travestis, travessões e colibrí: o neobarroco de severo

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travestis, travessões e colibrí: o neobarroco de severo
TRAVESTIS, TRAVESSÕES E COLIBRÍ: O NEOBARROCO
DE SEVERO SARDUY
Luciane Alves*
Três travestis
Três colibris de raça
Deixam o país
E enchem París de graça
(Caetano Veloso – Três travestis)
RESUMEN: El análisis busca presentar algunos aspectos relevantes y diferenciales en la
producción neobarroca de Severo Sarduy que ocasionan la problematización de cuestiones
identitarias, de género y alteridad, a través de personajes travestis y de la representación de
universos homosexuales. El travesti en la obra de Sarduy es una metáfora de la escrita y de
los cambios sociales en el mundo de desequilibrio del neobarroco, además de presentarse
como cuestionamiento a las diferentes representaciones de género: heterogéneas y
fragmentadas. El travesti es un personaje de importancia para que se repiense la dicotomía
masculino/femenino, pues él representa el fin de la oposición de género, mientras los
transexuales acentuarían esta posición. Al hacernos el análisis de la obra Colibrí, otros
aspectos sociales son discutidos, como el poder y la violencia que silencian y marginalizan la
diferencia. En los juegos sexuales realizados en la Casona, el vencedor de la pelea tiene el
dominio y el vencido es subyugado, postura comandada por la Regente, una travesti exigente
e impiedosa. La búsqueda del poder aparece incluso en la escritura, donde diferentes guiones
anuncian la inserción de otras voces entre la narración: desde las que ayudan a contar la
historia hasta la representante del padre de Sarduy, quien pretende mantener el orden e
impedir que el narrador asuma una identidad homosexual.
PALAVRAS CLAVE: Severo Sarduy – Travestis – Homosexualidad – Neobarroco – Colibrí
RESUMO: A análise procura apresentar alguns aspectos relevantes e diferenciais na
produção neobarroca de Severo Sarduy que levam a problematização de questões
identitárias, de gênero e alteridade, através das personagens travestis e da representação de
universos homossexuais. O travesti na obra de Sarduy é uma metáfora da escrita e das
mudanças sociais no mundo de desequilíbrio do neobarroco, além de se apresentar como
questionamento às diferentes representações de gênero: heterogêneas e fragmentadas. O
travesti é uma figura de importância para se repensar a dicotomia masculino/feminino, pois
ele representa o fim da oposição de gênero, enquanto os transexuais acentuariam tal
oposição. Ao analisarmos a obra Colibri, outros aspectos sociais são discutidos, como o
poder e a violência que silenciam e marginalizam a diferença. Nos jogos sexuais realizados
no casarão, o vencedor da luta tem o domínio e o vencido é subjugado, postura comandada
da Regente, uma travesti exigente e impiedosa. A busca de poder aparece até mesmo na
escrita, onde diversos “travessões” anunciam a inserção de outras vozes entre a narração:
desde as que ajudam a contar a história até a representante do pai de Sarduy, quem pretende
manter a ordem e impedir que o narrador assuma uma identidade homossexual.
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Mestranda UFRGS – Literatura Comparada PALAVRAS-CHAVE: Severo Sarduy – Travestis – Homossexualidade – Neobarroco –
Colibri
Nos textos dos autores neobarrocos, em convergência com os debates sobre a pósmodernidade, se revela o mal-estar da cultura moderna, suas crises e sua desordem. Enfatizase o desequilíbrio, a tensão e a fragmentação da sociedade moderna e sua diversidade, assim
como a crítica aos valores e concepções tradicionais na procura de uma forma de
desmascaramento da sociedade e da cultura. No caso do cubano Severo Sarduy, a linguagem
neobarroca expressa, entre outras questões, as contradições e a diversidade do indivíduo, que,
embora marcadas por um contexto cultural cubano e latino-americano, problematizam o
sujeito pós-moderno da cultura ocidental de forma mais ampla, apresentando através de seus
personagens a complexidade dos modelos identitários e das figurações de gênero e
sexualidade. Em um mundo de rupturas e mudanças e, principalmente, de inversões, como o
neobarroco pretende mostrar, as questões apontadas passam pelo mesmo processo de crise e
ressignificação que os demais elementos sociais.
