
1
O CineARTH - Cinema, Artes e Humanidades - além de um Cineclube, é também um Projeto de Extensão
vinculado à Universidade Estadual de Santa Catarina (UDESC), que visa criar um espaço para debates que
envolvam o cinema, as artes e as ciências humanas, bem como criar um cultura cinéfila que comtemple não só o
mundo acadêmico, mas que envolva toda a comunidade. Naquele momento era coordenado pelas professoras
Carmem Suzana Tornquist e Ana Maria Hoepers Preve.
2
Fragmentos dos seguintes filmes: ALEMANHA ANO ZERO. (Germania anno zero). Dir.: Roberto Rossellini,
ITA, 1948; ROMA, CIDADE ABERTA - Ed. de Colecionador (Roma, Cittá Aperta). Dir.: Roberto Rossellini,
ITA, 1945 e UMBERTO D (Umberto D). Dir.: Vittorio De Sica, ITA, 1952.
3
Vidência: noção desenvolvida por Gilles Deleuze, relacionada ao cinema, principalmente na obra Imagemtempo.
4
"O delírio ambulatório é um delírio concreto. Quando eu ando ou proponho que as pessoas andem dentro de
um Penetrável com areia e pedrinhas, estou sintetizando a minha experiência da descoberta da rua através do
andar" disse Helio em entrevista a Ivan Cardoso. Entrevista de Hélio Oiticica a Ivan Cardoso, apud
FAVARETTO, Celso. A invenção de Hélio Oiticica. São Paulo: 1992, p. 224.
LINHA MESTRA, N.23, AGO.DEZ.2013
36
PLANO-SEQUÊNCIA...
penetráveis, elas mesmas como um suporte que propiciasse descobertas. Creio que na
descrição abaixo de algumas filmagens que fizemos ficará claro o uso e abuso das máquinas.
No início do primeiro ensaio do conjunto de textos agrupados sob o título Infância em
Berlim por volta de 1900, chamado Tiergarten Walter Benjamin diz: “Saber orientar-se numa
cidade não significa muito. No entanto, perder-se numa cidade, como alguém que se perde
numa floresta, requer instrução.” (1987, p.73) Um tanto intuitivamente, fomos nos perdendo
na cidade, mas com muitas excitações iniciais. Como se fosse preciso um tempo para
desaprender. 5 Como diz Benjamin perder-se requer instrução, requer a lembrança do
aprendido mas somente para que seja esquecido. Quiçá a cidade pudesse ser explorada como
um labirinto, à semelhança do jardim Tiergarten 6. Benjamin lembra que este labirinto foi o
primeiro a lhe ensinar a arte do perder-se:
Esta arte aprendi tardiamente; ela tornou real o sonho cujos labirintos nos
mata-borrões de meus cadernos foram os primeiros vestígios. Não, não os
primeiros, pois houve antes um labirinto que sobreviveu a eles. O caminho a
esse labirinto, onde não faltava a sua Ariadne, passava por sobre a Ponte
Bendler, cujo arco suave se tornou minha primeira escarpa. Perto de sua base
ficava a meta: Frederico Guilherme e a rainha Luísa. (1987, pp. 73).
E assim nos enveredamos pela cidade, ainda sem soltar o fio de Ariadne, cada qual
procurando uma entrada para o seu labirinto.
Meu objetivo foi o de dialogar com as obras (editadas ou não) e com os autores. Ser
inteligível e quem sabe, legível. 7
[imagem 9]
Gabriela percorre com sua câmera fotográfica as paredes em ruínas de uma edificação
qualquer que surge em nosso percurso. Acompanha os contornos, os buracos, as
reentrâncias. Estamos nós com a cara a arranhar no reboco, nos tijolos expostos. A quase
sentir o gosto do limo das paredes brancas. Poucas vezes ela olha para trás; o olhar é quase
sempre à frente, se esgueirando pelos acidentes das paredes. Às vezes achamos que ela quer
nos levar para dentro dos buracos daquelas ruínas; às vezes parece que ela quer nos
estatelar contra as protuberâncias desta parede que ainda avança para o interior da
edificação. Avança nas ruínas de cada coluna como se estivesse abrindo portas. Enquadra os
buracos das velhas tomadas e dá a última olhada para trás. Ainda tenta acompanhar as
fraturas expostas dessa parede, mas para um tanto hesitante na figura de um rapaz com uma
pá, que carrega britas de um monte a outro. Esta atividade ao mesmo tempo marca o som de
fundo do plano, no ritmo do barulho das pedras e da pá. Gabi realiza uma panorâmica 8 e
aproxima o foco do rapaz e fica acompanhando sua ação. Volta a câmera para o chão e
5
A noção de desaprender está relacionada aos estudos e escritos do grupo do CINEAD – Cinema para aprender
e desaprender, sob responsabilidade da Profa. Dra. Adriana Fresquet da UFRJ. Uma ampla visão das atividades
do grupo encontra-se em seu site: http://www.cinead.org/?page_id=2. Acesso em: jan/2013.
6
Tiergarten, literalmente significa “jardim dos animais”. Fica em Berlim e era um campo de caça da realeza alemã nos
séculos XVII e XVIII. É o segundo maior parque da cidade e tem pontes, ilhas, canais, monumentos. Foi
gradativamente tornando-se público e teve remodelações nos séculos XVIII e XIX. Durante a Segunda Guerra
Mundial as pessoas praticamente acabaram com as árvores do lugar para fazer carvão e plantar legumes, além dos
bombardeios. Nova remodelação depois deste período. Disponível em: http://simplesmenteberlim.com/tiergarten/.
Acesso em: jan/2013.
7
Estes vídeos podem ser vistos no youtube no canal “CALLAS2009”, na lista de reprodução "o jardim dos
caminhos que se bifurcam".
8
Um
texto
rápido
e
muito
bom
sobre
os
movimentos
de
câmera
http://d1tempo.com/wiki/index.php?title=Movimento_de_c%C3%A2mera. Acesso: set/2011.
LINHA MESTRA, N.23, AGO.DEZ.2013
37
PLANO-SEQUÊNCIA...
segue o piso branco e preto e as pedras que avançam sobre ele. Seus pés marcam o trajeto.
Dirige a câmera uma última vez ao quadro anterior. No canto direito aparece outra
personagem filmando. Dá um zoom no chão e foca numa brita solitária, na junção das lajotas
que desenham um círculo, terminando ali o seu longo plano sequência.
[imagem 10]
Karen inicia pela parede ao lado esquerdo, mas gira a câmera para o direito, como a
reconhecer o lugar. Fixa a câmera à sua frente. Constitui assim um plano fixo, de conjunto e
longo. 9 Ana está à frente, absorta e inclinada em sua filmagem térrea. Ao fundo, à direita, o
homem com a pá. Ela sai e entra em quadro. Rafael surge e atravessa a tela de um canto a
outro. Vagarosamente Gabriela desponta filmando as paredes da imagem narrada acima.
Rafael fixa-se no chão, mas sem se inclinar como a Ana. Esta, ao perceber o lugar que ele
filma desvia para o canto esquerdo e agacha. Ele, por sua vez, vira a máquina na minha
direção e se aproxima até sumir do quadro. Com a câmera parada, os
personagens/capturadores de imagens entram e saem de cena.
[imagem 12]
Ana filma o chão. Parte do pontilhado de britas bordeado pelo enquadramento de sua
máquina, mas seus movimentos são rápidos e somos aproximados do chão em suas texturas,
friccionados. Ela não usa o zoom, movimenta a câmera numa espécie de travelling-in 10.
Reside aí uma diferença ótica importante, pois um travelling de aproximação joga-nos, ela e
nós espectadores, contra aquela superfície, percorrendo-a, vendo-a formar-se e deformar-se
criando um efeito ótico alucinante. Do piso quebrado emergem terrenos e territórios, mapas
políticos e de relevos, formas humanas e da natureza. Sem ritmo cadenciado, Ana monta e
desmonta, foca e desfoca através do falso zoom com sua câmera.
[imagem 11]
Rafael filma o chão e ali sua sombra, no movimento com o vento. Ao levantar a câmera, parte
da Ana aparece. Aqui o enigma da cena anterior: era a Ana a filmar e aquele era o chão que
foi filmado. Aquele soalho arruinado adquire outras formas na filmagem do Rafael. Não
parece o mesmo. Desvia para a direita e lá está Karen, estática, com sua pequena máquina.
Ao realizar um travelling, Rafael desvenda outro segredo: o plano fixo e longo de conjunto
filmado por ela que vira personagem. Mas ao realizar um travelling circular, coloca-se atrás
dela e num plano conjunto expõe quase todo o cenário externo. Nele vemos a Gabi colada às
paredes, a Ana e seu chão e o rapaz com sua pá a cavar o monte de britas.
[imagem 13]
Do canteiro central da rua, do outro lado, Sascha filma a todos. Vemos o cenário escolhido
por todos em outra escala e com outros elementos. Pelo olho de Sascha, de maneira
9
Sobre os diferentes tipos de plano, ver: http://www.alegaules.com/hdslr/dslr/2011/09/os-tipos-de-enquadramentocinema/. Acesso em: out/2011.
10
Em Lendo as imagens do cinema , Jullier e Marie e (2009, p. 33) falam da diferença entre travelling e zoom:
“Distinguem-se em geral dois tipos de movimento no modelo do corpo humano: os panorâmicos (que
correspondem à ação de virar a cabeça) e os travellings (que têm por objeto o deslocamento do corpo inteiro no
modo retilíneo). Muito frequentemente, os panorâmicos e os travellings se combinam. Quanto ao zoom, não é
muito apropriado chamá-lo de movimento; trata-se de uma variação da distância focal. Entre um zoom-in e um
travelling-in existe a mesma diferença que há entre se aproximar para olhar e permanecer onde se encontra
munido de um binóculo.
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38
PLANO-SEQUÊNCIA...
tautócrona, Gabi filma suas paredes, Ana filma seu chão, Karen faz seu plano fixo no qual
aparecem Gabi e Ana e Rafael faz seu travelling captando o movimento das três.
Pier Paolo Pasolini em um escrito de 1967 chamado “Observações sobre o planosequência”, aborda este elemento fílmico e utiliza como referência para suas “observações”, o
curto filme de 16mm da morte de John F. Kennedy - então presidente dos EUA – em 1963,
feito por um observador. O plano-sequência sempre se constitui como uma subjetiva, posto
que parte do olhar e do ângulo de um observador. Para o cineasta, inclusive, este é o limite de
qualquer técnica audiovisual, pois só se pode ver a realidade de um ângulo de cada vez, em
sua sucessão. Antes de seguir esta linha é interessante saber que a ideia de subjetiva pode
conter uma gradação. Para Jullier e Marie (2009, p. 22) podemos identificar uma
subjetividade fraca quando olhamos com:
Em Taxi Driver (Martin Scorcese, 1976): nós estamos “com” Travis, e não
em seu lugar, o motorista de táxi que, sentado em seu carro, observa uma
briga – nós somos convidados instalados no banco de trás e inclinados para
frente.
Uma noção de olhar no lugar, comportaria uma subjetividade forte, uma filtragem
pesada de câmera:
Em O fantasma do Paraíso (Phantom of the Paradise, Brian de Palma,
1974): nós estamos “no lugar” de Winslow, o compositor desfigurado, e
“nós” vamos nos esconder atrás dessa máscara que ele tira nos vestiários do
music hall.
Nestes exercícios com o plano-sequência muitas vezes estamos no lugar do personagem
e noutras estamos olhando com. De toda forma há sempre um lugar escolhido, que traduz um
ponto de vista ótico, mas também político. Dessa forma acompanhamos a subjetiva da
Gabriela em um único plano e vemos e ouvimos a realidade num único tempo, o presente.
Para Pasolini, se tivéssemos vários filmes do momento do assassinato do presidente e os
colocássemos em seqüência, por exemplo, teríamos ai uma multiplicação de presentes:
Obteríamos uma multiplicação de “presentes”, como se uma acção em vez
de se desenrolar uma única vez diante de nossos olhos, se desenrolasse
várias vezes. Esta multiplicação de “presentes” abole, na realidade, o
presente, esvazia-o, postulando cada um dos presentes a relatividade do
outro, o seu imprevisto, a sua imprecisão, a sua ambigüidade. (1982, p. 194)
Ao olharmos o plano-sequência de cada um de nós, sobre o mesmo espaço em ruínas,
pode-se apreender uma realidade uma única vez, de um determinado olhar, mas também
pode-se estilhaçá-la, vendo o conjunto destas filmagens em sequência. Pensando como
charada a multiplicação de presentes como o esvaziamento deste, acho mister voltar ao jardim
das veredas nas suas infinitas séries de tempo. Nossas filmagens permitem estas bifurcações,
postulam, como diz Pasolini, cada um dos presentes à relatividade do outro, ao imprevisto.
Ao ver as filmagens numa seqüência, e só podemos vê-las assim, posto que não
possuímos o ALEPH 11, revelamos quase todos os personagens e ações – Karen que revela
11
No conto homônimo de Borges, o Aleph é uma espécie de objeto, “um ponto do espaço que abarca toda a
realidade do universo num local bastante inusitado: no porão de um casarão situado em Buenos Aires, prestes a
ser demolido – (a casa da Rua Garay, da família de Carlos Argentino Daneri). Este ponto recebe a alcunha de
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39
PLANO-SEQUÊNCIA...
Gabi, Ana e Rafael, Rafael que revela Gabi, Ana e Karen e Sascha que revela todos nós.
Todavia se as vemos como peças únicas não existimos na maioria desses tempos, e é por isso
que ao multiplicá-los, proliferamos seus passados e seus futuros.
Explica o cineasta que a justaposição de cenas esvazia o presente e a coordenação destas
torna o presente, passado, ou numa visão borgiana, vários passados.
Escolhendo os momentos verdadeiramente significativos dos vários planossequência subjectivos, e descobrindo, por isso, sua ordem de sucessão real.
Tratar-se-ia, em palavras pobres, de uma montagem. A seguir a este trabalho de
escolha e de coordenação, os vários ângulos visuais dissolver-se-iam, e a
subjectividade, existencial, daria lugar à objectividade; já não haveria os pares
comoventes de olhos-ouvidos (ou de câmaras-magnetofones) captando e
reproduzindo a realidade fugidia e pouco dócil, mas em seu lugar surgiria agora
um narrador. Esse narrador transforma o presente em passado. (PASOLINI,
1982, p. 195).
Colocar um narrador na edição de som também é uma escolha política, pois geralmente
o narrador confere legitimidade e objetividade à obra. Mesmo antes do sincronismo da
imagem e do som, o antropólogo Jean Rouch já se recusava desenhar narrativas
documentárias em que uma voz em off representasse a “voz da verdade”. Um dos exemplos
mais geniais desta postura de Rouch está em Eu, um Negro (Moi, un Noir, 1958). 12
Ademais o que não interessa aqui, no relevo destas cenas é justamente encadeá-las,
escolher aquelas as quais julgamos significativas para uma montagem encadeada, para tornálas objetivas. Ou seja, o conjunto das imagens por excelência é aquilo que foi gestado na
justaposição das várias filmagens. A possibilidade não de um, mas de vários sentidos parece
ser viabilizada justamente por esta escolha em manter cada mirada singular, cada
subjetividade muito forte, apostando que elas são disjuntivas, não passíveis de serem
montadas numa única versão, narrada por que narrador seja. Por isto estes exercícios em
plano-sequência são pensados, na distinção pasoliniana, como cinema, mais do que como
filme, ou seja, sem uma montagem encadeada, no máximo como justaposições. Pasolini ainda
diz que toda a ação – que por sua vez é a expressão máxima do homem – só tem unidade de
sentido quando encontra-se concluída (1982, p.196). Tal afirmação encontra-se no paralelo
que faz entre a ideia de vida e de morte:
É assim absolutamente necessário morrer, porque, enquanto estamos vivos,
falta-nos sentido, e a linguagem da nossa vida (com que nos expressamos e a
que, por conseguinte, atribuímos a máxima importância) é intraduzível: um caos
de possibilidades, uma busca de relações e de significados sem solução de
continuidades. (1982, p. 196).
A morte funcionaria como uma montagem, a nos atribuir um sentido à vida. Porém é
justamente a noção de vida pasoliniana nesta contraposição que me interessa. Cotejando com
estes exercícios fílmicos, o uso do plano-sequência, sem montagem pode ser visto como este
desregramento, esta proliferação caótica de possibilidades e sentidos. A vida em aberto, a
razão de ser não foi achada (ARTAUD apud VIRMAUX, 1978, p. 366). E nem o será, uma
Aleph - a letra inicial do alfabeto hebraico, correspondente ao alfa grego e ao a dos alfabetos romanos.”
Disponível em http://oaleph2008.blogspot.com.br/2008/11/o-que-o-aleph.html. Acesso em jan/2013.
12
As discussões sobre o caráter objetivo e subjetivo do cinema deve muito aos debates acerca do documentário,
as quais podemos situar, com mais intensidade a partir dos anos de 1960, devido ao início da distinção entre
cinema-direto e cinema-verdade.
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PLANO-SEQUÊNCIA...
vez que a busca nestes exercícios foi de fazer proliferar a vida daquele lugar, da cidade de
Florianópolis nas e pelas filmagens aleatórias que fizemos.
Referências
BENJAMIN, Walter. Rua de mão única. V. 2, 2a.ed. Trad.: Rubens Rodrigues Torres Filho e
José Carlos Martins Barbosa. São Paulo: Brasiliense, 1987 (1a.ed.).
__________. A tarefa do tradutor. Rio de Janeiro: UERJ, 1992.
BORGES, Jorge Luis. Obras completas. Vol. 1. São Paulo: Globo, 2000.
________, J.L. Ficciones. Buenos Aires: Emecé Editores S. A., 1956.
CORRÊA, Guilherme Carlos. Educação, comunicação, anarquia: procedências da
sociedade de controle no Brasil. São Paulo: Cortez, 2006.
DELEUZE, Gilles. A imagem-tempo. São Paulo: Brasiliense, 2005.
_________, G. Conversações, 1972-1990. Trad.: Peter Pál Pelbart. São Paulo: Ed. 34, 1992a.
_________, G. Crítica e Clínica. Trad.: Peter Pál Pelbart. São Paulo: Ed. 34, 1997.
FAVARETTO, Celso. A invenção de Hélio Oiticica. São Paulo: 1992, p. 224.
FRESQUET, Adriana (org.) [et al]. Imagens do desaprender. Rio de Janeiro: Booklink;
CINEAD-LISE-FE/UFRJ, 2007. (Coleção Cinema e Educação).
GARDIES, René (org.). Compreender o cinema e as imagens. Lisboa: Texto&Grafia, 2008.
JULLIER Laurent e MARIE Michel. Lendo as imagens do cinema. São Paulo: Ed. Senac,
2009.
MARQUES, Ana Martins. Berlim revisitada ou a cidade da memória: “Infância em Berlim
por volta de 1900”. Artefilosofia, Ouro Preto, n.6, p. 34-43, abr.2009.
PASOLINI, Pier Paolo. Empirismo Herege. Trad.Lisboa: Assírio e Alvim, 1982.
VIRMAUX, Alain. Artaud e o Teatro. Trad. Carlos Eugênio Marcondes de Moura. São
Paulo: Perspectiva, FAPESP. 1978, 388p. (Coleção Estudos; 58).
VASCONCELOS, Jorge. A Pedagogia da Imagem: Deleuze, Godard – ou como produzir um
pensamento do cinema. Educação e Realidade, 33(1); 155-168, jan/jun 2008.
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41
SESSÃO 2 – TEMPOS E TERRITÓRIOS DAS HOMOSSEXUALIDADES
A FOFOCA ENQUANTO PROTAGONISTA DO JORNAL O BONDE
Jairo Barduni Filho 1
“Dê-se a um grupo uma reputação ruim, e é provável que
ele corresponda a essa expectativa”
(ELIAS, 2000, p.30).
O jornal O Bonde, circulou na segunda metade da década de XX, respectivamente de
1945-1963. Foram dezoito anos de intensas capturas cotidianas que movimentavam o dia-adia dos estudantes no pacato campus da Escola Superior de Agricultura e Veterinária (ESAV),
que logo depois veio a se tornar a Universidade Rural do Estado de Minas Gerais (UREMG),
no também pacato município de Viçosa/MG. É importante frisar que mesmo tendo se tornado
em 1948 uma Universidade, por muito tempo esta ainda foi chamada de ESAV pelos seus
estudantes.
O Bonde, este nome ao qual foi batizado o jornal não ocorreu por mero acaso, pois, a
palavra bonde tinha um significado para os estudantes, significado que é descrito pelo autor
(LAM-SÁNCHEZ, 2006), quando este ex estudante e bondista relata a importância do jornal
para os estudantes naquela época: “porque para nós a palavra carregava a conotação, só
existente na Escola, de coisa que fazia barulho” (186), e mais, “No internato, nos momentos
de folga, principalmente depois das refeições, formavam-se os grupinhos, as “chacrinhas”,
como a gente dizia. Quando a chacrinha virava bagunça, passava a “Bonde” (p.290-291). O
autor também conta que em momentos de prova e exames, período mais intenso de estudos as
chacrinhas tendiam a desaparecer por completo, mesmo acontecendo espontaneamente
durante todo ano (tradução minha). Logo, o nome de batismo do jornal foi retirado de uma
prática inventada no cotidiano dos alunos.
Esse jornal, ou pasquim, como também era conhecido dos estudantes, logo se revelou
como uma mídia fofoqueira, pois, em seu primeiro número, este trouxe uma característica
marcada pelo autor Athayde, na apresentação do jornal O Bonde (1945) quando este diz que:
Mas, para melhor lenitivo as nossas canseiras e maior proveito das horas de
folga, pensamos em publicar nessa folha os quadros mais curiosos da vida
esaviana – que nem sempre estão ao alcance da vista ou dos ouvidos de
todos – fazendo criticas, contando piadas e os “foras” de particular
fertilidade em alguns colegas. (p.1)
Logo, o jornal se caracterizou como uma fonte de entretenimento dos fatos ocorridos no
contexto local e, sobretudo, um caçador dos “foras” ou “mancadas”, que em muitas das vezes
estava relacionada com as diferenças, desvios e suspeitas de singularidades existentes
principalmente entre os garotos que como uma bruma escura, pairava como ameaça sobre o
ethos esaviano produzido naquela Escola.
De fato, ao analisarmos o conteúdo do Bonde, sobretudo colunas como: Fatos e Boatos
e Venenos, principais responsáveis pelo mexerico semanal, percebemos que às fofocas eram
responsáveis pelo mesmo efeito que Elias (2000), apontou em seu estudo etnográfico
realizado em Winston Parva - Inglaterra, quando este diz que: “a exclusão e a estigmatização
dos outsiders pelo grupo estabelecido eram armas poderosas para que este último preservasse
sua identidade e afirmasse sua superioridade, mantendo os outros firmemente em seu lugar”
1
Universidade Federal de Juiz de Fora.
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A FOFOCA ENQUANTO PROTAGONISTA DO JORNAL O BONDE
(p.22). Em outras palavras, o Bonde estigmatizava as singularidades desviantes para,
sobretudo, preservar um sentimento e imagem que era o orgulho do coletivo estudantil, no
caso nos referimos ao Espírito Esaviano 2, deste modo, produzia-se o estigmatizado pela
condenação de comportamentos e suspeitas numa relação de poder e vigilância presente no
discurso bondista. Tal discurso recheava as páginas do semanário de chacotas em tons de
suspeitas pelas singularidades diferenciadas, imprimindo assim, um discurso fabricante de um
sujeito que ameaça a moral esaviana. O sujeito desviante, bem como os calouros que
chegavam à escola, era vigiado pelos veteranos como no panópticon, no qual Foucault (2012)
diz que: “cada um, de acordo com seu lugar, é vigiado por todos ou por alguns outros; trata-se
de um aparelho de desconfiança total e circulante, pois não existe ponto absoluto. A perfeição
da vigilância é uma soma de malevolências” (p.334).
Além de colunas como Fatos e Boatos e Venenos, O jornal criou um dispositivo
dedicado especificamente para vigilância em forma de uma coluna editorial, esta intitulada
como Ronda Esaviana.
(Figura 1: Primeira aparição da coluna Ronda Esaviana)
Talvez, como os “moinhos de boatarias” que de acordo com o estudo de Elias (2000)
eram produzidos na aldeia inglesa, o Bonde produzia uma sonoridade de venenos e boatos
que se espalhavam semanalmente entre os moradores do campus e ate cidades vizinhas.
Entretanto, é importante salientar que o discurso midiático do jornal, não apenas
condenava/estigmatizava certas singularidades, mas enalteciam o ego dos bondistas que se
tornavam protagonistas de algum grande feito esportivo, amoroso ou acadêmico, o que
demonstra que a produção do sujeito esaviano ocorria na relação com o outro. Ou seja, o
jornal apresenta discursos permitidos como da amizade, do esporte, dos encontros amorosos
afastando através da condenação de condutas as singularidades ameaçadoras. Assim como no
estudo de Elias (2000), a boa fofoca e a má fofoca são duas faces da mesma moeda.
Em um local onde havia poucos sujeitos estudando, morando e vivendo numa rotina
metódica, não menos conflituosa e muitas das vezes necessitando destes para apimentar uma
2
A origem do Espírito Esaviano vem do espírito americano, herança do modelo americano que fundou a escola,
nele segundo D.C Giacometti (1947) o cerne deste espírito americano que a ESAV herdou possui características
como: trabalhar em conjunto, cooperação, camaradagem, confiança recíproca e justiça.
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A FOFOCA ENQUANTO PROTAGONISTA DO JORNAL O BONDE
pacata rotina, o jornal parece ter vindo a calhar no intuito de visibilização. Bem como apontou
Deleuze (2005):
“(...) a relação de poder se insere em todo lugar onde existem singularidades,
ainda que minúsculas, relações de forças como “discussões de vizinhos,
brigas de pais e crianças, desentendimentos de casais, excessos alcoólicos e
sexuais, rixas públicas e - tantas - paixões secretas”
E, mais ainda, o jornal parece ter expressado bem a dificuldade de uma
desterritorialização de si, uma prática própria do encontro com o outro e que os jovens da
ESAV eram colocados em exercício o tempo todo. O Bonde servia para mensurar bem
esses conflitos, muitas das vezes apresentados como zoações, capturando de maneira
precisa às linhas de fuga do cotidiano que Rolnik (2011) aponta como sendo os afetos que
nos movem pela linha da vida:
“É que enquanto se está vivo não se para de fazer encontros com outros
corpos (não só humanos) e com corpos que se tornam outros. Isso implica,
necessariamente, novas atrações e repulsas; afetos que não conseguem
passar em nossa forma de expressão atual, aquela do território em que até
então nos reconhecíamos. Afetos que escapam, traçando linhas de fuga – o
que nada tem a ver com fugir do mundo” (p.49).
Uma das singularidades, linhas de fuga capturadas pelo jornal tem apelido, Peter Lorre,
um estudante que recebera este apelido em alusão ao ator húngaro chamado Peter Lorre
(1904-1964), interprete de personagens vilões e monstros em filmes como: “Casablanca”, “O
diabo riu por último”, “Relíquia macabra”, “O homem dos olhos esbugalhados”, “Cassino
Royale”, e “M, o vampiro de Dusseldorf”, neste último fazendo o vilão Le Chiffre. Ou seja,
um ator que interpretou no cinema hollywoodiano papéis sombrios e estranhos, um
estrangeiro, outsider que parecia encarnar bem papéis de vilão que o cinema americano lhe
atribuía. No tocante a esse constructo social, Elias (2000), aponta que em oposição a nobre,
termo vinculado aos guerreiros senhores de escravo em Atenas, o termo vilão, acabou se
atrelando a um grupo, ou pessoa designativa de moral baixa (grifo meu). O Peter esaviano se
torna herdeiro outsider do ator húngaro devido a sua singularidade ameaçadora, um estudante
diferente, perseguido e destacado no ano de 1951 pelo jornal e posto em exposição nas
colunas: Fatos e Boatos e avulsas como: Lar, doce Lar e o julgamento de Judas, esta última
foi à primeira aparição de Peter nas páginas do jornal O Bonde.
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A FOFOCA ENQUANTO PROTAGONISTA DO JORNAL O BONDE
Figura 2: O Bonde com destaque Peter Lorre
O recorte apresenta uma brincadeira (zoação) do estudante Oliveira (1951), que se intitula
como Judas Escariote, este resolve desaparecer deixando seus pertences e qualidades para os
colegas, e, na lista de distribuição, sobra para Peter Lorre uma dose de hormônios masculinos.
Este é apenas o primeiro de vários outros momentos em que Peter é “zoado”,
perseguido pela sua singularidade nesta mídia estudantil. E, não só os garotos eram alvos do
controle e zoações, com o início da Escola de Ciências Domésticas em 1952, o jornal passou a
se divertir com as garotas do curso.
ECO... NÃO... MIA
Segundo Mosquitinho, “o povo aumenta mas não
inventa”.
Será que foi baseado neste princípio que o Ney
Sombrinha estava aflito para que terminasse a história,
ou melhor, o romance das cortinas?
Com grande espanto vimos aquela econômica em
pé, no balanço da Sétima cantando:
“Que beijinho doce, que C... s tem...
Há também a história daquela menina da
Escolinha que se prima pelas perguntas: Aula prática
de Laticínios:
– professor, o vapor que sai da caldeira é quente?
Lamentamos professor...a sua sorte!
O professor de Ciências dizia que os fios grossos
oferecem menos resistência a passagem da
eletricidade.
Ela – E os fios?
Resposta – Risadas, muitas risadas.
Figura 3 – zoação com as economistas domésticas
Várias outras matérias trouxeram o tom jocoso que os bondistas imprimiam na relação
com as economistas domésticas, este recorte, com o NÃO explicito no meio do título da
matéria reforça o lugar do poder naquela Escola, o poder regulado da fala, do destaque que
estava ao lado dos homens da agrária, enquanto que às economistas, ou, as pica-couve, como
eram chamadas pelos bondistas, deveriam se adequar ao papel de coadjuvantes. Assim, o
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A FOFOCA ENQUANTO PROTAGONISTA DO JORNAL O BONDE
julgamento feito em relação à colega esaviana acima expõe uma singularidade vulnerável na
ESAV, bem como provavelmente a necessidade e esforço que estas faziam para serem
pertencentes ao grupo seleto de estudantes. Todavia, o que aqueles homens se interessavam,
era a oferta de cores e pinceladas da beleza feminina tão desejada numa oficina
eminentemente masculina que enfim chegava a ESAV para deleite daqueles homens, bem
como do Jornal que garantia mais fofocas para o semanário.
Referências
AK KOV. ECO...NÃO...MIA. In. Jornal “O Bonde”, número 124, ESAV, 27/09/1952.
DELEUZE, Gilles. Foucault. Tradução Claudia Sant’Anna Martins, revisão da tradução
Renato Ribeiro – São Paulo: Brasiliense, 2005.
D.C. Giacometti. Espírito Esaviano. In. Jornal O Bonde, número, ESAV, 1018, 26/04/1947.
ELIAS, Norbert, SCOTSON, L John. Estabelecidos e Outsiders: sociologia das relações de
poder a partir de uma pequena comunidade; tradução do posfácio à edição alemã, Pedro
Sussekind; apresentação e revisão técnica, Federico Neiburg – Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Ed. 2000.
EL ZORRO. Ronda Esaviana. In jornal “O Bonde”, numero 138, ESAV, 27/04/1954.
FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. Organização, introdução e revisão técnica de
Roberto Machado. – 25º Ed. _São Paulo: Graal, 2012.
LAM-SÁNCHEZ, Alfredo. A UFV nos tempos da Escola Superior de Agricultura- UREMG.
Viçosa: Editora UFV, 2006.
OLIVEIRA, M. J. de – O testamento do Judas de 1951. In. Jornal “O Bonde”, número 92,
ESAV, 07/04/1951. In. Jornal “O Bonde”, número 92, ESAV, 07/04/1951.
Os melhores filmes de Peter Lorre, disponível em: http://melhoresfilmes.com.br/atores/peterlorre. Acesso em: 05 jun. 2013.
ROLNIK, Suely. Cartografia Sentimental: transformações contemporâneas do desejo.
Porto Alegre: Sulina; Editora da UFRGS, 2011.
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TELENOVELAS E HOMOSSEXUALIDADES E RELAÇÕES DE PODER E
PRODUÇÕES DE SUBJETIVIDADES E...
Marcelo Faria dos Anjos 1
Este artigo soma-se ao conjunto de reflexões que venho realizando na pesquisa que
toma como elemento conjuntivo as relações entre telenovelas e homossexualidades, a partir
dos personagens e tramas que trazem essa discussão ao longo dos anos 2000 e une-se as
reflexões trazidas por perspectivas pós-estruturalistas e filosofias da diferença e dialoga com
as possíveis constituições de subjetividades homossexuais emergentes ao longo deste tempo
e...
Pergunto-me: como estudar as imagens, textos e sons das telenovelas sem a pretensão
de ver nas imagens afirmações de representações prontas e acabadas, mas possibilidades
de significações datadas e bem localizadas seja do ponto de vista de quem as produzem e as
colocam em circulação, seja do ponto de vista de quem as recebem e com elas, de alguma
forma interagem? E como as imagens das telenovelas e os discursos que nascem delas e a
partir delas produzem novos, múltiplos e diferentes sentidos para se pensar
homossexualidades e processos educativos? E que enunciados performativos são reiterados
nas telenovelas a partir dos anos 2000 para a constituição de uma suposta identidade da
homossexualidade brasileira?
E brincando com o trocadilho das palavras, poderíamos dizer que a telenovela se
assemelha a um novelo que vai se desenrolando e como num fio que vai se revelando e se
estendendo e os personagens vão sendo apresentados e as histórias diversas vão se
entrelaçando e vai-se formando um dos gêneros narrativos mais populares da atualidade e
como uma das características principais, a telenovela apresenta a possibilidade de a história
ser estendida e modificada enquanto está sendo contada e vai se criando uma experiência que
não tem compromisso com o verdadeiro ou falso, mas que se ancora naquilo que se vai se
vivendo e sendo criado cotidianamente...
E olhando para as conexões entre telenovelas e homossexualidades, pontos vão se
somando e interagindo e criando possíveis territórios:
Nas telenovelas, personagens homossexuais vêm sendo apresentados desde décadas
passadas, e em especial, nesta última década, vêm se revelando e fazendo percursos
alternativos daquilo que o padrão heteronormativo impõe constantemente, buscando outros
caminhos, ousando, arriscando, subvertendo as normas e, aos poucos, apontando para
possibilidades de resistências, brechas, linhas de fuga, encontros e desencontros...
Estes espaços de encontros entre telenovelas e homossexualidades constituem espaços
de potências que permitem criar com e a partir das imagens apresentadas nas telenovelas e
criar, quem sabe, novos movimentos que possam ir além da tela eletrônica e possibilitem
movimentos de pensamentos e, ao pensar em movimento, pensar o que pode uma
telenovela e seus personagens homossexuais? O que se pode fazer do encontro com eles?
Imagino que as possibilidades de experiência com a telenovela e as homossexualidades,
bem como, as possibilidades de leitura e de análise para com a mesma são múltiplas, e ao
mesmo tempo, singulares e por determinadas vezes, acabou-se incorrendo em dois
caminhos: num primeiro, supondo uma sensação de que a telenovela brasileira, ao criar
personagens homossexuais, a partir da d écada de 70, possibilitou a expansão e a visibilidade
da questão da homossexualidade e num segundo movimento, uma impressão inversa ocorreu:
de que a expansão do movimento gay proporcionou uma necessidade das telenovelas
1
Universidade Federal de Juiz de Fora
LINHA MESTRA, N.23, AGO.DEZ.2013
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TELENOVELAS E HOMOSSEXUALIDADES...
retratarem e representarem personagens homossexuais, caindo numa relação causa e efeito,
motivo e consequência, parecido com a velha máxima do “quem veio primeiro: o ovo ou a
galinha?”
Parece que cabe aqui pensar aqui numa ideia de correlação e de como telenovela s e
homossexualidades dialogam num intercâmbio, numa troca, numa conexão e do encontro
dessas duas categorias, pode-se pensar que a própria construção da telenovela brasileira diz de
um contexto cultural e participa de uma trajetória, de um caminho construído, e esse caminho
que se faz de mão-dupla, no momento em que as discussões sobre as homossexualidades
começam a ganhar corpo e espaço, as telenovelas, enquanto artefatos culturais participam
efetivamente desse diálogo e...
Interage com a perspectiva pós-estruturalista e as filosofias da Diferença que brotam,
sobretudo do pensamento de Nietzsche e sua crítica à razão e a filosofia hegeliana,
contrapondo os ideais de universalidade e unidade aos valores de diferença e fragmentação,
gerando nos seus leitores e interpretadores a emergência de uma outra possível filosofia que
se sustenta sobre um perspectivismo cultural e um pluralismo moral, desconstruindo as
pretensões universalistas e indicando a "verdade" e o "certo" como produto discursivo de
um determinado sistema que produz as id eias de certo e errado, de verdadeiro e falso, um
sistema de julgamento moral...
A crítica da razão de Nietzsche e as várias correntes de pensamento pósestruturalistas daí originadas representam uma reavaliação radical da cultura
do Iluminismo e de sua concepção de razão universal. Os pós-estruturalistas
compreendem que existe uma pluralidade de razões. O sujeito não é um
sujeito unitário em direção à perfeita coerência, assim como a história não é
universal. É quebrada também a ideia progressista da história, pois o sonho
modernista de progresso está calcado na razão científica. Baseando-se na
crítica que Nietzsche faz da "verdade", os pós-estruturalistas questionam os
pressupostos que dão origem ao pensamento binário e problematizam a
figura do sujeito humanista autônomo e transparente. Ao invés desse sujeito,
vêem um sujeito descentrado, atravessado por diversas forças libidinais e
práticas sociais. É um sujeito envolto no múltiplo: o tempo, o lugar, a
genealogia na história da filosofia moderna, seu espaço lógico e sua
reinterpretação e reinscrição. (PETERS, 2000: 82)
E soma-se com as problematizações trazidas por Michel Foucault que, em seus
diversos estudos, buscou analisar os processos envolvidos na produção de “verdades” (como
“uma verdade” torna-se “a verdade”) e o interesse que atravessou sua obra, de diferentes
formas, de tentar articular a produção de “verdade” e seus efeitos de poder e no que se refere
à sexualidade, como ele a definiu (1980): um dispositivo histórico e contingente que reúne
práticas sociais em torno do corpo, seus usos e prazeres e como um conjunto de
estratégias de poder e saber que se ligam a determinados discursos para que exerçam efeitos
de verdade. E foi preciso que a verdade sobre o sexo fosse dita e disseminada para que se
pudesse reger os comportamentos e desejos dos sujeitos de uma cultura e...
A partir da leitura de Foucault (1996), suspeita-se também que um discurso permite
duas perspectivas: uma dizível e outra visível pois, para ele os discursos são sempre práticas
que efetivamente “formam os objetos que falam” (p. 56) e esses discursos acontecem em
determinadas condições de produção e de emergências, em espaços de possibilidades, que
variam de acordo com a época, a cultura, a história, a subjetividade, como nos lembra
Deleuze ao falar sobre Foucault:
“que tudo seja sempre dito em cada época, talvez seja esse o maior princípio
histórico de Foucault; atrás da cortina não há nada para se ver, mas seria
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TELENOVELAS E HOMOSSEXUALIDADES...
ainda mais importante, a cada vez, descrever a cortina ou o pedestal, pois
nada há atrás ou embaixo” (DELEUZE, 1991, p. 63).
E de Deleuze, tomo o conceito (pois filosofia não reflete, mas cria conceitos) de que o
que resta então são forças, mas forças que não remetem a um centro, mas que que enfrentam
outras forças, que afetam e são afetadas, como numa grande maquinaria, de forma a realizar
agenciamentos, arranjos, combinação de elementos heterogêneos que fazem surgir algo novo,
que não é nenhum dos elementos originais, mas novas formas de multiplicidade. "Um
agenciamento é precisamente este crescimento das dimensões numa multiplicidade que muda
necessariamente de natureza à medida que ela aumenta suas conexões" (DELEUZE, 2007,
17).“Há tão somente máquinas em toda parte, e sem qualquer metáfora: máquinas de
máquinas com seus acoplamentos, suas conexões (DELEUZE, 2010, p. 11), “de modo que
tudo é produção: produção de produções, de ações e de paixões, produções de registros, de
distribuições e de marcações, produções de consumos, de volúpias, de angústias e de dores”
(p. 14). “a síntese produtiva, a produção de produção, tem uma forma conectiva: “e”, “e
depois”...É que há sempre uma máquina produtora de fluxo e uma outra que lhe está
conectada, operando um corte, uma extração de fluxo... (p. 16).
E há partir dessas conexões, tenho tentado pensar as conexões entre telenovelas e
homossexualidades, telenovelas e produções de subjetividades,telenovelas e educação...
O simples olhar que depositamos sobre as imagens carregam a possibilidade de fazer
algo com elas pois olhamos para uma imagem para nos distrair, para nos informar, para
sentir prazer, para rir, chorar, para nos indignar, para vivermos uma experiência única e
pessoal e agimos e nos relacionamos com as imagens e seus discursos e não- discursos porque
nos dispomos a recebê-las ou, simplesmente, porque elas chegam, a todo instante, até nós e,
como lembra Fischer (2003, p. 53) “eleger a TV como material de estudo na educação tem o
sentido de ir além, além de nossas cotidianas e mínimas ações sobre as imagens, mas sempre
respeitando-as, partindo delas, a fim de dinamizar e multiplicar o vivido” e quando nos
deparamos com uma cena de novela, temos a sensação de “olhar num espelho” e que nos
vemos e somos vistos... Olhamos e nos sentimos representados naquela imagem que se
projeta e esse ver e olhar, ou simplesmente estar diante de uma cena de uma telenovela,
produz s entidos e refletem algo em nós...
Não há enunciados escondidos naquilo que as imagens das telenovelas apresentam, mas
emissores e receptores que variam conforme os regimes de verdade de uma época, de acordo
com as condições que se abrem para produção de certos discursos. E analisar uma imagem (e
os discursos que nela podem estar inseridos) significa em primeiro lugar não ficar no nível
apenas das palavras ou das coisas, mas fazer um exercício de perceber a trama de
possibilidades e de visibilidades que podem emergir da relação que se dá entre o nosso olhar e
aquilo que olhamos (e que também nos olha)...
As perspectivas pós-estruturalistas nos permitem fazer um trabalho que abandona as
relações de causa-efeito que separa forma e conteúdo, emissor e receptor, imagem e ideia,
meio e mensagem como se fossem oposições e binarismos e nos sugere uma investigação
que se propõe e se aventura a perceber as correlações, correlações entre telenovelas e
homossexualidades, correlações entre imagens que são vistas e “sujeitos” que as veem,
correlações entre olhar e ser olhado...
Falar dessas conexões aponta para os processos pelos quais nos tornamos sujeitos,
também chamados de processos de subjetivação, que produzem diferentes identidades,
enquadramentos e ações com múltiplas possibilidades de verdades que se apresentam como
num jogo de relações, escolhas, assujeitamentos, resistências, e constituindo-se como um
plano de produções históricos-políticas a partir do qual a forma sujeito emerge como efeito:
LINHA MESTRA, N.23, AGO.DEZ.2013
49
TELENOVELAS E HOMOSSEXUALIDADES...
Falar de subjetividade é falar de uma maquínica, de um processo dirigido a
geração de modos de existências, ou seja, modos de agir, de sentir, de dizer
o mundo. É analisar um processo de produção que tem a si mesmo o sujeito
como produto. (...) Falar em subjetividade como processo de produção
implica falar onde este processo de produção, processo de construção do si
mesmo ocorre. (TEDESCO, 2007, p. 140).
As telenovelas, com suas materialidades discursivas e não-discursivas, tornam-se um
espaço onde as relações de poder são processadas cotidianamente e onde a produção e
constituição de sujeitos e subjetividades acontece, como por exemplo as subjetividades
homossexuais e com/a partir da telenovela torna-se possível pensar novas experiências de
mundo, novas identidades e antigas identidades marginalizadas, possíveis modos de se viver e
de se estar numa determinada cultura...
A pergunta que faz a conexão nessa pesquisa sobre que enunciados performativos se
reiteram nas telenovelas a partir dos anos 2000 para a constituição de uma suposta identidade
da homossexualidade brasileira, leva-nos a problematizar algumas categorias significativas
nesse caminho: gênero e sexualidade e homossexualidade e corpo e relações de poder e
performatividade e...
Pode-se dizer que os processos de significação em torno dessas, bem como todos os
processos de significação de uma dada cultura, acabam por apagar as marcas de sua própria
produção e de sua multiplicidade e destrói a ideia de que seja possível se chegar a um
único e verdadeiro significado, pois há sempre várias e possíveis leituras...
Homossexualidade(s) podem ser pensadas, segundo o pensamento Judith Butler,
como “estruturas”, moldes, ou “grades” nas quais (ou pelas quais) os sujeitos são
“modelados” (SALIH, 2012, p. 74) e essas “estruturas” são múltiplas porque não se
enquadram numa identidade homogênea e trazendo isso para uma relação com as
telenovelas, especialmente a partir dos anos 2000, vemos diferentes tipos de personagens
homossexuais que foram sendo criados, tenho uma maior participação e envolvimento nas
tramas e que refletem as condições de emergência de uma época, de uma cultura, de uma
maquinaria de relações onde essas constituições vão se tornando possíveis, de territórios que
vão sendo desenhados...
Homossexuais mocinhos, homossexuais bandidos, ricos, pobres, brancos, negros,
homossexuais afetados, homossexuais enrustidos, caricatos, engraçados, sérios e polêmicos,
homossexuais que vivem o drama de revelar-se, homossexuais assumidos, homossexuais
vivendo tórridas relações de amor e paixão, homossexuais assexuados ou com a dimensão da
sexualidade completamente anulada, homossexuais que reafirmam o padrão heteronormativo
ou que rompem e resistem... Homossexualidades múltiplas e possíveis dentro de um espaço e
tempo, onde discursos e verdades são também possíveis...
Acredito que há tantos elementos subversivos como elementos normativos nos
enunciados performativos de personagens homossexuais das telenovelas ao longo dos
anos 2000 e que vale notar como se torna difícil tentar “classificar” o que exatamente quem
são, o que eles estão fazendo com seus corpos, com suas sexualidades e que relações se dão
nos espectadores que os recebem, sejam eles homossexuais ou não...
Enunciados performativos não apenas descrevem mas produzem aquilo que enunciam e
fazer acontecer e analisar tais enunciados implica observar processos, engenharias, condições
de possibilidade para a construção de um corpo, de uma prática , de um sujeito...
As telenovelas, ao mesmo tempo em que apresentam enunciados performativos de
homossexualidades brasileiras, constituídas numa cultura heterossexual, apresentam também
outras possibilidades que estão em movimento contínuo... Talvez, com tantos personagens,
com diferentes performatividades, o que as telenovelas indicam nessa relação, seja a
desnaturalização de uma possível identidade.
LINHA MESTRA, N.23, AGO.DEZ.2013
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TELENOVELAS E HOMOSSEXUALIDADES...
Referências:
DELEUZE, Gilles. Foucault. Tradução Claudia Sant’Anna Martins, revisão da tradução
Renato Ribeiro – São Paulo: Brasiliense, 2005.
______. Gilles. Mil Platôs V. 1. São Paulo-SP: Editora 34, 2007.
DELEUZE, Gilles; GUATARI, Félix. O Anti-Édipo: Capitalismo e esquizofrenia. Tradução
de Luiz B. L. Orlandi. São Paulo, Ed. 34, 2010.
FISCHER, Rosa Maria Bueno. O Dispositivo Pedagógico da Mídia: Modos de Educar na
(e pela) Tv. In Educação e Pesquisa, janeiro-junho, ano/vol. 28, número 001. São
Paulo: Universidade de São Paulo, 2002, p. 151-162.
______. Televisão e Educação. Fruir e Pensar a TV. Belo Horizonte, Autêntica,
2003.
FOUCAULT, Michel. A Arqueologia do Saber. Rio de Janeiro, Forense, 1996.
______. História da Sexualidade I: a vontade de saber, 3 ed. Rio de Janeiro: Graal,
1980.
______. Microfísica do Poder. Organização, introdução e revisão técnica de Roberto
Machado. – 25º Ed. _São Paulo: Graal, 2012
PETERS, Michael. Pós-estruturalismo e filosofia da diferença. Belo-Horizonte-MG:
Autêntica, 2000.
SALIH, Sara. Judith Butler e a Teoria Queer. Tradução e notas de Guacira Lopes
Louro. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2012
VILELA, Eugênia. Resistência e Acontecimento. As palavras sem centro. In: KOHAN,
Walter (Org.). Foucault, 80 anos. Belo Horizonte: Autêntica, 2006, p. 107-127.
LINHA MESTRA, N.23, AGO.DEZ.2013
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BLOGS E INTERNET: NOVOS ARRANJOS E TERRITÓRIOS PARA AS
HOMOSSEXUALIDADES
Anderson Ferrari 1
Há algum tempo atrás, um amigo me apresentou um rapaz de mais ou menos 26 anos,
culto, bonito e um pouco tímido. Meses depois esse mesmo amigo me contou um pouco
surpreendido que esse rapaz não queria mais encontros sexuais com ele porque havia decidido
investir em relacionamentos fugazes, sem compromisso e limitado ao sexo. Para isso ele
havia criado um blog 2 na internet contando suas aventuras sexuais e assumindo uma nova
postura diante da homossexualidade: só queria parceiros ativos com órgãos sexuais acima de
20 cm e que se deixassem filmar na relação sexual. Havia se transformado em taradaozs.
Fiquei muito interessado por esse movimento que conjuga homossexualidades e internet. Que
arranjos são possíveis a partir dessa tecnologia? Que “novas” formas de ser estão em jogo?
Que homossexualidades são construídas neste espaço virtual? Quem é esse homossexual que
organiza um blog com suas filmagens? Quem são os seguidores deste blog que exercem suas
fantasias, suas homossexualidades e seus encontros a partir da internet? Questões que
dialogam com o meu campo de interesse sobre os processos de subjetivação, principalmente
aqueles ligados as homossexualidades masculinas e seus espaços de constituição. Um
movimento que diz de mim, na medida em que faz questionar em que medida o meu interesse
está inscrito naquilo que Foucault (1988) chama atenção e que nos organiza desde a
modernidade que é essa “vontade de saber”? Como estamos capturados por essa necessidade
de transformar o sexo em conhecimento.
O blog é um artefato muito bem construído, com imagens, filmes em que taradaozs
aparece transando com os seus parceiros (em todos os vídeos os envolvidos aparecem sempre
protegidos com máscaras ou em posições em que não é possível ver seus rostos), contos,
quadro de seguidores, um sistema de avaliação em que aquele que entra pode ver e avaliar o
desempenho sexual nos vídeos. É desse espaço construído para o exercício da
homossexualidade que se origina este artigo, considerando o blog como campo de
investigação, trabalhando com as informações que são selecionadas para controlar aquilo que
o outro deve saber, construindo uma imagem de si a partir do que elege como narrativa. Esse
não é um processo isolado. Muito pelo contrário. É cada vez mais comum blogs e processos
de subjetivação semelhantes. Somente taradaozs tinha 370 membros seguidores e grande
parte deles com blogs, além de já ter contado com 232.244 acessos. Dois movimentos que se
relacionam. Por um lado nós temos pessoas dispostas a construírem páginas na internet em
que falam de si, produzem imagens de si relacionadas às orientações e práticas sexuais. Por
outro lado, há também pessoas que não constroem essas páginas, mas participam do mesmo
processo, na medida em que seguem essas personagens, exercitam suas homossexualidades
pela internet, encontram com essas personagens mediadas pela máquina. Parece possível
pensar que o computador se transformou em um objeto de desejo, um artefato em que é
possível o encontro com o prazer. A internet se tornou um espaço de “pegação”, de exercício
da sexualidade e constituição de sujeitos.
É esse movimento que está em processo de construção – a expressão das
homossexualidades na internet – que quero tomar como foco de análise deste artigo. Mais do
que isso percebo que essas expressões também se constituem como uma maneira de ser,
estando intimamente relacionada ao que podemos chamar de “novas” homossexualidades.
Neste sentido, estou considerando as homossexualidades como processo em constante
1
2
Universidade Federal de Juiz de Fora
http://taradaozs.blogspot.com.br/search/label/contos%20de%20TARADAOZS. Consultado em 27/01/2013.
LINHA MESTRA, N.23, AGO.DEZ.2013
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BLOGS E INTERNET: NOVOS ARRANJOS E TERRITÓRIOS PARA AS HOMOSSEXUALIDADES
construção discursiva e cultural, o que envolve hoje os mecanismos tecnológicos em que
podemos investir em diferentes maneiras de ser, evidenciando o caráter fluído das identidades
em relação aos espaços que circulam. Atualmente, os modos de produção material e simbólica
que envolvem as identidades homossexuais estão atravessados pelas novas tecnologias,
sobretudo pela internet, que gera novas arquiteturas, relacionamentos e negociações que
impactam o comportamento das pessoas e da sociedade. A internet penetra as dobras sociais,
influenciando assim as formas de relacionamento entre os sujeitos, produzindo processos de
subjetivação. Esse novo espaço de circulação e de produção das identidades homossexuais vai
se constituindo como um novo espaço de valores e representações das homossexualidades
dependentes cada vez mais da disseminação de uma cultura visual e digitalizada que
determina, consequentemente, configurações inéditas das relações dos sujeitos com o seu
entorno e consigo mesmo.
“Eu sou você quando fecha a porta do quarto e liga o computador”: Narrativa de Si
A frase título desta parte – “Eu sou você quando fecha a porta do quarto e liga o
computador” – foi retirada de um texto divulgado no blog em que somos apresentados ao seu
criador. Uma frase que cria uma ligação com aquele que está visitando este espaço e, mais do
que isso, coloca-o na mesma posição do observado e que só existe pela observação do
observador, de forma que há uma relação que constrói os dois sujeitos. Com o título “Quem é
Taradaozs?” há um investimento de esclarecer quais as motivações que o levaram a produzir
um espaço como este, há uma necessidade em falar de si, respondendo a pergunta “quem sou
eu?” Responder a pergunta “quem sou eu?”, é recusar-se a ser produto de alguém, num
exercício dele próprio – o taradaozs – escrever e se inscrever como personagem e resultado
de sua narrativa. Ao final temos como um memorial em que ele justifica suas escolhas, diz
quem é, recupera sua trajetória, memória num jogo de construção e compreensão de como se
tornou o que é. “Sou uma pessoa comum como qualquer outra, que trabalha, paga as contas,
vive um dia de cada vez. Mas como todo ser humano tenho a minha válvula de escape para
desabafar sobre as coisas da vida que não consigo por em ordem. Podem me julgar, dizer
que é algo insano, promíscuo, sem valor próprio”. Ao mesmo tempo em que diz que é uma
pessoa comum, como qualquer outra, o que o taradaozs parece fazer é fortalecer que vivemos
num mundo plural em que se multiplicam as experiências, as experimentações de forma que
não podemos falar das homossexualidades como algo homogêneo, mas que essa
homogeneidade cada vez mais dá lugar à heterogeneidade que nos compõe. Algo que dialoga
com as novas tecnologias e esse mundo da cultura visual em que circulamos e nos
apropriamos, de forma que essas mudanças têm tornado evidenciado e introduzido inovações
nos processos de subjetivação que incluem a produção de imagens e narrativas de si, a
exposição e o intercâmbio dessas constituições, ou seja, a recomposição de quem somos
diante do “outro”, inclusive através dos perfis virtuais que trabalha com a fantasia, com o
desejo e que não está no necessariamente ligada à comprovação da verdade.
Sua prática de filmar e de evidenciar sua busca desenfreada por sexo é duplicada em sua
narrativa, de forma que taradaozs ganha corpo pela escrita. No entanto, pela escrita de si via
estabelecendo causalidades, explicações, justificativas. “Eu sou você quando fecha a porta do
quarto e liga o computador. Eu sou a sua intimidade, seus maiores fetiches e fantasias. Por
esse motivo nunca mostro meu rosto e das pessoas que aparecem nos meus vídeos, para que tudo
fique na sua imaginação”. A partir da forma de organizar sua narrativa, taradaozs vai definindo
sua identidade, sem fugir da relação entre identidade e sua “verdade”. Sua verdade está nas
relações sexuais. “Sempre fui muito fogoso, já procurei ajuda de psicólogos e disseram que
era normal, que diminuiria com a idade”. Como nos lembra Foucault (1988) as identidades
individuas e sociais, a partir do século XVIII se vinculavam cada vez mais a identidade
LINHA MESTRA, N.23, AGO.DEZ.2013
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BLOGS E INTERNET: NOVOS ARRANJOS E TERRITÓRIOS PARA AS HOMOSSEXUALIDADES
sexual. A verdade dos sujeitos estava na busca interior sobre os desejos, os prazeres, as
práticas, enfim, sobre as questões que foram se tornando “sexualidade”, identidade sexual que
começava a ser cobrada de todos, instauradas nos corpos e nas subjetividades. As
homossexualidades inventadas no século XIX (FOUCAULT, 1988), também passam a ser
buscadas nos corpos, se tornando constituidoras dos sujeitos, absolutizando as identidades
homossexuais, de forma que o homossexual se torna o que faz, o que deseja, o que sente. A
narrativa e escrita de si que constrói taradaozs está neste jogo instituído no século
XVIII/XIX, de forma que ele se torna o outro absoluto.
Mas a narrativa também parece incorporar outro aspecto de construção das
homossexualidades advindo do século XIX e que se faz presente até hoje. As
homossexualidades surgem de um julgamento. Resultado do discurso médico elas surgem
como doença, como algo que deveria ser tratado, curado, expulso das pessoas. Desta forma,
deve ser ocultado. Ao esconder o rosto, taradaozs se relaciona com essa necessidade de
ocultar. No entanto, ao criar um blog em que revela suas práticas, seu corpo, suas relações, ele
também dialoga com o ocultamento, pela relação entre esconder e mostrar. Porque a
necessidade de criar um blog? Até que ponto a página ajuda e se relaciona com o ocultamento
dos seguidores? “Filmo minas fodas por vaidade sim, confesso que me gabo quando acesso
minha caixa de e-mails e recebo incontáveis propostas pra filmar, comentários nos vídeos,
mensagens, algumas de pessoas desaforadas que não têm a coragem de mostrar a cara, mas
sei quem são e desejo muito que elas continuem falando mal e perdendo o tempo delas me
julgando”. Narrar-se, ocultar-se, mostrar o corpo e não o rosto, visitar a página, ver os vídeos,
escrever comentários e não revelar-se são jogos estabelecidos a partir do blog, a partir da
construção desta personagem taradaozs, da sua narrativa e a partir da relação entre público e
privado. A personagem taradaozs viola essa separação, trazendo para o espaço público, para
internet coisas da intimidade, que “deveriam” ficar ocultas.
O público e o privado, o que pode mostrar e o que deve ser escondido, são parte da
sociedade disciplinar caracterizada por Foucault (1988) como aquela surgida na modernidade
como sociedades de segurança. Das disciplinas a governamentalidade, fomos nos constituindo
em meio ao assujeitamento e resistências. As resistências estarão sempre presentes, visto que
a disciplina e o assujeitamento são relações de poder que como forças incluem liberdade.
Neste sentido, podemos pensar que a ação de taradaozs se inscreve na perspectiva de
resistência, na possibilidade sempre aberta de criação de modos libertários de vida. Da mesma
forma que podemos pensar a constituição do sujeito a partir da escrita da sua própria vida, a
narrativa de si também se potencializa como o investimento em novas formas de ser, outros
experiências e modos de vida mais libertários. A narrativa de si entra em relação com a
constituição do outro. Posso experimentar outros modos de vida, outras experiências, outra
forma de vida a partir da internet, do acesso a blogs e sujeitos como taradaozs.
Ao escrever sobre seus desejos, suas práticas, suas procuras, ou seja, ao narrar- se,
taradaozs vai se formando como sujeito ético e estético, como ficção e construção, como um
ser pode assumir muitas formas e que exercita toda sua versatilidade. “(...) nunca mostro meu
rosto e das pessoas que aparecem nos meus vídeos, para que tudo fique na sua imaginação.
Assim você pode construir a sua realidade e fugir para lá, esquecer do mundo, da chateação
e dos problemas. (...) Sou o rabudo que é arregaçado por qualquer dotadão sem
compromisso, sem pudor, sem importar em saber o nome, sem culpa. Para os ativos, sou o
pirocudo arregaçador, que pega um passivo pela cintura, mete na pressão...” O blog se
constitui como espaço de vida, guia de conduta (taradaozs também estabelece o que pode e o
que não pode nas suas relações, o que é certo e o que é errado). Taradaozs na sua busca por
novas experiências sexuais, constrói enredos e estratégias, tais como os contos em que fica no
ar se trata-se de ficção ou de casos verídicos, imagens, enfim, mecanismos para criar e
divulgar sua intenção, suas práticas, sua constituição, envolvendo com o mundo de uma forma
LINHA MESTRA, N.23, AGO.DEZ.2013
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BLOGS E INTERNET: NOVOS ARRANJOS E TERRITÓRIOS PARA AS HOMOSSEXUALIDADES
diferente de outros homossexuais de forma que cria uma vida toda sua. Uma vida própria que
não está fora do social, do contexto em que é produzida, já que não ter rosto e manter-se no
anonimato é dialogar com a sociedade atual. O anonimato é parte desta sociedade que está
vivendo a passagem da disciplina para o controle.
Na sociedade de controle o corpo assume um local central nas práticas de resistências,
que pode ser encontrada na prática de taradaozs em neutralizar sua identidade, de criar outras
identidades, de apostar no anonimato do rosto. Esconder o rosto é uma ação que impossibilita o
reconhecimento e com isso causa uma certa desordem pública, uma vez que toda ação deve ser
atribuída a um autor. Assim, esconder o rosto, assumir o anonimato, criar outras identidades
não é apenas um estado de ser e estar no mundo, mas se transforma em resultado de ação
deliberada de resistência. Se constitui na intersecção entre os processos de subjetivação e a
norma social, entre o desejo e o que é socialmente qualificado como abjeto. As
homossexualidades surgem dessa relação. Neste sentido, nossa sociedade exige dos
homossexuais uma certa racionalidade e intencionalidade no que se refere ao desejo, uma
exigência que não acontece com as pessoas que tem vida sexual com pessoas do sexo oposto.
No entanto, me parece possível pensar num outra relação e compreensão do desejo, algo
menos organizado pela racionalização dos afetos. As sexualidades menos valorizadas muitas
vezes se organizam na tentativa de rompimento dos enquadramentos moralizantes de certo e
errado. “(...) tenho um estilo próprio que inventei e isso me diferencia de qualquer outro. Não
estou dizendo que sou o melhor ou pior, mas diferente.” O melhor e o pior nos convidam a
pensar a experiência da constituição das homossexualidades, a experiência de se constituir em
relação às normas que moldam subjetividades enquadradas como abjetas e fadadas ao
segredo. A experiência em compreender-se como “anormal”, “doente”, “abjeto” diz dos
processos de subjetivação assim como das relações que são estabelecidas com os corpos e o
sexo. Desta forma, me parece que qualquer da postura assumida, seja ela o assujeitamento, a
resistência ou a transgressão, mantém-se sempre a singularidade da experiência da abjeção.
Referências
FOUCAULT, Michel. A História das Sexualidades I: a vontade de saber. Rio de Janeiro,
Graal, 1988.
LINHA MESTRA, N.23, AGO.DEZ.2013
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SESSÃO 3 – FOTOGRAFIAS EM FUGA NA/DA GEOGRAFIA ESCOLAR
TRANSFIGURANDO VAZIOS ESCOLARES
Anabê Pinheiro Guimarães 1
Ana Maria Hoepers Preve 2
Tornar habitável uma imagem, tornar habitável um
espaço de educação e, fazer na imagem e no espaço,
outra coisa. O vazio foi o começo. Como se faz para
ver vazios? Assim começamos... 3
Para além do mapa representacional utilizado pela Geografia, a cartografia exprime
relações, relações que constituem uma topografia das forças, daquilo que não é visível.
Assim, “menos que descrever o já visto, ou dar um contorno e uma localização ao já
existente, parece haver nela, [na cartografia] primeiro, o impulso de trazer algo novo para o
mundo.” (GODOY, 2013, p. 209).
Percorrer um lugar para encontrar algo que não coincida com o esperado e, depois,
organizar uma mostra feita de um material simples e sem palavras, porque conforme Preve
(2010), apoiada em Rolnik (1989), o cartógrafo aprendeu, depois de certo tempo em contato
com as coisas do mundo, que determinadas situações não precisam ser explicadas. É assim
que aparecem as imagens ao final deste texto. Elas portam apenas algumas anotações que não
foram feitas para elas. Houve um encontro. Nisso exprimem e experimentam potências de um
espaço destinado à educação: vertem para fora alguma coisa, um alimento para o pensamento.
Fotografias como mapas!
A imagem clichê reforça o já visto, o já percebido. As situações cotidianas são
encaradas apenas como banalidades: uma escola é uma escola e nela reconhecemos o que foi
algumas vezes percebido, mencionado, mensurado, refletido... Como se, apenas,
enxergássemos aquilo que temos interesse em perceber de acordo com os esquemas montados
para a realização de nossas pesquisas e/ou projetos de estágios. Assim, partindo de situações
já dadas aos nossos esquemas de percepção, fomos ao encontro de algo a mais nos espaços
que percorremos durante os estágios supervisionados, porque “se nossos esquemas sensóriomotores se bloqueiam ou quebram, então pode aparecer outro tipo de imagem: uma imagem
ótico-sonora pura” (Deleuze, 2007, p. 31). Como fazer para deixar surgir nesse lugar chamado
escola outro tipo de imagem? Em torno dessa situação-problema nosso estudo inicia. Arrancar
desse estado-clichê outra coisa, aquilo que não estamos esperando e que, portanto, não
sabemos, porque já não vemos, porque enxergamos pouco.
Este trabalho é fruto da experiência realizada na escola campo de estágio (Escola de
Educação Básica Simão José Hess, situada no bairro Trindade, em Florianópolis), na
disciplina “Estágio Curricular Supervisionado I e II: Prática de Ensino em Geografia” 4.
Durante estas disciplinas, no período da observação da turma em que posteriormente faríamos
o estágio de docência, instigados por nossa orientadora ao exercício e ao uso de imagens
1
Acadêmica do Curso de Geografia da FAED/UDESC e, atualmente, monitora da disciplina Estágio Curricular
Supervisionado I e III: Prática de Ensino em Geografia. [email protected]
2
Professora do Departamento de Geografia e do Programa de Pós Graduação em Educação, FAED/UDESC,
membro da Rede Nacional de pesquisas em Geografias, Imagens e Educação, Pólo Santa Catarina, articulando
grupo Geografias de Experiência. [email protected]
3
Trecho extraído do caderno de campo.
4
Sob a supervisão e orientação de Ana Maria H. Preve, professora responsável pela disciplina em parceria com o
acadêmico João Garcia Neto. Maiores detalhes sobre o estágio estão no relatório intitulado Escola: Nosso Olhar
– Trabalho de Conclusão de Estágio de Docência em Geografia, 2012, Faed/Udesc.
LINHA MESTRA, N.23, AGO.DEZ.2013
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TRANSFIGURANDO VAZIOS ESCOLARES
como um caminho diferente em relação às palavras, produzimos um ensaio fotográfico no
espaço escolar. As fotografias, imagens que apresentamos aqui, seguem o sentido que Manuel
de Barros lhes atribui ao dizer, em Só dez por cento é mentira, que elas seriam as palavras que
nos faltaram. Ou um mapa da topografia das forças invisíveis.
O exercício proposto exigiu um olhar demorado, uma atenção ao percorrer a escola de
outro modo. Sem muita intenção de encontrar a resposta para a questão colocada, parte-se de
‘um não saber por onde começar’. Mesmo assim, parte-se. Anda-se, até alguma coisa
diferente arrancar de nós um sorriso ou uma agonia, uma tristeza, uma leveza. O exercício já
possibilitava uma fuga das representações do espaço escolar enquanto meras “ilustrações”.
Geralmente, no contexto dos estágios e seus relatórios, as imagens costumam reforçar o texto
escrito: a fachada da escola, o prédio como um todo, a sala de aula, a turma de alunos, o pátio,
uma placa, e assim por diante; este tipo de representação acaba por recobrir camadas
compostas por outros materiais e texturas, e que quase nunca podemos enxergar. É como se
uma camada de concreto recobrisse de silêncio e ausências os tantos detalhes que escapam
aos nossos olhos treinados de observadores de aula-estágio. Cimento (olho treinado)
recobrindo a topografia das forças invisíveis.
Nessa condição, muitas vezes, seguimos relatórios de fases anteriores que dão
prosseguimento à imagem enquanto ilustração. No caso deste exercício, tínhamos que
abandonar por completo esse tipo de imagem que reforça o já sabido, o já percebido, o já
estabelecido. Tínhamos que buscar imagens que mobilizassem nossos pensamentos.
Cá estão elas: excessos de vazios, de entraves, de grades, de retidão, de descascados, de
buracos. Essas expressões em excesso dialogavam profundamente com a vivência em sala de
aula e com o ensino de Geografia. Sim, porque as salas de aula não estão desconectadas
desses processos invisíveis. Invisíveis não porque estão ausentes, mas, como mencionamos
antes, porque acabam recobertos pelo que deve ser observado e apresentado. Era um exercício
em nós, observadores da escola acostumados também a apenas repetir imagens. Um exercício
para que enxergássemos, no território em estudo, no território de estágio, algo que neste não
estivesse dado facilmente à percepção. Quais ativações essas imagens podiam potencializar?
Quais potências políticas elas atualizam?
É preciso dizer ainda dos elementos que reafirmavam aquele território: na sala de aula,
enfadonhos livros didáticos, carteiras enfileiradas permeadas por vazios preenchidos por nada,
conteúdos distantes da realidade, um professor de Geografia cansado, dando neste dia sua
décima quarta aula, e que, por vezes, dava a impressão de estar parado no tempo; avaliações
de múltipla escolha e alunos ‘mudos’ para a geografia, ‘desinteressados’, chamados pelos
professores de ‘apáticos’. No entanto, falavam sem parar, atiçados por seus aparelhos
celulares e por outras conversas. Na sala dos professores, víamos se reproduzir o preconceito
e a formulação destes selos de apatia em relação à turma que observávamos, considerada por
vários professores, como a ‘pior da escola’.
Por não termos tomado como ‘verdade’ os selos que nos eram apresentados e como
estávamos motivados para a experiência do estágio, encontramos, durante as aulas, uma
maioria interessada, envolvida e disposta a participar das atividades. Encontramos alunos que
tinham muito para contribuir e que, de fato, o fizeram.
Por debaixo daquela camada chamada de apatia havia algum interesse. Íamos aos
poucos dando conta de que a escola e os alunos estavam recobertos por uma camada que
ocultava um algo a mais neles. Preocupamo-nos em utilizar instrumentos didáticos
alternativos, usamos filmes nada comerciais, aproximamos o conteúdo e as linguagens da
realidade dos alunos e nos empenhamos em práticas que, mesmo sendo muito simples (como
desfazer as fileiras retas para formar um círculo, por exemplo), faziam toda a diferença.
Mas o vazio preenchido por nada continuava inscrito no espaço. Os espaços vazios do
ambiente escolar dialogavam ativamente com o discurso dos atores sociais envolvidos e com
LINHA MESTRA, N.23, AGO.DEZ.2013
57
TRANSFIGURANDO VAZIOS ESCOLARES
as problemáticas do ensino brasileiro. Até porque o que encontramos ali não era só dali...,
pois a escola se repete. Os entraves estruturais da educação se encontraram, neste trabalho,
com os entraves espaciais, que se mostram como reflexo nítido da política para uma educação
massificada, inscrita nas políticas públicas desde o século passado até os dias atuais. Sendo
assim, a estrutura física da escola pública brasileira apresenta-se como uma rugosidade viva e
visível, que se mostrou, nesta experiência, com claridade à luz da noite 5.
A massificação está inscrita nas práticas educacionais no interior dos muros escolares:
os critérios avaliativos, a grade curricular, a disposição das carteiras em fileiras, o professor
posicionado à frente, por aí vai, e quem sabe aonde isso vai dar. Estas estruturas educacionais
são alimentadas pelo cimento da corrupção, desvalorização de sua importância e dos atores
sociais envolvidos, falta de investimento público efetivo na educação e uma sociedade que
precisa dizer que a escola é o lugar da educação. Parece-nos mais tranquilo dizer que ela é o
lugar da repetição do mesmo, onde quase nada daquilo que está prescrito para lá acontecer,
acontece. O espaço escolar, palco onde tudo acontece – ou onde tudo não acontece –, revela
por si só as práticas arcaicas de educação, onde privilegia-se o controle, os cadeados, as
grades, a retidão, o tédio, a circulação da informação, e, por fim, a desumanização espacial
contida no vazio (preenchido de nada) – ambiente este fundamental à efetivação do processo
ensino-aprendizagem para a repetição. Um ambiente inserido num espaço geográfico onde se
dão múltiplas relações de poder – um ambiente que produz, reproduz, e, finalmente, reflete a
problemática do ensino brasileiro.
A educação e a escola, por sua vez, fazem parte de um contexto maior, de modo que
algumas imagens captadas no exercício fotográfico chegam a causar a sensação de estarmos
em outros locais que não a escola, sendo sua expressão espacial facilmente associada a
fábricas, presídios ou hospitais.
Não fizemos isso propositadamente, mas as imagens, na sua potência política de ativar
novos sentidos, fizeram e seguem fazendo esses percursos em nós. O que enxergamos nestas
fotografias mostra a escola como algo gélido e indigesto, claustrofóbico, monocromático. Por
outro lado, essas imagens funcionam como (nos dizeres de Gilles Deleuze, 2000) vacúolos de
não-comunicação, que nos mostram infinitas possibilidades de, nos vazios, passar outras
coisas. Porque, como diz o autor citado, “criar sempre foi coisa distinta de comunicar”
(DELEUZE, 2000, p. 217). Pelos vazios tivemos acesso ao que não se mostra (a topografia
das forças invisíveis), portanto, ao que ainda está em vias de se fazer. Por essas imagens
passam o que já não pode passar nas imagens ilustrativas, (por aqui passam outras bandas...) e
nas imagens didáticas passam somente o sentido de evidência visual ou representacional, um
sentido de comprovação do texto escrito, de comprovação de um território totalmente
conhecido. Conforme Oliveira Jr., há uma educação visual da memória em curso que impede
pensar as imagens, o espaço geográfico e o mundo em outras vertentes, mais múltiplas e,
sobretudo, imprevisíveis. Segundo o autor, o exemplo mais visível destas políticas pode ser
encontrado nas imagens que compõem os livros didáticos de Geografia, mas não só. “As
imagens, notadamente fotografias e mapas, são aí localizadas apenas em seu sentido
informativo, de verdade visual acerca do espaço geográfico, levando os alunos a tomarem
fotos e mapas como sendo a própria realidade espacial.” (OLIVEIRA JR., 2012, p. 8).
Junto a estas imagens colocamos alguns pensamentos extraídos do Caderno de Campo e
de outras inspirações e expressões artísticas e científicas, de forma a trabalhar livre e
criativamente com o discurso, com as diversas vozes e com a visão em diversas perspectivas,
e a relacionar as imagens com a experiência educacional em Geografia. Estas imagens
serviram de matéria bruta às invenções em educação (linhas de fuga) naquele espaço escolar.
Serviram para desfazer em nós a noção corrente de que os jovens estudantes, encarcerados
naquela turma, eram ‘apáticos’. O observador se propõe, ainda, a brincar com os vazios
5
Os estágios foram realizados no período noturno.
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TRANSFIGURANDO VAZIOS ESCOLARES
gélidos, atribuindo-lhes, através de recursos de edição de imagens, outras formas e cores, que
não as linhas retas, os brancos e os beges.
Há uma necessidade explícita aqui que é expandir para os outros observadores o
encontro com o vazio, com o que se repete sem cessar (todos os excessos), nessa e em outras
escolas cimentadas por seus blocos de iguais. Não estaria aqui nossa possibilidade inventiva
e, portanto, política para fazer acontecer outra coisa na imagem, na escola, na geografia?
Qualquer exercício como este começa por uma outra educação do nosso olho, pela
interrupção de esquemas de percepção. Isso demora...
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TRANSFIGURANDO VAZIOS ESCOLARES
topografia das forças
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TRANSFIGURANDO VAZIOS ESCOLARES
Seja, por exemplo, uma instituição escolar: sua organização espacial, o
regulamento meticuloso que rege sua vida interior, as diferentes atividades aí
organizadas, os diversos personagens que aí vivem e se encontram, cada um
com uma função, um lugar, um rosto bem definido – tudo isto constitui um
“bloco” de capacidade-comunicação-poder. A atividade que assegura o
aprendizado e a aquisição de aptidões ou de tipos de comportamento aí se
desenvolve através de todo um conjunto de comunicações reguladas (lições,
questões e respostas, ordens, exortações, signos codificados de obediência,
marcas diferenciais do “valor” de cada um e dos níveis de saber) e através de
toda uma série de procedimentos de poder (enclausuramento, vigilância,
recompensa e punição, hierarquia piramidal).
Michel Foucault, em “O sujeito e o poder”
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TRANSFIGURANDO VAZIOS ESCOLARES
O que é um espelho? É o único material inventado que é natural.
Quem olha um espelho, quem consegue vê-lo sem se ver, quem
entende que a sua profundidade consiste em ele ser vazio... esse
alguém percebeu o seu mistério de coisa.
Clarice Lispector, em “O amor”
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TRANSFIGURANDO VAZIOS ESCOLARES
...Esteve pensando o que acontecia ali de manhã. Espaço nulo.
E à noite.... à noite tudo muda, fica tudo vazio com eco, o banheiro-cubo-branco se revela reto.
E mudo.
Trecho de Caderno de Campo
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TRANSFIGURANDO VAZIOS ESCOLARES
...e na sala dos professores se ouvia tem que colocar no cabresto,
desiste daquilo, aquilo não tem jeito...
Trecho do Caderno de Campo
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TRANSFIGURANDO VAZIOS ESCOLARES
[...] uma luz verde-sincera reluzia na janela.
A parede, o mofo, o marca texto:
VADIA
está escrito,
e o GPS,
o GPS,
o GPS
...
Trecho do Caderno de Campo
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TRANSFIGURANDO VAZIOS ESCOLARES
[...] Sou o que, apesar de tão ilustres modos
De errar, não decifrou o labirinto
Singular e plural, árduo e distinto,
Do tempo, que é de um só e é de todos.
Sou o que é ninguém, [...]
um eco, um nada.
Jorge Luis Borges, em “Sou”
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TRANSFIGURANDO VAZIOS ESCOLARES
Em sentido horário:
Homem com chapéu de palha;
Cobra;
Homem-frango voador;
Passarinhos, anjos, nuvens e suspiros de caramelo;
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A consciência só é ampliada no espaço verdadeiramente
vazio dentro de nós...
Kaká Werá Jecupé
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Todo problema traz soluções.
Bill Mollison
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Referências
BORGES, Jorge Luis. Obras Completas, vol I; vários tradutores. São Paulo: Globo, 1999.
PREVE, A. M. H. Mapas, prisão e fugas: cartografias intensivas em educação.
Campinas/SP: Faculdade de Educação – UNICAMP – Universidade Estadual de Campinas,
2010. 268f. Tese (Doutorado em Educação – Educação, Conhecimento, Linguagem e arte)
ROLNIK, Suely. Cartografia Sentimental: transformações contemporâneas do desejo. São
Paulo: Estação Liberdade, 1989.
GODOY, Ana. Mídia, Imagens, Espaço: notas sobre uma poética e uma política como
dramatização geográfica. In: CAZETTA, Valéria; OLIVEIRA JR., Wenceslao (orgs.).
Grafias do espaço: imagens na educação geográfica contemporânea. Campinas, SP: Alínea,
2013.
DELEUZE, Gilles. A imagem-tempo. Trad. Stella Senra. São Paulo: Brasiliense, 2007.
(Cinema 2)
______. Conversações. Trad. Peter Pál Pelbart. São Paulo: Ed. 34, 2000.
OLIVEIRA JR., Wenceslao M. Projeto da Rede Nacional de Pesquisas Imagens,
Geografias e Educação. Disponível em: <http://www.geoimagens.net/#!__sp/textos> Acesso
em: 2 jun. 2013.
FOUCAULT, Michel. O sujeito e o poder. In: . RABINOW, Paul; DREYFUS, Hubert (orgs.).
Uma trajetória filosófica: para além do estruturalismo e da hermenêutica. Trad. Vera Porto
Carrero. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995. p. 231-249.
LISPECTOR, Clarisse. O Amor. In: Água Viva. Rio de Janeiro: Antenova, 1973.
Vídeo
Só dez por cento é mentira. Dir.: Pedro Cezar. [S.l]: 2008, 82min, col. 1 DVD (80 min).
Eu Maior. Dir. Jecupé, Kaká Werá. (Doc). 2013. Disponível em: www.eumaior.com.br.
Acesso em: 05/04/2013.
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VERSA VICE – IMAGENS E A PERCEPÇÃO ESPACIAL
Ludmila Santos 1
Carina Merheb 2
O que move o caminhar pedagógico de ambas professoras que aqui relatam suas
experiências é o de pensar nas possibilidades de diferentes práticas pedagógicas no campo
imagético. Desestabilizar a imagem e as informações didáticas é o que nos vincula através de
experimentações que visam tensio nar o que é fixo e estável, para uma forma de alisamento que
Deleuze e Guattari citam em Mil Platôs (vol. V). Os autores criaram a ideia de estriamento e
alisamento e idealizamos esses sentidos em nossas práticas partindo do pressuposto de que os dois
espaços só existem de fato graças às misturas entre si: o espaço liso não para de ser traduzido,
transvertido num espaço estriado; o espaço estriado é constantemente revertido, devolvido a um
espaço liso. Num caso, organiza- se até mesmo o deserto; no outro, o deserto se propaga e cresce;
e os dois ao mesmo tempo. Note-se que as misturas de fato não impedem a distinção de direito, a
distinção abstrata entre os dois espaços. (pág. 157)
Desse modo as produções imagéticas se construíram como abertura do pensamento e
não com um fim em si. O que nos impulsiona a refletirmos juntas são duas situações: a
primeira, que surge da nossa forma de pensar a imagem, a geografia e a sala de aula sob uma
perspectiva identificada como um constante caminho de variação de padrões escolares; e a
segunda advém da situação de nós duas sermos participantes do Projeto ‘Imagens, Geografia
e Educação’ cuja intenção é a discussão sobre a linguagem e as imagens como
produtoras/mediadoras do pensamento espacial. A experiência versa-vice trata-se de duas
experimentações realizadas em escolas distintas da cidade de Campinas-SP: enquanto em uma
a professora leva a imagem para a escola e a transforma em informação; a outra faz o
movimento inverso – transforma a informação em imagem.
Tão longe, tão perto... O hábito de fotografar de perto e de longe já está posto. Seu
conteúdo não é mexido, nem questionado. Faz-se por ele mesmo e nos alheia por si próprio.
No entanto, quando propomos brincar com os elementos que podem conversar com questões
espaciais, percebemos outros lugares de uma mesma área. Os lugares das figuras da “Cidade
Pagã” e da “Esperança que brota do chão”, tiradas por alunos do ensino médio, representam
isso respectivamente nas imagens um e dois.
Imagem 1 : Cidade pagã
Para esse trabalho os alunos foram convidados
a observar a paisagem, e procurar representar
o espaço, não só com elementos críticos a
análise espacial. A questão da procura das
sensações que os mobilizaram na escolha das
miradas, também foi auferida e depois foi
mote dos textos que se usou para a construção
de cartões postais.
1
2
Imagem 2 : A esperança que
vem do chão
Grupo de Pesquisa: Laboratório Audiovisual OLHO. E-mail: [email protected]
Doutoranda da Faculdade de Educação. Grupo de Pesquisa: Laboratório Audiovisual OLHO
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ENTRE IMAGENS
A área, uma pedreira localizadas na cidade de Campinas – SP, se multiplicou e definiu
outros contornos para lugares vistos e revistos. Assim temos o caminho das imagens para a
sala de aula e delas para sua exteriorização de volta às imagens! Procuramos linhas que
espreitam os materiais didáticos, no sentido de desmistificar e desestabilizar os estereótipos
relacionados à produção do espaço geográfico. Nossas referencias se pautam nas discussões
ao redor dos estudos sobre os conceitos presentes nos livros de Deleuze e Guattari,
especialmente em “O que é a Filosofia” e “Mil Platôs”. Eles escrevem como a arte, a ciência e
a filosofia, podem ser caminhos para as potencias do pensamento, (Deleuze, 2006, p. 238). A
literatura e a produção audiovisual atendem às necessidades expressas do se perceber a
construção espacial por outro viés. O desejo como acontecimento de algo que não podemos
controlar, sem resultados previsíveis, sem clichês doutrinários, alavanca a intenção do
significado dos estudos geográficos. A percepção espacial sem ida nem vinda, a ideia como
algo possível, mesmo que improvável é dominante na busca das estratégias de aula. Outra
referencia que orienta os trabalhos é a de Doreen Massey que na visão das autoras desse texto,
se conecta ao pensamento filosófico deleuziano, quando explica o espaço como produto de
inter-relações na esfera de possibilidades e multiplicidade (Massey, 2008, p.32). Dessa
maneira como é evidenciado no trabalho de Sarraipa e Marques “O espaço depende também
do olhar de quem o povoa e de certa maneira habita dentro das pessoas como se fosse alheio
às historicidades. Assim os fazem e deixam fazer-se continuamente, em dependência
praticamente existencial”. (Sarraipa e Marques, 2011).
Ainda que se relate propostas escolarizadas, a ideia é de como mexer com as questões
da percepção espacial de quem lida com essa construção. Seguimos construindo e
desconstruindo, de modo que o castelo de cartas possa algum dia ganhar contornos
arredondados, amorfo ao tempo que o desfaz. Que de alguma forma se faça nele presente o
presente de quem o olha no exato instante da troca, que outrora já não é mais aquilo que se vê.
Nas gravuras da imagem 3, observa-se a representação do que se via. Desenhos
disparam os debates sobre a paisagem e o que ela pode ser. Alunos do sexto ano, na faixa
etária de 10 e 11 anos, primeiramente falaram como o olhar intervém nas “coisas” e como
essas se misturam no olhar da gente (mencionado por um aluno no trabalho de campo).
Pretensiosas, desejamos que o aprendizado se faça de maneira mais significativa e dessa
forma optamos por driblar convenções protocolares do ensino e das diretrizes nacionais que
impõem impiedosamente formas de se dar aula. Com os alunos, não se fez diferente, e os
assuntos pertinentes ao programa de Geografia foram-se desfazendo e começamos ao
contrário com a seguinte pergunta: como a paisagem se faz? Quem a faz? Ela pode se
transformar? E ainda sem material que pudesse pautar a discussão da Geografia fomos
delineando os contornos paisagísticos da percepção de cada um sobre o próprio entorno da
escola. Entendemos isso como construção do espaço geográfico, mas preferimos trabalhar
com ideia que cada um constrói um entendimento das relações que podem construir e
transformar paisagens. Para exemplificar essa estratégia enquadramos na escrita as imagens
das produções dos alunos de uma mesma área, mas, com percepções espaciais singulares,
como é o representado na imagem 3 e 4 , a última indicada ao lado. Esse exercício de trazer
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ENTRE IMAGENS
primeiro a vivência, para desenvolver a prática da
Imagem 4: Rodovia D. Pedro
análise, é bem interessante e produtiva, para
alunos dessa idade. Além de deixá-los livre para
compor seus pensamentos junto aos trabalhos
escolarizados, podemos trazer a tona, projetos
mais autônomos sem a repetição dos materiais
didáticos ou referencias mais clássicas. Os
estudos sobre Paisagem Geográfica, assunto
introdutório das séries iniciais, foi apresentado
primeiramente pelos alunos, que fizeram isso
magistralmente com produções plásticas e escritas sobre os elementos que compunham o
passado o presente e o futuro do espaço que os circundavam.
Portanto essas professoras que vos escrevem procuram espaços para pensares outros, e
questionamentos que apesar de dormentes são preciosos e pontuais no próprio movimento que
o criar concede. Pensamos antes do próprio querer ensinar que a profissão impõe. Acentuar e
aproveitar melhor as questões que cada aluno tem da percepção espacial. Como chega a ele, o
aluno, as questões de lugar: estagnada; fugaz; dinâmica; funcional? O querer saber qual a
construção do espaço que o alunado faz ou se deixa fazer, acontece de maneira obsessiva e
nos impele a perseguir estratégias para sabê-los. As produções imagéticas e audiovisuais são
saídas palpáveis, e pode responder a curiosidade citada sobre como nossos alunos pensam o
mundo.
“(...) somos feitos de linhas. Não queremos apenas falar de linhas de escrita;
estas se conjugam com outras linhas, linhas de vida, linhas de sorte ou de
infortúnio, linhas que criam variação da própria linha escrita, linhas que
estão entre as linhas escritas (...)” (Deleuze-Guattari, 2004, p. 66)
Sem desprezar os saberes já consolidados pensamos em atender aos planos de realidade
que audaciosamente podem coabitar. E como Deleuze escreve em “O que é Filosofia”,
pretendemos atribuir outros significados aos estudos Geográficos que não se apresentem
simplesmente em um fim, mas no fluxo constante do pensar.
Referências
DELEUZE, G. GUATTARI F. O que é a Filosofia? Rio de Janeiro Ed. 34 3ª reimpressão 2004
DELEUZE, G; GUATTARI F. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. Volume 1.
Tradução de Aurélio Guerra Neto e Célia Pinto Costa. São Paulo: Ed. 34, 4ª reimpressão –
2006.
MASSEY, D. Pelo espaço: uma nova política da espacialidade. Rio de Janeiro: Bertrand
Brasil, 2008.
SARRAIPA, Ludmila Alexandra dos Santos; MARQUES, Ivania – Desterritorialidades II
colóquio sobre “A Educação pelas Imagens e suas Geografias” - Faculdade de Geografia da
Universidade de São Paulo – USP no período de 9 a 11 de novembro de 2011 com aceite para
publicação na Revista Geograficidades da USP.
SILVA, Tomaz Tadeu da. Documentos de identidade. Uma introdução às teorias do
currículo. Belo Horizonte: Ed. Autêntica, 3ª edição, 2011.
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ENTRE IMAGENS
Ivânia Marques 1
Alexsandro Sgobin 2
Subversões, superversões, versões outras. Namoro com a realidade, beijos de amante na
hiperrealidade. Mergulho em uma superfície de dimensão nua, sem que se possa afirmar para que
lugares se caminhará, que passeios fará o olhar que serpenteia e baila frente a uma fotografia... E é
sobre fotografias que se deseja escrever neste ensaio; mais precisamente fotografias utilizadas em
práticas de aula em escolas públicas do Ensino Fundamental de Campinas.
Pelo beijo e pelo tremor da terra, criamos (e fomos re-criados) por fotografias inusuais,
rasuradas, com a intenção de deixar o olhar dos alunos brincar, se o assim o desejassem,
abandonando a imposição da “imagem-registro” tão comum em livros didáticos: ali as
imagens estão como “confirmações” de um ou vários textos, “provas” daquilo que se está
sendo dito; repetição, não a repetição que Deleuze evoca, mas um mais-do-mesmo –
dispensássemos o texto ou a imagem nestes livros, quem nos faria menos falta?...
Estas fotografias rasuradas, é preciso esclarecer logo de início, vêm irmanadas com
uma série de outras práticas de aula inspiradas na pedagogia libertária (tal inspiração resultou
em aulas fora de sala, abandono do currículo formal por um currículo construído junto aos
alunos, negociação das liberdades, entre outras), e a estas práticas, utilizando um conceito de
Deleuze e Guattari (2010), chamaremos de máquinas... máquinas ligadas a máquinas, rede
maquínica: isto porque as fotografias as quais me refiro foram sempre convidadas a entrar em
nossas aulas sob/sobre/ao lado/ (d)essa rede, cujas engrenagens se espera que façam gerar a
subversão das habituais maneiras com que se conjugam fotografias e educação. Nossas
fotografias não eram parte de um material de aula disposto de maneira a “exemplificar” o que
estava sendo discutido, mera ilustração de um assunto, ou, menos ainda, “registro do real”, tal
qual geralmente se utilizam fotografias em situação de aula.
Como diz Elaine dos Santos Soares (2012, p.128):
Fotografias em livros didáticos nos aparecem como evidências daquilo que
nos trazem à vista. Justo por isto, o olhar que legamos a elas é de mero
relance, apenas para saber o que há _ como é a aparência, o tamanho, a cor _
do/no lugar indicado na legenda ou como prova de algum assunto que está
sendo apresentado no texto escrito do livro. Estas fotos, então, se colocam
diante de nós como que divulgando os lugares/assuntos fotografados, mas
não nos levam a divagar para além e aquém destes lugares/assuntos.
Falamos de fotografias que são - deseja-se que sejam- mundos-em-si; aberturas, vãos,
tocas abertas a golpe de máquina (é quando a máquina se torna máquina-de-guerra) na
superfície da fotografia, convite a espiar pelo buraco, demorar-se um pouco mais sobre a
imagem, e subvertendo-a (superventendo-a?), divagar. Mas, como?
Em demanda desta subversão utilizamos a manipulação digital de fotografias tiradas
pelos alunos durante aulas de campo de Geografia, procurando atingir estes mundos-em-si,
retirando a fotografia da comodidade “didática”, rasurando o real (ainda que na imagem final
certamente exista indícios do real, daquilo que se chama o real indicado nas fotos) através da
1
Mestranda em Educação no Laboratorio de estudos Audiovisuais (OLHO) da Faculdade de Educação da
UNICAMP, Campinas, São Paulo. E-mail: [email protected]
2
Mestre em Educação no Laboratorio de estudos Audiovisuais (OLHO) da Faculdade de Educação da
UNICAMP, Campinas, São Paulo. E-mail: [email protected]
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ENTRE IMAGENS
acentuação exagerada do contraste, da mudança de matizes, colagens, torções, distorções...
brincando com o “indício do real” que a fotografia carrega consigo 3:
FOTO I
Que o olhar crianceie pela superfície da foto; por este caminho passamos em busca de
pontos de erosão, mas a fotografia deste momento não é convidada a aparecer na próxima aula
como “registro” do que fizemos e vimos, mas como potência, como um mundo que a remete, mas
não apenas, a um mundo que semana passada conhecemos e agora rasuramos na fotografia.
FOTO II
3
Susan Sontag (....) já denunciava com falsa esta suposta “objetividade” da fotografia, que lhe emprestaria o
poder de representar fidedignamente o “real”. Se toda e qualquer fotografia tem intencionalidades, sua
“objetividade” não pode existir.
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ENTRE IMAGENS
A que geografias, a que matemáticas, a que sentires inusitados se poderia convidar com
o uso de fotografias manipuladas digitalmente? Imagens que remetam ao real, mas que ao
mesmo tempo brinquem com ele, cause espanto, estranhamento, que desfaçam dos padrões e
de ordens bem estabelecidas; imagens-criança, resistindo junto do instituído pela escola.
Subversões, superversões em franca tentativa de sedução.
FOTO III
1. [criar atalhos, tocas, descaminhos, na superfície da imagem. Isto é: deixar caminhos
preparados para a aventura];
1.000. [resistir em relação ao uso que comumente se faz das imagens no ambiente escolar].
5.300. [resistir em relação às construções de poder oficiais da escola, e não-oficiais].
∞. [redes neurais em pleno movimento, rede neural sala, rede neural rua, rede neural
grêmio, rede neural afectos......].
#. [máquinas ligadas a máquinas. Que se conectam a, que se conectam a, que se
conectam a...]
A aventura das experiências com as fotografias manipuladas está justamente na
manipulação: manipular o que, por si, já é uma manipulação: o ato de fotografar. Empunhar a
máquina, escolher um motivo, realizar o enquadramento, premir o botão de disparo, onde a
imparcialidade nisto tudo? Intenciono ao fotografar, e isto já é todo um mundo de
possibilidades, com todas as potências que daí podem ser gestadas.
Uma vez que o aluno deve ser convidado a mirar tais fotografias a bel-prazer (não se
esperará dele uma “resposta” fechada, que o olhar brinque!), as possibilidades e emoções (ou
indiferenças) que disso brotarão dificilmente poderão ser apreendidas, mapeadas, capturadas –
quê? Não se trata de não haver controle algum sobre o que acontece naquele momento de
aula, mas de aceitar o múltiplo como produto da experiência com estas fotos, inconsciente
LINHA MESTRA, N.23, AGO.DEZ.2013
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ENTRE IMAGENS
como usina Deleuze e Guattari (2010), linhas de fuga que acaso surjam do imenso, infinito
mundo que é a mente de Mateus, Carlinhos ou Rebeca.
Quando manipulamos as fotografias, criamos ficções; segundo Geofrey Batchen
(1997, p.210):
La diferencia principal es que, mientras que la fotografia sigue reivindicando
certa classe de objetividade, la producción de imágenes digitales sigue
siendo un processo abertamente de ficción. Como práctica que sabe que no
es más que pura invención, la digitalización abandona incluso la retórica de
la verdade, que há sido un elemento de gran importância en el éxito cultural
de la fotografia. Como su próprio nombre sugere, los processos digitales
devuelven, de hecho, la producción de imágenes fotográficas al capricho de
la mano humana creativa (a los dedos). Por esa razón, las imágenes digitales
son, en definitiva, más cercanas en espíritual arte y la ficción que a la
documentación y los hechos.
E o que se busca com tais ficções? O chamado à criatividade, ao criancear. Brinco com
a fotografia porque desejo que o olhar do aluno dance a roda também, ou se ria dela, ou a
insulte; caminhos inusitados, tudo faremos para evitar a “senda reta”, a estrada onde pés já
cansados trilham geometrias escolares rígidas, há muito traçadas.
Das fotografias manipuladas digitalmente às obtidas com máquinas pinhole, a demanda
é em busca de olhares que viajam, desdenhando do turista e imitando o vagabundo, o olhar
vagabundo que passeia curioso e matreiro, o medo e a formalidade não estão convidados
quando trabalhamos com estas fotografias – queremos o risco.
E quem dirá o que é o risco? Quando inserimos efeitos em uma fotografia também
intenciono, e a busca é por elevar à enésima potência aquilo que já está presente na fotografia
“comum”: todo um mundo de possibilidades, cada um verá na superfície do papel ou da tela
eletrônica o que seu olho e suas emoções enxergarem. Assim, quando adiciono (ou retiro)
elementos, radicalizo cor e sombra numa fotografia, transformo, o que faço é preparar mais e
mais caminhos possíveis para a deriva do pensamento, e aí não cabem mais previsões, pois
nunca saberemos que viandas tomará o olhar de Luís, Cecilia ou Jonathan [risco].
Ao criar ficções com as fotografias e convidar estas imagens para as aulas, eliminamos,
tanto quanto possível, a chance destas imagens ali estarem como “registros” do assunto em
discussão; não há mais um caminho que se bifurca e certamente voltará a ser uma só estrada,
mas um caminho-de-rizoma, mil sendas abertas - caminhamos ao lado, atrás, sobre, debaixo,
de mãos dadas com o assunto da aula, que por si só, em uma aula que se pretende inspirada na
pedagogia anarquista, pode ser abandonado em prol de algo que soar mais interessante.
A fotografia rasurada baila com a fala dos alunos e do professor, com a aula expositiva,
com o texto, o filme; é um mundo-em-si, não um “complemento” de algo, mas um novo par
na dança, e esta desdenha da uma ordem imposta, pode ser ciranda, valsa, aqui se arrastam os
pés freneticamente, ali se colam os rostos. A potência está na criação de platôs, e não no
encadeamento de assuntos e imagens, os elos o mais juntos possível, pelo receio de que “o
aluno se perca” durante o processo de aula: certo, não se deseja que o aluno de perca, mas que
passeie o olhar pela foto, instigado por ela, por aquela superfície expoente de ficções, a tal
ponto que se permita passear também pela aula, pelo texto, pela fala, pelo afeto... passear
passeios de bosque, não apenas de escola [ritmo que se desejaria quase marcial!], acreditamos
que o andar do vagabundo permite mirar coisas no espaço geográfico que o olhar “escolar”
talvez receie aceitar, ônus do “certo e errado”, da rigidez da escola que constrói um “caminho
reto”.
Das imagens produzidas nas pinholes, às ficções criadas por programas de manipulação
de imagens, extravasam universos, múltiplas linhas de força emergentes [ou talvez não]
LINHA MESTRA, N.23, AGO.DEZ.2013
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ENTRE IMAGENS
daquelas superfícies bidimensionais e é nos feixes de linhas de força que está grande parte do
interesse: ali o movimento serpenteia, faz circunvoluções, escapa, grita, silencia... mas haverá
pelo menos um ponto de chegada? Talvez seja necessário quando das primeiras experiências,
para que o aluno não se sinta, de alguma forma, desamparado: improvável que já tenha sido
apresentado várias vezes à imagens rasuradas ou ao sonho de uma “imagem pinhole”, e
chamado a pensar sobre elas. Assim, é justo que haja um “objetivo”, afinal, escapar
completamente do espaço estriado de uma escola não é possível - conquanto seja possível
resistir junto a ele, e isto já é todo um mundo. Que o processo de chegada ao objetivo (seja
ele uma discussão sobre solos, sobre a periferia das grandes cidades, sobre a migração...) seja
enamorado da multiplicidade, eis o que nos parece já bastante subversivo.
Desterritorializar em linhas soltas, vagando pelo espaço, arrebatadas pelas sensações e
prazeres domados em um ambiente escolar. Caos diante de imagens potentes de pensamentos.
Caminhantes errantes buscando o desconhecido. Pássaros fugidios de janelas.
FOTO IV – Janelas
Acervo pessoal
Janelas vagando pelos céus sem intenção de se fixar. Voando alto no embate com as
imagens pulsantes em suas mãos. O que dizer? Como romper com a frágil ideia do fixo,
permanente e real?
a escrita exige sempre a poesia. E a poesia é um outro modo de pensar que
está para além da lógica que a escola e o mundo modernos nos ensinam. É
uma outra janela que se abre para estrearmos outro olhar sobre as coisas e as
criaturas. (COUTO, 2005, p. 45).
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ENTRE IMAGENS
Acomodar-se. Caminhantes paralisados em práticas educativas lineares. Professores
caminhantes reféns de si mesmos. Territorializados, fixados como janelas em monumentos
eternos. Surge um convite. Um convite para romper este anestesiamento. Um convite a
caminhar. Tornamo-nos caminhantes a deriva.
Pequenas latas, papeis fotográficos, andar solto, procurando... Buscando o que já não se
sabe mais. Desconfiança que bloqueia e promove um outro desejo. Experimentação?
Buscando romper fronteiras e formas tradicionais de brincar com as imagens um pequeno
grupo aceita o convite de se arriscar. Tentando evitar o conflito instaurado mal percebiam que
estavam envolvidos e abraçados a singela lata. Agora arriscando um jeito de resolver o
conflito. Sentados, agachados, em grupos unidos, isolados, qual seria a melhor imagem?
Pensando com Massey (2008) além do espaço, tínhamos o tempo que nos levava à
multiplicidade dos trajetos e a excentricidades de possibilidades. Para ela, o espaço é produto
de inter-relações e esfera de possibilidades (multiplicidade).
Conflitos e fluxos sem direção. Rizomáticos. Pulverizados pelo espaço escolar e local
de possíveis interesses. Microcompreensões ou policompreensões infinitas? Nenhuma
imagem produzida. Vazios.
Sensações de pertencimento e vazios. Vazios cheios de sentidos e de
silêncios, masilêncios que têm sua materialidade definida pela relação
estabelecida entre dizer e não dizer (ORLANDI, 2009)
Momentos em que o vazio é uma necessidade. Poder ter espaço para se calar, silenciar,
falar sobre solidão ou não falar nada. Permitir com respeito e naturalidade a vontade de dizer
e não dizer. Momento primoroso e raro na relação com as pessoas e que deixamos de lado na
correria entre as aulas. Escrever para falar sobre esses vazios. Escrever para diminuir o caos.
A educação anuncia esses desequilíbrios e inquietações. Anuncia acontecimentos. Nessa
tensão e instabilidade re-inventamos. O corpo mostra sua fragilidade e resiste. Resiste quando
fala, escreve e age com mais sentido. Vive com mais sentido. Vive com mais intensidade.
Incluir a potencia da linguagem fotográfica em nossa rotina é permitir uma educação
pela diferença. A diferença se faz pela sensação. É inventar. É conversar sobre singularidades
e devires. São com as sobras e restos que nos conhecemos. Percebemos nossa relação com o
mundo.
Falamos sobre fotografias, sobre experiências e sobre a disponibilidade de pensar.
Atravessamos o lugar que vivemos, interpretando-o. Lugar de resistências.
Aqui mantemos o desejo de continuar criando. Criar. Criar. Criar...
Estamos sempre recomeçando.
Mesmo inconformados esperaram pelo resultado da fotografia pinhole. E qual seria este
resultado? Momento de espera.
Desprovidos de outro jeito de fotografar, conhecendo apenas o mundo digital,
aguardavam. Inúmeras tentativas e pouca produção. Motivo de risadas e receios. Imaginações.
Intensidades de sonhos e desejos. Um intervalo entre aulas. “Arte”, disseram, retornando para
suas salas, aos outros já curiosos ao verem a alegria estampada sem seus rostos.
Arte sim, capaz de um movimento transversal que possibilita e envolve tempos para
criação nos dias de hoje. Movimento envolvendo o tempo, o espaço e as pessoas.
Experimentação que leva a possíveis deslocamentos e a expandir sentidos. Seria possível uma
educação de verticalismos?
Romper com linhas imaginárias de poder e arriscar-se. Observação. Admiração e
reconhecimento de saberes esquecidos e que por um instante despontam plurais e entrelaçam
a novas sensações e saberes novos em mundo invertido e em negativo.
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ENTRE IMAGENS
FOTO V – Dobras
Acervo pessoal
Fotografias diferentes e intensidades pulsantes. Pontos convergentes de um mundo
novo, carregados de sentidos. Entre rasuras provocadas digitalmente e rasuras provocadas
pela luz há um desarranjo no pensar. Discursos são quebrados. Desorganizados. Há potência
na cor ou em preto e branco, nos diferentes planos e na ausência deles, nos apagamentos ou
justaposição, na intensidade ou no monocromismo, na colagem e na dualidade do negativo e
positivo.
As experiências com a linguagem fotográfica criam fraturas permanentes entre os
aprendizes do mundo. Dissolvem papeis e progressivamente entra em um caminho sem volta,
um caminho do sensível, de uma vida sensível.
Há um deslocamento de papeis e o embate se direciona para com o mundo. Ainda
continuamos desiguais, estrangeiros, na educação. Somos nômades buscando fissuras na tão
conhecida fotografia. Pensamentos aventureiros. Talvez o impossível.
Corremos em busca de possibilidades de experiências e fugimos da aula comum.
Permeamos caminhos que anteriormente desfizemos. O que nos guia nesse momento? Que
fagulha nos incendiou que desejamos fugir dessa manipulação social, econômica, educacional
e mediática? Difícil dizer que já não cairemos em contradição. Rompemos, cansamos de ser
cúmplices da impossibilidade. Essa encenação teatral nos priva de nos conhecer e de conhecer
nossos parceiros em aula. As imagens nos fortaleceram dessa asfixia. Criamos probabilidades.
Multiplicamos ideias, pensamentos, singularidades e podemos dizer que somos diferentes.
Quebramos a continuidade, a linearidade, o tempo. Um devir. Em novas linhas de forças
continuamos nossa procura. Procuramos tornar visível essa linha. Para Deleuze (1990) “seria
necessário, simultaneamente, atravessar a linha e torná-la vivível, praticável, pensável. E fazer
disso, tanto quanto possível, uma arte de viver”. Afinal pensar pode ser perigoso!
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ENTRE IMAGENS
FOTO VI – Imagem I
Acervo pessoal
Desafiante experimentação que se manifesta pelas linguagens. Deslizantes sentidos que
escapam, alimentam conversas e ativam a sensibilidade em meio ao mundo problemático que
vivemos.
Um intervalo, pausa, intermezzo. Algo que transborda a nossa prática diária e rotineira.
Surge a ausência da dualidade professor – aluno. Há um encontro. Improvisamos e saímos da
posição costumeira e como aprendizes combatemos nosso próprio modo de ser professor.
Desejamos promover encontros intensos, pois há uma variedade infinita da criação e
possibilidades em experimentar com/pelas imagens. Como se as imagens procurassem por
viajantes inventores. Inventores de novos jeitos de conhecer seu espaço/lugar. Inventores sem
rota precisa, mas amantes dos descaminhos e das derivas.
Referências
BATCHEN, Geofrey. Arder en deseos: la concepción de la fotografía. Barcelona, Espanha,
G.Gili, 2004.
COUTO, Mia. O último voo do flamingo. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.
DELEUZE, Gilles. Cinema II: a imagem-tempo. São Paulo: Brasiliense, 1990.
DELEUZE, Gilles & GUATTARI, Félix. O anti-édipo. São Paulo: Editora 34, 2010.
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ENTRE IMAGENS
MASSEY, Doreen. Pelo espaço: uma nova política da espacialidade. Tradução de Hilda
Pareto Maciel e Rogério Haesbaert. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2008.
ORLANDI, Eni. Silêncios: Presença e Ausência . Revista Comciência, n.101, 10 set. 2009.
Disponível
em
http://www.comciencia.br/comciencia/handler.php?module=comciencia&action=view&section=8.
Acesso: 10 set. 2013.
SOARES, Elaine dos Santos. Devires Imaginativos de fotografias didáticas. Campinas:
Monografia, Instituto de Geociências, 2012, UNICAMP.
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SESSÃO 4 – RIZOMA: SAÚDE COLETIVA E INSTITUIÇÕES MULTIPLICIDADES POSSÍVEIS NA FORMAÇÃO EM SAÚDE
ESTÁGIO DOCÊNCIA: A AUTONOMIA E A RODA DE CONVERSA
Thiago de Sousa Freitas Lima 1
Juliana Pereira Simões 2
Mariana Andrade dos Santos 3
Helena de Arruda Penteado 4
Túlio Alberto Martins de Figueiredo 5
Esse texto pretende tratar de assuntos relacionados à autonomia do aluno, seu
protagonismo e ações que favorecem essa condição. Intenta-se fazer esse texto devido ao fato
de ter a experiência como docente em curso técnico e também da experiência resultante do
estágio docência. Coloca-se aqui a questão do ensino aprendizagem indo além do que se
constrói em sala de aula.
Trata-se aqui de um jeito de dar aula que rompe com a hierarquia já posta onde se
coloca de um lado professor e outro aluno, dicotomizando o saber: ficando de um lado aquele
que possui o saber e por isso tem condição de dar e do outro lado aquele que é desprovido
desse saber e se coloca na possível necessidade do professor, o qual vai dar “O
conhecimento” .
Essa dicotomia se torna a questão abordada. Pois o ato de fazer, a elaboração da aula a
ser ministrada é construída coletivamente, com a participação tanto do aluno quanto do
professor, levando em conta questões sociais e outras que poderão estar no contexto atual. E
ao levar para dentro da sala a problemática construída coletivamente é possível desenvolver
um aprendizado mútuo, com as percepções do corpo, da fala, da potencia de cada envolvido
no cenário “sala de aula”.
A prioridade no estágio em docência é a autonomia dos alunos, fala-se dessa autonomia,
pois experimentando o ser professora (docente do curso técnico de enfermagem em MG) foi
possível desenvolver a autonomia dos alunos do curso técnico. E colher bons frutos de uma
experiência positiva nos incentiva para a continuidade da mudança, na quebra da relação de
poder do professor para com o aluno, a criação e o fortalecimento de vínculos e relações de
proximidades criadas proporcionando afetos e a confiança tanto no grupo quanto na potência
do docente e do discente.
Voltando ao conceito de autonomia, buscou-se sobre a autonomia pedagógica, que
descrita por Little (1991, 1995; apud SANTO, 2009) aponta que a autonomia é uma
capacidade de reflexão crítica, tomada de decisão e ação independente. Ela faz com que o
“aluno” desenvolva uma relação particular, própria, com o processo e conteúdo de sua
aprendizagem. A capacidade de autonomia será demonstrada tanto na forma como o “aluno”
apreende como no modo como ele ou ela transferem o que foi apreendido, para contextos
mais amplos.
1
Mestrando do Programa de Pós Graduação em Saúde Coletiva da Universidade Federal do Espírito Santo,
UFES; membro do grupo de pesquisa Rizoma - Saúde Coletiva e instituições; [email protected]
2
Mestranda do Programa de Pós Graduação em Saúde Coletiva da Universidade Federal do Espírito Santo,
UFES; membro do grupo de pesquisa Rizoma - Saúde Coletiva e instituições; [email protected]
3
Mestranda do Programa de Pós Graduação em Saúde Coletiva da Universidade Federal do Espírito Santo,
UFES; membro do grupo de pesquisa Rizoma - Saúde Coletiva e instituições; [email protected]
4
Mestra em Saúde Coletiva pela Universidade Federal do Espírito Santo, UFES; membro do grupo de pesquisa
Rizoma - Saúde Coletiva e instituições; [email protected]
5
Doutor em Saúde Pública, docente do Programa de Pós Graduação em Saúde Coletiva, coordenador do grupo
de pesquisa Rizoma - Saúde Coletiva e instituições; [email protected]
LINHA MESTRA, N.23, AGO.DEZ.2013
84
ESTÁGIO DOCÊNCIA: A AUTONOMIA E A RODA DE CONVERSA
Silva (2012) complementa que a pedagogia voltada para a autonomia objetiva
aproximar o aluno do saber. E ajuda no desenvolvimento da condução da sua aprendizagem,
com uma postura crítica, fazendo com que o aluno seja capaz de relacionar os conhecimentos
à vida.
Ainda sobre a autonomia, Barroso (1996) discorre sobre a autonomia da escola. Que é
uma confluência de várias lógicas e interesses – políticos, de gestão, profissionais e
pedagogos-, que precisa ser articulada através de uma abordagem por ele designada de
“caleidoscópica”. A autonomia não é de um ator, mas é resultante do equilíbrio de forças de
vários atores, em uma determinada escola, entre diferentes detentores de influência – governo,
professores, alunos e demais atores. A autonomia afirma-se como expressão da unidade social
e não preexiste à ação dos indivíduos, é construída social e politicamente pela interação dos
diferentes atores.
Já o ser autônomo é aquele que tem a capacidade, o potencial de gerir o próprio
interesse de aprendizagem. E o saber fazer é a concretização dessa capacidade, ou seja, fazer
algo implica saber como o fazer, mas o contrário pode não ser verdadeiro. Distinguindo o ser
capaz de fazer algo de fazer algo, é a vontade para sua concretização (HOLEC, 1985:188
apud SANTO, 2009).
Maturana e Varela (2007) ao se referirem à autonomia, evoluem no seguinte
pensamento em que a vida é um processo de conhecimento e este é construído pelos seres
vivos a partir da interação e não da passividade, como se tem no modelo formal de educação.
E essa interação, de forma a criar vínculos entre “professores" e "alunos”, é uma
situação que geralmente não vivenciamos na faculdade. Quando assumimos o papel de
“professor” temos a tendência a reproduzir o padrão no qual fomos ensinados. E ao utilizar
outras formas de ensino-aprendizado, diferentes do modelo padrão, assumimos uma árdua
tarefa, que muitas vezes caminha aos trancos e barrancos debaixo de muitas críticas.
As palavras “professor” e “aluno” são colocadas entre aspas, pois carrega-se com a
autora a consideração de que ambos podem exercem os mesmos papeis em momentos
diferentes. Às vezes se ensina e se é o professor, às vezes se aprende e se é alunos, o que
contribui para o compartilhamento de saberes.
E nesse ensejo trago os dizeres de Maturana e Varela (2007) que desvelam que a
inseparabilidade entre ser de uma maneira particular e como o mundo nos parece ser, indica
que todo ato de conhecer produz um mundo. Todo fazer é conhecer e todo conhecer é fazer.
Ao partir do principio que todo fazer é conhecer, debruça-se na elaboração da
disciplina. Pois quando a disciplina é construída de forma conjunta há um pertencimento
daquilo que está sendo trabalhado. Quando os alunos se sentem pertencentes àquele lugar,
eles se tornam parte daquilo e consequentemente tudo torna-se seu. Eles levam e trazem
consigo o que foi trabalhado em sala, evitando-se assim que o aprendizado ocorra de forma
hierárquica, colocada de cima de para baixo onde eles são obrigados a entender, decorarem,
mas tenta-se estar o tempo todo em interação, em composição de atores - aluno, professor,
instituição, matérias, conhecimento, sociedade. Busca-se a interação, através da autonomia.
Estamos continuamente imersos nesse passar de uma interação a outra, cujos
resultados dependem da história. Todo fazer leva a um novo fazer: é o
círculo cognitivo que caracteriza o nosso ser, num processo cuja realização
está imersa no modo de ser autônomo do ser vivo (MATURANA;
VARELA, 2007, p. 264).
A construção da disciplina é feita de forma com que os alunos possam exercer seu
protagonismo, sua autonomia. A autonomia, o protagonismo, assim como o vínculo são
formas de fortalecimento integralidade do atendimento à saúde, e contribuem para romper os
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ESTÁGIO DOCÊNCIA: A AUTONOMIA E A RODA DE CONVERSA
limites existentes em uma formação dos profissionais da saúde (MERHY; ONOCKO, 1997;
CECÍLIO, 1994 apud CECCIM e FEUERWERKER, 2004).
Para isso procuramos praticar outras linhas de abordagem metodológica do ensinoaprendizado. Como por exemplo, as rodas de conversas, muito presente na atualidade,
principalmente nos setores entrelaçados da saúde e educação. Campos (2007) descreve a roda
de conversa como uma aposta na democracia institucional que objetiva a construção de
espaços coletivos, em que se discuta sobre as relações de poder - como, por exemplo, as salas
de aula na relação entre professor e aluno-, e também em locais em que se analisem
problemas e deliberem sobre o mesmo.
A roda permite a produção de aprendizagens significativas, é uma forma de valorizar
diversos conhecimentos, ela não despreza os conhecimentos populares e da comunidade,
favorece as trocas possibilitando a recriação da realidade, por isso ela se torna muito mais que
um arranjo gerencial (CECCIM; FEUERWERKER, 2004).
Não é objetivo levar a termo o método da roda de conversa devido às restrições que
eventualmente nos cerca, por isso realiza-se uma adaptação das rodas dentro da sala de aula.
Os encontros (aulas) são semanais, e o professor passa a atuar como um facilitador. O
professor assumindo o papel de facilitador vai transitar por diversos caminhos, cabe a ele a
tarefa de compreender os sentimentos do grupo e as necessidades do mesmo, como também a
tarefa de trabalhar nós que possam bloquear o grupo. Além de estimular a aprendizagem,
sendo sensível para perceber os momentos de pausa, de reflexão, de aceleração, estresse entre
outros sentimentos do mesmo grupo.
Ser o facilitador de um grupo (sala de aula) é ter claro o objetivo de que o que importa
não é a imposição de um saber, mas sim o debate consciente de temas relevantes que se
tramam e se desenrolam com a disciplina.
Para isso a ementa é então estudada e discutida previamente entre os facilitadores
(professores) para que suceda a preparação do material dos encontros (aulas), como por
exemplo as leituras de preparação para debates e textos complementares, atividades
extramuros entre outros. Há uma preocupação e um respeito com o aluno no que diz respeito
da construção da disciplina. Todos são informados do funcionamento dos encontros e opinam
sobre a situação.
Compartilhando dessa opinião, Silva (2012) traz que:
Ao promover situações de aprendizagem que permitam estabelecer objetivos
significativos, selecionar materiais, escolher atividades, planificar e avaliar
sua aprendizagem, o docente fomenta a autonomia do aprendente. Os alunos,
ao escolher os objetivos de sua aprendizagem, ao invés de terem que se
posicionar face a um objetivo pré-estabelecido, atribuem significado a esses
objetivos, já que partem de seus valores, de suas necessidades (SILVA, 2012
p.27-28).
Sentamos em roda, junto dos alunos favorecendo o contato direto, a criação de vínculo e
a conversa franca e dessa forma também damos ouvidos àqueles que são mais tímidos, ao
sentarmos próximo a eles. Enfim, o contato direto beneficia à atuação do facilitador, pois ele
se torna permeável à turma e ao fim do período realiza-se uma avaliação do método de ensino
para que se proponham mudanças, sugestões, ideias para os encontros futuros.
