O Senhor dos Sistemas traduzido do livro vermelho

Transcrição

O Senhor dos Sistemas traduzido do livro vermelho
O Senhor dos Sistemas traduzido do Modulo Basico Vermelho
O Senhor dos Sistemas traduzido do Módulo Básico Vermelho
do Marco Sul por Douglas Oliveira Donin ( [email protected] ). Aqui está contada a
história da Guerra do Sistema e do Retorno do Mestre conforme vista pelos RPGistas
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D [email protected] ). Aqui está contada a
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G erra do Sistema e do e
R torno do Mestre conforme vista pelos RPGistas
A Sociedade do Sistema
Primeira parte de
O Senhor dos Sistemas
Três Sistemas para a Steve Jackson Games sob este céu,
Sete para a White Wolf, em seus corredores rochosos,
Nove para as editoras alternativas, fadadas à eterna falência,
Um para a TSR em seu escuro trono
Na Terra da Wizards of the Coast onde a Grana se acumula.
Um Sistema para a todos governar, Um Sistema para encontrá-los
Um Sistema para a todos trazer e na escuridão aprisioná-los
Na Terra da Wizards of the Coast onde a Grana se acumula.
PRÓLOGO
O Mercado mudou. Eu sinto isso nos livros. Eu sinto isso nas mesas de jogo. Eu farejo isto nas lojas. Muito
do que era se perdeu, pois ninguém mais tem os livros para que eu tire xerox.
Tudo começou com a criação dos Grandes Sistemas. Três foram criados por Steve Jackson, imortal, o mais
sábio e justo dos seres. Sete pela White Wolf, grandes escritores e designers da linha Storyteller. E nove, nove foram
criados pelas editoras alternativas da Europa, que acima de todas as coisas desejavam inovar. Pois nestes sistemas
estavam o poder e a vontade de proporcionar diversão a cada tipo de jogador.
Mas eles todos foram enganados.
Pois na Terra da Wizards os the Coast, a editora negra TSR criou outro sistema, um sistema-mestre, e neste
sistema ela colocou toda a sua crueldade, sua malícia e sua vontade de dominar o mercado e cada mesa de jogo.
Um Sistema para a Todos Governar. Uma por uma, as mentes livres da Terra caíram sob o poder do
Sistema. Mas houve quem resistisse: Uma última aliança de jogadores tradicionais se recusou a mudar de sistema e
compravam outros títulos, e diante das prateleiras das lojas e importadoras, lutavam pela liberdade dos RPGistas. A
vitória estava próxima, mas a preferência pelo Um Sistema não podia ser desfeita.
E neste momento, quando toda a esperança havia desaparecido, a Devir, seguindo os passos da Abril,
resolveu traduzir o Sistema. Os direitos de publicação passaram para a Devir, que teve a chance de destruir o mal
para sempre. Mas o coração dos homens é facilmente corrompido, e o Sistema tem vontade própria.
O Sistema chegou às mãos dos mestres brasileiros, que o levaram para suas casas, e ali, ele os consumiu.
“- Ele veio para mim, meu amor, meu precioso.....”
O Sistema trouxe aos cenários de fantasia medieval uma longevidade não natural, e por muitos anos, ele
envenenou as mentes destes mestres, e na escuridão das casas deles, ele esperou. A escuridão voltou às mesas de
jogo de todo o mundo, rumores se proliferavam sobre uma sombra no Norte, sussurros sobre um grande golpe de
mercado da Wizards of the Coast, e o Sistema percebeu que sua hora havia chegado.
Ele abandonou estes mestres, mas então, aconteceu algo que não estava nos planos do Sistema: ele foi pego
pela criatura que menos se podia imaginar: um jogador inteligente, de GURPS.
“- O que é isso? Um sistema?”
E chegará, ainda, o tempo em que um grupo de jogadores de GURPS governará o destino de nós todos.
CAPÍTULO I
UMA SESSÃO DE JOGO MUITO ESPERADA
Foi com muita satisfação que o mestre de jogo anunciou a nossa sessão de jogo de número 111. Todos
os jogadores que já passaram pelo grupo foram convidados: os Combistas, os Apelões, os Overpowers, os
Advogados-de-Regras, os Barrabás, e até mesmo os Sacola-Combistas, que eram famosos por seus combos
poderosos que acabavam com a graça de qualquer batalha.
Quase todos do grupo estavam envolvidos na preparação da sessão, e o próprio mestre não atendia o
telefone para ninguém que não estivesse tratando do jogo. Pois era uma sessão de jogo muito esperada, a de número
onzenta-e-um, e vários jogadores que não compareciam há tempo apareceram.
E todos os jogadores do grupo se entusiasmaram com as promessas de grandes recompensas em
experiência, pois sabiam que o mestre era generoso nesta parte. Diziam que ele guardava grandes quantidades de
experiência em algum lugar do Bolsão (era aquele bolso grande na pasta do mestre onde ele guardava as suas
anotações).
E assim aconteceu. Antes de iniciar a sessão, todos comeram salgadinhos e bolachinhas recheadas, e
tomaram muita Coca-Cola, principalmente “Fatty Banha”, o nosso jogador mais gordinho, para desespero da mãe do
mestre, que, semana após semana, via a sua despensa esvaziada por aquela tropa de jogadores esquisitos e folgados.
Mas, antes de iniciar a sessão, o mestre reuniu todos ao redor da mesa e disse:
“- Meus queridos jogadores! Onzenta-e-uma sessões é um período muito curto para ter mestrado entre
jogadores tão excelentes e admiráveis! Eu conheço menos da metade de vocês mais do que o dobro do que gostaria,
e já dei mais do que o dobro da experiência por interpretação que vocês mereciam por coisas que em grupos sérios
vocês não ganhariam nem a metade” – Todos os jogadores se entreolharam confusos, mas o mestre continuou – “Eu
tenho coisas a fazer. Eu venho fazendo isto por muito tempo. Eu anuncio, com pesar, que este é o fim. Eu devo parar
agora. Desejo a todos adeus.”
E, dizendo isto ele colocou o Anel (na verdade, sua aliança de noivado, pois sua namorada estava
enchendo seu saco há muito tempo dizendo que já era hora de largar o RPG, arranjar um emprego e noivar), e, para
espanto de todos, desapareceu do meio RPGístico no mesmo momento.
CAPÍTULO II
UMA SOMBRA DO MERCADO
Estes foram fatos estranhos e espantaram a todos. Como não ia mais utilizar todo o seu material de
RPG, eu, Alfredo, fiquei com tudo, inclusive com a pasta grande de couro que ele utilizava, a que tinha um grande
Bolsão. E assim as coisas transcorreram com relativa tranqüilidade, até que um amigo meu, Rodolfo, outro mestre,
veio me visitar.
Conversávamos sobre vários sistemas e campanhas, e, no momento em que eu mencionei que os
jogadores do meu grupo cogitavam abandonar tudo para jogar apenas o sistema d20, ele levantou uma de suas
sobrancelhas.
“- Deixe-me ver o livro”, disse ele.
“- Aqui está.”
