Uma análise do processo político em Honduras
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Uma análise do processo político em Honduras
Aññno 2009 Uma análise do processo político em Honduras Quando fechávamos esta edição, os resultados da nefasta assinatura do acordo entre os golpistas e Zelaya já se faziam notar. O chamado Acordo de Tegucigalpa, entre Zelaya e os representantes de Micheletti e patrocinado pelo imperialismo, revelou-se um engano cruel imposto sobre o povo e a resistência. O objetivo central dos golpistas - começar a romper o isolamento internacional - foi atingido, sem que fosse concretizada a restituição formal e sem poder de Zelaya, quinze dias depois da assinatura. Além disso, os golpistas esperam que as eleições, previstas para 29 de novembro, ocorram com uma resistência debilitada, o que está sendo obtido com a colaboração direta de Zelaya e, infelizmente, com a aceitação por parte da maioria da direção da Frente Manifestação nas ruas de Tegucigalpa contra o Golpe, que considerava, até 10 de novembro passado, o Acordo de Guaymuras uma vitória. Agora, com a não restituição de Zelaya, considera o acordo rasgado e chamam a boicotar e a desconhecer o resultado eleitoral. A chama da resistência pode voltar a se acender, mas os que lutaram contra o golpe terão de fazer uma profunda reflexão sobre o que significou o papel de Zelaya e o da maioria da direção da Frente em todo o processo. Consideramos, então, que é um momento no qual se faz necessária uma análise do conjunto do processo para tirar conclusões que possam ajudar a luta da resistência e, em especial, daqueles que não aceitaram, desde o início, a traição de Zelaya. Ele fez um pacto com os golpistas em base a essas miseráveis condições (que nem sequer foram cumpridas). Estas forças da Resistência desde então defendem a continuidade da luta, dispostos a buscar uma alternativa independente e que não faça seguidismo ao vai-e-vem do presidente Zelaya. No contexto da confusão criada pela capitulação, podemos dizer que há uma notícia alentadora; existem setores de esquerda da resistência que estão defendendo uma política independente de Zelaya, afirmando que a luta deveria ser radicalizada até impor a derrota do golpe pelas massas. Neste número de Marxismo Vivo publicamos o material de crítica à orientação imposta pelo zelayismo, que Tomás Andino, deputado da UD e participante da Frente de Resistência contra o golpe, apresentou num fórum da resistência quando já se debatia a política que levou à capitulação e à assinatura do Acordo de Guaymuras. Também publicamos o texto, A heroica resistência contra o golpe e o nefasto papel de Zelaya, já que nos pareceu necessário fazer um balanço desde o início do golpe para que se possa avançar nas lições mais estratégicas. 6 Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009 Añno 2009 A heroica resistência contra o golpe e o nefasto papel de Zelaya José Moreno Pau Partido Revolucionário dos Trabalhadores (PRT-IT) - Espanha José Welmowicki Editor de Marxismo Vivo O golpe em Honduras foi produto de uma amplíssima frente reacionária de praticamente todos os setores da burguesia hondurenha: as tradicionais organizações políticas burguesas - o Partido Nacional (conservador) e o Partido Liberal (ao qual pertencia o próprio Zelaya) -, a Corte Suprema, o Congresso, os meios de comunicação, a Igreja Católica e as Forças Armadas. Manuel Zelaya é um dirigente burguês, proveniente da oligarquia latifundiária, que tomou algumas tímidas medidas progressistas e, frente à deterioração da situação econômica, aproximou-se do chavismo e entrou na Alba, para se beneficiar das ofertas de petróleo mais barato. Até aí, vinha sendo tolerado pela direita hondurenha. Mas, quando Zelaya declarou sua intenção de conseguir a reeleição, não prevista pelo atual regime político, e, para isso, de convocar uma assembleia constituinte, sofreu o rechaço da ampla maioria da burguesia. Ao insistir nisso, apelando a formas de mobilização popular, como o episódio da consulta para respaldar a “4ª urna”1, tornou sua permanência no poder intolerável para essa elite e as Forças Armadas. As contradições do golpe Os golpistas tinham bastante apoio da burguesia hondurenha, mas havia um problema muito sério na conjuntura internacional. O golpe ia na contramão da situação aberta com a derrota da política de Bush e a nova tática de Obama. A burguesia hondurenha é historicamente muito dependente e tradicional aliada do imperialismo estadunidense. Por exemplo, na década de 1980, permitiu que o país fosse utilizado como base pela “guerrilha contra” que atacava o governo sandinista da Nicarágua. Muito possivelmente, com base nesses favores, acreditou que teria o “direito” de eliminar um elemento “irritativo” do poder, em que Zelaya estava se transformando, e que, frente ao fato consumado, teria o apoio do governo norte-americano. Mas foi um grave erro de cálculo porque o golpe “ultrapassava os limites” da atual tática Tradução Marcos Margarido 1 A “quarta urna” era uma proposta de incluir nas próximas eleições de novembro uma consulta sobre a convocação a uma Assembleia Constituinte. Previamente, Zelaya havia convocado uma consulta popular (não autorizada pelo Congresso nem pela Corte Suprema) para respaldar a “quarta urna” nas futuras eleições. Foi nesse momento que o golpe de estado ocorreu. Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009 7 Aññno 2009 política de Obama. A burguesia hondurenha tinha certa consciência desta contradição. Por isso, apesar de ser um golpe bonapartista, não podia executar uma repressão genocida generalizada ao estilo de Pinochet ou Videla, como no passado da América Latina, numa conjuntura internacional completamente distinta dos anos 70. Os gorilas hondurenhos tinham que ser cautelosos em seus objetivos imediatos e nas formas institucionais. Neste sentido, para tentar ganhar o apoio do imperialismo dos EUA e das democracias burguesas, apresentaramse em defesa da constituição, “ameaçada” por Zelaya. No contexto da nova política do imperialismo norte-americano, buscaram dar uma cobertura de legalidade à ação, acusando Zelaya de diversos “crimes” e o destituindo “constitucionalmente”: foi o próprio Congresso que nomeou o novo “presidente civil”, Roberto Micheletti, pertencente ao mesmo Partido Liberal de Zelaya. O mais importante é que se apresentaram como uma “transição” para uma saída institucional no marco da democracia burguesa: desde o início propuseram a saída das eleições presidenciais de novembro, e a entrega do poder ao vencedor. Assim, queriam afirmar, frente às instituições internacionais, que não queriam instalar um regime semelhante ao do Chile com Pinochet ou ao dos militares argentinos de 1976, que esmagaram a população e tentaram manter-se por longos anos. O isolamento internacional dos golpistas Esta situação particular dos golpistas hondurenhos, devido à contradição do golpe com a nova tática do imperialismo expressada por Obama, que quer mostrar-se como o homem da “paz”, do diálogo, transformou o golpe num problema político, porque desautorizam a “nova cara” que o imperialismo quer mostrar. Por isso, apesar de apresentar-se como “institucional e legalista”, o golpe não foi apoiado por nenhuma das instituições dominadas pelo imperialismo como a OEA, a ONU ou a União Europeia. É claro que a embaixada norte-americana estimulou as dissidências contra Manuel Zelaya, antes do golpe, mas sua estratégia fundamental foi sempre o desgaste eleitoral e a chantagem. No entanto, quando a extrema-direita hondurenha, confiando no apoio dos EUA, executou o golpe de Estado, o governo de Obama não lhe deu nenhum apoio aberto. Essa situação contraditória desembocou no isolamento internacional dos golpistas, apesar de contar com o apoio de praticamente toda a elite hondurenha. Quando se compara o papel do imperialismo nas décadas anteriores, seu apoio total aos golpes de Pinochet e Videla e a seus regimes genocidas, deve-se explicar as diferenças nessa atitude. A não ser pela mudança de tática do imperialismo, não se pode entender o não reconhecimento do governo Micheletti pelo conjunto dos organismos imperialistas até que não se conseguisse um acordo. Inclusive houve uma pressão, por parte da OEA e do governo norte-americano, embora limitada, com algumas penalidades e suspensões de vistos a golpistas e seus parentes assim como a pressão e a exigência de um acordo firmado entre as duas partes para reconhecer o processo eleitoral. A intransigência do governo golpista à restituição de Zelaya 8 Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009 Añno 2009 obrigou o governo de Obama a enviar sua própria delegação para impor um acordo, que finalmente conseguiu que a restituição de Zelaya fosse decidida pelo parlamento que o destituiu. Obviamente, existe um acordo de fundo para dar uma saída eleitoral à situação e para não castigar os golpistas. Ou seja, uma solução estável em base a um acordo, como demonstra a proposta de “governo de unidade nacional” e de aceitação do resultado eleitoral. Mas esta atitude, repetimos, é bastante distinta à que o imperialismo teve frente aos golpes nas décadas de 60, 70 e 80. Até mesmo um porta-voz dos golpistas chegou a declarar publicamente num momento de mais atrito que o governo de Obama estava “abandonando seus aliados e favorecendo os chavistas e... comunistas”. Uma resistência heroica evitou a rápida consolidação do golpe Em resposta ao golpe, foi produzido um dos maiores pocessos de luta da história de Honduras. Já após a primeira semana, a indignação foi dando lugar à ação e as massas entraram na luta. No dia 5 de julho passado, dezenas de milhares de pessoas marcharam até o aeroporto para garantir a volta de Zelaya. Outras dezenas de milhares foram impedidas de chegar e ficaram paradas nas estradas de todo o país. O povo hondurenho esteve a ponto de tomar o aeroporto e infligir uma duríssima derrota aos golpistas, mas havia sido dissuadido pelo próprio Zelaya de que o protesto devia ser “pacífico” e o avião que trazia o presidente deposto não pôde finalmente aterrisar. Em 22 de julho teve início uma greve de 48 horas com cerca de 80% de adesão, acompanhada por dezenas de bloqueios de estradas em todo o país, conseguindo paralisar os portos e os aeroportos. Apenas a grande greve bananeira de 1954 havia tido uma ação tão generalizada e unificada de todas as forças sindicais na história do país, acompanhada de mobilizações de rua. As marchas que paralisavam as principais vias de comunicação e as próprias cidades, incluindo a capital, Tegucigalpa, foram uma constante. Novamente foram maciças as mobilizações