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A CULTURA DO DESAPEGO: CONSUMO E SOFRIMENTO PSÍQUICO
José Artur Molina
Departamento de Psicologia – Universidade Estadual de Maringá
[email protected]
A pós-modernidade é tema de uma ampla gama de pesquisadores. Todos se
perguntando: o que está acontecendo e para onde vamos? Velhas perguntas e respostas
titubeantes. Quais são os ventos que sopram sobre a humanidade. Como era antes e o que
ocorre agora. Os historiadores falavam de períodos históricos na amplitude de séculos. Hoje
uma década pode apontar uma tendência não prevista na anterior. De modo que o tempo das
horas e dos minutos, dos meses e dos anos sofreu uma enorme mudança. É possível avançar
muito mais na produção de qualquer coisa hoje do que no século anterior. As tecnologias
derrubaram as distâncias e o tempo subjetivo, isto é relacionado ao que posso fazer dentro do
cronológico é muito mais produtivo. Se falamos de tempo e espaço, estamos fazendo
referencia à velocidade. E, por conseqüência, de aceleração. Parece que tudo anda corrido
demais e a capacidade de lidar com a velocidade dos desafios requisitados pela
contemporaneidade nos deixa perplexos, nervosos, angustiados. Responder às demandas
(quais? Para que e para quem?) que a vida nos convoca no século XXI é tudo o que cabe
pensar para não sermos tragados pelos caprichos de um tempo que não pode esperar.
Acelerados podemos perecer!
O avanço das condições de infra-estrutura nos Estados Unidos no século XIX
possibilitou a transferência da produção industrial nas mais diversas regiões do país, além das
exportações. Com isso era possível consumir o que se produzia dando estabilidade na relação
produção-consumo. No século XX a partir dos anos 30 muitas fusões foram ocorrendo, na
euforia de um novo tempo para o capital. Surgiram industrias importantes com produção em
larga escala.
Henry Ford percebeu que o momento era de mudanças no modo de produção ou na
maneira de regulamentar a produção.
Harvey (1993) acredita que todos os espaços da vida estão sendo produzidos pelos
deslocamentos do capital. Assim a modernidade se referia a uma determinada maneira de
produzir e conduzir um contingente de trabalho. O fordismo é um modo fabril ancorado na
produção uniforme e em grande escala. O tempo de produção é determinado pela capacidade
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do binômio “máquina x homem”. A lógica era a de que o trabalho vinha até o trabalhador. A
velocidade da esteira determina o ritmo necessário do trabalhador. No final do processo o
produto se apresenta concluído. Trabalha-se com estoques e distribuição em larga escala.
Relações estáveis, controles eternos para o bem da acumulação do capital. Ford consegue um
extraordinário aumento de produção.
O taylorimo já estava conseguindo muitos filiados no inicio do século XX. Mas o
fordismo tinha uma concepção que faltava na de Taylor. Uma visão de um mundo voraz,
voltado para o consumo acompanhado de uma produção de larga escala.
Para Harvey (1993) isso significou uma mudança drástica no modo de vida de toda
uma sociedade: uma nova estética, numa sociedade democrática, com regramentos claros,
uma sociedade inteiramente transformada construindo um novo homem. Enfim parece que
neste sistema a nova psicologia surgia: a da felicidade. “Os novos métodos de trabalho são
inseparáveis de um modo específico de viver e de pensar a vida” (p. 121).
Não é ironia o fordismo surgir no clima da depressão dos anos 30. O capital, com sua
força vital, deve reorganizar-se, construindo um ambiente propício para seu crescimento.
Criar demandas e modernizar o Estado para que políticas favoráveis ao progresso (leia-se: a
felicidade do consumo e a acumulação de capital) fossem implementadas. E neste ritmo o
Ocidente assistiu uma transformação inédita em sua história. O mundo foi sendo povoado por
automóveis, eletrodomésticos, com redes de comunicação de massa, expansões imobiliárias,
financeiras e tecnológicas.
Mas a felicidade não seria para sempre. A recessão mundial de 1973 indicava que uma
outra crise surgia e o capital deveria se reordenar. Havia uma crise de saturação de consumo e
com recursos exauridos na euforia dos anos anteriores. Desta feita, a tarefa seria muito mais
difícil em função da rigidez que o fordismo estava estruturado. Concentração industrial, a
larga escala de produção já não era viável.
Havia problemas com a rigidez dos investimentos de capital fixo de larga escala e de
longo prazo em sistemas de produção em massa que impediam muita flexibilidade
de planejamentos e presumiam crescimento estável em mercados de consumo
invariantes. Havia problemas de rigidez nos mercados, na alocação e nos contratos
de trabalho (HARVEY, 1993, p.135).
Este cenário desolador ainda foi acompanhado pela crise do petróleo que aumentaram
o valor dos produtos num ambiente recessivo. Os mercados inapetentes produziram deflação
e, para dar um exemplo, Nova Iorque faliu em 1975.
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A palavra de ordem era flexibilizar. Acabar com a visão de invariantes. Regionalizar e
racionalizar a produção. Absorver as particularidades de cada conjunto. Ganhar com a
diversidade. Produzir sem estoques, acúmulos desnecessários que comiam os lucros. Agilizar
o consumo do produto para facilitar o giro do capital. A automação era uma ambição para que
o capital pudesse viver mais independente dos sindicatos. Encontrar novos mercados. Ampliar
técnicas que pudessem vender produtos com tecnologias de marketing que criassem demandas
espirituais de consumo. O mundo começa a reagir para um novo modo de existir. Harvey
(1993) chamará de acumulação flexível a nova forma de gerir o capital.
A acumulação flexível, (...) é marcada por um confronto direto com a rigidez do
fordismo. Ela se apóia na flexibilidade dos processos de trabalho, dos mercados de
trabalho, dos produtos e padrões de consumo. Caracteriza-se pelo surgimento de
setores de produção inteiramente novos, novas maneiras de fornecimento de
serviços financeiros, novos mercados e, sobretudo, taxas altamente intensificadas de
inovação comercial, tecnológica e organizacional (HARVEY, 1993, p. 140).
O setor de serviços cresceu drásticamente. Era uma forma de atenuar a desocupação de
uma legião de trabalhadores excluídos da nova ordem industrial: produção ajustada à
demanda, regionalização das unidades industriais e automação, entre outros.
Esta nova forma de construir o mundo e suas intrínsecas relações vai mexer com algo
que o fordismo com sua estabilidade não se preocupava. O tempo! A flexibilização vai dizer
que tudo é efêmero. Os produtos devem ser substituídos rapidamente. Nada é para sempre.
Novas tecnologias devem ser agregadas sucessivamente aos produtos lançados em ciclos cada
vez mais curtos. É preciso identificar tendências antes de todos. Decidir e agir. Implementar e
existir. Com isso os sistemas de informações e comunicações são incrementados de forma
extraordinária. Nenhuma das hierarquias presidenciais do fordismo deveria existir na
flexibilização. Ela é arrogante e engessa as ações destinadas ao acumulo de ganhos. A
segurança deve ser substituída pela ousadia. O trabalho terceirizado passa a ter uma presença
maior nos esquemas produtivos mais amplos. A formação de pessoas passa a ser muito mais
ambicionada. O treinamento é a regra nas organizações. Ele é destinado aos gerenciamentos
das especificidades que a acumulação flexível exigia. O mundo entra num ritmo acelerado de
existência. “Mas a aceleração do tempo de giro na produção teria sido inútil sem a redução do
tempo de consumo” (HARVEY, 1993, p. 148).
A celeridade não admite burocracias e assim, o Estado teve que abolir entraves,
desregulamentando para servir à acumulação flexível do capital. Tudo o que foi feito nos anos
30 para organizar os mercados de ações foi desfeito 40 anos depois. As empresas passaram a
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fundir-se e a criar verdadeiros guarda-chuvas de pequenas empresas que serviam de
manufatoras para “a grande marca mãe”. Isso muda radicalmente as relações com a produção
e o trabalho. De modo que passa a ser mais importante um terceirizado que busque soluções
fabris para determinado produto a um engenheiro de produção ou mecânico na empresa mãe.
A ela cabe melhor um executivo financeiro ou um administrador que fareje onde estão os
negócios. Capacidade de resposta, informação, e principalmente, acesso privilegiado a ela. Aí
está o tesouro dos lucros. A mercadoria transforma-se em papeis, bolsas de valores, fundos
de pensão, comodities.
A desregulamentação e a inovação financeira – processos longos e complicados –
tinham se tornado, na época, um requisito para a sobrevivência de todo centro
financeiro mundial num sistema global altamente integrado, coordenado pelas
telecomunicações instantâneas. A formação de um mercado de ações global, de
mercados futuros de mercadorias (e até de dívidas) globais, de acordos de
compensação recíproca de taxas de juros e moedas, ao lado da acelerada mobilidade
geográfica de fundos, significou, pela primeira vez, a criação de um único mercado
mundial de dinheiro e de crédito (HARVEY, 1993, p. 152).
A transição do fordismo, estável e rígido, para a acumulação flexível, efêmera e célere,
só foi possível por uma revogação das regras que amparavam o Estado que encontrava-se de
mãos atadas na crise dos anos 70. Os valores conseqüentes à queda de um determinado marco
regulatório foram: “(...) acentua o novo, o fugidio, o efêmero, o fugaz, e o contingente da vida
moderna, em vez de valores mais sólidos implantados na vigência do fordismo” (HARVEY,
1993, p. 161).
A queda do império da lei que o capital obriga traz conseqüências extraordinárias para
a vida social. Cria um ambiente de “tudo pode” com uma reação contrária do “nada pode”.
Assim, ruptura e tradição tem sido os pilares de uma sociedade que perdeu os parâmetros
estáveis contidos no fordismo. Vamos analisar agora as implicações na produção cultural que
Harvey encontra dentro deste cenário.
Urbe e cultura
A história do mundo é feita de transições. Tempos que se sucedem por pensamentos e
práticas inovadoras. Algumas transições são marcadas por mudanças radicais e outras nem
tanto.
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A transição de um pensar medieval para uma prática racionalista típica do iluminismo
é exemplo de uma mudança clara de paradigma. Isto porque de um pensar obscurantista
passamos a acreditar na força da inteligência humana a desvelar as verdades da natureza. E
como foi bom para a humanidade não queimar mais em fogueiras ditadas por tribunais
eclesiásticos.
O século XIX é protagonista de uma nova transição de um pensamento iluminista
francamente otimista. A razão salvaria o globo da iniqüidade. Entretanto, os velhos vícios e as
velhas práticas que acompanharam a humanidade em toda sua história persistiu apesar de toda
sua inteligência. A ambição e o poder continuavam a subjugar. Além disso o conhecimento
levaria o mundo à produção e ao consumo. O capital desabrocha de seu casulo oitocentista e
constrói as cidades e depois as metrópoles. As industrias florescem com esquemas muito
racionalizados de produção e o sonho do consumo persegue as noites e os dias de homens e
mulheres. A esse período se convencionou chamar de modernidade. Tudo o que era rural era
rude e atrasado. Massas invadem as cidades para trabalhar com as máquinas e viver nas
periferias das cidades que estavam se agigantando Todo tipo de arsenal logístico teve de ser
implementado para que a vida em aglomeração fosse possível. Serviços de saúde, mercados
de alimentos, escolas, moradias, além de ofertas de entretenimento são exemplos das novas
demandas da cidade. A modernidade que isso representa cria o modernismo. Ele não
abandona a bandeira da racionalidade e nem da verdade universal. Mas, ao mesmo tempo, tem
uma vocação ao destempero. Um apreço a liberdade de estar no mundo. Um desejo de
transgressão embora contido pela possibilidade do excesso caso a lei claudicasse. O otimismo
da era das luzes sucumbe a um mundo de contradições entre a riqueza das áreas nobres das
cidades e suas misérias das periferias. Entre cadilas, hollywood e o triste canto do jazz do
Mississipi. A tristeza insiste em ser a inseparável companheira de homens e mulheres.
Harvey citando Baudelaire define a modernidade como efêmera, fugidia, passageira
por um lado e por outro o eterno e imutável (1993, p. 21). É uma aposta num conjunto social
trabalhando livremente para que o acumulo de conhecimentos pudesse libertar a humanidade
dos flagelos da fome, do desamparo psíquico, das catástrofes. Domínio da natureza e
construção de um espaço social distinto de tudo o que já havia sido vivido no mundo.
O século XIX assiste a uma batalha entre as forças contrárias aos avanços de uma
sociedade urbana. Os ousados talentos da liberdade prevalecem. Apesar disso, no século XX,
encontram sua decepção e desespero com as bombas de destruição em massa de Hiroshima e
Nagasaki. A não seletividade da destruição nos arrasta para um passado recorrente de
barbárie. De modo que o século XX sepulta qualquer otimismo vindo dos tempos das luzes.
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Do ponto de vista do conhecimento o paradigma iluminista que confere a uma
pergunta sempre uma mesma resposta não acompanha mais as demandas de flexibilizar a
visão de mundo. A matemática não euclidiana representa duro golpe na unidade deste saber.
A teoria estruturalista da linguagem dá ênfase nas relações entre as palavras do que
propriamente nas referências que cada uma tem com seu objeto. Isto para ficarmos em poucos
exemplos. A relativização do mundo emerge de forma dramática no modernismo. Mas, por
contradição, buscava-se também um lugar bem seguro para existir. Essa ilusão desaparecerá
para sempre com a pós-modernidade.
Pós-modernidade
A pós-modernidade traz consigo a fragmentação e as pulverizações que já existiam no
período anterior. Contudo, deixará de acreditar em universalismos e metalinguagens. As
ambições de largo espectro da modernidade será substituída por microações, pequenos
projetos, flexibilidade.
Na literatura os paradigmas epistemológicos são abandonados para uma escritura do
ser. Das histórias para os desenredos. Da afirmação de um personagem numa história para
uma pergunta introspectiva de alguém sobre si. “A própria redução do problema da
perspectiva à autobiografia, segundo uma personagem de Borges, é entrar no labirinto: ‘Quem
era eu? O eu de hoje estupefato; o de ontem, esquecido; o de amanhã, imprevisível’. Os
pontos de interrogação dizem tudo” (HARVEY, 1993, p. 46). O personagem mergulha no seu
caos interior dando largas mangas aos seus desejos multifacetados. O tempo sofre importante
torção. Não é importante a cronologia numa ordem de apresentação. O começo é o fim. O
meio é o começo. Tudo dirigido a uma estilística.
Na filosofia, a mescla de um pragmatismo americano revivido com a onda pósmarxista e pós-estruturalista que abalou Paris depois de 1968 produziu o que
Bernstein (1985, 25) chama de “raiva do humanismo e do legado do iluminismo”.
Isso desembocou numa vigorosa denúncia da razão abstrata e numa profunda
aversão a todo projeto que buscasse a emancipação humana universal pela
mobilização das forças da tecnologia, da ciência e da razão (HARVEY, 1993, 46).
A descontinuidade é a característica destes tempos. As metanarrativas como a
psicanálise serão atacadas porque delas não se espera que seja possível extrair “a verdade”. O
múltiplo prevalece sobre o único. A diferença sobre a unidade. Os fluxos sobre os sistemas. O
micro sobre o macro. Totalizações darão lugar a pluralidades. “O que é produtivo não é
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sedentário, mas nômade” (HARVEY, 1993, p. 49). Os discursos mestres são rejeitados e com
eles o do psicanalista.
A idéia de que todos os grupos têm o direito de falar por si mesmos, com sua própria
voz, e de ter aceita essa voz como autêntica e legítima, é essencial para o pluralismo
pós-moderno. (...) enfatiza a abertura dada no pós-modernismo à compreensão da
diferença e da alteridade, bem como o potencial liberatório que ele oferece a todo
um conjunto de novos movimentos sociais (HARVEY, 1993, p. 52).
No pós-modernismo as minorias ganham espaço e prega-se a tolerância. Entretanto,
grupos fascistas e fundamentalismos religiosos florescem ameaçados pela liberdade de
existência da diferença. As fogueiras começam arder novamente. Minorias são espancadas na
noite onde a covardia se faz valente. A lei claudica na pós-modernidade sem prejuízo da
expansão do capital com todas as outras formas de violência sob a mirada desatenta de um
Estado inadimplente.
Harvey (p. 56) vai introduzir a paixão dos pensadores pós-modernos pela
esquizofrenia, não como quadro psicopatológico, mas como uma alteridade que desmonta um
paradigma de racionalidade. A supremacia do significante que Lacan autoriza sobre o
significado é um exemplo disso. Só saberemos de um sentido na relação de um conjunto
enigmático de eventos. As palavras perdem seu objeto. Ao desnudarem-se dele ganham a
liberdade para referir-se a outrem. Essa é uma lógica puramente contemporânea. E para que
isso aconteça também o tempo não pode ser mais retilíneo. A descontinuidade temporal está a
serviço de uma outra lógica de produção de sentido. A morte da história. A pós-modernidade
é um tributo à amnésia. Para Harvey há nesse contexto uma perda de profundidade que pode
ser vista na produção cultural, nos enlatados e outros instantâneos. Os reis de um verão.
Heróis de um dia.
O inconsciente freudiano foi um dia um arcabouço de experiências. Deixa de sê-lo
quando Freud renuncia a memória. O inconsciente também não conhece o tempo organizado
pelas batidas do relógio. Ele é passado e presente num só momento. Isso faz com que a
emergência de um evento inconsciente, inesperado esteja a espera da temporalidade que é
determinada pela orquestra de eventos que irá produzi-la. É na repetição e não na lembrança
que um agir escravo se revela. De modo que é complexo falar da psicanálise sem levantar
outras variáveis do que aquelas facilmente denunciadas pelos seus detratores: ela é projeto
moderno porque inventa o inconsciente, ou seja, o incontrolável, e por outro lado aposta numa
racionalidade interpretativa que possa desfigurar sua aparência em névoas.
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As interpretações seriam urgidas nos templos psicanalíticos e os consultórios seriam
os confessionários comuns em outros lugares. O mundo é cheio de meias verdades. Não quero
dizer que elas não tenham valor porque o que devemos prezar são as verdades inteiras.
Acredito que nestes nossos tempos não estamos inteiros em nenhum lugar. Somos parciais
sempre. De modo que a meta-narrativa freudiana não é a todo momento uma metanarrativa. A
renúncia de uma certa psicanálise à interpretação (entendendo-a como uma verdade surgida
da inteligência de um analista) e no lugar dela deixar um discurso acontecer é uma forma
singular de fazer psicanálise. Criar um espaço onde esse discurso possa reescrever a história é
dar condições de uma reinvenção do sujeito.
Os novos parâmetros subjetivos são para Harvey condicionados pela acumulação
flexível. Já Bauman (2007) defenderá que as sociedades contemporâneas tem uma forma
líquida de existência. Articulará a vida social em parâmetros de consumo e volatilidade. A
pergunta a fazer é que tipo de construção em termos psíquicos poderíamos fazer para seguir
um diálogo necessário com as ciências sociais e ao mesmo tempo fazermos nossa
contribuição dentro de nossa especificidade. A cultura do desapego é uma tentativa.
A cultura do desapego
O desapego é um dos mais importantes ensinamentos budistas. Quem a tudo
renuncia jubiloso, alcança, já agora, a mais alta paz do espírito; mas quem espera
vantagem das suas obras é escravizado pelos seus desejos. Na verdade, a vida de
iluminação é o caminho do desapego. Muitos dos problemas da vida são causados
pelo apego. Ficamos com raiva, preocupados, tornamo-nos ávidos, fazemos queixas
infundadas e temos todos os tipos de complexos. Todas estas causas de infelicidade,
tensão, teimosia e tristeza são devidas ao apego. Se você tem algum problema ou
preocupação, examine a si mesmo e descobrirá que a causa é o apego (Preceito
Budista).