Logo que ele tomou o livro em suas mãos, correu até a churrasqueira no quintal e, para meu
desespero, o jogou no meio das brasas. Muito espantado, eu tentei impedi-lo, mas ele me parou, e depois de algum
tempo disse:
“- Pegue-o. Não se preocupe, está frio.”
Peguei o livro em minhas mãos, estava frio, e sensivelmente mais pesado.
“- Leia o que está escrito na capa.”
“- Dungeons and Dragons, 3° edição... Livro do Jogador... Espere! O que é isso?”
Um tipo de inscrição começou a aparecer na capa e na contracapa do livro. Era fina, como eu nunca
tinha visto antes, e brilhava com um brilho profundo e avermelhado.
“- Eu não consigo ler muito bem... o que está escrito?”
“- Poucos conseguem ler. Está escrito na língua negra da TSR, a qual eu não me atrevo a pronunciar
aqui. Mas em língua portuguesa comum quer dizer :
Um Sistema para a todos governar, Um Sistema para encontrá-los
Um Sistema para a todos trazer e na escuridão aprisioná-los”
“- Este é o Um Sistema”, continuou, “o sistema criado e impresso pela TSR nos escritórios da Wizards
of the Coast.”
“- Não pode ser! Meu antigo mestre o achou na prateleira da Forbidden Planet!”
“- Sim, e por algum tempo ele ficou aqui, junto com os seus pertences. Mas agora o Sistema acordou.
Ele ouviu o chamado da TSR.”
“- Mas ela foi destruída! A TSR foi destruída!”
“- Não, querido amigo. Ela foi apenas comprada pela Wizards of the Coast. Seu espírito está ligado ao
Sistema, e o Sistema prosperou. Seus jogadores se proliferam por todo mundo. Sua fortaleza aqui na cidade, em
Planet-Dûr, foi reconstruída. Ela precisa apenas deste Sistema para cobrir o mundo com um imenso lapso criativo.
Eles são Um, o Sistema e a TSR.”
“- Tudo bem. Vamos manter este livro escondido. Vou colocá-lo aqui, junto com a minha coleção de
Novos Titãs e com o meu Almanaque do Escoteiro-Mirim, e nunca mais vamos falar dele. Vamos apenas jogar
GURPS Supers, GURPS Viagem Espacial, Mage, Call of Cthulhu, ou mesmo AD&D Segunda Edição. Ninguém
sabe que temos o livro, certo?” Meu amigo continuou silencioso. “- Certo?”
“- Havia mais alguém que sabia do livro.” Então ele abriu a última página e eu percebi que o
formulário para receber a Dragon Magazine foi enviado. “- Logo as revistas vão começar a chegar, e quando seus
jogadores verem, será tarde demais. Eles vão querer jogar aquelas aventuras prontas horríveis, e você vai colocar
aqueles NPCs prontos estúpidos e deprimentes nas suas histórias.”
Ouvindo isso, eu ofereci o Um Sistema a ele, e disse:
“- Você deve levar este livro, pegue-o!”
“- Você não pode me oferecer isto.”
“- Pegue-o, Rodolfo! Eu o dou para você!”
“- Não me tente! Eu não ouso mestrar isso, mesmo que a arte seja boa. Eu usaria isto com um desejo
de fazer o bem, mas logo me viciaria e meu livre-arbítrio desapareceria.”
Eu perguntei, então, com muito medo:
“- O que eu devo fazer, então?”
“- Você deve ir, e rápido. Saia de sua casa, Alfredo. Pegue o ônibus e vá para o Centro.”
“- E você?”
“- Eu vou esperá-lo no McDonalds do Centro. Mas antes eu devo ir consultar uma pessoa.”
CAPÍTULO III
UM ATALHO PARA O MACDONALDS
A conversa que eu tive com este meu amigo, um dos cinco mais antigos mestres da cidade, foi o
suficiente para me convencer de que eu corria grande risco. Seguindo suas recomendações, saí imediatamente de
casa, mas não sem encontrar na porta de casa meu amigo Samuel. Ele vinha, como de costume, me pedir para liberar
que o personagem dele tivesse 312 pontos de desvantagens – todas plenamente justificáveis, segundo ele – ao invés
dos 40 que o GURPS sugere. E, claro, puxar o meu saco o quanto fosse necessário até que eu aceitasse este absurdo.
Eu disse a ele, logo que o vi:
“- Eu não posso falar agora, Samuel. Estou apressado e correndo grande perigo.”
“- Não me diga! Pois eu vou junto com o senhor, mestre! Vou protegê-lo de qualquer perigo com
minha própria vida, ah, vou sim, ou meu nome não é Samuel! Além disso, tenho que falar ao senhor sobre o meu
personagem...”
“- Nada feito, Samuel... 312 pontos é muito.”
“- Ah, então tá.”
Tendo ele falado isto, eu percebi que se aproximava de nós uma figura horrenda e macabra... Toda
vestida de preto, da cabeça aos pés, esquelética como um saco de ossos, com a pele branca e ressecada como a de
um morto-vivo... Meu coração se encheu do mais puro terror no mesmo momento. Minha garganta secou, e eu não
conseguia falar uma única palavra, um único sussurro, um único gemido. Mas, à medida que a terrível criatura se
aproximava, com seu fedor horrível de mofo e bolor, recuperei as forças e disse a Samuel:
“- Um... um jogador de Vampiro, A Máscara!”
“- Sim, e vestido para um Live!”
“- É horrível! Vamos fugir!”
Samuel disse: “- Não precisamos ter medo, querido mestre! É só um jogador de RPG como nós!”
“- Não, não como nós! Você não ouviu sobre aqueles crimes que eles cometeram?”
“- Ora, mestre, não tente enganar o pobre Samuel! Qualquer idiota sabe que aqueles assassinatos não
tem nada a ver com o RPG!”
“- Não estou falando dos assassinatos, pois só uma anta acharia que eles têm alguma relação com o
RPG! Os crimes aos quais me refiro são sair vestidos assim na rua, jogar em cemitérios e ficam gritando a amplos
pulmões termos de RPG em Shoppings e outros lugares públicos! Se eles fazem isso, não se pode duvidar mais de
nada!”
“- O senhor tem razão, mestre! Vamos fugir!”
Para nossa sorte, estava saindo um ônibus da parada naquele momento. Samuel, que estava à frente,
entrou correndo pela porta, se virou e me deu a mão:
“- Pule, mestre, pule!”
Olhei para trás e vi que a figura corria bem atrás de mim. Tomado pelo pânico, corri mais ainda,
segurei firme o Um Sistema e pulei. A figura parou, frustada, e eu vi que outras se juntavam a ela.
Dentro do ônibus, mais calmos, encontramos dois amigos nossos: Mário e Pepe, dois jogadores do
nosso grupo e meus primos por parte de mãe.
“- Oi, mestre, oi, Samu!”, disseram. “Para onde vão com essa cara de quem viu um jogador de
Vampiro?”
Samuel me olhou. Eu disse:
“- Vamos todos ao MacDonalds. Lá eu explico para todos o que está acontecendo. O meu antigo
mestre, Rodolfo, vai estar lá esperando pela gente.”