Para Sarduy, a melhor expressão do neobarroco é encontrada na figura dos travestis.
Com seus artifícios, simulações, excessos e mascaramento, o travesti é aproximado à
linguagem literária, pois os planos de intersexualidade seriam análogos aos de
intertextualidade que constituem o objeto literário. O travesti na obra de Sarduy é uma
metáfora da escrita e das mudanças sociais no mundo de desequilíbrio do neobarroco, além de
se apresentar como questionamento às diferentes representações de gênero: heterogêneas e
fragmentadas. O travesti é uma figura de importância para se repensar a dicotomia
masculino/feminino, pois ele representa o fim da oposição de gênero, enquanto os transexuais
acentuariam tal oposição.
Na obra Colibrí, de 1983, Sarduy descreve um ambiente no qual impera a busca pelo
poder e a dominação do outro que, vencido, é humilhado de todas as formas possíveis. Nos
jogos sexuais realizados no casarão, o vencedor da luta tem o domínio e o vencido é
subjugado, agindo sob o comando da Regente, uma travesti exigente e impiedosa. A busca de
poder aparece até mesmo na escrita, onde diversos “travessões” anunciam a inserção de outras
vozes entre a narração: desde as que ajudam a contar a história até a representante do pai de
Sarduy, quem pretende manter a ordem e impedir que o narrador assuma uma identidade
homossexual.
Ao problematizar o gênero e mostrar personagens marginalizados socialmente, Sarduy
traz uma renovação temática ao neobarroco, antes voltado para questões nacionalistas e
americanistas, como é possível ver nas obras de Alejo Carpentier. Mostra-se, assim, que o
“outro” não se apresenta somente na relação Europa- América, mas é criado dentro de uma
mesma sociedade, através do silenciamento e da marginalização da diferença, que vem a
emergir em um jogo de ironia e paródia na obra de Severo Sarduy.
SEVERO
Ainda pouco conhecido no Brasil Severo Sarduy foi autor de um número bastante
considerável de obras divididas entre romances, poemas, ensaios, teatro e pintura. Nascido em
1937, em Camaguey, província localizada no centro de Cuba, já por volta dos vinte anos
colaborava com textos para periódicos locais. Na época do triunfo da revolução cubana,
Sarduy trabalhava no jornal “Revolución” onde pode publicar textos de sua autoria no
suplemento literário.
Em 1959, recebe uma bolsa de estudos para ir a Europa formar-se Crítico de Arte. No
entanto, em 1960, devido a um incidente político entre Cuba e Espanha, local onde cursava
seus estudos, precisa sair do país. É dessa forma que Sarduy chega a Paris, sua residência até
o fim da vida. Em setembro do mesmo ano o governo de Cuba pede aos bolsistas que
regressem ao país de origem, Sarduy pede a prorrogação da bolsa para poder concluir o curso,
mas nunca obtêm resposta. Em 1963 é publicado seu primeiro romance, Gestos, com sucesso
no exterior, traduzido para o francês, italiano, danes, polonês e alemão pouco tempo depois da
publicação. Mas ao que parece não foi bem aceito pelo governo de Fidel Castro, já que o texto
não enaltece a revolução, colocada em segundo plano na trama que privilegia a vida cotidiana
e o trabalho doméstico em detrimento dos feitos revolucionários. O texto de Sarduy, autor
assumidamente homossexual, situação inaceitável no contexto social da época, é silenciado
pela imprensa local e o escritor não é mencionado nas antologias dedicadas a autores cubanos.
No mesmo ano tem problemas com a renovação do visto e seu passaporte cubano nunca é
devolvido. Em 1968, finalmente regulariza sua situação obtendo a nacionalidade francesa.
