O acorde secreto de Leonard Cohen

Transcrição

O acorde secreto de Leonard Cohen
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ISSN 1808-2564
revista de educação editada e
produzida pelo colégio medianeira
Diretor
Pe. Rui Körbes, S.J.
Vice-diretor
Prof. Adalberto Fávero
Coordenador Administrativo e Financeiro
Gilberto Vizini Vieira
Uma copa na África
Francisco Carlos Rehme .................................................................................................................. 5
Coord. Comunitário e de Esporte
Prof. Francisco Alexandre Faigle
Coordenação Editorial
Nilton Cezar Tridapalli
Luciana Nogueira Nascimento
A outra face da tecnologia
Guilherme Dal Moro ......................................................................................................................... 9
(MTB 2927/82v)
Revisão
Nilton Cezar Tridapalli
Projeto Gráfico e Diagramação
A história dentro de casa
Henrique Witoslawski ...................................................................................................................
12
Sonia Oleskovicz
Ilustrações
Marcelo Cambraia Sanches
Colaboraram nesta edição
Adalberto Fávero, Diego Zerwes, Francisco
Carlos Rehme, Guilherme Dal Moro,
Henrique Witoslawski, Marcelo Gorges,
Marcelo Weber, Mauro M. Braga, Nilton
Cezar Tridapalli, Susane Martins Lopes
Garrido, Ulisses Candal Sato
Tiragem
Intervalos, funções, matemática e terremotos
Marcelo Gorges .............................................................................................................................
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A era de ouro do rádio 2.0
Uma crônica sobre podcasts
Ulisses Candal Sato ......................................................................................................................
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3000 exemplares
Papel
Reciclato Suzano 90g/m2 (miolo)
Reciclato Suzano 240 g/m2 (capa)
Número de Páginas
52
EQUIPE PEDAGÓGICA
Educação Infantil e Ensino
Fundamental de 1ª à 4ª séries
Coordenadora
Profª Silvana do Rocio Andretta Ribeiro
Da vista de meu ponto ou do Haiti, da política e dos
pontos de vista
Adalberto Fávero ..........................................................................................................................
25
É pra polemizar? Então tá...
... debatendo os direitos humanos em Cuba, a mídia e a política
externa brasileira...
Mauro M. Braga .............................................................................................................................
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Ensino Fundamental de 5ª e 6ª séries
Coordenadora
Profª Eliane Dzierwa Zaionc
Ensino Fundamental de 7ª e 8ª séries
Coordenadora
Profª Roberta Uceda
A inclusão sócio-digital: preâmbulos e o caminho da
educação a distância
Susane Martins Lopes Garrido .....................................................................................................
36
Ensino Médio
Coordenador
Prof. Marcelo Pastre
Coordenador de Pastoral
O acorde secreto de Leonard Cohen
Diego Zerwes ................................................................................................................................
40
Pe. Guido Valli, S.J.
Coordenador de Midiaeducação
Nilton Cezar Tridapalli
Assessoria de Comunicação e Marketing
Luciana Nogueira Nascimento
Diversidade cultural e mundialização
Nilton Cezar Tridapalli ...................................................................................................................
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CRÔNICA
Empadas de queijo
Os artigos publicados são de inteira responsabilidade dos autores e não refletem necessariamente a opinião dos editores e do Colégio
Nossa Senhora Medianeira. A reprodução parcial ou total dos textos é permitida desde que
devidamente citada a fonte e autoria.
Linha Verde • Av. José Richa, 10546
Prado Velho • Curitiba • Paraná
fone 41 3218-8000/ fax 41 3218-8040
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Marcelo Weber ...............................................................................................................................
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Política e mídia: ligando os pontos
O que poderia ter em comum a história do
sobrenome de sua família, a relativização do discurso contra Cuba, a visão que o mundo recebe
sobre o Haiti, as eleições que se aproximam e a
Copa na África?
Tudo está impregnado de histórias e de História, sejam as oficiais, sejam as oficiosas – muitas vezes mais dignas de confiança. Conhecer a
si mesmo – como sujeito particular ou como parte de um coletivo – e ao outro – seja esse outro
um indivíduo ou uma nação – nos faz ampliar a
perspectiva, nos desloca do nosso ponto de vista limitado e nos faz perceber o mundo de modo
mais amplo, mais rico. Todos esses temas, se discutidos com seriedade, podem nos fazer, no mínimo, questionar discursos únicos que rondam
por aí e, de tão repetidos, se cobrem com o manto da verdade.
O que poderia haver de comum entre as mudanças que ocorreram entre a era das ondas do
rádio e a era do rádio sem onda, a inclusão sócio-digital, a diversidade/unilateralidade cultural
e a suposta neutralidade tecnológica?
Todos esses temas desvelam – ou seja, “tiram o véu” – a transformação e a importância das
mídias. Aquele negócio de que mídia é “apenas”
um meio, um veículo neutro de transmissão de
informações não parece se sustentar. Por trás das
inovações, muitas intenções, às vezes claras,
muitas vezes obscuras. Por outro lado, o humano, que LIDA controla essas mídias, é capaz de
usá-las de modo criativo e solidário. Ou seja, o
velho embate entre os interesses de mercado –
por natureza egocentrado – e as ações altruístas
aparece por aqui.
Mas, espere um pouco. Na resposta à primeira
pergunta, falamos que o império do discurso único poderia ser destronado. Isso também vale
para a análise das mídias.
Mas, espere mais um pouco. Na resposta à
segunda pergunta, falamos da parcialidade das
mídias e do jogo de forças entre o seu uso para
fins de mercado e para fins de compartilhamento. Se mídia constrói discurso, então ela também
está relacionada ao grupo da primeira pergunta!
Enfim, como você já deve ter percebido, tudo
pode se relacionar com tudo. Trata-se de uma urdidura que, por um ou vários fios, vão se enredando e tecendo algo em comum – comunicação.
Ah, quer saber o que mais esses temas têm
em comum? Todos eles estão nesse número 16
da revista Mediação.
Ainda trazemos explicações matemáticas sobre os tantos terremotos que têm afligido vários
cantos do mundo e o mundo de um modo geral
(tudo se comunica, lembra?). Também analisamos
um pouco o fenômeno da canção “Hallelujah”, do
escritor, compositor e cantor Leonard Cohen,
cuja canção já recebeu mais de 200 versões. Os
dilemas existenciais do ponto de vista da ficção
literária e uma receita culinária sempre digna de
respeito fecham nossa edição.
Quer arriscar o que esses últimos temas têm
em comum?
Escreva pra gente:
[email protected].
Confira on-line as outras edições da revista e
visite nosso blog. Está tudo lá em http://
midiaeducacao.wordpress.com.
Aquele abraço.
Nilton Cezar Tridapalli
[email protected]
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Uma
na
COPA
ÁFRICA
Por Francisco Carlos Rehme
Entre belezas, mazelas e estereótipos, eis
que veremos uma Copa do Mundo de
futebol no continente africano.
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D
Devo dizer, no intuito de dar uma pista sobre
o que deve discorrer o tema, que sou daqueles
que aguardo com muita expectativa – e mais ainda, nostalgia – uma copa do mundo de futebol.
Aprecio programas televisivos de debates, do
tipo “loucos por futebol”, em que há uma mágica alquimia na fusão da história, da geografia com
o chamado “esporte bretão”. Aprendi a gostar de
geografia também desse jeito e, de quebra, a
gostar da história do futebol.
E já não era sem tempo: oitenta anos depois
da primeira Copa do Mundo e depois de dezoito
edições, eis que o continente africano sedia o
principal evento futebolístico. Bem sei que os argumentos puramente econômicos, muitos dos
quais cheiram a capitalismo mofado, depõem
contra a capacidade estrutural de algum país
da África em promover o campeonato. Tais “teses” trazem em seu bojo o
mesmo conteúdo preconceituoso
e autojustificável dos que se apregoavam nos séculos XV, XVI,
XVII (e por aí afora), quando
os europeus sentiam-se
com o dever “cristão” e
“humanista” de levar a
“civilização” ao “continente selvagem”. Isso
significava garantir a legalidade e, mais do que isso,
florear um violento processo
de colonização continental e de
escravização de inúmeras nações.
Do Cabo da Boa Esperança ao Estreito de Gibraltar e de Dacar à Península da Somália, a África é bastante extensa: três europas, mais de uma vez e meia a
América do Sul. O número de estados se equivale ao europeu, aproximadamente meia centena. A grande maioria desses países é absolutamente desconhecida pelas pessoas de nossa
cidade. Só irão aparecer no Jornal Nacional se
houver uma grande tragédia, uma guerra civil,
por exemplo. Ou se, na copa, aprontar alguma
zebra – animal que, aliás, é natural das savanas
africanas. Estados são tantos e, quanto às na-
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ções? Incontáveis, multiplicadas entre o Índico,
o Atlântico e o Mediterrâneo. Uma rica coleção
de línguas, músicas, danças e cores.
Embora as escolas raramente nos contem, a
gloriosa história das civilizações africanas não se
resume ao Egito dos faraós ou à Núbia, vizinha
meridional da terra da esfinge. As ruínas de Zimbabwe, no país que há apenas 35 anos pode ostentar esse nome*, atestam uma florescente cultura. Nas áridas terras do Sahel, que hoje compõem o mais dramático cinturão da fome, da
miséria e do esquecimento por parte do resto
do mundo, havia imponentes cidades de adobe
no Mali e na Mauritânia. Por lá passaram caravanas carregadas de ouro e marfim, uma das tantas formas de sangria das riquezas continentais.
Cada canto desde continente geograficamente
tão bem recortado é pleno de histórias, seja no
Magreb, a islâmica África mediterrânea ou junto
aos inúmeros lagos e vulcões do Grande Vale da
África Oriental, berço dos hominídeos, coisa de
mais de quatro milhões de anos atrás.
Ainda que timidamente, porém, os ventos
alísios começaram a mudar a direção: desde o
final do século passado, graças à luta da própria
população africana, os holofotes da mídia passaram a revelar novos cenários da realidade social, econômica e cultural da África. O Congresso
Nacional Africano, no cone sul do continente, cresceu em importância na luta pela independência
de diversos países e para o fim do regime segregacionista conhecido como “apartheid”. Em
seguida, e por consequência, veio a eleição de
Mandela, e mais: uma administração digna e sábia, apesar das históricas discrepâncias da África do Sul, um verdadeiro tapa de luva para a oligarquia de herança britânica ou holandesa por
alguns séculos ali estabelecida. Mais recentemente, destaca-se a luta pelo perdão da dívida
externa contraída pelos países africanos, ex-colônias europeias. Mas, afinal, quem tem de pedir
perdão a quem? Quem de fato contraiu dívida?
E, apenas para partilhar um incômodo, os milhões de deportados pela escravidão durante
quatro ou cinco séculos, outro tanto que morreu
nos porões dos navios e o esvaziamento demográfico nas aldeias da África, como se calcula o
custo de tudo isso?
De volta à copa, eis que teremos uma oportunidade de apreciarmos cidades e paisagens africanas além das lentes da National Geograhic,
quase sempre – e com muita razão – focadas nos
parques Krüger, Serengeti e Ngorongoro. E mais
ainda dos filmes em preto e branco de Tarzan
ou mesmo dos desenhos coloridos e engenhosos de Rei Leão e Madagascar. Lá estarão nos
esperando as nuances de metrópoles como Joanesburgo e Cidade do Cabo. Aliás, parte da estrutura rochosa da Montanha da Mesa que majestosamente emoldura a cidade e o próprio
Cabo da Boa Esperança é arenítica, como no
Segundo Planalto Paranaense. Legado do tempo em que Brasil e África eram uma coisa só - e
chamada de Gondwana.
Quando se confere a participação de países
africanos na história das copas, os números parecem, ao menos, sussurrar algum desconforto.
Já mencionamos que o número de países na
Europa e na África é muito próximo, cerca de
meia centena. Enquanto que na Europa, de cada
quatro países, três já participaram de alguma
copa – em geral, de várias delas –, na África, a
proporção é de um para quatro ou cinco. E essa
relação ainda não ficou mais desproporcional por
conta da fagulha de lembrança da FIFA que, desde a Copa da França em 1998, “permitiu” a participação simultânea de seis seleções africanas
(contra quinze participantes europeus e oito do
continente americano). Por vezes, ouve-se uma
alegação que ressalta a qualidade e a própria história do profissionalismo futebolístico africano
como muito recente e ainda inferior ao europeu
e ao sul-americano. Para a primeira metade do
século XX, tempo em que o próprio evento ainda carecia de uma maior infraestrutura, pode-se,
de fato, considerar tal justificativa. Com o caminhar para o final do século e a entrada nessa nova
centúria, isso já não serve mais como outrora.
Ainda mais quando se enaltece a capacidade globalizante dos meios atuais. Além do mais, basta
se elencar a quantidade e qualidade dos atletas
africanos que se espalham pelas ligas europeias,
para se arquivar e trancafiar a concepção de um
futebol de qualidade inferior para os representantes africanos.
Como na América e na Europa, é evidente que
haverá algumas seleções que estão longe não só
de aspirar um glorioso e inédito título mundial,
como o de ficar entre os quatro semifinalistas.
Mas, como naqueles continentes – que poderíamos bem chamar de “Velho Mundo da Civilização de Chuteiras” –, há representantes do continente africano que, se lhes derem um pouco mais
de condições para a preparação que antecede a
competição – e isso significa mexer com a inquestionável liberação antecipada dos craques
que jogam na Europa –, podem e muito bem papar tão logo uma copa do mundo. De acordo com
os entendidos em futebol mundial, Nigéria, Gana
e Costa do Marfim estariam atualmente melhor
qualificadas, entre os representantes da África.
Apenas para sanar a curiosidade, aí vão os treze países da África que, desde 1970 – copa em
que África debutou – já participaram ou estarão
em campo neste ano:
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PAÍSES (SELEÇÕES)
PARTICIPAÇÃO NA(S) COPA(S)
1.
MARROCOS
1970 - 1986 - 1994 - 1998
2.
ZAIRE (atual CONGO)
1974
3.
TUNÍSIA
1978 - 1998 - 2002 - 2006
4.
CAMARÕES
1982 - 1990 - 1994 - 1998 - 2002 - 2010
5.
ARGÉLIA
1982 - 1986 - 2010
6.
EGITO
1990
7.
NIGÉRIA
1994 - 1998 - 2002 - 2010
8.
ÁFRICA DO SUL
1998 - 2002 - 2006 - 2010
9.
SENEGAL
1998
10. GANA
2006 - 2010
11. COSTA DO MARFIM
2006 - 2010
12. ANGOLA
2006
13. TOGO
2006
Uma copa bem jogada, com a
ginga, mistura de dança e dribles
tão própria da cintura africana e
mais a interminável musicalidade
emanante das gargantas, tambores
e, nem tão melódicas, vuvuzelas
sul-africanas, por certo contribuirão
para um pequeno, muito pouco, é
verdade, resgate da dignidade esportiva e cultural africana.
Francisco Carlos Rehme, o
Chicho, é geógrafo, professor de
Geografia de 5ª. série do Ensino
Fundamental e da 3a. série do
Ensino Médio no Colégio
Medianeira. Especialista em
Geografia Física - análise ambiental
pela UFPR e em Currículo e Pratica
Educativa (PUC-Rio). É também
mestre em Geografia, dentro da
linha de pesquisa “Dinâmica das
Paisagens” (UFPR).
* Desde o século XVIII até 1975, Zimbabwe era denominado de Rodésia, em homenagem ao explorador britânico Cecil Rhodes, um dos pioneiros do desbravamento do
interior da África para os interesses dos estados europeus.
PARA QUANDO A ÁFRICA?
AUTOR: JOSEPH KI-ZERBO
Editora Pallas
Para quando a África? é presença obrigatória na biblioteca de estudiosos,
ativistas e interessados nos problemas da atualidade. É obra de um
historiador africano, que nela mostra uma visão nova para todos os que
somente tiveram acesso, na escola, à história oficial, narrada do ponto de
vista europeu. É obra de um socialista democrata, que analisa a situação
do continente africano a partir do ponto de vista das necessidades de
liberdade e dignidade para indivíduos e nações. É obra de um experiente
ativista político progressista, que apresenta uma visão lúcida sobre questões
como as armadilhas das teorias desenvolvimentistas, do neoliberalismo e
da globalização, ao mesmo tempo em que critica propostas de isolamento econômico e cultural, e
reivindica a necessidade de apropriação de saberes e tecnologias pelos povos do Terceiro Mundo.
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A
OUTRA
FACE da
TECNOLOGIA
Por Guilherme Dal Moro
Sim, é verdade que a tecnologia
nos trouxe mil maravilhas; mas é
também verdade que mil
interesses escusos estão por trás
dessas maravilhas. Erguendo o
tapete da História, é possível ver
algumas sujeirinhas ali embaixo.
P
Por cerca de cinco séculos, após o ressurgimento das ciências clássicas, solidificadas nos
estudos de Descartes, Bacon, Newton e outros,
o homem esteve mergulhado num paradigma
que traz a ciência como entidade neutra e imparcial. O próprio método científico de Descartes foi
desenvolvido com o propósito de promover a
construção de uma ciência em que o objeto de
estudo tivesse o menor contato e contaminação
por parte de seu observador, o sujeito pesquisador. A partir da aplicação deste método científico
e o acatamento de rígidos códigos de honestidade profissional, esperava-se da ciência a produção e acumulação de um conhecimento objetivo.