O desejo de possuir sempre foi antagônico a uma vida despojada, espiritual. As
religiões colocam o desapego no mais alto grau da espiritualidade. E que valor! É possível
livrar-se das imposições sociais para ser o melhor, possuindo o melhor. Grifes, carros,
profissões, casas, celulares, adereços mil, enfim, toda uma série de troféus que o transformam
num sucesso. De modo que o esperado é que uma vida espiritual combata a voracidade do
desejo dando serenidade ao sujeito. Este é o caminho de muitos que não querem submeter-se
à escravidão. Existem outros, mas este é o mais emblemático. O desapego é, portanto, um
valor que preserva o que é importante num ser humano.
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A psicanálise também trabalha com o desapego. Ele se dá em dois sentidos. O
primeiro deles é no sentido de desapegar-se da célula narcísica e voltar-se para um diálogo
com o mundo. Na análise o paciente deve narrar sua história e desapegar-se de seus sentidos
regressivos. Escrever com base na história uma nova história e com ela um destino autônomo.
Ao lado destas informações vemos atônitos na mídia uma empresa virtual de classificados
grátis cujo apelo para alavancar os negócios é justamente o desapego. Na televisão escutamos
repetidas vezes “Desapega, desapega, desapega”. Livre-se de um objeto e disponha-se a
consumir outro. O sitio da empresa serve-se de celebridades que vendem suas coisas como um
vestido usado numa festa porque “sabe como é. celebridade não pode repetir roupa”. Assim o
espectador se vê convocado a livrar-se de coisas, não por um valor, mas porque para parecerse a uma celebridade é preciso fazer circular a gama de objetos a serem devorados. Para
Bauman (2007), a sociedade líquida é o “nicho ecológico natural das celebridades”.
Este contexto nos remete a liquidez da vida na proposta de Bauman. Nada será para
sempre em nome da liquidez. O desapego é essencial para estar na ponta desvairada do
consumo e ser finalmente admirado em sua carcaça narcísica. A isso foi condenada a vida na
contemporaneidade.
A superficialidade do ser comove a qualquer espírito minimamente interrogador, dada
a fragilidade dos personagens que compõe este cenário. É comovente o desamparo emergente
neste mundo de luzes claudicantes. A submissão a uma ordem de celebridades não só é
patético, mas trágico. São espíritos erguidos sob a égide das imagens herdadas de lugares
imprevistos. Não é uma coincidência que a ordem subjetiva do mundo está ancorada no vazio
da angústia. O desapego como um valor espiritual de se repousar no apego do vínculo, no
amor, é reivindicado a serviço das mercadorias. “Numa sociedade líquido-moderna, as
realizações individuais não podem solidificar-se em posses permanentes porque, em um
piscar de olhos, os ativos se transformam em passivos, e as capacidades, em incapacidades”
(Bauman, 2007). Desapegue ou o fracasso será sua marca. Assim o “desapega” é a lei
primordial da vida atual. É a condição de ser admitido nas filas das massas engajadas na
lógica do consumo e da alegria borbulhante. Claro que não há como negar que essa vida é
uma vida sobressaltada. Não só porque é preciso saber qual será a próxima demanda a ser
seguida, quais códigos vão nortear a vida de sucesso, mas também qual celebridade estará
autorizada a dar a consigna. Cabe ressaltar que a lei do desapego também diz respeito à
celebridade. Hoje é, amanhã não é mais. Afinal nada é para sempre.
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A vida sobressaltada é uma vida de expectativa angustiada. Nas palavras de Bauman a
ordem trágica da sociedade líquida é “esquecer , apagar e substituir (...) ou morrer” (2007, p.
9). Uma vida sem história, sem marcas, uma vida esquecida perde a consistência que o
psíquico necessita como instrumento para lidar com o precipício do vazio. A angústia é
inevitável. Mas a vida desapegada insiste que em velocidade é possível viver a felicidade de
possuir e ser amado. O nomadismo é um valor essencial nessa lógica. A aventura sórdida
dessa experiência leva a: “aquiescência à desorientação, imunidade à vertigem, adaptação ao
estado de tontura, tolerância à falta de itinerário e direção e à duração indefinida da viagem”
(BAUMAN, 2007, p. 10).
Quem não estiver nessa onda é deixado para trás. Condenado ao desamparo ou
assumir à precariedade da vida com o outro. A vida dos amigos de facebook é um exemplo
dessa frouxidão das relações amorosas. A vida no “face” roda de baixo para cima e amanhã
não se voltará a ver o que se viu ontem. As leves e efêmeras ligações! Mas, não se enganem, a
intenção que move a cada dia um ser que mergulha na orda virtual dos amigos flutuantes é a
de ter um Grande Encontro. A liberdade deste grande encontro não vem. Devo, portanto,
postar onde estou, como estou, com que roupa estou, o que estou comendo, que paisagem
estou vendo, quais os filhos que estou parindo. Tudo na alegria virtual do sucesso. Bauman
(2007) citando Adorno é oportuno para entender as redes: “render-se à coletividade: como
recompensa por pular no ‘caldeirão’, lhe é prometida a graça de ser escolhido, de pertencer.
Pessoas fracas e amendrontadas sentem-se fortes quando de mãos dadas”. Desta forma um
conceito como narcisismo coletivo vai sendo formulado como guarida para o narcisismo
pessoal. O Eu não se sustenta se não for amparado no esforço coletivo das redes. Juntos
somos fortes! Com os rostos mascarados deixamos de ser indivíduos para abraçar o gesto
coletivo, sendo protegidos por ele. Mal sabe eles que estão todos nus, pensando-se vestidos.
“Ligar-se ligeiramente’, contudo, é para eles uma ordem, já que, não importa o que
façam, ‘propriedades, situações e pessoas’ continuarão deslizando e desaparecendo a uma
velocidade surpreendente – quer tentem ou não reduzi-la, não faz diferença” (BAUMAN,
2007, p. 12). Não é uma decisão individual ou coletiva. Aliás não é uma decisão. Trata-se de
um atropelamento. O corpo atravessado por uma intenção que lhe é alheia. É uma ordem
transcendental mas não do âmbito do céu mas do inferno.
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Diante de tudo o que foi visto até agora chama a atenção a onipresença da velocidade
na vida desapegada. “Velocidade, e não duração, é o que importa. Com velocidade certa,
pode-se consumir toda a eternidade do presente contínuo da vida terrena” (p. 15). É o destino
e não o caminho o que de fato é importante. É a síntese e não o processo. É o fim e não o
meio. Desta forma a inconsistência da vida emerge no desapego. A velocidade através da qual
o aparelho psíquico deve processar e ordenar os eventos subjetivos da vida é cada vez maior
porque estamos conectados em todos os lugares e em todas as geografias. Devemos dar conta
solução daquilo que nos sensibilizou com soluções simbólicas para não derraparmos na curva
da angústia, do corpo ferido, da desorientação, da desorganização, enfim da perda da vontade
de viver.
A cultura do desapego converte corpos consumidores em corpos ansiosos. Neste
desconforto devemos obter a paz devorando outro objeto qualificado pelo mercado como o da
vez. Concomitantemente, o anterior já foi retirado. Isto guarda consonância com Bauman
(2007) quando afirma que:
O corpo do consumidor, portanto, tende a ser fonte particularmente prolífica de uma
ansiedade eterna, exacerbada pela ausência de escoadouros estabelecidos e
confiáveis para aliviá-la, que dirá para reduzi-la ou dispersá-la (p. 120).
O desapego favorece o aumento da velocidade com a qual a energia libidinal circula
pelo sistema psíquico, sendo a principal causa da angústia sempre tão presente na vida
contemporânea. A angustia é afeto sem representação. Esta foi abolida por uma vida em
desapego. É o fim de referenciais minimamente sólidos como era a família, comunidades,
escola, o Estado, entre outras. Neste fim de referenciais chama a atenção que a história deva
ser esquecida. A memória deve ser apagada. Assim, o futuro é imprevisível e, com isso
incerto.
Na cultura do desapego as marcas da experiência se desvanecem como as pegadas na
areia deixando um cenário de desamparo por onde vai passando. Um ser sem marcas é um
ente perdido em suas circunstâncias. Sem possibilidades de avaliar para que horizonte seguir.
A vida ficou destinada ao emergente e os clássicos foram relegados à submersão. O
saber deve ser destinado a sua função prática e em conseqüência o primado da ignorância é
sua conseqüência.
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(...) o impetuoso crescimento do novo conhecimento e o não menos rápido
envelhecimento do conhecimento prévio se combinam para produzir ignorância
humana em grande escala e para reabastecer continuamente, talvez até ampliar, o
estoque disponível (BAUMAN, 2007, p.155)
A vida é líquida. A vida deixou de ser sólida.
Freud no capítulo VII da “Interpretação dos sonhos” compara com base na primeira
tópica que o ambiente do inconsciente seria habitado por uma libido livre que, pressionando a
barreira da censura, ganharia representação no âmbito do pré-consciente. De modo que a
velocidade da libido ao ganhar representação diminuiria drasticamente como no processo de
refração, ao ganhar a consistência da palavra. Afirmei em outro trabalho que a alta velocidade
refere-se a um quantum de energia sem representação:
Assim aquelas manifestações psíquicas para além do simbólico implicariam numa
velocidade impraticável para sua representação. O representável inscreve a libido
num campo determinado, reduzindo sua velocidade. As novas sintomáticas, leia-se
pânicos, transtornos alimentares, compulsões outras etc. seriam o resultado de uma
velocidade de energia incontrolável. A expressão técnica de apalavrar estes
fenômenos significa reduzir a velocidade da energia através de um discurso,
inserindo-o no campo do simbólico. Nomear aquilo que vem a tona na forma de um
afeto sem palavra (MOLINA, 2009).
Na cultura do desapego a solidez da palavra é substituída pela liquidez da compulsão.
“A vida líquida é uma vida de consumo” afirma Bauman (2007). A vida em desapego
vive para o consumo. Tudo na mais cruel harmonia com os ditames do desejo. Com efeito, o
desejo deseja desejar. E aquilo que se deseja é sempre o que não se tem. O desejo é desejo de
outra coisa. Aí circula o capital. Assim cooptados pela fissura interna da existência passeamos
desvairados na passarela do consumo. Para esta paixão de pouco valem as palavras. Talvez
por isso as psicoterapias estejam fracassando. Mas é nobre tentar. Nomear a ditadura da
pulsão para frear não só a avidez, mas também renunciar a invasão perturbadora de uma vida
nervosa.
Para Bauman “vida líquida alimenta a insatisfação do eu consigo mesmo” (2007, p.
19). Estamos sempre devendo, sem saber o que, quanto e nem para quem. Mas a dívida
persiste. Insatisfeitos por causa do desapego que desapegou de referências importantes, porém
desprezadas. Outra vez o sobressalto. Nunca chegamos ao lugar do descanso possível.
Adormecer na paz de um coração infantil. Isso é impossível. As trombetas dos objetos
circulantes convocam mentes e corpos a dançarem a música do consumo:
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A sociedade de consumo consegue tornar permanente a insatisfação. Uma forma de
causar esse efeito é depreciar e desvalorizar os produtos de consumo logo depois de
terem sido alçados ao universo dos desejos do consumidor. Uma outra forma, ainda
mais eficaz, no entanto, se esconde da ribalta: o método de satisfação toda
necessidade/desejo/vontade de uma forma que não pode deixar de provocar novas
necessidades/desejos/vontades (BAUMAN, 2007, p.105).
Estamos no olho do furacão pulsional. Freud descreve o aparelho psíquico como uma
máquina que demanda, suga, devora. Uma máquina pulsional. Apostava na palavra como o
método consistente para evitar a atuação. Cônscios destas atuações, poderíamos traçar
estratégias condizentes ao domínio pulsional. Mas na atualidade o que se vê na cultura do
desapego é que a insatisfação só pode ser resolvida no consumo, na atuação da captura
infinita daquilo que falta. Vive-se a ilusão de um dia encontrar o “Grande Encontro” e não
mais ter que desapegar.
Para não encarar a dura realidade desta eterna condição de desapego circulam-se
desejos e vontades, ainda mais furiosamente. Neste sentido vivemos na cultura do excesso,
bem a gosto da pulsão. A condição do excesso é o desapego e com ela os seus despojos. Para
Bauman (2007)
“o consumismo é uma economia do logro, do excesso e do lixo; logro, excesso e
lixo não sinalizam o mau funcionamento da economia, mas constituem uma garantia
de saúde e o único regime sob o qual uma sociedade de consumidores pode
assegurar sua sobrevivência. (...) o caminho da loja à lata de lixo deve ser curto, e a
passagem, rápida (p.107).
Diante deste cenário é evidente que a vã esperança de Freud de que o princípio de
realidade venceria o do prazer desaba. Não é possível procrastinar o afã de consumir e o vício
do desapego. Adiar o prazer é missão estóica não afeta à contemporaneidade. É como se o
mundo estivesse possuído de pueris intenções. As inadiáveis capturas e conquistas de todos os
dias. A cultura do desapego condena a ação contemplativa porque nela não há a velocidade da
troca, condição essencial do consumo. Não estamos para refletir e sim para agir.
O amor é a principal vítima da cultura do desapego. Os relacionamentos vivem suas
crises e seus términos muito antes do que a paciência ou a prudência poderia recomendar. Se
não funciona troque! O preço disso é o estreito vínculo entre o desapego e a célula narcísica.
Andamos assim construindo uma vida sem marcas, saboreando os rumos dos ventos. Agrada
fica. Até quando? Para sempre! O sempre está na volta da esquina, e com ele o fim.
Referências
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BAUMAN, Z. Vida Líquida, Zahar: Rio de Janeiro, 2009.
FREUD, S. Mas alla del Princípio del Prazer, Amorrortu Ediciones: Buenos Aires, 1976.
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HARVEY, D. Condição Pós-moderna, Edições Loyola, São Paulo: 1993.
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A HISTÓRIA DA LOUCURA: REFLEXÕES CLÍNICAS NA PERSPECTIVA DA
PSICANÁLISE
José Artur Molina
Departamento de Psicologia - Universidade Estadual de Maringá
[email protected]
Paixão e loucura: uma história do desatino
Na Idade Média a humanidade aprendeu “a arte” da exclusão com a temida lepra que
despedaçava os corpos. Horror, pânico, medo! Esses seres devem ser ilhados para evitar a
contaminação. As sementes dos manicômios estavam plantadas. A casa dos loucos é instituída
a partir da experiência com o vale da lepra, pelos empesteados de doenças venéreas. A
crucificação moral está em todas as partes. De modo que a casa de loucos é herdada da casa
de leprosos e dos venéreos.
Foucault insiste na loucura como núcleo essencial da experiência humana. Até mesmo
quando desperta a era da razão iluminada do século XVII. A loucura é interior a razão.
A animalidade escapou à domesticação pelos valores e pelos símbolos humanos; e
se ela agora fascina o homem com sua desordem, seu furor, sua riqueza de
monstruosas impossibilidades, é ela quem desvenda raiva obscura, a loucura estéril
que reside no coração dos homens (FOUCAULT, 2012, p. 20).
Na tradição do século XVI a loucura está habitada por duas realidades paralelas: a da
dramaticidade exposta pela obra de Bosch com suas imagens oníricas, trágicas, apocalípticas;
do outro lado o saber que a loucura encarna abraçada pela moral.
As figuras da visão cósmica e os movimentos da reflexão moral, o elemento trágico
e o elemento crítico irão doravante separar-se cada vez mais, abrindo, na unidade
profunda da loucura, um vazio que não mais será preenchido. (FOUCAULT, 2012,
p. 27).
A loucura encontra sua riqueza no campo das imagens onde tudo ou nada acontecerá.
Onde as verdades submergiram e as certezas floresceram. A literatura de Cervantes é um sinal
disso com seus monstruosos moinhos de vento. A trágica loucura do mundo é abandonada
pelo humanismo de Erasmo de Rotterdam. A loucura é considerada na iluminada trajetória do
discurso. E por mais que dela se espere o triunfo, as companheiras do homem como a avareza,
a inveja, a mesquinharia prevalecerão. Todos os seus vícios acobertados por uma serena e
calma aura de domínio.
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Esta dicotomia desaparecerá no século XVII. A razão prevalecerá como loucura, mas a
consciência trágica e cósmica da loucura a habitará para sempre.
A loucura torna-se uma forma relativa de razão ou, melhor, loucura e razão entram
numa relação eternamente reversível que faz com que toda loucura tenha sua razão
que a julga e controla, e toda razão sua loucura na qual ela encontra sua verdade
irrisória. Cada uma é a medida da outra, e nesse movimento de referência recíproca
elas se recusam, mas uma fundamenta a outra (FOUCAULT, 2012, p. 30).
Assim Foucault vai desenhando um cenário onde a loucura é a fiel companheira do
homem. Afinal como se pode viver com o horror da morte senão for por obra da loucura a
eternizar a vida e esquecer o seu fim? A loucura triunfa sobre a morte, mesmo morrendo.
“Não há razão forte que não tenha de arriscar-se à loucura a fim de chegar ao término de sua
obra” (FOUCAULT, 2012, p. 30).
Estava escrito que nada sobre o mundo não teria sucumbido aos desígnios da
loucura. A apaixonante aventura de Foucault no tema se revela nesta afirmação: “A loucura é
um momento difícil, porém essencial, na obra da razão; através dela, e mesmo em suas
aparentes vitórias, a razão se manifesta e triunfa. A loucura é para a razão, sua força viva e
secreta” (FOUCAULT, 2012, p. 35).
Teríamos, portanto, um cenário onde se revela uma loucura sábia, amiga das
alucinações da razão e a loucura louca que rejeita seus paradigmas e deságua no abismo.
No século XVII com a tradição clássica que encarna o pensamento de Descartes a
loucura será exilada dos corpos e mentes que podem fazer do pensamento sua bandeira
inconfundível. O pensamento pode enfrentar os desatinos. A lógica do século XVI onde razão
e loucura poderiam ser irmãs fundidas numa mesma realidade é proscrita no XVII. O mundo
havia se cansado de veleidades e a razão daria razão do ser. Era o fim de uma razão louca e de
uma loucura razoável. Mas uma lógica vai sendo desenhada: é imperativo a clausura da
loucura.
É crucial apontar que os insanos não estavam sozinhos nas casas de clausura. Em sua
arqueologia da alienação Foucault aponta para vários tipos associais que fizeram companhia
aos loucos.
Os doentes venéreos eram internados para “tratamento”: purgações, sangrias, banhos,
novas purgações, novas sangrias, e o sagrado sacramento da confissão. Uma vez limpos,
ganhava-se a liberdade. Não há como não pensar numa intervenção que contava com a
cumplicidade da medicina com a moral e preceitos clericais. Além desta população, os
hospitais contavam com a presença de sodomitas, homossexuais, degenerados que antes
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ganhavam a fogueira, no século XVII são agraciados com o internamento para que,
definitivamente, deixassem à lascívia para trás.
As famosas Petites-Maisons da rua Sèvres eram quase exclusivamente reservadas
aos loucos e doentes venéreos – e isto até fins do século XVIII. Este parentesco
entre as penas da loucura e a punição da devassidão não é um vestígio de arcaísmo
na consciência européia. Pelo contrário, ele se definiu no limiar do mundo moderno,
dado que foi o século XVII que praticamente o descobriu. Ao inventar, na geometria
imaginária de sua moral, o espaço do internamento, a época clássica acabava de
encontrar ao mesmo tempo uma pátria e um lugar de redenção comuns aos pecados
contra a carne e às faltas contra a razão. A loucura começa a avizinhar-se com o
pecado, e é talvez aí que se estabelecerá, por séculos, esse parentesco entre desatino
e a culpabilidade que o alienado experimenta hoje, como sendo um destino e que o
médico descobre como verdade da natureza. Nesse espaço factício criado
inteiramente em pleno século XVII constituíram-se alianças obscuras que cento e
tantos anos de psiquiatria dita “positiva” não conseguiram romper, alianças que se
estabeleceram pela primeira vez, bem recentemente, na época do racionalismo
(FOUCAULT, 2012, p. 87).