Desde sua partida em 1959 Sarduy jamais pode regressar a Cuba. Em raríssimas
oportunidades em que seus pais e sua irmã puderam sair do país ele voltou a ver sua família,
não podendo sequer assistir ao enterro do pai, falecido em 1991. Sarduy tornou-se assim
cidadão francês e um viajante incansável, seu interesse por outras culturas o levou a conhecer
grande parte da Europa e da Ásia, além de alguns países da América e da África. As mesclas
culturais estão presentes em sua obra e recentemente uma exposição dedicada aos aspectos do
oriente em sua produção, foi apresentada em sedes do Instituto Cervantes de diferentes
cidades, entre elas Madri, Tetuán e Nova Delhi.1
Afastado físicamente de seu país, Sarduy ainda assim continuou olhando o mundo
com olhos cubanos. Em meio às alegorias e às máscaras de sua linguagem neobarroca se
encontra como pano de fundo a herança da cultura caribenha. Escreveu praticamente todos os
seus textos em espanhol e mostrou uma alma eternamente estrangeira dentro do meio literário
francês, sentimento cortazariano de estar entre “el lado de acá y de allá”. Aluno e amigo de
Roland Barthes, e com intenso convívio com outros estudiosos e escritores , participando de
Tel Quel e dialogando com os membros da Oulipo, a teoria literária e o meio cultural europeu
marcaram sua formação intelectual. Mas é de Cuba que Sarduy está falando quando escreve
ficção, é a sua paisagem e sua mistura que está presente no cenário de seus textos, mas é Cuba
ao avesso, o outro lado que misturado com a cara oficial já não permite distinguir um plano
do outro. Na Cuba de Sarduy, teatralizada e carnavalesca, os seres “outros” aparecem,
ressurgem do vazio da opressão e nas cores e lantejoulas do universo sarduyano a cultura
latino-americana é reinventada.
TRAVESTIS
O personagem mais recorrente na obra de Severo Sarduy é o travesti. O autor
desenvolve em alguns de seus ensaios a análise da figura do travesti e do processo de
travestimento. Além disso, esta figura aparece em grande parte de sua obra ficcional. As
análises de Sarduy vão desde uma questão ligada à natureza até a relação com a escrita. Em
seus estudos Sarduy trabalha com a idéia de que o travesti não imita ou procura ser a mulher,
pois ela é apenas uma aparência, que ele não copia, mas simula, sem, no entanto, estarem
reduzidos a um simples simulacro ou “a un fetichismo de la inversión: no ser percibido como
hombre, convertirse en la apariencia de la mujer. Su búsqueda su compulsión de ornamento,
su exigencia de lujo, va más lejos. La mujer no es el límite donde se detiene la simulación.”
1
A exposição “El oriente de Severo Sarduy”, organizada por Gustavo Guerrero, pretende mostrar a interculturalidade na obra
de Sarduy através das relações do autor com o Oriente, desde sua infância em Cuba até suas viagens pela índia, Marrocos e
outros países. A exposição mostra fotos tiradas durante as viagens, pinturas de Sarduy e objetos de coleção particular. Em
Madrid as visitas aconteceram de 09/04/2008 a 25/05/2008.
Para mais informações: http://www.cervantes.es/FichasCultura/Ficha48262_00_1.htm
(SARDUY, 1999, p.12982). O travesti se torna um tipo de “super-mulher”, ao ponto em que
as mulheres o imitam. Mas justamente pelo exceso ele se denuncia, se mostra como ser não
feminino, como comenta Sarduy “Lacan diría que se trata de una fantasía si se intenta ser toda
la mujer, ya que según él la mujer no existe, justamente, más que por el hecho de no ser ese
todo” (SARDUY, 1999, p.1298)
Sarduy comenta que “[r]elacionar al trabajo corporal de los travestis a la simple
manía cosmética, al afeminamiento o a la homosexualidad es simplemente ingenuo: ésas no
son más que las fronteras aparentes de una metamorfosis sin límites, su pantalla “natural””
(SARDUY, 1999, p.1298). Ele compara a imagem dos travestis à alguns insetos,
principalmente as borboletas,travestis naturais pelo excesso de ornamentos, o luxo e o
exagero das cores. Partindo da idéia de mimetismo de Roger Callois, dividida em travestismo,
camuflagem e intimidação, Sarduy atribui ao “travesti-humano” a convergência das três
possibilidades desse mimetismo.