de 15 de setembro, mas temos que destacar as realizadas com a volta repentina de Zelaya para se refugiar na embaixada brasileira. Naqueles primeiros dias, as massas tomaram os bairros populares, principalmente à noite, enfrentando as forças repressoras com barricadas. Estávamos ante a própria radicalização que o imperialismo queria evitar e que abria a possibilidade de derrubar o golpe pela ação direta. O imperialismo e Zelaya puseram-se de acordo para frear este ascenso, redobrando o esforço de negociação. O Plano Arias O governo de Obama buscou uma velha figura de sua confiança: Oscar Arias, presidente da Costa Rica, diretamente designado como “mediador” pelo Departamento de Estado dos EUA. Com esse “mandato”, Arias tenta propor uma saída frente à desestabilização do país e à possibilidade de que atingisse toda a região, e ao temor de que a situação levasse a uma derrubada do governo golpista pela ação radicalizada das massas. O Plano Arias tinha o objetivo de fechar o conflito aberto pelo golpe por meio de um acordo entre os golpistas e Zelaya. O Plano Arias incluía a restituição de Zelaya à presidência de Honduras. Mas os outros pontos eram Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009 9 Aññno 2009 categoricamente contra os interesses do movimento de resistência: evitar a convocação de uma Assembleia Nacional Constituinte, garantir a impunidade aos golpistas e preservar todas as corruptas instituições que deram o golpe (Congresso, Tribunal Supremo, Forças Armadas, Igreja e um longo etc.). É importante destacar que o diálogo de Guaymuras, que se concretizou no Acordo de Tegucigalpa, é muito semelhante ao Plano Arias e, portanto, tem um claro perfil de acordo imposto pelo imperialismo e que contou com um amplo apoio de toda a OEA, incluídos os países da Alba. Zelaya apoia a negociação... Já na rodada de negociações realizadas na Costa Rica, a delegação de Zelaya aceitou todos os pontos do plano, abandonando bandeiras fundamentais levantadas pela Frente Nacional Contra o Golpe de Estado, como a convocação a uma Assembleia Constituinte. Aceitava, inclusive, a impunidade aos golpistas e a preservação da cúpula militar. Essa posição de Zelaya entregava na mesa de negociações os motivos de fundo pelos quais ocorreu a resistência popular. Pese a isso, as conversações iniciais fracassaram devido à oposição do setor mais direitista dos golpistas, que não aceitava de nenhuma forma o retorno de Zelaya, temendo que isto fosse visto pelas massas como um triunfo da mobilização popular e pelo medo de que, encorajadas por esse retorno, exigissem a cabeça da cúpula das Forças Armadas e dos golpistas civis. …e freia a resistência. A partir de seu apoio ao Plano Arias, Zelaya tentou convencer o movimento de resistência a aceitá-lo e aceitar também um “diálogo pacífico” com os militares e os golpistas civis. Um exemplo disto foi seu chamado à população para que fosse recebê-lo na fronteira com a Nicarágua em 24 de julho, durante a greve nacional de 48 horas, para recebê-lo e forçar seu retorno ao país. A maioria da direção da Frente Contra o Golpe apoiou aquele chamado e isso fez com que a esta ficasse sem vários de seus dirigentes nas principais cidades do país. Zelaya fez os manifestantes acreditarem que poderia convencer a cúpula militar a deixá-lo entrar pacificamente e, chegados à fronteira, viram Zelaya apelando pateticamente ao “patriotismo da cúpula militar”. Como, obviamente, os generais não o fizeram e organizaram a repressão em toda a região, Zelaya simplesmente voltou a sair, deixando milhares de pessoas presas numa armadilha. Assim, pôs em perigo a vida e a liberdade de milhares de ativistas e de muitos dirigentes da Frente de Resistência contra o Golpe, o que representava uma ameaça real de perda de dirigentes do movimento antigolpista. A orientação de Zelaya teve uma lógica de ferro: a necessidade de manter, a qualquer custo, o controle do movimento. Uma greve geral põe como centro a ação direta e faz a classe operária aparecer como direção e cabeça do movimento, o que ameaçava sua hegemonia. Para Zelaya, era fundamental que sua figura e suas iniciativas se impusessem ao movimento de massas. Só isso pode explicar que, nesse episódio, ele tentasse seu ingresso pela fronteira, convocando o movimento a trasladar-se até ali, em meio à greve mais contundente das últimas décadas. Ao mesmo tempo, buscava evitar 10 Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009 Añno 2009 que a greve e os bloqueios de estradas desbordassem sua estratégia de “saída pacífica” e ameaçassem derrubar o regime golpista com a luta, abrindo o questionamento ao próprio Estado burguês. O papel dos chamados governos “anti-imperialistas” Apesar de toda a retórica dos membros da Alba, em especial de Chávez, não houve nenhuma “brigada de solidariedade” com Honduras nem, muito menos, ações ofensivas do movimento de massas em seus países, contentandose com resoluções no limite da OEA e da Unasul. As escassas mobilizações convocadas por Chávez na Venezuela ou o ato que realizou em El Salvador três meses depois do golpe não escondem o esforço que os governos da Alba realizaram para dar o protagonismo do processo às instituições do imperialismo e a seus principais porta-vozes, como Lula ante a ONU. Mas o que chama mais a atenção é a atitude traidora dos vizinhos “progressistas” centro-americanos. O exemplo mais vergonhoso veio do governo Funes, da FMLN, em El Salvador: depois de fechar por 48 horas as fronteiras com Honduras, recebeu fortes críticas das associações patronais e, imediatamente, capitulou em toda a linha e passou a permitir o livre trânsito das mercadorias produzidas em, e com destino a, Honduras. O presidente Funes prosseguiu sua política de abandono da resistência hondurenha e de legitimação dos golpistas: em 28 de julho, em plena luta da resistência, realizou uma reunião com representantes dos empresários golpistas hondurenhos e comprometeu-se a não prejudicar seus interesses e investimentos em El Salvador. Isso serviu para que a oligarquia golpista de Honduras pudesse afirmar que não estavam “tão isolados”, em especial na América Central. Afinal, até um governo de “esquerda” os estava recebendo. Funes justificou essa traição declarando “não poder negar-se” a receber empresários interessados em investir em seu país. Para ele, não importava a trajetória de massacres em que estiveram implicados esses oligarcas golpistas, inclusive na guerra dos anos 90 em El Salvador; para Funes, o fundamental é garantir os bons negócios de sua burguesia. Por seu lado, Daniel Ortega esteve formalmente contra o golpe: apareceu ao lado de Zelaya, permitiu que usasse a Nicarágua como refúgio e disse algumas bravatas contra os golpistas. Mas tampouco tomou alguma atitude séria para afetar os interesses da oligarquia hondurenha na Nicarágua. Ele também defendeu os interesses dos empresários nicaragüenses, que têm laços estreitos com a burguesia golpista de Honduras. Tampouco teve dúvida em comprometer-se com as manobras militares conjuntas latino-americanas (Panamax 2009) com os Estados Unidos e a Colômbia, nas quais se chegou a anunciar a participação dos militares golpistas hondurenhos (afinal, não puderam participar pelo não reconhecimento do governo dos EUA e da OEA). Essas manobras têm o objetivo de treinar a “defesa do canal do Panamá”, isto é, a defesa da dominação imperialista na região. Incluem, ademais, as Forças Armadas de El Salvador, Brasil, Argentina e Equador (do “bolivariano” Rafael Correa). Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009 11 Aññno 2009 O erro da direção da Frente O apoio à política de negociação de Zelaya, inclusive à improvisada marcha à fronteira, mostrou o erro das principais direções da Frente de Resistência, de seguir acriticamente sua orientação política e decisões pessoais. Apesar da Frente não ter apoiado o acordo, não criticou Zelaya por apoiar publicamente o reacionário Plano Arias, nem tampouco denunciou sua política de chamar uma “mobilização pacífica”, sem nenhuma preparação para resistir à repressão militar, e que esta alimentava ilusões no caráter supostamente “patriótico e negociador” da cúpula militar e deixava as massas à mercê dos esbirros golpistas. Essa contradição esteve presente todo o tempo, como se viu graficamente no caso da marcha ao aeroporto, na mobilização à fronteira e, sobretudo pela participação de um dirigente da Frente nas primeiras semanas da negociação com os golpistas na capital hondurenha. Há poucos anos, a reação das massas derrotou os gorilas venezuelanos, e mostrou que, sem uma mobilização decidida e disposta ao enfrentamento com as forças golpistas, não se pode derrotá-los. Chegou-se, assim, a uma situação em que, por um lado os golpistas não podiam levar a cabo uma repressão genocida e deviam manter as formas institucionais pelo seu isolamento internacional; mas, por outro lado, as forças da resistência estavam amarradas pela orientação zelayista e pela falta de uma direção consequente. Era uma encruzilhada onde, à medida que passava o tempo, permitia a manutenção das rédeas do Estado nas mãos dos golpitas e a utilização da ânsia natural da população em retomar a “vida normal” para debilitar a resistência (por exemplo, incentivando a pressão da população a sobre os professores para terminar sua greve). A política conciliadora impediu que a resistência derrotasse o golpe A política de confiança nas negociações como via central para tirar os golpistas impediu que a resistência derrotasse o golpe. Era necessária uma disposição à ação radical, e ao enfrentamento insurrecional com a ditadura, algo que Zelaya estava e está contra fazer. Por isso, a resistência não conseguiu derrubar Micheletti quando teve condições para isso, devido à política da direção da Frente, que foi a reboque da política de Zelaya. E esse obstáculo tornou-se absoluto quando Zelaya retorna e novamente se abre a negociação para o Confronto na capital hondurenha (13/08/09) Acordo de Tegucigalpa. O Acordo de Tegucigalpa: consuma-se a traição de Zelaya Quando Zelaya entrou em Tegucigalpa e se instalou na embaixada brasileira, houve uma retomada muito forte da mobilização, mas em seguida Mel deu um novo respiro aos golpistas aceitando negociar com eles. Conclamou a mobilizações pacíficas, e sob pressão do governo brasileiro e de Obama tratou de desestimulá-las e acalmar os ativistas ao chamar permanentemente o “diálogo”. 