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ENTRE VISTA ENTREVISTA AnaCris Bittencourt 62 DEMOCRACIA VIVA Nº 35 9 Irineu Guimarães Aos 77 anos, liderança tradicional da favela do Jacarezinho, no Rio de Janeiro – onde viveu por mais de 50 anos e ajudou a fundar sua primeira associação de moradores – Irineu tem muito para contar. Presidente da Federação de Favelas do Estado do Rio de Janeiro (Faferj) por três mandatos, integrante do Movimento Revolucionário Oito de Outubro (MR-8), aliou com maestria mobilização comunitária e formação política em plena ditadura militar. Comunista por convicção, sindicalista por vocação, favelado com muito orgulho, é pai de quatro filhos, avô nove vezes e bisavô cinco. Sua trajetória se confunde com a do próprio movimento de favelas no Brasil. A seguir, um pouco dessa história de lutas e, certamente, de muitas vitórias. JUN 2007 63 E N T R E V I S TA Democracia Viva (DV) – Quando e onde você nasceu e passou sua infância? acabei aprendendo praticamente todo o trabalho de uma cerâmica. Foi esse o meu trabalho até os 17 anos. Irineu Guimarães – Sou mineiro, nasci na divisa com o Espírito Santo, no Vale do Rio Doce. Na época que eu era criança, a estrada de ferro que, hoje, carrega todo nosso minério, da companhia Vale do Rio Doce, chamavase Vitória–Minas, porque começava em Vitória e ia até Minas. Nasci no dia 18 de junho de 1930, na cidade Aimorés. Por isso, tenho uma aparência de índio. Irineu Guimarães – Podemos dizer que sim, pois, tive ali meu primeiro arranca-rabo com os proprietários. Foi quando surgiu aquela lei para assinar carteira e eles não queriam assinar. Nessa época, ouvia falar muito sobre o Rio de Janeiro e eu queria sair, voar. Minha mãe era contra porque eu era muito novo. Procurei um camarada na cidade, o seu Benedito, que representava o Ministério do Trabalho. Disse a ele: ‘Estou saindo, mas nunca assinaram minha carteira’. Seu Benedito fez uma visita à olaria e os proprietários ficaram bronqueados. E, apesar de ser o mais novo, fui eu que espalhei para todo mundo da cerâmica que tínhamos esse direito e criei uma confusão generalizada lá dentro. Depois, fui morar no Espírito Santo, atrás de dois irmãos mais velhos que tinham ido para Colatina trabalhar numa cerâmica. Comecei a trabalhar lá também, mas como entendia de cerâmica (meus irmãos não eram tão curiosos como eu), percebi que o trabalho estava sendo feito de forma errada. Conversei com seu Prestes, dono do negócio, explicando que tinha que haver modificações para os tijolos saírem certos. Com isso, passei a ser o encarregado da cerâmica. Seu Prestes gostava muito de mim, mas tive problemas com meu irmão mais velho, que não gostou. Ele era nervoso, coitado, brigava por tudo. Disse que ia quebrar a minha cara e seu Prestes quis mandálo embora. Aí, tive que contornar a situação. Não quis sair logo da empresa por causa do meu irmão, deixei assentar a poeira e um dia saí, sem falar nada para seu Prestes. Simplesmente desapareci, voltei para Aimorés. DV – Sua família trabalhava em quê? Irineu Guimarães – Eram todos camponeses. Meu pai mexia com terra e na época do plantio de café, chegou a ter uma espécie de fazenda. Naquele tempo era mole, era igual ocupar terra aqui no Rio de Janeiro há 50, 60 anos. Depois, ele veio para a cidade de Aimorés, onde nasci. Sou o 11º filho! Ali vivemos por um bom tempo. Mas ele brigou com a família e foi morar em Itapina, no Espírito Santo. Minha mãe ficou em Aimorés conosco. Tivemos uma época de pobreza muito grande. Aos poucos, minha mãe foi se reabilitando. Depois de um tempo, a família se dividiu: minhas irmãs foram morar com meu pai no Espírito Santo; minha mãe ficou comigo e com meus irmãos. De vez em quando, a gente fazia um intercâmbio, ia lá e tal. Minha vida toda foi por ali. DV – Também chegou a trabalhar com terra? Irineu Guimarães – Não, nunca trabalhei na lavoura, não sei mexer com planta, não sei plantar nada. Meu contato direto com a terra acontecia quando eu passava uns dias em um sítio de amigos lá de Aimorés. Meu primeiro trabalho foi como oleiro, com 13 anos. Queria defender um dinheirinho e fazia um serviço mais leve na olaria. Assim, 64 DEMOCRACIA VIVA Nº 35 9 DV – Foi quando começou sua liderança como sindicalista? DV – Mas você não queria mais viver lá. Foi assim que acabou indo para o Rio de Janeiro? Irineu Guimarães – Fiz um tour até chegar ao Rio. Em Aimorés, reencontrei um amigo, que também tinha vontade de voar mais alto, e fomos para Governador Valadares. Ele era um ótimo marceneiro, mas não encontrou emprego lá. Fomos, então, para outra cidade, Acesita, e também não conseguimos emprego. Acabamos indo parar em Belo Horizonte. Todo mundo sem dinheiro, duro. Ficamos lá uns dias, fazendo uns biscates. Em Valadares, já tinha trabalhado numa empresa americana, no negócio de tirar curva das linhas para o