O travesti propriamente dito, através de uma pulsão ilimitada de metamorfose e de
transformação não se reduz à imitação de um modelo real, mas se apresenta como busca de
uma irrealidade infinita e aceitada como tal, fugidia e inalcançável, de ser cada vez mais
mulher até ultrapassar os limites da mulher. (SARDUY, 1999, p 1267) Em relação à
camuflagem, Sarduy diz que “nada asegura que la conversión cosmética – o quirúrgica – del
hombre en mujer no tenga como finalidad oculta una especie de desaparición, de
invisibilidad” (SARDUY, 1999, 1268). Busca da anulação do macho, sua separação deste
“clan”, marcação da diferença, deficiência ou excesso que o afastam também das mulheres
levando à desaparição ou anulação. Por fim, aponta a idéia de intimidação, argumentando que
é freqüente o desajuste, a falta de cuidado no barbear, os artifícios visíveis e suas máscaras
que paralisam ou assustam. (SARDUY, 1999, p. 1268). E acrescenta: “El animal-travesti no
busca una apariencia amable para atraer (ni una apariencia desagradable para disuadir), sino
una incorporación de la fijeza para desaparecer.” (SARDUY, 1999, p 1269).
Ainda seguindo o modelo de Callois e a analogia com os insetos, Sarduy conclui que
mesmo na natureza a camuflagem é inútil e
“no representa más que un deseo irrefrenable de gasto, de lujo peligroso, de
fastuosidad cromática, una necesidad de desplegar, aun si no sirven para nada (...)
colores, arabescos, filigranas, transparencias y texturas, tendremos que aceptar al
proyectar este deseo de barroco en la conducta humana, que el travesti confirma
solo” (SARDUY, 1999, p.1269).
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Ensaio La Simulación do livro La Simulación. Comenta que existe na natureza a necessidade de disfarce, de se passar por outro, sem
derivar necessariamente da competição entre espécies ou da seleção natural.
Outro tema abordado por Sarduy em relação ao travestis é sua comparação com os
transexuais, que estabelece uma perspectiva interessante para se (re)pensar as questões de
gênero. O travesti tem assim um lado “avesso e contrario”, que é o transexual, que através da
correção e do sacrifício do corpo, remodela o físico e realiza o imaginário. O autor diz que a
dicotomia e oposição dos sexos é abolida ou reduzida a critérios “inoportunos ou
arqueológicos” no caso do travesti (SARDUY, 1999, p.13003), enquanto no caso do
transexual além de mantida é acentuada, ele aceita passar ao “outro lado”, sua busca é a troca
de um sexo pelo outro, associando sua identidade de gênero ao órgão sexual. Sarduy comenta
que “[e]l travesti remite a la arqueología, a otro mito complementario y reconfortante, el del
andrógino, que se sitúa en un tiempo adánico, en un tiempo antes del tiempo y de la
separación física de los sexos”, porque não pertence a um lado nem ao outro, é
indiferenciável. O transexual por sua vez, “se sitúa al final de la parábola de los sexos: en su
oscilación, en ese punto en que su contradicción es a la vez mantenida, acentuada y borrada.”
(SARDUY, 1999, p.1300).
TRAVESTISMO E ESCRITA
Severo Sarduy aproxima o travesti e a escrita literária ao apresentar como centro a
inversão. Um mundo “ao contrário”, uma inversão que está além da sexual, inversão de
papéis, de modelos e inversão da realidade, que se apresenta como simulação escondida atrás
da máscara da maquiagem e do exagero. Ao analisar o romance El lugar sin limites de José
Donoso, cuja protagonista é a travesti Manoela, Sarduy apresenta um plano de inversões
possíveis no texto e na personagem: “[e]l significado de la novela, más que el travestismo, es
decir, la apariencia de la inversión sexual, es la inversión en si” (SARDUY, 1999, p.11484).
Manoela, segundo Sarduy, se significa como mulher, mas funciona como homem, pois
é seu lado masculino que atrai a personagem Japonesa. No entanto, no ato sexual, Manuela é
passiva, marcando assim uma outra inversão no interior da inversão. “No femenino – por eso
se trata de una inversión dentro de otra y no de un simple regreso al travestismo inicial –, sino
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Ensaio II Pintado sobre um cuerpo do livro La Simulacion. Ensaio Escritura/Travestismo do livro Escrito sobre un cuerpo. de hombre pasivo, que engendra a su pesar.” (SARDUY, 1999, p.1148). O autor estabelece o
seguinte esquema:
1º um homem se traveste em mulher
2º que atrai pelo que de home há nela
3º que é passivo no ato sexual
Este esquema de inversões é, para Sarduy, o esquema do texto literário, pois “[e]s lo
que constituye la supuesta exterioridad de la literatura – la página, los espacios en Blanco, lo
que de ellos emerge entre las líneas, la horizontalidad de la escritura, la escritura misma, etc. –
lo que nos engaña” (SARDUY, 1999, p.1149). A aparência e as relações entre os significantes
que se criam no plano da página “son los que un prejuicio persistente ha considerado como la
faz exterior, como el anverso de algo que sería lo que esa faz expresa: contenidos, ideas,
mensajes, o bien una “ficción”, un mundo imaginario, etecétera.” (SARDUY, 1999, p.1150).
