e “a saia almarrotada” de mia couto

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e “a saia almarrotada” de mia couto
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ANAIS ELETRÔNICOS
ISSN 235709765
ELEMENTOS CENSURÁVEIS EM “O CESTO” E “A SAIA
ALMARROTADA” DE MIA COUTO
GOMES, Paulo de Freitas
(PPGLI/UEPB)1
DAWSLEY, Sayonara Lima
(PPGLI/UEPB)2
RESUMO
Os contos “O cesto” e “A saia almarrotada” que compõem O Fio das Missangas, obra
de autoria de Mia Couto, contista e romancista moçambicano, são narrativas que
descrevem a opressão vivida pelas personagens femininas inseridas em uma cultura
patriarcal. A forte presença de elementos censuráveis que promovem o silenciamento
e a subordinação de mulheres são artifícios expressos nas narrativas. Levando em
consideração a literatura como instrumento de denúncia, analisaremos a
representação feminina e as relações de poder expressas nestes textos prosaicos
condensados, pois, uma forma para aliviar o sentimento de silenciamento feminino é
justamente o ato de narrar, especificamente a narrativa escrita, uma vez que, por esta
via, elas manifestam toda sua revolta e indignação aos lugares que ocupam no
contexto social vivido. O processo de patriarcalismo, é sem dúvida, um período de
sonegação do direito de manifestação da mulher, em que a representação feminina
está limitada socialmente às permissões masculinas, a mulher sofre fora e
principalmente nos núcleos domésticos, objetivamos através desta pesquisa verificar
como a representação da mulher está intrisecamente interligada aos aspectos da
submissão, centralização do poder masculino e subalternidade, tecendo uma análise
pelos momentos de angústia vividos pelas personagens femininas e suas indignações
apresentadas nos textos destacados, além de apresentar a literatura como forma de
experessão da não aceitabilidade de rótulos que inferioriza o ser mulher e seus direitos
de manifestação mediante uma sociedade preconceituosa e machista, com estruturas
de vivências já definidas no perfil da masculinidade, baseando-nos em aportes teóricos
1
Mestrando em Literatura e Interculturalidade – PPGLI/UEPB
E-mail: [email protected]
2
Mestranda em Literatura e Interculturalidade – PPGLI/UEPB
E-mail: [email protected]
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de Perrot (2005) , Hall (2008), Spivak (2010), Samara (1997), Scott (1992), Said (2007),
entre outros autores que abordaremos na tecitura desta pesquisa.
Palavras-chave: Representação feminina. subalternidade. patriarcalismo. narrativa
escrita
1 INTRODUÇÃO
Através desta pesquisa iremos analisar os textos “O cesto” e “A saia
Almarrotada”, contos que estão presentes na obra O fio das missangas (2009) do autor
moçambicano Mia Couto, estes textos são narrativas que expressam a sujeição da
mulher à figura masculina, como a subalternização feminina mediante uma sociedade
caracterizada e fundada pelo viés da autoridade demasiada do homem e a supressão
feminina, onde a mulher não tinha voz nem vez sendo tratada como um ser
totalmente passivo e rejeitado, com toda essa repressão à mulher, um sentimento de
revolta era gerado, pois o sexo frágil era como um ser sem valor para a construção
social, a mulher era sempre repreendida dentro dos âmbitos domésticos quanto nos
outros espaços sociais.
Além de apresentarmos uma reflexão sobre a posição e situação da mulher no
contexto patriarcal moçambicano, também iremos tecer uma análise entre as duas
narrativas contistas que elegem figuras femininas não nomeadas para tentar
exemplificar com praticidade a imposição e predominância da hegemonia masculina,
que advém do processo de colonização sofrido por aquela nação que deixou resquícios
na construção social atual.
Contudo, se faz necessário mencionar que a literatura pós-colonial trata de
expressar em seus textos estas disputas internas que sempre foram marcantes no
construção dos territórios colonizados e subalternizados, onde os colonizadores
detinham o poder e exploravam de todas as formas a cultura dominada atribuindo-lhe
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uma imagem homogênea, com isso, no território moçambicano foi se constituindo
práticas de censura e hieráquização.