IRINEU GUIMARÃES trem de minério andar mais rápido. Fiquei sabendo que essa empresa estava construindo uma casa de força em Barra do Piraí, no Rio de Janeiro. Aí, fomos para lá. Mas o único emprego que tinha era trabalhar com cimento. Troço pesado, difícil, eu era magrinho, sofri que só trabalhando naquilo. Conversando com o pessoal, descobrimos que a empresa tinha um time de futebol. Isso salvou a gente, fomos aprovados no treino e fui promovido a apontador. Eu batia uma bola direitinho. DV – Foi ser apontador do time de futebol da empresa? Irineu Guimarães – Não, apontador dos trabalhadores na empresa. Mesmo assim, por causa do meu amigo, não ficamos lá muito tempo, só uns dois meses. Tinha outro irmão mais velho que trabalhava para a Aeronáutica. Ele encontrou um emprego bom na profissão dele, ganhava bem. Fomos morar, temporariamente, na empresa onde ele trabalhava. Foi aí que conheci o Jacarezinho, a empresa era numa rua lá. Mas minha primeira morada no Rio foi em Nilópolis. Eu consegui um emprego na fábrica de garrafas e copos Cisper. Isso foi em 1951, estava com 20 anos. Tínhamos que pegar o trem todo dia de madrugada, era um sufoco desgraçado. Aí, mudamos para a rua Dois de Fevereiro, no Engenho de Dentro. DV – Antes de começar a trabalhar, como foi o Irineu estudante? Irineu Guimarães – Fui um péssimo estudante, já fui até expulso da escola. Tinha um cunhado que gostava muito de mim, me dava toda cobertura, mas não estudei, não gostava de estudar. Fui estudar à noite e continuei sendo um péssimo estudante, brincava, namorava, mas não estudava. Aí, resolvi trabalhar. Trabalhei em vários setores, em serviços braçais, porque não tinha uma profissão. Assumo que não parava em emprego nenhum porque sempre criava muito problema. Gostava muito de política, mas não tinha nenhuma ideologia revolucionária. DV – E quando passou a ter? Irineu Guimarães – Quando conheci o marxismo, ainda muito mal, em 1955. Tinha um concunhado comunista, mas era um comunista devagar, não lia muito, não fazia nada. A gente vivia conversando sobre futebol e assim ficamos amigos. Depois, ele acabou se tornando meu concunhado. Eu namorava a irmã da mulher dele. Um dia, ele me disse: ‘Você está perdendo seu tempo conversando só sobre futebol, falando do Vasco’. Sempre fui vascaíno, desde a infância. Até porque, na minha cidade morava um cara que jogava no Vasco e todo mundo, nessa época, virou vascaíno lá. Depois dessa conversa, decidi ler, conversar com outros companheiros e fazer movimentos políticos, comecei a participar mesmo. Cheguei em um ponto que entrei numa base política no Jacarezinho. DV – Base política do Partido Comunista? Irineu Guimarães – Sim, do PCB. Depois, fui membro do regional da Leopoldina e, aí, minha atividade política passou a ser no Jacaré e na Leopoldina. Era bastante ativo e, em pouco tempo, passei a ser o secretário político da base. Na época do golpe militar, estava trabalhando numa fábrica de escovas. Trabalhei duas vezes nessa fábrica, um ano e meio de cada vez. Da segunda vez, depois que me tornei socialista, comunista, fiz um movimento na fábrica. Na verdade, eu mandava lá. Tinha cento e poucos empregados e alguns companheiros eram estabilizados, naquele tempo ainda havia estabilidade no emprego. Eu, que não era estabilizado, botava esse pessoal para falar em nome da classe operária, reivindicar. Com o movimento político que criamos ali dentro, a gente parava a fábrica a hora que queria. Paramos várias vezes. Trabalhei em vários setores, em serviços braçais, porque não tinha profissão. Assumo que não parava em emprego porque sempre criava problema. Gostava muito de política, mas não tinha nenhuma ideologia revolucionária DV – Qual a sua visão sobre aquele momento político do Brasil? Irineu Guimarães – Nunca me conformei muito com Getúlio, apesar de o pessoal falar muito. Até hoje, tenho divergência com pessoas que defendem que o Prestes fez bem quando fez aquela aliança com Getúlio. Eu não OUTUBRO/2000 JUN 2007 65 E N T R E V I S TA penso assim, achei que aquela aliança não merecia nenhum tipo de consideração por parte dos comunistas. Não podia ter. Getúlio entregou a mulher dele para os nazistas matarem. Que negócio é esse? Como apoiar um cara desse? É um cara que traiu, matou muito comunista, matou muito operário. Bastava não ser getulista, ser oposição para ele tachar de comunista e mandar matar o cara. O Jango não era um socialista, mas era bem-intencionado. Em um ano e sete meses que esteve no governo, fez mais do que todos os outros governos que se diziam progressistas. E ele saiu do governo exatamente por isso. Foi autor do salário mínimo, brigou pela reforma agrária na beira de estradas, porque não adianta fazer reforma agrária lá dentro da Amazônia, tem que fazer nas áreas com escoamento. Ele também deu o primeiro salto para controlar a remessa de