Sarduy teoriza a respeito da suposição, do pré-conceito de que existe uma realidade
exterior ao texto. O autor comenta que os mais ingênuos supõem que essa realidade que o
autor se limitaria a expressar, a traduzir, e que seria responsável pela materialidade da
escritura, é a realidade do mundo que nos rodeia e que os mais astutos propõem uma entidade
imaginária, um mundo fantástico. Mas para Sarduy, qualquer uma destas hipóteses estaria
ligada ao mito de uma origem, de algo primitivo e verdadeiro que o autor levaria ao branco da
página. No entanto, a aparente exterioridade do texto, a superfície, seria uma máscara que nos
engana, mas se existe uma máscara ela não esconde mais que a si mesma, como uma
superfície que impede que a consideremos como tal, por nos fazer acreditar que há algo por
trás. “La máscara nos hace creer que hay profundidad, pero lo que ésta enmascara es ella
misma: la máscara simula la disimulación para disimular que nos es más que simulación”
(SARDUY, 1999, p.1150).
O travestismo seria a melhor metáfora da escrita por mostrar a coexistencia em um só
corpo de significantes masculinos e femininos: a tensão, a repulsão e o antagonismo que se
cria entre eles. Sarduy afirma que os planos de intersexualidade são análogos aos de
intertextualidade que compõem o objeto literário. “Planos que dialogan en un mismo exterior,
que se responden y completan, que exaltan y definen uno al otro: esa interacción de texturas
lingüísticas, de discursos, esa danza, esa parodia es la escritura.” (SARDUY, 1999, p.1151).
O processo de escrita é, para Sarduy, semelhante ao processo da tatuagem, pois a
linguagem literária cifra na linguagem informativa os verdadeiros signos da significação. Mas
assim como em uma tatuagem, isso só é possível através de uma ferida e de uma perda. “Para
que una masa informativa se convierta en texto, para que la palabra comunique, el escritor
tiene que tatuarla, que insertar en ella sus pictogramas” (SARDUY, 1999, p.11545).
O autor acredita em uma nova literatura onde a linguagem seja o espaço para a ação de
cifrar, lugar de transformações ilimitadas. “El travestismo, las metamorfosis continuas de
personajes, la referencia a otras culturas, la mezcla de idiomas, la división del libro en
registros (o voces) serían, exaltando el cuerpo – danza, gestos, todos los significados
somáticos –, las características de esa escritura.” (SARDUY, 1999, p.1154) Para Sarduy os
cenários perfeitos para esse tipo de ficção seriam o carnaval, o circo ou os teatros eróticos.
Além das censuras e do pensamento comum, a literatura dialogaria com textos
contemporâneos a ela e também com todos os anteriores. “Literatura en que todas las
corrientes, no del pensamiento sino del lenguaje que nos piensa, se harían visibles,
confrontarían sus texturas en el ámbito de la página” (SARDUY, 1999, p.1154). Esse tipo de
texto, além de evidenciar o próprio fazer literário, pensando na simulação e na idéia de
literatura como “travestismo”, estaria colocando em destaque a intertextualidade, já citada
como plano análogo à intersexualidade. Onde o deslocamento, as vozes e as citações
estabeleceriam a ponte com toda a literatura no interior de uma mesma língua e dai até o nível
do universal.