12 Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009 Añno 2009 A direção da Frente aceitou as indicações de Zelaya para que as mobilizações fossem pacíficas. Com isso, após mais de um mês de negociações em Honduras, as ações diminuíram sensivelmente em massificação e radicalização. Os atos de setores e de ativistas em frente à embaixada e mais recentemente em frente ao Congresso, apesar de sua combatividade, não impediram o funcionamento do país. Já não se produziam os bloqueios de estradas e as greves foram reduzidas. Esse foi o momento escolhido pelo enviado dos EUA, Thomas Shanon, para impor às duas partes o Acordo de Tegucigalpa. Nesse acordo, Zelya teria uma presidência totalmente recortada, governando com os golpistas e cedendo até a direção das Forças Armadas, designada ao presidente. Este acordo, ademais, não implicava uma restituição direta de Zelaya, a um mês do processo eleitoral, mas deixava a decisão ao próprio parlamento que aceitou sua destituição ao produzir-se o golpe de Estado. A assinatura do Acordo conseguiu o objetivo dos golpistas de ir rompendo com o isolamento internacional. Os golpistas, nesse marco, após contar com a colaboração de Zelaya para a desmobilização das massas, decidiu continuar adiando sua restituição para deixar claro que esta não teria efeito e com isso levar ao desprestígio de Mel Zelaya. A responsabilidade da direção da Frente Depois de cinco meses, a repressão dos golpistas e a política negociadora de Zelaya, além da atitude pacifista da Frente, criaram um ambiente de compasso de espera, que fez o movimento antigolpista retroceder, em sua força e em seus métodos de luta. Pode ser que, frente à recusa sequer de reintegrar Zelaya e a provável indignação popular, isso mude, mas já encontrará uma situação menos favorável para retomar a luta devido ao período de desmobilização que só favoreceu à oligarquia e aos golpistas. A Frente de Resistência ao Golpe de Estado tinha a obrigação de denunciar os acordos e romper com Zelaya, mas preferiu acompanhar sua política, embora dizendo que continuará “lutando nas ruas pela convocação de uma Assembleia Constituinte”. Emitiu um comunicado que, de fato, apoia o Acordo de Tegucigalpa e realiza algumas exigências ao Congresso golpista. Desta forma, lamentavelmente, a Frente legitimou o acordo, encobrindo a traição de Zelaya e, ao mesmo tempo, perdeu a oportunidade de surgir como uma alternativa de direção para a luta do conjunto do povo hondurenho. Adiou-se mais uma vez a restituição com as eleições “virando a esquina” Enquanto escrevíamos este texto, houve proclamações por parte da direção da Frente, afirmando que o acordo é letra morta devido à postergação da restituição de Zelaya. Inclusive levantaram novamente a exigência de Assembleia Constituinte e o rechaço às eleições de 29 de novembro por se dar sob o governo golpista. Mas, novamente, há uma declaração de apoio a Zelaya, por este haver considerado rasgado o acordo. Sabemos que foram as bases que exigiram a denúncia das eleições e que se desconhecesse o acordo, no entanto, a direção da Frente incluiu o apoio a Zelaya sem denunciar que a postura atual do presidente deposto não muda o fato de que firmou o documento aceitando os pontos mais importantes do Plano Arias e permitiu Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009 13 Aññno 2009 que os golpistas manobrassem até perto das eleições, apenas com a promessa de uma possível restituição via Congresso, o que deixou a resistência muito debilitada. As eleições dos golpistas e as tarefas da esquerda da Frente Foi anunciada a retirada da candidatura independente encabeçada por Carlos H. Reyes das eleições, assim como o chamamento da Frente a que todas as candidaturas que apoiaram a resistência se retirem. A dezesseis dias das eleições, os candidatos da UD ainda não se haviam pronunciado, mas mesmo que acabassem se retirando, continuariam beneficiando o regime golpista e seu processo eleitoral. Mesmo que o presidente deposto pelo golpe fosse restituído nos últimos dias prévios aos comícios, esse fato já não pode legitimar uma eleição produzida sob um regime golpista, nos termos do Acordo de Tegucigalpa, que pretende enterrar a luta do povo hondurenho contra os golpistas, a oligarquia e por uma Assembleia Constituinte que rompa com o imperialismo. O governo de Obama esperava que, com o Acordo de Tegucigalpa, a instabilidade em Honduras terminasse e se chegasse às eleições sem problemas. Os golpistas, uma vez mais, não lhe facilitaram a tarefa; vendo-se cada vez mais fortes, com a colaboração de Zelaya, esperam que as eleições sejam reconhecidas sem ceder o mais mínimo. A assinatura do Acordo por parte de Zelaya, aceitando que a restituição fosse decidida pelo parlamento, permitiu ao governo de Obama dizer que pode aceitar o resultado eleitoral e seguramente declarará que o novo governo restabelecerá a legalidade. Apesar do forte debilitamento das massas e da confusão provocada pela manutenção do apoio da direção da Frente a Zelaya, é muito possível que se volte a produzir uma forte mobilização popular na luta contra estas eleições, pois o povo hondurenho já demonstrou durante muitos meses que é capaz de voltar a levantar-se e enfrentar o regime golpista. Fica uma tarefa pendente que, se avançar, pode ser a parte positiva de todo esse processo, em relação à organização dos trabalhadores e do povo de Honduras. O desenvolvimento de uma direção alternativa de classe baseada nos setores da esquerda da resistência que estão defendendo uma política independente de Zelaya e defendiam a radicalização da luta até impor a derrota ao golpe pelas massas. Neste sentido, vemos a publicação do texto de Tomás Andino como o início de uma discussão muito necessária que se deve abrir não somente entre os lutadores hondurenhos, mas também entre todos os que participaram e apoiam a resistência contra esse golpe, na América Latina e em todo o mundo. A luta contra as eleições, contra o governo vencedor (se esta eleição fraudulenta for consumada), e, portanto, a luta pelo seu não reconhecimento, serão as tarefas que terão o povo hondurenho, latino-americano e mundial nos próximos meses. 14 Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009 Añno 2009 Proposta para avançcar até uma estratégia revolucionária ´ O Diálogo Guaymuras, a estratégia do presidente Mel Zelaya e a Resistência Tomás Andino Mencía Deputado pelo partido UD ao Congresso Nacional - Honduras Nos últimos dias temos sido testemunhas do “vai e vem” entre as Comissões de Mel e Micheletti no marco do Diálogo Guaymuras. Qualquer um que enxergue dois dedos à frente percebe que existe una tática protelatória por parte dos golpistas para ganhar tempo, ante a qual o Presidente Mel esmerase em continuar em tal “diálogo” com paciência franciscana. Enquanto isso, os golpistas avançam em sua campanha eleitoral e a maioria da liderança da Resistência continua centrando suas expectativas em que algo positivo surgirá desse diálogo. Minha tese é que o problema não reside apenas na tática protelatória dos golpistas, mas que, principalmente, o Acordo de San José, apresentado como a grande panacéia para resolver a crise atual, é em si mesmo uma armadilha do Departamento de Estado norte-americano para levar a cabo os objetivos do Golpe de Estado e que, portanto, Mel deveria retirar-se do mesmo e a Resistência não deveria manter suas esperanças nele. Os pontos de vista que exponho a seguir foram apresentados verbalmente em inumeráveis ocasiões no fórum apropriado da direção da Frente Nacional de Resistência, sem que houvesse una retificação do rumo atual. Isso me obriga a apresentá-los agora por escrito. Tradução Marcos Margarido O Acordo de San José e a estratégia imperialista Os objetivos e os beneficiários do Golpe Para fazer uma avaliação objetiva da estratégia norte-americana, devemos recordar primeiro quais foram os objetivos do Golpe: • Impedir que o Presidente Mel Zelaya estimulasse a mobilização do povo contra a oligarquia empresarial. Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009 15 Aññno 2009 • Frear a luta pela Assembleia Nacional Constituinte. • Cortar o vínculo internacional de Honduras com a Alba. • Conservar Honduras como plataforma militar norte-americana frente a governos pró-Alba na América Central e no Caribe. Do anterior deduz-se, em primeiro lugar, que os beneficiários mais imediatos do Golpe foram os empresários e a classe política vinculada a eles, pois conservam inalterados seus privilégios de classe e sua forma de dominação política baseada no bipartidarismo tradicional. O outro grande ganhador do Golpe foi o imperialismo norte-americano, do ponto de vista geoestratégico. Recordemos que a sede do Comando Sul saiu do Panamá e que a única base militar que os norte-americanos têm em solo centro-americano é a base aérea de Palmerola; nessas condições, o império não pode dar-se ao luxo de perder Honduras ante o avanço da Alba na Nicarágua e un governo da FMLN em El Salvador. Por isso, não é casual que distintas agências de Estado norte-americanas alentaram e promoveram o Golpe de Estado em Honduras, coincidentes ou afinados com a ultradireita gusana1 de Miami e da Venezuela. Agora fingem estar “contra”, mas é claro que as medidas tomadas para “penalizar” os golpistas são tão tímidas que é evidente que só se trata de poses teatrais para aparentar o que não são. A oligarquia e a cúpula militar hondurenha dificilmente teriam assumido tal aventura, nem teriam se entrincheirado como fizeram frente à avalanche diplomática internacional, se não tivessem contado com aprovação e apoio destes setores chaves do império norte-americano. Portanto, o Golpe de Estado em Honduras não é apenas produto do desespero da oligarquia ultramontana hondurenha que o executou, mas forma parte de uma conspiração internacional inspirada e promovida pelo imperialismo norte-americano, em linha com as fracassadas intentonas golpistas na Venezuela (2002), Bolívia (2008) e Guatemala (2009). Em outras palavras, o governo norte-americano não é aliado do povo hondurenho contra o Golpe, mas um de seus autores intelectuais. O Plano Arias ou Acordo de San José Como é de domínio público, o avião no qual o Presidente Zelaya foi sequestrado fez uma aterrisagem na base militar norte-americana de Palmerola para se abastecer em sua viajem à Costa Rica. Depois, ao chegar a San José, foi recebido pessoalmente pelo Presidente Oscar Arias, marionete dos norte-americanos na América Central. “Casualmente” foi este último quem apareceu com o chamado Plano Arias para a reconciliação entre as partes, elaborado não por ele, mas pelo Departamento de Estado dos Estados Unidos. Tantas “casualidades” indicam uma realidade inquestionável: Que os “norte-americanos” estão por trás do Plano Arias ou Acordo de San José desde o princípio. Que diz o Plano Arias? Em sua versão definitiva, este projeto de pacto político promove a restituição do Presidente e a reconciliação dos golpistas com o “melismo”2, mediante: • A conformação de um Governo de Unidade entre funcionários de Mel e dos golpistas, tirados dos cinco partidos políticos; 16 Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009 1 Gusanos: cubanos emigrados inimigos da Revolução Cubana (NT). 