Neste texto escolheu-se tratar um pouco do método das rodas de conversas devido a sua
grande aceitação por parte dos alunos. É um método em que eles se sentem valorizados e
acolhidos desenvolvendo também habilidades (como o discurso, a oralidade). Entretanto não
é o único método de ensino aprendizado que encontra outra forma de discutir temas fora do
modelo educacional tradicional. Também não há pretensão de criar uma receita pronta de
como agir diante os desafios de uma sala de aula, apenas um compartilhamento de
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ESTÁGIO DOCÊNCIA: A AUTONOMIA E A RODA DE CONVERSA
experiências que mesmo sendo pequenas e muitas vezes restritas a uma ou outra disciplina
podem com alguma força de vontade tornar-se real.
Referências
BARROSO, J. O estudo da autonomia da escola: da autonomia decretada à autonomia
construída. In BARROSO, J. O estudo da escola. Porto: Porto Ed., 1996.
CAMPOS, G. W. de S. Um método para análise e co-gestão de coletivos. 3. ed. São Paulo:
HUCITEC, 2007. 236 p.
CECCIM, R.B, FEUERWERKER, L.C.M. O Quadrilátero da formação para a área da saúde.
PHYSIS: Rev. Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, 14(1):41-65, 2004
MATURANA, H. VARELA, F. J. A Árvore do Conhecimento: as bases biológicas da
compreensão humana. São Paulo: Palas Athena, 2007
SILVA, F.S. Autorregulação e processo de autonomização na aprendizagem de línguas
estrangeiras. Rev. UNIABEU Belford Roxo V.5 Número 11 setembro- dezembro 2012
SANTO, Esmeralda Maria. Os manuais escolares, a construção de saberes e a autonomia do
aluno. Auscultação a alunos e professores. Rev. Lusófona de Educação, Lisboa, n. 8, jul. 2006 .
Disponível em <http://www.scielo.gpeari.mctes.pt/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S164572502006000200007&lng=pt&nrm=iso>. acessos em 14 jun. 2013.
UCHÔA, A.C. Innovative care experiences at Family Health Program (PSF): potential and
limits. Interface - Comunic., Saúde, Educ., v.13, n.29, p.299-311, abr./jun. 2009.
LINHA MESTRA, N.23, AGO.DEZ.2013
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SAÚDE E DANÇA: MOVIMENTOS E SENSIBILIDADES
Thiago de Sousa Freitas Lima 1
Juliana Pereira Simões 2
Mariana Andrade dos Santos 3
Helena de Arruda Penteado 4
Túlio Alberto Martins de Figueiredo 5
Este texto intenta fazer um paralelo entre a dança e as práticas nos serviços de saúde.
Com intuito de usar a dança, os movimentos e o que fluem dele como um conjunto de pista
para o ser/fazer no cotidiano.
A tradição do campo da saúde no ocidente, iniciada no século XIX, vem construindo
modos de olhar a problemática do sofrimento humano a partir de um lugar que é reconhecido
como a produção de um processo histórico e social nominado medicalização da existência e
da vida individual e coletiva, sobretudo a partir do século XX (MERHY; FEUERWECKER;
GOMES, 2010).
Com efeito, o projeto da modernidade, ancorado no cientificismo e no tecnicismo,
alcançou uma velocidade vertiginosa, adoecendo o meio ambiente e a humanidade, os quais
não conseguem acompanhar o seu ritmo intenso e avassalador, apontando, assim, na mesma
ordem exponencial de crescimento, os seus limites. A racionalidade, como um dos pilares
deste projeto moderno, produz uma avalanche de números que em muitas vezes banaliza os
problemas, e oculta o sofrimento humano (RIGOTTO, 1998).
Sob a concepção mecanicista do corpo e de suas funções que sustenta uma visão
reducionista dos fenômenos saúde e doença, a doença é ora vista como um problema físico ou
mental, ora como biológico ou psicossocial, mas raramente como fenômeno
multidimensional. A fragmentação do objeto gera a fragmentação das abordagens (UCHÔA;
VIDAL, 1994).
Merhry; Feuerwerker (2008), discorrem sobre a relação empobrecida nos serviços de
saúde, em que o outro é tomado como corpo biológico e objeto da ação e que deslegitima
todos os outros saberes sobre saúde, é vertical, unidirecional, como se abstraísse da
ação/cooperação de quem está sendo “tratado”. Não é assim que as coisas funcionam na
prática e por isso mesmo tem sido tão difícil “conquistar a adesão” às propostas terapêuticas.
E Dejours (1986) também nos deixa pistas dizendo que não se pode substituir os atores da
saúde por elementos exteriores. Além disso, diz que se quisermos trabalhar pela saúde
deveremos deixar livres os movimentos do corpo, não os fixando de modo rígido ou
estabelecido de uma vez por todas.
Nesse lugar, aposta-se no movimento como força de vida fazendo uma reapropriação do
tempo e do espaço. Ao trazer o movimento, apreendido na sua complexidade, potencializa-se
a capacidade expressiva do gesto e resgata a fluência entre corpo e movimento, desgastados
pela vida do sec. XXI (RESENDE, 2008).
1
Mestrando do Programa de Pós Graduação em Saúde Coletiva da Universidade Federal do Espírito Santo,
UFES; membro do grupo de pesquisa Rizoma - Saúde Coletiva e instituições; [email protected]
2
Mestranda do Programa de Pós Graduação em Saúde Coletiva da Universidade Federal do Espírito Santo,
UFES; membro do grupo de pesquisa Rizoma - Saúde Coletiva e instituições; [email protected]
3
Mestranda do Programa de Pós Graduação em Saúde Coletiva da Universidade Federal do Espírito Santo,
UFES; membro do grupo de pesquisa Rizoma - Saúde Coletiva e instituições; [email protected]
4
Mestra em Saúde Coletiva pela Universidade Federal do Espírito Santo, UFES; membro do grupo de pesquisa
Rizoma - Saúde Coletiva e instituições; [email protected]
5
Doutor em Saúde Pública, docente do Programa de Pós Graduação em Saúde Coletiva, coordenador do grupo
de pesquisa Rizoma - Saúde Coletiva e instituições; [email protected]
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SAÚDE E DANÇA: MOVIMENTOS E SENSIBILIDADES
Em relação à fluência entre corpo e movimento, lembramos o agenciamento e
acontecimento. De acordo com Deleuze e Parnet (1996), o acontecimento se caracteriza
enquanto uma multiplicidade que comporta termos heterogêneos em múltiplas conexões para
além de categorias históricas, sexuais e filogenéticas. Trata-se portanto de um sempre novo
arranjo que se define por seu grau de potência e circulação de afetos.
Acreditamos que os movimentos corporais, a dança (e não somente a dança) possa ter
entrada e repercuta em vários espaços do cotidiano. E talvez sirva como estalo de provocações
e rearranjos desses lugares que de algum jeito influenciam nossas vidas.
Falamos aqui em alguns pontos que nos tocam a pele: As práticas de saúde no Sistema
Único de Saúde como se encontra hoje, infinitos interesses que modulam as ações em saúde e
nem sempre são para sua existência institucional. Diante de um sentimento de perda, que
possa vir a se findar essa conquista, nos pautamos em outras formas de apreender a realidade
e de encontrar no real algo para sua própria reinvenção, que não é inerte, mas que se refaz, se
constrói.
Fala-se em um olhar da/para própria vida - há modos de captura que amarram o ser. A
dança, o movimento pode proporcionar liberdade, pequenas apreensões de reais que existem,
permitindo que o sujeito se perceba, no sentido de encontrar-se e descobrir-se, compreenderse como multidão, muito além de uma peça que movimenta uma economia, que deve seguir
estereótipos ou um jeito pronto de ser.
Quanto a esse jeito de ser e fazer, coloca-se as práticas nos espaços institucionalizados
em que se produz saúde, onde há protocolos, normas, rotinas, pactos, pautas que devem ser
cumpridas. Nessa cadência o profissional se limita, se fragmenta. É muitas vezes um agir
norteado por palavras escritas em livros, mas dizemos: a vida excede palavras e conhecimento
prévio. Há relações, acontecimentos que são reais e podem ser dispositivos de invenção de si.
E então lançamos mão da dança como agenciamento de posturas estéticas éticas e
políticas. Falamos no recriar por sujeitos comprometidos coletivamente com formas de vida
solidária.
Ousamos dizer que a dança é criadora de realidade e libertadora. E cogitamos que o uso
ou a reapropriação desses movimentos nos serviços de saúde pode fazer emergir um modo de
agir que dê espaço à potência produtiva de vida em si e no coletivo.
Fala-se num deixar-se afetar. A dança, os movimentos corporais, a arte, abre vielas para
outras percepções, desnaturalizando rotinas e modos de ser. Propomos aqui um cuidar com
olhar atento, ouvidos apertados para que palavras sejam sentidas; corpos abertos para
passagens. Reconstruindo os espaços em que se dão as práticas em saúde por se colocar à
disposição em deixar movimentar-se, deixar o corpo falar, se relacionar, se perceber enquanto
iguais e diferentes:
[...] quando encontramos um corpo exterior que não convém ao nosso, tudo
ocorre como se a potência desse corpo se opusesse à nossa, operando uma
subtração, dizemos nesse caso que a nossa potencia de agir é diminuída ou
impedida, mas ao contrário quando encontramos um corpo que convém à
nossa natureza e cuja relação se compõe à nossa diríamos que sua potencia
se adiciona à nossa: as paixões que nos afetam são de alegria e nossa
potencia de agir é ampliada e favorecida. (DELEUZE, 2002, p.34)
Assim vamos nos criando, engendrados por pontos de vista que não são nossos
enquanto sujeitos, mas das marcas, daquilo em nós que se produz nas incessantes conexões
que vamos fazendo. Em outras palavras, o sujeito engendra-se no devir: não é ele quem
conduz, mas sim as marcas. O que o sujeito pode, é deixar-se estranhar pelas marcas que se
fazem em seu corpo, é tentar criar sentido que permita sua existencialização - e quanto mais
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89
SAÚDE E DANÇA: MOVIMENTOS E SENSIBILIDADES
consegue fazê-lo, provavelmente maior é o grau de potência com que a vida se afirma em sua
existência (ROLNIK, 1993).
A doença se manifesta no corpo. Os sintomas são sentidos no corpo. A dança, o
movimento é feito com o corpo. Não é palavra que atua, é o próprio corpo operando sobre si,
numa produção de vida, de fluidez, simbiose.
Pensa-se que o mover-se, dançar, que se atualiza enquanto se faz, é uma hibridização do
que está dentro com o que está na pele, e o que está fora, e também no outro. Tudo isso gera o
movimento que é percebido pelo movimento. É imanente.
As práticas em saúde muitas vezes são permeadas por certa dicotomia entre corpo e
mente, profissional e usuário, serviço e comunidade, separação entre as especialidades.
Envolvendo-se num jogo de representações, num trabalho fragmentado em papéis dados a
priori. Transpondo esse cotidiano e o colocando em outros lugares, arrisca-se dizer que a
dança tem um “poder terapêutico” e pode funcionar quebrando dicotomia corpo e mente e
tantas outras, rompendo com uma dinâmica do serviço de saúde aprisionadora.
A arte do bailarino consiste em construir um máximo de instabilidade, em desarticular
as articulações, em segmentar os movimentos, em separar os membros e os órgãos a fim de
poder reconstruir um sistema de equilíbrio infinitamente delicado – uma espécie de caixa de
ressonância ou de amplificador dos movimentos microscópicos do corpo (GIL, 2004).
De tudo isso, a intenção não é defender a dança como solução, mas é usá-la, igual o
carrapato usa o cachorro, igual o usuário usa o SUS, para aprendermos o que ela tem a nos
dizer, a nos fazer sentir e viver. Com a arte do bailarino, abre-se brecha para se pensar com o
próprio movimento imaginativo. Desnaturalizar – criar – intensificar – intensificar - aprender
com o movimento e em movimento, numa sintonia. Um jeito de perceber as relações em que
nos cercam e forças que mobilizam o nosso ser, o ser vivo. Falamos que é um atentar a si e ao
entorno, ouvindo os ecos, ruídos que dizem além de palavras, que fazem sentir no corpo.
Discutir o corpo como referência para a compreensão da prática clínica diz respeito a
uma possível abertura para produção de outras sensibilidades: mais atentar ao próprio pulso
vital, aos contatos com o outro e com os mundos, permitindo leituras aprofundadas a respeito
do vivo, do corpo e das possibilidades de construção de outros modos de existir, mais
singulares, resistentes aos ataques e modelos sociais, que restringem as potencias e a
produção de realidades criativas e pulsantes de vida (LIBERMAN, 2008).
É nessa lógica, e abrir-se às relações, se raspar da couraça daquilo que já se sabe, das
relações de poder desiguais que figuram alienação. Abrir espaço para que movimentos
surjam, para que delicadas coreografias emerjam é um estar em parceria, em diálogo consigo
e entorno. Certa paridade entre os envolvidos. Se destoar do que foi constituído e permitir ser
de outra forma em cada encontro.
Nossa abordagem é pelo aproximar-se do corpo, começar a colocar seus estados como
referências cotidianas para o enfrentamento de situações, pensar viver com base em suas
conectividades com os ambientes, que exige uma instauração do corpo como modo de
aprendizagem, ação e “monitoramento de si”, abrindo espaço para problematizações e ações
(LIBERMAN, 2008).
Referências
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14 (54), 1986.
DELEUZE, G.; PARNET, C. Diálogos. São Paulo: Escuta, 1998.
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LINHA MESTRA, N.23, AGO.DEZ.2013
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GIL, J. Movimento total: o corpo e a dança. Trad. Miguel Serras Pereira. São Paulo:
Iluminuras, 2004.
RIGOTTO, R.M. Saúde dos trabalhadores e meio ambiente em tempos de globalização e
reestruturação produtiva. Fortaleza, 1998. 21p. Mestrado (Saúde Pública) - Universidade
Federal do Ceará, 1998.
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construindo sentidos com o outro no mundo do cuidado. In: Franco, T.B. (Org.). Semiótica,
afecção & cuidado em saúde. São Paulo: Hucitec, 2010. p. 60-75.
MERHY, E. E.; FEUERWERKER,L. C. M. Novo olhar sobre as tecnologias de saúde: uma
necessidade contemporânea. In Mandarino, A C S & Gomberg, E (org). Leituras de novas
tecnologias e saúde. Bahia: Editora UFS; 2009, p. 29 -56.
LIBERMAN, F. Delicadas coreografias: instantâneos de uma terapia ocupacional. São
Paulo: Summus, 2008.
RESENDE, C. M. Saúde e corpo em movimento: Contribuições para uma formalização
teórica e prática do método Angel Vianna de Conscientização do Movimento como um
instrumento terapêutico. [DISSERTAÇÃO DE MESTRADO], 2008. Rio de Janeiro:
Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2008
UCHÔA E.; VIDAL, J. M. Antropologia Médica: Elementos Conceituais e Metodológicos
para uma Abordagem da Saúde e da Doença. Cad. Saúde Públ., Rio de Janeiro, 10 (4): 497504, out/dez, 1994.
ROLNIK, S. Pensamento, corpo e devir: Uma perspectiva ético/estético/política no trabalho
acadêmico. Cadernos de Subjetividade, v.1 n.2: 241-251.
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FORMAÇÃO EM SAÚDE COLETIVA: NOVOS DISPOSITIVOS EM ANÁLISE
Thiago de Sousa Freitas Lima 1
Juliana Pereira Simões 2
Mariana Andrade dos Santos 3
Helena de Arruda Penteado 4
Túlio Alberto Martins de Figueiredo 5
Esta proposta - parte de uma produção coletiva do grupo de pesquisa RIZOMA: Saúde
Coletiva e Instituições, do Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva da Universidade
Federal do Espírito Santo. Trata-se de um grupo de estudos realizado sob a coordenação do
Prof. Dr. Túlio Alberto Martins de Figueiredo. Este grupo é composto por profissionais
atuantes em diversas formações na grande área Saúde, além de mestrandos do curso de pósgraduação em Saúde Coletiva e Enfermagem Profissional, ambos vinculados a UFES. Os
encontros ocorrem quinzenalmente desde 2009, trata-se de um espaço para promoção de
estudos sobre analise institucional e esquizoanalise, bem como aproximar tais propostas
conceituais a práticas de saúde coletiva.
Neste sentido anseia-se propiciar espaços em que os conhecimentos produzidos possam
colaborar na consolidação de trabalhos centrados em relações acolhedoras, capazes de
produzir vínculos que atuem como produtores de um cuidado integral à saúde. Para tanto
lançamos mão de diversos dispositivos que corporifiquem o conhecimento produzido em
grupo.
Este texto se debruça na intenção de tratar a respeito da problemática educação e
saúde, uma vez que o grupo apresentado se constitui dentro de um espaço para formação
em saúde. Sabe-se que a educação em saúde é um campo multifacetado, para o qual
convergem diversas concepções, das áreas tanto da educação, quanto da saúde. Objetivase defender que o propósito de todo conhecimento encontra-se na sociedade, na
existência, na vida. Educar, portanto, encontra-se no processo onde sujeitos convivem
com outros segmentos de sua realidade. Ao conviver, ambos se transformam
espontaneamente. A partir dos encontros os sujeitos passam por perturbações estruturais
contingentes com a história do viver com o outro, produzindo assim uma forma de viver e
conviver com a comunidade (MATURANA, 2009). Assim o sistema educacional
configura um mundo a ser compartilhado e convivido pelos educandos. Progressivamente
as ações dos educandos refletem a realidade deste mundo apresentado pelo processo de
aprendizagem (MATURANA, 2009).
O conceito de saúde, por sua vez, deve lidar com problemas complexos, que se referem
ao modo de viver, sofrer, adoecer e morrer da população superando os limites do enfoque
orgânico/biológico (ALMEIDA FILHO, 2000). Devem-se alcançar dimensões mais amplas
com interseções de fatores sociopolíticos, econômicos, industriais e históricos. Logo, o
modelo pedagógico deve ampliar o conceito de saúde com inovações politico-pedagógicas
fugindo da concepção informativa e representacionista (CARVALHO; CECCIM, 2009).
1
Mestrando do Programa de Pós Graduação em Saúde Coletiva da Universidade Federal do Espírito Santo,
UFES; membro do grupo de pesquisa Rizoma - Saúde Coletiva e instituições; [email protected]
2
Mestranda do Programa de Pós Graduação em Saúde Coletiva da Universidade Federal do Espírito Santo,
UFES; membro do grupo de pesquisa Rizoma - Saúde Coletiva e instituições; [email protected]
3
Mestranda do Programa de Pós Graduação em Saúde Coletiva da Universidade Federal do Espírito Santo,
UFES; membro do grupo de pesquisa Rizoma - Saúde Coletiva e instituições; [email protected]
4
Mestra em Saúde Coletiva pela Universidade Federal do Espírito Santo, UFES; membro do grupo de pesquisa
Rizoma - Saúde Coletiva e instituições; [email protected]
5
Doutor em Saúde Pública, docente do Programa de Pós Graduação em Saúde Coletiva, coordenador do grupo
de pesquisa Rizoma - Saúde Coletiva e instituições; [email protected]
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FORMAÇÃO EM SAÚDE COLETIVA: NOVOS DISPOSITIVOS EM ANÁLISE
Conforme discutem Yara Maria de Carvalho e Ricardo Burg Ceccim (2009)
Os fatores de exposição às aprendizagens estão centrados no professor, no
livro de texto e nos estágios supervisionados e não na produção de
experiência de si e de apropriação dos entornos da vida; os currículos são
organizados em unidades disciplinares conteudistas e não em unidades de
produção pedagógicas (...) (CARVALHO; CECCIM, 2009, p. 143).
Esta forma de aprendizagem não condiz com o vivo e sua potência de acoplamentos, ao
contrário, orienta-se pela doença e seu caráter reducionista e normalista (CANGUILHEM,
1978).
Segundo Foucault (1971, 1979, 1985, 2006), destaca-se que as relações de saber
produzidas na academia possuem uma dimensão política. Os discursos e concepções
produzidos na realidade educacional inserem-se nas relações sociais conferindo direção às
ações, o que o autor chamou de relações de poder, e configuram, em função de tais direções,
subjetividades. A ideia de subjetividade não é considerada como algo apenas pessoal, interno
ou indivisível. O plano subjetivo se configura também por instâncias coletivas e institucionais
que se emaranham de maneira plural e polifônica em nossas práticas cotidianas por meio dos
modos de produção econômicos, genéticos, históricos, industriais, políticos e discursivos.
Criam-se assim territórios existenciais, que de forma singular, acoplam-se com as forças,
gerando uma multiplicidade de movimentos, nos quais, ao mesmo tempo, modificam e são
modificados por tais aparelhos (GUATTARI, 1992).
Foucault (1979) demonstra que todo discurso é um poder e todo poder é físico, logo
esse poder que atravessa todo o corpo social se torna um produtor de subjetividades.
O conhecimento se inaugura por encontros e jogos de corpos e poderes e saberes que se
afetam e se alteram em diferentes velocidades. Maturana e Varela (2002) oferecem subsídios
para se pensar um conhecimento autopoiético contradizendo o discurso cientifico hegemônico
da verdade. Dessa forma concebem a cognição como a própria vida e o fazer dos seres vivos –
Ser = Fazer = Conhecer (MATURANA; VARELA, 2002).
O conhecimento autopoietico, inventivo, não se trata, portanto, de uma categorização
dos objetos, pois não se parte da representação de um "objeto preexistente". A cognição é aqui
entendida como atividade criadora. Deixa de lado as regras e normas a priori e elimina
distâncias entre o conteúdo a ser apreendido e o corpo. Conhecer, então, é diminuir distâncias,
é aproximar, é tornar-se o que se aprende. Depende, portanto, do acontecimento. A cognição
transforma aquilo que toca e altera o ser do homem.
Esta abordagem permite a elaboração de um campo formativo que visa compreender e
produzir realidades a partir dos acontecimentos referentes ao processo de formação de novos
conceitos frente a práticas em saúde coletiva. Entende-se, com base em Deleuze (1998),
acontecimento como um conjunto de forças presentes no meio que configuram um
movimento de ruptura com as formas dadas, com o esperado, e faz um caminho diferente do
traçado linear e progressivo. Dessa forma pretende-se ativar, apropriar-se e intervir na criação
de novos instrumentos para educação e formação em saúde. Para esse fim, remete-se à leitura
de pensadores e estudiosos contemporâneos que problematizam as ciências cognitivas e as
aproximam da análise da formação do sujeito. A partir dessas apostas produzimos uma
inflexão de pensamento a fim de aproximar este debate com as políticas de formação em
saúde.
Todos os profissionais são envolvidos na realização de troca de experiências e
exploração, por meio de diversas dinâmicas com os conceitos fundantes da esquizoanalise e
analise institucional, por meio de práticas e exercícios corporais e dialógicos e expositivos e
narrados e compartilhados e...
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FORMAÇÃO EM SAÚDE COLETIVA: NOVOS DISPOSITIVOS EM ANÁLISE
A ressingularização de tais conceitos são movimentos necessários neste campo
chamado Saúde Coletiva, segundo Paim (2008), L’Abbate (1994), Carvalho & Ceccim
(2009), et al . São privilegiados os debate e o trabalho grupal direcionando um processo
coletivo de trabalho.
A escolha de se trabalhar com um grupo se dá pela aposta de não estruturar o
conhecimento em saúde com individualidades que consideram o indivíduo como algo
indivisível e impenetrável. Ao contrário, o grupo passa a ser um modo grupo (BENEVIDES
DE BARROS, 2007) que se compõe como máquina. Uma máquina repleta de conexões que
se aproximam e se afastam decompondo forças e produzindo acontecimentos que disparam a
multiplicidade de subjetivações. O estar junto com o outro, que é diferente, permite a conexão
não a uma unidade, mas a processualidades. Este encontro dispara movimentos inesperados
porque é o desconhecido, ou seja, o não determinado, que percorre sua superfície.
Neste sentido, a mudança ocorrida no grupo não pode ser apenas quantificada, ela pode
também, ser qualificada a partir de encontros. Trata-se de um processo e evolução que,
articulados a uma conscientização ético-política dos sujeitos envolvidos propicia uma
reconstrução dos sentidos atribuídos as práticas em saúde e uma afirmação de contínuas
reflexões sobre si.
Por acreditar em um grupo com expressão de algo coletivo e múltiplo, desfragmentador
de pessoalidades e modos indivíduo, é que apostamos no grupo como um disparador de
multidão (NEGRI, 2004).
Além disso, inventar dispositivos compartilhados fornece pistas na direção de um corpo
em trabalho vivo construído a partir de toques e cooperações. Provocando em cada corpo uma
multidão tem-se a possibilidade de em conjunto se atentar aos processos de luta, movimento e
desejo de transformação – exercícios de reconfiguração estética na produção de saúde elementos que participam diretamente na tessitura das relações de cuidado (MERHY, 2008).
Trata-se de uma pragmática do real que considera todas as conexões possíveis, já que todas as
forças estão disponíveis para serem experimentadas. É aí que entendemos acertar a
experiência da resistência contra reprodução modelos hegemônicos e limitados, por meio da
troca e do toque nosso repertório sensível se estende e intensifica. Sensibilizar os corpos que
conhecem dá passagem da consistência a um plano da vida enquanto potência de
diferenciação, levantando vozes de inconscientes que protestam e povos que estão por vir.
Garantir e compartilhar a vida enquanto diferenciação é por fim vislumbrar uma saúde
efetivamente coletiva e sutil.
Referências
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CANGUILHEM, G. O normal e o patológico. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1978
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Saúde Coletiva. In: CAMPOS G.W.S; MINAYO M.C.S; AKERMAN M.; DRUMOND
JUNIOR R.M; CARVALHO Y.M; Orgs. Tratado de Saúde Coletiva. 2. São Paulo:
HUCITEC; Rio de Janeiro: FIOCRUZ, 2009. p. 137 – 171.
DELEUZE, G. O que é um dispositivo? In: Deleuze,G. O mistério de Ariana (p. 83-96).
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FORMAÇÃO EM SAÚDE COLETIVA: NOVOS DISPOSITIVOS EM ANÁLISE
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FOUCAULT, M. Ditos e escritos, V. IV. São Paulo: Forense Universitária, 2006.
GUATTARI, F. Da Produção de Subjetividade. In: GUATTARI, F. Caosmose: um novo
paradigma estético. São Paulo: Editora 34, p. 11- 44. 1992.
L'ABBATE, Solange. Educação em saúde: uma nova abordagem. Cad. Saúde Pública, Rio
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MATURANA ,H. Emoções e linguagem na educação e na política. Tradução de José
Fernando Campos. ed. Belo Horizonte: UFMG, 2009.
MATURANA, H. R. & VARELA, F. J. A árvore do conhecimento: as bases biológicas da
compreensão humana. São Paulo: Palas Athena, 2002.
PAIM. J. S. Desafios para a saúde coletiva no século XXI. Salvador: EDUFBA, 2008.
LINHA MESTRA, N.23, AGO.DEZ.2013
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SESSÃO 5 – EXPRESSÃO, RUPTURA E COLAPSO DO PENSAMENTO
LINEAR EM GILLES DELEUZE
MICHELANGELO ANTONIONI INTERCESSOR DE DELEUZE
Adriano Ricardo Mergulhão 1
“A relação cinema-filosofia é a relação da imagem
com o conceito. Mas no próprio conceito existe uma
relação com a imagem, e na imagem uma relação
com o conceito: por exemplo, o cinema sempre quis
construir uma imagem do pensamento, dos
mecanismos do pensamento.”
(Deleuze, Conversações p.83)
Buscaremos discutir neste resumo, a forma pela qual o projeto estético do diretor de
cinema Michelangelo Antonioni pode fornecer a Deleuze alguns elementos para a
constituição de sua própria filosofia, com especial enfoque ao conceito de outrem. Deleuze
insiste, em diferentes momentos de sua obra, que formular, criar um problema verdadeiro -- o
qual não se encontra já dado para ser apenas descoberto -- é mais importante do que as
resoluções propostas. Já em seu primeiro livro, Empirismo e subjetividade, de 1953, Deleuze
afirmou que uma teoria filosófica consiste no desenvolvimento até o fim das implicações
suscitadas por uma questão bem formulada. A questão sobre a qual nos debruçaremos é
aquela do cinema, neo realista de Antonioni e sua sintonia insuspeita com a filosofia de
Deleuze, sendo que este último nos definiu em linhas qual é a questão nevrálgica da estética
proposta por este diretor italiano:
“Em Antononi (...) a investigação policial, em vez de proceder por flash
backs, transforma as ações em descrições óticas e sonoras, enquanto a
própria narrativa se transforma em ações desarticuladas no tempo(...) E a
arte de Antonioni se desenvolverá sempre em duas direções: uma espantosa
exploração dos tempos mortos da banalidade cotidiana; depois, a partir de O
eclipse, um tratamento das situações-limite que as impele até as paisagens
desumanizadas, espaços vazios, dos quais se diria terem absorvido os
personagens e as ações, para deles só conservar a descrição geofísica, o
inventário abstrato.” (Deleuze 2007b p.13-14)
Neste primeiro momento, tentaremos explicar o que é um personagem conceitual para
Deleuze e Guattari, lançando mão de uma idéia um tanto quanto inadequada...traçar a
analogia entre o conceito de “outrem” e suas relações com o plano de imanência (exposto na
obra feita em parceria com Guattari “O que é a filosofia?”) tendo em vista algumas cenas do
filme de 1966 de Michelangelo Antonioni – “Blow Up, depois daquele beijo”, pois como diz
Deleuze “O cinema também nos oferece por vezes seus dons da terceiridade...”, tomaremos
então a liberdade de alçar ao status fictício de Filósofo o cineasta italiano M. Antonioni, pois
se o tomarmos por mero artista ele não ira criar conceitos, mas afetos, como veremos este
diretor se atreveu a criar alguns conceitos, como o de incomunicabilidade e o de vazio:
“Antonioni, outro dos maiores coloristas do cinema, se servirá das cores frias
levadas ao extremo de sua plenitude ou de sua intensificação para ultrapassar
a função absorvente, que ainda mantinha personagens e situações
1
Doutorando em filosofia PPGFIL/UFSCAR, bolsista CAPES. E-mail: [email protected]
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96
FORMAÇÃO EM SAÚDE COLETIVA: NOVOS DISPOSITIVOS EM ANÁLISE
transformados no espaço de um sonho ou de um pesadelo. Com Antonioni a
cor leva o espaço até o vazio, ela apaga o que absorveu(...) “O objeto do
cinema de Antonioni é chegar ao não figurativo através de uma aventura
cujo termo é o eclipse do rosto, o apagar do personagens.” (...) em Antonioni
o rosto desaparece ao mesmo tempo que o personagem e a ação, e a instancia
afetiva é aquela do espaço qualquer que Antonioni leva, por sua vez, até o
vazio.” (Deleuze 1984, p. 152-153)
O filme em questão, retrata um dia na vida de um conturbado fotógrafo de nome
Thomas (interpretado por David Hemmings, ele será aqui, um dos “personagens conceituais”
ao modo de Zaratustra, Sócrates, etc) buscando traçar uma cadeia alucinante de ações e cenas
sobre a desorientação da juventude na Inglaterra pré 1968 (este será o plano de imanência
onde se encontrarão estes personagens conceituais), Antonioni se foca na aparição de um
mistério na vida, um tanto vazia de Thomas, que acabará por obcecá-lo, atraindo-o para
situações de delírio e loucura. Por se tratar de um fotógrafo profissional, aparentemente
consagrado, mas não obstante, frustrado com a futilidade de alguns domínios de sua profissão
(fotógrafo de moda), e exausto por uma rotina desgastante, tem por projeto paralelo de vida a
montagem de um livro de fotografias artísticas, que tira a esmo nas ruas da cidade de Londres,
esta cidade cinzenta e fantasmagórica, que situa seu plano de imanência pré filosófico, na qual
ele exercita com precisão sua técnica de grande acuidade estética, captando aleatoriamente
pessoas e situações desconhecidas, misteriosas, enigmáticas que são alvo de sua obscura
fixação que acaba suscitando-lhe a livre reflexão sobre o absurdo da existência;
Pensar suscita a indiferença geral. E Todavia não é falso dizer que é um
exercício perigoso. É somente quando os perigos se tornam evidentes que a
indiferença cessa, mas eles permanecem freqüentemente escondidos, poucos
perceptíveis, inerentes à empresa. Precisamente porque o plano de imanência é
pré-filosófico, e já não opera com conceitos, ele implica uma série de
experimentação tateante , e seu traçado recorre a meios pouco confessáveis,
pouco racionais e razoáveis. São meios da ordem do sonho, dos processos
patológicos, das experiências esotéricas, da embriaguez ou do excesso.
Corremos em direção ao horizonte, sobre o plano de imanência; retornamos dele
de olhos vermelhos, mesmo se são olhos do espírito. (Deleuze2007 p. 58)
Em uma de suas andanças, na busca por imagens interessantes, acaba em um parque
afastado, e vazio, lá se encontra um casal solitário, a menos de cem metros de distancia de
Thomas, que, sem ser percebido, saca algumas fotos com sua maquina (que possui uma lente
tele-objetiva, para fotos a distância), por fim, ao se dar por satisfeito com algumas fotos se
prepara para partir, mas é visto pelo casal, que ao serem descobertos, se constrangem. A
mulher (interpretada por Vanessa Redgrave, nossa segunda personagem conceitual) o
persegue , e o interpela exigindo, em flagrante desespero, o conteúdo do filme, Thomas se
nega a entregar, alegando possuir ali outras fotos, e pede que ela aguarde, pois depois de
revelado ele poderia devolver. Ela se vai, e no mesmo dia, misteriosamente, surge nos estúdio
de Thomas, ele a engana com um filme falso, e ambos acabam por dormir juntos. Ela parte,
ele vai ao seu laboratório, e ao revelar os negativos do filme, tem inicio o trama que aqui nos
interessa, o Devir Fotográfico de Thomas que;
“É o enigma (freqüentemente comentado) de Cézanne: “o homem ausente,
mas inteiro na paisagem”. Os personagens não podem existir, e o autor só
pode criá-los porque eles não percebem, mas entraram na paisagem e fazem
eles mesmos parte do composto de sensações(...) Os afectos são
precisamente estes devires não humanos do homem, como os perceptos
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FORMAÇÃO EM SAÚDE COLETIVA: NOVOS DISPOSITIVOS EM ANÁLISE
(entre eles a cidade) são as paisagens não humanas da natureza. “Há um
minuto do mundo que passa” , não o conservaremos sem “nos
transformarmos nele”, diz Cézanne. Não estamos no Mundo, tornamo-nos
com o Mundo, nós nos tornamos, contemplando-o. Tudo é visão, devir.
Tornamo-nos universo.” (Deleuze 2007 p. 219)
Nas fotos reveladas, se vê um rosto assustado (o rosto da mulher), que olha para alguma
coisa fora do campo de visão da câmera. O que causa o terror de sua face? Seu amante, um
senhor grisalho, olha para a câmera com expressão lívida, impávida. Que mundo é aquele que
esta por ser revelado pelos negativos de Thomas? Uma intensidade, um grito silencioso que
perpassa a foto, um mistério possível a se anunciar...o rosto assustado, como conceito de
outrem? Como prenúncio de um delito ou do caos? A seqüência das fotos é ainda mais
enigmática pois nos revê-la um surreal mundo possível:
“E este mundo possível tem também uma realidade própria em si mesmo,
enquanto possível: basta que aquele que exprime diga “tenho medo”, para
dar uma realidade ao possível enquanto tal (mesmo se suas palavras são
mentirosas). O “eu” como índice lingüístico, não tem outro sentido.(...) Eis,
pois, um conceito de outrem que não pressupõe nada além da determinação
de um mundo sensível como condição. Outrem surge neste caso, como
expressão de um possível. Outrem é um mundo possível, tal como existe
num rosto que o exprime, e se efetua numa linguagem que lhe dá realidade.
Neste sentido é um conceito com três componentes inseparáveis: mundo
possível, rosto existente, linguagem real ou fala” (Deleuze 2007 p. 28-29)
A sequência das fotos é em absoluto enigmática: O casal junto no parque, ela parece
guiá-lo para um local afastado, eles caminham, eles se beijam, o olhar de terror em direção a
um fora, ela vindo em direção a Thomas (o que era terror, passa em sua face, a desespero). Ao
fundo desta ultima foto, uma mancha ao fundo se confunde a paisagem... Por um processo de
minuciosas ampliações e calculo de ângulos, o fotógrafo consegue duas pistas, o borrão, que
se vê, é o corpo caído do homem grisalho, e por ampliação de uma das fotos, que contém o
angulo cujo rumo à direção do “olhar do fora” se projeta, agora se vê, na penumbra, uma mão
empunhando uma arma, escondida em meio aos arbustos. Ninguém, além do rosto assustado,
viu estas cenas. Thomas não podia ver a tal distância, apenas o reflexo espelhado de sua
maquina, revelado numa película registrou o acontecimento singular. Uma emboscada? Um
assassinato planejado? Uma multiplicidade, a revelar o contorno de um mundo possível,
imerso numa atmosfera grotesca, mas excitante:
“O olho já esta nas coisas, ele faz parte da imagem, ele é a visibilidade da
imagem. É o que Bergson mostra: a imagem é luminosa ou visível nela
mesma, ela só precisa de uma “tela negra” que a impeça de se mover em
todos os sentidos com as outras imagens, que impeça a luz de se difundir, de
se propagar em todas as direções, que reflita e refrate a luz. “A luz que,
propaga-se sempre, jamais teria sido revelada...” O olho não é a câmera, é a
tela. Quanto a câmera, com todas as suas funções proposicionais, é antes um
terceiro olho, o olho do espírito. (...) Mas não é a questão de olhar, É antes
porque ele enquadra a ação em todo tecido de relações. A ação por exemplo
é um crime. Mas as relações constituem uma outra dimensão, segundo a qual
o criminoso “doa” seu crime a alguém, ou então o troca, ou o devolve a uma
outra pessoa. (...)Ora é isto o que a câmera desvela: o enquadramento e o
movimento da câmera manifestam as relações mentais” (Deleuze 2008 p.72)
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FORMAÇÃO EM SAÚDE COLETIVA: NOVOS DISPOSITIVOS EM ANÁLISE
Os olhos do fotógrafo ( o personagem conceitual, ou “sujeito/personagem” em ação no
seu campo experimental; o parque de Londres e suas infinitas possibilidades) não puderam
ver a cena, a revelação de um rosto assustado, um outrem ( que por sua condição, deixa de ser
sujeito, e passa a ser uma possibilidade), que revelou a pista de um mundo possível (um
simples “há...”, há ali, o prenuncio de um assassinato), as lentes da câmera, esta virtualidade
que é a fotografia, registrou o acontecimento atual, a criação de uma multiplicidade de
elementos, que antes fragmentários, agora por meio das investigações de Thomas, se
agrupam, com seus contornos e diferenças, para formar uma singularidade...O assassinato,
como devir em suas multifacetadas vias de acesso (o fotógrafo espectador, o assassino, a
vitima, o rosto assustado, a virtualidade da situação onde uma câmera registra sem ver, o
contexto, ou plano de imanência por onde o trama se passa, o parque, Londres, um mundo,
infinitos mundos). Vejamos agora esta passagem de Deleuze:
“Procedamos sumariamente: consideremos um campo de experiência
tomado como mundo real, não mais com relação a um eu, mas com relação a
um simples “há...”.Há, nesse momento, um rosto calmo e repousante. Surge
de repente, um rosto assustado que olha alguma coisa fora do campo.
Outrem não aparece aqui como um sujeito, nem como um objeto mas, o que
é muito diferente, como um mundo possível, como a possibilidade de um
mundo assustador. Esse mundo possível não é real, ou não o é ainda, e
todavia não deixa de existir: é um expressado que só existe em sua
expressão, o rosto ou um equivalente do rosto. Outrem é antes de mais nada,
esta existência de um mundo possível.” (Deleuze 2007 p.28)
Existe aí uma relação intensiva entre todos os componentes, suas multiplicidades
embora caracterizadas por suas diferenças, se tocam por um momento. O signo que se
desdobra em infinitos eus... Ou em nenhum, no caso da morte como anulação do eu subjetivo,
ou da câmera, como realidade singular e virtual que não possui consciência dos fatos, mas os
registra. Estão traçados acima os componentes de um problema filosófico, que no caso de M.
Antonioni (aqui visto como o “filósofo” que os teceu), fala sobre a incomunicabilidade (como
se fosse possível narrar com imagens, algo que não se pode comunicar, que não se verbaliza,
ou seja, o próprio mistério) tema de muitos de seus filmes. Como pudemos ver, esta foi uma
tentativa de esboçar por meio de um exemplo estético/cinematográfico o que seriam os
componentes de um conceito, tentamos ilustrar o conceito de “outrem” de modo muito
rudimentar é preciso confessar, mas na tentativa de formular uma situação que carregasse o
gérmen e as potencialidades de algumas questões levantadas por Deleuze e Guattari, a saber:
“Sob quais condições um conceito é primeiro, não absolutamente mas em
relação a um outro? Por exemplo, outrem é necessariamente segundo em
relação a um eu? Se ele o é, é na medida em que seu conceito é aquele de um
outro – sujeito que se apresenta como objeto – especial com relação ao eu:
são dois componentes. Com efeito se nós o identificamos a um objeto
especial, outrem já não é outra coisa senão o outro sujeito, sou eu que sou
outrem, tal como eu lhe apareço. Todo conceito remete a um problema, a
problemas sem os quais não teria sentido, e que só podem ser isolados ou
compreendidos na medida de sua solução: estamos aqui diante de um
problema concernente à pluralidade dos sujeitos, sua relação, sua
apresentação recíproca. Mas tudo muda evidentemente se acreditamos
descobrir outro problema: em que consiste a posição de outrem, que o outro
sujeito vem somente “ocupar” quando ele me aparece como objeto especial,
e que eu venho, por minha vez, ocupar como objeto especial quando eu lhe
LINHA MESTRA, N.23, AGO.DEZ.2013
99
FORMAÇÃO EM SAÚDE COLETIVA: NOVOS DISPOSITIVOS EM ANÁLISE
apareço? Deste ponto de vista, outrem não é ninguém, nem sujeito nem
objeto. (Deleuze 2007 p. 27-28)
Por fim, podemos notar, com estas parcas considerações que se para Deleuze e Guattari,
a filosofia é a disciplina que cria conceitos, podemos inferir, que é também a disciplina que
cria mundos possíveis, cria possibilidades infinitas, cria diferenças no pensamento, e em
ultima instância cria multiplicidades e desterritorializações do pensar:
Os princípios característicos das multiplicidades concernem a seus
elementos, que são singularidades; a suas relações, que são devires; a seus
acontecimentos, que são hecceidades (quer dizer, individuações sem
sujeitos); a seus espaços-tempos, que são espaços e tempos livres; a seu
modelo de realização, que é o rizoma (por oposição ao modelo da árvore); a
seu plano de composição, que constitui platôs (zonas de intensidade
contínua); aos vetores que as atravessam, e que constituem territórios e graus
de desterritorialização. (Deleuze 2009, Mil Platôs vol.1 , p. 11)
Referências
Barthes, R. “A câmara clara – nota sobre a fotografia” Ed. Nova Fronteira, Rio de Janeiro,
1984.
Deleuze, G. “Conversações” , Ed. 34, Rio de Janeiro, 2008.
Deleuze,G. & Guattari, F “O que é a filosofia?” , Ed. 34, Rio de Janeiro, 2007.
Deleuze, G. “Cinema1- A Imagem Movimento” Ed. Brasiliense, São Paulo, 1984
Deleuze, G. “A imagem Tempo” Ed. Brasiliense, São Paulo, 2007b.
Deleuze, G. “Mil Platôs” vol.1, Ed. 34, Rio de Janeiro, 2009.
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ESTILO E NÃO-ESTILO NOS PERSONAGENS CONCEITUAIS DA FILOSOFIA
Rubens José da Rocha 1
Embora não possa ser abordada satisfatoriamente logo de início, a pergunta sobre o que
é a filosofia é condição inelutável para seu estudo. Uma longa trajetória intelectual
desempenha papel importante para a formulação adequada da questão. A bibliografia será
sempre muito vasta, sendo a necessidade de familiarizar-se com os conceitos de um ou outro
filósofo uma tarefa que exige estudo detalhado de alguns poucos textos e problemas. Não por
acaso, uma das condições para enfrentar o desafio de elaboração conceitual da leitura será
traçar um plano construtivo (imanência), onde conceitos e problemas possam se mover com
diferentes direções, diferentes sentidos e velocidades, criando distâncias, encontros,
contrastes, colisões, torções e rupturas, permitindo aos conceitos coexistir dentro de uma
sempre renovada possibilidade de pensar a filosofia.
Proponho encarar,nesta comunicação, a relação entre estilo e não-estilo como uma
questão central da filosofia, concentrando a análise na noção de personagem conceitual no
livro O que é a Filosofia?, de Deleuze e Guattari.Ao contrário do que possa parecerquando se
investiga sociologicamente o nascedouro da filosofia, o caráter supostamente impessoal dos
conceitos não provém de uma simples abstração das opiniões públicas. Esta pretensa
impessoalidade ocultaria de certa maneira a astúcia com que a filosofia extrai do antagonismo
de opiniões diretrizes básicas para a apreensão de um determinado tipo de saber. Os conceitos
preservam em sua configuração interna uma força que não se esgota no simples desejo de
persuadir, nem aspira encontrar uma unidade para os pontos de vista em conflito, ou instaurar
as condições de possibilidade de enunciação da verdade, mas criar uma série de disposições
individuais, através da fulguração intensiva da multiplicidade de seus elementos: “Que valeria
um filósofo do qual se pudesse dizer: ele não criou um conceito, ele não criou seus
conceitos?” (O que é a Filosofia?, p.12).
Por outro lado, embora os conceitos não sejam uma criação coletiva, nem uma criação
puramente impessoal, eles tampouco são obra de um ou outro autor empírico. Pois existe uma
dobra da enunciação que se inscreve no interior do próprio conceito, sendo este o momento de
autoposição do sujeito no plano de imanência. À medida que confere aos conceitos traços
intensivos de personalidade, o sujeito da enunciação arroga para si uma autonomia filosófica,
dando origem a personagens conceituais que atuam conforme a dinâmica interna dos
conceitos no plano de imanência. Os personagens conceituais constituem o pensamento
filosófico como “heterônimos do filósofo, e o nome do filósofo, [como] o simples
pseudônimo de seus personagens” (O que é a Filosofia?, p.78). Neste sentido, eles não podem
ser reduzidos a tipos psicossociais, nem considerados como abstração destes, mas como
personalidades intensivas que se manifestam através de um determinado estilo. “Os
personagens conceituais são pensadores, unicamente pensadores, e seus traços personalísticos
se juntam estreitamente aos traços diagramáticos do pensamento e aos traços intensivos do
conceito. Tal ou tal personagem conceitual pensa em nós, e talvez não nos preexistia”(O que é
a Filosofia?, p.86). Eles “não são mais determinações empíricas, psicológicas e sociais, ainda
menos abstrações, mas intercessores, cristais ou germes do pensamento”(O que é a
Filosofia?, p.85). O juízo sintético em Kant, a vontade de potência em Nietzsche, a
sensualidade estética em Kierkegaard e o capital em Marx são conceitos criados por
personagens como o Inquisidor, Dioniso, Don Juan, Capitalistas e Proletariados.
Talvez o mais célebre dos personagens conceituais seja o Sócrates de Platão. Não
importando à filosofia se existiu realmente como personalidade empírica, ao engendrar a
1
Doutorando PPFGFIL/UFSCar, bolsista CAPES. E-mail: [email protected]
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101
ESTILO E NÃO-ESTILO NOS PERSONAGENS CONCEITUAIS DA FILOSOFIA
dinâmica interna dos Diálogos, Sócrates relega Platão ao estatuto de um pseudônimo. Ante a
presença do mestre, o escritor dos Diálogos esvanece como um nome vazio, sem referente,
projetado à sombra do personagem-filósofo. É neste sentido que podemos acompanhar na
Apologia de Sócrates uma gênese heteronímica para o famoso personagem conceitual.
Informado pelo amigo Querefonte que o oráculo de Delfos anunciara não haver homem mais
sábio que Sócrates, o filósofo sai à procura de alguém cuja sabedoria pudesse confirmar sua
ignorância, provando assim o equívoco do oráculo. Ao conversar com os mais sábios artesãos,
políticos e poetas de Atenas, Sócrates surpreende-se com a arrogância destes homens que se
julgam convencidos de saber muito mais do que a arte de seu ofício, orgulhando-se
vaidosamente dessa falsa sabedoria. Seus interlocutores ostentam apenas a aparência de
sábios, embora não o sejam na verdade. (PLATÃO, Apologia de Sócrates, p. 69).
À semelhança do conflito entre rivais nos discursos da ágora, os personagens
conceituais dividem-se em grupos simpáticos e antipáticos. Será justamente em razão de seu
estilo ou não-estilo que os personagens conceituais poderão ser avaliados como falsos ou
verdadeiros simpáticos ou antipáticos, adequados ou inadequados à sua filosofia. Sócrates e
os sábios são exemplos de personagens antipáticas, pois Sócrates descobre sua identidade
filosófica por exclusão das demais personagens. Colocando-se diante dos sábios como quem
se coloca diante de seus rivais, Sócrates reconhece sua identidade na ignorância daqueles, mas
apenas na medida em que esta ignorância seja o signo de sua sabedoria. Escorado nesta súbita
autoconsciência, sintetizada pelo adágio “só sei que nada sei”, Sócrates individua-se como
personagem conceitual, cujo não-saber engendra o desejo de livrar-se das formas de ilusão
para abrir caminho ao saber autêntico e verdadeiro. Por outro lado, em Marx, capitalistas e
proletariados são personagens antipáticas, pois disputam a hegemonia política e econômica
dentro de uma sociedade dividida em classes, enquanto comunistas e proletariados são
personagens simpáticas, por buscarem compartilhar o poder político-econômico entre si.
Esta noção de personagens conceituais da filosofia mostra-se de pleno acordo com a
definição de filosofia para o heterônimo Antônio Mora. “Toda a filosofia é um
antropomorfismo. O erro fundamental é admitir como real a alma do indivíduo, o erigir a
consciência do indivíduo em consciência absoluta e a Realidade em individualidade”. (Obra
em prosa. Antônio Mora, p.527). Quando Fernando Pessoa escreve sobre a heteronímia, ele
pensa imediatamente no ato de invenção literária capaz de unir, sob uma forma superior de
composição, os efeitos dramáticos do fenômeno de despersonalização e as múltiplas formas
particulares de estilo das grandes obras poéticas do ocidente. À medida que a heteronímia se
compromete a incorporar elementos que encerrem um potencial de individuação para a obra,
o estilo aparece sob a forma de um drama subjetivo, no qual senso rítmico e rigor de
construção convergem de acordo com uma necessidade imanente à escrita poética. Sem
descuidar deste aspecto literal do conceito, podemos considerar o estilo heteronímico como
uma inflexão poética do que, meio século depois, Deleuze definirá como personagens
conceituais da filosofia. Assim como os conceitos não aparecem como criação de um ou outro
autor empírico, mas como criação de um desses personagens, a heteronímia será uma forma
de manifestação estilística do pensamento que anima a história da filosofia.
Alberto Caeiro e Álvaro de Campos, personagens conceituais da poesia, constituirão um
plano de composição poética no entrecruzamento com os diversos planos de imanência da
filosofia. De acordo com a cronologia de nascimento sugerida por Pessoa, Alberto Caeiro será
o primeiro e mais importante poeta heterônimo. Mestre dos demais, sua personalidade
exprimirá o momento de ruptura estilística com a obra do poeta pré-heteronímico que, na
amplidão de suas incursões literárias, alimentava sólida admiração à poesia greco-latina, sem
deixar de aspirar apaixonadamente os novos ares da poesia moderna, sobretudo à de origem
inglesa. Esta ambivalência culminou numa cisão metafísica entre as formas de pensar próprias
às duas tradições. Do ponto de vista clássico, a poesia heterônima assume uma forma ingênua
LINHA MESTRA, N.23, AGO.DEZ.2013
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ESTILO E NÃO-ESTILO NOS PERSONAGENS CONCEITUAIS DA FILOSOFIA
em Alberto Caeiro e uma forma erudita em Ricardo Reis, enquanto, do ponto de vista
moderno, ela origina uma forma romântica para Álvaro de Campos e uma forma simbolista
para Fernando Pessoa ortônimo. Dentre os três discípulos imediatos, Álvaro de Campos
oferece, por oposição virtual, maior poder de personificação ao mestre Caeiro. A força
explosiva de Ode Triunfal, que apareceria apenas algumas horas depois de O Guardador de
Rebanhos e de Chuva Oblíqua, definiu os termos psíquicos da cisão estilística que deu origem
à escrita dos heterônimos. Em certo sentido, pode-se afirmar que Álvaro de Campos e Alberto
Caeiro são personagens conceituais que delimitam os polos extremos de uma figura incerta,
que aparece alternadamente, durante a escrita heteronímica, como Fernando Pessoa elemesmo, Fernando Pessoa ortônimo, Fernando Personne, Ricardo Reis, Bernardo Soares,
Fausto e demais heterônimos. É a tensão entre estes polos extremos, em jogo na obra dos
heterônimos, o que propomos analisar em diálogo com a noção de personagem conceitual de
Deleuze.
Referências
DELEUZE, G.; GUATTARI, F. O que é a Filosofia? Trad. Bento Prado Jr. e Alberto Alonso
Muñoz. Rio de Janeiro: Editora 34, 1992.
GIL, J. Fernando Pessoa ou a Metafísica das Sensações. Lisboa: Relógio d’Água, 1987.
PESSOA, F. Obra em Prosa. RJ: Nova Aguilar, 2006.
_________. Obra Poética. RJ: Nova Aguilar, 2006.
PLATÃO. Apologia de Sócrates. “Os Pensadores”. São Paulo: Nova Cultural, 1996.
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VENCER O CLICHÊ A PARTIR DO ACASO: DELEUZE, BACON E CAGE
Fernando Sepe 1
No belo capítulo intitulado “A pintura antes de pintar 2” Deleuze nos lembra como o
pintor nunca está frente a frente com uma tela em branco. Pois, “o pintor tem várias coisas na
cabeça, ao seu redor ou no ateliê 3.” Em sua cabeça, o pintor traz “dados figurativos”,
clichês-psíquicos a qual todos estamos sujeitos: fotografias, publicidade, imagens-cinema,
imagem-televisão. No ateliê, no mundo a sua volta, objetos que se apresentam como dados a
um sujeito da representação, como uma figuração irresistível e natural. Sendo assim, seu
trabalho não se define como um ato intencional e livre de organização de linhas e cores. Pelo
contrário, a luta contra o clichê deverá ser intensa e, para tanto, cabe esvaziar a tela, destruir
as velhas imagens, torcê-las até que se tornem irreconhecíveis. O pintor varre, deforma e luta
com o campo de possibilidades que, de antemão, já se apresenta virtualmente na tela. O gesto
de criação começa, portanto, com uma questão: como escapar do clichê? Como fazer com que
a Figura surja para além da representação reificada?
Deleuze nos lembra como uma das estratégias maiores da pintura contemporânea é a
deformação da figuração, por exemplo, no uso paródico da Pop art, ou ainda, em sua abolição
completa, como na pintura radicalmente abstrata da Escola de Nova York, através da técnica
conhecida como actionpainting. Tais procedimentos visam escapar do clichê distorcendo-os,
ou negando-os. Bacon, porém, após um primeiro flerte com a fotografia e sua distorção, irá
buscar uma solução mais audaciosa. Para ele, “a maior transformação do clichê não
constituirá um ato de pintura, não produzirá a menor deformação pictural. Seria melhor
aderir aos clichês, convocá-los todos, acumulá-los, multiplicá-los, como dados prépicturais 4”.
É assim que Bacon-Deleuze precisa distinguir entre probabilidades e acaso. A
probabilidade diz respeito “aos dados antes de serem jogados; e o acaso, designa, ao
contrário, um tipo de escolha, não científica e ainda não estética 5”. Em outras palavras, as
probabilidades e os clichês encontram-se de antemão na tela, porém Bacon irá aderir aos
clichês e, a partir de uma astúcia, buscar destruí-los. Para tanto, seu processo de criação irá
fazer uso do acaso.
Primeiramente, Bacon tem uma ideia, ele sabe o que quer pintar. Tal decisão faz com
que a probabilidade se desequilibre, que o campo do possível ganhe um contorno. Porém,
Bacon não sabe como pintar de antemão, não encontra em si mesmo meios autênticos de
escapar do clichê. Aqui, começa a astúcia do pintor, astúcia que se define como uma aposta:
Bacon faz marcas ao acaso (traços-linhas), demarcando o campo de batalha. Tais marcas,
absolutamente aleatórias, irão lhe dar uma chance de escapar do clichê. Uma chance, e não
uma certeza, o que seria o máximo de probabilidade. Pois tais dados pré-picturais não
consistem, em si, no escape do retorno infinito do mesmo. Pelo contrário, trata-se de marcas
que irão se integrar ao ato de pintar, que ao orientar o conjunto visual permite ao artista
“extrair a Figura improvável do conjunto das probabilidades figurativas. 6”Ao fazer a
passagem da probabilidade ao acaso, Bacon abre a obra ao acaso, buscando absorvê-lo dentro
da estrutura figurativa.
Dessa forma, após a demarcação aleatória, tais dados serão
varridos, recobertos, ou amarrotados pelo ato de pintar. Um novo mundo poderá surgir,
1
Mestrando em filosofia PPGFIL/ UFSCar, bolsista CAPES. E-mail: [email protected]
DELEUZE, G. Lógica da sensação, p.91-101; edt. Jorge Zahar
3
Ibid., p.91
4
Ibid., p.96
5
Ibid., p.98
6
Ibid., p.99
2
LINHA MESTRA, N.23, AGO.DEZ.2013
104
VENCER O CLICHÊ A PARTIR DO ACASO: DELEUZE, BACON E CAGE
mundo que pode vir-a-ser através da utilização do acaso, desse campo pré-significativo que é
absorvido na representação. Por isso, não se trata de opor abstração à figuração, acaso e
necessidade. Pois a pintura, em Bacon, terá sempre dois momentos: “há um primeiro,
figurativo, pré-pictural: ele está na tela e na cabeça do pintor, antes que o pintor comece,
clichês e probabilidades.” Mas, há também um segundo momento, aquele em que o pintor
obtém a representação integrando o acaso.Tal integração não será sem consequências: uma
tensão interior ao quadrosurge, algo que continuamente escapa à racionalidade pictural, que
força as cores e as linhas de forma aberrante, que nos leva para longe do clichê, possibilitando
a emergência da Figura. Em última análise, para Deleuze, em Bacon o ato de pintar passa pelo
uso metódico do acaso, de sua assimilação dentro do processo criativo para que a Figura
possa advir, para que a figuração surja para além dos modos reificados de ver e sentir.
De tal descrição extremamente concisa do método de Bacon - descrição a ser
desenvolvida plenamente durante a comunicação - podemos pensar como tal estratégia do uso
do acaso fora utilizada em outra experiência estética marcante do séc.XX, a música de John
Cage. Tal paralelo se justifica pela total oposição entre pintura e música, arte espacial e
temporal respectivamente. Pois mesmo dentro de registros díspares, veremos como uma
mesma ideia pode funcionar como princípio de organização formal da obra. Aqui entramos no
segundo momento a ser desenvolvido em nossa comunicação. Tal momento é definido pelo
objetivo de apresentar a música de Cage como uma tentativa de introduzir o acaso dentro da
forma musical.
Nesse sentido, o projeto estético de Cage pode ser definido como uma crítica à razão
musical ocidental. Tal projeto buscar superar a racionalidade de organização e partilha do som
instituído no ocidente, aquilo que comumente chamamos de sistema tonal. Contra tal forma
de organização do material sonoro, Cage buscará uma música que mimetize a natureza,
chegando a afirmar que “Arte = imitação da natureza em seus modos de operação 7.” Porém,
tal mímesis não se dará como naturalização da forma tonal. Pelo contrário, Cage assumirá um
projeto destrutivo, buscando limpar o espaço da organização sonora de todo e qualquer clichê
historicamente sedimentado, para que só então a experiência do som puro possa acontecer.
Trata-se de pensar o som em si mesmo, sem submetê-lo a uma lógica pré-estabelecida das
relações: “A noção de relação retira a importância do som (...) eu comecei a me interessar
não pelas relações – ainda que visse a interpenetração das coisas – mais creio que elas se
interpenetram de uma maneira mais rica, mais abundante, se não estabeleço relação
alguma. 8”
Para tanto, o processo composicional de Cage não trabalhará com as clássicas distinções
entre ruído e som, silêncio e música, qualidades periféricas e centrais do som, etc. Tudo isso
será abandonado pelo compositor em sua tentativa de superar clichês da organização musical.
Trata-se, ao contrário, de criar condições para que a experiência do som puro possa se dar,
abrir a música ao acaso da relação natural do material sonoro, como uma mímesis não do
som, mas da própria maneira de operação deles na natureza.
Como exemplo, podemos pensar em Imaginary landscapes n. 4. Trata-se de uma peça
para doze rádios aleatoriamente sintonizados. Além disso, Cage utiliza na peça em questão o
I-Ching como método para a definição da estrutura de tempo, duração, dinâmica e sons de
rádios. Desta forma, “os sons entram no espaço-tempo centrados em si mesmos, desimpedido
pelo exercício da abstração, seus 360 graus de circunferência livres para um jogo infinito de
interpenetração 9.” Tal obra, nos revela o uso radical do acaso como princípio a organizar o
processo composicional. Mas, muito além de uma mera abertura completamente acasual,
7
CAGE, J. Composition in retrospect
KONSTELANETZ, Conversations avec John Cage, p.366
9
CAGE, J. Silence, p.50
8
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VENCER O CLICHÊ A PARTIR DO ACASO: DELEUZE, BACON E CAGE
trata-se de criar condições de possibilidade para que o acaso possa emergir, possibilitando
assim que o material sonoro se dê fora de qualquer relação pré-estabelecida.
Dessa forma, nossa comunicação buscará, aprofundando as análises aqui esboçadas,
mostrar como o recurso ao acaso pode ser visto como uma estratégia maior da arte do séc.XX
na tentativa de superação do clichê. Porém, buscaremos mostrar como, se tal princípio é
compartilhado por projetos absolutamente díspares como os de Cage e Bacon, suas
consequências não serão as mesmas: em Bacon, encontraremos uma lógica da sensação
confusa e perturbada, uma pintura marcada pela busca da intensidade; já em Cage, teremos
um “estoicismo musical”, uma estética da indiferença e indeterminação: "Eu peço ao artista
para mudar minha maneira de ver, não minha maneira de sentir. Estou perfeitamente feliz
com minhas sensações. Na verdade, se quisesse acrescentar algo a elas, seria alguma forma
de tranquilidade. Não quero perturbar minhas sensações. Não tenho a intenção de passar o
resto da minha vida sendo jogado para todos os lados por um bando de artistas 10."
Referências
CAGE, Silence, Middletown: Wesleyan University Press, 1996
_________ Composition in Retrospect, Exact Change, 2008
DELEUZE, Gilles. Lógica da sensação, trad. Roberto Machado (coordenação). Rio de
Janeiro, Jorge Zahar, 2007
KOSTELANETZ, Conversations avec John Cage, Paris: Syrte, 2000
SAUVAGNARGUES, Anne, Deleuze et l’art, Paris, Pressesuniversitaire de France, 2006
SAFATLE, Vladimir. Destituição subjetiva e dissolução do eu na obra de John Cage, in In.
Sobre arte e psicanálise/ orgs; Tânia RIVERA e Vladimir SAFATLE – São Paulo: Escuta, 2006.
10
KONSTELANETZ, Conversations avec John Cage, op. cit., p. 240
LINHA MESTRA, N.23, AGO.DEZ.2013
106
HETEROGÊNESE: DO COMEÇO DA FILOSOFIA COMO
ACONTECIMENTO EM GILLES DELEUZE
Caio A. T. Souto 1
No terceiro capítulo de Diferença e repetição, Gilles Deleuze desenvolve o tema da
imagem do pensamento em Filosofia, por meio de postulados que buscaremos retomar como
ponto de partida deste trabalho. Primeiramente, o autor demonstra que o real começo em
Filosofia, somente possível no momento em que todos os pressupostos, objetivos e subjetivos,
fossem eliminados, não foi de fato alcançado pelos filósofos que o intentaram. O princípio
primeiro do Cogito em Descartes, o princípio de não-contradição em Aristóteles (bem como o
de identidade e o do terceiro excluído), a dedução das categorias do entendimento em Kant, o
eu=eu em Fichte, todos repousariam sobre pressupostos os quais deveriam ser eliminados
para que a Filosofia, o pensamento que visa romper com o senso comum de fato pudesse
começar.
Segundo Deleuze, tradicionalmente, uma filosofia se desenvolveria a partir de um
princípio primeiro (o qual não se poderia demonstrar, o que aproximaria Deleuze a
Wittgenstein – ver Bento Prado Jr. em Erro, ilusão, loucura). Porém, embora indemonstrável,
tal princípio deveria ser ou autoevidente (caso de Fichte), ou decorrente de uma dedução quid
juris (caso de Kant), ou de uma irrefutabilidade (caso de Descartes). Em todos os casos,
contudo, a validade deste princípio repousaria em pressupostos do tipo “todo mundo sabe”:
porque ninguém há de negar que duas proposições contraditórias podem ser ambas
sustentadas, deduzo o princípio de não-contradição; porque ninguém pode negar que aquele
que pensa existe, deduzo o princípio do Cogito como primeiro a todos os outros.
Para Deleuze, nos bastidores do pensamento filosófico conceitual havia uma imagem do
pensamento anterior, “pré-filosófica e natural, tirada do elemento puro do senso comum.
Segundo essa imagem, o pensamento está em afinidade com o verdadeiro, possui
formalmente o verdadeiro e quer materialmente o verdadeiro” (2009, p. 192). Contra essa
imagem, Deleuze reivindica um começo em Filosofia que fosse buscado numa violação ao
modo do “todo mundo sabe”. Como disse com razão A. Bouaniche (2004), a ambição de
Deleuze teria sido a de, enquanto filósofo, libertar o pensamento das potências que o
impediriam de se exercer e de ser plenamente criador.
Tal imagem estaria ancorada num princípio que chamou cogitatio natura universalis.
Esse princípio, encontrado explícita ou implicitamente entre os mais diversos filósofos, quer
dizer, simplificadamente, que há uma predisposição ao verdadeiro da qual é dotada
naturalmente a razão. Ancorada nesse princípio que, por sua vez, tem total amparo no senso
comum (pois “todo mundo sabe” ser essa a afinidade natural da razão) a Filosofia se dá como
mera formalização dos elementos desse modo de pensar e se contenta com uma aptidão à
verdade. Eis que tal princípio, para Deleuze, é quem possibilita a imagem do pensamento:
“uma só Imagem em geral, que constitui o pressuposto subjetivo da Filosofia em seu
conjunto” (2009, pp. 192-193). A esse princípio corresponderia um acordo entre as faculdades
do pensar que formariam o Eu do eu penso, a funcionar conjugadas. Deleuze quer fazer da
Filosofia, ao contrário, uma prática isenta de preconceitos e de pressupostos, estranha à doxa
e ao senso comum, que obrigatoriamente deveria se erigir numa luta rigorosa contra uma tal
Imagem.
Ainda segundo Diferença e repetição, haveria um modelo específico a erigir a imagem
do pensamento filosófica, ao qual o autor chamou o “modelo da recognição”. Segundo esse
modelo, as faculdades do pensamento agiriam em total concordância, numa colaboração
1
Doutorando em Filosofia pela UFSCar (bolsista CAPES). E-mail: [email protected]
LINHA MESTRA, N.23, AGO.DEZ.2013
107
HETEROGÊNESE: DO COMEÇO DA FILOSOFIA COMO ACONTECIMENTO EM GILLES DELEUZE
mútua entre elas: “Quer se considere o Teeteto de Platão, as Meditações de Descartes, a
Crítica da razão pura de Kant, é ainda este modelo que reina e que ‘orienta’ a análise
filosófica do que significa pensar” (2009, p. 196). Trata-se, para Deleuze, do mesmo
mecanismo formal de funcionamento da doxa. Para ele, se o objetivo da Filosofia era o de
romper com a doxa, é evidente que, ao servir-se do mesmo mecanismo, fracassaria
irremediavelmente. Deleuze espera da Filosofia uma incursão mais perigosa e menos
despretensiosa. É que, sob o jugo da recognição, ela se subjugaria a uma mera “concordância
das faculdades, fundada no sujeito pensante tido como universal e se exercendo sobre o objeto
qualquer” (ibid, p. 196). Uma vez abduzida por esse modelo, a Filosofia jamais atingiria seu
fito de romper com a doxa, ao contrário, daria uma caução à forma de pensar do senso
comum, elevando-o a um nível racional e puro.
Para Deleuze, em contrapartida, o que força a pensar não é o acordo entre as faculdades,
mas sim um encontro fortuito a golpear a sensibilidade à maneira de um choque: “Há no
mundo alguma coisa que força a pensar. Este algo é o objeto de um encontro fundamental e
não de uma recognição” (2009, p. 203). Tal encontro produz como efeito uma
desestabilização do acordo entre as faculdades, que destrói a forma do senso comum:
“Discórdia das faculdades, cadeia de força e pavio de pólvora, em que cada uma enfrenta seu
limite e só recebe da outra (ou só comunica à outra) uma violência que a coloca em face de
seu elemento, próprio, como de seu disparate ou de seu incomparável” (2009, p. 205).
Percebe-se que Deleuze está preocupado com minar os pressupostos para que enfim
possa o pensamento conceitual (a Filosofia) nascer, agredindo o modo de pensar baseado no
acordo mútuo entre as faculdades do pensar, no senso comum. Trata-se, portanto, do
problema do começo em Filosofia. Esse começo, quando não ancorado em nenhum
pressuposto, não pode ser identificado a um princípio, ao contrário, ele deve acontecer, e isso
de muitos modos diferentes. Quando se elimina todos os pressupostos, o que se resta não é um
princípio primeiro, mas multiplicidades que se colocam simultaneamente: heterogênese.
Percebe-se aqui que para Deleuze tal pensamento não é pacífico ou a apaziguador, mas sim
que ele acontece à maneira de uma irrupção, de uma batalha, o que só pode ser da ordem do
corpóreo. É em seu livro seguinte, Lógica do sentido, que Deleuze passa a explicitar melhor
essa ideia de que a Filosofia é um acontecimento da ordem do corpóreo, tomando essa noção
dos estoicos, que substituíram a dicotomia entre sensível e inteligível por aquela que faz
diferir o corpóreo do incorpóreo, a fim de mostrar que a batalha conceitual é da ordem de um
confronto corpóreo, mas que mantém relações de permeabilidade com o que é incorpóreo.
Pois é na ordem do corpóreo que se produzem as mutações que provocam os acontecimentos,
estes últimos da ordem do incorpóreo, donde se faz erigir a Filosofia: “O conceito é um
incorporal, embora se encarne ou se efetue nos corpos” (2007, p. 33).
Essa relação entre o corpóreo e o incorpóreo irá acompanhar o pensamento de Deleuze
até suas últimas obras. Em Mil Platôs, por exemplo, obra compartida com F. Guattari, os
autores abordarão a relação entre o que chamará as “máquinas abstratas” e o “concreto” (as
“regras concretas”), insistindo sobre a interação que um pode efetuar sobre o outro (já que só
há um único plano em que se efetuam), sem que ambos os polos nunca percam a sua
irredutibilidade (trata-se de uma relação de “pressuposição recíproca”, dirão os autores). Ora,
tendo ainda em vista essa noção de Filosofia como acontecimento da ordem do incorpóreo
que se relaciona, desde sua origem, com o concreto, no momento em que elimina todos os
pressupostos objetivos e subjetivos do pensamento e acontece de maneira múltipla (eventual,
casuística), Deleuze e Guattari, em O que é a filosofia?, podem falar de uma filosofia que, por
não assentar-se em nenhum princípio regulador fundamental, não se desenvolve à maneira
discursiva, encadeando proposições. Ao contrário, os conceitos que compõem uma filosofia
operam como campos de vibração, e não como uma cadeia.
LINHA MESTRA, N.23, AGO.DEZ.2013
108
HETEROGÊNESE: DO COMEÇO DA FILOSOFIA COMO ACONTECIMENTO EM GILLES DELEUZE
Tal concepção múltipla da Filosofia só pode admitir um começo que seja já múltiplo. E
enquanto multiplicidades, nenhum começo pode ser admitido como o único, devendo sempre
se recomeçar. Por isso, todo conceito é já uma heterogênese, é já, portanto, um começo, um
acontecimento: “Um conceito é uma heterogênese, isto é, uma ordenação de seus
componentes por zonas de vizinhanças” (2007, p. 32). Tais zonas são o que está em relação
direta com os conceitos, aquilo que marca suas fronteiras. Como cada conceito é uma
heterogênese, uma autoposição, que deve sempre ser recomeçada e que nunca se estatiza,
sempre deve ser levada ao infinito e sempre está em devir, entende-se porque não se pode
nunca reduzir os conceitos a um único princípio regulador a partir do qual tudo pudesse
solenemente começar.
Se a filosofia procura e deve justamente romper com senso comum que pressupõe um
acordo das faculdades do pensar direcionado para a Verdade, ela também deve buscar seu
começo, o “ponto zero da energia do pensamento”, não num único princípio regulador, já de
antemão comprometido com o pensamento da doxa. Devendo, ao contrário, se dar numa
espécie de heterogênese, a Filosofia enfim se efetuaria como acontecimento, um incorpóreo
que se encarna nos corpos e que pode enfim produzir uma agressão ao modo de pensar do
senso comum.
Referências
DELEUZE, G. Diferença e repetição. Trad. R. Machado e L. Orlandi. Rio de Janeiro: Graal,
2009.
______. Lógica do sentido. Trad. Luiz Roberto Salinas Fortes. São Paulo: Perspectiva, 1975.
DELEUZE, G; GUATTARI, F. O que é a filosofia?. Trad. Bento Prado Jr. E Alberto Alonso
Muñoz. São Paulo: Editora 34, 2007.
LINHA MESTRA, N.23, AGO.DEZ.2013
109
SESSÃO 6 – OFICINA, EXPOSIÇÃO, SITUAÇÃO: TERRITÓRIOS (E
FUGAS) EDUCATIVOS DA CIDADE NAS IMAGENS
A ARTE EM DEVIR E OUTROS DEVIRES PARA A ESPACIALIDADE
Suianni Macedo 1
No texto do catálogo da 30º Bienal de Arte de São Paulo, o curador Luis Pérez- Oramas
formulava a incomoda questão: “[se] não seria, pois, pertinente, perguntar-se, precisamente:
de que é possível falar? O que é, e quando, e onde, o dizível hoje em arte? E por que não
concluir, também, com Wittgenstein, afirmando que, sobre o que não podemos falar, seria
melhor calar?” (PÉREZ-ORAMAS, 2012:30). A conclusão do curador, assim como a nossa, é
de que a arte assumiu a possibilidade de falar de tudo. A referência a Wittgenstein não é,
contudo, simples aparato ilustrativo ou de erudição. A delimitação de que sobre o que não
podemos falar é melhor calar é, em Wittgenstein, uma determinação das condições de
possibilidade do conhecimento e da composição das fronteiras do território do pensar2
(WITTGENSTEIN, 1968: 53). Logo, perguntar acerca dos limites da arte é também pensar as
fronteiras deste território criativo.
Assumiremos, então, nesta comunicação, o desafio de uma reflexão sobre os limites do
território da criação artística 3. Cabe ressaltar que empreenderemos nossa trajetória através das
artes plásticas, e a fim de circunscrever estas proposições, que de outro modo seriam
demasiado amplas, elegemos como estudo de caso a re lação das artes plásticas com o
conceito de espacialidade. Deste modo, ao considerarmos as imagens na sua relação com o
espaço pretendemos refletir acerca das peculiaridades das primeiras e as intervenções que
estas podem provocar no entendimento da segunda. Para iniciarmos nosso percurso devemos,
portanto, considerar dois limites tradicionais deste território: o da representação e o da
significação. Estes dois aspectos funcionam como conceitos complementares, pois pensar que
uma obra de arte representa o mundo visível é também permitir que esta cumpra um papel
mediador entre o artista e o espectador.
O fio que conduz a formulação da arte como representação pode ser retomado deste a
filosofia grega, nas obras filosóficas de Platão e Aristóteles, e chegam as correntes humanistas
através da releitura de tratadistas como Alberti. Deste modo configurada, a arte pode ser
igualmente considerada sob a ótica da significação, pois ao representar o mundo esta se
coloca na posição de mediadora, como signo e, portanto, cabe ao espectador a tarefa de
decodificação da significação da obra de arte. Nesse sentido a obra do historiador da arte
Erwin Panofsky é emblemática; intitulada Significado nas artes visuais, nela o autor busca
estabelecer um método de investigação para a compreensão das obras de arte. (PANOFSKY,
1991). Dentro de um território assim configurado, a imagem geográfica assume um valor de
verdade, ou seja, a representação verdadeira da realidade.
Nesta configuração o que é dizível pela arte é apenas a verdadeira realidade. E usamos o
advérbio apenas, pois, deste modo, a vida configura-se a partir de um único sentido de
verdade. Além disso, como expressão da verdadeira realidade o dizível em arte é limitado,
pois enquanto objeto de uma vontade de criação é sempre duvidosa sua relação com a
1
Doutoranda em Educação no Laboratorio de estudos Audiovisuais (OLHO) da Faculdade de Educação da
UNICAMP, Campinas, São Paulo. E-mail: [email protected].
2
No prefácio Wittgenstein afirma que “poder-se-ia apanhar todo o sentido do livro com estas palavras: em geral
o que pode ser dito, o pode ser claramente, mas o que não se pode falar deve-se calar”.
3
Esta reflexão preliminar é parte da pesquisa de doutorado em andamento na Unicamp intitulada São Paulo:
Cidade trans-figurada, sob a orientação do professor Dr. Wencesláo Machado Oliveira Jr. Esta pesquisa
encontra-se no escopo do Projeto Imagens, Geografias e Educação (CNPq 477376/2011-8).]
LINHA MESTRA, N.23, AGO.DEZ.2013
110
A ARTE EM DEVIR E OUTROS DEVIRES PARA A ESPACIALIDADE
realidade e muitas vezes a realidade é tida como inimaginável, ou seja, impossível de ser
representada.
O impasse que a realidade impõe a arte é oriundo do pensamento de que a arte existe em
função de algo que lhe é exterior. Se seguirmos o percurso proposto por Giles Deleuze e Felix
Guattari quando afirmam que “as figuras estéticas (e o estilo que as cria) não têm nada a ver
com a retórica. São sensações: perceptos e afectos, paisagens e rostos, visões e devires”
(DELEUZE; GUATTARI, 1992: 229) podemos deslocar as fronteiras da arte para outros
territórios nos quais a imagem não esteja submetida ao discurso, mas sim à fabulação
criadora. Tal fabulação faz da arte algo que vem a ser puro devir de outras visualidades e
outras sensibilidades ainda desconhecidas. A arte não é enquadrada, deste modo, em um
campo ou território delimitado; a arte “torna-se” fugas possíveis, abandona a significação e se
fixa no plano do sentido onde existe em si mesma: dentro do mundo, mas apontando outras
possibilidades de ser-mundo do mundo. As afirmações de Deleuze e Guattari de que “As
sensações, perceptos e afecctos, são seres que valem por si mesmos e excedem qualquer
vivido. [...] A obra de arte é um ser de sensação, e nada mais: ela existe em si” (DELEUZE;
GUATTARI, 1992: 213) fazem com que a arte possa de tudo falar: esta, enquanto puro devir,
está além de todo saber, pois ela é capaz de vislumbrar tantos outros mundos possíveis ainda
desconhecidos. É, deste modo, que a arte resiste.
O que Deleuze e Guattari apresentam é que as obras de arte são uma realidade que
intervém na prática de uma sociedade. Assim, investigar uma obra é pensar como esta
funciona, por qual engrenagem se relaciona com um dado contexto, desmontar seu
mecanismo teórico que nos leva a sua atuação no real. Para os filósofos é nesta desmontagem
que transparece o aspecto político de uma obra, pois o político não se apresenta apenas no
formato de arte engajada, mas no próprio modo da obra estar no mundo, na abertura que esta é
capaz de produzir. Como sintetiza Paulo Oneto: “Resistimos porque “devimos”, porque
queremos ultrapassar a nós mesmos. A resistência é primeiramente em (no devir), e só
secundariamente a.”(ONETO, 2007: 202). Passamos do teórico ao prático no momento em
que a obra de arte é capaz de criar linhas de fuga dentro do real, de agir como minoria. “Tout
le monde, sous un aspect ou un autre, est pris dans un devenir minoritaire qui l’entraînerait
dans des voies inconnues s’il se décidait à le suivre.” 4 (DELEUZE; GUATTARI, 1975: 30).
A obra de arte expressa para além da sua visualidade aberturas nos sentidos préestabelecidos do mundo ao constituir o real atravessado pela imaginação. Essa resistência da
arte, a que Oneto nomeou de “políticas impossíveis” (ONETO, op. cit: 198), tornam possíveis
outras espacialidades, pois “o devir sensível é o ato pelo qual algo ou alguém não para de
devir-outro (continuando a ser o que é)” (DELEUZE; GUATTARI, 1992: 229). Assim, o
recurso de Feco Hamburger (fig 1 e 2) de projetar seu vídeo num bolha plana de sabão faz
com que a imagem-movimento, vista a partir da janela do metrô paulistano, mova-se também
na forma multicor da bolha, criando outras possibilidades para aquilo que entendemos como
espaço. No vídeo-experimento de Hamburger, dobras de sentidos se aplicam ao espaço
habitual da cidade de São Paulo: a cidade transita pela janela, passa rapidamente interceptada
pela figura que viaja à janela, ou ainda, na bolha plana de sabão vemos a mesma imagem
distorcida pelas cores e movimentos da superfície. É precisamente por “transbordar a força
daqueles que são atravessados” (DELEUZE; GUATTARI, 1992: 213) que a cidade é
desfigurada, mas não a-figurada. Para ser a- figurada deveria nada dizer sobre a cidade, ao ser
des-figurada apenas expressa a recusa de ser mera figura, de ser simples representação de algo
já concebido. A imagem des-figurada é a arte que toma para si a tarefa de dizer e dar sentido a
este espaço que é São Paulo.
4
Todo mundo, sob um aspecto ou outro, é tomado em um devir minoritário que o levaria por vias desconhecidas
se ele se decidisse a segui-lo. [tradução nossa].
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111
A ARTE EM DEVIR E OUTROS DEVIRES PARA A ESPACIALIDADE
É também a imagem que nos move a pensar o próprio ato de ver, pois ao desfigurar o
real espacial como até aqui é pensado desvela que existem outras espacialidades, bem como a
persistência de vários modos de ver. Assim, ver constitui-se enquanto ato, ação que configura
e reconfigura nossa percepção da realidade. Em última instância ver é um ato ao mesmo
tempo estético e político.
Perceber o espaço como interação no interior das imagens, é também conceber que as
imagens podem nos apontar novas formas de espacialidade, mas, ao mesmo tempo, revelar
que no espaço interativo onde a cultura, a política e a estética estão imbricadas, não há apenas
uma interpretação determinada. Pensar as imagens não é propor um único caminho possível,
mas sim propor um conceito de educação estética no qual é o ato de ver que é pensado e não o
objeto visto. Importante ressaltar, que a educação estética oriunda deste processo é em si
mesma a abertura de sentidos gestada numa vontade criativa. A partir desta educação estética
todo o visível passa a ser elemento do pensável, e o espaço aí constituído passível de fazer
parte do real tanto quanto as imagens do espaço difundidas através das formas tradicionais de
construção do conhecimento geográfico. Podemos afirmar com Didi-Huberman que “pour
savoir il faut s’imaginer” 5 (DIDI-HUBERMAN, 2003:11).
Fig 1 e 2. HAMBUGER, Feco. Ensaio fotográfico e vídeo instalação Neutrino. Col. Itaú Cultural.
Referências
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Kafka: pour une littérature mineure. Paris: Les
Éditions de Minuit, 1975.
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O que é a filosofia? Trad. Bento Prado Jr. e
Alberto Alonso Muñoz. Rio de Janeiro: Editora 34, 1992.
DIDI-HUBERMAN, Georges. Images malgré tout. Paris: Les Éditions de Minuit, 2003.
ONETO, Paulo Domenech. A que e como resistimos: Deleuze e as artes. In: LINS, Daniel
(org). Nietzsche e Deleuze: arte e resistência. Fortaleza: Forense Universitária, 2007.
PANOFSKY, Erwin. Significado nas artes visuais. São Paulo: Perspectiva, 1991.
PÉREZ-ORAMAS, Luis. Catálogo da 30º Bienal de São Paulo: A iminência das poéticas.
São Paulo: Bienal de São Paulo, 2012.
5
Para saber, é preciso se imaginar.
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112
A ARTE EM DEVIR E OUTROS DEVIRES PARA A ESPACIALIDADE
WITTGENSTEIN, Ludwig. Tractatus Logico-Philosophicus. São Paulo: Companhia
Editora Nacional, 1968.
Site consultado:
http://fecohamburger.com.br/pesquisa.php?id=5 em 16 de junho de 2013.
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113
OS SITUACIONISTAS: OUTROS SENTIDOS, NUM DEVIR ERRANTE
Renata Lanza 1
Caio Gusmão Ferrer de Almeida 2
Neste trabalho, apresentamos um estudo sobre outras possibilidades da cartografia e das
imagens para deslocar as dimensões comunicativa e informativa rotineiramente vinculadas e
apresentadas no âmbito escolar.
A partir dos conceitos da Internacional Situacionista e suas proposições, principalmente
no que diz respeito à construção de situações e participação ativa dos “espectadores”,
possibilitar novas vivências e um novo olhar. Com esse objetivo, realizamos o vídeo Deriva-S
criado a partir de uma atividade escolar com alunos do 6º ano em uma escola municipal na
cidade de Campinas.
Nessa atividade, os alunos caminharam num parque com mapas diferentes do local onde
estavam e os mesmos gravavam vídeos desses percursos. Nesta experimentação editamos as
imagens captadas pelos alunos, com cenas que possibilitassem exercitar novos modos de
fruição e pensamento. Sendo assim, na edição do vídeo, os elementos narrativos, de
representação, de documentação que são utilizados rotineiramente foram deformados,
rasurados, deslocados e desconstruídos.
Nesse processo, desorientamos quem assiste, para outras dimensões e/ou situações. No
vídeo, desvios e derivas ocorrem em movimento constante, com fragmentos e repetições,
fazendo com que o vídeo combine-se com arranjos inesperados, para logo em seguida
repensar e questionar estes arranjos, redefinindo-os em novas experiências e configurações.
É formado a partir da experiência desse terreno e a partir das construções
existentes. Deve tanto explorar os cenário atuais, pela afirmação de um
espaço [...] lúdico tal como a deriva o reconhece, quanto construir outros,
totalmente inéditos (JACQUES apud I.S., 2003, p. 15).
A deriva que abordamos tanto na prática educativa como na relação vídeográfica seria
uma apologia para a experiência da cidade, da geografia e do vídeo (da imagem), que poderia
ser praticada por qualquer um. Desconstruindo algumas estruturas e noções de espetáculo, que
distanciam a vivência e a prática das pessoas no espaço pelo vídeo. No qual rotineiramente o
vídeo ou a cartografia é empregado como comunicação ou informação sobre o local ou uma
experiência, de forma a documentar e explicar aquilo que se vê deixando a imagem ou a
vivência a um momento nulo.
Estas experiências e modos de percepção ou a própria deriva que aponta para a
“construção de situações, isto é, a construção concreta de ambiências momentâneas da vida, e
sua transformação em uma qualidade passional superior [...] e os comportamentos que ele
provoca e que alteram” (DEBORD, I.S., 2003, p. 54), que estaria ligada a experiência ou a
prática geográfica e cartográfica, relacionada com acontecimentos de vida com corpo,
pensamento e mundo com existência pela e nas imagens.
Mapeamento, sobre: fragmentos
Mapeamos um espaço movediço do vídeo que conversa com a deriva. Adentramos
numa obra movimentada e um tanto abstrata com expressão e postulação, de uma experiência.
1
2
Doutorando da Faculdade de Educação da Unicamp. Grupo de Pesquisa: Laboratório Audiovisual OLHO
Graduando da Faculdade de Tecnologia. Grupo de Pesquisa: Laboratório Audiovisual OLHO
LINHA MESTRA, N.23, AGO.DEZ.2013
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OS SITUACIONISTAS: OUTROS SENTIDOS, NUM DEVIR ERRANTE
Traçando um mapa rizomático, entre as imagens e sons dos alunos como Deleuze aponta na
obra de Kafka, “elementos múltiplos, que possuem uma relação rizomática” (Deleuze,
2003, p. 15). E “as tentativas para interpretar [...] que, de facto, só propõe a experimentação”
(DELEUZE, 2003, p. 19), obras fragmentadas e inacabadas. Elementos que dialogam com a
desconstrução da cartografia e do vídeo, seus múltiplos mapeamentos.
Des:construção de cartografias
Cartografias situacionistas:
...mapeiam esse universo como não sendo de ordem única. Por outro lado, as
cartografias situacionistas buscam desorientar, desfamiliarizar, provocar uma
visão por um ângulo inusitado. Por outro lado, e mais significativo para o
argumento aqui, buscam expor incoerências e fragmentações de próprio
espacial (MASSEY, 2009, p. 162).
Estes mapeamentos e fragmentos dialogam com proposições desconstrutivas dos
situacionistas e das extremidades do vídeo, “essas experiências introduzem a ideia de
estranhamento, de desautomatização e do não-familiar” (MELLO, 2008, p. 132). Atuando
como fissuras para formas habituais, como na cartografia situacionista, como o vídeo DerivaS. O vídeo entra neste estado de deriva e mapeia o universo não sendo de uma ordem única,
funcionando e traçando um mapa rizomático, entre as imagens e sons dos alunos. No vídeo
estes recortes e fragmentos da linguagem audiovisual excedem as possibilidades e apontam o
poder de dialogar com a educação, o vídeo e a geografia dentro de si mesmos.
A partir dos vídeos dos alunos tínhamos um roteiro provisório que se contaminou
com experiências desconstrutivas do vídeo, que “tem interesse em ampliar as potencialidades
discursivas do próprio meio.” (MELLO, 2008, p.116) em propostas enunciativas. Criamos um
roteiro flutuante sobre o percurso e o percorrido. Não queremos saber se quem garantiu o
deslocamento ou a identificação para os alunos foi o local ou o mapa, queremos traçar linhas
deste movimento pelas imagens e sons, “de um mapa a outro, não se trata de busca de
origem, mas de uma avaliação dos deslocamentos. Cada mapa é uma redistribuição de
impasses e aberturas” (DELEUZE, 1997, p. 75). As imagens dos alunos apontam para “o que
fazem ou tentam fazer: exploram os meios, por trajetos dinâmicos, e traçar o mapa
correspondente” (DELEUZE, 1997, p.73). E como a deriva, traça a cidade formas de
corresponder-se e de “ampliar a parte não medíocre da vida, de diminuir-lhe ao máximo os
momentos nulos” (JACQUES apud DEBORD, 2003, p. 56).
Os trajetos e todo o aparato técnico são confundidos com o próprio meio, pois um
reflete no outro. “confunde-se com seu objeto quando o próprio objeto é movimento”
(DELEUZE, 1997, p. 73). No vídeo notamos que os objetos, sejam eles o trajeto, o mapa e os
alunos, tudo torna-se movimento, imagem. Aqui as imagens deixam de ser representativas,
constroem ambiências que tendem para os extremos ou limites. No vídeo Deriva-S temos um
processo criativo onde imagem, som e palavra conectar-se entre si. Vamos para os limites que
provocam desvios e ruídos, numa intensificação, nas imagens que delirando são destituídas de
seus significados.
A montagem do vídeo e a disposição das imagens nos mostra que estamos diante de um
tipo diferente de vídeo que não se apresenta com uma forma clássica, narrativa e documental.
A primeira cena tem efeito de colocar-nos em alerta para nos confundir ou enganar. É como
algo estranho, as imagens provocam zonas de variações,o universo é como uma trama de
relações em movimento, as imagens combinam-se em arranjos inesperados, para logo em
seguida repensar e questionar estes arranjos. As imagens cambiam num devir, por entre
intensidades imagéticas e sonoras, onde há uma abertura pela imagem na imagem.
LINHA MESTRA, N.23, AGO.DEZ.2013
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OS SITUACIONISTAS: OUTROS SENTIDOS, NUM DEVIR ERRANTE
Dependendo de quem assiste é decepcionante, pois se espera um esclarecimento, mas, o vídeo
nos leva além de um enredo, nota-se que as intensidades arrastam o vídeo para fora de seus
“sulcos costumeiros, leva-nos a delirar” (DELEUZE,1997, p. 9). A linguagem é arrastada, e
as imagens provocam derivas, nos buracos e bifurcações constantes. Apontam as
incoerências e fragmentações. Como caminhar errante por uma cidade. Quem assiste perde
todas as suas referências.
Recortes de uma experiência como um processo, como proposição e diálogos sobre os
“mapas como representação de uma estrutura essencial. A representação ordenadora”
(MASSEY, 2009, p.159). São estas questões que nos mobilizam para pensar a linguagem
e como ela pode tecer outras formas, são impasses, inquietudes que provocam fissuras. Este
recorte ou fissura “não é nada que compromete o corpo, mas ela não cessa menos de se e de
valer quando confunde sua linha com a outra linha” (DELEUZE, 2007, p. 164). Os recortes
dos trajetos ou são entradas novas para as imagens ou ainda para o mapa, a imagem e o vídeo,
como “um mapeamento (e um espaço) que deixa aberturas para o novo” (MASSEY, 2009, p.
163). Os trajetos aqui são estes recortes e suas combinações, são as imagens apresentadas no
vídeo Deriva-S. Estas imagens e recortes de percepções, como um mapa do rizoma, têm
trajetos que fazem “do imaginário um devir” (DELEUZE, 1997, p. 77). Este mapeamento
pelo vídeo é que possibilita fissura numa forma rotineiramente empregada de representação
seja ela no mapa, na imagem ordenada e que informa sobre algo ou alguém.
Quem assiste ao vídeo espera formas que irão informar a experiência educativa dos
alunos com aos mapas. Mas os alunos como o expectador, já estão num processo de deriva, de
forma lúdica entram nestas imagens e nos mapas, que se repetem, destes sons que falam e
desconstroem a narrativa, “estes devires que encadeiam-se uns aos outros segundo uma
linguagem particular [...], ou então coexistem em todos os níveis, segundo portas, limiares e
zonas que compõem o universo inteiro” (DELEUZE, 1997, p. 11). O vídeo não espera
encontrar uma forma (identificação, localização, sentido), mas encontrar zonas de
vizinhança com condições de criar outras formas de dizer e experimentar a linguagem e a
imagem, com o que somente ela torna possível. Esta "própria concepção de fusão da arte com
a vida aponta para a dissolução das esferas estéticas nas atividades cotidianas" (MENEZES
apud MELLO, 2008, P. 117).
DESVIO: Sentidos & RUÍDO. Soluços
Apontamentos sobre a desautomatização dos sentidos e integrar outras linguagens,
apostando em experimentações sensórias com noções de contaminação e impureza das
formas. São algumas proposições para fazer o gaguejar, murmurar e soluços da linguagem
audiovisual e sonora. Através do contato com experiências com eletroacústica e música
concreta, como o som e a trilha sonora, as falas podem ter uma caráter de “indicação que
deixa o leitor o cuidado de efetuar” (DELEUZE, 1997, p. 122) são propostas do vídeo DerivaS com os sons captados pelos áudios das câmeras, como trabalhar o som e retirar seu caráter
de enredar o sentido das imagens. E como apontar para a língua da criança, dos alunos afoitos
por descobrir um lugar, por explorar topografias e orientações sem sentido. No vídeo o som,
as falas percorrem uma zona de variação compreendida num movimento particular,
articulando e desarticulando. Estes estilos de música concreta que inclui junção de partes ou
fragmentos sonoros são algumas apostas do vídeo de potencializar “outro tipo de imaginário,
não mais calcado na pureza digital” (MELLO, 2008 p. 125) momentos de experiência
desviante, com formas híbridas impostas num âmbito digital.
No vídeo são muitos momentos que percebemos estes ruídos, alguns exagerados como
no caso de um samplear (algum trecho ou fragmento obtido de algo maior) como o ruído de
um aluno que se repete ao longo do vídeo ou o diálogo sobre a experiência de andar com um
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OS SITUACIONISTAS: OUTROS SENTIDOS, NUM DEVIR ERRANTE
mapa diverso do local que estávamos. Nesse diálogo, a fala “representante da língua maior”
(DELEUZE,1997,p.125) atinge uma verdade documental, mas editamos esta fala com
repetições e sons inaudíveis, e essa repetição revoga o caráter de memorização, desmente o
que foi falado, para deixar de ser informativo.
O que fazemos é “inventar um uso menor da língua maior na qual se expressam
inteiramente” (DELEUZE, 1997, p. 124) minoramos a língua, como Deleuze aponta em seus
diálogos com obras literárias que criam outras línguas. “Como na música, onde o modo menor
designa combinações dinâmicas em perpetuo desequilíbrio” (DELEUZE, 997, p. 124).
Sendo assim, o vídeo possibilita desviar o olhar, com sobreposição de mapas, com
palavras e textos rápidos. Este procedimento de estranhamento e de tensão, buscam
apresentar como Lucas Bambozzi “o processo criativo [...] entre aquilo que metaforicamente
podemos articular como defeitos” (MELLO, 2008, p. 129) para transcender os sentidos e
reinventar uma lógica poética e visual.
D:erivando
Ao derivar as experimentações, as imagens, à cartografia escolar e as conexões estáveis
e habituais com outros sentidos o vídeo adquire outros universos de sentidos e pensamentos e
sensações, as margens da cartografia e extremidades se contaminam com música, arte e
literatura, realizando aproximações múltiplas e rizomáticas, quem assiste o vídeo é suscitado a
todo momento a pensar estas variações e se conectar aquilo de outra forma, causando
estranhamentos. O vídeo arrasta a cartografia para outros territórios mais experimentais
e ativos, derivas audiovisuais com os sentidos e sensações, que oscilam entre imagem e
imaginações, variam causando novos pensamentos, propondo situações para a cidade
relacionada com acontecimentos de vida com o corpo, pensamento e mundo com existência
pelas e nas imagens.
Fig 1,2,3 e 4. Ensaio fotográfico e vídeo Deriva-S.
LINHA MESTRA, N.23, AGO.DEZ.2013
117
OS SITUACIONISTAS: OUTROS SENTIDOS, NUM DEVIR ERRANTE
Referências
DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Kafka – Por uma literatura menor. Lisboa: Assírio &
Alvim, 2003.
DELEUZE, Gilles. Crítica e Clínica / Gilles Deleuze; tradução de Peter Pàl Pelbart. –
São Paulo: Ed. 34, 1997.
DELEUZE, Gilles. Diferença e repetição; tradução Luiz Orlandi, Roberto Machado. 2º Ed.
Rio de Janeiro: Graal, 1998.
DELEUZE, Gilles. O que é a filosofia? Tradução de Margarida Barahona e António
Guerreiro. Lisboa: Editoral Presença, 1992.
GODOY, Ana. A menor das ecologias. São Paulo: Ed. da Universidade de São Paulo,
2008.
JACQUES, Paola Berenstein. Apologia da deriva: escritos situacionistas sobre a cidade
/ Internacional Situacionista / Tradução Estela dos Santos Abreu. – Rio de Janeiro: Casa da
Palavra, 2003.
OLIVEIRA JR, Wenceslao Machado de. Dossiê – A educação pelas imagens e suas
geografias. ProPosições, vol.20, no. 3 Campinas set./dez. 2009.
OLIVEIRA JR, Wenceslao Machado de. Mapas em deriva: imaginação e cartografia
escolar. Revista Geografares, nº12, pg. 01-49, julho, 2012.
ORLANDI, Luiz B. L. Deleuze – entre caos e pensamento. Conexões: Deleuze e
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MACHADO, Arlindo. Pré-cinemas e pós Cinema. Campinas: Ed. Papirus, 1997. MASSEY,
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MELLO, Christine. Extremidades do vídeo / Christine Mello. São Paulo: Ed. Senac São
Paulo, 2008.
LINHA MESTRA, N.23, AGO.DEZ.2013
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PLANO DE EXPERIMENTAÇÃO: OFICINA DE DESACOSTUMAR OS
OLHOS SOBRE O LUGAR
Cristiano Barbosa 1
Eduardo de Oliveira Belleza 2
Na filosofia de Deleuze e Guattari (2010) o plano é um recorte sobre o caos. Traçamos
um plano quando queremos dar consistência a um conjunto de fluxos para enfrentar um
problema que nos mobiliza. O plano é, portanto, o solo movediço onde se dão os
acontecimentos, ele imprimi um pouco de ordem ao caos, necessário a arregimentar os
fluxos/forças. Deleuze ao pensar o plano aponta três tipos, para três possibilidades de
enfrentar o caos: o plano de referência, o plano de composição e o plano de imanência, neste
último a consistência dos fluxos se efetua na criação de conceitos. “... conceitos são
velocidades infinitas de movimentos finitos, que percorrem cada vez somente seus próprios
componentes.” (DELEUZE; GUATTARI, 2010, p.45)
Os conceitos são o arquipélago ou a ossatura, antes uma coluna vertebral que
um crânio, enquanto o plano é a respiração que banha essas tribos isoladas.
Os conceitos são superfícies ou volumes absolutos, disformes e
fragmentários, enquanto o plano é o absoluto ilimitado, informe, nem
superfície nem volume, mas sempre fractal. Os conceitos são agenciamentos
concretos como configurações de uma máquina, mas o plano é a máquina
abstrata cujos agenciamentos são as peças. Os conceitos são acontecimentos,
mas o plano é o horizonte dos acontecimentos, o reservatório ou a reserva de
acontecimentos puramente conceituais: não o horizonte relativo que
funciona como um limite, muda com o observador e engloba estados de
coisas observáveis, mas o horizonte absoluto, independente de todo
observador, e que torna o acontecimento como conceito independente de um
estado de coisas visível em que ele se efetuaria. (DELEUZE;GUATTARI,
2010, p. 46).
Em outros momentos de sua obra o autor irá pensa a partir de outros planos, é o caso,
por exemplo, do plano de referência onde são criadas funções científicas. Neste caso a
principal diferença se dá no modo como o plano lida com o caos. “A ciência tem uma maneira
muito diferente de abordar o caos, quase inversa: ela renuncia ao infinito, à velocidade
infinita, para ganhar uma referência capaz de atualizar o virtual.” (DELEUZE; GUATTARI,
2010, p. 140). Ela age por limite, por desaceleração, ao contrário do plano de imanência que
busca também um limite, mas sem perder o fluxo das velocidades infinitas, aliás, este seria o
grande problema da filosofia, dar consistência aos fluxos, mas sem perder o caos.
Há na ciência tanta criação quanto na filosofia, as funções assim como os conceitos não
são pré-determinados, há muita experimentação como experiência do pensamento. Outro
plano, ainda pensado pelo autor, é o plano de composição, plano da arte onde se criam,
sobretudo, blocos de sensações, conjuntos de perceptos e afectos. Aqui, a arte também quer
enfrentar o caos, porém de modo distinto ela traça um plano para criar um finito (composições
estéticas através da matéria: pintura, monumento, etc.) que restitua o infinito, que dure
independente da matéria que a exprime e do expectador que ela atinge.
1
Doutorando da Faculdade de Educação da Unicamp. Grupo de pesquisa OLHO - Laboratório de Estudos
Audiovisuais.
2
Mestrando da Faculdade de Educação da Unicamp. Grupo de pesquisa OLHO - Laboratório de Estudos
Audiovisuais.
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PLANO DE EXPERIMENTAÇÃO: OFICINA DE DESACOSTUMAR OS OLHOS SOBRE O LUGAR
As sensações, perceptos e afectos, são seres que valem por si mesmos e
excedem qualquer vivido. Existem na ausência do homem, podemos dizer,
porque o homem, tal como ele é fixado na pedra, sobre a tela ou ao longo
das palavras, é ele próprio um composto de perceptos e afectos. A obra de
arte é um ser de sensação, e nada mais: ela existe em si. (DELEUZE;
GUATTARI, 2010, p. 194).
Apresentamos, brevemente, três grandes formas do pensamento teorizadas na obra de
Gilles Deleuze e Félix Guattari (2010) para convocar o leitor à proposição que nos embala: a
oficina como um plano de experimentação. De imediato comunicamos que nossa preocupação
não é buscar compreender se o que se produz no plano de experimentação são conceitos,
funções ou blocos de sensações. Nossa questão é anterior, e diz respeito a observar os fluxos
de forças, no plano, que agenciam conexões acerca dos usos das imagens e das possibilidades
de pensar o espaço intensivo do bairro. Entendemos que os vídeos criados na oficina podem
servir para tantas outras questões possíveis, são abertos, têm esta marca, e, seria precipitado
de nossa parte caracterizá- los, antes, o que apontamos é que, neles, há um movimento
contínuo de desterritorialização e reterritorialização, e, observá-los nos ajuda, neste momento,
a conversar tanto com o processo criativo das imagens quanto com as próprias conexões
espaciais que emergem das obras. O problema que nos força diz respeito a uma determinada
educação do olho que nos vincula a buscar na imagem uma representação do espaço que
funcione como prova verídica expressa na linguagem.
E o que experimentamos? De modo mais direto, criações em vídeo que agenciem
outros modos de ver/sentir/pensar tanto o espaço (ao tomarmos um bairro como palco de
nossas experimentações) quanto à própria linguagem audiovisual em suas mutações na
relação com outras linguagens – por exemplo, com a poesia escrita. A experimentação é nossa
principal aposta educativa, encontramos na oficina um solo fértil para tal – talvez por
estarmos liberados da obrigação do ensinar -, caminhamos sem um rumo pré-estabelecido,
carregamos em nossa bagagem muito mais dúvidas do que certezas, transitamos em saberes
que não são ensinados, mas que acontecem, em frágeis fugas produzidas dos encontros com a
câmera, ao acaso dos corpos, em um bairro contornado pelo desfocar da imagem, assim,
buscamos um conhecer com vontade (CORRÊA, 2006). Desse modo, três grandes
ingredientes de experimentação fluem sobre o pensamento: a contaminação entre linguagens
(audiovisual e poesia), os espaços(agenciados em vídeo), as educações (aprendizagens
despertadas na experimentação).
Poesia Intercessora Vídeos
Tomamos a poesia de Manoel Barros como intercessora de exercícios audiovisuais
com jovens, estimulando-os a lidar com o espaço do bairro – na relação com
elementos/forças - para composição de seus vídeos. “Poesia não é pra compreender,
poesia é pra incorporar” (BARROS, 2008). Experimentamos incorporar forças do lugar –
em caminhadas, com a câmera na mão, e trechos de poesia anotados em pedaços de papel
-, tentando livrar nossas imagens da condição de unicamente explicar, apostando nas
sensações que por elas são despertadas.
O essencial são os intercessores. A criação são os intercessores. Sem eles
não há obra. Podem ser pessoas – para um filósofo, artistas ou cientistas;
para um cientistas, filósofos ou artistas – mas também coisas, palavras, até
animais, como em Castañeda. (DELEUZE, 2008, p. 156).
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PLANO DE EXPERIMENTAÇÃO: OFICINA DE DESACOSTUMAR OS OLHOS SOBRE O LUGAR
O vídeo “Desacostumar os olhos” 3 foi criado por muitos encontros, múltiplas trajetórias
humanas e inumanas se entrecruzaram. Nele buscamos experimentar a poesia como a arte do
inútil, buscar na inutilidade dos objetos outras possibilidades de ser, para além daquilo que ele
já é (BARROS, 2008). Saímos pelo bairro à procura de dar forma a “abridores de
amanhecer”, “fivelas de prender silêncio”, “esticadores de horizontes”, “pregos que
farfalham”. A dificuldade em filmar um “aparelho de ser inútil” é apresentada na fala de V:
“... é difícil por que tudo que você olha a sua volta pode ter uma utilidade”. Como permitir a
inutilidade? Criamos porque somos forçados, em nosso caso a impossibilidade de filmar o
inútil. Era o que forçava o vídeo e o olho a serem outros, a funcionarem de outra maneira em
suas relações com um bairro. É assim com Kafka, na impossibilidade de escrever em alemão,
é forçado a produzir uma literatura menor (1977), uma escrita – dentro da própria língua que atua na saúde de si, língua estrangeira dentro dela própria, capaz de escapar dela mesma,
e de atuar onde ainda não se alcançava. Buscamos produzir intervenções no real (BOUGUE,
2011), naquele real que já se instalou e se sedentarizou em nós, que nos governa enquanto
única possibilidade de realidade. Utilizamos Manoel de Barros para nos contaminar de
incompletude, algo que nos permitiu fugas no interior da linguagem, emergindo um espaço
também incompleto, múltiplo, produto da negociação eventual no momento que filmávamos.
É eventualidade, em parte, no simples sentido de reunir o que previamente
não estava relacionado, uma constelação de processos, em vez de uma coisa.
Este é o lugar enquanto aberto e enquanto internamente múltiplo, não
capturável como um recorte através do tempo no sentido de um corte
essencial. Não intrinsecamente coerente. (MASSEY, 2009, p.203)
Extremidades do Vídeo: Contaminações Entre Linguagens
A relação entre a linguagem do vídeo e a poesia escrita nos permitiu uma interface –
fronteira compartilhada –criativa, as obras de vídeo produzidas funcionaram neste contexto
contribuem para pensarmos tanto um espaço –intensivo- quanto as imagens que o produziam
a partir da contaminação entre as linguagens.
Christine Mello (2008) aponta alguns procedimentos que marcam a arte contemporânea
pensando o vídeo como um campo criativo que se dá na convergência de múltiplas linguagens
(videodança, videoclipe, videoteatro, videopoesia, videoperformance, videoinstalação, etc.).
Emergem desse campo alguns adjetivos que qualificam a obra em vídeo como: “Híbrido”,
“interligação midiática”, “interface”, “rede de conexões”, “diálogo”, “transitivo”. O vídeo,
portanto, é entendido como produto da negociação entre diversas formas de arte, atingindo,
assim, outras extremidades da linguagem audiovisual “[...] a noção de extremidades é
utilizada como atitude de olhar para as bordas, observar as zonas-limites, as pontas extremas,
descentralizadas do cerne da linguagem vídeográfica e interconectadas em variadas práticas.”
(MELLO, 2008, p. 31).
E o que se cria nas extremidades? Rasuras na linguagem, pequenas, frágeis, como que
arranhões. Exercícios com vídeo/poesia que possibilitam fugas às condições representativas
da imagem. Afetações da poesia escrita na linguagem do vídeo e do vídeo sobre as palavras.
3
Importante salientar que para a produção deste o vídeo, assim como os demais, o papel do pesquisador foi o de
agrupar as imagens (que foram feitas pelos jovens) em um editor de imagens e acrescentar a parte escrita.
Curioso citar que, neste caso, as imagens foram produzidas a partir de algumas frases de Manoel de Barros
(2008) com exceção de duas, “acumulador de sonhos” e “medidor de vento”, estas foram criadas a partir das
palavras dos próprios autores das imagens. Entendemos que o atravessamento da poesia de Manoel produziu,
nestes dois últimos, outra ordem de efeitos, onde os participantes não só deram formas (em imagens) as palavras,
mas, contaminados pelo poeta, criaram as suas próprias. O vídeo pode ser consultado em:
http://www.youtube.com/watch?v=aAz4RYZRWl4
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PLANO DE EXPERIMENTAÇÃO: OFICINA DE DESACOSTUMAR OS OLHOS SOBRE O LUGAR
Filmar, aqui, aproxima-se do ato de escrever, apontado por Gilles Deleuze: “Escrever é um
caso de devir, sempre inacabado, sempre em via de fazer-se, e que extravasa qualquer matéria
vivível ou vivida. É um processo, ou seja, uma passagem da vida que atravessa o vivível e o
vivido.” (DELEUZE, 1997, p. 11).
Desterritorialização e Reterritorialização no Vídeo: Imagens em Fuga
No senso comum, território nos remete a terra, espaço sólido, mensurável, uma base
fixa que possibilita uma estabilidade. Poderíamos pensar a partir dessa ideia corriqueira que
as imagens que chegam até nós funcionam como forças de fixação, pois nos acostumam a ver
as coisas sempre do mesmo modo. O desacostumar, ou seja, fugir do costume, tem a intenção
de produzir um pequeno abalo no território, intensificando os fluxos em favor da
desterritorialização, para, em seguida, reterritorializado em outra configuração, em um
movimento de fuga e captura, possam emergir novos olhares e modos de se relacionar com
um espaço na/com as imagens videográficas.
Os movimentos de desterritorialização não são separáveis dos territórios que
se abrem sobre um alhures [outro lugar], e os processos de reterritorialização
não são separáveis da terra que restitui territórios. São dois componentes, o
território e a terra, com duas zonas de indiscernibilidade, a
desterritorialização (do território à terra) e a reterritorialização ( da terra ao
território) (DELEUZE; GUATTARI, 1992, p.103).
À luz desse movimento que se processa na zona de contato entre vídeo, poesia e espaço,
consideramos que as imagens produzidas no vídeo citado acima, provocam, em certa medida,
abalos, mesmo que pequenos, nas estruturas rígidas de pensamento acerca do bairro –
extensivo -, apontando outros modos de relação com aquele lugar – nas suas diversas
intensidades.
A experimentação “Prego que farfalha 1” nos apresenta dois pregos tortos no chão, que
são filmados em um plano mais fechado na horizontal. No início, o zoom é acionado
aproximando mais a imagem e logo em seguida a câmera se movimenta passando sobre os
pregos e focalizando o chão. A câmera volta e os pregos aparecem desfocados. Esse modo
diferente de filmar, que destoa dos demais, que basicamente utilizaram a câmera parada e na
posição da altura dos olhos, nos faz pensar que a experimentação possibilitou uma pequena
fuga do modo costumeiro de filmar. O desfoque, associado ao movimento da câmera em
plano baixo, funcionou na busca de farfalhar o prego na imagem. A poesia contaminou o
vídeo e esse foi contaminado pela poesia.
É nessa zona de hibridação de linguagens, que apostamos na oficina como um plano de
experimentação. Uma experimentação que se deixa contaminar pelas forças que atravessam o
espaço de negociação configurado na oficina, que buscou desacostumar os olhos para
desacostumar os modos como esses jovens se relacionam com o bairro.
Referências
BARROS, M. Poesia completa. São Paulo: Ed. Leya, 2010.
BOGUE, Ronald. Por uma teoria deleuziana da fabulação. In: Conexões: Deleuze e Vida e
Fabulação e... Petrópolis, RJ: De Petrus; Brasília, DF: CNPq; Campinas ALB, 2011.
CORRÊA, G. Educação, Comunicação e Anarquia. São Paulo: ed. Cortez, 2006.
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PLANO DE EXPERIMENTAÇÃO: OFICINA DE DESACOSTUMAR OS OLHOS SOBRE O LUGAR
DELEUZE, Gilles. Conversações. São Paulo: Ed. 34, 2008.
DELEUZE, G., GUATTARI, F. Kafka: por uma literatura menor. Rio de Janeira: Ed.
Imago, 1977.
______. O que é filosofia? Trad. Bento Prado Jr. e Alberto Alonso Muñoz. Rio de Janeiro:
Ed. 34, 1992.
MASSEY, Doreen. Pelo Espaço: uma nova política da espacialidade. Rio de Janeiro:
Bertrand Brasil, 2009.
MELLO, Christine. Extremidades do vídeo. São Paulo: Editora SENAC, 2008.
LINHA MESTRA, N.23, AGO.DEZ.2013
123
SESSÃO 7 – LITERATURA E FILOSOFIA: INTERCESSÕES
APESAR DOS “MORTOS EMBAIXO”: CONSIDERAÇÕES SOBRE A VIDA E
A PRIMAVERA EM HÚMUS, DE RAUL BRANDÃO
Sérgio Henrique da Silva Lima 1
Vida e Morte são Um: exemplo, o arco.
Heráclito
No ensaio intitulado “Heráclito”, que compõe o primeiro volume da série A conversa
infinita, Maurice Blanchot comentará a propósito de uma experiência do saber que se
confunde com o lado sombrio de um pensamento, de um rosto. O rosto mesmo avistado pelo
pré-socrático (Heráclito, aqui, como a figura do poeta-filósofo) quando definiu uma das
experiências de linguagem humana através do ambíguo e perigoso “Dia Noite, Relâmpago
Palavra”. Tal experiência, que carrega um duplo sentido de origem – que Blanchot diz nos
colocar “em nosso livre pertencer àquilo que nos é mais próprio” – parece jogar ao lado de um
movimento que, para o escritor francês, propõe a inserção naquilo “torna-nos senhores de um
mundo desaparecido e de uma verdade morta” 2.
Essa consideração, que remonta ao velho negativismo do fragmento – “Vivemos a
morte delas e elas a nossa morte” 3 – de Heráclito, nos remete, em Blanchot, a um primeiro
perigo inevitável: aquele que desde sempre se encontrara à luz de um pensamento que só
considera a verdade como o mesmo real inimaginável da filosofia do intangível; como se sob
a sombra de um niilismo solitário e inconformado nunca pudesse haver uma festa em torno de
um pensamento sobre a morte. Segundo perigo: o olhar declarado de uma espécie de
ortodoxia socrática – ou de uma espiritualidade cristã – que pensa desacreditar em si, mas ao
mesmo tempo se sustenta na espera de uma força maior que, absolutamente, julgue; que,
inevitavelmente, acometa e culpe; como se a relação humana com a morte só pudesse ser
convertida no romantismo pálido de uma experiência dialética a qual Gilles Deleuze tratará
como “a arte que nos convida a recuperar propriedades alienadas” 4. Numa distância
imensurável e, por assim dizer, sempre de um objeto irreconhecível, acredita-se aqui na morte
como na esperança de uma força transcendente; a mesma que, outrora, procurou,
inconsistentemente, explicar a vida.
Chegamos, assim, ao que preferi definir, nos encalços do pensamento deleuziano, por
uma espécie de território do múltiplo ao qual atribuí um sentido – uma imagem - praticável na
obra prima Húmus, do escritor português Raul Brandão. Para tal configuração, portanto, achei
conveniente aliar algumas possibilidades de se pensar na palavra húmus. Parto, então, de
algumas noções sobre o sujeito na obra que, nesse caso, surgem como se tendessem para um
pensamento inscrito, horizontalmente, em uma tensão polar que converte a ideia da morte em
experiência de vida (e, por que não dizer, uma experiência feliz).
Assim, antes de cuidar dos problemas concernentes aos perigos que pressupõem a
máxima heraclitiana (fundamental no discurso sobre a experiência literária em Húmus); ou
mesmo antes de tratar – por outro lado - do terreno fértil da literatura onde a decomposição
dos seres parece promover certo ritual que festeja a vida, gostaria de delimitar o terreno
1
Discente do Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários da Faculdade de Letras da Universidade
Federal de Minas Gerais; [email protected]
2
BLANCHOT. A conversa infinita, p.10
3
HERÁCLITO. Fragmentos contextualizados, p.148.
4
DELEUZE. Nietzsche, p.36
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124
APESAR DOS “MORTOS EMBAIXO”...
“ambíguo e perigoso” (primeiramente colocado) através de algumas considerações sobre a
narrativa em questão.
***
Para demarcar o problema concernente à obra de Brandão, não seria praticável
desconsiderar uma interrogação que parece se repetir várias vezes (como se houvesse um
abismo) no discurso do narrador: aquela que, ao fim, envolve a morte e a linguagem.