Surge, desta concepção, a visão clássica de que
a ciência somente pode contribuir para a melhoria do “bem estar social” ao se isolar da sociedade e perseguir exclusivamente a verdade. De
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modo semelhante, à tecnologia é outorgado o status de entidade neutra e imparcial e confere-lhe o
papel de produtora e transmissora de um conjunto de dispositivos concretos que subsidiem as
tarefas laborais e domésticas dos indivíduos.
Segundo Walter Bazzo, e outros, tais perspectivas consolidaram, nas sociedades ocidentais, principalmente nos dois últimos séculos, uma visão
“triunfalista” e hegemônica da ciência e da tecnologia, denominado “modelo linear de desenvolvimento”, que pode ser resumido numa relação de causalidade bastante simples: quanto “+ ciência à +
tecnologia à + riqueza à + bem estar social”.
No entanto, a partir da década de 60, o mito
da hegemonia e neutralidade tecnológica e científica passa a sofrer as primeiras críticas de setores substancialmente acadêmicos da sociedade.
Surge um novo sentimento, decorrente dos diversos desastres na década anterior relacionados
à tecnologia e à ciência, de maior cautela e alerta
em relação ao otimismo oferecido pelo progresso tecnológico. Ademais, contesta-se a validade
da relação apresentada acima: para quem e para
quantos a tecnologia e a ciência trazem “+ bem
estar social”? São tecnologia e ciência entidades
neutras e imparciais realmente, ou estão a serviço de interesses disfarçados nas relações econômicas, políticas, sociais e culturais?
Donald MacKenzie e Judy Wajcman, no livro
Social shaping of technology, defendem a ideia
de que a tecnologia e a ciência são “modeladas”
por diversos aspectos de ordem econômica,
social, política, cultural, etc. Não vamos nos aprofundar aqui nos detalhes minuciosos de como
tecnologia e ciência refletem traços destes aspectos, mas nos atenhamos a alguns exemplos do
nosso cotidiano para refletir estas ideias.
De forma geral, a tecnologia e a ciência são
desenvolvidas por grupos, empresas, universidades, institutos e centros tecnológicos, privados ou governamentais, que justificam suas pesquisas científicas e/ou tecnológicas de acordo
com interesses específicos. No que se refere às
fontes de geração energética, por exemplo, basta uma rápida busca nos grupos de pesquisa nas
universidades de todo o mundo para se “antenar” com o que está sendo pesquisado. A diver-
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sidade e a pluralidade das pesquisas são enormes e todas elas se justificam, porque trazem
vantagens em relação às tecnologias utilizadas.
Atualmente, as discussões ambientais e climáticas condicionaram as pesquisas tecnológicas a
trazer como uma das vantagens a redução dos
impactos nocivos aos ecossistemas. Pesquisas
de geração de energia elétrica por meio de processos “ambientalmente corretos” com uso das
ondas, marés, correntes marítimas, vento, irradiação solar estão pipocando por toda a parte.
No entanto, isto não significa que estas tecnologias estejam sendo implementadas por aí. Os
resultados do recente fórum mundial em Davos
nos permitem concluir com segurança: o poder
econômico, o “Senhor Dinheiro”, ainda está acima de outros “Senhores” e outros interesses.
Langdon Winner traz alguns exemplos interessantes, em Do artifacts have politics?, de
como interesses de ordem social modelam a
tecnologia. Da década de 1920 à de 1960, diversas pontes foram construídas na cidade de Nova
Iorque pelo engenheiro Robert Moses. Uma delas (Robert Moses Bridge) em particular, que liga
a cidade às praias de Long Island, possui uma
característica bastante peculiar: as estruturas
metálicas de sustentação da ponte são relativamente baixas em relação ao asfalto, de tal modo
que os ônibus utilizados para o transporte coletivo na cidade de Nova Iorque, naquela época,
não poderiam transitar por ela. Desta forma, segundo Winner, Moses garantiu que as praias de
Long Island se reservassem às minorias mais ricas que possuíam carros e assim poderiam chegar até elas. Mesmo com a difusão dos meios
de transportes individuas nas demais classes
sociais, nas décadas seguintes, o desenvolvimento da região de Long Island condicionado pelo
padrão econômico elitista – resultando com isso
no encarecimento das propriedades e dos serviços na região – perpetuou a inacessibilidade
das classes mais humildes àquelas praias.
Trago outro exemplo, mais próximo da nossa realidade, que também revela a indissociabilidade entre aspectos tecnológicos e sociais. Em
meados do século passado, algumas transformações sociais e o próprio desejo das mulheres de
ressignificar seu papel na sociedade conduziram-
nas a entrar definitivamente no mercado de trabalho. No Brasil, este movimento ganha maiores
proporções a partir da década de 70. Reflexo deste processo pode ser facilmente constatado ao
observar a proporção de mulheres que passam
a integrar cursos universitários com interesses
claros de se capacitarem para o emprego. Consequentemente, o número de famílias em que as
mulheres assumem a função de única provedora financeira aumenta proporcionalmente. É exatamente nesta época que surgem inúmeros produtos – eletrodomésticos, alimentos pré-preparados, congelados – que facilitam e agilizam o desempenho das funções domésticas e, por isso,
possibilitam que as mulheres continuem desempenhando tais funções, mesmo nas famílias em
que a figura masculina se preserva. De modo claro: o que muitos interpretam como maravilhas
tecnológicas que simplificam os afazeres de casa,
na realidade, são tecnologias que cristalizam antigas estruturas sociais.
O último, e talvez o mais triste dos aspectos que
tratarei neste artigo, se refere ao desenvolvimento
tecnológico impulsionado por interesses militares
e bélicos. Diversas das tecnologias que utilizamos
nos nosso cotidiano foram primeiramente desenvolvidas com finalidade militar e, num segundo
momento, adaptadas para o uso no cotidiano por
meio de bens de consumo. Somente para citar alguns exemplos: forno de micro-ondas, roteador
wireless, internet, GPS, equipamentos médicos
para diagnóstico e exames como ultrassom e ressonância magnética, etc. A própria técnica de fissão nuclear utilizada nas usinas nucleares (para geração de energia elétrica) foi desenvolvida no projeto Manhattan, iniciado em 1939, que resultou na
construção de duas ogivas nucleares – Little Boy e
Fat Man – detonadas nas cidades de Nagasaki e
Hiroshima após a rendição japonesa na Segunda
Guerra Mundial. Até mesmo o avião, orgulho nacional por ter um brasileiro como seu inventor, teve
suas principais melhorias enquanto arma de guerra e não enquanto máquina de transporte de passageiros (civis) e carga.
Sobre o outro lado da tecnologia, aquele que
reflete suas maravilhas e sucessos, não pretendo discuti-lo aqui, afinal de contas já está virado
para cima, descoberto e escancarado. Prefiro, em
vez disso, encerrar este breve artigo com a boa
opinião de nosso grande professor e mestre Paulo Freire: “Nunca fui ingênuo apreciador da tecnologia: não a divinizo, de um lado, nem a diabolizo, de outro. Por isso, sempre estive em paz
para lidar com ela”.
(Comente este artigo em
[email protected])
Guilherme Dal Moro é ex-aluno do Colégio
Medianeira. Formou-se em Física na UFPR e
atualmente faz mestrado na UTFPR sobre
Tecnologia e Sociedade. No Medianeira, é
professor de Física do 1º ano do Ensino Médio.
PRODUÇÃO SOCIAL DA TECNOLOGIA
SOCIOLOGIA E CIÊNCIA POLÍTICA
AUTORA: VILMA FIGUEIREDO
Editora EPU
Esse livro apresenta as principais
questões que as Ciências Sociais
têm formulado sobre a tecnologia, sua produção, difusão e consumo nas sociedades contemporâneas. São enfatizadas as diferentes dimensões da tecnologia econômia, política, ideológica e
científica - e são discutidas possibilidades tecnológicas
para nações dependentes como o Brasil. A tecnologia é
apresentada como resposta socialmente produzida a necessidades sociais e, assim sendo, como resultado e
condição da vida humana em sociedade.
NEUTRALIDADE DA CIÊNCIA E
DETERMINISMO TECNOLÓGICO
AUTORA: RENATO DAGNINO
Editora Unicamp
O autor aborda um tema até agora restrito aos filósofos da ciência
e da tecnologia a partir de sua experiência com a docência e a pesquisa no campo interdisciplinar
dos Estudos sobre Ciência, Tecnologia e Sociedade.
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A
HISTÓRIA
dentro de casa
Por Henrique Witoslawski
Ainda é comum a alguns desavisados se perguntarem
pra que ficar estudando História, aprendendo datas e
fatos em livros às vezes sem graça. Bem, além do fato
óbvio de que a História nos explica, quem disse que
ela é estudada apenas nos livros?
12
C
Como todos os conteúdos estudados em aula,
a História não se encontra limitada aos muros da
sala ou da escola. Ela está em todos os lugares,
basta olhar nomes de ruas e avenidas, monumentos em parques ou praças e alguns feriados
regionais ou nacionais. Além disso, as diversas
casas de memória, galerias e museus que existem pela cidade. Mais do que isso, ela está presente no cinema, desde sempre – de Ben-Hur ao
E o Vento Levou, depois Cleópatra, O Nome da
Rosa e O Gladiador, para falar muito pouco do que
já foi produzido sobre temas históricos. Nos últimos anos, ainda houve o aparecimento de um
grande número de revistas especializadas em
História, escritas e editadas por grandes historiadores e direcionadas ao público não acadêmico
– como bons exemplos, temos a Nossa História,
a História Viva e a Aventuras na História (que
custam entre 10 e 15 reais nas bancas e por volta
de 5 nos sebos).
Mesmo com todo esse bombardeio de História à sua volta, as pessoas ainda conseguem
achar que tudo se resume a decorar datas, fatos
e nomes. Há um senso comum terrível – e que
insistentemente vem sendo desconstruído com
muita luta nas duas últimas décadas – que impede as pessoas de verem e pensarem a História
de forma analítica e reflexiva.
Proponho que este olhar diferenciado seja
iniciado dentro de casa, em uma situação de conversa simples entre pais e filhos. Para isso, irei
sugerir algumas discussões que podem ser feitas na hora do jantar de qualquer dia da semana,
mas de preferência em um no qual todos estejam tranquilos, relaxados e com vontade de fazer um mínimo esforço de memória. Os exemplos que darei a seguir são mais próximos da
chamada História Cultural, que analisa a realidade
de determinados momentos pelas práticas, costumes, hábitos e tradições, sem a tradicional ênfase na política e na economia. Embora eu não
acredite que essas esferas possam ser analisadas
de maneira dissociada, é comum a separação.
Vamos começar pelo simples: os filhos de um
casal qualquer possuem dois sobrenomes, cada
um vindo de um lado do matrimônio. O primeiro, da mãe, tem origem polonesa e o segundo,
do pai, tem origem alemã. Primeira dedução, lógica: os avós, bisavós ou tataravós das crianças
não tinham origem brasileira. Mas se a família não
tem origem neste país, por algum motivo alguém
veio parar aqui.
Neste momento começa a primeira reflexão:
por que os avós (ou bisavós e assim por diante)
vieram para o Brasil? Por que saíram de suas casas lá na Europa? Os motivos que passam na cabeça das crianças são os mais diversos (experimente perguntar!): porque aqui as coisas seriam
melhores, porque estavam passando fome por
lá, porque queriam mudar de ares, porque alguém prometeu alguma coisa muito boa no Brasil, entre outros pensamentos possíveis. Se alguém já parou para conversar com o parenteimigrante, provavelmente ouviu alguma história
sobre um contexto europeu de guerras, pobreza
e fome. Aliado a isso, algumas propostas bastante tentadoras do governo brasileiro para atrair
pessoas, com diversos interesses e objetivos.
Daí a primeira análise a ser feita: o que levou
milhões de pessoas a sair de seus países (contando que os avós não vieram sozinhos)? O contexto europeu, terrível para a grande maioria da
população que dependia de terras cultiváveis e
sua força de trabalho, gerava fome e miséria.
Quando surgiram propostas de outros países do
mundo, que prometiam bons meios de sobrevivência, diversos contingentes de várias partes da
Europa desembarcaram em terras nacionais.
Ponto de reflexão: quais seriam os interesses
do Brasil em atrair pessoas? De maneira muito
geral, esse interesse variou de região para região
do nosso país. Em São Paulo, por exemplo, havia uma demanda muito grande por uma mão de
obra que fosse barata e que substituísse o trabalho escravo nas lavouras de café, abolido definitivamente em 1888. É dessa época a grande imigração de italianos para a capital e interior paulista – já diversas vezes retratada em novelas e minisséries televisivas.
No Paraná, apesar de ter existido trabalho escravo, a demanda maior por pessoas era por
outro motivo: ocupar (boa) parte dos territórios
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interioranos ainda desabitados do estado. Por
isso, o governo paranaense prometia terras e
sustento aos estrangeiros, para que viessem e
tomassem posse, digamos, da parte não ocupada do estado. Por aqui, a mão de obra imigrante foi dirigida também para serviços de
construção civil – como a ferrovia que liga Curitiba ao litoral – e diversos serviços e comércios
dentro das cidades.
Se os avós, ou bisavós, ou tataravós da família dita neste texto vieram direto para Curitiba, é
muito provável que tenham chegado em épocas
diferentes e se estabelecido em lugares diferentes (lembrando que uma família é alemã e a outra é polonesa). Os alemães foram dos primeiros imigrantes a chegar até a região de Curitiba e
se instalaram muito rapidamente em regiões próximas ao centro da cidade – para se ter uma ideia,
a Curitiba da segunda metade dos anos 1800 era
uma cidade pequena, concentrada no que hoje
em dia são as praças Santos Andrade e Osório,
tendo como referencial a catedral, na praça Tiradentes. Os mais ricos moravam na rua Comendador Araújo ou arredores, o comércio era concentrado na rua XV de Novembro (que já se chamou Rua da Imperatriz e depois Rua das Flores)
e, em menor escala, na Marechal Deodoro (antes
chamada Rua da Entrada – pois era a via de acesso a Curitiba para quem vinha de São José dos
Pinhais, cuja principal via de acesso era a atual
Marechal Floriano Peixoto).
A rua que hoje se chama Treze de Maio, que
passa atrás do Largo da Ordem – atual centro histórico e centro daquela época – era chamada Rua
dos Alemães. Perto dali, o shopping Müller era
uma casa de fundição, dos irmãos Müller, alemães. Os poloneses instalaram-se em locais um
pouco mais distantes – Bocaiúva do Sul, Orleans,
Abranches e Pilarzinho.
Além dessa localização espacial dentro da cidade, poderia haver outros problemas, de convívio social talvez. É bastante comum que os pais
contem aos filhos algumas situações de sua infância e adolescência, ou de como se conheceram, onde, com quem estavam e como ficaram
juntos. Talvez as famílias não se gostassem, talvez o casal tenha tido problemas. No tempo em
14
que (bis)avós das crianças do texto eram jovens,
poderia existir alguma situação incômoda quanto aos relacionamentos.
Talvez essa situação fosse causada por alguma diferença social; uma disparidade financeira
entre as famílias poderia causar alguns problemas ou constrangimentos. Há também a possibilidade dessa situação ter sido causada pela
descendência. No começo de século XX, os imigrantes não costumavam se misturar muito por
aqui, a não ser pelo comércio. Pela própria bagagem cultural trazida da Europa e pela imagem
construída aqui no Brasil, alguns imigrantes eram
mais bem vistos do que outros. Os alemães, por
exemplo, tinham destaque na sociedade curitibana, eram bem vistos, foram dos primeiros a
chegar, conquistaram a fama de trabalhadores e
honestos, além da admiração pelos germânicos
estarem bem presentes entre a população daquela época. Os poloneses, meio que ao contrário disso, vieram depois, e já por um certo desdém de outros europeus (disputas nacionais existentes há tempos lá na Europa, bem antes da
imigração) e por parte da população local, chegaram a ser chamados de “pretos do avesso”,
como se fossem a versão branca dos escravos
africanos, pois faziam serviços “menos qualificados” e “de menor importância”.
Mas o que sempre existe dentro de casa e é
o melhor passaporte para o passado, são as fotografias. Através delas, pode-se viajar diretamente para um ponto específico da vida de uma
ou várias pessoas e que foi registrado para sempre. Vale pensar que hoje em dia, com as máquinas digitais, as fotografias estão bem mais banalizadas, digamos assim, mas antes, com as analógicas, com filme de revelar e 12, 24 ou 36 poses, as máquinas geralmente eram utilizadas em
ocasiões – uma comemoração, uma data marcante, em algum evento. Isso torna as fotografias
antigas ainda mais interessantes.
Em uma boa conversa após o jantar, filhos
podem passar horas vendo fotos dos pais, tios,
padrinhos, avós, bisavós e, obviamente, suas
próprias fotos quando ainda eram bebês, por
exemplo. É comum, ao vermos uma foto, querermos saber onde ela foi tirada, quem está presente, por que foi tirada, enfim. Logo, qualquer
álbum rende horas de conversa.
