“O Estado não pode tripudiar o cidadão por estar numa situação de

Transcrição

“O Estado não pode tripudiar o cidadão por estar numa situação de
entrevista
Marco Aurélio Mello
“O Estado não pode tripudiar o cidadão
por estar numa situação de força”
Muito lembrado por ter opiniões contundentes e, na maior parte das vezes, divergentes de seus colegas de STF, o ministro Marco
Aurélio Mello, em entrevista ao Jornal da
Ordem, afirma que seria um avanço cultural
no Brasil o respeito do Estado ao direito dos
cidadãos. Para ele, essa seria uma forma de
evitar o congestionamento dos tribunais, que
vivem sendo lembrados pela demora no trâmite dos processos. A avaliação do ministro
tem como causa o fato de aproximadamente
80% das ações que tramitam hoje nos tribunais envolverem, de alguma forma, o Estado.
“Há algo errado. O Estado não pode tripudiar o cidadão por estar numa situação de
força”, afirma o ministro. “Ou seja, o Estado deixa muito a desejar.”
O ministro declarou, também, que a medida provisória encaminhada pelo governo
federal ao Congresso e aprovada pela Câmara dos Deputados, que garante o sigilo de
orçamentos de obras públicas para os dois
grandes eventos esportivos dos próximos
cinco anos – a Copa do Mundo de 2014 e as
Olimpíadas do Rio de Janeiro de 2016 – fere
o artigo 37 da Constituição Federal. Isso porque, explica o ministro, um dos princípios
básicos da administração pública, inscrito
no dispositivo constitucional citado, é a publicidade dos atos estatais. “Isso quer dizer
que não se pode ter no âmbito público, nada
sob sigilo. É uma questão de transparência”,
diz o ministro. Segundo ele, a mesma norma constitucional deve valer para o acesso a
informações públicas, sendo inconcebível o
sigilo eterno, nos termos do que vem sendo
discutido no Congresso Nacional.
As ideias de Marco Aurélio Mello não
são contundentes apenas no que diz respeito à atuação do estado brasileiro. O ministro considera que a implantação do processo
eletrônico pode resultar em prejuízos para
os cidadãos, dada a dificuldade que os ju-
ízes podem ter de analisar autos na tela do
computador. “O processo eletrônico tende
a generalizar o que é ruim, em termos de
jurisdição.” Um segundo aspecto a ser considerado, afirma Marco Aurélio, trata-se
8 | j u n h o | 2 0 1 1 | j o r n a l d A ORD E M
da dificuldade de acesso a meios digitais no
interior do Brasil, o que pode resultar em dificuldades de acesso à Justiça e à defesa em
ações judiciais.
A respeito do contexto atual da Justiça
brasileira e seu futuro, a visão do ministro é
crítica. “Assusta-me algo que está no cenário e que também sou contrário. Aquele que
ocupa o cargo de magistrado, segundo sua
formação técnica, não pode ser substituído
por assessores”, afirma ele. “A arte de julgar é dele e jamais pode ser transferida.”
O ministro também não acredita que se
terá mudanças substanciais com a aprovação de um novo Código de Processo Civil.
Para ele, seria melhor fazer algumas poucas
mudanças naquilo que já existe de forma
pontual, em vez de se ficar a reinventar o
processo civil no país. “Na minha avaliação, não teremos melhores dias com a edição de novos projetos e novas leis.”
As palavras do ministro indicam a experiência de quem ocupa a cadeira da mais
alta Corte Nacional há mais de 20 anos,
tempo que não o impediu de analisar a realidade brasileira de forma crítica e independente.
O senhor fez parte da banca de avaliadores do Prêmio Francisco Cunha Pereira Filho, lançado pelo Instituto dos Advogados
do Paraná, no ano passado. Que papel o senhor acha que a imprensa deve ter nos dias
de hoje?
Os meios de comunicação têm um papel
muito importante – de informar. Isso colabora para o aperfeiçoamento da cidadania.
Sempre fui defensor da imprensa e do papel
da imprensa. Claro que quando ocorrem
abusos os prejudicados podem recorrer aos
meios legais para exigirem reparação. O que
não se pode é cercear a imprensa. Não se
pode criar embaraços para a publicação de
informações.
A Lei 11.419/2006 estabeleceu as diretrizes para a implantação do processo eletrônico. Desde então gradativamente os tribunais de todo o país estão implantando seus
sistemas de processo digital. Como o senhor
encara a diversidade de sistemas de processo
eletrônico?
Penso que o afã de modernizar o trâmite
processual pode implicar em prejuízo grave
para os jurisdicionados. Ante a sobrecarga
de trabalho, muitas vezes, os magistrados
precisam fazer um exame das peças que não
é aprofundado. E na tela, será que aquele
que personifica o Estado como juiz folheará
no processo as peças já ultrapassadas? Penso
que não. O processo eletrônico tende a generalizar, o que é ruim, em termos de jurisdição.
Penso também que há implicações diversas no uso do processo eletrônico, inclusive
para quem não tem acesso aos recursos digitais, como os advogados do interior que não
têm acesso aos meios (digitais) mais modernos.
O senhor analisa os autos na tela do computador?
Não. Quando recebo processo eletrônico
mando fazer cópias e formar autos em papel.
