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Comentários sobre o filme Feitiço do Tempo (1993)
Adriana Vilela Jacob
26 de outubro de 2012
Eu trouxe um breve texto com o objetivo de apresentar
algumas observações que eu queria contar e espero que elas
provoquem em vocês alguma repercussão e que mobilize uma
conversa aqui.
Embora o filme seja uma comédia romântica, queria contar que
tive um bom trabalho em nomear e depois formular um texto, pois
este filme me fez pensar em questões complexas sobre o viver.
Espero conseguir comunicar minhas idéias.
Queria contar também, que lendo sobre as repercussões do
filme e assistindo aos comentários dos produtores e diretor, descobri
que inicialmente o filme encontrou muita resistência das grandes
companhias de cinema por considerarem que ele não traria muito
publico por se tratar de um roteiro muito “europeu”, ou seja, por
mobilizar reflexões na plateia. Os produtores temiam que ele fosse
um fiasco de público e de arrecadação. Mas o filme foi um sucesso e
hoje é tido como um filme “Cult”...
Em parte, essa surpreendente repercussão foi compreendida
pelos produtores como decorrente da mobilização provocada em
diferentes grupos religiosos, que interpretaram o filme como um
registro das possibilidades de desenvolvimento espiritual. Sua
mensagem é bastante otimista em relação ao ser humano e à sua
capacidade de modificar-se. Mas não vou me ater aqui a este
aspecto.
Pretendo sim, utilizar o filme para apresentar algumas ideias
psicanalíticas da clínica contemporânea, ou seja, uma maneira de nos
aproximarmos de uma compreensão a respeito de como podemos
conceber alguns aspectos do funcionamento mental.
No meu entender, este filme pode ser compreendido de duas
maneiras. Uma delas apresenta a ideia de um processo linear e
evolutivo, descritivo do desenvolvimento pelo qual o protagonista
passou, no qual uma fase é seguida de outra e outra e assim por
diante, como se fossem etapas de um processo. Essa maneira de
abordar a questão pressupõe uma mente como uma unidade e a
aprendizagem como uma aquisição, uma conquista.
Mas podemos considerar que a mente não seja assim tão coesa
e o desenvolvimento não tão linear e evolutivo e a partir daí,
podemos conceber a ideia de que as aprendizagens não aconteçam
de maneira crescente e cumulativa. Consideremos que na mente
coexistam muitas dimensões, desde aspectos muito primitivos até
áreas muito sofisticadas.
Se partirmos desse pressuposto, vamos examinar o filme como
apresentando modelos dessas diferentes dimensões, e cada cenário,
cada movimento de Phil, possa então ser compreendido como
possibilidades de funcionamento, nos quais observamos desde
dinâmicas muito primitivas até dinâmicas compatíveis com aspectos
elaborados e desenvolvidos.
Pudemos assim assistir às muitas dinâmicas mentais de Phil.
Phil é o homem do tempo, que ao longo do filme passa por uma
série de situações, em decorrência de um estado de aprisionamento
no tempo. Imagino que o título original em inglês, Dia da Marmota,
possa ser uma referência a uma característica comum ao Phil,
homem do tempo, e ao Phil, a marmota apresentada no filme.
Seguindo a tradição, as pessoas de um vilarejo próximo a Pittsburgh
(EUA) acreditam que Phil, marmota, é capaz de predizer se a
primavera do ano vai se adiantar ou não. Assim como a crença da
população de Punxsutawney na marmota Phil; o homem do tempo,
Phil, também acredita ser capaz de predizer os acontecimentos. Sua
crença não é ligada a nenhum misticismo, está mais relacionada à
sua dificuldade em tolerar as vivencias e em função disso funciona de
maneira onipotente, numa suposta onisciência que substitui a
possibilidade de aprender com a experiência. As experiências e suas
aprendizagens são substituídas por ideias preconceituosas e valores
morais incorporados de forma mecânica. Não há uma apresentação
da história pregressa de Phil, mas ele mostra-se cético quanto às
qualidades humanas, inclusive às suas. Além disso, em ambos os
casos, há a expectativa de que o mau tempo (tanto do ponto de vista
climático quanto psicológico) acabe logo.
Phil usa sua inteligência, perspicácia e senso de humor para
mantê-lo à distancia de qualquer contato mais íntimo com as pessoas
e durante quase todo o filme, assistimos ao grande despreparo que
tem para relacionar-se com seus sentimentos e para sensibilizar-se
no contato com os outros.
Não apresenta, no início do filme, conflito ou angústia relativa a
esse seu funcionamento, pelo contrário, defende-se e evita qualquer
movimento que possa trazer-lhe reflexão. No contato com as pessoas
mostra-se arrogante e intimida as aproximações com seu tom de
ironia, cinismo e do desprezo por elas. É um homem só, que pensa
estar acostumado a ser só e não precisar de ninguém. Acredita-se
sem conflitos, sem angústias e sem questionamentos.
Talvez, assim como as marmotas no inverno, Phil esteja em um
estado de hibernação psíquica, num mundo gélido e inóspito.