Assim, na narrativa de Húmus, o problema da cisão inerente à estruturação do sujeito na
obra pode ser percebido pelo menos a partir de duas concepções: a primeira, através relação
entre o narrador-protagonista e os moradores de uma pequena vila, sendo, o primeiro, o autor
de um diário in-fundado em um tempo-espaço que, em busca de uma exterioridade, acaba por
encontrar nos absurdos seres fantasmáticos um fundamento possível para a literatura: o nada,
o não-fundamento. Os habitantes da vila acabam por dar voz ao protagonista, como, de vez,
só elas pudessem existir diante do nada (No entanto, elas próprias também se declaram como
o nada). O mesmo nada também aparecerá nas datas apresentadas no diário que, apesar de
contarem com os vários vácuos de muitos dias anônimos, seguem uma cronologia que não
cumpre um ciclo, mas se deixa sempre aberta à espera do ciclo por vir – aquele que se
comporta como o “ser” das coisas. Por outro lado, o espaço descrito não parece tratar do
mesmo onde se encontra, por inteiro, o protagonista. Negando o simulacro de uma “vila
encardida” habitada por “um povo de estátuas”, o protagonista, ao mesmo tempo, toma sobre
si tal realidade se colocando no distante lugar que a vila é; tudo frente à consciência descrente
de uma vila “maior” por detrás. Deste modo, a voz que narra entrevê no espaço aparente da
vila a indiferença com relação aos inertes, recalcados e grotescos habitantes, grávidos de todas
as “realidades práticas” (dirá o narrador que os moradores da vila são “seres que fazem da
vida um hábito e que conseguem olhar o céu com indiferença e a vida sem sobressalto, e esta
mixórdia de ridículo e de figuras somíticas” 5)
A segunda concepção se dá através da relação entre a voz do protagonista e a do
personagem Gabiru, uma espécie de louco-filósofo que contempla uma realidade outra e
maior, que guarda um silêncio por detrás de todo o discurso do protagonista. Com relação aos
dois casos, pode-se dizer que figuram a ausência de unidade concernente à configuração de
sujeito na obra. De qualquer forma, vale apontar aqui como o discurso deixa transparecer a
proposta de outra cisão de linguagem que parece se materializar no personagem Gabiru, uma
vez que em sua voz tão fragmentada e tão distante notamos uma figuração da errância que
representa o caminho da vida como uma contínua tentativa que, por vezes, se abre como o
lugar de gozo e sabedoria: "É o Gabiru que se põe a falar sem tom nem som (...) Para ele estas
coisas etéreas são visíveis. Vê tão exactamente como eu te vejo a ti a paixão, o ódio, o amor,
os grandes fluidos desgrenhados de piedade e de génio” 6. A voz do Gabiru é a voz que
representa a tendência da linguagem que, agregando a poesia e o pensamento, segue em busca
do lugar que supõe o objeto de conhecimento. O que diz-se aqui é que frente à falta de sentido
do discurso do Gabiru, se erige outro problema que diz respeito a algo que se parece se
cumprir no plano de uma des-realização estética: o de representar e significar.
As considerações aqui colocadas parecem nos localizar no mesmo húmus que intitula a
obra de Brandão: aquele que se insinua como um lugar possível para uma palavra dentro de
um discurso, uma vez compreendido que aquilo que a representação simula – a linguagem
possível – só pode nos garantir o seu estado de decomposição se, por vezes, nela se busca um
sentido. Vale lembrar, contudo, que sendo húmus a matéria em decomposição ou decomposta,
é ela mesma que proporciona a vida, mesmo que esta vida seja aquela “fictícia”, mas também
5
6
BRANDÃO. Húmus, p.11.
BRANDÃO. Húmus, p.27-28
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125
APESAR DOS “MORTOS EMBAIXO”...
“a única que podemos suportar”. Considerando tal consonância que fomenta esse breve
estudo, no que cabe ao pensamento e à literatura que reivindica a linguagem e a morte (e o
que, a partir destas ideias, pode ser concebido como uma essência), propõe-se este jogo que
pressupõe a existência que já cava, desde sempre, o abismo que no homem é significado pelo
que o sentido comum de húmus nos traduz: o intraduzível que é traduzido como o lugar entre
o vivo e o morto; a vida edificada por palavras que não nos remetem a sentido algum; a morte
que, numa linguagem traduzível, nos revela a impossibilidade de a palavra significar, bem
como a impossibilidade de uma existência numa linguagem possível.
Apesar da diversidade discursiva (expressa nas várias dicotomias: linguagem/morte,
mentira/verdade, não-ser/ser) que revolve o húmus literário em Brandão de modo a evidenciar
a experiência do múltiplo (a mistura como motivo literário), restrinjo minha análise no último
problema antes colocado: aquele da relação do discurso do narrador com o discurso do
personagem Gabiru.
***
Personagem invisível, imprevisível, etéreo e concebido, muitas vezes, no plano dos
sonhos, da impossibilidade, o Gabiru marca, desde sua aparição, uma espécie de fenda
narrativa. A beleza provinda de seu discurso conduz a um sentido mais comum do sonho à
medida que destoa da descrença que delimita a voz do narrador. Todavia, ao que parece, o
desejo de linguagem (aquele mesmo da morte que dá vida à literatura) do último se converte
na caótica, aforística e, por assim dizer, poética presença do pensante personagem e, assim
sendo, pode-se dizer acerca de uma perspectiva que escapa à imaterialidade niilista – no
amplo sentido – que prevalece na narrativa. Não se pode dizer, contudo, a propósito de um
discurso dicotômico. Também não se trata de um afronte ou de um abismo. Como já
colocado, a questão envolve forças tensivas que se dispõem num recorte espaço-temporal e
que experimenta o seu limite no furo que representa – para o narrador – o silêncio do Gabiru.
Dirá o narrador:
Outra vez a absorção, outra vez o rebuscar em ti mesmo o inexplicável, e os
nervos que tendem e quebram, o cérebro que dói, o lento acordar das vozes
submersas, a discussão, o tumulto, e poder distinguir entre tantas bocas que
falam, a única que tem direito a falar. É desta obscuridade, desta
discordância, que emerge a idéia de suprimir a morte. Não te rias. Já te o
disse: é um ser à parte com cotos em vez de asas, que se agitam num
desespero para voar. Não se contenta com esta vida nem dá por ela, mas fica
sempre a meio caminho, e tão dorido que não é possível tocar-lhe. Já te o
disse: é um ser grotesco que põe em mim os olhos turvos e teima, insiste,
repete [...] 7
O incômodo espiritual, por parte do protagonista, guarda, assim, uma obscuridade que
se encontra repartida numa múltipla experiência de vozes que escondem uma única que
realmente “tem direito a falar”: a única voz que, ao guardar morte (e somente por isso)
também traz a ideia de suprimi-la. A repetição que condiciona a voz narrativa – a mesma
repetição turva e teimosa do igual que caracteriza o niilismo aparente do discurso em Húmus
– é, portanto, desejo; uma busca discricionária que, no caso do Gabiru, se repete na narração a
partir de uma diferença entre o sujeito (que tende a se desconstruir incessantemente na
narrativa) e o objeto que está sempre a escapar; trata-se, portanto, de uma vida que comporta a
morte, e que, evitando o discurso, nele se faz ao suprimir a própria morte.
7
BRANDÃO. Húmus, p.34-35.
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APESAR DOS “MORTOS EMBAIXO”...
Sabemos, por Deleuze, que esse plano alheio a qualquer objetividade ou subjetividade
descarta toda possibilidade do Ser ou do ato, apesar de a consciência estabelecer ainda o que o
pensador chamará de “relação de direito” com tal plano. No entanto, não se trata de uma
relação direta que se impõe enquanto no plano da escritura (não é a morte que se afigura como
uma experiência do impossível no caso da obra aqui analisada). A questão se faz, antes, a
partir de uma redobra que parece se figurar através dos múltiplos nexos entre o narrador e o
Gabiru. A questão, pois, se edifica numa ordem de individualidade que ultrapassa a noção de
mundo ou simplesmente de uma paixão. Nem tanto o mundo de estátuas que oprime o
narrador nem mesmo a melancolia que diz respeito à sua condição existencial define a ideia
de uma experiência de morte que possa ser reivindicada enquanto uma realidade empírica. No
que confere à ideia de morte enquanto experiência de vida, Deleuze dirá que “a
individualidade se apaga em favor da vida singular imanente a um homem que não tem mais
nome, embora ele não se confunda com nenhum outro” 8.
Gabiru se configura como um nome no plano da escrita. Mas já sabemos que o loucofilósofo, inconfundível, sem uma voz audível – pelo menos para o narrador –, é a única que
possui o direito de falar. Não no plano do discurso do protagonista, mas naquele que o coloca
fora de qualquer experiência de tempo ou espaço narrativo, já que ela é, segundo Deleuze (a
propósito do narrar em Dickens), a impessoalidade que se faz “entre sua vida e sua morte, [o]
momento que não é mais do que aquele de uma vida jogando com a morte” 9, ou seja, o
mesmo húmus que, por fim, dá vida à literatura. Dirá o Gabiru: “Cheguei ao ponto, Morte.
Cheguei onde queria. Tu és o meu sonho frenético. Não há outro maior. Cheguei ao ponto em
que não te distingo da vida. Tu és a vida maior” 10. Não por acaso, o nome do Gabiru está
vinculado aos tempos de primavera que demarcam a espécie de narrativa sazonal na obra. A
estação, tomada por “fenômeno elétrico”, chega a nos remeter ao jovem Nietzsche que, na
ocasião de uma de suas obras de juventude, colocará a “pulsão da primavera” como aquela
definida pela arte dionisíaca, que “repousa no jogo com a embriaguez, com o arrebatamento
[e, por isso] elevam o homem natural ingênuo até o esquecimento de si característico da
embriaguez, a pulsão de primavera [...]” 11. O reflorescimento que descarta o sujeito, desse
modo, também nos leva a crer que Húmus é uma celebração da vida: a força gerativa advinda
da potência telúrica que, ao abolir a individuação do homem, faz com que a natureza se faça
perceptível, porém, além de qualquer fenômeno.
***
Voltemos, então, à máxima heraclitiana: “Vivemos a morte delas e elas a nossa morte”.
Não podemos mais, ao certo, conduzir tal fórmula à mesma concepção antes colocada.
Blanchot, inclusive, nos lembra bem de que a Morte está inscrita no mesmo lugar de
direcionamento ambíguo ao qual os gregos atribuíram os “nomes de Poder”- e, por assim
dizer, nomes de potência. Se Húmus, portanto, se configura dentro de um jogo cósmico de
escrita que se projeta justamente fora dela, podemos dizer que esse mesmo jogo é aquele que
“vela sobre a secreta alteridade que rege a diferença, mas a rege preservando-a contra a
indiferença em que se anularia toda contrariedade” 12. Assim, o Gabiru representa a suspensão
da narrativa em seu próprio plano – um “Relâmpago Palavra” – que não é iluminado por
nenhuma luz, nem tampouco obscurecido por nenhuma noite, mas, sobretudo, regido por uma
8
DELEUZE. A imanência: uma vida..., p.s/n
DELEUZE. A imanência: uma vida..., p.s/n
10
BRANDÃO. Húmus, p.219.
11
NIETZSCHE. A visão dionisíaca do mundo, p.8.
12
BLANCHOT. A conversa infinita, p.18.
9
LINHA MESTRA, N.23, AGO.DEZ.2013
127
APESAR DOS “MORTOS EMBAIXO”...
diferença que escreve; por uma paixão da diferença onde o “exterior é [a] única intimidade” 13;
onde o próprio personagem verá que “a vida modifica-se noutro sentido” 14. Quanto a esse
propósito, concordará Blanchot:
No fundo [...] o que é linguagem, o que fala essencialmente nas coisas e nas
palavras e na passagem, contrariada ou harmoniosa, de uma às outras, enfim,
em tudo que se mostra e em tudo que se esconde, é a própria Diferença,
misteriosa porque sempre diferente daquilo que a exprime, e tal que não há
nada que não a diga e não remeta a ela ao dizer, mas tal ainda que,
mantendo-se indizível, tudo fale por sua causa 15.
Referências
BLANCHOT, Maurice. A conversa infinita 2: a experiência limite. Trad. João Moura Jr..
São Paulo: Escuta, 2007.
BRANDÃO, Raul. Húmus. Lisboa: Frenesi, 2000.
DELEUZE,
Gilles.
A
imanência:
uma
vida...
Disponível
em:
http://pt.scribd.com/doc/7182897/Deleuze-Gilles-A-Imanencia-Uma-Vida. Acesso em: 10/06/2013.
_________________ . Nietzsche. Trad. Alberto Campos. Lisboa: Edições 70, 2007.
HERÁCLITO. Fragmentos contextualizados. Trad. e Org. Alexandre Costa. Lisboa:
Imprensa Nacional-Casa da moeda, 2005.
NIETZSCHE, Friedrich. A visão dionisíaca do mundo. Trad. Marcos Sinésio Pereira
Fernandes e Maria Cristina dos Santos de Souza. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
13
BLANCHOT. A conversa infinita, p.126.
BRANDÃO. Húmus, p.166.
15
BLANCHOT. A conversa infinita, p.19
14
LINHA MESTRA, N.23, AGO.DEZ.2013
128
UM POUCO DE POSSÍVEL NA OBSCENIDADE:
PROCESSOS DE SINGULARIZAÇÃO EM FRAGMENTOS DE UM DISCURSO
AMOROSO
Rafael Lovisi Prado 1
Percorrendo um campo de produção ensaístico, crítico e ficcional marcado por constates
deslocamentos conceituais e temáticos, em 1977 Roland Barthes reafirma ostensivamente sua
resistência às variadas formas da gregariedade e da estereotipia dos saberes ao escrever o livro
Fragmentos de um discurso amoroso. Entre a escuta atenta aos agenciamentos de enunciação
amorosa e a encenação destes via escrita, o autor, em um dos diversos fragmentos que
compõem tal discurso, nos apresenta a possível condição obscena (fora de cena) e fugitiva da
linha traçada pelo apaixonado:
Desacreditada pela opinião moderna, a sentimentalidade do amor deve ser
assumida pelo sujeito amoroso como uma transgressão forte, que o deixa
sozinho e exposto; por uma reviravolta de valores, é justamente essa
sentimentalidade que constitui hoje o obsceno do amor 2 (grifo meu).
Em meio às produções de subjetividade em jogo no capitalismo contemporâneo, à
fixação movediça e evanescente de planos identitários, a voz amorosa trazida à cena por
Barthes no livro em questão reconhece-se destoante, não afinada aos ritornelos de seu tempo:
“Sentir-me-ei atingido pelo desprezo que se inflige a todo phatos: antigamente, em nome da
razão [...], hoje em nome da ‘modernidade’, que admite perfeitamente o sujeito, contanto que
seja ‘generalizado’” 3 (grifo meu). Através deste trecho, começa-se a desvelar a obscenidade
assumida por tal discurso, ou seja, sua potência singular 4 que se manifesta diante das
maquinações uniformizadoras do capitalismo, que não admitem aquilo que não seja
“generalizado”.
Em nossa vida, imersa nas formas de afeto, de conduta, de valores, enfim, na
subjetividade tal como ela é gerida pelo capitalismo atual, vemo-nos solicitados o tempo todo
e de todos os lados a investir na poderosa indústria de subjetividade serializada, produtora
destes seres que somos, destes discursos que enunciamos, reduzidos, muitas vezes, à condição
de suporte de determinados valores. Como atestam numerosos estudiosos, talvez, nunca o
capital tenha penetrado tão fundo no corpo das pessoas, na sua inteligência, no seu psiquismo
e no seu imaginário, em suma, no núcleo de sua vitalidade. 5 E, por medo da obscenidade
(marginalização) na qual corremos o risco de ser confinados quando ousamos criar qualquer
território singular (independente das modelizações subjetivas), por receio de comprometermos
“até a própria possibilidade de sobrevivência (o que é plenamente possível), acabamos
reivindicando um território no edifício das identidades reconhecidas”. 6 Dessa maneira, dentro
da produção de subjetividade capitalística, tudo o que é do domínio da ruptura, da surpresa e
da dor, mas também do desejo, da vontade de amar e de criar deve se adequar de algum jeito
1
Doutorando em Teoria da Literatura e Literatura Comparada – UFMG. E-mail: [email protected]
BARTHES, 2003, p. 269.
3
BARTHES, 2003, p. 270.
4
Refiro-me aqui aos chamados “processos de singularização” sugeridos por Guattari, isto é, “ algo que frustra
esses mecanismos de interiorização dos valores capitalísticos, algo que pode conduzir à afirmação de valores
num registro particular, independentemente das escalas de valor que nos cercam e espreitam de todos os lados”.
GUATTARI; ROLNIK, 2000, p.47.
5
Cf. os trabalhos de LIPOVETSKY, BAUMAN, PELBART, ROLNIK, NEGRI, HARDT, JAMESON,
DELEUZE - GUATTARI, entre vários outros.
6
GUATTARI; ROLNIK, 2000, p. 12.
2
LINHA MESTRA, N.23, AGO.DEZ.2013
129
UM POUCO DE POSSÍVEL NA OBSCENIDADE...
aos registros de referências dominantes. Isto posto, o discurso amoroso composto por Barthes,
em seu caráter obsceno, será tomado aqui como um modo de subjetivação que, dentre os
múltiplos que concorrem para a fabricação de subjetividades no capitalismo atual, ao invés de
fazer o jogo da reprodução de modelos que não nos permitem forjar saídas para os processos
de singularização, trabalharia, em certa medida, para o funcionamento destes.
Perante a gama de publicações que versa sobre o tema capitalismo contemporâneo,
encontramos diversos tipos de classificações e codinomes para o mesmo: mundializado,
globalizado, planetário, cognitivo, tardio, Império, pós-moderno, pós-fordista, pós-colonial,
pós isso ou aquilo, ou ainda, como prefere Guattari, Mundial Integrado. No entanto, salvo
algumas especificidades, pouco importa o nome que damos a tal fenômeno, mas sim a sua
configuração e os efeitos inauditos promovidos por este em todas as esferas de nossa vida.
Aliado à revolução das tecnologias de informação, o capitalismo atual provocou e tem
provocado, incessantemente, grandes modificações culturais, alterando hábitos,
comportamentos e valores em todo o mundo. Em seu funcionamento, os fluxos, sejam eles de
imagens, de informação, de serviços, de bens ou de capital, transitam por toda parte, guiados
pela ausência de limites concretos. Que esta abertura rizomática às infinitas redes de troca de
informação, às facilidades de toda espécie, de deslocamentos de pessoas, de produtos e
serviços, ou de acesso a uma infinidade móvel de oportunidades trouxe consigo ganhos nunca
vistos para nossa existência é um fato (inúmeros são os exemplos). Entretanto, mirando-me na
ambiguidade inerente a este cenário, o que pretendo abordar são as forças que ameaçam
capturar nossos afetos criativos e destituí-los de toda singularidade, de toda potência.
Uma nova forma de controle em espaço descerrado atua nos dias de hoje por meio de
complexos de informação e redes de comunicação que são interiorizadas e postas em movimento
pelos próprios indivíduos. Os dispositivos aplicados pela antiga sociedade disciplinar não
conseguiam adentrar completamente nas consciências e corpos dos seres a ponto de cerceá-los na
integridade de suas atividades, pois grande parte das relações de poder era ainda estática. Por
outro lado, na sociedade de controle contemporânea, através de rizomas maleáveis, flutuantes e
movediços, o poder do capital transfigura-se, aumenta seu alcance, penetração, intensidade, bem
como sua capacidade de captura. Como coloca Pelbart, “na sociedade de controle, o conjunto da
vida é abraçado pelo poder e desenvolvido na sua virtualidade.” 7
A partir desta perspectiva, é possível apercebermos que alguns modos de referência
subjetiva, modos de produção de subjetividade, foram expurgados do ocidente, ou mesmo
provisoriamente obliterados, ao longo das vicissitudes pelas quais passou e passa o sistema
capitalista, isto devido, sobretudo, há um movimento geral de desterritorialização e
reterritorialização, quer dizer, de deslocamento e reinvenção de tais referências 8. Isto posto,
penso que é justamente em meio a este processo de contínuo deslocamento referencial que o
discurso amoroso foi tomado por Barthes: de acordo com o que o autor nos indica sobre a
condição em que se encontrava o discurso do amor-paixão no momento em que se debruçou
sobre este, encontramo-lo como uma instância subjetiva, ou melhor, como um modo de
produção de subjetividade em desuso, démodé, obliterado por forças de naturezas distintas
que levaram-no a sua posição de obsceno perante os modos de produção preponderantes:
O sentimento amoroso está fora de moda, mas este fora de moda nem
mesmo pode ser recuperado como espetáculo: o amor é deixado fora do
7
PELBART, 2003, p.82.
Exemplo disso ocorreu com a chamada sociedade disciplinar: durante o período em que esta vigorou como
forma de organização, a subjetividade permaneceu ligada, acima de tudo, a modos de produção territorializados,
tais como a família, a escola, a indústria, em suma, a segmentaridade social com seus respectivos papéis bem
delimitados e rígidos. No entanto, esta modalidade foi completamente desestabilizada com o advento da
sociedade de controle.
8
LINHA MESTRA, N.23, AGO.DEZ.2013
130
UM POUCO DE POSSÍVEL NA OBSCENIDADE...
tempo interessante; nenhum sentido histórico, polêmico, pode ser-lhe dado;
é nisso que é obsceno. 9(Grifos meus).
O fato que quero destacar é que existe esta ou aquela subjetividade, dependendo de um
agenciamento de enunciação fabricá-la ou não. Na medida em que o discurso amoroso não era
assumido ou sustentado por nenhuma parte da cultura, deixado “fora do tempo do
interessante”, o tornar-se amoroso, quer dizer, a fabricação de uma subjetividade amorosa
através de um agenciamento de enunciação toma o lugar de certa marginalidade, ou ainda, de
uma singularidade vista por muitos até mesmo como uma doença da qual é preciso cura-se. 10
Levando em conta estes apontamentos em torno de uma noção mais abrangente de
subjetividade podemos explicitar, com maior clareza, o processo de subjetivação que está em
jogo no discurso amoroso agenciado pela escrita barthesiana. Logo no início dos Fragmentos,
numa espécie de prólogo intitulado “Como é feito este livro”, Barthes faz questão de discorrer
sobre o caráter simulativo do processo que entrará em cena no seu trabalho. Desfazendo-se da
mera individuação determinista, ou de uma centralização discursiva egóica e “romântica”,
este lugar onde acontece o discurso, quer dizer, o amante “que fala e diz” perante a mudez do
outro amado (como é colocado no início do livro), figura-se simplesmente com um alguém
(talvez próximo ao ele sem rosto que habita o espaço literário, segundo os termos de
Blanchot), que não deve ser tomado como um indivíduo dotado de um aparato físico e civil,
ou visto, ingenuamente, como o próprio Barthes fazendo confidências íntimas, ou ainda,
como um personagem no sentido corriqueiro do termo. Esta espécie de locutor apresenta-se
como uma subjetividade simulada, produzida, ou, para utilizar uma expressão cara a Barthes,
romanesca, insurgindo como um eu que podemos considerar inventado, forjado, obviamente
por não poder ser identificado através de uma identidade civil (como, inversamente, se dá no
caso das pessoas civis): “é um eu que apenas diz eu sem ser o eu de uma pessoa em
particular”. 11 Tal simulação, ou processo de subjetivação, pode ser tomado como uma
operação que visa introduzir, no “mesmo”, o outro: um movimento que faz emergir um outro,
uma diferença no lugar do eu autocentrado e autônomo, isto é, uma força de alteridade e
singularidade que impossibilita a fixação numa etiqueta identitária.
Ao dizer eu, o amante barthesiano individualiza certa subjetividade amorosa em
circulação no campo social nas mais variadas formas, quer dizer, vozes múltiplas,
provenientes de épocas distintas, oriundas da literatura (Goethe, Sade, Proust), psicanálise
(Freud, Lacan), filosofia (Nietzsche, Platão, Aristóteles), entre outras, que se mesclam dando
origem a um discurso que adquire uma vasta amplitude. É por meio da indeterminação
expressa pela voz do amante que podemos nos aperceber da flexibilidade desta subjetividade
que advém no discurso amoroso, passível de constantes metamorfoses e devires ao longo do
livro, e que, através dessas transformações, pode assumir praticamente todos os pronomes
pessoais ou até pseudônimos: eu, ele, nós, x, etc. (o eu como uma pluralidade de forças,
configurando uma subjetividade movediça). Ao invés de petrificar a voz amorosa, de legá-la a
imortalidade estática de um código dominante, Barthes faz com que ela passe por
deslocamentos, devires, vindo sempre a ser outra coisa no decorrer do discurso (a
descontinuidade da forma, a fala por fragmentos, implica também na desconstrução da
identidade fixa). São estes devires, que recusam o individual e a constituição sobre e a partir
da identidade, que possibilitam o reação do singular, que existe pela e na diferença: nem
convergência, nem conjunção, nem um fundamento único que lhe sirva de origem – a
singularidade da voz amorosa provém da disjunção e da diferenciação entre todas as vozes
9
BARTHES, 2003, p. 273.
“O amor-paixão [...] não é ‘bem-visto’; consideram-no como uma doença de que é preciso se curar; não lhe
atribuem, como outrora, um poder enriquecedor”. BARTHES, 2004a, p.409.
11
MARTY, 2009, p.281.
10
LINHA MESTRA, N.23, AGO.DEZ.2013
131
UM POUCO DE POSSÍVEL NA OBSCENIDADE...
que a compõem. De maneira geral, o que presenciamos no discurso amoroso, à maneira do
que ocorre com várias outras produções literárias do século XX, é a representação do sujeito,
em seu sentido clássico (identitário e autocentrado), sendo posta em crise por meio de uma
pluralidade de vozes que entrecortam o texto. A subjetividade como produção discursiva
aponta para a desconstrução da crença num sujeito dado como natural, substancial, passível
de ser representado. Em se tratando de um texto “literário”, podemos admitir que a unidade
do sujeito, dotado de um eu consciente e de uma interioridade, só pode ser considerada em
seu fracasso.
Enquanto escritor dos Fragmentos, Barthes inventou agenciamentos coletivos a partir
de outros agenciamentos que foram inventados ao longo da história, interpenetrando
multiplicidades na composição textual e subjetiva do discurso amoroso. Um agenciamento
coletivo de enunciação utilizado como dispositivo textual possibilitou então dizer algo do
desejo amoroso sem reluzi-lo a uma individuação, sem enquadrá-lo num lugar preestabelecido
ou em significações codificadas a priori. Se caso Barthes incorresse no engodo de uma
suposta enunciação individuada, centralizada, os Fragmentos de um discurso amoroso
estariam fadados, do início ao fim, ao aprisionamento nas significações dominantes. Só
através de um agenciamento plural de vozes pode-se “trabalhar os fluxos semióticos, quebrar
as significações, abrir a linguagem para outros desejos e forjar outras realidades.” 12
Dito de outra maneira, não se está mais diante de uma subjetividade dada como um em
si, a serviço dos dispositivos estabelecidos, mas em face de processos de poiesis: Barthes, o
compositor do discurso amoroso, do mesmo modo que o faria um artista plástico criando a
partir das cores e materiais de que dispõe, engendrou e efetivou certa subjetividade amorosa
através de sua escrita. Um escritor, um músico ou um pintor, com suas invenções singulares
na escrita, na música ou na pintura, podem desencadear uma mutação na sensibilidade
coletiva, em nossa maneira de perceber o mundo e gerirmos nossa existência. Como bem
disse Guattari, neste tipo de trabalho estamos sempre perante uma escolha fundamental: “ou
se objetiva, se reifica, se ‘cientificiza’ a subjetividade ou, ao contrário, tenta-se apreendê-la
em sua dimensão de criatividade processual.” 13
À guisa de cartografarmos pequenos instantes do processo de singularização
desencadeado no discurso amoroso barthesiano, vejamos então o seguinte acontecimento
enunciado pela voz amorosa:
Naquela manhã, devo escrever com toda urgência uma carta ‘importante’ –
da qual depende o êxito de certa empresa; mas em vez disso escrevo uma
carta de amor – que não envio. Abandono alegremente tarefas insípidas,
escrúpulos razoáveis, condutas reativas, impostos pelo mundo, em prol de
uma tarefa inútil, oriunda de um Dever vivo: o Dever amoroso. Faço
discretamente coisas loucas; sou a única testemunha de minha loucura. 14
Próximo ao Bartleby, o escriturário, de Melville, o amoroso passa também pela
negação do “preferiria não fazer”, mas, diferentemente do obsceno de Wall Street, seu
abandono das “tarefas insípidas” do cotidiano maçante se dá não como pura negatividade,
mas em função da força imaginária do amor-paixão que o atravessou. A máquina chamada
imaginário, cujas engrenagens funcionam incessantemente e à revelia de seu “dono”, é quem
impulsiona e sustenta a atividade subjetiva e discursiva do amoroso, ressoando e
(des)arranjando por todos os lados: “A única coisa da qual ainda tenho consciência é de uma
máquina que sustenta seu próprio movimento, de um realejo cujo tocador anônimo gira a
12
GUATTARI, 1987, p.179.
GUATTARI, 1992, p.24.
14
BARTHES, 2003, p.17.
13
LINHA MESTRA, N.23, AGO.DEZ.2013
132
UM POUCO DE POSSÍVEL NA OBSCENIDADE...
manivela titubeando, e que nunca se cala.” 15 É assim que os ínfimos incidentes, os pequenos
acontecimentos singulares que são deflagrados pelo imaginário do amante podem provocar
uma “dobra” no plano homogeneizado das subjetividades:
O incidente, agora, vai produzir uma dobra, como a ervilha sob os vinte
colchões da princesa; como um pensamento diurno que transvasa no sonho,
ele será o empresário do discurso amoroso, que vai frutificar graças ao
capital do Imaginário. 16
Com isso, podemos perceber que são micro ações disruptivas, pequenos ritos secretos e
atos volitivos que a máquina imaginário desencadeia no amoroso (como o escrever uma carta
de amor), desenhando uma conduta repleta de inutilidades que o distancia da
responsabilização individuante, independentemente da cultura a qual ele pertença. 17 Em suas
idas e vindas pelo plano subjetivo, na ação de correr de um lado para o outro (prática esta que
configura seu próprio dis-cursus), “o amante não pára, com efeito, de correr dentro da própria
cabeça, de encenar novos caminhos e de intrigar contra si mesmo”, de inventar novas
possibilidades de viver e amar através de seu discurso que “existe unicamente por ondas de
linguagem, que lhe vêm ao sabor de circunstâncias ínfimas, aleatórias”. 18 Neste itinerário
imagético-discursivo, o amante ultrapassa várias das seduções e capturas cotidianas do
capital, desatinando a criar linhas de fuga a partir da força motriz que desencadeou sua
paixão, isto é, a imagem primeira do outro amado: “Esqueço todo o real que, em Paris, excede
seu charme: a história, o dinheiro, a mercadoria, a dureza das grandes cidades; nela vejo
apenas o objeto de um desejo esteticamente retido.” 19. Fulgura assim em suas enunciações a
capacidade de criar algo novo, algo que não estava inscrito no mundo das formas
contempladas pelo capital, ou seja, uma ruptura de sentido, uma fragmentação ou corte nas
cadeias seriais coordenadas gerando uma potencial singularidade subjetiva, um pouco de
possível na obscenidade: “produzo uma ficção, torno-me artista, faço um quadro, pinto minha
saída.” 20
Referências
BARTHES, Roland. Fragmentos de um Discurso Amoroso; Tradução Márcia Valéria
Martinez de Aguiar. São Paulo: Martins Fontes, 2003. (coleção Roland Barthes).
BARTHES, Roland. O grão da voz: entrevistas, 1961-1980. Tradução Mario Laranjeira. São
Paulo: Martins Fontes, 2004a. (coleção Roland Barthes).
BARTHES, Roland. O rumor da Língua; prefácio Leyla Perrone-Moisés; Tradução Mario
Laranjeira. 2º ed. São Paulo: Martins Fontes, 2004b. (coleção Roland Barthes).
BLANCHOT, Maurice. A conversa infinita 3: a ausência de livro, o neutro o fragmentário.
Tradução João Moura Jr. São Paulo: Escuta, 2010.
DELEUZE, Gilles. Conversações, 1972-1990. Tradução Peter Pál Pelbart. São Paulo: Ed.34,
1992.
15
BARTHES, 2003, p.241.
BARTHES, 2003, p.88.
17
Cf. BARTHES, 2003, p.249.
18
BARTHES, 2003, p.XVIII.
19
BARTHES, 2003, p.10.
20
BARTHES, 2003, p.296.
16
LINHA MESTRA, N.23, AGO.DEZ.2013
133
UM POUCO DE POSSÍVEL NA OBSCENIDADE...
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia, vol.1. Trad.
Aurélio Guerra Neto e Célia Pinto Costa. São Paulo: Ed.34, 1995.
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O Anti-Édipo: capitalismo e esquizofrenia. Tradução
de Luiz B. L. Orlandi. São Paulo: Ed.34, 2010.
DELEUZE, Gilles; PARNET, Claire. Diálogos. Tradução de José Gabriel Cunha. Lisboa, Ed.
Relógio D’Água, 2004.
GUATTARI, Félix. Revolução Molecular: pulsações políticas do desejo. Seleção, prefácio e
tradução de Suely Rolnik. 3º edição. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1987.
GUATTARI, Félix. Caosmose: um novo paradigma estético. Trad. Ana Lúcia de Oliveira e
Lúcia Claudia Leão. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992.
GUATTARI, Félix; ROLNIK, Suely. Cartografias do desejo. 6ºed. Petrópolis: Ed. Vozes,
2000.
MARTY, Eric. Roland Barthes, o ofício de escrever. Tradução Daniela Cerdeira. Rio de
Janeiro: DIFEL, 2009.
NEGRI, Antonio; HARDT, Michael. Império. Tradução Berilo Vargas. Rio de Janeiro:
Record, 2001.
PELBART, Peter Pál. A vertigem por um fio: políticas da subjetividade contemporânea. São
Paulo: Editora Iluminuras, 2000.
PELBART, Peter Pál. Vida Capital, ensaios de biopolítica. São Paulo: Editora Iluminuras,
2003.
ROLNIK, Suely. Cartografia sentimental: transformações contemporâneas do desejo. Porto
Alegre: Sulina; Editora da UFRGS, 2007.
LINHA MESTRA, N.23, AGO.DEZ.2013
134
E O PORCO SE FEZ VERBO: REFLEXÕES SOBRE O CORPO A PARTIR
DA FICÇÃO DE MURILO RUBIÃO
Cleber Araújo Cabral 1
E o porco se fez verbo...
Através da ficção, o corpo reconhecível é
transformado em corpo hipotético. 2
A partir da proposição: “(...) o corpo, na literatura, pode ser definido como um ‘objeto
hipotético’”, gostaria de sugerir uma aproximação da obra de Murilo Rubião por meio de um
exercício de imaginação crítica. Tal exercício parte da seguinte questão: considerando a
natureza insólita dos contos de Rubião, como a categoria corpo/sujeito se apresenta
problematizada enquanto representação do ser? Gostaria de insinuar uma hipótese
interpretativa: por meio da criação de corpos imaginários, de seres de linguagem 3 que
questionem nossa compreensão: acerca do que vemos e dizemos ser o corpo e o humano; de
como pensamos que este corpo possa ser; de o que este corpo pode fazer consigo. Em outros
termos, como, a partir dos contos de Rubião, colocam-se as questões: o que é o ser/corpo? De
que ser/corpo se trata? O que pode o ser um corpo em um texto literário? Necessariamente, a
voz literária tem de remeter a um corpo humanizável?
Considerando que tal corpo se apresenta como um objeto hipotético, um corpo incerto,
contingente, digamos, então, que ele pode se manifestar como quiser — podendo se
apresentar tanto como um corpo qualquer, indeterminado a partir de um modelo
antropomórfico; ou como ‘um corpo qual quer’, um corpo que se modela como quer, que se
realiza de acordo com suas necessidades específicas, de modo a criar, para si, um modo
singular de estar no mundo.
Se efetuarmos um levantamento das representações do corpo, entendido aqui enquanto
uma figura, como uma imagem do pensamento 4 (uma imagem que também é conceito) que
viabiliza pensar a natureza impessoal deste corpo próprio ao mundo da ficção, considere-se a
possibilidade de tentarmos uma leitura contrastiva, ao tomar tal corpo despersonalizado,
corpo impessoal da linguagem, como índice de uma experiência do Fora. Tal corpo seria uma
imagem de um regime de narratividade que tensiona a legibilidade pautada no
reconhecimento.
Em um breve exame da obra de Murilo Rubião, pode-se perceber e repertoriar algumas
imagens de sujeitos ficcionais e de seus corpos singulares — como a condição limite do
personagem nem morto nem vivo de O pirotécnico Zacarias; o homem de natureza
desconhecida que, nascido sem pai ou mãe, depara-se consigo pela primeira vez diante de um
espelho, já grisalho e entediado, que protagoniza O ex-mágico da Taberna Minhota; o porte, o
apetite e o desejo incomensuráveis da protagonista do conto Bárbara; a criatura sem origem
ou forma definida, de temperamento instável que pode se transformar em outras criaturas em
1
Doutorando em Teoria da Literatura e Literatura Comparada – Pós-Lit/FALE/UFMG. E-mail:
[email protected]
2
BRANDÃO, 2002, p. 183.
3
Faço alusão ao conceito foucaultiano de ser (da) linguagem. Segundo Levy (LEVY, 2003, p. 62-63) “A
literatura, na Modernidade, manifesta o reaparecimento do ser vivo da linguagem. (...) A literatura instaura,
assim, um espaço de contestação do pensamento representativo. É uma nova ontologia que aqui surge: não mais
a do ser-homem, mas a do ser-linguagem. (...) O ser da literatura não concerne nem ao homem nem aos signos,
mas ao espaço do duplo. (...) Referindo-se a si própria, a linguagem se constitui como dupla, como dobra”.
4
O conceito de imagem do pensamento é aqui tomado de empréstimo a Gilles Deleuze. De acordo com o
filósofo, a imagem do pensamento seria “a própria imagem do pensamento, a imagem que ele [o pensamento] se
dá do que significa pensar, [do que seria] fazer uso do pensamento”. (LEVY, 2003, p. 95)
LINHA MESTRA, N.23, AGO.DEZ.2013
135
E O PORCO SE FEZ VERBO...
Teleco, o coelhinho; o estranho solitário que se torna transparente com o passar dos dias,
afetando corporeamente também o vizinho curioso que o observa em O homem do boné
cinzento; a fecundidade destoante e as crianças inumanas com olhos de vidro em Aglaia; o
homem que, em busca de alternativas à existência, transforma-se em porco, verbo e
dromedário no conto Alfredo.
No conto O pirotécnico Zacarias, somos apresentados a uma situação em que um
homem, após ser atropelado na estrada do ‘Acaba Mundo’, passa a ser tomado como uma
situação limite para a compreensão de todos à sua volta. Relutam em aceitá-lo como morto
(pois tem “os predicados geralmente atribuídos aos vivos”), em dizer que está vivo (pois
dizem que está morto, e que ‘quem se apresenta como ele é outro’), ou em dizer que se tornou
outra coisa, pois não compreendem sua condição-limite — fato que impede o protagonista de
construir um entendimento sobre a própria condição. Um sujeito morto? “Quem ainda pode
viver e estar morto? Mais do que uma figura de linguagem, poderia ser essa uma condição
ontológica possível?” 5
Para tornar mais confusa a situação, sentiam a impossibilidade de dar rumo a
um defunto que não perdera nenhum dos predicados geralmente atribuídos
aos vivos. (RUBIÃO, 2006, p.16)
Não fosse o ceticismo dos homens, recusando-se aceitar-me vivo ou morto,
eu poderia abrigar a ambição de construir uma nova existência. (RUBIÃO,
2006, p.17)
Só um pensamento me oprime: que acontecimentos o destino reservará a um
morto se os vivos respiram uma vida agonizante? (RUBIÃO, 2006, p.18)
Em O ex-mágico da Taberna Minhota, deparamo-nos com um protagonista que tem,
como maior incômodo, ter se deparado consigo um dia frente a um espelho, já de cabelos
grisalhos. “Fui atirado à vida sem pais, infância ou juventude. (...) Nascera cansado e
entediado”. 6 Sua condição excepcional de mágico se apresenta, para ele, tão naturalmente
desconhecida e incômoda como o fato de existir sem ter nascido, e de ser capaz de criar
outros seres, mas incapaz de dar um fim a sua própria existência: “Rolei até o chão,
soluçando. Eu, que podia criar outros seres, não encontrava meios de libertar-me da
existência”. 7
Por que me emocionar, se não me causavam pena aqueles rostos inocentes,
destinados a passar pelos sofrimentos que acompanham o amadurecimento
do homem? Muito menos me ocorria odiá-las por terem tudo que ambicionei
e não tive: um nascimento e um passado. (RUBIÃO, 1998, p. 08-09)
Se, distraído, abria as mãos, delas escorregavam esquisitos objetos. A ponto
de me surpreender, certa vez, puxando da manga da camisa uma figura,
depois outra. Por fim, estava rodeado de figuras estranhas, sem saber que
destino lhes dar. (RUBIÃO, 1998, p. 09)
Numa dessas vezes, irritado, disposto a nunca mais fazer mágicas, mutilei as
mãos. Não adiantou. Ao primeiro movimento que fiz, elas reapareceram
novas e perfeitas nas pontas dos tocos de braço. Acontecimento de
5
KEIL; TIBURI, 2004, p. 15.
RUBIÃO, 1998, p. 07.
7
RUBIÃO, 1998, p. 07.
6
LINHA MESTRA, N.23, AGO.DEZ.2013
136
E O PORCO SE FEZ VERBO...
desesperar qualquer pessoa, principalmente um mágico enfastiado do ofício.
(RUBIÃO, 1998, p. 10)
Teleco, o coelhinho nos apresenta uma criatura (a princípio um coelho) que fala e que se
transforma em outros animais, conhecidos e desconhecidos (mas sempre de acordo com sua
vontade, que parece condicionada pelo interesse em agradar ou desagradar a alguém). Certo
dia, ele decide ser “apenas homem”. Ao fim do conto, quando Teleco morre, fica a questão:
teria sido humano, em algum momento, antes de tornar-se um polimorfo?! Ou “teria
corrompido” sua potência metamórfica (seus devires?) ao tentar tornar-se humano?
Diante de mim estava um coelhinho cinzento(...). (...) convidei-o a residir comigo.
— À noite – prosseguiu – serei cobra ou pombo. Não lhe importará a
companhia de alguém tão instável?
Respondi-lhe que não e fomos morar juntos. (RUBIÃO, 1998, p. 144)
Amava as cores e muitas vezes surgia transmudado em ave que as possuía
todas e de espécie inteiramente desconhecida ou de raça já extinta.
— Não existe pássaro assim!
— Sei. Mas seria insípido disfarçar-me somente em animais conhecidos.
(RUBIÃO, 1998, p. 146)
— De hoje em diante serei apenas homem.
— Homem? – indaguei atônito. (...)
— Vamos, Teleco, chega de trapaça.
(...) — Teleco?! Meu nome é Barbosa (...). (RUBIÃO, 1998, p. 147-148)
— Voltar a ser coelho? Nunca fui bicho. Nem sei de quem você fala.
— Falo de um coelhinho cinzento e meigo, que costumava se transformar
em outros animais. (RUBIÃO, 1998, p. 149)
Ao acordar, percebi que uma coisa se transformara nos meus braços. No meu
colo estava uma criança encardida, sem dentes. Morta. (RUBIÃO, 1998, p. 152)
No conto Alfredo, um homem esgotado, incomodado com a vida entre seus
semelhantes, opta por se tornar outra coisa que não humano. Mas, o que pode um corpo,
literário ou não? Pode tornar-se porco? Sim, entre outras possibilidades. Ainda é viável
explorar as potências do humano por meio da linguagem, mesmo que, para repensar o
humano, seja preciso deformá-lo, inumanizá-lo. A partir de tal procedimento, no qual o
familiar passa ao desconhecido, de comum se configura como estranho, coloca-se em questão
o estatuto convencionado do corpo.
De início, Alfredo pensou que a solução seria transformar-se num porco,
convencido da impossibilidade de conviver com seus semelhantes, a se
entredevorarem no ódio. (RUBIÃO, 1998, p. 69)
Imaginou, então, que fundir-se numa nuvem é que resolvia. Resolvia o quê?
Tinha que resolver algo. Foi nesse instante que lhe ocorreu transmudar-se no
verbo resolver.
E o porco se fez verbo. (...) (RUBIÃO, 1998, p. 69)
Entretanto, o verbo resolver é, obviamente, a solução dos problemas, o
remédio dos males. Nessa condição, não teve descanso, resolvendo assuntos,
deixando de solucionar a maioria deles. (...) E transformou-se em
LINHA MESTRA, N.23, AGO.DEZ.2013
137
E O PORCO SE FEZ VERBO...
dromedário, esperando que beber água o resto da vida seria um ofício menos
extenuante. (RUBIÃO, 1998, p. 69)
...pelo qual se pensou o(utro) corpo
O espaço literário é, portanto, um espaço original,
onde as coisas e os seres não são ainda. A literatura
revela os seres em sua indeterminação original, antes
que eles sejam de fato. 8
O corpo também é conceito. O sensível também é da
ordem do inteligível.9
O corpo, como categoria do conhecimento, não é autoevidente, sendo antes o que não
sabemos, o mais próximo e o mais distante de nós mesmos, um espaço atópico, mutável. Se o
corpo (como sugere a epígrafe) também é da ordem do conceito, portanto da invenção e da
fabulação, podemos dizer que ele é da ordem do imaginário — tal como a realidade a qual
pertence que, antes de ser inteligível, antes de ‘ser vista e tornada dizível e compreensível’, coocorre com o momento de sua elaboração, sendo objeto e imagem (ou o corpo e a outra versão do
corpo) simultaneamente. A partir de tais proposições, considero que um texto como o de Murilo
Rubião, no qual a (ir)realidade imaginária se impõe como espaço de indeterminação, viabiliza um
exercício de leitura em que a imagem dos sujeitos ficcionais, ao atuar como vetor de naturalização
do irreal, auxilia a compreensão da singularidade própria da poética rubiana.
Ao relacionar os conceitos de experiência do Fora, ser (da) linguagem, e sujeitos
ficcionais na compreensão do funcionamento dos elementos constituintes do texto literário,
sugere-se uma abordagem conceitual que, partindo das possibilidades abertas por Blanchot e
Foucault, instigue a
(...) interrogar em que medida a literatura constitui um arranjo específico no
qual a inevitável ordenação da linguagem verbal (o irrecusável poder
“estriador” do espaço literário) pode ser constantemente reinventada – com
efeitos mais ou menos eficazes em determinado contexto de leitura – pela
suspensão dos códigos ordenadores (pela propensão “alisadora” do espaço
literário). (BRANDÃO, 2007, p. 215)
Dito isso, cabe perguntar: quais imagens de sujeito, espaço e tempo ficcionais a obra
apresenta e problematiza? Que índices ordenadores da linguagem (e da experiência) o texto
suspende? Como pode ser um corpo em um texto literário? Como o percebemos e como ele
pode ser representado na literatura? A corporeidade da voz literária tem que remeter à
representação de uma consciência de natureza antropomórfica? De que corpo afinal se trata,
de uma percepção que corresponde a determinações culturais, a objetivações de referências
extratextuais, ou seria uma configuração hipotética da qual se insinuam outras instâncias de
enunciação? Pode a literatura apresentar questionamentos às percepções e imagens
naturalizadas do corpo?
Ao questionar os parâmetros de regimes narrativos vigentes à sua época, a ficção de
Rubião propõe modelos de espacialidade e possíveis regimes de temporalidade e corporeidade
que atuam na configuração de um imaginário. A partir da indeterminação dessas categorias,
que se impõe como se fosse cotidiana, produz-se a emergência de uma irrealidade ficcional
8
9
LEVY, 2003, p. 33.
BRANDÃO, 2002, p. 182.
LINHA MESTRA, N.23, AGO.DEZ.2013
138
E O PORCO SE FEZ VERBO...
que questiona a validade de um modelo realista-verossímil — mas que não postula, em seu
lugar, outra concepção de natureza ou de realismo literário.
Ao justapor as premissas teóricas apresentadas, aventa-se, a título de hipótese em defesa
do atrito, que a máquina literária atua como usina na qual se ficcionalizam figurações de
corpos. Ao atuarem como formas de subjetivação, que tematizam o corpo enquanto res
cogitans (mente) e res extensa (corpo) que limita a linguagem, essas consciências hipotéticas
deslocam as condições de leitura do literário. Sendo o lugar em que se dá toda a travessia na
aventura humana, perguntar pela natureza do corpo, no âmbito do texto ficcional, implica no
exame das condições e possibilidades de experimentação e conhecimento da vida por meio
desse exercício do imaginário a que chamamos literatura.
Assim, o espaço literário constitui-se não só como um meio de reflexão, mas também
como “(...) uma experiência que, ilusória ou não, aparece como meio de descoberta e de um
esforço, não para expressar o que sabemos, mas para sentir o que não sabemos”. 10
Referências
BLANCHOT, Maurice. A parte do Fogo. Tradução de Ana Maria Scherer. Rio de Janeiro:
Rocco, 1997. 330p.
BRANDÃO, Luis Alberto. Teoria do corpo na literatura brasileira contemporânea. In:
DUARTE, R.; FIGUEIREDO, V.; FREITAS, V.; KANGUSSU, I. (orgs.). Kathársis: reflexos
de um conceito estético. Belo Horizonte: C/Arte, 2002, p. 182-187. 335p.
BRANDÃO, Luis Alberto. Espaços literários e suas expansões. ALETRIA. Revista de estudos
de literatura, Belo Horizonte, v. 15, p. 207-219, jan./jun. 2007. (Caderno Temático “Poéticas
do espaço”)
COUY, Venus Brasileira. Contornos do corpo. Revista Travessias, Vol. 3, n. 1, (2009).
Disponível
em:
<http://www.unioeste.br/prppg/mestrados/letras/revistas/travessias/ed_005/artigos/ARTE%20
E%20COMUNICA%C7%C3O/pdfs/CONTORNOS%20DO%20CORPO.pdf.> Acesso em:
20 abr. 2010.
KEIL, Ivete; TIBURI, Marcia. Diálogo sobre o corpo. Porto Alegre: Escritos, 2004. 192p.
LEVY, Tatiana Salem. A experiência do fora: Blanchot, Foucault e Deleuze. Rio de Janeiro:
Relume-Dumará, 2003. 132p. (Conexões; 19)
LINS, Daniel Soares; GADELHA, Sylvio. Nietzsche e Deleuze: que pode o corpo. Rio de
Janeiro: Relume-Dumará, 2002. 290p.
ROCHA, João Cezar de Castro (org.). Teoria da ficção: indagações à obra de Wolfgang Iser.
Rio de Janeiro: Ed.UERJ, 1999. 256p.
RUBIÃO, Murilo. Contos reunidos. Posfácio de Vera Lúcia Andrade. São Paulo: Editora
Ática, 1998. 279p.
10
BLANCHOT, 1997, p. 81.
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139
SESSÃO 8 – SOBREPOR UM DESATINO VERMELHO... (OU EX-CAPANDO
DAS CAPAS)
ESPERANÇAS DE UM DES(A)TINO
Elenise Cristina Pires de Andrade 1
Renato Salgado de Melo Oliveira 2
“(...) Não gosto dos pontos, pôr os pontos nos is me parece estúpido.
Não é a linha que está entre dois pontos, mas o ponto que está no
entrecruzamento de diversas linhas. A linha nunca é regular, o ponto
é apenas a inflexão da Lina. Pois não são os começos nem os fins que
contam, mas o meio. As coisas e os pensamentos crescem ou
aumentam pelo meio, e é aí onde é preciso instalar-se, é sempre aí
que isso se dobra.”
Gilles Deleuze, Conversações.
Dobras, arquivos, Deleuze, Derrida, respirações, medos, a saga Star Wars, imagens em
proliferação... Escritas em dispersão, fragmentos lançados ao pensamento, em um movimento
de resistência de uma política da representação para as expressões de artefatos culturais.
Vontade, desse texto, em propor uma escrita sem desenvolvimento explicativo, como o
conteúdo em Kafka, os blocos, por exemplo, que se arrastam na expressão, como nos avisam
Deleuze e Guattari (1977). Como esse procedimento poderia nos ajudar em uma conversa
subalterna acerca dos conceitos de dobra e arquivo? Talvez rasuras nas tradições dos
diálogos, dos consensos, das comparações. Traços que criam rascunhos potencializadores do
exercício do pensamento. Dobras que (se) aplicam como procedimento. Ressoar pelo conceito
de dobra, pli. Dobrar, plier. Escrita em fragmento, onde não há mistério a ser desvendado e
tampouco algo essencial que deva ser compreendido durante a prática da leitura, o gesto da
escrita e suas múltiplas relações com a vida. Esboços que não explicam. Arquivos que
preenchem corredores assim como a linha reta percorrida pelos blocos na literatura menor de
Kafka. Arquivar esquivando-se.
Dobras/vozes que se esquivam intensificando uma potência do falso. Voz que é de
Darth Vader, David Prowse 3, James Earl Jones 4, nenhum e/ou todos eles? Uma voz para
indicar caminhos em uma marca qualquer de GPS? 5 Que(m) se expressa através da máscara?
Nós? George Lucas? Ninguém? Todos? Fluxo contínuo a expulsar uma cadeia de
significação, de fidelidade, acompanhando Deleuze quando ele se refere a Leibniz e sua
proposta de (de)composição da matéria do universo:
“(...) Sem dúvida o erro de Descartes, que reencontraremos em diferentes
domínios, foi acreditar que a distinção real entre as partes trazia consigo a
separabilidade: o que define um fluido absoluto é, precisamente, a ausência
de coerência ou de coesão, isto é, a separabilidade das partes, que, de fato, só
convém a uma matéria abstrata e passiva” (DELEUZE, p. 16-17, 1991).
1 Professora do Departamento de Educação e do Mestrado em Educação da Universidade Estadual de Feira de
Santana (Uefs), Bahia. ([email protected]).
2 Doutorando pelo Programa Teoria e História Literária, IEL, Unicamp ([email protected]).
3 Ator que interpretou Darth Vader nos três primeiros filmes gravados.
4 Ator que dublou todas as cenas interpretadas por David Prowse.
5
Vídeo intitulado Vilão Darth Vader empresta sua voz para GPS, postado por Alexandre Scarelli, em
17/06/2010. Disponível em http://www.youtube.com/watch?v=IDVJEBN6EsQ.
LINHA MESTRA, N.23, AGO.DEZ.2013
140
ESPERANÇAS DE UM DES(A)TINO
Ele veio de longe, das estrelas, e disse que eu teria um grande
futuro, que poderia ser muito mais que um escravo. Conseguiu me
comprar em uma aposta, em um jogo de corrida, os Pods... não sabe?
São aquelas pequenas naves de corridas, que flutuam. Diziam que eu
era o único humano capaz de correr, graças à Força. “Vou te levar
para a
Academia e
você será um
grande Jedi”
, ele disse.
Todos sabiam
que era
mentira.
Sim,
todos... Já
se
debruçaram
no pôster do
Episódio 1?
Tem uma foto
linda minha,
ainda
garoto,
saudades...
perto de
casa, mas a
minha
sombra.
Vamos,
observem! Um
tal futuro
projetado.
Jedi uma
ova!, Eu
seria o cara
desfigurado,
mal amado,
na roupa
preta,
bufando
pelos cantos
e esmagando
pescoços.
Tinham tanta
certeza que
isso ia
acontecer
que fizeram
os Episódios
4, 5 e 6
antes!
Desaforo!
Acredito que
ele me
traiu, ele
sabia, tenho
certeza que
já tinha
visto esses
episódios, ao menos lido o roteiro, o papo de Jedi foi só para me
enganar, é típico dele, sabe? Mas vem acontecendo algo de estranho
comigo, era disso que eu queria falar, pelo menos na sessão de hoje.
Para quem não viveu no planeta Terra nesses últimos 30 anos: a saga Star Wars quer
narrar as vidas dos membros da família Skywalker, principalmente a do pequeno Anakin, e no
futuro (ou passado?), a de seus filhos Luke e Leia 6. O público que acompanha a narrativa já
conhece o futuro certo do jovem e esperançoso garoto encontrado pelo Jedi Quin-Gon Jinn e
treinado pelo seu discípulo Obi-Wan Kenobi. Por mais que alguns Jedis deslumbrem a
possibilidade Anakin ser o “escolhido” – o que traria a união para a Força e pacificaria a
Galáxia – sua sombra e seus fantasmas (a mãe escrava deixada para trás, seu amor possessivo
pela princesa Amidala e o medo da morte) anunciam constantemente o destino de Anakin:
6
A primeira trilogia (em ordem cronológica de exibição e não de narrativa): episódios IV Uma nova esperança
(1977), V O império contra-ataca (1980) e VI O retorno do Jedi (1983) trazem o futuro para o passado e acaba
por projetar uma sombra que fada o destino do herói da segunda trilogia (Anakin): episódios I A ameaça
fantasma (1999), II Ataque dos clones (2002) e III A vingança dos Sith (2005).
LINHA MESTRA, N.23, AGO.DEZ.2013
141
ESPERANÇAS DE UM DES(A)TINO
Darth Vader, a grande figura do The Dark Side. “I’ve got no real life” 7! O que seria ter uma
vida real? Perder-se, esquecimentos, Jedis? Que guerras seriam essas travadas pela vontade
quase unânime e consensual de arquivar dados para proteger a essência contra o
esquecimento, impedir sua variedade em nome de uma pretensa natureza? Pulverizar Vaders
pelo mundo seria uma outra lógica de arquivar, mobilizando as sensações sobre Star Wars?
Oh my my, this here Anakin guy
Maybe Vader someday later - now he's just a small fry
And he left his home and kissed his mommy goodbye
Sayin' "Soon I'm gonna be a Jedi"
"Soon I'm gonna be a Jedi" 8
Na saga cinematográfica o futuro está dado, Anakin não tem opção, é um refém do
destino, do roteiro, da narrativa, do diretor, seja lá de quem ou do que, que faz da narrativa ser
contada da forma como é. Porém a Internet fez de Darth Vader milhares de outras coisas, de
General do Exército Galáctico Imperial se proliferou em infinitas possibilidades, entre tantos
outros vaders que escapam ao destino de Anakin.
Mas o que essas proliferações fazem? Seriam elas capazes de libertar Anakin de seu
destino, proliferar vidas e possibilidades? Rascunhos de um tempo negro. Forças que
escolhem lados. Sabres. Vozes. Ex-pressão. Buscas, procuras, Lucas, estrelas, guerras. Jedis.
Memórias de um tempo que não se alinha, que não tem tempo para explicações, mas que
George não resiste e insiste – há lado, há Força. Nascimento e Estrela da Morte. Death e
Darth... Vader. Medos perdidos, esquecidos, que nunca existiram... Proliferação: apagamentos
e escritas em ritmo maquínico, em tensões com outras guerras que anunciam sua estratégia
em escrever, inscrever, arquivar essa genealogia (dos Skywalker) para proteger a essência
primeira, origem da qual todo resto é reflexo – representação? No entanto, os milhares de
Vaders proliferam na Internet, vídeos, desenhos, blogs, animações e tantos outros suportes
para inúmeras expressões. Darths pulverizados pelo mundo. Deaths a pulsar. (D)art(h) a
ressoar. Seria essa proliferação uma outra lógica de arquivo, não mais a da genealogia, que
deseja percorrer sensações sobre Star Wars e não mais estabelecer linhagens verdadeiras, mas
ensaios de pulsações? Sussurra o diabo de trás da máscara negra, ele próprio, o demônio, uma
outra máscara de carnaval:
“Mas o que você sabe de mim, uma vez que eu acredito no segredo – quer
dizer, na potência do falso – mais do que nos relatos que revelam uma
deplorável crença na exatidão e na verdade?” (DELEUZE, p. 20, 2006).
Enquanto atraversamos o diálogo por trás da máscara, pela sua frente o post de
Moviefone 9 questiona o ator David Prowse: “While wearing the costume, did it make you feel
any different?”, que responde: “I felt powerful. It was funny, everyone was subservient to
Darth Vader – the character in the movie. And everybody treated me that way in real life, too.
It was quite interesting”.
7
Verso da canção disponível no vídeo intitulado SW - Midichlorian Rhapsody - Legendado PTBR, postado no
youtube por csasith em 10/09/2010. Disponível em < http://www.youtube.com/watch?v=7FcHpIiFArM>.
8 Trecho da canção disponível no vídeo intitulado "Weird Al" Yankovic - The Saga Begins, postado no youtube
por alyankovicVEVO em 02/10/2009. Disponível em <http://www.youtube.com/watch?v=hEcjgJSqSRU >.
9Darth Vader Actor Talks George Lucas Conflict, And Why He Didn't Want To Play Chewbacca, postado em
08/08/2012. Disponível em <http://news.moviefone.ca/2012/08/08/darth-vader-david-prowse-georgelucas-star-wars-interview_n_1756182.html>.
LINHA MESTRA, N.23, AGO.DEZ.2013
142
ESPERANÇAS DE UM DES(A)TINO
São tantos medos!
Tantos poderes! Estou
assustado, muito
assustado! Para
qualquer lado que olho,
vejo os filmes, os
quadrinhos, os
desenhos, enfim tudo
que foi produzido sob o
olhar do Lucas, aquilo
que conta a minha
história – que ele,
orgulhosamente,
denomina de original –
algo sempre se
repete...
Fonte da imagem: http://blogs.estadao.com.br/renato-cruz/darthvader-triste/
Mas o que? Nem eu mesmo
consigo saber e, talvez por
isso, o medo. Seria a
máscara em si? Talvez Lucas
saiba e se sinta bem por
saber, mas eu... não me
lembro, me falta a certeza
daqueles que acreditam que
o seu rosto não é máscara!
Montagem da tela Almoço na relva (Monet, 1863,
Louvre) e uma imagem disponível em:
http://hype-tattoobrazil.blogspot.com.br/2012/07/artede-michel-achard.html
São
tantos
medos!
Verticalidade renegada, linearidade
dos olhos abandonada. Para qualquer
lado que olho, vejo os Vaders, as
suas cartas de desabafo, suas
propagações, tristezas, mas e o olho
de Lucas? Dos autores desse texto?
Sentir-se-iam bem em saber? Em
ver? Desatino!
Em “Mal de Arquivo” (2001), Derrida nos sugere uma leitura freudiana da noção de
arquivo. Nesta leitura a noção de arquivo é descolada da noção de memória, assim a primeira
não pode ser reduzida a segunda. O arquivo não registra, acumula, representa e/ou dispõe uma
memória. Opera em outro sentido, segundo três condições: a do guardião (arconte) que é a
figura responsável por zelar e interpretar o arquivo; a domiciliação que ao mesmo tempo
impõe a condição material do arquivo (seu suporte) e a sua residência: “(...) este lugar onde se
de-moravam (...)” (DERRIDA, 2001: 13); e por fim a consignação que é a operação de
produção de um signo através da constituição da série de arquivos:
LINHA MESTRA, N.23, AGO.DEZ.2013
143
ESPERANÇAS DE UM DES(A)TINO
“(...) A consignação tende a coordenar um único corpus
em um sistema ou uma sincronia na qual todos os
elementos articulam a unidade de uma configuração
ideal. Num arquivo, não deve haver dissociação
absoluta, heterogeneidade ou segredo que viesse a
separar (secernere), compartimentar de modo absoluto.
O princípio arcôntico do arquivo é também um
princípio de consignação, isto é, de reunião.”
(DERRIDA, 2001:14, itálico no original).
Pensando com Freud, Derrida insere dentro
da noção de arquivo a noção de esquecimento. A
produção da série de arquivos é também uma
repetição, cuja lógica, Derrida aponta como “(...)
indissociável da pulsão de morte (...)” (DERRIDA,
2001:23). Nesta pulsão de morte opera a
destruição, o apagamento e o esquecimento, deste
modo: “(...) o arquivo trabalha sempre a priori
contra si mesmo (...)” (DERRIDA, 2001:23). Ao se
Fonte da imagem:
repetir, em nome da consignação, o arquivo produz
http://files.g4tv.com/ImageDb3/295587
_S/darth-vaders-favorite-side-of-theo apagamento de suas próprias possibilidades, de
moon.jpg
sua multiplicidade. Tende a uma compulsão à
repetição. Daí que sofre deste mal de arquivo. A
série produz e é produzida ao mesmo tempo pelo arquivamento.
LINHA MESTRA, N.23, AGO.DEZ.2013
144
ESPERANÇAS DE UM DES(A)TINO
Para Star Wars, o que propomos
não seria produzir oposições, dois lados
de uma moeda, mas sim bifurcações,
trifurcações,
multifurcaçõres...
Não
queremos ter de um lado a narrativa
oficial produzida sob o olhar atento de um
arconte (seja a empresa de George
Fontomontagem da imagem disponível em:
http://img2.joyreactor.com/pics/comment/darthvader-disney-229532.jpeg
Fonte da imagem: http://sphotosa.xx.fbcdn.net/hphotosprn1/p480x480/65115_515777081774714_2
11495320_n.png
Lucas ou a Disney) e de outro uma
proliferação incontrolável de Darth Vaders,
sem uma ordenação que as controle, sem a
produção de uma memória cronológica que
trace um sentido capaz de enunciar o “eu” (no
caso Darth Vader). São mais bifurcações
(enforcações?) no sentido em que Borges nos
propõe:
O jardim de caminhos que se bifurcam é uma enorme charada, ou parábola,
cujo tema é o tempo (...) O jardim de caminhos que se bifurcam é uma
imagem incompleta, mas não falsa, do universo tal como o concebia Ts‘ui
Pen. Diferentemente de Newton e de Schopenhauer, seu antepassado não
acreditava num tempo uniforme, absoluto. Acreditava em infinitas séries de
tempos, numa rede crescente e vertiginosa de tempos divergentes,
convergentes e paralelos. Essa trama de tempos que se aproximam, se
bifurcam, se cortam ou que secularmente se ignoram, abrange todas as
possibilidades. Não existimos na maioria desses tempos; nalguns existe o
senhor e não eu. Noutros, eu, não o senhor; noutros, os dois. Neste, que um
acaso favorável me surpreende, o senhor chegou a minha casa; noutro, o
senhor, ao atravessar o jardim, encontrou-me morto; noutro, digo estas
mesmas palavras, mas sou um erro, um fantasma (BORGES, 1989, pp. 8182, grifos do autor).
Milhões de vozes, murmúrio infinito, interpelam a enunciação. Vontade de dizer,
recortar o mundo com as palavras e dar forma ao real. Dizer Darth Vader e condizer a um
corpo que habita ao mundo (seja que mundo for esse do Facebook, da internet). Mas são
LINHA MESTRA, N.23, AGO.DEZ.2013
145
ESPERANÇAS DE UM DES(A)TINO
tantas vozes que dizem Darth Vader quanto as que habitam o mundo que não é possível
corresponder cada um com o seu qual. Nem arquivando, catalogando, etiquetando seria
possível. Logo no início de cada um dos seis filmes, um breve texto quer explicar ao
espectador o que está acontecendo na narrativa, mas o som, a história e os sentidos
extrapolam essa vontade. Ao rolar na tela “A long time ago in a galaxy far, far away....” a
admiração nos provoca a dela escapar, como a capa de Vader ex capa e invade tantas imagens
que povoam esse texto... “A long
time ago in a galaxy far, far
away....” um jeito de dizer “Era
uma vez” com as palavras da
ficção científica. Assim abrem-se
as cortinas do palco para se
contar uma fábula, é como pedir
licença, não por um importuno,
mas uma convocação. Uma
invasão, como nos diz Derrida. E
traça-se uma distância (long time
ago, far, far away), em direção ao
espaço, ao vazio, uma rachadura
a ser invadida por infinitos
Vaders, a perder de vista em seu
sentido infinito, em sua força de universo. Pra cada Vader, infinitos Darths ecoam. Infinitas
Deaths que clamam vida para fora dos arquivismos, nas linhas das invaginações da operação
das dobras. (d)art(h). No meio. Sem destino. Cem destinos. Disatinos. Diz, aí, em que atinar?
Atirar? Com o sabre de luz!
E, agora,
esses
sonhos! Não
sei bem se
são sonhos
ou se são
lembranças,
devaneios,
loucura?
(silêncio
abafado pelo
som metálico
de sua
respiração)
“Quer um
lenço?”
“Não, tem a
máscara...”
LINHA MESTRA, N.23, AGO.DEZ.2013
146
ESPERANÇAS DE UM DES(A)TINO
Referências
BORGES, Jorge Luis. Ficções. São Paulo: Globo, 1989.
DELEUZE, Gilles. A dobra: Leibniz e o barroco. Tradução Luiz B.L. Orlandi. Campinas:
Papirus, 1991.
DELEUZE, Gilles. Conversações. Tradução Peter Pál Pelbart. São Paulo: Ed. 34, 2006.
DELEUZE, Gilles. Crítica e clínica. São Paulo: ED 34, 1997.
DERRIDA, Jaques. Mal de arquivo: uma investigação freudiana. Rio de Janeiro: Relume
Dumará, 2001.
LINHA MESTRA, N.23, AGO.DEZ.2013
147
CHAPEUZINHO VERMELHO E OS (IN)SIGNIFICANTES DESENHOS
INFANTIS 1
Giovana Scareli 2
Chapeuzinho!!
Talvez a Chapeuzinho Vermelho seja
uma das personagens mais lidas e
vista nos mais diferentes produtos.
Além das ilustrações dos livros, dos
desenhos animados, dos teatros
infantis, dos CDs musicais, as
Chapeuzinhos
aparecem
nas
camisetas, com os “anões de jardim”,
como matrioskas e dentre tantos
outros.
Será a Chapeuzinho com
um dos anões ou a Branca
de Neve resolveu brincar de
Chapeuzinho?
E
esse
flamingo, o que faz com os
dois?
Por que eles estão
amarrados?
Quantas perguntas podemos fazer com essas imagens (in)significantes? A-significam?
(In)significantes também essas perguntas, talvez esse texto, mas o que nos leva a falar disso?
Out-significantes?
Minha hipótese é a de que há algo de potente nas coisas (in)significantes. Algo que
requer de nós um outro tipo de relação, diferente do que se propõe algumas políticas que
buscam a reflexão, a crítica, a transformação a partir de temas “sérios”, caros, de um
determinado tipo de necessidade humana. Profundos, essenciais, fundamentais. As coisas
menores, os detalhes, as fissuras, os fragmentos, a planta que nasce na trinca da parede, essas
coisas são (in)significantes para a maioria das pessoas.
Ao procurar essas Chapeuzinhos penso nas potências não só das coisas (in)significantes,
mas também nas potências do falso, que segundo Deleuze (2007, p. 164) “só existe sob o
1
Agradeço aos meus ex-orientandos de Iniciação Científica: Flávia dos Santos Nascimento, Marilia Gabriele
Melo dos Santos, George Emmanuel do Nascimento Araújo, pelos estudos, pelo acompanhamento durante o
Projeto de Extensão e Pesquisa no Núcleo de Educação da Unit, pela digitalização de todo o material e pela
companhia durante todo o tempo que estivemos juntos.
2
Professora do Departamento de Ciências da Educação e Programa de Pós-Graduação em Educação,
Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ), MG ([email protected]).
LINHA MESTRA, N.23, AGO.DEZ.2013
148
CHAPEUZINHO VERMELHO E OS (IN)SIGNIFICANTES DESENHOS INFANTIS
aspecto de uma série de potências, que estão sempre se remetendo e penetrando umas às
outras.” Uma cadeia de Chapeuzinhos, em camisetas, esculturas em jardins, em bonequinhas,
ilustrações, filmes, em fotografias de Taboquinhas 3 e nos desenhos das crianças do Núcleo de
Educação da Unit 4.
Visualidades que nos fazem questionar: qual o valor, a importância de um desenho
infantil? O que fazem os pais e professores com a quantidade enorme de desenhos feitos pelas
crianças? Não estou aqui defendendo que TODOS os desenhos sejam guardados para a
posteridade, mas proponho pensar no que (ins)crevem as crianças? O que expressam? Como
(re)criam Chapeuzinhos e lobos e mães e avós e florestas e outros personagens que, por
ventura, invadem o desenho? A singeleza, a simplicidade, a (in)experiência faz com que o
conjunto de desenhos se tornem uma “pseudo-narrativa”.
A narrativa não se refere mais a um ideal de verdade a constituir sua
veracidade, mas torna-se uma “pseudo-narrativa”, um poema, uma narrativa
que simula ou antes uma simulação da narrativa. As imagens objetivas e
subjetivas perdem sua distinção, mas também sua identidade, em proveito de
um novo circuito onde se substituem em bloco, ou se contaminam, ou se
decompõem e recompõem (DELEUZE, 2007, p. 181).
As crianças vão criando outras histórias, inventando Chapeuzinhos e lobos e cenários e
personagens que não são vistos por quase ninguém. Rabiscos quase (in)visíveis numa folha de
papel branca A4.
3
Oficina realizada com um grupo de crianças em 2012 no distrito de Taboquinhas, Itacaré/BA. A Oficina
consistiu em contar a historia da Chapeuzinho Vermelho e inventar, (re)criar esses personagens e cenários neste
distrito com a ajuda de câmeras fotográficas.
4
Projeto de Pesquisa e Extensão realizado no Núcleo de Educação da Universidade Tiradentes em Aracaju/SE,
junto as primeiras séries do ensino fundamental. Nestes encontros, contávamos uma história, conversávamos
sobre ela e ao final, as crianças produziam um desenho.
LINHA MESTRA, N.23, AGO.DEZ.2013
149
CHAPEUZINHO VERMELHO E OS (IN)SIGNIFICANTES DESENHOS INFANTIS
Um lobo com carinha de bobo, na cama da vovó, poderia ser mais um desenho
(in)significante. No entanto, a representação gráfica do lobo e o ângulo escolhido para essa
representação são muito interessantes. A criança vê o lobo com carinha ingênua, quase um
gatinho e de cima para baixo, como se ela estivesse olhando as coisas de cima, do teto. No
outro desenho, vemos uma Chapeuzinho TODA de vermelho que encontra um lobo (também
com cara de bobo) na floresta com uma árvore cheia de frutinhas vermelhas. A cena é muito
presente nas ilustrações desse conto. Quase sempre este momento é representado. Porém, não
podemos deixar de olhar para o coração representado acima da cabeça do lobo, símbolo do
amor, do apaixonamento... Um lobo apaixonado pela Chapeuzinho. O último desta pequena
série mostra a Chapeuzinho despedindo-se de sua mãe com o lobo à espreita. Mais um
episódio que é comum, no entanto, há um condensamento de vários momentos neste desenho:
a cena da despedida da filha com a mãe, o lobo na floresta, e a casa da vovó. Mas o mais
interessante é a maneira como a criança conseguiu mostrar a distante casa da vovó, numa
tentativa de perspectiva.
O desenho infantil constitui, portanto, um modo de expressão próprio da criança, uma
forma expressiva que possui seu vocabulário, um tipo de visualidade. Ao prazer do gesto,
associasse o prazer da inscrição, a satisfação de deixar a sua marca, como o ato de desenhar.
Desenhar é registrar o lúdico, o artístico ou o científico através de linhas,
pontos e manchas. Daí o desenho ser um eficiente meio de comunicação
enquanto expressa idéias graficamente. Indivíduos de diferentes origens e
valores sociais têm no desenho uma indispensável e importante ferramenta
para a comunicação (DERDYK, 1994, p.239).
Derdyk (1994) fala do potencial comunicativo do desenho, além do expressivo, ou seja
a criança desenha para se comunicar com alguém, com ela mesma, com o mundo. Mas esta
autora ainda afirma que o ato de desenhar impulsiona outras manifestações, que acontecem
juntas, em uma atividade indissolúvel, possibilitando uma grande caminhada pelo quintal do
imaginário. Com efeito, o desenho constitui a expressão da visão de mundo que cada criança
possui, pois através dele a criança desenvolve suas potencialidades manifestando suas
reflexões.
Mas nessas produções gráficas, acabamos vendo muitas vezes, uma necessidade de
representação, algo figurativo, que se aproxima do real e isso acontece, segundo Mèredieu
(1991), porque a criança tenta imitar as pessoas, os acontecimentos e as coisas a sua volta.
Essa constatação, da influência do meio sobre a criança e seu desenho, também comprovam o
“mito da espontaneidade” e mostra explicitamente a influência do meio sobre a criança.
LINHA MESTRA, N.23, AGO.DEZ.2013
150
CHAPEUZINHO VERMELHO E OS (IN)SIGNIFICANTES DESENHOS INFANTIS
Os adultos têm certa responsabilidade sobre isso, pois interferem muito no fazer da
criança, sugerindo, dando exemplos, perguntando insistentemente “o que é isso?” “Você está
desenhando o quê?” e essas perguntas feitas pelos adultos, segundo Mèredieu (1991, p. 17)
“equivale àquela mesma atitude de procurar compreender a qualquer preço” o que quer dizer
“uma tela abstrata”.
Sans (1995, p. 24), nos lembra que,
[...] a criança que viver a sua infância com respeito, entendimento e
criatividade, estará mais próxima de ser uma adulto com visão capaz de
superar o dogmatismo social de sua época, oferecendo condições ainda não
atingidas para sua convivência humana aconteça com mais dignidade. E para
que a esperança seja nutrida é necessário que a criança viva conforme os
princípios de sua natureza lúdica, não sendo sufocada pelo ritmo das
vontades do adulto.
Essas “influências” ou “interferências” acontecem muito nas escolas, principalmente
com as crianças que iniciam muito cedo sua vida escolar e quando a escola é mais preocupada
com a “transmissão” de conteúdos. Com o tempo, a criança vai perdendo a ludicidade e as
oportunidades de expressão em diferentes linguagens, pois o importante é se preparar desde
cedo para o vestibular, ENEM, mercado de trabalho etc. Os adultos, principalmente, os
profissionais da educação e os pais estão, na sua grande maioria, privando as crianças de sua
linguagem mais própria, de sua maneira de expressão mais autêntica. “A perda do lúdico
provoca na criança o envelhecimento precoce e atrofia a espontaneidade” (SANS, 1995, p.
22).
Nesses dois desenhos, que mostram a mesma cena, há algo de lúdico: um lobo de olhos
arregalados, braços para cima, “cabelos loiros” e vestindo uma bermuda, para diante da
Chapeuzinho toda de vermelho (querendo assustá-la?). Ao lado, um lobo sem cor, estende os
braços em direção a uma Chapeuzinho com cara de brava, também vestida totalmente de
vermelho. A graça desta cena está no lobo que olha para nós, leitores/espectadores, assim
como a Chapeuzinho (um teatro, eles encenam a cena?) De repente o medo encenado, de um
lobo que todos já conhecem, se transforma em riso, em algo hilário. Para Moreira (2005, p.
26), “o desenho como possibilidade de brincar, o desenho como possibilidade de falar, marca
LINHA MESTRA, N.23, AGO.DEZ.2013
151
CHAPEUZINHO VERMELHO E OS (IN)SIGNIFICANTES DESENHOS INFANTIS
o desenvolvimento da infância”. Pura brincadeira desenhante que quebra com as
representações mais comuns e resiste às explicações do mundo.
O desenho da criança constitui uma atividade total, englobando o conjunto de suas
potencialidades e necessidades. Ao desenhar, a criança expressa a maneira pela qual sente
existir. O desenvolvimento do potencial criativo na criança, seja qual for o tipo de atividade
em que ela se expresse, é essencial ao seu ciclo inato de crescimento. Similarmente, as
condições para o seu pleno crescimento (emocional, psíquico, físico, cognitivo) não podem
ser estáticas.
A garatuja não é simplesmente uma atividade sensório-motora,
descomprometida e ininteligível. Atrás dessa aparente “inutilidade” contida
no ato de rabiscar estão latentes em segredos existenciais, confidências
emotivas, necessidades de comunicação (DERDYK, 2010, p. 50).
A (in)utilidade de desenhar e a(in)significância do desenho infantil, fazem parte do
cotidiano da criança. Fissuras do trabalho, dos conteúdos, dos estudos para se dar ao deleite
de desenhar, do prazer, da ludicidade de pegar um lápis e inscrever alguma coisa sobre o
papel, a mesa, a porta do banheiro. Transgressões infantis que abandonamos pouco a pouco
para se tornarem devires futuros, como quando num gesto rápido, fazemos um sorriso ou
pintamos o dente de uma pessoa na foto de uma revista.
A criança rabisca pelo prazer de rabiscar, de gesticular, de se afirmar. O
grafismo que daí surge é essencialmente motor, orgânico, biológico, rítmico.
Quando o lápis escorrega pelo papel, as linhas surgem. Quando a mão para, as
linhas não acontecem. Aparecem, desaparecem. A permanência da linha no
papel se investe de magia e esta estimula sensorialmente a vontade de prolongar
este prazer, o que significa uma intensa atividade interna, incalculável para nós,
adultos. É um prazer autogerado, de calor de carinho. A autoria da magia
depende exclusivamente da criança (DERDYK, 2010, p. 52).
As crianças rabiscam, têm mil ideias para desenhar, mas nem sempre as mãos dão conta
de colocar no papel o pensamento, então riscam, apagam, fazem de novo e de novo até deixar
como está, ou amassar a folha e começar tudo novamente. É uma mistura de desejo e
frustração o que a criança experimenta ao desenhar.
LINHA MESTRA, N.23, AGO.DEZ.2013
152
CHAPEUZINHO VERMELHO E OS (IN)SIGNIFICANTES DESENHOS INFANTIS
As experiências das oficinas com crianças de seis até dez anos, deixa evidente que a
criança é uma observadora, ela examina as situações e retém informações com muita
facilidade. Quando desenha, seleciona algum aspecto da sua vida mais o que ela vê de
importante da história.
A (in)significância que muitos adultos atribuem aos desenhos infantis, demonstra a sua
ignorância sobre esse modo expressivo. Não precisamos psicologizar os desenhos, nem
nossas relações, muito menos as crianças. Mas oportunizar momentos de criação, conversar
sobre essas criações são ações importantes, pois através do desenho as crianças estão
organizando seus conhecimentos, sua compreensão de mundo e de si mesma, estabelecendo
uma relação com os outros e/ou com o mundo e/ou com ela mesma através dessas obras
(in)significantes.
Milhares de Chapeuzinhos (de todos os tipos, até uma Chapeuzinho transformista?)
saem todos os dias das casas de suas mães, encontram o lobo no meio do caminho, depois o
encontram novamente na casa da vovó e têm inúmeros desfechos: com caçador, com
lenhador, sem outros personagens... Chapeuzinhos de Taboquinhas, de Aracaju, dos irmãos
Grimm, de Charles Perrault, das ilustrações mais diversas. Na (in)utilidade aparente dos
contos, da (in)significância das coisas de criança, da reprodutibilidade criativa das
Chapeuzinhos e dos lobos pelo mundo afora (em que vamos tão sozinhos), inventamos e
(re)inventamos esse conto e replicamos seus personagens. Potências do falso na cadeia de
replicantes lobos e Chapeuzinhos. Narrativas contaminadas pelas experiências infantis, pelas
histórias dos contos clássicos, pelos seus (des)entendimentos de mundo. O que vemos nessas
obras é tudo isso e muitos mais... interferências das mais diversas ordens a produzir
significados (in)significantes no cotidiano pelos mundos afora.
Referências
DELEUZE, Gilles. A imagem-tempo. Tradução Eloisa de Araujo Ribeiro. Revisão filosófica
Renato Janine Ribeiro. São Paulo: Brasiliense, 2007.
DERDYK, Edith. Formas de pensar o desenho: desenvolvimento do grafismo infantil. 3. ed.
São Paulo: Scipione, 2004.
LINHA MESTRA, N.23, AGO.DEZ.2013
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CHAPEUZINHO VERMELHO E OS (IN)SIGNIFICANTES DESENHOS INFANTIS
MEREDIEU, Florence. O desenho infantil. 15. ed. São Paulo: Cultrix, 2008.
MOREIRA, Ana Angélica Albano. O espaço do desenho: a educação do educador. São
Paulo: Edições Loyola, 2005.
SANS, Paulo de Tarso Cheida. A criança e o artista: Fundamentos para ensino das artes
plásticas. 2. ed. São Paulo: Papirus, 1995.
LINHA MESTRA, N.23, AGO.DEZ.2013
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SOPREPOR? TRANSPOR? DISPOR? IMAGENS RESSOAM
Elenise Cristina Pires de Andrade 1
Erica Speglich 2
Ressonância. Operação, assim como a desdobra é a condição da manifestação da dobra
(Deleuze, 1991). Imagens e realidades que se apresentam sem a necessidade de
preenchimento pela/na representação, antes movimentos de fluxos, percursos,
montagens/colagens. (Mani/in)festação. Contágio. Propomos, nesse texto, junto a fotografias,
frames de filmes, desenhos, ciências, divulgações, fato e ficção, real e criação,
pensamentos/tensões que Amorim (2012) sugere às fotografias:
São as fotografias. Não outro tipo de imagem. A provocativa tensão entre
documento e o real ficcionado. Registro e invenção de espaços e tempos.
Aglutinação espaçotemporal. Ato de roubar nossa atenção, no texto escrito.
Narrar sem legenda. Criar com a imagem a lenda fabulatória de um mundo
que se abre às forças do tempo. As fotografias são, especialmente, um
motivo para se estender um território vivo para o pensamento paradoxal
persistir. Sem resolver entre uma e outra parte, apostando-se no meio, nas
fendas e nos interstícios da criação. (AMORIM, 2012:47)
Ressonâncias. Cinema e história em quadrinhos como movimento de criação. História
natural e biologia como produção que se quer registro. Entre-meio, fenda, dobras e(m)
desdobras que contam histórias diferentes, que refutam a convergência, que se movimentam
independentemente, atravessando (atraversando) dois-lugares distintos e inseparáveis, dois
andares: de cima e de baixo, corpo e alma. “O andar de cima dobra-se sobre o de baixo. Não
há ação de um a outro, mas pertença, dupla pertença. (...) a pertença nos conduz a uma zona
estranhamente intermediária (...)” (DELEUZE, 1991:180).
Estranheza entre “ações” de uma máquina de ressonância na produção em experiência,
na persistência de um pensamento paradoxal, como nos presenteia Amorim (2012). É a partir
dessa idéia que colocamos nossos questionamentos sobre a realidade, a imagem, uma explicação, uma justificativa política para a resistência das delimitações, marcações e fronteiras
e discutir as supremacias entre fotografias-desenhos, filmes da “realidade” e
“experimentações” visuais.
Lancemo-nos ao texto: e se não estivermos preocupadas com a (des)narrativa, mas sim
com a ressonância entre-meio, fenda, dobras e(m) desdobras das imagens? Ressonâncias que
provocam uma des-narrativa... num futuro do pretérito...
1
Professora do Departamento de Educação da Universidade Estadual de Feira de Santana (Uefs), Bahia
([email protected]).
2
Doutora em Educação pela Universidade Estadual de Campinas/SP ([email protected]).
LINHA MESTRA, N.23, AGO.DEZ.2013
155
SOPREPOR? TRANSPOR? DISPOR? IMAGENS RESSOAM
Sobrepor?
Composição entre “Lagoa das Aves” (Carl Friedrich Philip von Martius - imagem original reproduzida
de Belluzzo, 2000:116 Vol II) e “Vista do Alto da Serra do Mar” (Foto: Carlos Alfredo Joly, 2005
- Projeto Gradiente Altitudinal da Mata Atlântica, Programa Biota/Fapesp); Imagens congeladas
do filme O homem duplo, 2006; Gilles Deleuze (sem referência).
Ressoar desejos... Desejar ressonar... Desenhar imagens? Anima-nos, nestas paragens,
as lacunas, os tremores, o desprezo pelos modelos – sejam de recognição, de interpretação, de
roteiro. Montar esse texto como um storyboard que não é modelo para filmagem, assim como
o desenho dos naturalistas e a fotografia/filmagem dos biólogos não é modelo para
compreensão do mundo “natural”. Esse texto não quer ser modelo de explicação, mas uma
vontade de experimentação. A idéia de escrever um storyboard nos movimenta como algo
que ainda será filmado, um meio entre o roteiro e o filme final. Uma movimentação de
pensamento na tentativa de esgotar a narrativa. “Esgota o que não se realiza no possível. Ele
acaba com o possível, para além de todo cansaço, “para novamente acabar”” (Deleuze, p. 68,
2010). Algo que já mudou o que foi traçado inicialmente pelo roteiro e o que ainda será
alterado pela edição final do filme. Não é um reflexo do roteiro como não é um modelo do
filme. É um futuro do pretérito.
Não se trata de dizer que tudo é ficção. O que Nilda Alves irá nos sugerir é
atentarmos para o que as fotografias fazem quando não estamos olhando
para elas. Indica-nos que a fotografia (do passado) habita o futuro,
instaurando textualidades no presente, no agora, a reciprocidade temporal
que não tem data marcada para acontecer. (AMORIM, 2012:52)
Roubando as palavras e sãs sensações de Antonio Carlos ao criar sobre as palavras
textos de Nilda Alves, questionamos: o que fazem os storyboards quando não estão sendo
olhados como roteiros e filmes? Violência de traçados inexistentes, pois as coisas na
“realidade” não são contornadas. A ‘mágica’ do desenho em contornar o que não tem
contorno. Delimitar no descontrole, pois qualquer ser humano desenha, e nós chamamos de
bom desenhista aquele/a que mais se aproxima do real – o que é uma impossibilidade, já que
o real é indesenhável.
LINHA MESTRA, N.23, AGO.DEZ.2013
156
SOPREPOR? TRANSPOR? DISPOR? IMAGENS RESSOAM
Transpor?
Sobreposição de imagens congeladas do filme
Sin City (Frank Miller, Robert Rodriguez,
Quentin Tarantino, 2005)
Pesquisadores das ciências naturais gostam de pensar nas imagens que utilizam como
registros do acontecido. Imagens que ilustram, representam, documentam, que mostram como
a realidade é. Sejam pinturas, ilustrações ou fotografias, a imagem pouco aparece como
criação na ciência. A figura do pintor, ilustrador ou fotógrafo é sempre apagada – não da
autoria – mas de sua influência na criação daquela imagem. Restariam imagens muito
próximas da idéia de “transmissora de informações”, meio de trabalho, de entendimento do
mundo.
Alguns/mas cineastas parecem compartilhar das idéias e vontades dos/as cientistas e
preferem apostar em uma suposta concretude da realidade dos 24 frames por segundo que nos
dão a ilusão de movimento. Ilusão? Mas os atores se movimentam. Por que ilusão? Seria a
realidade de qualquer imagem uma ilusão que somente se desprenderia dessa função ilusória
ao atravessar a superfície? Que textura escaparia dessa ilusão? Textura que, para Deleuze,
dizendo sobre Leibniz e o barroco, a define como “a maneira como a matéria se dobra”.
Maneirismos que também podemos acompanhar com o conceito de estilo do filósofo francês
(Buci-Glucksmann, 2007). “Em relação às dobras de que é capaz, a matéria torna-se matéria
de expressão” (DELEUZE, p. 61, 1991)
Expressar, atravessar potencialidades para pensar a imagem nela e por ela, seja como
metodologia de pesquisa, seja como deixar-se ressoar por ela na repetição da ressonância. As
imagens e as produções cinematográficas podem ser decalcadas da necessidade de narrativa.
Revolvendo as impossibilidades levantadas pelo articulista do jornal Folha de São Paulo na
citação abaixo sobre o filme “Sin City”:
Não se trata do mesmo produto apenas embalado em pacotes diferentes.
Isso fica claro na cena em que Marv (Mickey Rourke), dirigindo um carro,
arrasta um sujeito pelo asfalto para arrancar-lhe uma informação. Em
movimento, a cena parece artificialmente inserida, como se vinda de uma
comédia pastelão, mas sem a ironia de Quentin Tarantino em "Kill Bill", por
exemplo. Ou a cena de "A Grande Matança" que está no filme, em que as
garotas evidenciam um prazer celebratório no ato de assassinar.
É como se Rodriguez virasse a página para os espectadores, poupando-lhes
do esforço, como um livro áudio que não substitui a experiência de ler um
livro impresso. O longa reproduz, de maneira invertida, certos cenários que
surgiram há mais de cem anos, em que a tecnologia de uma arte libertava
ou ampliava as possibilidades de uma outra -cinema e fotografia, fotografia
e pintura etc. "Sin City" tem mais a ver com aprisionamento a uma estética
de imitação da imitação do real, algo apenas melancólico como um final de
noite de domingo habitado por Charles Bronson (SAITO, 2005)
LINHA MESTRA, N.23, AGO.DEZ.2013
157
SOPREPOR? TRANSPOR? DISPOR? IMAGENS RESSOAM
Parece-nos que Saito optou por ser o seu próprio prisioneiro no apagamento proposto
por Rodriguez ao “desenhar” suas cenas, um storybord depois do filme, em movimento com
atores “de verdade”. Nossa proposta quer fugir da negatividade das representações ao eleger a
inexistência de uma concretude fixadora de realidades. Experiências a atravessar, constituir,
diluir, esvaziar a nós, a esse texto, aos/às leitores/as...
De acordo com o título da
reportagem de Sato “Sin City” viola a percepção do HQ. Não seria essa violação o
apagamento das delimitações de fronteiras? O funcionamento da dobra na desdobra?
Dispor?
Imagem da reportagem Tecnologia científica na ponta do lápis. (Jornal O
Estado de São Paulo, 2006), Imagem da revista Superinteressante (03/1997),
Composição a partir da imagem “Natureza ou cultura?" (com e sem o fio do
poste) de Carlos Eduardo Marinelli, 2004 – Projeto “Biodiversidade e
Processos Sociais em São Luiz do Paraitinga, SP”, Programa Biota/Fapesp.
Ao falar sobre desenhos, Assis-Júnior (2004:24-6) fornece-nos interessantes palavras
que vão designar um bom desenhista para a história natural: boa perspectiva, fiel, realismo
extraordinário, desenhava como se estivesse fotografando, precisão anatômica das espécies,
dotado de talento não vulgar... Algumas dessas “qualidades” são ditas também de filmes e
diretores. Clint Eastwood e sua fixação nos atores como modelos de realidade. Robert
Rodriguez e Richard Linklater em suas de-form-ações no contorno inexistente do desenho. Os
pesquisadores/biólogos e os naturalistas e suas perseguições em criações de registros do real
nas imagens. E esse texto?
Confusão de fronteiras entre produções que se querem criadoras de mundos (como
cinema, HQs) e produções que se querem registros do mundo que aqui trouxemos como
cinema, biologia e história natural. Registrar o mundo e/ou mundanizar o registro? Imagens
em biologias e ciências naturais, mais detalhadamente nessas últimas, buscando descrições de
espécies, de paisagens, da natureza. Para a descrição das espécies as imagens, no século
XVIII, eram vistas ora como auxiliar ao texto descritivo ora como transmissora de
informações “que não estavam ao alcance da descrição textual” (ASSIS-JÚNIOR, 2002). Já
no século XIX “a história natural promoveu o objeto intermediário. As variadas formas de
descrever não mais se interessariam pelo indivíduo excepcional, mas pelo exemplar, pela
espécie. O protótipo não se confundiria com a realidade, mas sintetizaria as características
de um grupo” (RAMINELLI, 2001).
Espécies não seriam, então, reais, mas “sínteses” de um grupo de indivíduos aos quais
se reconheceria a existência pela descrição e nomeação? Dado esse papel às imagens,
LINHA MESTRA, N.23, AGO.DEZ.2013
158
SOPREPOR? TRANSPOR? DISPOR? IMAGENS RESSOAM
cientistas naturais podem estudar uma espécie apenas por meio de uma pintura, de uma
fotografia ou de um desenho desde que seja possível identificar a espécie por meio dessa
imagem, ver detalhes, saber quem a fez, como e quando foi feita. Dentro dessa idéia, podemos
acreditar na existência (real) de um animal pelo simples fato dele ter sido pintado por outro
cientista – “Macaco da Amazônia só existe no papel (...) ‘É perfeitamente factível que ele [o
macaco] exista’, diz o especialista Mario de Vivo do Museu de Zoologia da USP. ‘Não acho
que o [Eladio] Cruz Lima pintaria algo que ele não viu’. Silva Jr, também confia no trabalho
do naturalista. ‘O Eladio era um especialista e nunca se enganou sobre nada, a não ser por
coisas que não eram conhecidas na época’” (Jornal O Estado de São Paulo, 2006). O que é
real? O que é produção?
Uma imobilidade em incessante movimento. “(...) o trabalho da linha e da dobragem
anima a imagem (...)” (BUCI-GLUCKSMANN, 2007: p. 74). Anima a alma, a espéciedesenho, a espécie-classificação/identificação e quantas outras aparecerem, surgirem,
dobrarem-se. Experimentos e(m) desejos: na biologia deste século XXI, as fotografias e
ilustrações continuam com papel de destaque nos trabalhos, sempre na busca do registro do
real. É essa imagem que descreve, representa, que se quer transmissora da realidade que
vemos se diluindo pela superfície das imagens produzidas por naturalistas e biólogos. Imagem
que também se dilui em filmes e HQs. A possibilidade de produção de imagens em
computador, a alteração das imagens captadas, a transformação da cena “real” em “desenho
animado”, efeitos especiais que parecem querer superar o real da realidade.
Lidando com ficção científica e fantasia, foi muito útil trabalhar com um
ilustrador para tentar concretizar o que tinha em mente... Assim não perco
muito tempo descrevendo todos os mínimos detalhes. Eu, simplesmente faço
a imagem. Encontrava-me com Ralph, explicava quem era o personagem,
qual é sua aparência e ele fazia uma série de esboços e eu dizia “não quero
assim, quero olhos maiores ou quero olhos menores” (LUCAS, 2004)
Qual seria a versão original de “Star Wars”: a que foi produzida em 1977 ou aquela em
que Lucas pôde apresentar gráfica e imageticamente suas idéias? Se Jabba, o Horrendo, já
existia na imaginação de George Lucas como partícipe do primeiro Episódio filmado porque a
crítica quando ele “apenas” o torna realidade para a visão do espectador na versão de 1997?
Pretérito do futuro?
Dissolver-se, remodelar-se em movimentos de atração e repulsa, mas não de
concretização, de finalização, de significação. Propor que concretizar o que se imagina por
meio de uma imagem e/ou de uma escritura não garante que se esteja conseguindo uma prisão
“verdadeira” para a realidade. Talvez nem mesmo que uma realidade esteja sendo
aprisionada.
Alterações em imagens da biologia e da história natural parecem ser facilmente aceitas
até certo ponto. Podemos escolher uma fotografia sem um fio que atrapalha sua estética
porque ele “ficou lá por erro de foco do fotógrafo”, mesmo que não pareça “atrapalhar a
representação que a foto conseguiu”. Na foto restam, “para lá da fiação”, os elementos que
o pesquisador quer para a sua imagem-representação: um trecho da cidade com suas casas
antigas, um pedaço de pasto com algumas vacas, um fragmento de mata ao lado do pasto. As
litografias de historiadores naturais no século XIX também passavam por modificações.
Retoques, inserções e modificações tinham papel fundamental na criação das litografias para
compor “alguns elementos que não haviam sido registrados” (ASSIS-JÚNIOR, 2004: 76)
pela fotografia. As buscas pela ausência da autoria, da subjetividade dos pintores e/ou
fotógrafos e a idéia de registro de um real se estilhaçam nas modificações realizadas pelos
pesquisadores na hora da publicação das imagens. Qual seria a versão original: a que foi
LINHA MESTRA, N.23, AGO.DEZ.2013
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SOPREPOR? TRANSPOR? DISPOR? IMAGENS RESSOAM
produzida inicialmente ou a que “melhor” apresenta os elementos que o pesquisador quer
mostrar?
Podemos pensar esses movimentos como linhas de fuga da imagem como registro de
um real. Registro que permite modificação? Alterações que tornam a imagem mais
interessante? “Dão a ver” a partir da criação ou da retirada de elementos das imagens? As
imagens que povoam este trabalho não são mais registros do acontecido porque há
deslocamentos, cortes, repetições e a partir destes movimentos, pretendemos que passem a ser
pensadas como acontecimentos.
As imagens, em sua produção incorpórea, têm sido, em minhas pesquisas,
lentes para encontrar caminhos que permitam repensar e experimentar com
‘as mesmas e repetidas’ ordenações de significantes, mas recolocando “a
diferença dentro da repetição, com o objetivo de perder os significantes,
voltar aos signos e reaver a positividade da diferença” (Roy, 2003:12)
(AMORIM, 2006)
O macaco poderia não existir, mas há uma pintura dele. O fio do poste poderia ficar na
foto, mas foi retirado. O homem duplo poderia ter permanecido como um filme, mas foi
transformado em desenho. George Lucas poderia ter deixado Jabba, o Horrendo, somente em
sua imaginação, mas quis colocá-lo depois do filme pronto. Estaria o filme pronto em 1977?
Estariam as paisagens e as espécies prontas no mundo?
Referências
Amorim, Antonio Carlos Rodrigues. Imagens para Nilda Alves. Nilda Alves entre imagens.
Revista Teias v. 13, n. 29, 47-59, n. especial, 2012.
Assis-Júnior, Heitor. Relações de Von Martius com imagens naturalísticas e artísticas do
século XIX. Dissertação de Mestrado, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas/Unicamp,
2004.
Belluzzo, Ana Maria de Moraes. O Brasil dos Viajantes. São Paulo: Fundação Odebrecht.
2000 (3a edição) – 3 volumes.
Buci-Gucksmann, Christine. Variações sobre a imagem: estética e política in Lins, Daniel
(org.). Niezsche/Deleuze: imagem, literatura e educação: Simpósio Internacional de
Filosofia, 2005. Rio de Janeiro: Forense Universitária; Fortaleza: Fundação de Cultura,
Esporte e Turismo, 2007.
DELEUZE, Gilles. A dobra: Leibniz e o barroco. Tradução Luiz B.L. Orlandi. Campinas:
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DELEUZE, Gilles. Sobre o Teatro. Um Manifesto de Menos / O Esgotado. Tradução Fátima
Saadi, Ovídio de Abreu e Roberto Machado. São Paulo: ZAHAR, 2010.
Jornal O Estado de São Paulo. Tecnologia científica na ponta do lápis. Caderno Vida&, 27 de
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Jornal O Estado de São Paulo. A ciência questiona o seu sensacionalismo. Caderno Vida&, 10
de setembro de 2006.
LINHA MESTRA, N.23, AGO.DEZ.2013
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SOPREPOR? TRANSPOR? DISPOR? IMAGENS RESSOAM
Jornal Folha de São Paulo, 29/07/2005 no texto “Rodriguez faz seu decalque”
Jornal Folha de São Paulo, 29/07/2005 no texto “Filme viola percepção da HQ”
Lucas, George. Star Wars, Bonus disc, Lucas Film, 2004.
Miller, Frank; Rodriguez, Robert & Tarantino, Quentin. Sin City. Animação, Dimension
Films, Troublemaker Studios, 2005.
Raminelli, Ronald. Do conhecimento físico e moral dos povos: iconografia e taxionomia na
Viagem filosófica de Alexandre Rodrigues Ferreira. História, Ciências, Saúde – Manguinhos,
Vol VIII (suplemento): 969-92, 2001, p. 972.
Revista Superinteressante, 03/1997, ed. 114.
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161
SESSÃO 9 – DESTERRITORIALIZANDO A PORNOGRAFIA
PÓS PORNOGRAFIA
Fabiane M. Borges 1
É um movimento sexual/social que combate, convoca e comove ao mesmo tempo.
Como tudo que existe tem mundo, não seria diferente com o pós-porno, tem mundo. Seus
circuitos, seus sinais, seus entraves, e há muitos entraves, desde perseguição na internet até
prisão, problemas com justiça. Mas o movimento se movimenta, motivado por vibradores,
experiências exóticas, tóxicas, as vezes bem comuns, românticas. É que o movimento tolhe,
mas também liberta. O pós-porno libera espaço nos corpos e nos modos de desejar. É como
uma confraria, uma pequena horda missionária destinada à experimentação e a narrativa, mas
com potente carga virótica. O pós-porno tem muitos antídotos às políticas dos desejos sexuais
instituídas. Suas fórmulas vêm da invenção constante. É um movimento pragmático. Vai do
ecosexo ao tecnosexo, facilitando a locomoção do olhar. Pra onde teus olhos te levam? É
nessa estrutura que o pós-porno mexe, ajuda teus olhos a desprogramar teu programa sexual
corporativo.
Pós-porno é um dos nomes que identifica este movimento sexual/social que tenta criar
alternativas para o padrão de pornografia vigente. Mas isso não é um consenso, tem muitos
outros modos de reconhecê-lo, e pode também ser pensado como um movimento ontológico
de manifestação da sexualidade. Não há consenso nem identidade fixa no movimento. As
feministas mais radicais acreditam que o pós-porno é um movimento essencialmente
feminista, já que são as mulheres as que mais militam na área. Segundo elas, os homens estão
mais bem servidos com a cultura sexual vigente, mas as mulheres ainda são tidas como corpos
que servem à anatomia masculina, nem que seja ao olhar do macho, como no caso dos filmes
lésbicos da indústria pornográfica, que mostram o tesão das lésbicas correspondendo ao
padrão de desejo masculino. O manifesto contra-sexual de Beatriz Preciado enfatiza bem essa
questão, atribuindo à palavra “sexual” o sinônimo de heterosexualidade patriarcal, e
inscrevendo a necessidade de um rompimento sígnico nesse desejo “sexual” da cultura
machista sustentada por homens e mulheres, o que explica o nome: Manifesto Contra-sexual!.
Pós-porno então se refere a um movimento de intervenção e tensionamento nos
valores da cultura pornográfica. “Se não gostas da pornografia que existe, faz pornografia tu
mesmo. Reinventa”. Mais ou menos nesses termos que Annie Sprinkle tomou a dianteira dos
seus trabalhos como atriz porno e começou dirigir e produzir filmes alternativos desde os anos
1970, dentro do circuito, não sozinha, mas com várias pessoas que pensavam a mesma coisa,
que o tesão feminino não estava representado nos filmes pornográficos, nem uma série de
outras variedades. Ela é considerada a mãe da pós-pornografia, a criadora do conceito e ainda
a musa de toda essa nova geração. Com seu estilo divertido e carinhoso, ganhou o coração das
transfeministas, pornoterroristas e pós-pornográficas. Seus filmes misturam sensualidade com
consciência política, como o filme “A Female-To-Male Transexual Love Story” (1989), onde
apresenta de forma até didática sua relação com uma transexual recém operada, dando dados
da sua operação, mostrando seu sofrimento, seus desejos, os laudos médicos e seu prazer.
Também é respeitada por ter levado a diante a conversa entre pornografia e arte
contemporânea, promovendo nos mais diversos lugares do mundo polêmicas exibições em
centros de arte, universidades e galerias, que ampliam a noção de corpo, prazer e sexo. Hoje
1
Fabiane Morais Borges – ensaísta, psicóloga, gosta de fazer workshops de máscaras e anda às voltas com
tecnoxamanismo. ([email protected] – http://catahistorias.wordpress.com)
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162
PÓS PORNOGRAFIA
em dia ela esta com a proposta de ecosexo (tesão pelo planeta, pelo cosmos, ecologia sexual)
que também é uma grande inspiração para todo movimento pós-porno.
A transformação da sexualidade em uma criação artística faz parte das práticas do
movimento pós-porno, assim como a intensificação da relação corpo/máquina,
tecnologia/cotidiano, privacidade e espaço público. Se um dos vetores do movimento é
essencialmente político, pode-se dizer que outro vetor é essencialmente experimental.
Reivindicar o corpo como experiência e não como propriedade. Nesse contexto entram em
cena os mais diferentes tipos de alianças: práticas sadomasoquistas, bodymodification,
desprogramação de gênero, tráfico de hormônios, produção audiovisual constante, publicação
de livros e revistas, fanzines, shows performáticos, saraus de música e poesia, mostras de
cinema. O pósporno é um movimento insurgente, uma utopia como diz Beatriz Preciado. Uma
utopia barulhenta, que cresce na medida que cresce o acesso a produção e difusão de mídias
nesses últimos 30 anos. Mesmo que nos anos 60-70 já tivessem produções feministas e
engajadas na liberação dos padrões masculinos de atuação nos filmes pornográficos, é com as
redes de internet e com acesso a câmeras de vídeo e computadores para edição, que o
movimento cresce, por possibilitar a manifestação da diversidade sexual.
O encantamento do movimento tem a ver com o encanto que temos pela liberdade. Não
se trata só de cada um assumir seu próprio desejo, mas de inventar outros desejos, recriá-los,
produzir outros valores sobre eles. Deslocar os signos “sexuais” para novas variações,
tensioná-los, liberá-los de suas armadilhas. Reiventar o desejo e o prazer. Reinventar o corpo.
Talvez seja essa a utopia do pósporno, o corpo livre! O que lhe faz estar próximo a todas as
outras lutas por liberdade. Ao mesmo tempo, para poder manifestar-se enquanto algo
significativo dentro da sociedade, precisa fazer alianças com outras culturas de corpo já
existentes, incluindo aí arquitetura. Sim, arquitetura, que é uma das poderosas máquinas de
construção do imaginário sexual. Vamos para cama! Essa simples conjunção de palavras
denota a monstruosa redução do sexo a uma arquitetura compartimentada e privada, que
associa o desejo erótico diretamente a noite, ao quarto, por consequência à propriedade. São
muitos os entrelaçamentos políticos e sociais que um movimento sexual como o pós-porno
abarca, o que demonstra a impossibilidade de reduzi-lo somente a pornografia. Ele é uma
engrenagem expandida de análise e produção de cultura e natureza, engrenagem que permite
os mais variados tipos de acesso, inclusive o acesso a outras demandas eróticas para além do
humano, do antropocentrismo, ou ainda, do antroposexocentrismo, que é a noção de que
prazer, desejo e relação só é produzida entre humanos, ideia essa que cria imenso gap entre
humanos e maquinas por exemplo, ou outras naturezas.
A literatura pós-porno tem um estilo autobiográfico e autoficcional. Tem a noção de que
o íntimo é político. Tudo que é íntimo interessa porque é exatamente aí que o poder crava
seus tentáculos, sendo aí também que ele é gerado, onde ele se cria. A escrita Pósporno cruza
histórias pessoais com discussões políticas, e essa metodologia se repete como estilo literário,
como estética de movimento. Livros como “Postporno era eso” de Maria Llopis, “Devenir
Perra” de Itziar Ziga, “Teoria King Kong” de Virginie Despentes, “Testo yonqui” de Beatriz
Preciado, esta última considerada uma inspiração teórica do movimento, vão nesse sentido, de
trazer a autobiografia e ainda a autoficção como uma militância política. É uma revolução
micropolítica, absolutamente estética que tem por objetivo mudar a visão sobre a história do
corpo. O estilo literário do movimento pósporno tensiona esse espaço íntimo com uma
honestidade angustiante, já que não aponta a grande saída, mas fica remexendo os
micropontos, dissecando-os, produzindo pensamento sobre a cena mais cotidiana e tida como
dada, como as fantasias sexuais de penetração ou cenas que provocam a masturbação, o
sentimento de culpa por se ter tendências dominadoras ou submissas no sexo, adicção a
hormônios sexuais, relação afetiva com o dildo, ou ainda prostituição, estupro, rape/revenge
(vingança de estupro), etc. O desejo sexual é o ninho da religião. É nessa espacialidade íntima
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PÓS PORNOGRAFIA
que a neurose, a culpa, o sofrimento são germinados. O pósporno tenta arejar esses espaços
para que sejam fortalecidos com outra ética, com menos sofrimento aos gêneros não
padronizados. Se para os homens heterossexuais que correspondem ao padrão estético,
intelectual e econômico construído pela indústria da uniformidade, já não é fácil ter sua vida
sexual feliz e plena, o que dizer sobre os que não correspondem a esse padrão, os fricks em
geral? Os esquisitos, os sem perna, os alejados, os velhos? O desejo é extremamente político,
assim como o amor. É nesse ponto que o Pósporno se diferencia da pornografia oficial,
porque parte de um princípio ético diferente, que não é o consumo dos corpos, nem a busca
do gozo a qualquer custo, mas a construção de novas possibilidades de amor e desejo. Se
engana quem pensa que por esta razão a produção experimental e audiovisual do pósporno é
delicada e harmoniosa, como é possível verificar em seus livros, filmes e performances, a
sexualidade pode ser manifesta de forma até mais violenta do que na indústria pornográfica
ou mais radical, com a diferença que muda completamente a perspectiva do olhar, o
movimento da câmera é feminista. O movimento é feito de um feminismo pungente, agerrido,
prático, tem como função combater a percepção sobre a sexualidade, seus papéis, suas
narrativas obesas, determinadas por um vício insuficiente. A insuficiência alimenta a máquina
pornográfica, de forma prevista a faz mover-se, mas não satisfaz todos os lados.
Quando se vai entrando no mundo da pornografia, vão aparecendo uma enorme
variedade de produções. Muitos desses fetiches não são tão fáceis de encontrar na pornografia
mais normal, por não terem público suficiente e serem consideradas menos aceitáveis ou
menos excitáveis. O pósporno atua dentro dessas práticas, o que denota o vínculo estreito do
pósporno com a pornografia. Estou falando de praticas sexuais como fisting (inserir as mãos
na vagina ou no reto), feeting (inserir os pés na vagina ou no reto), BDSM (Bondage –
ataduras, dominação, sadismo e masoquismo), public desgrace (humilhação sexual em
público), wiredpussy (corpos e órgãos sexuais conectados a cabos de eletricidade), fucking
machines (sexo entre humano e máquinas), waterbondage (imobilizar com afogamento), sexo
entre velhos, sexo com plantas, com cadáveres de animais, etc. É comum que o pósporno atue
em um segmento que dentro da pornografia é considerado extremo. O que os diferencia
então?
O pósporno é muito mais precário. Evidentemente que a indústria pornográfica também
esta sendo transformada pela revolução tecnológica, e também tem uma história inicial de
precariedade, mas o pósporno surge da precariedade, não só da pobreza econômica, da
dificuldade de acesso aos meios de produção ou dos investimentos financeiros externos, mas
também o conteúdo com o qual trabalha é precário, o corpo martirizado, o contrário do macho
dominante, as fêmeas gordas, os machos de falo anomalos, as lésbicas, as libidos escusas, os
corpos considerados inferiores, os desejos considerados pobres, as fissuras perdidas. Essa é a
precariedade que o pósporno quer dar visibilidade, trazer luz, não como desejo exótico, mas
desejo mesmo. O pósporno tem que forjar diariamente os espaços para suas experiências e
manifestações, espaços públicos, praças, teatros, ocupações, festas, raves, casa das pessoas,
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PÓS PORNOGRAFIA
galpões, centros abandonados, etc. São nesses espaços que os corpos/desejos ganham
visibilidade, e constroem alternativas a vida sexual dominante.
Diana J. Torres faz um elogio a Belladonna em seu livro Pornoterrorismo, dizendo que
ao contrário de seus grupos de pósporno, que se encontram à margem das grandes produções
de cultura e valores, e que não modificam o desejo da grande massa, ela, Belladonna,
consegue atuar dentro do mercado da pornografia, invocando novos desejos desde ali onde a
crítica e o vício são mais prementes. Ela diz “(…) penetraciones anales a biohombres,
povazos lesbicos autenticos, desgenitalizacion, mulheres empoderadas com dildos
descomunales… Por favor, Belladonna ‘es como un mesias, esta abriendo camino a lo que
vendra, ye lo hace desde la matriz, no desde los margenes como hacemos nosotros”. Já sobre
o Posporno em Barcelona, Diana fala que “é um milagre, uma coincidencia maravilhosa,
como o círculo dadaísta em paris”. Seguindo o raciocínio de Diana, a gente percebe que
primeiro, ela pensa o movimento pósporno como um movimento de margem (precário) que
não consegue transformar o desejo humano em grande escala (ainda); segundo, que é um
movimento de vanguarda como o dadaísmo, que se organiza em torno de uma estética em
comum e por sistematicas desconstrução do sistema. Controversas a parte, o que chama
atenção nessa idéia de precariedade e vanguarda é a radicalidade revolucionária de um
circuito erótico e violento, que não se preocupa somente em ser aceito como modelo estético,
mas se quer amplificador de praticas muitas vezes imperceptíveis ou pior, ordinariamente
sabotadas e reprimidas.
Certamente a ontologia do desejo pósporno está sendo inventada, não esta estacada em
algum lugar no antes do humano. Assim como o dadaísmo não é considerado um movimento
que importa somente ao circuito artístico, a precariedade vanguardista do pósporno também
não se limita a um ativismo sexual espanhol, ele está aí pra enfrentar a cultura inteira, a
natureza inteira. Se engana quem cansou do termo vanguarda. Geralmente são os que mais se
fodem, para tentar cravar uma ideia/comportamento no mundo, e ainda existem, aos cântaros,
sobrevivem de network, conceito, escândalo, certa violência, exotismo…
Pra terminar, o pósporno foi considerado nesse texto um movimento sexual/social
movido por feminismo e precariedade, uma utopia de liberdade, um movimento de
vanguarda estético e experimental. Mas isso e só um ponto de vista de quem recém está
chegando no assunto, tem coisas muito mais interessantes pra pensar sobre isso, uma delas
por exemplo é retirar do centro da questão sexual o humano. Há mais coisas entre as
sexualidades do que o antropocentrismo admite, mas isso é outro texto.
Imagens apresentadas no Seminário Conexões
Quimera Rosa
Marcha das Vadias
Notas discutidas no Seminário Conexões
[1] Beatriz Preciado, Manifesto Contra-sexual/ 2008. Ed. Espasa (edição espanhola)
[2] Annie Sprinkle começou como atriz de cinema porno, depois se tornou diretora, depois foi
se tornando artista multimidia, hoje em dia é considerada uma referência para todos
movimentos de arte, feminismo e sexualidade.
[3] Ecosexo – é como se chama os últimos trabalhos de Annie Sprinkle e sua parceira Beth
Stephens, que fazem bodas pelo mundo afora com elementos da natureza como carvão, agua,
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PÓS PORNOGRAFIA
oxigênio, etc. A ideia é ter uma relação mais erótica com a terra, tratá-la como amante e não
como mãe.
[4] Filme de Lucía Egaña Rojas “Mi Sexualidad Es Una Creacion Artistica/ 2011, España,
(dir.), 46 minutos. - Aqui esta seu blog:
[5] Livro de Beatriz Preciado, Pornotopia – Editorial Anagrama S.A Espanha /2010
[6] Atriz de cinema porno, considerada ousada por realizar uma enorme diversidade de estilos
sexuais. Aqui esta o blog dela:
[7] Livro de Diana J. Torres “Pornoterrorismo” Editora Txlaparta S.L / Espanha, 2011.
Lista de sites de interesse
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http://pornoterrorismo.com
Esquizotrans – (Brasil)
http://esquizotrans.wordpress.com
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Lee: Post-porn modernist: my 25 years as a multi-media whore.
Mira: Herstory of porn y Les/Linda&Annie: A transexual love story.
www.anniesprinkle.org y www.loveartlab.org
Ron Athey (Estados Unidos, Reino Unido). Tags: performance, bodyart, hardcore, bdsm,
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Escucha: Plasmatics.
Mira: Wendy O. Williams and The Plasmatics: The dvd – Ten Years of Revolutionary Rock
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Lydia Lunch (Estados Unidos). Tags: punk, performance, spoken word, porno, feminidad
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Lee: Paradoxia.
Mira: sus pelis con Richard Kern.
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Virginie Despentes (Francia). Tags: punk, literatura, cine, feminismo, prostitución, feminidad
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Mira: Baise Moi y Mutantes: Feminismo porno punk.
Lee: Teoría King Kong, Perras Sabias, Fóllame y Lo bueno de verdad.
LINHA MESTRA, N.23, AGO.DEZ.2013
166
PÓS PORNOGRAFIA
Beatriz Preciado (España, Francia). Tags: literatura, filosofía, masculinidades, trans,
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Itziar Ziga (Navarra, Barcelona). Tags: literatura, periodismo, feminidad fiera, prostitución,
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Lee: Devenir perra, Un zulo propio.
http://hastalalimusinasiempre.blogspot.com
Helen Torres (Argentina, Barcelona). Tags: literatura, activismo, feminidad fiera, feminismo.
Lee: Autopsia de una langosta.
http://helenlafloresta.blogspot.com
Idea Destroying Muros/Video Arms Idea (Italia, Valencia). Tags: videoarte, performance,
instalación, acción directa, feminidad fiera, feminismo, hardcore, postporno, trans,
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www.ideadestroyingmuros.info
http://ideadestroyingmuros.blogspot.com
Post Op (Barcelona, Galicia, Euskadi, León). Tags: performance, fotografía, videoarte, acción
directa, postporno, trans, feminidad fiera, prostitución, dragking, masculinidades, feminismo,
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Mira: Implantes, Siempre que vuelves a casa, Introacto, Ohkaña!, Fantasía Postnuklear.
www.postop.es
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videoarte, instalaciones, activismo.
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www.congeladadeuva.net
Klau Kinky (Chile, Barcelona). Tags: activismo, software libre, tecnología, queer, feminismo,
postporno.
http://saxwakuy.hotglue.me/video
La Quimera Rosa (Argentina, Francia, Barcelona). Tags: performance, fotografía, videoarte,
trans, postporno, acción directa, feminismo, queer, dragking, activismo, surrealismo.
Mira: Oh-kaña!, Historia de tres, Entramos y follamos.
http://laquimerarosa.blogspot.com
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directa, trans, anarquismo, hardcore, postporno, feminismo, dragking, queer, prostitución,
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http://gofistfoundation.pimienta.org
Medeak (Euskadi). Tags: feminismo, activismo, acción directa, dragking, trans, queer,
postporno.
http://medeak.blogspot.com
LINHA MESTRA, N.23, AGO.DEZ.2013
167
LADY INCENTIVO: SEXO, VIOLÊNCIA E ALUCINAÇÃO
Fabiana Faleiros 1
Bom, eu gostaria que a minha manifestação não fosse
passional nem improvisada, eu queria escolher muito
bem minhas palavras e por isso eu escrevi um texto
e é esse texto que eu vou ler agora.