2 Melismo: partidários de Mel Zelaya (NT). Añno 2009 • A garantia de eleições com a participação de todos os setores um mês antes da data preliminar de 29 de novembro deste ano; • A renúncia a promover uma Assembleia Constituinte ou uma consulta popular com esse fim; • Anistia pelos delitos políticos cometidos; • Remover Mel do comando das Forças Armadas um mês antes das eleições; • Retornar as instituições do Estado à sua situação antes do Golpe de 28 de junho; isto é, Mel voltaria à Presidência e Micheletti ao Congresso. Assim, Mel retomaria uma presidência sumamente limitado ou sem poder para impulsionar a Assembleia Constituinte, nem poderia tomar nenhuma outra iniciativa presidencial de peso; ademais perderia o controle sobre as Forças Armadas e teria a ameaça da Procuradoria Geral e da Corte Suprema, que já havia ordenado sua captura, intactas; Micheletti retomaria o poder do Congresso Nacional e além disso teria gente de sua confiança no Poder Executivo; os golpistas já “queimados” teriam garantidos um substituto com as eleições; e ninguém seria denunciado por motivos políticos, ao menos em território nacional.3 Isto é, se o Acordo de San José for firmado, contrário ao que nos foi feito acreditar, o império conseguiria seus objetivos com o Golpe de Estado e a burguesia sairia com as mesmas ou com maiores fatias de poder do que tinha antes do golpe. O papel cúmplice da OEA Neste jogo de xadrez político internacional, a OEA também está jogando seu papel a favor da estratégia norte-americana. Nos primeiros dias do golpe, teve uma reação consequente com a Carta Democrática que lhe serve de base jurídica. Exigiu, então, a restituição imediata e incondicional do Presidente Zelaya ao cargo. E em sua primeira visita, o Secretário Geral da OEA, José Miguel Insulza, tratou Micheletti e sua quadrilha como o que são: delinquentes políticos. Deu-lhes a seguinte mensagem: “Ou deixam o poder ou os desconhecemos”. Mas, à medida que o Departamento de Estado norte-americano foi exercendo sua liderança a favor do Plano Arias e da negociação, a OEA prendeu-se totalmente a este e agora parece dizer junto aos norte-americanos: “Sentem-se para negociar e ponham-se de acordo para que os reconheçamos”. Esta mudança implica uma violação da Resolução da Assembleia Geral da OEA por parte de Insulza, que só se explica pelo peso da representação dos Estados Unidos nesse organismo. Novamente, repete-se a validez da célebre frase de Che Guevara quando qualificou a OEA como “Ministério das Relações exteriores do Imperialismo”. O Diálogo Guaymuras e a negociação O Acordo de San José implica em uma negociação. Negociar em si não é incorreto. O incorreto é submeter os objetivos da luta direta nas ruas, com muitas possibilidades de êxito, a uma negociação na qual só há possibilidades de perder. Isso é claramente inconveniente para a Resistência, mas é o que sucede com o chamado Diálogo Guaymuras. 3 Embora o ponto da Anistia tenha sido eliminado do acordo preliminar por ambas as comissões, o certo é que nada impede legalmente que o Congresso Nacional a outorgue aos militares se essa for sua vontade. Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009 17 Aññno 2009 Em primeiro lugar, aceitar negociar com golpistas é um mal precedente. Em nome de que, é válido que um Presidente eleito democraticamente tenha que negociar quotas de poder com bandidos políticos como Micheletti e Romeo Vásquez, que usurparam-no à força? O mais triste é que aqueles que pressionam por isso são os que dizem defender a democracia nas Américas (a OEA) e no mundo (os norte-americanos). Agora, qualquer pilantra poderá derrubar um governo democrático, com a certeza de que cedo ou tarde terão que negociar com ele. Em segundo lugar, não se negocia com uma faca no pescoço. Enquanto as comissões estão reunidas, a repressão contra a resistência é mantida, e, embora o Decreto de Estado de Sítio tenha sido revogado e a Rádio Globo e o Canal 36 sejam reabertos sob ameaça, continua o assassinato de ativistas da Resistência, há dezenas de presos políticos nas prisões da ditadura, e continuam a militarização e a tortura eletrônica na Embaixada do Brasil. Em terceiro lugar, a lógica de toda negociação para se chegar a um acordo é que as partes devem ceder algo. Se o Acordo de San José, por si próprio, é uma base de negociação desvantajosa, o resultado final só pode ser pior para a causa da Resistência. Por exemplo, no ponto central da restituição do presidente, o acordo de San José diz que a decisão cabe ao Congresso Nacional, mas os golpistas pressionaram para que fosse a Corte Suprema de Justiça, e finalmente a Comissão de Mel recuou, aceitando que fosse “o Congresso em consulta à Corte Suprema de Justiça”, arriscando-se a um resultado negativo e adiando as decisões. Em quarto lugar, não há transparência no que se negocia, porque as propostas nas negociações não são submetidas à aprovação da base da Resistência; na realidade são secretas. A base fica ao par delas pela imprensa quando já foram apresentadas. Não há maneira de reagir antes. Tudo resulta ser uma imposição. Em quinto lugar, não há nada que impeça os golpistas de apresentar propostas absurdas para manter sua estratégia de dilatar o tempo da negociação. A OEA, que supostamente é garantia do diálogo, faz vista grossa frente a essa descarada tática dilatória, alegando que eles não vão intervir porque é un “assunto entre hondurenhos”. Dessa forma, os golpistas ganham tempo à medida que nos aproximamos da data das eleições e a intranquilidade cinde a base da Frente de Resistência. Em sexto lugar, e este talvez seja o pior aspecto, é que o processo de negociação contribui para a desmobilização ou para desviar a mobilização da Resistência do que deveria ser seu objetivo central. Na atualidade o eixo da luta já não é a rua mas a mesa de negociação. Enquanto o Diálogo está vigente, a luta se faz, não para tirar o governo de Micheletti, mas para fortalecer a posição política da Comissão Negociadora do presidente Mel. Ademais, o diálogo tem um efeito psicológico real na base; nossos companheiros se perguntam: “para que vamos expor nossa segurança se ao final sairão acordos no diálogo; é melhor esperar”. O Diálogo está cumprindo assim o objetivo de desestimular a mobilização social. Quem se mostra muito otimista sobre este processo argumenta que a restituição do presidente poderá mudar as coisas “porque uma vez no poder”, 18 Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009 Añno 2009 dizem, “Mel terá possibilidades distintas das que tem agora”. É uma ilusão! Se o Presidente for restituído por essa via, não me cabe a menor dúvida de que os golpistas, que têm as armas e os meios de comunicação à sua disposição, poderão impor suas condições ao presidente e poderão tê-lo onde e quando quiserem, inclusive na prisão (recordemos que há uma “ordem de captura” emitida pela Corte Suprema), para se assegurar de que estará incomunicável e que suas ordens não serão conhecidas, cumpridas ou sejam obstaculizadas. Se isso é assim, que vantagem teria a Resistência de ter um presidente prisioneiro em seu cargo? Mesmo com todas as desvantagens assinaladas, o presidente mantém-se na negociação para chegar à assinatura do Acordo de San José, confiando na bondade dos organismos internacionais e no governo norte-americano, autor intelectual do golpe. Nada mais equivocado. Pior ainda, o presidente tem uma estratégia suicida de ceder em todos os pontos (governo de integração com os golpistas, renúncia à Constituinte, aceitar as eleições, etc.) sabendo que, se a restituição ocorrer, ele teria que cumprir todas as condições que forem aceitas, o que a meu ver é indigno. Tudo indica que o presidente busca a restituição a todo custo - embora seja apenas simbólica - porque “o importante é reverter o golpe”. Lamento discrepar do senhor presidente, mas devo dizer que uma restituição assim é inservível para o povo e, em troca, é útil para legitimar as eleições dos golpistas que, afinal de contas, são seu objetivo principal. Conseguir uma restituição desta forma não significaria uma reversão do golpe, não seria nenhum triunfo para o povo - porque nosso inimigo alcançaria seu propósito e nós não - mas seria uma espécie de “normalização do golpe”, ante cujas consequências negativas já não teríamos a mesma solidariedade internacional porque esta reconheceria o governo golpista “legalizado” por obra e graças a este acordo. Por conseguinte, um processo desse tipo não poderia constituir nenhum modelo digno de ser imitado por nenhum país do mundo, mas um bom exemplo de como não se deve “solucionar” um Golpe de Estado. Vale a pena que o presidente e a Resistência mantenhamos essa estratégia? A Frente e a estratégia da resistência pacífica Frente ao panorama desolador da negociação e do Acordo de San José, há uma alternativa: a luta pela derrubada da ditadura com as forças da Resistência. Parece tão difícil, mas é possível consegui-lo, e o primeiro passo para isso é corrigir nossos erros. A Resistência é un movimento social colossal. Nunca ocorreu em Honduras algo igual. Nem sequer a greve de 1954 foi semelhante. Milhões de pessoas saíram às ruas dirigidas pela Frente Nacional de Resistência contra o Golpe de Estado, a qual propôs os seguintes objetivos: 1) O retorno da ordem constitucional, 2) a restituição de Manuel Zelaya Rosales a seu cargo; e, 3) a convocação de uma Assembleia Nacional Constituinte. É tão poderoso que os estrategistas das Forças Armadas tiveram que recorrer a tudo o que têm para contê-la. Mas, vale a pena perguntar-se: acaso pode haver restituição enquanto Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009 19 Aññno 2009 Micheletti e sua quadrilha permanecerem no poder? Pode haver restituição à ordem constitucional se os mesmos golpistas continuarem nas instituições chaves como o Congresso, a Corte Suprema, etc.? Poderá haver convocação a uma Constituinte se os golpistas atuais ou seus sucessores, que surgirem da farsa eleitoral de novembro, permanecerem? A experiência demonstrou que sem a queda do regime golpista é impossível uma restituição digna e útil do presidente, e muito menos será possível a convocação de uma Assembleia Constituinte como o povo espera. Então a pergunta é