Todas estas mazelas estão em nome de um racionalismo que confundia a mão que cura
e aquela que pune. Foucault acredita que a psicopatologias abraçadas pela psiquiatria e pela
psicologia não se libertaram desse ranço. A “verdade da natureza” é o aval necessário para a
construção de um status de doença ao desatino. “Dia virá em que a profanação e toda sua
gestualidade trágica terá apenas o sentido patológico da obsessão” (FOUCAULT, 2012, p.
97). Trazer para uma posição de existência uma condenação moral regidas por um estatuto
reacionário. Desta forma a pré-história da psicopatologia é arrancada deste solo moral. Mas
continuemos a nomear os companheiros dos loucos no internamento.
Libertinos de todas as ordens também deveriam ser internados pela ousadia de divergir
do regramento social. Bêbados e outros equilibristas que desfiavam a ordem produtiva:
clausura! Doentes da carde e da alma!
Os suicidas quando fracassavam eram punidos com a morte. Mas com os novos
tempos foram asilados nos hospitais fechados para que pudessem recuperar o sonho de viver.
O suicídio é anexado ao campo da loucura.
Pensadores que ousavam propor novas formas de pensar o mundo, muitas vezes pouco
afetos à religião, eram considerados ameaçadores para o bem viver social. Desta forma
deveriam fazer companhia aos demais excluídos. O que se falava era sujeito à repressão. De
fato, os hospitais estavam cheios de blasfemadores. O pensamento diverso era aliado à
insanidade.
Os adivinhos, mágicos, ilusionistas, alquimistas e outros feiticeiros também deveriam
ser recolhidos nas casas de loucos.
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Penso também nas histéricas de Freud que condenadas ao silêncio mutilam seus
corpos para dar expressão à clausura de alma imposta por um mundo masculino déspota. Elas
também foram internadas. Muitas vezes no próprio ambiente doméstico sob clausura
conjugal. Excluídas de seu desejo.
Assim sendo a internação deve ser imposta aos desatinados: todos aqueles que são
capazes da subversão do desejo. Doentes venéreos, esotéricos, homossexuais, libertinos,
alcoólatras, pensadores, ateus, mulheres que querem ser livres e, claro, os loucos seria o grupo
de desatinados. “Há todo um aspecto, quase pedagógico, que faz da casa de internamento uma
espécie de casa de força para a verdade: aplicar uma coação moral tão rigorosa quanto
necessária para que a luz se torne inevitável” (...) (FOUCAULT, 2012, p. 99).
A intenção deliberada é exorcizar o desatino do desejo que habita toda a humanidade.
A razão deve circunscizar o coração. Todas as paixões devem ser controladas pela sobriedade
e espírito de sacrifício. Caso não seja possível a solução é a internação para esses “incautos”.
Anexando ao domínio do desatino, ao lado da loucura, as proibições sexuais, os
interditos religiosos, as liberdades do pensamento e do coração, o Classicismo
formava uma experiência moral do desatino que serve, no fundo, de solo para nosso
conhecimento “científico” da doença mental (FOUCAULT, 2012, p. 99).
Penso nas crianças medicadas para conter seu afã de viver, enlouquecidas que estão
por um mundo hiperativo. Penso nas escolas que não ensinam e as famílias que não educam,
demandando clausuras em medicações contra as paixões, massacrando a infância. Mais uma
vez falta coração.
Na era clássica o desatino não era caso para médicos. Com efeito, frequentemente,
quem decidia quem seria recluso eram os juízes por avaliação própria ou por indicações da
família ou vizinhos do desatinado. A medicina entrava para “compor”, mas a área das leis era
decisória. De modo que duas faces percorriam a experiência da loucura. A primeira a da
doença que mereceria o hospital e a outra a da ética jurídica que recomendava o internamento
para que não seja corrompida a paz social. Não se faziam distinções. “Internar alguém
dizendo que é um ‘furioso’, sem especificar se é doente ou criminoso, é um dos poderes que a
razão clássica atribui a si mesma, na experiência que teve da loucura” (FOUCAULT, 2012, p.
112).
Toda esta situação nos leva a pensar em severas conseqüências. Se formos analisar o
que de nossa compreensão dos nossos sistemas psi possam estar contaminados pela
experiência clássica da loucura. E não estamos falando de psiquiatria só, mas também da
psicologia que subsidia às práticas psicoterápicas. O que da razão clássica está escondida no
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bojo das boas intenções das agências de saúde mental. E em que ponto mora o maior perigo?
“(...) quando os séculos XVII e XVIII internam a loucura pela mesma razão que a devassidão
ou a libertinagem, o essencial não é que ela seja desconhecida como doença, mas que seja
percebida sob outra perspectiva” (FOUCAULT, 2012, p. 112).
O que do arsenal teórico das chamadas doenças mentais hoje, seria legítima inspiração
de uma época reacionária onde o médico e o policial se confundem? Onde tratamento e
confinamento se sobrepõem? E não digo que o confinamento seja apenas físico. Refiro-me ao
confinamento que os medicamentos podem levar e as psicoterapias que comandam a
subserviência de um ser humano aos códigos de um ditame de saúde mental que pode carregar
assepsias perversas. E digo mais, até que ponto o nome saúde não trás esse ranço perverso
para a área psi, implicando-a num desvairado processo de cura estrangeiro à natureza da
subjetividade.
Os primeiros hospitais para insanos foram fundados na Espanha no século XV. Os
tratamentos tinham, provavelmente, a influência árabe com a loucura. O oriente tratava seus
loucos, desde o século VII, com terapias musicais, danças, narrativas teatrais, enfim toda uma
série de recursos não vistos na Europa nos dois séculos seguintes. É surpreendente. De quem
será a culpa? A era clássica é jurídica e seu braço é policial. Não nos esqueçamos que o
jurídico não é laico. As mãos morais da igreja estiveram (ainda estão?) sempre presente sobre
os espíritos de seus súditos e não súditos.
O projeto do século XVII era excluir a loucura da experiência humana e colocá-la sob
a guarda de um não ser. A loucura seria um outro do qual o ser pensante se veria seguramente
protegido. Embora a própria razão jamais poderia negar a existência do desatino.
De um lado, a loucura existe em relação à razão ou, pelo menos, em relação aos
“outros” que, em sua generalidade anônima, encarregam-se de representá-la e
atribuir-lhe valor de exigência; por outro lado ela existe para a razão, na medida em
que surge ao olhar de uma consciência ideal que a percebe como diferença em
relação aos outros. A loucura tem uma dupla maneira de postar-se diante da razão:
ela está ao mesmo tempo do outro lado e sob seu olhar. Do outro lado: a loucura é
diferença imediata, negatividade pura, aquilo que se denuncia como não-ser (...)
(FOUCAULT, 2012, p. 184).
O século XVIII abraça para si a nosologia da loucura para que ela pudesse ser
identificada, com marcas e rostos. Mas, ao final, o que se encontrou foi a moral sob a sombra
da loucura. O que se procurava era mais justificar o internamento do que propriamente
almejar uma prática de cura. O século XIX não abdicará dos anseios nosográficos mas
ambicionará um enquadramento da loucura em termos sintomáticos e com nítida preocupação
com suas causas, origem do mal, tempo de permanência dos sintomas. O cérebro começa a
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ganhar protagonismo nas justificativas da loucura. Padrões morais, desta forma, poderiam ser
mascarados com a assepsia médico-biológica. A loucura não seria apenas um desvario da
alma, mas uma doença cerebral com todas as implicações sobre o resto do corpo.
De qualquer maneira, o trabalho de organização das doenças do espírito nunca é
feito ao nível da própria loucura. Ela não pode testemunhar em favor de sua própria
verdade. É necessário que intervenham, ou o julgamento moral, ou a análise das
causas físicas (...) para o pensamento clássico existe uma região onde a moral e a
mecânica, a liberdade e o corpo, a paixão e a patologia encontram ao mesmo tempo
sua unidade e sua medida” (FOUCAULT, 2012, p. 199).
As ambições classificatórias começam de forma bem embrionárias no final do século
XVII. A loucura foi classificada por Willis: com base no furor, na febre e na imaginação.
Assim sendo a Mania seria um furor sem febre. A Melancolia não padece nem de furor, nem
de febre. Só de uma tristeza impossível. E, por último, a Estupidez que é uma total
inadimplência com o que quer que seja de produtivo. Ausência de imaginação. Haslam divide
a loucura em dois grandes grupos: mania e melancolia.
Ao final do século XVIII categorias como movimento e sentimento são destacadas
numa definição inédita que é a doença de nervos. Pela primeira vez uma definição que é
arrancada da experiência terapêutica delineando as figuras intervenientes neste processo:
paciente e médico. “A explicação teórica se vê coincidir com uma dupla projeção: a do mal,
pelo doente, e a da supressão do mal, pelo médico. As doenças dos nervos autorizam as
cumplicidades da cura (FOUCAULT, 2012, p. 199). Modelo médico que também arranca de
uma história de subjugação. A psicanálise para o historiador francês também padeceria deste
mal.
A loucura como desatino desaparece e a doença mental domina triunfante. Seria
possível domesticar as paixões? Daqui a pouco falaremos da relação entre paixão e loucura.
Seguimos com a obsessão na determinação das causas da loucura.
Foucault faz referência aos estudos de Meckel que defendia que a loucura era o
resultado da circulação de um suco nervoso produzido no cérebro. A importância deste
estudo, ao lado de outros, é a determinação orgânica da loucura. “(...) o que faz do cérebro o
órgão mais próximo da alma” (FOUCAULT, 2012, p.220). Corpo e alma em franca união
indissolúvel, embora a anatomia da perturbação cerebral seja preservada, assim como a
originalidade dos males do espírito.
O fato é que a loucura deixa de ter relação com o mundo cósmico e ganha causas
próximas ou internas, o próprio cérebro, por exemplo. As causas distantes não perdem seu
lugar. A linguagem poderia ser sua marca.
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De qualquer forma, os loucos de Bethleem tem diferentes causas (1772 a 1787):
disposição hereditária, bebedeira, excesso de estudo, febres, seqüelas do parto,
obstrução das vísceras, contusões e fraturas, doenças venéreas, varíola (...); úlceras
demasiado rapidamente dessecadas, inquietação, pesar; amor, ciúme; excesso de
devoção e apego à seita dos metodistas; orgulho. (FOUCAULT APUD BLACK, P.
223)
Como vemos muitas causas eram responsáveis pela loucura tanto próximas quanto
distantes. Umas imprecisas e outras muito precisas, mas a questão está em que entre elas
habita a paixão. Ela seria a superfície de contato entre o corpo e a alma. Assim a loucura teria
como personagem principal a paixão. Ela seria sua condição de existência.
A paixão é inquieta, nunca serena. Implica em movimento e pode dissociar-se
facilmente do campo das idéias quando ganha velocidade exacerbada. O mundo em furor
poderá levantá-la e deixá-la no seu ambiente: o desvario.
As agitações imperceptíveis, provocadas frequentemente por um choque exterior
medíocre, acumulam-se, ampliam-se e acabam por explodir em convulsões
violentas. Lancisi já explicava que os nobres romanos frequentemente se viam
subjugados pelos vapores – recaídas histéricas, crises hipocondríacas – porque, na
vida cortesã que levavam, “seus espíritos, continuamente agitados entre o temor e a
esperança, nunca tem um momento de descanso. Para muitos médicos, a vida das
cidades, da corte, dos salões, leva à loucura em virtude dessa multiplicidade de
excitações adicionadas, prolongadas, que repercutem incessantemente sem nunca se
atenuarem. Mas existe nessa imagem, com a condição de que seja um pouco intensa,
e nos eventos que constituem sua versão orgânica, uma certa força que,
multiplicando-se, pode levar ao delírio, como se o movimento, ao invés de perder
sua força ao se comunicar, pudesse envolver outras forças em sua esteira e dessas
novas cumplicidades tirar um vigor suplementar” (FOUCAULT, 2012, p.230).
Não há como deixar de pensar na contigüidade deste cenário com a
contemporaneidade. A avalanche comunicativa que convoca almas e corpos a digeri-las pelo
sim e pelo não. O resultado é a angústia indigesta. A velocidade da avalanche atropela o
sujeito que, naturalmente, se divorcia da palavra e se entrega ao movimento da paixão e
abraça o fenômeno. A loucura é a mais impressionante paixão humana. Ela conta com um
cenário, personagens e enredo. No meio do espetáculo perde-se o roteiro e no seio da amnésia
surge o delírio em seu argumento narcísico. A paixão é ruptura com a causalidade. Assim
perde seu laço com uma história. De modo que algo se pode dizer sobre a loucura. Mas a
maior parte dela é convulsão.
Uma dualidade está montada no cenário da loucura. Uma via do sentido, da
representação; e a outra a da atuação, movida pela paixão.
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A loucura, que encontra sua possibilidade primeira no fato da paixão e no
desdobramento dessa dupla causalidade que, partindo da própria paixão, se irradia
simultaneamente na direção do corpo e da alma, a loucura é ao mesmo tempo paixão
suspensa, ruptura da causalidade, liberação dos elementos dessa unidade. Ela
participa ao mesmo tempo da necessidade da paixão e da anarquia daquele que,
posto em movimento por essa paixão, move-se bem adiante dela, chegando a
contestar tudo o que ela pressupõe. Ela acaba por ser um movimento tão violento
dos nervos e dos músculos, que nada, no curso das imagens, das idéias ou das
vontades, parece corresponder-lhe: é o caso da mania, quando bruscamente se
intensifica até às convulsões ou quando degenera definitivamente em furor contínuo.
Inversamente, ela pode, no repouso ou na inércia do corpo, fazer surgir e depois
sustentar uma agitação da alma, sem pausas ou apaziguamento, tal como acontece na
melancolia, onde os objetos exteriores não produzem sobre o espírito do doente a
mesma impressão que sobre o de um homem sadio” (FOUCAULT, 2012, pg 231).
Representação e angústia; energia libidinal livre e móvel; pulsão de vida e morte;
inconsciente e consciente; atuação e discernimento; mania e melancolia; histeria e obsessões.
Estas são algumas das dualidades sempre presentes na psicanálise. Poderíamos extrair um
fenômeno ou evento que alinhavasse todas elas? Antes disso é preciso sobre às críticas de
Foucault à psicanálise.
Paixão e pulsão
A Psicanálise tem sofrido com os solavancos destes tempos. São críticas de todos os
lados. E para começar a pensá-las é preciso afirmar com veemência que não existe unidade na
escritura freudiana. Se isso for uma crítica, eu a sub-escrevo. Entretanto não se pode condenar
uma obra que ao longo de sua escritura foi assumindo formas diferentes, assim como
ocupando espaços diversos. Nesta linha podemos pensar a psicanálise enquanto técnica, ou
sua metapsicologia, ou ainda, se preferirem seu edifício institucional. Creio que muitas das
críticas vem de lugares diferentes sem que um lugar tenha que, necessariamente, que condenar
o outro ao mesmo veredicto. Não discernir estas paisagens nos transformaria em colegiais
desatentos a abraçar causas e cartazes. Dito isto, vamos aqui apenas tocar em alguns pontos
que são necessários para pensar a psicanálise frente à contemporaneidade.
O espaço do tratamento é inovador uma vez que busca a verdade do desejo no mundo
da linguagem. O analisando seria portador de um discurso sob o qual habita uma cadeia
significantes e as relações entre eles produziria um sentido novo. Assim sendo, Foucault é
injusto quando coloca a relação analítica num asilo simbólico. O saber é produzido no seio da
linguagem. O tratamento calcado na associação livre, na atenção flutuante, no livre pensar é
coerente com a teoria do inconsciente.
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As bases da psicopatologia freudiana merece muita atenção. Édipo é o principal
mentor de sua organização e propositura. Aqui começamos a ter problemas já que a
predominância fálica neste lugar é fruto dos ventos de um verão no século XIX e não podem
ganhar proposições universalizantes. A família do século XIX é o palco sobre o qual o enredo
edípico se realizaria. Hoje sabemos que desta família sobraram apenas as lembranças dos
anciãos. A lei sob a responsabilidade de Édipo claudica e não organiza nada. Desta forma
como podemos sobre uma subjetividade órfã de pai ou, melhor, andrógina seguir parâmetros
sobre do velho regime. Seguindo a mesma lógica devemos assumir que a proposta freudiana
da subjetividade feminina é uma catástrofe. Um conjunto desmedido de conceitos decadentes
que levou à escravidão subjetiva o universo feminino. Apesar disso, em seu último texto
“Sobre a feminilidade” (1932), Freud reconhece que não havia chegado a decifrar feminino e
que talvez a ciência um dia pudesse realizar a tarefa ou (quem sabe?) os artistas pudessem ter
mais sucesso do que ele.
Freud é um homem que teve a sensibilidade de ouvir aquelas mulheres e pensar que
padeciam de uma clausura masculina. Afogadas na virilidade e morrendo de inanição por seus
desejos inconclusos.
A psicanálise bebe do mesmo veneno que a medicina vienense também provara na
derrocada da racionalidade do saber médico com respeito às histerias. É como se
Freud tivesse a intenção de trazer a psicanálise, de origem pós-moderna, para o
projeto moderno. Por esta razão a psicanálise se transforma num Judas ou numa
Geni. É alvo de críticas de todos os lados. Dos iluministas aos vanguardistas das
filosofias pops. E as analises são tão apaixonadas que os discípulos destas vozes
discordantes saem às ruas a malhar o Judas até que se reduza as cinzas. E desta
experiência (psicanalítica) parece não ter sobrado nada. Talvez estejamos vivendo
hoje no olho do furacão pós-moderno que indica um despojamento de todos os
saberes e um flutuar em provisoriedades (MOLINA, 2011, p. 12).
Mas não podemos sair por aí despidos de tudo que foi construído sob a alegação de
que ficou velho. Para salvar dedos: a grande aposta clínica de Freud é combater o escuro
vazio da “dessubjetivação” através da linguagem. Tudo isso parece tão promissor. E de fato é,
mas, infelizmente, o instrumento simbólico não chegará a todos os rincões da esplanada
psíquica. Há um lugar onde habita a pulsão e sobre ela fixaremos nosso olhar. É um lugar
mítico: fronteira entre o soma e o psíquico. Mas também é um lugar que atesta sua existência
na angustia. Justamente por ser um afeto destituído de história. Porém, neste lugar mora a
alteridade que pode oxigenar ambientes decrépitos e mal cheirosos.
Bibliografia
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25
CARACTERÍSTICAS SOCIODEMOGRÁFICAS DOS USUÁRIOS DE DOIS CAPSAD DE UM MUNICÍPIO DE RIO GRANDE DO NORTE
Patricia Elizabeth Sanz de Alvarez
João Carlos Alchieri
Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN
[email protected]
(Coordenação de Aperfeiçoamento do Pessoal do Ensino Superior/CAPES Brasil)
INTRODUÇÃO
Atualmente, no Brasil, o modelo de atenção para pessoas com sofrimento mental,
transtorno mental e/ou consumo de substâncias psicoativas é um modelo de intervenção
psicossocial oferecido pelo Sistema Único de Saúde (SUS). Destaca-se que o novo
encaminhamento do modelo de atenção e as mudanças na perspectiva do cuidado em Saúde
Mental se relacionam ao movimento sanitarista dos anos 70, ao processo de reforma
psiquiátrica e a crise do modelo de atenção hospitalocêntrico no contexto da recuperação da
vida democrática do país e da reivindicação dos direitos dos pacientes (BRASIL, 2005).
O modelo de atenção psicossocial se apoia na lei 10.216/2001, que dispõe sobre a
proteção dos direitos das pessoas com transtorno mental e, ao reorientar o modelo assistencial
de saúde mental, oferece uma forma de tratamento em rede, que envolve o trabalho conjunto
de instituições, de base comunitária e territorial, nos três níveis de atenção à saúde para esses
pacientes. No nível primário, embora a Atenção Primária à Saúde (APS) não inclua
psiquiatras ou psicólogos em seu quadro profissional, recebe dos Núcleos de Apoio a Saúde
da Família (NASF) apoio matricial especializado em saúde mental. A APS com o apoio dos
NASF oferece suporte aos Consultórios de Rua (CR), formado por equipes de profissionais
que prestam cuidados de saúde mental para os moradores de rua. No nível secundário de
saúde, em 2002, as portarias do n° 336/GM normatiza a implantação e operacionalização dos
Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) e no mesmo ano, a portaria 816/GM regulamenta o
atendimento das pessoas que abusam de drogas e álcool em Centros de Atenção Psicossocial
(CAPS-AD).