Texto que escrevo com as minhas
próprias palavras, com a música
e com as palavras dos outros em primeira pessoa
Adaptação de frase contida
em um relato feito em vídeo
por um fotógrafo carioca
atingido por uma bomba de borracha
em uma das primeiras manifestações
de julho de 2013 no Rio de Janeiro
e que corre o risco de perder a memória.
Lady, Leide, Lady, Leide
Quando falo Lady Incentivo me refiro as três palavras LEI DE INCENTIVO. Há mais
de três anos tenho escrito textos para editais de fomento à cultura. Sou uma proponente, ao
mesmo tempo uma empresária cultural, uma captadora de recursos especializada na área de
elaboração de projetos e a palavra me acompanha para que eu seja assim. Minha vida é
dedicada para elaborar, executar projetos e prestar contas. Minha produção artística, minha
força inventiva segue nesta direção. Como em um boletim de ocorrência evito que os
acontecimentos se amontoem sem nenhum significado. Sou polícia, artista etc. E assim,
através do meu esquema sensório-motor, com as minhas quatro antenas e com o coração na
frente, devolvo o meu movimento para o mundo. (O que eu estou chamando de esquema
sensório-motor é aquilo que faz com que um ser vivo possa viver). Deixa eu escrever assim
pra pensarem que sou eu. Preciso gerir a minha própria vida, preciso ter esse dinheiro, esse
dinheiro que já é meu, de volta. Eu quero todo o meu dinheiro de volta, senhora de mim.
[Faixa 1]
(4x)
Eu vou passar batom borrado.
Eu vou passar batom borrado
e vou dizer uns troço errado
sem significado.
Repito essas três palavras LEI DE INCENTIVO com a intenção de criar outras duas
LADY INCENTIVO. O objetivo é criar um nome próprio, meu próprio nome. O difícil é
viver a vida fora do próprio texto, ainda mais quando o Outro é o Próprio.
1
Doutoranda do Programa de Pós-graduação em Arte UERJ. E-mail: [email protected]
LINHA MESTRA, N.23, AGO.DEZ.2013
168
LADY INCENTIVO: SEXO, VIOLÊNCIA E ALUCINAÇÃO
Comecei minha carreira gravando um CD ao vivo na 30ª Bienal de São Paulo, em 2012,
na Rádio Mobile, uma rádio que existiu durante toda a Bienal, aberta a propostas de artistas
que desejassem ocupá-la. A transmissão aconteceu pelo site da rádio e através de um dial FM,
ao vivo. Atualmente o CD circula de forma independente na Internet e em vários contextos e
ambientes que variam de festas como a Voodoohop, São Paulo e exposições como Abre Alas,
na Galeria Gentil Carioca, Rio de Janeiro; Gold, Galeria W139, Amsterdam e no Festival
Camp/Anticamp: a queer guide for everyday life. Berlim.
Comecei a minha carreira cantando em microfones de rua, de lojas de departamento, de
lojas que vendem bolsas falsificadas e em sets de DJ's que tocam música eletrônica. Antes de
tudo quero deixar claro que fui eu que comecei com essas manifestações, participando, por
exemplo de um trio elétrico, o qual chamei de Rivotrio no carnaval de 2012 na cidade de São
Paulo. Não existiu carnaval em fevereiro de 2012 na cidade de São Paulo. Os blocos foram
dispersados com gás lacrimogêneo e bombas de efeito moral. O trio elétrico precisou mudar
de nome no momento mesmo em que percorria a cidade. A consolidação não se contenta em
vir depois; ela é criadora. Virou o Ditadura Fora de Época. Circulamos pelo centro de São
Paulo, sobretudo andamos em torno do círculo, como numa roda de criança, e combinamos
consoantes e vogais ritmadas que corresponderam às forças interiores da criação como às
partes diferenciadas de um organismo. A cidade como um organismo, principalmente no
Baixo Augusta, um reduto de casas de prostituição, que passa por um processo de
gentrificação. Cantei o refrão Sexo, violência e religião / sexo, violência e prostituição / sexo,
violência e alucinação. Ele existe como um refrão solto e é adaptável a qualquer combinação
rítmica que se pretenda musical (liberdade, igualdade, fraternidade), para evitar possíveis
interpretações subversivas e desordenadas. Onde pretendiam a fundação de uma cidade, uma
obra sublime, abri o próprio círculo para um futuro, em função das forças em obra que ele
abriga. Fui para ir ao encontro de forças do futuro, forças cósmicas, improvisação.
Quero que fique bem claro que se um ladrão quer ocupar indevidamente um lugar que
não lhe pertence, o verdadeiro proprietário canta, canta tão bem que o outro vai embora (...)
Se o ladrão canta melhor, o proprietário lhe cede o lugar. Eu vou ganhar essa cidade, o que é
diferente de dizer: essa cidade vai ser minha.
O que preciso, a especificação técnica do projeto é um microfone. Com licença, vou
utilizar o microfone de vocês. Não sei como você é e assim você se torna. Porque ou é gay, ou
é DJ ou tá casado. Ou é gay ou é prédio ou tá cansado. O DJ está tocando o seu sampler, a
máquina de produzir repetição. Posso pensar essas repetições como algumas das canções que
você fez para mim. As canções que você fez, você fez para mim. Levo a voz para onde existe
um microfone e uma série de equipamentos que já estão lá. Eu preciso é chegar. Está tudo
pronto.
[faixa inédita]
várias vezes
eu quero morrer
quero matar
Solta essa porra e solta essa porra
Solta essa porra é uma expressão que se repete com frequência no funk carioca e
significa “soltar a batida”, “começar a música”. Deleuze e Guattari (2012) trazem imagens
que vem da música para definir o ritornelo, descrevendo-o plasticamente. O ritornelo é o
movimento da repetição da diferença. São ciclos que se repetem, se repetem a partir de um
eixo e giros, desta forma: escolhe-se um eixo; desenha-se um território em torno deste eixo e
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169
LADY INCENTIVO: SEXO, VIOLÊNCIA E ALUCINAÇÃO
a partir do território linhas de fuga levam a outro ritornelo, repetidamente. Esses três aspectos
são simultâneos no ritornelo. Neste movimento cíclico está a desterritorialização, em que o
território se precipita em sua própria dissolução.
[faixa 6]
várias vezes
Mulher também tem cu demais / mulher também tem cu atrás
O funk carioca é uma matéria de expressão que começou a traçar o território das favelas
do Rio de Janeiro desde nos anos 80. É o movimento de apropriação da música negra norteamericana, como o miami-base, a soul music e outros ritmos. Fala-se de drogas, poder, armas,
violência, ostentação, sexo, mulheres novinhas, dentro de uma lógica heteronormativa.
O funk é aquilo que se escuta no celular dos outros, sem fone de ouvido dentro dos
ônibus. O que é meu é primeiramente minha distância. Os bailes funk estão sendo proibidos.
É com o uso de policiais militares que combatemos os bailes funk. São realizados na capital
paulista, em média, 300 bailes funks por semana em locais públicos como ruas, avenidas e
praças. Pelas regras do Psiu atual, o agente de fiscalização ou guarda-civil metropolitano só
pode verificar denúncia de som acima de 63 decibéis (barulho de um liquidificador ligado),
entre 22 horas e 7 horas, quando houver uma testemunha presente. São realizadas ainda a
medição do ruído e a perícia de um técnico da subprefeitura. A Operação Delegada conta com
9 mil PMs para coibir os bailes funk. O projeto foi aprovado em primeira discussão, por
votação simbólica, e não teve obstrução.
Quando mulheres como Tati Quebra Barraco, Valesca Popozuda e grupos como As
tequileiras do funk e mais recentemente o Bonde das Maravilhas fazem funk cantam como os
seres desejantes, produzem “palavrão”. Naquela sonoridade repetidamente masculina se
insere uma diferença: ela não é só o assunto da música, o seu objeto de desejo. E o homem é o
prostituto. Somos todos prostitutos, como segue Prostituto, de Deise Tigrona:
Tô cansada de ouvir
que você é prostituto
chegou na hora H
eu achei um absurdo
Só deu uma gozada
pediu pra descansar
Toma um red bull que a prostituta quer gozar
bate uma punheta
quero seu pau de pé
chupa a minha buceta
quero o seu pau de pé
lambe o cuzinho
lambe, lambe que eu tô cheia de tesão
bacanal é o caralho
eu quero ver disposição
2x solta essa porra / vem / vem sentando / vem sentando.
Solta essa porra é em Prostituto simultaneamente um “palavrão” e o seu significado
literal: ela quer que ele goze. Ela quer gozar. Porra, ela está reclamando! Não é apenas a
afirmação. Quase todo “palavrão” é antes uma palavra que vem do sexo. Ela ocupa
simultaneamente o corpo e a linguagem. Mesmo o corpo sendo dela ela precisa ocupá-lo. Eu
LINHA MESTRA, N.23, AGO.DEZ.2013
170
LADY INCENTIVO: SEXO, VIOLÊNCIA E ALUCINAÇÃO
estava dentro do caos, em um buraco negro, e me esforcei para fixar um ponto frágil como
centro. Ela ocupa a linguagem com o corpo. Só sei que tenho um corpo quando apanho. Por
isso faço sentenças como as palavras bater e apanhar.
Já Uma dona de casa cantarola, ou liga o rádio, ao mesmo tempo que erige as forças anticaos de seus afazeres:
[faixa 5]
Eu quero ficar
ficar em casa de dia
eu quero ter o tempo certo
de me debruçar na pia
ao lavar a louça
eu quero fazer um desejo
obturar a tua boca
e te cortar com azulejo
2X Strumming my pain with his fingers
Singing my life with his words
Killing me softly with his song
Killing me softly with his song
Telling my whole life with his words
Killing me softly, with his song
Neste refrão que vem da música Killing Me Softly, composta por Norman Gimbel, um
hit dos anos setenta na voz de Roberta Flack, um homem vai matar uma mulher suavemente
com os seus versos, com a sua música. Um homem compõe uma música. Uma mulher canta a
música. A música mata. Até que a mulher se distrai limpando a casa e violenta o mesmo
homem, em legítima defesa. Ela Habita a casa como poeta ou assassina? É a poeta matadora.
[faixa 7]
Ooh 4x Masturbei, masturbei
Ooh 4x Masturbei, masturbei
Ooh 4x Masturbei, masturbei
refrão: Masturbar
Ooh 4x Masturbei, masturbei
Ooh 4x Masturbei, masturbei
Ooh 4x Masturbei, masturbei
Masturbei, masturbei, masturbei
Ooh 4x Masturbei, masturbei, masturbei
Ooh 4x Masturbei, masturbei, masturbei
Ooh 4x Masturbei, masturbei, masturbei
refrão: Masturbar
Até agora estávamos no passado e fomos para o infinitivo com a tradução de I feel love,
Donna Summer, para o português. Realização: Lady Incentivo
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171
LADY INCENTIVO: SEXO, VIOLÊNCIA E ALUCINAÇÃO
Referências
Deleuze, Gilles e Guattari, Felix, Mil Platôs – capitalismo e esquizofrenia, vol. 4. São Paulo:
Ed. 34, 2012.
Ferraz, Silvio; Costa Malufe, Annita. Diálogos entre Filosofia e Arte In: Revista Cult, ed 108,
Bregantine, São Paulo, 2008. disponível em: http://revistacult.uol.com.br/home/2010/03/dialogosentre-filosofia-e-arte/.
VIANNA, Hermano (ORG). Galeras cariocas: territórios de conflitos e encontros culturais 2ª
ed, Editora UFRJ, Rio de Janeiro, 1997.
Discografia
FALEIROS, Fabiana. Lady Incentivo. São Paulo: Independente, p2011. 1 CD (32 min)
Disponível em: https://soundcloud.com/fabianafaleiros. Acesso em: 15 de julho de 2013.
TIGRONA,
Deise
feat.
DJ
Jallo.
Prostituto.
Disponível
http://www.youtube.com/watch?v=_pa0qxFHe9E. Acesso em: 14 de maio de 2013.
LINHA MESTRA, N.23, AGO.DEZ.2013
em:
172
AMOR INORGÂNICO
Juliana Dorneles 1
Desejo preservar um mistério, crente estou eu que os estados de espírito que necessito
em meus ouvintes são produzidos se eu não matar essa vontade de saber. Quero um pouco
mais dos espíritos do que suas conclusões.
Do que vou falar? (silêncio).
Será que nesses 20 minutos que tenho aqui, com esse microfone, algum mistério vai se
revelar?
Falarei desde uma experiência de fazer amor com uma cidade.
Ah, mas eu sou tão presunçosa. Eu suponho que todos aqui tenham se deparado, em
algum momento, com o muro branco da angústia. Aquele ponto onde se perde sem
desmoronar. Suponho enfim que sejamos todos muito charmosos. Sim, estou falando com os
charmosos. Ei, tem mais uma coisa para mostrar escondida atrás desta cortina. Isso, esta
mesma. Achou. Agora abre. Achou?
Me fala de uma vez, o que tem aí?
O que eu posso fazer a mais senão mantê-los suplicantes e desesperados?
Dúvidas
Alguém diz, finalmente. É a origem do mundo.
Origem do mundo 2. Lembro de Lacan, ultimo proprietário do famoso quadro (antes de
ele passar às mãos do governo francês), e da princesa do Japão, na vídeo-mensagem para o
mundo inteiro onde proferiu mensagens de seres intraterrestres. O Japão é uma ilha de
cogumelos shitaques e atômicos. E Lacan compreende como a psicanálise tem a ver com o
espaço entre. Mistérios que nos aproximam e sustentam a experiência de viver o não saber. E
lá vem a japonesa dizendo que ela é profeta dos mistérios. Vontade de dar nomes e lugares
para coisas tão mais interessantes quanto mais as deixarmos sem lugar. E brigam com os
lacanianos porque eles nunca dizem. E novamente não se cansa de dar nomes. Deleuze
percebe estes movimentos e vai dizer que o lugar do mistério é o signo. Deleuze inaugura seu
próprio mistério, feito de corpos sem órgãos, buracos negros, núpcias, desertos...
Supomos também que as dúvidas sejam criadas. Elas nascem com o depara-se com o
não saber. É a função do mistério esta, produzir a dúvida. O mistério é o signo da dúvida.
Pensem comigo. A dúvida, no entanto, é algo totalmente abstrato, vem sem pé no chão,
sequer sabe se tem o direito de ser uma dúvida. Alguém pode ter respondido antes. A dúvida
não tem resposta, tem uma viagem a fazer. É o despertar da angustia, como se a paz fosse o
estado de exceção. A angústia é tudo. É o morto no vivo humano que te sacode nas noites
frias te fazendo acordar.
No filme Dogville, de Lars von Trier, a mulher chora diante da destruição de seus
bonecos. Parece ser pior que os estupros. Os judeus destroem as oliveiras plantadas pelos
árabes, que são o símbolo de sua perseverança. Destruir a economia. Não restará pedra sobre
pedra. Sigo aqui, e a terra treme colocando abaixo as edificações.
Penso mais nas perdas arquitetônicas do que em Lacan, Deleuze e princesa do Japão.
Sempre um novo tremer a terra, sacudindo ossos soterrados, humilhando um sentido de
segurança. É efetivo humilhar alguém a partir da destruição das coisas que ela construiu para
si.
1
2
Doutora em Psicologia Clínica, atriz, clown, improvisadora, performer. E-mail: [email protected].
http://pt.wikipedia.org/wiki/L'Origine_du_monde
LINHA MESTRA, N.23, AGO.DEZ.2013
173
AMOR INORGÂNICO
Sim, posso dizer algo sobre essa experiência de fazer amor com uma cidade. A cidade é
um monumento à vida produtiva, mas cada pequeno grão de concreto que compõe um edifício
traz, em sua matriz, a terra. Não é o que os homens fazem com a natureza para erigir sua
dominação sobre todas as outras formas de existência na terra?
Fazer sexo com essa arquitetura. Como se, com o sexo, algo também ligado a uma
natureza indomesticável pela racionalidade, algo furtivo, que é feminino, viesse à tona. Neste
sentido, havia mais coisas lá, não apenas uma mulher, uma câmera e os amigos. Amor com a
cidade é o filme de um feminino em encontro a essas forças da terra, trabalhadas pelo homem
que cria suas coisas e também lhes dá um nome.
Não temos deuses, temos uma natureza com uma ordem própria não acessível; que se
pode acessar se retornarmos com mais dúvidas do que quando entramos.
Órgãos que duvidam
Um rim veio falar: “você me menospreza”. E a vagina, quando se desvia da função do
prazer, que ela dá e recebe tanto melhor, a vagina também se pergunta: “ai, estou cansada só
desse negócio de prazer. Todo mundo tem variações, mas eu não, eu fico aqui embaixo,
gozando. Está meio chato assim, eu posso mais. Ora, eu posso pensar! E veja, que bonito, o
mundo é tão cheio de reentrâncias e está tão disponível para ser invaginado…”
E dizem depois: “são loucas, são todas loucas. A gente suporta porque precisamos
delas. Mas no fundo sabemos que são completamente insanas…” 3
Ele não entendeu que não é ninguém em especifico que esta falando. E o que quer esse
feminino que se atualiza na diferença em cada uma das mulheres e dos homens?
Experimentar a loucura, a liberdade sem lógica, histérica, algo que tampouco se
domina? Não se trata de educação, nem de tirar desta experiência algo para a evolução. Se
trata de experimentar o corpo não adestrado por objetivos.
Não há objetivo reprodutivo neste sexo com a cidade. Não há objetivo crítico, não há
objetivo sequer de prazer.
Uma bofetada é bem mais importante do que dez lições, compreende-se
muito mais rápido, sobretudo quando é uma mãozinha macia da mulher que
nos dá a lição. (Severino/Gregório. A Vênus das Peles)
Coisas emprestadas
Gosto como Gilles Deleuze penetra a diferença: não é relativo a uma comparação com o
outro. Diferença é singularidade. A diferença não é possível de ser reproduzida nem copiada.
Só pode ser repetida. E não se repete o igual, mas a diferença. A repetição faz com que se
ampliem as paisagens da diferença. E, por conseguinte, não produz qualquer tipo de
apaziguamento. Pelo contrario, faz elevar a angustia.
Não há parada possível, nem ponto de alívio da tensão. Mas nos é permitida uma coisa:
o humor (a arte das consequências). Preste atenção: Isso não quer dizer romper os limites,
ignorar a lei e atalhar o caminho.
A obediência à regra, a submissão rígida à escritura, é o que leva a própria regra a
explodir. A vis cômica da arte.
3
“She's crazy. They're all crazy. You try not to believe it because you need them. She's crazy. You struggle, you
build, you try, you turn yourself inside out for 'em. But it's never enough. So they put the spurs to you. I know. I
got the marks. I know this racket. I just forgot what I knew for a little while.” Guido (Eli Wallach), em The
Misfits [1961]. Filme. Direção de John Houston, roteiro de Arthur Miller. Com Marilyn Monroe, Clark Gable,
Montgomery Clift.
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174
AMOR INORGÂNICO
Chamamos humor, não mais o movimento que remonta da lei para um mais
alto princípio, mas aquele que desce da lei para as consequências.
Conhecemos todas as maneiras de revirar a lei pelo excesso de zelo: é por
uma escrupulosa aplicação que se pretende então mostrar o absurdo, e
alcançar precisamente essa desordem que se admite que ela proíbe e conjura.
Toma-se a lei ao pé da letra; não se contesta o seu caráter último ou
primeiro; faz-se como se, em virtude desse caráter, a lei reservasse para si os
prazeres que ela nos interdita. Desde então, é à força de observar a lei, de
desposar a lei, que se provará um pouco desses prazeres. (DELEUZE, 1983,
p.96).
Encontrar o acoplamento com a parede para deixar passar Eros. O muro. Limite
inorgânico daquele simbólico do limite que se aceita para ser sujeito. E bate a cara no muro.
Cara de pau. “Laje”. Nada passa. Mas colocaram ali um corpo diante de um muro branco para
esburacá-lo. Muro branco/ buraco negro (DELEUZE; GUATTARI, 1996). Quanta ousadia
pensar assim. Desse encontro se cria um corpo pós porno.
O que tem nessa experiência? Trata-se de fazer criar um corpo outro. Cidades eróticas
com suas escadarias, prédios, andaimes, asfalto. Corpo tão usual, mulher, bunda, seios, pés.
Tudo em mim ainda era muito óbvio. A cidade era muito maior a tudo, pronta, congelada,
fixa. Pronta a ser pornificada, muito mais do que eu, ainda refém de tantas expectativas sobre
atuação, câmeras, genitálias. Tudo parece bem colocado nisso de amar uma cidade. Mas não é
assim. É preciso encontrar as entradas. Onde tá tua porta? 4
O paradoxo do desejo não é o de existir apenas na constatação da falta (essa que funda o
sujeito, que se percebe incompleto com a mãe, submisso mais ao mundo do que à mãe), mas
que o desejo existe imanente aos seus dispositivos de captura, e se cria nas possibilidades de
acoplamento (eu desejo o que me é apresentado, e que por outro lado, também posso criar:
novos objetos. Desejo em um espectro de disponíveis: objetos, pessoas, televisores…, e das
aberturas que meu corpo terá com estes objetos).
Neste sentido, o sujeito nasce quando encontra a ligação. É na relação com o objeto, e
não na frustração desta relação – relação que, paradoxalmente, aceita sua impossibilidade –
que o sujeito da diferença se cria. É este ir para fora de si, e as consequências desta relação,
que criam um sujeito. Uma possibilidade de diferença. O lugar de criação da diferença está na
relação. É imanente a ela e, ao mesmo tempo, possibilidade de fuga dela.
Sujeito que se funda no acoplamento. Voltemos aos bebês. Máquinas de se acoplar ao
órgão das mães. Seio-boca. Imersão e especialização.
O objeto não é a questão, é o modo como se tenta permanecer na completude do amor e
como se distorce e manipula o mundo em função desta necessidade. A perversão seria a
manutenção deste quadro, um forçar acontecer, no plano concreto, este tipo de experiência
que só pode existir no paradoxo de sua impermanência.
E com que certeza se sabe o que precisa manter distante? E claro, estamos exagerando.
A individualidade se sustenta nos limites claros. A perda da fusão é condição para se entrar na
cultura. E depois atua-se esta impossibilidade criando condições precisas, tão precisas quanto
foi nosso esforço para entrar, para sustentar esse limite que nos faz sujeitos.
Mas… e se para entrar na cultura o sujeito precisasse justamente de um movimento
ativo de acoplamento ao outro, de especialização de seus buracos negros? E se o trabalho não
fosse apenas o de separação (isso sendo apenas um dos desdobramentos), mas sim o de
esburacar, fazer dobras, estriar, criar aberturas de contato, abundância com a parede branca?
Poro significa abundância. Há um mito sobre o deus Poro. Ele e Penia seriam os pais de Eros,
o amor. Talvez, ainda, o limite e o acoplamento não sejam opostos.
4
Fala do filme Amor com a cidade (Porno Clown/2012): www.amorcomacidade.wordpress.com
LINHA MESTRA, N.23, AGO.DEZ.2013
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AMOR INORGÂNICO
Desiste-se das passagens porque não se encontram as chaves?
No amor não há limite, é uma obrigação. Já não se diz não há muito tempo. É quase
inútil dizer não. Eu preferiria não. Preferiria não ter umas entradas tão largas, uma boca tão
voraz nem um rabo atraente. Minto. Preferiria ter cada vez mais entradas, mais poros. Se a
fusão é tão impossível, que sejam abertas mais portas.
É preciso uma bofetada. Ah, cheguei! Mas mais um pouco, eu posso ir mais. Eu desejo
mais. Me tranque num quarto escuro e me deixe na companhia das paredes. Nenhuma
negociação possível. Não posso passar. E assim, sem nenhum debate, tenho um sujeito que é
tão pleno quanto mais deseja.
Chegamos enfim nas paredes.
Referências
DELEUZE, Gilles. Apresentação de Sacher-Masoch. O frio e o cruel. Com texto integral de
‘A vênus das peles’. Rio de Janeiro: Taurus, 1983.
______. Diferença e Repetição. Tradução de Roberto Machado e Luis Orlandi. Rio de
Janeiro: Graal, 2009.
______. Lógica do sentido. São Paulo: Perspectiva, 2000.
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôs – vol 3. São Paulo: Editora 34, 1996.
FREUD, Sigmund. Obras Completas, volume XVIII. Além do princípio do prazer. (1920). Rio
de Janeiro: Imago, 1996.
LACAN, Jacques. O seminário, Livro 8: a transferência. Rio de Janeiro: Zahar, 2010.
Sites apresentados no Seminário Conexões:
www.amorcomacidade.wordpress.com
http://pt.wikipedia.org/wiki/L'Origine_du_monde
The Misfits (1961), filme. Direção de John Houston, roteiro de Arthur Miller, com Marilyn
Monroe, Clark Gable, Montgomery Clift. http://pt.wikipedia.org/wiki/The_Misfits_(filme)
LINHA MESTRA, N.23, AGO.DEZ.2013
176
SESSÃO 10 – CARTOGRAFIAS: TERRITÓRIO EJA
A GRADE
Thiago Donda Rodrigues 1
No meio do caminho tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
tinha uma pedra
no meio do caminho tinha uma pedra.
(No Meio do Caminho – Carlos Drummond de
Andrade)
O objetivo deste trabalho é apresentar a Educação de Jovens e Adultos em Paranaíba no
estado do Mato Grosso do Sul, que é campo de pesquisa do projeto de doutorado intitulado
“Práticas de exclusão em ambiente escolar” desenvolvido no programa de Pós Graduação em
Educação Matemática da UNESP – Campus de Rio Claro/SP.
Buscando compreender a EJA a partir de uma concepção Foucault-Deleuze, nos
valeremos do conceito de dispositivo que Foucault (2005a, p.144) delimita como:
[...] um conjunto decididamente heterogêneo que engloba discursos,
instituições, organizações arquitetônicas, decisões regulamentares, leis,
medidas administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas,
morais, filantrópicas. Em suma o dito e o não dito são elementos do
dispositivo. O dispositivo é a rede que se pode estabelecer entre estes
elementos.
No entanto, a ideia germinal de dispositivo, como uma forma de abordar estruturas de
elementos heterogêneos, tem início na obra A Arqueologia do Saber quando Foucault analisa
o discurso e descreve a épistémè e os problemas metodológicos por ela colocados (CASTRO,
2009). Mas a partir de Vigiar e Punir, Foucault aborda dispositivo como algo mais geral,
enquanto épistémè é um dispositivo especificamente discursivo, Foucault aponta para a
possibilidade deste ser tanto discursivo quanto não discursivo, tendo elementos bem mais
heterogêneos. (FOUCAULT, 2005a)
Levando em conta esta heterogeneidade própria do dispositivo, Deleuze (1990, p. 155)
indica-o como:
[...] uma espécie de novelo ou meada, um conjunto multilinear. É composto
por linhas de natureza diferente e essas linhas do dispositivo não abarcam
nem delimitam sistemas homogêneos cada um dos quais seriam homogêneos
por conta própria (o objeto, o sujeito, a linguagem), mas seguem direções
diferentes, formam processos sempre em desequilíbrio, e essas linhas tanto
se aproximam como se afastam umas das outras. Cada uma está quebrada e
submetida a variações de direção (bifurcada, enforquilhada), submetida a
derivações. Os objetos visíveis, as enunciações formuláveis, as forças em
exercício, os sujeitos numa determinada posição, são como que vetores ou
tensores.
1
Doutorando em Educação Matemática – IGCE/UNESP – Rio Claro/SP. Integrante do Grupo de Estudos
Múltiplos Um – UNS. Professor Assistente do Curso de Licenciatura em Matemática – UFMS – Paranaíba/MS.
Contato: [email protected]
LINHA MESTRA, N.23, AGO.DEZ.2013
177
A GRADE
Neste prisma, essas linhas heterogêneas que formam um dispositivo podem ser
distinguidas como: linhas de captura (AGAMBEN, 2011), “linhas de visibilidade, linhas de
enunciação, linhas de força, linhas de subjetivação, linhas de ruptura, de fissura, de fratura
que se entrecruzam e se misturam”. (DELEUZE, 1990, p. 157 e 158)
Dizendo de outro modo, dispositivo é “tudo aquilo [...] que tem a capacidade de
capturar, orientar, determinar, interceptar, modelar, controlar e assegurar os gestos, as
condutas, as opiniões e os discursos dos seres vivos.” (AGAMBEN, 2011, p. 257)
Dentre os exemplos de dispositivo temos:
[...] as prisões [...] os asilos, o panóptico, as escolas, a confissão, as fábricas,
as disciplinas e as medidas jurídicas, nas quais a articulação com o poder
tem um sentido evidente; mas também a caneta, a escrita, a literatura, a
filosofia, a agricultura, o charuto, a navegação, os computadores, os
celulares e, porque não, a linguagem mesmo, que muito bem poderia ser o
dispositivo mais antigo, que, há milhares de anos, um primata,
provavelmente incapaz de se dar conta das consequências que acarretaria,
teve a inconsciência de adotar. (AGAMBEN, 2011, p. 257)
Deste modo, o local de pesquisa desse projeto de doutorado, por conter todas essas
linhas heterogêneas, pode ser considerado um dispositivo. A seguir este será apresentado
buscando contemplar algumas dessas linhas.
A pesquisa está sendo realizada na Escola Estadual José Garcia Leal, da cidade de
Paranaíba/MS, nas turmas de Educação de Jovens e Adultos. Dentre os motivos que
culminaram na escolha desta escola tem-se o fato de ela estar localizada no centro da cidade e
receber alunos de várias partes do município. A escola conta com cerca de 1500 alunos
matriculados, distribuídos entre Ensino Fundamental (Primeira e Segunda Fase) e Ensino
Médio regulares, e os três segmentos da EJA (Equivalentes aos 9 anos do Ensino
Fundamental e o Ensino Médio).
O terreno onde funciona a escola é amplo (têm cerca de 50 metros de frente e 100
metros de fundo) e a escola funciona nos períodos matutino, vespertino e noturno. O prédio
conta com 17 salas de aula, sendo que em cinco delas funciona a EJA no período da noite;
conta também com uma quadra poliesportiva coberta, laboratório de informática, biblioteca,
refeitório, cantina e uma seção que compreende o setor administrativo (sala do diretor, sala de
coordenação, secretaria, sala de professores e almoxarifado).
No ano de 2012, quando iniciamos o contato com a escola, o projeto estadual de EJA
seguia o modelo de seriação, deste modo, no período noturno estavam em andamento seis
salas, distribuídas em turmas que compreendiam o Ensino Fundamental e Médio.
Entretanto, o projeto estadual de Educação de Jovens e Adultos do estado do Mato
Grosso do Sul foi totalmente reformulado 2, um dos motivos alegados pela Secretaria da
Educação do Estado para a mudança foi a observação de que no segundo semestre era comum
haver desistência de estudantes, salas esvaziadas e diminuição do número de turmas de EJA.
Assim, o novo projeto busca um modelo em que o aluno tenha uma maior flexibilidade para
frequentar as aulas e ao mesmo tempo tenha mais responsabilidade quanto a sua participação
na EJA.
Outro motivo apontado foi que, por contratar professores anualmente, o Estado era
obrigado a mantê-los e não podia, buscando diminuir os custos, reagrupar os alunos que
restavam de cada turma e rescindir o contrato com os docentes excedentes. Deste modo, o
novo projeto prevê que não sejam atribuídas aulas de EJA aos professores efetivos e também
2
O novo projeto entrou em vigência no início de 2013.
LINHA MESTRA, N.23, AGO.DEZ.2013
178
A GRADE
que sejam feitos contratos semestrais com os docentes da EJA para que, diminuindo a
quantidade de turmas, o Estado possa dispensá-los.
Assim, dentre as principais mudanças, o projeto atual abandona o sistema seriado e
adota um modelo em que o aluno deve superar componentes curriculares 3 que podem ser
feitos segundo a disponibilidade do aluno 4. Para cada componente são direcionados 50% de
sua carga horária para o Atendimento Coletivo, que são as aulas em que os professores
trabalham com toda a turma e os outros 50% são dispensados ao Atendimento Personalizado,
em que o professor trabalha com os alunos individualmente, lidando com dúvidas e
dificuldades dos alunos.
Outra mudança diz respeito às avaliações, estas, no novo projeto, são feitas ao final de
toda Unidade de Ensino e o aluno pode fazer quantas avaliações necessitar para que atinja a
média para aprovação. No entanto, os estudantes só podem fazer a avaliação quando atingem
ao menos 75% da carga horária da unidade estudada e entregam os trabalhos propostos
durante as Unidades de Ensino.
Entretanto, o novo projeto está, desde a sua implantação, sofrendo adaptações devido às
dificuldades do seu desenvolvimento, um dos problemas detectados inicialmente foi à
dificuldade de os alunos estudarem para todos os componentes curriculares simultaneamente,
pois, com as Unidades de Ensino com duração média de um mês, os alunos precisavam fazer
os trabalhos de todos os componentes curriculares e realizarem suas avaliações mensalmente,
desta forma, foi observado que esta prática estava sobrecarregando os alunos.
Para a solução deste problema foi limitado pela Secretaria de Educação do Estado que
os alunos façam simultaneamente seis componentes curriculares, e que os restantes sejam
feitos conforme os primeiros forem sendo superados. Outro recurso usado é que os
componentes “Matemática” e “Língua Portuguesa e Literatura” não poderão ser feitos
concomitantemente.
Outra mudança foi necessária por consequência da adaptação anteriormente explicada,
pois, com a diminuição de componentes curriculares e o aumento do número de aulas dos
componentes restantes para completar a carga horária semanal, houve conflito de aulas e
insuficiência de horário para que o Atendimento Coletivo e Personalizado fosse realizado.
Para a solução deste problema, em alguns atendimentos personalizados, dois professores de
áreas diferentes dão atendimento em um mesmo horário, para a mesma sala de aula.
O novo projeto também prevê que os alunos podem escolher os componentes
curriculares que desejam fazer, a intenção é possibilitar que o aluno cumpra a carga horária
exigida segundo suas possibilidades/limitações. No entanto, a possibilidade de o aluno da EJA
ir à escola apenas para fazer um/alguns dos componentes oferecidos e não participar de toda a
semana de aula, exige que a escola permita que este aluno entre e saia da escola quase que
livremente, pois, ele deverá acessá-la segundo o horário da aula.
Entretanto, esta mobilidade, característica da EJA, se confrontou com o controle de
horários de entrada e saída dos alunos do ensino regular, pois estes se aproveitavam denta
mobilidade para sair também. É importante deixar claro que a escola tem um funcionário que
cuida especificamente do controle de entrada e saída dos alunos, entretanto, os alunos do
ensino regular, muitas vezes, se passavam por alunos da EJA e fugiam da escola.
3
Os componentes curriculares comuns aos dois níveis de ensino são Língua portuguesa e Literatura,
Matemática, Línguas Estrangeiras Modernas, Artes, Educação Física, História e Geografia. São componentes
somente do Ensino Fundamental: Ciências da Natureza e Ensino Religioso e somente do Ensino Médio:
Química, Física, Biologia, Filosofia e Sociologia. Os conteúdos dos componentes curriculares são agrupados em
Unidades de Ensino.
4
Os alunos devem somar com os componentes curriculares 1600 horas na fase única do Ensino Fundamental e
1250 horas na fase única do Ensino Médio.
LINHA MESTRA, N.23, AGO.DEZ.2013
179
A GRADE
Buscando impedir a fuga desses alunos, a escola, por ter concentradas as salas de EJA
próximo à saída, colocou uma grade separando as salas de EJA do restante da escola,
facilitando assim o controle de entrada e saída de alunos.
É interessante salientar que o local em que foi colocada a grade deixa o setor
administrativo da escola e a EJA separadas do restante da escola (cantina, refeitório,
biblioteca, quadra). No entanto, esta grade fica aberta no inicio do período noturno para que
os alunos possam ir fazer as refeições no refeitório (ela é fechada 20 minutos após o inicio da
primeira aula) e também no horário de intervalo.
Entretanto, acreditamos que esta grade pode conter outros significados que não ficam
restritos a impedir que os alunos fujam da escola. A grade pode ser um arquivo arqueológico
ou um discurso material da perda de controle dentro deste dispositivo. Esperamos que, ao
decorrer desta pesquisa, estes significados possam ser desvendados.
Referências
AGAMBEN, Giorgio. ¿Que és un dispositivo? Sociológica. Azcapotzalco. Ano 26. n. 73, p.
249-264. 2011. Disponível em: www.revistasociologica.com.mx/pdf/7310.pdf. Acesso em: 27
set. 2012
CASTRO, Edgardo. Vocabulário de Foucault: um percurso pelos seus temas, conceitos e
autores. Belo Horizonte: Autêntica, 2009.
DELEUZE, Gilles. ¿Que és un dispositivo? In: Michel Foucault, Filósofo. Barcelona: Gedisa,
1990.
FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. 21º ed. Rio de Janeiro: Graal, 2005a.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. 30º ed. Petrópolis: Vozes,
2005b.
PENNA, João Camillo. Drummond : testemunho da experiência humana. Brasília:
Abravídeo, 2011.
LINHA MESTRA, N.23, AGO.DEZ.2013
180
SURFANDO A ONDA EJA
Simone Moura Queiroz 1
Introdução
Nada do que foi será
De novo do jeito
Que já foi um dia
Tudo passa
Tudo sempre passará
A vida vem em ondas
Como um mar
Num indo e vindo infinito.
(Lulu Santos)
300 anos antes de Sócrates, consta-se que Heráclito afirmava nunca se pisar no mesmo
rio duas vezes, pois tudo flui, ou seja, o rio muda, nunca é o mesmo. Assim, como a
modalidade de ensino denominada Educação de Jovens e Adultos, ou simplesmente EJA,
que...
até a sua consolidação como modalidade de ensino na educação formal, com
o intuito de preencher as lacunas deixadas pelo sistema educacional,
vivenciou uma série de acontecimentos nacionais. Sua história esta
entrelaçada à história dos modelos econômicos e políticos, estritamente
ligada à história das relações de poder de alguns grupos. (QUEIROZ e
SOUZA, 2013)
Sendo a EJA um dispositivo, em que as linhas de forças a transpassam e a modificam,
numa sociedade em que “o essencial é marcar e ser marcado” (DELEUZE & GUATTARI,
2012, p. 190). Pretendemos desemaranhar essas linhas de força, tornando visível àquilo que
não está oculto (DELEUZE, 2005). Conscientes de que esse movimento cartográfico que
faremos é rizomático, aberto, pois se for “fechado, arborificado, acabou” (DELEUZE &
GUATTARI, 2011, p. 32).
Através dessa pesquisa rizomática, opta-se pela transversalidade de um surfista, em que
se busca ter outra visão; outra proposta de movimento dentro daquela onda é o movimento do
teu olhar, teu compreender. Pela minha transversalidade posso mudar até a forma que
vislumbro essa onda. Esse momento é aquele em que o sufista vai criando movimentos, que o
leve a permanecer na onda o máximo de tempo possível, levando-o a novas percepções.
A onda é para nós a EJA, em que em seu movimento de ir e vir, sempre retorna com
mudanças, algumas vezes com outro nome, com outras propostas, outros ideais, com outros
interesses políticos, sociais e/ou econômicos.
Esse conjunto multilinear que perpassa o dispositivo EJA, são linhas de natureza
distintas, e que “seguem direções diferentes, formam processos sempre em desequilíbrio”
(DELEUZE, 1990, p. 155), em que nesse pode-se identificar as subjetivações e as linhas de
forças (FOUCAULT, 2006) aos quais os componentes desse dispositivo 2 estão submetidos.
1
Doutoranda do programa de Educação Matemática da UNESP (Rio Claro/SP). Integrante do grupo de estudos
Múltiplos Um – UNS. Contato: [email protected]. Deixo expressos meus sinceros agradecimentos ao
meu orientador o professor doutor Antônio Carlos Carrera de Souza, que contribuiu com suas importantes
sugestões, observações e acréscimos. Agradeço também ao CNPq pelo auxílio financeiro que possibilitou a
realização e divulgação deste trabalho.
2
Agamben (2009) resume o dispositivo em três pontos: “- É um conjunto heterogêneo, linguístico e nãolinguístico, que inclui virtualmente qualquer coisa no mesmo título: discursos, instituições, edifícios, leis,
LINHA MESTRA, N.23, AGO.DEZ.2013
181
SURFANDO A ONDA EJA
Ou seja, apresentar o contexto social, político e econômico em que a EJA está inserida, assim
como os movimentos que a molda, que subjetivam, e que afeta os programas, movimentos e
planos, modificando a postura desses perante a população analfabeta.
Histórico e social
Tomando a EJA como onda, é preciso lembrar três aspectos que contribuem para o
tamanho e força de uma onda, que é distância percorrida por essa sobre a superfície da água e
a intensidade e duração do vento.
No período imperial o Brasil tem no movimento jesuíta, os primeiros ventos sobre a
superfície da água, formando as primeiras ondas, o objetivo não era a EJA, mas sim a luta
contra o analfabetismo, tendo a catequese como intensificadora desse vento. Ao serem
expulsos do Brasil, surgiram outros ventos.
Em 1882, no Brasil 82,63% da sua população era composto por analfabetos, o que
passou a ser uma vergonha nacional nos anos seguintes, principalmente com o advento da
primeira república brasileira (1889). Novos ventos e estes mais intensos e duráveis, pois a
comoção era em nível nacional, com a população tomada por um sentimento patriótico.
Percebendo que o país estava numa posição ruim em relação aos demais, precisava eliminar a
“causa de todos os males” (FERRARO, 2004, p. 118), ou seja, o analfabetismo. “O voto foi
repetidamente negado aos analfabetos sob o argumento principalmente de sua incapacidade.”
(idem, p. 118). A vergonha nacional passou a ser uma vergonha também pessoal.
De acordo com os oceanógrafos as ondas formadas, no “meio” do oceano, viajam
grandes distâncias até atingir a costa, dependendo da força do vento esse pode fazê-las
percorrerem quilômetros até chegar à costa. Com isso, o primeiro vento intenso e durável foi
a Constituição de 1891, Brasil República, em que a responsabilidade pelo ensino básico
passou a ser da União. Nos 30 anos seguintes, no censo de 1920, tínhamos no Brasil 72% de
analfabetos, não sendo o vento tão forte, intenso e durável.
Em 1932 foi lançado um manifesto, assinado por um grupo seleto de educadores, que
propunham uma reforma na educação nacional. A repercussão desse documento foi tamanha
que se incorporou a ideia de Plano Nacional de Educação (PNE) na Constituição Brasileira de
1934, no artigo 150. Outro vento que prolongaria a distância percorrida da onda sobre a
superfície da água, ainda em formação, pois a ideia da EJA ainda não tinha forma.
Apenas na década de 1940, surgiram diversas políticas educacionais relacionadas à
educação de jovens e adultos, temos aqui o vislumbre das ondas na costa, com as reflexões
feitas a respeito da educação voltada para este tipo de público (DI PIERRO, JOIA, RIBEIRO,
2001), até então o foco eram os jovens e as crianças. Na década de 1950, mais da metade da
população brasileira ainda era analfabeta, pela falta de acesso à escolarização. Criou-se a
Campanha Nacional de Erradicação do Analfabetismo (CNEA), marcando uma nova etapa
nas discussões sobre a educação de adultos.
A partir desse período tivemos ondas diversificadas, ocasionadas por ventos, agora na
costa. Em relação às ondas, podemos observá-las de acordo com quatro aspectos 3:
- Período – tempo que leva para duas cristas 4 de ondas consecutivas passarem em um
dado ponto;
- Comprimento – a distância horizontal entre duas cristas (ou cavados);
- Altura – a distância vertical entre a crista e o cavado de uma onda;
medidas de polícia, proposições filosóficas, etc. O dispositivo em sim mesmo é a rede que se estabelece entre
estes elementos. - O dispositivo tem sempre uma função estratégica concreta e se inscreve sempre numa relação
de poder. - Como tal, resulta do cruzamento de relações de poder e de relações de saber. (p. 29)
3
4
Extraído da página: http://www.polmil.sp.gov.br/unidades/17gb/ondas.htm consultada dia 17/05/2013
A parte superior da onda, que se projeta além da linha da água do mar. Tem também o Ventre e a Base.
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182
SURFANDO A ONDA EJA
- Velocidade – pela qual uma série de ondas avança.
Houve entre as décadas de 1950 e 1980 diversos ventos que ocasionaram ondas, com
períodos, comprimentos, alturas e velocidades variadas. Algumas ondas tiveram períodos
curtos, como a do final dos anos 1950 e início dos anos 1960, as proposições de Paulo Freire
serviram de inspiração para as principais propostas de alfabetização e educação popular que
se realizaram no país (DI PIERRO, JOIA, RIBEIRO, 2001).
Na década de 1970, teve início o Movimento Brasileiro de Alfabetização (MOBRAL).
“O MOBRAL chegava com a promessa de acabar em dez anos com o analfabetismo,
classificado como ‘vergonha nacional’ nas palavras do presidente militar Médici.”
(HADDAD, DI PIERRO, 2000, p. 115). Com a redemocratização do Brasil, na década de
1980, o MOBRAL é extinto, sendo substituído pela Fundação EDUCAR, com características
semelhantes, porém fez parte do ministério da Educação. Na constituição Federal de 1988, a
EJA passou a ser reconhecida, e assim não apenas o Governo Federal como toda sociedade
civil se juntariam para erradicar o analfabetismo.
Em meio a essa luta contra o analfabetismo e seus interesses nem sempre voltados para
a educação, surge algo de cunho mundial que vai potencializar essa busca pela erradicação.
O que apresentamos aqui foram ventos (movimentos) que formaram ondas, que ao se
aproximar da costa (praia), refrataram-se, enrolando-se sobre si mesma, pois ao se aproximar
das águas mais rasas, sua velocidade diminui e a altura aumenta, fazendo-a quebrar. Indo até a
praia sua energia se dispersa.
Em meio a isso tem o remanso, período calmo entre as séries de ondas, aquele em que
alguns se aventuram mais do que deviam, todavia especialistas dizem que são seguidos
imediatamente por séries mais altas e as correntes de retorno 5 e as laterais são mais fortes.
Sabe-se que é muito difícil detectar um tsunami no oceano, devido a sua pequena
amplitude. Todavia, essa onda se propaga em alto mar, aumentando sua amplitude, em águas
mais rasas causando grandes danos ao atingirem a costa. Como o que ocorreu mais
recentemente no Japão em 2011 e em 2004 na Indonésia, que devastou ambos os países.
Econômico
Em 1990, a ONU, através do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento
(PNUD) apresentou um relatório 6, que foi publicado no Brasil em 1996 e apresenta como
proposta o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) e suas três dimensões: renda,
longevidade e educação, que está baseado no ideal do desenvolvimento humano.
Temos aqui ventos ocasionando ondulações no oceano, com pequenas amplitudes. Visto
como algo agradável e interessante, pela busca, em comum: a erradicação do analfabetismo.
Agora, não sendo mais uma luta nacional, mas algo de nível mundial. Uma espécie de juntar
as forças. Ventos provindos de diversas direções.
Em meio a esses índices, encontra-se a preocupação com a alfabetização, pois em
relação à educação, de acordo com Herculano (2000), entre as metas escolhidas pela ONU a
ser realizada até o ano 2000 está o acesso universal à educação básica e a erradicação do
analfabetismo e de acordo com o IBGE percebe uma diminuição percentual no analfabetismo
para 18,3% (1991). Lembrando que estes são apenas dados estatísticos, ou seja, não sendo
avaliada a qualidade destas pessoas ditas alfabetizadas.
Esses ventos sobre a superfície do oceano vão aumentando a amplitude da onda. A
Educação, em nosso caso a EJA passa a ser “valorizada”, assim como a qualidade de vida e a
renda per capita (antes o único índice que era observado) e ao se deparar com as águas rasas
5
Refluxo do volume de água que retorna da costa de volta para o mar, em virtude da força gravitacional.
Através do Relatório de Desenvolvimento Humano (RDH), percebeu-se que o desenvolvimento humano,
passou a ganhar importância mediante ao crescimento econômico, o foco principal.
6
LINHA MESTRA, N.23, AGO.DEZ.2013
183
SURFANDO A ONDA EJA
da concorrência entre os países, essa onda se intensificam causando grandes danos ao
atingirem a costa.
O que temos, após essa disputa mundial por uma melhor posição no ranking, estando o
Brasil, de acordo com o HDR de 2013, localizado na 85ª posição, uma busca por melhoria
percentual, nos índices.
Dados colhidos recentemente no portal do IBGE 7 demonstram que houve uma queda
percentual considerável em relação ao analfabetismo. É importante mencionar que a ONU
declarou o ano 1990 como “Ano Internacional da Alfabetização” e realizou em diversos
países debates, congressos, encontros, seminários com propostas para erradicação do
analfabetismo, além de lançar o Programa Nacional de Alfabetização e Cidadania (PNAC),
visando reduzir em 70% o número de analfabetos no país nos 5 anos seguintes (MACHADO,
1998).
Gráfico 1: Percentual de analfabetos entre a população de 15 anos ou mais, segundo os censos demográficos.
Brasil de 1920 a 2010.
Fonte: IBGE, 2010.
A diminuição na média percentual de jovens e adultos alfabetizados deve-se aos
diversos programas criados pelo governo em prol da aceleração, focando a certificação.
O Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira
(Inep) realiza o Exame Nacional para Certificação de Competências de
Jovens e Adultos (Encceja). Este exame é usado por Secretarias Estaduais de
Educação que firmam acordos de cooperação com o governo federal para
certificar a conclusão do ensino fundamental.8
Nesse mesmo portal ainda acrescenta, que aqueles que possuírem um certificado de
conclusão, por esses meios, têm os mesmos direitos daqueles que são diplomados no ensino
fundamental e médio em escola regular.
Em outras palavras, os ventos do IDH ocasionaram ondas gigantescas, em que sua
grandiosidade em vez de beneficiar a população, causa uma imensa devastação,
principalmente por ter como único foco a certificação, para enrubescer os dados estatísticos. E
após as correntes de retorno finalizar suas atividades, o que se percebe são os destroços
deixados, pessoas certificadas sem estarem necessariamente alfabetizadas, deteriorando o
7
Disponível em: <http://seriesestatisticas.ibge.gov.br/series.aspx?vcodigo=PD365&t=taxa-de-analfabetismo-de-pessoas-de15-anos-ou-mais-de-idade-por-grupos-de-idade> Consultado dia 21/08/2012
8
http://www.brasil.gov.br/sobre/educacao/sistema-educacional/supletivo Consultado dia 06/05/13
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184
SURFANDO A ONDA EJA
sentido freireano 9 da EJA, da educação como prática libertadora. Levando-nos a algumas
reflexões: O que faremos a seguir para nos reerguemos, após tamanha devastação? Ainda é
possível? E a pergunta fundamental: Por onde começar?
Podemos supor que entre os educadores exista um interesse em melhorar
qualitativamente (não apenas os dados estatísticos) o ensino básico, mas isso seria suficiente?
Tudo que se vê não é
Igual ao que a gente
Viu há um segundo
Tudo muda o tempo todo
No mundo
Não adianta fugir
Nem mentir pra si mesmo agora
Há tanta vida lá fora
Aqui dentro sempre
Como uma onda no mar...
(Lulu Santos)
Referências
AGAMBEN, G. O que é um dispositivo? In: O que é o contemporâneo e outros ensaios.
Chapecó: Argos, 2009.
DELEUZE, G. O que é um dispositivo? In: ______. Michel Foucault, filósofo. Barcelona:
Gedisa, 1990.
DELEUZE, G. Foucault. São Paulo: Brasiliense, 2005.
DELEUZE, G., & GUATTARI, F. Mil Platôs: Capitalismo e esquizofrenia 2 (2ª ed.). São
Paulo: 34, 2011.
DELEUZE, G; GUATTARI, F. O anti-Édipo: Capitalismo e esquisofrenia. (Vol. 1). São
Paulo: 34, 2012.
DI PIERRO, M. C.; JOIA, O; RIBEIRO, V. M. Visões da educação de jovens e adultos no
Brasil. Caderno Cedes, ano XXI, nº. 55, novembro/2001.
FERRARO, A. R. Analfabetismo e níveis de letramento no Brasil: o que dizem os Censos?
In: Educação e Sociedade, Campinas, v. 23, n. 81, dez. 2002, pp. 21-47.
FERRARO, A. R. Analfabetismo no Brasil: desconceitos e políticas de exclusão. In:
Perspectiva, Florianópolis, v. 22, n. 01, jan./jun. 2004, pp. 111-126.
9
Com Paulo Freire temos o conhecimento como produto das relações entre os seres humanos e destes com o
mundo. "Ninguém educa ninguém, ninguém educa a si mesmo, os homens se educam entre si, mediatizados pelo
mundo" (FREIRE, 2005, p. 68). Os seres humanos devem buscar respostas para os desafios encontrados nestas
relações. Para isso devem reconhecer a questão, compreendê-la e imaginar formas de respondê-la
adequadamente. Daí outras questões se colocam e novos desafios aparecem. Assim se constitui o conhecimento,
ou seja, a partir das necessidades humanas. E a curiosidade epistemológica, que se tem do objeto apreendido na
sua substantividade (FREIRE, 1997), é a grande geradora neste processo de construção do conhecimento.
LINHA MESTRA, N.23, AGO.DEZ.2013
185
SURFANDO A ONDA EJA
FONSECA, M. da C. F. R. Educação Matemática de jovens e adultos – especificidades,
desafios e contribuições. 2ª edição. Belo horizonte: Autêntica, 2007.
FOUCAULT, M. Ética, sexualidade, política. 2 ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária,
2006. (Ditos e escritos. Vol 5)
FREIRE, P. Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo:
Paz e Terra, 1997.
FREIRE, P. Pedagogia do Oprimido. 40ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2005.
HADDAD, S; DI PIERRO, M. C. Escolarização de jovens e adultos. In: Revista Brasileira de
Educação. São Paulo, n. 14, p. 108-130, mai./ago. 2000.
HERCULANO, S. C. A qualidade de vida e seus indicadores. In: Qualidade de vida e riscos
ambientais. Selene Herculano et al (org.). Niterói: Eduff, 2000.
MACHADO, M. M. A trajetória da EJA na década de 90: políticas públicas sendo
substituídas por solidariedade. In: reunião anual da ANPED, 21, 1998, Caxambu. Anais... São
Paulo: ANPED, 1998.
NOSSO FUTURO COMUM. Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento. 2
ed. Rio de Janeiro: Ed. da FGV, 1991.
QUEIROZ, S. M; SOUZA, A. C. C. de. O dispositivo: Educação de jovens e adultos. In:
Encontro Brasileiro de Estudantes de Pós-Graduação em Educação Matemática, 16, 2012,
Canoas. Anais... Rio grande do Sul: EBRAPEM, 2012. ISBN: 2237 8448. Disponível em:
http://matematica.ulbra.br/xviebrapem/index.html
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DISPOSITIVO EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS
Paola Amaris Ruidiaz 1
O analfabetismo é a expressão da pobreza,
consequência inevitável de uma estrutura social
injusta. Seria ingênuo combatê-lo sem combater suas
causas. (FREIRE, 1977, p. 71)
Historicamente a Educação de Jovens e Adultos (EJA), como é hoje denominada, foi se
tornando prática social através de instituições formais ou não. Na história do Brasil é possível
perceber as dificuldades encontradas nessa modalidade de ensino desde a época em que os
jesuítas eram responsáveis pela educação até os dias de hoje.
A formação da EJA é atravessada por diversas leis, normas, discursos que transpassam
seu caráter educativo, cujo objetivo é alfabetizar aquela população que, por diversas questões
culturais, econômicas e sociais, não teve acesso à educação na idade própria ou pelo fato de
serem excluídos da escola “normal”, o que os coloca à margem do mercado de trabalho pela
sua condição de não escolarizados. Desse modo, a EJA está carregada historicamente de
cicatrizes sendo que estas indicam como ela tornou-se o que é hoje.
Entendemos, assim, que a EJA foi-se construindo através das suas marcas 2 e essas
marcas fazem parte do seu novelo; que em seu interior coexistem diferentes sistemas tanto
heterogêneos, como homogêneos. Tal novelo é perpassado por linhas de força, possibilitando,
portanto, entender a EJA como uma:
[…] meada, um conjunto multilinear. É composto por linhas de natureza
diferentes e essas linhas do dispositivo não abarcam nem delimitam sistemas
homogêneos por sua própria conta (o objeto, o sujeito, a linguagem), mas
seguem direções diferentes, formam processos sempre em desequilíbrio, e
essas linhas se aproximam como se afastam uma das outras [...] (DELEUZE,
1990, p. 155).
Destacam-se quatro tipos de linhas: a de visibilidade, a de enunciação, a de força e a de
subjetivação. As duas primeiras foram destacadas por Foucault quando ele disse “são as
curvas de visibilidade e as curvas de enunciação, o certo é que os dispositivos são como
máquinas de Raymond Roussel, máquinas de fazer ver e falar” (DELEUZE, 2005, p. 155).
Para Deleuze (2005) essa explicação topológica está baseada como primeiro momento
nos estratos; indica que em cada época, cada formação histórica, cada estrato está feito de
diferentes formas de sentir, perceber e dizer que conformam as regiões de visibilidade e
campos de legibilidade; formações de coisas e de palavras, de visíveis e dizíveis, conteúdos e
expressões. Assim, entende-se que a construção histórica da EJA perpassa diversos estratos
até tornar-se o que é hoje.
Dentro da EJA, existem realidades que estão na repartição entre o visível e o
enunciável. “A realidade é feita de modos de iluminação e de regimes discursivos”
1
Mestranda do programa de Educação Matemática da UNESP (Rio Claro); [email protected].
“[...] No entanto, na medida em que fui mergulhando na memória para buscar os fatos e reconstituir sua
cronologia, me vi adentrando numa outra espécie de memória, uma memória do invisível feita não de fatos mas
de algo que acabei chamando de "marcas". [...] mas das marcas, daquilo em nós que se produz nas incessantes
conexões que vamos fazendo. Em outras palavras, o sujeito engendra-se no devir: não é ele quem conduz, mas
sim as marcas. O que o sujeito pode, é deixar-se estranhar pelas marcas que se fazem em seu corpo, é tentar criar
sentido que permita sua existencialização - e quanto mais consegue fazê-lo, provavelmente maior é o grau de
potência com que a vida se afirma em sua existência [...]” (ROLNIK, 1993).
2
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187
DISPOSITIVO EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS
(KASTRUP, 2009, p.78), maneiras de dizer e formas de ver. Cada estrato é feito pela
combinação das duas: o saber é a unidade do estrato, composto do visível e anunciável, não
há nada antes do saber nem por debaixo dele.
Uma dessas realidades, o adulto, o qual por suas condições segundo a sociedade é um
adulto analfabeto, que seria necessário partir do analfabeto como ser humano e não do
analfabetismo, que é uma consequência histórica feita de regimes discursivos, pois de fato o
analfabeto é uma realidade humana, enquanto analfabetismo é uma realidade sociológica.
Para além, é consequência do seu momento histórico, pois aquilo que desconhece é porque
não teve a oportunidade de aprendê-lo, a sociedade, então, o exclui. Essa concepção comum
do analfabeto, como aquele que não sabe ler nem escrever, é uma definição literal e imprópria
porque deixa de lado o sujeito em si.
Quanto às suas visibilidades, não se reduz a uma coisa ou qualidade sensível, o ser-luz não
se reduz ao meio físico, “pois as visibilidades não são imediatamente vistas nem visíveis. Elas são
até mesmo invisíveis quando permanecermos nos objetos, nas coisas ou nas qualidades sensíveis,
até alcançar as condições que as abre” (DELEUZE, 2005, p.66). É assim, que as visibilidades não
se definem pela visão, mas são complexos de ações, paixões, reações.
Essas condições que as abrem e as fazem visíveis ocorrem quando a subjetivação
aparece no plano visível, ou seja, na própria afetação. Por isso tem “o poder de se afetar a si
mesmo, um afeto de si por si”. O sujeito nesse caso depende da relação com o outro e é
impossível não sair afetado dessa relação, um e outros se constituem ao mesmo tempo. Por
isso é uma relação consigo e com o outro.
Enquanto os enunciados nunca estão ocultos, porém, não são legíveis, sequer dizíveis,
pois constituem um conjunto de palavras ou frases proferidas por alguém em dada época;
maneiras de dizer e de ver, discursividades e evidências da linguagem. Portanto, é preciso
rachar as palavras e as coisas para delas extrair os enunciados e as visibilidades dos estratos.
Foucault deixa claro quando afirma que os enunciados não se reduzem só às palavras,
frases, proposições. Para Deleuze (2005), acontece quando não designamos meramente aquilo que
se fala, mas aquilo que se torna possível e justificável falar sobre. Cada época tem sua própria
maneira de reunir a linguagem em função de seu corpus. A linguagem contém as palavras, as
frases, mas não contém os enunciados que se disseminam segundo distâncias irredutíveis. Nesse
caso, Foucault opõe a diferença entre ver e falar seguindo Blanchot “falar não é ver”; ou como diz
Foucault, “o que se vê não se aloja mais no que se diz” (DELEUZE, 2005, p.73).
Nesse sentido, o visível e o enunciado formam um estrato: enquanto se tem as coisas e
as palavras pode-se acreditar que se fala o que se vê e que se vê aquilo que se fala, dessa
forma, os dois se encadeiam. Mas, a fala e a visão alcançam seu maior estado no momento em
que, segundo Foucault,
[...] por mais que se diga o que se vê, o que se vê não se aloja jamais no que
se diz e por mais que se faça ver o que se está dizendo por imagens,
metáforas, comparações, o lugar onde estas resplandecem não é aquele que
os olhos descortinam, mas aqueles que as sucessões da sintaxe definem [...]
mas, neste caso um visível que tudo o que pode é ser visto, um enunciável
que tudo o que pode ser é falado, mas suas entre linhas tem duas faces: “fala
cega e visão muda[...] (DELEUZE, 2005, p. 74)
O saber é um agenciamento prático entre o visível e o enunciável, cada estrato é feito de
tudo o que pode ver e falar. Enfim, Deleuze tem uma frase de Foucault na qual conclui a
importância da verdade dentro de cada época e sua importância recai no estrato que nós
encontramos: “que tudo seja sempre dito, em cada época, talvez seja esse o maior principio
histórico de Foucault: atrás da cortina nada há para se ver, mas seria ainda mais importante, a
cada vez, descrever a cortina ou o pedestal, pois nada há atrás ou embaixo” (2005, p.63).
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188
DISPOSITIVO EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS
O dispositivo também possui linhas de forças. Essas linhas seriam como setas que não
deixam de atravessar as coisas e as palavras, estão em qualquer dispositivo, interagem, cruzam-se,
seguem direções diferentes, aproximam-se, afastam-se uma da outra. Na procura da sua própria
afirmação. Segundo Deleuze: “envolvem os trajetos de uma linha com outra linha, operam idas e
vindas entre ver e o dizer e inversamente, agindo como setas que não cessam de conduzir a
batalha” (1990, p.155). As linhas de força estão relacionadas com a dimensão poder-saber, por
isso atingem todos os espaços do dispositivo por fazer parte do seu espaço.
No entanto, o dispositivo também está composto pelas linhas de subjetivação. Para
Deleuze, “a linha de subjetivação é um processo, uma produção de subjetividade, num
dispositivo: ela deve se fazer, para que o dispositivo a deixe ou a torne possível” (1990, p.
156). O interesse de Foucault no sujeito está atado a uma visão ontológica, o sujeito é
histórico, produzido por sua própria história, não uma substância, mas uma forma. A partir
dessas constituições históricas é que se vão tornando sujeitos.
Os modos pelos quais nos tornamos sujeitos, os modos de subjetivação
aparecem e se desenvolvem historicamente como práticas de si, que embora
vigorem dentro de práticas discursivas (saberes) e práticas de poder que
testemunham pelas descontinuidades de suas formas históricas
(FOUCAULT, 1984, p. 22.).
Dessa maneira, “o sujeito se constitui enquanto sujeito de seus atos” (FOUCAULT,
1984, p.47). Essas práticas de si é o que Foucault fala ao indicar o “ocupar-se de si próprio”.
Assim, atribui importância radical numa relação de si para consigo: a “arte da existência”.
Nos estudos e pesquisas ─ arqueológicos empreendidos por Foucault na sociedade grecoromana ─ surge o tema do cuidado de si que é um tema bem antigo da cultura Grega onde
encontramos Sócrates aconselhando aos seus discípulos e aos cidadãos de Atenas que antes de
cuidar das suas riquezas e de sua honra, deveriam cuidar deles próprios e da sua alma.
Portanto, decorrem duas consequências que são importantes na filosofia do dispositivo
segundo Deleuze. A primeira, é o repudio aos universais. Para Foucault os universais eram as
entidades racionais como o Estado, a Soberania, a Lei e o Poder. No entanto, não eram
conceitos fora da sua obra, mas, segundo Agamben, “la estratégia de Foucault fue recorrir a
los dispositivos para tomar lugar de esos universales” (2011, p.253).
Mas, por que ele toma isso como estratégia? Nesse contexto, Deleuze (1990) esclarece
que “o universal nada explica, é ele que deve ser explicado”, por isso não deve ser totalizado,
como um todo. Os sujeitos não são mais universais explicando-se mediante eles, porque
existem processos singulares de cada individuo que carregam diversas marcas e subjetivações
dentro do dispositivo, sendo ele mesmo multilinear.
A EJA, como parte da Instituição Educação, cumpre uma estratégia histórica, pois
representa a própria história individual de sujeitos. Nesse sentido, está vinculada à fase vivida
pela comunidade em seus devires, pois é uma educação de si por si, vai se construindo dentro
do seu território existencial, produzindo subjetividades, tornando sujeitos.
A segunda consequência “é uma mudança de orientação que se separa do eterno para
apreender o novo” (DELEUZE, 1990, p. 160). O dispositivo tem que estar acompanhado da
criação, sua forma de resistência. O eterno vem sendo a história, nosso passado. O novo é o
atual. “O atual não é o que somos, mas aquilo que vamos nós tornando, o que chegamos a ser,
quer dizer, o outro, o que somos (o que não seremos mais), é aquilo que somos em devir:
parte da história e parte do atual” (DELEUZE, 1990, p.161).
Essa mudança de orientação, o eterno e o novo, tem sentido no momento em que cria na
sua novidade, que seria sua capacidade de transformar. O devir é a linha que guia seu
processo de incidência. O sujeito se constrói a partir do que se é para chegar a ser outro, o
qual não é um mesmo, mas outra forma, uma invenção.
LINHA MESTRA, N.23, AGO.DEZ.2013
189
DISPOSITIVO EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS
“Pertencemos a certos dispositivos e neles agimos” (DELEUZE, 1990, p. 160). Os
dispositivos têm a capacidade de orientar, capturar e também de controlar nossas condutas. A
maioria das vezes isto é invisível aos nossos olhos, mas não é invisível por serem ocultos, pois
eles sempre estão interagindo conosco, estão presentes até mesmo nas decisões que tomamos.
Por isso que a EJA pode ser entendida como um dispositivo, porque dentro dele existem
e se produzem subjetividades em que há uma relação importante dentro do sistema educativo
educador-educando, que se constituem conjuntamente, afetando mutuamente, onde existem
potencialidades a ser trabalhadas. Onde perpassam linhas de força, de visibilidades, de
enunciação, de subjetivação.
A EJA, como dispositivo, podem ser acionados outros dispositivos, aqueles que
contribuem na relação educador-educando “para produzir um novo corpo sem amarras na
imanência do viver, produzindo modos de pertencimento provisórios: um nascimento,
disrupção, efeitos” (ROTONDO; TAROCO, 2012, p. 19).Nesse momento quando os modos
de subjetivação são potencializados e as relações de poder podem ser acionadas e assim
propiciar um movimento, na rede de poder, onde os fluxos de resistência promovam fluxos de
invenção, ruptura ou fratura. O dispositivo acionando a produção do conhecimento, a
invenção, a produção de um si e de um mundo junto à produção Matemática. A Matemática
sendo produzida como problema, com problematização, por necessidade, produzindo
agenciamentos na produção coletiva do ensinar/aprender coletivamente a Matemática.
Referências
AGAMBEN, G. ¿Qué es un dispositivo? In: Sociológica, año 26, número 73, pp. 249-264
mayo-agosto de 2011.
DELEUZE, G. ¿Qué es un dispositivo? In: Michael Foucault, filosofo. Barcelona: Gedisa,
1990,
p.
155-161.
Tradução
de
Wanderson
Flor
do
Nascimento:
http://escolanomade.org/pensadores-textos-e videos/Consultado em 02/04/2013.
___________Foucault. Tradução Claudia Sant´Anna Martins; revisão da tradução Renato
Ribeiro. São Paulo: Editora Brasiliense, 2005.
FOUCAULT, M. Historia da sexualidade (VOL II. O uso dos prazeres). Rio de Janeiro:
Graal. 1984.
FREIRE, P. Pedagogia do Oprimido. 4. ed. São Paulo: Paz e Terra, 1977.
KASTRUP, V.; BARROS, R. Movimentos-funções no dispositivo na prática da cartografia.
In: PASSOS, E.; KASTRUP, V.; ESCÓSSIA, L. (org.). Pistas do método da cartografia: pesquisa
intervenção e produção de subjetividade. Porto Alegre: Sulina, 2009, 76-91p.
ROLNIK, S. Pensamento, corpo e devir Uma perspectiva ético/estético/política no
trabalho acadêmico. In: Cadernos de Subjetividade, v.1 n.2: 241-251. Núcleo de Estudos e
Pesquisas da Subjetividade, Programa de Estudos Pós Graduados de Psicologia Clínica,
PUC/SP. São Paulo, set./fev. 1993.
ROTONDO, M. A. S; TAROCO, T. Dispositivo Experimentoteca de Matemática: Produção
na imanência. In: V Seminário Internacional de pesquisa em Educação Matemática. 2012. Rio
de Janeiro.
LINHA MESTRA, N.23, AGO.DEZ.2013
190
SESSÃO 11 – TERRITÓRIO E VIDA
VIDAS E TERRITORIALIDADES DA RUA: CAMINHOS DA
REDUÇÃO DE DANOS
Tadeu de Paula Souza 1
Perspectiva da redução de danos
Uma importante estratégia de redução de danos surgiu a partir de iniciativas de troca de
seringas, realizadas por uma associação de usuários de drogas (a Junkiebonden) no início dos
anos 80, na Holanda (Bastos, 2003). Diante das contaminações de hepatites virais causadas
pelo compartilhamento de seringas entre usuários de drogas injetáveis, grupos de usuários
passaram a criar estratégias para se proteger. Trata-se de um pequeno grupo que conciliou o
desejo de continuar a usar drogas com a construção de estratégias de cuidado de si e dos
outros. Esta experiência local inaugurou novas possibilidades de se falar sobre as drogas e
sobre os usuários de drogas. Usuários que queriam se cuidar para continuar vivos e usando
drogas iniciaram a construção de um novo plano discursivo sobre si e suas experiências, antes
silenciado e posto na invisibilidade.
Como afirmam Foucault e Deleuze (1986):
Ora o que os intelectuais descobriram recentemente é que as massas não
precisam deles para saber; elas sabem perfeitamente, claramente, muito
melhor do que eles; e elas o dizem muito bem. Mas existe um sistema de
poder que barra, proíbe, invalida esse discurso e esse saber. (pp. 71)
Este tipo de relação com as drogas deveria ficar invisível pelas tecnologias de poder que
querem a todo custo associar uso de drogas a desejo de morte, descuido, criminalidade, ruína
e doença. Inicia-se, a partir da RD, a possibilidade de construção de um novo campo de
enfrentamento da política de guerra às drogas. O que a redução de danos trouxe a contrapelo
deste paradigma foi a dimensão singular da experiência do uso das drogas, evidenciando
usuários que desejavam continuar a usá-las. Ao possibilitar que os usuários falassem em nome
próprio a redução de danos também tornava legítimas estas experiências. O que os usuários de
drogas dizem, pensam e sentem em relação ao uso de drogas? E o que dizem, pensam, sentem
e fazem quando desejam continuar a usá-las?
Redes e territórios
De acordo com Righi (2010), as redes assistências de saúde produzem normas próprias
que tendem a desconsiderar os valores e regras dos territórios existenciais, porque operam
articulações funcionais entre equipamentos. Desta perspectiva, o território é somente um
espaço de produção de demanda e a rede um lugar de oferta técnica de cuidado que tende ao
isolamento temático e à especialização da atenção. A construção de redes territoriais de
produção de saúde busca superar a percepção de que o território é apenas um lugar produtor
de demandas que requerem ofertas técnicas, e busca afirmar que o território é um espaço vivo
que requer diálogos e coproduções de ordem política e social. Destacam-se nesta análise
dimensões concretas que definem o acesso e regulam os modos de utilização dos serviços,
dentre as quais se destacam a próprio saber dos usuários.
1
Doutor em Saúde Coletiva pela Unicamp e Supervisor Clínico-Institucional do Consultório na Rua SMSCampinas – SP.
LINHA MESTRA, N.23, AGO.DEZ.2013
191
VIDAS E TERRITORIALIDADES DA RUA: CAMINHOS DA REDUÇÃO DE DANOS
São os usuários, ... (que), a partir das suas distintas experiências de encontro
ou desencontro com os serviços de saúde, que vão construindo novos
agenciamentos para conseguir o acesso à rede de serviços, fazendo usos
variados da ABS em função de suas singulares necessidades e as ofertas
reais feitas por ela. Cabe-nos escutar esse saber assessor que vai sendo
produzido de forma irreprimível pelos usuários, e utilizá-lo para o
permanente e necessário aperfeiçoamento das redes de cuidado de saúde.
(Cecílio, et al., 2012, pp. 2901)
A partir desta indicação buscaremos adequá-la a realidade de trabalho dos redutores de
danos, uma vez que a perspectiva do usuário deve ser tomada na sua expressão coletiva e
territorial; um território existencial que, diga se de passagem, não se limita a sua dimensão
geográfica e social, mas também aos modos de vida que nele se expressam (Deleuze e
Guattari, 1993 e 2009). As vidas que se expressam nos territórios constituem uma
dimensão existencial do próprio território. Ruas, “becos” e “mocós” são territórios
existenciais de muitos usuários de drogas que tem grande dificuldade para acessar os serviços
de saúde quando necessitam. Em nossa investigação buscamos acompanhar, além da
dinâmica individual de cada usuário, a dinâmica existencial do próprio território. Partimos do
pressuposto, neste contexto, que a construção de redes de atenção a usuários de álcool e
outras drogas deve se fazer atenta aos hábitos coletivos, às estratégias de autoproteção, aos
modos como as drogas comparecem na vida coletiva destes usuários e aos outros aspectos
destas vidas que não se resumem ao uso de drogas.
Perspectiva metodológica
A pista do método da cartografia proposta por Alvarez e Passos (2009) propõe que o
trabalho cartográfico exige que habitemos os territórios existenciais pesquisados. Cartografar
é acompanhar esta dinâmica viva de cada território, em que cada situação é revestida ao
mesmo tempo de problemas postos a existência e de construção de alternativas, de estratégias
de resistência ou linhas de fuga.
O transito realizado entre a rede de saúde e os territórios existenciais dos usuários de
drogas constituíram este campo de análise e intervenção que denominamos de “territórioentre”. Fomos nos deparando com o fato de que a rede de atenção a usuários de álcool e
outras drogas de Campinas-SP comporta muitos territórios existenciais. São muitas vidas,
com inserções sociais e existenciais distintas que se cruzam, se esbarram e se encontram. A
análise sobre os desafios de articulação de uma rede de cuidado passou pelo acompanhamento
da relação que se estabelece entre os territórios existenciais dos usuários e os movimentos da
rede de saúde, exigindo um exercício de composição de territórios existenciais distintos.
Frente aos problemas que queríamos responder foi estratégico habitar um território que se
constituiu entre os serviços de saúde e os espaços da rua, que serviram como analisadores
para pensarmos a função territorial da rede de saúde, seu grau de abertura e os pontos de
estrangulamento para os movimentos do território.
Entulhos, trilhos e encruzilhadas
Encontro-me com os redutores de danos, Carol e Roque, num ponto de ônibus da
Avenida Aquidabam, no centro de Campinas-SP. Ali pegamos um ônibus até o bairro Santa
Eudóxia. Ao chegarmos entramos num bar onde o dono da vendinha conta que os insumos
(camisinha e folhetos informativos que viram canudinho para inalar cocaína) já tinham
acabado. O bar era um ponto de apoio da redução de danos. Caminhamos um pouco até
LINHA MESTRA, N.23, AGO.DEZ.2013
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VIDAS E TERRITORIALIDADES DA RUA: CAMINHOS DA REDUÇÃO DE DANOS
atravessar um pequeno matagal onde começamos a caminhar ao lado dos trilhos do trem. “É
aqui que começa o campo!”, me explica Carol. No início do trajeto encontramos um homem
pardo, alto e forte, sentado em baixo de uma pequena arvore fumando crack no seu cachimbo.
“Oi, tudo bem aí?” aborda o redutor de danos. “Tudo tranquilo”. A redutora se apresenta,
explica sobre o trabalho e o homem conta que já conhece os redutores de danos de um outro
campo. Ele explica que está ali dando um tempinho pra voltar pro serviço. A redutora oferece
alguns insumos como protetor labial e camisinha. Ele agradece e não dá muita abertura. Nos
despedimos e seguimos caminhando.
Logo em frente encontramos um grupo de pessoas dentro de um pequeno barraco feito
de lonas, papelões e madeira. Os redutores se aproximam e eles dizem: “Entrem, fiquem à
vontade”. Ao calor de aproximadamente 40 graus nos sentamos na porta do barraquinho e nos
apresentamos às cinco pessoas que estavam ali, conversando e usando crack. Sentados do
lado de dentro estavam quatro pessoas, duas mulheres e dois homens. Um deles diz ter
sessenta anos. Simpático, o senhor fala do calor e que eu podia chegar mais perto. Tento, mas
o espaço é muito pequeno. As quatro pessoas que estavam do lado de dentro eram mais velhas
e traziam a mesma serenidade do rapaz que acabáramos de encontrar. Em pé zanzando, meio
dentro e meio fora tinha um rapaz mais novo. Esse sim trazia as expressões e comportamentos
esperados por mim. Inquieto, a fissura era visível. Os outros pareciam ignorá-los. Enquanto
observo a movimentação e as expressões, os redutores de danos conversam, ouvem mais uma
vez o pedido de uma das mulheres por documento e distribuem insumos. Todos agradecem e
nenhuma demanda a mais é apresentada.
Quando seguimos a caminhada converso com os redutores de danos que me chamara a
atenção a calma da maioria das pessoas, com exceção do jovem rapaz. Os redutores de danos
me explicam que os mais velhos são na maioria usuários antigos e que esse jeito sereno era
assim mesmo. “Essa agitação costuma ser mais comum entre os jovens iniciantes.”
Seguindo a caminhada pelos trilhos do trem nos aproximamos de casas demolidas, que
configuravam um cenário de guerra. As casas foram interditadas e demolidas pela prefeitura
por terem sido construídas muito próximas aos trilhos. Os redutores de danos dizem que as
famílias foram realocadas num conjunto habitacional longe dali. Entre os escombros e
entulhos sai um homem mulato, forte e esguio de banho tomado. Segue com o seu cachimbo
na mão para debaixo do viaduto que ficava mais a frente. Atravessamos os trilhos e entramos
num grande matagal por uma pequena trilha. Chegamos num pequena clareira onde estava
uma jovem mulher negra sentada sozinha em cima de um tronco de arvore. Quando vê os
redutores de danos abre um grande sorriso e cumprimenta: “Que bom que vocês chegaram!”.
Pede imediatamente muitas camisinhas e protetores labiais. A quantidade de camisinha nunca
era suficiente. Os redutores de danos perguntam se está tudo bem com ela, se ela precisa de
alguma coisa. Diz que “está de boa, na batalha, seguindo a vida”. Nos despedimos e entramos
ainda mais no meio do matagal. Ouvimos uma movimentação mais agitada vindo de dentro
do matagal e vemos de relance dois garotos discutindo. Um estava com a boca ferida e outro o
acuava bravamente. Estavam muito sujos e com roupas velhas. Quando um deles nos vê se
afasta dizendo: “Você deu sorte. Os anjos chegaram. Mas depois acerto contigo.” O outro sai
andando e os redutores indicam para que saiamos dali logo.
Na saída nos encontramos novamente com a jovem mulher que pede mais camisinha.
Quando de repente se aproximam outros dois garotos, que aparentavam ter uns dezenove,
vinte anos. Agitados, ficam meio desconcertados ao nos ver ali no meio do mato. Os dois se
vestiam com roupas de grife, óculos escuros na cabeça, cordão de prata. Eu também fico
surpreso de vê-los ali. Olhares que se desviam rapidamente, fala acelerada e entrecortada.
Carol aborda explicando o trabalho e antes que ela concluísse um deles diz: “Sou total flex.
Mando tudo. Pó, crack, maconha. Só não injeto.” Pegam umas camisinhas e seguem
acelerados. O clima estava meio denso e Carol pede que saiamos do matagal e voltemos para
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193
VIDAS E TERRITORIALIDADES DA RUA: CAMINHOS DA REDUÇÃO DE DANOS
os trilhos. Segundo ela ainda haviam mais clareiras no meio daquele mato, mas que era
prudente retornar. De volta aos trilhos ela explica: “Viu como os jovens são mais agitados?”
De volta aos trilhos andamos poucos metros e reencontramos o mulato esguio com mais
dois homens. Deitado num colchão velho nos cumprimenta olhando de lado. Sentados em
roda, ao lado dele um senhor de barbas e cabelos brancos e olhos claros e um rapaz negro de
olhos amendoados. Nos olham serenamente e entre um trago e outro o rapaz nos conta sentir
uma forte dor no peito. Disse que tomou um soco forte e que estava preocupado com a dor.
Levanta a camisa e nos mostra a região. A redutora diz que ele precisa procurar o Centro de
Saúde (CS), pois ele precisava de uma avaliação da equipe. Ele agradece.
Ao seguirmos, pergunto por que ela não se propôs a acompanhá-lo até o C.S. Ela
explica que aquele é um campo recém-aberto e que ainda não possuem um bom vínculo com
os usuários e nem com o C.S. Chegar com um usuário, sem vínculo com nenhuma das partes
não era indicado. Geraria afastamento da equipe.
Saímos em direção ao C.S. Na entrada para o bairro entramos por uma viela onde passamos
por um beco onde se encontram alguns homens de pé. Carol passa direto e explica que ali é a
“biqueira”, na linguagem campineira, ou “boca de fumo” na linguagem carioca. Me diz que não
puxa papo com eles porque a descriminaram certa vez por ela ser travesti. Entramos numa
vendinha onde um homem nos recebe educadamente. É mais um ponto de apoio onde ela deixa
alguns insumos e folhetos informativos. Ruas estreitas e encruzilhadas, me conta que o dono do
bar é o traficante dali e que aquele bar era fachada para lavar dinheiro.
No trajeto pelo bairro até o C.S. pergunto por que eles não sentaram para conversar um
pouco mais com as pessoas, para que elas pudessem contar um pouco de suas histórias. Ela
me diz que não é bem assim. Me pergunta se senti abertura em alguém para alongar uma
conversa. “Eles estão no ambiente deles. Nem sempre eles dão essa abertura. Temos que
respeitar isso. Tem momentos em que eles param e querem contar uma situação de briga, de
saudade de alguém, e nesses momentos eles dão abertura.” Percebo que ouvir histórias de
vida não é uma prescrição a ser seguida.
Digo a eles que muitas vezes quando falamos de territórios de uso de crack imaginamos as
“crackolândias” em centros urbanos, com grande concentração de pessoas e muita movimentação.
Em Campinas tem uma região central, mas há também muitos “mocós” como este. Lugares mais
escondidos e de pouca movimentação. São territórios invisíveis e desconhecidos por grande parte
da sociedade. Pude neste encontro apreender apenas algumas impressões do território que me
chamaram atenção. Além dos que fui discutindo com os redutores pelo caminho, me chamou
atenção o corpo esbelto da maioria dos homens. Corpos definidos eram o indicativo de que eram
pessoas que trabalhavam em alguma atividade intensa. Os redutores de danos me explicam que a
maioria dos homens adultos trabalha de alguma forma. Normalmente fazendo bicos, como
assistente de obra ou fazendo mudanças e carregamentos.
Signos de um território existencial que equivoca nossas suposições. Entre entulhos,
trilhos e encruzilhadas fui desconstruindo a imagem de craqueiros esqueléticos e frenéticos.
Cada trecho caminhado era uma novidade e uma desconstrução. Certamente privilegiar o uso
do crack como problema central é uma violência com as pessoas que ali vivem. Penso o
quanto os profissionais de saúde, gestores e políticos conhecem essa variabilidade de
territórios, modos de uso e contradições. Embora esperasse ver um encontro produtor de
desvios, certamente neste trajeto quem sofreu desvio fui eu. Construir relação com o território
leva tempo e equivoca nossos saberes. Foi isso que aprendi com os redutores neste dia.
Referências
ALVAREZ, J. E PASSOS, E. Cartografar é habitar um território existencial. In: PASSOS et
al. (Orgs.). Pistas do método da cartografia. Sulinas, Porto Alegre, 2009, p.131-49
LINHA MESTRA, N.23, AGO.DEZ.2013
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VIDAS E TERRITORIALIDADES DA RUA: CAMINHOS DA REDUÇÃO DE DANOS
CECÍLIO, L. C. O. et al. A Atenção Básica à Saúde e a construção das redes temáticas de
saúde: qual pode ser o seu papel?. Ciênc. saúde coletiva [online]. 2012, vol.17, n.11 [citado
2013-01-15], p. 2893-2902
DELEUZE, G; GUATTARI, F. O que é a filosofia? Editora 34. Rio de Janeiro. 1993.
______. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia; vol. 1. Editora 34. Rio de Janeiro. 2009.
LINHA MESTRA, N.23, AGO.DEZ.2013
195
MÁSCARA, SIMULACRO E TERRITÓRIO: UMA EXPERIÊNCIA DE
TEATRO NA FUNDAÇÃO CASA
Márcia Cristina Baltazar 1
... a paisagem
Com tantos nomes, quase a mesma
A mesma dor calada
O mesmo soluço seco
Mesma morte de coisa que não apodrece
Mas seca
Vou na mesma paisagem
reduzida a sua pedra
A vida veste ainda
A sua mais dura pele.
(“Homens de Pedra”, João Cabral de Melo Neto).
Ao entrar na Fundação Casa, estabeleci-me uma missão: provocar nos alunos
curiosidade e experiências vividas e/ou testemunhadas de criação artística através do Teatro.
No entanto, deparei-me com um sentimento geral de sobra social: ali se encontravam, tanto
entre os funcionários quanto entre os adolescentes internos, os excluídos, os fracassados e os
rejeitados: o resto. Quanto aos adolescentes, é obvio que eles não queriam estar ali e pairava
um sentimento de fracasso (mesmo quando dito, por eles, ser um fracasso temporário). Além
disso, a falta de acolhimento de muitas famílias aos meninos naquela situação gerava-lhes
uma grande carência afetiva. Já entre aos funcionários, transparecia que aquele não era o
melhor emprego do mundo, e isso devido ao fato de ser um emprego mal remunerado e
socialmente desvalorizado. Em mim também, e por mim também, circulava um sentimento de
exclusão, desvalorização e rejeição social. Na verdade, poucos estavam lá por total opção.
Diante desse ambiente inóspito à alegria e à realização de singularidades, o mais comum era
“tocar com a barriga”, ou seja, desistir e não investir na vida institucional.
Talvez por idealismo, humanismo ou altruísmo (enfim, desejo), a minha resistência na
alegria foi o compartilhar e, principalmente, valorizar, com meus alunos, momentos de
criação teatral 2. E talvez ainda, devido a esse empenho de relação, e vice-versa, eu criei um
grande amor pelos meus alunos da Fundação Casa.
Aqui vale uma referência ao filósofo José Gil (2005) que diz que o agenciamento do
desejo sempre ocorre num meio afetivo. Esse meio, segundo Gil, é a pele, mas também posso
falar, inspirando-me em Luís Fuganti (2006) que é a Máscara. Assim, creio que o meu esforço
foi desvestir a pele/máscara dura dos meus alunos adolescentes da Fundação Casa e tentar
trocá-la por uma pele/máscara mais porosa aos afetos e relações criativas:
Em meu primeiro dia de aula, depois das apresentações mútuas iniciais, eu tirei a
maquiagem de uma pinta que eu tinha pintado no rosto e disse aos adolescentes: “Nem todas
as imagens que vocês vêm são verdadeiras. Podemos usar muitas máscaras dependendo das
relações que estabelecemos em cada ambiente. Na minha casa, eu uso a máscara da mãe e
esposa, aqui, a de uma professora que tenta ensinar os alunos, numa festa, outra máscara, e
assim por diante. Isso não significa que elas são falsas. Aliás, o que é verdade? Usamos
1
2011: Professora de Teatro na Fundação Casa, em Campinas. 2012: Professora substituta de Teatro Educação
na Universidade Federal de São João Del Rei. 2013: Orientadora de voz do Projeto Ademar Guerra da Secretaria
de Cultura do Estado de São Paulo.
2
Outro espaço para a resistência e a propulsão criativa foram os encontros do Grupo Conexões do Programa de
Pós-graduação em Saúde Coletiva da Unicamp, grupo composto por artistas e profissionais da saúde e que me
estimulou à reflexão e a tomada de atitudes em relação aos seguintes “temas nuvens”: resistência e vida.
LINHA MESTRA, N.23, AGO.DEZ.2013
196
MÁSCARA, SIMULACRO E TERRITÓRIO: UMA EXPERIÊNCIA DE TEATRO NA FUNDAÇÃO CASA
máscaras, através de nossas expressões faciais, de nossas roupas, de nossas falas, de nosso
corpo. Vamos trabalhar nessa oficina com as nossas máscaras. Portanto, a primeira impressão
de vocês sobre mim pode não ser a ‘verdadeira’”.
Por trás dessa fala aos meninos, estava uma vaga memória de uma aula de Luís Fuganti,
que assisti em 2006 e que, aqui, tenho condições de transcrever.
Segundo Fuganti, a Máscara é um simulacro, o qual “é aquilo que parece ser, mas não é.
Não é fingimento, nem representação. É o lugar de produção da realidade. É constitutivo do
real. Uma unidade de composição e não uma forma. É puro efeito incorporal, mas algo se
passa com o desejo.”
Por ser “lugar da produção do próprio lugar”, a máscara é constitutiva de um território:
“Simulacro é um horizonte movente, um lugar flutuante. Lugar é efeito, segundo os
estoicos. É um efeito estético, não é moral; mas é atrativo, é uma fronteira: destaca uma
diferença de potencial. É um recorte de potência: produz lugar e tempo, e não habita espaço e
tempo” (FUGANTI, 2006).
Creio que inspirada nessa filosofia, prossegui com meu objetivo nas minhas aulas de
Teatro na Fundação Casa, trazendo, como proposta de encenação, um texto de Brecht. Eu
desejava criar relações mais democráticas e sinceras naquela instituição; no entanto, no
primeiro mês de Fundação, sumiu um lápis grafite durante uma aula minha.
Eu sabia que um lápis apontado poderia ser uma arma nas mãos de alguém e pressionei
os meninos a devolverem o lápis. Eles afirmaram que eu estava acusando eles sem provas,
pois não tínhamos contado os lápis juntos. Assim, eu saí da sala junto com o agente
educacional afirmando que faríamos um boletim de ocorrência interno. Mas, antes de eu sair
do pavilhão, entre as grades amarelas do corredor, um aluno me chamou para devolver o
lápis.
Então, na aula seguinte apresentei uma carta aos meus alunos, da qual transcrevo partes:
Começo revelando algumas máscaras que tenho usado com vocês e sugiro que vocês
também reflitam sobre as máscaras que vocês têm usado dentro da Fundação Casa e usaram
antes de estarem aqui. Essas máscaras não são ruins, estamos usando-as a todo o momento.
O problema é quando esquecemos que estamos usando essas máscaras e começamos a
pensar que somos só essas máscaras. Aí perdemos o controle de nossas vidas e somos
geralmente manipulados pelo ambiente em que estamos.
Então, pensando no nosso último encontro e em tudo que ocorreu comigo até este
momento em que lhes escrevo “usei” algumas máscaras e elas são um pouco determinadas
por mim e um pouco pelo ambiente social em que estamos:
Especificamente na hora em que vocês chamaram a mim e ao agente educacional para
devolverem o lápis, adotei duas máscaras:
A primeira foi a Máscara da professora que marcha em direção a vocês em atitude de
reprovação mostrando uma autoridade que não gosta de atitude de vocês e quer dar lhes uma
lição de moral, “subir nas tamancas”, humilhar o outro, ser carrasco.
A segunda foi a Máscara da professora que chora decepcionada, com tristeza por ter
acreditado em vocês, ter se doado e recebido um “tapa”, mostrando desânimo, decepção e
tendo uma atitude de vítima.
Depois, em casa, a adotei a Máscara “Márcia com Raiva”, pensei em desistir, tive
raiva de vocês.
E agora adoto a Máscara “Márcia que Escreve”, na vontade de transformação, na
vontade de dizer não a esta situação que criamos e acreditando de novo que podemos
estabelecer uma relação em que possamos CRIAR TEATRO, porque é nisso que eu acredito,
porque na Máscara “Criadora” posso dizer que estou realmente viva.
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Se vocês toparem este desafio: a tentativa de experimentar a criação em teatro, convido
vocês a uma conversa para pensarmos em nossas máscaras, para estabelecermos as nossas
regras de convívio e decidirmos o que iremos fazer.
Assim, depois de lermos essa carta, acordamos que a partir daquele momento eu iria
sempre contar os materiais trazidos para aula na presença de um ou mais meninos e, inspirada
na dialética de Brecht, propus fazermos uma peça de teatro sobre o sumiço do lápis mostrando
dois pontos de vista: o meu e o dos meninos; em duas situações: uma em que os meninos
haviam pegado o lápis, e outra, em que eu estava com o lápis no bolso e tinha me esquecido
dele. Essa peça, escrita coletivamente, chamou-se “Os dois lados do Lápis”.
Para encenar esse texto, trocamos todas as nossas “máscaras”, ou seja, as falas ditas no
dia do desaparecimento do lápis foram ditas, na encenação, por outros que não eram os seus
autores na realidade, e quem fez o personagem que pegou o lápis, muito provavelmente, não
foi quem de fato o pegou 3. Os alunos também fizeram o personagem que me representava e o
que representava o agente educacional. Esse processo de “moldar” o corpo em outro corpo
demorou cinco meses. Foram muitos ensaios sobre o andar, o giro, os ombros, os braços, as
mãos e o olhar de um outro. Paralelamente, fui moldando com eles, na argila, as máscaras
grotescas, as quais seguiram o seguinte processo:
Começamos definindo em grupo quais eram duas características principais de cada
aluno da oficina, de mim e do agente educacional que acompanhava o curso, deixando claro
que essas características eram máscaras adotadas dentro daquele ambiente. Cito algumas
dessas máscaras: chorona e persistente (eu), risonho e monstro, estressado e legal, persistente
e crítico, sossegado e observador, com ódio e santinho, alegre e prestativo. Cada aluno
construiu com seu corpo uma postura para cada uma dessas duas características e depois
adicionamos a associação com um animal que cada um escolheu para si e, assim, passamos a
moldar em argila as máscaras grotescas baseadas nos animais escolhidos e em duas
características comportamentais de cada um definidas em grupo. Meu objetivo era realizar,
posteriormente, encenações com o objeto máscara.
Antes, eu fiz o molde de gesso do rosto de cada menino, um processo que envolveu a
confiança dos meninos em mim e também uma atitude de carinho, pois era necessário alisar
cada atadura gessada no rosto de cada um e eles deveriam ficar imóveis e de olhos fechados
por cerca de 20 minutos. Eu tirei o molde do rosto de todos. Em outras experiências com
grupos de alunos fora da Fundação Casa, os alunos também faziam o processo de colocar
ataduras nos rostos dos colegas e isso sempre ajudou muito na integração de grupos. Mas
dessa vez, além deles não quererem alisar as ataduras nos rostos dos outros, eu me propus a
fazer o molde de todos porque sabia que essa ação, diretamente na pele, também era um gesto
de demonstração de carinho e construção de confiança deles para comigo. Assim, por meio
dessas ações foi-se estabelecendo entre mim e os adolescentes uma relação de confiança e
afeto.
Aos poucos, fui mostrando aos meus alunos que eu não fingia: eu realmente vivia todos
os fluxos direcionais das máscaras que eram criadas no ato da minha relação com eles.
“Simulação é uma zona aparentemente comum, onde tudo se diferencia e é afirmado
enquanto aquilo que se constitui em ato. Ninguém espera de ninguém, mas algo te espera. É
uma zona de confiança” (FUGANTI, 2006).
Como exemplo de zona de confiança e de outro território criados, lembro quando
construímos a grade de bambu para o cenário da peça “Os dois lados do Lápis”:
Nessa época, a minha relação com os meninos já era muito boa, embora nem sempre o
encontro fosse harmonioso. Eu precisava sempre estar inovando e, principalmente, sendo
firme nos acordos e nas exigências de participação. Então, para a construção da grade, levei
3
Eu não quis saber quem de fato pegou aquele lápis.
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muitos bambus para a unidade e esta aula de construção da grade foi na quadra esportiva,
onde ficamos trancados: eu, os meninos e o agente educacional (aquele material era muito
perigoso caso os meninos decidissem “virar a casa”). Perguntaram: “Você tem coragem de
ficar com eles trancada com os bambus?”
Nesse dia, fui eu quem acabou machucando um adolescente. Explico. Enquanto alguns
trançavam a grade, eu fui mostrar para outro grupo de alunos passos de um treinamento
oriental com bastão e não vi um adolescente que estava no raio de giro do bambu. Bati o
bambu no rosto do adolescente. Na hora, pedi desculpas, acarinhei a cabeça do menino e o
encaminhamos para a enfermaria. Coloquei para a turma a hipótese de eles fazerem um BO
contra mim, pois eu tinha sido irresponsável, mas a maioria decidiu não abrir o BO. Devo
aqui mencionar a extrema ajuda que o agente educacional 4 me prestava, dividindo as mesmas
responsabilidades de supervisão da turma.
“Na medida em que você se mostra inteira na passagem você é incapturável. Não tem
como o poder se exercer sobre você desse ponto de vista, nem você demandar poder. O
próprio poder não resiste a esse lugar” (FUGANTI, 2006).
Enfim, estreamos a peça “Os dois lados do Lápis” num dia de festa na Casa. Todos os
adolescentes e profissionais da unidade assistiram à apresentação. Foi uma encenação sem o
objeto máscara, mas os adolescentes estavam usando outras máscaras que não eram as suas
cotidianas. O desempenho deles foi excelente, os professores da rede de ensino formal, que
assistiram, adoraram; mas os coordenadores da instituição... muito pelo contrário.
Com o tempo, fui percebendo que na minha posição, ou seja, professora de teatro
contratada por uma ONG, eu dificilmente conseguiria modificar a estrutura autoritária,
hierárquica e infantilizante da Fundação. Aquela instituição não era para formar pensadores,
cidadãos e protagonistas. Então, foquei-me na minha relação com os meninos, e mais
especificamente, numa preocupação: a minha ética de vida como criação e a questão viver e
matar para eles.
Por isso e por causa das máscaras, adaptei a peça “Arlequim, servidor de dois patrões”,
na qual retirei o conflito amoroso e aumentei o foco no assassinato e na vingança entre
inimigos. A disputa passou a ser entre dois mercenários que queriam contrabandear uma
máscara sagrada de uma comunidade e Arlequim, para ganhar mais dinheiro, servia a estes
dois vilões sem eles saberem de sua dupla serventia.
Não chegamos a encenar toda a peça, mas considero que foi um processo extremamente
válido porque as máscaras são objetos que necessariamente criam um distanciamento entre o
ator e a personagem/figura, o que, acredito, provoca no aluno ator a percepção de que e como
construímos nossas máscaras/papéis na sociedade.
Propus muitos exercícios para o ensino da técnica da linguagem da máscara e dentro do
possível, os meninos deram conta. Assim, fizemos uma saída, externa à Fundação, para a
apresentação de um trecho da peça em uma Casa de Cultura de Campinas.
Por fim, na minha última aula, recebi um grande presente: a apresentação de improviso
dos meninos sobre “como eles vieram parar na Fundação” e como era a vida cotidiana deles
lá. Por causa desse presente, na minha avaliação de hoje, creio que consegui realizar um
pouco do meu objetivo quando entrei naquela casa: eu estabeleci com os meninos relações
muito sinceras, nos mostramos humanos, ou seja, vulneráveis e criadores. Saí de lá. Não
modifiquei a estrutura mortificante da instituição, mas tenho certeza que, mesmo que
temporariamente, cultuamos a vida humana.
A título de conclusão, saliento o quanto foi importante, primeiro, o afeto dedicado e trocado
com meus alunos. Segundo, e não menos importante, o conteúdo e a competência relacionados ao
ensino de teatro e à reflexão sobre os temas que abordamos. E, terceiro, a minha insistência com
4
Durante oito meses, o mesmo agente educacional me acompanhou durante as aulas de Teatro e depois que ele
pediu demissão, muitas vezes eu ministrei a oficina sozinha.
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relação a determinados objetivos que, creio, foi um exemplo de modo de trabalho, ou de ética,
relacionada ao particular desejo de vida de cada um. Percebo o quanto foi assimilado pelos alunos
as minhas constantes mudanças de estratégias de abordagem e execução de meus desejos, visto
que eu realmente dialogava com eles, aprendendo e reconhecendo também os desejos deles. Esse
processo de escuta organicamente associado à troca afetiva, talvez tenha sido um exemplo de
conduta ou uma associação à figura da Mãe, que, para estes meninos, é uma referência de amor,
mesmo com todas suas especificidades relacionais.
Assim, fazendo uma referência ao conceito de Luís Fuganti de “personagem máscara”,
mesmo talvez vestindo a personagem Mãe, ao me desarmar para as relações a cada encontro
com os adolescentes da Fundação Casa, permiti (sempre observando-as) que as forças dessa
máscara, relacionadas com aquelas pessoas e naquele ambiente, seguissem seus cursos de
risos, choros, seriedade, responsabilidade, carinho, brincadeiras... e assim propulsionassem a
nós todos a criação de um território de vibração perceptível de Vida.
“Severino, retirante,
Deixe agora que lhe diga:
Eu não sei bem a resposta
Da pergunta que fazia,
Se não vale mais saltar
Fora da ponte e da vida
Nem conheço essa resposta,
Se quer mesmo que lhe diga
É difícil defender,
Só com palavras, a vida,
Ainda mais quando ela é
Esta que vê, Severina
Mas se responder não pude
À pergunta que fazia,
Ela, a vida, a respondeu
Com sua presença viva.
E não há melhor resposta
Que o espetáculo da vida:
Vê-la desfiar seu fio,
Que também se chama vida,
Ver a fábrica que ela mesma,
Teimosamente, se fabrica,
Vê-la brotar como há pouco
Em nova vida explodida
Mesmo quando é assim pequena
A explosão, como a ocorrida
Como a de há pouco, franzina
Mesmo quando é a explosão
De uma vida severina."
(Fala do mestre Carpina em “Morte e Vida Severina”
de João Cabral de Melo Neto)
Referências
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e Terra, 1992.
COSTA, Rogério da. Uma Vida (nua) é como Piscina (sem água)? Revista Galáxia, São
Paulo, n. 22, p. 171-183, dez. 2011.
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FUGANTI, Luís. Personagem Máscara. Transcrição de aula proferida em Campinas, no
Barracão Teatro, em 31 de julho de 2006.
GIL, José. Movimento Total. Tradução Miguel Serras Pereira. São Paulo: Iluminuras, 2005.
GOLDONI, Carlo. Arlequim, servidor de dois patrões. Trad. Elvira Rina Malerbi Ricci.
São Paulo: Peixoto Neto, 2007.
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NA TRILHA DE OUTROS TERRITÓRIOS: POR UM REENCANTAMENTO
DA PRODUÇÃO DA EXISTÊNCIA
Camila Cristina de Oliveira Rodrigues 1
“(...) não poderia a vida de todos se transformar numa obra de arte?
Porque deveria uma lâmpada ou uma casa ser um objeto de arte,
e não a nossa vida?”.
Michael Foucault
Atualmente, os modos de perceber e conceber a loucura passaram por uma mudança
que tem trazido outras experimentações para o campo social. No Brasil, este processo foi
fortemente marcado por questionamentos e contestações do Modelo Manicomial e culminou
no Movimento da Reforma Psiquiátrica 2 e no investimento em outros territórios e modos de
atenção em saúde mental.
Este novo modelo de atenção aponta para uma diferenciação no estilo de cuidado: não
mais a ideia de loucura como defeito, falha ou desqualificação, que deve ser isolada e
classificada, mas sim a inclusão, o acolhimento, a compreensão e a ampliação da cidadania
das pessoas em intenso sofrimento psíquico.
Sabemos que a (...) adaptação pura e simples do doente mental a sociedade é o
horizonte da maioria dessas reformas pelas quais passou a psiquiatria. (Rauter, 2000:267)
Neste sentido, é importante questionar sobre quais direções e sentidos ‘a recente Reforma
Psiquiátrica’ orienta suas práticas de assistência e cuidado, ou melhor dizendo, o que somos
capazes de ver e dizer sobre a loucura e a saúde a partir da Reforma Psiquiátrica?
Existe algo que se configura como invisível e indizível, mas que atravessa
permanentemente o campo de forças na Saúde Mental: trata-se da constatação de que apesar
das tentativas de romper com o modelo asilar, as práticas do modo psicossocial têm a
característica fundamental de poderem recair na repetição dos contornos das práticas do
paradigma que pretendem superar. (Costa-Rosa, 2000:165)
Deste modo, somos levados a crer que a construção de outras relações com a loucura
alcança uma amplitude muito maior que a simples crítica ao Modelo Manicomial e a
produção de outras territorializações deste campo assim como outros (...) recentes
movimentos de liberação sofrem com o fato de não poderem encontrar nenhum princípio
que sirva de base à elaboração de uma nova ética. Eles necessitam de uma ética, porém
não conseguem encontrar outra senão aquela fundada no dito conhecimento científico do que
é o eu, do que é o desejo, do que é o inconsciente, etc. (Dreyfus e Rabinow apud Foucault,
1995: p.255)
Portanto, é preciso não apenas refletir e criticar o paradigma manicomial é preciso
desconstruí-lo em nós mesmos, nos impulsionar para um movimento de desterritorialização
que abdica das garantias imaginárias que os princípios manicomiais nos oferecem: um lugar
de saber sobre a loucura, a ideia de cura em primazia de uma normalidade tão desejada.
As coisas sempre foram assim: os pacientes são os loucos, portanto
carentes, falhos. Nada têm em comum com a instituição, que não carece, e
1
Psicóloga Clínica e Apoiadora de Saúde Mental do Município de Campinas/SP. E-mail: [email protected].
Denominamos aqui de Movimento da Reforma Psiquiátrica, o surgimento de experiências que
redimensionaram o campo teórico e prático da psiquiatria, desenvolvidas tanto no Brasil como em outros países.
No Brasil, a participação dos diversos movimentos sociais e políticos no movimento da Reforma acabaram por
vincular a loucura e a saúde ao exercício da cidadania, contribuindo com a construção do Sistema Único de
Saúde entre outros aparatos assistenciais substitutivos ao manicômio, tais como: os CAPS, NAPS, os Hospitais
Dia e as Enfermarias de Psiquiatria nos Hospitais Gerais.
2
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seus profissionais que, à sua imagem e semelhança, têm saúde, têm saber, só
têm. Todas as variáveis do autoritarismo se conotam desde esse lugar,
geralmente carregado de agressão e tentativas compulsivas de estabelecer
distância. Voltando ao saber, ele cumpre aqui um papel estruturante.
‘Confessar’ que não saber equivale a aproximar-se da falta/ confusão/
loucura. É preciso saber a qualquer custo, mesmo ao custo da paranoia
como proposta de vínculo. (Marazina, 1989:73).
A partir deste prisma o que nós poderíamos então ver e dizer hoje sobre a loucura? Será
possível encontrarmos uma saída para não repetirmos nos novos modos de cuidado o fracasso
da psiquiatria clássica? Por quais vias seria possível efetivar essa empreitada? Ou será que
estamos condenados a um face a face com o saber/poder da psiquiatria seja o detendo ou nos
submetendo a ele?
Acreditamos que um trabalho implicado com a produção de saúde e com outros
territórios possíveis de agenciamento com a loucura deve caminhar pelo viés da busca de
qualidade da existência singular e coletiva considerando, além do plano macropolítico que
busca alcançar a igualdade dos direitos e a plena cidadania, outros territórios até então quase
imperceptíveis, conectados a micropolítica e que procuram alcançar um algo a mais (algumas
linhas de fuga) do que a garantia de direitos e cidadania.
Com isso, passamos a nos conduzir, não mais pelas voltas aos territórios cristalizados da
normalidade, da patologia, da saúde, da loucura, mas sim por um reencantamento de outra
natureza das modalidades expressivas de subjetivação 3. (Guattari, 1992: p.135).
Reencantamento que consiste em um projeto permanente de invenção de saúde, de produção
de vida, de sentido, de sociabilidade, da utilização das formas (dos espaços coletivos) de
convivência dispersa. (Rotelli et al., 1990:30)
Tal proposta nos investe em um estilo de pensamento conectado intensamente com a
produção de vida, ‘um pensamento-artista’, que nos guia para novos territórios existenciais.
Territórios existenciais não enquanto campo de formação do sujeito ou de uma identidade,
mas como modo de habitar a vida como obra de arte 4.
Trata-se, portanto, de construir aproximações de encontros que possibilitem a
reinvenção da vida. Algo que requer que nos reconectemos com o corpo e o pensamento. Ora
os encontros ou misturas de corpos desterritorializando as maneiras de pensar, ora os atos
afirmativos do pensamento desterritorializando os modos de agir. (Fuganti, 1990: 43)
Diante do convite para a produção de uma nova ética, esta se faz no tecer de práticas
que afirmam uma qualidade da existência, nem o eu, nem a loucura ou a saúde são aspectos
dados a priori e disso (...) há apenas uma consequência prática: temos que nos criar a nós
mesmos como uma obra de arte, colorir nossas relações com a loucura de forma que este
encontro potencialize a nossa reinvenção (Dreyfus e Rabinow apud Foucault, 1995:262).
Deste modo, são os estilos de vida sempre implicados em nossas relações com o mundo
que constituem de um jeito ou de outro nossos territórios existenciais e desta ótica nosso
grande problema ético passa a ser o de fazer uma escolha singular em como viver, como
fornecer à vida muito mais intensidade e beleza, cuidar da cidade e dos cidadãos sejam eles
“loucos” ou “não”. (Dreyfus e Rabinow apud Foucault, 1995).
Neste sentido, no plano da relação e das práticas de saúde mental os questionamentos se
transformam: Que tipo de estilísticas da existência nós (enquanto singularidades, enquanto
3
Subjetivação aqui é compreendida como uma individuação particular ou coletiva que caracteriza um acontecimento.
É, portanto, um modo intensivo e não pessoal. (Foucault)
4
“Não estamos nos referindo à arte institucionalizada, às sua obras manifestadas no campo social, mas a uma
dimensão de criação em estado nascente, perpetuamente acima de si mesma, potência de emergência
subsumindo permanentemente a contingência e as vicissitudes de passagem a ser dos universos materiais”
(Guattari, 1992, p.130-131).
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trabalhadores da saúde mental, serviços de saúde mental, usuários, coletividade) desenhamos?
Que modos de existência nós produzimos quando fazemos o que fazemos? Será que temos,
como diria Nietzsche, maneiras suficientemente ‘artistas’ para além do saber e do poder
(Deleuze, 1992: 124)? Ou ainda (...) em que mundo queremos nos inserir e inserir nossos
pacientes ou usuários psiquiátricos (Rauter, 2000: 268)?
Esta mudança paradigmática dos modos de relação com a saúde e a loucura implicadas
no investimento dos processos de produção de outras territorialidades, passa não só pelo
desterritorialização do instituído, mas também por movimentos instituintes entre eles a
criação de outros modos de efetivação da clínica.
Entramos aqui no campo da clínica como Cliname, como desvio ou inclinação dos
átomos no vazio (Legrand, 1983:79) preservando da (...) forma precisamente aquilo que é
necessário para quebrá-la, modificá-la, sob velocidades e lentidões (Deleuze/ Guattari,
1997:61).
Como vimos ao longo deste trabalho, assim como a vida só é possível reinventada, a
produção dos territórios existenciais depende da invenção que se processa neste campo virtual
de nossas experiências cotidianas (Cecília Meireles). Contudo, muitas vezes na clínica nos
deparamos com modos de existir estagnados em suas marcas e impossibilitados de dar
passagem ao fluxo capaz de conectar a existência com a sua capacidade de criação
permanente.
É com este tipo de registro nas marcas sensíveis que geralmente se encontram as
pessoas que procuram os serviços de saúde mental, de modo que neste novo projeto ético algo
primordial a se fazer é (...) a criação de um campo, (...) criação que encarna as marcas (...)
como na obra de arte, que potencialize as vidas e as reconecte com a criação de sua própria
existência desde seus aspectos mais cotidianos. (Rolnik, 1993:245).
Assim, a clínica pode se colocar enquanto um dispositivo provocador da vida,
fabricador de novos territórios, intercessor de obras da e na existência, bem como os serviços
de saúde mental e seus profissionais também podem se ocupar de atuarem como provocadores
de obras, arquitetos de modos de subjetivação potencialmente belos.
Estaríamos, portanto, falando de uma clínicarte? Mas a vida de uma pessoa não é um
amontoado de argila ou de pedra que se possa atirar fora caso a intuição do artista não
tenha funcionado? (Gastão, 2003: 66). Entretanto, nos referimos à arte aqui como esta
dimensão intrínseca a toda forma de produção e atividade humana: transformar o mundo em
que se vive, criar a própria existência, criar-se a si mesmo, num processo autopoiético (...)
(Lima, 2004:78). Falamos desta arte que pode ser utilizada, portanto, como intercessora nos
encontros clínicos.
A função dessa clínica seria a instauração de uma vivência de
processualidade, o que estaria em íntima conexão com o campo estético.
Com a arte aprendemos que as formas constituídas são sempre provisórias e
finitas, datadas e inscritas no tempo e a todo momento novas formas podem
ser criadas. (Idem)
Deste modo, é essa processualidade, essa (...) força disruptiva, que cria constantemente
esse parentesco (...) ‘inovador’ entre a vida, a arte, a loucura, a saúde e também a clínica.
Tratamos, portanto, de dispositivos de criação contínua de novos territórios, sempre
provisórios, expressão máxima da potencialização e da qualidade que se busca encontrar para
a construção de estilos de vida singulares e coletivos (Rauter, 2000: 273).
Nesse sentido, os espaços abertos no nosso tempo a outros modos de relação com a
loucura precisam tomar as forças de criação como parceiras no plano de composição da
construção de qualidade da existência. Forças estas imanentes à loucura e à saúde, pois nada
mais são do que produções da própria vida, invenções de si e de coletividades.
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Desta perspectiva, conectados neste plano, serviços e profissionais entendidos como
expressões singulares do coletivo, engendrados nos processos de transformação do cotidiano,
podem se investir da criação de outros territórios existenciais, reinventando a si mesmos e a
sua própria clínica, conectando estes territórios aos usuários e aos serviços e para além das
paredes que delimitam as instituições e os tradicionais modos de cuidado. Prática clínica e
prática social como efetuações imanentes: oficinas, acompanhamentos terapêuticos, grupos,
assembleias, cooperativas...
Práticas que produzem marcas sensíveis nos serviços, na vida dos profissionais e dos
usuários e do campo social. Trabalho de grande potência, expresso na consistência (e não nas
cristalizações e classificações patológicas) que vai se produzindo nas subjetividades destas
pessoas-territórios-obras. Encontros clínicos que se tornam e se transformam em uma parte
significativa da história da vida destes sujeitos, belas fotografias da trajetória de formas
múltiplas de existir e se efetuar.
Assim, o sofrimento e a exclusão característica de um modo de relação com a loucura e
a doença, pode se transformar no cotidiano dos encontros clínicos. Criam-se territórios,
dobras de tempo, onde se torna possível guardar um retrato de uma experiência intensiva,
recordar os horários de determinados encontros, parcerias que foram tecidas, atividades
desenvolvidas, memórias que vão lentamente compondo a vida como obra de arte.
Pendurados nossos jalecos cientificistas, munidos de tintas, pincéis, instrumentos, sons,
materiais, sensibilidades, cores, movimentos, afectos - (...) daquilo que é posto de lado pelos
modos capitalísticos de produção – partamos rumo à criação de novos mundos, produzindo vida,
(...) conceitos obras vivas, cortes precisos que transbordam o circuito filosófico, selecionando
outras misturas, variadas composições, bases que nos ofereçam indícios para que possamos
arquitetar uma nova ética, uma outra estética e política (Muylaert, 2000, p.111 e 109).
Referências
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MUSICALIDADE E VIDA: TERRITORIALIZAÇÕES E
DESTERRITORIALIZAÇÕES
Ludimila Palucci Calsani 1
“De som a som ensino o silencio a ser sibilino
De sino em sino o silencio ao som ensino”
Leminski
Primeiras ressonâncias
A criança sentada à frente das caixas acústicas da antiga vitrola gradiente de sua casa,
encantada com o pulsar dos imensos alto-falantes e com a vibração que no pequeno corpo
sentia toda vez que o vinil com sua voz sertaneja e cordas de aço projetava um som para além
daquela sala... O corpo que escuta ao longe o ruído da motocicleta que sinaliza a chegada de
sua mãe... Os berros naturais da primeira infância do irmão recém-nascido que invadiam as
manhãs e suas sequenciais gargalhadas...
Sim, ressonâncias e ritornelos. Deleuze e Guattari já nos afirmavam: Maquinar a voz é a
primeira operação musical. E não há quem possa discordar que cada voz é única. Empreender
um duplo movimento: ao cantar, tocar, ressoar saltamos do caos e decantamos em uma
provisória forma.
“Uma criança no escuro, tomada de medo, tranquiliza-se cantarolando. Ela
anda, ela para, ao sabor de sua canção. Perdida, ela se abriga como pode, ou
se orienta bem ou mal com sua cançãozinha. Esta é como o esboço de um
centro estável e calmo, estabilizador e calmante, no seio do caos. Pode
acontecer que a criança salte ao mesmo tempo que canta, ela acelera ou
diminui seu passo; mas a própria canção já é um salto: a canção salta do caos
a um começo de ordem no caos, ela arrisca também deslocar-se a cada
instante.” (DELEUZE G. GUATTARI, F. MP)
Segundas ressonâncias
Fevereiro de 2007, era Carnaval, meu primeiro encontro com o “Bloco Unidos do
Candinho”. Na praça do antigo prédio que outrora fora o Sanatório Dr. Cândido Ferreira, e
que hoje abriga o Serviço de Saúde Dr. Candido Ferreira, habitavam centenas de pessoas, de
diversos lugares e serviços de saúde da cidade. De ônibus, peruas, a pé, trenzinho e minibugue, chegavam eles, cada vez mais. Camisetas coloridas, rostos pintados, rostos marcados
que esboçavam um sorriso. Aos poucos se unem entorno do carro de som, que já projetava
uma voz, que convidava a todos para brincar o Carnaval. Em alguns minutos o Bloco sairia...
A experiência aqui se circunscreve no campo da Saúde Mental, um dos territórios possíveis
no campo da Saúde. Assim, instalada no território Clínica-Saúde Mental-Caps enquanto
trabalhadora já havia circulado dentre as atividades já instituídas, tais como as oficinas
terapêuticas e os grupos de circulação da palavra, assim como também já reconhecia a existência
de práticas informais, como bate-papos musicados à beira da piscina do serviço, onde usuários e
funcionários cantarolavam algumas músicas, alguns ritmos. Cantarolavam alguns lugares...
No entanto, a experimentação vivida com o Bloco Unidos do Candinho e seu convite
para uma coletividade estética me provocou marcas que potencializaram minha incursão em
processos criativos de ação como trabalhadora que traçaram linhas de fuga reais no modo de
operar a clínica no território da Saúde Mental.
1
Mestranda em Saúde Coletiva pela Unicamp e oficineira de música da rede de saúde mental de Campinas – SP.
LINHA MESTRA, N.23, AGO.DEZ.2013
207
MUSICALIDADE E VIDA: TERRITORIALIZAÇÕES E DESTERRITORIALIZAÇÕES
Reconheço aí uma territorialidade possível: os sons que ecoavam ali:
Ouço batidas de surdos e malacachetas, em um ritmo de maracatu misturado com batidas de
bandas marciais. Mistura entusiasta e uma primeira inquietação: o que é isso que eles estão
tocando? Isto não é um bloco de carnaval? Eles cantam uma música e eles tocam outra?