obrigatória: se a Resistência teve tanta força social, como é que em três meses e meio de luta não conseguimos a queda do governo usurpador de Micheletti e Romeo Vásquez? A queda do governo golpista deve ser o primeiro objetivo e o centro da estratégia A resposta a essa pergunta não é simples. Após a ruptura de todos os obstáculos ideológicos e políticos que mantinham o povo na obscuridade, o atual regime só se sustenta pela força das armas. O enorme dispositivo militar mostra o que nós enfrentamos. Mas todo o povo, liberado de suas amarras, teve que enfrentar o mesmo desafio. Em geral, não são as armas, mas a disposição ao sacrifício de um povo que leva à vitória das revoluções. Não há exército que possa contra um povo completamente levantado, que multiplica em dezenas de milhares as frentes de luta, em cada aldeia, bairro, esquina e casa. Assim se sucedeu em Cuba e na Nicarágua. É a lei de toda revolução. Agora, se bem que não resulta fácil organizar algo assim, podemos dizer que em Honduras estão dadas as condições para fazê-lo. O povo quer e é a maioria. É questão de propô-la. Minha tese é que este governo não caiu porque a condução da Frente Nacional contra o Golpe de Estado não propôs o objetivo de derrotá-lo. Por incrível que pareça, a direção da Frente evitou avançar à revolução. Desde o princípio, a Frente apostou que Mel seria restituído, não por uma insurreição popular verdadeira, mas pela ação da diplomacia internacional, encabeçada pela OEA e os Estados Unidos. A frente assumiu que seu papel neste esquema é pôr a mobilização de massas como uma força de pressão social a serviço da negociação do Pacto de San José, e não em função da derrubada do governo usurpador. De fato, a queda do governo não aparece como um dos três objetivos centrais da Frente, quando deveria ser o primeiro. Apenas o povo parece ter claro a ordem correta das tarefas políticas do momento, quando grita nas ruas “qual é o caminho”4. O problema da forma de luta A falta desse objetivo é traduzida, por sua vez, em problemas de estratégia: Tanto o presidente Manuel Zelaya como a direção da Frente Nacional de Resistência definiram-na como uma “resistência pacífica”, “não violenta”, que se baseia na desobediência civil e nas ações de protesto sem o uso de armas. De fato, o método invariavelmente usado nestes 115 dias de resistência foi a marcha diária. Não questiono que um movimento de massas, que não conta com recursos para derrotar o exército da oligarquia no início, utilize a tática da “resistência 20 Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009 4 Nas marchas diárias, os manifestantes gritavam a seguinte palavra de ordem: “Cuál es la ruta. Sacar a ese hijoeputa”. Añno 2009 pacífica”, não armada, para evitar ser massacrado. Mas já levamos três meses e meio das maiores mobilizações de nossa história, e com menos que isso já caíram vários governos em nosso país. Então algo não anda bem com essa tática. A resistência pacífica, da mesma forma que qualquer outra tática, não deve ser considerada uma forma de luta permanente e estática. Se o que se necessita é a derrubada de um regime opressor, a estratégia deve ser adequada a esse objetivo, levando em conta a correlação de forças. A uma correlação de forças favorável e uma maior disposição na consciência do povo – como sucedeu em Honduras desde 28 de junho - devem corresponder formas de luta mais duras e radicais, começando por marchas, ocupações, greves parciais, culminando com a greve geral insurrecional e as milícias populares, como as forma mais elevadas de mobilização revolucionária. Mas isso não é o que ocorreu em nosso caso porque a forma de luta continuou sendo a mesma todos os dias… durante 115 dias. Este “pacifismo radical” e estático não é casual, porque nesta estratégia se busca não entorpecer a saída negociada e não se busca a saída revolucionária. Enquanto o presidente Mel esteve no exterior, tal estratégia serviu-lhe para sustentar sua pressão diplomática para que o regime de fato negociasse o Plano Arias. Uma vez em Honduras, Mel continua alentando a mobilização da Frente Nacional de Resistência como un meio para pressionar na mesa de negociação, como o mostra seu recente chamado à luta quando o Diálogo Guaymuras ameaçava fracassar pelas posições intransigentes dos golpistas. Mas já não se trata de que a Resistência siga sendo um instrumento, mas que seja o autor da mudança. Necessidade de que a base seja escutada Isso requer uma mudança de atitude de nossa direção. Apesar de que a base exija a gritos uma mudança de estratégia, essa reivindicação chega a ouvidos surdos. E ainda se deforma esta inquietude dizendo que quem reclama essa mudança defende a luta armada, a guerrilha e coisas pelo estilo, para fazê-la aparecer como muito difícil. Para mim, as atividades de combatentes guerrilheiros isolados das massas não são úteis, mas prejudiciais porque justificam a repressão. Qualquer forma de luta não serve de nada se não conta com a participação ativa da maioria do povo. Simplesmente dizemos que a direção deve saber quando a base está disposta a avançar mais além de seus esquemas pré-concebidos. A que tipo de luta estarão dispostas? Que elas o decidam, consultemo-las! O problema é que não são escutadas e as castramos de antemão dizendo-lhes que quem se põe beligerante é um “provocador”. Quem somos os dirigentes para crer saber de tudo? Necessidade de independência e complementariedade da Frente em relação ao presidente Voltando à estratégia do presidente, pode-se entender a partir de sua realidade. Recordemos que o presidente Mel e seus acompanhantes na Embaixada do Brasil encontram-se em condições de cativeiro muito precárias; sobrevivendo dia a dia, comendo às vezes, num absoluto confinamento e Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009 21 Aññno 2009 submetidos a tratamento torturante pelos corpos policiais e militares. É compreensível porque se aferra tanto à negociação, dependente dos organismos internacionais. Mas outra coisa é que a Frente aceite esta estratégia como própria. Mesmo que tenhamos objetivos comuns com o presidente, encontramo-nos em condições muito díspares, dependemos de, e nos devemos a, forças muito distintas, e por isso é necessário que a Frente mantenha una relação de independência e ao mesmo tempo de complementariedade com ele. Nem podemos exigir que faça algo mais do que pode, nem ele tampouco pode pretender que a Frente Nacional de Resistência faça algo que não esteja em nossas possibilidades ou que nos limite a não fazer algo que possamos fazer. Não é a primeira vez que as decisões do presidente, mal assessorado e com evidente desconhecimento das condições em que realizamos a luta, afetaram o movimento da Resistência, a qual, devido a sua lealdade a ele, seguiu-o incondicionalmente. Isso sucedeu quando fez o chamado a tomar o Aeroporto Toncontin em 5 de julho; ou seu chamado para que o povo fosse recebê-lo na fronteira com a Nicarágua, que conduziu milhares de companheiros a uma ratoeira; ou o chamado à “ofensiva final” em 22 de setembro para a qual não havia condições objetivas. Com essas iniciativas aventureiras e, devo dizê-lo, irresponsáveis, expôs o povo a uma maior repressão e seguidamente se produziu um declínio da mobilização social. Com muito esforço, a Resistência conseguiu recuperar-se dessas conjunturas. E agora resulta que o Presidente nos meteu em outra: o Diálogo Guaymuras. Por sorte, Juan Barahona pôde sair a tempo antes que tivesse de assinar o inaceitável. En ocasiões teremos opiniões divergentes sobre a rota a seguir nesta luta, mas para chegar a sua maioridade, a Resistência deve aprender a não se deixar impor decisões de seus aliados e a tomar as próprias, em função de sua realidade. Se o presidente for respeitoso a seu povo, deverá aceitar as decisões estratégicas que sua organização representativa estabelecer, que é a Frente Nacional de Resistência. Além disso, a direção da Frente deve escutar mais sua base, com mente aberta, e menos aos hóspedes da Embaixada do Brasil. Com certeza, necessitamos também coordenar com o presidente, porque em meio a uma luta contra a ditadura e o imperialismo é necessária a mais ampla unidade de ação. A fórmula deve ser: independência e unidade de ação naquilo em que coincidamos. Apenas se conseguirmos um equilíbrio entre essas duas tendências, poderemos avançar até o objetivo comum; se não, os erros de um arrastarão o outro ao abismo. Propostas para avançar Em base a todo o anterior, permito-me propor: Que o Presidente Manuel Zelaya: • Retire-se de imediato do Diálogo Guaymuras, justificando-o na mais que evidente falta de vontade dos golpistas em ceder o poder e no não cumprimento de condições mínimas para realizar um diálogo sem repressão nem meios de coação. 22 Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009 Añno 2009 • Dê por terminada a gestão do Acordo de San José por não ajustar-se a uma saída justa da crise gerada pelo Golpe de Estado e exija à OEA prenderse à resolução de sua Assembleia Geral que ordena seu Secretário Geral a defesa da restituição imediata e incondicional do presidente. • Denunciar o papel sinistro e confabulado com os golpistas que joga o governo dos Estados Unidos. • Chame a recuperar uma aliança estratégica com a Alba para contribuir desde o plano internacional com a derrubada da ditadura, aproveitando sua manifesta disposição em tal sentido, expressada em sua recente cúpula na Bolívia. Que a Frente Nacional de Resistência contra o Golpe de Estado: • Denuncie o Diálogo Guaymuras como una estratégia dilatória da ditadura para ganhar tempo à espera do processo eleitoral e chame o presidente Manuel Zelaya a retirar-se do mesmo. • Denuncie o Acordo de San José como um instrumento do imperialismo norte-americano para impor uma falsa saída à crise gerada pelo Golpe de Estado, manietando o presidente Zelaya a condições inaceitáveis. • Defina em sua estratégia geral a derrubada do governo usurpador como o primeiro objetivo de nossa luta, ao redor do qual organizar toda a estratégia operativa. • Estabeleça uma estratégia de acumulação de forças progressiva para gerar condições para uma insurreição popular no médio prazo, cuja primeira meta seja conseguir a não realização da farsa eleitoral de novembro. Para isso, poderia começar a desenhar e executar ações que golpeiem a economia dos golpistas, em especial, preparando as condições para um “Paro” Cívico Nacional e para uma Greve Geral insurrecional. • Incorpore a autodefesa das mobilizações na estratégia geral da luta de rua. • Estabeleça as Mesas Comunitárias em todas as frentes locais da Resistência, como mecanismo de consulta às bases sobre o Acordo de San José, a Constituinte, as eleições e as estratégias de luta. • Dialogue com o presidente sobre a necessidade de que ele não tome iniciativas que possam comprometer a Resistência, sem que esta seja informada ou sem lhe dar a oportunidade de expressar sua opinião. Além disso, que respeite a decisão que a respeito tome a direção da Frente. Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009 23 Aññno 2009 Do “Novo Século Americano” de Bush à nova tática política de Obama Alejandro Iturbe Frente Obrero Socialista (FOS) - Argentina O golpe de Estado em Honduras abriu um debate na esquerda latinoamericana sobre o papel de Barack Obama nele e se o novo governo dos EUA representa ou não uma profunda mudança na tática política do imperialismo norte-americano para enfrentar a situação mundial. Vários setores, em especial alguns influenciados pelo chavismo, afirmam que, em sua essência, Obama mantém a mesma política de Bush. Recentemente foi publicado A “Doutrina Obama” ante a maior depressão da história1, que analisa as características da atual crise econômica, suas perspectivas e seu impacto na situação mundial e na política do imperialismo norte-americano. Em sua parte econômica, o material analisa com profundidade a atual crise e suas perspectivas. Neste terreno, temos vários acordos, em especial quando caracteriza a fragilidade da “recuperação” em curso. Mas estas coincidências terminam quando aborda as conseqüências da crise econômica sobre a política do imperialismo norte-americano. Tradução Marcos Margarido Um projeto neofascista? Em sua introdução, o material afirma: Governos e elites do primeiro mundo… estavam conscientes do que vinha ocorrendo enquanto faziam preparativos para impor seus interesses através de uma doutrina de guerra permanente […] É por isso que, apesar do fim da guerra fria, o gasto militar, sobretudo nos EUA, continuou crescendo até as cifras alucinantes da atualidade (…) um novo holocausto para a humanidade está sendo preparado para controlar o mundo, recolonizá-lo, destruir os avanços democráticos e impor o neofascismo a nível planetário. Nesse marco, as perspectivas para a América Latina são analisadas: O golpe militar em Honduras não pode ser visto como mais um golpe tradicional num pequeno país dos tempos da guerra fria. Precedido pela volta da 4ª Frota dos EUA para a América Latina em 2008, de um ataque militar da Colômbia a território do Equador e, simultaneamente, ao acordo de instalação de sete bases militares dos EUA 24 Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009 1 Wim Dierckxsens (Holanda); Antonio Jarquin T. (Nicarágua); Reinaldo Carcanholo (Brasil); Jorge Beinstein (Argentina); Paulo Nakatani (Brasil) e Rémy Herrera (França), membros da equipe do Observatorio Internacional de la Crise. Citações em wwwobservatoriodelacrisis.org/readarticle.php?article_ id=265. Añno 2009 na Colômbia, são eventos que não podem ser desconectados um do outro; eles podem ser considerados como um ataque militar dos EUA contra “toda a América Latina”. Esses fatos devem de ser analisados não só no contexto local e regional, mas, também, dentro do contexto da estratégia global pós-guerra fria dos EUA sobre a Eurásia e o resto do mundo e no contexto da grave crise econômica atual. E conclui que o golpe de Honduras: Longe de ser um anacronismo, marca, na opinião de Rick Rozoff, “um precedente para o futuro. Assim como o Afeganistão transformou-se na principal frente de guerra durante o último ano (incluindo os sete meses de Obama), também parece haver planos de agressão militar à América Latina, relativamente isolada desses conflitos nos últimos dez anos” (Rick Rozoff, US escalates war plans in Latin America). O motivo geopolítico é a eventual ampliação da guerra às proximidades com a China e a Rússia. Isso exige uma segurança maior na oferta de petróleo e recursos naturais aos EUA. Em tempos de guerra é arriscado e inseguro o transporte pelos oceanos. Os EUA necessitam... assegurar-se dos recursos naturais... da América Latina. O perigo, na conjuntura da crise, foi que o continente estava definindo cada vez mais seu próprio rumo com a autodeterminação sobre tais recursos. Os EUA queriam dar um basta e apoiou o golpe militar no elo mais fraco do continente. Em outras palavras, para os autores, Obama não só não representou nenhuma mudança em relação à política de Bush, mas também, pressionado pelas consequências da crise econômica sobre seu país, estenderá geograficamente os conflitos bélicos e aprofundará sua metodologia de guerras, agressões e golpes. Mudanças na realidade, mudanças na tática Cremos ser uma análise profundamente equivocada. Opinamos que, em relação a Bush, Obama expressa uma grande mudança na tática política do imperialismo para enfrentar a situação mundial, devido a alterações da realidade: a derrota do projeto de Bush frente à luta do movimento de massas e os riscos de explosões sociais que a atual crise econômica implica. Trataremos de demonstrar esse equívoco e fundamentar nossas opiniões. Não porque queiramos embelezar Obama e sua política (deixamos isso a quem lhe outorgou recentemente o Premio Nobel da Paz e outros que, como Fidel Castro, saudaram esta decisão), mas porque, como marxistas, para modificar a realidade devemos compreendê-la tal qual é. Para evitar falsas discussões, não temos nenhuma dúvida de que Obama, como presidente dos EUA, defende os interesses imperialistas da mesma forma que Bush. Isto é, sua estratégia continua sendo a recolonização da maioria do planeta. Tampouco cremos que seja um pacifista que abandona a “ação militar” (basta ver sua política na guerra do Afeganistão, a manutenção da ocupação de Haiti ou seu plano de utilização das bases militares da Colômbia). Mas a derrota que o projeto de Bush sofreu no Iraque e na Venezuela, e Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009 25 Aññno 2009 o curso desfavorável da situação no Afeganistão e no Oriente Médio, etc., obrigaram o imperialismo a mudar sua tática. Foi a luta das massas e as derrotas infligidas à política do imperialismo, não a “boa vontade” de Obama, que impuseram esta mudança de tática, acentuada pelos riscos da situação social derivada da pior crise econômica capitalista desde 1929. Se Obama e Bush defendem os mesmos interesses imperialistas, as condições em que devem fazê-lo são diferentes e o imperialismo necessita adaptar-se a isso. O próprio Bush já havia sido obrigado a começar este ajuste, mas o atual presidente expressa essa mudança com muito mais clareza. O Projeto para um Novo Século Americano Parece-nos necessário voltar um pouco aos objetivos do projeto defendido por Bush para entender melhor o impacto de sua derrota para o imperialismo norte-americano. O Projeto para um Novo Século Americano (PNAC em inglês) iniciou-se formalmente em 3 de junho de 1997 com sua constituição por parte de uma corrente de extrema direita do Partido Republicano2. Em sua declaração de princípios, o PNAC afirma que seu principal objetivo é manter “a liderança, os interesses e os valores americanos no mundo”, no próximo século XXI, com seus desafios e as mudanças ocorridas no mundo. Critica o governo de Bill Clinton (A política exterior e de defesa americanas estão à deriva) e também os setores conservadores republicanos tradicionais porque “não propuseram decididamente uma visão estratégica do papel da América no mundo… nem lutaram por um orçamento de defesa para manter a segurança americana e o avanço dos interesses americanos no novo século”. Mais adiante, afirma: Enquanto o século XX aproxima-se de seu fim, os EUA permanecem como a principal potência mundial. […] Estamos pondo em risco a capacidade da nação de enfrentar ameaças presentes e de lidar com desafios potencialmente maiores no futuro. […] Terão os EUA a resolução para desenvolver um novo século favorável aos interesses e princípios americanos? Como resposta, apresenta suas propostas: • Uma política exterior que, audaz e intencionalmente, promova os princípios americanos no exterior, e uma liderança nacional que aceite as responsabilidades globais dos EUA. • Aumentar significativamente os gastos com defesa… • Fortalecer nossos laços com os aliados democráticos e desafiar os regimes hostis a nossos interesses e valores... • Aceitar a responsabilidade do papel especial dos EUA em preservar e estender uma ordem internacional favorável a nossa segurança, nossa prosperidade e nossos princípios. Esta declaração ia acompanhada de uma análise completa da situação política, econômica e militar das distintas regiões do mundo e os interesses norte-americanos em cada uma delas. Assinam-na, entre outros, Jeb Bush (irmão de George W. e governador do estado da Flórida na época); Dick Cheney (futuro vice-presidente), Donald Rumsfeld (futuro secretário de Defesa) e Paul Wolfowitz (o arquiteto da política de Bush para o Iraque). 26 Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009 2 Em www.newamericancentury.org Añno 2009 Isto é, não se tratava de um projeto improvisado nem de uma resposta conjuntural aos atentados de 11 de setembro de 2001, mas de um projeto muito ambicioso e de alcances estratégicos para consolidar e ampliar por um século a hegemonia econômica-política-militar dos EUA no mundo. Para isso, era necessário intervir militarmente em qualquer lugar do mundo onde os interesses e os “valores” dos EUA (leia-se direito ao saque de recursos naturais, como petróleo e gás, e a extração de mais-valia) fossem questionados ou onde houvesse um “regime hostil” que ousasse desafiar essa hegemonia. Alguns analistas qualificaram este projeto como “neofascista”. Parece-nos mais exato chamá-lo de “bonapartista”, de reafirmação da hegemonia mundial e propenso ao amplo uso da “opção militar”, avançando na disposição de criar novas situações coloniais em alguns países. A guerra contra o terror e a luta contra o “eixo do mal” O governo de Bush nasceu débil: sua eleição estava questionada (teve menos votos populares que Al Gore) e os EUA viviam uma crise econômica. Embora o projeto não surgisse com os atentados de 11 de setembro, estes criaram as condições para seu respaldo pelo conjunto da burguesia norteamericana e um forte apoio popular para desenvolvê-lo em grande escala, por poder apresentá-lo como a política de “defesa” de um país que estava sendo “agredido” (75% da população apoiava a invasão do Afeganistão). A partir dos atentados, Bush incorpora dois conceitos chaves. No discurso de 21 de setembro de 2001 ao Congresso, fala, pela primeira vez, da “guerra contra o terror”, uma virtual declaração de guerra contra o regime talibã afegão, acusado de ser o centro de uma “rede terrorista mundial”3. O ataque ao Afeganistão seria só o início desta guerra: Nossa guerra contra o terror começa com o Al Qaeda, mas não termina aí. Não terminará até que cada grupo terrorista tenha sido encontrado, detido e vencido. […] Nossa resposta envolve muito mais que uma represália instantânea e golpes isolados. Os norte-americanos não devem esperar una batalha, mas uma longa campanha como jamais viram antes. […] Deste dia em diante, qualquer nação que continue dando refúgio ou apoiando o terrorismo será considerada um regime hostil pelos EUA. O rápido triunfo obtido no Afeganistão (outubro de 2001) fez com que Bush subisse um degrau e incorporasse (em 29 de janeiro de 2002) o conceito de “eixo do mal”. Isto é, aqueles países que mantinham algum grau de autonomia dos EUA. A desculpa, desta vez, não só era o “apoio aos terroristas”, mas também a posse de armas nucleares e de “destruição em massa” (ou supostas intenções de desenvolvê-las) e, por isso, representavam uma “ameaça”. Bush afirmou que o “eixo do mal” era integrado pelo Iraque, Irã e Coreia do Norte. Depois, a Líbia e a Síria foram agregadas e, em algumas declarações, representantes de seu governo também incluíram a Venezuela, Bielorrússia e até a Bolívia. Bush termina seu discurso com uma clara ameaça: “Países como estes, e seus aliados terroristas, constituem um eixo do mal que se arma para ameaçar a paz mundial”. 