lucro. Porque os gringos fazem o que querem aqui, dominam tudo e levam o lucro todo para fora. Essas medidas contrariaram enormemente o imperialismo americano. Foi essa a razão dele ter sido deposto. Na minha opinião, foi também um erro muito grande do Partido Comunista, que botava muita lenha na fogueira, sem nenhuma preparação de base para a revolução. Falava em revolução sem estar preparado para isso. Isso foi um dos grandes erros que cometemos. A cúpula do Partido Comunista estava toda no Sindicato dos Metalúrgicos. Olha a nossa visão de resistência: enchemos a frente do sindicato de sacos de areia, fizemos a maior barricada. Mas lá dentro não tinha um canivete DV – Que tipo de preparação deveria ter sido feita? Irineu Guimarães – Não se pode falar em revolução sem ter um militante que saiba o que é uma guerrilha no campo ou urbana. Os caras não sabiam nem dar um tiro, como é que se vai falar em revolução? Um outro grave 66 DEMOCRACIA VIVA Nº 35 9 erro foi cometido pelo próprio Prestes. No último aniversário antes do golpe de 1935, assisti ao discurso que ele fez. Dizia o seguinte: no Brasil, não há clima para haver golpe de direita. Se houver golpe, só poderá ser de esquerda. Ele acreditava nos generais. Dali a dois meses, aconteceu o golpe. Não foi de direita não, foi de ultradireita. DV – Onde estava durante o golpe de 64? Irineu Guimarães – No Sindicato dos Metalúrgicos do Rio de Janeiro. Depois que me tornei sindicalista, meu assistente sindical era o Roberto Morena, um dirigente de confiança do Partido Comunista no Brasil. Toda a cúpula do partido freqüentava o sindicato, vários atos foram feitos ali. O Roberto Morena me orientava porque eu pertencia a um sindicato deste tamanhozinho, onde toda a diretoria era pelega junto com o patrão e eu queria derrubá-los. DV – Qual era o sindicato? Irineu Guimarães – Sindicato de Escova, Junco e Vime, pequenininho. Enfim, a cúpula do Partido Comunista estava toda ali no Sindicato dos Metalúrgicos. Agora, veja o que fazíamos, olha a nossa visão de resistência: enchemos a frente do sindicato de sacos de areia, fizemos a maior barricada. Mas lá dentro não tinha um canivete. Com isso, despertamos a ira da reação, que dizia: ‘Os homens estão com tudo lá dentro’. Levaram até carro de combate. Aí, foi cada um por si, nunca mais encontrei as pessoas que estavam ali comigo. O deputado João Macena, por exemplo, que ajudamos a eleger, estava lá. Nos despedimos na porta do sindicato, ele disse: ‘Temos que sacudir a poeira e dar a volta por cima. Eu saio por aqui, você sai por lá’. Fui embora a pé, não sei para onde ele foi, ninguém nunca mais viu João Macena. Pegaram e mataram. DV – Então, vocês fizeram a barricada e a ordem foi se mandar porque não tinha mais jeito? Irineu Guimarães – Que nada, o que estávamos discutindo era como iríamos organizar a festa da vitória. Era o Movimento de Favelas reunido ali para discutir como faríamos a festa da vitória do Jango. Dali a pouco, veio um cara e disse: ‘Ih, rapaz, acabaram de tirar nossa emissora do ar, entrou o Lacerda falando do golpe’. Aí, começamos a correr. Fui para o Jacarezinho, organizamos nosso pessoal. Ficamos de plantão três noites e três dias esperando, porque o Brizola estava fazendo a IRINEU GUIMARÃES resistência no Sul, e pensamos: ‘Devem vir armas por parte do Brizola’. Mas cadê? Depois, desmobilizamos, fazer o quê? DV – Como o Jacarezinho recebeu esse impacto? Irineu Guimarães – A favela não participava muito disso. Lá, todo mundo sabia que eu era comunista porque eu fazia isso abertamente. A gente estava praticamente na legalidade. Minha casa era uma sapataria que tinha um cômodo na parte de cima. O pessoal da favela falava: ‘Aquele prediozinho ali deve ter uma rádio que fala diretamente com Moscou’. Eu era tachado de comunista mesmo. Depois, o padre Nelson, da paróquia local, começou a me perseguir. Mais tarde, ficamos amigos, mas fui preso várias vezes a pedido dele. Às vezes, estava tudo tranqüilo e de repente chegava alguém do Dops [Departamento de Ordem Política e Social] e me levava para perguntar alguma coisa, dormia lá. Já fui preso também por fazer várias pichações, em Botafogo, no centro da cidade. Fomos levando, mas para voltar à normalidade era difícil. DV – E o trabalho de mobilização das bases, continuou? Irineu Guimarães – Nunca deixamos de fazer o trabalho comunista no Jacarezinho, mesmo durante a ditadura. Só que o padre Nelson incomodava muito a gente. Por exemplo, ele cismou de mudar o nome do Jacarezinho para bairro Dom Bosco e nós fomos contra. Começamos a organizar o pessoal para o contra, tínhamos uma boa aceitação na comunidade. No Jacarezinho, tudo o que existe de melhoria, água, luz, canalização de rios, fomos nós que participamos de tudo, por isso somos bem-conceituados. Isso tudo aconteceu em 1964. Nossa primeira associação, o Centro Social