Phil encontra-se prisioneiro de uma condição desprovida de
significados e do seu ponto de vista nada muda e não há a
perspectiva de mudança na medida em que ele não apresenta
nenhuma consciência deste seu funcionamento, até que,
surpreendentemente o tempo para de passar.
Inicialmente
Phil
entra
em
contato
com
este
seu
aprisionamento, de que o tempo parou de passar, de que os dias não
mais se seguem numa sequência, mas em uma repetição, e pouco a
pouco desenvolve um embrião de consciência, a angústia emerge,
relacionada a não conseguir encontrar sentido em seu viver.
Poderíamos pensar que este momento do filme a experiência
vivenciada por ele diz respeito a um senso de inexistência. Falta-lhe
alguma representação interna do que vive. É como se tudo ficasse
sempre igual porque nada alcançou ainda um significado.
Até que o tempo parasse, sua expectativa a respeito da vida
restringia-se a uma espécie de ritual a ser cumprido, como quem
obedece a um manual que foi formulado norteando como uma pessoa
deve ser, sem que se produza simbolismo psíquico, questionamentos,
conflitos e sofrimentos. Isso é ilustrado na cena em que há um closed
no mostrador do relógio que lentamente muda de 5:59 am para
6:00am, da mesma maneira que todos os outros dias anteriores e
que de certa forma nos remete à ideia de algo mecânico, desprovido
de simbolização, assim como na sequência em que a tela mostra
rapidamente os dias se passando através apenas da alteração do
horário, sem que nenhuma cena seja apresentada. O que se
apresenta como novo é o início de uma percepção de Phil a respeito
de sua condição e nos diferentes cenários, a ampliação desta
consciência. Desta perspectiva, os dias passam e as emoções podem
ser sentidas, há algum registro, mas elas não podem ser sofridas.
A parada do tempo apresenta-se aqui como o elemento que
permite um rompimento com algo rigidamente estruturado e que
gera nele a angústia da falta de sentido e o leva à desconstrução de
suas certezas.
Apenas quando o tempo para e Phil se dá conta de que está
prisioneiro é que assistimos aos primeiros sinais de angústia, conflitos
e sofrimento. Embora ele esteja prisioneiro da impossibilidade de
mudança, de um estado de inexistência, abre-se uma brecha, uma
força interna em busca de significado e de existência.
Acompanhamos então diferentes movimentos de Phil a partir
desta brecha que se abre.
Frente a este novo, Phil fica inconformado, mas inicia um
processo de investigação. Em seus movimentos, em cada uma das
suas estratégias, busca checar as hipóteses que constrói a respeito
do que lhe acontece.
Desesperado, busca soluções mágicas para fugir ou escapar do
contato com o que não compreende e tentar assim eliminar a
angústia.
De certa forma, a ideia da repetição exaustiva, pode ser
compreendida como necessária para que Phil pudesse explorar-se e
colher observações a respeito de seu funcionamento, e na medida em
que cada uma das hipóteses é explorada ele vai construindo suas
formulações e preenchendo-se de fragmentos de experiências
pessoais.
A procura pelos médicos e ajuda psicológica aparecem como
uma de suas uma hipóteses, de que sua dificuldade talvez fosse
física, concreta. Se assim fosse, nada melhor do que os especialistas
para resolver a situação. A ideia de que seja possível localizar no
corpo alguma causa responsável pelo sofrimento psíquico é algo
muito usual.
Percebam que seu movimento é expulsivo. Querer livrar-se do
que traz angústia e que o apresenta a sentimentos dolorosos. Phil
ainda não tem acesso à possibilidade de sentir, processar ou digerir a
vivencia. Falta-lhe o instrumental. Ele terá que desenvolvê-lo.
Começa a se quebrar dentro dele algumas de suas teorias, pois
viver dentro das regras não foi suficiente para que ele estivesse
“livre” da dor. Percebe então que vivia evitando o risco do viver e
formula: “e se não tivesse amanhã? E se não houvesse consequência
e a gente pudesse fazer o que der na telha?”. Algo se quebra dentro
dele. Phil então formula: “Eu não quero mais viver dentro das regras”
e a partir desta formulação age de maneira inconsequente.
Neste movimento experimenta a manipulação das situações. De
certa forma, apesar das experiências não poderem ser significadas,
elas podem distraí-lo da angústia e do desamparo. O sexo, o
dinheiro, a satisfação dos seus desejos pode aplacar sua angústia e
nesta constante excitação, evitar o sofrimento. Entretanto, esta
condição de excitação demanda constante excitação para se manter e
não é suficiente para aplacar a angústia. Foi possível preencher o
tempo, mas não tornou possível significar a vida.
Abre-se outra brecha: Phil se dá conta de suas fantasias
onipotentes e seu funcionamento narcísico. Percebe sua necessidade
de sentir-se Deus e sua dificuldade em sair dessa condição. Ele já
está morto, sem que ele possa significar suas vivencias humanas.
Isso é apresentado no filme pela sua impossibilidade de se matar.