A partir destes textos de Mia Couto percebemos que estes problemas não são
específicos daquela nação, mas que ultrapassam as terras moçambicanas e chegam até
aos outros territórios que são marcados pela ideologia machista, que foram
colonizados e explorados, em que a opressão e dominação eram práticas naturais e
recorrentes. Portanto, nos debruçaremos a uma reflexão acerca das práticas de
sujeição e censura conduzidos pela escrita do autor moçambicano mencionado, nos
reportando ao universo feminino e as frustrações que lhe cercam.
2 CENSURA E SUBALTERNIDADE FEMININA EM O FIO DAS MISSANGAS
O moçambicano, Mia Couto, é um dos escritores mais representativos da
literatura africana de língua portuguesa. A sua notável produtividade literária lhe
proporciona atingir uma considerável expansão de reconhecimento e valorização da
sua terra moçambicana. A literatura pós-colonial é uma produção que se concretiza a
partir de territórios subjugados, sendo assim, estabelecida durante o processo de
colonização, porém, oportunizada no período de pós-colonização/pós-independência,
refletindo sobre um discurso centrado no imperialismo e sua influência no processo de
construção dos territórios colonizados. Portanto, a produção literária produzida por
Mia Couto é um exemplo verossímel desta literatura pós-colonial, apresentando em
seus textos disputas internas, acontecidas nos núcleos familiares, ou de forma mais
abrangente, em um contexto mais amplo, no âmbito social.
As explorações territoriais almejadas pelo ocidente sempre determinaram nos
territórios colonizados, uma imagem de si para os outros que eram explorados,
atribuindo e obrigando o estabelecimento de uma identidade única e homogênea,
contudo, a ocupação dos espaços territoriais africanos gerou uma situação colonial
caracterizada por uma dualidade, estabelecendo relações a partir de dicotomias, como
branco e preto, civilizado e primitivo, cultura e barbárie, com isso, foi se construindo
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um território com práticas e pensamentos marcados pela separação e hierarquização,
efetivadas a partir da força, da opressão, censura, violência e subalternidade do outro.
Desta maneira, podemos dizer que o mundo colonial corresponde a uma
sociedade que advém de uma ordem fragmentada, desigual e agressiva, deixando
vestígios que mesmo depois do processo de indepedência, e com isso havendo uma
quebra de valores implantados pelos colonizadores, ainda marcam as dinâmicas
cotidianas, pois constatamos através dos textos narrativos de Couto o prevalecimento
de uma cultura de hierarquização da mulher, de opressão, subjugando-a ao homem
africano, matendo uma tradição que ocorreu no período colonial, onde a opressão e
dominação era recorrente e natural.
Buscamos através dos contos “O cesto” e “A saia almarrotada”, inseridos na
obra O fio das missangas (2009), de Mia Couto, uma apresentação reflexiva a respeito
dos elementos censuráveis que se entrelaçam, se misturam, se confundem nas
narrativas selecionadas. Portanto, nos debruçaremos através do olhar do autor, sobre
o universo feminino e as frustrações que o rodeiam.
A obra O fio das missangas é, em sua maioria, conduzida pela presença
feminina, os textos prosaicos que se concretizam nesta obra apresentam algumas
marcas dolorosas que relatam as experiências vividas pelas personagens, são vozes
perante uma estrutura hierárquica falocêntrica que delimita a vez e a voz das
mulheres.
Baseando-se em figuras femininas africanas, a obra de Couto perpassa
fronteiras refletindo a condição de subalternidade de muitas mulheres, que vai além
do continente africano. Mesmo com as mudanças socioeconômicas, uma parcela
significativa de mulheres sofrem abusos psicológicos, morais e sexuais nos dias atuais.
É perceptível no decorrer da história que elas se encontraram silenciadas e
impossibilitadas de viverem/relatarem suas vidas.