E assim, todos fomos ao MacDonalds, enquanto começava a chover.
No entanto, não tínhamos idéia do que se passava longe dali.
Meu antigo mestre tinha ido procurar a orientação de um amigo, um autor de RPG famoso no Brasil.
Chegou ao lugar onde ele autografava umas cópias de Holy Avenger junto com uma desenhista que, ao contrário
dele, era talentosa e simpática.
“- Ora, ora, ora, se não é você. Há quanto tempo não o vejo.”
“- Preciso de sua orientação, Cassaruman.”, disse meu amigo. “- Você tem aqueles amigos na Steve
Jackson Games, deve saber algo sobre como destruir o Um Sistema.”
“- Você o achou?”
“- Sim. Esteve embaixo do meu nariz este tempo todo.”
“- E você não o viu? Estes cards que você anda comprando devem ter deixado o seu raciocínio mais
lento.”
“- Você sabe que é só para colecionar. Mesmo assim, Cassaruman, devemos bolar um jeito de destruir
o Um Sistema.”
“- Destruir? Você deve estar brincando. O Um Sistema não pode ser destruído. A TSR vai encontrar
quem o possui, e acabar com o seu dinheiro.”
Neste momento, meu mestre olhou para um livro em cima da mesa de Cassaruman. Seu título era
“GURPS Espada da Galáxia”, e tinha um grande carimbo vermelho da Steve Jackson Games, onde se lia:
“REJECTED MATERIAL. AWFUL QUALITY. METALIANS WITH BOOBS?!?! OH, GOD’S SAKE!”
Então, meu mestre entendeu tudo, e disse:
“- Agora eu vejo tudo. Você sabe que a SJG tem bom gosto e senso do ridículo, e que por isso, não
publicaria nunca ‘GURPS Espada da Galáxia’. Você quer usar o Um Sistema para seus próprios propósitos! Isso é
loucura!”
“- Não me desafie! Logo, todas as mesas do mundo vão estar jogando EdG d20, e meu cenário vai ser
mais jogado que Kult, Witchcraft ou mesmo Alternity! HAHAHAHA!”
Desta forma, os dois iniciaram uma luta terrível. Jogavam dados e livros um no outro, cada vez com
mais ferocidade e violência. No entanto, Rodolfo pisou em um d12, escorregou e bateu com a cabeça. Quando
acordou, estava preso no banheiro.
CAPÍTULO IV
DADOLARGO
Chegamos no MacDonalds. Chovia muito lá fora, e já estava escuro. Me dirigi ao caixa, para comprar
mantimentos, e perguntar se não tinha visto Rodolfo, meu antigo mestre.
“- Boa noite. Quero um BigMac, uma porção grande de fritas e um Sprite. E a propósito, não viu por
aí um cara barbudo, alto e vestido com um moletom cinza?”
“- Moletom cinza? Não, não. Aqui está seu pedido. O próximo!”
Desolado, me dirigi à mesa onde me esperavam.
“- Ele não chegou. Deve ter acontecido alguma coisa.”
“- Vamos esperá-lo mais um pouco. A propósito, primo, tem um cara te olhando desde que você
entrou.”
Vi então que, em uma das mesas do fundo, uma figura me olhava. Estava de preto, também, mas era
muito diferente dos jogadores de Vampiro: era bem-apessoada e sóbria. Não tinha os trejeitos embaraçosos daquelas
figuras em lugares públicos. Pelo seu porte físico, imaginei que até devia praticar algum esporte. Ou seja, um
jogador de RPG realmente fora do comum.
Procurei ficar mais calmo, e perguntei a Mário e Pepe se o conheciam. Eles me responderam:
“- Ah, este cara nós conhecemos só de vista. Dizem que ele joga por aí há tempo, e que tem muita
sorte nos dados, e por isso ganhou o apelido de Dadolargo. Pois só tira força 18/00 e nove ou dez nas jogadas de
Pontos de Vida, quando passa de nível.”
Mais calmo, comecei então a explicar a eles o que acontecia. Eles me ouviam com atenção,
principalmente quando eu falava do Um Sistema. Abri então minha mochila para mostrá-los do que estava falando,
e, assim que segurei o livro com a mão direita, senti que uma mão forte agarrava a minha gola, enquanto a outra
facilmente recolocava o livro na mochila.
“- Não tão rápido”, disse Dadolargo, “ou você não vai continuar jogando por muito tempo. Vamos
conversar lá em cima.”
Assim, ele me arrastou para o segundo andar do MacDonalds, e meus amigos vieram atrás. Logo que
sentamos lá em cima, Dadolargo disse:
“- Vocês correm grande perigo, ainda mais mostrando o que carregam assim, publicamente. Devem
me seguir.”
“- Como podemos confiar em você? Você deve ser como os outros, que tentaram nos pegar agora há
pouco.”
Neste momento, percebi que uma grande agitação estava acontecendo lá embaixo. Espiando entre o
corrimão e a escada, vi uma cena horrível.
Os nove jogadores de Vampiro entraram na lanchonete, todos vestidos de preto, da cabeça aos pés, e
maquiados como mortos-vivos, com direito a sangue escorrendo dos lábios, dentes postiços e tudo o mais (eu
sempre achei este um jeito MAGNÍFICO de manter a Máscara), aterrorizando todas as pessoas que se encontravam
no MacDonalds. Gritavam coisas horríveis enquanto passavam pelas mesas:
“- Sou um Nosferatu! Vivo nos esgotos sugando sangue de ratos!”
“- E eu sou um Gangrel! Vou arrancar as suas tripas com minhas garras! JO-KEN-PO!”
“- E eu, como Tremere, vou fazer um ritual taumatúrgico, com muito sangue!”
“- Seu amador! Como Bali, vou fazer um ritual com o dobro de sangue que você usar, e vou desenhar
um pentagrama invertido com vísceras de recém-nascidos!”
Dizendo isto, ele olhou para uma criança que montava Lego ali perto e a ameaçou. A criança correu,
em pânico.
Todas as pessoas ali ficaram horrorizadas, pois todos ouviram o que eles disseram. As meninas dos
caixas se escondiam, agachadas atrás do balcão, derramando lágrimas de desespero. E as pessoas comuns que ali
estavam comentavam umas para as outras:
“- Viu? Devem ser aqueles jogadores deste tal de RPG que a televisão fala. Bem que o Pastor me
avisou sobre eles, e olha que eu não tinha acreditado! Cruzes!”
“- Filhinho, logo que chegarmos em casa, você vai jogar aquele jogo de RPG que você tem no
videogame fora! Isto é perigoso, bem que eu li no jornal!”
Samuel, que estava ao meu lado, ficou enfurecido, e quis partir para cima deles:
“- Malditos! São eles que acabam com a nossa reputação! É por isso que eu tenho que manter em
segredo o fato de eu jogar RPG no meu colégio! É por causa deles que a minha avó não fala mais comigo, achando
que eu mato pessoas por aí!”