A política do Ministério da Saúde para a atenção integral dos usuários de álcool e
outras drogas, proclama que os cuidados devem ser oferecidos em todos os níveis da atenção
à saúde, privilegiando o atendimento a través dos centros de atenção especializadas –CAPSem articulação com outros dispositivos da Rede de Atenção Psicossocial –RAPS-. Em ambos
26
os casos se oferece cuidados diários e atendimento pessoalizado em um contexto que promova
a vida (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2002).
Por serem considerados serviços substitutivos do modelo manicomial, são de
responsabilidade dos CAPS a produção e implantação de novos dispositivos de cuidados, com
uma equipe interdisciplinar de profissionais. Nessa perspectiva procuram fornecer aos
usuários um tratamento integral e abrangente que, além de melhorar a psicopatologia, e na
medida do possível, lhes permita adquirir autoconfiança, aumentar a autoestima e adquirir
autonomia para gerenciar seu tratamento e construir seu projeto da vida, visando à inclusão
social (GOLDBERG, 1994). Apesar de ser considerada uma conquista social há indícios de
falhas e dificuldades destes serviços para consolidar uma prática eficiente que ajude aos
pacientes a viver na comunidade (BANDEIRA, PITTA E MERCIER,1999).
A fim de fornecer parâmetros para avaliar a eficácia dos serviços substitutivos,
organizações internacionais, como a Organização Mundial de Saúde (OMS) e as autoridades
locais, incluindo o Ministério da Saúde, propuseram que avaliações permanentes sejam
realizadas. Louzada (2003) afirma que é possível melhorar os serviços de saúde mental tendo
uma abordagem epidemiológica, que ultrapasse a estrita aplicação de técnicas e trabalhe
criando estratégias de promoção da saúde e humanização do atendimento, abordando de
forma abrangente as questões sociais e as relações interpessoais, envolvendo os usuários
desses serviços com seus tratamentos.
Pelas razões expostas e, atentos à necessidade de realizar pesquisas sobre as
particularidades dos CAPS e à caracterização do perfil epidemiológico dos usuários o
presente trabalho expõe resultados de uma pesquisa de doutorado “Adesão ao tratamento em
Saúde Mental: um estudo sobre o perfil epidemiológico, as percepções e as expectativas dos
usuários adultos atendidos nos CAPS de um município no Rio Grande do Norte”.
Especificamente, o objetivo é apresentar resultados sobre o perfil sociodemográfico dos
usuários de dois CAPS-AD, implantados em diferentes distritos sanitários da cidade. O estudo
foi autorizado pela Secretaria Municipal de Saúde da cidade, apreciado pelo Comitê de Ética
em Pesquisa da Universidade Federal de Rio Grande do Norte e aprovado sob Parecer
510.825/14.
METODOLOGIA
A fase de pesquisa sócio-demográfica e epidemiológica corresponde ao modelo
quantitativo descritivo de corte transversal com levantamento de dados secundários. O campo
27
geral de pesquisa abrange quatro (4) CAPS destinados ao cuidado de pacientes adultos, dois
(2) na modalidade Transtorno Mental e dois (2) na modalidade Álcool e Drogas-AD, os quais
também se analisam individualmente. Para garantir a representatividade de cada um dos
CAPS na amostra total foi escolhido o calculo amostral estratificado. Neste tipo de
amostragem, que permite que todos os estratos estejam adequadamente representados na
amostra total e que cada estrato seja analisado de modo independente (1,2,3 e 4), se aplicou a
amostragem aleatória simples para compor a amostra de prontuários dos pacientes ativos no
momento da pesquisa. A distribuição da amostra em função dos diferentes estratos (ver
Tabela 1) foi realizada de acordo ao tamanho da população de cada um deles.
Estrato - CAPS
Prontuarios Ativos
Amostra
1 – CAPS III TM
2- CAPS II TM
3 - CAPS III AD
4- CAPS II AD
Total
108
62
142
80
392
54
32
74
42
197
Tabela 1: Estratos, prontuários ativos e amostra.
A coleta de dados foi realizada por meio de consulta aos prontuários, utilizando como
instrumento um formulário estruturado, baseado nas variáveis a ser investigadas. Cabe frisar
que neste recorte se apresentam os resultados dos estratos 3 e 4, que correspondem aos CAPSAD. Do total de prontuários ativos nos estratos 3 (N=142) e 4 (N= 80) foram selecionadas
n=74 e n=42 respectivamente. Os dados colhidos foram tabelados e o processo estadístico foi
realizado no programa SAS para Windows.
Descrição dos contextos pesquisados
O CAPS-AD é um serviço de atenção psicossocial que oferece cuidados diariamente a
pacientes com transtornos decorrentes do uso, abuso e dependência de substâncias
psicoativas, permitindo o planejamento terapêutico dentro de uma perspectiva individualizada
de evolução contínua. As intervenções oferecidas nestes serviços incluem o atendimento
individual e grupal, oficinas terapêuticas e visitas domiciliares e práticas comunitárias de
reinserção social, que são realizadas pelos profissionais que formam parte do quadro: médico
clínico e psiquiatra, psicólogo, assistente social, farmacêutico, nutricionista, enfermeiro,
educador físico e técnico de enfermagem.
O denominado Estrato 3 é um CAPS-AD III que oferece 24 horas de atendimento,
inclusive aos finais de semana e dispõe de sete leitos para o repouso e desintoxicação
ambulatorial de usuários que necessitam deste tipo de cuidado. Já o Estrato 4 corresponde a
um CAPS-AD II que funciona de segunda a sexta-feira, das 8 às 18 horas.
28
RESULTADOS
Observou-se prevalência de usuários do sexo masculino em ambos os estratos (3 -92%
e 4 85%). Quanto a variável estado civil se registraram resultados prevalentes de usuários
solteiros em ambos os estratos (3 – 47% e 4- 38%). Resultado semelhante entre ambos os
estratos também foi verificado na variável faixa etária (3- 35% e 4- 54%) predominando
usuários entre 41 e 50 anos. Na variável religião, a maioria não foi registrada no Estrato 3 e
no Estrato 4 a maioria dos usuários são católicos (ver Tabela 2).
Tabela 2: Características sociodemográficas variáveis sexo, estado civil, faixa etária e religião (amostra
completa e estratos 3 e 4).
O nível de escolaridade e situação socioeconômica dos usuários tem sua representação
descrita na Tabela 3. Sobre a situação de trabalho o estudo revelou que a maioria (50%) dos
usuários do Estrato 3 não trabalham e o 54% dos usuários do Estrato 4 se encontram sim
inseridos no mercado de trabalho seja formal ou informal. Quanto a salário, somente o 4% dos
prontuários do Estrato 3 apresentaram registros dessa variável, na sua maioria (3%) provindo
do beneficio de Auxilio Doença. Já no Estrato 4 a maioria dos usuários (32%) não recebem
salário de nenhuma natureza e o 14% recebem salário mínimo. Revelou-se, ainda, durante a
pesquisa que o 36% dos usuários do Estrato 3 completaram o Ensino Médio em tanto que o
54% dos usuários do Estrato 4 alcançou mais baixo nível de escolaridade –Ensino
Fundamental Completo.
29
Tabela 3: Características sociodemográficas variáveis escolaridade, trabalho e salário (amostra completa
e estratos 3 e 4)
Quanto à profissão ou ocupação que exercem os usuários, de acordo ao ilustrado na
Tabela 3, a maioria dos usuários (23%) de ambos os estratos realiza atividades na área da
construção civil. Entretanto, no Estrato 4 não se registraram casos de usuários inseridos no
contexto educativo e sim se registra um índice significativo de usuários (18%) que realizam
atividades de limpeza na via publica.
Tabela 3: Características sociodemográficas variável profissão/ocupação amostra completa e estratos 3 e 4.
DISCUSSÃO
30
Ao analisar os dados referentes à caracterização sociodemográfica dos usuários
atendidos nos Estratos 3 e 4, percebeu-se a coincidência nos resultados de ambos os Estratos
nas variáveis sexo, idade e estado civil. Os resultados foram semelhantes a diversos estudos
realizados em municípios de outros estados, no que diz respeito às variáveis de sexo
masculino, faixa etária de 40 a 49 anos e estado civil solteiro (PEREIRA et al., 2012;
MONTEIRO et al., 2011). Embora com resultados coincidentes na prevalência do público de
sexo masculino em CAPS-AD, alguns autores não informam resultados sobre outras variáveis
sociodemográficas (FARIA; SCHENEIDER, 2009; SPOHR; LEITÃO; SCHENEIDER,
2006). O estudo realizado por Quinderé e Tofoli (2005/2007), se bem obteve resultados
semelhantes aos observados aqui quanto ao sexo masculino, percebem-se diferenças na faixa
etária menor (20-39) e não apresenta dados sobre o estado civil. Os resultados do estudo de
Sousa, Silva e Moura (2012) também coincidem no sexo masculino, mas, a variável faixa
etária (>50) não poderia ser comparada por ser considerado critério de inclusão no seu
estúdio.
Sobre o predomínio do sexo masculino, alguns autores afirmam que historicamente os
problemas de consumo abusivo de álcool e drogas são mais comuns entre os homens
(SPOHR; LEITÃO; SCHENEIDER, 2006. P. 231). Entretanto, o índice menor na prevalência
do sexo feminino, não deveria associasse a uma demanda menor, senão que poderia indicar
que as mulheres sentem vergonha da doença e não procuram ou bem se afastam do tratamento
(Rosetti e Santos, 2006) situação que poderia constituir um viés epidemiológico (FARIA;
SCHENEIDER, 2009). Quanto a faixa etária dos usuários, embora se percebam diferenças
com outros estudos foi possível verificar a coincidência dos nossos resultados com a
literatura, sobre encontrar se em plena idade produtiva (40-49), em sendo que o afastamento
das suas atividades laborais caracterizaria um impacto na renda familiar.
Observaram-se discrepâncias nas prevalências dos Estratos 3 e 4, sendo que o 36% dos
usuários do Estrato 3 alcançou o nível de Ensino Médio Completo foi verificado que a
maioria dos usuários do Estrato 4 (54%) apenas alcançou a completar o Ensino Fundamental.
Ressalta-se que os resultados de outros estudos corroboram os resultados do Estrato 4 (Pereira
et al.,2012; Santos et al., 2013; Quinderé e Tófoli, 2005/2007; Monteiro et al., 2011; Sousa,
Silva e Moura, 2012) e, contrariamente, diferem dos resultados do Estrato 3 no qual se
registra prevalência de usuários com Ensino Médio Completo. A baixa escolaridade é
relacionada por alguns autores o abuso de substâncias com (Miranda et al., 2006; Sousa, Silva
e Moura, 2012) e outros autores estabelecem uma relação entre a baixa escolaridade e a
ocupação exercida (PEREIRA, et al., 2012). O fato da maioria dos estudos ter sido realizada
31
em municípios de estados do Nordeste, região que apresenta os índices mais altos de pobreza
relativa e absoluta do Brasil poderia estar associada aos resultados da baixa escolaridade.
Idêntica hipótese poderia ser considerada em nosso estudo, atribuindo as diferenças
encontradas no grau de escolaridade dos usuários dos Estratos 3 e 4 aos bairros mais ou
menos abastados onde eles se localizam. Chama a atenção que no Estrato 3, o qual oferece
atendimento aos moradores de bairros que concentram as maiores rendas médias do
município, se registre maior nível de escolaridade -Ensino Médio Completo-. Analise
semelhante pode ser aplicada no mesmo estrato aos resultados da variável profissão/ocupação,
na qual se verifica a presença de categorias que requerem de um maior grau de escolaridade
para serem realizados, caso segurança, hotelaria e informática.
Também foram verificados resultados discrepantes entre os Estratos 3 e 4 na variável
inserção no mercado de trabalho. Os registros revelaram que o 50% dos usuários do Estrato 3
não trabalham e o 54% do Estrato 3 exercem sim algum tipo de trabalho remunerado, seja ele
formal ou informal, o que poderia sugerir que os usuários do Estrato 3 contam com o apoio
econômico de familiares para sua manutenção. O Estrato 4 encontra-se localizado no maior
distrito sanitário do município, tanto em extensão territorial, quanto em população,
predominantemente de baixa renda. Podemos inferir que essas características podem justificar
que a maioria (54%) dos usuários do Estrato 4 precisem manter-se inseridos no mercado de
trabalho para garantir sua subsistência. Resultados semelhantes foram verificados por outros
autores. Concordamos com eles ao afirmar que índices elevados de usuários de CAPS-AD
inseridos no mercado de trabalho ajudam a desconstruir o estigma de que usuário de álcool e
outras drogas é um ser improdutivo, incapaz de poder realizar atividades, um ser à margem da
sociedade. São indivíduos que estão ou que podem ser reinseridos no mercado de trabalho
(QUINDERÉ; TÓFOLI, 2005/2007 p.64).
Cabe destacar que nem sempre a inserção no mercado de trabalho vai da mão de uma
melhor qualidade de vida. Quanto à profissão ou ocupação que exercem os usuários, embora a
maioria dos usuários (23%) de ambos os estratos realize atividades na área da construção
civil, verificamos que no Estrato 4 não se registraram casos de usuários inseridos no contexto
educativo. Contrariamente, o que se registra é um índice significativo de usuários (18%) que
realizam atividades de limpeza na via publica. Muitos trabalhadores têm relatado que o abuso
de álcool e outras drogas os ajudavam a suportar as péssimas condições laborais exigidas
nesse tipo de trabalhos (ROCHA, 2007).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
32
Os resultados obtidos permitiram o traçado de um perfil sócio-demográfico dos
usuários de ambos os serviços e, ainda, permitiram identificar discrepâncias relevantes dentre
eles. A divergência nos resultados de ambos os Estratos na variável escolaridade, inserção no
mercado de trabalho e profissão/ocupação podem caracterizar as diversas situações associadas
à desigualdade social presentes nas duas regiões do município onde se encontram localizados.
O estudo possibilitou o conhecimento dos usuários atendidos em ambos os serviços,
esperamos que estes resultados permitam apontar estratégias de trabalho mais condizentes
com a realidade e políticas mais eficazes na prevenção do uso abusivo de substâncias
psicoativas, bem como na assistência dessa clientela.
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34
A PRODUÇÃO DO CUIDADO E AS ESPECIFICIDADES NO CAMPO DE ÁLCOOL
E OUTRAS DROGAS: O RELATO DE UMA EXPERIÊNCIA EM UM CENTRO DE
ATENÇÃO PSICOSSOCIAL
Carolina Galvão De Oliveira
Núcleo de Lógicas Institucionais e Coletivas do Programa de Pós-Graduação em Psicologia
Social da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
São Paulo- SP
[email protected]
O Cuidado como conjunto de repertórios
Falar sobre o cuidado no campo da saúde pode nos revelar um uso naturalizado do
termo, ao invés de uma apreensão de seu sentido. Tal naturalização pode ser encontrada no
uso de outros termos no campo da saúde, como é o caso da Integralidade e da própria noção
de saúde. Tais palavras “grávidas” carregam em si mais de um significado, ou seja, são
polissêmicas, não compreendidas e utilizadas por todos da mesma maneira.
Nesse sentido, não há a pretensão aqui de esmiuçar as infinitas aplicações para a
palavra cuidado, pois, considerando ser impossível a apreensão total de seu sentido, será mais
interessante percorrer alguns caminhos para compreendê-la como um conjunto de repertórios
linguísticos que se traduzem também em ações e práticas. Proponho adentrarmos na
polissemia do termo cuidado nos campos da saúde e seus desdobramentos na articulação com
as Políticas de Saúde voltadas para usuários de álcool e outras drogas.
Em latim, de onde se deriva a língua portuguesa, cuidado significa cura, utilizada no
contexto das relações humanas, como o amor e a amizade (BOFF, 2005) com um sentido de
preocupação por outra pessoa ou objeto ou atitude de inquietação com relação ao outro. O
autor trabalha com a ideia de cuidado essencial, ou seja, de cuidado como essência e
experiência natural a todos os seres humanos. Já na etimologia anglo-saxã, cuidado também
traz em seu significado a preocupação com o outro, porém no sentido de se tomar uma
providência ou responsabilizar-se (care). Ambas as derivações parecem influenciar os
sentidos de cuidado que serão discutidos neste trabalho.
Ayres (2005), a partir da Fábula de Higino, trabalhada por Heidegger em Ser e Tempo
propõe tratarmos o cuidado não como algo essencial ao ser humano, mas como produto de um
trabalho de interação, que envolve movimento, projeto, desejo e responsabilidade.
O Cuidado em Saúde
35
O conceito de saúde também é variado em diferentes culturas e contextos. Segundo a
Organização Mundial de Saúde, por exemplo, Saúde significa um estado de completo bemestar físico e não apenas a ausência de sintomas e enfermidades. Tal definição, um tanto
simplificada, ao prever um bem-estar completo, se apresenta bastante utópica.
No Brasil, foi após a Reforma sanitária e a consolidação do SUS, que houve um
processo de redefinição do conceito de saúde, caracterizando-a não apenas como um estado,
mas como um processo atrelado a modos de existência, produções de subjetividades e
questões sócio-político-econômicas (CARVALHO, 2010). É importante trabalharmos o tema
do cuidado em saúde atentando aos acontecimentos que na história, marcaram transformações
de suas práticas e discursos.
Herdeira do Iluminismo, a medicina que se estruturou na idade moderna, buscou a
racionalidade e a objetividade. Os pacientes, acometidos por um sintoma ou enfermidade
eram afastados de sua própria doença, sendo considerados apenas como corpos que
carregavam sinais e marcas de um mal-estar. O olhar, a inclinação, a clínica que surgia
naquele momento separava totalmente sujeito e doença, de modo que para se melhor entender
e classificar um conjunto de sintomas era necessário afastar-se ao máximo do paciente em sua
dimensão histórica e social. Este paciente, apassivado, nada poderia ter a dizer sobre sua
doença, além de apontar ao médico onde lhe dói. Isso, porque essa clínica que nasce a partir
do século XIX estrutura-se como um olhar ancorado na anatomia patológica, na análise
objetiva das informações (FOUCAULT, 1977; CAMPOS, 2005).
A Psicanálise elaborada por Freud no início do século XX propõe outra relação entre
médico e paciente, ao privilegiar a escuta e não somente o olhar, colocando como centro dessa
relação clínica, a fala de seus pacientes.
Ambas as dimensões da clínica, olhar e escuta exercidas de maneira cindida, reduzem
a experiência da saúde ou do adoecimento. Por isso a ampliação de uma clínica depende de
reposicionarmos essas duas posições a entrarem em contato. (CAMPOS, 2005).
Para Mehry (1998), o cuidado é uma dimensão da relação entre o trabalhador da saúde
e o paciente. O cuidado se põe em ato na relação transformando-se em trabalho vivo e
produzindo saúde, aqui entendido de maneira ampliada como produção de autonomia. Dessa
forma, quanto mais distante a relação entre o trabalhador e o usuário de um serviço, menos
cuidado se produz, menos saúde, entendida aqui como autonomia. O autor enfatiza que o
trabalho vivo em ato não se refere a procedimentos ou tecnologias duras, mas sim, a um
posicionamento do profissional na relação com o paciente, na atitude da escuta e do acolher.
36
São tecnologias leves, possíveis de serem praticadas por todos os núcleos profissionais em
todos os níveis de relação.