Descompasso entre vozes e ritmo. Coisa de louco isso! O Bloco segue seu percurso pelas ruas do
Distrito de Sousas. Naquele mesmo dia soube que o “Bloco Unidos do Candinho” acontece desde
1993 e desfila pelas ladeiras da praça e ruelas de Sousas, convidando a comunidade a celebrar
uma expressão da maior festa popular de nossa cultura, o Carnaval.”
Sob o agenciamento deste som descompassado tocava-se algo nestes corpos em
movimento carnavalesco. E estes acordes, por vezes ruídos, ressoavam também em outras
bandas e em outros corpos nos interstícios do diversos lugares-equipamentos que eu percorria.
Como espécies de arranjos produtores de Políticas de Convivência virtuais, o som e a
música são elementos presentes no cotidiano dos serviços de saúde mental em nossa
atualidade, por vezes esses sons, toques, cantos inundam, e imprimem outros ritmos
imperceptíveis, por vezes silenciados, já que o estatuto “barulho” muitas vezes é vivido como
algo incômodo aos ouvidos viciados pelas normatizações que orientam as práticas de saúde.
Ephtah!...Abre-te, ouvido, para os sons do mundo, abre-te ouvido, para os sons
existentes, desaparecidos, imaginados, pensados, sonhados, fruídos! Abre-te
para os sons originais, da criação do mundo, do início de todas as eras... Para os
sons rituais, para os sons míticos, místicos, mágicos. Encantados... Para os sons
de hoje e de amanhã. Para os sons da terra, do ar e da água... Para os sons
cósmicos, microcósmicos, macrocósmicos... Mas abre-te também para os sons
de aqui e de agora, para os sons do cotidiano, da cidade, dos campos, das
máquinas, dos animais, do corpo, da voz... Abre-te, ouvido, para os sons da
vida... Ephtah!... (FONTERRADA, M.T.O. apud SHAFER, 1991).
Foi assim que sob a qualidade intensiva deste atravessamento uma inquietação (o
Bloco) se dobra em uma provocação (ouvir o som) e fabrica um novo agenciamento que
atualmente chamamos de Coletivo da Música.
De uma roda de musica informal no jardim da Casa-Caps, aos encontros esporádicos nas
atividades de festividades e esporte e lazer, trabalhadores e usuários sempre se colocavam a cantar
juntos, ora batendo nas palmas das mãos, ora com alguns instrumentos musicais trazidos de
oficinas/grupos de música realizados nos distintos equipamentos da Rede de Saúde Mental
(CAPS, Centro de Convivência, Ponto de Cultura). Destes encontros uma inquietação se colocou
diante do “Bloco” que já existia e ainda não os tocava, não convidava a usuários, trabalhadores,
comunidade ali presente a tocar-cantar onde necessariamente seria legitimo cantar-tocar. Assim,
trabalhadores e usuários experimentam pela primeira vez uma oficina de bateria de carnaval.
Deste modo, o Coletivo com o pré-texto de protagonizar a bateria do Bloco de
Carnaval, usuários e trabalhadores arrastam o Bloco, adentram o cotidiano destes
equipamentos-lugares levando o som das ruas, dos toques e ritmos ali experimentados, das
vozes entoadas, produzindo ações além dos muros, jardins e salas de atividades.
Assim, o projeto do Coletivo da Musica, configura-se como uma proposta de trabalho que
se propõe articular, instrumentalizar e fortalecer as oficinas de música na Rede, um grupo de
profissionais e alguns usuários apostam na música como ferramenta de trabalho clínico-política.
Acessando o ritornelo
Ao acompanhamos nos encontros clínicos as musicalidades que cada corpo comportaressoa; traços históricos, sociais, culturais, afetivos se aproximam da superfície e expressam
outras formas de vidas e suas variações.
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MUSICALIDADE E VIDA: TERRITORIALIZAÇÕES E DESTERRITORIALIZAÇÕES
Queremos aqui reiterar as funções-arte como efetivadora na própria produção de si,
produção do pensamento, ou ainda na produção de outras linhas possíveis que traçam, tramam
outros tantos territórios, sejam eles teóricos, práticos e existenciais.
Nas palavras de Sueli Rolnik: Ao que parece é primeiro em microuniversos culturais e
artísticos que relações de força inéditas ganham corpo e, junto com um corpo, sentido e valor.
Estes microuniversos constituem cartografias - musicais, visuais, cinematográficas, teatrais,
arquitetônicas, literárias, filosóficas, etc. - do ambiente sensível instaurado pelo novo
diagrama.
Assim, uma outra postura Clínica se esboça: buscar o compasso que se desdobra,
percuti e sonoriza a vida, redobra, cria morada, cadencia a voz, acelera, injeta velocidades nos
corpos, pessoas, vidas. Localizar, mesmo que provisoriamente paradas, pausas de tempo, ou
outras temporalidades presentes ou que “estão provisório e permanentemente sendo
produzidas”.
Assim, não se trata apenas de um trabalho com música nos distintos lugaresequipamentos, a aposta é no ato de um trabalho coletivo e plural que nos coloca a produção de
territórios que se esbarram, borram, e traçam outros...
Traços de desterritorialização que em sistema de bricolagem compõe um rede de afectos
que maquinam um outra moldura para o fazer-Clínica. Portanto, a musicalidade se faz
intercessora de um processo de fabricação criativa do corpo-profissional e arremessa o
trabalhador da saúde em n-territórios: território-usuário, território-trabalhador, territórioequipamento de saúde, território-comunidade, território-loucura, território-arte.
Desta perspectiva, os territórios são constituídos por outros n-territórios, com suas
dores, alegrias, paixões e sons. O território é a expressão de um modo, de uma vida, ele
conecta, constitui entradas de relação com o vivente (nos termos de Virginia Woolf, que nos
coloca o vivente como aquilo que se subtrai às formas de vida e as tornam outras).
Ao conectar a música com a clínica operamos um ato que pode ser traduzido enquanto
uma construção coletiva de cuidado que expressa um modo de agir e potencializa o
agenciamento da saúde com a produção de territórios afirmativos à produção de vida e não de
doença, como comumente vemos associadas às práticas de cuidado do campo da Saúde
Mental e da Saúde.
Para concluir gostaria de propor um ultimo pensamento, mais próximo à prática
vivenciada por estes trajetos escritos acima. Uma vez que o plano empírico nos sirva de lugar
de experiência e experimentações na clinica mais conectada ao plano da vida. Assim, na roda
de samba o território-usuário se dissolve arrastado por esses traços afetivos, históricos,
sociais, culturais que se esboçam, produzem narrativas de vidas, por vezes cantadas, tocadas
nas palmas das mãos, na pele-pandeiro. Parafraseando Mello (2012) verificamos ali nestes
soares e ressoares uma dissolução das formas, sujeitos, loucura, domínios em proveito de um
contágio, uma partilha. Toque, canto, voz-tato produz uma matéria clínica inapreensível
pelas vias do pensamento, mas corporificadas em cada vida-sujeito, nos modos de vida que
passam pela clínica. E por vezes sim, um respiro, uma pausa de compasso, que produz efeitos
clínicos e corpos maleáveis.
Referências
ARAGON, L.E.P. O Impensável na Clínica: virtualidades nos encontros clínicos. Porto
Alegre: Sulina, Editora da UFRGS, 2007.
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O que é a filosofia? Tradução Bento Prado Jr. E
Alberto Alonso Muñoz. São Paulo: Editora 34, 1992.
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MUSICALIDADE E VIDA: TERRITORIALIZAÇÕES E DESTERRITORIALIZAÇÕES
DELEUZE, G. GUATTARI, F. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. São Paulo: Ed 34,
1995.
GUATTARI, Félix; ROLNIK, Suely. Micropolítica: cartografias do desejo. 4ª ed. Petrópolis:
Vozes, 1996.
MELLO, C.E.de C. Os Trípticos da Clinica. Dissertação (Mestrado em Psicologia) –
Universidade Federal Fluminense, Instituto de Ciências Humanas e Filosofia, Departamento
de Psicologia, 2012.
PASSOS, E. & BENEVIDES, B. Passagens da clínica. Em Auterives Maciel, Daniel
Kupermann e Silvia Tedesco (org) Polifonias: Clínica, Política e Criação. Rio de Janeiro:
Conreacapa, 2006, pp. 89-100
RODRIGUES, R. Ritmo e Subjetividade: o tempo não pulsado. 1ª ed. Rio de Janeiro. Editora
Multifoco, 2011.
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SESSÃO 12 – TERRITÓRIO EDUCAÇÃO MATEMÁTICA: MULTIPLICIDADES
E SINGULARIDADES
O QUE PODE A EDUCAÇÃO MATEMÁTICA?
Antonio Carlos Carrera de Souza 1
Neste artigo o objetivo central é trazer as discussões teóricas e técnicas sobre a
transversalidade obtida pelas linhas e velocidades mensuráveis da Filosofia da Diferença
quando esta atravessa a Educação Matemática abrindo possibilidades não previstas.
Comecemos. Certo cenário em certa escola. Qual? Pode ser a da esquina. Há uma
atmosfera de tom gris. Veja. Pessoas passam nos corredores, nem se olham. A paisagem é
fria, gelada. Salas de aula repletas de gente. Gente quieta. Às vezes baderneira. Também não
se olham. Não existem outros por aqui. Em uma sala, o professor de matemática está
passando mais uma lista de exercícios. Mas não tem jeito, em Matemática Escolar a doutrina
não está funcionando. As pesquisas educacionais recentes sugerem que os alunos mal
conseguem copiar: copiam os números e as operações. Eles só desenham os números e as
operações matemáticas. Signos de nada. Talvez de giz.
Toca o sinal de saída. Alvoroço. As luzes se acendem, a cortina abre e descobre, ao
fundo do cenário, detalhes do cotidiano vivenciado por aqueles que lá estavam na sala de aula.
Um verdadeiro Slide-Show. Na tela, os escolarizados. São garçonetes, office-boys, motoboys,
artista dos sinaleiros, pedintes, pipoqueiros, catadores de papel, crianças cheirando cola na
Praça da Sé. No fundo de tela, um metrô a toda, gente correndo ou saindo do trabalho, uma
flor, uma dor, uma mãe com o filho no colo pedindo esmola, gente de pasta, outros sem casta.
Pressa.
Em meio a esse cenário caótico, pessoas e instituições têm como finalidade rotular e
classificar o mundo e seus habitantes, tão diferentes entre si. Essa ordenação, no entanto, é
sempre limitada. Como lembra Deleuze:
A diferença não é o diverso. O diverso é dado. Mas a diferença é aquilo pelo
qual o dado é dado. É aquilo pelo qual o dado é dado como diverso. A
diferença não é o fenômeno, mas o número mais próximo do fenômeno.
Portanto, é verdade que Deus faz o mundo calculando, mas seus cálculos
nunca estão corretos, e é mesmo esta injustiça no resultado, esta irredutível
desigualdade, que forma a condição do mundo. O mundo "se faz" enquanto
Deus calcula; não haveria mundo se o cálculo fosse correto. O mundo é
sempre assimilável a um "resto", e o real no mundo só pode ser pensado em
termos de números fracionários ou mesmo incomensurável. Todo fenômeno
remete a uma desigualdade que o condiciona. Toda diversidade e toda
mudança remetem a uma diferença que é sua razão suficiente. (Deleuze,
1988, p. 313)
É um desdobramento desse ângulo interpretativo que pretendo desenvolver aqui. Ou
seja, entender a doutrina do Ensino da Matemática como uma totalização, que tem como
intuito nos codificar, classificar, marcar ou rotular. Talvez a pergunta que devêssemos fazer
é: presumindo que há a finalidade de totalização, quem codifica, marca ou rotula?
1
Prof. Dr. Antonio Carlos Carrera de Souza; professor voluntário do Programa de Pós-graduação em Educação
Matemática (PPGEM) do IGCE/UNESP/Campus Rio Claro. E-Mail: [email protected]. Atualmente coordena
o grupo Uns/PPGEM/RC que pesquisa em Educação Matemática apoiado na literatura da Filosofia da Diferença.
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211
O QUE PODE A EDUCAÇÃO MATEMÁTICA?
Ao trabalhar com a concepção de genealogia, Nietzsche propõe que não há verdades
inatas, e sim construções históricas e sociais delimitadas de conceitos e de práticas 2. Com
isso, o autor permite a prática de avaliação crítica dos valores: trata-se de fazer passar através
de todos os códigos algo que não se deixa e não se deixará codificar, entrando, somente, em
ressonância com o seu devir, dissecando e avaliando os movimentos das suas forças
produtoras e disseminadoras de valores. A verdade não passa disto: uma doutrina inventada
em certa época.
No entanto, se a produção filosófica entende a construção de verdades como sendo
localizada em tempo, espaço e organização social há algum tempo, na Educação ainda se
busca por verdades incontestáveis e por relações essencializadas entre aluno e professor. Essa
busca só leva a uma constante frustração. A questão do fracasso da Educação e, em particular,
da Educação Matemática, é um retrato disto, pois os códigos de “certo” e “errado” são
oriundos de certa doutrina ─ “arborescente”, “pivotante” ─ não pertencente às ciências
humanas.
Uma das verdades ditas e repetidas através de gerações, de pai para filho, é que a
Matemática é exata, pois “2+2 = 4”, “o quadrado da hipotenusa é igual à soma dos quadrados
dos catetos” ou que “a área do quadrado é L2 (lado ao quadrado) 3. É assim e pronto — não é
possível criar ou divergir. Os nossos queridos livros didáticos, na maioria das vezes,
colaboram para estas formas de entendimento. Deleuze (1988) vai apresentar esse processo
como sendo “o modelo da recognição, [que] está necessariamente compreendido na imagem
do pensamento”. Portanto, assim
Com efeito, parece-nos, antes de tudo, que há fatos de erro. Mas que fatos?
Quem diz "bom-dia Teodoro", quando Teeteto passa, quem diz "são três
horas", quando são três e meia, quem diz que 7+5=13? O míope, o distraído,
a criança na escola. São exemplos efetivos de erros, mas que remetem, como
a maior parte dos "fatos", a situações perfeitamente artificiais ou pueris e que
dão uma imagem grotesca do pensamento, porque o referem a interrogações
muito simples que podem ou devem ser respondidas por proposições
independentes12. O erro só ganha um sentido quando o jogo do pensamento
deixa de ser especulativo para tornar-se uma espécie de jogo radiofônico. É
preciso, pois, reverter tudo: o erro é que é um fato, arbitrariamente
extrapolado, arbitrariamente projetado no transcendental; quanto às
verdadeiras estruturas transcendentais do pensamento e quanto ao "negativo"
que as envolve, talvez seja preciso procurá-las em outra parte, em outras
figuras que não as do erro. (Deleuze, 1988, p. 216)
Fatos de erro. A doutrina em nossas escolas cria e recria fatos de distração e
desinteresse como erros assinalados, acima, por Deleuze. Erros que rotulam, marcam,
classificam e marginalizam os errados, os diferentes. Mas para a Educação Matemática
afirmar que um professor de matemática não está isolado quando diz que o erro é que é um
fato significa dizer que, esse professor, em sua sala de aula, só faz existir um erro como um
fato à medida que mobiliza aliados, isto é, conhecimentos outros que não são fornecidos pela
doutrina. A Educação Matemática é, nesse sentido, um processo de bricolagem e negociação.
Assim, para fazer existir um determinado fato, um acontecimento, é preciso estender e criar
uma ampla rede de aliados que auxiliam a captura, o fato pretendido. O acontecimento
2
Nietzsche, F. Genealogia da Moral.
Na realidade o certo seria, segundo a doutrina, enunciar como “a área da região quadrada”. Nos afazeres
cotidianos das salas de aulas de Matemática do Ensino Básico e em muitos livros didáticos, a troca por
“quadrado” é efetuada contrariando a doutrina. Saliento aqui a verdade insofismável da importância da tabuada
na aprendizagem da matemática doutrinal.
3
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212
O QUE PODE A EDUCAÇÃO MATEMÁTICA?
histórico que, segundo Foucault, é a apreensão do momento de fratura com o conhecimento
dado como sabido até então, o solo epistemológico de um dado momento da aprendizagem
dos alunos de determinada classe. Esse modo de tratar a Educação Matemática requer um
questionamento da perspectiva filosófica ou epistemológica em que esta está imersa, através
de suas distinções e fronteiras, em relação ao contexto social, cultural ou político. Nietzsche,
Foucault, Deleuze e Guattari, entre outros, afirmam a relação entre Educação, Política e redes
de poder.
Contrariamente o movimento transversal da Filosofia da Diferença perpassando a
Educação Matemática se dá contra esta doutrina ─ estatal, oficial e única. A Educação
Matemática aponta a cartografia natural das ciências invertendo-a, pois a máquina de guerra
nômade só existe contra o estriado ou contra tentativas de instauração deste e, contrariamente,
a “ciência régia” só existe a partir da existência de um Estado e seus aparelhos. A Educação
Escolar é um destes aparelhos.
Desta forma, entendemos com Deleuze e Guattari (2004) que o poder, há muitos
séculos, faz do “conhecimento” uma árvore frondosa. Exuberante. Uma árvore-frondosaradicular convencional, uma “ciência régia”, não admite narrativas pontuais, só
metanarrativas que tudo explicam, e nada resiste, nem raiz, nem árvore, a uma paradigmática
tempestade de ideologias. Porém, a nossa proposta é de uma Educação Matemática
“rizomática”, isto é, permite várias entradas em seu interior. Espalha-se sob a terra, não tem
raiz principal, todas são importantes e contribuem para explicações que agora não são mais
paradigmáticas ou totais. São pontuais e locais, dependem das vidas e suas circunstâncias,
respeitam igualdades e diferenças, os deslocamentos e as margens.
Esta proposta de Educação Matemática como uma ciência nômade, que permite através
dos rizomas entradas e conexões com outras ciências e conhecimentos, possibilita a existência
das Máquinas de Guerra nômades. Na Educação Matemática, como a entendida neste texto,
muito mais importante que a fronteira ou a margem, é o caminho percorrido pelos aprendizes
que permite a invenção de espaços outros para a aprendizagem. Pois, nestes caminhos,
atravessam várias fronteiras e margens, falam diversas línguas, recriam outras possibilidades
que aquelas doutrinas, mas a possiblidade que vale é a hibridizada por eles e, portanto, não
oficial. Segundo Deleuze e Guattari (2002), como os nômades inventam ou encontram suas
armas, seus conhecimentos, suas ciências? Assim, rizomática e conectivamente.
A partir desses pressupostos, a aprendizagem é entendida com Deleuze (1988) como
algo não dado ou previsto na ordem das coisas. Ela ocorre quase por “acaso” nos devires e
encontros que a vida proporciona a cada um. Como um puzzle, as faculdades, habilidades ou
competências se encaixam não como algo previsto e organizado em um grande quebracabeça, mas na forma quebrada daquilo que traz e transmite a diferença.
O aprendiz, por outro lado, eleva cada faculdade ao exercício transcendente.
Ele procura fazer com que nasça na sensibilidade esta segunda potência que
apreende o que só pode ser sentido. É esta a educação dos sentidos. E de
uma faculdade à outra, a violência se comunica, mas compreendendo sempre
o Outro no incomparável de cada uma. A partir de que signos da
sensibilidade, por meio de que tesouros da memória, sob torções
determinadas pelas singularidades de que Ideia será o pensamento suscitado?
Nunca se sabe de antemão como alguém vai aprender - que amores tornam
alguém bom em Latim, por meio de que encontros se é filósofo, em que
dicionários se aprende a pensar. Os limites das faculdades se encaixam uns
nos outros sob a forma quebrada daquilo que traz e transmite a diferença.
(Deleuze, 1988, p. 237)
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213
O QUE PODE A EDUCAÇÃO MATEMÁTICA?
Porém, o apreender implica outra dimensão ─ a dimensão da vontade de poder ─ que
percorre todo o indivíduo que pretenda encontrar os tesouros da cultura:
Não há método para encontrar tesouros nem para aprender, mas um violento
adestramento, uma cultura ou paideia que percorre inteiramente todo o
indivíduo (um albino em que nasce o ato de sentir na sensibilidade, um
afásico em que nasce a fala na linguagem, um acéfalo em que nasce pensar
no pensamento). (Deleuze, 1988, p. 237)
Aqui fincamos uma das principais diferenças entre o que tradicionalmente chamamos de
ensino de matemática em nossas escolas e a Educação Matemática ─ o movimento do
sensível no aprendiz. Este movimento abre a aventura do desconhecido. Assim, educar pela
Matemática é diferente de ensinar a Matemática. É a aventura pela Matemática na atualização
do real/atual pela aprendizagem que lhe possibilita abrir virtualidades e devires outros 4.
Mas a cultura é o movimento de aprender, a aventura do involuntário,
encadeando uma sensibilidade, uma memória, depois um pensamento, com
todas as violências e crueldades necessárias, dizia Nietzsche, justamente para
"adestrar um povo de pensadores", "adestrar o espírito". (Deleuze, 1988, p.
238)
Assim, essa é a experiência do apreender um movimento de sentimentos, violências,
crueldades. Uma saga em que o aprendiz percorre com toda potência de seu ser. Para o
aprendiz o aprender é um movimento na imanência. Desta forma, o saber que tanto é cobrado
em provas e exames ─ Prova Brasil, Saresp, ENEM, Pizza, etc. ─ é para nós uma
“instalação”, e o aprender é uma “instauração” 5. Para a Educação Matemática o saber assume
o que Deleuze atribui a uma atual fala de Mênon 6
Um novo Menão diria: é o saber que nada mais é que uma figura empírica,
simples resultado que cai e torna a cair na experiência, mas o aprender é a
verdadeira estrutura transcendental que une, sem mediatizá-las, a diferença à
diferença, a dessemelhança à dessemelhança, e que introduz o tempo no
pensamento, mas como forma pura do tempo vazio em geral e não como tal
passado mítico, tal antigo presente mítico. ... E devemos considerar, como
um oitavo postulado na imagem dogmática, o postulado do saber, postulado
que apenas recapitula, que apenas recolhe todos os outros num resultado
supostamente simples. (Deleuze, 1988, p. 239)
Concluindo, apontamos que a Educação Matemática que vislumbramos pode a partir da
noção de rede, como a que estamos usando, remeter a fluxos, circulações, alianças,
movimentos. A noção de rede é composta de séries heterogêneas de elementos, animados e
inanimados, ligados por liames, linhas de força. Desta forma surgem as possibilidades do fora
─ artístico, sensível e, por isso mesmo, agenciador de devires outros.
A rede também não pode ser confundida com um tipo de vínculo com teia geométrica,
que une elementos fixos e definidos das matemáticas. Isso porque as entidades das quais ela é
Em termos de alternativas ─ a doutrina oficial ─existem várias possibilidades. Entre as mais comuns estão:
Etnomatemática, Modelagem, Novas Mídias, Informática Educativa e História da Matemática.
5
Aqui usamos os termos “instalação” e “instauração” como o sentido utilizado por Suely Rolnik em “Despachos
no Museu: sabe-se lá o que vai acontecer” .
6
Referência a Mênon, figura histórica comprovada e descrita por Platão no diálogo que leva seu nome. Este
diálogo é célebre, pelo menos entre os matemáticos, por ser uma investigação que envolveria o conhecimento de
Geometria.
4
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O QUE PODE A EDUCAÇÃO MATEMÁTICA?
composta podem a qualquer momento recriar ─ e, obviamente, novos pontos fixos surgirem
─ similitudes, diferenças, relações novas, ligações com novos elementos. Ela é uma ação, que
objetiva fazer alianças sempre se renovando, recriando e em constante mutação. A própria
aprendizagem de Matemática, como esta foi sendo inventada, implica a inexistência de
sentido em, somente, conhecer números e fórmulas.
Por fim, devemos sempre considerar a genealogia da doutrina matemática que se
coloca entre a questão social e a formal do modo de pensar de uma época, o que implica dizer
que não há uma só Matemática ─ para que fique claro, existem formas de fazer, Matemática,
distintas, entre elas e, por exemplo, as geometrias de curvatura maior, menor ou igual a zero.
A genealogia da aprendizagem em Educação Matemática, quando atravessada pela Filosofia
da Diferença, afirma que esta transversalidade pode, em poucas palavras, ser entendida como
o estudo das formas como os indivíduos se constituíram por dentro da Matemática, quais são
marcas, as condições de subjetivação desses em diferentes momentos, problematizando suas
próprias condutas. A partir disso, busca-se compreender qual a relação desses indivíduos com
a verdade construída pelo sujeito na sua relação com a Matemática.
Referências
DELEUZE, Gilles, Diferença e Repetição. Tradução de Luiz Orlandi, Roberto Machado. Rio
de Janeiro: Graal. 2006.
DELEUZE, Gilles, Foucault. Tradução de Cláudio Sant’Anna Martins; revisão da tradução
Renato Janine Ribeiro. São Paulo: Brasiliense. 2005.
FOUCAULT, Michel, Microfísica do Poder. Organização e tradução de Roberto Machado.
Rio de Janeiro: Edições Graal. 1979.
NIETZSCHE, Friedrich, Genealogia da Moral: uma polêmica. Tradução, notas e posfácio
Paulo Cézar de Souza. São Paulo: Companhia das Letras. 1998.
ROLNIK, Suely, Despachos no Museu: sabe-se lá o que vai acontecer. In: SÃO PAULO EM
PERSPECTIVA, 15(3). 2001. (pp 3-9).
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215
MOVIMENTO TRANSVERSAL NA ATPC DE MATEMÁTICA:
TERRITÓRIO DAS AFETAÇÕES
Michela Tuchapesk da Silva
1
Este texto busca operar alguns conceitos teóricos, de autores como Deleuze e Foucault,
nas práticas realizadas numa pesquisa de doutorado em andamento, vinculada ao programa de
Pós-Graduação em Educação Matemática da Unesp - Rio Claro, que tem como objetivo
estudar a “autonomia” o “cuidado de si” do professor de matemática segundo Michel
Foucault (2005, 2006, 2007, 2010).
Um estudo geral da cultura do cuidado de si é desenvolvido na obra “A hermenêutica do
sujeito” (FOUCAULT, 2010), na qual entendemos que o cuidado de si, no mundo grecoromano, foi o modo pelo qual a liberdade individual ou a liberdade cívica se traduziu como
ética, no sentido de uma construção do sujeito com ele mesmo (o que importa é ele com ele
mesmo). Entendemos que tal estudo da “autonomia” e do “cuidado de si” nos conduz a uma
investigação das práticas e técnicas de subjetivação do eu segundo a ética do sujeito
foucaultiano.
O cuidado de si é entendido como um convite à ação, algo que nos leva a agir bem, algo
que consiste não somente num princípio, mas numa prática constante.
O cuidado de si é uma espécie de aguilhão que deve ser implantado na carne
dos homens, cravado na sua existência, e constitui um princípio de agitação,
um princípio de movimento, um princípio de permanente inquietude no
curso da existência. (FOUCAULT, 2010, p. 9)
Segundo o modo proposto na cultura de si - o sujeito só é subjetivado a ele mesmo-, a
constituição de si como sujeito é função de uma tentativa indefinida de conhecimento de si,
ou seja, a importância de conhecer quem sou verdadeiramente e não o que creio ser; o que
faço, os atos que realizo só têm valor enquanto me ajudam a melhor me conhecer
(FOUCAULT, 2010). Neste sentido, o sujeito precisa se conhecer a fim de decidir quais
forças permite que o atravessem e quais forças não permite que o atravessem. Estas, o sujeito
deve inverter, envergar. O sujeito autônomo é subjetivado, atravessado apenas pelas forças
que ele escolhe.
O caminho da autonomia é a prática do cuidado de si que nos leva à coragem da
verdade. Com efeito, a autonomia de que falamos é algo de conquista do indivíduo; ela não é
cedida ao sujeito, mas é uma força que vem de dentro dele, diferentemente daquela autonomia
decidida em instâncias hierárquicas superiores. A autonomia de que falamos não pode vir de
fora para dentro. A autonomia de Foucault vem de dentro para fora.
Vislumbramos o professor autônomo. É sabido, diante de nossas práticas e pesquisas
em escolas públicas do Estado de São Paulo, que encontramos uma estrutura escolar
verticalizada, formada por uma ordem (hierarquia) de poder de cima para baixo (Ministério da
Educação, Secretaria da Educação, Diretoria Regional, diretor da escola, coordenador
pedagógico, coordenador de área, professor, alunos, família); nessa estrutura também
encontramos certas imposições como o uso dos “caderninhos”, o uso de livros didáticos, a
sequência dos conteúdos, a preparação para o Sistema de Avaliação de Rendimento Escolar
do Estado de São Paulo (SARESP), entre outras. Consequentemente, eis a importância do
1
Aluna do doutorado do Programa de Pós-Graduação em Educação Matemática – Unesp, Rio Claro, orientada
pelo Prof. Dr. Antonio Carlos Carrera de Souza. Integrante do grupo Uns/PPGEM/RC que pesquisa temas em
Educação Matemática, apoiadas na literatura da Filosofia da Diferença. E-mail: [email protected]
LINHA MESTRA, N.23, AGO.DEZ.2013
216
MOVIMENTO TRANSVERSAL NA ATPC DE MATEMÁTICA: TERRITÓRIO DAS AFETAÇÕES
professor autônomo que, constituído da prática do cuidado de si, consegue reverter, dobrar,
controlar e limitar esses poderes, essas linhas de forças (BOVO, 2011, p. 178).
Entendemos que a autonomia diz respeito à imanência do sujeito. A invenção do ser
professor autônomo nasce do sujeito que resiste às forças do fora criando a dobra do fora. O
Eu professor de matemática autônomo surge nestas lutas.
Buscando um movimento transversal na educação, em particular na Educação
Matemática, apontamos que o professor deve praticar o cuidado de si como propõe Foucault
(2010), pois tal prática influi de maneira incisiva na organização e no desenvolvimento do seu
trabalho pedagógico, visto que não basta o professor saber mais matemática e conhecer mais
recursos ou métodos didáticos caso fique imerso e paralisado por uma rede de poder que veda
sua “liberdade pedagógica”. Deve existir a possibilidade do Educador Matemático virtual se
atualizar no professor de matemática real.
Encontramos a educação escolar repleta de movimentos de subjetivações, neste sentido,
visando identificar quais e como as linhas de forças ─ redes de poder ─ se comportam através
dos discursos dos professores de matemática, durante o ano de 2012 realizamos a produção de
dados com uma intervenção diferencial por meio da cartografia.
Numa escola pública estadual do interior do Estado de São Paulo, nos reunimos
semanalmente com nove professores de matemática, durante o horário da aula de trabalho
pedagógico coletivo (ATPC). Houve um agenciamento dos professores que optaram
participar deste ATPC, uma vez que eles aceitaram colaborar com esta pesquisa conversando
semanalmente sobre suas práticas, táticas e estratégias escolares.
O método da cartografia utilizado nesta pesquisa está amparado nas leituras de Deleuze
(2005), Foucault (2009), Rolnik (1987), ou seja, com a cartografia, pretendemos mapear as
linhas de forças que afetam os professores de matemática desta escola, ressaltando que tal
processo não tem função de análise, e sim tem função de expor o não oculto que ninguém vê.
No decorrer das idas à escola e das leituras teóricas sobre cartografia, entendemos que
era necessário se deixar levar pelos acontecimentos, “o desafio é evitar que predomine a busca
de informação para que então o cartógrafo possa abrir-se ao encontro” (KASTRUP;
BARROS, 2010, p. 57). Encontro dos sentimentos, angústias, medos, inseguranças, alegrias,
satisfações na tentativa de se afastar das falas, atitudes, ações e discursos prontos.
Num movimento transversal, os encontros nas ATPCs tratavam, ao mesmo tempo, de
questões escolares e distanciavam de um saber do tipo informativo e formalizado; com isso,
se aproximavam de um saber que se dava, pelo e nos encontros, por um saber das ações e
relações dos professores com os temas discutidos. Esses encontros foram suficientemente
fortes para estabelecer a ATPC como um novo território em educação. Contrário a um
território verticalizado, quase que rizomaticamente surgiram rotas de fugas e novos olhares.
Dessa forma, nesta pesquisa, cartografar é descrever (por meio de palavras, desenhos,
expressões corporais) essas linhas de fuga e de agenciamento que foram potencializadas
durante as conversas com os professores de matemática. A ATPC foi a estratégia para
identificarmos as linhas de forças nessa escola, as conversas com os professores nos
direcionam na descoberta dessas linhas. Pelas falas, conversas na ATPC, descobrimos os
territórios densamente habitados, outros nem tanto.
O processo da cartografia foi fundamental, já que priorizamos acompanhar a
processualidade destes encontros de afetos, aqui entendidos como as ações que aconteciam
naquela escola, e não simplesmente representar os objetos já visíveis (KASTRUP; BARROS,
2010, p. 53). Assim, compartilhamos a ideia de que ser cartógrafo é imergir no plano das
intensidades, abrir-se à linguagem dos afetos - que afetações atravessam a pesquisadora e os
professores de matemática? Essa questão nos acompanhava em todo momento na escola,
sempre buscando “participar, embarcar na constituição de territórios existenciais, constituição
de realidade” (ROLNIK, 1987, p. 2).
LINHA MESTRA, N.23, AGO.DEZ.2013
217
MOVIMENTO TRANSVERSAL NA ATPC DE MATEMÁTICA: TERRITÓRIO DAS AFETAÇÕES
Nosso objetivo foi uma ATPC do ponto de vista emocional do professor de matemática,
contrária às práticas das ATPCs que partem de outras instâncias da escola e priorizam as
técnicas e posturas de como fazer e como não fazer na sala de aula. Desenvolvemos as
afetações e os sentimentos dos professores que surgiam naquele momento, naquele dia,
quando chegavam à escola. Não fizemos leituras de textos, não fizemos atividades de
matemática, conversamos sobre as afetações diárias. Portanto, não havia um tema de
discussão pré-definido, falamos sobre aquilo que “se movia”, que “nos afetava” naquela tarde,
naquele momento, naquela escola. Exemplo de alguns temas discutidos: índice do SARESP;
indisciplina; violência escolar; atividades de matemática para feira de ciências; motivação na
sala de aula; retenção e evasão; entre outros.
Num movimento transversal, permanecemos na escola durante 2012, nas tardes de
terça-feira, com o objetivo de ouvir os professores. Os assuntos discutidos partiam deles,
consequentemente, criamos ações, meios e mecanismos que apontavam possibilidades outras,
caminhos outros nas suas práticas, táticas e estratégias escolares. A ATPC tornou-se uma rota
de fuga, na medida em que era o único território onde os professores falavam dos seus
sentimentos, das suas afetações. Momento imanente com potência de se entender, olhar para
si mesmo. Dentro de um território escola verticalizado, hierarquizado, sem possibilidade de
rota de fuga, criamos um novo território, a ATPC, com possibilidade rizomática, múltiplas
saídas e múltiplas entradas.
Assim, pretendemos apontar formas outras de pensar a educação, formas contrárias à
ideia de feixes perpendiculares ─ relações de poder verticais à escola e ao professor de
matemática ─ e, menos ainda, de feixes horizontais ─ composto pelas microrredes de poder
constantes na vida cotidiana das escolas ─, mas sim pensamos na possibilidade de feixes
transversais, como mostra o trabalho com os professores de matemática na ATPC. É sabido
que, na maioria das escolas, ainda vigora a estrutura piramidal, mas enquanto movimento
transversal, a Educação Matemática (Etnomatemática, Modelagem Matemática, História da
Matemática, História da Educação Matemática, entre outras) busca não colaborar com a
verticalidade matemática vigente nas escolas.
Portanto, esperamos, pelas lutas de resistências na escola, caminhar em direção ao
cuidado de si. Contudo, observamos que cumprir as regras, normas e imposições ditadas pela
escola é natural para estes professores, os quais se encontram subjetivados a tudo isso.
Notamos grande insatisfação profissional e pessoal. A invenção de professores autônomos
com foco no cuidado de si possibilita resistências às redes de poder. A ideia de
microrrevoluções, inventar singularidades e multiplicidades. A possibilidade de professores
que pratiquem o cuidado de si, que resistam a essas linhas de poder escolar.
As lutas, as resistências, agem no plano do fora, dependem de pessoa para pessoa, de
professor para professor, por exemplo, alguns conseguem solucionar as inúmeras dificuldades
escolares, como a indisciplina e violência generalizada nas salas de aula, outros, não. Na
ATPC, tentamos a reflexão da prática do professor de matemática como um todo. Quais são
os cuidados que o professor de matemática tem com ele mesmo? A que eu tenho que resistir?
O que eu tenho que enfrentar?
Referências
BOVO, A. A. Abrindo a caixa preta da escola: uma discussão acerca da cultura escolar e da
prática pedagógica do professor de matemática. 2011. 190 f. Tese (Doutorado) - Curso de
Educação Matemática, UNESP, Rio Claro, 2011.
DELEUZE, G. Foucault. 8 ed. São Paulo: Brasiliense, 2005.
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MOVIMENTO TRANSVERSAL NA ATPC DE MATEMÁTICA: TERRITÓRIO DAS AFETAÇÕES
FOUCAULT, M. A hermenêutica do sujeito. 3 ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010.
FOUCAULT, M. Vigiar e punir: nascimento da prisão; tradução de Raquel Ramalhete. 36
ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2009.
FOUCAULT, M. História da Sexualidade 2: o uso dos prazeres. 12 ed. São Paulo: Graal,
2007.
FOUCAULT, M. História da Sexualidade 1: a vontade de saber. 17 ed. São Paulo: Graal,
2006.
FOUCAULT, M. História da Sexualidade 3: o cuidado de si. 8 ed. São Paulo: Graal, 2005.
KASTRUP, V; BARROS, L. P. Cartografar é acompanhar processos. In: PASSOS, E;
KASTRUP, V; ESCÓSSIA, L. (org). Pistas do método da cartografia: Pesquisa-intervenção
e produção de subjetividade. Porto Alegre: Sulina, 2010. p. 52 - 75.
ROLNIK, S. Cartografia, ou de como pensar com o corpo vibrátil, 1987. Disponível em:
http://www.pucsp.br/nucleodesubjetividade/suely%20rolnik.htm. Acesso em: 06 jun. 2012.
LINHA MESTRA, N.23, AGO.DEZ.2013
219
A CORAGEM DA VERDADE NO OLHAR PARA O OUTRO E NOSSAS
MULTIPLICIDADES
Nadia Regina Baccan Cavamura 1
Este texto tem como objetivos estabelecer discussões sobre a importância de considerar
as Multiplicidades e a Filosofia da Diferença na sociedade atual, inclusive na Educação, tendo
como referencial o pensamento de Gilles Deleuze e Michel Foucault, bem como refletir sobre
a coragem da verdade, não a verdade possibilitada pela lógica, mas pautada na ética, e as suas
consequências para a Educação.
Quando nos deparamos com o diferente que chamamos assim já considerando o
contexto em que são “lidos”, é preciso termos um pouco de cuidado para que não nos
coloquemos logo de início dentro de uma “filosofia de manada”, ou seja, para que não
sejamos guiados pela massa, sem aprofundamento pessoal e sem um entendimento mais
amplo das forças que os afetam.
Primeiramente, quando tentamos entender o mundo pela nossa visão, pela nossa ética,
que é singular, tendemos a julgá-lo errado, esquisito, injusto, etc. Queremos classificar e
julgar o mundo através da “Igualdade”. Zourabichvili (1994, p.59) nos mostra que o
movimento não é esse, mas “o ser é o que se diz de suas diferenças e não o inverso”. A
unidade, segundo Deleuze (1976, p.97) “é a do múltiplo e só se diz do múltiplo".
Dessa forma, é interessante que nos enxerguemos através do outro, do “não-eu”, como
na filosofia da Diferença, onde nós nos constituímos como pessoas únicas pela diferença e
não pela igualdade. Eu só posso me enxergar como pessoa, constituir minha identidade
através do outro. As identidades, para Deleuze, são a delimitação estanque das formas e das
individualidades, são simulacros, pois estamos em constante devir.
Quando nos deparamos com temas “polêmicos” ou nos encontramos em situações que
nos desterritorializam, os vemos/lemos imersos numa moral ocidental atual, ou seja, através
das relações de forças que nos afetam hoje e que produzem o saber do presente, neste espaço,
e que são diferentes das forças que atingem outros lugares, bem como em outras épocas. É
preciso considerar isso.
É nesse ponto que eu penso ser importante olhar para a Educação e suas implicações.
Trabalhamos com pessoas, nossos alunos, e estes já possuem seus círculos de convivência e
se tornarão profissionais, o que os levará a relacionar-se com grupos outros que não os seus
de costume. É preciso aprender a conhecer práticas, pensamentos, ética de diversos grupos,
mas sem julgá-los através do “Eu-mesmo”. Devemos olhá-los com o olhar do “não-eu”, do
outro. Somente assim conseguiremos mergulhar em algo do qual não fazemos parte, mas que,
ainda assim, existe. E entender como se dá o diferente, quais as forças que os afetam, qual o
saber produzido e qual o papel do sujeito nessa construção/desconstrução. Isso faz parte do
território Educação.
Foucault escreve no livro “Anti-édipo” um prefácio intitulado “Introdução à vida nãofascista” (1977, p. XI – XIV). Relendo-o, notei em uma das suas frases um pensamento de
sua filosofia que ilustra algumas das ideias que gostaria de abordar. Ao comentar como seria
viver contrariando as formas de fascismo, ele sugere algumas regras que diz ser como manual.
Uma delas eu gostaria de destacar:
1
Aluna de Doutorado do Programa de Pós-Graduação em Educação Matemática da UNESP – Rio Claro
(PPGEM), sob orientação do Prof. Dr. Antonio Carlos Carrera de Souza. Integrante do Grupo de Estudos
Múltiplos Um - UNS/PPGEM/RC que pesquisa temas em Educação Matemática, apoiadas na literatura da
Filosofia da Diferença. Contato: [email protected]
LINHA MESTRA, N.23, AGO.DEZ.2013
220
A CORAGEM DA VERDADE NO OLHAR PARA O OUTRO E NOSSAS MULTIPLICIDADES
Libere-se das velhas categorias do negativo (a lei, o limite, a castração, a
falta, a lacuna), que o pensamento ocidental, por um longo tempo, sacralizou
como forma do poder e modo de acesso à realidade. Prefira o que é positivo
e múltiplo; a diferença à uniformidade; o fluxo às unidades (FOUCAULT,
1977, p. XIII).
No texto de Gilles Deleuze “O que é um dispositivo?” (1990) ele coloca um trecho que
faz todo o sentido quando queremos pensar no “Outro” e suas multiplicidades. Ao discorrer
sobre o Saber em Foucault ele coloca:
O diagnóstico assim entendido não estabelece a autenticação de nossa
identidade pelo jogo das distinções. Ele estabelece que somos diferença, que
nossa razão é a diferença dos discursos, nossa história a diferença dos
tempos, nosso eu a diferença das máscaras. (DELEUZE, 1990, p.160)
Dessa forma, algo que Foucault e Deleuze nos apresentam neste mundo tão disforme é a
Filosofia da diferença, e não da identidade, a filosofia da conjunção e não da definição, onde o
mais importante são os acréscimos, a complementaridade e não as rotulações.
A identidade nos leva à normalidade. Mas o que é normal? Normal perante o que? Isso
não faz sentido. A identidade deve ser constituída através das nossas diferenças e não das
diferenças dos outros. A nossa diferença nos distingue. Apresentamo-nos como um eu
diferente a cada momento. E nós somos responsáveis por essa construção. Deleuze nos faz
olhar as diferenças:
O esforço em negar as diferenças faz parte desse empreendimento mais geral
que consiste em negar a vida, em depreciar a existência, em prometer-lhe
uma morte (calorífica ou outra), em que o universo precipita-se no
indiferenciado. (DELEUZE apud PELBART, 2010, p.33)
O interessante é que discussões como essas surgem em nossos contextos de vida por
pertencermos a uma sociedade. O outro aparece às vezes como “ser estranho”, como
“diferente”, como “normal” ou “anormal”. E nós, será que pensamos a Educação como
“molde” de pessoas? Queremos ser moldados? Será que queremos classificá-las com uma
média? Temos que ser uma nota? Somos notas? Damos notas? Classificamos e adjetivamos
pessoas pensando em que? Pensamos e lembramos de que se tratam de pessoas? É possível
classificar pessoas?
Quando falamos de Educação falamos de diferenças, falamos da relação poder-saber da
qual fazemos parte, dessa forma, há possibilidades diversas de se viver/entender/pensar.
Inicialmente temos que nos questionar se o que ensinamos e queremos ensinar é realmente
importante para nossos alunos e como se dá essa importância. Não há como não ser
importante uma vez que estamos inseridos num mundo já posto e com uma dinâmica em
andamento. Note que não estou aqui discutindo se essa dinâmica é ou não boa, coerente ou
justa. A realidade está aqui. Claro que pode ser mudada, renovada, aperfeiçoada. Buscamos
constantemente a atualização das nossas virtualidades:
O virtual é a insistência do que não é dado. Apenas o atual é dado, inclusive
sob a forma do possível, isto é, da alternativa como lei de divisão do real que
atribui de imediato minha experiência a certo campo de possíveis.
(ZOURABICHVILI, 1994, p.62-63)
LINHA MESTRA, N.23, AGO.DEZ.2013
221
A CORAGEM DA VERDADE NO OLHAR PARA O OUTRO E NOSSAS MULTIPLICIDADES
Esse é o nosso papel na Educação, mostrar a potência da vida. Mas para isso precisamos
estar preparados e com as mesmas ferramentas dos que estão exercendo o poder naquele
momento, para que possamos exercer nossa resistência com a mesma intensidade.
Dessa forma, podemos discutir se/como a Educação produz ‘marginalizados’.
Primeiramente, quem cria ‘marginalizados’ é a sociedade que nos divide em
dominantes/dominados. A Educação marginaliza? Depende. E nessa questão podemos
interferir positivamente ou negativamente uma vez que somos educadores. Como o educador
pode estabelecer esse ambiente de libertação? Tendo em sua prática uma atitude temperante e
de coragem da verdade, pois o professor é quem medeia, quem cria condições, quem avalia,
quem legitima o saber produzido e construído.
Na coragem da verdade não há separação entre teoria e prática, elas são uma só força,
uma mesma natureza. E a coragem da verdade que pensamos em um educador matemático é a
vivência da verdade, a liberdade de falar francamente, segundo Gros (2004, p.11) a “verdade
cuja condição de possibilidade não é lógica, mas ética”.
Essa opção não é fácil, pois a coragem da verdade às vezes “assume o risco de uma
reação negativa” (GROS, 2004, p.157) do outro, por isso dizemos que se trata de uma “fala
verdadeira, engajada e perigosa” (GROS, 2004, p.157). E é disso que deveria tratar a
Educação. Falarmos a nossos alunos de maneira direta e clara, sem rodeios. E que nossa fala
se espelhe na nossa conduta.
Outras atitudes também possibilitam fazer da Educação instrumento de poder e não de
dominação, tal como cultivar um ambiente de respeito, diálogo e tolerância, deixando-nos
envolver pela construção do conhecimento, sem receio de entrar em um território
desconhecido e possibilitar a desnaturalização do normal, a desterritorialização e a
constituição de territórios outros, pois as multiplicidades são rizomas e
todo rizoma compreende linhas de segmentaridade segundo as quais ele é
estratificado, territorializado, organizado, significado, atribuído, etc.; mas
compreende também linhas de desterritorialização pelas quais ele foge sem
parar. (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p.18)
É preciso que haja coragem da verdade nessa questão. Nós somos os responsáveis pelas
nossas escolhas. Precisamos assumi-las e exercê-las. Nós somos um novo sujeito a cada
momento. Somos um constante devir. E precisamos estar cientes disso.
Pelbart (2010, p.37), se referindo à vida que se liberta do que a aprisiona, coloca que
para que a vida apareça na sua imanência e afirmatividade é preciso que ela se liberte do que a
representa, a contém, a prenda, a formate:
Só a força ativa se afirma, ela afirma sua diferença, faz de sua diferença um
objeto de gozo e de afirmação. (DELEUZE apud PELBART, 2010, p.33)
Acredito que ser marginalizado, produzir marginalizados, ou marginalizar é uma
maneira de olhar para a realidade. Essa dinâmica é a proposta pela sociedade cultural em que
pertencemos. Ela nos faz sentir assim. Ela nos classifica assim. Essa é uma das forças de
subjetivação, ou seja, uma força que nos afeta, tenta nos assujeitar. Há como escapar, nos
proteger dessas forças? Sim, há escapes do círculo poder-saber na medida em que nos
percebemos imersos dentro destas linhas de força. É conforme coloca Levy (2011, p.130),
sermos capazes de “nos colocar diante do mundo sob a perspectiva da resistência”.
Segundo Pelbart (2010, p.26), a força social é um campo de “positividade imanente e
expansiva” que o poder tenta controlar, modular ou regular. A Educação e os educadores
matemáticos devem ser uma ferramenta para a transformação dessa realidade e sociedade que
não queremos, pois temos como potencialidade pensar e fazer pensar, e pensar segundo Levy
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222
A CORAGEM DA VERDADE NO OLHAR PARA O OUTRO E NOSSAS MULTIPLICIDADES
(2011, p. 128-129) é produzir a verdade e não conhecê-la. É criar o novo, é produzir
diferença. É resistir, é combater e criar novos modos de existência.
Devemos olhar a todo o momento para nós mesmos para que, nos conhecendo,
possamos estar atentos às forças que nos atingem e não nos deixemos atingir por elas caso ela
não nos beneficie. É poder exercer nosso desejo de aceitar ou não a situação vigente. Tendo
essa dimensão do controle conquistamos a autonomia de nos deixarmos atingir apenas pelas
forças que nos interessam de uma forma muito mais ativa e conseguimos desenvolver nosso
papel de educadores com muito mais segurança e com mais certeza que não estamos
conduzindo nossos alunos ou nos conduzindo a caminhos de meros seguidores.
Considerações finais
É preciso, com coragem da verdade, criar condições de ver e fazer ver realmente o
mundo, tirando nossas vendas para que possamos olhá-lo, pensá-lo, discuti-lo, desnaturalizálo e reconstruí-lo. Somente assim a educação deixará de produzir/manter uma realidade baseada em dominantes e dominados – iniciando o desenvolvimento de uma relação de poder
e resistência consciente e corajosa, onde cada um de nós é importante e tem o seu papel nessa
construção.
Os saberes são produzidos através dos poderes que nos afetam em determinada época.
Em cada momento somos afetados por forças. Essas forças são ações, mas os conhecimentos,
os saberes são históricos, talvez por isso a dificuldade em nos libertarmos de algumas de
nossas amarras. A pós-modernidade insere especificamente a questão do sujeito, da
subjetividade nesta relação poder-saber, trazendo o indivíduo para dentro deste diagrama de
forças. Somos “capazes” de nos colocar dentro desta construção, podemos “aprender” a
reconhecer as forças que nos atingem e aceitá-las ou não. Dessa forma, a ciência, o
conhecimento e a Educação passa a aceitar o múltiplo, o diverso e a ser
invenção/inventividade. Nossa vida, da mesma forma, nos traz experiências cotidianamente
que nos faz enfrentar o desafio de potencializar os movimentos inventivos, as singularidades
que permanecem invisíveis, anuladas, em rotinas avassaladoras dos espaços e tempos.
Passamos a abrir espaço para olhar para o conhecimento como desestabilização ao invés de
segurança. É a coragem de abrir-se para o novo constantemente e não para certezas, pois essas
deixam de existir. Existem são maneiras de ver, de olhar e de pensar, problematizar sobre
elas. Isso nos leva a Sócrates que nos faz perceber que “nada sabemos”, somos ignorantes.
Apenas não devemos achar que sabemos algo, pois assim seremos além de tudo ignorantes de
nós mesmos.
Pensar sobre as multiplicidades com coragem da verdade é abrir espaço para olhares e
não para certezas, para conhecimento e não para re-conhecimentos. Abrir possibilidades para
o novo, para o diferente, e não para verdades que podem não ser as nossas. É a busca da ética
que “persegue a verdade e denuncia a mentira” (GROS, 2004, p.166). É o devir.
Referências
DELEUZE, G. Foucault. São Paulo: Brasiliense, 2005.
________. O que é um dispositivo? In: ________. Michel Foucault, filósofo. Barcelona:
Gedisa, 1990. p. 155-161.
________. Nietzsche e a filosofia. Rio de janeiro: Editora Rio, 1976.
LINHA MESTRA, N.23, AGO.DEZ.2013
223
A CORAGEM DA VERDADE NO OLHAR PARA O OUTRO E NOSSAS MULTIPLICIDADES
DELEUZE, G; GUATTARI, F. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. 1ª Ed. Rio de
Janeiro: Editora 34, 1995. (Vol.1). 5ª Reimpressão - 2007.
FOUCAULT, M. Introdução à vida não-fascista. In DELEUZE , G. O anti-Édipo:
Capitalismo e esquisofrenia. São Paulo: Editora 34, 2012 - 2ª Edição. (Vol. 1). (1977, p. XI
– XIV).
GRÓS, F. Introdução: a coragem da verdade. In: _____(org). Foucault: a coragem da
verdade. São Paulo: Parábola Editorial, 2004. p.11-12.
_______. A parrhesia em Foucault (1982-1984). In: _____(org). Foucault: a coragem da
verdade. São Paulo: Parábola Editorial, 2004. p.155-166.
LEVY, T. S. A experiência do fora – Blanchot, Foucault e Deleuze. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2011.
PELBART, P. P. Do niilismo à Biopolítica. In: LIMA, E. A.; NETO, J. L. F; ARAGON, L. E.
(org.). Subjetividade Contemporânea: desafios teóricos e metodológicos. Curitiba: Editora
CRV, 2010. Cap. 2, p. 25-40.
ZOURABICHVILI, F. O Vocabulário De Deleuze. Tradução André Telles. Rio de Janeiro:
2004. Disponível em http://www.ufrgs.br/corpoarteclinica/obra/voca.prn.pdf. Acesso em: 10
set 2012.
LINHA MESTRA, N.23, AGO.DEZ.2013
224
A PANTERA COR DE ROSA NA FORMAÇÃO DE EDUCADORES
MATEMÁTICOS
Tassia Ferreira Tartaro 1
Não se perguntará o que os princípios são, mas o que eles fazem.
Gilles Deleuze
A educação pode ser considerada um dos espaços para a preparação do cidadão frente
ao mundo de trabalho. Por conta disso, conforme Mizukami (2006) as reformas educacionais
trazem para o foco a discussão da formação docente, objetivando qualificar o professor, tendo
como perspectiva a aprendizagem do aluno.
Visando esta aprendizagem os cursos de licenciatura em matemática se centram em
tornar o conhecimento mais acessível às novas gerações. “[...] A didática da matemática é,
sem dúvida alguma, a pedra basilar da formação do professor dessa área, uma vez que oferece
as condições básicas para que ele se torne um determinado conhecimento passível de ser
apropriado pelos alunos.” (VARIZO, 2006, p. 55).
Após as contribuições das duas autoras, pode-se perceber que a formação tem como
eixo central o ensino. Sendo assim, uma formação de professores de matemática tem como
objetivo a desenvolvimento do aluno para o domínio dos conteúdos matemáticos, assim
como, as técnicas de ensino desta disciplina.
No entanto, tal qual Gilles Deleuze e Félix Guattari (1995), quando falam que não se
busca compreender um livro, mas com o que ele funciona, em conexões com o que ele faz
passar intensidades, em que multiplicidades ele se introduz. Também não buscamos o que
quer um curso de formação de professores de matemática, buscamos suas conexões, suas
multiplicidades. Perguntamos: o que pode este curso?
Pensamos em outra maneira de formar professores de matemática, para além dos
conteúdos matemáticos e técnicas de ensino. Pensamos em um mundo outro, onde as
preocupações se concentrem nas potencialidades do professor. Enfim, problematizar a
formação docente na tentativa de fazer explodir um sujeito, de caminhos múltiplos e
rizomáticos.
Este sujeito é o que chamamos de Educador Matemático, um além-professor. Este
Educador matemático, não é apenas um professor de matemática, está além deste professor,
pois ao ensinar técnicas matemáticas, oferece também à possibilidade de uma visão do mundo
pela matemática. É um educador que ao ensinar matemática discute também o mundo que
cerca seus orientandos. É a matemática elevada a um nível superior. A matemática como um
movimento de formar-se.
Entendemos que a formação se dá antes, durante e depois de um curso de licenciatura
em matemática, pois o movimento de formação ocorre no próprio sujeito. Sendo assim, a
formação seria um devir constante. Por meio das contribuições de Sócrates, em seus diálogos
escritos por Platão, a formação é um olhar para dentro de si, um cuidado de si.
Para Michel Foucault (2011) este cuidado de si caracteriza um princípio de formação do
sujeito, enquanto senhor de suas escolhas, durante toda a sua vida.
[...] essa atividade de ter cuidados com a própria alma deve ser praticada em
todos os momentos da vida, quando se é jovem e quando se é velho.
1
Profa. Ms. Tassia Ferreira Tartaro; Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Educação Matemática da
UNESP (PPGEM) – Rio Claro, integrante do grupo Uns/PPGEM/RC que pesquisa temáticas em Educação
Matemática, apoiadas na literatura da Filosofia da Diferença, orientada pelo professor Dr. Antonio Carlos
Carrera de Souza. E-mail: [email protected]
LINHA MESTRA, N.23, AGO.DEZ.2013
225
A PANTERA COR DE ROSA NA FORMAÇÃO DE EDUCADORES MATEMÁTICOS
Entretanto, com duas funções diferentes: quando se é jovem trata-se de
preparar-se para a vida, armar-se, equipar-se para a existência; e no caso da
velhice, filosofar é rejuvenescer, isto é, voltar no tempo ou, pelo menos,
desprender-se dele, e isso graças a uma atividade de memorização que, para
os epicuristas, é a rememoração dos momentos passados (FOUCAULT, 2011,
p. 80-81).
Assim, estas práticas de si estão atreladas às relações que o sujeito tem com ele mesmo,
aos exercícios pelos quais o próprio sujeito se dá como objeto a conhecer. A ênfase é colocada
na relação consigo que consiste em não se levar pelos apetites e prazeres, que admite ter, em
relação a eles, o domínio e superioridade, conservar-se livre de qualquer tipo de sujeição
interna das paixões e alcançar um modo de ser definido sobre uma soberania sobre si mesmo.
(FOUCAULT, 1984).
Ao narrar a história da formação a partir da vontade do eu, do Educador Matemático de
singularidades e não multiplicidades, pois não existe nenhuma fôrma universal que transforma
o sujeito, ou melhor, todos os sujeitos. O que existe é uma forma na qual um sujeito se forma,
pois a formação é individual, intransferível, acontece em um sujeito singular.
A formação é singular de cada sujeito, pois se constitui um processo de subjetivação.
Para Deleuze (2008) um processo de subjetivação não pode ser confundido apenas com um
sujeito, a subjetivação é uma individuação, particular ou coletiva, que caracteriza um
acontecimento. “[...] Ora, existem vários tipos de individuação, há individuação do tipo
“sujeito” (é você..., sou eu...), mas há também individuação do tipo acontecimento, sem
sujeito: um vento, uma atmosfera, uma hora do dia, uma batalha...” (Deleuze, 2008, p. 143).
Sendo assim, não há, pois, um caminho para nossos cursos de licenciatura. São vários
os seus caminhos. Pensamos em formação de um profissional... Não certo tipo de
profissional... Defendemos a existência de vários tipos de educadores, em um só. Estamos
falando da multiplicidade do eu, existente no interior de um curso de formação.
Para compreender melhor o que vem a ser multiplicidade, Deleuze e Guattari (1995) as
relaciona com os fios da marionete, que nada tem haver com a vontade do artista, mais com
os possíveis caminhos que o mesmo pode tomar.
Desta forma, se pode falar de um curso de formação que faça o múltiplo.
[...] não acrescentando sempre uma dimensão superior, mas, ao contrário, da
maneira simples, com força de sobriedade, no nível das dimensões de que se
dispõe, sempre n-1 (é somente assim que o uno faz parte do múltiplo,
estando sempre subtraído dele). Subtrair o único da multiplicidade a ser
constituída; escrever a n-1. Um tal sistema poderia ser chamado de rizoma.
(DELEUZE, 1995, p. 13)
O múltiplo entendido não pelo acréscimo de mais um em um sistema, mas sim por sua
retirada, é o n-1. Os caminhos são múltiplos, pois apresentam múltiplas entradas e saídas,
apresentam linhas de fuga. Um curso de formação tem que ser agenciador de multiplicidades,
isto é, quando se tira um dos sujeitos, este sistema não aumenta nem diminui, ele continua o
mesmo. Sendo assim, um curso de formação de Educadores Matemáticos poderia ser
chamado de rizoma.
A formação do Educador Matemático pode ser dita rizoma se for composta por linhas
que podem ser percorridas por quem estiver dentro deste processo. Que estas linhas podem
ser rompidas em qualquer momento e nascer deste rompimento outras linhas que podem ser
trilhadas ou não. As rupturas existentes no rizoma criam linhas de fuga, que não param de
levar a outras linhas.
LINHA MESTRA, N.23, AGO.DEZ.2013
226
A PANTERA COR DE ROSA NA FORMAÇÃO DE EDUCADORES MATEMÁTICOS
A linha de fuga marca, ao mesmo tempo: a realidade de um número de
dimensões finitas que a multiplicidade preenche efetivamente; a impossibilidade
de toda dimensão suplementar, sem que a multiplicidade se transforme segundo
esta linha; a possibilidade e a necessidade de achatar todas estas multiplicidades
sobre um mesmo plano de consistência ou de exterioridade, sejam quais forem
suas dimensões. (DELEUZE E GUATTARI, 1995, p. 16).
Em um curso de formação existem linhas que se conectam, que nos fazem pertencer ou
permanecer em determinado território, também existem linhas que se quebram, que nos
desterritorializam, para nos territorializarem novamente em outro movimento. Linhas se
abrem, se cruzam, se transformam, isto é o que chamamos de agenciamentos.
Um curso de formação não é o único agenciamento do qual o sujeito faz parte. O sujeito
que está em um curso de licenciatura, não é agenciado apenas por este curso, existem outros
agenciamentos agindo ao mesmo tempo neste sujeito. Existe uma conexão de agenciamentos
que atuam neste eu.
Este eu, conforme Deleuze e Guattari (1995), é constituído pelas dobras das linhas do
fora, ou seja, as subjetivações. “[...] Uma multiplicidade não tem nem sujeito nem objeto, mas
somente determinações, grandezas, dimensões que não podem crescer sem que mude de
natureza.” (DELEUZE E GUATTARI, 1995, p. 16).
Este fora, cujas dobras constituem o sujeito, é o reino do devir, uma tempestade de
forças, o não estratificado, o informe, um espaço anterior, de singularidades, no qual as coisas
não são ainda. O lado de fora é uma dimensão, sem forma específica, onde circula uma
pluralidade de forças. Nesta dimensão nada é determinado, tudo está para acontecer.
(DELEUZE, 2005).
Para Deleuze (2005), Foucault se preocupou profundamente com o tema do duplo, que
entendia sendo como uma interiorização do lado de fora. Assim, o que Foucault busca nos
gregos é esta relação com você mesmo que deriva das relações com os outros. Como se as
relações com o fora se dobrassem para criar um dentro com uma dimensão própria, que seria
esta relação consigo como domínio.
Poder entendido como relações de forças. Estas forças são antes de qualquer coisa uma
ação, sempre uma ação, por conta disso é impossível dizer aonde elas se encontram, elas não
são localizáveis, na realidade são pontos singulares que compõem uma rede de relações ainda
não existentes. “O poder é local porque nunca é global, mas ele não é local nem localizável
porque é difuso.” (DELEUZE, 2005, p. 36).
Se o poder é ação então ele se exerce no dia-a-dia que compõe a formação dos
educadores. Estas relações de forças que compõem os sujeitos estão em uma dimensão que
representa o fora, o fora é formado por todas as relações de força existentes. É a abertura de
um futuro, no qual nada termina. Para Deleuze (2005) o fora é um espaço de relações de
força, no entanto, o fora só é visível se dobrarmos a linha e constituirmos um dentro.
Este autor relata que, Foucault chega à conclusão que os gregos dobraram a força, sem que
ela deixasse de ser força e a relacionaram consigo mesma, assim antes de ignorarem a
subjetividade, eles inventaram o sujeito, mas o inventaram como derivada da subjetivação. Assim
descobriram um forro, esta relação com si mesmo, uma regra facultativa do homem livre.
Este sujeito, entendido como derivada da subjetivação, não é fixo, ele vai se
transformando a todo instante, mudando seus modos, resistindo ou não aos poderes e saberes
impostos. Sendo assim, não existe um eu, existem vários Eu’s em meu lado de dentro. O
dentro composto por subjetivações individuais deste eu.
No entanto, quem forma quem? De fato o curso de formação abre caminhos para a
formação de um eu educador, enquanto que este educador carrega para fora deste curso de
formação um dentro que contém este curso, mas que não é exatamente este curso, são as
subjetivações produzidas enquanto um dos Eu’s que o compunha.
LINHA MESTRA, N.23, AGO.DEZ.2013
227
A PANTERA COR DE ROSA NA FORMAÇÃO DE EDUCADORES MATEMÁTICOS
Considerações finais
Assim, pode se imaginar que um curso de licenciatura é um agenciamento, repleto de
pontos singulares de poder, pronto para afetar o sujeito. Um curso de licenciatura é um espaço
onde se produz e reproduz vários Eu’s. Não existe um caminho único para nosso curso de
formação, pois não existe um sujeito único neste curso. O que existe são vários Eu’s, infinitos
Eu’s, tão infinitos quanto os pontos singulares de poder existentes nas relações entre dois
sujeitos. Desta forma, faz todo sentido perguntar o que pode um curso de formação, como ele
funciona, em que multiplicidades ele se introduz.
O que pode um curso de formação se coloca no sentido de descobrir quais agenciamentos
este curso pode proporcionar àqueles que desejam ser educadores. Pois ser Educador, depende do
próprio eu que forma, depende de suas rotas de fuga, de suas escolhas, do cuidado com si mesmo.
Olhar o Educador como o próprio responsável por sua formação é vê-lo enquanto devir, um ser
que pinta o mundo com sua cor, conforme o vê, tal qual a Pantera cor de rosa, de Deleuze e
Guattari (1995), que ao pintar o mundo de rosa, nada imita ou reproduz, é seu devir-mundo. O
que a Pantera faz é torna-se imperceptível, ao criar suas rotas de fuga, suas rupturas.
O curso de formação que imaginamos para este Educador Matemático, pode ser que ainda
não exista, pode não ser o atual, o tipo de profissional que se encontra nas escolas ou nas
faculdades de hoje. No entanto, acreditamos tal qual Deleuze, que o virtual – Educador
Matemático – a qualquer momento pode se atualizar no real – o Professor de Matemática –.
Referências
Deleuze, Gilles. Conversações. Editora 34, 2008.
Deleuze, Gilles; Guattari, Félix. Mil Platôs – Capitalismo e Esquizofrenia, vol 1. Tradução de
Aurélio Guerra Neto e Célia Pinto Costa. 1 Ed. Rio de Janeiro: Ed.34, 1995.
Deleuze, Gilles. Foucault, São Paulo: Brasiliense, 2005.
Foucault, Michel. História da sexualidade 2: o uso dos prazeres. 8 ed. Rio de Janeiro: Graal, 1984.
Foucault, Michel. A hermenêutica do sujeito. 3 Ed. São Paulo: Martins Fontes, 2011.
Levy, Tatiana Salem. A experiência do fora: Blanchot, Foucault e Deleuze. Civilização
Brasileira, 2011.
Mizukami, Maria das Graças Nicoletti. Aprendizagem da docência: conhecimentos
específicos, contextos e práticas pedagógicas. In: Nacarato, Adair Mendes; Paiva, Maria
Auxiliadora Vilela. A formação do professor que ensina matemática: perspectivas e
pesquisas. Autêntica, 2006.
Platão. Apologia de Sócrates. São Paulo: Martin Claret. 1999.
Platão. A República. Trad. Maria Helena da Rocha Pereira. 11 Ed. Lisboa: Calouste
Gulbenkian. 2010. p. 315 a 359.
Varizo, Zaíra da Cunha Melo. Os caminhos da didática e sua relação com a formação de
professores de Matemática. In: Nacarato, Adair Mendes; Paiva, Maria Auxiliadora Vilela. A
formação do professor que ensina matemática: perspectivas e pesquisas. Autêntica, 2006.
LINHA MESTRA, N.23, AGO.DEZ.2013
228
SESSÃO 13 – PARA UMA ESCRITA DELIRANTE PELAS LINHAS DA
DIFERENÇA: NOVOS MODOS DE PENSAMENTO
CAPTURANDO CORPOS NAS PÁGINAS PRÉ-TEXTUAIS DE TRABALHOS
ACADÊMICOS
Lucineide Nascimento 1
Obras da Escultora Paraense Teté Raiol – Fotografias de Magalene Raiol
omo ignorar as palavras que antecedem as discussões acadêmicas nas
Dissertações de Mestrado e Teses de Doutorado? Por que tais palavras são tão díspares da
tônica que prevalece no “corpo” do texto? É possível capturar as dores, os des/amores e outras
emoções que se inscrevem no corpo do pesquisador e de outros que lhe são caros nas páginas
que abrem os seus trabalhos acadêmicos? Neste breve texto apresento um arranjo de vozes de
pesquisadores entrelaçado pelas contribuições de autores como Deleuze, Guattari e Nietzche.
As páginas preliminares dos trabalhos acadêmicos geralmente contêm as últimas escrituras
dos pesquisadores e é nesse movimento que os seus corpos esgotados rendem homenagens e,
ao fazer, isso, nos dão pistas das emoções, dos tirocínios que se inscrevem em suas
subjetividades de pesquisadores e que contribuíram para formas muito particulares de tomar
seus objetos e de conduzir suas pesquisas. Minha viagem aqui se dá no sentido de capturar
esses corpos em suas relações, linhas de fuga, agenciamentos com outros corpos produtivos
de desejo, enfim, flagrar os corpos no acontecimento de sua produtividade.
“A Dorila Ribeiro Machado, minha mãe. Eu a perdi às 6 horas do dia 06/04/2003,
um dia antes de começar o curso de Mestrado” (MACHADO, 2005). Imaginem um corpo
cansado pela dor que se irrompe, que se obriga a enfrentar uma jornada de estudos e sabe-se
lá sob quais outras circunstâncias e graus de dificuldades. Corpo que percorre fatigantemente
esse caminho de dois anos, construindo um trabalho de pesquisa que, diretamente, nada tem a
ver com esse fato: o fato de seu próprio corpo ter que conviver com a lembrança de um outro
corpo que lhe era fundamental. No decorrer dessa fração de sua existência imaginem a
miríade de processos de produção de fluxos, de contra-fluxos, movimentos de intensidade,
lentidões... Os corpos do cientista (dele propriamente dito e o de sua mãe) transformaram-se
em “máquinas desejantes” de produção de conhecimento. E as “máquinas desejantes” são
“máquinas formativas, em que as próprias falhas são funcionais, e cujo funcionamento é
1
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LINHA MESTRA, N.23, AGO.DEZ.2013
229
CAPTURANDO CORPOS NAS PÁGINAS PRÉ-TEXTUAIS DE TRABALHOS ACADÊMICOS
indiscernível da formação (...)” (DELEUZE e GUATTARI, 2011, p. 378). Então, como se
explicam todos os agradecimentos (e a produtividade) In memorian presentes nos textos?
Como a objetividade inquisidora da ciência moderna poderia se sustentar por coisas que
objetivamente não existem mais? Eis a verdadeira bofetada dos processos constitutivos de
subjetividades!!!
s corpos também se desterritorializam e operam reterritorializações: “A Cely
Nunes que dividiu comigo a saudade do Vatapá, do Açaí, das mangueiras e do calor da
nossa querida Belém do Pará” (CHAVES, 1993). É possível imaginar corpos que se
aproximam não apenas por “afinidades” culturais ou geográficas, mas para criar vínculos
positivos e intensos de camaradagem 2. Corpos que se deslocam não apenas fisicamente por
necessidades conduzidas pelos Programas de Pós-Graduação, mas pela exigência de vagar por
outras mentes, lugares, paisagens, imagens, mesmo que não se possa abandonar a mesa de
estudos por algum tempo. Imaginem como se fabrica um corpo desses... Não se sabe o grau, o
nível de intensidade dessa saudade, mas é certo que dessa transfusão de saudade entre corpos
que mantinham lembranças de paladares já vivenciados resultaram outros corpos
metamorfoseados. Talvez um dia de encontro como hecceidade, pois, “entre as formas
substanciais e os sujeitos determinados, entre os dois, não há somente todo um exercício de
transportes locais demoníacos, mas um jogo natural de hecceidades, graus, intensidades,
acontecimentos, acidentes, que compõem individuações, inteiramente diferentes daquelas dos
sujeitos bem formados que as recebem” (DELEUZE e GUATTARI, 2008, p. 38).
ealimentando os corpos de desejo: “O meu colega Professor Dr. Carlos
Henrique de Carvalho, a pessoa que como dizemos na Bahia, ‘botou fogo’ para que me
inscrevesse na seleção do doutorado. Aquela nossa conversa na cantina do 3Q foi
valiosa!” (SILVA, 2010). São os bastidores produtivos do desejo! O que geralmente não
aparece no “corpo” do trabalho, porque nem sempre se quer saber (ou se pode saber) de onde
vem uma ideia... É a arte de ser afetado e não o “estado da arte” que incita e corrobora o
acontecimento de uma ideia. Então, um corpo pega “fogo” e se arrisca, e investe em estudos,
e se submete a uma seleção e... depois de quatro anos de muita dedicação inscreve ou crava o
nome de seu incendiário em seu trabalho.
or quanto tempo corpos que se desejam se obrigam a ficar afastados? Como os
corpos que se atraem e se envolvem aparecem nas páginas preliminares? A formação do
pesquisador exige que se mantenha em reclusão, exige certa dose de privação, então, o corpo nãoassexuado deseja, mas se contém. O tempo é curto demais para a elaboração de uma pesquisa de
2
Deleuze usa esse termo (camaradagem) no texto intitulado “Whitman”. In: DELEUZE, G. Crítica e clínica.
Tradução de Peter Pál Pelbart. 2 ed. RJ. Ed. 34. 2011b. (p. 76-82).
LINHA MESTRA, N.23, AGO.DEZ.2013
230
CAPTURANDO CORPOS NAS PÁGINAS PRÉ-TEXTUAIS DE TRABALHOS ACADÊMICOS
fôlego, portanto, ao modo capitalista, estabelecemos prioridades e estas são quase sempre voltadas
para atividades ligadas à pesquisa. Os agradecimentos e homenagens geralmente remetem para a
presença- distante de um homem ou de uma mulher por quem se tem paixão e afeto. Nessas
escrituras aparece alguma dor, sinto os corpos carentes, duvidosos sobre se isso tudo vale mesmo à
pena, mas, às vezes, corpos corajosos aparecem: “Ao meu companheiro de toda a vida, aquele
com quem acredito nas mais belas formas de manifestação humana, aquele que me
proporciona todos os dias, a fé em mim mesma e que me ajuda a acreditar em outras
possibilidades de amar e do amor – Adrián (...)”. (SILVA, 2009). O que esse arranjo escritural
nos dá a pensar? O companheirismo subsiste, mas, as individuações se separam, ou melhor,
distinguem-se, há o enaltecimento do parceiro, porém, a individuação da pesquisadora é mais
saliente e livre. O que a pesquisadora aprende com ele é voltado para ela mesma, permitindo -se
mais do que pertencer. Experimenta, arrisca-se. Vejo uma linha de fuga na experimentação do amor.
Sinto uma potência do desejo. Parece que as artimanhas e armadilhas da relação matrimonial,
patriarcal e edipiana são fissuradas. Isso me lembrou o que Lins (2013) faz quando trata do estado
de êxtase e de “embriaguez virtual” no qual se encontram aqueles que escrevem, que criam uma
pintura, que fazem ciência... é um estado orgástico numa relação não molar e sim molecular. “Mas o
que é uma relação sexual molecular? Uma sexualidade não instituída pelo preço moral da
reprodução, mas um exercício livre, corporal físico ou incorporal...” (p. 36). São esses arranjos,
linhas de fuga, relações e agenciamentos que demarcam a subjetividade do pesquisador, que
contribuem para os resultados das pesquisas e para o modo como o pesquisador lida ou modula suas
escrituras, mas que, no entanto, são quase imperceptíveis no “corpo” dos trabalhos, por conta da
imposição de uma escrita “objetiva”, “clara”, “impessoal” e academicista instituída pela ciência
moderna. Cada subjetividade produtora é única e, justamente por isso, suas produções também são
singulares, quando tais subjetividades participam de programas de formação que se reafirmam pela
imposição de regras homogeneizadoras – na tentativa de manter todos no mesmo “nível” – é a
própria ciência quem perde a possibilidade de investir num espírito livre. Mas, o que é fantástico, é
que apesar de todas as “prisões” mentais que as instituições materializam, os corpos operam uma
liquefação e vazam, sempre conseguem fugir, mesmo que seja sob movimentos tênues de
resistência e rebeldia como, por exemplo, na experimentação da singela liberdade das páginas prétextuais de suas escrituras. “A maior prisão é uma mente fechada3”.
s corpos esgotados. Há momentos que, para nosso desespero, simplesmente
travamos. Lembro-me, hoje com riso nos lábios, de uma vez quando estava sob forte pressão
do trabalho e às voltas com a construção de minha dissertação de Mestrado - semelhante à maioria
dos colegas de minha turma - em que liguei aflita para a minha amiga Sol, solicitando ajuda
porque tinha passado três dias sem produzir nada que se aproveitasse, inclusive que, para “limpar”
o pensamento, havia deletado quatorze páginas do meu trabalho. Eu, em meio às lágrimas,
querendo encontrar algum conforto e estímulo e, ela, pacientemente me ouviu e disse bem
baixinho: - “Lu, estou no psiquiatra, e já vou entrar no consultório, depois te ligo”. (!!!). Nossa!
Havia gente que estava em situação, talvez, pior que a minha. O fato é que há um tempo
determinado para finalizar o trabalho e esse tempo cronológico - regular, linear, sequencial
(Cronos) - não corresponde ao tempo do nosso espírito criativo-produtivo, que atravessa os
corpos, o tempo do devir, da acontescência da produção (Aion). Às vezes, ter que produzir sob tal
circunstância debilita nossa saúde e nossa paz de espírito, então, no centro do caos – se é que
existe esse local – pensamos que não vamos conseguir. Mas, curiosamente, a maioria consegue.
3
Presa em um engarrafamento de trânsito, libertei-me por alguns instantes ao ler essa frase pichada em um muro.
LINHA MESTRA, N.23, AGO.DEZ.2013
231
CAPTURANDO CORPOS NAS PÁGINAS PRÉ-TEXTUAIS DE TRABALHOS ACADÊMICOS
“De modo análogo ao do viajante que planeja acordar numa determinada hora e tranquilamente se
entrega ao sono: assim nós, filósofos, ficando doentes, nos sujeitamos à doença de corpo e alma
por algum tempo – como que fechamos os olhos para nós mesmos. E, tal como ele sabe que
alguma coisa não dorme, que algo conta as horas e o despertará, também sabemos nós que o
momento decisivo nos encontrará despertos – que alguma coisa saltará e surpreenderá o espírito
em flagrante, quero dizer, em fraqueza, recuo, rendição, endurecimento, ensombrecimento ou
como quer se chamem os estados doentios do espírito, que em dias saudáveis têm contra si o
orgulho do espírito...”. (NIETZSCHE, 2001, p. 11). Salta a vontade, salta a força, salta a saúde e a
inspiração é como que roubada dos estados doentios através dos encontros com outros corpos,
com outros experimentos que nos (re)alimentam, por isso, quando finda mais uma jornada de
estudos, agradecemos assim: “À querida amiga Lilliane pela ‘coorientação’ desta dissertação,
principalmente quando me encontrava em um momento de inércia. Agradeço sua amizade,
sua torcida, seu incentivo e principalmente por ter dividido comigo seu conhecimento”
(BRELAZ, 2011). E parece que foi da “inércia” e do encontro com outrem que o corpo maquínico
produziu esse trabalho. Quem de nós nunca experimentou essa sensação de que o tempo vai
passando, as leituras vão sendo devoradas, o corpo vai se esgotando... de momentos agonísticos?
Daí as linhas de fuga: “Agradeço, também, a todos os meus colegas de diversão que estiveram
comigo – Marcos, Alex, Saint Clair, Jefferson, Jefferson Felgueiras, José Pedro (Lino),
acompanhando meus passos e que foram fundamentais nos momentos de lazer e de fuga.
Sempre a volta aos estudos, realimentado, aumentava o meu desejo”. (DUARTE, 2008).
Cada corpo possui suas próprias linhas de fuga fabricantes de desejo de produzir um trabalho
significativo para a educação e para o seu próprio crescimento humano. Em meio a tanta
ansiedade e desconforto quando o corpo “não coopera” e não reage, outras hecceidades – corpos,
sons, imagens, cores, sabores, belezas, odores... – instigam a produtividade do pesquisador. “A
todos os amigos-ambulantes da República do Apolo que puderam me acolher durante o
período final de realização da tese. Os jantares, as festas, as músicas, as rizadas, a alegria e a
descontração próprias do ambiente me foram muito importantes. O meu muito obrigado
aos amigos – Rodriguinho e Clara, Gabriel, Juan (Zito), Fernando-Niema, Fernando- Nikit,
Marcos, Pedro Rossi, Luciano, Vitarque, Letícia, vitória e Jaim e, por fim, aos mais belos
sons ministrados pela “Banda Saudosa Clotilde” que me ajudaram a mexer o corpo e
alimentar positivamente o pensamento” (SILVA, 2009). Os encontros são imprescindíveis, não
pela estranha mania de não sabermos lidar com a própria solidão, não por essa cultura às vezes
doentia que nos ensina a andar sempre em bandos e que atrela todos os estados de felicidade à
existência próxima de outrem. Precisamos de outrem apenas como uma estrutura que nos permite
nos situar no tempo e no espaço e não para nos tornarmos reféns de qualquer sentimento, objetos
ou sujeitos. Pois, “outrem não é nem um objeto no campo de minha percepção, nem um sujeito
que me percebe: é, em primeiro lugar, uma estrutura do campo perceptivo, sem a qual este campo
no seu conjunto não funcionaria como o faz (...). Assim, Outrem – a priori como estrutura
absoluta, funda a relatividade dos outrem como termos efetuando a estrutura em cada campo (...)”
(DELEUZE, 2011a. p. 316-17). Então, um corpo esgotado necessita beber em outras fontes,
experimentar outras hecceidades, arriscar-se, aventurar-se... e, desses experimentos, salta para um
estado que beira a plenitude, no qual nada consegue lhe distrair.
uperação. Durante este breve escrito me permiti entremear várias escritas de
pesquisadores através de seus agradecimentos e homenagens presentes em suas Dissertações e
Teses com o auxílio de Deleuze, Guattari, Nietzsche e outros que se propõem a pensar a
LINHA MESTRA, N.23, AGO.DEZ.2013
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CAPTURANDO CORPOS NAS PÁGINAS PRÉ-TEXTUAIS DE TRABALHOS ACADÊMICOS
construção do conhecimento de modo indissociável dos processos de construção das
subjetividades dos cientistas. Capturei alguns acontecimentos de suas escritas, destaquei
momentos, relações, linhas de fuga processadas pelos corpos dos pesquisadores com outros
corpos, objetos e seres incorporais como agenciamentos que simultaneamente construíram as
suas subjetividades e que permearam os caminhos pelos quais delinearam as suas pesquisas.
Referências
BRELAZ, Maura Suely Portela. O corpo na superfície de suas inscrições: narrativas de
estudantes da educação básica. Dissertação (Mestrado). Universidade Federal do Pará –
Instituto de Educação Matemática e Científica. Belém-PA. 2011.
CHAVES, Sílvia Nogueira. Evolução de ideias e ideias de evolução: a evolução dos seres
vivos na ótica de aluno e professor de Biologia do ensino secundário. Dissertação (Mestrado)
– Universidade Estadual de Campinas – Faculdade de Educação. São Paulo. 1993.
DELEUZE, Gilles. Capitalismo e esquizofrenia (Com Félix Guattari). In: A ilha deserta e
outros textos (1953-1974). Organizador e Revisor Técnico Luiz B. L. Orlandi. Editora
Iluminuras. São Paulo. 2005 (p. 293 - 304).
DELEUZE, G. Lógica do sentido. Tradução Luiz Roberto Salinas Fortes. 5. Edição. São
Paulo. 2011(a).
DELEUZE, G. Crítica e clínica. Tradução de Peter Pál Pelbart. 2 ed. RJ. Ed. 34. 2011(b).
DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Felix. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia, vol. 4.
Tradução de Suely Rolnik. 1ed (4ª reimpressão). São Paulo. Ed. 34. 2008.
DUARTE, Antonio Valdir Monteiro. Memórias (in)visíveis: narrativas de velhos sobre
suas infâncias em Belém do Pará (1900 – 1950). Dissertação (Mestrado). Universidade
Federal do Pará. Instituto de Ciências da Educação. Belém-PA. 2008.
LINS, Daniel Soares. O último copo: álcool, literatura, filosofia. Rio de Janeiro. Civilização
Brasileira. 2013.
MACHADO, João C. R. O olhar dos alunos e dos professores sobre a informática no curso
de Licenciatura em Matemática na UFPA. Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal do
Pará – Núcleo Pedagógico de Apoio ao Desenvolvimento Cientifico. Belém, PA. 2005.
NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. A gaia ciência. Tradução, notas e posfácio de Paulo César
de Souza. São Paulo. Companhia das Letras. 2001.
SILVA, Gláucia Maria Figueiredo. Das imagens identitárias da pedagogia ao ofício de
pedagogo na contemporaneidade: traçados nômades. Tese (Doutorado). Universidade
Estadual de Campinas, Faculdade de Educação. São Paulo. 2009.
SILVA, Elenita P. de Queiroz. A invenção do corpo e seus abalos: diálogos com o ensino
de Biologia. Tese (Doutorado). Universidade Federal de Uberlândia – Programa de PósGraduação em Educação. MG. 2010.
LINHA MESTRA, N.23, AGO.DEZ.2013
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BLOCOS DE SENSAÇÕES: IMAGENS E EXPERIÊNCIAS EM
FOTOGRAFIAS, DILATAÇÕES...
Maria dos Remédios de Brito 1
Manoel Neto 2
“Nunca suscite um general em você! Nunca ideias
justas, justo uma ideia” (Deleuze)
Entre palavras, textos e imagens fotográficas
Os conceitos têm uma vida, alertam Deleuze e Guattari (2001). O conceito de
Transversalidade, pensado por Guattari, exige uma vida mobilizada pela criação do
pensamento em todos seus movimentos, suas conexões, seus dramas, suas viradas, suas
tramas. Toda relação do pensamento com o fora, com o novo, com a criação é algo que não se
sabe de antemão, principalmente, quando eclode com outros campos de conhecimentos: arte,
filosofia, ciência. O conceito é sempre uma encarnação da novidade de um pensamento que
não se deixa ser ancorado pela opinião e pelas certezas, pois o pensamento não é parturiente,
mas criador, como sugere Daniel Lins (2012).
A transversalidade permite o pensamento ter a coragem de entrar em conexões com
imagens, com a escrita, com a literatura, com a fotografia, desmobilizando o centro. Concerne
ao pensamento uma política, uma estética, uma ética, uma fuga para inventar novos modos de
pensar a vida, a existência, o que desnorteia a representação, conectando um pensamento
selvagem, um devir escrita, pensamento nômade, que visa transbordar os resultados, as
conclusões simplórias.
Trata-se de colocar o pensamento em uma linha estética, libertária, linhas mutantes,
nômades, que tendem a se livrarem da incumbência de representar, de objetivar e de calcular.
A sensação como um instante, uma força transbordante de sentidos, que delira o pensamento,
o mundo, abrindo derivas para uma escrita em vácuo, em fluxo.
A vida também pede socorro! socorro! socorro! Ela também entra em pânico, porém
aponta possibilidades, impossibilidades, instiga à invenção de mundos possíveis, impossíveis,
acordar a vida...não deixar asfixiar (ordem, mãe, pai, Édipo, partido, televisão, mística,
psicanálise...). A vida, então, como uma grande invenção é transvalorização, sem casulos
identitários, mundos imperceptíveis... Novas aberturas, um ar, uma linha... Imagens
fotográficas... Fuga... Linha... E....
Blocos de sensações: imagens como intensidades da diferença
Se há linhas de segmentaridade, há linhas quebradas, efeitos, luz, cor que são
atravessadas pelas derivações, linhas de demolições, fuga... imagem-fuga, imagem caótica,
ruptura, deformações...forças...Sim! pois, aqui, a fotografia não é entendida como imagem
paradigmática que ao capturar e registrar as emoções por via da luz, deseja efetivar uma
participação do igual, gerando uma representação do mesmo. Não se entende que a
semelhança gerada pela imagem fotográfica seja apenas produtora, ela é também produzida.
Mão e olho do fotógrafo, “olho da máquina fotografica”, recursos tecnológicos da máquina
1
Graduada em Pedagogia, Filosofia, mestre, doutora e pós-doutora em Filosofia da Educação. Professora da
UFPA/Instituto de Educação Matemática e Científica. Coordenadora do Grupo “Transitar”, membro do Grupo
de Estudos “Cultura, Subjetividade e Educação”. Trabalha nas intercessões da filosofia e educação, com a
filosofia da diferença (Nietzsche, Foucault, Deleuze e Guattari). E-mail: [email protected]
2
Graduado em Física, desenhista, pintor, fotografo e professor da UFPA/Instituto de Física. E-mail: [email protected]
LINHA MESTRA, N.23, AGO.DEZ.2013
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BLOCOS DE SENSAÇÕES: IMAGENS E EXPERIÊNCIAS EM FOTOGRAFIAS, DILATAÇÕES...
fotografica, perspectivismo, foco, ângulo da fotografia movimentam um trabalho criador,
inventor do fotógrafo com o evento/acontecimento fotografia. A semelhança também pode
surgir como um produto outro, não só via mistura de luminosidade, cor, agitações das
imagens, gerando uma imagem-sensação que não é efetivamente a imagem “de”. Contudo, é
claro, não se pode negar imagens paradigmáticas na fotografia, assim como na pintura.
Representação?
Imagens-devir
Devir que não é imitar, progredir e nem regredir, como dizem Deleuze e Guattari
(2007). Uma força, uma potência do entre lugar. É todo um caráter excessivo, rompendo os
limites da atividade orgânica, da atividade natural, uma diferença, necessidade, turbulência,
algo vai sendo conduzido como uma onda, uma não semelhança do mesmo. Um grito, uma
atenção para a diferença... Fotografia da dessemelhança? Na superfície das imagens sem
planos e profundidades, há algo que não se pode dizer, não se pode contar, representar. Há um
silêncio inapreensível... Mas, há também um grito... Fragmento... Imagens que deslizam o
pensamento... Menoridades... Sentidos não determinados. Paradoxalmente, a fotografia que
pretende reter, conter uma temporalidade também efetiva escapamentos, sensações...naquilo
que pretende visível é potência do invisível e ambos se comunicam por modulações
sensoriais.Assim, sem intenções de escrever sobre as fotografias, mas escrever pelas/com as
fotografias por meios de seus atravessamentos. É o exercício que se pretende abordar.
I
Deformação...força
Potencial de deslocamento, novos perceptos, deformação...duplicidade, devir-natureza
habitado por uma força de transmutação, torrentes...verde-amarelo, seco, cores, devir-artista...
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BLOCOS DE SENSAÇÕES: IMAGENS E EXPERIÊNCIAS EM FOTOGRAFIAS, DILATAÇÕES...
II
Corpo amarelado
Folha-amarela, gestação de um terceiro acontecimento, força do pensamento,
pensamento sem imagem, transmutação, outra coisa vaza, passa...atravessa outra
luminosidade..
III
Retrato cor de fogo
Pequenos acontecimentos, saltos, olho, olho-máquina, mão-máquina, corpo, um
click...um olho dobrado, duplicado, misturado, sem representação, algo se mexe, o olho um
fluxo, um movimento, algo salta do código, imagem-intensidade...
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BLOCOS DE SENSAÇÕES: IMAGENS E EXPERIÊNCIAS EM FOTOGRAFIAS, DILATAÇÕES...
IV
Copo de leite
Corpo diluído, branca imagem, um ponto, um deslocamento??
V
Blocos de ondas
Quando a fotografia não se deixa representar, mas é atravessada pela narrativa calada do
fotógrafo visualizador de imagens, de encontros...uma fotografia, um acontecimento guardião
dos sentidos, uma percepção, uma dança, sedução, traços, uma marca da memória, uma
intensidade. Corpo? Corpo sem órgãos?? Um exercício...Sem clichê, sem doxa...também uma
força
Captura...Movimento...
Dar visibilidade à força, à captura de um acontecimento que atravessa não só corpo do
fotógrafo na sua singularidade, mas o dos seus observadores nas suas singularidades. O
LINHA MESTRA, N.23, AGO.DEZ.2013
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BLOCOS DE SENSAÇÕES: IMAGENS E EXPERIÊNCIAS EM FOTOGRAFIAS, DILATAÇÕES...
pensamento torna-se uma linha e não um ponto, torna-se uma cartografia intempestiva, que
liga outros domínios, que liga sensações...sensações! Mas, como foi que a
atividade/experimentação “blocos de sensações” mobilizou a ideia de sensações? Não se tem
dúvida que Deleuze (2010) promove essa digressão de forma exemplar em seu livro Francis
Bacon: a lógica da sensação. Com o ar deste livro se entende que as sensações são como um
vento, um movimento, uma força, uma metamorfose, um grito, uma crueldade, uma onda que
as imagens (as dessemelhantes/transfiguradas) cavam quedas, curvaturas, forças,
formigamentos, abalos, que tocam os pontos notáveis de cada corpo. Essas sensações cruzam
linhas segmentárias, linhas de territórios/desterritorialidades que tocam dimensões singulares,
dilatam e retraem corpos, mobilizam e desmobilizam sentidos, efeitos, deixam a narrativa do
eu essencial para uma narração que se desenvolve na superfície do corpo, na profundidade da
pele, na sensibilidade do olhar, em que se pode inscrever o corpo sem órgãos, em que toda
narrativa, inclusive imagética, já não é uma representação.
Sensações quando atinge não a consciência, mas efetivamente o sistema nervoso, o
excesso, a emoção vital, as modulações, as transformações...
“Eu não sou”
Corpo experimentador, corpo selvagem, corpo sensação, corpo vazado, corpo
esburacado...O corpo pode ser atravessado por outros meios, encontros, que não consiste na
natureza disso ou daquilo exclusivamente, mas nas relações entre, relações transversais em
que efeitos podem ser produzidos e inventados quando o corpo não suporta mais “eu sou
aquilo!?”, “eu sou assim!?”. Puro imediato, sem conceito, sensações. Onda pura, movimento
intensivo, força, dança da sedução, consciência sem relevo, corpo intercruzado por linhas
superpostas de acontecimentos. Experiência! Experiência imagética, corpo perfurado em um
conjunto extraordinário de relações outras, sem necessariamente senti-la em consciência. Eu
não sou!
Zonas, encontros, entre...
As experiências por meio de imagens-fotografias suscitam um convite ao
observador/experienciador de si, experinciador dos seus órgãos, um improvável, uma incerteza,
uma espécie “eu não sei o que sou”, buscas não edipianas e narcísicas, pois o problema não é
“sou!”, mas antes um convite para um devir inumano, devir-animal, devir-natureza, devirmáquina, devir-corpo, tentativa de desfazer a organização do humano, desfazer a organização do
corpo e deixar vazar, passar uma intensidade no corpo, em que cada singularidade pudesse deixar
ser atravessada por uma certa zona, seja ela lenta, contínua, vaga ou veloz...uma zona! Sentido
suas próprias zonas, as populações, os povos, as tribos, os grupos, as espécies que os atravessam
ou habitam. Uma zona do delírio...delírio...uma sensação.
Ah! será que não posso delirar sobre meu próprio corpo que não é um eu, mas uma
multiplicidade? O que me impediria? Qual a lei do interdito?
Não! Não! à língua terrorista e aos discursos terroristas, mas que se façam intercessões
com coisas, pessoas, livros, literatura, fotografias, animais, plantas, árvores, máquinas. Tudo
que importa são os encontros e suas zonas...
Despersonalizações! Contágios...
Contágios...
Se as imagens-fotografias suscitam um pensamento desastre é por insistir que o
pensamento desfaça a tortura da representação e convida o observador/experienciador de si
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BLOCOS DE SENSAÇÕES: IMAGENS E EXPERIÊNCIAS EM FOTOGRAFIAS, DILATAÇÕES...
desenvolver um ritmo, uma curvatura, um corpo-poema, corpo-cruel, corpo-vazado-dançante,
onda deslizante, que levam às figuras, às sensações, às imagens, às cores, à velocidade, que
são postas em cortes e fluxos. Essa sensação gagueja a linguagem e o corpo. Tudo é uma
maneira, um modo, um efeito de existência, uma maneira de sentir o mundo, de sentir a si
mesmo como uma potência, ligado à recusa de um corpo organicista, linear,
sedentário...Contágios...contágios!
Passagens...
O pensamento é uma potência de desterritorialização, deslizando com o fora, com os
signos, com os problemas, desfazer o pensamento binário é provocar as intensidades,
variações. Não importa os signos quando o cérebro é inundado por sensações, perceptos,
afectos. As vozes outras permitem saltos, disjunções quando o pensamento é abalado por um
fora e desenvolve golpes, figuras, escritas impossíveis, quase inesperadas, que pousam e
voam por meio de um pensamento transmutável, móvel, viajante. Para promover outros
murmúrios, ruídos, gritos, desfazer os órgãos. O pensamento desastre nos convoca para uma
nova saúde que grita, canta, sente, chora, goza, sangra, perde-se, vida, morte, solidão ativa,
encontro, alegria, intensidades...
O encontro com as imagens-fotográficas revestido de uma força-criança, forçaminoritária, pensamento invenção, imaginação, circulação. Devir-criança que não quer dizer
devir-inocência para promover os outros modos para razão, outras tintas e linhas para a
escrita, outros olhares para a vida, outras imagens provocantes, como diz Deleuze (1997):
“fabular outros povos”. Esse é o convite da escrita delirante, do pensamento das intensidades.
Que cada um faça seu próprio delírio, que cada um transborde.
Referências
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Rolnik. São Paulo, Ed. 34, 2007.
LINS. D. Estética como acontecimento, o corpo sem órgão. São Paulo: Lumme, 2012.
LINHA MESTRA, N.23, AGO.DEZ.2013
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AS FILOSOFIAS DA DIFERENÇA DE NIETZSCHE E DE DELEUZE: PARA
CONSTRUIR OUTROS MODOS
Isabella Vivianny Santana Heinen 1
Ingrid Larissa Santana Heinen 2
A atualidade faz um convite àqueles preocupados com a tarefa do pensamento, sugere
Nietzsche com a sua filosofia. A tarefa do pensamento não é só problematizar, mas criar
outras formas de intervenção no mundo. Desse modo, Nietzsche é um autor para além do seu
tempo, pois sua filosofia desmobiliza os hábitos, aquilo que aparentemente abraça a forma
como naturalização. Nietzsche caracteriza sua filosofia como uma crítica corrosiva aos
valores da nossa civilização, encarnados sob os nomes de moral, conhecimento, cultura,
religião, metafísica. Nietzsche entende que em uma sociedade que ainda vigora os valores da
compaixão, da solidariedade, da brandura, ainda não conseguiu se livrar da moral de rebanho,
e ao mesmo tempo são uma dissimulação das relações de poder, pois a sociedade se baseia em
princípios da compaixão, mas continua agindo de forma avessa a essas ideias. Assim, pode-se
dizer que, ele é um vetor teórico muito válido para se pensar a cultura. Dessa forma, a
filosofia desse autor torna-se uma das principais referências teóricas da cultura e do seu
entendimento; não é possível pensar o nosso presente e toda a sua contextualização filosófica
sem levar em consideração a empreitada filosófica de Nietzsche. Ele torna-se um dos maiores
pensadores da transição da modernidade para a contemporaneidade. Corre-se o risco de não
entender o nosso tempo negando o pensamento filosófico desse pensador, da filosofia do
martelo. Nietzsche, pensador da guerra, exatamente porque ele quer entender, que esta
acontece de modo a mascarar as relações de poder que se apresentam dissolvidas, não tem
complacência com o seu tempo, assim, efetiva uma crítica sutil ao homem do presente e
recorre à história para mostrar suas forças, suas relações e suas tensões como um diagnóstico
do presente. Ele fomenta essa análise em seus textos capitais, como na sua obra A Genealogia
da Moral, que faz todo um estudo da procedência e das forças que estão em jogo na
fomentação e constituição dos valores. Do mesmo modo que na sua obra Além do bem e do
mal, procura, de modo detalhado, mostrar o rosto da modernidade e sua constituição
decadente. Em Assim Falou Zaratustra, obra madura, perpassa uma crítica corrosiva a cultura
filisteia e a barbárie civilizada. O homem do presente, como sugere a seção Do país da
Cultura, é um malogro, impotente e estéril. Nietzsche diz: “em verdade, não poderíeis usar
máscaras melhores do que vossos próprios rostos, ó homens do presente! Quem poderia –
reconhecer-vos?” (NIETZSCHE, 2011, p.114), e na seção Da virtude que apequena, diz:
“(...) virtude é o que torna modesto e manso: com ela transforma o lobo em cão, e o próprio
homem, no melhor animal doméstico do homem” (NIETZSCHE, 2011, p.162). Nietzsche se
refere ao homem do presente como um tipo sarapintado. O homem que exercita toda a sua
vacuidade e empáfia, como salienta Scarlett Marton (2001). Esses homens do presente são
imitadores, superficiais, “o pastiche e forjar o amálgama” (MARTON, 2001, p. 28). Sua
cultura é decadente e se pretende uma unidade e tal unidade só se dá em sua falta de estilo
(MARTON, 2001). Dessa maneira, filosofar com Nietzsche deve ser a golpes de martelo, com
o objetivo de fissurar os dogmas cultivados pelo homem do presente. Assim, entende-se que
Nietzsche procedeu dessa forma em sua filosofia, com o objetivo de mostrar aquilo que
aparentemente é comum, de convidar a desfazer os hábitos, os costumes, as normas bem
aceitas. Nietzsche realiza uma crítica ao homem do seu tempo, ao homem gregário,
massificado, ao homem escravo e decadente. Compreendendo o processo de cultura como um
1
Graduada em Filosofia Licenciatura e Bacharelado pela Universidade Federal do Pará, Mestranda da PósGraduação em Filosofia da Universidade Federal do Pará, e-mail: [email protected]
2
Graduanda do Curso de Ciências Sociais da Universidade Federal do Pará, e-mail: [email protected]
LINHA MESTRA, N.23, AGO.DEZ.2013
240
AS FILOSOFIAS DA DIFERENÇA DE NIETZSCHE...
mecanismo que domestica o homem, impele seus instintos, a fim de promover um homem
prioritariamente racional, com isso, desmistifica a ideia de que a razão é a única capaz de
propiciar ao homem o desenvolvimento de tecnologias capazes de auxiliar na vida moderna e
capitalista. A crítica desse tipo é antes de tudo uma crítica moral e política, na medida em que
a moral escrava é uma moral do controle, da compaixão, da resignação, que são efetivadas por
um tipo de homem: o escravo. Os valores morais do escravo limitam uma linguagem,
constituem uma conduta baixa e vulgar. Nesse âmbito, a moral é entendida como um reflexo
dos processos racionais, uma forma de comedimento dos indivíduos, em que o processo
racional deflagrado por esta, embute na consciência humana a ideia de que boas ações e
prosperidade encontram-se totalmente interligadas. Com esta intrínseca relação entre moral e
racionalidade, imbui- se no homem o comportamento escravo, desenvolvendo-se segundo os
princípios que a razão institui. Nessa perspectiva, a ideia de conceito como criação em
Deleuze é de inspiração nietzschiana, ambos põem a filosofia em movimento com o seu
tempo, com a imanência. Deleuze pretende, por sua vez, transpor os paradigmas existentes em
relação ao conceito e a própria filosofia, por esta tratar-se agora de um processo criativo do
pensamento, não mais mera representação fenomênica ou como dogma que toma o conceito
meramente enquanto unidade da multiplicidade. Ele não nega o conceito, só não aceita o
conceito como representação, porém, agora o mesmo apresenta-se como interpretação da
realidade, e porque não, produção intelectiva. De modo que a análise da dissolução do homem
na modernidade será feita a partir de uma crítica a filosofia tradicional, aquela em que o
conceito e o próprio homem são vistos como representação e não como diferença. Pretende-se
identificar a partir de Nietzsche e de Deleuze, o desgaste, a ruína humana na modernidade, a
constatação de que o homem não estimula sua capacidade produtiva, se refugia na
comodidade das facilidades da vida gregária. Ambos engendram uma crítica ao pensamento
dogmático e a filosofia da representação, e como modos inventivos propõem pensar a ideia da
diferença. E esta, se constitui a partir dos próprios limites da representação, apresentando uma
severa crítica a esse homem que aspira a agregação, receia rebelar seu instinto junto aos seus,
agregando-se para sentir-se pertencente e continuar a representar, repetir. Deleuze posicionase contra a repetição, apresentando a repetição da diferença, distancia-se da repetição do
igual, o que ocorre é a mudança pela diferença, tornando nítido o problema da objetividade
científica, pois esta não concerne o real, ao contrário postula conceitos, que são em si mesmos
limitados para representar a universalização. Essa universalização, na perspectiva
nietzschiana, torna o instinto gregário revelador da limitação do humano, o transforma em um
tipo homem manso e medíocre, que busca descansar nos “ombros” da moral escrava, como
forma de limpar o seu próprio horror e aniquilamento, pois como diz Nietzsche “de que serve
todo o livre-pensamento, toda modernidade, zombaria e volúvel flexibilidade, se em suas
entranhas o indivíduo permanece cristão, católico e sacerdote” (NIETZSCHE, 2006, p. 64).
Dessa forma, o que parece ainda permanecer, em último fôlego, é a moral cristã, que passeia
pelo centro do tipo homem esclarecido, o fruto do iluminismo moderno. Não podemos
confundir a filosofia da diferença com filosofia empírica, já que, a filosofia da diferença não
propõe a aplicação de testes empíricos para satisfazer seus princípios filo sóficos, e sim a
discussão da problemática da decadência do homem moderno revelando, portanto, a
falibilidade da razão, e sua queda enquanto instância soberana de aquisição de conhecimento
e, por outro lado instância necessária da modernidade. A filosofia não é mais colocada como
detentora da verdade ou a propagadora daquilo que deve ser, mas como criadora de novos
conceitos, por isso não é mais possível pensar segundo a filosofia moderna, isto é, como um
antigo sistema de referência simplificador. Em que mesmo a filosofia da diferença é uma
filosofia da produção de conceitos, não se tem mais um objeto fixo, tem-se a repetição da
diferença. O filósofo deve tentar falar do mundo, que é por sua vez dinâmico, da mesma
forma que os atributos do conceito. Para Deleuze a filosofia em nenhum momento vai dizer o
LINHA MESTRA, N.23, AGO.DEZ.2013
241
AS FILOSOFIAS DA DIFERENÇA DE NIETZSCHE...
que o mundo é, ao contrário o interpreta através da criação de conceitos, o que implica no
desafio da interpretação do mundo, do homem e sua dissolução enquanto agente
transformador da modernidade. Mostrando assim, que a filosofia não é mais determinista, e
também a dificuldade de conceber a filosofia a partir de interpretações, pois não é possível a
construção de uma interpretação da realidade, por essa interpretação não conseguir abranger
as diferenças do mundo. A proposta Deleuziana, tal qual a nietzschiana não pensa mais o
universal, e sim a diferença, e quando se compreende a limitação do conceito, percebe-se sua
remissão a diferença, em que não se tem mais uma perspectiva normativa ou classificatória. A
filosofia sugestionada por Deleuze é a da criação, e não a da estaticidade, constatando-se que
o real é composto pela relação contínua da diferença. Em que o infinito é o limite da nossa
conceituação, pois, o que se tem agora é o conceito da reflexão criativa, que cria o mundo,
não tem mais a ver com a classificação normativa. A filosofia, desse modo é uma espécie de
territorialização, que a tudo deseja enquadrar, rotular, tornar parte constituinte de algo. A
desterritorialização é posta no alcance daquilo que é, não se tratando mais da filosofia do
dever ser, isto é, a desterritorialização é a perda das características, é a sobreposição de um
plano de imanência, e na medida em que se desterritorializa e automaticamente se
reterritorializa, porque se constrói outro território “pensar se faz antes na relação entre o
território e a terra” (DELEUZE, 1992, p. 109). Não é mais uma transcendentalidade da
representação, pois é uma transcendentalidade relacionada com o vivido, não podendo ser
mais uma verticalização, isto é, algo imperativo, do dever ser. Para Deleuze a relevância de se
delinear a variância, compreendendo a significação do pensamento filosófico e seu processo
histórico conceitual. A desterritorialização nos possibilita a multiplicidade dos eventos e de
suas singularidades, em que esta multiplicidade só se estabelece a partir dos processos de
reconfiguração, pois a produção de conceitos expressa um movimento de reflexão, e não mais
a produção de uma representação do mundo. Não é mais privilégio algum da filosofia a
criação de conceitos, este apenas lhe assegura uma função, pois há outras maneiras de fazê-lo
até por meio do pensamento científico, no entanto ainda somos instigados a saber para que se
faz necessário a criação de conceitos, e sempre novos conceitos. A pesquisa torna-se
importante não só por desenvolver uma análise teórica conceitual dos autores, que ainda
oferecem elementos teóricos e filosóficos que ajudam a pensar as questões da modernidade,
mas também por querer aprender com Nietzsche e Deleuze que a tarefa do pensamento é um
exercitar a crítica, bem como a criação de outras posturas críticas diante do mundo que nos
cerca, não de forma naturalizada, mas analítica, o que deve ser não moralisticamente o papel
da filosofia. Dessa maneira, a pesquisa tem caráter teórico- bibliográfico. As obras
mobilizadas para análise e confecção deste trabalho serão as da terceira fase de Nietzsche, isto
é, o período de maturidade do filósofo, não excluindo, todavia, incursões para a compreensão
da pesquisa. Destarte, não temos a pretensão de igualar a filosofia de ambos, mas
potencializar o pensamento, sua atualidade com essas filosofias que tanto um quanto o outro,
aos seus modos, fazem uma crítica a filosofia da representação, dos universais e da
efetividade. Nietzsche não pode ser compreendido baseado em padrões hermeticamente
fechados, seus escritos não são configurações de representações e conceitos unívocos, em que
já se admite um sentido. Ele quer desconstrói as amarras constituídas por modelos que
impossibilitam a critica do homem a modernidade, posicionando-se a favor de que as
asseverações, já perpassam o campo interpretativo, afastando-se, nesse âmbito, decisivamente
das ideias prévias de significante e significado. Nesse sentido, conforme coloca Deleuze em
Pensamento nômade (1985) os escritos filosóficos são constituídos em consonância aos
códigos, ou seja, são sempre estabelecidos através de uma norma reguladora, que diz
exatamente aquilo que se pode ou não fazer. Mas, o que se propõe aqui é a discussão e
desterritorialização dessas amarras que dissolvem o homem no instinto gregário.
LINHA MESTRA, N.23, AGO.DEZ.2013
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AS FILOSOFIAS DA DIFERENÇA DE NIETZSCHE...
Referências
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LEFRANC, Jean. Compreender Nietzsche. Trad. Lúcia M. E. Orth. 3 ed. Petrópolis, Rio de
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LINHA MESTRA, N.23, AGO.DEZ.2013
243
AS FILOSOFIAS DA DIFERENÇA DE NIETZSCHE...
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Acesso em: 08 de Nov. de 2012, 17:13.
LINHA MESTRA, N.23, AGO.DEZ.2013
244
SESSÃO 14 – FILOSOFIA, CINEMA E LITERATURA
O PROCESSO SEGUNDO FRANZ KAFKA E ORSON WELLES
Prof. Dr. Charles Feitosa 1
1. Notas Afetivas sobre Kafka e Welles
O personagem principal do filme Hanna e suas irmãs (1986), vivido e dirigido pelo
cineasta-pensador Woody Allen (1935-), diz em certo momento que um dos sentidos da vida
é poder assistir a um filme dos irmãos Marx. Para mim, um dos sentidos da vida é poder ler a
obra de Kafka, especialmente O Processo, em alemão. Sei que isso é um privilégio para
poucos e espero que minha afirmação não soe arrogante e sim como um estímulo a aprender
essa bela e difícil língua.
Já a obra de Orson Welles marcou de forma profunda minha percepção estética do mundo.
Sempre fui fascinado pela maneira como ele conseguiu mobilizar a imaginação do público através
da famosa transmissão radiofônica de a Guerra dos Mundos. Como professor e conferencista tive
oportunidade de recriar situações onde histórias absurdas eram apresentadas como verdadeiras,
com o objetivo de testar o senso crítico dos ouvintes. Constatei diversas vezes o grau de recepção
crédula das mais variadas plateias e provoquei, graças a esse recurso, intensos debates após
revelar o sentido orsonwelliano das minhas experimentações didáticas. Esse trabalho é, portanto,
uma forma de comemoração e de rememoração de dois dos maiores artistas do século XX, cujas
obras povoam meus sonhos e pesadelos.
2. Questões
O diretor de cinema Peter Greenaway (1942-), em uma palestra intitulada Cinema is
dead, long live Cinema, proferida na Humboldt-Universtät em Berlim, fevereiro de 2007
(repetida depois em vários lugares, inclusive no Brasil) afirmou: “temos 111 anos de história
atrás de nós, mas ainda não vimos o verdadeiro cinema, até agora só foi um prólogo”. A
polêmica tese do realizador britânico era baseada na tese de que os mais de cem anos de
história do cinema significavam na verdade apenas um longo período de meras transposições
de textos para telas. Filmes teriam sido até agora apenas livros ilustrados. Além disso, na
mesma palestra, Greenaway reclamava que existiria uma certa tirania do texto sobre a
imagem na cultura ocidental. Mas o que mais me impressionou foi sua constatação de que
embora vivamos em um tempo em que em um minuto mais imagens são produzidas do que
em todo o século XIX, faltar-nos-ia ainda o treinamento competente para ler imagens,
equivalente ao treinamento para ler textos que recebemos na escola. O polêmico diagnóstico
de Greenaway serve como um bom dispositivo para uma reflexão em torno da relação
Welles/Kafka. O que é “adaptar” em cinema e literatura? Qual a relação entre imagem e texto
no cinema e na literatura? Qual o papel da filosofia no encontro entre o cinema e a literatura?
O que é O Processo para Kafka e Welles?
3. O Processo de Kafka
Franz Kafka nasceu em 03 de julho de 1883 em Praga, na época pertencente ao império
austro-húngaro, morreu em 03 de junho de 1924 em Kierling, hoje um bairro de
1
Departamento de Filosofia e Ciências Sociais Programa em Pó-Graduação em Artes Cênicas UNIRIO.
LINHA MESTRA, N.23, AGO.DEZ.2013
245
O PROCESSO SEGUNDO FRANZ KAFKA E ORSON WELLES
Klosterneuburg, Áustria. Kafka era filho de um pai extremamente autoritário, tinha uma saúde
frágil, nunca se casou ou teve filhos e juntamente com o argentino Jose Luis Borges constitui
um dos maiores escritores da literatura contemporânea.
O estilo literário de Kafka poderia ser resumido com uma mistura de humor, absurdo e
mistério. Através dele a língua alemã encontra uma das suas formas máximas de expressão.
Percebe-se em seus textos uma ambiguidade intraduzível de certos termos, o que acaba
gerando uma certa confusão. O exemplo mais conhecido talvez seja a primeira frase de A
Metamorfose (1915), onde o personagem Gregor Samsa, acorda transformado em um
Ungeziefer. Esse termo, costumeiramente traduzido por “barata”, costuma ser usando em
linguagem coloquial mais propriamente se referindo a um “besouro”. Entretanto, em alemão
medieval, Ungeziefer indicava também qualquer animal impuro que não fosse apto para o
sacrifício, inadequado para ser separado e usado para fins sagrados. Os biógrafos relatam que
Kafka sempre se recusou a desenhar o inseto em torno do qual girava sua história, o que
reaviva nossas questões acerca das relações entre texto e imagem ou entre as traduções entre
literatura e cinema.
Der Process, junto de América e O Castelo, constitui um dos três romances inacabados
e publicados postumamente por Kafka. Começou a ser escrito provavelmente no verão de
1914 e foi continuamente elaborado até sua morte em 1924. O contexto histórico coincide o
início da Primeira Guerra Mundial. No âmbito biográfico é a época em que Kafka termina o
noivado com Felice Bauer e começa a viver independente dos pais em quarto todo seu.
O Processo apresenta a história de Josef K., personagem que acorda certa manhã, e,
sem motivos conhecidos, é preso e sujeito a longo e incompreensível “processo” por um
crime não revelado. O manuscrito é composto de 10 capítulos e diversos fragmentos. A
organização da ordem dos capítulos por Max Brod é ainda tema de muitas discussões pelos
estudiosos. A obra permite diversas leituras possíveis, mas a interpretação vencedora e
praticamente hegemônica vê o romance como uma alegoria da situação do indivíduo moderno
em uma sociedade excessivamente burocratizada. Desde então o adjetivo “kafkiano” se
popularizou como sinônimo de “surreal” e “absurdo”. Como Orson Welles vê O Processo de
Kafka?
4. O Processo de Orson Welles
George Orson Welles, nascido em 1915, começou a estudar pintura em 1931. Criou sua
própria companhia de teatro em 1937. Em 1938, com 25 anos de idade, Welles produziu a
famosa transmissão radiofônica inspirada em A Guerra dos Mundos de H.G.Wells. Sua
estreia no cinema, em filmes de longa metragem, ocorreu em 1941 com Citizen Kane,
considerado pela crítica como um dos melhores filmes de todos os tempos. Diversas
inovações técnicas no uso das câmeras são creditadas a ele, mas a principal característica do
seu estilo cinematográfico está nas narrativas não lineares em função de recursos de edição
muito sofisticados para a época de sua realização.
The Trial, lançado em 1962, foi considerado pelo próprio Welles, entrevista para TV,
como o melhor filme que já fez. Welles abre o filme com uma animação de Alexandre
Alexeieff (1901-1982), que reproduz a famosa fábula inserida no manuscrito por Max Brod,
Diante da Lei, sugerindo assim que essa estória dentro da estória talvez seja a chave para a
compreensão da obra. Diversas alterações em relação ao romance de Kafka são realizadas. As
mais facilmente perceptíveis são a mudança da forma da execução na cena final, a introdução
de elementos contemporâneos (o uso do computador como símbolo da burocratização), a
utilização de elementos da estética noir e expressionista (evidentes na fotografia em preto e
branco). A principal alteração parece ser que o romance enfatiza um “K.” confuso e
desnorteado, ainda que teimoso e persistente, enquanto o filme retrata “K.” como um rebelde
LINHA MESTRA, N.23, AGO.DEZ.2013
246
O PROCESSO SEGUNDO FRANZ KAFKA E ORSON WELLES
anti-autoritário. Essa heroicização do personagem torna-o mais simpático no filme do que no
livro.
A leitura de Welles confirma a interpretação do romance de Kafka como uma denúncia
de uma sociedade totalitária. Um dos objetivos desse trabalho é questionar os limites dessa
interpretação e apresentar outras possibilidades de leitura. É importante observar que o
contraste entre as duas obras costuma ser medido através do binômio hierárquico “original x
adaptação”. O próprio Orson Welles assume que seu objetivo não era só recontar, mas recriar
o romance. Em entrevista para BBC ele diz que o filme não era uma versão ou ilustração do
livro, nem um filme baseado no livro, mas uma obra diferente, inspirada pela leitura de
Kafka. O objetivo principal do presente trabalho é tomar a parceria Kafka/Welles como um
material para repensar filosoficamente as relações entre modelo e cópia na criação estética e
as tensões entre texto e imagem no encontro entre a literatura e o cinema.
LINHA MESTRA, N.23, AGO.DEZ.2013
247
ESGOTAR AS PALAVRAS... RACHAR O PENSAMENTO
Profa. Dra. Angela A. Donini 1
“O desejo não é o que permanece sempre
impensado no coração do pensamento?” 2
1. Imagem e espaço em Beckett
Não remeter mais a linguagem a objetos enumeráveis e combináveis, tampouco a vozes
emissoras, produzir deslocamentos que processem limites imanentes que “não cessam de
deslocar, hiatos, buracos ou rasgões dos quais não se daria conta, atribuindo-os ao simples
cansaço, se eles não crescessem de uma vez, de maneira a acolher alguma coisa que vem de
fora ou de outro lugar.” 3
“Hiatos para quando as palavras desaparecidas. Quando não há mais como. Então tudo
visto como então somente. Desobscurecido. Desobscurecido de tudo o que as palavras
obscurecem. Tudo assim visto não dito.” 4
No texto “O esgotado”, a partir das obras de Beckett, o que Deleuze vai convocar é que
esse algo, visto, ou ouvido, chama-se imagem, visual ou sonora, desde que liberada das
cadeias em que as duas outras línguas a mantinham. Não se trata de imaginar um todo a partir
de uma língua, que ele vai chamar de língua I, que seria de imaginação combinatória e
manchada de razão e, nem de inventar histórias ou inventariar lembranças com o que ele vai
chamar de língua II que seria a imaginação manchada de memória.