Não me vejo lendo, na tela, um romance.
Muitas vezes imprimo e-mails para a leitura.
A secura dos olhos, causada pela tela do computador por piscarmos menos, não permite a
visão do todo. Uma coisa é ter o processo e
folhear, outra é buscar no computador. Alguns chegam a proclamar o fim do processo
em papel. Mas não é bem assim. Temos de
experimentar novidades sem generalizações.
Qual sua avaliação em relação à Proposta de Emenda Constitucional dos Recursos,
que vem sendo encampada pelo presidente
dos STF, Cezar Peluso?
Eu entendo que conflita com princípios
básicos da Constituição, principalmente no
que se refere a processos crime. E há de ser
sopesada pelos nossos representantes no
Congresso Nacional. Torno a afirmar que no
meio judicial não se pode buscar a celeridade
em detrimento do conteúdo. Essa PEC não
foi pensada pelos ministros do STF. Saiu da
cachola do presidente do Supremo.
Já que estamos falando em celeridade da
Justiça, o que senhor acredita ser necessário
para melhorar a prestação jurisdicional?
Seria um avanço cultural no Brasil o respeito do Estado ao direito alheio. Não se
apostar na morosidade. O Estado tem um
papel importante no número de feitos que
chegam ao Poder Judiciário. Tivemos acesso
a um levantamento que demonstra que cerca
j o r n a l d A ORD E M | j u n h o | 2 0 1 1 | 9
entrevista
de 80% das ações existentes hoje envolvem
de alguma forma o Estado, suas autarquias
e fundações. Há algo errado. O Estado não
pode tripudiar o cidadão por estar numa situação de força. Caso da reposição do poder
aquisitivo dos servidores, para que a base da
remuneração permaneça intacta é um exemplo. Nesse caso (que o ministro proferiu voto
neste mês, mas teve julgamento suspenso,
após o pedido de vista da ministra Cármen
Lúcia) imprime-se uma diminuição dos vencimentos, mediante perverso ato de omissão,
que é de não encaminhar projeto de reposição salarial de servidores. Ou seja, o Estado
deixa muito a desejar.
Mas uma ampliação dos quadros do judiciário não contribuiria para a celeridade?
Claro que em determinadas situações se
precisa de um aumento de quadros. Tarda
o aumento do Superior Tribunal de Justiça,
previsto que foi para contar com um maior
número de integrantes.
Está em trâmite no Congresso Nacional o
projeto de um novo Código de Processo Civil. Qual a sua avaliação dos esforços que estão realizados para estabelecer o novo CPC?
Na minha avaliação, não teremos melhores dias com a edição de novos projetos e novas leis. O que precisamos é de homens que
observem a legislação já existente. Sou contrário a ficar dando esperanças vãs. O que
precisamos é aprimorar aquilo que já temos,
de forma setorizada. Alguns dispositivos poderiam deixar de existir.
O que o senhor considera que poderia
deixar de existir?
O enxugamento de recursos, por exemplo, sem que houvesse qualquer forma de
cerceamento do direito de defesa. Os embargos infringentes já foram minimizados. Entretanto, porque é necessário uma segunda
decisão no mesmo tribunal somente porque
não foi unânime?
Os advogados vivem de seus honorários.
1 0 | j u n h o | 2 0 1 1 | j o r n a l d A ORD E M
Contudo, há uma queixa muito grande no
que se refere ao aviltamento dos honorários.
Como o senhor avalia essa situação?
Temos já uma regência da matéria. O
STF já endossou a ótica de que os honorários
advocatícios pertencem e encerram prestação alimentícia. Entendemos que o juiz deve
fixar o valor percebendo o trabalho desenvolvido. Sua atuação deve ser equidistante, simplesmente respeitando o regime das partes.
Há alguns dias, a Câmara dos Deputados
aprovou medida provisória que garante o sigilo de orçamentos sobre gastos de obras públicas para a Copa do Mundo de 2014 e para
as Olimpíadas do Rio de Janeiro, de 2016.
Qual a sua avaliação a respeito dessa MP?
Não se observa o artigo 37 da Constituição Federal, que estabelece como um
dos princípios básicos a publicidade dos
atos da administração pública. Isso quer
dizer que não se pode ter no âmbito público, nada sob sigilo. É uma questão de
transparência.
O senhor acredita que esse assunto pode
vir a ser questionado pela oposição ao governo no STF?
Sem dúvida alguma as portas do Poder
Judiciário estarão sempre abertas para quem
achar que direitos estão sendo violados.
Há tentativas também de se manter em
sigilo documentos públicos que forem considerados “ultrassecretos”, no projeto de Lei
de Acesso à Informação, que ainda está em
trâmite, no Senado...
Para esse caso vale o mesmo. É inconcebível o sigilo. A história do Brasil deve ser
conhecida.
Na sua avaliação, ministro, qual o futuro
da Justiça?
Assusta-me algo que está no cenário e
que também sou contrário. É o caso do ofício
judicante, que não pode ser objeto de delegação. Aquele que ocupa o cargo de magistrado, segundo sua formação técnica, não pode
ser substituído por assessores. O juiz tem de
pegar no pesado. A arte de julgar é dele e jamais pode ser transferida.