Dadolargo o segurou, e disse:
“- Faça silêncio, pequeno. Vamos esperar eles saírem e seguir nossa viagem. Eles são assim,
escandalosos, pois eras atrás perderam o bom-senso. Eram apenas jogadores comuns, mas se viciaram com todos
aqueles suplementos de World of Darkness, e por isso perderam a noção do que é real e do que é RPG. Agora, se
sentem abandonados, pois as maiores mentes da White Wolf estão escrevendo para o Um Sistema, e esperam que a
chegada de Vampiro para D20 dê novo fôlego ao World of Darkness.”
“- E para onde vamos, Dadolargo?”
“- Vamos levar este livro maldito para a casa de uns amigos meus. Eles são sábios, e lá faremos um
conselho para decidir o que vai ser feito dele.”
CAPÍTULO V
UMA FACA NO ESCUDO
Compramos vários Big Macs, pois Dadolargo nos avisou que a viagem seria longa. Saímos sem fazer
alarde – pois as pessoas ainda estavam traumatizadas pelo encontro com os Jogadores Negros.
Durante a caminhada, Dadolargo nos adiantou sobre o conselho por ocorrer: Seria na casa de seu
amigo Helton, um dos mais sábios e antigos jogadores conhecidos na cidade. Ele morava em uma casa muito bonita,
em um bairro nobre da cidade, com um quintal enorme e cheio de árvores. A irmã de Helton era uma morena muito
bonita, chamada Audrey, e era namorada de Dadolargo. Saber disso nos encheu de respeito e admiração por ele, pois
poucos são os jogadores de RPG que namoram, ainda mais com mulheres bonitas.
Ele disse também que, logo que chegássemos lá, poderíamos voltar para casa, pois ele e seus amigos,
que eram grandes jogadores, tratariam de por um fim ao poder do Um. Isto, por si só, nos tranqüilizou.
Caminhamos muito, por várias horas. Mário e Pepe, praticamente sozinhos, dizimaram nosso estoque
de Big Macs.
Mas o pior ainda estava por acontecer.
Virando a esquina, estavam os nove Jogadores Negros. Ao nos ver, correram em nossa direção, com a
boca aberta mostrando os horríveis dentes postiços de plástico, e grandes quantidades de Ketchup escorriam deles.
Dadolargo tirou a mochila que carregava, e acertou um belo mochilaço na têmpora do que estava na frente. Ele caiu,
gritando horrivelmente:
“- Vou gastar um ponto de sangue e regenerar! Avise para o Narrador que eu não morri ainda!”
Mas eles eram muitos, e nos cercaram. Um deles agarrou Mário, e gritou:
“- Seu humano ridículo! Vou usar vicissitude e fazer você ficar com três braços! Narrador! Narrador!
Vou testar vicissitude!”
Samuel e Pepe lutavam bravamente, apesar de pequenos. No entanto, os Jogadores Negros restantes
partiram para cima de mim. Não pude resistir, pois eram muitos e muito maiores do que eu. Logo, um deles mordeu
meu pescoço com suas presas de plástico, enquanto outro deles anotava um ponto de sangue a mais na sua ficha.
Neste momento, eu vi uma das coisas mais belas da minha vida.
Um Corsa havia parado na calçada, e dele saiu uma mulher linda, espetacular. Era sem dúvida alguma
Audrey, a namorada de Dadolargo. Estava ainda com a roupa da aeróbica, um short branco e verde com top da
mesma cor. Não só era lindo seu rosto, como seu corpo também era magnífico.
Foi o que bastou para os Jogadores Negros: eles não estavam acostumados a ver mulher, muito menos
uma assim tão linda. Quase paralisados, começaram a recuar. Tentaram dizer algo, mas relembraram que haviam
perdido a capacidade de falar de algo que não fosse RPG ou World of Darkness há muito tempo. Sem saber o que
fazer, correram para longe.
Eu estava ainda caído, e Samuel veio me socorrer. Dadolargo recolocava sua mochila. Audrey, então,
se aproximou e me puxou para o colo dela:
“- Oh, coitadinho! O que aqueles retardados fizeram com ele! Olhe esta marca no pescoço! E esta
maquiagem toda na roupa dele! Vou levá-lo de carro para meu irmão Helton rápido, ou estas manchas de
maquiagem vão secar e manchar a roupa dele para sempre!”
Notei que ela havia apoiado minha cabeça sobre o seu peito, e sentia junto à minha face aqueles
maravilhosos seios. Oh, logo eu, um simples jogador de RPG, tendo contato físico com seios femininos! Não pude
conter a emoção, e logo perdi a consciência em meio àquela imensidão branca e fofinha, torcendo apenas para que
Dadolargo não percebesse o meu sorriso de satisfação. Assim, desmaiei.
CAPÍTULO VI
O CONSELHO DE HELTON
Acordei ainda com aquela sensação magnífica no rosto. Era a manhã seguinte, e eu estava em um
quarto muito bonito e bem iluminado.
“- Enfim você acordou. Você passou a noite inteira aí babando e dizendo besteiras com um sorriso
estranho no rosto”, disse alguém ao meu lado. Virei-me e percebi que era Rodolfo, com um band-aid na testa.
“- Nós esperamos você, por onde andou?”, perguntei.
“- Eu... eu sofri um contratempo.” Sua expressão ficou séria. Logo depois, ele me contou todo o
acontecido e como conseguiu escapar, quando a equipe de limpeza do salão onde estava o encontrou encolhido no
chão no dia seguinte.
“- Ainda nesta manhã, passei no meu vizinho, peguei sua bicicleta mais rápida, a Scaloifax, mesmo
sem pedir sua permissão, e vim para cá o mais rápido que pude. Sua tarefa acabou aqui, querido amigo. Helton
convocou um conselho para hoje, para decidirmos o que será feito do Um Sistema. Eu, Dadolargo e os outros
cuidaremos disso, e você poderá ir para casa com Samuel, Mário e Pepe.”
Respirei aliviado. Estava livre do Fardo.
Pela tarde, nos reunimos à beira da piscina de Helton. Várias pessoas que eu não conhecia, ou que
tinha visto apenas de relance em convenções, estavam lá: de um lado, jogadores altos, magros, de cabelo comprido e
camisa do Blind Guardian; de outro, alguns gordinhos e baixos, muitos dos quais com barba. Em uma cadeira,
estava Dadolargo, agora melhor vestido (por insistência da namorada), em outra, meu antigo mestre, Rodolfo. Uma
cadeira estava reservada para mim, ao lado de um estranho agitado, Ademir. Helton então falou:
“- Estranhos de grupos distantes, amigos de longa data, vocês foram chamados aqui para responder à
ameaça da TSR. O RPG se encontra à beira da destruição. Ou nos unimos, ou perecemos. Traga o Sistema.”
Em uma mesa no centro do grupo, eu coloquei o Um Sistema.
Todos se agitaram. Alguns comentavam:
“- Então é verdade! A Devir publicou mesmo!”
“- O Sistema do Poder!”
“- A Ruína dos Jogadores!”
O estranho a meu lado, Ademir, sorriu e disse:
“- É uma dádiva! As regras devem ser legais! Podemos jogar isto para o bem! Veja como os desenhos
são legais, e tudo... Por que não usar este livro?“
“- Você não pode jogar este Sistema”, Dadolargo disse. “Nenhum de nós pode. Este Sistema serve
para lucrar, apenas. Não pode ser jogado.”