3 Foi certamente uma ironia da história, já que a criação da organização talibã havia sido impulsionada pela própria CIA para combater a invasão soviética nesse país, na década de 1980. Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009 27 Aññno 2009 A próxima ação de Bush foi a invasão ao Iraque e a derrubada de Sadam Hussein (março-maio de 2003), considerado um passo prévio a um ataque ao regime iraniano dos aiatolás (com o qual tinha contas pendentes desde 1979). Embora não fossem realizados por tropas norte-americanas, consideramos que o golpe contra o governo de Hugo Chávez (12 de abril de 2002); a invasão do exército israelense ao Líbano (julho de 2006) e os reiterados ataques à Faixa de Gaza foram parte da luta contra o “eixo do mal”. Vejamos então, quais foram os resultados destas batalhas e da “guerra contra o terror”. O fracasso do golpe na Venezuela Apesar de seu primeiro e rápido triunfo na derrubada do regime talibã, a LIT-QI assinalou, desde o início, que a resistência do movimento de massas era o principal obstáculo ao projeto de Bush: “No entanto, e apesar da vitória no Afeganistão, o imperialismo não conseguiu derrotar o conjunto do movimento de massas e a reação destas exacerbou-se em vários pontos do planeta criando um quadro crescente de polarização da luta de classes”4. A primeira derrota de Bush ocorreu na Venezuela. Em 11 de abril de 2002, um golpe cívico-militar, incentivado e respaldado por seu governo, derrubou Hugo Chávez e instalou um governo presidido pelo líder burguês Pedro Carmona. No entanto, uma grande mobilização de massas, combinada com a divisão nas Forças Armadas, removeu o governo golpista e obrigou-o a restituir Chávez, como a única maneira de controlar a situação. Meses depois, houve uma nova tentativa de “quebrar” o governo de Chávez, por meio de um lock out patronal e pelos gerentes pró-imperialistas da petrolífera estatal PDVSA, mas também foi derrotado pela mobilização das massas. A partir desta derrota, Bush viu-se obrigado a mudar sua política para a Venezuela. Embora os enfrentamentos retóricos fossem mantidos, Bush deixou de apoiar a derrubada de Chávez; as empresas norte-americanas (e a própria burguesia golpista venezuelana) começaram a fazer negócios com seu governo, aumentaram fortemente seus investimentos (especialmente nas áreas de petróleo e automobilística) e passaram a apostar num futuro desgaste eleitoral de Chávez. Iraque: o Vietnã de Bush Mas foi no Iraque onde Bush apostou mais forte e jogou a sorte de seu projeto. As forças imperialistas invasoras conseguiram um rápido triunfo com a derrota do regime de Sadam Hussein. Mas essa rápida guerra de ocupação, aparentemente triunfante, transformou-se rapidamente numa guerra de liberação do povo iraquiano contra as tropas ocupantes, cada vez mais desfavorável para o imperialismo, até tornar-se “uma guerra impossível de ganhar”. Os sucessivos planos para estabilizar e controlar o país foram fracassando até chegar à decisão atual de retirar as tropas e deixar o combate ao caos em que o país se converteu a cargo um governo iraquiano e suas Forças Armadas. Existem questionamentos à comparação do resultado da guerra do Vietnã com a do Iraque. A derrota imperialista no Vietnã ficou marcada pela imagem dos helicópteros dos EUA abandonando apressadamente Saigon e muitos funcionários do governo títere do Vietnã do Sul tentando desesperadamente fugir com eles. E esta retirada levou a que o exército doe Vietnã do Norte 28 Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009 4 WELMOWICKI, J. Situación Mundial: meses después la cinchada se tensa. Marxismo Vivo N. 5, abril 2002. Añno 2009 derrotasse rapidamente os restos do governo títere e reunificasse o país. No Iraque, em troca, não há uma “fuga” apressada das tropas estadunidenses, mas uma saída ordenada e um deslocamento de vários milhares de homens a “superbases” no Kuwait e outros países da região. E não há um inimigo centralizado e unificado que tome o poder, mas a divisão de fato de um país caótico em três regiões autônomas, entregues à burguesia xiita no sul, à sunita no centro e à curda no norte. Um governo central seria mantido para controlar as fontes de petróleo e as Forças Armadas. Não está claro se este precário equilíbrio será mantido quando as tropas dos Estados Unidos se retirarem e, portanto, se será possível cumprir os planos e as promessas de Obama. Embora importantes, estas diferenças são secundárias, porque o imperialismo norte-americano não conseguiu nenhum dos objetivos políticos, militares e econômicos estabelecidos ao invadir o país e, por isso, retira-se claramente derrotado. Por outro lado, o impacto da derrota no Iraque é muito superior à sofrida no Vietnã. No sudeste asiático, estava em jogo essencialmente um problema político-militar, já que a região não tinha um valor econômico nem geopolítico estratégico para a dominação imperialista. Mas o Iraque, e o Oriente Médio de conjunto, têm uma importância econômica e geopolítica estratégica qualitativamente superior por suas riquezas em petróleo e gás. Por isso, a derrota é muito mais dura e se transformou em um ponto de inflexão do curso da “guerra contra o terror” e de todo o projeto de Bush, voltando-se como um bumerangue sobre os EUA, pois gerou a derrota de Bush nas eleições legislativas de novembro de 2006 e a dos republicanos nas presidenciais, em novembro de 2008. Frente à situação no Iraque e o recrudescimento da guerra no Afeganistão, o imperialismo tentou dar um golpe de força para reverter a situação: a invasão israelense ao Líbano, em julho de 2008. Com o pretexto de recuperar um soldado israelense capturado, as Forças Armadas israelenses tentaram destruir o Hezbollah. Mas, frente à heroica resistência das massas libanesas, este objetivo terminou numa dura derrota para o então primeiro ministro israelense, Ehud Olmert, e o próprio Bush. Israel saiu muito enfraquecido do Líbano e o projeto de Bush sofreu outra dura derrota que agravou sua situação. Eles próprios afirmam A definição de que a guerra de Iraque terminou numa derrota, e sua comparação com Vietnã, não é somente nossa, mas dos próprios analistas políticos da imprensa imperialista. Um editor do New York Times, no início de 2007, via assim a situação militar no Iraque e suas consequências políticas: O problema é que ninguém mais quer apostar em Bush. O que mudou na guerra do Iraque, nos últimos meses, foi a situação nos Estados Unidos. (...) Existe hoje um consenso entre os políticos republicanos e democratas que não existia nem sequer nos momentos finais da guerra do Vietnã. (…) No momento da derrota, Bush está se tornando ainda mais perigoso, aumentando as apostas quando qualquer outro reconheceria que é hora de retirar-se da mesa5. 5 WAACK, W. George W. Bush: Gambler Who Has Run Out of Luck, publicado em 29/01/2207 emwww. wa t ch i n g a m e r i c a . com/oglobo000015. shtml. Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009 29 Aññno 2009 Uma das primeiras consequências da situação foi o abandono da intenção de Bush de invadir o Irã: a própria Condoleeza Rice declarara, em 2006: “Irã não é o Iraque”6. Por outro lado, a ajuda do regime iraniano transformava-se numa questão fundamental para “estabilizar” o Iraque, por sua influência nas organizações políticas xiitas iraquianas que participavam dos governos títeres. Afeganistão: o Iraque de Obama? A situação do imperialismo ficou agravada pelo curso cada vez mais desfavorável na guerra do Afeganistão. Longe de marchar até a vitória, esta guerra parece encaminhar-se até una nova derrota militar do imperialismo. Consciente deste perigo, Obama tenta una política de fortalecer sua posição militar para conseguir uma saída para a guerra, negociada com o Talibã. A guerra “contra o terror” teve início com a promessa de “apagar o Talibã da face da Terra” e liquidar o regime iraniano. Seu resultado final é que este regime é hoje uma peça chave para o desejo imperialista de “estabilizar” a região além de se buscar negociações com o próprio Talibã. Como se pode qualificar o resultado desta guerra se não como uma clara derrota do imperialismo? Neste marco, falar de uma “eventual ampliação da guerra nas proximidades da China e Rússia” parece um exercício de ficção política. Alguém imagina que os EUA possam atacar a China, destino dos maiores investimentos imperialistas nas últimas décadas? Tampouco se vislumbra um conflito com a Rússia, além dos choques ocorridos no conflito entre a Geórgia e a Ossétia. Pelo contrário, a política de Obama é a de pactuar com Putin e, por isso, liquidou o projeto de instalação do escudo antimísseis na Europa Central. A crise econômica e as contradições do imperialismo Outra das razões que os autores dão para o recrudescimento de um projeto neofascista é o impacto da atual crise econômica nos países imperialistas e sua política para enfrentá-la: O nacionalismo está de regresso nas diferentes políticas dos países centrais. O mesmo representa uma atitude coletiva nacional de salvar-se à custa eventual das demais nações. Estas tendências protecionistas, xenofóbicas e nacionalistas são ingredientes para fomentar o neofascismo. Aqui se misturam questões corretas