Estamos portanto, diante do despedaçar de todas as aderências da imagem para atingir o
ponto “Imaginação Morta Imaginem”. E Deleuze destaca o difícil que é criar uma imagem
pura, não manchada, apenas uma imagem, para se chegar ao ponto em que ela surge em toda
sua singularidade sem nada guardar de pessoal, nem de racional.
“A imagem é um pequeno ritornelo, visual ou sonoro, quando é chegada a hora: ‘a hora
preciosa...’. Em Watt, as três rãs misturam suas canções, cada uma com sua cadência própria,
Krak, Krek e Krik. As imagens-ritornelo percorrem os livros de Beckett. Em Premier amour,
ele vê um pedaço de céu estrelado balançar, e ela canta baixinho. É que a imagem não se
define pelo sublime do seu conteúdo, mas por sua forma, isto é, por sua “tensão interna”, ou
pela força que mobiliza para esvaziar ou esburacar, aliviar a opressão das palavras,
interromper a manifestação de vozes, para se desprender da memória e da razão, pequena
imagem alógica, amnésica, quase afásica, ora se sustentando no vazio, ora estremecendo no
aberto.” 5
Algo que não é um objeto, mas um processo. Não se sabe a potência de tais imagens,
por mais simples que sejam do ponto de vista do objeto. É o que Deleuze vai chamar de
língua III na obra de Beckett, não mais dos nomes ou das vozes, mas das imagens, sonantes,
colorantes. Para ele, o que há de entediante na linguagem das palavras é que ela está
sobrecarregada de cálculos, de lembranças e de histórias. E, “no entanto, é preciso que a
imagem pura se insira na linguagem, nos nomes e nas vozes. Às vezes será no silêncio, por
um silêncio comum, no momento em que as vozes parecem ter se calado. Mas às vezes
1
Departamento de Filosofia e Ciências Sociais – UNIRIO.
Michel Foucault. As palavras e as coisas. São Paulo, Martins Fontes, 2007.
3
Gilles Deleuze. “Sobre o teatro: um manifesto de menos; o esgotado”. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2010, p. 78.
4
Beckett, Samuel. Cap au pire. Paris, Minuit.
5
Gilles Deleuze. “Sobre o teatro: um manifesto de menos; o esgotado”, op. cit. p. 81.
2
LINHA MESTRA, N.23, AGO.DEZ.2013
248
ESGOTAR AS PALAVRAS... RACHAR O PENSAMENTO
também será pelo sinal de um termo indutor, na corrente da voz, Bing. ‘Bing imagem quase
nunca um segundo tempo sideral azul e branco do vento.’”
A língua III pode reunir as palavras e as vozes, são as quatro peças de Beckett para a
televisão. Segundo Deleuze, essa língua não procede apenas por imagens, mas por espaços, e
Beckett vai esgotar duas vezes o espaço e duas vezes a imagem. Ele suportou cada vez menos
as palavras.
“...E sabia, desde o início, a razão pela qual devia suportá-las cada vez menos: a
dificuldade particular de ‘esburacar’ a superfície da linguagem para que finalmente aparecesse
‘o que se esconde atrás’” 6.
O de fora da linguagem não sendo apenas imagem, mas a vastidão, o espaço. A língua
III vai proceder por imagens e espaços, e, da mesma maneira que a imagem deve ter acesso ao
indefinido, o espaço deve ser sempre um espaço qualquer, sem função, ou que perdeu a
função.
“O espaço qualquer é povoado, percorrido; é ele, inclusive, que povoamos e
percorremos, mas ele se opõe a todas as nossas extensões pseudoqualificadas e se define ‘sem
aqui nem ali de onde nunca se aproximarão nem se afastarão um milímetro todos os passos da
terra’.” 7
Do mesmo modo que a imagem aparece àquele que a cria como um ritornelo visual ou
sonoro, o espaço aparece àquele que o percorre como um ritornelo motor, posturas, posições e
maneiras de andar. Todas essas imagens compõem-se e se decompõem.
A forma de andar de Watt, “que vai em direção ao leste, girando o busto em direção ao
norte e jogando a perna direita em direção ao sul, e depois, o busto em direção ao sul e a
perna esquerda em direção ao norte” 8 é uma maneira de andar exaustiva, que envolve todos os
pontos cardeais, o quarto ponto sendo a direção de onde se vem sem se afastar, cobrindo todas
as direções, e no entanto em linha reta. “Igualdade entre a reta e o plano, entre o plano e o
volume.” 9 E aqui, com essa consideração do espaço temos um novo sentido e um novo objeto
ao esgotamento: “esgotar as possibilidades de um espaço qualquer” 10.
Em Beckett a língua III das imagens e dos espaços permanece em relação com a
linguagem, mas vai se erguer ou se estirar em seus buracos, seus desvios ou seus silêncios. O
esgotado é o exaustivo, o estancado, o extenuado, o dissipado. E essa língua pode operar em
silêncio, ou servir-se de uma voz gravada que “força as palavras a se tornarem imagem,
movimento, canção, poema” 11.
2. A ruptura com o sensório motor
Kuniichi Uno vai até o bergsonismo de Gilles Deleuze em seu Cinema, onde há a
identificação de que a imagem-ação no cinema implica na elaboração do esquema sensóriomotor sob formas muito variadas, mas que, finalmente, conduzem a uma imagem-ação
puramente física ou relacional. E seguindo, como se os fios estivessem frouxos, nesse tipo de
imagem-ação, extremamente sofisticada, as imagens (a imagem ótica, a imagem sonora) se
desprenderão de todas as lógicas orgânicas: não há mais vínculo para uni-las nem apertá-las.
É onde o entreimagens ou o interimagens vai se tornar cada vez mais sensível. Os
signos da imagem-tempo emergem nos interstícios das imagens sonoras e óticas.
6
Gilles Deleuze. “Sobre o teatro: um manifesto de menos; o esgotado”, op. cit. p. 108.
Idem. p. 83.
8
Ibidem p. 84.
9
Ibidem. p. 84.
10
Ibidem. p. 84.
11
Ibidem. p. 85.
7
LINHA MESTRA, N.23, AGO.DEZ.2013
249
ESGOTAR AS PALAVRAS... RACHAR O PENSAMENTO
De movimentos anteriores ao contorno humano, que em algum momento foram
monopolizados pelo esquema sensório-motor, as mutações imperceptíveis invadem e se
infiltram no cerne da organização desse esquema para revelar figuras de tempo que não mais
pertencem ao movimento sensório-motor e ao corpo organizado a partir da medida deste
movimento. Para Uno, esse tempo é vivido e experimentado por diferentes tipos de corpos
sem órgãos.
Aqui os centros da percepção, da ação, do afeto se voltam novamente acêntricos, e mais
uma vez, por toda parte, no cinema, aprofundam-se os desvios, os intervalos, os cortes, as
disjunções, que criam, no lugar de centro de percepção, de ação, de afeto, uma nova
consistência cristalina – abertura de uma nova esfera de signos de som- imagem. “As imagens
se articulam cada vez mais com seus interstícios, suas margens numa síntese disjuntiva,
principalmente no cinema que pertence à imagem-tempo.” 12
O projeto de Deleuze para o cinema está em retraçar e reinterpretar a história do cinema
a partir de uma pré-história que vai remontar ao tempo da matéria antes do humano. De onde
podemos arrancar a matéria-imagem-movimento? E não se trata de remontar as imagens a
partir da cena original da matéria porque não há o original da matéria. São variações de
interstícios entre imagens e percepções. Deleuze vai ressaltar a importância da disjunção entre
o som (imagem sonora) e a imagem (imagem ótica).
Para Kuniichi Uno a imagem-movimento vai divergir em imagem-percepção, imagemafeto e imagem-acão ao se humanizar, ao se organizar na direção sensório- motora e, a cada
momento de divergência, a linhagem de vida orgânica será articula de modo diferente da
linhagem de vida não orgânica.
E por que não fazermos essa provocação situando-a no pensamento? E aqui a proposta é
de encontro com as questões que Deleuze traz a partir das “Palavras e as coisas” de Foucault:
“Em nossos dias, só se pode pensar no vazio do humano desaparecido. Pois esse vazio não
aprofunda uma falta: ele não prescreve uma lacuna a ser preenchida. Ele é nada mais nada
menos que a desdobra de um espaço onde, enfim, é novamente possível pensar.” 13 No texto
“O homem, uma existência duvidosa” vai considerar que é isso que a análise da finitude nos
convida, a uma nova imagem do pensamento, não uma ciência humana, tratando-se portanto
de um pensamento que não mais se oponha de fora ao impensável ou não-pensado, mas que o
alojaria nele, um pensamento que seria atravessado por uma rachadura sem a qual ele não
poderia se exercer.
“A rachadura não pode ser preenchida, pois ela é o mais elevado objeto do pensamento:
o homem não a preenche e nem recola suas bordas; ao contrário, no homem, a rachadura é o
fim do homem ou o ponto originário do pensamento.” 14
Parece haver uma permanência de Deleuze no tema da rachadura e é interessante
promovermos essa aproximação entre a rachadura do pensamento e a rachadura das palavras
para pensar no que a potência das imagens podem convocar a partir da perspectiva de um
movimento anterior ao pensamento, anterior à linguagem.
E aqui, acompanhando as questões que Deleuze traz acerca do pensamento e do cinema
chegamos ao ponto de pensar a imagem como algo que não se trata de um efeito lógico, mas
como efeito dinâmico que, como síntese, vai atuar sobre o córtex.
A montagem é no pensamento o próprio processo intelectual ou o que frente ao choque
pensa o choque.
Os harmônicos da imagem acompanham a dominante sensível e entram em relações
supra-sensoriais. Trata-se de uma onda de choque ou vibração nervosa tal que não se pode
mais dizer “vejo, ouço”, mas sinto. 15
12
Kuniichi Uno. A gênese de um corpo desconhecido. São Paulo, n-1 edições, 2012.
Michel Foucault. As palavras e as coisas. Op. cit.
14
Gilles Deleuze. “O homem uma existência duvidosa”in: A ilha deserta. São Paulo, Iluminuras, 2006.
13
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250
ESGOTAR AS PALAVRAS... RACHAR O PENSAMENTO
Artaud em “Feitiçaria e cinema” 16 vai dizer que o cinema é um notável excitante, age
diretamente sobre a massa cinzenta do cérebro. E, para ele, o cinema foi feito para exprimir as
coisas do pensamento, e não somente pelo jogo das imagens, mas algo de imponderável que
nos devolve as coisas em sua matéria direta, sem interposições, sem representações. Sendo
insuficiente o pensamento claro, que segundo ele está situado em um mundo gasto e até
fastio. O claro é o imediatamente acessível, mas o imediatamente acessível é aquilo que serve
de casca à vida.
Referências
ARTAUD, Antonin. Linguagem e vida. São Paulo: Perspectiva, 2008.
BECKETT, Samuel. Cap au pire. Paris: Minuit, 1991.
DELEUZE, Gilles. Cinema II: a imagem-tempo. São Paulo: Brasiliense, 2009.
______. O homem uma existência duvidosa. In: A ilha deserta. São Paulo: Iluminuras, 2006.
______. Sobre o teatro: um manifesto de menos; o esgotado. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2010.
FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
UNO, Kuniichi. A gênese de um corpo desconhecido. São Paulo: n-1 edições, 2012.
15
16
Gilles Deleuze. Cinema II: a imagem-tempo. São Paulo, Brasiliense, 2009.
Antonin Artaud. Linguagem e vida. São Paulo, Perspectiva, 2008.
LINHA MESTRA, N.23, AGO.DEZ.2013
251
DELEUZE ENTRE OS BEATS E O ROAD MOVIE: CONSIDERAÇÕES
Prof. Dr. Alessandro Sales 1
1. Gênero Cinematográfico
Edward Buscombe inicia o texto A Ideia de Gênero no Cinema Americano apontando o
seguinte ponto de vista: “Embora o termo ‘gênero’ seja atualmente empregado na reflexão
sobre cinema, não existe muito acordo a respeito do que ele significa, ou mesmo se a
expressão tem alguma serventia”. (2005, p. 303) O termo, correntemente usado nos estudos
de cinema, tem suas origens – e muita tradição – na literatura e no teatro.
Ora, percebemos facilmente a ideia de gênero como algo que delimita, que define, que,
em suma, categoriza. Nesta direção, o ímpeto classificatório ocidental tem seus primeiros
indícios em Platão, mas efetivamente se acentuaram e se firmaram com Aristóteles. Quanto a
este último, declara ainda Buscombe:
Na sua Poética, ele procurou separar o que chamava de poesia – e que nós
simplesmente chamamos de literatura – em um número de categorias tais
como a tragédia, o épico, o lírico e assim por diante. O seu propósito era
decidir quais eram as qualidades particulares de cada estilo distinto e o que
se poderia esperar de cada um deles. (2005, p. 303)
A noção de gênero ou estilo literário nos acompanha, em outras palavras, desde a
antiguidade, ou seja, tem história. (BUSCOMBE, 2005, pp. 303-305) Era natural que este
quadro classificatório contaminasse uma arte como o cinema, de acordo, obviamente, com
suas singularidades. O mais relevante a se notar aqui, parece-nos, é que se trata, neste último
caso, de uma referência importante, mas que não precisa funcionar como uma camisa de
força. 2 Claro, gêneros, tanto em literatura como em cinema, são utilizados com o fim de se
dizer algo acerca do objeto em pauta, um texto ou um filme, de caracterizá-los, de dar algo a
ver que é próprio deles. No entanto, tendo história, é preciso notar de antemão que tais
convenções e definições muitas vezes são problemáticas, flutuantes, variando segundo
contextos e épocas, para além da pretensa universalidade almejada por Aristóteles. Mesmo
assim, a existência da referência não deixa de ser relevante – ruim é que ela não exista.
Assim, em cinema, quando afirmamos que um determinado filme é um faroeste, ou uma
comédia, ou um melodrama, algo sem dúvida fica dito, temos já aí uma orientação, uma
referência. A questão que se coloca é se isso que é dito sobre o objeto é suficiente para
descrevê-lo, para bem iluminá-lo. Robert Stam interroga de maneira decisiva o que está em
jogo: “O que aprendemos ao abordar Taxi Driver como um faroeste ou Spartacus como uma
alegoria da luta pelos direitos civis? Que aspectos desses textos são tornados visíveis por
meio dessa estratégia?” (2003, p. 151) Este autor indica ainda que uma das maneiras mais
fecundas de utilizarmos a ideia de gênero seria justamente para confundi-lo, subvertê-lo,
como se quiséssemos salientar algo que em si e por si, apesar de uma marca, de um eixo, não
tem como ser determinante. 3
1
Departamento de Filosofia e Ciências Sociais – UNIRIO.
Afirma Buscombe: “Mas, se a teoria dos gêneros na literatura foi quase sempre restritiva e normativa, não há
necessidade de ser assim. Não é preciso erguer um ideal platônico, ao qual todos os exemplos individuais
tentem, em vão, aspirar”. (2005, p. 305)
3
Ele diz: “Talvez a forma mais proveitosa de utilizar o gênero seja entendê-lo como um conjunto de recursos
discursivos, uma ponte para a criatividade, através da qual um diretor pode elevar um gênero ‘baixo’,
vulgarizar um gênero ‘nobre’, revigorar um gênero exaurido, instilar um novo conteúdo progressista em um
2
LINHA MESTRA, N.23, AGO.DEZ.2013
252
DELEUZE ENTRE OS BEATS E O ROAD MOVIE: CONSIDERAÇÕES
Sendo assim, a crítica genérica se converteria numa espécie de “instrumento cognitivo
exploratório” (STAM, 2003, p. 151) algo como um pretexto inicial ou leitmotif para se ir
além e se buscar mais contornos conceituais, novos elementos descritivos.
Porém, de fato, os problemas relacionados ao gênero são variados. Stam aponta, em
particular, questões ligadas à extensão (por vezes, são rótulos excessivamente amplos ou
demasiado restritos, de modo que, em ambos os casos, pouco dizem), ao normativismo (como
se a categorização viesse antes do filme, predeterminando-o, e não houvesse espaço para o
inverso), ao seu possível estatuto monolítico (a cada película, um e somente um gênero), ao
biologismo ou essencialismo (como se a ideia de gênero fosse necessariamente fechada,
estável e rigorosamente universal). Por fim, os gêneros ainda podem se encontrar submersos,
ocultos, como se superficialmente manifestassem uma aparência típica de uma certa rubrica,
mas, mais profundamente, é uma outra que está em pauta. 4
É interessante, entretanto, verificarmos: embora contando com problemas patentes, a
percepção é que, talvez devido à sua tradição na história das ideias e em se tratando daquilo
que concerne às primeiras tábuas descritivas/classificatórias que tocam à literatura e ao teatro,
não nos impedimos de usar a noção, ao contrário. Usualmente, ela é transposta para as mais
distintas artes.
No contemporâneo, como não poderia deixar de ser, há uma tendência a se fragmentar a
ideia de gênero, multiplicando seus sentidos, pulverizando-a e diluindo de vez qualquer
expectativa de compreensão estritamente universalista, em função especialmente de aspectos
culturais. Autores como Sarah Berry-Flint e Rick Altman 5 avançam nesta via, buscando
destacar as relações entre produção industrial, texto fílmico e recepção das audiências, pondo
o foco de análise na circulação transcultural dos gêneros, valorizando os sentidos específicos
que podem ser levantados cultura a cultura.
Podemos lembrar do texto essencial de Bazin intitulado O Western ou o cinema
americano por excelência, em que ele se pergunta como populações variadas (árabes, hindus,
latinas, germânicas, anglo-saxônicas) podem confirmar o sucesso do faroeste, muito embora o
que aí esteja em jogo, renitentemente, sejam o nascimento e a consolidação dos Estados
Unidos. (1991, p. 200) Após alguma reflexão, ele imprime como resposta o fato de que se
trata sempre de uma ética basilar que é estampada à medida em que se busca ultrapassar as
adversidades entre homem e natureza, e que se reveste de uma economia de elementos
simples e fundamentais segundo os quais bem e mal são permanentemente confrontados. Ele
diz: “Não duvidemos, é essa grandeza ingênua que os homens mais simples de todos os
climas – e as crianças – reconhecem no western, apesar das línguas, das paisagens, dos
costumes e dos trajes. Pois os heróis épicos e trágicos são universais”. (1991, p. 207)
A perspectiva de Bazin veio publicada, pela primeira vez, em 1953. Ela segue como um
ponto de singularidade em nosso assunto, embora, após os trabalhos recentes de estética da
recepção e dos estudos culturais, seja quase inevitável que nos indaguemos quanto aos
sentidos específicos postos em ação em cada uma destas culturas particulares. Assim, ainda
que haja traços semelhantes, é provável que árabes, hindus, latinos, germânicos e anglosaxônicos não compreendam o faroeste exatamente do mesmo modo e, hoje, parte-se em
busca dessas diferenças, ou seja, das produções particulares de sentidos tendo em vista a
condição única de cada uma dessas culturas.
No que diz respeito aos road movies, gênero por sinal tido como descendente direto do
western, os apontamentos acima estabelecidos parecem se encaixar perfeitamente. Como
caracterizar o gênero road movie?
gênero conservador ou parodiar um gênero que mereça ser ridicularizado. Deslocamo-nos, desse modo, do
campo da taxonomia estática para o das operações ativas e transformadoras”. (2003, p. 151)
4
Para todas estas questões, cf. STAM, 2003, pp. 149-150.
5
No primeiro caso, cf. o texto Genre (1999) e, no segundo, cf. o texto Los géneros cinematográficos (2000, pp. 33-8).
LINHA MESTRA, N.23, AGO.DEZ.2013
253
DELEUZE ENTRE OS BEATS E O ROAD MOVIE: CONSIDERAÇÕES
2. A Literatura Beat e o Road Movie
Mais uma vez a menção precisa ser feita com base na literatura: uma das fontes
primárias do gênero é a obra On the Road, publicada pela primeira vez em 1957, escrita por
Jack Kerouac. Em meados do século XX, a América encontrava-se sob uma metamorfose
patente: questionavam-se caminhos de cultura e de civilização logo após o término da
segunda guerra mundial. Sob o prisma material, foi um momento pródigo, mas foi também
um momento no qual o conservadorismo e as morais autoritárias davam as cartas de maneira
indiscutível, o que configurava um establishment decisivamente retrógrado e conformista. A
guerra fria se alastrava e, internamente, a América vivia o macarthismo, situação em que os
direitos civis eram defenestrados. A novidade teria de vir dos subterrâneos, dos tecidos sociais
marginalizados que começariam a manifestar, gradualmente, um outro ar do tempo, uma nova
atmosfera. Havia, nas gerações mais novas, um certo cansaço motivado pelo alijamento
social, pelo puritanismo exacerbado de porções majoritárias da classe média crescente e das
classes altas. Ao mesmo tempo, a indústria crescia veementemente, as tecnologias e m geral
passavam a se renovar de maneira menos lenta, o consumo aumentava, as cidades iam se
apinhando em demasiado, a cultura de massas proliferava radicalmente e negros, mulheres,
imigrantes protestavam lutando por visibilidade e direitos.
Seguindo em nossa contextualização, o fato é que tais signos acabaram por forjar um
terreno propício à revisão de valores, em que pese sobretudo o desejo dos mais jovens de
encontrarem caminhos para se colocarem como atores sociais efetivos, mas para além dos
enquadramentos propostos pela moral transcendente, conservadora e patriarcal que lhes
sufocava. Era preciso escapar dessas determinações e garimpar bolsões atualizados de
oxigênio, onde quer que fosse o caso. Sentia-se sede de liberdade, de autonomia, de
autenticidade, vontade de se inventar e de inventar mundos.
Aliás, finalmente, percebiam-se de modo mais atento as múltiplas potências encerradas
no termo criação, que se disseminava. A contracultura estava nascendo. 6
A arte captou o instante efervescente e o ampliou. No caso da literatura, os pares se
encontravam e produziam: Kerouac, Ginsberg, Burroughs, Ferlinghetti, Corso... A geração beat,
cujos trabalhos e posturas ressoariam mundo afora, ficou assinalada especialmente pelo livro On
the Road, de Kerouac, pela primeira vez publicado em 1957. De outra parte, no cinema, um dos
efeitos mais consistentes da contracultura foi o delineamento do road movie. Na obra Driving
Visions: Exploring the Road Movie, David Laderman afirma: “A novela divisora de águas de
Kerouac pode ser compreendida, em retrospecto, como uma ‘narrativa mestra’ para o filme de
estrada, especialmente em sua característica versão modernista/rebelde que emerge no fim dos
anos 60”. (2002, p. 10, nossa tradução)7 Em película, o marco central costumeiramente apontado
para o gênero é mesmo Easy Rider (Dennis Hopper, 1969). 8
No livro citado, Laderman tenta cercar e definir o gênero em pauta seguindo ideias de
Edward Buscombe, exibindo aspectos ligados às formas externas (iconografia e estilo) e às
formas internas (assuntos e temas), que não deixam de se remeterem reciprocamente.9 No que
6
As principais referências para esta rápida contextualização são os ensaios de Penny Vlagopoulos,
Reescrevendo a América: a nação de ‘monstros subterrâneos’ de Kerouac, e de Joshua Kupetz, A linha reta só o
levará à morte: o manuscrito original e a teoria literária contemporânea, ambos presentes na edição brasileira
de On the road – o manuscrito original (2009, pp. 57-70 e pp. 83-93, respectivamente).
7
Eis o fragmento, no original: “Kerouac’s watershed novel can be understood, in retrospect, as a ‘master narrative’
for the road movie, especially the distinctive modernist/rebel version that emerges in the late 1960s”.
8
Cf. LADERMAN, 2002, p. 20. Cf. também SARGEANT and WATSON, 1999, p. 19 e p. 69.
9
Laderman usa a sistemática de Buscombe, sugerida no texto A ideia de gênero no cinema americano. Ele
cita: “Edward Buscombe sugere que o que distingue um gênero fílmico é ‘aquilo que realmente vemos na
tela’, ‘as convenções visuais’ que ‘fornecem uma estrutura dentro da qual a história pode ser contada’.
LINHA MESTRA, N.23, AGO.DEZ.2013
254
DELEUZE ENTRE OS BEATS E O ROAD MOVIE: CONSIDERAÇÕES
tange ao primeiro quesito, Laderman repertoria uma série de autores e vai colhendo as referências,
privilegiando aqui o lugar do visível: Corrigan (o carro como elemento fundamental e extensão do
corpo, corpo que se move assim mais rapidamente e que pode atravessar um percurso longo),
Daniel Lopez (a amplidão da estrada é o espaço no qual as ações centrais se desenrolam), Cohan e
Hark (as estradas representam um potencial positivo de liberação e risco, para além da
familiaridade do lar, seja em função de alguma excentricidade aparentemente absurda ou mesmo
como viagem planejada), Sargeant e Watson (presença de paisagens abertas e horizontes
sedutores, como os desertos, em especial). 10 Quanto ao segundo quesito, aquele relativo aos
conteúdos internos, Laderman retoma alguns dos autores indicados enumerando temas como: o
desafio à uniformidade da cultura; procura pela liberdade da estrada como fuga de um passado ou
simplesmente por sua força revigorante e libertadora, o distanciamento narrativo em relação ao
típico circuito início-meio-fim, articulação de uma interface entre homem e máquina, desejo de
escapar de uma América congestionada e confinada aos grandes centros, redescoberta da natureza
e de territórios imprevisíveis, além, claro, da rebelião cultural da juventude. (Cf. LADERMAN,
2002, pp. 17-20)
3. Problemas e Proposições
Repondo nossa discussão de ainda há pouco, notamos que, na tentativa de definição do
gênero acima apresentada, há uma valorização extrema da cultura norte- americana. Mas o que
dizer deste gênero em outros terrenos, em outros continentes? Para além do “hollywoodcentrismo” (STAM, 2003, p. 1500), como pensar as experiências cinematográficas possivelmente
ligadas aos filmes de estrada em outras culturas? Mesmo naquilo que diz respeito ao contexto
norte-americano, será que os contornos conceituais apontados não se mostram algo frouxos,
apelando em demasia para uma dialética entre forma e conteúdo, bem como para ângulos, ao fim
e ao cabo, muito ligados à ordem do visível e da empiria?
Uma das possíveis saídas para estas questões seria avançar mais profundamente pela
área de estudos culturais e buscar encaminhamentos de pesquisa relacionados a uma
perspectiva transcultural, como chegamos a indicar em páginas anteriores. Isso é sem dúvida
uma via fecunda e que pode resultar em trabalhos originais e esclarecedores. 11
De nossa parte, gostaríamos de propor um caminho alternativo, qual seja, o de buscar
pensar e reler algumas das considerações apontadas levando em conta a filosofia e, em
particular, a produção de um autor como Deleuze. O pensamento deste autor poderia intervir
aqui não apenas a partir de algumas linhas de força presentes em A Imagem-Tempo e A
Imagem-Movimento como também, e até mais especificamente, com base em sua análise
crítica e clínica de objetos culturais.
Referências
Livros e capítulos de livros
ALTMAN, R. Los Géneros Cinematográficos. Barcelona, Buenos Aires, México: Paidós,
2000.
Apontar esta ‘forma externa’ – setting, roupas, suportes, e outros elementos de cena – ajuda a especificar um
gênero fílmico particular; o nível da ‘forma interna’ ou do assunto, em contraste, pode ser compartilhado
entre vários gêneros. A segunda metade do ensaio de Buscombe reconhece como as formas externa e interna de
um gênero dado são interdependentes; meu debate, como o dele, concerne primeiro à forma externa, e então à
forma interna, para maior clareza”. (2002, p. 284)
10
Cf. LADERMAN, 2002, pp. 13-15.
11
Esta é a proposta de Samuel Paiva, conforme podemos averiguar em Dimensões transculturais dos gêneros
audiovisuais: argumentos para uma pesquisa sobre os filmes de estrada (2008), texto relevante para este trabalho.
LINHA MESTRA, N.23, AGO.DEZ.2013
255
DELEUZE ENTRE OS BEATS E O ROAD MOVIE: CONSIDERAÇÕES
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contemporânea do cinema: pós-estruturalismo e filosofia analítica, vol. 1. São Paulo: Senac,
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Pesquisa sobre os Filmes de Estrada. In: CONGRESSO DA COMPÓS. São Paulo: Unip,
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maio de 2010.
Obras audiovisuais
EASY RIDER. Dennis Hopper. EUA, 1969, filme 35 mm.
LINHA MESTRA, N.23, AGO.DEZ.2013
257
SESSÃO 15 – ENTRE AFETOS E ENCONTROS COM IMAGENS
POSSÍVEIS CONEXÕES PARA UMA APRENDIZAGEM AFETIVA NO
ENCONTRO ENTRE PINTURA E CINEMA
Marcus Novaes 1
Introdução
O presente trabalho busca problematizar a possibilidade de uma aprendizagem afetiva
no encontro com artes.
Para tanto, utilizaremos como intercessores alguns conceitos de Gilles Deleuze e
algumas de suas ressonâncias e dissonâncias às estéticas outras de vida em um possível
desmolde de subjetivações que nos possibilitem distanciar e fugir de transportes de
similitudes e comportamentos dados.
Encontraremos também como profícuo intercessor o curta-metragem, The Alphabet
(1968), de David Lynch, para pensarmos pintura, som e cinema em possíveis conexões com o
conceito de modulação, também pensado por Deleuze, em partes de suas aulas a respeito de
Pintura e Cinema, entre março de 1981 a junho de 1983.
Tentaremos apontar que este conceito, afastado do mero transporte de subjetividades e
maneiras de agir, poderia, quando pensado fora da categoria exclusiva de relações de
semelhanças e padronizações de comportamento, provocar-nos outras intensidades com as
quais não meramente agiríamos e reagiríamos pela significação e disposição dos estados de
coisas.
Para tanto pensaremos com Deleuze, a modulação conectada ao conceito de diagrama e
outras (des)organizações que poderiam se abrir em territórios aparentemente dados,
permitindo sentirmos e pensarmos diferentemente quando atacados por um encontro
intensivo, no caso, com a arte.
Poderíamos em um encontro com arte sermos afetados, momento em que nossos
sentimentos seriam balançados e um novo signo aparecesse e vibrasse, nos possibilitando
outras formas de sentir? Apostamos que uma aprendizagem seja possível ao sentirmos
afecções, nos afastando da ideia de que o afeto seja bom ou mal, este seria pré-linguístico,
pré-moral, pré-estético, pré-psicológico.
Entre modulações: pintura e cinema 2
Modulação
O conceito de modulação coloca-se bastante utilizado para pensar a passagem da
sociedade disciplinar para a sociedade de controle e as técnicas de subjetivação capitalista em
que a instituição mais forte seria o Marketing.
Deleuze distingue o molde e a modulação diferenciando estes conceitos e como se
implicariam nestas sociedades.
Os confinamentos são 'moldes', distintas moldagens, mas os controles são
uma 'modulação', como uma moldagem auto-deformante que mudasse
1
Mestrando em Educação na Universidade Estadual de Campinas, na linha de pesquisa Educação, Cultura e
Linguagens. E-mail: [email protected].
2
O texto contém várias notas de estudos a serem melhor trabalhadas e desenvolvidas.
LINHA MESTRA, N.23, AGO.DEZ.2013
258
POSSÍVEIS CONEXÕES PARA UMA APRENDIZAGEM AFETIVA NO ENCONTRO...
continuamente, a cada instante, ou como uma peneira cujas malhas
mudassem de um ponto a outro. (Deleuze, 2008, p. 221).
O conceito também é muito bem utilizado por Maurizio Lazzaratto (2006, p. 73) em que
o filósofo italiano, pensando as formas de ação do capitalismo na passagem para essa nova
sociedade e, conectando a modulação a vários modos de exercício do poder e da regulação a
distância, pela captação dos fluxos e desejos, principalmente pelo exercício da tecnologia, ao
investir na memória mental ao invés da memória corporal em que as instituições disciplinares
agiriam fortemente aponta que:
A sociedade de controle exerce seu poder graça às tecnologias de ação a
distância da imagem, do som e das informações, que funcionam como
máquinas de modular e cristalizar ondas, as vibrações eletromagnéticas
(rádio, televisão), ou máquinas de modular e cristalizar os pacotes de bits (os
computadores e as escalas numéricas). (Idem, p. 85).
Aceitando a relevância do conceito de modulação para formas de agir do poder na
sociedade de controle e efetuações nos estados de coisas, usaremos a potência desse conceito
em outra direção, já que nosso problema está na possibilidade da potência das imagens em
nossos encontros com arte.
Apostaremos na mobilidade do conceito em nos ajudar a pensar pintura e cinema, e
apontar diferenças no modo pelo qual a modulação trabalharia em meio a estes, como também
apontar possíveis encontros para pensarmos uma aprendizagem afetiva no encontro com arte,
possibilitando-nos a pensar o conceito de modulação mais afirmativamente em nossa
problemática.
Pintura – Música – e Imagem Cinematográfica
Deleuze nos cursos: A Pintura e as Questões dos Conceitos (1981), Cinema / Imagem e
Movimento (1981-82) e Cinema: uma Classificação dos Signos e do Tempo (1982-83) e nos
livros que resultaram de partes dessas aulas: Lógica das Sensações / Cinema 1: A ImagemMovimento / Cinema II A Imagem-Tempo, trabalha e desenvolve o conceito de modulação,
pensado por Gilbert Simondon, para pensar conexões às artes, notadamente, pintura e
cinemae, eventualmente, música.
Pintura
Em suas aulas sobre pintura Deleuze (2008) abordará alguns problemas pertinentes à
linguagem, dentre estes, as relações analógicas.
Dirá que estas relações não se reduzem a reproduções de transportes de semelhanças. A
analogia poderia passar por duas fases. 'Quando transportamos a similitude de uma relação,
reproduzimos semelhanças.' (Idem)
Dentre este primeiro tipo de analogia estaria a figuração, que seria uma analogia,
comum, o filósofo francês apontará que neste tipo de analogia há evidência do transporte de
semelhanças. Poderíamos pensar que este tipo de analogia pode estar atrelada a um
pensamento do marketing, da opinião? Uma produção de uma semelhança que tem por base
de relações de similitudes, em jogos de desejos estáveis?
Deleuze então apontará que a fotografia, mesmo em extremos, estaria localizada nesta
primeira forma de analogia. Com a fotografia seria difícil escapar de que esta transporta
relações de luz, mesmo que haja possibilidades extremas de variações e muitas criações
LINHA MESTRA, N.23, AGO.DEZ.2013
259
POSSÍVEIS CONEXÕES PARA UMA APRENDIZAGEM AFETIVA NO ENCONTRO...
possíveis. Mas enfatiza que sem transporte de luz, não há fotografia, não haveria como
superar o figurativo.
Destaca então que o figurativo não é visto como algo que se assemelha de algo, é
figurativo 'à medida que a imagem é produzida por um transporte de relação similar, por
similitude de relação, podendo ser relacionada como desejarmos'. (Ibidem) Fotografia tem sua
condição na analogia comum - transporte de similitude.
Deleuze (Ibidem, p.134) dirá que a analogia não se conforma com isso. Também se
pode produzir semelhança sem código e sem binarização dos dados. Há 'analogia que poderia
produzir semelhança independente de todo o transporte', 'independente de toda a similitude'.
Pensa então que este seria o caso da pintura.
Daí Deleuze sacará uma possível definição para pintura, como algo que produz
semelhanças independentes de todo o transporte de similitude. "A pintura produz a
semelhança e a Figura. Pintura produz semelhanças por meios não semelhantes.” Dá o
exemplo de que quando vemos um quadro de Van Gogh, ficamos em frente um ícone, mas
produzido por meios não semelhantes. Destacará que isso também é uma analogia.
Deleuze aponta que quando temos um código este é definido por articulação, 'articulem
e terão o código' - frisa que se não houvesse nenhuma transferência, nenhum transporte de
similitude o que veríamos não implicaria nenhum código.
Pensará então no diagrama e perguntará:
Qual é o ato do diagrama que se distingue da articulação e que não pode se
definir nem por transporte nem por similitude, nem por código, nem por
codificação? (Ibidem, p.143).
Perguntará ainda, o que seria todo este domínio do analógico?
Não é uma oposição simples entre articulação e modulação. Modulação são
valores de uma voz não articulada e há muitas mesclas entre elas. Deleuze dirá
então que a linguagem analógica se definirá por modulação. 'cada vez que há
modulação, tem linguagem analógica, e por tanto há diagrama.' O diagrama é
um modulador, o diagrama e a linguagem analógica são definidos
independentemente de toda a referência a similitude. (Ibidem, p. 143).
Assim, para Deleuze, todos os tipos de combinações são possíveis, de modo que
podemos articular fluxos de modulação'. Também 'pode-se injetar o modulatório e neste
momento injetarmos um código'. Às vezes é preciso passar por um código para dar à analogia
todo o seu desenvolvimento.
Trará a ideia de que a pintura talvez seja a mais alta arte analógica (não a melhor arte) e
que pintar é modular. Explorará depois que pintar é modular e o que se modula variará com o
problema do pintor. Às vezes se quer extrair luz, às vezes o problema trata de extrair cores,
mas a modulação se dará no manejo da tinta, do fundo e de quê e como extrair a figura.
De maneira muito simples se modula o portador ou meio, onda portadora ou medium em
função de um sinal. Lembra: 'Vivemos dentro de empresas de modulação. Se modula algo,
um meio em função de um sinal a transportar (modulação não é transporte de similitude).
'(Ibidem)
'Pintar é modular a luz ou a cor em função de uma superfície plana. E em função do
motivo ou do sinal que cumpre o papel de sinal.' Entre todas as pinturas produzo a
Semelhança por meios não semelhantes.
De que maneira a luz e a cor são objetos de modulação?
O diagrama seria a matriz da modulação. O diagrama é o modulador, assim como a
matriz é a matriz da articulação. Mas não há impossibilidade de se passar por uma fase de
LINHA MESTRA, N.23, AGO.DEZ.2013
260
POSSÍVEIS CONEXÕES PARA UMA APRENDIZAGEM AFETIVA NO ENCONTRO...
código se isto faz ganhar algo à modulação. Na pintura abstrata, acreditamos que no cinema
também, pode-se nessa operação, fazer ganhar algo novo do ponto de vista de uma linguagem
analógica, desde o ponto de vista da modulação da luz.
Cinema
Apontamos a diferença do conceito de modulação implicado em relação a uma analogia
complexa no caso da pintura e a diferença da analogia no caso da fotografia.
Como seria a modulação pensada no cinema e o que a difere fotografia de cinema?
Deleuze (2011, p. 461) apontará a fotografia como molde luminoso enquanto o cinema
seria uma modulação de luz, ou seja, um molde contínuo e variável da luz. Destacará que na
modulação pura, as condições de equilíbrio são alcançadas em um instante, como também
muda a cada instante 3.
Assim a imagem cinematográfica é uma imagem-movimento ou uma modulação de luz.
Deleuze diz que modular a luz, é não parar de extrair o movimento de seu móvel ou de seu
veículo. Então, é imagem-movimento em tanto que extrai movimento do seu móvel ou de seu
veículo. E é imagem-luz em tanto que modula a luz. Com essas duas imagens alcançaremos
imagens indiretas do tempo, segundo Deleuze. Não teríamos movimento sem luz e
transformação da luz, e não teria luz sem movimento. A modulação é uma mobilidade.
Deleuze ao desenvolver seu pensamento quanto à imagem-movimento, usa como
intercessor o filósofo Henri Bergson, apontando que talvez fora o filósofo que mais teria ido
longe ao pensar a matéria.
Nas aulas e nos livro sobre cinema Deleuze frisa que a imagem-movimento não se
reduz ao movimento extensivo, ela também se relaciona ao movimento intensivo e ao
sublime, enquanto quantidades.
Apontará o que corresponderia entre a imagem-movimento em seu lado intensivo, ao
que a matéria corresponde ao movimento extensivo, evidenciando que o segundo caráter da
imagem-movimento seria a luz. Imagem-movimento e imagem-luz, como duas caras da
mesma moeda.
Se o que nos interessa é a luz captamos nossa imagem-movimento não como imagemmovimento, mas sim como imagem-modulação, imagem-luz. A luz é o movimento intensivo.
E se é assim, tem uma natureza diferente do movimento extensivo. O movimento intensivo
tem graus, enquanto o movimento extensivo tem partes (um grau não é uma parte de
movimento). Esta segunda imagem do tempo é o tempo como composições de luz.
O movimento intensivo passará por graus (Ibidem, p. 470). Deleuze coloca que a luz
cai, mas isso não que dizer que despenque, pode permanecer em si (emanação), mas também
ascender. O que poderiam ser os graus de luz?
A estes, poder-se-á chamar de cores. As cores seriam os graus de luz. Não há intervalo
entre os dois graus, não podemos medi-la como unidade. Mas em tanto que quantidade
intensiva sempre pode cair por si mesma, ou seja, chegar a zero. Deleuze coloca que como
quantidade intensiva está em função de zero. Toda intensidade pode cair a zero, mas não tem
necessidade de cair a zero por ser uma intensidade. 'A luz cai em cima de nós' (Ibidem, p
.470), isto é a intensidade, não deixará de nos cair em cima.
Mas como Deleuze define uma intensidade e por que é uma quantidade? É uma
quantidade porque como toda quantidade é a unidade de uma intensidade. No caso da
extensão são parte sucessivas e a unidade é o agrupamento das partes no uno. (Ibidem, p.
471).
3
Seria interessante apontarmos aqui, o encontro de Deleuze com as artes e com o conceito de modulação de
Gilbert Simondon, em que Deleuze o utilizará para pensar alguns pontos com as artes, mais fortemente na
pintura e no cinema, embora use algumas vezes a música como intercessora.
LINHA MESTRA, N.23, AGO.DEZ.2013
261
POSSÍVEIS CONEXÕES PARA UMA APRENDIZAGEM AFETIVA NO ENCONTRO...
Em pintura e em cinema, nos parece forte a potência da modulação. Às vezes a pintura
busca retratar a vida, às vezes o cinema, em ambos aparenta vibrar o conceito de modulação.
Parece possível aproximar que tanto a pintura como o cinema correm o risco de cair no
figurativo ao tentarem representar a vida. Mas este caso pode nos parecer uma analogia
ordinária, uma analogia simples.
Acreditamos que pintura e cinema também possam apresentar outras possibilidades de
pensamento, que não o pensamento linear, que não o pensamento reflexionantes de
representações de modelos de vida. A pintura trataria de extrair as forças da Figura, o figural,
ao passo que o cinema pode nos fazer extrair uma outra imagem, uma imagem-tempo. Há,
contudo, um sério risco ao cinema tentar reproduzir pinturas, pode-se cair na análise de
estados de coisas e a meras reflexões sobre formas de pintar.
Outra alfabetização entre imagens
Pensaremos agora possibilidades de encontros entre artes, e o cinema parece conectar
diferentes modulações, sem que necessariamente sejamos territorializados em maneiras de
agir e reagir às informações apresentadas pelos dados que percebemos, pois às vezes nosso
cérebro, no encontro com algumas imagens precisa operar saltos em zonas que não
necessariamente nos leva a um reconhecimento imediato.
David Lynch, diretor americano, coloca que o cinema combina muitas formas diferentes
de arte. O diretor começou como pintor e a pintura o levou ao cinema. Diz que no cinema
temos que construir muitas coisas, ou ajudá-lo a construir. O cinema lida com muitas outras
áreas - música, fotografia. No curta-metragem The Alpahbet (1968), Lynch quis fazer um
filme pintando e não nega que Bacon é uma de suas grandes inspirações.
A nós parece que os efeitos modulatórios no encontro com as imagens de Lynch,
conectando a força desse conceito como apresentamos no trabalho, poderiam desorganizar
articulações demasiadamente semelhantes ao aceitarmos abrir mão de nosso reconhecimento
estético padrão e aceitarmos o convite para sonharmos e rompermos com o insuportável da
moldura rítmica e padronizada ao sentir as intensificações que dos gritos inarticulado da
imagem. Convidando-nos a pensar as forças pré-linguísticas e pré-moldadas de nossa
educação e talvez permitir que rompamos os códigos que nos forçam um determinado
assujeitamento. Uma intensificação tão grande que nos pode dar uma nova qualidade.
Parece que entre pinturas e sons apresentados na imagem-movimento também podemos
ter liberados agenciamentos desejantes que não nos estruturam sentimentos. Poderíamos
nessas oportunidades devolver a aprendizagem ao que lhe é de direito, paixões não
psicologizadas nos encontros com afetos sensíveis, que nos convidam a sentir diferentemente.
O código não parece ser um problema para a aprendizagem se retirado de uma
articulação
apenas
útil,
que
visa
produzir
padrões
de
semelhança.
Ao sermos afetados, e aqui apostamos nas forças das imagens para potencializar
aprendizagens, poderíamos perceber e sentir diferentemente e apostar na força diagramática
de outras apresentações estéticas no encontro com acontecimentos, além da percepção
comum.
Referências
DELEUZE. G. Conversações, 7ª reimpressão, São Paulo: Editora 34, 2007.
______. Cine I - Begson y Las Imagenes, 1ª ed. - Buenos Aires: Cactus, 2009.
______. Cine II - Los Signos del Movimiento y el Tiempo, 1ª ed. Buenos Aires: Cactus, 2011.
LINHA MESTRA, N.23, AGO.DEZ.2013
262
POSSÍVEIS CONEXÕES PARA UMA APRENDIZAGEM AFETIVA NO ENCONTRO...
______. Pintura - El concepto de diagrama. Buenos Aires: Editorial Cactus, 2007.
LAZZARATO, M. As Revoluções do Capitalismo, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006.
LINCH, D. Entrevista disponível em: <http://www.interviewmagazine.com/film/davidlynch/#>. Acesso em: 19 jun. 2013.
Filme
LYNCH, D. The Alphabet, 1968.
LINHA MESTRA, N.23, AGO.DEZ.2013
263
PERSONAGENS DESTERRITORIALIZADAS EM IMAGENS E TEMPOS
Pamela Sanches 1
“Cada vez que o reino do humano me parece
condenado ao peso, digo para mim mesmo que à
maneira de Perseu eu deveria voar para outro
espaço. Não se trata absolutamente de fuga para o
sonho (...) Quero dizer que preciso mudar de ponto
de observação, que preciso considerar sob uma outra
ótica (...)” 2
Ao longo da história, grande parte das obras cinematográficas foi focada em
personagens centrais, que tendem a agir e a reagir às coisas que lhes acontecem. Esse modelo
é rompido a partir da personagem apontada pelo filósofo Gilles Deleuze em seu livro “A
Imagem–Tempo”. Na análise desse tipo de cinema, Deleuze enfoca a quebra da ação, da
estrutura de causa e efeito e o surgimento de personagens que não têm seu destino traçado
mais pelo movimento, pela busca. Essa personagem parece materializar uma
desterritorialização que o cinema propõe ao apartar-se do real. Essa personagem
desterritorializada perde-se frente a uma realidade que não compreende e fica à deriva dos
acontecimentos, experimentando sensações e percepções que a conduzirão a caminhos
improváveis e indefinidos. É como se o autor e o diretor não tivessem mais controle sobre ela:
rompe-se com a sequência de ações e enredos pré-determinados. A personagem vaga e o filme
nos apresenta signos que se constroem a cada imagem, a cada som.
Essa fuga do esperado leva personagens e espectadores a estados de perda: todos ficam
apartados das regras, da previsibilidade do real, dos clichês da vida. Essa perda do esperado é
necessariamente violenta, mas produtiva:
“Assim como se é levado a pensar quando o pensamento sofre alguma espécie
de violência, é-se levado a buscar a verdade sob a pressão da inquietude. A
busca toma-se, assim, uma necessidade. Há sempre a violência de um signo que
nos força a procurar seu sentido, sua essência que nos rouba a paz.
Precisamente, o signo é o objeto do encontro, é ele que exerce a violência que
coage a interpretar, decifrar, traduzir seu sentido.” (Benedetti, 2007, p. 98)
O adensamento das reflexões sobre essa personagem e suas potencialidades nos leva a
possibilidades de discussões sobre como o cinema e pode originar conceitos e romper com a repetição.
Assim, a narrativa cinematográfica pode configurar-se como campo de imanência no qual os afectos e
perceptos estão especialmente relacionados às personagens que a compõem.
Deleuze, ao estudar o cinema, faz uma divisão entre cinema clássico e cinema moderno,
criando conceitos que caracterizam um e outro. No livro, “A imagem-movimento”, ele
destaca a maneira como o cinema clássico se estrutura, em uma relação que subordina o
tempo ao movimento, a uma série de percepções sensório-motoras, divididas em três tipos: a
imagem-percepção, imagem-afecção e imagem-ação.
A imagem-percepção guia o olhar do admirador da obra cinematográfica. Ela o faz de
uma forma subtrativa. Para entender essa reflexão, é necessário, antes, fazer outra: as coisas
do mundo possuem uma percepção própria; há em tudo uma “realidade coisal”. A imagemafecção evidencia as expressões faciais dos atores, ou seja, foca-se no close de rosto. Para
Deleuze, as reflexões acerca desse tipo de imagem são importantes porque o rosto humano
1
2
Doutoranda em Educação na Universidade Estadual de Campinas. E-mail: [email protected].
CALVINO, Ítalo. Seis propostas para o próximo milênio: lições americanas. São Paulo: Cia das Letras, 1990. p. 141.
LINHA MESTRA, N.23, AGO.DEZ.2013
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POSSÍVEIS CONEXÕES PARA UMA APRENDIZAGEM AFETIVA NO ENCONTRO...
expressa dois aspectos principais: pode ser reflexivo ou qualitativo; no primeiro ele revela o
pensar, no segundo o sentir.
O último tipo de imagem-movimento é a imagem-ação. Esta se foca no cinema da ação
e reação e é a que melhor poderá demonstrar como a temporalidade do cinema clássico se
diferencia do cinema moderno. Na imagem-ação:
(...) as qualidades e as potencias se atualizam ou se efetuam em um meio, isto é,
em estados de coisas em espaços-tempos determinados, geográficos, históricos,
sociais, e os afetos se encarnam em comportamentos, isto é, em ações que se
fazem passar de uma situação a outra, que respondem a uma situação para tentar
modificá-la. É o realismo do cinema, como relação de meios e comportamentos:
meios que atualizam, comportamentos que encarnam. A imagem-ação é a
relação variável entre os dois. (Machado, 2009, p. 265)
A imagem-ação necessita de espaços-tempos determinados, geográficos, históricos, sociais.
Ela se constitui a partir do comportamento humano que sempre responderá a algo. Dessa forma,
os filmes constituídos pela imagem-ação focam-se na ação da personagem, que é indispensável
nesse contexto e traça uma ordem, quase sempre cronológica para os acontecimentos. Assim, há
nessas obras um encadeamento sensório-motor, um enredo que se consolida a partir das ações e
reações das personagens, que reagem ao meio e são, por ele, determinadas.
“O meio atualiza várias qualidades e potências, fazendo com que elas se
tornem forças. Essas forças se encurvam, agem sobre o personagem, criando
uma situação na qual ele é tomado, então o personagem reage, respondendo
com uma ação a essa situação, e o resultado é uma nova situação, uma
situação modificada.” (Machado, 2009, p. 265)
Dessa maneira, na imagem-ação as personagens seguem desígnios marcados, obedecendo a
uma causalidade orientada pelo tempo determinado. Por isso, a estrutura linear do tempo, ou pelo
menos a clareza acerca do tempo de cada acontecimento apresentado, parece ser essencial para
garantir o entendimento desse tipo de filme. No entanto, quando esse tempo é quebrado, toda a
certeza em relação ao enredo se perde, e o caos toma conta de narrativas antes estruturadas. As
personagens não têm seu destino traçado mais pela causalidade.
Supongamos ahora un personaje que se encuentra en una situación (cotidiana
o extraordinaria) que desborda toda acción y que le impide reaccionar. Es
algo que tiene mucha fuerza, algo muy doloroso y también muy bello. El
vínculo sensomotor queda roto. Ya no estamos en una situación
sensomotora, sino en una situación óptica o sonora pura. Es outro tipo de
imagen. 3 (Deleuze, 1995, p. 85)
Nesse sentido, é possível destacar os filmes de Sofia Coppola: Lost in Translation
(2003; br: Encontros e Desencontros), Somewhere (2010; br: Um Lugar Qualquer).
Nesses filmes encontramos personagens perdidas em um mundo que não lhes pertence e
ao qual elas não pertencem. Videntes, observadoras, entregues a banalidade cotidiana quase
insuportável, elas nada buscam, nada tentam. Entregam-se às situações de claustrofobia nas
quais se encontram sem buscarem estratégias para tolerarem seu estado.
3
Suponhamos agora um personagem que se encontra em uma situação (cotidiana ou extraordinária) que
desborda toda ação e que o impede de reacionar. É algo que tem muita força, algo muito doloroso e também
muito belo. O vínculo sensomotor rasga-se. Já não estamos em uma situação sensomotora, a não ser em uma
situação ótica ou sonora pura. É outro tipo de imagem. [tradução minha]
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POSSÍVEIS CONEXÕES PARA UMA APRENDIZAGEM AFETIVA NO ENCONTRO...
As situações cotidianas e mesmo as situações limites não se assinalam por
algo raro ou extraordinário (...) Nós passamos bem perto de tudo isso, até
mesmo da morte, dos acidentes, em nossa vida corrente ou durante as férias.
Vemos sofremos, mais ou menos, uma poderosa organização da miséria e da
opressão. E justamente não nos faltam sistemas sensório-motores para
reconhecer tais coisas, suportá-las ou aprová-las, comportamo-nos como se
deve, levando em conta nossa situação, nossas capacidades, nossos gostos.
Temos esquemas para nos esquivarmos quando é desagradável demais, para
nos inspirar resignação quando é horrível demais, nos fazer assimilar quando
é belo demais. (Deleuze, 2007, p. 31)
As personagens de Sofia não pertencem a esses esquemas. Isso lhes confere certo
desajuste em relação ao mundo a sua volta. Tudo parece acelerado demais, estranho demais,
confuso demais para elas, que transmitem um sentimento de tédio e fadiga. A ausência de
estratégias para se enquadrarem a esse mundo ou para mudarem seu estado remete a uma
indiferença generalizada. Mas talvez não seja indiferença, e sim uma capacidade de ver as
coisas como elas realmente são. De entender que a busca por uma saída, normalmente,
configura-se como a busca por uma entrada, então, elas mantêm-se à parte da ação-reação,
são levadas pelas situações, configurando-se como videntes e não como agentes. Essa entrega
é a um só tempo “fantasma e constatação, crítica e compaixão” (Deleuze, 2007, p. 30), pois
rompe com o clichê composto por esses esquemas que mediam a situação, causando
resignação, assimilação, inspiração; que justificam o horror, ou a beleza, tornando-os
toleráveis e suportáveis. Isso porque os enquadram em modelos ideológicos, culturais e
psíquicos, não nos permitindo perceber “a coisa ou a imagem inteira,(...) apenas o que
estamos interessados em perceber” (Deleuze, 2007, p. 31).
Portanto, comumente, percebemos apenas clichês. Mas, se nossos esquemas
sensórios-motores se bloqueiam ou quebram, então pode aparecer outro tipo de
imagem: uma imagem ótico-sonora pura, a imagem inteira e sem metáfora, que
faz surgir a coisa em si mesma, literalmente, em seu excesso de horror ou de
beleza, em seu caráter radical ou injustificável, pois ela não tem mais de ser
“justificada”, como bem ou como mal... (Deleuze, 2007, p. 31)
Na obra de Sofia Coppola, a “coisa crua” ganha espaço. Não há metáforas, saídas,
entradas, entendimento. No filme Um lugar qualquer, Johnny Marco é um ator
hollywoodiano de sucesso, o que o condena à imobilidade emocional, familiar, pessoal e
mesmo profissional. Sua vida se reduz a cumprir os horários marcados por sua agente, gastar
dinheiro de forma inconsequente, e levar desconhecidas para a cama. Ele vive a maior parte
do tempo em um hotel (um não lugar absoluto?) e o filme mostra momentos em que ele
convive com a filha adolescente quando ela vai visitá-lo. Quando o encontro entre essas
personagens acontece, surge uma expectativa de que algo acontecerá, um conflito surgirá, a
vida de Marcos se transformará. Mas o que vemos é a história de um sujeito que gira em
círculos, aproveitando a potência do motor do próprio carro, que aparece iniciando o filme e
dando voltas e voltas que (não) levam a um lugar qualquer ou a lugar nenhum.
Encontros e Desencontros aborda alguns dias na vida de dois personagens em Tókio: Bob,
um amargurado e decadente ator de fitas de ação famosas no passado que vai até o Japão para
fazer alguns comerciais de bebida, e Charlotte, uma jovem que está acompanhando seu marido
fotógrafo. Eles se conhecem em um hotel – o mesmo não lugar de Somewhere – e nessa
desterritorialização, que não se dá apenas por estarem em um país estrangeiro, essas personagens
compartilham suas horas de insônia e sua solidão em meio às luzes vibrantes de uma cidade que
parece não dormir. Na verdade, percebemos que o maior deslocamento que essas pessoas sentem
ocorre quando estão interagindo com seus pares: para Charlotte o mundo de seu marido fotógrafo
LINHA MESTRA, N.23, AGO.DEZ.2013
266
POSSÍVEIS CONEXÕES PARA UMA APRENDIZAGEM AFETIVA NO ENCONTRO...
e a futilidade das modelos com quem ele trabalha faz ela sentir-se mais estrangeira que o próprio
Japão e suas peculiaridades; vemos isso acontecer também com Bob, quando ele conversa com a
esposa pelo telefone, que o questiona a respeito da decoração da casa.
Esses filmes de Sofia Coppola, que mostram cotidianos sem grandes conflitos, que não
se prendem ao encadeamento sensório-motor, banalizam a narrativa e chamam atenção para a
arquitetura precisa de pequenos momentos de intimidade; para a condensação do sensível; em
um talento raro de criar imagens que emanam, em sua composição gráfica e semântica, o
sentimento que as palavras não conseguem exprimir.
Essas personagens da imagem-tempo, perdidas em meio a sonsignos e opsignos
cristalizam suas percepções, seus sentimentos. Não buscam reagir por estratégias que lhe
permitam tolerar ou suportar o acontecimento, mas entregam-se a ele numa cristalização de
perceptos e afectos.
De repente as situações já não se prolongam em ação ou reação como exigia
a imagem movimento. São puras situações óticas e sonoras, nas quais a
personagem não sabe como responder, espaços desativados nos quais ela
deixa de sentir e agir, para partir para a fuga, a perambulação, o vaivém,
vagamente indiferente ao que lhe acontece, indecisa sobre o que é preciso
fazer. (Deleuze, 2007, p. 323-324)
Assim, aposta-se que esses filmes e suas personagens potencializam imagens
desterritorializadas, (des)cotidianizadas, que se distanciam de um mote interpretativo e
aproximam-se dos afectos e perceptos. Dessa forma, busca-se refletir: poderiam essas obras
configurar-se como linhas de fuga dos sistemas sensórios-motores que nos propõem um
modelo, que, para além de cinematográfico, é também um modelo para a própria vida?
Referências
BENEDETTI, Sandra Cristina Gorni. Entre a educação e o plano de pensamento de Deleuze
& Guattari: uma vida... Tese de doutorado. São Paulo: Faculdade de educação – USP, 2007.
DELEUZE, Gilles & GUATTARI, Félix. O que é filosofia? (tradução Bento Prado Jr. &
Alberto Alonso Muñoz). Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992. (Coleção TRANS)
DELEUZE, Gilles. A imagem-movimento. (tradução Stella Serna). São Paulo: Brasiliense, 1986.
______. A imagem-tempo. (tradução Eloisa de Araújo Ribeiro). São Paulo: Brasiliense,
2007. (Coleção Cinema 2)
______. Conversaciones. Trad. José Luis Pardo. Valencia: Pre-textos, 1995.
MACHADO, Roberto. Deleuze, a arte e a filosofia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2009.
Filmografia
ENCONTROS e desencontros. Direção: Sofia Coppola. Produção: Francis Ford Coppola.
Intérpretes: Scarlett Johansson, Bill Murray e outros. Roteiro: Sofia Coppola. Universal
Pictures, 2003. (101 min), son.
UM LUGAR qualquer. Direção: Sofia Coppola. Produção: Francis Ford Coppola.
Intérpretes: Stephen Dorff, Chris Pontius, Erin Wasson e outros. Roteiro: Sofia Coppola.
Universal Pictures, 2010. (97 min), son.
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267
TERRÀVISTA
Marcelo de Albuquerque Vaz Pupo 1
"A política é essencialmente estética, ou seja, está
fundada sobre o mundo sensível, assim como a
expressão artística. Por isso, um regime político só
pode ser democrático se incentivar a multiplicidade
de manifestações dentro da comunidade" 2
São experimentações imagéticas pautadas nessa compreensão que formam margens
reflexivas no fazer pesquisa em divulgação científica e cultural. A imagem, ao permitir
conexões não-lineares, oferece um artefato propositivo para lidar com as impermanências
conceituais, as nossas próprias - efetivando o aspecto propositivo - as da sociologia, da
antropologia, pedagogia e da própria agroecologia, confrontando o cerne paradigmático que
preconiza horizontalidade entre conhecimento acadêmico e não-acadêmico - uma modalidade
do ser consequente no reconhecimento da multiculturalidade comunitária? Faz compreender a
insuficiência institucional apenas constatar esta (nova?) ciência não reverberada - ou plena de
incômodo - por seu próprio corolário.
Essa concepção imagética fez-me compreender a peça chave que faltava para dar
sentido ao desejo de investigar a agroecologia e as movimentações cidade-campo - uma
materialidade que enfim condiz, congruência com o fim a que se destina. Afinal como tratar a
vigorosa promiscuidade entre centralidade popular da agroecologia e sua vertente acadêmica
sem prefixá-la com "trans": transdisciplinar, transformadora, transgressiva, transversal,
transverberada, transluzida de enredo científico que enseja outra abordagem teóricometodológica, uma particular existencialidade agroecológica que experimenta o enlace de
Félix Guattari (1990) entre o mundo subjetivo, mundo social e o mundo da natureza.
Há realidades (e identidades) sendo reeditadas e há comuns: imagens desconcertantes
tanto quanto ocupação de terra são movimentos - enquadres ou sociais - que cartografam no
real diferenciais concretos e abstratos, rearranjam e singularizam num contexto de símbolos e
ideias massificadas, desenriquecidas. Imagens desvinculantes e ação social transgressora
atribuem interferência ao real postulado (oficial ficção). E elas assustam. A conjura dos
falsários é vista como inimigo poderoso: À ruptura na ficção de Estado sobrevém a ideia de
uma força subversiva, relativizadora da razão instrumental; À potência do falso sobrevém a
vontade de verdade instaurando regimes de exclusão e supressão de discursividade desviante
(PELLEJERO, 2009). Nada de novo no front? É testemunha o escrivão da coroa portuguesa, a
lavrar postulação (no) real - contemporânea à decretação da capitania hereditária é a sumária
determinação que garantia à metrópole exclusividade de impressão e publicação textual,
reservando à colônia a severidade punitiva - mortal - de quem ousasse imprimir palavra
dissonante à realeza.
Há portanto dessintonias neste artefato propositivo (em processo de criação) quanto ao
tema e quanto à linguagem. O embate permanece e se dá sob o signo dos latifúndios, agrário e
aéreo, das ondas no ar, emissoras e suas (públicas) concessões. Que elementos inventivos
permitiriam compartilhar estes significados? que experimentassem amalgamar,
indistintamente, os atravessamentos que nos compõem, ciência, cidade, memória, arte,
1
Mestrando em Divulgação Científica e Cultural no Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo e no
Instituto de Estudos da Linguagem, da Universidade Estadual de Campinas. E-mail: [email protected].
2
Entrevista de Jacques Rancière a Revista Cult, encontrada no site http://revistacult.uol.com.br/home/2010/03/entrevistajacques-ranciere/, acesso em 15/junho/2013.
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268
TERRÀVISTA
registro, pesquisa... provocar as fronteiras, nossos reducionismos introjetados, nossa capitania
subserviente? E ainda assim que sejam política e esteticamente localizados?
As imagens que as chamadas agriculturas populares fazem proliferar - intencionalmente
ou não -, seus en-signos 3 talhados ao fogo da lembrança nas rotinas muito nossas, fagulhando
desde dentro pelo miolo do íntimo sem que apercebamos, memória recorrente, imorredoura.
Resta alguma sobriedade ou coragem pra rever e re-esculpir o tempo desvelando contramodernidades no risco de reincidir arcaicas lavouras? O que o sonho claro desse amanhã
forjaria na memória de futuro? É terno o retorno ao campo? O olhar que se lança sobre as
agriculturas populares acaba por enxergar o que? reciprocidade? colaboração? arcaísmo?
subversão? Acaba por se deparar com a herança tempo-espacial que nos reflete como um
espelho suspeito - enxergar o outro e desvelar-me...
Que potência existe no ato de recriar a unidade básica da vida social não por indivíduos,
mas por um duplo que se nomeia como "nós-eu" (RIBEIRO, 2005)? Esta visão parece indicar
amplos horizontes, preenchidos da atmosfera que revigora o fôlego da existência humana,
num desmergulho da realidade aparentemente imutável, chapada e lacrada.
Surge a pergunta "quem é o camponês?" pois soa-me como se perguntasse de mim
mesmo, "quem é o camponês-eu?". Esta personagem que geração após geração vem reexistindo como uma imanência da terra fértil; que vida ele-eu tem? que terra-território,
material e imaterial, ele fia e desfia, como quem, ao semear o chão pro fruto colher, refaz o
gesto de dez, doze, quinze mil anos? quem são estes seres que, fecundando a mãe- terra se
tornam, sem perceber, guardadores de rebanhos, sentinelas do amor?
Que territórios são esses, fundados sobre este modo de vida que se reinventa na
permanência? que tessituras esse modo de vida produz? O que na vida destes indivíduos
marca sua persistência, seu sertão? - "sertão é onde o pensamento da gente se forma mais
forte do que o poder do lugar" (GUIMARÃES ROSA, 2006). O que em suas vidas enreda o
aprendizado-cuidado com a terra, marcada por atos como colher, plantar, semear, podar, arar,
revolver, esperar, esperar? Muitas vezes a surpresa se apresenta à minha frente, prato de
comida sobre a mesa, e permito passagem às imagens que parecem narrar-me a estória dela,
contando-me do caminho até ali - mãos, vento, broto, brisa, carro, cavalo-caminhão, bicho,
sombra, gentes, mato, quitanda, supermercado, carrinho, meu prato. Linha desnovelada, numa
ponta o prato na outra o mato. Mas a sensação é de que este novelo não termina, sem fim,
talvez nem pontas ele tenha, e aí essas coisas todas da terra e do alimento inspirem mais a
ideia de fios dentro de fios, semente da semente - as sementes são como retratos condutores
de ancestralidades, de infinitos detalhes, mas se preenchem de uma consistência monstruosa
pois carregam em si o padrão de sempre: terra, germe, nasce, broto, planta, semente e gente.
Elas e nós somos uma verdadeira imagem fractalizada: condutores de ancestralidades e
infinitudes no mesmo retrato de múltiplas escalas - fractais camponeses, fractais do
pensamento mais forte que o lugar, fractais do sertão, em mim.
Impressiona ver em "Grande Sertão", de Guimarães Rosa (2006), uma leitura tão
vigorosa em sua proposta de nos arrebatar os sentidos quanto aos sentidos do lugar. Ao contar
de si, o ser-sertão Riobaldo, protagonista da estória, faz-nos visitar nossos próprios sertões;
saber o que somos em qualquer "onde" que estamos.
Que forma de agir e pensar é esta, destes sujeitos do campo, que resiste à morte da
memória e com ela persistida (pois intrínseca a eles e nós todos) reelabora o real, a práxis, a
vida (não só a deles, mas do conjunto)? Quais marcas nos fazem, quais são seus "en-signos" e
processos de aprendizagem? Das inúmeras imagens que desse corpus se sucedem, quais se
quer fazer emergir? aquelas que conotam ações contra-hegemônicas? que fazem propostas
3
Alik Wunder (2007) nos mostra que ensinar tem suas próprias marcas, deixa signos, tal qual a luz que sublinha
dizeres sobre os suportes sensíveis a ela. O trabalho com imagens ganha perguntas interessantes - que "ensignos"
queremos elaborar? que dimensões de nossas identidades gostaríamos de manter persistida?
LINHA MESTRA, N.23, AGO.DEZ.2013
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TERRÀVISTA
frente à crise? que identificam novas subjetividades no perene conflito de reinventar- se? que
emergem das mutações existenciais derivadas deste processo de recampesinização
(PETERSEN, 2009)? que cristalizam conscientemente interpretações das novas ruralidades do
campo? que expõem a metamorfose da (nossa-minha) memória imortal?
As imagens das agriculturas populares podem gestar um continuum no existir,
misterioso e fora do alcance da razão pura - impuras, contaminadas, despurificadas,
enriquecidas pelas emoções, sentidos corporais e incorporais, existires memoráveis e
imemoráveis.
Este "educandário" da agricultura popular engaja territorialidades que tencionam no
sentido de apontar fissuras cruciais da contemporaneidade. Em mim, este engajamento parece
projetar um fluxo, em contraponto às fixações arcaicas, à estagnação. Parece-me que o "dar a
existir" das agriculturas populares geram e regeneram universos de referência que pontuam
singularidades, distanciando-se da subjetividade normalizada.
Em contraposição ao "normalizado", Guattari (1990) monta o discurso da singularidade
de modo a desmontar os arranjos-chave da "sociedade capitalística" - desconstruir as
subjetividades que estão a serviço desta sociedade através da emersão de novos "universos de
referência" e "territórios existenciais".
A imagem, em sua potencialidade, delineia caminhos comunicativos livres da
inteligibilidade discursiva que limita. A interação de recorrência cotidiana com o mundo rural
nos une profunda e singularmente, o que alimenta o ente "camponês-eu". Voltar nosso olhar
desvelador para esta identidade talvez faça avançar a compreensão de que a confiança
recíproca deste duplo ser é um suporte fundamental do viver social. Parece haver aqui um
patrimônio exclusivo, e movimentá-lo pela imaginação seja algo valioso.
O trabalho com as imagens pode catalisar o entendimento da reciprocidade que une o
rural e o urbano, em muitos momentos marcada pela invisibilidade e intransponibilidade.
Quais poéticas políticas aqui se visualizam? Tal qual o anúncio do pássaro que canta "bem-tevi", bem vemos o que? o que está à vista? o que mal vejo? o que mal vejo, imagino? o que
está ao alcance da percepção imagética, da imaginação? A partir dos sujeitos que
protagonizam este encontro e de suas memórias (imortais), o processo criativo caminha pela
formulação de "Bem-te-vis imagéticos" destas movimentações.
Numa primeira experimentação buscou-se redigir "videofonograficamente" um discurso
que se apoia em algumas experiências pessoais, fruto de projetos de extensão, pesquisa e
atividades políticas autônomas. Ocupação de monoculturas, cotidiano de Assentamentos
rurais, entrevistas com agricultores fizeram parte do "repositório" utilizado na edição deste
videofonograma. São imagens e sons que localizam e dispersam, repetem-se de acordo com
as referências trazidas - palavras, gestos, entonações, coloração, timbres, tonalidades das
trajetórias de vida de camponeses com distinta origem geográfica e cultural, mas que têm pela
terra e pelo ato de interpretá-la uma intenção em comum. Se existe algum anseio em delimitar
um encadeamento entre imagens e sons, ele só se expressa nas polifonias dos atores ali
presentes, cujas falas e dizeres são portadoras de memória e estória pessoais, contextos
afetivos, mas que compõem, em conjunto, um único arco-íris sonoro - na intenção de terra, na
política de broto em flor que renasce e alimenta. Esta característica de inventar a terra e
misturá-la com vida parece ser algo universal, mas só o é na sincronia com o local - uma
"globalocalização", às avessas, que universaliza na diferença, e assim escapam a todo instante
do normativo e da massificação política e subjetiva, do discurso único
(VIDEOFONOGRAMA, 2012).
Não deixa de existir nessa proposta o risco das armadilhas que se pretende evitar. Ao
exercitar olhares sobre este encontro pode ser identificado algum ponto cego, algum
reducionismo marcante, uma insensibilidade tácita, um olhar embrutecido. Onde estamos
colonizados? onde nos minimalizamos e passamos a ser dominados? Certamente somos feito
LINHA MESTRA, N.23, AGO.DEZ.2013
270
TERRÀVISTA
do que nos indigna. Mas na síntese do eu-camponês, este trabalho pretende enxergar
"comunicabilidades" que permitam exatamente este auto-entendimento, este auto-olhar: ver
com os olhos, os olhos que se vê. Talvez seja a única maneira de vermos que mundo
construímos, que ilusões nos servem de alicerce. Percebido a partir deste encontro com o
outro, as limitações ganham a nuance do objeto que se quer transformar - "des-ausentá-las",
torná-las perceptíveis para alimentar o ciclo de nosso próprio devir.
Referências
GUATTARI, Félix. As Três Ecologias. Tradução: Maria Cristina F. Bittencourt. Editora
Papirus, Campinas, SP. 1990.
GUIMARÃES ROSA, João. Grande Sertão: Veredas. Rio de Janeiro: Ed. Nova Fronteira,
2006.
PELLEJERO, Eduardo. A Postulação da Realidade, filosofia, literatura, política. Edições
Vendaval, Lisboa, Portugal. 2009.
PETERSEN, Paulo (org.). Agricultura Familiar Camponesa na Construção do Futuro.
AS-PTA. 2009.
RIBEIRO, Ana Clara Torres. Outros territórios, outros mapas. OSAL : Observatorio Social
de América Latina. Ano 6 no. 16 (jun.). Buenos Aires: CLACSO, 2005.
VIDEOFONOGRAMA. Vídeo produzido por Marcelo Vaz Pupo a partir de pesquisas e
atividades em ocupações de terra e assentamentos rurais. Campinas, 2012. Disponível em:
http://vimeo.com/55544080. Acesso em: 20 jan. 2013.
WUNDER, Alik. Restos quase mortais: fotografia, acontecimento e escola. In: 31ª
Reunião Anual da ANPEd, Caxambu, 2007.
LINHA MESTRA, N.23, AGO.DEZ.2013
271
ARTE DE RUA E CONEXÕES
Juliana Aparecida Jonson Gonçalves 1
A cidade nua.
Sua superfície, seu relevo, rugas, verrugas, os edifícios,
veias, ruas, vielas e viadutos,
células, pedra, areia,
água
matéria, morte,
alma, vozes, cartazes, sons
seu fluído,
cidadãos.
De um escarro no chão, vê-se o verme da varredura no self-service
Do solado no chão ouve-se o cambalear, um mau-humor
Dor sofrida, que não pode ser vivida
anestesiada
mortadela
Que sadia minha vida
Vivida
Amada
Amargurada
Olhos vagueiam apaixonados pelas vitrines
Cheias de etiquetas
Olhos de vidraça.
Nada passa.
Constante
Emocionante.
“A cidade hoje não se compõe com o cidadão” -, de
qual cidade será que estão falando?
Esta é uma fala trágica, de afirmar que o cidadão não se comunica com a cidade e a
crítica de que estão os cidadãos subjugados pelo poder dos grandes monopólios. Quando acha
que pensa, logo existe como um número, como engrenagem do capital, seguindo hierarquias
opressoras, como de costume. O cidadão faz existir-se por uma lei, por um registro,
sobrevive, mas em seu cerne extensivo, vive transformações físicas, químicas, explosivas e
dinâmicas, assim como a consciência de conservar a si mesmo, se tomarmos como teoria a
Ética do filósofo Espinosa, sec. XVII, dialogante com esta pesquisa.
Há sempre o embate cidadão e cidade o qual fica visível em desvios marcados nos
gramados dos parques, alarmantes quando aqueles atravessam rodovias, angustiantes dentro
dos carros em congestionamentos quilométricos e até assustadores no encontro com outro
cidadão ao entrar no metrô.
São encontros em que os graus de potência irão sempre variar: um pneu que fura por
causa do buraco, um barraco que cai, uma ponte incendiada, um odor alastrante, uma briga no
1
Doutoranda em Educação, UNICAMP. Mestre pela Faculdade de Educação, UNICAMP. Graduada em
Arquitetura e Urbanismo pela UNESP-Bauru. R. Nair Pimenta da Silva, 905. Residencial Terra Nova. CEP:
13082-690. Campinas – SP – (19) 99821-5434 – [email protected]
LINHA MESTRA, N.23, AGO.DEZ.2013
272
ARTE DE RUA E CONEXÕES
bar, uma educação que se ausenta. Várias passarelas, linhas de metrô, festas, andar por
calçadas de ruas escuras, fazer jejum, e não, passar fome.
Para o dualismo que perpetua, e despotencializa, encobrindo o mal com o bem através
da transcendência, obediência, servidão e culpa, o que se sugere com os estudos espinosistas é
o embate com os corpos, colocados em choque para atravessar, ouvir, sentir, enxergar; assim
como, entre tantas, se diz na arquitetura: observar o entorno. E ainda, por referências que o
próprio cidadão produz:
“Dizem que quem quer segue o caminho certo,
Ele se espelha em quem tá mais perto.
Pelo reflexo do vidro ele vê,
Seu sonho no chão se retorcer.
Ninguém liga pro moleque tendo um ataque,
‘Foda-se, quem morrer dessa porra de crack’
Relacione os fatos com seu sonho,
Poderia ser eu no seu lugar.
Das duas uma, eu não quero desandar,
Por aqueles manos que trouxeram essa porra pra cá.
Matando os outros, em troca de dinheiro e fama,
Grana suja, como vem, vai, não me engana.
Queria que Deus ouvisse a minha voz,
E transformasse aqui num Mundo Mágico de Oz.” ( Rock, 1998)
Quando Edi Rock enfatiza que foram “aqueles” que trouxeram “essa porra”, referindose ao crack, isso sugere que as coisas não surgem do nada, nem pelo acaso, nem por Deus,
sendo estes versos de um rap, um bom exemplo de semelhança, ao como a filosofia
espinosista demonstra na Ética o modo imanente que se compõe a vida.
“Em suma: se somos espinosistas, não definiremos algo nem por sua forma,
nem por seus órgãos e suas funções, nem como substância ou como sujeito.
Tomando emprestados termos da Idade Média, ou então, da geografia, nós o
definiremos por longitude e latitude. Um corpo pode ser qualquer coisa,
pode ser um animal, pode ser um corpo sonoro, pode ser uma alma ou uma
ideia, pode ser um corpus linguístico, pode ser um corpo social, uma
coletividade. Entendemos por longitude de um corpo qualquer conjunto das
relações de velocidade e de lentidão, de repouso e de movimento, entre
partículas que o compõem desse ponto de vista, isto é, entre elementos não
formados. Entendemos por latitude o conjunto dos afetos que preenchem um
corpo a cada momento, isto é, os estados intensivos de uma força anônima
(força de existir, poder de ser afetado). Estabelecemos assim a cartografia de
um corpo. O conjunto das longitudes e das latitudes constitui a Natureza, o
plano de imanência ou de consistência, sempre variável, e que não cessa de
ser remanejado, composto, recomposto, pelo indivíduos e pelas
coletividades. ” (DELEUZE, 2002, p.132-133)
Assim, na imanência da cidade, onde surgem os encontros que potencializam ou
despontencializam os corpos, em se tratando do cidadão, essas afecções transformam-se em
afetos alegres ou tristes, respectivamente, conforme ao grau de potência que aumenta ou
diminui, se compõe ou decompõe no encontro.
Destes encontros infindos no espaço finito de uma cidade, se clamam pelas portas do
escape e uma delas, a arte, vem se expondo nas ruas de diversas formas como poesias
imagéticas, cores e palavras se difundem, compondo com as ideias do cidadão.
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ARTE DE RUA E CONEXÕES
Seus interstícios, suas vagas, vazios, a arte traz a imagem que cria o embate com o
medo escuso, quer dispersá-lo, distanciá-lo e quer enfrentar os obstáculos que impedem sua
liberdade de criação. Quer recriar-se.
Neste recriar-se das manifestações artísticas pelas cidades vão se espalhando e
despertando ao mesmo tempo no cidadão o desejo de manifestar a fuga da prisão, da angustia,
daquilo que precisa ser abandonado. Portanto, essas artes que se imprimem nos muros, no alto
de edifícios, nos viadutos são fortalecedoras para o cidadão e transeunte, logo, para se pensar
a cidade.
A arte das ruas é potente à ação quando esta faz pensar o cidadão sobre o espaço que ele
percorre. Não exatamente ali no lugar onde ele foi pintado. A intervenção de um artista
urbano tem a potência de alastrar-se aos cantos da cidade mais abandonados e manchar os
lugares mais privilegiados, contradizer espaços e atitudes, confusões como causam os
sentimentos, mas que os conhecendo melhor e mais, traçam-se caminhos livres e vitais à
cidade.
A cola e a tinta se fixam, na imaginação ficam e proliferam.
“Efetivamente, quando encontramos um corpo que convém com o nosso,
experimentamos logo um afeto ou um sentimento-paixão, apesar de ainda
não conhecermos adequadamente o que tem de comum conosco. Jamais a
tristeza, que nasce do nosso encontro com um corpo que não convém com o
nosso, nos induziria a formar uma noção comum; mas a alegria-paixão,
como aumento da potência de agir e de compreender, induz-nos a fazê-lo: é
a causa ocasional de noção comum. Eis por que a razão se define de duas
maneiras que demonstram que o homem não nasce razoável, mas mostra
como ele vem a sê-lo: 1º) um esforço para selecionar e organizar os bons
encontros, a saber, os encontros dos modos que se compõem conosco, e
inspira-nos paixões alegres (sentimentos que convêm com a razão); 2º) a
percepção e a compreensão das noções comuns, isto é, das relações que
entram nessa composição, de onde se deduzem outras relações (raciocínio) e
a partir das quais se experimentam novos sentimentos, desta vez ativos
(sentimentos que nascem da razão).” (DELEUZE, 2002, p.99-100)
Diante da proliferação de tanto poder opressor, de tanta culpa inventada, combater a
estes corpos que despontencializam uma cidade à sua própria criação, o cidadão artista tem o
papel importante de pintar e pintar novamente sobre a repressão de seu manifesto para que um
dia se elucide a fluidez, característica que é própria das cidades criativas.
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ARTE DE RUA E CONEXÕES
Figura 1: Grafite de Os Gêmeos, São Paulo.
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ARTE DE RUA E CONEXÕES
Referências
DELEUZE, Gilles. Espinosa: filosofia prática. São Paulo: Escuta, 2002.
ROCK, Edi. Mágico de Oz. In Álbum: Sobrevivendo no inferno – Racionais MC’s. São
Paulo: Cosa Nostra, 1998.
http://revistapolichinelo.blogspot.com.br/2013/07/michel-foucault-gilles-deleuze-e-sempre.html
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SESSÃO 16 – SUBJETIVIDADE E IDENTIDADE: LINHAS DURAS, LINHAS
DE FLEXÍVEIS E LINHAS DE FUGA NO CONTEMPORÂNEO
PRODUÇÃO DE SUBJETIVIDADES CONTEMPORÂNEAS E A INDÚSTRIA
FARMACOLÓGICA
Izabela Orlandi Môro 1
Carolina Pimentel Batitucci
Fernanda Negri Smith
Luana Moura Garcia
Nathália Nunes Pirola
No âmbito da indústria farmacológica, Rolnik (1997) inclui pelo menos três tipos de
drogas: os medicamentos psiquiátricos, as vitaminas que prometem uma saúde ilimitada e os
produtos do narcotráfico. Assim, elas serão aqui analisadas, como proposto pela autora, por
serem instrumentos utilizados para sustentar uma ilusão de identidade, não estando em
questão os benefícios ou malefícios trazidos pelo avanço da indústria farmacológica ao longo
dos anos.
Primeiramente, uma breve exposição do surgimento e do desenvolvimento dessa
indústria se faz necessária para a proposta de análise da sua utilização como tecnologia
identitária no contemporâneo.
No século XIX, com a invenção do microscópio acromático, Louis Pasteur descobriu
que grande parte das doenças é causada por bactérias. Para Foucault (1979a) essa descoberta
permitiu que “o hospital se tornasse um lugar de observação, de diagnóstico, de localização
clínica e experimental, mas também de intervenção imediata, ataque voltado para a invasão
microbiana” (p.119). Em um momento anterior, as doenças eram tratadas na eclosão de sua
crise, sendo o hospital um local favorável para o acontecimento da doença e sendo o médico o
“produtor da doença na sua verdade”. Assim, após Pasteur, “a doença não se efetua numa
crise. Reduz-se seu processo a um mecanismo que pode ser aumentado, e se a coloca como
fenômeno verificável e controlável.” (FOUCAULT, 1979a, p. 119).
Pasteur também realizou a descoberta de propriedades bactericidas presentes no
cogumelo Penicillium notation, possibilitando a futura síntese de penicilina por Alexander
Fleming (PEREIRA & PITA, 2005). Nesse sentido, o desenvolvimento da indústria
farmacêutica moderna também teve início no século XIX com a produção em massa de
compostos químicos como a morfina, a quinina, a nicotina e cocaína. O auge de seu
desenvolvimento ocorreu, no entanto, durante e após a Segunda Guerra Mundial, com o
descobrimento da penicilina, o que permitiu a comercialização de uma enorme variedade de
antibióticos (CALIMAN, 2012; PEREIRA & PITA, 2005). Portanto, foi através desses
processos na história da medicina que os medicamentos foram assumindo um papel tão forte
na nossa sociedade, sendo utilizados frequentemente no contemporâneo como tratamento de
problemas do dia-a-dia dos indivíduos.
Vale ressaltar que no fenômeno atual do uso de medicamentos, os psicofármacos, na
medida em que se destinam frequentemente a atuar em situações da vida cotidiana, como as
emoções e a sexualidade, têm ganhado uma enorme relevância (HERNÁEZ, 2010). Nos
Estados Unidos, por exemplo, 25% da população adulta faz uso de algum psicofármaco
(JENKINS, 2010). Já no Brasil, essa presença tão forte dos psicofármacos pode ser observada
tomando como exemplo o metilfenidato, psicoestimulante indicado para o tratamento do
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PRODUÇÃO DE SUBJETIVIDADES CONTEMPORÂNEAS E A INDÚSTRIA FARMACOLÓGICA
Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade - TDAH. Segundo dados do IDUM –
Instituto de Defesa de Usuários de Medicamentos (2010 apud Conselho Federal de
Psicologia, 2011-13, p.07) houve um aumento de 71.000 caixas vendidas em 2000 para
2.000.000 de caixas em 2010, sendo o Brasil o segundo maior consumidor mundial de
metilfenidato.
Desse modo, a grande difusão da prática do consumo de medicamentos na nossa
sociedade pode ser citada como um primeiro motivo que leva a indústria farmacológica a ser
considerada uma das principais forças que atravessam a constituição da subjetividade no
contemporâneo (HERNÁEZ, 2010).
Consideramos a subjetividade, neste trabalho, partindo da perspectiva de Foucault
(1979b), Deleuze e Guattari (2010), como sendo um processo de produção múltipla, um efeito
de agenciamentos. Acreditamos que a subjetividade se transforma a cada momento, é flexível
e sem forma fixa, é uma constante modificação dos indivíduos através de suas relações e de
seus afetos. A subjetividade é potente de criação: não cabe em fôrmas.
Assim, Deleuze, frente a uma ideia de Sujeito essencializado, dotado de uma
identidade unitária, privada, estável e fixa, ajuda-nos a pensar num território
povoado de singularidades pré-individuais: intensidades, profundidades,
movimentos, sujeitos larvares... A geração de “subjetividades” não consiste
na demarcação dos limites de um eu, enclausurado e interior, mas na ideia de
que ele é o efeito de uma função ou operação que sempre se produz na
exterioridade desse eu. O sujeito já não é uma unidade-identidade, mas
envoltura, pele, fronteira: sua interioridade transborda em contato com o
exterior (JARDIM, 2004, p.04)
Desse modo, junto com Deleuze, não podemos considerar a existência reduzida a uma
identidade pessoal. Assim, as técnicas de avaliação e de classificação dos indivíduos, de
generalização, comparação e normatização de comportamentos iriam na contramão da
subjetividade que propomos e acreditamos. Apesar disso, essas técnicas foram se
desenvolvendo e ganhando cada vez mais força e, assim, foram levando à consolidação de
práticas de normalização e de individualização disciplinar que produzem e cristalizam
supostas identidades (FILHO, 2010). Ressaltamos aqui, então, a força que a busca/obrigação
identitária possui no contemporâneo, podendo levar ao extremo a produção desejante pelas
formas identitárias e a consequente sustentação de uma ilusão de identidade.
Nesse sentido podemos falar do que Ortega (2003) denominou de biossociabilidades e
bioidentidades.
a noção de biossociabilidades visa descrever e analisar as novas formas de
sociabilidade surgidas da interação do capital com as biotecnologias e a
medicina. A biossociabilidade é uma forma de sociabilidade apolítica
constituída por grupos de interesses privados [...] reunidos [...] segundo
critérios de saúde, performances corporais, doenças especificas, longevidade,
etc. (p.63).
Já as bioidentidades são construídas pela ênfase dada ao procedimento de cuidado com
o corpo na atualidade, ou seja, se dão através das práticas de bioascese (ORTEGA, 2003).
Segundo o autor,
As práticas ascéticas implicam em processos de subjetivação. As modernas
asceses corporais, as bioasceses, reproduzem no foco subjetivo as regras da
biossociabilidades, enfatizando-se os procedimentos de cuidados corporais,
LINHA MESTRA, N.23, AGO.DEZ.2013
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PRODUÇÃO DE SUBJETIVIDADES CONTEMPORÂNEAS E A INDÚSTRIA FARMACOLÓGICA
médicos, higiênicos e estéticos na constituição das identidades pessoais, das
bioidentidades. (p.64).
Na mesma direção, Hacking (2006) citado por Caponi (2010) trata os diagnósticos como
uma forma particular de classificação que é responsável pela produção de um determinado tipo de
comportamento definido como característico de certa doença. Assim, a produção e a reprodução
desse comportamento pelos indivíduos diagnosticados podem, por sua vez, confirmar ou não o
diagnóstico. Caponi (2010) segue na mesma direção, afirmando que
As classificações humanas geram efeitos nos sujeitos: cada classificação,
cada diagnóstico, cada tipificação de pessoas, implica uma mudança no
modo como agimos, como expressamos nossas emoções e sentimentos, no
modo, enfim, de nos construirmos como sujeitos. (p.140)
Esse processo, então, tem grande potencial de modelação dos indivíduos e
enquadramento em certas formas estabelecidas, interferindo de forma a fixar supostas
identidades e produzir tipos de subjetividade adequados às descrições dos diagnósticos
psiquiátricos (HACKING, 2006, citado por CAPONI, 2010).
Assim, os biodiagnósticos podem se tornar, nesse contexto, alvo de desejo pelas
pessoas, na medida em que eles participam da sustentação de uma ilusão de identidade e da
construção de novas sociabilidades no contemporâneo. Ou seja, apesar de possuírem uma face
que controla e classifica, os diagnósticos também são entidades desejadas, visto que
possibilitam aos sujeitos uma nova forma de constituição de uma suposta identidade
(CALIMAN, 2011). Consideramos, portanto, que há um predomínio de linhas duras no
encontro com o processo da utilização da indústria farmacológica como forma que intensifica
a produção desejante pelas formas identitárias no contemporâneo.
Cabe observar ainda que o encontro com o medicamento e/ou com o diagnóstico pode
ocorrer de várias formas para cada sujeito e em cada contexto, podendo os efeitos desse
encontro serem muito variados. Alguns exemplos vão desde a ingestão de um remédio para
por fim a uma dor de cabeça ou de algum incômodo físico, para alcançar padrões estéticos
como no caso dos remédios para emagrecer ou dos suplementos oferecidos nas academias,
para conseguir dormir, para melhorar o desempenho sexual, físico ou intelectual, para fins
recreacionais, ou os suplementes de vitaminas e minerais “de A a Zinco” que prometem uma
saúde ilimitada, passando pelo tratamento de doenças como câncer e diabetes até o
recebimento de um diagnóstico psiquiátrico.
Este último, por se relacionar fortemente com o comportamento dos indivíduos e por,
muitas vezes, ter seu tratamento medicamentoso considerado como um alívio do sofrimento
psíquico, pode levar a construção de uma relação identitária muito forte por parte dos sujeitos
diagnosticados. O desejo pela identificação com um diagnóstico psiquiátrico, muitas vezes,
pode servir para aliviar o peso da culpa de não atender aos padrões impostos na
contemporaneidade, como da pressão social por desempenho, etc., mas traz a consequência de
colocar, também, o peso de ser “doente mental” sobre o indivíduo.
Além disso, grande parte dos transtornos psiquiátricos é considerada sem cura, o que
contribui para a cristalização destes diagnósticos em supostas identidades fixas a longo prazo,
de difícil dissolução. Outro fator que torna os biodiagnósticos alvos de desejo é o seu poder
de possibilitar ao sujeito diagnosticado o acesso a todo um sistema de direitos (CALIMAN,
2011). Os indivíduos diagnosticados com TDAH, por exemplo, conseguiram o direito de ter
um atendimento diferenciado durante a realização da prova do Exame Nacional do Ensino
Médio, o ENEM de 2012 (INEP, 2012).
Outra face da indústria farmacológica presente na busca pelas formas identitárias seria a
dos produtos do narcotráfico, representados aqui pelas substâncias psicoativas tais como
LINHA MESTRA, N.23, AGO.DEZ.2013
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PRODUÇÃO DE SUBJETIVIDADES CONTEMPORÂNEAS E A INDÚSTRIA FARMACOLÓGICA
cocaína, crack, LSD, heroína etc., que “atuam não apenas somaticamente, mas que também
provocam as nossas emoções, alterando nossos estágios de consciência.” (ROSA, 2010, p.27).
Uma particularidade dessas substâncias é a existência de leis que proíbem o seu
consumo em muitos locais, inclusive no Brasil. Assim, uma diferença entre elas e os fármacos
analisados anteriormente seria a ilegalidade de seu uso, fato que “legitima a diferença entre o
bem e o mal ao declarar ilegal apenas as condutas que sejam referentes àquelas drogas
definidas por esse mesmo discurso como ilegais.” (ROSA, 2010, p.28).
É importante dar relevo à coexistência de duas faces relacionadas a essas substâncias:
por um lado, a discriminação, a culpabilização a esteriotipação e a medicalização de seus
usuários e, por outro lado, o fascínio que elas exercem em alguns indivíduos, levando-os,
muitas vezes, a consumi-las para sustentar uma ilusão de identidade. Segundo Rosa (2010)
O discurso dos meios de comunicação apresenta o usuário de drogas como o
"drogado" sempre jovem, criando o estereótipo cultural. Qualifica este
sujeito de viciado e ocioso, e a droga como prazer proibido, veneno da alma
ou flagelo, difundindo também o estereótipo moral que tem sua origem não
apenas no discurso dos meios de comunicação, mas também no discurso
jurídico (produto da difusão do modelo ético-jurídico). (p.28).
No seguinte relato de Christiane F. (1982), uma mulher alemã que aos 13 anos começou
a fazer uso de drogas, se tornando dependente química e prostituta, observamos claramente a
utilização de substâncias psicoativas como forma de assumir uma identidade e pertencer a um
grupo: “Minha família era a turma. (...) Depois da minha viagem sentia-me igualzinha aos
outros. (...) Passei a ver as coisas e as pessoas de uma maneira totalmente diferente.
Reencontrei a natureza.” (p.60-61).
A busca por uma forma identitária, entretanto, não é o único fator que se faz presente no
consumo dessas substâncias, sendo ele atravessado por diversas outras produções desejantes e
por outras forças que o motivam e o compõem e que podem ser diferentes para cada sujeito.
De acordo com Pratta e Santos (2006), “torna-se importante ressaltar que não são pequenos
motivos, ou uma única causa isolada, que levam o indivíduo a utilizar algum tipo de
substância psicoativa” (p.03).
Entre tais forças motivadoras podemos citar: a desigualdade social; a vontade de
contravenção e rebeldia; a necessidade de não se sentir deslocado e de ser aceito em um grupo
de amigos; a utilização como alívio psíquico e como forma de escape dos problemas, o uso
recreacional, etc. Vale ressaltar, porém, que não acreditamos existir motivos específicos que
necessariamente determinam o uso de substâncias psicoativas, sendo o nosso objetivo, ao
contrário, destacar a multiplicidade de forças que perpassam a vida dos sujeitos.
Assim, também encontramos no relato de Christiane F. (1982) a necessidade de escapar
de seus problemas através das drogas e a consequente intensificação de sua identificação com
os outros usuários: “Tinha necessidade de estar um pouco embalada, um pouco voando. Eu
tinha esta vontade para escapar de toda esta merda, merda na escola e merda em casa. (...) Até
fisicamente eu mudei muito. Eu me assemelhava cada vez mais ao resto da turma.” (p.51).
Além disso, as formas de uso dos produtos do narcotráfico também assumem diversas
variações, como a forma pela qual o sujeito obtém a droga, em que ambientes ele faz uso, em
que quantidade, em que frequência, com quais pessoas ele os utiliza, etc. Assim, a
combinação destes diferentes elementos operam diversos modos possíveis de se usar de
drogas, podendo levar a movimentos identitários mais ou menos rígidos. Um exemplo bem
claro é a diferença existente entre os usuários, que são normalmente classificados em usuários
recreacionais ou em dependentes químicos. Estes últimos são aqueles usuários incapazes de
cessar o abuso das drogas e que, inclusive, podem vir a receber o diagnóstico de dependentes
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PRODUÇÃO DE SUBJETIVIDADES CONTEMPORÂNEAS E A INDÚSTRIA FARMACOLÓGICA
químicos, que pode ter como consequência o tratamento medicamentoso ou até mesmo a
internação, e potencialmente a cristalização desses sujeitos em uma classificação identitária.
Por fim, destacamos que a ênfase dada ao consumo das drogas da indústria
farmacológica nesse trabalho está relacionada à afirmação do seu caráter como uma
tecnologia que atua potencializando a afirmação e a cristalização de uma suposta identidade
nos indivíduos na contemporaneidade. Assim, os seus desdobramentos sociais, políticos,
econômicos e pessoais, apesar de possuírem grande importância, não são o foco da nossa
análise.
Referências
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TECNOLOGIAS DIET/LIGHT
Carolina Pimentel Batitucci 1
Izabela Orlandi Môro
Fernanda Negri Smith
Luana Moura Garcia
Nathália Nunes Pirola
Segundo Rolnik (1997) as drogas oferecidas pelas tecnologias diet/light também são
alternativas encontradas para a purificação orgânica e conquista de um corpo desejado,
minimalista e maximamente flexível. É o corpo top model, fundo neutro em branco e preto no
qual se vestiriam diferentes identidades prontas.
De acordo com Deleuze (1953) “Se a natureza é o princípio da semelhança e da
uniformidade, a história é o lugar das diferenças. A tendência é geral; ela não explica o
particular, por mais que ela encontre nesse particular a forma de sua satisfação.” (p.32)
Nesse sentido, assumir um “natural” é alternativa para atribuir aos sujeitos
características individualizadas, autônomas e racionais, construindo assim uma fôrma, um
“eu”. Enquanto a história, por sua vez, encontra o caminho contrario, mostrando a
multiplicidade de possibilidade; de construção, que ao mesmo tempo, se encontra em
constante transformação. As coisas nem sempre foram da maneira tal como se apresentam
atualmente, estando sempre em transformação no tempo/espaço.
Desta maneira, entender o processo histórico em que se deu a transformação dos padrões
de beleza ajudaria a compreender como, de certa forma, a tendência geral (do corpo magro e alto)
valorizada atualmente, contribui para processos de estigmatização e enquadramento das
identidades contemporâneas. Desnaturalizar os objetivos é, de certa forma, entender que nada
“sempre existiu”, nem sempre se apresentou da maneira tal como está.
Segundo Shmidtt, Oliveira e Gallas (2008), que pesquisaram os aspectos históricos da
beleza, desde os egípcios e romanos, eram enaltecidos os aspectos ligados a retardar o fim, ou
seja, vencer o envelhecimento. Aparentar juventude e saúde (fertilidade) já estava, desde esses
tempos, ligado à imagem. O que diferencia esse fenômeno do que acontece atualmente é a
entrada da mídia como forte agente na construção de ideais identitários. O mercado
capitalista, através da mídia, torna-se muitas vezes marcado pela construção e venda de
“contornos”, “identidades prontas”. Porém, é preciso entender que não é a mídia a única
responsável por essa produção, ela também está em constante transformação, sendo formada e
atravessada por diversas forças.
O fenômeno da influência das celebridades como ícones de beleza é relatado por Favre
(2010). A partir dos anos 20, o corpo padrão ganha um novo aspecto: reprodução do corpo
das estrelas de cinema, que se tornaram, inquestionavelmente, alavancas para a promoção de
novos hábitos de consumo e de estilos de vida identificados como “american way of life”.
Nos anos 50, começa o aumento da produção e criação de diversas marcas de cosméticos,
tornando ilusoriamente mais acessível esse corpo, fruto de dogmas criados e exaltados pelos
filmes de Hollywood.
A partir do século XIX o padrão de beleza começa a mudar, tornando os
corpos mais delgados, passando pelo espartilhos do século XVIII, quando
também a maquiagem começou a adquirir nuances variadas, tornando a
busca pela individualização possível e, deixando de ser caseira, tornou-se
1
Todas as autoras são da área de Psicologia, com formação na Universidade Federal do Espírito Santo. E-mail:
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PRODUÇÃO DE SUBJETIVIDADES CONTEMPORÂNEAS E TECNOLOGIAS DIET/LIGHT
especialidade de boticários e perfumistas (Shmidtt, Oliveira e Gallas, 2008,
p.04).
Nesse sentido, poderíamos dizer que sistema capitalista sustenta padrões de beleza e, ao
mesmo tempo, nos oferece uma gama de produtos para que tentemos alcançá-los.
Foi no fim do século XIX que iniciou a alusão aos regimes e exercícios para
emagrecer, criando o mercado do embelezamento. Nos anos 50, começaram
a surgir produtos para controlar o peso. Assim, as transformações foram
aparecendo como cascatas até os dias atuais, com novas tecnologias e a
comunicação mais acessível, tornando o mercado da beleza num mercado de
ascensão (Shmidtt, Oliveira e Gallas, 2008, p.04).
Segundo Shmidtt, Oliveira e Gallas (2008) é nos anos 90 que começa uma espécie de
ditadura da magreza. Esse fenômeno acontece, contraditoriamente, em uma época em que
populações inteiras começam a ter seus níveis de obesidade aumentados. Assim, o corpo da
modelo passa a ser cultuado como objeto de desejo pelas mulheres; e no caso dos homens,
corpos musculosos. Grandes consequências disso são o aparecimento de distúrbios
alimentares, como a bulimia (exagero na ingestão de comida seguido de indução do vomito);
a anorexia nervosa (obsessão por um corpo com peso abaixo do normal); a vigorexia
(obsessão em praticar exercícios físicos, e consequentemente, em aumentar a massa
muscular); e a ortorexia (mania de comer apenas aquilo que considera saudável, o que pode
levar a quadros de grave restrição alimentar).
Esta insatisfação não é um fenômeno do acaso, ela é fruto de diversas relações que
perpassam os sujeitos. De acordo com Ortega (2010):
Historicamente, as deficiências estavam ligadas ao crime, ao mal, às
aberrações (FOUCAULT, 1999; citado por ORTEGA, 2010). Os
estereótipos atuais contra os gordos, idosos e outras figuras que fogem do
padrão do corpo ideal têm o mesmo efeito estigmatizador e excludente. A
obsessão pelo corpo perfeito faz aumentar o preconceito e dificulta o
confronto com o fracasso de não atingir esse ideal, como testemunham
anorexias, bulimias, distimias e depressões. (p.149)
Na busca de um padrão de beleza, todos os dias, são realizadas cerca de 1252 cirurgias
estéticas no Brasil, segundo o jornal O Estadão de São Paulo (2009). Este dado está
relacionado a uma pesquisa feita entre setembro de 2007 a agosto de 2008, período no qual
foram realizadas 547 mil cirurgias deste tipo no mundo.
Segundo Sampaio e Ferreira (2009) os consultórios dos cirurgiões, as academias de
ginástica e os centros de tratamento estético fazem parte de um mercado em franca expansão,
vistos como fábricas de produção de um corpo ideal. A explosão dos cosméticos e produtos
voltados para o emagrecimento ou aumento da massa muscular, diariamente nos coloca em
cheque nossa satisfação com o corpo, utilizando campanhas publicitárias ostensivas nos mais
diversos meios comunicação.
É a partir da produção, e consequente reprodução, destes discursos que habitam a
esfera social, que se ampliam ideais de supervalorização de determinadas formas físicas.
Dessa maneira, gera-se a “glamourização” de certos modos de existir, bem como a
“estigmatização” e exclusão dos demais, não enquadrados.
Nossa aparência é uma das formas de nos apresentarmos, ou
reapresentarmos, ou ainda, de nos representarmos no mundo. Certamente
esse representar não se limita à nossa aparência estética, mas a relevância do
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PRODUÇÃO DE SUBJETIVIDADES CONTEMPORÂNEAS E TECNOLOGIAS DIET/LIGHT
impacto da impressão visual na forma como somos apreendidos pelos outros,
em um primeiro contato, é evidente. Sem dúvida, as representações que os
outros constroem a nosso respeito não estão subordinadas exclusivamente à
avaliação estética de um primeiro contato, mas, de forma geral, a avaliação
estética é a primeira a que temos acesso ao conhecermos alguém e, de
alguma forma, delineia, ainda que de maneira prévia, as bases para a
construção das representações sobre a pessoa que se conhece (SAMPAIO &
FERREIRA, 2009, p.128).
De acordo com Rolnik (1997) deveríamos combater a própria referência identitária, não
em nome da pulverização, mas sim para dar espaço aos processos de singularização, de
criação e modificação de identidades geradas pelos acontecimentos, de subjetividades não
fixas. Ou seja, não se trata de criar movimentos coletivos de resistência aos estereótipos,
como por exemplo, as modelos plus size. Trata-se, pelo contrário, de uma extinção dos
padrões, do enfrentamento de que nossa subjetividade é móvel e aberta a novos encontros,
não sendo mais procurada a identificação com padrões impostos. Assim, haveria espaço para
as pessoas se relacionarem com o corpo de maneira mais aberta, sem que para isso, fossem
classificadas como parte de um grupo em particular ou do grupo padrão.
Nesse sentido, se “fechar” em algo, assumindo-se como tal, seria, mesmo que contra o
padrão estipulado ou indo de encontro a ele, uma forma de assumir uma referencia identitária.
Porém, admitimos que não existe uma essência em si, somos fruto de diversas relações que
nos atravessam.
Adotar uma concepção processual dialética da construção da identidade
implica não assumirmos o desenvolvimento da identidade ao desvelamento
de uma essência e sim incluir a determinação da percepção do outro sobre
nós, na própria constituição de nossa identidade. Dessa forma,
interiorizamos aquilo que os outros nos atribuem de tal forma que se torna
algo nosso” (CIAMPA, 1987, apud SAMPAIO & FERREIRA, 2009, p.129)
Assim, tendemos a nos predicar coisas que os outros nos atribuem.
(SAMPAIO & FERREIRA, 2009, p.129)
Desta forma, consideramos que as drogas de tecnologia diet/light encontram frequentemente
espaço como auxiliadoras na busca de uma identidade, mesmo que ilusória. Podemos assim, supor
que neste fenômeno, encontrem-se predominâncias por linhas duras, de acordo com o conceito de
Deleuze e Guattari (1996).
A ideia da estética como instrumento que evidenciaria as diferenças individuais, e que,
ao mesmo tempo, encontra-se carregada de padrões influenciados pela mídia, demonstra o
caráter contraditório desta questão. Admitiremos, portanto, a ideia de subjetividades como
modos de vida que nos atravessam, entendendo, a partir disso, o individuo como uma
construção.
Já que explicar quem somos seria algo impossível, buscamos demonstrar em nossos
corpos, bem como em outros modos de expressão, uma identidade pessoal e original.
Encontramos o conforto em ser “algo”, porém, é preciso compreender que o individual é
indissociável do coletivo, não podendo assim, existir forma para além das relações.
Segundo Rolnik (1997), há uma espécie de conforto gerado pelo aprisionamento nas
identidades prêt-à-porter. Na busca de uma identidade, ou seja, de uma resposta para à
questão do “quem sou?”, acabamos por assumir padrões, sem considerar a fundo todas as
forças que perpassam sobre nossas formações subjetivas, constituindo-as e modificando-as a
cada momento.
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285
PRODUÇÃO DE SUBJETIVIDADES CONTEMPORÂNEAS E TECNOLOGIAS DIET/LIGHT
Deste modo, não podemos admitir a existência de algo já “dado” e “pronto” ao sujeito,
uma “essência”, uma vez que somos resultado da interação de diversas forças que nos
atravessam e constituem modos de experimentação dos mais diversos.
Referências
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segundo Hume. (L.B.L. Orlandi, trad.). São Paulo: Editora 34, 2001.
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O Anti-Édipo: capitalismo e esquizofrenia. São Paulo:
Ed. 34, 2010.
FAVRE, Regina. Trabalhando pela biodiversidade subjetiva. Cadernos de subjetividade. São
Paulo. p.108-123, 2010.
ORTEGA, Francisco. Deficiência, autismo e neurodiversidade. In: CAPONI, Sandra; VERDI,
Marta; BRZOZOWSKKI, Fabíola Stolg; Hellmann, Fernando (org). Medicalização da vida:
Ética, saúde pública e indústria farmacêutica. Palhoça, SC: Ed. Unisul, 2010.
País registra 1,2 mil plásticas ao dia. O Estado de São Paulo, coluna vida, p. A15, São Paulo,
2009.
Disponível
em:
http://www2.cirurgiaplastica.org.br/index.php?option=com_content&view=article&id=101:paisregistra-12-mil-plasticas-ao-dia&catid=42:saiu-na-midia&Itemid=87. Acesso em: 18 nov. 2012
ROLNIK, Suely. Toxicômanos de identidade. In: LINS, Daniel (org.) Cultura e subjetividade.
Campinas: Papirus, 1997.
SAMPAIO, Rodrigo P. de A. e FERREIRA, Ricardo Franklin. Beleza, identidade e mercado.
Psicologia em revista, Belo Horizonte, v.15, n.1, p.120-140, 2009
SHMIDTT, Alexandra; OLIVEIRA, Claudete; GALLAS, Juliana C. O mercado da beleza e
suas consequências. Universidade do Vale do Itajaí, 2008.
LINHA MESTRA, N.23, AGO.DEZ.2013
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PRODUÇÃO DE SUBJETIVIDADES CONTEMPORÂNEAS E LITERATURA
DE AUTOAJUDA
Nathália Nunes Pirola 1
Luana Moura Garcia
Izabela Orlandi Môro
Fernanda Negri Smith
Carolina Pimentel Batitucci
De acordo com Rolnik (1997), a literatura de autoajuda pode ser considerada uma das
drogas modernas utilizadas na tentativa de sustentar uma ilusão de identidade fixa no mundo
contemporâneo. Esse gênero literário costuma ser muito usado com o intuito de ensinar os
leitores a exorcizarem os abalos causados pelas figuras em vigência, como, por exemplo, as
figuras que são propostas pela mídia, publicidades, pelo cinema, pelas ditaduras da magreza,
as tecnologias diet/light, etc.
Assim, na contemporaneidade, as práticas de autoajuda vêm encontrando cada vez mais
espaço no mercado literário. Os leitores normalmente buscam esse tipo de literatura para
ajuda-los na sua busca por sucesso – como o sucesso profissional, amoroso, financeiro e
pessoal – em suas vidas. De acordo com Stoll (2009),
a literatura de autoajuda se caracteriza por uma gama restrita de temas – a questão
da prosperidade, da responsabilidade pessoal pela própria felicidade e bem-estar e a
afirmação do poder da mente como instrumento de autotransformação. (p. 17).
Além de serem encontradas na literatura de autoajuda, essas práticas podem ser encontradas
também em palestras, revistas, internet, etc. Algumas revistas femininas já possuem partes em que
são veiculados textos com o objetivo de ensinar os indivíduos a se “autoajudarem”.
Nesse sentido, “Querer é poder” e “Seu sucesso depende de você”, são frases típicas
encontradas na literatura de autoajuda. Esse tipo de discurso pode, então, passar uma ilusão de que,
para que um indivíduo consiga tudo que ele precisa em sua vida, basta ter pensamentos e atitudes
positivas. Assim, costumeiramente as condições em que as pessoas estão submetidas em suas vidas
são ignoradas e essa prática pode ocasionar a produção de uma responsabilização dos indivíduos por
tudo que ocorre em seu cotidiano. Nessa direção, Barbosa (2008) afirma que
ao se responsabilizar unicamente o indivíduo por tudo aquilo que lhe acontece,
reforça-se a ideologia capitalista, pois esta deixa de ser questionada se positiva
ou negativa para a sociedade. A culpa dos que nela fracassam caberia, então,
apenas a esses que a ela não se ‘adequaram’ (p. 01).
Um exemplo disso é a frase, retirada de um livro do autor Augusto Cury (2008), “Não tema
a difamação exterior. Tema seus próprios pensamentos, pois somente eles podem penetrar em sua
essência e destruí-la.” (p.89). Rüdiger (2010) afirma que a literatura de autoajuda
refere-se ao conjunto textualmente medido de práticas através das quais as
pessoas procuram descobrir, cultivar e empregar seus supostos recursos
interiores e transformar sua subjetividade, visando a conseguir uma
determinada posição individual supra ou intramundana. (p. 08).
1
Todas as autoras são da área de Psicologia, com formação na Universidade Federal do Espírito Santo. E-mail:
[email protected].
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287
PRODUÇÃO DE SUBJETIVIDADES CONTEMPORÂNEAS E LITERATURA DE AUTOAJUDA
O autor segue dizendo que as práticas da autoajuda são um fenômeno historicamente
recente, que resultam da convergência de diversos processos sociais. Ele ressalta também que
a literatura de autoajuda constitui uma das mediações onde as pessoas constroem um eu
reflexivo, gerenciam seus recursos subjetivos e, assim, enfrentam os problemas modernos.
Podemos observar, portanto, a presença da afirmação de uma forma identitária na
maioria das literaturas de autoajuda. Essa forma vai à contramão da subjetividade em que
acreditamos. De acordo com Deleuze e Guattari (2010), a subjetividade é um processo em
constante produção de si mesma, um processo múltiplo e sem forma fixa.
Dessa maneira, não podemos considerar a existência reduzida a uma identidade pessoal
e a consequente cristalização de supostas identidades.
De acordo com Mocci (2006)
Nota-se, na cultura globalizada do século XX, a existência de uma
dificuldade de elaboração da identidade unificada e indivisa a partir de uma
realidade fragmentada. Essa dificuldade gera uma crise de identidade que
leva o sujeito à procura de elementos que possam auxiliá-lo na
racionalização e no entendimento de si mesmo enquanto “eu” perante a
realidade de seu contexto. (p. 02)
Segundo Rüdiger (2010), que pesquisou um pouco mais detalhadamente a questão da
literatura de autoajuda e da individualidade, a criação da categoria exclusiva “o indivíduo” pode
representar uma maneira de, em nosso mundo, encontrar uma fuga para as diversas identidades
engessadas, que tentam, de certa forma, prescrever algo com validade para toda a vida dos
sujeitos. Em contrapartida, ao mesmo tempo o individuo “participa de sistemas de ação cada vez
mais complexos, distintos e numerosos, que tendem a desintegrar profundamente a personalidade,
conforme progride a modernidade” (RÜDIGER, 2010. p.12).
Como resultado dá-se espaço para a existência de uma complexa forma de
subjetividade, que incessantemente é exposta à possibilidade de perder sua unidade e de
retirar-se de um suposto centro do “eu”. Dessa maneira normalmente o sujeito se vê obrigado
a encontrar sozinho caminhos para efetuar a conservação desta suposta unidade, na finalidade
de que esta “identidade” não se perca.
“Sendo assim, os indivíduos recebem continuamente cobranças para que estejam em
reciclagem permanente de seu modo de ser, se quiser preservar não somente sua condição de
agente social autônomo mas, também, sua própria individualidade” (RÜDIGER, 2010, p.13).
Desta maneira, podemos dizer que:
A literatura de autoajuda constitui uma das mediações através das quais as
pessoas comuns procuram construir um eu de maneira reflexiva, gerenciar os
recursos subjetivos e, desse modo, enfrentar os problemas colocados ao
indivíduo pela modernidade (RÜDIGER, 2010, p.13).
Além disso, a crise de identidade pós-moderna pode ser observada facilmente na
situação das mulheres. Isso se deve ao fato de que, com o início de sua participação no
mercado de trabalho, a mulher atinge um novo papel social e, também, conquista a sua
igualdade entre os homens. Desse modo,
A imersão no mercado de trabalho constituiu, para o sujeito feminino, sua
mais nova condição de existência, fazendo com que o problema da autoidentidade, peculiar ao individuo do século XX, fosse experimentado com
maior relevo e intensidade nas questões femininas, uma vez que o trabalho é
um dos maiores fatores condicionantes do comportamento pessoal e social e
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PRODUÇÃO DE SUBJETIVIDADES CONTEMPORÂNEAS E LITERATURA DE AUTOAJUDA
o exercício profissional nunca está dissociado das outras dimensões de
expressão do sujeito (MOCCI, 2006, p.34).
Assim, observamos que a literatura de autoajuda pode surgir para os indivíduos como
um meio de compreensão e de busca de si mesmos durante essa crise de identidade pósmoderna. Deste modo, sugerimos que, neste processo, haja um predomínio de linhas duras,
devido ao fato de os sujeitos buscarem o enquadramento em formas identitárias, o que os leva
também a buscar uma suposta conexão com um “eu interior”, onde acreditam que
encontrariam sua essência real.
Porém, em outras formas de literatura, geralmente encontramos um processo diferente
deste. Com destaque frequente para as linhas de fuga ou para linhas flexíveis, que pode ser
notado, por exemplo, em variados poemas e poesias relacionadas à figura do eu. Podemos
observar isso; seja na negação de uma essência interior pessoal nos Poemas Completos de
Alberto Caeiro: "Digo de mim, "sou eu". E não digo mais nada. Que mais há a dizer?"
(PESSOA, 2008, p.100); "Não sei o que é conhecer-me. Não vejo para dentro. Não acredito
que eu exista por detrás de mim." (PESSOA, 2008, p.161), seja na afirmação da mudança
constante do eu em Guimarães Rosa: “O senhor... Mire veja: o mais importante e bonito, do
mundo, é isto: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas – mas que
elas vão sempre mudando. Afinam ou desafinam” (ROSA, 1994, p.24); seja na afirmação de
um eu ao mesmo tempo múltiplo e não definido em “Tabacaria”,
Não sou nada. Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo. [...]
Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou?
Ser o que penso? Mas penso ser tanta coisa!
E há tantos que pensam ser a mesma coisa que não pode haver tantos! [...] (PESSOA, 2007, p.287)
seja na recusa de se adequar ao eu desejável pela sociedade em “Lisbon Revisited”,
Não: não quero nada.
Já disse que não quero nada.
Não me venham com conclusões!
A única conclusão é morrer.
Não me tragam estéticas! Não me falem em moral! Tirem-me daqui a metafísica!
Não me apregoem sistemas completos, não me enfileirem conquistas
Das ciências (das ciências, Deus meu, das ciências!) –
Das ciências, das artes, da civilização moderna! Que mal fiz eu aos deuses todos?
Se têm a verdade, guardem-na!
Sou um técnico, mas tenho técnica só dentro da técnica. Fora disso sou doido, com todo o direito a sê-lo.
Com todo o direito a sê-lo, ouviram? Não me macem, por amor de Deus!
Queriam-me casado, fútil, quotidiano e tributável?
Queriam-me o contrário disto, o contrário de qualquer coisa? Se eu fosse outra pessoa, fazia-lhes, a
todos, a vontade. Assim, como sou eu, tenham paciência!
Vão para o diabo sem mim,
Ou deixem-me ir sozinho para o diabo!