do Jacarezinho, foi fechada. Eu era diretor junto com mais dois lacerdistas, meus amigos. O presidente também era lacerdista, mas cismou de dar uma de ditador, dedurava os outros, pintava o caneco, tinha que ser o que ele queria. Aí, os próprios lacerdistas brigaram com ele. Conclusão: a associação morreu. Ficamos sem associação por dois anos. DV – Foi difícil fundar outra? Irineu Guimarães – Sim, fizemos um grande movimento para fundar a outra associação, que saiu em 1966. Foi quando houve a briga, porque o padre entrou na disputa da associação com a gente e ganhou. A gente achou que o momento não era propício para nós. Aí, tiramos outra posição: ‘Não vamos ganhar mais a associação, vamos dirigir’. Conclusão: o padre cismou de mudar o nome do bairro e aí ganhamos aquele pessoal, o pessoal ama o Jacarezinho, é tradicional, ficou fácil ganhar. Também ganhamos o presidente da escola de samba, um amigo nosso que era policial aposentado, o Ney, que já morreu. Depois, na grande assembléia que tivemos, o presidente fui eu, eleito por aclamação. Botei minha banca dentro da igreja, aquilo virou uma praça de guerra, e chamaram os policiais de choque. Wilmar Pales, um direitão, era nosso amigo e tinha interesse político no Jacarezinho, era administrador regional. Ele ficou do nosso lado. Isso nos deu um cacife maior, saímos por cima. Mas a perseguição do padre aumentou. Estava sempre em cana por causa dele. Fomos levando até tomar a decisão política de não participar mais da associação. A última vez que assumimos, já foi com outro caráter. DV – Qual era a nova meta? Irineu Guimarães – Nosso trabalho era unificar a comissão de luz. Deu certo. Elegemos nossa chapa, depois elegemos a diretoria da associação, a diretoria da comissão de luz e unificamos. Era proibido entrar luz da Light em comunidade, em favela. Fazíamos um trabalho tipo Robin Hood, roubávamos luz da Light e repassávamos. Mesmo assim, um morador denunciou a gente e deu uma confusão. A gente negou. A luz só entrou porque já tínhamos essa reivindicação. Como a ditadura estava muito desgastada e estavam querendo eleger o pessoal da Arena, houve um acordo para eles entrarem e botarem luz direto na favela. OUTUBRO/2000 JUN 2007 67 E N T R E V I S TA DV – No período da ditadura, você tinha que ficar escondido? Irineu Guimarães – Não, andava por aí tudo. A classe média não acreditava na nossa capacidade, não ligava muito para a gente. Nunca fui hostilizado, eles nunca acreditaram que tivéssemos capacidade de incomodá-los. Acredito nisso porque outras pessoas foram muito perseguidas, não é? O único lugar onde havia eleição nessa época, no Brasil, era nas favelas. Levamos até o Tribunal Regional Eleitoral para o Jacarezinho. Foi uma troca de interesses, eles precisavam de votos, mas nós fazíamos eleição. Até usávamos isso no discurso: ‘Aqui é uma democracia. Mas lá fora não é’. DV – Continuou vinculado ao PCB? Irineu Guimarães – Sim, mas eu fiquei mesmo foi no Movimento Revolucionário Oito de Outubro (MR-8). Em 1981, fizemos o primeiro grande encontro dos metalúrgicos. Em 1979, foi meu segundo mandato no Jacaré, fui eleito de 77 a 79, depois de 79 a 82. No primeiro mandato, fizemos um trabalho muito grande, compramos caminhãocaçamba, betoneira. Chegamos a ter dez mil sócios na associação, tinha grupos jovens, políticos, tinha tudo. Cheguei a acumular Jacarezinho e Faferj. DV – Como foi seu envolvimento com a Faferj? Irineu Guimarães – Foi, na verdade, um movimento de retomada, e não fui eu, foi um grupo político, porque ninguém faz nada só. Tenho a honra de ter sido o cara que falava mais em nome dessas pessoas, mas, na verdade, não fiz nada. Vou dizer mais: a Faferj era uma antes de nós e se tornou outra depois. Antes, tinha um trabalho incipiente, não encarava as coisas. Botamos muita banca por esse Rio de Janeiro afora. DV – Qual o objetivo dessa retomada? Irineu Guimarães – Só fui para a associação de moradores e para a Faferj porque sou comunista, fui fazer trabalho político. Transformávamos trabalho comunitário em político. Retomamos a Faferj com a intenção de revolucionar os favelados. Com o golpe militar, a Faferj ficou acéfala. Ficou com três diretores muito ruins. Só em 77, treze anos após, começamos a retomada. Junto conosco estava a Pastoral de Favelas, a Pastoral Operária. A Igreja ajudou muito. Acho que o grande lance desse momento foi a articulação entre as igrejas, pastorais e as organizações de esquerda para poder enfrentar e retomar a Faferj. Mas tenho um arrependimento profundo porque fundamos mais de cem associações, e não fizemos base política em nenhuma. Esse foi o grande erro, tinha que ter base em todo lugar e fazer um trabalho político. DV – Como era a relação entre o MR-8 e a o trabalho de mobilização de favelas? Irineu Guimarães – Ligação total! No movimento de favelas, tínhamos a nossa política