Arendt e Moraes (2013) discutiram as contribuições da médica e filósofa holandesa
Ane Marie Mol para a Psicologia Social. A autora, ao pesquisar sobre as práticas de saúde e
intervenções
assistenciais
acompanhando
pacientes
envolvidos
em
tratamento
da
arteriosclerose e da diabetes formulou suas ideias sobre a lógica do cuidado e a lógica da
escolha. Segundo a autora os processos de adoecimento e saúde tem múltiplas determinações
e são produzidos não apenas na relação entre as pessoas, mas também entre as coisas e objetos
do mundo que fazem parte da vida do sujeito. Na lógica do cuidado, o trabalhador de saúde
entende que um sujeito que demanda por cuidado em saúde, pode não estar em condições de
fazer certas escolhas, necessitando de uma rede que o ampare em decisões e na transmissão de
informações. Já a lógica da escolha compreende que o paciente é um consumidor, que deve
responsabilizar-se inteiramente já que pode escolher o que consumir.
A Política Nacional de Humanização, que norteia as práticas assistenciais e de gestão
do Sistema Único de Saúde, trabalha a dimensão do cuidado em saúde na perspectiva da
clinica ampliada (CAMPOS, 2005) na qual uma equipe com profissionais de diversas áreas
pode promover um olhar transversal sobre o sujeito em sofrimento, que ao demandar cuidados
de saúde, necessita de tecnologias duras e procedimentos específicos, mas que também possui
uma história, desejos e que pode falar sobre si.
Cuidado em Saúde e Políticas de álcool e outras drogas
O uso de substâncias passou a ser considerado um problema social a partir do século
XX, sendo que no Brasil as primeiras intervenções do poder público se deram no âmbito da
justiça (CARVALHO, 2011), sob a justificativa de reforçar a segurança pública. Até a década
de 70 o governo brasileiro estava mais interessado em controlar o comercio de drogas ilícitas
do que na criação de centros de tratamento, por isso nesse período, entidades independentes se
organizaram nesse trabalho, como a Liga Brasileira de Higiene Mental e a Liga Antialcoólica
de São Paulo de do Rio Grande do Sul.
A partir da década de 70, houve um processo de incorporação da medicina e da
psiquiatria principalmente nesse campo que era predominantemente da justiça e a Lei de
Entorpecentes de 76 marca essa transição e situa o usuário de drogas numa esfera da justiça e
da saúde, sendo reconhecidas as necessidades de saúde para essa população ao mesmo tempo
em que estavam criminalizados por uma política proibicionista e repressora (período da
37
ditadura no país). Diante dessa configuração, o usuário de drogas era indivíduo perigoso e
ameaça à sociedade, cabendo à justiça e à psiquiatria, com o aval da sociedade civil, julgar
sobre seus destinos em prisão ou hospital psiquiátrico. (CARVALHO, 2011)
A problemática deste campo híbrido entre saúde e justiça nas sociedades ocidentais
surge na década de XIX com a necessidade do aparato jurídico da época em julgar pessoas
que haviam cometido crimes hediondos e sem causa aparente, porém sem sinais óbvios de
loucura em forma de delírio. Encomenda-se, portanto a perícia médica, que atestará sobre as
responsabilidades e condições do réu em cumprir sua pena em uma prisão, ou seguir o
tratamento em regime de internação em hospital fechado e por tempo indeterminado.
(CASTEL, 1978; FOUCAULT, 2006).
No Brasil, o fim do regime ditatorial deu início a um processo de democratização e
nesse contexto os movimentos da Reforma Sanitária e da Reforma Psiquiátrica reformularam
uma política pública de saúde com princípios de acesso universal e igualitário. No entanto a
Lei de Entorpecentes ainda se manteve.
Para Passos e Souza (2011), foi a Política de Redução de Danos que deu visibilidade
para a problemática do uso de substâncias psicoativas no âmbito da saúde pública. Em seus
primeiros programas no final dos anos oitenta, verificou-se que a maior parte dos sujeitos
contaminados pelo vírus HIV havia contraído a doença através do compartilhamento de
seringas durante uso de drogas. Os autores percorrem pelas linhas de Foucault, desenhando os
processos de articulação entre a criminologia, a psiquiatria e a moral religiosa cristã na
construção de modos de tratamento voltados a essa população, tendo como foco o paradigma
da abstinência e a concepção do prazer como pecado.
Mesmo com mudanças do sistema público de saúde, a assistência e o cuidado prestado
aos usuários de drogas no Brasil ainda são bastante diversificadas e a abstinência e o
isolamento do usuário como foco do tratamento, ainda é um modelo bastante procurado, numa
abordagem do problema que recorta o sujeito em suas dimensões desejantes e históricas,
tratando-o como um depositário da doença e não parte de um processo ou produto de uma
sociedade de consumo.
Atualmente os CAPS álcool e outras drogas articulados a outros equipamentos de
saúde, constituem uma possível rede de cuidados no âmbito do Sistema único de Saúde. A
ampliação dessa rede, entretanto, por si só não garante mudanças na perspectiva da clínica,
com relação ao cuidado a essa população, pois é no encontro entre trabalhador e usuário, no
trabalho vivo em ato é que se pode privilegiar o sujeito em sofrimento e reconhece-lo nos
processos de produção de sua saúde e na co-gestão de seu tratamento.
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O Cuidado no CAPS - Centro de Atenção Psicossocial
Joaquim é um sujeito calado, franzino e discreto. Em um local como um CAPS,
sempre cheio de gente e barulhento, muitas vezes não se percebe Joaquim por ali. Ele prepara
seu próprio cigarro e fuma bastante, sentado de cócoras ou deitado no chão, mesmo quando há
cadeiras vazias ou um sofá inteirinho disponível, como se preferisse o piso frio e duro,
podendo até adormecer ali por horas. Ao despertar, prepara novamente seu cigarro, fuma e sai
andando. Anda muito, logo sai pelo portão e como caminha de chinelos pelas ruas, ao retornar
depois de um dia inteiro às vezes seus pés estão machucados. Como é muito quieto e
reservado, é preciso ver Joaquim, olhar para seu corpo para notar seus machucados e outras
marcas de seu passeio, como os olhos vidrados do efeito das drogas. Olhando para as marcas
no corpo de Joaquim, tentamos decifrar por onde passou, se encontrou outras pessoas, se
andou por muito tempo ou se conseguiu uma carona do motorista de ônibus, se tomou banho
em algum lugar, se comeu em outro e assim conhecer melhor seus itinerários e encontros.
O aspecto do uso de drogas, no caso de Joaquim, preocupa bastante a equipe do
CAPS, mais do que qualquer outra questão, pois sempre foi usuário de maconha, mas no
último ano começou a usar crack e desde então tem emagrecido bastante e voltado de suas
andanças às vezes descalço e andando com dificuldade. É certo dizer que antes do uso do
crack, não havia muitas preocupações para com Joaquim por parte da equipe, já que este
estava ali em tratamento há dez anos e sempre se portava da mesma maneira: saía de manhã
cedo da casa de sua mãe, ia até o CAPS, passava o dia fumando bastante e andando pelas
ruas, raramente participava de atividades propostas dentro do serviço e tinha uma namorada
que também frequentava o tratamento com quem passava bastante tempo junto. Esta rotina
“sempre igual” (1), de certa forma deixava a equipe segura, de que Joaquim estava bem e não
havia muito mais a ser feito do ponto de vista de um cuidado terapêutico.
Foi quando sua família começou a procurar a equipe que começamos a notar a
novidade: estava furtando alguns objetos de casa, passava as noites acordado, enquanto no
CAPS estava menos isolado e interagindo mais com as pessoas. A convivência familiar se
tornou impossível e Joaquim foi morar em uma pensão no centro da cidade, quando começou
também a intensificar bastante o uso de crack. A equipe percebeu então que não sabia cuidar
de Joaquim nessa situação e que era ela quem fazia todos os dias a mesma coisa e não ele. Ele
estava fazendo algo novo e diferente do que fazia antes e se sentia diferente também. Se antes
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não falava com ninguém, agora falava com outras pessoas que passaram a acompanhá-lo em
suas andanças. Se antes nada solicitava à equipe, agora conseguia pedir ajuda.
Num paradoxo, o uso de drogas parecia deteriorar seu corpo, que cada vez trazia mais
marcas e ao mesmo tempo, produziu uma série de agenciamentos que lhe devolveram as
palavras: Joaquim está falando, frequenta assiduamente uma sala de aula de alfabetização e
um grupo de circo no Centro de Convivência.
Entretanto, a equipe entendeu que o uso de drogas que Joaquim vinha fazendo era
nocivo demais e tinha de ser barrado, em nome do cuidado, em favor de sua integridade física,
pois só sabíamos escutar seu corpo e este parecia doente. Assim, sem poder interná-lo em
Hospital Psiquiátrico “em nome do cuidado”, pois não havia ali uma crise psíquica (e sim o
contrário) e seus exames de laboratório apontavam para sua saúde física preservada (para
susto da equipe) a solução era interná-lo no leito-noite do próprio CAPS. A solução era,
portanto que ficasse alguns dias, talvez semanas distante das drogas, então algo mágico se
passaria: Joaquim voltaria a ser “como era antes” e a segurança da equipe de que ela sabia
cuidar se reestabeleceria. Mas não foi o que aconteceu! Joaquim logo nas primeiras horas da
internação pulou o muro e foi andar. “É só internar de novo e medicar mais”, “tem que sedar”,
“ficar de olho, vigiar o Joaquim senão ele pula o muro!” Então Joaquim ficou internado
algumas semanas, bem medicado e dormindo. Quando acordou e estava de alta da internação,
a primeira coisa que fez foi sair para andar e usar drogas.
A equipe se viu então tendo de lidar com o uso de drogas de Joaquim e começou a
perceber que poderia oferecer outras coisas para que ele se sentisse melhor quando pedia
ajuda: para os machucados nós pés, um curativo e um par de (que não durava mais do que um
dia em seus pés). Para sua fraqueza, uma janta e uma cama para descansar algumas horas.
Começou a verificar sua pressão arterial com frequência e pedir exames laboratoriais sempre,
para de fato acompanhar e cuidar de sua hepatite. Dia-a-dia um novo par de sapatos e uma
nova tentativa de contrato, para que não o tirasse de seus pés e machucá-los ainda mais. Com
o tempo, o tênis já durava mais tempo, sentia-se menos fraco e não deixava de estudar na sala
de alfabetização.
O caso de Joaquim sempre foi bastante controverso e discutido coletivamente em
equipe, pois se por um lado seu corpo trazia marcas da rua que preocupavam a todos como
sujeira e ferimentos, por outro lado havia uma mudança em seu repertório social e era na rua
também que tal mudança se produzia. Joaquim em suas andanças frequentava bocas de fumo,
mas também passava todos os dias pelas casas de seu pai e de sua mãe (que moram em
lugares separados e em bairros distintos), pedia dinheiro no farol, conseguia caronas dos
40
motoristas de ônibus, dava de encontro comigo acompanhando algum grupo pela região e se
juntava a nós, aprendia a escrever, falava conosco e ia embora todas as noites para dormir na
pensão.
Em um equipamento substitutivo como um CAPS, a produção do cuidado se dá a
partir de uma noção de saúde como um processo pelo qual um indivíduo pode administrar sua
vida com mais ou com menos autonomia. Trata-se de uma clínica que se propõe ampliada,
num esforço constante de voltar-se às dimensões mais singulares de cada sujeito que ali
procura ajuda, sem perder de vista também as suas necessidades mais objetivas de tratamento.
Para que este trabalho tenha algum sentido parte-se de um princípio ético fundamental
referente à relação trabalhador-usuário, que é a escuta desse sujeito, como ele conta sua
história, o que sabe dizer sobre seu sofrimento e como ele pode ser agente e responsável por
seus desejos e escolhas.
Esta síntese que descreve em linhas gerais sobre o trabalho em um CAPS, no cotidiano
do serviço desdobra-se em muitas dificuldades e obstáculos que confrontam constantemente
os trabalhadores com seu próprio desejo de cuidar. Aqui, a polissemia do termo cuidado pode
atingir sua variabilidade mais radical, pois embora exista uma “missão” em comum, cada
trabalhador possui uma história e um conjunto de repertórios de linguagem que muitas vezes
não são compartilhados nem entre si e nem com os usuários.
No caso descrito, as práticas de cuidado foram bastante variadas. Inicialmente, o cuidado
tinha o caráter de manutenção de um estado que assegurava mais a própria equipe e
estancavam Joaquim em uma condição invariável de existência dentro da instituição de
tratamento. Este por sua vez, se mostrou capaz de outros agenciamentos e de desejos
diferentes do que aquela equipe lhe oferecia dentro de um enquadre terapêutico.
Em outro momento, o cuidado passou a servir a uma ideia de cura, quando esperou-se que
Joaquim pudesse parar de usar drogas, voltasse a ganhar peso e tomasse sua medicação com
rigor. Em ambas as situações há um distanciamento na relação trabalhador-usuário, no qual os
desejos da equipe estão contemplados e nestes não se incluem necessariamente os de
Joaquim.
Se inicialmente a autonomia de Joaquim não era questionada (pois “não se colocava em
risco”) e este podia ir e vir sempre que quisesse, quando a problemática do uso de drogas
entrou em cena, passou a ser vigiado e sua liberdade para andar nas ruas sofreu barramentos.
A controvérsia acerca do cuidado a ser ofertado para Joaquim tinha agora uma discussão
crucial: em que medida sua circulação para fazer uso de crack lhe prejudicava, uma vez que
eram nítidas outras mudanças que apontavam para um ganho de autonomia e
41
responsabilização por sua saúde, já que administrava o uso que fazia e sua circulação além de
pedir ajuda para a equipe quando sentia necessidade. Durante todo o tempo, cuidado como
forma de contenção (e de desejo de tutela) e cuidado em forma de escuta e liberdade
coexistem, exigindo da equipe um exercício de construção de uma clínica e agora sim,
Joaquim fazia parte dela. Não só passou a ser convidado a participar dessa construção como
também se posicionava quando não estava de acordo. Pedia coisas, abrigo, comida, sapatos,
curativos e negociava com a equipe, exercitando todos uma nova forma de relação.
A equipe começou a perceber então que não existe uma forma de cuidado e sim várias e
que ele próprio cuidava de si quando estava nas ruas. Que cuidar era também não se esquecer
de chamá-lo para as aulas e ir com ele todos os meses pagar a sua pensão, pois não conseguia
lidar sozinho com o dinheiro; que a privação de sua liberdade não faria nenhum sentido se ele
próprio não estivesse implicado e de acordo com tal conduta, sendo possível que pedisse para
permanecer no leito-noite, mas não privá-lo de sua saída, já que tinha condições de se cuidar e
de nos deixar cuidar também. As andanças, passeios, usos e encontros de Joaquim, são para
ele tão importantes quanto ter para onde retornar todos os dias.
Referências
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42
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SAÚDE MENTAL NA ESCOLA: INTERVENÇÃO JUNTO A PROFESSORES QUE
TRABALHAM COM CRIANÇAS QUE MANIFESTAM AGRESSIVIDADE
Andréia Cristiane Silva Wiezzel
Universidade Estadual Paulista – UNESP/Presidente Prudente
[email protected]
Introdução
Neste artigo apresenta-se um recorte de uma pesquisa em andamento, realizada desde
o ano de 2008, envolvendo crianças que manifestam agressividade exacerbada em sala de aula
e seus respectivos pais e professores. A pesquisa, sob apoio do CNPQ, Proex, Proext-MEC e
Núcleo de Ensino, já contemplou investigação com 37 crianças, de ambos os sexos, com
idades entre quatro e cinco anos. Inicialmente o objetivo consistia em investigar a questão da
agressividade em sala de aula e intervir junto às crianças, buscando uma amenização nas
dificuldades interacionais que possuíam por meio de atividades lúdicas. Os instrumentos de
coleta de dados utilizados eram observações e entrevistas com pais e professores. Após um
ano de trabalho e de ter obtido interessantes e esclarecedores dados acerca das crianças e
percebendo-se que a escola poderia exercer importante influência no desenvolvimento
emocional destas, pensou-se em um projeto adicional, a ser desenvolvido concomitantemente,
no qual os professores pudessem ser trabalhados de forma a serem auxiliados na lida com as
crianças agressivas.
Isto se fez necessário por vários motivos, dentre estes, à inexpressiva produção na área
com relação a práticas que instrumentalizem efetivamente aos professores. Muito se tem
pesquisado sobre as manifestações agressivas das crianças na escola, porém, não se tem
trabalhado, na mesma proporção, acerca de formas de operacionalização de projetos ou outras
iniciativas que visem auxiliar o professor no manejo de tais manifestações.
A questão passou a ser, então, trabalhar a questão da agressividade com os professores
da educação infantil, de forma que estes pudessem efetivamente oferecer o que as crianças
demandavam a partir de suas manifestações. O objetivo neste trabalho com os professores
seria focado na atenção às necessidades singulares das crianças, fortalecendo a escola como
fator de proteção a elas.
Contextualizando metodologicamente o trabalho com os professores
44
Trata-se de pesquisa qualitativa envolvendo, em 2013, 12 (doze) professores, mediante
assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. O trabalho envolveu três
momentos: no primeiro, houve uma breve explanação sobre a agressividade infantil e os
professores realizaram uma espécie de relato de experiência com as crianças agressivas, no
segundo buscou-se atribuir significados a tais experiências, por meio da exposição de dados
levantados junto às próprias crianças, discutidos com base em teorias psicanalíticas acerca da
agressividade e, no terceiro, trabalhou-se com reflexões sobre formas de auxílio às crianças.
O trabalho com os professores: primeiro momento
Apesar do aceite do corpo docente em participar do projeto, reafirmado pela assinatura
do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (Processo 66/2009), havia certa tensão na
ocasião de nossa primeira reunião. Inicialmente a ideia era a de apresentar breves
apontamentos sobre a agressividade na infância e, posteriormente, discutir, em linhas gerais,
as situações das crianças, por meio de um relato de experiência a ser realizado pelos
professores.
Os professores, que optaram por realizar a pesquisa em Horário de Trabalho Pedagógico
Coletivo, estavam aparentemente cansados, alguns tomando café, uma professora fumando e
outros conversando. Quando a coordenadora pedagógica da escola me reapresentou a eles e
declarou que começaríamos a reunião, senti um pouco de tensão - assim como eles - pois não
sabia, ao certo, como seria recebida. Esse grupo, em reunião anterior, relatou que, em geral,
os pesquisadores tendiam a realizar seus trabalhos na escola e não ofereciam um retorno sobre
os resultados a eles, ou então, que quando participavam de cursos oferecidos pela
universidade, sentiram um excesso de teorização, e - o que é ainda pior - disseram que nós (os
pesquisadores) queremos falar de uma realidade da qual não participamos, que não
conhecemos.
Assim que comecei a contextualizar um pouco a questão das raízes da agressividade, a
professora que fumava o cigarro começou a fazer uma espécie de desabafo. Afirmou que uma
de suas alunas fazia tudo para provocá-la, que a irritava e até ia à escola de cabelo preso, só
porque ela [a professora] havia dito que ela ficava mais bonita com os cabelos soltos. Diante
disso concedi o espaço para a professora concluir o seu desabafo e já convidei os demais
professores a fazerem o mesmo, se assim desejassem. De um grupo de 12 professores, só dois
não falaram, mas faziam gestos que indicavam concordarem com o que os colegas diziam a
respeito das crianças.
45
O primeiro encontro se resumiu a desabafos, foi muito rico, pois possibilitou identificar o
que autores como Castro (2008) e Silva (2006) concluíram em suas pesquisas a respeito dos
sentimentos que as crianças que manifestam agressividade causam nos professores:
impotência, descontrole, incompetência, hostilidade, desistência, raiva,
frustração,
distanciamento emocional, portanto, sentimentos dolorosos e agressivos também.
Castro (2008), auxiliada pelo trabalho de Huberman (1992), em sua pesquisa de mestrado
chega a relacionar tais sentimentos a determinadas faixas etárias ou a momentos distintos na
carreira dos professores, configurando um trabalho muito interessante e rico, que explora
profundamente a relação que os professores têm com as crianças consideradas agressivas e os
sentimentos que afloram nesta relação.