Para que havemos de ir juntos? [...] (PESSOA, 2007, p.242)
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PRODUÇÃO DE SUBJETIVIDADES CONTEMPORÂNEAS E LITERATURA DE AUTOAJUDA
ou, por fim, na definição de um eu que é e se faz no momento do presente em “Cogito”,
eu sou como eu sou pronome
pessoal intransferível do homem que iniciei
na medida do impossível
eu sou como eu sou agora
sem grandes segredos dantes
sem novos secretos dentes nesta hora
eu sou como eu sou presente
desferrolhado indecente feito um pedaço de mim
eu sou como eu sou vidente
e vivo tranquilamente
todas as horas do fim (NETO, 1982, p.98)
Portanto, afirmamos que a literatura nesse viés, diferente da literatura específica de
autoajuda, costuma ser um processo através do qual os indivíduos se expressam, muitas vezes,
de forma múltipla e através do que os afeta, sem buscar necessariamente um enquadramento
em modelos fixos de identidade, o que a leva a ser um processo no qual as linhas flexíveis e
as linhas de fuga tem um maior predomínio.
Ressaltamos, porém, que nem em toda literatura de autoajuda há um predomínio de
linhas duras e, ao mesmo tempo, nem em toda literatura que desta difere há um predomínio de
linhas flexíveis e de linhas de fuga. Assim, devido ao objetivo deste trabalho e apenas para
efeitos de melhor exposição e análise, não nos aprofundamos em explicitar exemplos que se
contrapõem às formas que consideramos mais comuns dessas literaturas.
Referências
BARBOSA, Heloísa. “Muito dinheiro no bolso, saúde pra dar e vender”: a literatura de
autoajuda. Jornal O Lince, São Paulo, Ed. 23. Nov. 2008.
CURY, Augusto. O Vendedor de Sonhos: O Chamado. São Paulo: Academia da Inteligência,
2008.
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O Anti-Édipo: capitalismo e esquizofrenia. São Paulo:
Ed. 34, 2010.
MOCCI, Gisele. Imagem de mulher proposta pela literatura de autoajuda: análise de quatro
obras contemporâneas. 2006. 213 f. Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal do
Paraná. Curitiba, 2006.
NETO, Torquato. Os Últimos Dias de Paupéria. São Paulo: Max Limonad, 1982.
PESSOA, Fernando. Poemas Completos de Alberto Caeiro. São Paulo: Martin Claret, 2008.
______. Poesia Completa de Álvaro de Campos. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
ROLNIK, Suely. Toxicômanos de identidade. In: LINS, Daniel (org.) Cultura e subjetividade.
Campinas: Papirus, 1997.
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PRODUÇÃO DE SUBJETIVIDADES CONTEMPORÂNEAS E LITERATURA DE AUTOAJUDA
ROSA, João Guimarães. Grande Sertão: Veredas. São Paulo: Nova Aguilar, 1994.
RÜDIGER, Francisco. Literatura de autoajuda e individualismo. Porto Alegre: Gattopardo,
2010.
STOLL, Sandra. Encenando o invisível: a construção da pessoa em ritos mediúnicos e
performances de “autoajuda”. Religião e Sociedade, Rio de Janeiro, v. 29, p. 13-29, 2009.
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PRODUÇÃO DE SUBJETIVIDADES CONTEMPORÂNEAS E MÍDIA
Fernanda Negri Smith 1
Nathália Nunes Pirola
Luana Moura Garcia
Izabela Orlandi Môro
Carolina Pimentel Batitucci
Figura1: Manuscrito da música “Modinha de Gabriela” (1975), de Dorival Caymmi.
“A figura moderna da subjetividade, com sua crença na estabilidade e sua referência
identitária, agonizante desde o final do século passado, estaria chegando ao fim?” Essa é uma
das indagações propostas por Suely Rolnik (1997, p.20), fazendo referência à configuração
das subjetividades no mundo contemporâneo. Segundo a autora, atualmente há um embate
entre dois processos de constituição de identidade que permeiam o campo subjetivo. Um diz
respeito ao enrijecimento e persistência na procura por identidades locais fixas e outro à
tendência de se constituírem identidades globais flexíveis, que se modificam de acordo com o
que for conveniente para o mercado e, concomitantemente, para a cultura de consumo
fomentada pela mídia.
Forma-se, a partir da globalização da economia, um jogo de pulverização de identidades
rapidamente modificáveis versus uma insistência de as subjetividades encaixarem-se em sua
figura moderna, entendida como sendo à priori. Rolnik (1997) explica melhor esse jogo,
dizendo que “a mesma globalização que intensifica as misturas e pulveriza as identidades
implica também na produção de kits de perfis-padrão de acordo com cada órbita do mercado”
(p.20). A partir disso, pode-se colocar a mídia como uma das drogas que sustentam a ilusão
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Todas as autoras são da área de Psicologia, com formação na Universidade Federal do Espírito Santo. E-mail:
[email protected].
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PRODUÇÃO DE SUBJETIVIDADES CONTEMPORÂNEAS E MÍDIA
da possibilidade de apego a uma identidade fixa, imóvel, porém incondizente com o perfil
sócio-histórico no qual os sujeitos contemporâneos estão imersos (ROLNIK, 1997).
O momento atual de nossa subjetividade pós-fordista liga-se à identificação com as
imagens de mundo vinculadas pela publicidade e pela cultura de massa (ROLNIK, 2006).
“Com os anos 60, as novas gerações deixaram para trás os duros anos da Depressão, e a
amarga recordação da pobreza era compensada com o consumismo que oferecia a nova e
atraente sociedade” (RODRÍGUEZ, 2002, p.12). Era o sonho americano e o início da cultura
pop personificados na figura de Andy Warhol (1928-1987).
Warhol e suas obras tornaram-se verdadeiros protagonistas da revolução social dos anos
60. O artista, por meio de sua revolução iconográfica e técnica, uniu a arte com a cultura
popular de massa, criando estética com a publicidade, o quadrinho, o mundo televisivo e
cinematográfico, além de claro, eleger objetos e marcas da vida cotidiana, como a “CocaCola” e as sopas “Campbell” para serem retratadas em suas obras. Rompeu, assim, as
barreiras entre a arte popular e a considerada elitista (RODRÍGUEZ, 2002).
Escolhendo desenhos de embalagens de produtos populares e remanescentes da
publicidade, personalidades marcantes da época ou até mesmo desenhos antiquados, como os
retirados das histórias em quadrinho, Warhol conseguiu transformar aquilo que era
corriqueiro ou ultrapassado em algo novo. Ainda que sua produção fosse repetitiva,
característica da cultura de massa, seu repetitivo nunca era igual. Em várias de suas obras, o
artista fazia cada parte da figura repetitiva com um detalhe diferente, dando às peças um
caráter único. Não reproduzia, apenas, a figura original. Sempre incluía cores vibrantes e
arbitrárias, que evocavam o mundo artificial do plástico (RODRÍGUEZ, 2002).
Além de Warhol, na arte publicitária, uma série de outras personalidades modificaram,
interpretaram e produziram contribuições para o estabelecimento das novas formas de
subjetividade que acompanharam as transformações sociais, econômicas, culturais e afetivas
do mundo capitalista. Pode-se dizer que a nova conformação de subjetividade proposta por
Rolnik (1997), que anuncia a chegada de uma identidade global flexível, sofreu,
historicamente, influências diversas, como por exemplo, a da criação das lojas de
departamento.
A “Le Bon Marché” de Paris, fundada por Aristide Boucicaut (1810-1877) em 1852 foi
a primeira loja de departamento do mundo. O modelo de venda em série, com preço fixo,
liquidações e publicidade com direito até a balões de soprar com a marca da loja gravada,
distribuídos para crianças, vingou e está tão atual como nunca. A produção em larga escala,
junto aos meios de comunicação de massa, como TV, rádio, jornal, revistas, cinema comercial
e Internet oferecem todos os dias um bombardeio de imagens e de ideias efêmeras, que
formam e reproduzem opinião.
Assim, a efemeridade sustentada em grande parte pelo capitalismo, surgimento de novas
tecnologias e de um novo modo de se produzir subjetividades parece vir travestida de
flexibilidades. Porém, pode-se perceber tal efemeridade a partir de seu caráter endurecido,
quando nas possibilidades do devir, procura-se o apego a determinados padrões estéticos,
macropolíticos, micropolíticos e modos de viver.
Recapitulando a ilusão da possibilidade de se manter em tempos contemporâneos uma
subjetividade pautada em uma identidade fixa, Rolnik (1997, p.22) discursa, referindo-se ao
poder midiático, dizendo que as figuras glamourizadas, “[...] quando são consumidas como
próteses de identidade, seu efeito dura pouco, pois os indivíduos clones que então se
produzem, com seus falsos-self estereotipados, são vulneráveis a qualquer ventania de forças
um pouco mais intensa [...]”. Dessa forma, a droga da mídia causa uma falsa possibilidade de
apego a uma identidade que descreva o sujeito como único, natural, ou anterior a si mesmo,
como é proposto pela música “Modinha de Gabriela”, exposta na figura 1 deste trabalho.
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Atualmente, é possível perceber que os pacotes de personalidade, de estilo, de modos de
vida e de visões de mundo apresentados pela mídia são comprados com grande facilidade.
Possivelmente, a pessoa que já foi “from UK” tornou-se um dia o “emo” de ontem e está
sendo o “hipster” de hoje, por assim dizer, de uma maneira metafórica e limitada. A crítica
que pode ser imposta é a dificuldade, pela ainda crença na subjetividade fixa, de se transitar
ou ser afetado por mais de um tipo de “pacote-personalidade” sem ser julgado. Tudo deve
girar em torno dessa “personalidade fake”, até que, por impulso da mídia, uma nova
configuração se instala como padrão a ser seguido. Os que se arriscam no afeto, por vezes
correm o risco de “[...] virar um nada, caso não se consiga produzir o perfil requerido para
gravitar em alguma órbita do mercado [...]” (ROLNIK, 1997, p.21).
Dessa maneira, partindo dos conceitos propostos por Deleuze e Guattari, observamos uma
possível predominância das linhas duras em alguns modos de subjetivação contemporânea,
sobretudo o analisado pelo presente trabalho. A linha dura pode ser entendida como aquela que
demarca território; que parte de algum lugar objetivando chegar a outro; que introduz nós de
rigidez em relação às linhas flexíveis e de fuga (DELEUZE E GUATTARI, 1996).
Nesse sentido, a procura incessante por identidades fixas no contemporâneo pode ser
entendida por essa possível predominância das linhas duras nesse processo. Entretanto, é
importante considerar que nossa posição quanto à análise do papel da mídia na produção das
subjetividades contemporâneas não se afasta de nossos afetos, de nossos pontos de erupção na
rede de devires, onde não se encontra pontos de origem, de chegada e de volta, mas apenas
encontros, bifurcações e nós marcados por uma relação de imanência.
Consideramos necessário frisar que linhas duras, flexíveis e de fuga coexistem em um
campo de forças que constituem o desejo e o catalisam para incessante inconstância. Porém, é
possível perceber que na contemporaneidade há uma produção desejante que corrobora na
intensificação de formas identitárias fixas.
Para enriquecer a análise, pensamos ser válido considerar também o posicionamento de
Deleuze em relação às relações de poder que se estabelecem no contemporâneo, quando o
autor se posiciona a partir dos escritos Foucault. Trata-se da discussão acerca das sociedades
de controle que se forjam na atualidade, que se encontram fortalecidas a partir da publicidade
veiculada pela mídia. Sobre isso, Deleuze escreve que
O marketing é agora o instrumento de controle social, e forma a raça
impudente de nossos senhores. O controle é de curto prazo e de rotação
rápida, mas também contínuo e ilimitado, ao passo que a disciplina era de
longa duração, infinita e descontínua. O homem não é mais o homem
confinado, mas o homem endividado (DELEUZE, 1992, p. 224).
Assim, pode-se pensar a sociedade contemporânea como esgotada pelo trabalho e pelo
consumo, que dificultam meios para se articular a mudança e reflexão nos sujeitos, de
maneira que “os poderes exercidos mídia, nas sociedades contemporâneas e de controle
absorvem e neutralizam tudo o que se contrapõe ao mercado” (CARVALHO, 2012, p 22-23).
Por fim, não se pode deixar também de mencionar, em um discurso que relaciona mídia
e subjetividade, a influência em relação às mulheres, quanto às cobranças estigmatizadoras do
cuidado de si e do modo como se relacionam socialmente. Segundo Silva, Próchno e
Nascimento (2012),
Em meados do século XIX a relação entre as mulheres e a mídia
transformou-se bastante, já que a educação e a leitura tornam-se mais
acessíveis a elas. A partir de então as revistas de moda e comportamento
começam a retratar e a tratar exclusivamente as mulheres e se tornaram
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PRODUÇÃO DE SUBJETIVIDADES CONTEMPORÂNEAS E MÍDIA
imprensas de massa destinadas exclusivamente às mulheres, e já
desenhavam modos de ser e viver (p. 391).
Comparativamente, no tocante à publicidade e consumo de massa voltados para
mulheres a partir da década de 70, sobretudo no Brasil, por meio da substituição da
fotonovela pela telenovela e da difusão de informações do movimento feminista através de
revistas femininas, Silva, Próchno e Nascimento (2012) apontam para
[...] um novo desenho da subjetividade feminina na mídia, que valoriza a
independência financeira e a estética corporal. Percebemos nesse momento um
estado de paradoxo, pois se por um lado a luta feminista foi no sentido de liberar
o corpo feminino, num chamamento ao pleno exercício da sexualidade e da
ocupação da mulher em diversos setores da esfera pública; por outro, o
chamamento da mídia já se impunha no sentido de delimitar as ações e práticas
femininas, principalmente no que concerne aos cuidados corporais (p.392).
Em consonância com o pensamento de Rolnik (1997), Silva, Próchno e Nascimento
(2012) também ressaltam lembram que ser sujeito na contemporaneidade, muitas vezes não se
trata de um ato criativo e de produção, mas sim um ato de consumo. Segundo os autores, “a
liberdade de subjetivar-se, à sua maneira, nas malhas da mídia e do consumo, não passa de
uma ilusão, vendida, sobretudo, pela publicidade” (p.393).
Referências
CARVALHO, Paulo Roberto de. Mídia e controle: implicações para a subjetividade
contemporânea. Revista espaço acadêmico. [online]. 2012. n° 136. Disponível em:
<http://periodicos.uem.br/ojs/index.php/EspacoAcademico/article/viewFile/18401/9707>
Acesso em: 18 jun. 2013.
CAYMMI, Dorival. Manuscrito da música “Modinha de Gabriela”, 1975. Disponível em:
<http://www.jobim.org/caymmi/bitstream/handle/2010.1/12380/LET-17%2033.jpg?sequence=1>. Acesso em: 22 out. 2012.
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Traduzido por Aurélio Guerra Neto, Ana Lúcia de Oliveira, Lúcia Cláudia Leão e Suely
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contemporânea em revista. Fractal, Rev. Psicol. [online]. 2012, vol.24, n.2, pp. 385-404. Disponível
em: <http://dx.doi.org/10.1590/S1984-02922012000200012>. Acesso em: 22 out. 2012.
RODRÍGUEZ, Margarita. Andy Warhol. Tradução Mathias de Abreu Lima Filho. São Paulo:
Girassol. Madri: Susaeta Ediciones, 2007, 96 p. (Coleção Gênios da Arte).
ROLNIK, Suely. Cartografia Sentimental: transformações contemporâneas do desejo. Porto
Alegre: Sulina, 2006.
______. Toxicômanos de identidade. In: LINS, Daniel (org.) Cultura e subjetividade. Campinas:
Papirus, 1997.
LINHA MESTRA, N.23, AGO.DEZ.2013
295
SESSÃO 17 – TERRITÓRIOS DO CUIDADO: ESPAÇO, CULTURA E
PRODUÇÃO DE SUBJETIVIDADE
TERRITÓRIOS E SENTIDOS: ESPAÇO, CULTURA E CUIDADO NA
ATENÇÃO EM SAÚDE MENTAL
Elizabeth Maria Freire de Araújo Lima 1
Silvio Yasui 2
1. Introdução
A relação entre a produção de cuidado e o território no qual este cuidado é exercido é
uma questão central para a Atenção Psicossocial e aparece claramente enunciada, em diversos
documentos relativos à Reforma Psiquiátrica Brasileira, a partir de 2002.
A “lógica do território” é uma ideia central, norteadora das ações a serem engendradas
pelos serviços, associada ao tempo e ao lugar em que são elaboradas e realizadas. Neste
contexto, os CAPS aparecem como estratégia de organização da rede de cuidados,
considerando-se que a realização de parcerias entre serviços de saúde e dos serviços com a
comunidade é vital para operar os cuidados em saúde mental.
Porém, devemos estar atentos a dois aspectos relevantes. O primeiro refere-se aos múltiplos
sentidos para os quais a palavra território pode apontar, já que o conceito de território tem sido
desenvolvido em diversos campos do conhecimento: Geografia, Biologia, Antropologia,
Sociologia, Ciência Política e Filosofia, dentre outros. Na Saúde Coletiva brasileira, este conceito
adquire destaque, especialmente a partir da implantação do Sistema Único de Saúde.
O segundo aspecto refere-se aos processos que ocorrem no território, considerando suas
múltiplas lógicas, algumas de emancipação e participação, outras que produzem sujeição e
dominação. Para pensar a organização e as ações desenvolvidas nos serviços substitutivos ao
manicômio é fundamental que possamos considerar as diferentes lógicas do território, suas
potencialidades e suas linhas de captura.
É sob estes dois aspectos que a presente comunicação pretende abordar a discussão do
conceito de território. Para tanto buscaremos desenvolver um diálogo com autores que, de
perspectivas e campos distintos, trabalham com a noção de território, para que estes nos
auxiliem a pensar como potencializar a relação entre o território, os sujeitos, os serviços e a
produção do cuidado.
2. O território vivo e dinâmico no qual a vida se desenrola
As discussões mais recentes sobre o tema do território trouxeram para o campo da saúde
o geógrafo brasileiro Milton Santos. Seus trabalhos serviram para reorientar as concepções
sobre espaço e saúde no âmbito da Saúde Coletiva.
1
Terapeuta ocupacional, docente do Curso de Terapia Ocupacional da Faculdade de Medicina da USP e
orientadora no Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Faculdade de Ciências e Letras da UNESP-Assis.
Doutora em Psicologia Clínica pela PUC-SP. Pós-doutora pela University of the Arts, London. Coordenadora do
Laboratório de Estudos e Pesquisa Arte, Corpo e Terapia Ocupacional e do grupo de pesquisa Saúde Mental e
Saúde Coletiva.
2
Psicólogo, professor assistente doutor do Departamento de Psicologia Evolutiva, Social e Escolar e do
Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Faculdade de Ciências e Letras da UNESP-Assis. Doutor em
Ciências pela Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP) da Fundação Oswaldo Cruz-RJ. Pesquisador líder do
grupo de pesquisa Saúde Mental e Saúde Coletiva.
LINHA MESTRA, N.23, AGO.DEZ.2013
296
TERRITÓRIOS E SENTIDOS: ESPAÇO, CULTURA E CUIDADO NA ATENÇÃO EM SAÚDE MENTAL
Negando a visão tradicional da geografia que considera o território como um objeto
estático com suas formações naturais, Santos apresenta-o como um objeto dinâmico, vivo,
repleto de inter-relações e propõe detalhar as influências recíprocas do território com a
sociedade, seu papel essencial sobre a vida do indivíduo e do corpo social. Para o autor,
território engloba as características naturais de uma dada área, e também as marcas
produzidas pelo homem numa “combinação de técnica e política”. (Santos, 2002, p.87)
A ideia de território transitaria do político para o cultural, das fronteiras entre povos aos
limites do corpo e do afeto entre as pessoas. Para Moken et al. (2008) compreender o
território nesta perspectiva abre possibilidades para as análises em saúde e para o
entendimento contextual do processo saúde-doença, especialmente em espaços comunitários e
tendo como dimensão temporal e o cotidiano.
Podemos caminhar, assim, em direção a um entendimento do território que supere a
noção de delimitação geográfica sobre a qual um determinado serviço se torna responsável. O
território, nesta concepção, é relacional e diz respeito à construção que se dá entre os cenários
naturais e a história social: memória dos acontecimentos inscrita nas paisagens, nos modos de
viver, nas manifestações que modulam as percepções e a compreensão sobre o lugar; relações
que surgem dos modos de apropriação e de alienação deste espaço e dos valores sociais,
econômicos políticos e culturais ali produzidos; modos múltiplos de produção de sentidos ao
lugar que se habita, ao qual se pertence por meio das práticas cotidianas.
Organizar um serviço substitutivo que opere segundo a lógica do território é olhar e
ouvir a vida que pulsa neste lugar.
Mas, o território não é apenas tradição cultural. É também mutação norteada pela lógica
do capitalismo globalizado que intervém dissipando e desintegrando as fronteiras entre o local
e o global, modificando relações, gerando modos conformados e consumistas de existir. É no
território que se exerce o controle das subjetividades. É nele que se instala o olho vigilante do
poder que se ramifica e adere às rotinas cotidianas, transmutando-as ao sabor das
conveniências do mercado. E o que se vende com as mercadorias são modos de ser, novos
mundos e novas formas coletivas de conceber a vida e a existência.
3. A clínica e os territórios existenciais
Assim, mesmo que os novos serviços substitutivos inscrevam sua ação em seu território
de abrangência, o deslocamento espacial não garante uma prática em ruptura com as formas
de poder que se exercem sobre a vida, já que poderíamos, do asilo ao território, passar de uma
prática disciplinar para uma prática de controle. Deleuze (1992) chamou a atenção para este
risco ao afirmar que, “se a crise do hospital, os hospitais-dia e os serviços comunitários
marcaram inicialmente novas liberdades, eles também passaram a integrar mecanismos de
controle que rivalizam com as mais duras formas de confinamento”.
A Reforma Psiquiátrica brasileira como um processo social complexo (AMARANTE,
2003), vem sendo construída no interior de uma tensão que atravessa a vida no
contemporâneo, na qual práticas de resistência, que afirmam a potência da vida de se
reinventar permanentemente, estão em embate com linhas que tendem para a vigilância e o
controle.
Assim, a discussão das relações entre território e produção de cuidado implica pensar o
território como espaço e percurso que compõem as vidas cotidianas das pessoas e dos
usuários de serviços de saúde; espaço relacional no qual a vida pulsa; espaço no qual se
produzem modos de ser, de se relacionar, de amar, de consumir, alguns engajados na grande
máquina capitalista, outros que resistem a sua captura.
Neste sentido, coloca-se a reconstrução do conceito e da prática clínica que tem sido um
aspecto fundamental da Reforma Psiquiátrica brasileira. Esta reinvenção da clínica implica na
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297
TERRITÓRIOS E SENTIDOS: ESPAÇO, CULTURA E CUIDADO NA ATENÇÃO EM SAÚDE MENTAL
desvinculação entre clínica e hospital e na criação de novas instituições que trabalhem na
lógica da heterogeneidade, da implicação, da circulação social e que se coloquem a questão
das territorialidades, mas também dos processos de desterritorialização e reterritorialização
(DELEUZE; GUATTARI, 1997). Abandona-se, assim, uma clinica centrada no sintoma
individual, para dar lugar a processos de produção de saúde e de subjetividade, o que implica
o rompimento com os territórios restritos da individualidade e a inserção em processos de
criação voltados para a construção de novas línguas, novos territórios, novos sentidos.
As relações entre clínica, território e subjetividade introduzem a noção de território
existencial, que implica em certos espaços, mas não se define pela delimitação geográfica. Os
territórios existenciais são construídos com elementos materiais e afetivos do meio que,
apropriados de forma expressiva, findam por constituir lugares para viver.
Em relação a isso, é preciso considerar que a experiência da loucura e da exclusão, é
marcada por um forte coeficiente de desterritorialização, entendido como movimento através
do qual alguém deixa um território, desfazendo tudo aquilo que uma territorialização constitui
como dimensão do familiar e do próprio. Esses movimentos de desterritoralização são
inseparáveis de novos mundos que se fazem em processos de reterritorialização, que não
consistem em um retorno ao território de origem, mas na construção de um novo território.
Ora, a problemática da loucura, e de tantas outras linhas de fuga que são traçadas em
processos vitais de dissidência e/ou deserção, é aquela de uma desterritorialização que muitas
vezes se reterritorializa em territórios mínimos, muito fechados, para constituir uma proteção
contra o caos; ou, em territórios paradoxais, quando se faz da própria desterritorialização, um
território subjetivo. (PELBART, 2003)
Na perspectiva da clínica, trata-se, então, de acompanhar, cuidar e investir em
movimentos de reterritorialização para que estes possam operar a criação de uma nova terra
na qual seja possível traçar linhas de vida. É preciso sustentar a construção de territórios
existenciais, mesmo que efêmeros e nômades, que possam se abrir, estabelecendo relações
com outras vidas e com outros mundos. E esses territórios não coincidem necessariamente
com aqueles circunscritos pelos serviços e podem aí constituir vetores de desterritorialização.
Se o território é também o lugar por excelência do controle, os processos de
desterritorialização poderão ser pensados como processos de resistência que engendrariam
novas territorialidades.
Félix Guattari (1992) analisa a sociedade contemporânea, como o mundo da técnica e
da desterritorialização com a consequente produção de uma homogênese capitalística, que
impõe equivalência generalizada dos valores e padronização dos comportamentos. Processos
intermitentes de desterritorialização e reterritorialização, podem instaurar aí movimentos
heterogenéticos, por meio dos quais se produz algo novo e inusitado. Heterogênese diz
respeito à produção de diferença, daquilo que escapa da homogeneidade e do já instituído.
Nesse processo, reterritorializar diz respeito à recomposição de territórios existenciais. Tratase de reconstituir uma relação particular com o cosmos e com a vida, na composição de uma
singularidade individual e coletiva.
4. Finalizando
Organizar um serviço substitutivo que opere segundo a lógica do território é olhar e
ouvir a vida que pulsa nesse lugar. Para tanto é preciso trabalhar com um conceito relacional
de território que leve em conta modos de construção do espaço, de produção de sentidos para
o lugar que se habita, ao qual se pertence por meio das práticas cotidianas. (YASUI, 2010)
Nesta perspectiva, pensamos que o cuidado em saúde poderia pautar-se por uma
concepção de território que articulasse o natural e o social, a produção de subjetividade e os
processos de singularização, comportando construção de lugares para viver e processos de
LINHA MESTRA, N.23, AGO.DEZ.2013
298
TERRITÓRIOS E SENTIDOS: ESPAÇO, CULTURA E CUIDADO NA ATENÇÃO EM SAÚDE MENTAL
ruptura e de criação de novos territórios existenciais. Isto significa encontrar e ativar os
recursos locais existentes, estabelecendo alianças com grupos e movimentos de arte ou com
cooperativas de trabalho, para potencializar as ações de afirmação das singularidades e de
participação social. Trata-se de criar uma intensa porosidade entre o serviço e os recursos do
seu entorno. Significa, também, especialmente nos locais precários e homogeneizados, criar
outros recursos, inventar e produzir espaços, ocupar o território da cidade com a loucura. Do
manicômio, lugar zero das trocas sociais, ao espaço público como lócus terapêutico, de
intervenção, de montagens e instalações em permanente processo de produção, cenário dos
encontros, como matéria prima de processos de subjetivação.
Essas considerações nos colocam em posição de pensar uma clínica pautada no
construtivismo e na experimentação. Uma clínica que se dá em duas direções ao mesmo
tempo. De um lado, possibilitar a atualização de devires, a produção de marcas e de sentido;
trabalho de produção de contorno, de construção de territórios existenciais, de moradas. De
outro lado, desestabilizar territórios muito restritos e enrijecidos; trabalho lento e cuidadoso
de construção de aberturas e de linhas de singularização. (LIMA, 1997)
A clínica nesta nova configuração se faz no território e na produção de novos territórios
geográficos e subjetivos nos quais a vida seja possível. Poderia, então, orientar-se pelas forças
da originalidade e da tradição: arte e cultura como dois polos de um movimento incessante de
constituição sempre precária das subjetividades. Movimento basculante de territorialização,
desterritorialização, reterritorialização
Está em jogo aqui a aposta na afirmação, sustentação e acolhimento de uma
multiplicidade de formas de existência e ao mesmo tempo sua articulação e agenciamento a
redes de sentido que venham a criar novos territórios.
A racionalidade moderna, encarnada no gesto de Pinel de retirar os grilhões, também se
ergueu como a libertadora dos loucos. Hoje, estamos diante de um novo desafio: construir um
lugar que acolha pessoas em sofrimento psíquico sem produzir anulação das diferenças e
homogeneização; sem domesticar ou domar a loucura, retirando dela sua potencialidade
disruptiva. Construir, ao contrário, um lugar que possa ser habitado pela radical diferença da
desrazão, em toda a sua plenitude provocativa, permeável e porosa a um estranho diálogo com
a nossa racionalidade “careta”, mas sem a qual ainda não sabemos direito como viver.
Construir este lugar implica nos reinventarmos na relação com a experiência da desrazão.
Implica, enfim, pensar, sentir e viver de forma diferente, intensamente diferente.
Neste sentido, o cuidado se daria numa produção de atos, regidos pela alegria e pela
beleza, que promovem bons encontros, potencializando a vida. Esta potencialização se dá na
apropriação e na produção de sentidos do território, aqui entendido na complexidade deste
conceito.
5. Referências
AMARANTE, P. A. (clínica) e a Reforma Psiquiátrica. In: Amarante, P., organizador. Arquivos
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http://portal.saude.gov.br/portal/arquivos/pdf/Portaria%20GM%20336-2002.pdf
DELEUZE, G. Post-scriptum sobre as sociedades de controle. In: Deleuze G. Conversações.
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LINHA MESTRA, N.23, AGO.DEZ.2013
299
TERRITÓRIOS E SENTIDOS: ESPAÇO, CULTURA E CUIDADO NA ATENÇÃO EM SAÚDE MENTAL
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GUATTARI, F. Caosmose: um novo paradigma estético. São Paulo: Ed. 34; 1992.
LIMA, E.M.F.A. Clínica e criação: a utilização de atividades em Instituições de Saúde
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Dissertação de mestrado.
MONKEN, M.; PEITER, P.; BARCELLOS, C.; ROJAS, L.I.; NAVARRO, M.G.; GONDIM,
M.M.; GRACIE, R. O território na saúde: construindo referências para análises em saúde e
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Território, ambiente e saúde. Rio de janeiro: Fiocruz; 2008. [Acessado em 2011 jun 12].
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PELBART, P.P. Vida Capital: ensaios de biopolítica. São Paulo: Iluminuras; 2003.
SANTOS, M. O País Distorcido. In: Ribeiro WC, organizador. São Paulo: Publifolha; 2002.
SANTOS, M.; SILVEIRA, M. L. O Brasil: Território e Sociedade no Início do Século XXI.
Rio de Janeiro: Record; 2001.
UNGLERT, C.V.S. Territorialização em Saúde. In: MENDES, E.V. (org.). Distrito Sanitário.
O processo social de mudança das práticas sanitárias do Sistema Único de Saúde. São
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YASUI, S. Rupturas e encontros: desafios da Reforma Psiquiátrica brasileira. Rio de
Janeiro: Ed. Fiocruz; 2010.
LINHA MESTRA, N.23, AGO.DEZ.2013
300
O ATO EM CENA
Rafael Michel Domenes 1
Esta comunicação pretende estabelecer uma articulação entre teoria e prática no que se
refere aos agenciamentos entre espaço e loucura na produção de territórios existenciais. Para
tanto buscamos escrever narrativas atentas às multiplicidades dos elementos espaciais
operando vetores de produção de subjetividade em situações experimentadas na prática em
serviços de saúde mental (CAPS e SRT principalmente). O objetivo é cartografar processos
experimentados no cotidiano de trabalho, que buscam acompanhar a processualidade dos
processos de subjetivação que ocorrem a partir de uma configuração de elementos, forças ou
linhas que atuam simultaneamente. Essa escrita não pretende demonstrar fatos e tampouco
relatar uma experiência acabada, mas sim acompanhar processos de criação de territórios
existenciais.
Em relação ao espaço, o tomamos com algo que não é construído de antemão, mas um
espaço que se atualiza e se cria, que se movimenta e agencia materialidades e imaterialidades
em uma produção subjetiva. O espaço compreendido em sua dimensão virtual e como uma
construção que ultrapassa a dicotomia material e imaterial.
Os espaços afetam e agenciam elementos por vezes completamente inapreensíveis.
Cheiros, gostos, sensações físicas, memórias, representações e abstrações. É o que Deleuze
(1997, p. 73) chama de “meio virtual”. Um espaço virtual, um meio feito de invenções,
afetações, acontecimentos, vetores de produção de subjetividade.
[...] um meio é feito de qualidades, substâncias, potências e acontecimentos:
por exemplo a rua e suas matérias, como os paralelepípedos, seus barulhos,
como o grito dos mercadores, seus animais, como os cavalos atrelados, seus
dramas (um cavalo escorrega, um cavalo cai, um cavalo apanha...). O trajeto
se confunde não só com a subjetividade do próprio meio, uma vez que este
se reflete naqueles que o percorrem. (DELEUZE, 2006, p. 73).
Trata-se de pensar os espaços não somente em sua concreta existência, mas também por
seu potencial de abstração e de virtualidade. O espaço é muito mais do que aquilo que se vê,
que se descreve, é um conjunto de agenciamentos virtuais em constante movimento. Pelbart
(2000) comentou o texto de Deleuze, citado acima, salientando que não cabe perguntar se os
trajetos percorridos pelas pessoas são reais ou imaginários, concretos ou oníricos, objetivos ou
subjetivos. Essas seriam perguntas inúteis, falsos problemas. Pois todo objeto, pessoa, grupo,
singularidade com a qual ela cruza já carrega consigo um meio em constante germinação, já
está rodeado de uma árvore de virtualidade que o acompanha. (PELBART, 2000, p.44).
Não importa se é real ou não, material ou imaterial. Os espaços são, para Guattari (1992),
máquinas portadoras de universos incorporais que não são, todavia, Universais, mas que podem
trabalhar tanto em um sentido de um esmagamento uniformizador quanto no de uma resingularização libertadora da subjetividade individual e coletiva (GUATTARI, 1992, p.158).
O espaço passa a ser compreendido por sua dimensão virtual e como uma construção
que ultrapassa a dicotomia material e imaterial. As duas faces estão operando e criando
espaços. O que afirmamos é que o espaço está o tempo todo operando como produtor de
subjetividades, de sensações de sentido. É uma máquina de criar subjetividades.
O território é de fato um ato, que afeta os meios e os ritmos, que os
‘territorializa’. O território é o produto de uma territorialização dos meios e
1
Psicólogo, Acompanhante Terapêutico, Supervisor do SRT Brasilândia e mestre em Psicologia Social pela PUC –SP.
LINHA MESTRA, N.23, AGO.DEZ.2013
301
O ATO EM CENA
dos ritmos. [...] Um território lança mão de todos os meios, pega um pedaço
deles, agarra-os [...]. Ele é construído com aspectos ou porções de meios.
(DELEUZE, 2008, p. 120).
Mesmo concretamente erguido com definições e funções específicas, o espaço
impulsiona agenciamentos dos mais diversos. Ele só é fixo em seu endereço, no mais é está
sempre em processo, em um permanente tornar-se espaço, um permanente devir.
Quer tenhamos consciência ou não, o espaço construído nos interpela de
diferentes pontos de vista: estilístico, histórico, funcional, afetivo... Os
edifícios e construções de todo os tipos são máquinas enunciadoras. Elas
produzem uma subjetivação parcial que se aglomera com outros
agenciamentos de subjetivação.” (GUATTARI, 1992, p. 158).
O território não prescinde do humano, algo pronto, a ser descoberto, ele é criado, é
movimento. O espaço em seus aspectos materiais, imateriais, agenciam elementos de
virtualização que produzem subjetividade, criam territórios existenciais.
Um território pode ser criado a partir de conteúdos e expressividades agenciados entre si
sem dicotomias, ou hierarquias. O território é um produto de agenciamentos. Apropriação de
elementos e criação de um plano de consistência. Uma invenção e criação a partir de um
espaço de pedaços de meios “materiais, produtos orgânicos, estados de membrana ou de pele,
fontes de energia, condensados percepção-ação" (DELEUZE e GUATTARI, 2003, p.116).
Entendemos o conceito de território como uma criação provisória agenciada por
múltiplos elementos. Ele é o produto de um ato que territorializa os meios, ato este
expressivo, que ultrapassa o uso pragmático dos espaços e cria uma assinatura singular. Uma
invenção e criação a partir de um espaço
O território não prescinde da expressividade, ele não preexiste nas funções espaciais
pragmáticas apenas, elas adquirem uma expressividade quando mudam de função. O tempo, a
repetição, a interrupção, a continuidade, o estancamento, a constância da temporalidade
combina-se com o alcance espacial do território e criam expressividade. Território como um
ato expressivo. Desta forma o território não é prévio, mas sim uma criação.
O tempo, a repetição, a interrupção, a continuidade, o estancamento, a constância da
temporalidade combina-se com o alcance espacial do território e criam expressividade.
Território como um ato, um produto de “uma territorialização dos meios e dos ritmos,
construídos a partir de pedaços de meios e marcado por seus componentes mais diversos [...]"
(BRANDÃO, 2008, p.64).
Uma casa com suas funções de habitação, proteção de intempéries climáticas ou de
local fixo na cidade por si só não é um território. Ela terá que assumir outras funções que não
somente pragmáticas para ser um território. Uma arquibancada de estádio de futebol lotada
também não é um território. A torcida ao cantar, gritar, vibrar, xingar o juiz, ser uniformizada,
e /ou ter um nome pode se tornar um território. Ela o será quando assumir expressividade.
Dessa forma o território não é algo que prescinde da atividade e da apropriação. “Mas o emcasa não preexiste: foi preciso traçar um circulo em torno do centro frágil e incerto, organizar
um espaço limitado. Muitos componentes bem diversos intervêm, referências e marcas de
toda espécie. [...]” (DELEUZE, 2008, p.120).
O expressivo é primeiro em relação ao possessivo, as qualidades expressivas
ou matérias de expressão são forçosamente apropriativas, e constituem um
ter mais profundo que o ser. Não no sentido em que essas qualidades
pertenceriam ao sujeito que as traz consigo ou que as produz, mas no sentido
LINHA MESTRA, N.23, AGO.DEZ.2013
302
O ATO EM CENA
em que elas desenham um território que pertencerá ao sujeito que as traz
consigo ou que as produz. (DELEUZE, 2008, p.122).
Levando em consideração as discussões sobre espaço e território, propomos como uma
indicação de manejo clínico a hospitalidade para com o louco. Estar junto, ao lado, disposto,
acompanhar criando situações com o mínimo de racionalizações e anteparos préestabelecidos. Ter hospitalidade com o outro em sua singularidade, hospedar-se no território
estrangeiro dos loucos. Levando em consideração a provisoriedade dos territórios, propomos
que os serviços de saúde possam vislumbrar essa mesma provisoriedade em suas ações,
inventados diariamente em um plano temporário diminuindo riscos de repetições
burocratizadas que não abrigam produções de subjetividade singulares.
Em uma entrevista de Cao Guimarães encontram-se pistas interessantes. Ao falar sobre
seu método de filmagem Cao compara a realidade a um lago. Para ele existiriam três formas
de se relacionar com este lago. A primeira seria ficar sentado em um barranco e tudo que é
gerado pela realidade é atravessado por você pela contemplação, pelos seus sentidos. É uma
atitude de contemplação para com a realidade e não de interação específica. Na segunda
forma pode-se lançar uma pedra nesse lago. Pedra essa enquanto uma proposição, um
conceito, que vai gerar uma turbulência na realidade. Vai desorganizar um pouco esse lago,
vai reverberar a água. E uma terceira forma seria a de se lançar no lago, pular dentro d’água
em um processo mais de imersão dentro de uma realidade qualquer.
Nos encontros com o louco, estas três possibilidades podem estar presentes revezandose, alternando-se, convivendo.
Para apresentação construímos uma narrativa de situações experimentadas no campo
prático e as chamamos de cena. O objetivo é que a cena possa adquirir uma dimensão de
agenciamento coletivo. Ela não explica ou demonstra conceitos. O objetivo dela é funcionar
como uma operação conceitual fortalecendo, intensificando os conceitos no entrecruzamento
entre teoria e prática.
A noção de cena foi escolhida por estar associada ao lugar, ao espaço aonde uma ação
acontece.
A cena como um espaço dramático. A “cena” designa, originalmente, no
teatro grego, uma construção em madeira, a skêné, no meio da área de
encenação, depois por extensões sucessivas de sentido, essa área de
encenação inteira (o palco), depois o lugar imaginário onde se
desenrola a ação. (AUMONTE e MARIE, 2006, p.45).
A cena busca criar um plano de consistência para que os conceitos e prática se
articulem. Apresentaremos três cenas que versam sobre experiências com loucos, e usuário de
saúde pública em serviços de saúde e atendimentos de acompanhamentos terapêuticos.
Referências
AUMONT, Jean. e MARIE, M. Dicionário teórico e crítico de cinema. São Paulo: Papirus
Editora, 2006.
BRANDÃO, Ludmila de Lima. A casa subjetiva. São Paulo: Editora Perspectiva, 2008.
DELEUZE, Gilles. Crítica e Clínica. São Paulo: Editora 34, 2006.
DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix. Mil platôs vol 4 – Capitalismo e esquizofrenia. São
Paulo: Editora 34, 2008.
LINHA MESTRA, N.23, AGO.DEZ.2013
303
O ATO EM CENA
GUATTARI, Félix. Caosmose – um novo paradigma estético. São Paulo: Editora 34, 1992.
PELBART, Peter. A vertigem por um fio – Políticas da subjetividade contemporânea. São
Paulo: Editora Iluminuras, 2000.
LINHA MESTRA, N.23, AGO.DEZ.2013
304
TESSITURAS DE TERRITÓRIOS DE VIDA NOS ESPAÇOS URBANOS
Juliana Araújo Silva 1
A comunicação proposta pretende apresentar reflexões sobre as relações entre os meios
urbanos, os processos de subjetivação, e a intervenção urbana como uma das formas dos
corpos produzirem os espaços por eles habitados na cidade. Para a constrição desta reflexão
partimos de experiências de intervenção urbana na cidade de São Paulo realizadas pela oficina
de Coral Cênico e pela Oficina de Dança e Expressão Corporal do Projeto Cidadãos
Cantantes. Este Projeto existe há aproximadamente 20 anos e habita regiões de fronteiras
entres os campos da arte e da saúde. As oficinas são constituídas por pessoas quaisquer,
provenientes de diferentes locais da cidade, com diferentes faixas etárias e condições
econômicas, que possuem em comum a vontade de produzir coletivamente nas linguagens de
canto e dança.
O Projeto Cidadãos Cantantes busca uma relação com a cidade na qual possa fortalecer
sua ocupação e potencia em ser lugar para todos, cada qual em suas diferenças. Habitar São
Paulo desejando outro modelo de cidade é produzir outra cidade?
Milton Santos (apud BARBOSA, 2010) nos alerta para a alienação do homem em
relação aos espaços que produz e em que vive. O espaço é, para ele, constituído por múltiplas
camadas que envolvem o homem em seu aspecto biológico, suas redes afetivas, políticas e
atravessamentos regionais e mundiais. O espaço é matéria trabalhada pela sociedade. No
entanto, na lógica capitalista sob a qual vivemos em que o homem é separado dos sentidos de
suas próprias ações, perdemos a crítica à realidade. O espaço de vida passa a ser espaço de
especulação e mercadoria. Para o autor, o que “une” o espaço, fragmentado, é a produção
homogeneizante e a sua função de mercadoria. Uma unidade falsa, que se volta contra o
homem.
As diferenças passam a ser minadas em um espaço que serve ao capital e cujas funções
já se encontram estipuladas. A realidade de uma paisagem expressa uma conjuntura formada
por linhas de tempo acumuladas. Intenções que retornam em diferentes momentos, com
diferentes intensidades e ações.
Foucault (2008) considera que a circulação na cidade sempre foi uma questão de
governamentalidade quando, ainda nos séculos XVII-XVIII, as cidades já apresentavam
problemas ligados a sua heterogeneidade econômica e social, com intenso crescimento do
comércio e, mais precisamente, no século XVIII, aumento da demografia urbana. Algumas
cidades europeias foram então trabalhadas de modo a distribuir artificialmente as
multiplicidades pelos espaços citadinos a partir de princípios de hierarquização, comunicação
e funcionalidade. Assim, pretendia-se desfazer aglomerações desordenadas, regulamentar os
espaços e abrir novas funções econômicas. Para o autor, a circulação na cidade era uma das
principais questões, isto é, necessitava-se definir a boa e a má circulação. A noção de
circulação, em Michel Foucault, é ampla, envolvendo os deslocamentos, as trocas, o contato,
formas de dispersão e distribuições.
Ao longo da história, diversas transformações foram efetuadas nas cidades por seus
governantes, muitas tendo a rua como objeto: alargamento para evitar acumulação de
miasmas; vigilância para assegurar a segurança, já que as cidades não tinham mais muralhas a
cerrá-las; articulação de uma rede de ruas, a fim de facilitar o trânsito de mercadorias, entre
outras muitas intervenções.
Guattari, ao escrever sobre as questões da cidade no contexto atual, dirá que este
1
Terapeuta ocupacional formada pela USP e mestre em Psicologia e Sociedade pela UNESP- Assis. Trabalha no
CAPS II Infantil Brasilândia e Integra o Projeto Cidadãos Cantantes.
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305
TESSITURAS DE TERRITÓRIOS DE VIDA NOS ESPAÇOS URBANOS
Não é mais um problema dentre outros; é o problema número um, o
problema-cruzamento das questões econômicas, sociais e culturais. A cidade
produz o destino da humanidade: suas promoções, assim como as
segregações, a formação de suas elites, o futuro da inovação social, da
criação em todos os domínios (GUATTARI, 2006, p. 173).
O autor dirá também que a organização urbana está intrinsecamente vinculada a
fatores econômicos que indicam a formação de malhas urbanas, isto é, concentrações de
recursos e equipamentos tecnológicos, informáticos que organizam uma zona da cidade em
detrimento das demais zonas, que acabam por ficar desprovidas de tais recursos, acentuando
as desigualdades econômicas e de acesso às formas de comunicação. Ele afirma que, nos
países mais pobres, há a formação de campos de concentração, como se houvesse uma
estabilização de fronteiras que impedissem a passagem, o trânsito das pessoas pelas diferentes
regiões. Como as fronteiras abstratas que, segundo Suely Rolnik, separam os habitantes em
mundos diferentes, pautados por identidades estigmas que funcionam como imagens
fantasmagóricas nas quais a miséria material é lida como miséria subjetiva e existencial.
A tarefa de organizar a cidade continua desafiando o poder público. A maioria das
intervenções que pretendemos narrar, aconteceram durante a gestão do perfeito Gilberto
Kassab, dentro de um processo nomeado como “revitalização”.
O programa de revitalização do centro mobilizou diversas secretarias e foi alvo de
críticas divergentes. Com o objetivo de recuperar áreas degradas, buscou “melhorar a
qualidade ambiental, alavancar a economia da região, promover a inclusão social e o
repovoamento do Centro.” 2 (CENTRO SP, 3/1/2012). Para isso, o programa restaurou
edifícios com importância histórica (Biblioteca Mario de Andrade, Edifício Martinelli etc.), os
calçadões do centro velho, da Praça do Patriarca etc. Contudo, as ações que ganharam
destaque giraram em torno do “repovoamento do Centro”. Afinal, o que significa buscar
estratégias para repovoar uma região da cidade, modificar seus espaços públicos, senão,
novamente, estipular uma função para o centro da cidade e definir sua circulação, isto é, quem
pode e quem não pode circular pela região?
As ações deste programa podem ser lidas como intervenções biopolíticas nos espaços da
cidade. A biopolitíca é uma das tecnologias utilizadas pelo biopoder, o poder sobre a vida,
descrito por Michel Foucault (2005). Este poder sobre a vida utiliza-se tanto da disciplina dos
corpos, para conter as multiplicidades e normalizar comportamentos, quanto da biopolítica,
para regular a população, a vida na sociedade, a partir de seus processos mais amplos e gerais.
O Projeto Cidadãos Cantantes já realizou apresentações em ruas e praças, palcos e
eventos os mais diferentes. As apresentações que acontecem na rua e nas praças, às vezes
planejadas com antecedência outras vezes mais inusitadas, são bem interessantes e acabam
por ter como plateia um vasto número de pessoas que passam pelos locais. Cada apresentação
é diferente e depende da presença de quem pode ir naquele dia, do local, do horário e do
público. Em algumas situações, o ambiente no qual acontece a apresentação é mais definido,
tem um contorno mais claro, principalmente quando nossa apresentação integra um evento
“maior” e somos mais um a estar no local.
Estes momentos aproximam-se do que Vera Pallamin (2002) pontua como uma potência
da arte urbana, ao mexer em questões relacionadas com a acessibilidade e a participação de
diferentes grupos sociais na cidade e no viver coletivo. Para esta autora, estas são
problemáticas que permeiam a relação entre a manifestação artística e o espaço público. A
arte pode, introduzindo no cenário urbano novas falas, valores e proposições estéticas, trazer a
tona conflitos sobre “como e por quem os espaços da cidade são determinados, quais ações
2
Sobre a revitalização consultar o site disponível em: <http://centrosp.com.br/revitalizacao-centro-sp/> Acesso
em: 3 jan. 2012
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306
TESSITURAS DE TERRITÓRIOS DE VIDA NOS ESPAÇOS URBANOS
culturais contam ou quem tem exercido o direito à fruição, participação e produção cultural”
(PALLAMIN, 2002, p. 106) e assim disparar novos modos de apropriação e uso dos espaços
públicos urbanos.
Suely Rolnik (2003) propõe pensarmos a vida pública como uma máquina micro e
macropolítica que, a partir do encontro e confronto de multiplicidades, fabrica diferenças
intensivas que produzem o tecido social. Neste sentido, podemos entender como arte pública
aquela que participa desta produção em qualquer tipo de espaço. Dentro ou fora dos museus, a
arte pública, a qual a autora se refere, seria aquela que abordasse a alteridade e a dimensão das
sensações do corpo, conectando a subjetividade ao intensivo.
O campo artístico vem produzindo iniciativas que compõem com a mudança das
paisagens, sendo um potente viés de intervenção. Circulando nas cidades, percebemos
grandes grafites, pequenas colagens em placas e postes, escritos em pontos de ônibus, lambelambes que espalham mensagens escritas e imagens, elementos que, assim como as
apresentações das Oficinas do Projeto, têm o potencial de disparar sensações com diferentes
graus de intensidade.
É a formação de um ambiente coletivo que produz marcas e compõe com processos de
subjetivação. Félix Guattari e Suely Rolnik colocam concepções sobre a produção de
subjetividade que nos ajudam a compreender possíveis efeitos de intervenções como os
ensaios na vitrine e as apresentações na rua, realizadas pelos grupos do Projeto. Guattari
(2007) escreve que o indivíduo seria como um terminal, no qual se cruzam componentes de
subjetivação heterogêneos e até discordantes, em um processo. Através de instâncias
institucionais, coletivas e individuais vai-se tecendo estes processos de subjetivação ou
individuação, de maneira polifônica.
Neste processo, Guattari considera elementos discursivos e não discursivos. Ele ressalta
a dimensão pática, não-discursiva, da subjetividade, um dos meios pelos quais conhecemos a
cidade, e que ele chama de afetos estéticos. Assim, os espaços construídos da cidade
produzem uma subjetivação parcial que se conecta com outros agenciamentos de
subjetivação. Poderíamos então pensar na cidade como uma imensa máquina produtora de
subjetividade não só através da dimensão pática, mas através da educação, da cultura, do
controle social, por sua infraestrutura material e de comunicação. O espaço arquitetônico nos
interpela por meio de fatores estilísticos, históricos, funcionais e fornecem discursos
diferentes, conforme suas características, assim como impulsos cognitivos e afetivos. Assim,
ele coloca a importância de formular novos urbanismos e modos de vida na cidade, como
parte da proposta ecosófica. O encontro com os espaços da cidade são encontros nos quais
somos afetados tanto por sua dimensão física (construções, urbanismo) como por seus
acontecimentos. É um encontro com toda uma paisagem (GUATTARI, 2006).
Pontuais e efêmeras, as intervenções urbanas que aqui nos referimos, apontam a força e
a potência do acontecimento que rompe com modos sociais reprodutivos e provoca uma
fenda, instaurando uma situação que, durante certo tempo, permanece sem ser nomeada,
classificada, isto é, sem ser digerida como algo já pronto. Essa “fenda no cotidiano” ganha
existência a partir do momento em que as referências que temos para ler os acontecimentos do
mundo não nos servem, e momentaneamente habitamos, ao mesmo tempo, o nada e o tudo. A
ausência de palavras para descrever o que se passa, estando completamente envolto no
acontecimento.
Nesses momentos de apresentação na rua, a presença do espectador ganha outro sentido.
Não são espectadores sentados em uma sala a observar uma apresentação e nem são os
passantes que ficam do lado de fora do vidro a assistir os ensaios. São presenças importantes
no que ali acontece e formam, junto com os participantes da Oficina, um ambiente. É uma
presença muito mais forte, que demanda um esforço maior dos participantes ou para
conseguir se expor ou para conseguir manter um contorno grupal. Na participação da Oficina
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307
TESSITURAS DE TERRITÓRIOS DE VIDA NOS ESPAÇOS URBANOS
de Dança no Ocupa Sampa não havia barreiras para quem quisesse entrar, tanto que entraram
pessoas para dançar e também nos momentos de conversa, incitando uma mistura daquele
cenário, que não mais suportava uma delimitação clara de quem era o grupo se apresentando e
quem estava para assistir. A parceria com a banda que tocou para a Oficina, uma banda
independente que ali se encontrava, não foi um ato de coadjuvante, eles formaram juntos o
que ali acontecia. O mesmo se passou com os que estavam presentes na apresentação da
Oficina de Coral, no “outro lado do muro” – Movimento Social dos moradores da Vila
mariana contra a verticalização do bairro- as pessoas começaram a cantar e a dialogar com o
repertório que estava sendo apresentado, compondo com seus instrumentos e transformando a
apresentação do grupo em algo diferente. Diferente no sentido de desmanchar essa distância
de quem se apresenta e quem assiste. Quando na rua, os espectadores são parte do que
acontece.
Deste modo, relacionar-se com estes espaços ao intervir nestes, a partir de nossas
afetações pela cidade e pela vida urbana é fomentar novos urbanismos e modos de vida
coletivos na cidade. Fazer deslocamentos dos usos e significados dos territórios da cidade. As
intervenções possibilitam que os participantes produzam, artisticamente, criticas a como os
meios urbanos tem sido apropriados pelos homens. Este é um exemplo da potência destas
intervenções, que produzem diferenças no cotidiano das pessoas que participam delas,
produzem afetações em quem passa por elas, bem como resignificam o espaço
problematizando seus usos e reapropriando os habitantes da construção das territorialidades
por quais circulam.
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TESSITURAS DE TERRITÓRIOS DE VIDA NOS ESPAÇOS URBANOS
Fotografias
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TESSITURAS DE TERRITÓRIOS DE VIDA NOS ESPAÇOS URBANOS
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TESSITURAS DE TERRITÓRIOS DE VIDA NOS ESPAÇOS URBANOS
Referências
BARBOSA, Naiada Dubard. Fendas na cultura: a produção de tecnologias de participação
sociocultural em terapia ocupacional. 2010. 259p. Dissertação (Mestrado em Movimento,
Postura, Ação Humana) - Faculdade de Medicina, Universidade de São Paulo, São Paulo,
LINHA MESTRA, N.23, AGO.DEZ.2013
311
TESSITURAS DE TERRITÓRIOS DE VIDA NOS ESPAÇOS URBANOS
2010. Disponível em: http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/5/5163/tde-10052010145732/pt-br.php. Acesso em: 20 out. 2012
FOUCAULT, Michel. Segurança, território, população. Curso dado no Collège de France
(1977-1978). Trad. Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2008.
GUATTARI, Félix. Caosmose - um novo paradigma estético. Trad. Ana Lúcia de Oliveira e
Lúcia Claudia Leão. São Paulo: Ed. 34, 2006.
GUATTARI, Félix. As três ecologias. Trad. Maria Cristina F. Bittencourt. Campinas: Papirus
Editora, 2007.
ALLAMIN, Vera M. (org). Cidade e Cultura: esfera pública e transformação urbana. São
Paulo: Estação Liberdade, 2002.
LINHA MESTRA, N.23, AGO.DEZ.2013
312
A REDE DE SUSTENTAÇÃO DO PACTO: ACOMPANHAMENTO
TERAPÊUTICO E AGENCIAMENTO DE REDES NO TERRITÓRIO
Erika Alvarez Inforsato 1
Renata Monteiro Buelau 2
Elizabeth Maria Freire de Araújo Lima 3
Introdução
O Programa Composições Artísticas e Terapia Ocupacional (PACTO) do Laboratório
de Estudos e Pesquisa Arte, Corpo e Terapia Ocupacional, grupo vinculado ao CNPq, há 12
anos vem desenvolvendo ações articuladas de ensino e extensão universitária junto a
populações em situação de vulnerabilidade em função de deficiências, sofrimento mental e
desvantagem socioeconômica. (LIMA, et al., 2009)
Os usuários do PACTO, em sua maioria, apresentam dificuldades para a participação e
permanência em projetos do campo artístico-cultural em função de desorganização e
impedimentos na realização de atividades em seu cotidiano (tomar ônibus, preencher
formulários, fazer operações com dinheiro, transitar pela rua, deslocar-se pelos espaços
físicos, relacionar-se com outras pessoas). A população atendida pelo projeto vive sob
condições de vulnerabilidade de diversas ordens e tem pouco ou nenhum acesso às redes de
assistência e de participação sociocultural.
Uma das propostas de intervenção do programa, criado em 2002, é a Rede de
Sustentação, que prioriza o dispositivo do Acompanhamento Terapêutico (AT), com seus
elementos-base - setting aberto, disponibilidade em ato, enquadre flexível e manejo do
inusitado -, como estratégia de cuidado e agenciamento da participação sociocultural das
pessoas atendidas pelo PACTO. Este dispositivo visa enfrentar o desafio de promover esta
participação, criando sustentação para sua efetivação em ambientes de arte e cultura. O
atendimento de AT destina-se àqueles participantes que por motivos diversos (quadros com
diferentes deficiências, transtornos clínicos e mentais e/ou situação de vulnerabilidade social),
apresentam a necessidade de atenção intensiva e mediação de suas relações com seus grupos
de pertencimento.
Os estudantes de Terapia Ocupacional que participam do projeto realizam atendimentos
que se utilizam do dispositivo do AT sob orientação e supervisão de docentes e técnicos
terapeutas ocupacionais responsáveis por estes atendimentos, e são, assim, capacitados para o
trabalho territorial no campo de interface das artes e da clínica tanto em projetos da área da
saúde quanto nos da cultura. Esses estudantes são instrumentalizados para questões
relacionadas à acessibilidade às redes socioculturais; à construção de redes de pertencimento
social; à coordenação e desenvolvimento de grupos e ao próprio atendimento clínico destas
populações em situação de vulnerabilidade.
Acentuar o investimento nessas problemáticas colabora para todo o cenário de pesquisas
e práticas voltadas a essas populações desenvolvidas pela Terapia Ocupacional nas
universidades e nos setores públicos de gestão da saúde e da cultura do país. Em suas
1
Terapeuta Ocupacional do Curso de Terapia Ocupacional do Departamento de Fisioterapia, Fonoaudiologia e
Terapia Ocupacional da FMUSP. Pesquisadora do Laboratório de Estudos e Pesquisa Arte, Corpo e Terapia
Ocupacional.
2
Terapeuta Ocupacional do Curso de Terapia Ocupacional do Departamento de Fisioterapia, Fonoaudiologia e
Terapia Ocupacional da FMUSP. Pesquisadora do Laboratório de Estudos e Pesquisa Arte, Corpo e Terapia
Ocupacional.
3
Docente do Curso de Terapia Ocupacional do Departamento de Fisioterapia, Fonoaudiologia e Terapia
Ocupacional da FMUSP. Coordenadora do Laboratório de Estudos e Pesquisa Arte, Corpo e Terapia
Ocupacional.
LINHA MESTRA, N.23, AGO.DEZ.2013
313
A REDE DE SUSTENTAÇÃO DO PACTO...
contribuições no ensino, na extensão e na pesquisa, o Laboratório de Estudos e Pesquisa Arte
e Corpo em Terapia Ocupacional da FMUSP enfatiza esse campo problemático, e desenvolve
suas investigações e sua práxis na interface entre as artes e a saúde.
As ações da Rede de Sustentação ocorrem em formatos ligados a programas de
disciplinas de graduação – “Estágios Supervisionados – Terapia Ocupacional e as Ações na
Interface Arte e Saúde” -, e/ou a programas de bolsa-trabalho da COSEAS - Coordenadoria de
Assistência Social da USP e, atualmente, a projetos Aprender com Cultura e Extensão da Próreitoria de Cultura e Extensão Universitária da USP (PRCEU). Com esta proposta didáticoassistencial, o PACTO oferece atendimento à população e contribui com a formação, o
exercício profissional e a investigação científica do campo de atuação da Terapia Ocupacional
(TO) com enfoque no dispositivo do AT em atendimentos diretos com as populações, em
situações individuais e grupais.
Em todo o processo, a capacitação profissional desses estudantes fica voltada às
intervenções territoriais que incrementam propostas culturais que já assistem ou que tem
potencial para assistir estas populações em situação de vulnerabilidade.
Objetivos e metas
As ações desenvolvidas pela Rede de Sustentação do PACTO voltam-se às populações
em situação de vulnerabilidade e focalizam o agenciamento de redes de inserção
sociocultural.
Para tanto, são objetivos do projeto, a serem realizados por estudantes, pesquisadores e
terapeutas ocupacionais a ele vinculados:
• Mapeamento do território da cidade de São Paulo, efetuando contatos com equipes e
serviços de saúde, educação e cultura;
• Acolhimento e levantamento de necessidades de gestão do cotidiano dos participantes
do PACTO, que impliquem em deslocamentos acompanhados por equipamentos de
saúde e de assistência social, bem como de cultura e inserção artística;
• Colaboração a grupos que atuam na interface das artes e da saúde, conveniados com o
PACTO;
• Fomento de fóruns de discussão (reuniões e supervisões) clínica e de temáticas das
artes, da cultura e da cidadania, que envolvem as populações atendidas em Terapia
Ocupacional;
• Realização de uma cartografia das principais ações desenvolvidas no âmbito da Rede
de Sustentação do PACTO e seus efeitos relevantes (leitura de documentos, contato
com ex-estudantes envolvidos nestas ações);
• Preparação de material para divulgação desta cartografia e divulgação desta
cartografia nos ambientes acadêmicos da Terapia Ocupacional.
As metas do projeto estão relacionadas aos avanços que o projeto possibilita no âmbito
da formação de terapeutas ocupacionais e da atenção a populações em situação de
vulnerabilidade. Elas se focalizam na instrumentalização do estudante para o trabalho
territorial no campo de interface das artes e da saúde; no incremento das atividades
assistenciais da Rede de Sustentação do PACTO; na aproximação do estudante de TO do
dispositivo clínico do AT como formação inicial; e, na construção da rede de pertencimento e
sociabilidade para os usuários do PACTO no campo sociocultural.
O foco da atuação dos estudantes está no agenciamento das redes socioculturais a partir
do acolhimento e levantamento de desejos e necessidades de gestão do cotidiano dos usuários.
LINHA MESTRA, N.23, AGO.DEZ.2013
314
A REDE DE SUSTENTAÇÃO DO PACTO...
Essas ações implicam em deslocamentos acompanhados em equipamentos de saúde e de
assistência social, bem como de cultura e artes. (WATANABE et al. 2011).
Desdobramentos
No presente momento pretendemos avançar na implementação da proposta, com a
realização de um rastreamento das ações concluídas, construindo um material de avaliação e
consulta para o Laboratório, que deverá ser divulgado em ambientes da TO como referência
para outros estudantes e profissionais. Nesta etapa, também, os estudantes deverão voltar-se
ainda mais para colaborar na sustentação de projetos grupais na interface arte-saúde, com a
pesquisa de formas de incremento da participação sociocultural de pessoas em situação de
vulnerabilidade, buscando agenciar as demandas nos planos artístico-cultural e clínico. Para a
articulação desses planos o projeto deverá intensificar sua abordagem da hibridização entre
arte, saúde e cultura. Pretende-se, ainda, criar um espaço para o aprofundamento em questões
técnicas e teóricas deste campo, incluindo o estudo de políticas culturais para pessoas em
situação de vulnerabilidade e a compreensão e atuação no campo dos projetos culturais e da
efetivação dos direitos.
Conclusão
As pessoas atendidas pela Rede de Sustentação, cada um a seu modo, possuem um
cotidiano restrito no qual os projetos do PACTO ou das parcerias, muitas vezes, apresentamse como único espaço de pertença e encontro. Os territórios habitados limitam-se quase que
somente a suas casas e aos poucos espaços que frequentam com suas famílias. Assim, o AT
possibilita uma exploração acompanhada do entorno de suas casas, na procura de outros
espaços de pertinência e sociabilidade.
Essa proposta aposta numa ampliação dos territórios existenciais dessas pessoas, o que
implica, em alguns momentos em processos de desterritorialização (DELEUZE e
GUATTARI, 1997), que precisam ser acompanhados com prudência e cuidado. Implica,
também, um processo de enfretamento dos pontos duros do território, apostando em microdesterritorializações desses lugares, que estão atravessados por forças de exclusão e
homogeneização. Ao passear pelos espaços da cidade com pessoas dissonantes a essas
paisagens, promove-se uma desestabilização do território social e cultural que tem que se
reconfigurar para comportar essas e tantas outras existências dissidentes.
Talvez acompanhando esses processos possamos encontrar uma força subjetiva,
coletiva, da qual nos fala Toni Negri, capaz de resistência diante de um “modelo universal
exclusivo que tem por característica primeira excluir massas inteiras de uma pretensa
universalidade inclusiva” (Pelbart, 2000: 31). Para isso seria necessário cavar sempre
a partir do ponto mais baixo: esse ponto não é a prisão enquanto tal, é
simplesmente onde as pessoas sofrem, onde elas são as mais pobres e as
mais exploradas; onde as linguagens e os sentidos estão mais separados de
qualquer poder de ação e onde, no entanto, ele existe; pois tudo isso é a vida
e não a morte. (Negri, 2001: 55).
O trabalho realizado pode, também, levar a processos de composição com recursos do
próprio território. Nesta perspectiva, não trabalhamos na direção de incluir alguém numa
configuração social hegemônica, mas sim de reinventar o próprio território da cidade.
Reabilitar o território (CASTRO, 2001), em suas dimensões geográfica, política e cultural;
dimensões que comportam ainda um plano micropolítico, aquele dos encontros e afetos que se
constelam na relação com o padeiro, com o motorista do ônibus, com o segurança de um
LINHA MESTRA, N.23, AGO.DEZ.2013
315
A REDE DE SUSTENTAÇÃO DO PACTO...
museu. Enfim, todo um conjunto de ações que provocam, instigam, convidam o território, a
cultura, a construir coletivamente novas formas de convivência com a diferença.
Referências
CASTRO, E. D. Atividades artísticas e terapia ocupacional: construção de linguagens e
inclusão social. São Paulo: ECA-USP. Doutorado. 2001.
DELEUZE G, GUATTARI F. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia, v.4. São Paulo: Ed.
34; 1997.
LIMA, E. M. F. A.; CASTRO, E. D.; INFORSATO, E. A.; LIMA, L. J. C. Ação e Criação na
Interface das Artes e da Saúde. Revista de Terapia Ocupacional da USP, v. 20, p. 143-148,
2009.
NEGRI, A. Exílio. São Paulo: Ed. Iluminuras. 2001.
PELBART, Peter Pál. (2000). A vertigem por um fio: políticas da subjetividade
contemporânea. São Paulo: Fapesp/Iluminuras.
WATANABE, B. H.; HUN, C. F. U.; INFORSATO, E. A.; LIMA, E. M. F. A. Cartografias
do Acompanhamento Terapêutico em Terapia Ocupacional no agenciamento de redes à
população atendida. Trabalho apresentado no Simpósio de Acompanhamento Terapêutico e
Saúde Pública. 2012.
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316
SESSÃO 18 – POESIAS, IMAGENS E AFRICANIDADES: DESEQUILÍBRIOS
NOS TERRITÓRIOS IDENTITÁRIOS E AUTORAIS
COLETIVO FABULOGRAFIAS: QUE POTÊNCIAS, QUE FRONTEIRAS?
Alik Wunder 1
Alessandra Melo 2
Ronaldo Entler (2011) escreve sobre o redimensionamento da autoria fotográfica pelos
movimentos contemporâneos, que propõem ações coletivas no campo das artes. Os coletivos
problematizam e colocam em suspensão a necessidade autoral-pessoal das criações,
assumindo que a arte se faz num processo de criação colaborativa. Neste processo, o que se
destaca nas obras é o nome do coletivo, e não dos artistas que o compõem. A partir desta
ideia, pode-se pensar que “qualquer linguagem pertence à cultura, não ao indivíduo: o autor se
constitui sempre a partir de uma apropriação de um bem coletivo” (p.02). Desta forma, até a
mais simples captação de imagem estará “atravessada por um gesto maior do que o do próprio
artista” (p.01). Também nos interessa no Projeto Fabulografias desequilibrar o caráter autoral
das fotografias, bem como das produções escritas, para que se deixem atravessar por
composições, misturas, mixagens numa criação colaborativa entre diferentes pessoas. As
criações realizadas no projeto são de autoria do Coletivo Fabulografias. As oficinas que
ocorrem em escolas, na universidade, nos espaços culturais vão expandindo este coletivo,
formado por todos aqueles que um dia debruçaram-se criativamente sobre imagens e palavras
a partir de uma pergunta mobilizadora: que áfricas ventam por você? As pessoas mudam,
ficam os postais, que são impressos e apresentados em banquetes de palavras e imagens como
inspiração inicial para os novos encontros. Não interessa nomear, explicar, contextualizar ou
gerar uma consciência sobre, mas gerar um movimento de encontros entre intensidades e
sensações em que a força reside e se dispersa por entre as palavras e imagens dos cartõespostais. Sentir, pensar e criar ventos-áfricas com imagens e palavras num coletivo que é
possível na conexão gerada pela composição entre poemas e imagens e no convite que
fazemos à entrada neste fluxo de criações. Quando a potência recai sobre as imagens e as
palavras, retira-se a centralidade no sujeito-autor, tão caro à modernidade: “sujeito que produz
um discurso em que se reconhece de forma coerente, um discurso pelo qual deve se
responsabilizar e que, em contrapartida, pode reivindicar como sua propriedade” (ENTLER,
2011, p.5). Nas criações não se exigem explicações e coerências. A linguagem é um jogo, um
gesto de entrega às ficções coletivas. Os postais chegam como um vento que passa, pedem
gestos apropriativos, “mixagens”, recortes, colagens, rasuras, fragmentações, descontinuidades.
Desequilibrar as identidades individuais e conectar desejos criativos vários poderia ser
uma maneira de lidar com as africanidades menos pela demarcação de fronteiras e mais por
uma subjetividade sempre provisória e móvel. Contar com o inesperado que se materializa nas
criações e propiciar a subversão da categoria tão estável da identidade, ao lidar com as
africanidades, parece ser um caminho fértil.
É da rasura que nascem as criações coletivas e não das demarcações identitárias. A
mixagem é possível através dos objetos trazidos pelos participantes e é espantosa a
quantidade e variedade de respostas possíveis. Ao assumirem suas Áfricas, trazem à tona a
materialização desta nova subjetividade, expondo as diferentes facetas e modos de transitar
entre as diferentes fases da produção: ao escolher uma imagem outra, ao se tornar fotógrafo,
1
2
Professora da Pontifícia Universidade Católica de Campinas. E-mail: [email protected].
Graduanda em Filosofia pela Universidade Estadual de Campinas. E-mail: [email protected].
LINHA MESTRA, N.23, AGO.DEZ.2013
317
COLETIVO FABULOGRAFIAS: QUE POTÊNCIAS, QUE FRONTEIRAS?
ao ser iluminador, ao realizar uma pós-produção de imagens, ao compor textos para os versos
do cartão postal.
Da composição criativa do pensamento e da arte, derivam a mixagem entre palavras e
imagens e conversas educação/imagem/cultura. Os postais convidam para um gesto de criação
movida pela potência efêmera das palavras e das imagens da contemporaneidade, afirmam o
endereçamento em aberto que as redes sociais e mídias digitais criam. Com que potências as
experimentações inventivas com fotografias tensionam as fronteiras representacionais que
garantem a autoria e a expressão de identidades fixas por imagens? Interessa pensar em como
as artes – literatura, fotografia em especial – podem movimentar-se afirmando estas potências.
Interessa rasurar as fronteiras entre ações educacionais, artísticas e acadêmicas. Há aí
potências a perseguir, efeitos intensivos que provém das imagens e palavras na
contemporaneidade: a perda da potência autoral, a fragmentação, a efemeridade, a ficção e o
endereçamento em aberto. Novos tempos-ventos a perseguir e a resistir...
Criações postais 3:
3
Seleção de algumas criações de postais produzidas em oficinas realizadas em centros culturais, escolas e
universidades entre 2010 e 2012.
LINHA MESTRA, N.23, AGO.DEZ.2013
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COLETIVO FABULOGRAFIAS: QUE POTÊNCIAS, QUE FRONTEIRAS?
LINHA MESTRA, N.23, AGO.DEZ.2013
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COLETIVO FABULOGRAFIAS: QUE POTÊNCIAS, QUE FRONTEIRAS?
LINHA MESTRA, N.23, AGO.DEZ.2013
320
COLETIVO FABULOGRAFIAS: QUE POTÊNCIAS, QUE FRONTEIRAS?
Referências
ENTLER, Ronaldo. Os coletivos e o redimensionamento da autoria fotográfica. Revista
Studium. Disponível em: http://www.studium.iar.unicamp.br/32/3.html.
LINHA MESTRA, N.23, AGO.DEZ.2013
321
ESCRITAS AO VENTO
Alda Romaguera 1
Davina Marques 2
A exposição Fabulografias: áfricas em ventos aconteceu de 02 a 20 de julho de 2012 no
Espaço Cultural Casa do Lago e foi gestada nos projetos de pesquisa e extensão “In-ventos
por entre áfricas, literaturas e imagens” e “Fabulografias em áfricas-cartões-postais”, em
oficinas de criação com imagens e escritas com pesquisadores e estudantes da Unicamp,
artistas visuais, grupos que lidam com a cultura afro-brasileira e alunos de escolas públicas de
Campinas. Nestas oficinas produzimos objetos expositivos: vídeo poemas, cartões postais
visuais e sonoros, em que palavras/imagens criam novas visualidades e visagens, na relação
com a arte. A exposição sugere encontros entre palavras e imagens e sons e cores, entre
experiências, entre pessoas. Criações imagéticas coletivas de fotografias, instalações, poesias,
vídeos, são movidas pela pergunta: que áfricas ventam por você? - e convidam o público a
também lançar suas respostas com/por imagens, palavras e sons.
Esta comunicação reúne algumas dessas escritas, oferecidas ao vento na instalação de
galhos e postais flutuantes. O público foi convidado a interagir com essa instalação a partir da
proposta: Verse no verso dos postais e pendure-os ao vento. Aqui elas foram recolhidas e se
movimentam em composições coletivas e anônimas; foram agrupadas em dois momentos:
“ventos”, no qual se aproximam as escritas em torno do pensamento em movimento, e “que
áfricas ventam você?”, no qual estão reunidos pequenos poemas que buscam responder a esta
pergunta com/pela arte. No processo de criação destas escritas, nos fazemos acompanhar por
Rancière (2007) e com ele problematizamos:
Escrever para quê?
Para criar uma língua de/por/com imagens, que joga livremente com palavras
desconectadas, como forma de fazer ver ou ouvir, de fazer sentir sensações extralinguísticas,
fragmentar, criar imagens, sensações-ventos. Caberiam a vida e o tempo em um cartão postal?
Escrita-em-limite do cartão postal; escrever no verso do postal, (con)versando [ou (com)
mesmo?] com suas imagens: versos a versar, avesso, reverso.
Escrever para quem?
Para um/a leitor/a desconhecido/a...
leitor qualquer
escrever para experimentar
transitar pelo infinito da vida possível
escrever encontros
ins-pirar
textos e postais e poetagens
(in)ventar
Banquetes de imagens e palavras
aguçando desejos de criar
em lugares muitos
1
2
Professora pesquisadora do Programa de Mestrado em Educação, Univás - MG; [email protected]
Docente no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de S. Paulo; [email protected]
LINHA MESTRA, N.23, AGO.DEZ.2013
322
ESCRITAS AO VENTO
de jeitos outros
entre-ver
vistar
adivinhar
cadências
harmonias
tempos
sonoridades
registrar encontros
a-pre(e)nder
fotografias e criações
ousar
misturar no instante
imagens, cores e sons
a dançar
compor um desenho sonoro
soar diferentes matizes
de forças
(i)materiais
Envolver-se pelos/nos
encantamentos da escrita
ler como quem escorre os olhos
e passeia por brancos espaços
onde o nanquim não pintou
tracejar pontos de fuga
escapar pelas frestas
das palavras prontas
apagando-as
deixar rastros mortos
prenhes de significação
com eles traçar veios/vias
rios e deixar escoar linhas outras
Nestas/destas linhas outras, (in)ventamos...
Ventos
A manhã acorda na inspiração da arte
A fluidez da leitura pode nos fazer voar!
Vozes que ventam após ventanias silenciosas
Divina luz que venta memórias, olhares, lugares.
Sombras de mim e de outros.
Nós...
Assopro sua imagem
A luz venta no pano
Filtro
LINHA MESTRA, N.23, AGO.DEZ.2013
323
ESCRITAS AO VENTO
O azul da terra toca o entardecer!
Pendure suas dores no varal!
De olhos fechados todo azul é negro
Atenção nas pausas
Ouvindo os tambores do silêncio
Ousadia para caminhar
Pra onde o vento aponta.
O que adorna o pensamento?
Não sei se foi o vento que partiu...
Ou meus pensamentos que voaram pelo horizonte.
Livre...
Livre...
Livre!
Como o vento que desliza sobre o tempo
Asas abertas.
Vento no vento
Vento na voz
Grafia impossível
Do que é ar
E tempo.
Que o vento leve meu pensamento
Deitar-me-ei em lençóis flamejantes
Coloridos, pulsantes.
A áfrica que toca meu peito
Dum jeito
Único
Luz e movimento
Histórias, línguas, dialetos
Coração que bate ao som do tambor
A renda daquela senhora
Minha avó.
Ventos levam histórias pra todos os lugares.
Encantos!
Grafar uma música e como querer fotografar o vento
A música existe no tempo
A grafia existe no espaço
E o vento
No vento
Ao som do momento
E do movimento
Ritmos sons
Mitos lendas conexões...
Lá vem o tempo
Espiral do momento
Azul de minha vida
LINHA MESTRA, N.23, AGO.DEZ.2013
324
ESCRITAS AO VENTO
Atravesso
Atra-verso
Vou por terras e águas
Não me convenço
Com-verso.
In-vento
Ventos sem limite
Na minha voz
Da terra a foz
Deságuo...
Vento que re-versa o verso
Move o universo
De dupla face:
a palavra preenchendo o branco
a arte revelando a imagem
algo que se concentra no fundo
algo que na superfície se acha.
Que áfricas ventam você?
Áfricas das cores
De alegrias
E de dores
Áfricas da curiosidade
E também de amores.
África de felicidade
África de luz
África de paz e amor
África de todos nós...
Áfricas amigas
Ventam por mim
Enfim!
Muito cedo a minha angola deixei
Não sei se a conheço bem
Mas um dia a ela retornarei
Ogum majô eh Mariô
Ogum majá eh
Minha viagem é um lugar distante
Bem aqui
Neste instante
Abri-r
A p-orta
f-o-i...
estar
ficar
ir, mas
voltar
LINHA MESTRA, N.23, AGO.DEZ.2013
325
ESCRITAS AO VENTO
e todos saberão
em que áfrica
ficará a cor
o som
o mar
o dom
guinés
arruda
axé
êba obá
baobá
axé
babá
êpa larô iê
Kawô alecrim
Sálvia salve!
Faláfrica
Falamos...
Porvir
Travessia
Por entre línguas, sons, e potências
Filosofia
Diferença
A poesia
As escolhas para a composição destes dois momentos foram norteadas pelo uso da
aleatoriedade, privilegiando o gesto apropriativo, em que a “mixagem” envolve práticas as
mais diversas: a colagem, a laceração (rasura), a compressão e a acumulação. Esse
procedimento foi utilizado na montagem de imagens e textos para a composição com os
postais que foram entregues ao vento durante a exposição, garantindo que o resultado dessa
produção não fosse previamente determinado.
Referências
DERRIDA, Jacques. Cartão-Postal - de Sócrates a Freud e Além. Tradução Simone Perelson
e Ana Valéria Lessa. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007.
LINHA MESTRA, N.23, AGO.DEZ.2013
326
QUE ÁFRICAS FOTOGRAFAM MELHOR VOCÊ? UMA DIDÁTICA
MENOR A PARTIR DO PROJETO FABULOGRAFIAS
Glauco Roberto da Silva 1
Este texto se movimenta com palpitações que se intensificam a partir de desejos de
investigar uma didática menor nas salas de aula. A inquietação dessa escrita surge a partir de
experiências que foram realizadas nas escolas públicas da cidade de Limeira – SP no ano de
2012 e que ainda continuam. No ano de 2012 fui levado por ventos, até então desconhecidos
por mim, a ser professor. Digo desconhecido, pois, apesar de minha formação apresentar
licenciatura, eu não pretendia dar aula em escolas de ensino fundamental e médio do Estado.
Porém, fui desviado dessa pretensão, e quando menos percebi, estava dentro de uma sala de
aula.
Logo nos primeiros dias fui tomando conta com tudo o que acontecia na escola. Foi
assim que tomei contato com alguns projetos que a escola desenvolvia. Um sobre a África 2 e
outro era sobre ciência. Os temas eram interessantes e logo me vi fascinado com a
possibilidade de trabalhar aquilo em sala de aula. Mas como trabalhar?
Pensei em algumas possibilidades de desenvolver esses projetos e uma delas estava
ligada as minhas experiências e vivências acadêmicas. Foi com esse pensamento que me
vi empolgado com a possibilidade de conectá-los com meus aprendizados enquanto
bolsista do Labjor-Unicamp. Assim, para trabalhar com a África no ensino fundamental
me aproximei das ideias do projeto do grupo Fabulografias 3, cujo trabalho é realizado por
uma equipe multidisciplinar ligada ao Labjor e Faculdade de Educação– Unicamp. O
Fabulografias trabalha imagens e sons ligados à África que fogem aquelas divulgadas nas
mídias. Imagens que fogem aos clichês. Tendo o trabalho do grupo Fabulografias como
caminho a ser seguido, me pus a andar em busca de algo semelhante, pois o trabalho do
grupo Fabulografias era para mim algo inspirador. E assim fomos atrás de roubos
possíveis. O roubo a que aqui me refiro, não é o roubo do plágio, mas sim o roubo no
sentido deleuziano, o roubo que é produto de encontros, de acontecimentos, cujos
resultados são produções criativas. (Gallo, 2000, p. 50)
Tendo firmado nosso objetivo e nossa referência, começamos a andar, melhor dizendo,
roubar, roubar para criar, para inventar novos caminhos. Nessa nossa busca, por áfricas
possíveis de serem inventadas, ficamos aproximadamente um ano. Um tempo em que nos
debruçamos sobre pesquisas de imagens, sons e textos da África.
Iniciamos o projeto lentamente com conversas com os alunos. Nessas trocas de ideias
descontraídas, tínhamos como objetivo verificar que imagens eles tinham da África. Jogamos
uma pergunta no ar: o que vocês sabem da África? Essa questão deveria ser respondida na
forma de um desenho, um desenho postal. Um cartão postal visual 4. Pedimos que os alunos se
1
Graduado em Filosofia pela Unicamp. Professor da rede pública de ensino do Estado de São Paulo. Pósgraduação (Especialização) em Artes e Educação – Unicamp.
2
Esse texto está focado apenas no projeto da escola que se refere ao tema África.
3
O coletivo Fabulografias tem como equipe executora: Prof. Dr. Antonio Carlos Amorim (professor
responsável), Profa. Dra. Alik Wunder (coordenação), Profa. Dra. Susana Oliveira Dias (pesquisadora
colaboradora), Profa. Dra. Érica Speglich (pesquisadora colaboradora), Profa. Dra. Alda Romaguera
(pesquisadora colaboradora), Bia Cavani Porto (artista visual – bolsista de capacitação técnica), Gustavo
Torrezan (artista visual e pós-graduando em Educação), Larissa Gaulia (bolsista SAE e estudante de engenharia
de computação), Lais Fernanda Jaciane (estudante de pedagogia – bolsista SAE), Laura Regina Fernin (estudante
de pedagogia – bolsista Pibic), Alessandra Melo (estudante de filosofia – bolsista SAE), Vinícius Bastos Gomes
(estudante de música – pesquisa Pibic), Kildery Monteiro (estudante de ensino médio – bolsista Pibc Jr), Bruna
Cristina Gama (estudante de ensino médio – bolsista Pibc Jr).
4
Ideia essa baseada no Fabulografias.
LINHA MESTRA, N.23, AGO.DEZ.2013
327
QUE ÁFRICAS FOTOGRAFAM MELHOR VOCÊ? UMA DIDÁTICA MENOR...
imaginassem fazendo uma visita na África e, a partir dessa visita, mandassem um cartão
postal desenhado por eles, a alguém da família. Desse exercício, percebemos que as imagens
que iam surgindo mostravam que a maior parte dos adolescentes tinha arquivado em sua
memória imagens que retratavam o continente africano como um lugar onde predominam
florestas, animais 5 e fome.
Imagem 1
A partir desses primeiros desenhos, concluímos que a maioria dos alunos tinha sua
memória visual marcadamente educada por um cotidiano imagético cunhada por uma
política visual, cultural e estética, (ALMEIDA, 1999) cujas representações visuais da
África são apresentadas como sendo um continente, apenas pobre onde só existem animais
e florestas.
O trabalho de pesquisa continuou, e uns dos momentos mais marcantes dessa busca, por
outras possibilidades de pensar a áfrica, vieram de uma pequena oficina sobre cultura
africana 6. Ali os alunos começaram a perceber que muitas coisas da cultura afro, faziam parte
do cotidiano e da vida deles. Essa oficina se desdobrou num movimento, não só de
pensamento, mas também de olhar, que levou os alunos a experimentarem uma outra forma
de ver e pensar a áfrica. Dobras e desdobras de pensamentos de olhares que permitiram
caminhos por outras imagens, outras de Áfricas possíveis.
Nessa agitação do pensar e do olhar, fomos levados para outros lugares. Nessa viagem,
fomos carregados por ventos que a todo o momento in-ventam e multiplicam conexões
possíveis entre a cultura afro (poesia, contos, música, arte, literatura, fotografias, dança,
cinema, etc.) e a vida dos alunos. Dos resultados desses encontros-pesquisas afro-brasileiras
começam a surgir forças. Forças de pensar e produzir Áfricas: Áfricas-poéticas, artísticas,
imaginativas. Áfricas que escapam a uma política visual que privilegia a imagem como uma
representação intacta de certas visibilidades. (WUNDER, p.3, 2011)
Na busca de outras visibilidades africanas, estávamos sempre pesquisando,
experimentando outros novos encontros com as Áfricas. Dessa maneira, pelo menos uma vez
5
6
Na imagem 1 vemos um dos desenhos-cartões-postais feitos pelos alunos.
Essa oficina foi dada por algumas pessoas ligada ao movimento afro de Limeira.
LINHA MESTRA, N.23, AGO.DEZ.2013
328
QUE ÁFRICAS FOTOGRAFAM MELHOR VOCÊ? UMA DIDÁTICA MENOR...
por semana estávamos na biblioteca da escola. Nela procurávamos pela África em livros,
jornais e revistas. Em outro momento estávamos na internet, onde buscávamos por imagens 7
(ver imagem 2), em outros momentos percorríamos os olhos em filmes, alem de buscar
pesquisas na vida de cada aluno, em conversas descontraídas onde emergiam Áfricas.
Imagem 2
E assim seguimos com as experimentações, apostando sempre em uma educação que
privilegia o conhecimento do aluno, na troca de experiências, além das pesquisas com
imagens e culturas.
Para aumentar ainda mais nossas experiências visuais, fez parte do projeto uma visita no
museu afro-brasileiro em São Paulo. Um momento rico de conhecimentos. Ali pudemos
perceber o quão vasta é a cultura africana e como ela marca externamente e internamente cada
um de nós.
Essa pesquisa de campo contribuiu para o segundo movimento do projeto. Agora era o
momento de começarmos a produção das imagens de nossas áfricas.
Para começar tínhamos uma ideia: projetar, com o datashow, imagens da África
selecionadas durante o ano, no corpo dos alunos. Sugerimos essa ideia para alguns estudantes
que, por sinal, acharam divertido e interessante. As sessões aconteceram na sala de aula.
Montamos o datashow, arrumamos a sala, chamamos duas alunas e começamos as projeções e
fomos fotografando 8. Nesse caso, nós escolhemos algumas imagens e projetamos nos alunos,
não foram as duas alunas que escolheram.
7
Imagem pesquisada e arquivada pelos alunos durante as aulas.
As fotos foram feitas por Glauco da Silva e André Aparecido Malavazzi. É importante falar que esse ensaio
fotográfico aconteceu no final do ano letivo, aproximadamente, nas primeiras semanas de dezembro de 2012.
8
LINHA MESTRA, N.23, AGO.DEZ.2013
329
QUE ÁFRICAS FOTOGRAFAM MELHOR VOCÊ? UMA DIDÁTICA MENOR...
Imagem 3
O resultado foi interessante 9, ficamos muito felizes com as fotografias. Os alunos
ficaram motivados e a notícia sobre as fotos começou a rondar a escola, porém a segunda
sessão foi mais produtiva, pois tinha mais alunos, mas não podíamos tirar fotos com todos,
então selecionamos uns quinze. Eles se envolveram e participaram muito da sessão. E foi
nesse momento que sugerimos, professor e alunos, projetar no rosto e no corpo deles imagens
que, de alguma maneira, se conectavam com eles, imagens que eles mesmos haviam
selecionado durante o ano do projeto. E que agora estavam selecionando para sobrepor a seus
corpos para serem fotografados 10.
9
Na imagem 3 vemos uma das fotografias, do primeiro ensaio, feita em sala de aula com uma das alunas do
ensino fundamental.
10
Outra Fotografia (imagem 4) da segunda sessão fotos. Nesse caso o aluno escolhia a imagem da África que
melhor fotografava com ele.
LINHA MESTRA, N.23, AGO.DEZ.2013
330
QUE ÁFRICAS FOTOGRAFAM MELHOR VOCÊ? UMA DIDÁTICA MENOR...
Imagem 4
Os estudantes acharam a ideia divertida e ter a áfrica projetada no rosto, na pele, passou
a ser algo divertido, e o resultado ficou interessante. Nesse movimento, os alunos começaram
a sugerir imagens que ficariam melhores neles e nos outros amigos. Eles diziam: “professor
acho que aquela imagem combina mais com ele, aquela outra com ela”. Os estudantes
começaram a brincar com as possibilidades de serem fotografados através das áfricas.
Dessa experiência, ainda hoje surgem muitos pensamentos, questões que ainda
pretendem ser respondidas, por exemplo, o que essas imagens faziam os alunos pensar? Como
se dá a relação conteúdo e linguagem, eles se misturam? Forma e expressão e forma e
conteúdo juntas, formam que pensamentos?
Essas ainda são questões que estão à deriva, estão esperando respostas que aconteceram
ainda esse ano com outras oficinas em outra escola.
No dia em que coloquei os pés, pela primeira vez, na sala de aula reuniram-se em mim
um amontoado caótico de sensações. Senti de tudo, menos o desejo de ser professor. Essa
vontade ainda não tinha aparecido. Naquele primeiro momento tudo era bagunça, os
pensamentos, as dúvidas, a didática, os sentimentos e também a bagunça da sala de aula com
LINHA MESTRA, N.23, AGO.DEZ.2013
331
QUE ÁFRICAS FOTOGRAFAM MELHOR VOCÊ? UMA DIDÁTICA MENOR...
seus alunos desinteressados. Os dias foram passando e esse meu caos interior foi aumentando.
Assim eu seguia cada dia mais inquieto, meus pensamentos se agitavam, eu me movimentava
na busca por possibilidades, de pensar maneiras de trabalhar os conteúdos das aulas.
Aquele meu caos angustiante, que antes me desorientava, começou a me mostrar o
caminho. Respostas relacionadas ao caminho didático começaram a brotar. Novas
possibilidades surgiam. Uma delas era utilizar aquele caos das salas de aula de forma que
aquilo produzisse algo novo. Mas não era fácil. Como encontrar no deserto da escola,
naqueles momentos de solidão em que preparava as aulas, uma forma de me aproximar e
movimentar os pensamentos dos alunos?
No meio de pensamentos, possibilidades, desejos, angústias, silêncios, me surgiu o
projeto Fabulografias. Afinal eu teria que trabalhar África com os alunos, e isso poderia ser
feito com aproximações “Fabulográficas”, uma possibilidade de trabalhar o tema a partir de
imagens, vídeos, poesias, cinema, literatura, jornais, fotografia e oficinas temáticas. Além do
mais, a maneira como queríamos desenvolver isso era de forma coletiva com os alunos
(Gallo. P. 61). Queríamos um saber que se movimentasse em busca do experimentar, do novo,
do fazer diferente: “eu faço, refaço, e desfaço meus conceitos a partir de um horizonte
movente, de um centro descentrado (...)” (DELEUZE apud GONTIJO 2008, p. 81). Foi
pensando nisso que me reencontrei com Deleuze 11. E nesse encontro fui movimentando ideias
e desejos de pensar uma didática menor. Uma maneira minha de ensinar e produzir
pensamentos nos/com os alunos. Uma didática que surgia para mim como resistência a uma
configuração clássica de didática, aquela, presa apenas as salas de aulas e a livros didáticos.
Para despistar essa forma clássica de pensar e trabalhar as aulas, me conectei ao pensamento
do projeto Fabulografias. Dessa união sugiram linhas de fuga que me permitiam escapar das
maneiras tradicionais de ensinar. Eu era professor, mas também aluno, os alunos eram
produtores e pensadores. Nesse movimento de conhecimentos, é que me surge o pensamento
didático menor. Ele me veio a partir de leituras do livro do professor Silvio Gallo, “Deleuze &
a Educação”. A leitura do livro me sugeriu possibilidades de pensar a educação a partir de
minhas experiências e nesse movimento, desloquei o conceito de educação menor, trabalhado
por Gallo, para o que eu estava fazendo em sala de aula, e dei o nome de didática menor.
Referências
ALMEIDA, Milton José de. Cinema a Arte da Memória. Editora Associados, Campinas – SP,
1999.
GALLO, Silvio. Perspectiva, v. 18, n. 34, p. 49-68, Julh./Dez. 2000.
GALLO, Silvio. Deleuze & a Educação. 2. Edição, Belo Horizonte – MG. Editora Autêntica,
2008.
GONTIJO, Pedro E. Nos caminhos de uma educação por vir: ressonâncias e deslocamentos
em Deleuze. Tese de doutorado: Unicamp, Campinas SP, 2008.
WUNDER, Alik. Projeto de Pesquisa: In-ventos por áfricas, literatura e imagens, 2011.
11
Digo que me encontrei novamente, pois já tinha começado estudos sobre o pensamento de Deleuze no Labjor
– UNICAMP nos anos 2007 e 2008, porém, naquele tempo, não fazia muito sentido para mim aprofundar nos
estudos deleuzianos. Esse relacionamento afetivo e de pesquisa surgiu a partir do meu atual envolvimento
profissional com a educação.
LINHA MESTRA, N.23, AGO.DEZ.2013
332
SESSÃO 19 – CORPOS A TRAÇAR LINHAS DESTERRITORIALIZADAS
ACONTECIMENTOS NAS SUPERFÍCIES: DESTERRITORIALIZAÇÕES DE
CORPOS-CLICHÊS NA PERFORMANCE
Juliana Soares Bom-Tempo 1
A performance como arte configura-se em um plano híbrido constituído no encontro de
vários campos: arquitetura, teatro, dança, artes visuais, música, antropologia, ritual,
experimento, intervenção, sendo assim considerada uma “arte de fronteira” (COHEN, 2009,
p. 38). A arte da performance 2 é caracterizada pela potência de rasurar o que está posto, o já
sabido e já reconhecido. A performance muitas vezes se alia ao que não é reconhecido como
arte, a exemplo dos ready-mades de Marcel Duchamp, atribuindo a ações e a objetos
cotidianos uma proposição artística. Artistas como Vanessa Beecroft 3 e Marina Abramovic4
transitam com obras que mobilizam a própria arte, trazendo problemas tanto ao fazer artístico,
quanto aos modos de vida correntes.
Uma forte caracterização deste campo diz respeito às implicações com a vida,
colocando problemas às maneiras de existência pré-definidas. Um elemento importante da
performance é justamente sua intervenção em algum contexto de signos já alinhavados e
territorializados em imagens-clichês.
Os clichês são imagens reconhecíveis que nos conduzem a determinado comportamento
considerando situações, capacidades e gestos envolvidos. Deleuze (2005, p. 31), na relação
com proposições bergsonianas, afirma que “um clichê é uma imagem sensório-motora da
coisa”. Nossos interesses em perceber selecionam o que é percebido, esses interesses são
construções sociais, políticas, econômicas, psicológicas e ideológicas, de modo que é comum
percebermos apenas clichês, aquilo que nos é familiar. A arte da performance se faz no
movimento de vanguarda, raspando os clichês reconhecíveis do contexto atual, agenciando
novas maquinações 5.
Ao adentrar nos terrenos movediços da performance art, encontramos um elemento
muito recorrente, inclusive presente na nomenclatura da área artística que abarcou essa
prática: as Artes do Corpo. Nesse território, o corpo é tema central e, a priori, trata-se do
corpo reconhecível do artista.
1
Doutoranda da Faculdade de Educação/Unicamp. E-mail: [email protected].
Performance art é o termo cunhado pelos americanos ao fazer referência a expressão artística. (COHEN, 2009).
3
Artista criadora da performance SHOW (VB35), em 1998, em um quadro vivo durando duas horas e meia,
composta por vinte modelos, 15 de biquini e cinco usando apenas sapatos de salto 10, no Guggenheim Museum,
em Nova York (GOLDBERG, 2006, p. 154).
4
Artista sérvia que, desde a década de 1970 até os dias atuais, propõe, nas suas performances, experimentar os
limites físicos do corpo. Como em uma ação intitulada Ritmo 0 apresentada no Studio Mona, que compunha um
série de ações, em que a artista ficou em silêncio durante seis horas ao lado de uma mesa com objetos variados
para que os visitantes utilizassem como quisessem. A performance terminou com a artista nua e com uma pistola
na sua boca (MELIN, 2008).
5
Utilizamos o termo maquinações articulado ao conceito “máquinico” criado por Félix Guattari (1992).
Maquínico se produz num agenciamento, com um funcionamento que se dá através de comunicações expostas e
sutis, no contexto-sensitivo em que a mensagem é emitida. Receptores corpóreos conectados em mensagens
emitidas pela máquina. As máquinas sociais funcionam como Equipamentos Coletivos operando no núcleo das
subjetividades, consciente e inconscientemente. Assim, há um processo de concorrência entre os componentes
heterogêneos para a produção de subjetividades e de corporeidades. Componentes vinculados às instituições tais
como família, religião, arte, educação, saúde; os componentes fabricados pelas mídias e os componentes sutis de
informatizações a-significantes, que nos atravessam em comunicações inconscientes da articulação entre
componentes.
2
LINHA MESTRA, N.23, AGO.DEZ.2013
333
ACONTECIMENTOS NAS SUPERFÍCIES: DESTERRITORIALIZAÇÕES DE...
A investigação do corpo é imprescindível quando procuramos fazer um mapeamento
do fazer artístico da performance. As atuações performáticas, muitas vezes, atuam no corpo
do artista testando suas resistências e as energias que o atravessam, buscando suas qualidades
plásticas, explicitando tabus sexuais (GLUSBERG, 2011).
Junto a identificação com o corpo do artista quase imediata e passível de
reconhecimento, chegamos a um problema que nos parece interessante: O que é um corpo em
performance?
Em um primeiro momento esta pergunta nos parece óbvia: o corpo do performer.
Colocamo-nos, pois, a desconfiar das obviedades. Frente a elas nos deparamos com a emersão
de um plano problemático: há como definir um corpo em performance?
O problema do que é um corpo em performance apresenta-se como uma questão já
dada, com respostas rapidamente identificáveis: o corpo do artista. Imagem-clichê descoberta
e territorializada com relação ao que se encontra reconhecido e estabilizado em resposta quase
imediata, mesmo com relação a um campo artístico que se configura como mobilizador de
clichês.
Chegamos a um impasse com relação à criação de problemas que, nas proposições
apontadas por Deleuze a partir dos estudos de Henri Bergson, afirma: “colocar o problema
não é simplesmente descobrir, é inventar” 6. Um problema colocado já evoca um tipo de
solução em função do modo como é enunciado. Perguntar o que é um corpo em performance
esbarra na questão daquilo que já é existente, algo que precede a própria pergunta e o ato de
criação que a constitui (DELEUZE, 2012).
Tangenciamos uma questão que entra num campo de diferenciação de um corpo em
performance com relação a um corpo qualquer. Estamos diante de um problema que trabalha
com diferenças de intensidades, de graus, enquanto que, o problema que nos mobiliza a
pensar não é este. Arriscamo-nos a afirmar que estamos diante de um falso problema.
Acreditamos estar friccionando o pensamento para destacar, do complicado plano que
configura a performance art, um problema que nos leve a criação de algo. Habitamos um
terreno de risco ao não aceitarmos como solução o já enunciado elemento fundamental da
performance: o corpo do artista.
Arriscaremos pensar junto a outro problema: Como se dá um corpo em performance?
Começamos a fazer uma diferenciação de natureza do que nos parece interessante
pensar com relação a um corpo em performance. Não se trata mais de uma coisa ou outra,
mas algo que “se dá”. Em outras palavras, na formulação deste problema não existe uma
diferença de grau ou intensidade entre um corpo em performance e um outro qualquer, há
uma diferenciação de natureza com relação a um corpo que acontece. Corpo como
acontecimento, eventual.
Em um campo de risco é que se processam rasuras nos clichês de um corpo em
performance. Há a produção de novos sentidos com deslocamentos do que é tido como
estabilizado e territorializado pelo senso comum nos campos em jogo onde se processa a
intervenção performática. Corpos-acontecimentos gozam de certa irrealidade, podendo ou não
acontecer, dúvida que problematiza o campo de possíveis já dado por certo território de
signos e de sentidos.
O acontecimento carrega consigo a dúvida que fragmenta o sujeito em vias duplas: “O
paradoxo é, em primeiro lugar, o que destrói o bom senso como sentido único, mas, em
seguida, o que destrói o senso comum como designação de identidades fixas” (DELEUZE,
2011, p. 3).
Um corpo em performance como acontecimento, se dá nas tensões com os clichês:
signos estabilizados, sentidos territorializados, corpos-organismos identificáveis.
6
Citação de Henri Bergon retirada do livro O pensamento e o movente por Gilles Deleuze presente no livro
Bersonismo. Trad. Luiz B.L. Orlandi, São Paulo: Ed 34, 2012, p. 11.
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334
ACONTECIMENTOS NAS SUPERFÍCIES: DESTERRITORIALIZAÇÕES DE...
Um contexto, seja da cidade, de uma residência, de um teatro, de um museu, é
configurado por relações entre os corpos que os compõe. Os corpos são causas uns dos outros
e entram em relação através de suas ações, suas paixões e seus “estados de coisas”. “São
causas de certas coisas de uma natureza completamente diferente”. As relações estabelecidas
entre os corpos criam efeitos que não se configuram como outros corpos, mas como
“incorporais”. São acontecimentos e não “estados de coisas” 7.
Os acontecimentos se dão nas superfícies dos próprios clichês em misturas precipitadas
pelas ações performáticas, pelo encontro de corpos que têm a potência de produzir efeitos
incorporais.
Não há um fundo das coisas a ser descoberto, mas os acontecimentos que têm a
potência de ocorrer na casca superficial das relações causais entre corpos, efeitos incorporais
e de superfícies que transmutam a própria coisa em outra, produzindo devires (DELEUZE,
2011).
O corpo do artista em performance busca a potência de se ligar a agenciamentos
maquínicos produzindo cortes nos fluxos direcionados pelo contexto de signos já
territorializados e fixados, articulando novos planos de sentido criados na intervenção
performática, precipitando acontecimentos que forçam as configurações presentes nas
paisagens e nos signos envolvidos a se desterritorializarem e a se reterritorializarem em outros
sentidos.
O corpo-clichê do performer, facilmente identificável, traz consigo a potência de
mobilizar signos-clichês cotidianos, fazendo variar imagens imateriais e planos de sensação
em busca da produção de corpos-incorporais, agenciando acontecimentos nas superfícies do
próprio clichê.
Encontros com ovos
Começa-se com Clarice.
Olho o ovo com um só olhar. Imediatamente percebo que não se pode estar
vendo um ovo. Ver um ovo nunca se mantém no presente: mal vejo um ovo
e já se torna ter visto um ovo há três milênios. – No próprio instante de se
ver o ovo ele é a lembrança de um ovo. – Só vê o ovo quem já o tiver visto.
– Ao ver o ovo é tarde de mais: ovo visto, ovo perdido. – Ver o ovo é a
promessa de um dia chegar a ver o ovo. – Olhar curto e indivisível; se é que
há pensamento; não há; há o ovo. 8
Ovos: matérias orgânicas, frágil na superfície, úteros externos, intensidades
condensadas de células em diferenciação, fetos em reentrâncias, retorcidos, informes. Os ovos
possuem intensas energias de transformações e de produções não formadas. Internamente, as
velocidades e temperaturas estão aceleradas. Oceanos de forças que se apresentam
complicadas: forças que se encontram e modificam umas as outras, sem se apartar daquilo
que foram. Forças atuam simultaneamente em mutações que carregam o rastro do que foram,
mesmo já sendo outras. Oceano de virtualidades que possuem a imprevisibilidade do que vai
ou não vingar. Seres incompossíveis habitam as virtualidades de ovos em riscos. Abortos,
falências, metamorfoses imprevistas, podem virar outros seres totalmente distintos da sua
espécie maternal. Os ovos performatizam a multiplicidade. Não se trata de potencialidades no
7
Utilizamos os pensamentos de Gilles Deleuze (2011, p. 5) presentes no livro “Lógica do Sentido” na relação
com as concepções dos Estóicos a cerca dos corpos e dos acontecimentos.
8
Trecho do conto “O ovo e a Galinha” de Clarice Lispector presente no livro Felicidade Clandestina, Rio de
Janeiro: Rocco, 1998, p. 49.
LINHA MESTRA, N.23, AGO.DEZ.2013
335
ACONTECIMENTOS NAS SUPERFÍCIES: DESTERRITORIALIZAÇÕES DE...
sentido de possibilidades. A distinção de forças que atuam em um ovo transmutam novas
forças, em que o processamento essencial é o devir.
“Ver um ovo”, como proposto por Clarisse, “não se trata de uma metáfora” como
ressalta Zourabichivili (2005, p. 1312) com relação à questão da literalidade em Deleuze. Essa
consideração força o pensamento ao encontro com certo ovo, já anunciado nas frases da
escritora, em sua destituição enquanto corpo material e leva a crer no improvável do que um
ovo produz. Tratar os ovos aqui como metáforas passa por mediações de sentido que
justificam e restringem as percepções ao que interessa perceber, em certa economia da
percepção. Se há um sentido em ver e encontrar um ovo “é ao custo de uma compreensão
literal” (ZOURABICHIVILI, 2005, p. 1.313).
Encontro com ovos, literalmente, em busca de contágios com superfícies lisas e opacas
de cascas firmes. A procura da pressão precisa para precipitar uma quebra. Viscosidades
vazam fazendo variar a textura da pele. Gosma fria. A transparência mais densa cria embates
potentes com os amarelos liquefeitos. Misturas de cascas, gosmas, amarelos, peles. Texturas
transitórias ocupam as sensações táteis que beiram ao asco, sem deixar escorrer totalmente
certo erotismo. Ovos carregam consigo as marcas de um potencial de proliferação. Campo de
virtualidades abertas aos acontecimentos, incorporais que se conjugam na complicação (coimplicação) de forças.
“Se é que há pensamento; não há; há o ovo” 9. Ver um ovo é rejeitar as virtualidades
existentes em um ovo. Ver um ovo é fixar-se no objeto e restringi-lo a uma materialidade já
dada e reconhecível pelos esquemas sensório-motores. Isso é o próprio clichê presente nas
imagens fixas do pensamento. Como já mencionado, nas palavras de Deleuze: “um clichê é
uma imagem sensório-motora da coisa” (2005, p. 31). Ao tratar o ovo como o objeto que se
vê, reduzem-se os potencias virtuais de transformação e metamorfose que acontecem
intensivamente em um ovo, transmutações ainda informes e em processo.
Utilizar o ovo, entrar em relação com potencialidades de conexões em embates de
forças-corpos que produzem efeitos incorporais: gestar, crescer, diminuir, cortar;
mutabilidades constantes e não formadas. “O ovo é o Corpo sem Órgãos” 10. É disso que se
trata o encontro com os ovos.
Cariogamia e o risco do aborto
Os ovos materiais são objetos comuns ao cotidiano, não faltam esquemas sensóriomotores para reconhecê-los e tratar os ovos como é próprio para um dado contexto. Ovos
possuem já uma utilidade dentro de um território urbanizado. Lugar de ovos é na cozinha.
Eles, enquanto “estados de coisas”, fazem parte de uma narrativa intima, campo privado
ligado ao ato de comer. Ovos como imagens-clichês produzem abortos de ovos imateriais
diariamente.
A ação performática Cariogamia e o risco do aborto trata-se de produzir claras em neve
nas ruas do centro de uma cidade, a partir da fragmentação do que pode um ovo. Bater
incessantemente fragmentos correndo o risco da transmutação, imprimindo velocidade para a
neve ganhar volume e consistência. Passar do ponto, perder consistência. Relações de
movimentos culinários e fluxos urbanos. Acontecimentos nas superfícies.
Novos campos de enunciação podem surgir no processo performativo, habitando um
risco real de se efetivarem ou não na criação de corpos-acontecimentos. É nesse terreno de
risco, na relação com os clichês do urbano, da sexualidade intima e da cozinha privada que os
corpos em performance podem acontecer, em uma casca fina, na superfície que separa o ovo
9
LISPECTOR, Clarice. Felicidade Clandestina. Rio de Janeiro: Rocco, 1998, p. 49.
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. Vol 3. São Paulo: Ed. 34,
1996, p. 27.
10
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ACONTECIMENTOS NAS SUPERFÍCIES: DESTERRITORIALIZAÇÕES DE...
na sua potencia criativa de um mundo capturado por imagens fixas do pensamento no
contexto urbano. Arte do risco de produzir corpos nas superfícies.
Ações de Cariogamia e o risco do aborto passaram-se no centro da cidade de
Campinas-SP em 2012 e 2013 e na Estação da Luz da cidade de São Paulo-SP. Este tem como
foco o risco da não efetivação dos processos fecundos. O risco da cariogamia que não se
atualiza enquanto fecundação e criação de ovos e chega ao aborto. Riscos próprios à condição
de ovo, da clara não se transmuta em neve, de processos criativos que não chegam à
efetivação.
Delineamentos urbanos, controle de signos que predefinem o que é próprio da cidade,
instabilidades capturadas em tempos cronometrados nos processo maquinados dos trânsitos
urbanos. A questão que dispara estas ações performáticas tem como mote o que pode o risco.
Qual é a potencia do risco de não se efetivar, de não se sustentar? O que pode o intermezzo da
efetivação e da decomposição como processos de criação?
Na procura dessas fissuras, o tempo se intensifica nas tensões corpóreas de imagens
paradas e em circulação nos contextos urbanos. Ovos de tempo agenciam marcas corpóreas
que podem se ativar a qualquer momento produzindo corpos-acontecimentos.
Referências
COHEN, Renato (2009). Performance como linguagem. 2ª ed. São Paulo: Perspectiva.
DELEUZE, Gilles (2005). A imagem-tempo (cinema 2). Trad. Eloisa de Araujo Ribeiro. São
Paulo: Brasiliense.
DELEUZE, Gilles (2011). Lógica do sentido. Trad. Luiz Roberto Salinas Fortes. São Paulo:
Perspectiva.
DELEUZE, Gilles (2012). Bergsonismo. Trad. Luiz B. L. Orlandi. São Paulo: Ed. 34.
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix (1996). Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. Vol 3.
Trad. Aurélio Guerra Neto, Ana Lúcia de Oliveira, Lúcia Cláudia Leão e Suely Rolnik. São
Paulo: Ed. 34.
GLUSBERG, Jorge (2011). A arte da performance. Trad. Renato Cohen. São Paulo:
Perspectiva.
GOLDBERG, Roselee (2006). A arte da performance: do futurismo ao presente. Trad.
Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fontes (Coleção a).
GUATTARI, Félix (1992). Caosmose: um novo paradigma estético. Trad. Oliveira, A.L.;
Leão, L.C. São Paulo: Ed. 34.
LISPECTOR, Clarisse (1998). Felicidade Clandestina. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.
MELIN, Regina (2008). Performance nas artes visuais. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
ZOURABICHIVILI, François (2005). Deleuze e a questão da literalidade. Em: Educação &
Sociedade: Revista de ciência da educação. Dossiê: “Entre Deleuze e a Educação”. V. 26, n.
93. Set./Dez. 2005. (p. 1.309 – 1.323).
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PENSAMENTO BESTEIRA EM CORPOS FÍLMICOS OU COMO
FAZER UM FILME
Laisa Blancy de Oliveira Guarienti 1
Os imprevistos não só fazem parte da
viagem como são a própria viagem.
Federico Fellini
Quero contar sem pudores o que me acontecia quando tinha sete ou oito
anos. Havia batizado os quatro cantos da cama com o nome dos quatro
cinemas de Rimini: Fulgor, Opera Nazionale Balila, Savoia e Sultano. Ir
para a cama era uma festa. Nunca fiz malcriação para não ir dormir, tudo o
que os adultos diziam à mesa logo me fazia perder o interesse, de modo que,
tão logo podia, corria para o quarto e me enfiava embaixo do lençol, e
muitas vezes com a cabeça sob o travesseiro. Fechava os olhos, esperava
quietinho com a respiração presa e o coração batendo rápido, até que de
repente, começava o silencioso espetáculo. Um dos espetáculos mais
extraordinários. O que era? É difícil contar, descrever, era um mundo, uma
esplendorosa fantasmagoria, uma galáxia de pontos luminosos, esferas,
círculos reluzentes, estrelas, chamas, vidros coloridos, um cosmo noturno e
cintilante que primeiro se apresentava imóvel, e então num movimento
sempre mais amplo e envolvente, como um imenso redemoinho, um farol
espiralado. Eu era sugado e me sentia confuso em meio a essa explosão,
numa espécie de vertigem que não me dava náuseas. Durava um tempo que
não saberia estabelecer, mas em todo caso não era muito longo; finalmente
terminava, silencioso como tinha vindo, perdendo força como as últimas
faíscas do fogo que se apaga. Eu esperava alguns minutos, colocava a
cabeça em outro canto e as imagens recomeçavam. Da terceira vez eram
mais desbotadas, tinham cores menos lúcidas. Raramente o espetáculo
noturno se repetia quatro vezes. No final, meio cansado mas satisfeito e
ainda deslumbrado por todo aquele bombardeio de estrelas e brilhos
solares, caía no sono. Isso tudo durou muito tempo, foi-se apagando com os
primeiros sinais da adolescência, com outras perturbações muito mais
concretas. É provável que se essas visões infantis continuassem com a
maturidade teriam engolido toda capacidade de pensar e agir. Não se trata
de ficar em perene contemplação das próprias fantasias infantis. O
importante seria reencontrar, no plano da consciência, a faculdade
visionária.
(FELLINI, 2011, p. 129)
Inicio este ensaio com uma pergunta para disparar pensamentos que façam o pensar
atingir diferentes graus de divagação. Sem pretensões em responder a pergunta, pelo
contrário, divagar e pensar alto na escrita, pensamento este, que percorro como uma busca,
por isso o caráter de ensaio e não de expor algo já pré-parado. Pensamento rizoma que se faz
pelo meio que chega sem avisar e inicia uma conexão para uma experimentação. Assim
disparo a pergunta para iniciar o movimento de uma escrita: O que pensar sobre um corpo
fílmico? Para problematizar essa dúvida, sigo em buscas que operam por aliança.
Primeiramente alio-me ao conceito de Corpo sem Órgão desenvolvido por Deleuze e Guattari
(2008), após, entro em conexão com o cinema de Fellini e por último, trago a ideia de
“pensamento besteira” como uma possibilidade de desterritorialização do pensar.
1
Mestre em Educação – Unicamp – E-mail: [email protected]
LINHA MESTRA, N.23, AGO.DEZ.2013
338
PENSAMENTO BESTEIRA EM CORPOS FÍLMICOS OU COMO FAZER UM FILME
Um corpo fílmico é um disparador de afetos para aquele que assiste a uma obra, afetos
subjetivos que vão além da história narrada. Passam afetos por ali onde existe um encontro
daquele que assiste com o assistido, considerando que existem tantos outros menos visíveis.
Existem outros fluxos que também podem fazer o pensamento se mover, como por
exemplo, a pergunta de como se faz um filme. Além das camadas subjetivas passadas através
da narração da história, somos afetos por outros disparadores que, o encontro com a própria
obra cinematográfica, produz e faz sentir de outra maneira. Começa a produzir a novidade
entre tantas conexões disponíveis nessa ação.
Para além da narração, como uma obra fílmica pode nos afetar? Iniciei essa nova busca
pela pergunta: “como um diretor faz um filme?”. Encontrei Fellini na estante da casa de uns
amigos, trouxe para mim e iniciei minha leitura. Era isso que estava procurando, o diretor
italiano coube àquilo já vinha buscando, como se parecesse compor naturalmente a um
pensamento insistente que vinha a minha cabeça: escrever sobre o “pensamento besteira” em
Deleuze (2006). Precisava de aliados e os encontrei, numa busca despretensiosa, eles
chegaram.
Como se dá a relação de um corpo fílmico com um pensamento besteira? Deleuze e
Guattari (2008) escrevem juntos que um Corpo sem Órgão (CsO) “é um exercício, uma
experimentação inevitável, já feita no momento em que você a empreende, não ainda efetuada
se você não a começou. Não é tranquilizador, porque você pode falhar.” (p. 9). Desse modo, o
conceito apresentado, deixa a imprevisibilidade de incorporar uma efetuação muito tênue.
Não existe tranquilidade quando se caminha para criação de um CsO, um corpo pensado
sem organicidade pode entrar em colapso a qualquer momento, desabar, cair, desmoronar,
deformar. Fim de uma experimentação; acabou. Mas, este fluxo inconcebível e desprezível
para um, pode ser potente para outro, eis o grande truque daqueles que criam e experimentam
besteiras, e talvez seja assim que nasça um pensamento besteira, com o lixo descartado pela
organicidade não vingada de outro experimento. Catam-se sobras e restos, porque elas nos
interessam.
O CsO “faz passar intensidades”, ele “não é uma cena, nem mesmo um suporte onde
aconteceria algo” (Deleuze; Guattari, 2008, p. 13), e é por isso que ele deixa vazar fluxos de
intensidade mesmo para um observador despretensioso, que se deixou afetar por tal
intensidade e, ao conectar forças, cria. É nesse sentido que um CsO nunca existirá, ele se
constrói e se desmancha a todos os instantes, é fluxo caótico e não organização. Deixa
margens abertas para que o pensamento seja criado.
O corpo fílmico, pensado nessa perspectiva, é visto como um território lamoso,
improvável, suspeito a desabar, cada fluxo pode ser transformado em algo novo, em um
pensamento para o inédito.
Andar despretensiosamente pelas ruas de Rimini, vagar pelos ventos da praia, parar e
assistir a bela dança dos corpos que deambulam pelas ruas, eis o exercício que Fellini
realizava nos seus dias de criação. Era preciso parar e observar, cuidar os detalhes da senhora
que andava com a bengala pela rua, enxergar as rugas dessa criatura e o que tal conjunto pôde
afetar para a criação do diretor. No caso dele, afetar para a criação de filmes. Era com esse
andar despretensioso que o cineasta inventava imagens para compor em seus filmes.
Ao perguntar para si mesmo “como dizer de que maneira nasce a ideia de um filme?”