clandestina, mas a gente discutia tudo no MR-8. Só consegui fazer esse trabalho todo na favela graças ao MR-8 e também à Igreja, que ajudou em certo período. Sozinho, jamais faria isso, de jeito nenhum. Esse mérito que o pessoal atribui a mim é muito mais do coletivo, fui só o porta-voz. DV – Nessa época, vocês já lutavam contra as remoções? Irineu Guimarães – Sim, encaramos várias remoções, desapropriamos, ocupamos terras, entraram na justiça contra nós, mas, com ajuda da Igreja, fizemos um movimento tão grande que desapropriamos essas áreas por 99 anos. A gente lutava muito, fazia passeata, pegava esse pessoal todo e enfiava no Palácio da Justiça, com criança mijando lá dentro. Eles ficavam doidos com a gente. Como tínhamos apoio da Igreja, eles não podiam baixar o pau na gente, e isso em plena ditadura. 68 DEMOCRACIA VIVA Nº 35 9 IRINEU GUIMARÃES Quando estava na Faferj e ocupávamos muita terra, um problema eram os aproveitadores. A gente ocupava as terras, eles iam junto com a gente, daqui a pouco estavam vendendo o terreno e a gente era obrigado a não criar muito problema para não enfraquecer o movimento. A gente tinha que engolir algumas coisas. DV – Dessas lutas, alguma marcou mais? Irineu Guimarães – Muitas marcaram, especialmente a primeira, da Charitas, em Niterói. Fomos para lá junto com a Pastoral. Mas a situação estava braba. O juiz tinha mandado remover e fomos tentar barrar a remoção. A advogada que estava nos acompanhando falava para o oficial de justiça: ‘O doutor juiz mandou que o senhor ouvisse minhas ponderações’. E ele: ‘Pode ponderar doutora’, e continuava derrubando tudo. Dava vontade de chorar. Foi a primeira que a gente encarou e lá nós perdemos. Já na Pedra Lisa, na Central, resistimos e ganhamos. Foi uma resistência grande, estavam lá donos de empresas de ônibus, foi uma briga danada, mas a favela permaneceu. Outra marcante foi a do Bosque da Barra, foi uma pedreira. Duzentos PMs e conseguimos barrar. Com a mobilização da comunidade, apoio da Pastoral, apoio de mais gente. DV – Esse movimento aconteceu simultaneamente em várias favelas, não é? Irineu Guimarães – Sim, fizemos três grandes encontros. Aquele dos metalúrgicos, com 13 mil pessoas, e fizemos outros com 5 mil pessoas em outros lugares. Tínhamos uma mobilização muito grande e crédito nas favelas. A Faferj adquiriu isso, era uma coisa viva, tinha muita reunião, era uma disputa na eleição. DV – Nesse momento, também surge a Federação das Associações de Moradores do Estado do Rio de Janeiro (Famerj). Vocês tinham uma relação política? Irineu Guimarães – Eles não deram muita importância para nós. Achavam que já éramos da Faferj: ‘O que esses favelados vêm fazer aqui?’. Não deram aquele respeito de considerar que a gente era uma federação e eles seriam outra, mas fomos nós que orientamos os primeiros passos da Famerj, de certa forma, demos a luz para a fundação. Eu também nunca me interessei em participar da Famerj porque me orgulhava mais de ser favelado. Nem se me chamassem, não iria. Até hoje, me considero proletário da favela. Acho a favela brilhante, tem tudo ali. Desde o traficante até um grande profissional, o professor. Não tenho a menor dúvida, o marxismo também foi fundado pela classe média. O Lênin era de classe média, o Marx, muito mais. Para escrever O Capital, o que fez? Teve que ir para o seio da classe operária para entender esta contradição: a transformação da sociedade só interessa ao proletário, não interessa à classe média. A classe média quer ascendência, é burguesa e quer ser mais ainda. Já o proletário só tem a mão-de-obra, só tem a força de trabalho, então, é revolucionário por excelência. DV – Como vocês conciliavam o trabalho político e a sobrevivência? Orientamos os primeiros passos da Famerj, demos a luz para a fundação. Nunca me interessei em participar porque me orgulhava mais de ser favelado. Até hoje, me considero proletário da favela. Acho a favela brilhante Irineu Guimarães – Passei a trabalhar por conta própria porque depois do golpe militar ficou difícil. E também já estava com uma idade mais avançada, já não estava muito a fim. Tinha uma pequena firma, tive vários negócios. Fui dono de aviário, de bar, tive barraca na rua e depois montei um fabrico de calçados com um companheiro que é sapateiro e comunista. Eu tinha a casa e ele tinha a sabedoria. A gente trabalhava artesanalmente. Só vendíamos em Copacabana. Ganhamos dinheiro pra caramba porque a gente via a moda nas revistas, fazia e vendia tudo. Aí, ganhei dinheiro e prejudiquei o pessoal do Jacaré que fabricava chinelo. Tinha uma porção de fábricas de chinelão lá. Quando montamos o fabrico de sapatos, pagávamos ao sapateiro todos os direitos que o empregado tinha que ter, aí o pessoal ficou com raiva porque todo mundo queria ter os mesmos direitos. Foi mais ou menos como aconteceu em Minas. OUTUBRO/2000 