Por uma significativa extensão de tempo, tratava-se e determinava-se com
naturalidade os espaços, os papéis e a repressão para com as portadoras de “órgãos
delicados e frágeis”. Verbos como: submeter, sujeitar, servir, obedecer, entre outros,
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eram remetidos e intensificavam a ideia da subordinação do sexo frágil, que neste caso
é a mulher. Como afirma Michelle Perrot:
Todavia, sua postura normal é a escuta, a espera, o guardar as
palavras no fundo de si mesmas. Aceitar, conformar-se, obedecer,
submeter-se e calar-se. Pois este silêncio, imposto pela ordem
simbólica, não é somente o silêncio da fala, mas também o da
expressão, gestual ou escriturária. O corpo das mulheres, sua cabeça,
seu rosto devem às vezes ser cobertos e até mesmo velados. “As
mulheres são feitas para esconderem a sua vida” na sombra do
gineceu, do convento ou da casa. (PERROT, 2005, p. 10)
Dessa maneira, constatamos o predomínio da dominação masculina, o silêncio
como mandamento, esses murmúrios e sussurros circulavam dentro do elemento
simbólico, a casa. Esses meios representativos como o vestido, a saia, o cesto, são
pontes de ligação para o discurso do assujeitamento das mulheres.
A expressiva moçambicanidade do escritor, Mia Couto, presente em seus
contos, nos convida a direcionar nosso olhar sobre a condição do corpo subjugado da
mulher, a posição marginalizada e a sutileza da voz feminina. Em narrativas como “ O
cesto” e “A saia almarrotada”, mergulhamos nas almas condenadas ao silêncio, ao
esquecimento, e que suas relações são mantidas pela repressão do dominadores
(marido, pai, tios). São essas figuras masculinas, caracterizadas por ideais machistas,
pontos delimitadores de lugares, ordenando o apagamento desses ruídos, a total
subordinação como afirma Spyvak:
Se o discurso do subalterno é obliterado, a mulher encontra-se em
uma posição ainda mais periférica pelos problemas subjacentes às
questões de gênero. A teórica exemplifica sua crítica por meio do
relato de uma história que privilegia o subalterno feminino, pois,
segundo ela: “se, no contexto da produção colonial, o sujeito
subalterno feminino não tem história e não pode falar, o sujeito
subalterno feminino está ainda mais profundamente na
obscuridade.” (SPYVAK, 2010, p. 15-16).
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Em sua produção literária, Mia Couto relata a condição da mulher submissa,
retraída, marginalizada pela opressão patriarcal, em entrevista concedida ao jornal O
globo, lançando o seu romance “A confissão da leoa”, ele afirma a sua preocupação
em preencher essas lacunas e afirmava que este problema da dominação e opressão
masculina que desrespeita a cidadania da mulher, retraíndo-a, perpassou por diversas
gerações e ainda permanece intrísseco no seio da sociedade contemporânea,
principalmente nas camadas territoriais ruralizadas de Moçambique. Vejamos o que
nos salienta este autor:
Essa condição de exclusão e opressão é ainda muito presente em
Moçambique. Em geral, as sociedades rurais são muito patriarcais e a
mulher vive numa situação em geral que não tem direito à palavra,
não tem direito à presença senão mediatizada por um homem. O que
refiro no livro, nesse aspecto, é um retrato da realidade. As jovens
rapidamente são tidas como mulheres. Mas só no sentido sexual e da
maternidade. Porque não chegam a ser respeitadas como mulheres.
As velhas e, sobretudo as viúvas são olhadas com desconfiança e
muitas vezes tratadas como feiticeiras. (COUTO, 2012).
Essas figuras femininas são as vozes subalternas que ressoam nas obras de Mia
Couto. No conto “O cesto” temos a narradora-personagem relatando a sua condição
inferior diante da figura masculina. Inicia sua narração com o mecanismo de suas
atividades para encontrar o marido no leito do hospital, a sequência dos seus atos e o
fardo de servir ao moribundo expressam a ausência de sua vida:
Pela milésima vez me preparo para ir visitar meu marido ao hospital.
Passo uma água pela cara, penteio-me com os dedos, endireito o
eterno vestido. Há muito que não me detenho no espelho. Sei que,
se me olhar, não reconhecerei os olhos que me olham. Tanta vez já
fui em visita hospitalar, que eu mesma adoeci. Não foi doença
cardíaca, que coração, esse já não o tenho. Nem mal de cabeça
porque há muito que embaciei o juízo. Vivo num rio sem fundo, meus
pés de noite se levantam da cama e vagueiam para fora do meu
corpo. Como se, afinal, o meu marido continuasse dormindo a meu
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lado e eu, como sempre fiz, me retirasse para outro quarto no meio
da noite. Tínhamos não camas separadas, mas sonos apartados.