Ademir o olhou, sério:
“- E o que você pode saber disso?”
Um dos rapazes com camisa do Blind Guardian, Leônidas, com cabelo loiro e comprido, se levantou:
“- Olhe como você fala com ele! Ele é filho de um milionário, herdeiro de uma das maiores empresas
do país!”
Ademir sentou, reclamando:
“- Hmpf, filhinho-de-papai. Montado na grana, até eu namoraria aquela gostosa.”
Meu mestre disse:
“- Dadolargo está certo. Não podemos jogá-lo.”
“Helton então falou:
“- Só temos então uma alternativa: devemos destruí-lo!”
Guilherme, um baixinho barbudo que tinha o apelido de Guile, deu um passo à frente, pegou o livro e
disse:
“- Estamos esperando o quê, então?”
Tendo dito isto, ele jogou o livro no chão, pisou em cima dele, tentou arrancar as folhas, mas foi tudo
em vão. Helton o parou, dizendo:
“- A encadernação do livro é muito boa, assim como a qualidade das páginas. Não podemos destruí-lo
por qualquer modo que conheçamos. Devemos levá-lo até a gráfica da Devir, o lugar onde foi feito e único lugar
onde pode ser destruído, e jogá-lo na máquina da qual ele veio.”
Ademir falou:
“- Você não pode simplesmente entrar caminhando na Devir! Seus portões negros são guardados por
muito mais do que jogadores de Magic e Pokémon idiotas. Há um grande mal lá, e que nunca tem prejuízo. É uma
empresa estéril, com cards, livros mal-traduzidos e toda a sorte de porcarias. Até o informativo deles é venenoso!
Nem com dez mil reais conseguiríamos!”
Leônidas levantou a voz para ele: “- Você não ouviu nada do que Mestre Helton disse? O Sistema
deve ser destruído!”
Guile disse: “- Ah, e suponho que você vá sugerir que um fã de Metal pode fazer isso!”
Os dois se estranharam, e logo, todos começaram a brigar. Uns empurravam os outros, e Mestre
Helton tentava apaziguá-los sem sucesso. Dadolargo levantava a voz, alguém aproveitava a confusão para
estrategicamente espiar por cima o decote da blusinha da Audrey, e ninguém se entendia.
Eu olhava para o Um Sistema ali parado. Sentia o grande mal nele, e, meio sem saber por quê, disse:
“- Eu... eu vou levar o Sistema.”
Todos me olharam pasmos.
“- Eu levarei o sistema até a Devir... muito embora eu não saiba o caminho.”
Meu antigo mestre, Rodolfo, se aproximou e disse:
“- Eu ajudarei você a carregar este fardo enquanto ele estiver com você.”
“- Se a vida ou morte de meus personagens puder protegê-lo, eu irei.” Dadolargo disse. “- Você tem as
minhas fichas.”
Leônidas disse: “- E os meus dados!”
Guile completou: “- E o meu escudo!”
Por fim, Ademir disse que me acompanharia até lá. Para minha surpresa, Samuel, Mário e Pepe, que
espiavam tudo, vieram também.
Helton disse, satisfeito:
“- Nove companheiros. Vocês serão a Sociedade do Sistema!”
Assim, partimos logo após o meio-dia, levando nas mochilas latas de batata-frita-de-viagem Pringles,
Gatorade, Fandangos e muitas latinhas de Fanta Uva.
CAPÍTULO VII
UMA JOGADA ATRÁS DO ESCUDO
Seguimos viagem a pé – com o preço da gasolina, não podemos ficar andando para lá e para cá de
carro, além do que nove pessoas não ficariam exatamente muito bem acomodadas no Corsa da Audrey. Assim,
iniciamos nossa jornada rumo ao mais horrendo e terrível dos destinos.
Conversávamos alegremente, contando histórias engraçadas sobre antigos acontecimentos em nossos
grupos de jogo, e isso nos deixou de certa forma mais leves e animados. Até Ademir ria de nossas histórias, e contou
algumas do seu próprio grupo.
Havíamos avançado mais de quatro quarteirões sem descansar, o que foi um feito incrível,
principalmente para Rodolfo, que, apesar de muito sábio, era fumante.
Deste modo, chegamos a um dos parques da cidade. Poderíamos cruzá-lo por dentro, poupando um
valioso tempo, ou contorná-lo. Descansamos um pouco enquanto decidíamos o que fazer.
“- Devemos cruzá-lo por dentro!”, disse Guile. “- Meu primo costuma jogar vôlei neste parque, e ele
vai nos receber como reis!”
“- Eu acho que devemos ir por fora”, disse Leônidas, “pois dizem lá onde eu jogo que tem um pessoal
muito esquisito fazendo Live de Lobisomem neste parque.”
“- Bobagem! Aquela porcaria nem vende mais, e além do quê, na terceira edição não tem mais Caern
de pé!”
“- É, mas não devemos arriscar. Sabe como este pessoal que joga Storyteller é radical.”
“- Vamos deixar que o Portador do Sistema decida!”, disse Rodolfo. “- E então, por dentro ou por
fora?”
Eu pensei muito e, no fim, decidi ir por dentro, pois poderia ver várias meninas fazendo exercícios no
interior do parque, mesmo que a chance de eu me envolver com uma delas fosse, na melhor das hipóteses, nula.
“- Vamos por dentro!”
“- Hehehe, vocês vão só ver como é legal ali dentro! E meu primo é muito bacana, vai emprestar a
todos nós vários CDs de Playstation!”, bradava Guile, sem esconder a sua felicidade.
Assim que entramos, vimos que não havia ninguém no parque, o que era muito estranho. No entanto,
continuamos avançando, na esperança de chegar às quadras de vôlei e encontrar o primo de Guilherme.
Chegando lá, encontramos a quadra vazia. Um pedaço de papel estava no chão. Dadolargo pegou-o, e
Leônidas disse: “- Uma ficha de Lobisomem! Eu avisei que não deveríamos ter vindo por dentro!”
“- Agora vejo tudo claramente... foi mesmo organizado um Live aqui, e quando os freqüentadores do
parque souberam que iria ser jogado RPG por aqui, todos foram embora, pois não queriam ficar à mercê de
maníacos! Não os culpo, eles devem ler jornais e ver televisão!”
Percebi que Pepe, que estava muito cansado, havia se sentado na grama. Meu mestre pegou-o pelo
braço, e gritou:
“- Peterson, seu trouxa imbecil! Saia da grama!”
Não entendemos muito bem o motivo de sua irritação e medo, mas logo ficou claro: os arbustos
começaram a se agitar.
“- É tarde demais! Preparem-se!”, Ademir disse.
Logo, um jogador de Lobisomem saiu dos arbustos. Estava trajado com um casaco de pele marrom,
possivelmente de sua avó ou tia, e tinha pantufas de pelúcia da mesma cor. Tentava estar vestido de forma a parecer
um urso, ou algum outro bicho inclassificável e peludo, e avançou para cima de nós.
“- Vocês machucaram a graminha, e eu vou bater em vocês, pois devo proteger Gaia e este Caern!