JUN 2007 69 E N T R E V I S TA DV – A década de 1980 foi um período bastante conturbado para os partidos políticos. O que isso significou em sua trajetória comunista? Irineu Guimarães – Tive muita desilusão com partidos políticos. Fui de alguns partidos: do PMDB, do PCB... Isso atrapalha qualquer cidadão porque a gente começa a fazer o jogo político do partido. Se estou naquele partido e você chega lá vendendo seu peixe, não vou criticar porque seria falta de ética dentro do partido, assim vamos fazendo concessões adoidado. Foi o que sempre fiz muito: concessão eleitoral, não política. Por exemplo, hoje, na TV, aparece muita gente falando da grandeza do seu partido e elogiando o governo Lula. Na verdade, trata-se de um jogo de interesses. Eles só estão com Lula por interesse e não porque admiram a política que ele faz, porque ele é o presidente. São as tais concessões políticas. Todo mundo fez quando estávamos na Faferj. Tinhamos uma política eleitoral, eu era do PMDB, ainda sou filiado, e fazia muita concessão. Por exemplo, achava que Garotinho era uma boa pessoa e hoje reconheço que foi um erro. Garotinho é um aprendiz do Brizola, um cara que quer mandar sozinho. E mesmo que ele tivesse boa vontade, no sistema todos os partidos políticos são iguais. Ninguém consegue me apontar um partido que não tenha sido feito debaixo da ditadura militar. Todos foram. Tem partido de ultradireita com pontos no estatuto mais avançados do que nos partidos de esquerda, só que não aplica, não pratica. Quando o ne- Brizola foi um governador igual aos outros. Nunca foi um democrata. No governo dele, quem mandava era ele e mais alguns amigos a quem ele autorizava. Ele foi altamente autoritário, por isso, nunca fui brizolista 70 DEMOCRACIA VIVA Nº 35 9 oliberalismo começou também era assim, os neoliberais não diziam o que fariam de ruim, só falavam da parte boa. DV – Destacaria alguma mudança substantiva no movimento de favelas durante os dois mandatos de Brizola como governador do Rio de Janeiro? Irineu Guimarães – Não, Brizola foi um governador igual aos outros. Nunca foi um democrata. No governo dele, quem mandava era ele e mais alguns amigos a quem ele autorizava. Ele foi altamente autoritário, por isso nunca fui brizolista. Cheguei a conversar com Brizola umas duas horas quando ele voltou do exílio. Fui conversar com ele, em nome do MR-8, pedindo para ele não criar um partido, e sim entrar em um partido já existente, mas aí todo mundo já sabe o resultado. Em outro momento, Brizola me chamou para inaugurar um Ciep e eu recusei. Ele ficou danado comigo, nunca me perdoou. Brizola também lançou a campanha de um lote para cada família da favela. Aquilo só deu confusão. Na verdade, o político mais amigo dos favelados, por incrível que pareça, foi o Marcelo Allencar. Ele dava prestígio aos dirigentes comunitários, ajudava mesmo. Quem construiu a sede da Faferj foi ele, a gente reivindicou e ele atendeu. Tínhamos ótima relação com Marcelo Allencar porque tínhamos ideologia, e olha que nem votamos nele. DV – Chegou a se candidatar para algum cargo político? Irineu Guimarães– Sim, em algumas ocasiões, mas sempre fui indicado pelo MR-8. Muitas vezes, nem era para eu ser eleito, era para fazer denúncia. DV – Ainda está ligado ao movimento comunista? Irineu Guimarães – Não, mas ainda me considero comunista. Só acredito que vai haver justiça no dia em que o mundo for comunista. Na minha opinião, não tem outra forma. Enquanto houver a exploração do homem pelo próprio homem não pode haver justiça. Hoje, tenho muitas restrições aos partidos comunistas do mundo. Um partido não pode ser comandado por uma pessoa, tem que ter um comitê central e todo mundo tem que falar em nome do comitê. Sou admirador do Fidel, mas não concordo com a concentração de poder na mão dele. Amanhã, ele morre e fica igual ao Mao Tsé Tung, que morreu sem deixar um sucessor. Um partido IRINEU GUIMARÃES tem que ser construído na base da crítica e da autocrítica, seja para quem for, mas isso não ocorre muito. O cara acumula tanto poder que todo mundo fica com medo de falar com ele. Isso é um erro, partido não deve ter dono. Fui do comitê central do MR-8 e vi as mazelas que aconteciam, os erros que a gente cometeu. O movimento acabou por isso. Foi havendo uma série de divergências, todo mundo foi saindo. Só pode haver justiça se for realmente coletiva. É do ser humano ser um pouco ditador, a gente é vaidoso por excelência. E, às vezes, fica danado da vida com a crítica, sem compreender que a crítica é melhor que um elogio. DV – O estigma de morar em favela sempre foi forte, a ponto de começaram a usar a palavra comunidade em vez de favela. Mas você tem muito orgulho de ser favelado. Pode falar mais sobre essa identidade? Irineu Guimarães – Sei que ser favelado não tira o prestígio de ninguém, gosto de dizer que sou favelado