(COUTO, 2009, p. 21)
Estamos diante de uma personagem reprimida, com uma existência
corrompida pela opressão, dominada, que lhe fora negado o direito de falar e viver,
ocasionando, em suas falas, a transparência da sua dor espiritual pelo anulamento e
desprezo do seu cônjuge.
Após um breve reconhecimento de si, ao se olhar no espelho, ela percebe a
vivacidade de seu corpo, o alinhamento de sua expressão. Ao desprender-se do cesto,
este como elemento de opressão e enclausuramento, e que também é um símbolo da
mulher enquanto objeto descartável, há um despertar e em nítidas palavras que são
proferidas de sua boca percebemos o rompimento:
Sem querer, noto o meu reflexo. Recuo dois passos e me contemplo
como nunca antes o fizera. E descubro a curva do corpo, o meu busto
ainda hasteado. Toco o rosto, beijo os dedos, fosse eu outra, antiga e
súbita amante de mim. O cesto cai-me da mão, como se tivesse
ganhado alma. Uma força me aproxima do armário. Dele retiro o
vestido preto que, faz vinte e cinco anos, meu marido me ofereceu.
Vou ao espelho e me cubro, requebrando-me em imóvel dança. As
palavras desprendem-se de mim, claras e nítidas: - Só peço um oxalá:
que eu fique viúva o quanto antes! (COUTO, 2009, p. 23)
Essa outra mulher adormecida, inicia um processo de euforia, é no milésimo
momento de ida ao hospital que surge a perspectiva de viver a plenitude de sua vida
que lhe fora roubada pela figura do marido. “A sua vida me apagou. A sua morte me
fará nascer. Oxalá você morra, sim, e quanto antes.” A repetição desse desejo, a
confirmação de busca de liberdade, são aniquilados pela notícia de morte:
Saio do hospital à espera de ser tomada por essa nova mulher que
em mim se anunciava. Ao contrário de um alívio, porém, me
acontece o desabar do relâmpago sem chão onde tombar. Em lugar
do queixo altivo, do passo estudado, eu me desalinho em pranto.
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Regresso a casa, passo desgrenhado, em solitário cortejo pela rua
fúnebre. Sobre a minha casa de novo se tinha posto o céu, mais vivo
que eu. Na sala, corrijo o espelho, tapando-o com lençóis, enquanto
vou decepando às tiras o vestido escuro. Amanhã, tenho que me
lembrar para não preparar o cesto da visita. (COUTO, 2009, p. 24)
A tão sonhada autonomia é minimizada, pois há uma força enraizada que lhe
deixa condensada ao silenciamento, à opressão e à subordinação perante a sociedade,
ou seja, embora não tendo a presença do marido ao seu lado, oprimindo e
minimizando sua voz, a tradição e o inculturamento da subalternização e dominação
da mulher no contexto social imperava, pois em Moçambique tem-se uma construção
social embebida pelo viés do patriarcalismo, e assim chega ao desfecho final do conto.
A ausência dos nomes das personagens ampliam as suas identificações
lineando uma universalização das ficções miacoutianas. Ampliando as possibilidades
de serem identificadas em outro contexto, são esses relatos de infelicidade e as
agruras da vida que muitas mulheres se identificam.
Percebemos os elementos culturais e as questões universalizantes presentes na
escrita de Mia Couto, a condição identitária da mulher negra ligada a tradição e a
modernidade são discussões que baseiam-se em aparatos teóricos de Stuart Hall,
sempre enfatizando a questão do dominante sobre o dominado:
A identidade negra é atravessada por outras identidades, inclusive de
gênero e orientação sexual. A política identitária essencialista aponta
para algo pelo qual vale lutar, mas não resulta simplesmente em
libertação da dominação (HALL, 2008, p. 12).
A maneira como Couto mergulha no universo feminino, dando voz a essas
mulheres destituídas de qualquer meio de expressividade, condenadas à não
existência, revelam segredos escondidos na alma feminina.