Pelas fotografias, nota-se a enorme mudança
no vestuário, nos cortes de cabelo, nos carros e,
principalmente, na paisagem urbana ou, ainda,
rural. É praticamente impossível que o cenário
de uma foto tirada há 10, 20, 30 anos, ou mais,
seja o mesmo. Alguns lugares não existem mais,
alguns espaços públicos tornaram-se shoppings,
alguns shoppings foram demolidos, alguns elementos que eram característicos do centro foram
substituídos – como as luminárias roxas que havia ao longo do calçadão da XV – muitos bairros
cresceram, alguns novos surgiram e (por que não,
infelizmente), muitas casas ganham grades nas
portas e janelas. Se os pais foram adolescentes
até meados dos anos 90, é possível que tenham
algumas fotos com o calçadão da XV lotado de
gente em dia de semana, adolescentes como eles,
ao contrário da enorme concentração dentro de
Shoppings Centers que se nota atualmente.
Todas essas mudanças no visual da cidade
têm um, ou mais, motivos: a industrialização, a
forte propaganda feita de Curitiba pelo Brasil afora ao longo dos anos de 1990 e início deste século XXI (cidade modelo, capital social, capital ecológica), o crescimento e a constante propaganda
sobre os índices de violência urbana, a necessidade de criação de novos parques e praças, enfim, tudo que pode ser perguntado em casa. Se
os filhos perguntarem como era a cidade na época em que seus pais casaram, ouvirão falar de
um lugar diferente do que veem. Tão ou mais
interessante é fazer a mesma pergunta para os
avós. O assunto pode ser conduzido de modo a
quererem saber a opinião dos pais e avós sobre
os motivos da mudança. Provavelmente ouvirão
uma série de lamentos, nostalgias, deduções e
discordâncias entre quem conta.
A história das pessoas está extremamente ligada à história do seu local de nascimento, crescimento, trabalho, diversão, enfim, à sua moradia, sua cidade. Imaginar que é possível separar
o que cada um viveu do que aconteceu dentro
de sua cidade é precipitado. Tudo o que acontece à nossa volta tem reflexos nos nossos hábitos e no nosso cotidiano; somos partes integrantes da vida pública de onde moramos. O conhecimento do espaço público como ele é hoje começa pelo conhecimento de como ele era; entender o que acontece hoje, os motivos para fazermos tudo aquilo que costumamos fazer pode
começar dentro de casa, em uma reunião familiar. Nessa conversa simples e divertida podemos
aprender muito sobre quem somos e o local
onde vivemos. Isso é ver a história acontecer.
(Comente este artigo em
[email protected])
Gostaria de deixar meu MUITO
OBRIGADO à Lúcia e à Adriana que
revisaram e deram boas sugestões
para a conclusão deste texto.
Henrique Witoslawski é professor de
História da 6ª série. Formado em
História – bacharelado e licenciatura –
pela Universidade Federal do Paraná e
Mestre em História também pela UFPR.
15
VIAGEM A CURITIBA E PROVÍNCIA DE
SANT
A CA
TARINA
SANTA
CAT
COLEÇÃO: RECONQUISTA
DO BRASIL
AUTOR: AUGUSTE DE
SAINT-HILAIRE
Editora Itatiaia
Saint-Hilaire é um dos cronistas estrangeiros que fizeram do
Brasil o seu tema. Perscrutou
tudo o que se lhe deparava
ante os olhos, desde o índio
às mais requintadas manifestações da implantação da cultura européia no país. Chegou a conhecer tão bem determinados aspectos da formação étnica, cultural, social e política, que não se furtou a fazer argutas comparações entre usos e costumes das regiões que visitou. Vejase, a este propósito o paralelo que fez entre as mulheres
de Minas (estudadas antes, nos outros volumes desta
coleção) e as de Santa Catarina, presentes neste volume. Apresenta observações quanto à fauna e flora, e
descreve.
A IMIGRAÇÃO ALEMÃ P
ARA
PARA
O SUL DO BRASIL
AUTOR: FERDINAND
SCHRODER
A IMIGRAÇÃO IT
ALIANA NO BRASIL
ITALIANA
AUTOR: JOAO FABIO
BERTONHA
Editora Saraiva
Editora Unisinos
O livro A imigração alemã para
o sul do Brasil foi encontrado
por seu tradutor, o professor
Martin Dreher, em um sebo da
Alemanha. Ferdinand Schröder
realizou uma ampla pesquisa,
utilizando fontes brasileiras até
então não consideradas, material impresso em língua alemã, publicações encontradas em arquivos de instituições do Brasil e da Alemanha, e leis constantes em publicações oficiais brasileiras. Todo o rigor do positivismo historiográfico alemão
está presente nesse livro, tornando-o um marco na construção da matriz sobre a história teuto-luterana.
16
O Brasil recebeu mais de 1 milhão e meio de homens, mulheres e crianças que deixaram
a Itália para tentar uma vida
melhor na América. Neste livro, João Fábio Bertonha estuda a vida desses imigrantes
e sua luta para progredir e sobreviver, não só descrevendo como era a sociedade na
época em que eles desembarcaram, as condições de
trabalho a que se submetiam nas fazendas de café, nas
pequenas propriedades do sul, nas fábricas de São Paulo
e nos serviços urbanos em todo o Brasil, como também
seu esforço para ascender socialmente num mundo
novo e conseguir a integração econômica, política e
cultural. Além disso, aborda também a colônia italiana
da atualidade no Brasil, mostrando sua influência na
cultura brasileira.
INTERVALOS,
Funções,
MATEMÁTICA
e Terremotos
Por Marcelo Gorges
Com os recentes terremotos atingindo Haiti, Chile, Estados Unidos,
o artigo propõe explicar um pouco mais sobre os abalos sísmicos
e usar a Matemática para analisar essas ocorrências.
17
Terremotos
Um sismo ou terremoto é um movimento
natural repentino da crosta terrestre que ocorre
bruscamente num período de tempo bem restrito, a partir de um determinado local e propagando-se em todas as direções. As ondas sísmicas podem ser provenientes de movimentos
subterrâneos de placas rochosas, atividade vulcânica e por deslocamentos de gases do interior
da Terra, principalmente metano.
Grande parte dos terremotos ocorre nas fronteiras entre placas tectônicas ou em falhas entre
dois blocos rochosos. Estas falhas são fraturas
ao longo das quais os blocos rochosos de crosta
terrestre se movimentam, em ambos os lados,
relativamente uma sobre a outra e em paralelo
com a fratura. O comprimento de uma falha pode
variar de alguns centímetros até milhares de quilômetros. Entre os efeitos dos terremotos estão
a abertura de falhas, a ruptura de um bloco de
rocha através de uma falha geológica, deslizamento de terra, tsunamis, mudanças na rotação da Terra, além de efeitos deletérios em construções feitas pelo homem, além disso, resulta em perdas
de vidas, altos prejuízos econômicos e sociais
(como o desabrigo de populações inteiras, facilitando a proliferação de doenças, fome, etc.).
O terremoto com maior impacto já registrado ocorreu no Chile em 1960 e atingiu 9.5 na
escala de Richter. Este terremoto ficou conhecido como o Grande terremoto do Chile. Agora,
em fevereiro de 2010, o mesmo país foi novamente castigado por um novo terremoto de
grande energia.
Tipos de sismos
A maioria dos sismos é designada sismos
tectônicos, devido ao fato de as forças tectônicas entre as placas serem aplicadas na Litosfera, faixa que desliza lentamente, mas continuamente sobre a Astenosfera devido às correntes
de convecção com origem no Manto e no Núcleo terrestre.
As placas podem afastar-se, originando tensões entre elas, colidir-se uma sobre a outra, resultando em forças de compressão, ou simples-
18
mente deslizar uma em relação à outra ou uma
ao longo da outra, causando torções, grandezas
abordadas em física. A aplicação destas forças
gera uma curva elástica tal que a rocha altera sua
forma até atingir seu ponto máximo de elasticidade, ponto este que, se as forças diminuírem, a
rocha volta a sua forma inicial; entretanto, quando a matéria ultrapassa o ponto de elasticidade,
entra em ruptura e sofre uma liberação brusca
de toda a energia acumulada durante aquela deformação elástica.
A energia é liberada através de ondas sísmicas que se propagam pela superfície e interior
da Terra. As rochas profundas fluem plasticamente (têm um comportamento dúctil – na astenosfera) em vez de entrar em ruptura (que seria um comportamento sólido – na litosfera). Estima-se que
apenas 10% ou menos da energia total de um sismo se propague através das ondas sísmicas.
Existem os sismos de origem vulcânica, fenômeno geológico que se produz devendo-se às
movimentações de magma dentro da câmara
magmática ou devido à pressão provocada por
esse quando ascende à superfície, servindo assim para prever erupções vulcânicas, causando
estremecimentos da crosta terrestre e nas zonas
vizinhas aos vulcões.
Profundidade dos sismos
Os sismos podem ser classificados de três
maneiras, de acordo com a sua profundidade
focal: superficiais, intermédios e profundos.
Superficiais – são aqueles que ocorrem entre
a superfície e os 70 km de profundidade. A
maior parte da energia anual é liberada desta
forma, cerca de 85% dos sismos são registrados desta maneira;
Intermédios – são aqueles que ocorrem entre
os 70 e os 350 km de profundidade. São responsáveis por cerca de 12% da energia sísmica liberada anualmente;
Profundos – são aqueles que ocorrem com
profundidades superiores a 350 km de profundidade. Libertam cerca de 3% da energia
sísmica anual. Estes acontecem apenas no
Círculo de Fogo do Pacífico e na zona do
mediterrâneo transasiática em decorrência ao
processo de subducção;
Na crosta continental, a maior parte dos sismos ocorre entre os 2 e os 20 km, na crosta litosférica, sendo muito raros abaixo dos 20 km,
uma vez que a temperatura e pressão são elevadas, fazendo com que a matéria seja dúctil e tenha mais elasticidade.
Aumento da atividade de vulcão de lama;
Ocorrência de microssismos;
Alteração da condutividade elétrica;
Flutuações no campo magnético;
Modificações na densidade das rochas;
Variação dos níveis da água em poços próximos das falhas;
Geralmente, após um terremoto podem ocorrer sismos secundários. Tais situações podem ser
previstas através de sinais precursores, como:
Anomalias no comportamento dos animais (por
exemplo, migração em massa de anfíbios);
Aumento da emissão de gás metano, com possível formação de nuvens de metano (coloridas);
Aumento da emissão de dióxido de carbono
em áreas vulcânicas;
Divisão entre as principais placas tectônicas, suas movimentações e localização de vulcões.
19
19
Escala Richter
E(A) é a energia liberada por um terremoto de
amplitude A e E(A-1), a energia liberada por um terremoto de amplitude A-1. Ao interpretar essa
equação, pode-se concluir que a energia liberada por um terremoto de amplitude máxima A é
31,6 vezes maior do que a energia liberada por
um terremoto de amplitude máxima (A-1).
A Escala Richter foi desenvolvida em 1935 por
Charles Richter, com a ajuda de Beno Gutemberg,
ambos do Instituto Tecnológico da Califórnia.
Embora muito usada hoje, ela foi primeiramente
desenvolvida para estudos na Califórnia, para ser
usada em sismógrafos que usavam um sistema
particular, o sismômetro Wood-Anderson. Sabese que a intenção de Richter ao criar tal escala foi
a de substituir as escalas já existentes, que usavam unidades muito pequenas de medição, e
que, portanto, não atendiam às necessidades do
cientista, as quais incluíam o monitoramento de
terremotos de elevada magnitude para a época.
Eventos com intensidade maior do que 4.6
graus podem ser registrados em qualquer ponto do mundo, mesmo que o sismógrafo não esteja no epicentro ou numa área dentro do raio de
ação do terremoto.
A tabela de intervalos a seguir, mostra a intensidade e efeitos de terremotos. É importante
salientar que a intensidade de um terremoto depende da sua distância do epicentro, bem como
das condições geológicas nas quais o terreno se
encontra (certos terrenos são capazes de amplificar a intensidade do terremoto). Na tabela, a
incógnita “x” representa a possível magnitude de
um terremoto.
A magnitude de um terremoto na Escala Richter é medida por uma função logarítmica, sendo ela:
M L ( A ) = log A − log A0
Nesse caso, A é a amplitude máxima atingida
pelo sismógrafo no momento do terremoto, e
A0 uma amplitude de referência.
Devido à característica logarítmica da função,
temos
, ou seja, M L ( A ) é M L ( A )
equivalente a dez vezes a função de M L ( A−1) .
Em termos de energia:
= 10.M L ( A−1)
Marcelo Gorges é professor de Matemática
do 1º ano do Ensino Médio, no Colégio
Medianeira. É formado em Licenciatura
Matemática pela PUC-PR e em Engenharia
Mecânica pela UTFPR.
E ( A ) = 31,6.[E ( A−1) ]
Graus na
(Comente este artigo em
[email protected])
Descrição
Efeitos
Frequência
Não são perceptíveis.
< 2.0
Micro
2.0 < x < 2.9
Menor
3.0 < x <3.9
20
+- 8000/anos
Geralmente não são
Frequentemente
percebidos, mas não
causam danos.
+- 1000 por dia
49.000 por ano
Fraco
Balanço notável de objetos
no interior de casas.
Danos pouco significantes
e raros.
6.200 por ano
(estimativa)
5.0 < x <5.9
Moderado
Causa danos a construções
com estrutura fraca. Em
construções de estrura forte,
os danos são imperceptíveis.
800 por ano
6.0 < x <6.9
Forte
Destrutíveis em áreas
localizadas num raio de 160
quilômetros do epicentro.
120 por ano
Mais forte
Causa danos sérios em
áreas localizadas num raio
de 200-250 quilômetros do
epicentro.
18 por ano
9.0 < x <9.9
Devastador
Devasta áreas
localizadas a milhares
de quilômetros do
epicentro.
1 a cada 20 anos
10.0 < x
Épico
Nunca registrado.
Extremamente raro:
nunca registrado.
4.0 < x <4.9
7.0 < x <7.9
DVD – TERREMO
TOS E COLISÕES CÓSMICAS
TERREMOT
CÓSMICAS-- O HOMEM E A CIÊNCIA CONTRA O INEVITÁVEL
(DISCOVERY CHANNEL)
Todo ano, inúmeros pontos do planeta são atingidos por furiosos eventos naturais. Eles arrasam cidades
inteiras e abreviam milhares de vidas. São maremotos, enchentes, furacões, vulcões... eventos que o
homem e a ciência lutam para prever e, pelo menos, amenizar suas conseqüências. Nesta reportagem,
abordamos os terremotos e colisões cósmicas. Em ´Terremotos´, você viajará a uma das mais ameaçadas
cidades do mundo: Tóquio, uma metrópole construída junto a uma das mais perigosas “zonas de risco”.
Você descobrirá como é o trabalho dos cientistas que tentam prever os abalos e dos engenheiros que
projetam construções inteligentes para desafiá-los. Em ´Colisões Cósmicas´, você voltará a 65 milhões
de anos atrás para ver como o choque de um gigantesco meteoro exterminou os dinossauros. Você
ouvirá os cientistas que estudam o espaço a fim de predizer quando isso acontecerá novamente. Segundo
eles, há cerca de 10.000 corpos celestes em rota de colisão com o planeta, e um único grande choque
poderia apagar a vida da Terra.
21
A ERA DE OURO
do
Rádio 2.0
Uma crônica sobre podcasts
Por Ulisses Candal Sato
A história se repete?
Não, mas não há como
negar que ela se
apropria de conquistas
do passado e traz
roupagens novas para
antigas práticas. Veja a
interessante
comparação entre uma
conversa com a avó, o
rádio, a TV e os
podcasts.
22
P
Para encarar a longa caminhada até a casa da
minha avó, coloquei para ouvir o podcast que
havia baixado no dia anterior. O tema? Cultura
geral. No percurso, o programa me entreteve
durante todo o tempo e me rendeu boas risadas.
O programa tem, em média, setenta minutos
e, quando finalmente cheguei ao meu destino, já
haviam passado cerca de cinquenta. O podcast
estava excepcionalmente engraçado, mas tive
que dar um pause e entrar. Após cumprir as obrigações formais, sentei no sofá da sala para assistir televisão com a minha avó. Entediado com a
programação aberta da TV e ansioso para saber
qual era o desfecho do podcast, recoloquei o fone
e continuei ouvindo. Foi então que me surgiu a
seguinte reflexão.
No início da era tecnológica, a grande diversão – especialmente para a geração da minha avó
- eram os programas de rádio. Os
aparelhos de rádio, inicialmente
raridades e artigos
de luxo, foram se
popularizando e se
tornando comuns
em boa parte dos
lares. Após os deveres do cotidiano,
a família se reunia
em volta do rádio
para se entreter,
fosse com matérias jornalísticas, com música, ou
mesmo com as radionovelas.
vidade, pode-se brincar com jogos eletrônicos,
observar fatos em tempo real, conversar com
pessoas do outro lado mundo, dentre outras possibilidades.
Essa área seguiu evoluindo e surgiu o iMac,
com o seu programa de música iTunes. Após um
tempo foi lançado o mp3 player mais revolucionário, o iPod, e, a partir daí, surgiram os Podcasts
(para mais informações, veja o box).
De repente eu me dei conta de toda essa evolução, ouvindo um podcast na sala enquanto minha avó assistia televisão.
Há uma aparente retomada dos antigos valores. Eu estava me divertindo muito mais ouvindo a programação do podcast do que assistindo
aos programas que as emissoras nos empurram
goela abaixo. O meu divertimento, após toda essa
evolução tecnológica, não é baseada em coisas
interativas ou que estimulam muitos sentidos,
mas sim na boa e velha comunicação oral. Eu me
entretinha e me informava exatamente do mesmo modo que minha avó fazia em sua juventude
– apenas usando um aparelho bem menor.