TRAVESSÕES E COLIBRÍ
A obra Colibrí, lançada em 1984, considerada a obra de regresso de Severo Sarduy ao
tema hispano-americano, parece cumprir com muitas das teorias propostas pelo autor em seus
ensaios. Nas diferentes vozes que narram a trama e no ir e vir dentro do plano do texto de uma
suposta realidade além da história do bailarino Colibrí, o leitor se depara com um incessante
jogo de simulação e mascaramento, estabelecido através de uma escritura em abismo. As
afetadas vozes que em diversos momentos interrompem o narrador principal, se encarregam
de mostrar outras perspectivas das cenas ou até mesmo acrescentar ou corrigir as informações
relatadas. O tom exagerado e teatral das narradoras insolentes permite ver que não estão fora
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Ensaio La aventura (textual) de un coleccionista de pieles (humanas) do libro Escrito sobre un cuerpo. do contexto da trama, mas pertencem ao mesmo universo de plumas e afetações do bordel da
travesti Regente.
Entre gays e travestis, surge no meio da narração uma palavra de ordem. No capítulo
intitulado Regresso ao país natal, durante uma das “saídas” do plano narrado, na realidade
do narrador aparece seu pai, empenhado em impedir que o filho se torne “pássaro”. Em
primeira pessoa, o narrador vai descrevendo a chegada do pai ao pátio no momento em que
queima as partes do texto que foram acrescentadas pelas demais vozes, que lhe haviam
roubado o relato: “sacrifico as páginas mais igminiosas que me impuseram essas bandoleiras,
as que registram, com toscos achados de estilo, o cativeiro e a afronta de Colibri” (SARDUY,
1989, p.105). A queima dos papéis representa um ato de censura. O texto vai para o fogo, para
que a figura de ordem, o pai, não possa ver a identidade gay contida nele. O progenitor
intervém: “– Outra vez queimando papéis! Que mania essa tua, menino! Como se já não
perdesses bastante tempo escrevendo-os; depois os passas pelo fogo.” (SARDUY, 1989,
p.105) E reclamando da fumaça que inunda o pátio segue: “vou te falar com todas as letras. Já
és um homem, e dos Sarduy, até agora, não houve nenhum pássaro. E eu não quero que
ninguém me aponte na rua.” (SARDUY, 1989, p.106) E, se referindo as frutas de plástico que
são descritas na cena em que se encontra Colibrí e que na mudança de plano narrativo
aparecem na mesa do narrador, conclui: “Assim sendo, agora mesmo vais queimar também
essas quatro merdas. Onde já se viu um homem brincar com frutinhas de purpurina”
(SARDUY, 1989, p.106).
A ordem e a censura também fazem parte da trajetória de Colibrí. O exótico
personagem, chega ao casarão, “num meio dia ardente, dormindo na proa de uma barcaça de
carvão cinzenta e achatada, sem clarabóias nem bandeiras, dos povoados lamacentos do
estuário”6 (SARDUY, 1989, p.11). Provindo de outro povoado, Colibrí canta em um dialeto
“florestal e rouco”. Seus volumosos e longos cabelos louros, quase albinos, contrastavam com
suas espessas sobrancelhas negras e unidas “como se pertencessem a outro corpo” (SARDUY,
1989, p.11). Completam “a população” do bordel homossexual, as baleias, “velhotes
libidinosos e solventes” (SARDUY, 1989, p.11) e os caçadores, jovenzinhos desempregados,
mas ambiciosos, que chegavam ao local, provindos da mesma região de Colibrí, prontos a
satisfazer os desejos e caprichos dos velhos.
Os espetáculos perversos e sádicos, não tinham hora para começar, bastava que algum
caçador “decretasse, com voz sobressaltada pela proximidade de uma submissão voluptuosa, a
abertura dos jogos” (SARDUY, 1989, p.13). Coordenados pela Regente, uma baleia travestida
6
ambiente aquático de transição entre um rio e o mar. de matrona, e seus seguidores, a Anã e Gigantinho, as lutas representam momentos de
humilhação e subjugação do próximo, através da violência física e moral.
“Quando alguma chave mestra inclinava para frente um corpo débil e o derrubava de
bruços sob o peso autoritário de seu rival – que um olha de aceitação promovia
agora à posição de amo –, o vencedor caia por sua vez, joelho a terra, e fechava as
garras em torno dos punhos bloqueados e do pescoço do subjugado. A boca muito
perto do ouvido, azorragava-o então com as ofensas – sempre as mesma – de sua
lavra.” (SARDUY, 1989, p.14)
A cena termina com mais humilhações para o vencido, que têm a boca aberta a força
pelo amo, que lhe cospe na cara as folhas de hortelã mastigadas durante o jogo para manter a
excitação dos pares. Para desafiar Colibri, novo na casa, é escolhido o mais feroz atacante, o
Japonesão. Contrariando a expectativa do público, Colibri se defende dos golpes do japonês e
o lutador nipônico em uma tentativa de golpear o pássaro, acaba estatelado na parede onde
estava pintada uma paisagem invernal, enquanto o belo loiro desaparece da luta.