Narrador, estou em crinos! Vou atacar, vou atacar!”
Logo uma porção de jogadores o seguiu, avançando para cima de nós, vestidos como cachorros, gatos,
e outros com fantasias não menos ridículas e embaraçosas. Nosso primeiro impulso foi rir incontrolavelmente, mas
isso só os enfureceu. Guile firmou bem as pernas, agarrou seu pesado GURPS Vehicles e gritou:
“- Venham, malditos! Vou mostrar a vocês que há alguém neste parque que não joga Storyteller, ou
meu nome não é Guilherme, filho de Glória!”
Neste momento, todos congelamos de medo. Uma voz conhecida veio de trás dos arbustos, dizendo:
“- Parem! Vamos organizar este Live! Quem está na Umbra, levante a mão direita, e quem não está,
levante a esquerda!””
Rodolfo ficou imóvel de terror, e todos os jogadores do Live pararam. Ele disse então:
“- É o Gordog, um demônio do mundo antigo! Ele trabalhava na Planet quando ela ainda não tinha se
mudado, mas teve que parar depois que ficou muito gordo para sentar atrás do caixa! Contra ele, nada vai funcionar!
Fujam! Para fora do parque, para o viaduto!”
Assim, corremos, com todos aqueles jogadores ridículos atrás, e com os passos pesados do Gordog
fazendo o chão tremer e ressoando nos nossos ouvidos.
CAPÍTULO VIII
O VIADUTO DE VARGAS-DÛM
Corríamos desesperados pelo curto espaço que separava o mundo exterior do local onde era realizado
o Live. Atrás de nós, gritos ferozes, rugidos, latidos, e toda espécie de som que um humano mentalmente sadio não
emite, mesmo com a desculpa de estar participando de um Live-Action. E, na frente dos jogadores, corria aquela
gigantesca massa de pêlo e banha, o Gordog, trazendo consigo o fedor de eras, pois há quatro anos estava gordo
demais para limpar as próprias costas quando tomava banho.
Já vislumbrávamos, bem na nossa frente, o viaduto da Avenida Presidente Vargas, imponente e
ameaçador, passando sobre o intenso fluxo de automóveis e caminhões lá embaixo.
“- Para o viaduto, rápido!”, gritava Rodolfo. “- Lá eles não terão coragem de nos seguir!”
E assim atravessamos o viaduto, correndo como loucos. Os jogadores de Lobisomem, que um dia já
foram pessoas normais, não nos seguiram, tendo vergonha de sair do parque e ir vestidos para a rua daquela forma.
No entanto, o Gordog nos seguia, e podíamos ver que, por trás daqueles óculos, a raiva brilhava em seus olhos, pois
fazia muito tempo que nós não comprávamos nada na sua loja.
Logo que cruzamos a metade do viaduto, Rodolfo disse para Dadolargo:
“- Leve-os para longe daqui, é seu dever agora liderar a comitiva!”
Dadolargo relutou, mas deixou-o para trás. Nos separamos de Rodolfo, que parou bem no meio do
viaduto, virou-se e encarou a horrível besta – em todos os sentidos:
“- Eu sou o guardião das regras no meu grupo! As notas verdinhas dos trouxas que compram na sua
loja não irão ajudá-lo agora! VOCÊ NÃO VAI PASSAR!”
O ser horrível rugiu, lançando o bafo de alho e azeite de oliva de quinta categoria do barzinho da
esquina. Rodolfo cambaleou, mas por pouco tempo.
O Gordog então avançou, procurando forçar a passagem, mas Rodolfo o deteve, segurando-o pelos
pulsos. O demônio de banha perdeu o equilíbrio, e encostou sua horrenda traseira no parapeito do viaduto.
Foi demais para a frágil estrutura de concreto e aço, que quebrou-se como uma maquete de série
japonesa. O Gordog caiu, desaparecendo da nossa visão quase por completo.
Porém, sua mão vil e asquerosa se segurou no cinto da calça do Rodolfo, e o puxou para baixo.
Meu mestre, desequilibrado, se debruçava sobre a beirada destruída do viaduto, agüentando pelo cinto
as várias centenas de quilos do Gordog. Olhou-nos, com um olhar de desespero e esforço, e disse:
“- Fujam, tolos!”
Eles então caíram, desaparecendo no profundo abismo de cimento, asfalto e metal.
Todo o resto passou como um pesadelo. Dadolargo nos impedia de voltar, gritávamos e chorávamos
muito. Apesar do barulho da avenida, não ouvíamos nada mais a não ser a batida de nossos corações, chocados pela
horrível cena, aflitos com a perda de um grande amigo. O nó em minha garganta impedia que eu gritasse ainda mais.
Dadolargo e os outros nos afastaram dali. Sentamos em uns banquinhos mais além, chorando. Pepe
apoiava a cabeça no ombro de Mário, que tentava consolá-lo.
Sentia uma enorme sensação de perda e vazio, apenas comparável à sensação que senti no meu bolso
quando deixei o cinema após ver Dungeons & Dragons. Apesar de ter gasto apenas três reais para ver aquele filme,
senti como se tivesse perdido uma fortuna.
Meus pensamentos foram interrompidos por Dadolargo, que nos colocava de pé.
“- Vamos, vamos! Leônidas, Guilherme, Ademir, ponha-os de pé! Temos que seguir viagem. Logo
esta planície vai estar apinhada de repórteres e câmeras para mostrar o Live e falar besteiras sobre ele, e não
queremos pagar mico na TV. Estamos perto de Lauren, vamos para lá.”
Iniciamos ali, com o coração pesado, uma triste caminhada até a Lauren, tia de Leônidas, que serviria
de abrigo para nós por algum tempo, e que ficava perto da margem do rio que cruzava a cidade.
CAPÍTULO IX
LAUREN
A saudade e a dor da perda de um grande amigo fizeram com que nossa caminhada até Lauren fosse
silenciosa. A Casa de Lauren era onde moravam os numerosos primos de Leônidas, e também era sede do fã-clube
do Blind Guardian na cidade. Haviam muitos rumores correndo sobre ela, inclusive um boato que parecia muito
mentiroso sobre uma lindíssima mestre de GURPS que ali morava.
Logo que cruzamos o portão, que estava aberto, os primos de Leônidas pularam de trás das árvores do
jardim. Fomos pegos de surpresa, e eles pareciam muito pouco amigáveis. Leônidas tomou a frente e disse:
“- Olá, pessoal. Viemos buscar abrigo aqui, e buscar os conselhos de Gabrielle. Helton nos mandou,
estamos cumprindo uma importante missão.”
“- Não precisa se explicar, Leônidas, Helton já mandou um e-mail para Gabrielle e ela está sabendo de
tudo. O problema é que este baixinho aí não pode entrar”, disse um dos primos de Leônidas apontando para
Guilherme. “Ele e seus companheiros de grupo já avacalharam com muitos de nossos jogos no passado. Nos
esforçávamos fazendo uma história profunda e cheia de oportunidades para interpretação, e eles a transformavam
em apenas uma sessão de tiroteio e pancadaria com seus personagens cheios de combos. Desde então nossos grupos
não se falam.”