Antigamente, para comandar um programa de
rádio, havia muitas dificuldades. Só mesmo sendo influente, tendo contatos e muito dinheiro.
Dessa forma, toda a programação estava amarrada aos patrocinadores e à publicidade. Com a
democratização da tecnologia, as portas se
abrem. Hoje, qualquer um que disponha de um
computador, um microfone, acesso à internet e
uma boa ideia (ou não) pode fazer o seu próprio
programa e disponibilizá-lo para o mundo inteiro. Mostrando competência, qualquer um pode
garantir seu espaço.
O tempo passa, a tecnologia evolui e surge
então o mais popular centro de entretenimento
familiar: a televisão. Com o apelo visual, a televisão passou a tomar muito tempo do dia-a-dia e
influenciar cada vez mais a população. Agora era
possível assistir a filmes, séries, jornais, desenhos, shows e, claro, a telenovela.
Outro diferencial é que, hoje, quem faz a programação é o ouvinte. É ele quem decide o que
quer ouvir – quando quiser ouvir. O próprio ouvinte assina os podcasts de seu interesse e os
escuta quando achar que deve, podendo pausálos, voltar para algum trecho específico, ou pular
o que não for de seu interesse.
E a última grande invenção que invadiu nosso lar foi o computador. Com ele, surgiu a possibilidade de fazer tudo que era possível nas outras plataformas e ainda mais. Com sua interati-
A individualidade é uma questão que também
merece ser salientada. Todos os “i” dos iPods,
iTunes, iMacs, têm uma relação com o seu significado em inglês: “eu”. Assim como PC (perso-
23
nal computer), toda essa tecnologia tende a oferecer experiências individuais, que cada um pode
programar do seu jeito e de acordo com seu gosto. Por isso, ouvir os podcasts é, na maioria das
vezes, um entretenimento individual, diferente de
como acontecia antigamente, quando toda a família se reunia para acompanhar o rádio.
Ao terminar – tanto as reflexões quanto o podcast que estava ouvindo – desliguei o iPod e voltei para a origem de todos os entretenimentos
da humanidade: uma boa conversa sobre isso e
tudo mais com a minha avó.
(Comente este artigo em
[email protected])
Ulisses Candal Sato é ex-aluno do
Colégio Medianeira. É estudante de
Design Gráfico na UTFPR. Ilustrou os
números 14 e 15 da revista Mediação.
OLHARES DA REDE
ORGANIZADORES:
CLAUDIA CASTELO
BRANCO E LUCIANO
MATSUZAKI
Editora Momento editorial
O livro Olhares da Rede oferece reflexões e discussões sobre
o gigante universo das redes
digitais, a partir das ideias de
cinco autoridades no assunto:
Yochai Benkler, Manuel Castells, Henry Jenkins, Lawrence Lessig e Douglas Rushkoff.
A publicação foi organizada por Claudia Castelo Branco
e Luciano Matsuzaki, do Grupo de Pesquisa de Comunicação, Tecnologia e Cultura de Rede da Faculdade Cásper Líbero. Este livro pode ser lido e baixado em seu
computador gratuitamente pelo link: http://
culturaderede.com.br/olharesdarede.pdf
24
Podcast são programas normalmente de áudio ou vídeo, disponibilizados
online através de um feed RSS. Ao escolher o programa que lhe agrada você
assina esse podcast e, quando uma nova
edição é disponibilizada, o seu computador já o baixa automaticamente e faz
upload para o seu mp3player. Essa é a
grande diferença entre podcast e os audioblogs, vlogs e flogs.
Seu nome surgiu na junção de iPod aparelho de mídia digital da Apple, de
onde saíram os primeiros scripts de
podcasting - com a palavra broadcasting
(transmissão de rádio ou televisão). O
termo é creditado a um artigo do jornal
britânico The Guardian, de 2004.
A IMIGRAÇÃO IT
ALIANA NO BRASIL
ITALIANA
AUTOR: HENRY JENKINS
Editora Aleph
Neste livro Henry Jenkins investiga o interesse em torno
das novas mídias e expõe as
transformações culturais que
ocorrem à medida que esses
meios convergem. A cultura da
convergência está mudando o
modo de se encarar a produção de conteúdo em todo o
mundo. O autor introduz os leitores aos fãs de Harry
Potter, que estão escrevendo suas próprias histórias,
enquanto os executivos se debatem para controlar a franquia. Ele mostra como Matrix levou a narrativa a novos
patamares, criando um universo que junta partes da história entre filmes, quadrinhos, games, websites e animações. Essa nova edição traz também um capítulo
sobre o YouTube.
Da vista de
MEU PONTO
ou do
HAITI,
da política e dos
pontos de vista
Por Adalberto Fávero
Se o que importa é o momento, como educar para a vida? Como
desenvolver uma opção educativa com projeto de vida? Como
repolitizar e recriar compromisso com o país e com os outros? Como
nosso jeito de educar pode reconstruir sentidos e compromissos? Se
a privatização da vida e da identidade é permanente, como pensar a
convivência de grupo e o espaço público?
25
“Do ponto de vista da coruja, do morcego, do boêmio e do ladrão, o crepúsculo é a hora do café da manhã.
A chuva é uma maldição para o turista e uma boa notícia ao camponês.
Do ponto de vista do nativo, pitoresco é o turista.
Do ponto de vista dos índios das ilhas do Mar do Caribe, Cristovão Colombo, com seu chapéu de penas e
sua capa de veludo encarnado, era um papagaio de dimensões nunca vistas.”
(Eduardo Galeano)
F
Férias é tempo de descanso, do ócio que não
precisa ser produtivo, das leituras que ficaram
para trás, de encontrar pessoas e lugares que há
muito não se veem. Não se fala aqui necessariamente do tal ócio produtivo ou coisa que o valha. Ócio é ócio! É não fazer nada do que é comum no dia-a-dia atribulado do ano. Então não
se tem que dar adjetivo especial para esse tempo e ao não fazer. É descanso das lidas comuns e
pronto! Para muitos, dezembro, janeiro ou fevereiro foi assim.
Nesse final do velho ano e primeiro trimestre
do novo, aconteceram coisas comuns e incomuns “como sempre”: Natal e festas de início de
2010; as propagandas do Carnaval já em janeiro;
aqueles noticiários “inovadores” com o número
de carros nas estradas indo e vindo; as mesmas
fotos de famílias e diversão nas praias; acidentes nas estradas e exageros de
quem festejou demais; assaltos diversos e o janeiro mais
violento dos últimos 8 anos
em Curitiba; como nos 10 últimos janeiros, o novo BBB
(do qual já se tornou politicamente correto dizer que não
se gosta, mas que muitos
veem por debaixo do pano
para ninguém saber); a novidade do maior edifício do
mundo em Dubai (818 metros
de altura, 100 metros mais alto que o Corcovado) que ninguém ainda sabe para que serve; o
aumento da discussão sobre o clima, com cientistas contrapondo-se à versão de aquecimento
global através de uma teoria de aquecimento cíclico do sol e apontando para a questão climática como nova tendência de comércio (o grande
26
problema não seria o aquecimento e sim o uso
das riquezas da terra acima de sua capacidade);
as chuvas e as enchentes mostraram, mais uma
vez, a fragilidade de nossas cidades inundadas,
milhares de brasileiros fora de suas casas, terremotos, tsunamis e muitos pontos de vista...
Na sua maioria, são coisas de final e início de
ano, porém seria indispensável destacar duas situações para 2010, as quais não podem passar
despercebidas: o Haiti e o ano de eleições no Brasil – e essas duas questões são drasticamente interdependentes. Por isso, a proposta aqui é tratar
das duas situações juntas na perspectiva da retomada da análise e inserção política/contextual. A
proposta é fazê-lo, relendo e analisando os jornais
(Destaque à Folha de São Paulo de janeiro).
Um estudo de dois economistas (Laura Jaramillo e Cemili Sancak) sob o título “Porque a
grama é Mais Verde em um Lado da Hispaniola”
apresenta um levantamento intrigante e catastrófico sobre o Haiti que vai além das manchetes e imagens preponderantes na mídia escrita,
falada e eletrônica.
O Haiti e a República Dominicana dividem a
ilha Hispaniola, sendo que em 1960 o PIB per
capita dos dois países era quase idêntico: um
quarto da média latino-americana. Em 2005, o
PIB per capita da República Dominicana triplicara (US$7400) – sendo o país que mais cresceu
na região – enquanto o do Haiti fora reduzido
quase pela metade e o país ficou na lanterna de
toda a região (US$1300). A renda per capita brasileira é de US$9400.
De 1990 a 2008, a economia do Haiti cresceu
apenas 5%, enquanto a América Latina cresceu
82%. Essa situação foi resultado de uma história
de abandono, pobreza, ditaduras, explorações
de Corporações do Norte e das sanções econômicas após a queda do presidente Jean-Bertrand
Aristide em 1991. As exportações caíram 40%
(para um terço em relação a 1991), a economia
encolheu 30%, a receita do governo declinando
pela metade.
Nesse período, o país cresceu menos que
entre 1960 e 1980, sob as ditaduras dos Duvallier. A indústria têxtil e as maquiladoras mexicanas baseadas em zonas francas (fabricavam bolas de beisebol, equipamentos elétricos, brinquedos) foram destroçadas e o emprego caiu só
nesse setor de 80.000 para 6.000 trabalhadores.
Em 1960, a expectativa de vida era de 44
anos e em 1970 o analfabetismo atingia 78% da
população maior que 15 anos (contra 33% da
República Dominicana). O escritor cubano Alejo
Carpentier, em O reino deste mundo, conta um
pouco dessa dor permanente de um povo que
se fez independente por uma rebelião de escravos, sonhou com um mundo livre e experimenta a morte permanente e o esquecimento de
todo o planeta no terremoto permanente e miséria a que é submetido.
É absurdamente dramático e esclarecedor
acerca do racismo branco que tem mantido o
país na miséria e esquecimento, o comentário do
Cônsul do Haiti em São Paulo, captado sem que
ele soubesse estar sendo gravado quando se
preparava para um programa no SBT: “Acho que,
de tanto mexer com macumba, não sei o que é
aquilo. O africano em si tem maldição. Todo lugar que tem africano está fodido.” Na sequência,
o mesmo senhor comenta que a tragédia estava
“sendo uma boa” porque “o país fica conhecido”.
Carlos Heitor
Cony lembrou,
em artigo na Folha
(17/01/10), acerca
do terremoto de
Lisboa, que mereceu um célebre
poema de Voltaire
(1756) sob o título “Poema sobre
o Desastre de Lisboa”, no qual o
autor dizia descrer em
Deus como ser superior
que cuidasse dos destinos
humanos. Lisboa não tem
mais desastres nos terremotos, pois desde Pombal reestruturou-se e a
União Europeia ajuda a garantir uma estrutura e padrão de vida que quase elimina essa possibilidade.
Os 18 últimos terremotos nos EUA (na mesma escala que esse no Haiti)
não mataram mais que 143 pessoas. Há, portanto, algo mais que os insondáveis mistérios da natureza na tragédia desse país!
O desastre do Haiti não mereceu poemas de
descrença nos homens ou em Deus, embora seja
a maior catástrofe dos últimos 200 anos e tenha
matado cerca de 200.000 pessoas. A solidariedade internacional é necessária agora, mas não
resolve o seu problema histórico. Pode minorar
a falta de água, de comida, de roupa, de casa, de
segurança... No entanto, não encara o desastre
histórico da nação mais pobre das Américas.
O Haiti não é aqui, mesmo que o Brasil tenha inúmeros Haitis esquecidos dentro de seu
próprio território. O retrato das perdas, da luta
pela comida, do desespero de pais que perderam seus filhos... tudo isso impacta, porém não
pode deixar esquecer o medo que a revolução
de escravos que libertou o país causou em seus
vizinhos escravocratas e o perigo que significou a todos eles.
“Em 1803 os negros do Haiti deram uma tremenda
sova nas tropas de Napoleão Bonaparte e a Europa
jamais perdoou esta humilhação infligida à raça branca. O Haiti foi o primeiro país livre das Américas. Os
Estados Unidos haviam conquistado antes a sua independência, mas tinha meio milhão de escravos a
trabalhar nas plantações de algodão e de tabaco.
Jefferson, que era dono de escravos, dizia que todos os homens são iguais, mas também dizia que os
negros foram, são e serão inferiores.
A bandeira dos homens livres levantou-se sobre as
ruínas. A terra haitiana fora devastada pela monocultura do açúcar e arrasada pelas calamidades da
guerra contra a França, e um terço da população
27
havia caído no combate. Então começou o bloqueio.
A nação recém nascida foi condenada à solidão.
Ninguém lhe comprava, ninguém lhe vendia, ninguém a reconhecia.” (Eduardo Galeano, 2010)
O Haiti precisava ser esquecido e a vitória dos
fracos abandonada à própria sorte para que não
servisse de exemplo a ninguém, escreveu Giannotti em 17 de janeiro (Folha – caderno MAIS).
Dizia ele: “Nas guerras das estrelas esse conflito
não comparece, como se desdobrasse entre
duas forças, de tal modo transformadas pela técnica que se resolvem numa luta entre
o espírito do mal
contra o espírito do
bem?”
No Haiti há sangue, não há tecnologia avançada e a fratura humana da falta
de solidariedade,
do cuidado humano
e da união dos povos está exposta. É
nosso Afeganistão,
nossa Etópia, nosso
morro do Rio que desmoronou, nosso Nordeste sem água e comida, nosso Jardim Ipê (São
José dos Pinhais) com toque de recolher... mas
é muito mais que tudo isso, pois expressa o jeito de tratar o Outro e a nossa falta de reciprocidade permanente. É o retrato de um país e de
um povo esquecido e explorado.
28
ou a força da natureza como razão da destruição.
Olhar para o Haiti é olhar para a América Latina
toda e para a história dos esquecidos cuja dor
somente aparece nas catástrofes, fazendo os bem
alimentados chorarem diante da televisão, mas
voltando depois à vida normal. Assim têm sido
tratadas todas essas situações transformadas em
espetáculo de dor e compaixão passageiras.
Talvez seja por isso que, no turbilhão de mais
essa tragédia com o povo haitiano, os Meios de
Comunicação tenham gastado três dias inteiros
para falar da morte de uma brasileira que estava
lá: Zilda Arns. Com o perdão e o reconhecimento
ao inequívoco valor de seu meritório trabalho, só
pode ter sido para cultivar a personalização da dor
e dos personagens, talvez nos fazer sentir solidários através de alguém, mas certamente porque à
oficialidade não importa contar a história inteira
desse povo – de nenhum povo. Aí, então, tudo já
fica resolvido e o espetáculo pode continuar.
Para atestar o que foi dito até aqui, resgatemse trechos de uma Carta Aberta publicada por
um grupo de acadêmicos haitianos, dizendo, entre outras coisas:
Nós, acadêmicos e intelectuais haitianos, revirando
ainda os escombros de nossas casas e vidas destruídas, esperamos ser ouvidos por cima dos clamores
de comentaristas e autoridades. Isso é tanto mais
importante porque o futuro do Haiti se decide agora... Mas essa catástrofe foi anunciada... Nenhuma
criança haitiana foi orientada a buscar proteção sob
um móvel ou sob o umbral das portas... Os bilhões
de dólares gastos nos últimos 15 anos geraram re-
É como se o coronel-fazendeiro Quatric tivesse derrotado os Na’vi na terra de Pandora, do filme Avatar. Os vales e a beleza da Ilha Hispaniola
estão cheios de sangue e morte há muito tempo,
mas a sensação é como se a caixa de Pandora
tivesse sido aberta só agora com um terremoto.
sultados pífios... O que restava do Estado haitiano
Os haitianos já mataram 20 dos 21 presidentes entre 1843 e 1915 num tsunami político/social permanente na busca pelo fim da corrupção
e na procura da própria identidade roubada pelos colonizadores e seus vizinhos do Norte. O livro Colapso, do biogeógrafo Jared Diamond,
pode ajudar em mais detalhes dessa tragédia
anunciada e espantar o determinismo geográfico
muito morto... O público internacional deve saber
ruiu junto com a capital. O colapso do palácio presidencial, da Assembleia Nacional e da maioria dos
ministérios serve como uma metáfora bem adequada. A destruição do Estado haitiano, iniciada há 50
anos, foi completada... Nenhum de nós chegou a se
surpreender com a completa ausência do Estado há
que o presidente haitiano está desacreditado aos
olhos do povo, o mesmo acontece com a ONU... É
necessário criar um comando central que una os
mais respeitados representantes do Haiti e os Estados internacionais e qualquer coisa além disso resultará em fracasso e não gerará um mínimo de confiança. Enquanto a confiança se esvai e o povo haitiano desespera-se, só resta contar com a boa von-
tade de nossos amigos da República Dominicana,
do Brasil, do México e, falhando todos, de Deus. (Folha, 24 de janeiro de 2010).
Mais do que nunca é necessário, por essas e
tantas outras razões, resgatar a política em seu
sentido amplo: como cuidado e administração
do bem comum e de todas as pessoas. A supremacia do economês e do psicologês tem afastado a discussão coletiva, o sentido histórico dos
problemas. Transforma-se tudo em estatística e/
ou em situação terapêutica!
Aqui no Brasil, em seu sentido mais restrito,
o mundo político anda agitado pelas movimentações em vista das eleições de 2010 e as arrumações eleitorais e eleitoreiras parecem ir de
vento em popa. O congresso nacional – o legislativo de
modo geral – continua eleito pela mídia para sua pretensa campanha de moralização pública. É fato que ninguém tenha uma réstia de
dúvidas das falcatruas que
rondam os altos poderes da
sempre nova/velha ordem.