Porém, em meio a tantos comentários negativos sobre as crianças sobressaíram
expressões que denotavam, também, preocupação com estes alunos por parte dos professores.
Configuravam-se relações ambivalentes, ainda que a hostilidade parecesse predominar. Havia
esperança, preocupação e senso de desorientação, pois os professores admitiam terem alguma
iniciativa, mas não conseguiam, efetivamente, auxiliar as crianças.
Aos poucos a tensão do grupo foi diminuindo e me coloquei na posição de uma pessoa
que estaria lá na escola pesquisando, trabalhando com as crianças e estagiários e me
instrumentalizando, para auxiliá-los. Eles me disseram que esperavam que eu fosse defender
as crianças, ficando contra eles. Os professores se sentiam perseguidos pelas crianças e que os
ataques delas eram de cunho pessoal, mesmo não existindo dados de realidade que
confirmassem isto. Nesta reunião ultrapassamos em meia hora o horário de trabalho dos
professores, que era das 18h30 às 20h30, foi bem interessante e relevantes os dados que eles
me passaram.
Em análise posterior e mais detalhada dessa reunião, constatou-se a existência de vários
mitos com relação à agressividade e certo preconceito com as crianças tidas como agressivas
e suas famílias. Os professores apresentavam sentimentos ambivalentes pelas crianças,
oscilando entre raiva, preocupação, carinho, incompreensão. Além disso, concebiam as
atitudes agressivas para com eles como algo pessoal, como uma perseguição. Os professores
que estavam no início até a metade da carreira, ainda demonstraram capacidade emocional
para dar suporte às crianças e se mostraram disponíveis. Aqueles que estavam próximos aos
20 anos de trabalho, se mostraram excessivamente cansados, abatidos e com pouca energia (o
que correspondia ao caso de duas professoras).
O trabalho com os professores: segundo momento
46
Ao longo do trabalho realizado com as crianças (citado na introdução deste artigo),
fomos organizando os dados fornecidos pelos próprios professores e pais e nos esforçando
para reconstruir a história de vida de cada criança. Elegemos diversas categorias de análise e
fomos interpretando os dados obtidos em busca de resultados que pudessem elucidar pontos
interessantes a serem compartilhados com os professores durante as reuniões futuras.
O trabalho foi pensado dessa forma, também, porque algumas das críticas que os
professores fizeram é que os pesquisadores da universidade trazem para debate teorias muito
distantes da realidade escolar ou que teorizam sobre uma realidade da qual não participam.
Embora eu não compartilhe desta visão busquei considerá-la, em parte, no planejamento do
trabalho com eles, pois isto era o que sentiam e, até mesmo, para analisar o envolvimento que
teriam, como receberiam os dados sobre suas próprias crianças, enfim, como isto poderia
interferir no processo de acolhimento, um dos itens que pretendíamos trabalhar com eles.
Havia, em princípio, uma preocupação em desconstruir ou, pelo menos, questionar alguns
mitos que permeavam o discurso dos professores quando se referiam aos alunos tidos como
agressivos, tais como: eles só querem chamar atenção, os pais são separados, a família é
desestruturada, os pais não ficam com ele, ele faz tudo para me provocar, tudo é sempre
culpa dele, ele é doido, ele é agitado, dentre outros. E isto seria feito com a apresentação de
dados dos próprios alunos.
No dia planejado, cheguei à escola e todos os professores já me aguardavam na sala de
reuniões, tendo, inclusive, deixado preparado um projetor multimídia. Considerei tal ato
muito gentil, pois, lá do portão da escola, os vi realizando essa tarefa e, aparentemente,
estavam tranquilos, fazendo aquilo sem obrigação, pois eu sempre chegava mais cedo e
montava meu equipamento. Inicialmente realizei uma breve explanação sobre a história do
projeto com as crianças na escola, retomando seus objetivos e apresentando dados
relacionados aos cinco anos de atuação na unidade escolar, tais como: número de crianças
tidas como agressivas atendidas em cada ano, quantidade de estagiários com bolsa, sem bolsa
e voluntários por ano, verbas obtidas junto à universidade e outras instâncias para o
desenvolvimento do projeto, número de crianças que obtiveram bons resultados participando
do projeto, número de professores cujos alunos foram atendidos, quantidade de pais e
professores que colaboraram etc.
47
Em meio aos dados fui apresentando fotos1 antigas de crianças, professores, da própria
brinquedoteca (que passou por reformas), dos estagiários atuando com as crianças e fotos de
reuniões realizadas entre a equipe do projeto. Tal ambientação se mostrou bastante positiva,
os professores reviram colegas que não mais trabalhavam na escola, alunos que foram
embora, alunos que já haviam ido para o ensino fundamental. Foi ficando claro a eles que o
projeto já era considerado como parte das atividades da escola, confirmando, na prática, o fato
deste já estar inserido no Projeto Pedagógico e que, portanto, poderiam confiar em nosso
trabalho. Além do fato de que o projeto é autorizado pelo Comitê de Ética em Pesquisa e pela
Secretaria de Educação.
A seguir, pode ser visualizado parte do material apresentado aos professores, que
constitui um quadro com dados referentes ao projeto e algumas fotos.
Quadro 1- Demonstrativo dos participantes do projeto
Ano
2009
2010
2011
2012
2013
Total
Gestores
2
2
2
2
2
22
Docentes
5
7
5
5
12
Crianças
7
8
9
5
8
Estagiários
7
8
9
5
8
Número de bolsistas
0
6
9
5
7
37
Abaixo apresentam-se duas fotos da brinquedoteca escolar: antes e após a reforma:
Figura 1- Brinquedoteca antes da reforma
1
2
Todas as fotos foram autorizadas, por escrito, pelos envolvidos.
O total é de 2 (dois) porque, no decorrer dos anos, foram as mesmas gestoras que participaram do projeto.
48
Fonte: arquivo pessoal
Figura 2- Brinquedoteca após a reforma
Fonte: arquivo pessoal
Figura 3: Parte da equipe de estagiários em reunião com a coordenadora do projeto (a quinta,
da direita para a esquerda)
49
Fonte: arquivo pessoal
Figura 4- Criança que já havia saído da escola, participando de atividade lúdica na
brinquedoteca
Fonte: arquivo pessoal
Os professores se mostraram surpresos com a quantidade de crianças atendidas entre
2009-2013 e o fato de que apenas uma delas não teve o resultado esperado por nós ao longo
do trabalho. Houve uma ligeira melhora na situação da criança, mas o resultado poderia ter
sido melhor, em comparação às outras crianças participantes. Porém, é inegável, pela nossa
experiência, que faltas frequentes das crianças nos dias de encontros lúdicos, muitas
alterações emocionais na família ou mesmo qualquer ocorrência interna e/ou externa à escola,
podem fazer com que a crianças oscilem um pouco ao longo do desenvolvimento do trabalho.
50
Após essa breve introdução passei à apresentação geral de alguns dados referentes às
crianças participantes no projeto, para que pudéssemos discuti-los e questionar ou mesmo
desconstruir os mitos apresentados pelos professores com relação às crianças que manifestam
agressividade em sala de aula. Intitulei essa parte como Apresentação e discussão de dados
parciais dos alunos tidos como agressivos.
Apresentação e discussão de dados parciais dos alunos tidos como agressivos
Inicialmente pontuei alguns dados sobre as crianças atendidas, de maneira bastante
informal, e com a preocupação em manter sigilo, salientando que estes dados eram relativos à
maioria das crianças:
- predomínio do sexo masculino;
- permanecem por período integral na escola;
- moram com o pai ou a mãe e outros parentes como avós, tios e primos;
- não apresentam relações interpessoais satisfatórias com os colegas e professores;
- conforme os professores, apresentam as seguintes características: briguento, sem regras, sem
limites, desobediente, às vezes pega coisas dos outros escondido, muito carente, chora
quando é contrariado, brigam, batem, são ciumentos, atrapalham a aula, estressado, muda
de humor, agitados e nervosos3.
- quase sempre as demais crianças da sala de aula interagem pouco com eles, pois, têm medo;
- despertam preocupação aos professores;
- se sentem rejeitados em casa e também na escola;
- apresentam conflitos ou dificuldades emocionais compatíveis à sua idade e desenvolvimento
emocional (nascimento de irmãos, ciúmes das mães, ciúmes dos irmãos, mortes de entes
queridos ou dos próprios cuidadores, morte de animal de estimação, sentimento de culpa,
fantasias de abandono, medo de perda do afeto, sentimentos de rejeição, medo da perda de
qualquer coisa);
- as crianças analisadas têm capacidade para construir, não só para destruir;
- esperam da escola a atenção e contenção que, em geral, não encontram no lar;
- têm dificuldades de vida e compreensão de seu lugar na sociedade;
- desejam ser aceitas e reconhecidas pelos familiares e escola;
3
Termos utilizados pelos professores durante as entrevistas.
51
- em geral, suas condutas agressivas na escola são deflagradas em resposta a provocações,
sentimento de ameaça (real ou não), sentimento de rejeição em casa e na escola e, claro, pela
raiva, frustração, insegurança e medo que ocorrem quando o desenvolvimento da
agressividade não segue o curso ideal; além disso e, principalmente, há as condutas agressivas
de crianças que surgem em momentos de esperança para chamar à atenção do professor às
suas necessidades de contenção e auxílio no gerenciamento de sua agressividade.
- esperam da escola um auxílio à sua dificuldade quanto à agressividade, por isso provocam o
ambiente;
- nem sempre as agressões físicas são pessoais; podem parecer "sem motivo" mas sempre há
um ou mais motivos;
- gostam dos professores;
- gostam dos colegas;
- choram com facilidade, expressando sofrimento, culpa;
- não confiam na qualidade de suas produções escolares (atividades, desenhos);
-não apresentam, necessariamente, dificuldades de aprendizagem, apenas seus interesses
maiores são outros, em geral, ligados ao afeto;
- as famílias se importam, mas não sabem como resolver a situação, estão sem forças; por
isso, às vezes, ficam inacessíveis;
- os pais veem o projeto de forma positiva e perceberam diferença nas crianças em casa;
- os pais, desde o início, reconheciam que as crianças precisavam de ajuda;
- os pais, em sua totalidade, colaboraram com a pesquisa, assinaram aos termos, deram a
entrevista, expuseram suas condições de vida.
Levamos três encontros para lermos e discutirmos esse resumo dos dados mais
frequentes entre as crianças, item por item. Tendo em tela os dados, fui comentando-os e
articulando-os, especialmente, à teoria sobre a agressividade desenvolvida por D. W.
Winnicott (2005) . Foram momentos intensos, interessantes, de construção, nos quais eu podia
perceber nos professores expressões de espanto, admiração, alívio, vontade de ajudar aos
alunos, mudança na concepção que tinham sobre eles, começaram a ver os pontos positivos
que os alunos possuíam. Enfim, conseguiram se distanciar um pouco do emaranhado de
sentimentos que nutriam e puderam verificar que certas condições de vida e/ou o próprio
desenvolvimento humano em conjunto com tais condições de vida, podem trazer dificuldades
às crianças. Como elas ainda não são como os adultos, que têm alguma ideia do que fazer para
dirimir suas emoções, acabam por utilizar os recursos primitivos que têm. Da mesma forma
52
que um bebê chora quando sente algum desconforto, as crianças usam dos atos agressivos
como forma de comunicação.
As expressões faciais tensas de alguns dos professores foram atenuando durante os
encontros. A professora que precisava acender um cigarro para falar sobre sua aluna não mais
fez uso deste ao longo das reuniões e saía satisfeita, até sorria, pois compreendeu que a aluna
em questão não a perseguia e nem havia conteúdo pessoal pelo fato de prender os cabelos. Os
professores faziam várias perguntas, começaram até a indagar acerca de seus próprios filhos.
Nenhum deles se ausentava antes do término da reunião, ao contrário, até passávamos um
pouco do horário estabelecido.
O trabalho com os professores: terceiro momento - situação atual
Após a exposição e análise das características das crianças tidas como agressivas e as
discussões com o grupo de professores, passou-se ao momento em que buscaríamos refletir
sobre soluções ou formas de intervenção. Um dos objetivos, também nesta etapa, era
fortalecer a escola como um fator de proteção por meio do vínculo professor-aluno, já que
embora as crianças pesquisadas não tivessem patologia, estavam em grupo de risco.
Ao longo do processo de discussão dos dados das crianças apresentados aos
professores, em conjunto com estudos teóricos relevantes na área, dentre os quais destacam-se
os trabalhos de Winnicott (2005) e Aberastury (1992, 1982), ficou claro que uma melhor
compreensão destas crianças e de suas necessidades primárias, seria a base para se delinear
novas formas de interação com elas.
No contexto escolar o acolhimento, a empatia e a autoridade (com respeito) seria um
interessante caminho de acesso às crianças agressivas. Porém, como adverte Aberastury
(1982),
trabalhar com pessoas que envolvem as crianças que necessitam de ajuda não
constitui tarefa fácil. Isto porque as orientações passadas a elas, por vezes, podem não serem
cumpridas, simplesmente pelo fato de elas não poderem ou conseguirem fazer. Ou então as
pessoas podem - ainda diante de suas dificuldades - tentar colocar em prática as orientações,
porém correm o risco de não obterem êxito, pois as crianças, em geral, percebem quando algo
não é autêntico.
Portanto, a segunda etapa do trabalho foi primordial, pois havia a necessidade de os
professores compreenderem a situação para que pudessem se envolver nesta a partir de dados
de realidade, de forma a poderem, de fato, se sentirem livres para auxiliar as crianças. O
trabalho os ajudou na conscientização das necessidades afetivas infantis, na compreensão de
53
algumas de suas atitudes e, principalmente, no lugar que pode estar ocupando dentro destes
processos. A pretensão foi de se realizar um trabalho de "dentro para fora", reflexivo,
analítico,
isto é, não se fornecer caminhos prontos, o que, muitas vezes, é o que os
professores almejam e, posteriormente, se veem decepcionados pelo fato de o resultado não
ser o esperado. O desejo de resolverem a dificuldade é tão grande que os professores quase
não percebem que as soluções envolvem uma construção, em alguns aspectos individual e, em
outros, coletiva.
A sensibilização e compreensão dos professores com relação às necessidades afetivas
das crianças, levou-os a se comprometerem com elas de forma diferente, incorporando-as às
atividades em sala de aula e dialogando, sem utilizar de punições e ameaças para resolver os
conflitos. Ouvi relatos de professoras que já estão convidando os alunos para apagarem a
lousa, ajudá-las com os materiais, assim como procedem com as demais crianças. Os
professores que tiveram essa iniciativa ficaram satisfeitos com a dedicação demonstrada pelos
alunos, (que tiveram oportunidade de realizar a reparação, ainda que não tenhamos entrado
neste nível de discussão com os professores), seu envolvimento e alegria em poder ajudar
(construir), ao mesmo tempo em que as crianças se sentiram valorizadas, que pertenciam a um
grupo. É de conhecimento de todos que a percepção que a sala terá sobre os alunos tidos
como agressivos depende muito das pistas que o professor fornece, portanto, a postura dele é
muito importante.
Neste ano (2014) estamos avançando nessa discussão e elaborando algumas propostas
de trabalho que não fujam à profissão docente e que funcionem bem na condução desses
casos. A criança precisa de um espaço em que possa realizar reparações, exercer a
criatividade, construir e destruir sem prejudicar as pessoas, desenhar, pintar, brincar, enfim,
participar de atividades em que possam explorar a imaginação, a fantasia, os desejos, os
limites e ser respeitada e auxiliada adequadamente em seus momentos de dificuldade.
É um trabalho longo, tem-se algumas questões ainda a serem exploradas sobre o grupo
de professores em questão, tais como o caso de uma professora que provavelmente está
doente (algo como estresse) e cansada e que, embora manifeste interesse em participar do
projeto, não consegue se envolver. Esta questão está sendo levantada porque, embora o
trabalho venha dando frutos interessantes, há este desafio a ser resolvido. A professora em
questão está em período de se aposentar, porta-se de forma apática nas reuniões e ainda
estamos analisando (juntamente com as gestoras da escola) o que poderia ser feito para
auxiliá-la. É um caso isolado, pois há outros professores que estão em condições legais de
54
aposentadoria, mas que ainda permanecem trabalhando, se envolveram e se sentiram
revitalizados no projeto.
Uma outra questão refere-se à necessidade que os professores têm em querer que
revelemos a eles o fator exato que levou cada uma de suas crianças à agressividade excessiva
(retomando a questão dos preconceitos e mitos). Há, pelo menos, três questões a serem
consideradas, e que são expostas aos professores: 1- o respeito aos dados dos seres humanos e
sigilo de informações sobre as famílias pesquisadas; 2- o fato de que, quase nunca, se pode
atribuir apenas um fator à agressividade mal desenvolvida e que mesmo a atribuição de mais
de um fator é sempre complicada; 3- as crianças não possuem patologia.
Ressaltamos sempre que mais importante do que ficarem se desgastando em procurar
as causas (provavelmente para negarem um possível envolvimento da escola ou para se
eximirem de ajudar a criança) é olhar, de fato, para o problema e tentar auxiliar o aluno em
seu desenvolvimento integral, assim como preconiza o Referencial Curricular Nacional para a
Educação Infantil.
Considerações finais
O artigo em questão constitui recorte de pesquisa mais ampla, na qual se investigam as
relações interacionais em salas de aula em educação infantil, especialmente as manifestações
agressivas. O trabalho ocorre há cinco anos em uma mesma unidade de ensino de um
município no interior de São Paulo - Brasil.
Os objetivos iniciais da pesquisa consistiam em identificar crianças com grau
considerável de manifestações agressivas e, tendo o respaldo de teorias psicanalíticas que
pudessem contribuir na investigação do tema, identificar suas possíveis origens do ponto de
vista teórico e realizar intervenções lúdicas com as crianças, visando a um melhor
desenvolvimento nas relações interacionais em sala de aula.
Após o primeiro ano de trabalho, percebeu-se a necessidade de incorporar
efetivamente os professores à pesquisa, isto é, não apenas atuarem como informantes sobre as
crianças envolvidas, mas também como sujeitos a serem pesquisados e trabalhados, tendo em
vista seu alto potencial de intervenção aos estados emocionais das crianças.
Ao longo dos cinco anos de trabalho, a equipe de pesquisa conseguiu construir uma
relação de empatia, profissionalismo e de confiança com o corpo docente da escola, de forma
que
o ambiente educacional se tornou mais acolhedor às crianças que apresentam
dificuldades nas relações interacionais e o projeto passou a fazer parte do Projeto Pedagógico
55
da instituição. Considera-se que relatar o caminho que temos trilhado na construção de tal
parceria seja fundamental à reflexão sobre a relação universidade – pesquisa e escola.
Em âmbito geral a pesquisa se mostrou bastante interessante, pois auxiliou na
atenuação do mal estar que abatia os professores com mais tempo de carreira e trouxe novas
perspectivas aos professores que, embora disponíveis, se sentiam impotentes e estavam em
busca de estratégias alternativas para lidar com as crianças. Ao longo dos anos, temos
percebido uma diminuição progressiva das crianças indicadas a participarem do projeto.
Inicialmente a lista de candidatos levantada pela escola era de, aproximadamente, 50 crianças
e no ano de 2013 apenas 13 crianças foram indicadas. Interessante mencionar que os
professores que mais se destacam no projeto e que participam há mais tempo não sentem mais
a necessidade de fazer indicações, e, por professor, a cada ano, as indicações diminuem.
Apenas a citada professora que provavelmente está doente tem mantido a quantidade de
indicações de crianças ao projeto, por isso, também, a situação dela precisa ser melhor
analisada. Há ainda o fato de que, por vezes, há uma discreta rotatividade de professores, o
que exige um trabalho adicional.
Referências
ABERASTURY, A. Psicanálise da criança: teoria e técnica. Porto alegre: Artmed, 1982.
ABERASTURY, A. A criança e os seus jogos. Porto Alegre: Artmed, 1992.
BRASIL, Ministério da Educação e do Desporto. Referencial curricular nacional para a
educação infantil. Brasília: MEC/SEF, 1998. v. 2.