O conto “A saia almarrotada” narra em primeira pessoa o percurso de
opressão, testemunhando a condição marginal e descriminada, vivida pela
personagem em relação ao seu meio. Assim como o conto anterior, esse também não
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nomeia a figura feminina e essa caracterização aparece devido ao descaso e a falta de
importância que lhe é dada pelas pessoas que a cercam.
Minha mãe nunca soletrou meu nome. Ela se calou no meu primeiro
choro, tragada pelo silêncio. Única menina entre a filharada, fui
cuidada por meu pai e meu tio. Eles me quiseram casta e guardada.
Para tratar deles, segundo a inclinação das suas idades. (COUTO,
2009, p. 29)
A narração também nos apresenta a dominação masculina sobre o corpo da
mulher. Historicamente enraizado nos discursos dominantes, vejamos o que nos
salienta Michele Perrot:
O corpo está no centro de todas as relações de poder. Mas o corpo
das mulheres é o centro, de maneira imediata e específica. Sua
aparência, sua beleza, suas formas, suas roupas, seus gestos, sua
maneira de andar, de olhar, de falar e de rir (provocante, o riso não
cai bem às mulheres, prefere-se que elas fiquem com as lágrimas),
são o objeto de perfeita suspeita. (PERROT, 2005, p. 447)
A opressão e o sofrimento das personagens femininas são características
preponderantes nos contos, no trecho a seguir, de maneira forte, esse
silenciamento do corpo como forma de anular o olhar masculino, uma vez que, as
duas partes do corpo que mais acentuam o desabrochar feminino são os seios e as
nádegas:
As outras moças esperavam pelo domingo para florescer. Eu me
guardava bordando, dobrando as costas para que meus seios não
desabrochassem. Cresci assim, querendo que o meu peito mirrasse
na sombra. As outras moças queriam viver muito diariamente. Eu
envelhecendo, a ruga em briga com a gordura. As meninas saltavam
idades e destinavam as ancas para as danças. O meu rabo nunca foi
olhado por olhar de macho. Minhas nádegas enviuvavam de assento
em assento, em acento circunflexo. (COUTO, 2009, p. 31).
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Essa discussão nos faz lembrar que o corpo da mulher foi um dos espaços
historicamente silenciados pelos padrões, como aponta Michelle Perrot:
Suspeita que visa o seu sexo, vulcão da terra. Enclausura-las seria a
melhor solução: em um espaço fechado e controlado, ou no mínimo
sob um véu que mascara sua chama incendiária. Toda mulher em
liberdade é um perigo e, ao mesmo tempo, está em perigo, um
legitimando o outro. Se algo de mal lhe acontece, ela está recebendo
apenas aquilo que merece. (PERROT, 2005, p. 447)
A relação de opressão sofrida pela protagonista inicia-se de modo confessional
desde o primeiro parágrafo do conto, em que podemos ler sua fala designada à
tristeza e a solidão. Analisemos o trecho a seguir:
Na minha vila, a única vila do mundo, as Mulheres sonhavam com
vestidos novos para saírem. Para serem abraçadas pela felicidade. A
mim, quando me deram a saia de rodar, eu me tranquei em casa.
Mais que fechada, me apurei invisível, eternamente nocturna. Nasci
para cozinha, pano e pranto. Ensinaram-me tanta vergonha em sentir
prazer, que acabei sentindo prazer em ter vergonha. (COUTO, 2009,
p. 31)
Vejamos a repressão e a restrição vivida pela mulher, onde o espaço doméstico e a
servidão são essenciais para a sua existência. Anulando a feminilidade pela negação
do vestido, tornando-se invisível e repreendendo qualquer indício de prazer. Após
adquirir os traços da velhice, de não possuir mais a beleza e o hasteamento do
corpo, ela indaga:
E pergunto: posso agora, meu pai, agora que eu já tenho mais ruga
que pregas tem esse vestido, posso agora me embelezar de
vaidades? Fico à espera de sua autorização, enquanto vou ao pátio
desenterrar o vestido do baile que não houve. E visto-me com ele,
me resplandeço ante o espelho, rodopio para enfunar a roupa. Uma
diáfana música me embala pelos corredores da casa. Agora, estou
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sentada, olhando a saia rodada, a saia amarfanhosa, almarrotada. E
parece que me sento sobre a minha própria vida. (COUTO, 2009,
A voz do pai ordenava o seu enclausuramento, ecoa além da morte, do tempo e
do espaço, o domínio sobre a vida da personagem demonstra a cega obediência ao
parâmetros estabelecidos pelo patriarcado. Até a denominação do termo “miúda” é
para enfatizar a fragilidade e a pequenez de sua vida.