Todo dia aparecem novas
denúncias e escândalos
para corroborar nessa construção de uma leitura depreciativa da política.
A mais nova e absurda imagem veio ao se fecharem as cortinas de 2009 com o vídeo e as imagens das doações espúrias em Brasília, envolvendo o governador Arruda e a Assembleia Distrital
com um inusitado meio de transportar a propina: a meia. Depois da cueca, veio a meia e todas
as possibilidades de humor e horror que essa situação representa!
No entanto, a “grande mídia” é parte constituinte desse mundo e seu jogo; em nome da liberdade de expressão, funciona como defesa permanente da sua ação destrutiva e como desserviço à
informação e formação política da população.
Os eventos apresentados como dramáticos
compõem a situação de permanente despolitização da coletividade. Confunde-se com intencio-
nalidade a toda prova a política com o fazer político corrupto, o que contribui para a debandada
generalizada da participação nas coisas públicas
e do exercício da cidadania. Os e-mails e as correntes que infestam nossos computadores, falando em não votar ou delineando mais um abuso financeiro, possuem esse ingrediente de ferocidade alienadora aterrorizante.
No centro dessas discussões, o planeta sobrevive, respirando ar cada dia mais asfixiante, ainda
que se aponte para cuidados nas emissões e exploração por parte das grandes economias mundiais. Registre-se, aqui, o estrondoso fracasso da
última conferência mundial, na qual apenas as nações de médio e pequeno porte se comprometeram com algo e só foi possível um manifesto frágil e
sem compromissos como
resultado de todos os esforços e esperanças mundiais.
Talvez, em médio prazo, seja possível aspirar
um mundo em que se pense no planeta e os mais ricos deixem de consumir
estupidamente e enviar
seus lixos aos pobres (literalmente em containers
ou veladamente nas suas
sobras tecnológicas).
Tudo isso contribui para que alguns poucos
possam continuar a controlar setores vitais da
vida do país e da montagem do imaginário coletivo da população. Repolitizar, por isso mesmo,
talvez seja um dos eixos centrais da ação educativa e da ação cidadã de todos nós, mais do que
nunca. No entanto, não é a mesma política, o
mesmo foco, a mesma problemática e o mesmo mundo dos anos 70 e 80 do século passado
que exige essa demanda. Os últimos 20 anos
trouxeram mudanças globais, nacionais e individuais que precisam ser revisitadas.
Se coletivamente experimentam-se situações
constrangedoras e a despolitização crescente da
população, é indispensável repensar a ação em
sala de aula e nos trabalhos coletivos da escola
para que o conhecimento seja menos conteudista
29
e mais expressão da leitura da realidade. Esse é
um desafio indispensável, já que, por vezes, nos
distanciamos do contexto/realidade em nosso
trabalho com os alunos e entre nós, educadores;
porque em ano eleitoral é um debate indispensável; porque se trata de um tecer de novo os
referenciais coletivos e pessoais para se viver...
A política não atrai mais não apenas pela corrupção e sim pelo fato de que a preocupação
com a boa administração deu lugar à autoadministração. Transformam-se queixas coletivas em
problemas sociais suscetíveis à intervenção terapêutica. Daí o sucesso crescente dos psicólogos e psiquiatras, tomando o lugar dos políticos
e dos educadores.
Dessa mesma fonte nasce a certeza de que
bastam bons gestores e uma macroeconomia
acertada para que as coisas funcionem no país e
no mundo. Trata-se do neopositivismo renovando-se permanentemente. A eficiência é o mais
novo slogan das empresas, em detrimento das
relações de trabalho e
cidadania.
No entanto, mais
do que nunca, as preocupações pessoais e
coletivas estão vinculadas ao tema da felicidade. Porém, felicidade hoje em dia quer dizer evitar a autodepreciação. Assim, o individualismo militante e
disciplinar deu lugar ao
individualismo a la carte – hedonista e psicológico. A felicidade foi privatizada na relação entre o consumidor e a mercadoria que o satisfaz.
Para repolitizar, é necessário recomeçar por
essa discussão: como retomar as causas coletivas e ressignificar a felicidade, além do consumo? Não basta procurar nas folhas amarelas!
A afirmação acima é importante porque a felicidade parece poder ser alcançada com uma série
de novas compras e novos restaurantes... ainda que
os bares continuem a ser, em tantos casos, a salva-
30
ção do encontro de amigos. É onde ainda conseguimos fazer nossas revoluções festivas!
Por outro lado, quando as compras e a sofisticação consagram os novos VIPs, é fato que
a maioria da raça humana está fora dessa possibilidade.
Num shopping não se vai encontrar amizade,
os prazeres da vida doméstica, a ajuda a um vizinho com dificuldade, o respeito aos colegas ou
a proteção contra o desprezo e a humilhação. Buscam-se o consumo e o transitório e esse encontro entre o consumidor e a mercadoria mata o
instinto artífice e criador pela facilitação e o evitar que o homem tenha que se desgastar para
realizar ações do dia-a-dia.
Há sempre uma nova engenhoca para resolver o problema, porém, como o consumo não
pode acabar e só com novas aquisições é que se
chega à felicidade, está criado um panorama de
realizações momentâneas que nada têm a ver com
realização pessoal e/ou projeto de vida. Afinal, para
que projetos a longo prazo? Para que o até que a
morte nos separe? Para que o discernimento e o
juízo de valor? A solução é a curto prazo!
Na cultura anterior, possivelmente a nossa, a
pessoa nascia com uma identidade definida. Agora cabe a cada um construir a sua identidade, remodelando-se com os equipamentos que fazem
parte do seu dia-a-dia. Antes fazia um projeto para
a vida, agora os projetos são momentâneos e precisam ser montados e desmontados. É uma espécie de contrato por um tempo que logo passa
e há reprocessamento constante.
Numa vida dividida em episódios ou fatias independentes com enredos e finais próprios, cada
episódio pode ter um elenco e os parceiros do
episódio anterior são descartáveis. Como na história do super homem (homem superior), a marca do passado só pode ser dos seus próprios
feitos. O passado soa como um solitário ranger
de dentes!
O problema é que o homem morre a partir
do momento que não traça mais metas que pareçam impossíveis e que tenham relação com o
futuro. Isso porque a felicidade está sempre um
passo à nossa frente e ela nos move. Não basta
calcular o que dá para fazer depois do plano de
saúde, da educação das crianças, da manutenção
da casa, das novas roupas, das pensões aos exparceiros e da prestação do carro. Embora isso
faça parte e seja necessidade de nosso plano de
sobrevivência, reduzir a felicidade a isso mata a
humanidade da pessoa. Contribui definitivamente
para um mundo sem alma!
Talvez seja por isso que o novo nome da infelicidade e a expressão mais corriqueira (depois
do famigerado “estou estressado”) seja TÉDIO.
Tédio é a extrema infelicidade, o não poder se
divertir, não poder ou não ter o que fazer, a ausência da ação que entretém, o vácuo de atividade, a impossibilidade da ação que satisfaz...
Se importa o momento, como educar para a
vida? Como desenvolver uma opção educativa
com projeto de vida? Como repolitizar e recriar
compromisso com o país e com os outros?
Como ir além do espetáculo de morte e dor do
terremoto no Haiti? Como nosso jeito de educar
pode reconstruir sentidos e compromissos? Se
a privatização da vida e da identidade é permanente, como pensar a convivência de grupo e o
espaço público?
Enfim, há um desafio e uma demanda nova
ao pensar a educação, a formação, a cidadania e
a política. O momento parece exigir uma profunda interlocução e inter-relação entre o individual
e o coletivo, entre a vida intensa do momento e
os projetos de futuro, o bem pessoal e o bem
comum, o cuidado com a pessoa e com todas as
pessoas, o imediato e o mediato, a escola e a cidade, o real e o virtual?real, o nacional e o transnacional, o individual e o diverso...
Enfim, o perigo e o desafio de reumanizar estão postos a todos, mas em especial têm lugar
no trato com a educação que se pretende herdeira do repasse das conquistas da humanidade
às próximas gerações. Não fazê-lo reporta-nos à
última frase de George Orwell, em A Revolução
dos Bichos: “E já não se sabia quem era homem
e quem era porco.”
(Comente este artigo em
[email protected])
Adalberto Fávero é diretor acadêmico do
Colégio Medianeira; é formado em Filosofia,
Teologia e História, com pós-graduação em
Filosofia da Educação (PUCPR) e em Currículo
e Práticas Educativas (PUCRJ). É mestre em
Educação pela PUCPR.
DE PERNAS PRO AR
AUTOR: EDUARDO GALEANO
Editora L&PM
Em De pernas pro ar – A escola do mundo ao avesso, Eduardo Galeano provoca nossas
emoções e nossas consciências, como já o fizera no clássico As veias abertas da América
Latina no início da década de 70. Nestas páginas, que transitam pela ironia e, não raro pela
indignação, desfilam uma enorme quantidade de fatos, eventos históricos e jornalísticos que
comprovam que o mundo está, de fato, de pernas pro ar, refletindo a nossa incapacidade de
harmonizar justiça e liberdade.
Verdadeiro, generoso, lírico e às vezes cruel, este livro é um inventário da nossa dura, estranha e injusta realidade. Dono de uma obra emblemática e importante, Eduardo Galeano é um
dos mais importantes escritores latino-americanos, com seu nome projetado em todo o mundo com traduções em mais de 20 línguas.
31
É pra
POLEMIZAR?
Então tá...
... debatendo os direitos
humanos em Cuba, a mídia e a
política externa brasileira...
Escrito em fevereiro de 2010
G
“Gato Escaldado”...
Por Mauro M. Braga
O tema dos “presos políticos” em Cuba
não é novo, assim também não são as
sistemáticas campanhas difamatórias
da grande mídia contra aquele país. A
intenção deste artigo, mais do que
apenas contrainformar e ajudar a
esclarecer, é alimentar o debate, que,
acredito, transcende muito apenas a
velha “questão de Cuba”.
32
Numa das mais completas e francas entrevistas de Fidel Castro, concedida a Ignácio Ramonet e publicada no livro Cem Horas Com Fidel,
ele justifica como um tipo de “mal necessário” o
rigor com que historicamente foram tratados alguns dos presos cubanos – rigor este que sempre me pareceu excessivo, inclusive por ter adotado, não poucas vezes, a pena de morte. Apresenta argumentos válidos, afirmando, entre outras coisas, que a proporção de presos em Cuba
é muito inferior à de outros países; que não há,
de fato, presos “políticos” em Cuba, já que o
governo cubano não impede os eventuais dissidentes de deixar o país, desde que tenham condições de bancar sua viagem em segurança, sem
gerar riscos (ou você acha que aqueles milhares
de cubanos que vivem em Miami viajaram todos
em barquinhos?); que alguns presos cubanos,
tentando evitar o cumprimento de penas por
delinquências diversas, tentam se passar por “dissidentes políticos” (e muitas vezes recebem incentivos generosos para isso da máfia cubana na
Flórida e da CIA...), buscando apoio para tentar
deixar impunemente o país, etc... Em meio às
argumentações, uma me chamou especial atenção: afirmou que o grau de rigor tende a aumentar na medida em que algum cidadão, por suas
atitudes, coloque em risco a segurança da sociedade cubana e suas conquistas, já que o país vive
em “permanente estado de guerra”.
Esse “estado permanente de guerra”, embora pareça estranho visto daqui, me saltou aos
olhos quando estive lá. Afinal, qualquer conversa mais profunda com os cubanos deixa claro
como a imensa maioria daquela sociedade, que
defende arduamente as conquistas da revolução,
sente-se permanentemente ameaçada e pronta
para reagir e defender seu país a qualquer momento em que isso seja necessário. Há campanhas midiáticas sistemáticas sobre isso e a questão é abordada desde cedo nas escolas e famílias. Trata-se, digamos assim, de uma sociedade
psicologicamente condicionada. Não por menos,
se pensarmos em tudo o que passou... Tudo o
que ainda passa... O ônus de desafiar o poder da
vizinha super-potência contabiliza inúmeras
agressões, que inclusive se intensificaram depois
do final da Guerra-Fria. A lista é enorme: em 50
anos, Cuba sofreu uma invasão militar, inúmeras
tentativas de assassinato contra seus líderes, bloqueio econômico, atos diversos de sabotagem,
incluindo guerra biológica atingindo suas plantações e água potável, atentados terroristas diversos, incluindo aviões derrubados e bombas em
hotéis visando a prejudicar a indústria turística
(você nunca ouviu falar disso? Curioso que não
tenha aparecido no “Jornal Nacional”, não?), sacrificando uma lista incontável de vítimas diretas
e indiretas – tudo comprovado, fartamente documentado e até cinicamente assumido pela CIA.
Posada Carriles, terrorista confesso que explodiu um avião cubano matando mais de 70 pessoas, vive hoje livre e goza de imunidade dentro
dos EUA, protegido pelo governo.
O fato é que o povo cubano sente-se ameaçado, vive ameaçado e cobra rigor de seus governantes contra quem colabora com aqueles
que o ameaçam. Culpá-lo pela histeria seria, no
mínimo, ingênuo.
Reações contraditórias...
Só o povo cubano? Não somos todos assim,
quando ameaçados? Ora, nos escandalizamos se
o governo cubano mostra-se insensível diante de
um pretenso “dissidente” (seria mesmo um “dissidente”? você tem certeza? eu não...) que morre numa greve de fome e reagimos com conivência quando o noticiário relata, por exemplo,
que a polícia outra vez subiu os morros e matou,
em confronto, montes de “traficantes” e “bandidos”. Justificamos isso como “mal necessário”,
já que a violência dos morros e favelas nos ameaça, certo? Achamos que é preciso enfrentá-la... e
se ocorre de forma violenta, fazer o quê... é o preço a pagar... Não é a sociedade ideal, mas é o que
podemos fazer, não? Livramo-nos dos delinquentes para tentar viver em paz, atrás de nossas cercas eletrificadas... E criticamos a conduta
ética do governo de Cuba, claro...
Mais curiosidades: a sociedade estadunidense, traumatizada pelo 11 de setembro, acha normal que seu governo mantenha milhares de presos políticos, sob a acusação (na maioria dos casos não comprovada) de “ligação com o terrorismo internacional”. Na pretensa “terra da liberdade”, o povo confere tranquilamente ao seu
governo o direito de prender, isolar e até matar a
quem bem entenda... O governo de Israel faz o
mesmo com palestinos e outros povos que
“ameaçam a existência” de sua nação, e quem
levanta a voz para denunciar abusos é prontamente acusado de antissemitismo. Isso sem falar no
confinamento imposto ao povo palestino em
guetos murados – similares aos de Varsóvia.
Nossas indignações são perigosamente relativas... O fato é que nunca saberemos até que
ponto cada um desses “transgressores anônimos”, vulgarizados em expressões generalistas
como “dissidentes políticos”, “terroristas”, “traficantes”, “bandidos”, etc, que sangram e desaparecem diariamente nessa “bela” sociedade
humana sob nossa sorridente indiferença, representava verdadeiramente alguma ameaça. O próprio critério de “ameaça” é relativo. O julgamen-
33
to, feito por quem se sente ameaçado, não é idôneo. E o pior é que, no momento de agir, empurramos para debaixo do tapete as regras do mundo civilizado, onde ninguém é culpado sem comprovação, onde há advogados, justiça, direitos,
etc. E, lógico, nos escandalizamos com a violação dos direitos humanos em Cuba.
Informação e desinformação...
Indo além, creio que o direito à informação,
de tão valioso, deveria ser tratado com mais respeito em nosso país. O que é difícil quando setores dominantes da mídia encontram-se tão aquartelados e confortavelmente instalados numa
rede de corporativismo e
subserviência aos poderes
estabelecidos, como ocorre em especial por aqui,
mas também em tantas outras partes do mundo. Este
“mundo CNNizado”. Este
“Brasil Rede-Globado”...
Quisera viver num país
onde as expressões faciais
tão bem treinadas da Fátima Bernardes e do Willian Bonner se mostrassem cordiais e simpáticas
ao divulgar para os milhões de brasileiros que os
assistem todos os dias os números da “Operação
Milagro”, ou dos bolsistas carentes de países pobres que se tornam médicos na Ilha da Juventude, ou mesmo celebrar as ações militares internacionalistas cubanas, como a que ajudou a derrubar o regime do Apartheid sul-africano, ou até a
imensa ajuda humanitária enviada por Cuba ao
Haiti (boicotada descaradamente pela mídia)... Ah,
você nunca ouviu falar em nada disso? Por que
será? Bem: se está lendo esse texto até aqui, imagino que possa se informar pela Internet... Ainda
bem, né? Pois a massa brasileira recebe outro tipo
de informação associada a Cuba. Aí o “casal 20”
do Jornal Nacional faz aquela famosa cara de indignação. Aí o espaço garantido é o da “blogueira”, da greve de fome do “dissidente político”, do
esportista que abandona a delegação em troca de
um contrato milionário (que horror! esportistas,
ou devo dizer “dissidentes políticos”, brasileiros
nunca fazem isso, né?), etc...