CASTRO, R. E. F de. Eles cuidam de crianças. Quem cuida deles? O sofrimento psíquico do
professor na relação com a criança agressiva. 2008, 205f. Dissertação (Mestrado em
Psicologia) - Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo.
HUBERMAN, M. O ciclo de vida profissional dos professores. In: NÓVOA, A. (org.), Vidas
de professores. Lisboa: Porto Editora, 1992, p.31-62.
SILVA, M. E. P. Burnout: por que sofrem os professores? Estudos e Pesquisas em
Psicologia, v.6, n.1, p.89-98, 2006.
WINNICOTT, D. W. Privação e delinquência. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
56
A ATUAÇÃO DO ENFERMEIRO EM UM SERVIÇO AMBULATORIAL DE SAÚDE
MENTAL: UM RELATO DE EXPERIÊNCIA
Mariane de Morais Teixeira
Camila de Castro Teixeira
José Gilberto Prates
Instituto de Psiquiatria HC-FMUSP
[email protected], [email protected],
[email protected]
Introdução
No Brasil, na década de 70, iniciou a censura ao modelo de assistência à pessoa com
doença mental, a chamada Reforma Psiquiátrica. Surgiu a partir do movimento dos
trabalhadores de saúde mental, incluiu movimentos sociais e políticos, para modificar as
práticas psiquiátricas, que eram baseadas em tratamentos com características manicomiais.
Hoje é procurada a reinserção social em seu meio. O SUS contemplou em suas diretrizes os
princípios da reforma psiquiátrica, incluindo a garantia dos direitos de cidadania de todos os
usuários (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2005; LACHINNI et al, 2011).
Os movimentos reformistas trouxe a mudança do portador de transtorno mental como
inábil a gerir sua vida para uma pessoa com direitos e deveres, que tem o seu poder de
contratualidade na sociedade e a expansão da rede de atenção psicossocial. Tais serviços
visam ações para promover a participação ativa no tratamento da pessoa com transtorno
mental, através do empoderamento do sujeito, favorece a socialização dos usuários, propicia o
bem estar global da pessoa e estimula o exercício da cidadania (MINISTÉRIO DA SAÚDE,
2005; ALMEIDA et al, 2010).
Com essas mudanças no cenário da saúde mental e psiquiátrica, o empoderamento
tornou-se fundamental para promover a autonomia e a socialibilização nos espaços
comunitários já existentes. As pessoas desenvolvem habilidades e competências para
participar ativamente de sua vida social, comunitária e no tratamento, através da
corresponsabilização (ALMEIDA et al, 2010).
Os
enfermeiros
são
agentes
terapêuticos
importantes
no
processo
de
desinstitucionalização, podem atuar através de várias ferramentas da reabilitação psicossocial.
É preciso ter visão holística para construir laços terapêuticos, através do relacionamento
interpessoal, trabalhar em conjunto com o sujeito, buscar melhorias na qualidade de vida,
57
através da reinserção social e corresponsabilização do tratamento, tais atitudes faz com que o
sujeito seja empoderado (LACHINNI et al, 2011).
Para que o indivíduo seja assistido integralmente são utilizadas diversas ferramentas
para o entrosamento entre equipes. O matriciamento/apoio matricial é um modelo novo de
assistência à saúde, visa o processo de construção compartilhada dos projetos terapêuticos
entre duas ou mais equipes. O apoio matricial oferece cuidado integral e colaborativo entre a
saúde mental e a atenção primária. No Sistema único de Saúde (SUS) a equipe da Estratégia
Saúde da Família (ESF) é considerada a equipe de referência interdisciplinar, realiza o
cuidado longitudinal, por outro lado a equipe de saúde mental é o apoio matricial, que realiza
atendimento especializado junto aos demais serviços (CHIAVERINI et al, 2011).
O Ambulatório de Saúde Integral, pertence ao Ambulatório Geral de Psiquiatria de um
Hospital Universitário da cidade de São Paulo. Foi criado com o objetivo de ser uma
estratégia facilitadora para o processo de desinstitucionalização e para colaborar no processo
de empoderamento do sujeito com transtorno mental. Visa promover a reinserção social e
comunitária, através do matriciamento com a rede de atenção psicossocial.
Diante do exposto justifica-se a importância de trabalhos com essa temática para
compreender, aprender e expandir os conhecimentos voltados à assistência de enfermagem
em saúde mental e psiquiátrica.
Objetivo
Descrever a atuação do enfermeiro no Ambulatório de Saúde Integral como facilitador
para a o empoderamento do sujeito e para a reinserção nos espaços sociais, através do
matriciamento.
Metodologia
Trata-se de um relato de experiência sobre a vivência dos enfermeiros que realizam
atendimento ambulatorial à paciente em sofrimento psíquico. O relato foi estruturado em duas
etapas: caracterização do ambulatório de saúde mental, com breve apresentação do serviço
relatado e discussão do que é realizado, embasado nas literaturas pertinentes ao assunto.
Caracterização do Ambulatório de Saúde Integral
O Ambulatório de Saúde Integral tem como finalidade prestar serviços aos portadores
de transtornos psiquiátricos persistentes e ajudar a fortalecer o processo de empoderamento
das pessoas com comprometimento da saúde mental.
58
São incluídos nesse serviço através do ambulatório geral, quando estão em quadros
estáveis, quando há necessidade de espaçamento das consultas médicas e planejamento de alta
do serviço ambulatorial de origem. Esses indivíduos são acompanhados através de consultas
de enfermagem, no mínimo uma vez ao mês (necessidade identificada no momento em que é
realizado o Projeto Terapêutico Singular). Inicia-se um trabalho para programação de alta
ambulatorial juntamente com profissionais do ambulatório geral e do serviço social, para que
posteriormente o cliente seja matriciado para a rede de atenção psicossocial.
Durante esse acompanhamento os enfermeiros visam trabalhar com o empowerment
do sujeito através de atividades que buscam a socialização, a qualidade de vida e a cidadania.
Proposta do Ambulatório de Saúde Integral
Oferecer assistência integral à pacientes com Transtornos Mentais Persistentes, em
situações de crise e vulnerabilidade da saúde mental; Reinserir o indivíduo nos serviços de
apoio comunitário, através da busca aos serviços disponíveis na região de origem; Criar
grupos de atividades terapêuticas; Utilização de meios educativos para aproximação; Resgatar
aptidões perdidas, na perspectiva de melhoria na qualidade de vida; Participação ativa do
indivíduo.
Perfil dos pacientes
O ambulatório é composto por indivíduos que necessitam de acompanhamento e
suporte com menor frequência, quando comparado aos serviços de reabilitação psicossocial e
hospital dia. Apresentam dificuldades com relação ao seu estado de saúde mental, estão
vivenciando um momento de crise ou apresentam vulnerabilidade psicossocial.
Critérios para participação
 Disponibilidade de comparecimento;
 Regionalização;
 Idade: 18-55 anos;
 Inclusão: transtornos mentais persistentes com a duração do tratamento superior a dois
anos, em quadros estáveis (transtornos psicóticos, transtorno afetivo bipolar,
transtornos depressivos, transtorno obsessivo compulsivo e transtorno de ansiedade
generalizada), situações de crise e vulnerabilidade;
59
 Exclusão: transtornos de personalidade, transtornos do espectro autista e dependentes
de álcool e drogas.
 Em caso de alta do projeto, não adesão/participação e quadros agudos: o paciente
retornará ao ambulatório de origem;
 Enquanto participar do ambulatório, deverá ter um médico de referência do
ambulatório de origem;
 O paciente é submetido a avaliações semestrais para verificar a necessidade de
permanência no ambulatório. Em casos de alta, avaliado junto com o ambulatório de
origem, é definido o segmento do paciente e realizado matriciamento.
Abordagens Terapêuticas
 Nas Consultas de Enfermagem os atendimentos são agendados de acordo com as
necessidades dos pacientes, através de avaliações para a elaboração do projeto
terapêutico singular (PTS), de acordo com as demandas biopsicossociais. Além disso,
é realizado exame físico e psíquico, relacionamento terapêutico, atendimentos aos
pacientes e familiares voltados à adesão e manejo do tratamento e educação em saúde;
 Busca ativa via telefone em caso de não adesão ou não comparecimento às consultas;
 Atendimento telefônico conforme a necessidade (orientações em saúde), caso de
dúvidas relacionadas ao estado de saúde mental e física do indivíduo;
 Visita Domiciliar para compreender a dinâmica familiar, hábitos e atitudes cotidianas,
com finalidade de identificar a rede de apoio familiar/social, ajudar na elaboração do
PTS e condutas da equipe;
 Matriciamento para os serviços da rede de atenção psicossocial nos casos de alta do
projeto; Também são estimulados a procurar espaços e ferramentas sociais que irão
beneficiar a socialização e cidadania;
 Grupo Sair Mais
Visa humanizar a assistência ao portador de sofrimento psíquico, estimulando a
autoestima, autonomia, cidadania, e com isso favorecer a integração na sociedade, através
de atividades de lazer nos espaços sociais, conduzidas por enfermeiros.
O grupo é estruturado em três estágios semanais. No primeiro estágio é decidido pelos
participantes o espaço a ser visitado, através de estratégias grupais que facilitam a tomada
de decisão. No segundo estágio é realizada a visita ao local estabelecido, são
acompanhadas por enfermeiros. No terceiro estágio há um grupo para discussão sobre o
60
que foi vivenciado, sobre as expectativas e cidadania. O número de participantes é de até
15 pessoas.
Durante as atividades grupais é promovido um ambiente agradável para facilitar a
troca de experiências entre os integrantes, a realização de contratos sociais, o respeito ao
próximo e a diversidade cultural/social; fatores que influenciam no processo de construção
social.
Discussão
O empoderamento é concebido não como transferência de responsabilidades e
usufruto dos espaços, mas como aumento da capacidade de escolhas, é enxergá-los como
coprodutores, por meio da corresponsabilização em diversas instâncias sociais (ALMEIDA et
al, 2010).
A participação dos usuários e dos familiares na construção do cuidado para a
elaboração do PTS, baseado nas necessidades que o mesmo apontou, com foco nas
intervenções em crises, é uma das estratégias utilizas para colocar o usuário como
protagonista do seu cuidado. Possibilita ao enfermeiro trabalhar em conjunto com o cliente
para o alcance de objetivos em comum.
Ao realizar as atividades grupais são criadas estratégias que possibilitam o
fortalecimento da autonomia dos participantes, o pensamento reflexivo para tomada de
decisões e o enfrentamento das situações cotidianas. Durante as atividades externas, a criação
de espaços terapêuticos é uma tática que gera maior relação social, não só com os demais
participantes, da mesma forma, com os integrantes dos espaços visitados. Durante essas
atividades os usuários são estimulados a autogestão, tomada de decisão e enfrentamento de
problemas.
Pode-se dizer que os sujeitos atendidos no ambulatório são matriciados para a rede de
atenção psicossocial pelos enfermeiros do ambulatório de saúde integral. Há discussão dos
casos, juntamente com a equipe do ambulatório geral e com o serviço social, para identificar
qual é o melhor segmento para a pessoa assistida. Posteriormente a equipe do ambulatório de
saúde integral procura o serviço que o sujeito será matriciado, através do contato telefônico,
para passar o caso para a equipe que irá acolhê-lo. Também pode ser realizada uma visita ao
local, acompanhado do paciente, quando necessário.
O matriciamento é considerado uma retaguarda especializada para a assistência do
indivíduo.
Deve proporcionar assistência especializada e apoio institucional, promover
61
ambientes que possam ser possíveis constituir relações interpessoais, através do vínculo
terapêutico e contratualidade, junto à comunidade. O seguimento das pessoas com transtornos
mentais graves e persistentes no território é fundamental para que haja inclusão social. A
equipe da atenção primária possui papel fundamental nesse processo, já que está inserida
próximo ao território, sendo responsáveis pela manutenção da assistência continuada
(CHIAVERINI et al, 2011).
Quando planejado o PTS é levado em conta o contexto em que o sujeito está inserido,
as relações interpessoais familiares e sociais, a relação que possui com o território que habita.
Também incorpora a rede intersetorial e a rede de apoio social ao plano terapêutico. Isso torna
o projeto singular às características de um indivíduo. Ao matriciar a pessoa, o PTS proposto
pela equipe do ambulatório integral é repassado ao serviço que irá recebê-lo, e discutido os
benefícios para o matriciado.
O trabalho em equipe é fundamental para que haja clareza quanto ao delineamento das
tarefas e responsabilidades de cada um, para que haja reavaliação e reformulação do PTS
sempre que necessário (CHIAVERINI et al, 2011).
Considerações Finais
Nota-se que o enfermeiro atua diversificadamente no serviço ambulatorial utilizando
ferramentas como o matriciamento, uso dos espaços sociais e atendimentos especializados.
Isso promove melhora na qualidade de vida dos portadores de transtorno mental e a sua
interação com a comunidade, além de estimular a participar ativamente no meio em que está
inserido. O serviço ambulatorial mostrou-se efetivo para o matriciamento e para o
atendimento integral do indivíduo. Isso facilita a coordenação dos cuidados por parte da rede
de atenção psicossocial e seguimento dos cuidados já implementados.
Portanto, concluímos que tais práticas de enfermagem no serviço ambulatorial servem
como um elo para o matriciamento destes pacientes na rede de atenção psicossocial, além de
promover melhor vínculos entre os sujeitos, profissionais e serviços de saúde mental.
Referências Bibliográficas
ALMEIDA, K.S. et al. Empoderamento e a atenção psicossocial: notas sobre uma associação
de saúde mental. Interface -Comunic., Saude, Educ. Botucatu, v.14, n.34, p.577-89, jul/set
2010.
62
CHIAVERINI, D.H et al. Brasília: Ministério da Saúde. Guia prático de matriciamento em
saúde mental. Centro de Estudo e Pesquisa em Saúde Coletiva. 236p. 2011.
LACHINNI, A.J.B et al. A Enfermagem e a Saúde Menta após a Reforma Psiquiátrica.
Revista Contexto & Saúde. Ijuí, n. 20, v.10, p.565-68, jan/jun 2011.
MINISTÉRIO DA SAÚDE. Reforma psiquiátrica e política de saúde mental no Brasil.
Documento apresentado à Conferência Regional de Reforma dos Serviços de Saúde Mental:
15 anos depois de Caracas. Secretaria de Atenção à Saúde. Brasília, nov/2005.
63
A Oficina de Teatro na Atenção Psicossocial: o Corpo em travessia
Elizabeth M. F. Araújo Lima
Lívia V. Pellegrini Ferreira
Universidade Estadual Paulista – UNESP/Assis
[email protected]
Introdução e Delimitação do Problema
Esta pesquisa traz à cena atual a experiência de uma oficina de teatro realizada no período
de 2009 a 2011 no Centro de Atenção Psicossocial – CAPS “José Meireles”, no município de
Cândido Mota-SP. Esta experiência configurou-se como um terreno de trocas afetivas e
produção de diferenças, ao afirmarmos a liberdade e a expressão como modo de cuidado e
direito de quem habita a cidade.
A escolha pelo tema da pesquisa nasceu de uma prática que se iniciou desde a
graduação em Psicologia até os dias de hoje. Nossa trajetória de psicóloga clínica se mescla
com a de atriz e oficineira em intensa vivência em grupos de teatro.
A experiência vivida no trabalho diário no CAPS e nas oficinas com usuário(a)s,
familiares, estagiárias e pessoas da comunidade, nos levou a buscar, através de uma
cartografia da experiência, enunciar nesta pesquisa as questões que pedem passagem, discutilas e tecê-las com linhas teóricas que dialogam e se entrelaçam com a prática. A seguir, uma
breve apresentação do percurso da Saúde Mental e das oficinas, como recurso terapêutico em
processo de transformação.
Breve histórico da implantação da Atenção Psicossocial
A Reforma Psiquiátrica se engendra em um contexto político de democratização do país,
no qual o desejo de exercer a cidadania imbui à sociedade de força para enfrentar o modelo
psiquiátrico hegemônico. A promulgação da Constituição Federativa do Brasil, em 1988, é
resultado deste intenso movimento político, o qual também possibilitou a implantação do
Sistema Único de Saúde (SUS) garantida pela lei nº 8080/1990 que regula, em todo território
nacional, as ações e serviços de saúde.
No campo da Saúde Mental não havia mais como compactuar com as práticas
psiquiátricas do modelo asilar; assim, era necessária a construção de outras alternativas para a
atenção e o cuidado das pessoas em sofrimento psíquico. Teve inicio, então, um movimento
pela transformação das instituições psiquiátricas que ficou conhecido como “Luta
64
antimanicomial” e que deu lugar a algumas experiências concretas no interior de instituições
asilares inspiradas no movimento italiano de desinstitucionalização liderado por Franco
Basaglia. Como experiência de desmontagem manicomial, a intervenção na Casa de Saúde
Anchieta, de Santos, em 1989, é um marco. Antonio Lancetti como um dos protagonistas
desta equipe que ocupou este Hospital Psiquiátrico afirma:
A pragmática da desconstrução manicomial é o reinado do paradoxo: doença mental
e loucura, afirmação do poder médico e diluição das identidades profissionais,
cuidados terapêuticos e liberação das potências estéticas. No seio desse limiar se
produz um saber e um método que experimentam a convivência com o acaso e que
ao mesmo tempo requerem rigor e processualidade. (LANCETTI, 1990, p.146)
COSTA-ROSA (2000, p.151) propõe designar de modo psicossocial, o paradigma que
vai se configurando imerso nesta processualidade com rigor e tendo por base as práticas da
Reforma Psiquiátrica por oposição ao modo asilar. Uma das diferenças fundamentais na
mudança de paradigma é a importância que se atribui ao sujeito, como participante principal
no próprio tratamento. Desta forma, se investe na mobilização para a implicação do sujeito,
produzindo-se uma ampliação do conceito de tratamento e do conjunto de meios que se
dedicam a ele, pois
Doença mental e loucura são formas bem distintas; os internos de hospital evocam
muito pouco a desrazão, mas quando se desloca o polo técnico-científico para o polo
ético-estético surgem agenciamentos entre esses sujeitos que colocam sua vontade
de poder e esses corpos psicotizados, que nos transportam a outros planos. Esses
encontros de corpos vão gerando formas de sociabilidade que escapam à produção
em série dos manicômios hospitalares e profissionais. (LANCETTI,1990,p.145)
Nesta perspectiva tanto usuários como trabalhadores se relacionam numa dimensão de
produção de saúde/vida sustentada pela experiência da produção de subjetividade e
diferenciações daquelas produzidas pelo modelo asilar-hospitalocêntrico.
Segundo a cartilha produzida pelo Ministério da Saúde - ‘Saúde Mental no SUS’ de 2004
- os CAPS (Centros de Atenção Psicossocial), os NAPS (Núcleos de Atenção Psicossocial),
os CERSAMs (Centros de Referência em Saúde Mental) e outros tipos de serviços
substitutivos integram a rede do Sistema Único de Saúde, o SUS. Esses serviços têm sido
implantados em todo o país e são regulamentados pela Portaria nº 336/GM, de 19 de fevereiro
de 2002. Essa portaria reconheceu e ampliou o funcionamento e a complexidade dos CAPS,
composto por uma equipe multiprofissional com a função de dar um atendimento às pessoas
que sofrem com transtornos mentais severos e persistentes, num dado território, oferecendo
65
cuidados clínicos e de reabilitação psicossocial, evitando as internações e favorecendo o
exercício da cidadania e da inclusão social dos usuários e de suas famílias na comunidade em
que vivem.