e equivocadas. É totalmente certo que a crise econômica faz com que os governos dos países imperialistas alimentem tendências xenófobas em sua população e façam duras leis contra os trabalhadores imigrantes. É uma forma de descarregar a crise sobre o setor mais frágil de suas classes operárias. Ao mesmo tempo, tenta desviar a bronca dos trabalhadores “nacionais” contra as empresas e os governos em direção aos trabalhadores imigrantes que lhes “roubam” o trabalho e os salários, como se vê com clareza em países como a Itália, França ou a Inglaterra. Mas, nas últimas duas décadas, deu-se um processo de “internacionalização” da produção com um crescente volume de investimentos na China, Índia, os tigres asiáticos e outros países, buscando menores custos trabalhistas e maiores taxas de lucro. Hoje, grande parte da produção industrial das empresas imperialistas ocorre nesses países e se vende nos países centrais, em um circuito essencial para seus lucros. Por isso, é praticamente impossível que os 30 Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009 6 PORTER, Gareth. Historia oculta del fracaso de Bush e Rice, publicado pela Agência IPS, 14/06/2006. Añno 2009 países imperialistas, ou os países periféricos mais fortes, girem para políticas isolacionistas ou protecionistas, como ocorreu depois da crise de 1929. Esta realidade apresenta-se como uma contradição muito grave ao imperialismo. Se seguir a lógica de reduzir custos trabalhistas e lucros, deve manter e aprofundar o atual circuito econômico, enquanto aumenta os ataques a suas próprias classes operárias. Foi o que fez a GM ao fechar várias fábricas e demitir 20 mil de seus 60 mil trabalhadores nos EUA, enquanto mantinha suas fábricas e pessoal na China e no Brasil. Se o fator principal que considera, por outro lado, for o temor aos enfrentamentos com suas próprias classes operárias, atuará como Sarkozy, na França, que forneceu empréstimos à Renault com a condição de que as fábricas no país fossem mantidas e, em último caso, fechasse a Dacia na Romênia. Ou como Merkel, na Alemanha, que pôs dinheiro para comprar a Opel, tentando salvar as fábricas e o pessoal do país em detrimento das plantas da Suécia e Bélgica. Pesando tais contradições, os governos e empresas imperialistas atacam seus próprios trabalhadores, mas o fazem de modo cuidadoso, tentando evitar um enfrentamento frontal e global, em especial na Europa, precisamente pelo contexto político desfavorável que lhes deixou a derrota do governo Bush. Assim, junto às demissões e reduções salariais, aplicam-se medidas como a extensão do prazo do seguro desemprego. Tanto as contradições quanto essas medidas são o resultado da debilidade do imperialismo e não de sua força. América Latina: golpes por todos os lados? Analisemos agora a situação da América Latina. Segundo os autores, a combinação da necessidade de assegurar o abastecimento dos recursos naturais do continente, ante “uma ampliação da guerra” na Ásia; a conjuntura de crise econômica e o fato de que “o continente estava definindo cada vez mais seu próprio rumo com autodeterminação sobre tais recursos”, abre a perspectiva de que o governo dos EUA impulsione golpes de Estado em toda a América Latina (supomos que principalmente contra aqueles governos que estariam resistindo e defendendo “a autodeterminação”). Novamente, elementos corretos misturam-se com outros que não o são para uma conclusão equivocada. É certo afirmar que o imperialismo norteamericano necessita assegurar o abastecimento dos recursos naturais da América Latina, acentuada pela situação militar no Oriente Médio e a crise econômica. Mas é equivocado dizer que o abastecimento será garantido por meio de uma política geral de apoiar golpes de Estado. E por duas razões. A primeira é que, como temos analisado, a derrota do projeto de Bush fez com que o imperialismo não busque atualmente novas frentes de conflito ou de enfrentamento. Ao contrário, busca defender seus interesses através da negociação e do “consenso”. Por isso, levou países como o Brasil, México ou a Argentina ao G-20 (na ficção de que intervirão nas “grandes decisões econômicas mundiais”). E, nas situações de conflito, impulsiona saídas “negociadas” que lhe sejam favoráveis. Por isso, no recente golpe de Honduras, sua política foi promover o Pacto de San José e depois o Acordo de Guaymuras. Antes, na Bolívia, vimos como sua linha não foi incentivar a queda de Evo Morales, mas um acordo entre Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009 31 Aññno 2009 seu governo e a burguesia da Meia Lua através da Unasul (nova peça chave para defender seus interesses na América do Sul com uma “cara regional”). Nesta política, o Brasil e Lula (o “homem” de Obama na região) jogam o papel principal para encontrar as melhores saídas para o imperialismo. A segunda razão completa a primeira, contra o que dizem os autores do trabalho, não existem no continente latino-americano governos realmente anti-imperialistas ou que defendam uma real “autodeterminação sobre seus recursos naturais”, más além de suas retóricas ou de alguma medida parcial. É o próprio governo venezuelano de Chávez que assegura constitucionalmente os investimentos estrangeiros e entrega 50% do petróleo venezuelano às grandes petroleiras imperialistas; é o governo boliviano de Evo Morales que entrega a exploração do gás, petróleo e do minério de ferro bolivianos a empresas estrangeiras, é o de Correa, no Equador, que governa para as multinacionais mineiras. Por isso, a política do imperialismo para assegurar esses recursos naturais e conseguir seus objetivos hoje não é de golpes de Estado, mas de negociação e “consenso”. Hoje não busca derrotar os governos de Chávez, Evo e Correa, mas cooptá-los e associá-los no saque de seus países, dando-lhes, em troca, algumas migalhas para que possam desenvolver alguns “planos sociais”. Ao mesmo tempo, se bem que as bases da Colômbia, e outras no continente, ou a reativação da 4ª Frota representem um “posicionamento estratégico”, a atual política militar do imperialismo para a América Latina é atuar através de, ou com, a colaboração das Forças Armadas de países com governos surgidos de eleições, incluídos alguns daqueles que supostamente estariam ameaçados por perspectivas de golpes, como a Bolívia, Equador ou Nicarágua. Um primeiro exemplo é o Haiti, onde, com a cobertura da ONU, a Minustah é comandada pelo Brasil e integrada por tropas da Argentina, Chile, Uruguai e até a Bolívia, para reprimir o povo haitiano e garantir às multinacionais têxteis americanas os salários mais baixos do continente. Outro exemplo menos conhecido é o do exercício das Forças Aliadas Panamax 2009, realizado em setembro passado, com a desculpa de simular “a defesa do Canal do Panamá” frente a um suposto “ataque externo”. Dirigidos pelo Comando Sul do exército estadunidense, participaram 4500 soldados provenientes de 20 países (Argentina, Belize, Brasil, Canadá, Chile, Colômbia, Costa Rica, República Dominicana, Equador, El Salvador, EEUU, França, Guatemala, Holanda, Nicarágua, México, Panamá, Paraguai, Peru e Uruguai)7. A reação democrática A política aplicada atualmente por Obama não é nova. Na década de 1980, a LIT-QI a definiu como “reação democrática”. Isto é, a utilização das ferramentas da democracia burguesa (eleições, Parlamento) e das negociações e pactos para frear, desviar e inclusive derrotar ascensos do movimento de massas, com a ação militar passando a jogar um papel secundário e auxiliar. Embora se trate de una política defensiva, pois responde a determinadas condições da luta de classes mais desfavoráveis ao imperialismo, suas táticas podem ser muito ofensivas e conseguir importantes êxitos para o imperialismo. Assim ocorreu na década de 1980, depois da derrota no Vietnã e dos 32 Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009 7 Dados extraídos de www.southcom. mil/appssc/factfles. php?id=126 Añno 2009 triunfos das revoluções no Irã e na Nicarágua, e em meio aos processos que derrubavam as ditaduras latino-americanas. Os processos latino-americanos foram desviados através da reação democrática, tanto naqueles países que haviam vivido revoluções democráticas (como a Argentina e o Brasil) ou para evitá-las. O processo revolucionário centro-americano, aberto com a queda de Somoza, foi freado com os Acordos de Contadora (mesmo que aqui o aspecto militar estivesse mais presente). Finalmente, a restauração capitalista no Leste da Europa não foi o resultado de guerras e invasões, mas teve como componente central uma política de reação democrática. O que queremos enfatizar é que o imperialismo nem sempre aplica una política de guerras, golpes e invasões para manter seu domínio colonizador. Pelo contrário, que pode defender seus interesses e assegurar este domínio também através da política de reação democrática. Especialmente quando, como na atualidade, conta com a colaboração dos governos e das direções do movimento de massas. Novamente, qual é a atual política do imperialismo? Em resumo, como resultado da derrota do projeto Bush e da guerra contra o terror, Obama representou uma mudança na tática política com que o imperialismo norte-americano enfrenta os problemas da situação mundial. Passou da “unilateralidade agressiva” de Bush à “multilateralidade consensuada” representada por Obama. Isto é, uma ampliação da ação diplomática e dos âmbitos de tomada de decisões para “convencer” e conseguir o “consenso” para as políticas a serviço do imperialismo que, nestes momentos, simplesmente não podem se impor pela força. Uma mudança que determina agora um novo equilíbrio entre as negociações e a política militar ou de ameaças para alcançar os objetivos imperialistas. O centro passou a ser a “cenoura” (as negociações) enquanto o “garrote” é empregado como um fator auxiliar e coadjuvante. Por isso, os âmbitos diplomáticos, de negociação e de consenso recebem agora uma importância muito maior. Este é o verdadeiro segredo do “pacifismo” de Obama. Para todo os que lutamos contra o imperialismo é muito importante compreender estas mudanças porque, como dissemos, para mudar a realidade é necessário analisá-la tal qual é. E, o que é mais importante, porque a visão dos autores do trabalho que estudamos nos desarma para combater a verdadeira política de Obama e os profundos riscos que esta política “enganosamente pacifista” implica para os trabalhadores e os povos do mundo. Em Honduras, com o Acordo de Guaymuras, que roubou do povo hondurenho a possibilidade de derrotar os golpistas com sua luta, acabamos de ver um exemplo. Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009 33