34
Não há espaço aqui para rebater cada uma
dessas situações, e é verdade, sim, que a “Questão Cubana” merece um debate sério, em alto
nível, sobre algumas contradições – inclusive o
rigor com prisioneiros. Mas, diante dessas velhas
campanhas difamatórias, cito a oportuna consideração feita por Eduardo Galeano, quando, dirigindo-se ao governo dos EUA, afirmou: “... se
os senhores têm, aqui pertinho, uma ilha onde
estão à vista os horrores do inferno comunista,
por que não organizam excursões ao invés de
proibir as viagens?” Mas não nos desviemos! A
questão central é que não nos esqueçamos nunca que o controle da informação é um dos mais
eficazes instrumentos de perpetuação de poder.
A mídia, a geopolítica e o ano
eleitoral...
Que não nos esqueçamos, também, que estamos num ano eleitoral. O que torna conveniente às elites usar seu arsenal midiático para tentar
minar a credibilidade de pontos considerados
mais fortes do governo Lula – como a sua política externa. Doa a quem doer, uma coisa é muito
clara: nesses últimos 7 anos, um novo Brasil
mostrou-se ao mundo, muito mais respeitado
(até temido, por alguns...). Fortalecemos as relações sul-sul com países latino-americanos, africanos e asiáticos; abrimos espaços iguais de diálogo, sem privilégios, com países em conflito,
como no caso Israel-Palestina; cobramos coerência na questão do Irã, reforçando a ideia de que
apenas os países que não possuem armas nucleares têm autoridade moral para exigir o mesmo de outros países; demonstramos habilidade
e firmeza em algumas delicadas questões latinoamericanas, como a da nacionalização do gás boliviano ou a da rediscussão do tratado de Itaipu,
sem nos deixar levar pelos chiliques reacionários das elites orquestrados pela mídia; enterramos a ALCA e fortalecemos as iniciativas de unidade latino-americana; assumimos papel de liderança ousada na condenação do golpe de Honduras; condenamos a invasão do Iraque; fizemos
nossa voz ser ouvida tanto em Davos como no
Fórum Social Mundial; e fomos capazes de fazer
tudo isso sem radicalismo, sem deixar nunca de
dialogar com o mundo rico.
Não é à toa que, nos últimos meses, vozes
que representam as elites, como as de Arnaldo
Jabor, Diogo Mainardi, entre tantos outros (que
encontram tanto espaço na Globo, na Veja, etc...),
estejam numa clara campanha para tentar inverter as verdades sobre a nossa nova política externa. Talvez saudosos daquele Brasil subserviente, obediente como um cãozinho treinado
que “cuidava do quintal dos EUA”, como antes...
Assim, a estratégia de associar Lula à “terrível e
retrógrada ditadura socialista cubana”, atribuindo-lhe alguma “saia justa” por “não dar ouvidos
aos apelos dos dissidentes”, constitui apenas
mais uma alfinetada. Não será a última, com certeza... Chego a me divertir com a indignação dessa imprensa marrom quando o Brasil abre espaços de diálogo com governantes que eles detestam, como Hugo Chavez, Evo Moralez, Ahmadinejad, etc. Curioso: quando dialogávamos com
o Bush, eles não se manifestavam... Enfim, as alfinetadas continuarão afiadas e associar o governo brasileiro aos “bad boys” do mundo é uma
estratégia básica – ainda mais num ano eleitoral,
quando até aquelas preocupações com a imagem
e tentativas de ao menos manter aparências de
neutralidade costumam desaparecer.
Quem sabe um dia vivamos num mundo onde
as sociedades – cubanos, israelenses, estadunidenses ou brasileiros da zona sul do Rio de Janeiro – possam seguir o caminho que escolheram
sem viverem ameaçados, onde os eventuais delinquentes paguem por seus atos, mas tenham
sempre seus direitos respeitados, e onde as grandes empresas de mídia sejam norteadas mais
pelo compromisso firme e ético com a verdade e
a qualidade da informação do que pela ideologia
das estruturas de poder que as controlam.
Quem sabe a humanidade um dia perceba
que isso nunca ocorrerá enquanto o mundo for
socialmente tão injusto. O que temos hoje são
apenas subprodutos agregados ao caos do sistema. Não vê quem não quer. Só isso.
(Comente este artigo em
[email protected])
Mauro Michelotto Braga é geógrafo,
professor do Colégio Medianeira, em Curitiba,
e integra o Movimento Brasileiro de
Solidariedade a Cuba, através da Associação
Cultural José Marti Paraná-Cuba.
AV
ANT
AGEM ACADÊMICA DE CUBA – POR QUE
VANT
ANTAGEM
SEUS ALUNOS VÃO MELHOR NA ESCOLA
AUTOR: MARTIN CARNOY
Editora Ediouro
A obra aborda os desafios enfrentados
por muitos dos sistemas educacionais,
entre eles o brasileiro, e aponta uma
forma de superá-los. Sem apresentar
fórmulas mágicas e simplistas, nem
tampouco recorrer à retórica ideológica, o autor sai a campo em busca
de evidências – e vai buscá-las na sala
de aula, onde a qualidade da educação se materializa. A partir da mensuração do que acontece em classes cubanas, chilenas e brasileiras, o autor chega a conclusões sobre as razões da
superioridade acadêmica de Cuba.
A VERDADE SOBRE CUBA
AUTOR: PE. ROQUE SCHNEIDER
& PE. ELOY OSWALDO GUELLA
Editora Loyola
Era uma ideia que vinha de longe. Um
sonho acalentado já nos longes da juventude: conhecer Cuba de perto, sentir o povo caribenho, correr aquela ilha
semilendária que há mais de trinta anos
desafia a maior potência do mundo, os
Estados Unidos. Alguns viajam até lá
numa profissão de fé ao regime de Fidel Castro. Outros, para discernir as luzes e sombras de um sistema de governo diferente... que já faliu no Leste Europeu, na
ex-União Soviética. E sobrevive ainda no caribe: o socialismo.
Não deixe de assistir ao vídeo Levante sua voz, sobre o direito
(ou a falta de) à comunicação e informação. Entre em nosso
blog http://midiaeducacao.wordpress.com e, no campo “pesquisa”, digite “Levante sua voz”.
35
A
INCLUSÃO
sócio-digital:
preâmbulos e o caminho da
da
EDUCAÇÃO A
DISTÂNCIA
O
A Inclusão Social a partir da inserção dos indivíduos na inclusão digital virtual tem sido a tônica das últimas discussões de caráter inovador
em processos educacionais, ao menos nas sociedades mais ocidentalizadas, onde temos uma
maior possibilidade de informações a respeito.
Por Susane Martins Lopes Garrido
Está cada vez mais impossível
dissociar o termo “inclusão
digital” da “educação a
distância”. Veja de que modos
estas expressões se
retroalimentam.
36
Nesse sentido, o ato de incluir digitalmente
pode ser legitimado como um potencializador
para os indivíduos, para sua reinvenção, para a
reconstrução das ações que o levam a uma melhor condição social e de emancipação, na vida.
O mundo digital virtual carregado de informações
intrínsecas e extrínsecas, e as possibilidades advindas das criações e representações dos indivíduos podem gerar, como uma espécie de intermediação, uma verdadeira inclusão social.
Sob essa perspectiva, a inclusão digital não
deve ser um fim em si mesmo, ou seja, não precisa ser um conhecimento que se estabelece por
se estabelecer – como a máxima totalitária do
senso comum, que insistentemente prega a nossos alunos que, se estudam determinados as-
suntos, é porque são necessários para o vestibular... – justificativa nada plausível e que simplesmente demonstra a não clareza de objetivos. Assim, quando em um processo de inclusão digital, ensinam-se conhecimentos de softwares, programações em 2D e 3D, simulações,
navegações na web, interações em plataformas,
desenvolvimento de objetos de aprendizagem,
dentre outros, deve pretender-se a aplicabilidade destas tantas inovações, primeiramente na
vida cognitiva dos indivíduos para, a partir das
significações, possuir sentido na vida prática
desses mesmos indivíduos.
A inclusão digital, assim chamada pelo fato de
incluir a outra, a social, também precisa ser compreendida não apenas pelas possibilidades recursais tecnológicas de acesso, às quais os indivíduos possam vir a se integrar. A tecnologia em si
é apenas uma parte do processo e ajuda – no
momento em que este processo passa a ocorrer – o professor e a comunidade “de aprendizagem” na qual está inserida, na medida em que se
torna integrante e também integradora do próprio sujeito aprendiz.
Assim, sob uma perspectiva mais macro, se
o objetivo maior da inclusão digital vem a ser a
inclusão social (o que deveria...), essa deve ser
contemplada desde o princípio de todo o processo que a propõe, pois são os indivíduos os
atores reais de qualquer dinâmica de interação e
de interatividade, bem como do exercício da própria cidadania que se esteja buscando.
As noções de interdependência entre inclusão social e inclusão digital podem ser discutidas a partir de uma visão sistêmica, pois se autoproduzem e, na interação com o meio, produzem
uma a outra:
Segundo Maturana (2002), o Homem é um ser vivo
com autonomia, isto é, autoprodutor – capaz de produzir seus próprios componentes ao interagir com
o meio. Dessa forma (...) “não podem, (os seres vivos) se limitar a receber passivamente as informações e comandos vindos de fora. (ibidem p.14). Assim estabelece-se uma congruência entre autonomia
e dependência, uma passa a complementar a outra.
(Garrido: 2005)
Nessa noção de interdependência não há li-
nearidade nem objetividade para a criação de uma
ou outra inclusão, mas rearranjos complexos e
transversalizados que fazem com que a inclusão
social esteja sempre presente em qualquer fase
em que se pense uma inclusão digital.
Assim, uma inclusão social digital se faz, com
maior eficácia, a partir de possibilidades mais sistêmicas.
Se a noção de conhecimento diversifica-se e multiplica-se quando a consideramos, podemos legitimamente supor que comporta diversidade e multiplicidade. Desde então, o conhecimento não seria mais
passível de redução a uma única noção, como informação, ou percepção, ou descrição, ou idéia, ou teoria; deve-se antes concebê-lo com vários modos ou
níveis, aos quais corresponde cada um desses termos (MORIN, 2005, p. 18).
Segundo Morin (2002), sob a ótica da complexidade, pode-se fazer do próprio conhecimento
um objeto de conhecimento. Para o autor, na cognição “(...) o ato de conhecimento, ao mesmo tempo, biológico, cerebral, espiritual, lógico, linguístico, cultural, social, histórico, faz com que o conhecimento não possa ser dissociado da vida
humana e da relação social” (2005: p. 26). Assim,
o digital, o virtual, as tecnologias emergentes e
os demais termos associados a esta tônica tornam-se intrínsecos ao desenvolvimento dos próprios indivíduos transformando-se em continuidades, complementações, aplicações ou dissidências das atuações cotidianas dos mesmos.
[...] Vemos com dificuldade possibilidade de isolar o
campo do conhecimento se temos necessidade de
conceber as condições bio-antropo-sócioculturais de
formação e de emergência do conhecimento assim
como os domínios de intervenção e de influência do
conhecimento. Finalmente, é toda a relação entre o
homem, a sociedade, a vida, o mundo que se acha
atingida e problematizada de novo no e através do
conhecimento do conhecimento (MORIN, 2005: p. 26).
A Educação a Distância poderia promover aspectos propulsores de uma inclusão sócio-digital?
Essa tem sido a grande discussão dos últimos
anos em torno da modalidade a distância no Brasil, o que alimenta inúmeros conceitos tecnológicos e pedagógicos para as metodologias institucionais, criação de decretos de legislação vigora-
37
dos pelo MEC, um assombroso crescimento de
ofertas principalmente na educação superior e
uma preocupação geral (alunos, professores, instituições de ensino e o próprio MEC) em torno
dos balizadores da “qualidade” para as ofertas
desta natureza.
Desde o surgimento dos dois Decretos que
regem a EaD atualmente (Decreto 5.622 de 19
de dezembro de 2005, revogado em alguns
itens pelo Decreto 6303 de 12 de dezembro de
2007), a Educação a Distância é a modalidade
educacional na qual a mediação didático-pedagógica nos processos de ensino e aprendizagem
ocorre com a utilização de meios e tecnologias
de informação e comunicação, com estudantes
e professores desenvolvendo atividades educativas em lugares ou tempos diversos. Essa
definição prepõe flexibilidade nas possibilidades de ensino/aprendizagem por parte de alunos, para propor um caráter de inclusão a uma
parcela da população que se encontra fora da
universidade ou da escola.
É fato, entretanto, que o maior crescimento
ou adesão à modalidade a distância encontrase nas Instituições de Ensino Superior (graduação e pós-graduação), onde, nos últimos 4 anos,
segundo dados do ABRAED 2009, alcançou-se
a marca de 356%, enquanto que na educação
básica (principalmente em EJA ou Ensino Profissionalizante), o crescimento fora de 62,8%,
uma vez que a atual legislação prevê o credenciamento das escolas (para EaD) realizado somente pelo sistema de ensino de cada estado,
o que limita o âmbito geográfico de atuação das
mesmas para o próprio estado. Na medida em
que o credenciamento atingisse um âmbito federal, como ocorre com as IES, haveria um potencial inclusivo muito maior para as escolas.
Vamos torcer para isso acontecer!
Estudos têm demonstrado que a modalidade a distância no ensino superior
brasileiro atinge um público normalmente mais velho, trabalhador e
afastado do estudo regular (durante anos) ou pela educação
básica ou pela própria vida
acadêmica.
38
A maioria dos alunos de EAD são casados [sic], contra apenas 19% entre os presenciais; 44% têm dois
ou mais filhos (contra 11% entre os presenciais). Fica
claro, pelo estudo, que o estudante de EAD é marcantemente distinto do estudante presencial: ‘Ele é
em média mais velho, mais pobre, menos branco,
majoritariamente casado, tem filhos, vem mais da
escola pública, tem pais com escolaridade básica,
trabalha e sustenta a família, tem menos acesso à
internet, usa menos o computador, tem menos conhecimento de espanhol e inglês, entre outros’, conclui o estudo. Ristoff, no entanto, não se surpreende com o fato de um estudante mais excluído economicamente e bem mais ocupado se sair melhor
nos exames do Enade. Para ele, segundo esses
resultados,“fica evidente que o estudante de EAD
também se diferencia dos demais porque tem mais
autodisciplina para os estudos, sabe estudar sozinho no pouco tempo de que dispõe, e efetivamente
valoriza a oportunidade de estudar“. (ABRAED: 2009).
Essas afirmações relevam uma tendência já
mundializada, de estudar em tempos ou lugares
diferentes, a fim de que sejam supridas dificuldades de toda a ordem para aqueles normalmente “excluídos” do status quo acadêmico (escolar) das sociedades em geral. No Brasil, a exclusão educacional é sempre surpreendentemente
mais alarmante porque o índice de analfabetismo de jovens a partir de 15 anos beira a média
de 10% da população do país. Seja por falta de
condições econômicas, sociais, de deslocamento, de histórico familiar ou de subsistência genérica, o jovem brasileiro está ainda fora da “escola”; assim, a promoção de uma possibilidade de
estudo envolvendo menos custo (no que se refere às características citadas) e mediada por algum tipo de tecnologia que chegue a esse aluno representa, sem dúvida alguma, uma oportunidade inclusiva.
No entanto há de se considerar, e de forma
muito enfática, que as instituições de ensino, de
educação básica ou de ensino superior a distância, estejam devidamente preparadas e aparatadas para o desenvolvimento das práticas educacionais mediadas por tecnologias. Nesse sentido, a oportunidade inclusiva gerada pela ideia da
modalidade deve refrear o oportunismo comercial que infelizmente tem atingido o país nos últimos 4 anos, o que levará, certamente, a um pro-
cesso seletivo natural para as escolhas institucionais que prezem missões e valores voltados
para os processos verdadeiros de ensino e de
aprendizagem que antecedem toda e qualquer
modalidade educacional, seja esta presencial ou
a distância.
(Comente este artigo em
[email protected])
INCLUSÃO DIGITAL
UMA VISÃO CRITICA
AUTOR: EDILSON CAZELOTO
Editora Senac São Paulo
Susane Martins Lopes Garrido é Doutora
em Informática na Educação pela UFRGS e
Mestre em Educação pela PUCRS. Atualmente
é Professora adjunta e Coordenadora da
Unisinos Virtual – EaD da UNISINOS e Membro
da Comissão de Educação a Distância do
Ministério da Educação do Brasil (MEC).
É possível ser contra a inclusão digital? Será ela sinônimo de inclusão social? O autor considera que a análise
dos Programas Sociais de Inclusão digital, entendidos como formas de expansão da cibercultura, não pode
prescindir da reflexão sobre como o
poder econômico se excerce e legitima nas sociedades contemporâneas.
O autor investiga como os eixos principais da cibercultura
(informatização do cotidiano e saturação mediática) se articulam em conformidade com a nova global de soberania.
ABC DA EAD - A EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA HOJE
AUTOR: CARMEM MAIA E
TT
AR
JOAO AUGUST
O MA
AUGUSTO
MATT
TTAR
NETO
Editora Prentice Hall Brasil
F O N T E S C O N S U LTADAS
E SUGESTÕES DE LEITURA:
ABRAED 2009: Disponível em http://www.abraead.
com.br/anuario/anuario_2008.pdf . Consultado em
abril de 2010
EAD e os Pólos - Exigências legais: Disponível em
h t t p : / / w w w. s i n p r o - r s . o r g . b r / t e x t u a l / j u n 0 8 /
EAD_Polos.pdf . Consultado em abril de 2010
Indicadores do IBGE de 2009: http://www.ibge.gov.br/
h o m e / p r e s i d e n c i a / n o t i c i a s /
noticia_visualiza.php?id_noticia=1476&id_pagina=1.