em todo lugar que vou, nunca neguei. E quando alguém critica, converso, discuto: ‘Os desembargadores não são favelados e meteram a mão no dinheiro do povo, só que ninguém os chama de marginais’. Não sei se vocês já repararam nisso, nenhuma pessoa da classe média que tenha dado um desfalque é chamada de marginal, de fora da lei. O povo não está gostando desse negócio. Como uma pessoa pode se aposentar ganhando R$ 25 mil por mês? O povo está vendo isso. Ora, a pessoa roubou e ainda vai se aposentar assim? Enquanto isso, a maioria não tem dinheiro, não consegue ganhar nem o salário mínimo porque não tem trabalho. O pessoal que mora em favela não tem ideologia, são trabalhadores que vieram, na maioria, do interior de Minas ou do Nordeste, onde não tinham participação política e não interagiam com a classe média ou com as autoridades de um modo geral. Todo mundo malha favelado, diz que favelado é ladrão, desonesto. Se tiver dez pessoas e um favelado em um local e sumir algo, vão culpar o favelado. Se, num grupo, a pessoa faz algo mal-educado, dizem: ‘Esse cara parece favelado’. Por isso, as pessoas têm vergonha de dizer que moram em favela, quando vão procurar emprego, por exemplo. Eu mesmo mudei da favela por causa da minha mulher, que também é da favela do Jacarezinho e não queria mais passar por isso. DV – E onde mora agora? Irineu Guimarães – Moro no bairro do Jacaré, não moro mais na favela. Morei na favela por mais de 50 anos, mudei para o bairro há uns quatro anos. Em julho, no mesmo dia do aniversário da Faferj, completo 50 anos de casamento, temos quatro filhos, nove netos e cinco bisnetos, o mais velho já está com 8 anos. Mas brigo com minha mulher por causa disso, eu gosto é de lá, onde tenho amigos, converso com todo mundo, apesar de já ter saído do movimento de favelas há algum tempo. Tem sempre alguém que me conhece por causa do trabalho que realizamos lá. DV – O que pensa sobre religião? Irineu Guimarães – Não sou religioso e não sou contra as religiões. Minha mulher é crente e converso com ela: ‘Aquilo lá é de vocês’. Tenho ótima relação com a Igreja Católica, fui criado na Igreja Católica. É aquele negócio: todo mundo que não é muito ligado em religião diz que é católico. Todo mundo deve ser o que quiser, mas, se pudesse, lutaria para que as pessoas fossem menos religiosas e mais políticas. Tudo é política, mas a religião exclui a política. OUTUBRO/2000 JUN 2007 71 E N T R E V I S TA DV – E sobre o aborto? Irineu Guimarães – Se fosse liberado, eu não estaria aqui. Sou 11º filho! Sou a favor da vida. O aborto é um negócio ruim para a mulher, faz mal à saúde da mulher. Mas não sou contra preservativos, camisinha. Tem que haver uma solução porque ou nos organizamos para crescer muito ou para crescer pouco. Do jeito que está, fica difícil segurar. O Brasil que está aí tem uma concentração de renda fora do comum. É um dos mais ricos do mundo e tem também os pobres mais pobres do mundo. Não sei porque o ser humano tem esta idéia: se tem dinheiro, quer ganhar mais. Se já tem tudo, ainda briga, mata. O capitalismo é assim, não se pode ter pena de ninguém. O movimento político libertador tem que ser organizado. Sem organização, não adianta. Sem base, não há consistência, não há objetividade DV – O que a associação de moradores do Jacarezinho guarda do tempo de mobilização? Irineu Guimarães – Nada, o presidente da associação hoje não faz um trabalho político. É uma pessoa com quem me dou, mas hoje nas favelas não existe mais aquele tipo de presidente que discutia uma série de medidas em benefício das comunidades. Quase não existe mais isso. DV – Então, qual é o papel da associação de moradores na favela hoje? Irineu Guimarães – Viver da associação de moradores, ser bem-enturmado, benquisto e levar a vida. É difícil encontrar hoje presidente de associação organizando o pessoal para fazer passeata. Esse tempo acabou. Naquele tempo, fazíamos mobilização para reivindicar água, luz e imaginávamos a construção de uma outra sociedade. Hoje, o governo pode tomar qualquer medida que não há protesto. Nem os depu- 72 DEMOCRACIA VIVA Nº 35 9 tados protestam. Esse presidente operário foi a melhor jogada para o imperialismo, porque nunca se fez no Brasil o que se faz agora. Juntaram-se todas as forças dentro do governo, não há contradição no país. Tem que haver um movimento para moralizar os hospitais, para o povo ter direito pelo menos a se tratar, ir ao médico. Não sei como se pode chamar a pessoa de cidadão se não tem emprego. Que cidadão é esse? Não tem emprego, não tem subsistência. E ninguém protesta, ninguém faz nada. DV – Tem alguma chance de o movimento de favelas inflamar novamente? Irineu Guimarães – Olhando assim, praticamente, não vejo saída, mas há fatos que acontecem alheios a nossa vontade. Tem uns políticos que nem são revolucionários, têm uma idéia, levantam