A vitória de Colibrí lhe da um status quase sagrado diante das baleias, que já começam
a leiloá-lo. Ao voltar à cena, Colibri aceita com desdém os elogios e os dólares dos velhacos
libidinosos. É neste momento, em que o pássaro está rodeado pela aura da vitória que a
Regente começa a desejar o dançarino para si, sentimento que a manterá até o fim em uma
busca incansável pela possessão do pássaro fugidio. Para dissimular sua febre, chega a
oferecer o novato para clientes que já sabia comprometidos.
Colibrí acaba fugindo e leva consigo o corpo do enorme Japonesão ainda desmaiado
pelo choque contra a parede. É a partir daí que o desejo da Regente ganha uma força insana
que entre fugas e enganos a levará a uma obsessão descontrolada pela posse do bailarino, que
se verá inatingível e ocasionará o seu fim: a perda do estabelecimento para o próprio Colibrí.
No grande final do loiro dançarino, este mostrará como mudam as perspectivas dos que
atingem o poder. Como novo gerente do bordel, Colibrí antes caça, se transforma no algoz de
seus próprios companheiros, autoritário e impiedoso até mesmo com o Japonesão com quem
vive momentos de prazer e aparente afeto. A trama de Colibrí aparece como espelho do
desejo e da posse e as conseqüências advindas destes. A chegada do dançarino ao poder,
possível metáfora da revolução cubana, mostra como aquele que antes foi vítima assume
facilmente o lugar de ditador, frustrando as esperanças das baleias que viam sua vitória como
uma possibilidade de mudança positiva nas atividades do bordel.
A crueldade do novo administrador se mostra já de inicio, quando manda colocar fogo
no casarão para que os inertes viventes saiam do recinto: “– Para que saiam da toca, como
saúvas – gritou Colibrí ao acender a pira” (SARDUY, 1989, p.140). Quando finalmente
entram na casa para tomar posse do que sobrou em meio ao incêndio armado pelo pássaro, o
Japonesão explora o terreno conquistado e encontra em um dos armários uma “tentadora
garrafinha de gim, herméticamente fechada e virgem” (SARDUY, 1989, pp.143-4) mas é
surpreendido por Colibrí que enérgico repreende e castiga “com uma contundente bofetada,
depois de se aproximar com passos marciais, o benigno atrevimento de seu companheiro”
(SARDUY, 1989, p.144). E com voz firme anuncia as novas regras do lugar: “– Acabaram-se
para sempre, ouviram bem? – acrescentou vociferando em torno de si, como se o escutasse
uma multidão mansa –, para sempre nesta casa o álcool e a erva. Acabou-se tudo que
corrompe e debilita” (SARDUY, 1989, p.144). Espatifando a garrafa contra os espelhos,
Colibri se dirige ao nipônico dando mais uma ordem: “Além disso – arrancou-lhe com uma
chicotada as frutinhas – deixe de frescura. O poder é coisa de macho. Senão te mando sozinho
para o lamaçal. Para que apodreças.” Fazendo alusão à figura do pai que manda Sarduy
queimar as frutas purpurinadas que se encontram no pátio.
Como comandante, Colibrí afirma uma identidade enérgica, de “macho”, pois o poder
não é coisa para quem não tem essa postura. Anula assim qualquer possibilidade de
reconhecimento de seu companheiro Japonesão, como seu par amoroso ou como figura
igualitária no poder. Mesmo ele, o fiel companheiro de toda a jornada contra a Regente é
passível de abandono, afirmando assim seu lugar de subjugado diante de Colibrí. No entanto,
quando se vê sozinho na intimidade do mezanino, Colibrí se olha no espelho e se preocupa
com a aparência, atitude não condizente com a estereotipada imagem do macho.
Foi com gesto de assombro que, a seus próprios olhos, o identificou.
- Meu Deus - se disse, quanto cabelo perdido.