Consultado em abril de 2010
GARRIDO, Susane. “A Perspectiva Sistêmica na Cognição Humana a partir da Influência das Tecnologias
do Ciberspace”. Revista On line Colabor@ - CVA
RICESU – Volume 3 – Numero 9 – Julho 2005 - In
http://www.ricesu.com.br/colabora/n9/artigos/n_9/
pdf/id_05.pdf.
MATURANA, Humberto. A árvore do Conhecimento.
São Paulo. Paz e Terra. 2002.
MORIN, Edgar. Introdução ao pensamento complexo.
Porto Alegre: Sulina, 1991.
MORIN, Edgar. O método 4. As idéias. Porto Alegre:
Sulina, 2002.
MORIN, Edgar. O método 3. O conhecimento do conhecimento. Porto Alegre: Sulina, 2005.
Tempo Moderno: http://www.tempomoderno.net/
2009/09/ibge-constata-taxa-de-analfabetismo.html.
Consultado em abril de 2010
A educação a distância (EaD) vem
crescendo de maneira explosiva.
Consequentemente, crescem
também o número de instituições
que oferecem algum tipo de curso
a distância, de cursos e disciplinas
ofertados,
de
empresas
fornecedoras de serviços e insumos e de artigos e publicações
sobre EaD. É nesse cenário em mudança que surge o ‘ABC da
educação a distância’, um verdadeiro manual sobre o assunto,
que traz não apenas a história da EaD no Brasil e no mundo,
como também dicas e sugestões para quem quer melhorar
ou mesmo implementar esse tipo de serviço. Esta obra aborda
os vários modelos de EaD que vêm sendo praticados, as
ferramentas disponíveis, os novos papéis do aluno, do
professor e das instituições, os direitos autorais e o futuro da
EaD, entre outros pontos relevantes. Elaborado com o intuito
de organizar o grande volume de histórias, casos, tecnologias,
ambientes, papéis e fundamentos relacionados ao tema, ‘ABC
da educação a distância’ é, sem dúvida, fundamental para
quem quer conhecer um pouco mais sobre esse tema tão
importante nos dias atuais.
39
e
d
r
o
c
a
O
creto
se
LEONARD
de
COHEN
Por Diego Zerwes
O que faz uma canção
ser regravada com
mais ou menos 200
versões diferentes?
Que segredo é esse?
E
Você já imaginou a voz rouca de Bob Dylan
cantando Sunday Bloody Sunday, do U2? Ou Justin Timberlake interpretando You give a Love a
bad name?, de John Bon Jovi? Não, eles não
participaram de nenhum coro, de nenhum reality show, ou de algum concerto beneficente.
Bob Dylan, Bono Vox, Justin Timberlake e Bon
Jovi. Diferentes em seus estilos sonoros, eles
convergem em um ponto: a música “Hallelujah”,
de Leonard Cohen. Se apenas esses conhecidos
artistas, citados acima, tivessem regravado a canção, já seria um bom indício, digno de pesquisa.
Contudo, de acordo com o site da MTV americana, há aproximadamente 200 interpretações da
música por diferentes artistas.
Lançada em 1984, no álbum Various Positions,
de Leonard Cohen, “Hallelujah” ganhou maior
notoriedade em 1994, com o novo arranjo do
compositor e cantor americano Jeff Buckley,
40
morto acidentalmente enquanto nadava em um
afluente do rio Mississipi, em 1997. Dez anos
mais tarde, a revista americana Rolling Stone listou a canção entre as 500 melhores músicas de
todos os tempos (The 500 Greatest Songs of All
Time). O novo arranjo de Jeff Buckley é tão famoso que, segundo a revista online NME, ela é
conhecida como a “versão original”.
Na última semana do ano de 2008, 24 anos
depois de sua composição, “Hallelujah” ficou com
os dois primeiros lugares do Official UK Charts
Company, uma lista oficial baseada nas vendas
de singles e álbuns no Reino Unido. O primeiro
lugar ficou com Alexandra Burke, vencedora do
X Factor, um programa de televisão britânico para
cantores iniciantes (semelhante ao programa Ídolos do Brasil). O segundo lugar foi de Jeff Buckley, impulsionado pelas vendas promovidas por
uma campanha dos fãs desta versão.
Por que “Hallelujah”, tanto tempo depois, ainda obtém tanto sucesso? Difícil de responder.
Porém, pensar no fato como consequência de um
árduo trabalho e excelente processo criativo é
uma perspectiva interessante, principalmente em
tempos de hits efêmeros, lançados incansável e
freneticamente pela indústria fonográfica.
Em entrevista a Jian Ghomeshi, do jornal The
Guardian, em julho de 2009, Leonard Cohen foi
questionado sobre o grande sucesso de “Hallelujah” em 2008. Ele respondeu que isso soou ligeiramente como uma vingança, já que a Sony Records achava o disco Various Positions fraco e não
bom o suficiente para o mercado americano.
um bom refrão. Nós basicamente vivemos de
maneira parecida, e a música mais autêntica é
aquela que trata dessas coisas, que são o ganho
e a perda, a rendição e a vitória. A música popular tem que ser sobre esses assuntos”.
O resultado de tanto sofrimento, paciência e,
finalmente, vitória, foi uma canção virtuosa e que,
segundo o biblista Sébastien Doane, está repleta de passagens bíblicas. Para ele, a própria melodia pode conduzir a uma viagem espiritual.
Antes de apresentar os fatos bíblicos em si,
Doane lembra que Aleluia, uma palavra hebraica,
significa “Louvai ao Senhor”. “É uma exclamação utilizada na liturgia e nos salmos”.
Leonard Cohen apresentou duas versões de “Hallelujah”. A primeira, do álbum Various Positions, de
1984; e a segunda foi lançada dez anos depois, no
álbum Cohen Live. [Confira ao lado a primeira versão da música e os versos lançados posteriormente]
Sébastian Doane aponta que o “Senhor” descrito neste primeiro parece ser o Rei Saul. Há uma
passagem na Bíblia que descreve o que seria essa
situação: “E sucedia que, quando o espírito maligno, da parte de Deus, vinha sobre Saul, Davi
tomava a harpa e a dedilhava; então, Saul sentia
alívio e se achava melhor, e o espírito maligno se
retirava dele” (I Samuel 16, 23).
Entretanto, esse não é o único aspecto representado no verso. Leonard Cohen se coloca no lugar
do compositor e, mais tarde, de Rei. Compor “Hallelujah” é tentar descobrir qual é o “acorde secreto”
que Davi tocava para o Rei Saul. “Ela é assim: a quarta, a quinta,/ A menor cai, a maior sobe”. Esses são
os acordes secretos que Cohen ou Davi tenta mostrar para alguém que não se interessa por música:
“Mas você não se importa com música, não é?”.
O processo criativo para a composição da letra
foi árduo. Em pelo menos cinco anos de composição, ele preencheu dois cadernos e reuniu cerca
de 80 versos. “Eu me lembro de estar no chão do
hotel Royalton, deitado no carpet e de cuecas, batendo minha cabeça no chão e dizendo: ‘Eu não
consigo terminar essa música’”. Respondendo ao
questionamento, o processo de criação de “Hallelujah” é proporcional ao sucesso que obteve. Cohen esclareceu a sua maneira de criar: “Há dois tipos de composição, a rápida e a minha”.
Parece ser clara a ligação entre a música e a
passagem bíblica. Essa suspeita se torna ainda
mais forte quando se leva em consideração o fato
de Leonard Cohen ser judeu e sempre referenciar histórias bíblicas em suas canções, como na
música History of Isaac, a qual ele narra a partir
da visão de Isaac, filho de Abraão.
Se não há uma fórmula concreta para se criar,
Cohen descreve um conceito que tange na universalidade dos versos de “Hallelujah”: “Ela tem
O segundo verso de “Hallelujah” evoca outra
passagem, ainda com Davi. Para Doane, o verso
corresponde a um adultério cometido pelo Rei
41
Davi: “Uma tarde, levantou-se Davi do seu leito
e andava passeando no terraço da casa real; daí
viu uma mulher que estava tomando banho; era
ela mui formosa” (II Samuel 16, 2). A mulher que
ele observa é Bathsheba, esposa de um de seus
generais que acaba morto na guerra, a seu mando. Contudo, de acordo com a narração bíblica,
Deus não gosta da atitude de Davi e, depois de
sete dias de cama, o filho deste com Bathsheba
morre de uma doença, que não é especificada.
A letra da música e as referências dadas por
Doane parecem muito verossímeis. Ele ainda lembra que a figura do corte de cabelo lembra a história de Sansão – cujos cabelos eram fonte de sua
força – e Dalila. “Ela te amarrou à cadeira da cozinha,/ Quebrou seu trono, cortou seus cabelos”.
Contudo, “Hallelujah” não se restringe a referências bíblicas.
Leonard Cohen revela o que a
música pode significar. Ele não fala
propriamente sobre as referências
da Bíblia, mas sobre o sentido universal no qual que
está inserido “Hallelujah”.
No primeiro, ele tentava tocar o acorde secreto
para alguém que não se interessava por música.
Contudo, ele apresenta tais acordes. “O Rei frustrado compõe Aleluia”; frustrado porque sua música
não vai ser apreciada. E é nesse sentido que Cohen se coloca, indiretamente como Rei, como foi
dito acima. Havia um medo, não manifesto, de que
sua composição poderia ser considerada fraca, da
mesma maneira que a Sony Records entendeu.
No segundo verso, a relação entre homem e
mulher está diretamente ligada à passagem bíblica. A relação de Davi e Bathsheba, que nasce
com um adultério e que termina com a morte do
filho, é marcada por pontos de felicidade e tristeza. Primeiro, o encantamento de Davi ao vê-la
banhar-se e a traição, vista sob seu aspecto
como uma coisa boa. O momento de tristeza está
na morte de Urias, então marido de Bathsheba, e
o descontentamento de Deus que culminou na
morte do filho. O segundo relacionamento presente no verso é de Sansão e Dalila, que destrói
o trono do marido e o reinado ao entregá-lo aos
inimigos e ao cortar seu cabelo.
O que ele pretende, ao não mencionar as referências bíblicas, é mostrar que há algo espiritual e independente de religiões ou crenças que
pode transformar a vida de cada um.
No terceiro verso da versão original, há uma
conversa que remete ao segundo mandamento:
“Não tomar o santo nome em vão”. Ele questiona qual é o santo nome. Ele foge da questão religiosa e se volta, mais uma vez, à universalidade
das coisas. O que está em jogo é a discussão de
que o santo nome pode ser diferente para cada
um. Mas isso não importa, pois “há um raio de
luz/ em cada palavra/ e não importa qual você
ouviu/ se foi uma Aleluia sagrada ou quebrada”.
O santo nome, por exemplo, poderia ser, dentro
da lógica da música, o amor, ou “Eu te amo”.
“E sem levar em conta qual é a impossibilidade
da situação, há um momento em que você abre sua
boca, abre bem os braços, abraça o problema e apenas diz ‘Aleluia! Abençoado seja o nome’. E você não
pode reconciliar isso de qualquer forma, exceto na
posição de total rendição, de total afirmação”.
Para concluir a obra, ele descreve o fim da
relação dizendo que fez o seu melhor, mas que
isso não foi o suficiente. Retomando o início da
canção, ele diz que vai ficar perante o Senhor da
Música, aquele mesmo que ele evoca e que ela,
uma possível esposa, não dá atenção.
“Este mundo está cheio de conflitos e cheio
de coisas que não podem ser reconciliadas. Mas
há um momento quando podemos transcender
do sistema dualístico e conciliar e abraçar toda
a bagunça. É isso o que pretendo dizer com [a
palavra] “Hallelujah””.
42
Essa pode ser a fórmula de uma canção duradoura: aspectos universais que contemplam a
relação dualística de um casal. Isso não foi dito
anteriormente, mas, além do sentido bíblico, a
música trata também da relação de um casal,
mesmo nos dois primeiros versos.
Em outras versões, há versos diferentes, compostos também por Leonard Cohen. Em um deles, a figura do casal é abordado com mais ênfase.
O que há de mais interessante no verso é o
Marble Arch (Arco de Mármore) – e que passa
despercebido pelos críticos dessa música –, um
monumento construído em 1827 para ser o portal do Palácio de Buckingham. Só podiam atravessar o Arco os membros da Família Real inglesa,
ou as Tropas do Rei. O arco era utilizado também
para casamentos. A bandeira vista pelo narrador
representa a marcha da vitória. Mas, como ele diz,
o amor não é essa marcha. O amor, portanto, não
é necessariamente consumado com um casamento. Em outras palavras, casar-se não significa amar,
quando o casamento, pelo que parece, é apenas
uma convenção e uma marcha da vitória.
Esse é conjunto de uma música perfeita que,
ao que nos indica, ficará por algum tempo, senão nas listas, mas na cabeça de todos os que a
conheceram e que pararam cinco minutos para
contemplá-la. Um bom refrão. Versos ricos em
referências. Uma melodia que tenta recuperar o
acorde secreto de Davi. Não é uma fórmula. Mas
foi o melhor caminho que Leonard Cohen pode
traçar para chegar à música perfeita. Alguns artistas ainda buscam a fórmula mágica para compor
músicas como essa, assim como se buscou por
muito tempo o elixir da juventude. A fórmula é
simples: trabalho e talento.
(Comente este artigo em
[email protected])
Diego Zerwes trabalha no Audiovisual da
Fase I, no Colégio Medianeira. É publicitário
(UP), especialista em Literatura Brasileira
(UTFPR) e acadêmico de Letras (UFPR).
www.zerwes.com.br.
ÁLBUM VARIOUS POSITIONS
AUTOR: LEONARD COHEN
Eis o álbum da primeira
gravação de “Hallelujah”.
Quer ouvir a música? Experimente colocar o título no
www.youtube.com. Você verá
quantas versões vão aparecer
Agora, eu soube que havia um acorde secreto
Que Davi tocava, e agradava ao Senhor
Mas você realmente não se importa com a
música, não é?
Ela é assim: a quarta, a quinta,
A menor cai, a maior sobe
O rei frustrado compondo Aleluia
Aleluia, Aleluia, Aleluia, Aleluia
Sua fé era forte
Mas você precisava de provas
Você a viu tomando banho no telhado
Sua beleza e o luar arruinaram você
Ela te amarrou à cadeira da cozinha
Ela destruiu seu trono, cortou seu cabelo
E do seus lábios ela tirou um Aleluia
Aleluia, Aleluia, Aleluia, Aleluia
Você disse que eu tomei o nome em vão
Eu nem mesmo sei o nome
Mas se eu soubesse, bem então, qual é o nome
para você?
Há um raio de luz
Em cada palavra
E não importa qual você ouviu
A sagrada ou a destruída Aleluia
Aleluia, Aleluia, Aleluia, Aleluia
Eu fiz o melhor, não era muito
Eu não podia sentir, então tentei tocar
Eu falei a verdade, não vim para te enganar
E mesmo que tudo
Tenha acontecido errado
Eu vou ficar ao lado do Senhor da Música
Com nada na minha língua, a não ser Aleluia
Versos de outras versões
Talvez eu já estive aqui antes
Eu vi este quarto, eu andei neste chão
Eu vivia sozinho antes de te conhecer
Eu vi sua bandeira no Marble Arch
E amor não é uma marcha da vitória
É um frio e sofrido Aleluia
Mas houve um tempo em que você me disse
O que realmente acontecia lá embaixo
Mas agora você nunca me mostra, não é?
Mas você se lembra quando eu entrei em você
E também pomba sagrada
E todo o suspiro que dávamos era um Aleluia
Talvez haja um Deus lá em cima
E tudo o que eu aprendi sobre o amor
Era como atirar em alguém que te desarmou
Não é um choro que você pode ouvir à noite
Não é alguém que viu a luz
É um frio e sofrido Aleluia
43
Diversidade
e
cultural
MUNDIALIZAÇÃO
Por Nilton Cezar Tridapalli
Qual a melhor metáfora para entendermos a relação
entre a cultura global e a cultura local: cabo de
guerra, ciranda, mãe-pega? De tudo um pouco?
44
D
Desde que os estudos culturais ganharam força na metade final do século XX, a expressão “diversidade cultural” se fez ecoar nas diversas frentes das ciências humanas. Estudos de, entre outros, Stuart Hall, Edward Said e Homi Bhabha colocaram a cultura no centro dos debates estudando justamente as culturas ditas periféricas. A cultura central é posta em perspectiva, e passa a ser
estudada não mais como núcleo irradiador dos
mais diversos cânones, mas é vista sempre em
relação a outras culturas. Obras importantes
como Identidade cultural na pós-modernidade
(Stuart Hall), Cultura e imperialismo (Edward
Said) e O local da cultura (Homi Bhabha) ajudam
a criar um olhar matizado a respeito da ideia de
que toda periferia, vista de determinado ponto
de vista, pode ser um centro.
Trabalhar com a noção de que a cultura é um
termo em si carregado de plurais ainda diz pouco. É importante ir além dessa simples constatação, escavando as entranhas do termo “diversidade cultural” e trazendo à tona complexidades
que não se resolvem apenas na superfície da
expressão, que engendra contradições e dilemas.