Percebe-se nos contos o aniquilamento das mulheres e a ausência de seus
nomes pressupondo-se a não individualidade de seus seres, a sua vida se dá através
das figuras masculinas. O simbolismo inicia-se desde os títulos dos contos, estes
apresentam as questões e os elementos universalizantes retratados por Mia Couto de
forma sutil sobre as condições das mulheres, além dos espaços geográficos.
Nessa obra, a maioria das narrativas tecem o universo feminino, dando vez e
voz a essas almas condenadas à frustração e ao esquecimento, dessa maneira,
transbordam as páginas e encantam os leitores/leitoras. A maneira como as mulheres
são tratadas pelos homens com os quais se relacionam (maridos, pais, tios ou irmãos)
nos chama a atenção, pois, de modo geral, o que se percebe é que elas, na convivência
com a figura masculina, sentem suas personalidades apagadas.
O ato de narrar proporciona a oportunidade de declarar suas insatisfações em
relação às suas condições de objetos desvalidos. Constatamos na analise o estado de
vulnerabilidade das personagens, por não serem capazes de estabelecer certezas e
limites para si mesmas. Nos embalamos em vozes e símbolos representativos como o
vestido, a casa, o cesto, esses elementos que servem de pontes de ligação entre os
contos, logo, a força da expressividade desse discurso feminino.
3 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Com esta pesquisa que delimita-se em perfazer um estudo acerca de dois
contos que fazem parte da obra O fio das missangas (2009) de Mia Couto,
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conseguimos conhecer e refletir sobre o Estado moçambicano e suas figuras sociais,
personagens que sofrem com a dominação, subalternização e censura, em especial as
mulheres que sofrem com a supremacia e hegemonia masculina, pois desde o
processo de colonização deste país tem-se implantado e construído uma sociedade
marcada pelo patriarcalismo determinista e castrador.
As narrativas de Mia Couto nos impele a perceber uma escrita que evidencia a
vida da mulher e todo histórico de sujeição desse sexo denominado socialmente como
frágil, pois é salutar compreendermos que o modelo ideal feminino mediante a
sociedade patriarcal está interligado ao ser “dona de casa”, condutora do ambiente
doméstico, a mulher é um ser que deve servir e está a disposição do homem, seja ele
pai, irmão, tio ou marido, como é o caso das mulheres presentes nos contos
abordados, sempre dispostas a servir os homens da casa, e quando ocorria a subversão
estas eram acusadas de não cumprirem a ordem natural da sociedade, logo eram
taxadas de mulheres que desacatavam a tradição cultural, pois ser uma mulher casada,
submissa e temente aos seu cônjuge era um pré-requisito muito importante para que
ela seja considerada honrosa e dígna de respeito.
Portanto, percebe-se nas supostas narrativas, além da sujeição da figura
feminina, uma reivindicação, a não aceitação da segregação de seu papel na
conjuntura social, no contexto contemporâneo a mulher está em busca do espaço e
lugar negado pela colonização e patriarcado, porém é inegável que desde outros
momentos a feminilidade está imbuída e envolvida nos costumes, culturas e com mais
força hoje em dia nas ações políticas contestando os direitos sonegados, fazendo da
palavra escrita uma arma contra repreensão e o silenciamento que subsistiu por tanto
tempo.
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REFERÊNCIAS
COUTO, Mia. O fio das missangas. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
______. Mia Couto fala sobre 'A confissão da leoa'. [online]. Disponível em:
http://oglobo.globo.com/blogs/prosa/posts/2012/11/10/mia-couto-falasobreconfissao-da leoa- 474310.aspacesso em 29/09/2015.
HALL, Stuart. Da Diáspora: Identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: UFMG,
2008.
PERROT, Michele. As mulheres ou os silêncios da história. Bauru: EDUSC, 2005.
SPYVAK, Gayatri Chakravorty. Pode o subalterno falar? Belo Horizonte: Editora da
UFMG, 2010.
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