um negócio e dali a pouco todo mundo começa a falar sobre aquilo, o próprio povo também. Só que acontece sempre do lado errado. O movimento político libertador tem que ser organizado. Sem organização, não adianta. Vamos subir e depois voltar para o mesmo lugar. Sem base, não há consistência, não há objetividade. Mas acredito que temos que recomeçar com pouco, um pouquinho no Jacarezinho, um pouquinho no Alemão, um pouquinho em outra favela. Temos que recomeçar por aí. DV – Tem acompanhado as polêmicas sobre os jogos do Pan? Acha que vai sobrar alguma coisa para as comunidades? Irineu Guimarães – Acho que não sobra nada. Fico imensamente triste de a gente aceitar isso assim, de mão beijada. Os deputados foram a favor, o prefeito foi a favor, o Lula também. Lá no Jacarezinho, o prefeito não manda nem os garis limparem os ralos para evitar enchentes, mas está gastando para o Pan. O estádio que foi construído para isso é moderníssimo, mas vamos ao hospital e não tem nem uma aspirina para o doente tomar. E ele quer remover todas as comunidades, para limpar aquilo ali, porque o pobre faz mal a ele. DV – E a falta de segurança pública no Rio de Janeiro, também tem a ver com mobilização? Irineu Guimarães – Sobre isso, nunca vi tanto cinismo como no discurso do Sérgio Cabral. Ele disse que acabaria com o IRINEU GUIMARÃES caveirão, que as favelas não iriam mais sofrer com isso, que a polícia passaria a respeitar os favelados. O maior desrespeito foi logo no começo do mandato. Ele foi em tudo quanto é lugar buscar reforço para acabar com a violência no Rio de Janeiro: Exército, Marinha. O governo dele não tomou nenhuma medida para beneficiar o povo nem na saúde, nem no social, nem na questão da infra-estrutura para consertar uma favela, nem nada. Quando ele fala do projeto de pegar dinheiro do PAC [Programa de Aceleração do Crescimento] para urbanizar a Rocinha, o Complexo do Alemão e Manguinhos, é balela também. Vila Cruzeiro é uma comunidade urbanizada. Não sei se vocês conhecem, não tem nenhuma rua de barro, em quase todas as ruas passa carro, na principal passa até ônibus. Quem disse que abrir ruas na Rocinha e no Alemão vai ajudar a acabar com a violência? DV – Qual é a grande diferença entre a favela de ontem e a de hoje? Irineu Guimarães – A diferença é que o movimento político social na favela hoje não existe. Os presidentes de associação não são preparados para isso. No nosso tempo, também influenciávamos na escolha do presidente. A gente observava nas assembléias o camarada mais progressista e influenciava, botava na cabeça dele que ele tinha que ser presidente da associação. Ajudamos a fazer muito presidente assim. Hoje, nós não participamos mais disso, até porque os presidentes não têm política para fazer isso. Quer força política maior do que a mulher? Mas elas quase não participam. Hoje, o movimento nas associações teria que ser diferente: um movimento para empregos, outro para construir creches para as mulheres poderem trabalhar. Tem muita tarefa para se fazer ainda. plinava as favelas. Fomos contra isso e vencemos. Fizemos um movimento: ‘quando vierem derrubar, a gente não deixa. Isso aqui é seu, é o lugar para criar sua família e seus filhos’. Fomos botando isso na cabeça do pessoal. Antes, ninguém podia ter muro, era proibido. Aos poucos, mudamos esse negócio todo. Quando fui eleito presidente da associação, em 77, uma pessoa da fundação me chamou para dizer quais normas eu tinha que obedecer. Mas também nessas normas diziam que quem mandava era o presidente da associação. Uma das grandes brigas que criei com a fundação foi essa. Fazíamos de outra maneira, não aceitávamos a fundação. Participaram desta entrevista: Convidados: Milton Gomes Pereira (Diquinho) e Gilson Cardoso. Do Ibase: AnaCris Bittencourt, Cândido Grzybowski, Dulce Pandolfi, Itamar Silva e Jamile Chequer. Fotos: Marcus Vini. Sonorização: Douglas Vieira e Gilberto Nascimento. DV – Você está envolvido em algum movimento agora? Irineu Guimarães – Não, às vezes me chamam para algum aniversário de uma associação, mas faço questão de dizer que não estou participando mais. Em reunião gosto de ir, quero fazer reunião nas favelas, mas é reunião política, não é comunitária. Não adianta começar trabalho com quem não tem ideologia. DV – Era mais fácil morar na favela no passado? Irineu Guimarães – Adoro morar na favela, lá a luz é baratinha, telefone, não precisa pedir licença para fazer nada, constrói um, dois, três andares sem falar com ninguém. Antes, era proibido fazer isso, fomos nós que levamos essa mudança para a favela. Quando entrei na favela era proibido fazer casa de alvenaria. Tinha um departamento na Fundação Leão XIII encarregado de fazer as remoções e tomar conta das favelas, por meio do Decreto 3.330, que disci- OUTUBRO/2000 JUN 2007 73
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