Depois de muita discussão, Leônidas prometeu se responsabilizar por qualquer ato de Guilherme que
pudesse desagradar aquele grupo. Assim, fomos aceitos e conduzidos para a mansão onde morava Lady Gabrielle.
Após subir uma grande escadaria, chegamos à porta de um quarto no segundo andar. O nervosismo
estava nos matando, pois muitos e muitos boatos circulavam em todos os grupos de jogo do país sobre a existência
ou não de Gabrielle. Alguns diziam que era apenas um brincalhão com tendências homossexuais que assinava como
mulher nas listas de discussão sobre RPG, opinião que ficou ainda mais forte depois que pediram para que Gabrielle
aparecesse ao vivo em uma convenção de RPG e ela não compareceu. Mas poucos, ou muito sortudos ou muito
mentirosos, juravam ter encontrado Gabrielle em lojas pela cidade, comprando livros de todos os sistemas, e diziam
que era a mais bela de todas as mulheres no mundo.
Um primo de Leônidas veio de dentro do quarto e disse que podíamos entrar, pois a Senhora da Luz
estava nos esperando. Com o coração na mão, foi o que fizemos.
É impossível descrever com palavras um décimo sequer da beleza de Gabrielle. A mera visão de um
ser tão perfeito e angelical, como o que víamos na nossa frente, era suficiente para arrancar todas as preocupações
mesmo do coração mais atormentado. Gabrielle era uma menina lindíssima, com cerca de dezoito anos, olhos de um
azul claro e profundo e longos cabelos loiros, brilhantes e lisos. O sorriso dela era tranquilizador como um bálsamo,
belo como um arco-íris. E jogava, imaginem, RPG. O quarto se enchia de luz com sua mera presença, que irradiava
tranqüilidade, doçura e beleza. Foi Dadolargo quem primeiro falou:
“- Bom dia, Gabrielle. Faz muito tempo que não nos vemos.”
“- Bom dia, Dado. Como vai a Audrey?”
“- Bem... ela ficou na casa de Helton. Estes são meus amigos, sete dos mais corajosos jogadores que
eu já conheci. Acabamos de cruzar o parque.”
“- Fiquei sabendo. Helton me mandou um e-mail pela manhã, e deduzi que vocês atravessariam aquele
lugar perigoso. Mas ele disse que seriam nove... isso quer dizer que Rodolfo pereceu.”
“- É. Ele se sacrificou para nos salvar no Gordog, mas pelo menos acabou com o monstro.”
“- É uma pena, gostava muito de conversar com ele sobre RPG. Mas pelo menos aquele monte de
banha não vai incomodar ninguém, atendendo mal os clientes da sua loja horrível. Vocês estão a salvo enquanto
permanecerem na minha casa, sintam-se à vontade. Descansem, pois temos quartos, camas e comida para todos.”
Assim, todos fomos descansar, pela primeira vez com conforto e tranqüilidade depois de deixar a
morada de Helton. A madrugada veio, trazendo bons sonhos para alguns, e sonhos atormentados para outros.
Quando eram aproximadamente três horas da manhã, a porta do quarto se abriu, e a luminosidade do corredor
revelou a silhueta de Gabrielle, que entrou e sentou ao meu lado na cama.
“- Eu sei o que você está passando, meu querido Alfredo. Sei o peso do que você carrega. Sei também
a importância da sua missão, e sinto muita pena de você por ter que agüentar toda esta responsabilidade sozinho.
Você é muito corajoso, e eu o admiro muito.”
Aquelas palavras me tranqüilizaram, e eu me senti muito à vontade para desabafar minhas
preocupações:
“- Eu sei o que tenho que fazer, senhora. Mas... eu não se tenho forças ou coragem.”
“- Você vai achar sua coragem. Esta tarefa foi destinada a você, e se você não conseguir, ninguém irá.
Li isso em algum lugar, e sempre quis dizer para alguém!”
“- Gabrielle... eu... bem, eu queria dizer que...”
“- Que eu sou muito bonita e você está apaixonado.”
“- Como... como você descobriu? Eu não ia ter coragem de falar isso, mas era o que eu estava
pensando... você lê mentes?”
“- Não, seu bobo, mas já cansei de ouvir isto. Além disso, sua cara está vermelha e seu cobertor está
meio levantado.”
“- Eu só queria saber... como alguém tão bonita como você pode jogar RPG? Eu digo, deve haver
muitas outras coisas para você fazer, você não precisa ficar sábado à noite em casa jogando por se sentir excluída em
festas como nós, pode ir a qualquer lugar, arranjar qualquer namorado... por quê?”
“- Simples: porque eu quero. Eu realmente poderia fazer tudo isto que você disse, e muitas outras
coisas, e nunca mais voltar a jogar. Mas eu gosto de RPG. Eu não o transformei em uma religião, não abdiquei de
tudo na minha vida por ele, e você se engana muito se pensa que eu não tenho meus namorados nem vou a festas por
ser uma jogadora. Ele é simplesmente um hobby, um hobby do qual eu gosto muito. Quanto ao fato de eu ser
bonita, isso não impede em nada que eu goste de jogar: o mundo está cheio de jogadoras, muitas mais bonitas do que
eu. Você só tem que sair de casa e variar os seus ambientes de jogo. Talvez a culpa de vocês homens reclamarem
que meninas não jogam RPG seja de vocês mesmos, que se fecham em seus grupos e não as convidam para jogar.”
Falando isto, ela se aproximou ainda mais e disse:
“- Eu sei pelo que você vai passar. Sei dos seus medos, e sei dos desafios que lhe esperam. E quando
você estiver na mais negra das situações, quando tudo mais parecer perdido, eu quero que você se lembre de mim.
Neste momento, a minha luz vai salvá-lo.”
Ela falou isso e me beijou levemente. Não entendi muito bem o porquê, mas nem pensei em reclamar.
Dormi tranquilo todo o resto da noite, sonhando com as doces e sábias palavras de Gabrielle.
CAPÍTULO X
O ROMPIMENTO DO GRUPO DE JOGO
A apenas algumas centenas de metros da casa de Lauren, morada da linda Gabrielle, ficava a margem
do grande e fedorento rio que cruzava a cidade. Partimos bem cedo, logo após o café da manhã, e levamos alguns
pedaços de um delicioso bolo de chocolate que uma prima de Leônidas fez. A própria Gabrielle nos deu alguns
presentes baratos e inúteis que estavam ocupando lugar na sua casa, e que a nós, como colecionadores de RPG, eram
muito interessantes: uma cópia de Rifts, uma cópia de Werewolf: the Wild West, seu antigo Desafio dos
Bandeirantes, e uma caixa com o jurássico Dragon Quest. Eu fiquei com o melhor de todos os presentes: uma fita
gravada pela própria Gabrielle com as melhores músicas do Blind Guardian, para ouvir no meu Walkman quando a
situação ficasse desesperadora.