Além disso, ele está preso a um funcionamento que não consegue
matar. Não pode abandonar seu funcionamento e mudar sua
perspectiva a respeito de si e da vida de uma maneira simples. Ele
diz a Rita: “Sou um Deus. Sou imortal…. “
O poema recitado por Rita para Phil, a produtora da equipe com
quem ele convive durante todo o filme, reflete, de certa forma, a
pobre condição interna do personagem e sua falta de vida.
RESPIRA ALI O HOMEM
(Sir Walter Scott)
trecho de “O Canto do Último Trovador”
Respira ali o homem com a alma deveras morta
Que nunca a si próprio disse,
‘Esta é a terra que me pertence, minha terra natal!’
Cujo coração dentro de si nunca fulgurou
Conforme, com seus passos, para o lar retornou
Depois de haver divagado por praias estrangeiras!
Se tal ser respira, observa-o bem;
Por ele não ressoam os trovadores em êxtase;
Embora altos seus títulos, glorioso seu nome,
Vasta sua fortuna tanto quanto clamam seus desejos;
Apesar de tais títulos, poder, e riqueza,
O miserável, em si mesmo concentrado,
Em vida, será privado de justo renome,
E, duplamente morrendo, retornará, em queda,
Ao pó vil de onde brotou,
Desacompanhado de lágrimas, de honra e de elogios.
A existencia possível ao Phil, neste funcionamento é
perceber-se como um Deus, mas o alcance de sua consciencia a
respeito de si ainda é muito rudimentar.
Ele então manipula, tira proveito das situações num
funcionamento perverso. Busca desta maneira sentir algo, algum
prazer, talvez o amor, mas o sentimento de inexistencia permanece e
novas formulações são necessárias.
Se prestarmos atenção começa a surgir nele o contato com o
outro e o desejo de amar e ser amado. Essa consciencia, de que há
um outro ser, traz também o contato com o universo desconhecido
com que se depara uma pessoa quando se relaciona com uma outra
pessoa.
Investe então em descobrir como amar...mas parte de suas
teorias: experimenta construir um personagem para realizar o ideal
do outro (no caso, a Rita), ser o que o outro quer, como se o amar
pudesse surgir a partir da realização do desejo do outro.
Phil percebe-se incapaz e impotente, e pouco a pouco descobre
não sabe amar, que não aprendeu a amar. Apenas com a frustração
repetitiva e a desconstrução de suas teorias é que realmente ele
expande sua apreensão da realidade, da sua realidade interna e da
realidade externa, e realmente deprime, pois entra em contato com a
ausência de uma real existencia e com a ausencia de sentido de sua
vida.
A depressão de Phil apresentada no filme, quando há essa
descontrução interna, coloca o indivíduo em um estado muito
doloroso, mas também muito favorável ao surgimento de novas
perspectivas. Abre-se assim a possibilidade de aprender com a
experiencia. Esta é uma condição que permite o início de um
processo de mudança interna e de contato com a real condição, sem
as lentes exclusivamente hipocondríacas, onipotentes, narcísicas,
sem tantas defesas, é o que pode aproximar realmente de quem se
é. Esta consciencia dolorosa, representada pela tristeza, pode ser o
ponto de partida para transformações realmente significativas do
ponto de vista psiquico, uma vez que é neste estado que se forma a
noção de existencia, o ser.
Phil sofre e pode então apreender a realidade de uma maneira
mais ampla. Ele diz: “A pior parte é que amanhã você terá esquecido
e vai me tratar como um bobo e eu sou mesmo um bobo. Já me
matei tantas vezes que já nem existo mais”.
Toda a transformação decorrente dessa consciência é então
apresentada na parte final do filme. Aspectos da personalidade de
Phil, como seu desejo onipotente, sua necessidade narcísica de ser
valorizado permanecem presentes. O que a meu ver muda, é a
condição humana de Phil, uma expansão da sua condição de
relacionar-se consigo mesmo e uma percepção da existência do outro
e uma preocupação genuína com o outro. A possibilidade de
significação das experiências vai tornando seu mundo interno mais
rico, menos gélido e inóspito e este vai sendo povoado por vivencias
de relação.
Acredito que o feitiço não foi do tempo. A gente costuma
atribuir ao tempo o poder mágico de trazer as mudanças e a
ampliação da condição humana, mas o feitiço está no trabalho
psíquico de cada pessoa para aproximar-se de sua realidade mental.
Este trabalho psíquico envolve o sofrimento do contato com as
próprias precariedades e com os nossos aspectos mais primitivos. De
modo geral temos dentro de nós um pouco de cada um dos
funcionamentos apresentados no filme como forma de lidar com a
angústia da existência. Podemos nos relacionar com a angústia do
viver dessas muitas maneiras. Algumas mais restritas e dissociadas,
outras mais amplas e dolorosas. Tudo dependerá da menor ou maior
possibilidade de contato com a realidade e da maneira como
processamos essas realidades.
A ideia da experiência emocional como geradora de
transformações relevantes na mente de um ser humano nos é muito
cara, mas no dia-a-dia podemos perceber que nunca deixaremos de
ser quem somos. Nossos funcionamentos mais precários estarão
sempre ativos em nossa mente, coexistindo com as ampliações que
formos capazes de alcançar.

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