E com a ponta dos dedos acariciou suas entradas; alisou a gaforinha: uma mecha
clara ficou-lhe entre as mãos.
- As comissuras dos lábios desceram. Os olhos já não têm brilho. A pele está
morrendo. E estas sobrancelhas, que não combinam com o resto. (SARDUY, 1989,
p.145)
Como último recurso da anulação de sua antiga identidade, Colibrí acaba com sua
marca física: as negras sobrancelhas são tingidas com água oxigenada. Já com novo visual e
batendo palmas, Colibrí desce as escadas e ordena: “– É preciso dar uma boa mão de tinta
vermelha. E colocar lâmpadas. Vamos ver se trazem dois ou três rapagões do estuário, que
dancem um pouco, para animar isto.” (SARDUY, 1989, p.146). Mostrando que a exploração
dos jovens corpos e as danças não estão proibidas em sua administração, não sendo, portanto,
consideradas por ele como fatores de corrupção ou debilidade. Na hipocrisia de sua postura
machista, Colibrí ainda pretende divertir-se com os shows dos jovens dançarinos, como uma
vez a velha Regente se extasiou com o dele, se transformando assim em uma mera
continuação ou duplo da velha matrona.
Na trama onde não há nenhuma mulher é possível ver que as relações de dominação se
estabelecem não apenas na dicotomia masculino/feminino. As diferentes representações de
sexualidade apresentadas no texto mostram que entre homens, gays ou travestis, são impostas
com a mesma violência as subjugações e o poder dos mais fortes. Da mesma forma
reaparecem, ainda que sob o traço da ironia e da paródia, a relação entre a sexualidade gay e a
violência, por tanto tempo aparentadas. E na complexidade das figurações de gênero,
diferentes identidades da sexualidade e da postura homossexual são mostradas através do
protagonista e de seus coadjuvantes assim como a censura que tenta obscurecer suas
manifestações.
Embora não tenha sido um manifestante das causas de gênero e homossexuais, esses
temas estão presentes na obra de Sarduy o que leva inevitavelmente a um questionamentos
das posições sociais. Como argumenta em sua tese Antônio Francisco de Andrade Júnior7, na
comparação entre Sarduy e Nestor Perlonguer, “as propostas poéticas de Perlongher e de
Sarduy não solicitam uma nova reconstrução do gênero e da sexualidade através da literatura,
e sim a abertura às tensões entre a linguagem e a exterioridade, a partir das manifestações da
experiência homossexual que já estavam presentes em seu tempo.” (ANDRADE JUNIOR,
2011, p.56).
Essas manifestações, no entanto, sufocadas pelos regimes repressivos emergem na
literatura ocupando um lugar no meio social, ganhando existência e visibilidade. O que só se
torna possível em um contexto de exílio, se levarmos em conta que os homossexuais foram
duramente perseguidos pelo regime cubano, ocasionando no meio literário a ausência do
nome de Severo Sarduy e outros escritores no cânone da literatura nacional do país. A
homossexualidade, considerada como uma doença, precisava ser curada, estes indivíduos
necessitavam ser “endireitados”, perder a frescura como o Japonesão de Colibrí e não luzirem
nos textos ficcionais. Ainda que Sarduy criticasse a busca da “verdade” na trama do texto, a
literatura se mostra também como espaço de significação daquilo que é silenciado na
realidade extra-textual. Lugar de representação do outro, da emergência da heterogeneidade
identitária e do reconhecimento da alteridade.
7
Por uma comunidade desejante: Um estudo sobre néstor perlongher e severo sarduy. Tese defendida em 2011 na
Universidade Federal Fluminense (UFF) REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ANDRADE JÚNIOR, Antônio Francisco de. Por uma comunidade desejante: Um estudo
sobre néstor perlongher e severo sarduy. (Tese de doutorado) Niterói: na Universidade
Federal Fluminense (UFF), 2011.
SARDUY, Severo. Colibri. Tradução de Sieni de M. Campos. Rio de Janeiro: Rocco, 1989.
______ Escrito sobre um cuerpo. In___. Obra completa. Vol. 2 Colección Archivos. Madri:
ALLCA XX,1999.
______ La Simulación. In___. Obra completa. Vol. 2 Colección Archivos. Madri: ALLCA
XX,1999.