Foi sem nenhum esforço que nosso grupo cruzou as duas quadras que separavam a casa de Lauren do
rio. Chegando lá, Dadolargo tirou a mochila, sentou-se na grama e disse:
“- Aqui estamos, pessoal. Vamos esquecer tudo de ruim que passou e que ainda vai ocorrer e procurar
arejar a cabeça, como sugeriu Gabrielle. Temos que nos concentrar em cumprir a tarefa que a nós foi destinada.
Seguindo o curso deste rio, chegaremos ao bairro negro onde está a Devir.”
Percebi que Leônidas, com seus ouvidos aguçados e bem treinados que apenas um fã de Blind
Guardian possui, estava inquieto. Sem dúvida, ouvia alguma coisa ao nosso redor, algo muito suave para ser notado
por jogadores normais.
Ao olhar para trás de uma árvore próxima, no entanto, eu mesmo vi um ser que acabava de se
esconder atrás dela. Pude notar que era deformado, apenas uma sombra de ser humano, e andava encurvado e
sorrateiramente como um rato... sua pele era branca e nojenta, seus olhos eram fundos, e ele se vestia apenas com
trapos.
Corri para Dadolargo e falei:
“- Dadolargo, há alguém nos seguindo!”
“- Eu sei, está nos seguindo desde que deixamos a casa de Mestre Helton. É o Mallum, um ser vil e
nojento. Seu nome é Mallum, pois é uma mala-sem-alça: sua chatice é lendária em todos os grupos de jogo da Terra.
Ele é do tipo que liga para a sua casa às três da madrugada para perguntar detalhes irrelevantes sobre regras ou uma
cena que você narrou, acordando assim a sua família toda com o barulho do telefone. Sua pele é branca assim pois
não sai de casa, ficando recluso ao seu quarto planejando insistentemente aventuras e rolando milhares de PCs e
NPCs, só para se divertir. Seu corpo é assim deformado pois passa dezoito horas por dia sentado, debruçado sobre
suas anotações. Seus braços não são simétricos pois ele fica o dia inteiro rolando dados com a mão direita, e com ela
também faz coisas inomináveis que eu não ousaria dizer aqui. Pois são estas as únicas coisas que sabe fazer: não
trabalha, pois não sabe que há um mundo lá fora, não estuda, pois acha que decorar as regras de um livro de RPG é o
suficiente para viver uma vida feliz, não se alimenta, a não ser pelos eventuais insetos desafortunados que voam para
dentro de sua boca aberta quando dorme, e se veste apenas com trapos pois não tem vida social, o que o faz não ligar
para a aparência e não ter amor próprio. Pois ele ama e odeia o Um Sistema, assim como ama e odeia a si mesmo.”
“- O Um Sistema? O que tem ele a ver com o Um Sistema?”
“- Foi há algum tempo, quando Mallum ainda era chamado de Smélecol pelos seus amigos. Quando
seu antigo mestre achou o Um Sistema na loja do Gordog, Smélecol estava lá também. Pois os dois viram o livro ao
mesmo tempo, e como só havia um na prateleira, ficaram com um impasse, sem saber quem o levaria para casa.
Smélecol, ardilosamente, propôs que resolvessem o impasse por meio de um jogo de Magic, pois estava com um
baralho pronto no bolso cheio de cartas apeladas. Mas seu antigo mestre foi mais astuto, e utilizou aquele velho
combo de queimar pontos de vida para aumentar o dano da bola de fogo. Assim, ele venceu o Mallum, e levou para
casa aquele livro, sem saber que se tratava do Um Sistema. Após isso, Mallum enlouqueceu: Leônidas e seus
companheiros tiveram muito trabalho tentando manter Smélecol afastado do RPG, mas ele por fim abandonou o
colégio e o emprego de novo para se dedicar ao vício.”
“- É uma história triste”, eu disse. “- E não sei se odeio o Mallum ou sinto pena dele.”
“- Vamos esquecê-lo por hora. Logo vai escurecer, vamos catar por aí umas folhas de jornal e gravetos
para que possamos fazer uma fogueira dentro deste tonel e nos aquecer.”
Seguindo a orientação de Dadolargo, fui coletar alguns papéis para providenciar o fogo. Como
estávamos perto de um semáforo, isto não foi difícil, pois o meio-fio estava cheio daqueles anúncios de ofertas de
supermercado que os panfleteiros distribuem às turras para os motoristas.
Percebi que Ademir estava por perto. Ele me olhou com surpresa, como se tivesse me encontrado por
acaso, e disse:
“- Oi! Você vem sempre aqui?”
“- Afaste-se, Ademir. Eu sei o que você quer.”
“- Eu? Ah, eu! É mesmo, é mesmo... bem, será que você poderia me dar uma emprestadinha neste
livro aí?”
“- Prefiro emprestar a minha irmã a você do que este livro”, disse eu. “- Ou você não ouviu todos os
avisos de Helton?”
“- Ah, que mal pode haver em mestrar só uma aventurazinha? Vamos, sente aí, vamos jogar só uma
aventurazinha, nem que seja solo, por favor!”
“- Saia!”, gritei eu. “- Afaste-se de mim!”
“- Ora, seu moleque! Me dê este livro!”
Ademir avançou para cima de mim, e eu esquivei de sua agarrada. Ele tropeçou, caiu no chão e
começou a chorar:
“- Meu Deus! Onde eu estava com a cabeça! O que eu fiz! Me desculpe, me desculpe!”
No entanto, já estava longe dali. Segurei forte o livro, e quando fiz isso, quase cambaleei, pois vi, na
minha frente, o símbolo da TSR, enorme, e atrás dele, apenas a escuridão e a falta de criatividade. Apavorei-me,
guardei o livro na mochila, e corri de volta para o lugar onde estávamos reunidos.
Chegando lá, peguei minhas coisas. Estava decidido a partir sozinho, pois não desejava que meus
amigos corressem riscos por minha causa. Dadolargo, apesar de certamente não concordar, me entenderia. As coisas
estavam fugindo do controle, e se eu continuasse por ali, o incidente com Ademir com certeza se repetiria, com o
Poder do Sistema corrompendo um após o outro.
Estava prestes a partir só, quando Samuel me viu e gritou:
“- Mestre! Mestre! O senhor não pode abandonar assim o pobre Samuel! Eu jurei que iria acompanhálo, ou meu nome não é Samuel! Além do quê, tenho que negociar com o senhor aquelas desvantagens do meu
personagem...”
“- Ok, ok, Samuel! Vamos juntos! É claro que eu deveria ir com você! Nós somos uma dupla perfeita!
Afinal de contas, você é o meu melhor amigo!”
Nos abraçamos como irmãos, e seguimos o curso do grande rio, em direção à Editora Negra, com a
certeza que, embora tivéssemos pouca ou nenhuma chance na missão, de nossa perseverança e coragem dependia a
liberdade do mundo RPGista.
Aqui termina A SOCIEDADE DO SISTEMA, a primeira parte de O SENHOR DOS SISTEMAS. A
próxima parte da história se chama AS DUAS EDITORAS, pois trata da luta da Sociedade do Sistema, agora
desfeita, contra a editora de Tramatanc, na planície de Vendecard, a fortaleza de Cassaruman, e a torre escura de
Devir, no bairro negro da Editora da Perdição.