De início, o termo não garante por si só a coexistência intercultural livre de imposições e de hegemonias. Na correlação de forças entre culturas, quase sempre o sistema econômico e, por
consequência, de mercado suplanta com sua voz
estertorosa culturas que dispõem de riquezas
enraizadas nas tradições populares, mas que, no
entanto, não servem de matéria prima para a
transformação em produto vendável e rentável.
Dessa forma, é preciso colocar a cultura no
seio de uma sociedade em rede, complexa, globalizada e suscitar o dilema: a globalização da
cultura facilita intercâmbios e amplia o conhecimento ou acaba por arquitetar uma inequação de
vetores cuja resultante acaba sempre sendo a
supremacia de culturas economicamente dominantes? Talvez as duas coisas. Há, sem dúvida,
em meio aos discursos ufanistas da globalização,
riscos de se criar uma cultura pasteurizada, cujas
diversas cores locais cada vez mais adquirem o
monocromatismo de um centro irradiador/ven-
dedor de cultura. Se nivelamento for entendido
como igualdade de expressão, ok. Se entendido
como homogeneização, aí o empobrecimento
das culturas regionais é inevitável.
Armand Mattelart, no seu Diversidade cultural e mundialização, é quem traz esses dados
sintomáticos: um quinto do globo detém 80%
do poder de compra e de investimentos... Nesses tempos em que democracia é confundida ou
substituída pelo Global democratic marketplace,
é fácil constatar: se a cultura está nas mãos do
mercado mundial, e ao mercado a cultura só interessa como forma de compreender consumidores, então o global não passaria de um mundo feito para um quinto da população.
A História mostra à humanidade os inúmeros exemplos de aculturação sofrida por diversos povos. É a era dos impérios e de suas colônias o modelo que serve para, hoje, diversos
teóricos estarem falando de neocolonialismo,
cujo processo de aculturação se dá de forma
sem dúvida mais sofisticada, já que os meios
informacionais não são apenas informacionais
(tampouco comunicacionais, visto que é um
processo unilateral), mas sempre trazem dentro de si valores próprios de um emissor-sujeito. Como grande signo dessa irradiação em sentido único, o american way of life dispôs e ainda dispõe – por mais que alguns torçam o nariz
e digam que esse assunto já era – de inúmeras
formas para se imiscuir entre as outras culturas:
antes de tudo, o poder econômico; e, na sua
esteira, vieram outras armas, desde as literais,
que arrombaram o mercado de países de tradição diversa e impuseram seu estilo time is money até as lúdicas, como é o caso do cinema,
por exemplo – e talvez maior exemplo. Assim,
“uma acepção estreita da noção de cultura se
naturaliza, imbricada nas mediações técnicas e
mercadológicas” (Armand Mattelart). Ou seja,
essa noção de cultura aparenta ser natural quando, na verdade, é uma construção ideológica.
Se, conforme Theodor Levitt, “stricto sensu,
a globalização nomeia o projeto de construção
de um espaço homogêneo de valorização, de
unificação das normas de competitividade e de
rentabilidade em escala planetária (...), cada vez
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mais, em todos os lugares, os desejos e os comportamentos dos indivíduos tendem a evoluir do
mesmo modo, trate-se de Coca-Cola, de microprocessadores, de jeans, de filmes, de pizzas, de
produtos de beleza ou de fresadoras”, fica mais
uma vez evidente a ligação direta em que o poder econômico determina comportamentos e
hábitos de consumo, que são, enfim, valores culturais. Daí a discussão acerca do cinemão hollywoodiano como fator de aculturação e propaganda do american way of life. Organizado em
poderosas associations, o cinema dos Estados
Unidos domina toda a cadeia de produção, passando por cima de diversas leis locais. A Motion
Picture Association está espalhada pelo mundo,
infiltrada nas brechas (às vezes abertas a fórceps)
hegemônica jamais serão exportadas “in natura”,
até por causa da perda do transplante, que arranca as raízes contextuais. Ou serão glamourizadas;
ou seus contornos exóticos serão potencializados; ou serão domesticadas e transformadas em
uma forma digerível e aproximada da cultura
dominante; ou serão solenemente ignoradas.
Tudo isso lembra, guardadas as proporções, as
antigas “civilizações” gregas. Elas, civilizadas; as
demais, diferentes: bárbaras.
“A transformação do ato cultural em valor de
mercado anula seu poder crítico e dissolve nele
os traços de uma experiência autêntica”. Mattelart também relembra
Adorno e Horkheimer,
que aproveitam o conceito de alienação proposto por
Marx e Engels e constroem seu conceito de
indústria da cultura, tendo a divisão do trabalho, a serialização e a padronização como
suas principais características... a “experiência autêntica” passa a ser apenas ponto de
partida do mercado, que a incorpora, estandardiza-a e a devolve em forma de produto.
Ou seja, o ciclo da transformação da cultura em produto só se completa com a morte da
“experiência autêntica”.
das legislações de muitos países, barganhando
direitos de distribuição quase hegemônica e dando como contrapartida algumas esmolas percentuais para investimento em produções locais.
Se cinema é a “máquina de sonhos”, a MPA
busca assegurar que os sonhos sejam em inglês,
e inglês americano...
Há, portanto, “desequilíbrios das trocas culturais em nível mundial”, na expressão de Mattelart.
Desse modo, fica difícil discordar do autor
francês quando este diz que o imperialismo cultural é violência simbólica. Culturas diferentes da
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É bom lembrar que a aculturação se dá por
camadas invasivas sorrateiras, não mais por meio
de força bruta e sim utilizando-se de estratégias
confortáveis, muitas vezes lúdicas, do entretenimento. Seria infantilidade, no entanto, acreditar
que uma série de TV americana, por exemplo,
mudaria toda a forma de ser e pensar da comunidade de uma cidade média no interior do Brasil. É claro que o local é capaz de absorver a cultura alienígena e de propor antíteses aos valores
vindos de fora. Contudo, a contaminação é lenta,
pois na síntese feita entre a cultura local e a estrangeira haverá sempre um resquício a mais
dessa última. E, à medida que o bombardeio
prossegue, também a cultura local vai cedendo
espaço, perdendo terreno e vendo se impor uma
cultura que vai ganhando proeminência a cada
nova síntese. Até que ponto a cultura local consegue amortecer os efeitos do global? Qual seu
grau de tolerância? Eis uma boa questão. Uma
comunidade que não preserva suas fontes de
memória (como sua arte, por exemplo) faz de sua
amnésia um campo arado e adubado, pronto
para receber o que os valores externos impõem.
Portanto, uma sociedade fortemente apegada a
uma tradição cultural própria é mais capaz de
conviver com a cultura global. Assim, o termo
glocalização, cunhado a partir da linguagem da
Economia e da Administração, conseguiria de
forma menos desigual equilibrar as forças e ganhar espaço ao unir o global e o local.
“O sertão é o mundo”, diz Riobaldo, em Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa...
A cultura local sobrevive e, em contato com
uma suposta cultura global, tem o papel de dissolver as estruturas sólidas da ideologia dominante. A presença do local no global produz uma
resistência antidogmática, pois subverte cânones
de cultura que aparentam ser absolutos e únicos
quando nada mais são do que construtos históricos estabelecidos pelo jogo desigual do poder.
Daí fazer sentido emprestar o termo glocalização,
que, em que pese estar associado à linguagem
empresarial, pode ser revisitado e ressignificado em prol da manutenção das especificidades
locais das múltiplas culturas. A tentativa de um
cinema engajado na América Latina mostrou essa
tentativa de resistência; as cotas de exibição para
filmes nacionais também – não obstante o absurdo de precisarmos, dentro do próprio país, garantir um cantinho para o nosso cinema...
Massimo Canevacci, professor da Universidade de Roma, traz à tona a possibilidade de uma
hibridização “que nos fala de dimensões globais
e locais ao mesmo tempo”. É o que ele chama
de “Comunicação Glocal”. Como exemplo, cita
o grupo brasileiro Sepultura, que, em seu álbum
Roots, misturou códigos mais globais de linguagem musical – o rock – com aspectos locais –
cantos, acordes e instrumentos musicais indígenas. Eis um bom exemplo de como a glocalização pode ser inventiva. Por outro lado, pode servir como mera forma de adaptação cultural, cujo
interesse único nada mais é do que vender um
produto de marca global para um mercado local... (adaptar comerciais da Coca-Cola em paí-
ses diferentes, por exemplo).
Pra se ter uma ideia, países da própria Comunidade Europeia, com toda a força e tradição de
seu cinema, têm dificuldades para negociar a distribuição de seus filmes para os mercados nacionais europeus, tamanha a infiltração das majors
americanas nesses países. Não há, ao ler isso,
como não passar a pensar na situação dos países subdesenvolvidos e/ou emergentes.
O Brasil, por exemplo.
Afastando a falsa ideia de uma identidade nacional que nos une, também nos deparamos internamente com pluralidades regidas por correlações de força desiguais. Se falar de um país
“periférico” já remete a uma série de dificuldades, o que dizer de cidades “periféricas” dentro
de países “periféricos”? Ao trazermos estas discussões para os limites caseiros, fica evidente
que, fora do “eixo-centro” Rio-São Paulo, os mesmos problemas se interpõem em meio às dificuldades extremas de dar vazão às produções
regionais e de relativizar “modelões” de Brasil.
Cidades brasileiras fora do grande eixo enfrentam, assim, uma dupla resistência: dialogar com
os centros nacional e, depois, internacional.
Recebemos muito por causa de duplas pontes que nos trazem o global; produzimos e distribuímos pouco por conta de duplos muros que
represam o local.
Homi Bhabha, em seu belo O local da cultura,
nos lembra: “os próprios conceitos de culturas
nacionais homogêneas, a transmissão consensual
ou contígua de tradições históricas, ou comunidades étnicas ‘orgânicas’ – enquanto base do
corporativismo cultural –, estão em profundo processo de redefinição.” Revisitar conceitos de
identidade nacional e diversidade cultural dentro
do local demandaria ainda muitas – talvez inesgotáveis – páginas. Muitos já o têm feito por meio
de suas discussões do multiculturalismo. É certo que expressões como cultura local ainda escondem muitas divisões e, no limite, poderiam
levar ao indivíduo como parte única de seu grupo. Ao buscar minúcias da diversidade cultural,
dividiríamos tanto os grupos que acabaríamos
por chegar ao indivíduo. Em contrapartida, no
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processo inverso, veríamos no mesmo indivíduo
a marca de muitos grupos culturais.
Nesse rocambole cultural, é importante manter a discussão acesa, equilibrando-se entre acertos, erros e pontos de vista diversos.
(Comente este artigo em
[email protected])
Nilton Cezar Tridapalli é coordenador de
Midiaeducação do Colégio Medianeira e um
dos editores da revista Mediação. Formado
em Letras (UFPR), é especialista em Leitura de
Múltiplas Linguagens (PUCPR). É tradutor e
mestre em Estudos Literários (UFPR).
O LLOCAL
OCAL D
A CUL
TURA
DA
CULTURA
AUTOR: HOMI
BHABHA
Editora da
UFMG
Apontado pela
revista Newsweek como um
dos prováveis
cem nomes de
destaque no século 21, o crítico indo-britânico Homi K.
Bhabha vem se firmando cada vez mais
como intelectual brilhante, responsável
por análises originais e polêmicas de temas centrais da atualidade, como hibridismo, pós-colonialismo, identidade e
nação. Os ensaios reunidos em ‘O local
da cultura’ oferecem contribuições inestimáveis para diversas áreas, sobretudo
a crítica literária e os Estudos Culturais.
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DIVERSID
ADE CUL
TURAL E MUNDIALIZAÇÃO
DIVERSIDADE
CULTURAL
AUTOR: ARMAND MATTELART
Editora Parábola
Em seu livro, Armand Mattelart nos guia em meio à trama dos
empreendimentos culturais, lembrando-nos dos desafios urgentes de uma diversidade posta em risco por uma produção
cultural que se deixa reduzir a seu valor de mercado. A mundialização das indústrias culturais projetou os ‘produtos do
espírito’ para o centro das negociações sobre a liberalização
total das trocas comerciais. O tema da diversidade cultural,
por muito tempo amordaçado, passou a constar da ordem do
dia das grandes instâncias internacionais. A preservação da
diversidade deve ser posta a cargo das políticas públicas, ou
pode ser atendida pela multiplicação da oferta mercantil de
bens e serviços? A própria idéia de diversidade cultural acoberta realidades e posições
contraditórias. Eixo crítico da nova ordem mundial, ela está no princípio de uma cada
vez mais necessária democracia mundial. Mas também pode ser transformada em
caução do novo modo de gestão do mercado global. Qual é a ligação entre exceção e
diversidade cultural? Por que a União Européia, por exemplo, foi levada a trocar a
primeira pela segunda? Trata-se apenas de garantir a cada grupo cultural a possibilidade de produzir suas próprias imagens ou de ir além disso e legitimar uma nova
filosofia geral, que subtraia os bens comuns da humanidade ao jugo da lei da livre
troca?
EMPADAS
DE QUEIJO
Por Marcelo Weber
Glória de quem já experimentou, desespero
de quem só experimentou. Nostalgia na boca de
quem lembra. Come o melancólico e sai do seu
mundo dançando, come o fleumático e agita-se
buscando aventuras, torna o colérico afável, anima o taciturno. Dá fome ao anoréxico. Faz o ateu
acreditar, e o crente duvidar. O pessimista se
sente ótimo, o otimista melhor do que nunca.
Quem sofre de amor come a empada e redescobre o valor próprio e se arrepende de perder tanto tempo sofrendo porque ela devolve a
confiança em si mesmo, e a autoestima se ergue
dentro do miserável.
A empada de queijo é obra demiúrgica, operação mística da arte rabínica de dar vida ao inanimado. É o Golem da cozinha. É o sopro nas
narinas de Adão.
A cabala atribui valores numéricos às letras
do alfabeto, a empada combina o melhor da vaca
(sem derrame de sangue), que é o queijo e a
manteiga com o que a galinha dá melhor de si
além da canja, que é o ovo. Mistério maior da
cozinha, metáfora das metáforas, símbolo do
conhecimento, o ovo tem lugar cativo nos dicionários de símbolo do mundo todo e na mitologia e na mesa de todo os povos.
Agora que você já leu tanto
alimento pra cabeça, que tal
ir à cozinha? Segue nossa
coluna gastronômica.
Elvis Presley, Sarah Bernhardt, John Kennedy,
Mickey, Einstein ou Maradona, ou Mao Tse Tung,
não há quem seja mais fomoso que a galinha.
Poderia estender-me num elogio sem fim da
empada mas passemos à receita, às Regras deste rito de criação.
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Empadinhas de queijo
MASSA
RECHEIO
200g de manteiga
5 ovos
2 gemas
2 copos de leite
200g farinha
200g de queijo
parmesão
1 xícara de água
Sal
MODO DE PREPARAR:
Escolha primeiro uma trilha
sonora. Isso faz muito bem,
principalmente quando se vão
bater claras em neve.
Misture as gemas com a manteiga em temperatura ambiente. Acrescente à farinha água e
sal. Misture e deixe descansar.
Riquezas do nosso reino,
Ex-libris de nossa cozinha.
Talento de nossas senhoras
Mimo às nossas crianças.
Medalha no peito de nossos marechais.
Mas, espere, não é só isto, não finda aqui a
obra com que a benemérita cozinha demonstra
amor e admiração por seus semelhantes.
Se a empada sozinha já se faz digna de encher o ventre dos deuses, acompanhada de posta branca ao molho de vinho branco ela se des-
Encha ¾ das forminhas com
este recheio batendo sempre, pois o queijo tende a se
depositar, o que faria com
que as primeiras empadinhas
saíssem com mais creme que
queijos e as últimas o inverso,
e os comensais não chegariam nunca em acordo quanto
à excelência deste pitéu.
te deste acepipe – existem
pessoas mais suscetíveis que
outras – é preciso amarrar as
mais sugestionáveis a um
poste ou ao pé da mesa e tampar-lhes as narinas com cera
de abelha assim que as empadas começarem a ressentir,
pois o odor que delas exala é
comparável ao canto das sereias que seduziu os companheiros de Ulisses perto de
Cilas e Caribdes. Do contrário, os comensais poderiam,
idiotizados pelos vapores, se
lançar descerebradamente
contra o forno e se queimar,
estragando o repasto, o divino ágape.
Leve ao forno até dourar. Dependendo do temperamento
das pessoas eleitas ao degus-
Desamarre-os somente depois de desenformar e esfriar as douradas empadas,
E forre as forminhas tomando o cuidado de deixar um
pouco mais grossa a massa
no bordo.
Bata 5 ovos com 2 copos de
leite e 200g de queijo parmesão ralado preferencialmente
na hora. Pite pouco de sal.
dobra num caleidoscópio compulsivo de sabores contrastantes e irrecusáveis. Marília sem Dirceu, Tristão sem Isolda, Belarmino sem Gabriela,
Abelardo sem Heloísa, Dante sem Beatriz, Romeu
sem Julieta, Pedro sem Inês, Don Quixote sem
Dulcinéia. Posta branca sem empada.
As duas combinadas são como num motor
de dois tempos, em que a explosão na câmara
de um pistão força o virabrequim a abaixar o
outro pistão que estava no alto; assim, uma empada engolida puxa um pedaço de posta e um
pedaço de posta empurra outra empada, numa
espécie de moto-perpétuo da gula.
Marcelo Weber é artista no seu sentido mais amplo, renascentista. Ex-aluno do
Medianeira e agora pai de aluna, é autor do Mural do Conhecimento, obra em
azulejo em exposição na entrada principal do Colégio.
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