(Fellini, 2011, p. 93), o diretor responde,
Se eu disser, por exemplo, que um filme pode nascer de um detalhe
insignificante, como a impressão de uma cor, a recordação de um olhar ou de
uma música que volta à memória, obsessiva e atormentadora, por dias
inteiros; ou então, como você bem me fez lembrar, que vi a Doce vida
quando apareceu uma mulher que caminhava pela via Veneto numa manhã
ensolarada enfiada num vestido que a fazia parecer uma verdura, não tenho
LINHA MESTRA, N.23, AGO.DEZ.2013
339
PENSAMENTO BESTEIRA EM CORPOS FÍLMICOS OU COMO FAZER UM FILME
certeza de estar sendo de todo sincero, e quando um amigo jornalista se
lembra disso, me sinto ridículo. Não acredito que no mundo exista muita
gente que considere a própria vida mal resolvida porque eu não soube
precisar a relação entre aquele vestido da moda saco e o filme que fiz depois.
(Fellini, 2011, p. 93).
Um corpo filme é feitos de conexões, é um cruzamento de agenciamentos e que constitui
um território. Se for feito de conexões tem-se necessariamente em sua configuração rotas de fugas
que fazem e se desfazem a todo instante, dando o caráter fluído. Então pensar em um
corpo/território é pensar em instantes de consistência. Instantes e intensidades de consistência. O
pensamento besteira vai surgir aí mesmo, na fluidez sem razão e sem sentido pré-definido, no
despretensioso, no imprevisto, no desvalido, no ócio e ao menor piscar de olhos, pronto, eis que o
pensamento realiza as mais loucas sinapses possíveis e é capaz de criar, e, em um desses
momentos de divagação no pensar, conecta o pensamento a algo nunca pensado.
Cada faculdade, inclusive o pensamento, não tem outra aventura a não ser a do
involuntário; o uso voluntário permanece cravado no empírico. O Logos se
quebra em hieróglifos, cada um dos quais de partida, a sensibilidade no encontro
com aquilo que força a sentir, não supõe qualquer afinidade ou predestinação.
Ao contrário, é o fortuito ou a contingência do encontro que garante a
necessidade daquilo que ela força a pensar. (Deleuze, 2006, p. 211).
Nesse sentido, é necessário, mesmo através de um pensamento besteira, fazer nascer algo
que ainda não exista. Eis a política e ética do pensamento a modificar as configurações do pensar
que são condicionados em categorias e ou padrões de pensamento. Deleuze (2006) já apontava
que não existem métodos pré-definidos para encontrar um pensamento adequado, porque o
pensamento não entra nessa atmosfera padronizável, ele entra no jogo do pensar e conjurar e, e
mais es. E é por isso que um pensamento inadequado pode vir a ser um pensamento adequado
para as novidades, para aquilo que ainda não existe: eis uma chave dentre tantas para desvelar o
que há entre o inadequado e o adequado: um método é inventado aí?
Logo, o pensamento coerente/adequado está implicado a uma imagem do pensamento
dogmática, esta que não aceita o erro como uma maneira de variar aquilo que se pode pensar.
Logo tudo que foge ao coerente está submetido ao pensamento como erro.
Nesse sentido, o erro já faz parte do território daquilo que se é coerente pensar, e é
“apresentado como único ‘negativo’ do pensamento”. (Deleuze, 2006, p. 214). O erro como
uma falsa recognição já imbricado no verdadeiro. A própria imagem dogmática do
pensamento considera outras faculdades do pensamento além do erro, são elas a loucura, a
besteira e a maldade, estas que não são redutíveis ao erro.
Porém é inevitável que os efeitos destas três desventuras do pensamento recaem ao
pensamento como erro. Reduz-se então as potencialidades da loucura, besteira e da maldade a
figura do erro.
Mas o que impede estas determinações mais ricas de se desenvolverem por
si mesmas é, apesar de tudo, a conservação da imagem dogmática e dos
postulados de senso comum, de recognição e de representação que a
acompanham. Então, os corretivos só podem aparecer como
‘arrependimentos’ que vêm complicar ou perturbar por um momento a
imagem, sem subverter seu princípio implícito. (Deleuze, 2006, p. 217).
A besteira é possível de ocorrer no pensamento tendo em vista as múltiplas conexões
que são possíveis realizar entre o pensamento e a individuação. São as sensibilidades advindas
daquele que pensa juntamente com as sensibilidades que se dão num campo do ainda não
LINHA MESTRA, N.23, AGO.DEZ.2013
340
PENSAMENTO BESTEIRA EM CORPOS FÍLMICOS OU COMO FAZER UM FILME
imaginado, é a imbricação dos virtuais com o campo do real, este que implica as imagens do
pensamento já constituídas como representação, recognição, senso comum. São forças
sensíveis mescladas com o já dado (o que força o pensamento a pensar) e com o inédito que
pode ocorrer. “A covardia, a crueldade, a baixeza, a besteira não são simplesmente potências
do corpo ou fatos de caráter e de sociedade, mas estruturas do pensamento como tal.”
(Deleuze, 2006, p. 218).
Fellini criava seus filmes, num simples vaguear despretensioso pelas ruas de Rimini. A
besteira pode surgir aí. Besteira como potência a pensar o novo, a criação de pensamentos
novos. Ela está entre o pensamento e a individuação, que configuram campos de intensidade.
A besteira não é o fundo, nem o individuo, mas a relação em que a individuação
eleva o fundo sem poder dar-lhe forma (ele se eleva por meio do Eu, penetrando
o mais profundamente na possibilidade do pensamento, constituindo o nãoreconhecido de toda recognição). (Deleuze, 2006, p. 219).
Vagabundear pelas ruas abre o pensar aos mais inimagináveis encontros que se pode
estabelecer. Deambular, ou vagar pelas ruas, nada tem para buscar em termos de objetivo
final, busca-se justamente o descaso, o imprevisível. Um pensamento besteira pode se dar
assim, nesse vagar despretensioso pelas ruas de uma cidade qualquer, e ai surgir uma
consistência entre o que vejo (campo de imprevisível), o que já havia de memória (camadas
de sedimentos) e criar algo novo, num total descaso atento aos mais diferentes fluxos que
passam a nossa frente. O vagueador curioso na vida, curioso nos caminhos tortos,
investigador de causos alheios e potência conectiva da impulsividade de invenção de algo
inédito.
Fellini cria cenas e personagens para seus filmes em aspectos comuns do cotidiano, não
procura atores com técnicas, prefere suas ações cruas de pessoa comum. “O filme tenta
reproduzir um mundo, um ambiente, de maneira vital. Tenta se deter nesta dimensão,
procurando recriar a emoção, o encanto, a surpresa.” (Fellini, 2011 p. 160). Ele cria esses
personagens justamente e juntamente com esse pensamento besteira, aquilo que seria
inválido, passageiro, sem importância, esquecido, e jogado fora, pura bobagem para um não
observador atento.
Meu trabalho com os atores quase sempre se resume numa série de sugestões
extraídas da observação da vida comum. Neste campo, um bom recurso é
observá-los enquanto estão trabalhando, enquanto falam no telefone, ou
falam com alguém sobre a dieta macrobiótica, sobre a idade de um colega, à
mesa, quando conversam sobre o eterno jogo Roma x Lazio com os câmeras.
É nessas condições que os vejo como quero. (Fellini, 2011, p. 223).
Fellini, nesse sentido, não desvalida o que é inválido, utiliza para seu benefício próprio
(criação de corpos fílmicos) pensamentos e passagens besteiras. Soube adequar ideias e
acontecimentos inadequados, ele usa as sobras, os restos, os descartados para inventar algo
que ainda não existia. E é assim que nasce o corpo filme de Fellini, não é uma estrutura
moldada e administrada e gerida nos grandes centros culturais de pensamentos, com
roteiristas e intelectuais famosos. É um corpo de pensamento que conecta besteiras dos
passeios pelas ruas desde sua infância até a conjuntura com os grandes intelectuais e
roteiristas. É uma multiplicidade, nada se exclui quando o pensamento é aberto às besteiras.
Desse modo, aquele que enxerga na besteira uma potência inventiva, sabe aproveitar
esses encontros para adequar no pensamento aquilo que era tido sem sentido, ou mesmo sem
razão. Sabe inventar ideias interessantes a partir do inválido. Extrai dali, partículas de
LINHA MESTRA, N.23, AGO.DEZ.2013
341
PENSAMENTO BESTEIRA EM CORPOS FÍLMICOS OU COMO FAZER UM FILME
intensidades ativas (criação de algo novo), num campo de variabilidade caótica, a engendrar
um pensar inédito a partir de uma besteira qualquer e assim, criando corpos fílmicos.
Referências
FELLINI, F. Fazer um filme. Tradução Monica Braga. Rio de janeiro: Civilização Brasileira,
2011.
DELEUZE, G. Diferença e Repetição. Tradução Luiz Orlandi e Roberto Machado. Rio de
Janeiro: Graal, 2006.
DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia, v. 3. Tradução
Aurélio Guerra Neto, Ana Lúcia de Oliveira, Lúcia Cláudia Leão e Suely Rolnik. São Paulo:
Ed. 34, 2008.
LINHA MESTRA, N.23, AGO.DEZ.2013
342
A FIGURA GENEALÓGICA DO MONSTRUOSO: CORPOS DEFORMADOS,
DESMEDIDOS E REPUGNANTES
Alexandre Filordi de Carvalho 1
Não encontramos notícias de zumbis nas manchetes cotidianas dos noticiários. O
flagelo pejorativo, usado em alguns casos, pode inverter o valor do substantivo para qualificar
todo tipo de anormalidade. Às vezes, então, deparamo-nos com algo na grande mídia: um
anormal como zumbi. Um fantasma morto-vivo, insistindo em viver. São seres a carregar em
seus modos de ser todo tipo de bizarrices, de espantos, de estigmas, de monstruosidades, no
sentido foucaultiano, ou seja, o díspar à norma, o anormal. Eis o ser-zumbie: um vivo a vagar
no mundo normativo cuja visibilidade ameaça o próprio estatuto das normas.
Este mundo, em sua maneira de tratamento ao monstruoso, reduplica-se no imaginário
artístico. Difícil ponderar se se trata de um encontro da realidade com a arte ou da arte com a
realidade. Os monstros se encontram nos rostos pintados por Bosch, Bruegel, Bacon, Freud;
estão presentes nos laudos médico-legais que estipularam o normal e o patológico; escandidos
na visibilidade acanhada do cinema periférico ou da pretensa arte demagógica do escárnio –
monstro personificando a maldade, a malícia, o delírio, a insídia, a maldade, o terror, o feio, o
imponderável, o modo de ser terrível, a vida inclassificável.
A proposta em torno do tema a figura genealógica do monstruoso: corpos deformados,
desmedidos e repugnantes, pretende colocar em questão os valores homotópicos ao redor do
corpo. O texto pretende construir uma cartografia de problematização para além do jogo
significado-significante estético e subjetivo quando se trata do corpo.
Para tanto, levamos em consideração o filme Mangue Negro 2, tomando-o como
disparador caótico para a crítica genealógica. Por seu intermédio, encontramos o monstruoso
personificado na figura do zumbi. A hipótese é a de que o zumbi pode ser um conjunto
estético potencialmente capaz de abalar um conjunto de domínios responsável por fixar e
engessar o sujeito contemporâneo em uma territorialidade de sentidos, de semiotização, de
significantes, de corporeidade enrijecida, padronizada e, certamente, consumível.
Será, contudo, necessário compreender duas dimensões. Primeiramente, quais as
implicações para pensarmos o corpo na atualidade a partir do instante que assumimos e
aceitamos o zumbi como figura monstruosa? E a outra, o que podemos extrair, por
consequência, para a nossa constituição de subjetividade, isto é, sob qual proporção o fato de
considerarmos o zumbi em uma dimensão semiótica pode afetar a nossa autoestetização, a
nossa semiótica corporal?
Corpos zumbis, corpos delirantes: a rostidade normativa do corpo à deriva
Como sabemos, desde Deleuze, Guattari e Foucault, os binarismos ganham contorno na
vida graças a uma espécie de rede operacional normativa que entrecruza a sociedade e as
condições de existência. Neste caso, não podemos esquecer o que toda norma significa. De
um lado, Foucault deixa claro que a norma é “entendida como regra de conduta, como lei
informal, como princípio de conformidade; à norma se opõe a irregularidade, a desordem, o
bizarro, a excentricidade, os afastamentos, a desnivelação” (2001, p.204). De outro lado, a
norma pode ser concebida como “regularidade funcional, como princípio de funcionamento
adaptado e ajustado; eis a ‘norma’ em que se oporá o patológico, o mórbido, o desalinhado, o
1
Departamento de Educação – UNIFESP – [email protected]
“Depois que um mangue é contaminado de forma inexplicável, uma comunidade humilde é chacinada por
zumbis. Mocinho e mocinha lutam para sobreviver e, como se fosse possível, encontrar uma cura” (MANGUE
Negro, 2008, Sinopse).
2
LINHA MESTRA, N.23, AGO.DEZ.2013
343
A FIGURA GENEALÓGICA DO MONSTRUOSO: CORPOS DEFORMADOS...
sem função” (FOUCAULT, 2001, p. 204). Os produtores normativos histórico-sociais
empreendem, por consequência, graus de normalidade a serem “sinais de afiliação a um corpo
social homogêneo” (FOUCAULT, 2001, p.177).
Este diagnóstico nos permite considerar o zumbi como uma dobradiça entre o estado
normal do corpo, sempre a dar sentido ao poder normativo, e o seu estado anormal, destacado
da mesma dobradiça. Trata-se de compreender, então, as apostas em torno dos seres
normalizados sob um entrecruzamento intercomunicável de intensidades entremeadas, pois o
normal existe senão ao preço do anormal, e vice-versa. O que nos afasta, então, de uma
condição de existência zumbi em sua deformidade, repugnância, desmesura, pavor e
contornos corporais bizarros? O que está em jogo é uma intensidade normativa diferente de
outras intensidades. Entre uma configuração corporal monstruosa e outra “normal” repousa
uma série de intensidade normativa, ora ajuizada segundo uma desordem em evidência, ora
julgada conforme um quadro de ordens estabelecido a partir das discursividades, práticas,
jogos de enunciação, dispositivos de poder, agenciamentos científicos, saberes e poderes
classificatórios, hierárquicos e incluso-excludentes.
Observamos, deste modo, a partir da argumentação de Jean-Claude Polack, que
O monstro é um canteiro de partes vivas e inertes, um agregado de objetos, de
territórios de signos, desafiando, como no delírio, a “realidade natural”, as leis
das ordens e das espécies, as lógicas dos discursos. Nomear-se-á de “monstro”
todo aquele que, sob o pretexto de fazer corpo, coloca em relação inorgânica
coisas que não pertencem aos mesmos conjuntos categorias (S.n.t, p.16)
Não nos encontramos, assim, encarando uma metáfora sobrenatural, ao contrário, tratase de uma manifestação “natural” se compreendermos que o zumbi apenas é um monstro pelo
dado normativo ao seu redor. Melhor ainda, ele é uma tipificação de um afastamento
normativo encontrado nos limites da lama negra do manguezal. No mangue negro, tal como
os zumbis, somos apenas “o vegetal e o animal, o natural e o construído, onde tudo isso é, de
modo insolente, misturado” (POLACK, S. n. t., p.15).
Bosch, Blake, Goya, Bacon ou De Chirico. Os textos de Lautréamont, Michaux, Artaud,
Kafka, Borges. Eis toda uma dimensão de exploração dos possíveis do desejo:
monstruosidades como atipias ou irregularidades normativas. Pouco importa, pois entra em
jogo da territorialidade dos possíveis nos corpos o zumbi a indicar uma dimensão impensada
de corporeidade a preceder a ordem de uma representação. Deparamo-nos com um choque
semiótico face aos corpos contemporâneos, redefinidos e recompostos a partir de uma
sujeição à estética representacional predefinida.
Sob tais aspectos, podemos tomar os corpos-zumbis como são a fim de sabermos que
todo o risco de afrontarmos uma estética corporal dominante faz entrar em colapso o
equilíbrio preponderante das relações significantes-significados dominantes. De maneira
incontornável, as estranhezas correlacionadas às monstruosidades dos zumbis se manifestam
pelas alterações de dimensões, de relação com o território e com a própria morfologia
corpórea. Estamos diante da emergência de estranhezas desconhecidas; situamo-nos no
epicentro de um terremoto no campo normativo; os órgãos de seus corpos entram em rebelião.
Por conseguinte, podemos conceber que os zumbis correspondem a uma antropomorfização
de todas as diferenças que o ser humano é capaz de assumir e suportar. E neste nível, os
corpos se encontram no mundo sob o qual cada anatomia possui uma viagem e uma rostidade
possível a si mesma, desvelando o seu próprio mundo de possibilidades. Cada monstro é um
enigma, um convite, uma etapa, uma sondagem de possíveis do corpo sobre si mesmo.
Não se trata, assim, de lançar a indagação: qual a razão do zumbi? Este tipo de
indagação nos projeta para o horizonte dos modos que se empenham a buscar justificativas
que irão se impor pelo jogo do porque, a saber, de uma exigência a destacar o por causa de,
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A FIGURA GENEALÓGICA DO MONSTRUOSO: CORPOS DEFORMADOS...
ou seja, mais uma vez as finalidades. A questão que se coloca, ao contrário, concerne ao
afastamento dos catálogos que se estabelecem como aproximação ou afastamento de todas as
maneiras de fixação de significantes em torno das tipificações monstruosas.
Estamos, assim, no centro de um tresloucar de esquemas perspectivistas. Neste caso,
“os corpos do delírio são justamente seus corpos – corpos de todos os zumbis – sem órgãos,
sem fronteira, sem limites e sem mortes” (POLACK, S.n.t., p.28). O monstro se torna um
ajuntamento de plasticidades a transbordar os limites de conexões e de funcionalizações
estéticas. Ele permite novos contornos de heteromorfismos plausíveis de aparição.
Enquanto vemos as aparições dos zumbis no Mangue Negro damos conta de que eles
são monstruosos na mesma medida que advêm tanto do oco do manguezal quanto eles portam
sobre seus corpos aquele próprio oco. Corpos sem órgãos, como ponderava Guattari (2011),
não se reduzem às funções dos arranjos do organismo em si. Os corpos sem órgãos são
dotados de potências fora dos circuitos teleológicos funcionais como é peculiar a qualquer
organismo. Nele, tudo pode desejar, tudo pode caminhar, tudo pode pegar, soltar, ser, gozar.
O impactante nos zumbis é justamente a presença deste corpo oco e vazio de estruturas
orgânicas prévias. Se o organicismo se inscreve e reivindica a vida como condição de
resultado de uma organização vital, por oposição ao vazio de organização prévia, nos zumbis,
encontramos uma maneira que em nada presume a organização dos elementos funcionais.
Sendo assim, com os zumbis passamos a conhecer uma morfologia vaga. O problema,
então, que os corpos dos zumbis deflagram é também o da própria qualificação dos corpos,
pois os corpos são sempre componentes de intensidades. As canalizações das intensidades
distintas quando colocadas em relação, por acaso ou intencionalmente, liberam novas
maneiras de o corpo se constituir e se apresentar como campo de intensidade. Ao surgirem os
zumbis no Mangue Negro, vemos produzir um novo campo de ação para os corpos que antes
se ligavam aos zumbis apenas por rumores ou pelas historietas de delírio referentes ao
“sumidouro”, o profundo do profundo no manguezal, o lugar do visível não-visível.
Com a aparição, entretanto, desvairada e concreta dos zumbis, apesar de suas
manifestações desordenadas e ensandecidas, ocorre uma mudança geral na dinâmica territorial
do mangue e nos indivíduos que ali habitam. Os zumbis passam a anunciar a necessidade de
eles se desgarrarem de todas as condições de sedentarismos em torno dos corpos outrora
fixados e pré-funcionalizados em todo tipo de condicionamentos.
A emersão dos zumbis do não-visível na dinâmica da vida significada dos habitantes do
mangue coloca em xeque e problematiza todas as séries de estetização humana, sobretudo
aquelas remarcadas pela expressão fastidiosa da normalidade. A partir de então, os corposzumbis tornam um contrassigno, um sintagma fora da rede de equivalentes significantes
capazes de coroar os valores majoritários concernentes aos sistemas estabelecidos de funçõessignificantes. Neste caso, a farta argumentação de Guattari nos auxilia neste entendimento:
Toda sintaxe de rostidade coroa, hierarquiza e ajusta as diversas formações
de poder normalizantes. As coordenadas significantes de um mundo
“normal” são exibidas e reguladas a partir de fórmulas de rostidades
estabelecidas (os protótipos de homem, de mulher, de criança, etc., normais
em tal instante da história, em tal país, em tal situação social, considerando
tal modo, etc.). Nas sociedades capitalistas, o mundo apenas se torna
humano, racional, universal na medida em que ele consegue ser subjetivado
em torno de tais fórmulas. [...] Toda ameaça contra a ordem estabelecida se
projeta sobre a rostidade. Inversamente, todo questionamento da rostidade é
indício de uma subversão social potencial (2011, p.100).
A partir do instante que somos colocados vis a vis com a rostidade dos zumbis pouco
dela suportamos. Suas dimensões, suas misturas, suas dissimetrias, suas desmesuras e
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A FIGURA GENEALÓGICA DO MONSTRUOSO: CORPOS DEFORMADOS...
exageros, suas deformações, suas feiuras, seus dejetos, o que são, enfim, tornam-se
repugnantes aos nossos olhos. Talvez por que sejamos constituídos nos limites fechados das
trocas simbólicas e culturais, tão regulares e reguladas, distantes dos traços de expressões
fluidas, de variações estéticas intensas e diferentes, de modos de variedades singulares
chocantes e aceitáveis. Impelidos na direção dos campos de similitudes, somos, ao mesmo
tempo, habituados à planificação geral do mundo em meio a todo tipo de fusão significante
unificadora e redutora, capazes de remeter a constituição dos sujeitos ao centro de potências e
de pontos de redundâncias. Com isso, podemos bem dizer: “a rostidade normal, normada, se
incrusta, assim, constantemente como decalque na paisagidade normal. É ela que desencadeia
o sentimento de significação de pertencimento a um território, é ela que dá o sinal de
aprovação” (GUATTARI, 2011, p.81).
Considerações finais: a afirmação do corpo sem captura normativa redundante
Podemos deduzir a partir do exposto alguns delineamentos capazes de assinalar para a
tentativa de pensarmos a abertura dos fluxos potências de novos esquemas de semiotização
para o corpo contemporâneo, corpo sem captura normativa redundante e global. A partir do
zumbi, encontramos toda uma série de possibilidades para “desestabilizar a trama de
redundâncias dominantes, a organização do já classificado, ou se preferirmos, a ordem do
clássico” (GUATTARI, 2000, p.32). A rostidade e os corpos da monstruosidade dos zumbis
quebram as linhas das possibilidades concernentes a todas as imagens paradigmáticas para o
corpo normalizado. Estamos, assim, perante a possibilidade de corpos assignificados,
portanto, todas as formas e maneiras de plasticidade estética e de experiência somatoestética
são plausíveis de irromperem. O que conta, afinal, é a dimensão aberta de possibilidades
estéticas junto ao corpo cuja formação sempre é da ordem do virtual: corpo informe e
incompleto, corpo sem órgãos. Este corpo não quer existir conforme o parâmetro da norma ou
do padrão estético regular. Doravante, somos permitidos a testemunhar um princípio de
metamodelização do corporal.
Tal é a potência de subverter a ordem da vida constituída e de todos os seus esquemas
operativos concernentes à sua manutenção que os habitantes do mangue devem se munir de
estratégias e de manobras de embates capazes de lhes assegurar uma sobrevida, ao passo que
eles devem matar os zumbis. Perguntamo-nos, deste modo: não são o choque e o combate
inevitáveis entre os habitantes do mangue e os zumbis partes dos incontornáveis processos de
lutas, de ataques e de contra-ataques, de acusações e de defesas entre poderes normativos e
poderes desviantes, em uma ideia, entre o normal e o anormal?
Nesta sociedade bipolarizada sempre há uma correlação do corpo com um significante
mestre, cuja unificação dos seus sentidos consiste em dragar as dissonâncias estéticas capazes
de perturbar e de confundir os fluxos de intensidades estéticas outrora consagrados. Não é
sem sentido que “o universo de significações dominantes não tolera nenhuma fuga a qual ele
não possa controlar” (GUATTARI, 2011, p.102). No caso dos zumbis, a intolerância ocorre,
pois os componentes semióticos neles implicados são capazes de transgredir as redundâncias
semióticas, seja porque os zumbis profanam nosso campo de percepção e de afetos –
perceptus e afectus –, seja porque eles segmentarizam todos os campos de experimentações
estéticas relativas aos reducionismos dirigidos para uma comunidade de expressão.
Encarnando todas as possibilidades de heteromorfias e de heterotopias, os zumbis são
uma ameaça aos corpos mesmificados pelo fato de portarem, neles mesmos, todas as
possibilidades de anomalias: cada zumbi é um corpo anormal desejando uma mais-valia de
anormalidade. Portanto, é justamente o contrário que sobre nós se assoma. E desta maneira,
pouco importando a nossa territorialização, não somos nós todos habitantes de um tal Mangue
Negro?
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A FIGURA GENEALÓGICA DO MONSTRUOSO: CORPOS DEFORMADOS...
Referências
GUATTARI, F. Caosmose: um novo paradigma estético. São Paulo: Editora 34, 1992.
______. L’inconscient machinique: essais de schizo-analyse. Paris: Éditions Recherches,
2011.
FOUCAULT, M. Os anormais. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
MANGUE Negro. Direção: Rodrigo Aragão. Produção: Fábulas Negras. Intérpretes:
Valderrama dos Santos; Kika de Oliveira; André Lobo; Reginaldo Secundo; Markus Conká;
Maurício Ribeiro; Ricardo Araújo; Antônio Lâmego; Júlio Tigre. 2008. (105 min.).
POLACK, J-C. Le corps, la carte et le monstre. Revue Chimere, S.n.t. Disponível em:
http://www.revue-chimeres.fr/drupal_chimeres/files/05chi03.pdf. Acesso em: 26 de abr. 2013.
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CORPOS ABANDONADOS NA ESCRITA
Vivian Marina Redi Pontin 1
Um quadro pode nos guiar como exemplo, Figura na pia, de 1976:
agarrado ao oval da pia, seguro pelas mãos nas torneiras, o corpofigura faz sobre si mesmo um esforço intenso, imóvel, para escapar
inteiramente pelo ralo.
Gilles Deleuze Francis Bacon: lógica da sensação (2007, p. 23) 2.
David Sylvester, em Sobre arte moderna 3, escreve que Bacon pintava as deformações
das aparências mantendo o plausível, para que neste limite entre realidade e irrealidade se
expandisse algo que se dá no encontro com suas obras. Suas pinturas não estão aquém ou
além do real, é na superfície-tela que o pintor distorce e dissolve, pelas consistências e cores
das tintas, os corpos, as figuras, os fatos.
Nesse território de tela branca e tintas coloridas, um corpo tenta escapar pelo ralo, em
Figura na pia. Contorcido em sua sombra, o corpo-figura, como chama-o Deleuze, esforça-se
em sua fuga, mas como é possível dizer desse esforço? Não há legenda, o título não remete a
isso, não há texto explicativo. “Se a pintura não tem nada a narrar, nenhuma história a contar,
mesmo assim algo se passa, definindo o funcionamento da pintura” (DELEUZE, 2007, p. 20).
O corpo-figura faz funcionar um esforço de escapar pelo pequeno orifício da pia com água,
como se o corpo quisesse fugir para dentro do quadro. Esforço de tornar-se figura.
A composição criada por Bacon não representa a fuga do corpo por determinado
buraco, a fuga de um território. Suas pinceladas criam a própria fuga, o esforço de um corpo
em figurar-se, o esforço de um corpo fugir. A pia do lavabo, enquanto contorno, não possui a
função de ressaltar o corpo-figura em detrimento do quadro como um todo, mas cria um
espaço no qual a figura quer entrar e escapar pelo ralo.
E o que mais compõem o quadro? Deleuze (2007) chama de chapados de cor, o qual
possui uma função espacializante. O contorno, pois, não separa a figura do chapado, os coloca
em relação, no caso da pia do lavabo, forma um volume capaz de comportar um ponto de
fuga. O chapado amarelo espreita a figura (corpo-figura) não sendo paisagem entorno,
tampouco nuance de contornar para representar um espetáculo, uma cena – o chapado é uma
sensação colorante.
Quanto ao território – tela branca – é um equívoco pensar que se cria sobre uma tela
totalmente branca e que as cores compõem em liberdade. A tela, escreve Deleuze (2007), no
caso da pintura moderna, está invadida pelas imagens produzidas na fotografia e repleta,
povoada pelos clichês. “A superfície já está investida virtualmente por todo tipo de clichês
com os quais torna-se necessário romper” (p. 19).
Romper com os clichês. O clichê do corpo como representação, como figuração, como
ilustrativo – Bacon os quer conjurar, “A pintura não tem nem modelo a representar, nem história a
contar” (DELEUZE, 2007, p. 12). Na impossibilidade de escapar, o corpo-figura contorce suas
formas, seu esforço é o que o faz escapar. Escapa-se por um espasmo (DELEUZE, 2007).
1
Doutoranda em Ciências Sociais – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas – Universidade Estadual de
Campinas – IFCH-Unicamp. Linha de pesquisa: Modos de conhecimento e suas expressões: Experiências e
Trajetória. Orientadora: Prof.ª Dr.ª Amnéris Ângela Maroni. Coorientadora: Prof.ª Dr.ª Susana Oliveira Dias.
Pesquisadora do grupo-CNPq - multiTÃO: prolifer-artes sub-vertendo ciências e educações. Bolsista CNPq. Email: [email protected]
2
DELEUZE, Gilles. Francis Bacon: lógica da sensação. Tradução (coord.) Roberto Machado. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar. Ed., 2007.
3
SYLVESTER, David. Sobre arte moderna. Tradução Alexandre Morales. São Paulo: Cosac Naify, 2007.
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CORPOS ABANDONADOS NA ESCRITA
O corpo-figura deformado é percorrido pelo movimento, pelo espasmo involuntário,
levando consigo sua sombra descolada e deslocada para dentro da pia, como se fosse ser
sugada pelo ralo. Um corpo que não conta e não dá conta de ser suporte para uma narrativa,
ele está emudecido ao mesmo tempo em que grita, contorce-se, enrola-se, fixa-se.
Nesse experimento de escrever com essa pintura, rasuram-se, esvaziam-se as
determinações que direcionam uma análise, a intenção de que as palavras representem os
pormenores da pintura, a História mesmo que haja data marcada, a caixa na qual a pintura
cabe mesmo que ela esteja devidamente nomeada. Há uma estrutura-corpo é dela que um
corpo-figura foge.
O movimento estruturante é um território no qual se pode produzir a narrativa para o
corpo-figura de Bacon, bem como para os corpos que esse movimento é capaz de capturar.
Movimento estruturante que codifica, dispõe as peças do xadrez, que representa e repete o
mesmo, o idêntico, as analogias, o sedentarismo, que hierarquiza e coloca o que manda e o
que obedece. Movimento de emparelhamento, apropriação, decalque, persistência, insistência,
organização, direcionamento, quantificação e que aciona determinada direção 4.
É a partir dessas estruturas estruturalizantes e não com o seu imediatamente oposto, é
desde dentro da estrutura que é capaz de dar a fórmula de como narrar e territorializar o
corpo, que se quer pensar naquilo que delas vaza, que delas sobra, que estão em suas rebarbas,
em seus cantos escondidos. Pensar o processo no qual entram em jogo os elementos-corpos
que a palavra das narrativas maiores 5 pretendem subjugar.
Em O esgotado, Gilles Deleuze (2010)6 escreve que “Beckett vai direto ao ponto, nem a
frase nem a palavra, mas seu jorro; sua grandeza é ter sabido estancá-lo...” (p. 76). Diferente de
silenciar palavras, imagens e corpos e, também, o contrário excedê-las de explicações demasiadas,
quiçá explicitar e/ou implicitar, o que se quer é a partir do jorro e estacamento criar uma estética
própria da escrita e fazer funcionar uma maneira de ser afetado diferenciada dos modelos dos
modelos que Palomar (CALVINO, 1994) 7 tanto queria encontrar e acabou por se dar conta de que
aquilo que ocorre não obstante aos modelos é que possui a capacidade de produzir a diferença.
4
Em Mil platôs Deleuze e Guattari escrevem: “No meio de interioridade, as peças de xadrez entretêm relações
biunívocas entre si e com as do adversário: suas funções são estruturais” (p. 13). “As maltas, os bandos são
grupos do tipo rizoma, por oposição ao tipo arborescente que se concentra em órgãos de poder. É por isso que os
nados em geral, mesmo de bandidagem, ou de mundanidade, são metamorfoses de uma máquina de guerra, que
difere formalmente de qualquer aparelho de Estado, ou equivalente, o qual, ao contrário, estrutura as sociedades
centralizadas” (p. 21). “Dir-se-ia que os etnólogos, fechados em seus territórios respectivos, dispõem-se a
compará-los [os territórios] entre si de maneira abstrata, ou estrutural, na pior das hipóteses, mas não admitem
confrontá-los com os territórios arqueológicos que comprometeriam sua autarquia” (pp. 118-119) (grifos da
autora) (DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia, vol 5. Tradução Peter
Pál Pelbart e Janice Caiafa. São Paulo: Ed. 34, 1997).
5
Maiores no sentido dado por Gilles Deleuze e Félix Guattari em Kafka por uma literatura menor (DELEUZE,
Gilles; GUATTARI, Félix. Kafka por uma literatura menor. Tradução Júlio Castañon Guimarães. Rio de
Janeiro: Imago Ed., 1977). Uma literatura escrita numa língua maior é aquela que aspira a representação, a
totalidade, a universalidade da nação e/ou do Homem. Já a literatura menor é aquela escrita numa língua menor
(estrangeira) dentro da própria língua, em que o privado torna-se imediatamente político e que convoca
agenciamentos coletivos de enunciação por um povo que ainda não está dado, um povo que falta. Nesse sentido
irrompe um pensamento de um corpo que falta ou como prefere David Lapoujade numa coletânea de textos
organizadas por Daniel Lins e Sylvio Gadelha – o corpo que não agüenta mais (LINS, Daniel; GADELHA,
Sylvio (org.) Nietzsche e Deleuze: que pode o corpo. Rio de Janeiro: Relume Dumará; Fortaleza: Secretaria da
Cultura e Desporto, 2002.).
6
DELEUZE, Gilles. Sobre o teatro: Um manifesto de menos. Tradução Fátima Saadi; O esgotado. Tradução
Roberto Machado e Ovídio de Abreu. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2010.
7
O modelo dos modelos é uma narrativa presente no livro Palomar (CALVINO, Italo. Palomar. Tradução Ivo
Barroso. São Paulo: Companhia das letras, 1994), o último de Calvino, não esquecendo das Seis propostas para o
próximo milênio (CALVINO, Italo. Seis propostas para o próximo milênio: lições americanas. Tradução Ivo
Barroso. São Paulo: Companhia das letras, 1990), publicado postumamente. Palomar é um livro de narrativas
fragmentárias, em que sua personagem, também Palomar, ora questiona-se, ora discorre sobre as experiências
LINHA MESTRA, N.23, AGO.DEZ.2013
349
CORPOS ABANDONADOS NA ESCRITA
Nesse mesmo texto – O esgotado – Deleuze (2010) cria uma espécie de língua “das
imagens, sonantes, colorantes” (p. 81), que não se reportam à linguagem, aos objetos, às vozes,
mas aos “limites imanentes que não cessam de se deslocar, hiatos, buracos ou rasgões” (p. 78).
É que a imagem não se define pelo sublime do seu conteúdo, mas por sua
forma, isto é, por sua “tensão interna”, ou pela força que mobiliza para
esvaziar ou esburacar, aliviar a opressão das palavras, interromper a
manifestação das vozes, para se desprender da memória e da razão, (…). A
imagem não é um objeto, mas um “processo” (DELEUZE, 2010, p. 81 –
grifos do autor).
É com o processo de produção imagética (ou pictórica se preferir) de Francis Bacon,
bem como a produção conceitual que Gilles Deleuze cria com suas obras, que ressoa uma
política estética para essa escrita-pesquisa, essa escrita-corpo.
Política estética, tal como pensada por Jacques Rancière 8. Para esse filósofo, a estética
não remete a uma ciência e/ou disciplina que se ocupa da arte, uma teoria geral, mas a uma
articulação, um modo de lidar com o pensamento, aquilo que liga a arte ao pensamento. Os
atos estéticos são configurações da experiência ensejando novos modos de sentir, novas
formas de subjetividade política. É “um recorte dos tempos e dos espaços, do visível e do
invisível, da palavra e do ruído que define ao mesmo tempo o lugar e o que está em jogo na
política como forma de experiência” (RANCIÈRE, 2005, p. 16).
Forma que partilha o sensível e vê na arte um testemunho do encontro com o
irrepresentável que desconcerta todo pensamento (RANCIÈRE, 2005). Escrita-pesquisa,
escrita-corpo que experimenta a superfície como uma forma de partilha do sensível.
Superfície-tela de Bacon, supefície-filosofia de Deleuze e superfície-papel de Nuno Ramos 9.
É isso. Areia. Somos pergaminho, areia. Sofremos a compressão
contínua dos outros corpos no nosso, que vão imprimindo ali uma
forma de escrita que ninguém lê e depois se apaga sozinha
Nuno Ramos Ó (2008, p. 279).
Em No espelho 10, a personagem de Nuno Ramos é um homem que se depara consigo no
espelho do banheiro de um restaurante grã-fino onde foi lavar as mãos. Os detalhes de sua
imagem refletida naquela superfície lhe suscitam questionamentos sobre seu próprio corpo,
suas marcas, suas precariedades.
A escolha por essa narrativa é feita por uma das cenas em que a personagem se coloca
numa posição que ressoa, nessa escrita-corpo, a pintura de Francis Bacon (Figura na pia):
da/de vida, num sentido mais amplo do que somente de impressões subjetivas e objetivas. Uma mescla de
escritas que concernem potência ao fragmento, mais do que almejam uma totalidade fechada em si mesma.
8
Essa ideia prolifera em suas obras. Lida-se aqui especialmente com as seguintes: RANCIÈRE, Jacques. Existe
uma estética deleuzeana? In: ALLIEZ, Éric (org.). Gilles Deleuze: uma vida filosófica. Tradução (coord.) Ana
Lúcia de Oliveira. São Paulo: Ed. 34, 2000 – pp. 505-516. RANCIÈRE, Jacques. A partilha do sensível: estética
e política. Tradução Mônica Costa Netto. São Paulo: EXO experimental org.; Ed. 34, 2005. RANCIÈRE,
Jacques. O inconsciente estético. Tradução Mônica Costa Netto. São Paulo: Ed. 34, 2009.
9
Nuno Ramos – nasceu em São Paulo, onde vive e trabalha. Formado em filosofia pela Universidade de São
Paulo, é pintor, desenhista, escultor, escritor, cineasta, cenógrafo e compositor. Começou a pintar em 1984,
quando passou a fazer parte do grupo de artistas do ateliê Casa 7. Desde então tem exposto regularmente no
Brasil e no exterior. Autor de Cujo (1993); O pão do corvo (2001); Ensaio geral (2007); Ó (2008); O mau
vidraceiro (2010); Junco (2011).
10
RAMOS, Nuno. Ó. São Paulo: Iluminuras, 2008.
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CORPOS ABANDONADOS NA ESCRITA
Ajoelhado sem camisa sobre a bancada de granito em frente ao espelho de
um restaurante grã-fino onde fui lavar as mãos, tenho os braços bem abertos
agora, como se tentasse alcançar o espelho inteiro, e examino cada palmo do
dorso e a parte interna dos meus braços. Olhando com atenção para baixo,
vejo ainda meu tronco, cintura e pernas refletidos no granito polido da
bancada, com menos detalhe do que no espelho mas ainda assim nítido o
suficiente para que eu perceba a linha da corcova, da estranha corcunda que
vem se avolumando atrás de mim, como se um jabuti todas as noites, em
meio aos sonhos, subisse até o meio das minhas costas e transferisse
lentamente seu casco para lá (RAMOS, 2008, p. 279).
O corpo-personagem de Nuno Ramos também contorce-se, fixa-se, enrola-se e,
emudecendo em seus questionamentos e escapando para dentro do espelho, grita as marcas e
manchas em sua pele, as secreções de mijo, cuspe, merda e suor – como escritas de seu corpo
que ninguém lê.
Adentrar na narrativa de Nuno Ramos, nesse território – papel branco, letras pretas –
também convida a pensar com os clichês, de que essa imprecisa brancura também está repleta
deles. Escrever o corpo – como fazê-lo? O mundo já está saturado de narrativas que dão conta
do corpo, explicam seu funcionamento, interpretam sua origem, gestualidades, costumes,
classificam-no, dizem como evoluem, como são seus atributos, demandas, sua História, o que
neles é preciso melhorar, dar atenção, enfim, uma gama de formas de narrá-lo que o suportam,
uma epistemologia capaz de sustentá-lo.
Como, então, fugir da normatividade e organicidade dessas narrativas que povoam o
mundo? Como criar uma escrita-corpo fugidia? Como desatarraxar-se?
Um corpo-figura, um corpo que foge, um corpo-personagem, trazidos para essa escrita,
colocam em questão como a pintura, filosofia e a literatura funcionam numa escrita-corpo
fugidia. Fugas desses mesmos corpos para que não recaiam numa saturação. Essas obras não
descrevem, não fazem uma representação fiel, não ilustram as forças que agem sobre o/no
corpo – essas forças são convocadas em suas cores e palavras, na consistência e na textura, na
superfície-tela e superfície-papel para proliferarem nessa escrita-corpo.
A sensação é o que é pintado. O que está pintado no quadro é o corpo, não
enquanto representado como objeto, mas enquanto vivido como
experimentando determinada sensação (…) a sensação é o que passa de uma
“ordem” a outra, de um “nível” a outro, de um “domínio” a outro. É por isso
que a sensação é mestra de deformações, agente de deformações do corpo
(DELEUZE, 2007, p. 43 – grifos do autor).
Os corpos são abandonados antes de entrarem numa narrativa que poderia/deveria
explicar, essa é a estratégia, a estética de uma escrita-corpo fugidia. Abandono que não é um
desleixo, antes uma pretensão de perturbar o território estabelecido de uma escrita-pesquisa
que se presta ao corpo, mas não o quer como representante, como aquele que toma o lugar da
imagem acima da legenda. O desamparo é uma doação, uma entrega do corpo à escrita e da
escrita ao corpo 11.
Referências
CALVINO, Italo. Palomar. Tradução Ivo Barroso. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.
11
“escrever é lutar, resistir; escrever é vir-a-ser; escrever é cartografar” – DELEUZE, Gilles. Foucault. Tradução
Claudia Sant'Anna Martins; revisão Renato Ribeiro. São Paulo: Brasiliense, 2005 (p. 53).
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CORPOS ABANDONADOS NA ESCRITA
DELEUZE, Gilles. Foucault. Tradução Claudia Sant'Anna Martins; revisão Renato Ribeiro.
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SYLVESTER, David. Sobre arte moderna. Tradução Alexandre Morales. São Paulo: Cosac
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LINHA MESTRA, N.23, AGO.DEZ.2013
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SESSÃO 20 – CUIDADO E PRODUÇÃO DE LINHA DE FUGA
PRODUÇÃO DE REDES E PRODUÇÃO DO COMUM
Bruno Mariani de Souza Azevedo 1
Michele Eichelberger 2
Sérgio Resende Carvalho 3
Construir redes é uma importante questão contemporânea. Ainda que, na saúde, o
assunto já tenha cerca de 100 anos, datados pelo Informe Dawson, que influencia a
constituição de diversos sistemas de saúde europeus e, consequentemente, mundo afora. Nas
últimas décadas isso tem tomado centralidade cada vez maior. Talvez impulsionado pelo
próprio capitalismo globalizado, um capitalismo que ao mesmo tempo enleva conexões e
fluidez, se apropria delas e expropria as redes de vida da maioria da população (Pelbart,
2003). Nesse sentido, dentro das formulações sobre Redes de Atenção à Saúde diversas
teorias postulam a necessidade de um comando único no sentido de transmitir a toda a correia
o mesmo ideário e os mesmos objetivos. Parece-nos que tais operações conceituais não
escapam deste modo de produzir, globalizado neoliberal, redes frias, ou seja, com efeitos de
homogeneização e de equivalência (Passos, et al., 2004). Parece-nos que as comunicações, as
linguagens, postas em comum, ainda o fazem não para produzir potência, mas talvez, elas se
façam emergir para continuar trabalhando por um certo comando central (Pelbart, 2003), em
prol de uma unidade de ideias, ou de um “clima organizacional” como diriam algumas
correntes.
Nesse sentido, a construção de redes se apresenta como uma tarefa complexa, exigindo
a implementação de tecnologias que qualifiquem os encontros entre diferentes serviços,
especialidades e saberes. Ter mais serviços e mais equipamentos é fundamental, mas não
basta. É preciso também garantir que a ampliação da cobertura em saúde seja acompanhada
de uma ampliação da comunicação entre os serviços, resultando em processos de atenção e
gestão mais eficientes e eficazes, que construam a integralidade da atenção (Brasil, Ministério
da Saúde, Política nacional de Humanização da Atenção e Gestão do SUS, 2009).
É importante uma atuação não apenas no campo macroestrutural, mas também nas
microesferas, nas relações de trabalho, com uma qualificação contínua da gestão,
incorporação permanente de novos sujeitos nas lutas pelas mudanças sociais. Pois, ainda que
histórica e analiticamente tendamos a separar as macro das microestruturas de rede, não existe
“A” rede de antemão. O que não quer dizer que existem dois tipos de rede, e sim redes
possíveis, cujas formas jamais serão suficientes (não devemos encarar produzir uma rede
como uma panaceia contemporânea). Produzir permanentemente outros arranjos de rede
exige, então, produção de espaços coletivos que encontrem de fato zonas de trocas, que
ampliem os processos colaborativos.
É nesse plano micropolítico, por exemplo, que podemos reconhecer uma
série de experiências que, já há algum tempo, vêm criando algumas
possibilidades reais de (…) efetivamente ampliarmos as chances de
participação de todos nas escolhas que mais diretamente afetam a “poética
social” que produzimos e que é, afinal, o modo como realizamos individual e
coletivamente uma dada estética da existência (Teixeira, 2003, p.95).
1
doutorando em Saúde Coletiva – Unicamp.
doutoranda em Saúde Coletiva – Unicamp.
3
docente de Saúde Coletiva – Unicamp.
2
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353
PRODUÇÃO DE REDES E PRODUÇÃO DO COMUM
Assim, a produção de rede pode se constituir em uma democracia viva em ato, pois o
trabalho é vivo (Merhy, 2009), produz a vida, necessariamente produz e reproduz afetos e,
logo, tem enorme potencial de ação biopolítica (Hardt, 2003). E para que essas redes de
trabalho afetivo possam inclusive ser efetivas precisam encontrar zonas de singularização (o
espaço de realização das potências individuais), o que passa pelo encontro de zonas de
comunidade (o espaço de realização das potências “comunitárias”) (Teixeira, 2004).
Portanto, mesmo espaços coletivos que são lugares de práticas planejadas, projetadas,
programadas, como serviços de saúde territorializados, são, sobretudo, lugares de encontro, de
trocas, abertos a movimentos imprevistos, o que os define, os articula, são redes de relações.
Há uma reversão política: são os lugares de encontro que dão a dinâmica dos espaços,
constituindo territórios de vida. Assim, é a ampliação de zonas de trocas, de graus de
comunicação, de construções conjuntas que confere resistência a esses espaços e seus usos
(Eichelberger, 2012).
Assim, se os espaços coletivos são conceitos, ou, arranjos que podem tomar a forma de
equipes de trabalho, entre outras (Campos, 2000), a ativação dessa rede nesses espaços de
construção de políticas públicas pode tensionar uma organização social que tem aprisionado
modos de produção coletiva. No reconhecimento desses desafios de trabalho e gestão em
saúde vem se buscando construir certa institucionalização deste debate, através de diversas
políticas, programas, arranjos, iniciativas. Mas estes arranjos, para serem dispositivos de
construção dessa rede, dependem do modo como serão operados no cotidiano, da dinâmica
coletiva do trabalho em saúde, do modo como as redes se expressam nos encontros.
É necessário tornar visível o trabalho como um espaço de construção de sujeitos e de
subjetividades, de coletivos que inventam mundos, inventam-se e, sobretudo, podem produzir
alguma saúde. Os equipamentos devem se apropriar deste lugar das relações de trabalho para
encontrar modos efetivos de fazer comunidade (Teixeira, 2005) e produzir redes, no que tange
o permanente encontro de zonas de trocas. Ferramentas intensamente formalizadas, regrando
a relação entre serviços e/ou entes federados, ainda que úteis, não dão conta de um cuidado
integral, das necessidades concretas de um território, pois:
necessidades não nos são sempre imediatamente transparentes e nem jamais
estão definitivamente definidas, mas são e desde sempre têm sido objeto de
um debate interminável, de uma experimentação continuada, em que o que
se discute e refaz sem cessar é a nossa própria humanidade (Teixeira, 2004).
A despeito do que poderíamos definir como demanda ou como necessidade (ainda que
reconheçamos amplo debate a respeito), o que queremos aqui afirmar é que tais
formalizações, se conduzidas a um pretenso engessamento do trabalho e da vida, não serão
capazes de responder a esse incessante refazer das condições de vida. A demanda de um
território se define pela sua rede de relações e, o tempo todo, cria territórios de vida, é
coletiva, de modo que exige, provisória e permanentemente, agenciamentos coletivos: o
esforço do trabalho em saúde em entrelaçar uma comunidade e encontrar zonas de trocas para
que, mobilizando o que produz em comum, possa acolher diferentes necessidades e fortalecer
redes sociais. E é neste ponto que a rede enrijecida, formalizada e abstrata nos é pouco útil,
pois este acolhimento de trocas demanda uma rede maleável que sustente diferentes trajetos
produzidos, os quais demandarão, a partir do momento deste encontro, a produção de outros
movimentos, outras redes. Redes que nos conduzem a outros encontros e assim por diante,
pois redes de trabalho são redes de produção de redes sociais, de comunidades: redes de
produção de redes (Teixeira, 2004).
Na aposta da construção de redes espera-se criar uma malha de cuidados ininterruptos,
organizados de forma progressiva, ampliando o universo e a natureza dos serviços de
saúde/nós conectados nessa rede (Ceccim, et al., 2006). Fica também, como desafio, a
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PRODUÇÃO DE REDES E PRODUÇÃO DO COMUM
oportunização desses encontros de forma que produzam laços de confiança a ponto desse
trabalho tornar-se algo intercomplementar, resolutivo, produtor de autonomia, com
capacidade criativa e gerador de responsabilização. As equipes precisarão desenvolver a
capacidade de criar alianças e de produzir um comum ante as divergências, há um
deslocamento sutil: são os pontos críticos comuns que fazem aparecer os diferentes pontos de
vista em torno de uma mesma questão (Azevedo, 2012). Produzimos, assim, um
deslocamento da ideia de que uma rede precisa de um único objetivo, um pensamento
uniforme que a conduza.
A assimilação do conceito de rede representaria uma inovação importante
para a organização da atenção no campo da saúde: responsabilidades
diferentes, diferentes tipos de poder, diferentes funções sem hierarquizar
complexidades ou importância no processo de produção do cuidado em
processos mais flexíveis. É, portanto, diferente da organização em pirâmide,
com sua base e sua cúpula. Não há hierarquia de importância estável ou
permanente entre os que compõem a rede. Ou seja, na rede, a complexidade
não tem endereço fixo. (Righi, 2010 p. 65).
Ou seja, as redes são singulares e suas conformações variam no tempo, no espaço, no
contexto e no diagrama de forças nos quais estão inseridas. Isso passa pela concepção de que
rede é um conjunto de nós interconectados, cuja definição depende de que tipo de rede
concreta se fala. Assim, nessa concepção, a ideia de produção de redes de saúde sempre
carrega certa provisoriedade e inacabamento (Righi, 2010).
Romper com uma estrutura abstrata de rede possibilita pensar que quando essa rede se rompe
é para se refazer. E uma ruptura em certo lugar é a produção de linhas de fuga para construções não
previstas anteriormente, não dadas de antemão, o que pode aumentar a capacidade de produção de si
(Franco, 2006), de instituições sociais, como serviços de saúde, providenciarem um modo de fazer
rede, que é próprio de noção de rede que aqui se pretende explorar.
Uma rede que funciona de acordo com processos produtivos, que são políticos,
operativos, subjetivos, um trabalho que se dá por comunicação coletiva:
Nesse esquema a imagem é de uma rede da qual todos participam, entregue à
deformação e ao esgarçamento. O sentido não flui de um ponto ao outro, é
“o-que é-com”, o contexto, que está sempre em jogo, permanece alvo dos
atos de comunicação (Teixeira, 1997, p.33).
Há que se fazer uma torção semântica na discussão em torno da rede de serviços de
saúde ou de atenção a saúde, não estamos falando do gerenciamento de pontos de atenção a
saúde, estamos falando de um campo de práticas que integrará uma rede, para além de
serviços específicos, e de zonas de saúde fixas, para encontrar zonas de trocas, comunidades
permanentemente providenciadas.
Estamos escapando de uma dicotomia entre a dimensão coletiva e a individual, de
relações de oposição, para retomar a organização tecnológica do trabalho interessada em
tornar visível “os modos efetivos que temos encontrado de fazer comunidade” (Teixeira,
2005), focando o fortalecimento de redes de vida. Entendemos esta manobra de visibilidade
como uma reversão política que, radicalmente, ou seja, fazendo os movimentos precisos,
possa sustentar os princípios do SUS, outras relações de trabalho e outros modos de se
articular a rede de serviços em saúde.
Falar em “redes de vida” será quase redundante aqui se entendermos vida como o poder
de afetar e ser afetado, a composição de uma sinergia coletiva, cooperação social e subjetiva.
Nesta concepção podemos trabalhar com a ideia de biopotência do coletivo, a constituição de
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PRODUÇÃO DE REDES E PRODUÇÃO DO COMUM
um corpo vital capaz de constituir-se em um comunialidade expansiva. Produzir rede de vida
passa a ser a produção de pequenas variações, uma aposta na inventividade, na potência do
homem comum (Pelbart, 2003). Então nesse sentido, produzir comunidade se relaciona a
possibilidade de se produzir esse corpo que, em não sabendo dos afetos de que é capaz
(Spinosa, 2008), terá que saber quais são as relações que o compõe na direção de uma
“potência mais intensa”, de tal forma que o comum dá-se em um constante construir-se,
engendrar-se (Pelbart, 2003).
Nesse movimento de construção permanente interessa-nos a imagem da espiral trazida
por Hardt e Negri (2005):
a subjetividade é produzida através da cooperação e da comunicação e, por
seu turno, esta subjetividade produzida produz ela própria novas formas de
cooperação e de comunicação, as quais por suas vez produzem de novo
subjetividade, e assim por diante. Nesta espiral, cada momento da cadeia que
parte da produção da subjetividade para a produção do comum é uma
inovação que tem por resultado uma realidade mais rica. Talvez neste
processo de metamorfose e constituição devamos reconhecer a formação do
corpo da multidão, uma espécie fundamentalmente nova de corpo, um corpo
comum, um corpo democrático. (p.193)
E se entendemos corpo, novamente à maneira de Espinosa, como uma multiplicidade
constituída por inúmeros outros corpos e que o é, se define, enquanto a singularidade da
relação estabelecida entre estes corpos (Spinoza, 2008) parece também fazer sentido entender
Redes como rizomas. Neles quaisquer pontos podem se conectar e devem fazê-lo, a análise
desloca-se dos pontos para a relação entre eles (incluindo-os nisso), de tal forma que se um
desenho de rede se estabelece é apenas mais uma marca em um plano de consistência no qual
as linhas de fuga também são de nosso interesse, de maneira que a rede opera identificando
seu rompimento nestas linhas para se refazer remetendo-se a elas mesmas. Constituem
territórios e graus de desterritorialização. Um rizoma o é, mesmo sem um aparato que o
centralize e organize (Deleuze, Guattari, 1995).
Tal experiência não deixa de ser um convite para sairmos do isolamento das instituições
e/ou das unidades federativas. Como podemos produzir esse coletivo preocupado com a
produção de saúde e a produção de vida? Neste movimento de “pôr em comum”, de fazer
comum, vamos experimentando abrigar uma multiplicidade de singularidades associadas em
redes de afetos, instaurando uma guerrilha no/do sensível, numa exploração de veredas de um
outro mundo possível. Partilhar alguma coisa é remar junto, é estar no mesmo barco.
Praticamos uma ética ao exercer composições nas quais aqueles que estão envolvidos se
mantêm diferentes, do começo ao fim da relação. Descobrindo o desconhecimento de ser
comunidade podemos esboçar zonas de vizinhança e convergência na produção de novas
questões em comum (Azevedo, Eichelberger, Palucci, Reis, 2012).
Concluímos com questões, não com respostas. Perguntamo-nos, diante disso tudo,
dentro do campo da Saúde Coletiva, então, como transformar redes duras em redes maleáveis,
não fixas, que se arranjem mediante a produção singular que é apresentada em cada território?
É em nome de um arranjo de rede, que aparentemente se coloca como uma estrutura
invariável, que a nossa rede de trabalho tem deixado de produzir redes nos seus encontros?
A cada movimento, novas composições. Cada nova relação que fazemos, um mundo de
possíveis que se abre e que pede acolhimento e envolvimento para que possa ser
desenvolvido. Sabendo que a efetuação de possíveis é ao mesmo tempo um processo
imprevisível, aberto e arriscado. Não podemos nos furtar a este desafio. Nosso trabalho é vital
e diz respeito às obras inerentes à viagem que é a nossa vida (Azevedo, Eichelberger, Palucci,
Reis, 2012).
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PRODUÇÃO DE REDES E PRODUÇÃO DO COMUM
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LINHA MESTRA, N.23, AGO.DEZ.2013
358
A REDE DE CENTROS DE CONVIVÊNCIA NO SUS: LINHAS DE FUGA DA
SUPERFÍCIE-TRATAMENTO
Sabrina Ferigato 1
Sergio Resende Carvalho 2
Este trabalho trata-se se um recorte de uma pesquisa mais ampla de doutorado realizado
no departamento de Saúde Coletiva da UNICAMP em que, foi nosso objetivo principal
cartografar o que produzem esses dispositivos e também o que os produzem. Para isso,
organizamos essa tese em quatro capítulos: O capítulo I se destinou a apresentar a
metodologia e métodos utilizados para fins da pesquisa. Optamos pelo uso da metodologia de
pesquisa qualitativa, com alguns apontamentos quantitativos, com caráter participativo e
interventivo. O método utilizado foi a cartografia, a partir do referencial teórico da Filosofia
da Diferença, através de revisão bibliográfica e pesquisa de campo.
No segundo capítulo foram apresentados dados referentes a revisão bibliográfica sobre
os Centros de Convivência em seu contexto nacional e municipal, além apresentação de dados
quanti-qualitativos sobre os CECOs.
O terceiro e o quarto capítulo se destinam a explorar a produção dos Centros de
Convivência, inicialmente a partir de narrativas de cenas e episódios vividos durante a
pesquisa de campo e posteriormente através da cartografia dos encontros produzidos pelos
CECOs.
Os dados produzidos pela tese apontam para diversos indicadores e análises que
expressam a potência intrínseca aos CECOs para a produção de redes de saúde, de
intersetorialidade, de criação de laços sociais, de movimentos de empoderamento social e de
afirmação das diferenças, mas mais do que isso, optamos por realizar o registro da produção
dos CECOS a partir dos encontros que eles produzem.
Para ficar mais claro esse processo, cabe aqui um maior esclarecimento sobre o que são
os Centros de Convivência e de que noção de encontro partimos.
De modo geral, os CECOs são considerados como espaços vinculados ao setor saúde
que privilegiam a participação e a construção coletiva através de atividades relacionadas à
arte, educação, lazer e cultura, funcionando com a participação de diversos setores da
sociedade.
Consideramos um tanto quanto perigoso qualquer esforço no sentido de definir o que
seja um “Centro de Convivência”. Não se trata de um elogio à falta de clareza, muito pelo
contrário: trata-se simplesmente de reconhecer a extrema vulnerabilidade instaurada no
momento em que se procura traduzir em palavras, a complexa relação entre “sujeitos” e
determinados “objetos” (FABIÃO, 2008).
Por isso utilizamos o verbo “arriscar” e incluímos o adjetivo “transitório” à ideia de
uma definição do CECO. Trata-se de um dispositivo multifacetado, de um movimento, de um
sistema tão flexível e aberto que dribla qualquer definição rígida de “saúde”, de “cultura” ou
de “serviço”. Dito isto, consideremos algumas tendências que emergiram, tanto nas
entrevistas, quanto às falas expressas em campo, além da análise da própria pesquisadora
podemos propor um modo de dizer sobre os CECOs:
Os Centros de Convivência podem hoje ser caracterizados como dispositivos híbridos
que compõe a rede de saúde e que extrapolam as fronteiras sanitárias, promovendo ações
intersetoriais e transdisciplinares. Poderíamos dizer que os CECOs, tendencialmente, podem
1
2
doutora em Saúde Coletiva.
docente de Saúde Coletiva Unicamp.
LINHA MESTRA, N.23, AGO.DEZ.2013
359
A REDE DE CENTROS DE CONVIVÊNCIA NO SUS: LINHAS DE FUGA...
funcionar na rede de saúde e na rede intersetorial como “um dispositivo ativador de
experiência” ou em outras palavras como um “motor de experimentação” 3.
A ideia de identificar o CECO como um dispositivo da saúde que realiza ações
intersetoriais gera uma série de outras inflexões como: De que ideia de saúde e de
intersetorialidade estamos falando? Qual é a clínica que se produz no interior dos CECOS?
Que “tratamento vivo” seria esse?
Em nossa perspectiva, o CECO trabalha com uma perspectiva da produção de saúde
relacionada a todos os aspectos que dizem respeito à defesa da vida. O conceito de vida aqui,
conforme nos ensina Pelbart (2003), deixa de ser reduzido a sua definição biológica para se
tornar uma virtualidade molecular da multidão, energia a-orgânica, corpo sem órgãos. A
questão não é mais somente a do limite entre vida e morte, mas dos modos de viver e morrer
(Aragon, 2007).
A vida inclui a sinergia coletiva, cooperação social e subjetiva. Vida significa afeto,
inteligência, cooperação, desejo – poder de afetar e ser afetado (SPINOZA, 2008). Falamos
também de uma produção de saúde vinculada à produção de subjetividade 4 - Instâncias que se
distinguem, mas não se separam: uma mesma composição ético-política (Passos e Barros,
2001; Tedesco e Souza, 2009).
Quando muda o conceito de saúde, muda também aquilo que se entende por clínica e
terapêutica naqueles espaços.
Entre as inúmeras frentes de ações dos CECOS podemos dizer que sua missão se
caracteriza pela promoção de encontros, pela produção de cuidado em rede e pela intervenção
na cidade através de políticas de convivência e da ativação de experiências.
O cuidado oferecido pelo CECO pode promover uma importante ressignificação no
sentido dos processos de saúde-doença-intervenção, criando novas perspectivas no encontro
entre profissionais e usuários, além de estabelecer uma relação com a comunidade
especialmente a partir de suas potências e não apenas a partir de suas fragilidades ou riscos
identificados. Seu compromisso de fortalecimento do território dado se dá a partir do
fortalecimento das relações que as pessoas estabelecem com seu bairro, com os espaços
públicos, entre si e com suas vidas.
As ações dos Centros de Convivência se caracterizam por intervenções em sujeitos e
coletivos, a partir de oficinas grupais intermediadas geralmente pelo uso de atividades que
façam sentido para diferentes grupos sociais, incluindo atividades culturais, artísticas,
artesanais, esportivas, educacionais, de trabalho e de lazer.
Poder realizar atividades de lazer, sem ter que dar outro nome a isso, sem ter
necessariamente que agregar outros valores ao lazer além daqueles valores inerentes a ele
próprio é uma característica importante das políticas de convivência em Campinas,
especialmente quando o direito de acesso ao lazer ou às redes migra do âmbito social para o
comercial (Rifkin, 1998). Cada vez mais, esse acesso é mediado pelo capital, por pedágios
comerciais impagáveis pela maioria, expropriando parte da população das redes de vida
(PELBART, 2003).
Permeados pela ética do encontro e pela produção das diferenças, embora sejam abertos
a todas as pessoas, de todas as classes sociais que queiram se inserir nele, os Centros de
Convivência se destinam especialmente para pessoas com diferentes limitações e
vulnerabilidades, que optam voluntariamente por se agregarem em torno de um objetivo,
3
Utilizo as palavras “ativador de experiência” e “motor de experimentação” entre aspas, por serem termos
utilizados por Deleuze e Guattari (1999) para definir a noção de programa no texto “Como criar para si um
corpo sem órgãos”.
4
Definimos como subjetividade “O Conjunto das condições que torna possível que instâncias individuais e
coletivas estejam em posição de emergir como um território existencial auto referencial em relação de
delimitação com uma alteridade, ela mesma subjetiva” (Guattari, p.19, 2006).
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360
A REDE DE CENTROS DE CONVIVÊNCIA NO SUS: LINHAS DE FUGA...
atividade ou interesse comum. Neste sentido, os CECOs são um importante dispositivo para a
criação de laços sociais para grupos considerados marginalizados como pessoas com
transtornos ou deficiências mentais, deficientes físicos ou sensoriais, pessoas em uso
problemático de álcool ou outras drogas, idosos e crianças e adolescentes em situação de risco
pessoal e/ou social ou outras pessoas que tenham, por motivos diversos dificuldades
relacionais ou de convivência e tenham o desejo de transformar essa dificuldade em outra
coisa que não está dada previamente.
Sua característica de abertura à comunidade e ao mesmo tempo de fronteira com
diferentes setores faz dos CECOS um espaço que pode se constituir como uma porta de
entrada para a rede de saúde e ao mesmo tempo uma linha de fuga desta mesma rede para
aqueles que há anos tem seu convívio social restrito à espaços de tratamento stricto senso, ou
para aqueles que viam sua singularidade aprisionada à um diagnóstico.
Neste contexto propomos pensar as práticas promovidas pelos CECOs em sua
possibilidade de funcionar como acontecimentos que reinauguram processos coletivos,
subjetivos e sensíveis e ao mesmo tempo, resgatam o próprio coletivo, podendo operar a
produção de coletivos como plano de criação (ESCÓSSIA, 2009). Um plano coletivo de
criação se dá a partir da inevitável relação entre o plano das formas e das forças, entre o plano
instituinte e instituído e que tem a potência de ativar o plano intensivo, molecular permitindo
movimentos de criação.
Espaços como esses podem criar instâncias locais de encontros e subjetivação coletiva
(GUATTARI, 2006). Para esse propósito, suas oficinas que intercruzam saberes de diferentes
setores podem ser uma poderosa aliada, no sentido de funcionar como um caminho que
estreita a relação entre a experiência vivida e a produção de saúde através de processos de
criação.
Essa mediação, se dá por um conjunto de práticas que analisamos a partir de um
denominador comum a todas elas: A noção de encontro.
Para falar de encontros, partimos do referencial spinozano, a partir do qual, podemos
identificar que a natureza dos encontros não é por si só positiva, nem negativa. O encontro
entre os corpos se dão por conveniência ou desconveniência. O que se coloca no centro é o
seu componente relacional, que pode ser aumentativo ou diminutivo da potência das partes
que se relacionam, compondo-as ou decompondo-as.
Para Spinoza (2008) os encontros são essencialmente ético-afetivos, vinculados a noção
de composição ou de decomposição na relação entre os corpos, na imanência da própria
experiência. Um bom encontro é caracterizado pela composição, pelo aumento da potência de
um corpo e um mau encontro é caracterizado pela decomposição ou diminuição da potência
de agir ou da força de existir de um corpo.
A transformação que um encontro pode gerar num corpo é indeterminada. Nas palavras
de Spinoza (2008) “não sabemos o que pode um corpo”, mas sabemos que, o que ele pode ou
não está diretamente relacionado com sua capacidade de afetar e ser afetado. Buscamos
cartografar nos CECOs diferentes tipos de encontros, e especificamente aqueles que
produziam aproximações e afastamentos da rede de saúde. Entre esses encontros, pudemos
registrar:
1 - O encontro entre pessoas heterogêneas
Visto que o CECO é destinado á uma população heterogênea quanto ao gênero, idade,
diagnóstico e classe social. Além disso, produz-se encontros entre trabalhadores de diferentes
disciplinas (produzindo transdisciplinaridade). Esse encontro produz redes em ato, redes de
conhecimento, redes de cuidado, de suporte...
LINHA MESTRA, N.23, AGO.DEZ.2013
361
A REDE DE CENTROS DE CONVIVÊNCIA NO SUS: LINHAS DE FUGA...
Além disso, cartografamos o encontro entre usuários e profissionais, onde se produz
uma nova modalidade clínica, uma clínica pautada pelo acontecimento e não por protocolos e
prescritividade. Uma clínica pautada pela produção de subjetividades e não pela produção de
cura, por um encontro na transversalidade e não em relações hierárquicas de poder.
2 - Encontro entre pessoas com a atividade – um novo corpo em cena
Já que a maior parte dos encontros coletivos realizados nos CECOs se dão
intermediados por oficinas (artesanais, artísticas, esportivas, pedagógicas e corporais), é
impossível não perceber a potência do encontro de corpos humanos com outras
materialidades. Para Galletti (2004), as oficinas funcionam mais como vetores produtores de
existência do que produtores de intervenção clínica. Isso não significa dizer que a intervenção
não aconteça. Podemos definir as oficinas como um dispositivo quase sempre experimental
que não segue uma formulação teórica rígida, nem um modelo padrão de funcionamento.
Não se trata apenas do confronto com uma nova matéria de expressão, mas a
constituição de complexos de subjetivação. Indivíduo-grupo-atividade- trocas múltiplas que
oferecem diversificadas formas de composição de uma corporeidade existencial, de resingularização (GUATTARI, 2006). Não mais o esquizofrênico do leito 08, mas João, o
violeiro.
3 - O encontro entre diferentes setores e a produção de práticas intersetoriais
Podemos visualizar presentes nos CECOs diferentes setores como a Saúde, Educação,
Cultura Esportes e Assistência Social. Procuramos explorar na tese o que esse encontro entre
setores produzem. Ou o que produz a intersetorialidade nos CECOs.
Produzir composição de diferentes setores é mais do que uma sobreposição de
estratégias setoriais. Segundo Pelbart (2003) num plano de composição trata-se de
acompanhar as conexões variáveis, num plano de proliferação, de contágio. Reúnem-se
elementos heterogêneos disparatados e deixa-se inscrever os acontecimentos, as variações
intensivas, os devires advindos do agenciamento dessas diferenças.
Diversas práticas intersetoriais marcantes que se fazem presentes em diferentes CECOS,
sendo uma das principais molas propulsoras da potencia desses serviços na criação de redes
de sentidos para a vida dos usuários, sentidos que muitas vezes, o setor saúde não teria
potencia para produzir sozinho.
4 - O encontro com a cidade e com o território
Outro encontro importante de ser registrado quando pensamos o CECO em sua inserção
na rede de saúde é o encontro entre o CECO (e as pessoas que o constituem) e a cidade.
Aqui, a cidade é tomada como um importante espaço de investimento das políticas de
saúde coletiva. Pensamos a cidade também como “cidade subjetiva” (GUATTARI, 2006) e o
“Território” antes de tudo como um lugar de passagem (Deleuze e Guattari, p.132, 1997).
Ao discutir a restauração da cidade subjetiva, Guattari (1985) aponta para a instauração
de uma nova articulação entre os registros ecológicos do meio ambiente, o das relações
sociais e o da subjetividade humana. O que está em jogo nessas implicações mais do que as
condições sanitárias de habitação são os “modos da habitação” - questão ética e estética por
excelência.
A cidade aqui é mais do que a delimitação de um espaço geográfico, mas uma
composição de diferentes territórios.
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A REDE DE CENTROS DE CONVIVÊNCIA NO SUS: LINHAS DE FUGA...
Guattari (1985) diferencia espaço de território. Espaço de funções planejadas,
projetadas, programadas e território enquanto espacialidade materializada, definida a partir de
relações subjetivas - Os denominados territórios de subjetivação ou territórios existenciais.
O conceito de território aqui é entendido num sentido muito amplo, envolvendo
aspectos biológicos, geográficos, subjetivos e sociológicos, entre outros.
Os seres existentes se organizam segundo territórios que os delimitam e os articulam
aos outros existentes. O território pode ser relativo tanto a um espaço vivido, quanto a um
sistema percebido no seio da qual um sujeito se sente “em casa”. O território é sinônimo de
apropriação, de subjetivação fechada sobre si mesma. Ele é o conjunto de projetos e
representações nos quais vai desembocar, pragmaticamente, toda uma série de
comportamentos, de investimentos, nos tempos e nos espaços sociais, culturais, estéticos,
cognitivos (Guattari & Rolnik, 1996, p. 323)
Neste sentido, se os territórios cumprem uma função de delimitação, apropriação e
articulação, numa cidade é possível criar zonas de territorialização e também zonas de
desterritorialização. Criação de conexões e de ações de pertencimento a certo território e ao
mesmo tempo movimentos para reinventá-lo, diferir dele, gerar conexão com novos territórios
possíveis. É justamente esse ir e vir que mostra o movimento do território-CECO, sua
flexibilidade à diferentes necessidades e demandas, apresentando-se como um dispositivo
importante para a ressignificação do encontro entre pessoas com sua cidade, para uma
possível recriação da forma como os cidadãos ocupam os espaços públicos, se apropriando
dele, numa postura ativa na sua construção.
Diversos usuários narram como as experiências vividas nos CECOS causaram
transformações importantes em sua relação com o socius, com a cidade. Essas transformações
sociais podem acontecer em escalas macropolíticas ou em escalas invisíveis. Guattari (2006)
utiliza o termo “revoluções moleculares” para designar esse tipo de mudança, que acontecem
em escalas moleculares.
Conclui-se que, para além dos objetivos previamente estabelecidos para os CECOs, em
suas práticas, em seus enunciados e produção, opera-se a construção de diferentes linhas de
fuga. Entre elas, pudemos cartografar:
- A produção de outras superfícies relacionais para usuários do SUS, para além da superfície
tratamento, para usuários que tinham suas vidas tomadas pelo devir-doente
- A produção de linhas de fuga do próprio SUS, para a construção de vida em relação com
outros setores.
- A produção de uma relação com o território que ultrapassa as fronteiras sanitárias e se pauta
pelo desejo e pelo modo como as pessoas habitam a cidade.
- A criação de linhas de fuga em relação aos modos hegemônicos de pensar os processos
saúde-doença-intervenção.
Referências
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CLÍNICA E DANÇA: UM ENSAIO SOBRE RUPTURAS E CONTÁGIOS
Bruna Martins Reis 1
Sérgio Resende Carvalho 2
“Que a palavra parede não seja símbolo
de obstáculos à liberdade
nem de desejos reprimidos
nem de proibições na infância
etc. (essas coisas que acham os
reveladores de arcanos mentais)
Não.
Parede que me seduz é de tijolo, adobe
preposto ao abdômen de uma casa.
Eu tenho um gosto rasteiro de
ir por reentrâncias
baixar em rachaduras de paredes
por frinchas, por gretas - com lascívia de hera.
Sobre o tijolo ser um lábio cego.
Tal um verme que iluminasse.”
Manoel de Barros
A prática clínica, pode ser concebida como prática de encontros cuidadores, em que se
tecem trajetos, trocas, intercambiamentos de terrenos. Lugar onde se constituem territórios
afetivos e existenciais. Campo de afetos, experimentações e cumplicidades.
O imperativo: Fazer Composições.
Como composição compreendemos mais que o ajuntamento de corpos e ideias, mas um
debruçar-se sobre o que acontece entre os corpos, sempre do ponto de vista dos seus
movimentos, encontros, afetações.
Acompanhar. Escutar. Padecer com. Desviar. Desacomodar. Produzir turbulências e
desestratificar. São alguns dos lugares deste fazer entre corpos. Lugar onde impera a
multiplicidade como trocas e reconfigurações (Deleuze e Guattari, 1995).
É neste território da clínica como campo delicado, instável, complexo e potente que
queremos problematizar alguns “Estados de Corpo”. Que corpo é este que acompanha, que se
movimenta junto, que se faz e re-faz na medida em que propõe a construção de outros
territórios de existência? Que corpo é este que vive o confronto com problemas que exigem a
transformação de corpo e língua? Como operar no campo da multiplicidade considerando o
corpo como dobra do fora, em constante mutação e transformação?
Aí se inscreve a necessidade de invenção como potência do homem comum (Pelbart,
2003), ou seja, aquela presente em todo e qualquer um. Assim, a ação criativa de cada sujeito
no trabalho e em coletivos inteiros, pode ter a potência de ressoar produzindo mudanças e
contaminações: “cada variação, por minúscula que seja, ao propagar-se e ser imitada torna-se
quantidade social e assim pode ensejar outras invenções e novas imitações, novas associações
e novas formas de cooperação. Nessa economia afetiva, a subjetividade não é efeito de
superestrutura etérea, mas força viva, quantidade social, potência psíquica e política” (Pelbart,
2003. P23).
Trata-se, antes de tudo de um posicionamento ético. Ética como escolhas que implicam
na criação de formas de existência e na produção de sujeitos. E se a ética está sempre a favor
do processo vital (Rolnik, 1989), como sustentar posicionamentos éticos no trabalho, bem
1
2
mestranda em Saúde Coletiva Unicamp.
docente de Saúde Coletiva Unicamp.
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CLÍNICA E DANÇA: UM ENSAIO SOBRE RUPTURAS E CONTÁGIOS
como na vida? Como manter corpos ativos com implicação ético/estético/política nos
processos de criação de vida? Como re-existir diariamente para assim re-existir outros
mundos, outros sujeitos, outras subjetividades? Como produzir “novos coletivos de
trabalhadores em saúde, que possam em seus atos vivos, tecnológicos e micropolíticos de
trabalho em saúde, produzirem mais vida?” (Merhy, 2004, p.4).
Adentramos, então, no campo da resistência como criação de possíveis. Geração de
microguerrilhas que deem passagem a novas sensibilidades e efetivem a atualização de práticas
criativas e engajadas. Oneto (2007) nos diz que, para Deleuze, "a questão da criação em sentido
forte não é nunca realizar um possível, mas tornar possível". Resistência para tornar possíveis
novos agenciamentos e novos modos de ser/estar no mundo. Por isto, falamos em Re-Existir.
Desta forma, a resistência é como um movimento, que antes de ser contrário a algo,
resiste, porque insistimos em ultrapassar a nós mesmos (Oneto, 2007). Ultrapassar nossos
próprios registros sensíveis, a partir da experimentação de novas linguagens, ferramentas e
dispositivos que abram fissuras, brechas e aumentem a permeabilidade aos afetos. Aqui,
aproximamos o fazer do trabalhador de saúde ao fazer do artista, uma vez que se tratando de
vida, transborda o campo da saúde para tratar a própria vida como obra de arte (Deleuze,
2008). A clínica, o amor, a amizade, as relações humanas diversas, são campos de
atravessamentos de afetos. E cada corpo tem capacidade de afetar e ser afetado. Tem
possibilidades de ampliação de seu campo de afetação.
É nesse campo dos sentidos que queremos mergulhar para investigar/criar estratégias de
ampliação da porosidade dos corpos ou das superfícies de contato. Como expandir o campo
dos sentidos nas diversas esferas cotidianas? Que estratégias podem operar “revoluções
moleculares” (Guattari, 2006)?
Todas aquelas que sejam capazes de alegrar reinventando relações. Todas aquelas que
permitam a produção de novos territórios. Todas aquelas que possibilitem linhas de fuga dos
extratos mais rígidos e codificados das práticas dos corpos. Todas aquelas que se inscrevem
num plano de intensidades e criação. Não há receitas ou prescrições (falando uma língua
conhecida no campo da saúde). Quando Rolnik nos diz “todas as entradas são boas desde que
as saídas sejam múltiplas” (Rolnik, 1989, p.66), nos convoca a buscar, criar e experimentar
caminhos diversos, talvez nunca trilhados.
É na sondagem de estratégias de Re-existência e composição que temos abordado a
intercessão com as práticas corporais como experiência de criação de acontecimentos (Rolnik,
2005). A dança se aproxima da prática clínica na medida em que pode ser dispositivo de
construção de corpos singulares, corpos que não falem de si mas se reinventem em formas
impensáveis. Corpos que façam metamorfoses em sua imensa capacidade de variações.
Michel Serres nos diz que o corpo todo inventa, enquanto a cabeça adora repetir, “A cabeça é
ingênua. O corpo é genial” (Serres,1999, p17).
Ousamos esboçar aqui algumas qualidades, ou no mínimo, vontades desse corpo que
transita entre muitos lugares de criação, seja em atendimentos individuais, ou grupais, em
atividades expressivas, em processos criativos em dança, em atividades cotidianas ou tantos
outros settings que compõe o campo de práticas destas duas áreas de atuação – dança e clínica
– e que no presente ensaio trataremos como uma zona de contágio.
A partir daqui, tateamos zonas de pura experimentação. Zonas de convergência de
saberes e sensações. Mestiçagem de técnicas e improvisos no registro das intensidades, no
jogo dos fluxos que se pode desenhar em qualquer processo terapêutico.
Corpos/terapeutas, corpos/dança, corpos formas de força 3 (Gil, 2005) exploram no
tempo/espaço do encontro, exercícios de desconhecimento, abertura, integração, criação,
devir.
3
Conforme José Gil: “a forma da força não é visível, não está figurada, não é uma pura qualitas nem um puro
quantum: é uma grandeza intensiva que surge com uma força determinada em movimento.” (GIL: 2005, p.54-55).
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CLÍNICA E DANÇA: UM ENSAIO SOBRE RUPTURAS E CONTÁGIOS
Na dança abordada por José Gil (2002), temos a noção do mover-se (dançar) como
criação de atmosferas compostas de pequenas percepções, as quais são captadas pelo corpo da
maneira “mais inconsciente consciente possível” (Gil, 2002), produzindo uma nova
consciência do corpo. Assim, na dança desestruturamos códigos motores conhecidos,
desencadeando a liberação de afetos que em estado flutuante se disseminam pela
consciência/corpo. É aí que fundamos nossa ideia de que a dança pode ser condutora a outros
territórios existenciais, num exercício de vizinhança com a prática clínica. Novas qualidades
de encontros se instauram com a entrada no campo das micropercepções. Novas
possibilidades de movimentação pelo mundo: mobilidades de comunicação e de escolhas.
Rolnik (1989) nos fala em “Dar línguas a afetos que pedem passagem”, no mesmo
sentido dizemos: dar corpos a línguas que pedem passagem, posto que cada linguagem reflete
um corpo a cada enunciação (Molin, Kreutz, Dornelles, 2003). É deste lugar que falamos em
reinvestir os corpos de sua potência de criação. Desconstruir clichês para que se ganhe línguas
e corpos, seja nos movimentos da dança, seja nos movimentos da vida. Da mesma forma,
ampliar percepção do corpo, para fluir novos movimentos.
Dito isto, não tratamos da dança enquanto meio de fazer arte, mas como processo
criativo transformador do sujeito (Grotowski, 2007), criação da arte do vivido, que tem seu
valor apenas no momento em que as experimentamos e, depois, se desfazem com a
efemeridade daquilo que é mais da ordem da duração que da extensão (Lima, 2004).
Desta forma a dança desterritorializa a própria clínica, e de certa maneira,
territorializa/cria territórios contestados à intensidade das relações. Recolocando, assim, a
clínica enquanto acontecimento.
Além disso, pode-se ampliar o campo das tecnologias de cuidado situando a clínica no
campo dos sentidos e na produção de acontecimentos que reverberem e transbordem na vida
em seu plano mais cotidiano, instaurando agenciamentos singulares implicados na produção
de outros modos de vida.
Neste sentido, nos propomos a encarnar a clínica no limite ou engendrar novos limites à
clínica, como estratégia de intervenção/investigação da produção de saúde: a investigação das
fronteiras, dos corpos em criação, como impulso a necessidade de inventar formas de
expressão para aquilo que o corpo escuta da realidade enquanto campo de forças (Rolnik,
1989). Considerando as formas criadas como “secreções do corpo” (Rolnik, 2005).
A investigação dos eventos e acontecimentos na clínica pode se dar como a experiência
da própria dança: lançar-se nos limites do corpo vibrátil, tateando fluxos e territórios no
campo das micropercepções.
Assim como Rolnik nos fala sobre a prática do cartógrafo:
“Ele se utiliza de um “composto híbrido”, feito do seu olho, é claro, mas
também, e simultaneamente, de seu corpo vibrátil, pois o que quer é
aprender o movimento que surge da tensão fecunda entre fluxo e
representação: fluxo de intensidades escapando do plano de organização de
territórios, desorientando suas cartografias, desestabilizando suas
representações e, por sua vez, representações estacando o fluxo, canalizando
as intensidades, dando-lhes sentido” (Rolnik, 1989, p.68).
Concebemos portanto, tanto na prática clínica quanto na prática da dança, a necessidade
de um certa implicação de cartógrafo, conforme nos sugere Rolnik, que se situa no domínio
micropolítico onde cada coisa se distingue pelas forças que as investem.
É também neste sentido que buscamos a intercessão com o campo das linguagens
artísticas, neste caso a dança, para trazer um estado de corpo com atenção e escutas dilatados.
O objetivo prático dessa intercessão é desconstruir, reconstruir e gerar territórios de
experimentação que permitam a construção de “um conhecimento que se faça nos corpos,
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CLÍNICA E DANÇA: UM ENSAIO SOBRE RUPTURAS E CONTÁGIOS
com corpos e como criação de corpos” (Fabião, 2010). Experimentação singular que se
inscreve no campo da experiência de si como cuidado de si (Foucault, 2004), prática do
sujeito que se constrói, que é modificável e que se relaciona a partir da ação ética no mundo
como elaboração de uma estética da existência (Gros, 2006).
Para finalizar, não propomos a interferência entre dança e clínica como Forma ou
Modelo para produzir um corpo aberto ou um tipo de intervenção ideal. O que esperamos
nessa pesquisa/prática é gerar fluxos de criação móveis, flexíveis, perturbadores e instáveis.
Fluxos mutantes que permitam novas contorções criativas a cada cristalização e a cada
ruptura.
Nossa proposta é gerar campos de tensão que permitam à clínica se inscrever no campo
da dança e a dança se inscrever no campo da clínica, pois tratamos aqui de uma mesma coisa
na dança ou na clínica: a produção de acontecimentos que coloquem afetos em movimento
nos corpos. Intensificação de si (Gros, 2006), inquietude de si, atravessamento de diferenças,
invenção de si, provocação, turbulência, composição, decomposição. São nomes possíveis
para estes estados buscados. Territórios em construção, trajetos de trocas intensivas,
intervenção híbrida.
Desterritorialização dos modos de acomodar saberes pautados nas técnicas e em
modelos ideais de ser/estar nas relações de cuidado. Para Deleuze e Guattari (1996) traça-se
uma linha de fuga quando se faz uma ruptura, mas nela podem encontrar-se com elementos
que reordenam o conjunto e reconstituem o território.
Dança e clínica como dispositivos de agenciamentos de multiplicidades, meios para
criar e viver o mundo. Estados de criação a partir dos confrontos com os limites da vida. Artes
de inventar a si e o vivido.
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LINHA MESTRA, N.23, AGO.DEZ.2013
369
SESSÃO 21 – FORMAÇÃO COMO PROCESSO ÉTICO-ESTÉTICO-POLÍTICO
ATO DE CRIAÇÃO: DESTERRITORIALIZAÇÃO E DESCODIFICAÇÃO DE
UMA LINHA DE PESQUISA
A arte como aquilo que
Tarcísio Moreira Mendes 1
se sustenta, como
ato de criação.
(CLARETO,
2011,p.28). [...] os homens não deixam de fabricar um guarda-sol que os abriga, por
baixo do qual traçam suas convenções, suas opiniões; mas o poeta, o artista
abre uma fenda no guarda-sol, rasga até o firmamento, para fazer passar um
pouco de caos livre e tempestuoso e enquadrar numa luz brusca, uma visão
que aparece através da fenda [...] Então, segue a massa dos imitadores, que
remedam o guarda-sol, com uma peça que parece vagamente a visão; e dos
glosadores que preenchem a fenda com opiniões: comunicação. Será preciso
sempre outros artistas para fazer outras fendas, operar as necessárias
destruições, talvez cada vez maiores, e restituir assim, aos seus
predecessores, a incomunicável novidade que não mais se podia ver.
Significa dizer que o artista se debate menos contra o caos (que ele invoca
em todos seus votos, de uma certa maneira), que contra “clichês” da opinião
(DELUZE; GUATTARI apud ROTONDO, 2011, p. 168).
Partindo de alguns territórios constituídos, {– o que é um território? Nada mais do que
um conjunto de códigos: um conjunto de códigos num território. O que implica dizer que,
quebrando um território, ocorre uma desterritorialização; mas também uma descodificação.}
promovem-se quebras no que se constitui como abrigo acadêmico do Programa de PósGraduação em Educação da UFJF. Mais especificamente, na Linha de Pesquisa Linguagem,
Conhecimento e Formação de Professores. O encontro com as Filosofias da Diferença não
deixa impune os territórios conceituais alinhados. Com todos os encontros que se seguem,
inicia-se o movimento artístico de desterritorialização e descodificação, a Máquina de Guerra
em funcionamento. {E todos que desterritorializam e descodificam podem ser chamados de
Máquinas de Guerra,...} e...
... Letras e Linguagem e Literatura e Pedagogia e Artes Cênicas e Teatro e Eloísa
Abrantes e Clarissa Alcantara e Deleuze e Guattari e Suely Rolnik e Arte da Performance e
UFMG e UFBA e PUC/RJ e Escola e Pedagogia e Escola Angel Vianna e Angel Vianna e
Klauss Vianna e Rainer Vianna e Dança-Teatro e Maria Helena Falcão e Tiago Adão Lara e
Sônia Clareto e Filosofias da Diferença e Nina Veiga e PPGE/UFJF e Travessia e Ana Lygia
Vieira Schil da Veiga e Pedagogia Waldorf e Loucura e Edson Costa Duarte [vivo] e Cura e
Corpos Informáticos e anti-Édipo e Mestrado e...
... disparam linhas de fuga {Então, esse conceito aí – linha de fuga – não está dentro de um
território, está fora do território.} e elas se embolam e se fundem, com-fundem, constituindo outro
possível da linha de pesquisa acadêmica, em travessia..
Escrito à 1h, do dia 26/02/2013, pelo pensamento que não deixa dormir:
Ato de criação
1
Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Educação da UFJF; Bolsista CAPES; Orientado pela Profª. Drª.
Sônia Maria Clareto. E-mail: [email protected].
LINHA MESTRA, N.23, AGO.DEZ.2013
370
ATO DE CRIAÇÃO: DESTERRITORIALIZAÇÃO E DESCODIFICAÇÃO DE UMA LINHA DE PESQUISA
Extensivo a todos os discentes e docentes do PPGE-UFJF.
Pelos poderes a mim instituídos, por feitiçaria, na alquimia, em maquinaria, na
vagabundagem diremos não tratar mais de Linguagem visto a singularidade, heterogeneidade e
multiplicidade existente em nós, que só é capaz de ser expressa por línguas. Línguas de fogo
flamejantes que tornam tudo cinza para que a fênix criativa renasça e nasça sempre, onde verbo só
pode ser carne e nada mais. E Tudo mais.
Não diremos mais Conhecimento visto que, tudo se
desfaz e faz sem sensocomum
Como conhecer este
mundo? Como
conhecer neste
mundo? Como viver
no intempestivo?
Sufoco! Sem imagem
de pensamento que dá
segurança da bolha do
conhecer. Salva. Com
o emaranhado das
forças constituindo o
mundo. Selva. Sem
música tranquila e
transparente da bolha.
Silva. Com a sede do
insaciável. Solva. Sem
respostas prontas e
imediatas. Sulva.
(CLARETO, 2011,
p.20).
... Nietzsche toma arte de estilo, e pelo substrato do
estilo, define a experiência no conjunto de tensões
que lhe são imanentes. Por outro lado, a
compreensão desta escrita exige a experiência de
estados semelhantes. Sua ausência indica a
impossibilidade de compreensão do conjunto de
signos, pois, “não se tem ouvido para aquilo que
não se tem acesso a partir da experiência.”
(NIETZSCHE, 1888/1995, p.53) (LEITE, 2011, p.
73).
hopiniotizado (hipnotizados+idiotizados+opinativo) de um
amontoado de informações descartáveis frente à tragicidade
e à crueldade da vida. Diremos: todos somos a experiência,
fruto duro e doce da experiência sempre criativa,
inapreensível para sempre, sempre sensível, sempre possível.
Por fim, não diremos mais Formação de Professores,
pois não temos a forma, nem a fôrma que se espera nominável
e segura para o ofício. Apostaremos na invenção da atualidade
dos encontros
com seus meios, no meio, sem fins
seguros, sem
fim que dê forma, é disforme,
mas inventa
formas sempre em devir.
Não há “a” forma-escola, “a” forma-aluno, “a” formaprofessor, “a” forma diretora, “a” forma-supervisora,
“a” forma-secretaria de educação, “a” forma-mãe, “a”
forma-... (ROTONDO, 2011, p. 170).
Sendo assim, instituímos o ZiGuEzAgUe De PeSqUiZaS lÍnGuAs E eXpErIêNcIaS e
InVeNçÕeS dE pRoFeSsOrEs filiada à Linha de Pesquisa Linguagem, Conhecimento e
Formação de Professores. Filho bastardo, apartado, ovelha negra, filho pródigo sempre pronto
para fugir de casas paternas.
A partir disso, não se espera nada. Mas muito virá.
LINHA MESTRA, N.23, AGO.DEZ.2013
371
ATO DE CRIAÇÃO: DESTERRITORIALIZAÇÃO E DESCODIFICAÇÃO DE UMA LINHA DE PESQUISA
Pós-Criação (ainda em criação): A inteligência vem depois...
Este Ato se constitui como exercício de um pensamento forçado por encontros de
diferentes naturezas, por singularidades díspares. “A questão é como relacionar as
singularidades díspares ou relacionar os potenciais.” (DELEUZE; PARNET, 1995, p. 93) É
processo de processo, com cortes-desligamentos, efetuação de processos e novos
acoplamentos, eterno retorno ao mesmo que gera apenas diferença. Ao pensar os territórios
pelos quais transito percebi a repetição, mas que por seguir novos agenciamentos, se torna
outro. No início de minha trajetória acadêmica fugi do que me apresentavam, na UFJF, como
território da Pedagogia, hoje, retorno à UFJF para pensar um outro da Pedagogia, no
Mestrado em Educação.
Segui nesta criação, violentado pela fala do Prof. Wenceslao Machado de Oliveira Jr –
FE/Unicamp, no Seminário interno do PPGE/UFJF, ocorrido em 2012, pensado outras
relações possíveis na formação de professores. Naquele momento, apesar de estarem
presentes às discussões grupos distintos, abrigados na mesma linha de pesquisa que lida com
Formação de Professores, parecia que ao dizer formação, estávamos falando de uma mesma e
única formação. No entanto, o grupo Travessia não tinha a forma, pelo menos se pretendia
pensar uma forma outra para professor. Estava lançado o desafio de pensar forma sem se
fechar em uma única fôrma. De que forma?
Agora, pensando, provocado pelo vídeo aula de Claudio Ulpiano – as citações a este
respeito aparecem no início do texto em letra Monotype Corsiva entre chaves ({}) – sobre
relações entre territórios e códigos, vejo possível outras conexões entre arte e educação e
novos territórios. Este Ato não se trata de uma abstração, mas se constitui na imanência da
questão posta. Partindo da Linha de Pesquisa Linguagem, Conhecimento e Formação de
Professores vislumbra-se outro possível com o ziguezague da mosca que se esquiva ao golpe
do irritado com seu zumbido, apostando na criação em ziguezague – “Talvez seja o
movimento elementar, o movimento que presidiu a criação do mundo.” (Idem) – em
alternativa ao desenvolvimento linear, continuo e alinhado, ao que é de costume, habitual,
normal. Em ziguezague vou e volto a territórios constituídos, buscando fugas possíveis,
convivendo com singularidades que combinadas não criam homogeneidade, e sim, mais
singularidades. Não é no ziguezague que se cria, seguindo a linha, mas no entre. O
movimento ziguezagueante faz surgir o raio da criação. “E uma vez que o trajeto do precursor
sombrio estava feito, os dois potenciais ficavam em estado de reação e, entre os dois,
fulgurava o evento visível: o raio!” (Idem). O movimento é invisível, o raio é visibilidade
produzida pelo movimento.
O zumbindo, o incômodo com os territórios e com os códigos impostos a priori exige
um exercício de experienciação esquizofrênico, pois “o esquizofrênico é o produtor
universal...” (DELEUZE; GUATTARI, 2010, p. 18). Neologismos são acionados: PesquiZas.
As fugas se constituem no fora dos territórios, mas mesmo assim, em relação a estes
territórios, o esquizo apresenta-se como aquele capaz de seguir a linha de fuga e criar e criar e
criar e
Dir-se-ia que o esquizofrênico passa de um código a outro, que ele
embaralha todos os códigos, num deslizamento rápido, conforme as
questões que se lhe apresentam, jamais dando seguidamente a mesma
explicação, não invocando a mesma genealogia, não registrando da mesma
maneira o mesmo [22] acontecimento, e até aceitando o banal código
edipiano, quando este lhe é imposto e ele não está irritado, mas sempre na
iminência de voltar a entulhá-lo com todas as disjunções que esse código se
destina a excluir. (Ibidem, p. 29)
LINHA MESTRA, N.23, AGO.DEZ.2013
372
ATO DE CRIAÇÃO: DESTERRITORIALIZAÇÃO E DESCODIFICAÇÃO DE UMA LINHA DE PESQUISA
Ainda é possível criar múltiplas relações com a linha de pesquisa, certo, no entanto que
suas delimitações territoriais e de código impedem outros possíveis. Por isso, ziguezaguear é
preciso! Porém, temos que estar atentos para que esta fuga não se torne um abrigo tão seguro
e fechado que não permita os fluxos, novas fugas, outras experiências, novos acoplamentos.
Fica o convite ou convocação a novos artistas, novos esquizos capazes de criar outras fendas,
seguir outras linhas de fuga para operar a incomunicável novidade que o caos criativo traz.
Talvez quanto mais esquizofrênico, mais artístico, mais experenciado, mais destruidor e nem
por isso, menos relacionado com outros territórios, já não seja possível dizer Linguagem, mas
apenas línguas e não seja possível Conhecimento, apenas experiências e não seja possível
Formação, apenas invenção de mundos possíveis e não seja possível, só sejam possíveis...
Referências
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M.; ROTONDO, M. A. S. O.; VEIGA, A. L. V. S. da. (Org.). Entre composições: formação,
corpo e educação. Juiz de Fora: Ed. UFJF, 2011, p. 17-32.
DELEUZE, G.; PARNET, C. O Abecedário de Gilles Deleuze. Realização de Pierre-André
Boutang, produzido pelas Éditions Montparnasse, Paris. Tradução e Legendas: Raccord [com
modificações]. TV Escola, Ministério da Educação. 1995.
DELEUZE, G; GUATTARI, F. O anti-Édipo: Capitalismo e Esquizofrenia. Tradução de
Luiz B. L. Orlandi. São Paulo: Ed. 34, 2010.
LEITE, M. V. Professor, como alguém vira filósofo?. In.: CLARETO, S. M.; ROTONDO, M.
A. S. O.; VEIGA, A. L. V. S. da. (Org.). Entre composições: formação, corpo e educação.
Juiz de Fora: Ed. UFJF, 2011, p. 59-78.
ROTONDO, M. A. S. O. Caminhada pelo abrigo da vida-escola: a(travessa)ndo umas
orações. In: CLARETO, S. M.; ROTONDO, M. A. S. O.; VEIGA, A. L. V. S. da. (Org.)
Entre composições: formação, corpo e educação. Juiz de Fora: Ed. UFJF, 2011, p. 167-196.
ULPIANO, C. Plano de imanência (Território) ou A ideia de imagem do pensamento.
Disponível em: <http://claudioulpiano.org.br.s87743.gridserver.com/?p=1994>. Acesso em:
20 maio. 2013.
LINHA MESTRA, N.23, AGO.DEZ.2013
373
O DEVIR DA CULTURA E A FORMAÇÃO DE TERRITÓRIOS
EXISTENCIAIS
Marcos Vinícius Leite 1
É propósito deste ensaio, problematizar a noção de formação 2 e, através dos processos
de composição dos sujeitos, realizados junto à codificação das formas e tipos, presentes aos
territórios existências no devir da(s) cultura(s), colocar em questão as implicações da era da
comparação na compreensão das dinâmicas éticas vinculadas à exaltação da dança e da
experiência de si como linhas de fuga ao pensamento que se afirma na utilização da ênfase 3.
Bailar ou marchar? Bailar e marchar... Marchar e ou caminhar junto ao nevoeiro...
A experiência no nevoeiro
Um dia comum. Como de costume, o sol nascia! Céu laranja, rajado de tons de roxo. As
mesmas expectativas se impunham sobre o caminho. O trilhado no seu tempo gasto anunciava
o sentido do percorrer. A certeza de chegar ao destino mantinha-se na segurança do já
ocorrido. Passado, sobrepondo presente. Presente, sobrepondo o instante. O percorrido como
caminho. O retorno do mesmo como destino. Ode ao cotidiano. Antiga lenda para apresentar
a instauração do território. Linhas se instauram como superfícies... Danças, transmutadas em
marcha.
Uma densa névoa abateu-se sobre o caminhar no caminho. Retirada estava a certeza do
ocorrido. Às cegas, palpitava-lhe seu coração, na ventania nua do ainda a caminhar. O medo
rondava-lhe o rosto e as mãos trêmulas junto ao frio lhe enrugavam a face. Na tentativa vã, de
encontrar uma saída, apelava à memória do caminho, junto às auroras claras das já vividas
manhãs de outono. Teimosamente a espessura da névoa roubava-lhe a busca pela certeza...
Como uma sombra a incerteza se apresentou... De que lhe serviriam as velhas lembranças do
já percorrido caminho? Parar, à espera de um dia como outro qualquer? Ou, e... Quanto de
força há para romper o que separa, para destruir o que repele? Quanto de corpo há quando
abole-se a fenda?
As assertivas de Humano, demasiado humano – um livro para espíritos livres - compreendem um momento da superação do pensar de Nietzsche na série recorrente das suas
ultrapassagens. É o marco de uma reorientação decisiva no seu percurso e das suas filiações
filosóficas e artísticas até então. As decepções com Wagner e o afastamento do encanto
juvenil do pessimismo romântico, expresso na filosofia do Mundo como vontade e
representação de Schopenhauer, figuram como pano de fundo de uma obra que pretende
“realizar uma análise química dos sentimentos morais.” (NIETZSCHE, 1878/2000, p. 13)
Se tomarmos, como quer Foucault, O nascimento da Tragédia no espírito da música,
1
Doutorando em Educação – pelo Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Federal de Juiz de
Fora. Professor junto ao Núcleo de Filosofia e Sociologia do Instituto Federal de Educação, Ciência e
Tecnologia do Sudeste de Minas Gerais. Membro do grupo Travessia. Pesquisador Fapemig.
2
Nietzsche estabelece em terrenos distintos e opostos os processos do tornar-se implicados nas exigências e
horizontes de sentido próprios os interesses vitais expressos nas implementações da civilização - Zivilization e
ou da cultura - Kultur. A formação – Bildung – poderá se dar sob ambas as vigências. (NIETZSCHE,
1872/2003).
3
Para Nietzsche, a ênfase qualifica o modo operacional do pensar da filosofia metafísica. A crítica dirige-se ao
procedimento do pensamento metafísico através do qual busca-se atingir e fundamentar os objetos de sua
procura com fins alcançar e apreender essências unitárias, unívocas e atemporais dos fenômenos em questão. É
por intermédio da ênfase que o pensamento metafísico revela os seus objetos como universais e transcendentes à
produção do humano. Nesse procedimento expressa-se a vontade de verdade que alimenta os posicionamentos
metafísicos e suas repercussões na instauração da forma homem. (NIETZSCHE, 1878/2000).
LINHA MESTRA, N.23, AGO.DEZ.2013
374
O DEVIR DA CULTURA E A FORMAÇÃO DE TERRITÓRIOS EXISTENCIAIS
como o primeiro esforço genealógico de Nietzsche, (FOUCAULT, 1985/1997, p. 20) com a
publicação de Humano, em 1878, iniciam-se os processos de forte suspeita sobre a
invulnerabilidade dos princípios metafísicos que orientavam o seu pensamento na construção
da metafísica de artista 4, presente nas análises sobre o nascimento da tragédia grega e o seu
declínio, a partir das exigências bárbaras de Sócrates. A ideia de que a individuação emerge
como beleza, tomada como antídoto para a superação da dor profunda em que s-e encerra o
Ur-eine é anteposta pela assertiva de que o homem veio a ser, de que a faculdade de cognição
veio a ser, e de que a metafísica, a religião, a moral e a arte são expressões de avaliações de
fachada, alicerçadas a partir dos juízos que encontram a sua razão de ser na relação que se
estabelecem nas comunidades e os homens com o prazer e a dor no estabelecimento da
cultura. Para além dessa desterritorialização do seu pensar, Nietzsche subverte também a
forma da sua escrita, passando a compor o pensamento a partir das tensões que se apresentam
como problemáticas. Na composição de um pensar que se faz por fragmentos, propõe
suspeitas sobre as diversas colunas que abrem e tornaram possível o caminhar da cultura no
ocidente. Máquina de guerra que se volta para as condições propiciadoras do próprio pensar.
Violência que instaura e faz ruir as antigas fronteiras e liames. A experiência desse modo de
ser Nietzsche nomeia de livre. Como portadores, espíritos que tomam a si mesmos como
sujeitos de experiências e experimentações na vasta era da comparação 5 e das distensões do
arco.
O problema da cultura e a produção da forma homem e seus tipos
“O erro fez dos animais homens; a verdade seria
capaz de tornar a fazer do homem um animal?”
(NIETZSCHE, 1878/2000, p. 353)
A paradoxal indagação exige-nos um salto em uma decisão, podemos nos manter no
que somos afundando-nos nos erros 6 que nos tornaram e nos configuraram em uma forma ou,
a partir das revelações advindas da filosofia histórica, vir-a-ser outros, experimentando-nos
em novos sentidos e direções, para aquém ou além de nós mesmos. Manter-se no erro, ou
tornarmo-nos outros? Eis o destino que nos cabe no enfrentamento daquilo que ainda
poderemos sempre ser. O fato de atestar uma passagem, um liame entre fatos e possibilidades,
joga-nos no assombro do tornar-se, pois, afinal, se é possível sermos outros, como viemos a
ser o que somos? O pendular da questão orbita entre as possibilidades inerentes à invenção de
nós mesmos, ou no jogo do pêndulo, reside e resiste o destino do resíduo do possível que se
estende ainda a nossa frente? Trata-se de ver a forma homem como resultante de erros, de
avaliações provisórias e de afirmações de determinadas condições de sobrevivência,
entremeadas pelas avaliações metafísicas, morais, religiosas, artísticas, políticas e familiares.
A atestação do erro poderá indicar que a forma não é decisiva e nem definitiva, apenas um
possível lance no jogo dos dados do acaso que produziu a variabilidade de tipos da forma
4
Nietzsche nomeia a filosofia do seu período de juventude como uma metafísica de artista através da qual a vida
mesma encontraria sua justificação. As forças cósmicas gregas – apolíneas e dionisíacas – são tomadas como
expressão onto-estética do cosmo, dos homens e das artes, atuando diretamente na construção e desconstrução
trágica do mundo, dos homens e dos devires das artes. (NIETZSCHE, 1870/1992).
5
Nietzsche nomeia de era da comparação o período iniciado com a falência do pensar metafísico. Após a
constatação de que as produções humanas são decorrentes dos processos sublimados e esquecidos nos vários
âmbitos de suas ocorrências, adentramos um novo tempo, no qual o princípio da comparação se opõe a busca de
verdades que se colocam como juízos definitivos e existentes em si. A era da comparação convida ao exercício
de percepção da variabilidade de interpretações que tornaram possíveis a existência do homem e do mundo.
6
A noção de erro não remete para aquela da verdade, pois em ambos os casos, o que temos são avaliações de
fachada, nas quais estamos circularmente vinculados, pois ao fim de uma interpretação temos inúmeros signos
interpretantes, de modo que “não existem fatos, somente interpretações.” (NIETZSCHE, 1889/2006, p. 36).
LINHA MESTRA, N.23, AGO.DEZ.2013
375
O DEVIR DA CULTURA E A FORMAÇÃO DE TERRITÓRIOS EXISTENCIAIS
homem, um passo em uma dança. Por forma tomaremos as várias expressões que se
constituíram nos encontros das pulsões (Trieb) ao longo das suas trajetórias e dos seus
conflitos em uma determinada localização espaço-temporal. Porém, mesmo a forma, na
paradoxal indagação, poderá deixar de ser, pois a revelação das suas condições pode implicar
na sua dissolução e possível extinção. Os jogos entre verdade e erro, produção dos homens e
animalidade apresentam-se como o a se pensar da questão presente ao tornar-se naquilo que
deveio o que é.
O devir da cultura, a tradição e a economia dos instintos na construção dos tipos
“O próprio homem deve tomar nas mãos o governo terreno da
humanidade, sua ‘onisciência’ tem que velar com olho atento o
destino da cultura.”
(NIETZSCHE, 1878/2000, p.169)
Como um dos resultados da decomposição química dos sentimentos morais 7 Nietzsche
advoga que caberia ao homem assumir o destino da cultura. Por cultura toma as construções
valorativas vinculadas aos interesses de conservação de determinados grupos; o resultado da
relação estabelecida entre as exigências de conservação de um grupo na construção da forma
homem e dos seus tipos; o instrumento pelo qual determina-se o sentido através do qual os
impulsos fazem a experiência de si e nomeiam-se à luz das exigências de boa consciência
edificada nas vias da moralidade do costume vigente; a consolidação das condições
interpretativas gerais de uma comunidade e a expressão do modo pelo qual um indivíduo
interpretará as suas tendências pulsionais.
A tradição velaria em si o conjunto das exigências gerais de uma comunidade sobre os
seus integrantes, sendo a depositária do sentido geral de uma época na vivência do seu espaço
e dos seus corpos, enfim o estabelecimento de um território. A tradição seria a expressão geral
das exigências de sentido presente e emanada por uma comunidade ou grupo. Poderíamos
tomá-la como a depositária das exigências vitais do passado com fins a sua persistência e
manutenção. A tradição pode ser vista como a cristalização das exigências de sentido para o
estabelecimento de uma época. A noção de tradição permite à Nietzsche problematizar o
destino das pulsões, dos corpos e dos indivíduos nas culturas tendo em vista as suas
sobreposições, ultrapassagens e deslocamentos. Nesse sentido aponta para um devir da
cultura, aludindo à símile do desenvolvimento de cinturões climáticos, através das quais as
épocas fazem suceder às suas exigências. As zonas temperada e tropical da cultura estão no
momento presente se sobrepondo. A passagem entre as zonas se apresenta com o desafio para
a compreensão geral do sentido da época, tomada por Nietzsche, como a era das
comparações
“podemos dizer, utilizando uma símile, que as eras da cultura correspondem
aos diversos cinturões climáticos, com a ressalva de que estão uma atrás da
outra, e não ao lado da outra, como as zonas geográficas.” (NIETZSCHE,
1878/2000, p.163)
A instauração da era das comparações nos permite perceber que a noção de progresso
entre o desenvolvimento da cultura emerge como uma ilusão metafísica, desenvolvida à luz
7
Tomar as construções valorativas como processos que se instauram através de relações pulsionais estabelecidas
ao longo do tempo e das épocas, nos agenciamentos entre a forma homem, os seus tipos e as comunidades a
partir das quais foram entretecidas.
LINHA MESTRA, N.23, AGO.DEZ.2013
376
O DEVIR DA CULTURA E A FORMAÇÃO DE TERRITÓRIOS EXISTENCIAIS
do espírito historicizante dos eruditos, com fins a suavizar os seus sentimentos de pavor
diante do caótico devir das ondas e arrebentações violentas entre as zonas.
Como exposto anteriormente, as interpretações das pulsões, dos corpos e dos indivíduos
na instauração dos seus tipos estão diretamente condicionadas às condições gerais de
conservação presentes nas suas gêneses, bem como, delimitadas nas exigências específicas de
conservação, pois “cada estação do ano tem os seus méritos e atrativos, e exclui aqueles das
outras.” (NIETZSCHE, 1878/2000, p. 166)
A era da comparação e a dança no caminhar do nevoeiro
Como antídoto à lassidão proveniente da certeza de que o homem veio a ser Nietzsche
exalta o caráter da transitoriedade que se apresenta como o sentido da época. A
transitoriedade convoca como princípio ético a oposição entre a configuração segura de um
marchar e as oscilações de movimentos presentes ao dançar. A transitoriedade da dança
confere à época das comparações o bailar sobre a variabilidade das proposições de sentido
produtoras de homens e mundo e das suas exigências de reafirmação dos seus princípios. A
época das comparações abre-se para as experimentações contínuas em torno das
interpretações vincadas a algum passado e ao presente. A dança confere às exigências
territorializantes da cultura espaços de desterritorializações permanentes fazendo frente ao
ímpeto de fundamentação expresso no desejo de verdade que almeja a ênfase, pretendendo
que a dança torne-se marcha. A marcha repele pés dançantes. Exige firmeza, e de tão firme,
distantes da Terra e do nevoeiro. Distância que impede a invenção de um caminho no
caminhar. Na oposição entre marchar e dançar reside o sentido da instauração dos territórios
da cultura e da civilização, dos excessos de memória e da potência do esquecimento, das
exigências de conservação e da invenção pelo esquecimento, da afirmação sempre vindoura
da vida. Se tu marchas, algum dia poderá andar! Tatear, porém, é da ordem da dança e não do
salto. A dança toca a superfície. A dança é a superfície. A dança ouve o tique e taque do
nevoeiro.
No nevoeiro, corpo outro... Encontro que convida a participar no instante da instauração
de mundos... Dar vazão a algum caminhar... Desvios dançantes abrigados pela experiência de
cambalear na leveza... O nevoeiro reterritorializa o instante no caminhar das formas e dos
tipos... Da altura das nuvens convida a deixar-se conduzir corpo-outro pelas fendas e brechas
do caminhar do caminho. No nevoeiro céus e terra convidam a bailar. Espaços que se
estabelecem no transitar. A dança escorrega. Gera um ponto e, ou outro... A dança escapa no e
do abismo...
Referências
DELEUZE, G. e GUATTARI. F. O Anti-Édipo Capitalismo e Esquizofrenia. Rio de Janeiro:
Imago Editora Ltda., 1972/1976.
DELEUZE, G. Diferença e repetição. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1968/1988.
FOUCAULT, M. Nietzsche, Freud e Marx. São Paulo: Graal, 1980/1997.
NIETZSCHE, F. Humano demasiado humano. São Paulo: Cia. das Letras, 1878/2000.
______. Crepúsculo dos ídolos. São Paulo: Cia. das Letras, 1889/2006.
______. A Gaia Ciência. São Paulo: Cia das Letras, 1881/2001.
LINHA MESTRA, N.23, AGO.DEZ.2013
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O DEVIR DA CULTURA E A FORMAÇÃO DE TERRITÓRIOS EXISTENCIAIS
______. David Strauss Crente e Escritor. In: Considerações Intempestivas. Trad. Lemos de
Azevedo. Lisboa: Editorial Presença, 1871/1980.
______. Da utilidade e desvantagem da história para a vida. Rio de Janeiro: Relume
Dumará, 1872/2003.
______. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. São Paulo: Cia das Letras,
1870/1992.
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UM MENINO QUE SERVIA PARA UMA TEIA E UMA TEIA QUE SERVIA
PARA UM MENINO E UM... QUE SERVIA PARA ARANHA... QUE SERVIA...
Leandro Barreto Dutra 1
Margareth A. Sacramento Rotondo 2
Tamiris Taroco Marocco 3
Porque eu não sou da informática: eu sou da
invencionática. (BARROS, 2008, p. 45)
O desafio, neste texto, é criar um movimento da língua portuguesa que permita ao leitor
inventar-se, servir à outra coisa...
O menino que era esquerdo viu no meio do quintal um pente. O pente estava
próximo de não ser mais um pente. Estaria mais perto de ser uma folha
dentada. [...] Era uma coisa nova o pente [...] E o menino deu pra imaginar
que o pente, naquele estado, já era incorporado à natureza como um rio, um
osso, um lagarto. (BARROS, 2008, p. 27)
Nesse lugar-texto o movimento vem na corda
bamba. Equilibra-se. Nesse caminho estreito, de cinco
centímetros de largura. Caminho extenso, de quinze
metros de comprimento: inventam-se hábitos aranheses!
Não está entendendo? Pois não é para o entendimento que
escrevo, é para o servir-ser. Já disse: inventar-se, servir à
outra coisa! A desterritorialização é necessária... Pensar
em estagnar-se num mesmo território é a ilusão de um sujeito... Não tem jeito! Há de se reterritorializar sempre...
Em movimento constante. O movimento pulsa o
território: territorialidade – desterritorialização –
reterritorialização – territorialidade...
Movimentar num processo. Inventar vida!
Para estender melhor o fio dessa conversa e deixá-la
com a tensão apropriada para a travessia: teço o
acontecido.
Figura 1 – Trilhando caminhos.
1
Mestrando em Educação pelo PPGE – Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Federal de
Juiz de Fora, bolsista Capes. Professor da oficina “Vivenciando a mata do Vale Verde” onde se passa o
acontecido no texto. Membro do grupo Travessia. Pesquisador FAPEMIG. [email protected]
2
Doutora em Educação Matemática. Professora da Faculdade de Educação e Programa de Pós-graduação em
Educação da Universidade Federal de Juiz de Fora. Pesquisadora FAPEMIG. Coordenadora do grupo Travessia.
3
Graduanda em Pedagogia pela Universidade Federal de Juiz de Fora. Bolsista de Iniciação Científica
BIC/UFJF. Membro do grupo Travessia. Pesquisadora FAPEMIG.
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UM MENINO QUE SERVIA PARA UMA TEIA E UMA TEIA...
Figura 2 – Slack line.
Era o primeiro dia do slack line 4. Antes mesmo de
subir à mata, todos queriam ver, pegar e até cheirar o
equipamento. Passavam de mãos em mãos, animados,
vivos e alegres com o encontro.
Num caminhar apressado, o tempo demorava. Nas
trilhas, olhares atentos. Procura por um lugar que
servisse para armar a fita. Não servia qualquer árvore e
nem qualquer lugar. Tinha de ser encontrado. Caminhar
mais e tentar mais. Nada serviu.
Chegada à rampinha – local muito conhecido e
onde já se praticava o tecido aéreo acrobático 5 – já
cansados da caminhada ligeira. Assentados ao chão –
respiro prazeroso do descanso merecido. Ainda
animados!
Procura, ainda sem lugar para estender o slack
line. De repente, um olhar encontra uma árvore, um
espaço. Todos se movem para a tentativa. Estava tudo
ali...
- Poxa, a gente devia ter vindo aqui de primeira!
Como a gente não tinha visto esse lugar antes?
Pausa na caminhada. Nesse momento, um menino
lançou a pergunta. Respiro! No processo, uma pergunta
se fez questão. Opção: pela respiração... Questão feita:
Como a gente não tinha visto esse lugar antes?
O menino já havia estado por ali! Todos, ali, já
conheciam aquele lugar! Pelo menos uma vez por semana
estavam naquele local. A pergunta do menino não era
sobre o ver... A questão se fazia ao modo de olhar ao
transver o território habitual em novas possibilidades!
Estranhar o habitual. O lugar conhecido agora se prestava
ao desolhar do menino. Como diz Manoel de Barros: esse
menino era esquerdo! Talvez transver o mundo seja um
bom modo para desterritorializar horizontes. Talvez, os
oito olhos da aranha nessa desterritorialização sejam de
Figura 3 – Lugar achado.
importância no ver oblíquo. Talvez esse movimento na
escrita-corpo-movimento dispare novos fios nessa caminhada... Tecer a teia ao contrário,
quem sabe assim ao invés de prender, dispare...
4
Equipamento utilizado nas oficinas circenses. Consiste numa fita de 5 cm de largura e 15 m de comprimento
que é fixada, em ambos os lados, em árvores opostas nessa distância ou menor. O objetivo é andar sobre a fita,
equilibrando-se. Fazer a travessia.
5
Equipamento circense utilizado nas oficinas. Consiste num tecido de 15m de comprimento denominado liganet.
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UM MENINO Q

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