A Atenção Psicossocial como uma instância de produção de cuidados oferece diversos
tipos de atividades terapêuticas. Esses recursos vão além do uso de consultas e de
medicamentos, e caracterizam o que vem sendo denominado de clínica ampliada: psicoterapia
individual ou em grupo, oficinas terapêuticas, atividades comunitárias, atividades artísticas,
orientação e acompanhamento do uso de medicação, assembleias, atendimento domiciliar e
aos familiares. A idéia e a prática desta clínica vem “provocando mudanças nas formas
tradicionais de compreensão e de tratamento dos transtornos mentais.” (Brasil, 2004)
Assim, a implantação dos CAPS, como estratégia de transformação na assistência em
Saúde Mental, organizando e regulando a rede de cuidados de um território, revolucionou o
modo de se relacionar com a loucura, com a crise e com suas saídas. O CAPS se propõe como
“um lugar de produção de cuidados, de produção de subjetividades mais autônomas,
de espaços sociais de convivência, sociabilidade, solidariedade e inclusão social.
Lugar para articular o particular, o singular do mundo de cada usuário, com a
multiplicidade, com a diversidade de possibilidades de invenções terapêuticas.”
(YASUI, p.159)
Breves notas sobre oficinas, ateliês e laboratórios na Saúde Mental
A portaria nº 336/GM de 2002 refere-se às oficinas terapêuticas como atividades que são
desenvolvidas nos CAPS. As oficinas são atividades realizadas em grupo com a presença e
orientação de um ou mais profissionais, monitores e/ou estagiários. As modalidades podem
ser definidas através do interesse dos usuários, das possibilidades dos técnicos do serviço, das
necessidades, tendo em vista a maior integração social e familiar, a manifestação de
sentimentos e problemas, o desenvolvimento de habilidades corporais, a realização de
atividades produtivas, o exercício coletivo da cidadania. (Brasil, 2004)
Este contexto atual não foi sempre assim... Engendrado por trajetórias anteriores que
foram sendo incorporadas ou transmutadas, o trabalho em oficinas atualiza e continua nos
lançando aos desafios de se relacionar com a loucura no cotidiano. No entanto é preciso
compreender o que o trabalho com as oficinas altera o campo das práticas psiquiátricas já que,
como nos conta LIMA (1997, p.59), as atividades são um importante elemento de lógica
asilar, desde que a psiquiatria surge como um saber médico transformando a loucura em
doença mental.
66
O tratamento moral dado à loucura instituído por Pinel e outros médicos, data do final do
séc. XVIII e início do XIX, na Europa, e mais fortemente na França, contexto em que “a
valorização e dignificação do trabalho eram base para a construção de uma nova sociedade
organizada em torno da produção capitalista que requeria a sujeição do ritmo da vida ao
tempo da produção” (Lima, 2004, p.04). No Brasil, os primeiros hospitais psiquiátricos foram
construídos na segunda metade do século XIX e início do XX, e seguiam os moldes desta
psiquiatria.
Nesta lógica, as atividades fazem uma função de controle do tempo e dos corpos dos
internos submetendo-os ao trabalho como instrumento de tratamento, mas também como
forma de combater a ociosidade, além de utilizar as atividades ‘laborterápicas’ explorando o
trabalho de alguns internos para a manutenção da própria instituição.
Em meio a este cenário, algumas experiências surgiram na contra mão deste modelo
hegemônico, entre elas aquelas desenvolvidas por Osório César e Nise da Silveira, ambos
médicos psiquiatras, imbuídos de um desejo revolucionário de se relacionar com a loucura.
Ele, trabalhando no Hospital do Juquery, na década de 20, era também músico e crítico
de arte, envolvido com os modernistas da Semana de 22. Ao se deparar com algumas
produções de internos “olha para eles e vê, não somente expressões psicopatológicas da
loucura (como seria próprio de seu metiê), mas imagens que possuem um inquietante
parentesco com aquilo que os artistas modernos estão produzindo” (Lima, 2004, p.05).
Essa transformação no campo de visibilidade e na forma de se relacionar com a potência
criadora daquele que habita a loucura, leva à criação da Escola de Artes Plásticas do Juquery.
Segundo LIMA (2004, p.06) a preocupação de Osório era de caráter clínico e social, pois para
ele a finalidade de um departamento de arte num hospital psiquiátrico não deveria ser apenas
terapêutica, mas possibilitar também a reabilitação e a construção de alternativas fora do
Hospital, para que cada paciente pudesse buscar uma profissão de acordo com sua capacidade,
seu talento.
Nise da Silveira iniciou seu trabalho sui generis no Centro Psiquiátrico Nacional, do Rio
de Janeiro, em 1946. Seu interesse pelas atividades artísticas era parte de uma preocupação
com os rumos da psiquiatria de sua época e do compromisso em criar procedimentos
terapêuticos para a esquizofrenia de caráter humanista. Opôs-se radicalmente aos métodos
utilizados pela psiquiatria de seu tempo, buscando pesquisar e desenvolver com os/as
pacientes outras terapêuticas. Nesses ateliês de expressão plástica, se destacavam a pintura e a
modelagem e a presença de artistas plásticos e músicos implementando a troca de novos
saberes num campo, eminentemente, médico. Ainda Lima (2004, p.07) salienta que Nise ao
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criar, a partir desta experiência, o Museu de Imagens do Inconsciente com exposições que
circulam o Brasil e o Exterior, instaura a possibilidade de transformação cultural tanto do
pensamento e jeito de se relacionar com a loucura, quanto da possibilidade real dessas
produções serem vistas e arguidas de valor artístico como obras pertencentes à humanidade.
Em meio a estas ousadias de Nise surgiu também uma experiência de teatro junto com os
internos, quando a psiquiatra estimulou e promoveu a primeira montagem de um texto de
Artaud no Brasil, dentro de um Hospital Psiquiátrico. (Lima, 2009).
Ambas trajetórias - juntamente com as experiências anti-manicomiais de Trieste, na Itália
e em La Borde, na França - influenciaram as experiências em Saúde Mental, principalmente, a
partir da década de 80 quando inicia-se, no Brasil, o movimento pela Reforma Psiquiátrica,
abordado anteriormente.
Na desmontagem da Casa Anchieta em 1989, uma experiência com teatro e atividades
expressivas aconteceu nos pátios, que tornavam-se outros cenários nesta troca coordenada por
Renato di Renzo. Lancetti (1990) fala deste momento, como um acontecimento cheio de
potência, em que a relação com a loucura e com as pessoas que ali estavam trancafiadas há
tanto tempo, pedia novos modos de expressar-se e, no encontro, produziu espaço para existir.
Com a implantação da rede substitutiva de Saúde Mental, regulamentada no Brasil a
partir de 2002, os CAPSs entram em cena ofertando àqueles que passam pela experiência da
loucura outras possibilidades de cuidado e atenção. Uma possibilidade, é recurso da oficina, o
qual
geralmente convocado quando se fala em ‘novas’ propostas terapêuticas. Seu uso
tem sido freqüente e quase corriqueiro na clínica ‘psi’ para designar um amplo
espectro de experiências terapêuticas e extra-terapêuticas de diferentes formatos e
composições. Quase sempre amparado pela crítica à psiquiatria tradicional e,
portanto, respaldado pelas concepções da reforma psiquiátrica, o universo das
oficinas não se define por um modelo homogêneo de intervenção e tampouco pela
existência de um único regime de produção. Ao contrário, é composto de naturezas
diversas, numa multiplicidade de formas, processos e linguagens. (GALLETTI in
LIMA, 2004, p.61)
Em nossa experimentação o recurso utilizado foi a oficina terapêutica, proposto como
um espaço de produções estéticas e de subjetividades, ampliando a ideia de tratamento
clínico.
O corpo em travessia
68
Minha inserção no CAPS “José Meireles” se fez como trabalhadora de saúde mental.
Como uma das psicólogas da equipe transdisciplinar, desempenhava as ações cotidianas de
acolhimento, atendimentos, visitas, ações no território e coordenação de oficinas terapêuticas.
Ouvindo o pedido dos usuários e o desejo pulsante que me atravessava iniciamos a oficina.
Com uma preocupação técnica a priori: como possibilitar o encontro dos usuários com a
modalidade Teatro, priorizando a experimentação artística e não somente a terapêutica?
Para tanto deveria utilizar a linguagem teatral como ferramenta de trabalho e
exercícios cênicos, para que todos pudessem experimentar e ampliar formas de expressar-se
com o corpo, com a voz, dando formas às sensações, e ao longo do processo produzir uma
montagem para circular pelo território, apresentando-a à comunidade.
Nada como o encontro para desestabilizar o território conhecido, desacomodando as
trilhas já traçadas, rumo ao devir. Ao iniciar a oficina me deparei com outros modos de
existência onde a grande viagem era navegar em mares desconhecidos; por outro lado, as
pessoas ao se encontrarem comigo descobriam novas formas de relação. Assim fomos
chamados à urgência da vida: o teatro como meio de dar passagem aos afetos do corpo –
instância-artefato-possibilitador de encontros – afirmando-o como território possível. Artaud
(p. 91, 1999) com sua paixão esfuziante convoca-nos ao encontro com o teatro-vivo, quando
lembra: “Para quem se esqueceu do poder comunicativo e do mimetismo mágico de um gesto,
o teatro pode reensiná-lo, porque um gesto traz consigo sua força e porque de qualquer modo
há no teatro seres humanos para manifestar a força do gesto feito”.
O que importava já não era mais a produção de uma obra, mas o processo, o processo
de criação do grupo: estar com outro(a)s, interagir e criar diferentes formas de se comunicar.
O formato grupal, formato para o trabalho em teatro por excelência, nos coloca de frente com
a visão psicodramática, a qual concebe o ser-humano como agente participante e criador
desde o momento em que vem ao mundo, assim estamos em co-autoria constante em nossas
relações afetivas. Toda ação é interação. (GONÇALVES, C. S. et al., 1988)
Em processo de criação, a possibilidade de, por momentos, habitar estados em que se
perdem os contornos conhecidos, cotidianos para habitar outras formas de sentir, de se
movimentar, de produzir sons, de contar histórias, por meio de narrativas faladas, cantadas ou
gestualizadas, podendo reinventar-se ao reinventá-las.
Fernando Peixoto (2006) nos dá pistas do que é o Teatro e conta que inicialmente a
palavra designava o lugar onde aconteciam espetáculos, sendo que o significado que desperta
hoje, na forma de manifestações artísticas, foi forjada no século XVII. Para o autor o
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nascimento do teatro se dá no instante em que o homem primitivo coloca e tira sua máscara
diante do espectador, quando acontece uma “simulação” na qual o homem oferece seu corpo à
presença de uma divindade. O teatro nasce, portanto, vinculado ao ritual mágico e religioso
primitivo, e de uma necessidade de jogo, de assumir outras formas e outras forças: de outras
funções sociais, de animais ou de outras instâncias. O teatro é a arte do ator e seu corpo, o
instrumento, a matéria-prima do trabalho as relações em sociedade. O teatro é arte grupal –
não há ato solitário na atividade teatral.
Esta modalidade artística chama o sujeito à autoria e co-autoria de movimentos e
gestos com corpo e voz, reposicionando-o subjetivamente como corpo que pode.
A multiplicidade de enfoques possíveis na produção artística das oficinas
terapêuticas conduz, no fundo, a uma importante constatação: essas oficinas
constituem-se como uma nova ordem de recondução, em que o portador de
sofrimento psíquico não é apenas um autor de obras, mas principalmente autor de
sua própria vida, que a cada dia abre portas e nos aponta uma nova saída (ASSIS,
2004, p.103).
Essa é uma das inquietações que emergem no trabalho cotidiano das oficinas terapêuticas
na Atenção Psicossocial, especialmente, em oficinas que forjam um espaço para a
experimentação, a criação e a produção singular do participante. Para Rauter (2000, p.273) o
objetivo das oficinas terapêuticas parece ser o de produzir outras conexões entre: produção
desejante, trabalho e criação artística.
Na experiência da oficina de teatro em uma instituição de saúde mental nos vimos em um
território onde se tornaram indissociáveis arte/clínica. Quando, como nos mapeia Lima (2009,
p.157) “a arte deixa de ser a expressão de uma subjetividade particular para ser instrumento
de produção de subjetividade” e abre novos territórios de experimentação na realidade
cotidiana.
Essa discussão não se limita somente ao âmbito da saúde e ao usuário em sofrimento
mental, mas tem uma abrangência sociocultural a quem habita a cidade.
Nesta oficina pôde acontecer um espaço de experimentação do corpo e produção de
subjetividades de modo coletivo, dando lugar a corpos em devires, para além de códigos de
doença, de papéis sociais, de credo, de gênero. Por meio da expressão corporal e vocal
pudemos, potencializando sensibilidades, experimentar composições como saídas para o
corpo, para a vida.
Deleuze em ‘Espinosa’ (2002, p.90) afirma que o homem enquanto o mais potente dos
modos finitos, é livre quando entra na posse da sua potência de agir e esta potência que é em
70
ato (ativa) torna-se inseparável de um poder de ser afetado o qual se encontra constante e
animado por afecções que o efetuam.
Como potencializar o estado de arte (a atmosfera de criação) entrelaçando-o a uma
terapêutica, onde ética e estética estão indissociáveis? E Rolnik ao abordar a obra da artista
Lygia Clark (1920-1988) nos situa:
...a clínica nasce exatamente num contexto sócio-cultural que cala o grasnar do
bicho, enjaulando-o na arte, o que faz com que o resto da vida social, ele tenda a ser
vivido como trauma. É curioso lembrar que Lygia chama de ‘estado de arte’ o que
em nós escuta o grasnar do corpo-bicho e Deleuze de ‘estado de clínica’, o que em
nós cala este grasnar. (ROLNIK, p.7)
Para Rolnik toda marca de memória de nosso corpo bicho, com sua voz disruptora, é
eterna e sempre virtual, podendo ser reativada e só tem sentido se for para “reatualizar sua
potência de abertura para o estado de arte na subjetividade de modo a contaminar a cultura
contemporânea.” (ROLNIK, 1995, p.110)
Assim, a oficina definida como terapêutica, dentro das atividades de um CAPS, tornouse, também, em nossa experiência um lugar de acesso à potência de pensar com o corpo e
produzir corporeidades com pensamento. Lugar permeado por uma poética de afirmação da
vida vivido por corpos cujo campo cotidiano familiar, social, cultural é repetidamente
atravessado por forças de exclusão, silenciamento e não autonomia. O teatro, então, como
modalidade de arte adentra o modo psicossocial convocando o corpo à outras formas de
expressão diferentes das cotidianas e do próprio cotidiano do serviço.
A partir destas pistas, imersos neste território de ação surgiram na experiência questões
que mobilizam esta pesquisa e que temos a intenção de discutir:
- Como esta experiência contribui para pensar a utilização de oficinas de teatro/atividades
corporais na Atenção Psicossocial?
- Como a potência de vida (de existir, sentir, pensar, agir, criar) pode ser acessada por meio do
corpo em atividades híbridas?
- Como afirmar práticas na produção de saúde que se comprometam, de fato, com a produção
de singularidades?
Justificativa e Relevância do tema
Este trabalho apresenta uma experiência e põe em debate o modo de produção de oficinas
terapêuticas na Atenção Psicossocial. A partir da trajetória desta experiência, poder compor e
71
problematizar o cenário de práticas no campo da saúde, da saúde mental e da arte trazendo à
cena este modo específico de experimentação do corpo.
A relevância do tema vem delineada por linhas biopsicossocioculturais, afirmando a oficina
de teatro na estratégia de atenção psicossocial como lugar/instância que:
1) Possibilita, como forma de atenção, uma modalidade de encontro em que ambos na
relação se transformam.
Na visão psicodramática, no encontro acontece um entendimento mútuo em que uma pessoa
experimenta ver a outra com seus olhos, isto é, a plena inversão de papéis em que algo se libera e
é transformador na relação. (MORENO, 2001, p.41)
O encontro dos corpos para Espinosa é potência, sendo bom (livre, forte) aquilo que convém
a nossa natureza e mau (escravo, fraco) o que não convém. O bom existe quando um corpo
compõe com o nosso e aumenta a nossa potência; o mau existe quando um corpo decompõe a
relação do nosso como um veneno decompõe o sangue. (DELEUZE, 2002, p.28-29).
2) Possibilita a experimentação de formas de se comunicar (abarcando e compondo
diferenças, estranhamentos, línguas outras) e de produzir subjetividade por meio desta
experimentação do corpo (gestos, voz, interação).
O formato grupal oferta essa possibilidade do jogo, da composição, do compartilhar. Os
exercícios corporais e vocais permitem a expressividade de gestos e sons, acessam memórias, a
imaginação, produzem desejos, ampliando o repertório afetivo, social, cultural dos participantes.
Entendemos que a produção de subjetividade se dá em movimento paralelo e recíproco com a
experimentação do corpo, como para Espinosa, “tudo o que é ação no corpo é também ação na
alma, tudo que é paixão na alma é também paixão no corpo.” (DELEUZE, 2002, p.75)
3) Questiona a relação com o tempo no modo de produção capitalista, no qual estamos
inseridos, delineando o que acontece neste processo de produção cujo ritmo singular é tecido
pelo ritmo do indivíduo e do grupo, que ao produzir algo produz a si mesmo.
A presente pesquisa intenciona contribuir com as práticas de trabalhadores da saúde, da arte,
da saúde mental, da educação, e pessoas que se interessam por este campo, em que borram
clínica e arte, sendo atravessados por questões semelhantes e que se compõe com as delineadas
aqui. Que essas práticas possam ser problematizadas, discutidas e constantemente re-inventadas,
para estarmos atentos aos paradigmas que estão regendo nossas relações neste campo.
O referencial teórico que utilizaremos neste projeto é composto por algumas linhas que
dialogam. Para tecer com método cartográfico as linhas da experiência, da memória, das teorias
seguimos as pistas de Passos, Kastrup, Escóssia (2010); de Suely Rolnik (1983,1989, 2005); do
diário de bordo. Para abordar o trabalho com grupos nos baseamos na visão psicodramática; os
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jogos expressivos e exercícios cênicos compostos de encontros com autores como Augusto Boal,
Artaud e outros. A visão de corpo e modos de potencializá-lo é guiada pelo Espinosa de Deleuze,
cuja produção ao lado de Guattari nos possibilita encontros e embates com as práticas de cuidado
utilizadas nos equipamentos de saúde e suas tecnologias, ainda vigentes, de controle dos corpos.
Para adentrar a instância memória e esta clínica atravessada pela criação e vice-versa, somos
conduzidos pelas contribuições de Elizabeth de A. Lima, Suely Rolnik e Daniel Lins. E para
abordarmos o paradigma psicossocial e os desafios da Reforma Psiquiátrica, cenário desta
prática, nutrimo-nos da contribuição à Saúde Coletiva de Paulo Amarante e dos encontros com
Cristina Amélia Luzio, Silvio Yasui e Abílio Costa-Rosa, como aluna, estagiária e trabalhadora
de saúde mental. Além de, poder dialogar com quem mais possa contribuir para tessitura desta
pesquisa.
Objetivos
Objetivo geral
A pesquisa tem como objetivo geral cartografar esta experiência, buscando descrever e
compreender o processo e os movimentos da própria oficina por meio do estudo dos registros
(diário de bordo, fotos vídeos) forjados nos encontros da oficina e nos arredores dela em
convivência com usuários, familiares, equipe e comunidade e por meio da ativação da memória
da própria pesquisadora.
Objetivos específicos
1) Discutir o modo de produção de oficinas de teatro/atividades corporais no paradigma
psicossocial;
2) Pensar/problematizar a produção de saúde como produção de subjetividades,
afirmando a singularidade como possibilidade de vida;
3) Explicitar as formas e as possibilidades de hibridação entre arte e clínica nesta
experiência.
Materiais, Procedimentos e Métodos
Tipo de pesquisa e metodologia
A pesquisa que traz a proposta de cartografar uma experiência de oficina, delineando o
processo composto em convívio grupal experimental e coletivo, será tecida via memória inscrita
em nosso corpo - instância-guardiã dessas experimentações - por ser fonte e moto de vida e pelos
73
registros documentais dos encontros: diário de bordo, escritos das atrizes e atores, fotos e vídeos.
Marcas que fizeram da oficina de teatro um lugar de encontros, de experimentações potentes e
produções estéticas singulares.
Em ‘A escrita de si’, Foucault (2012) relata como esta prática de estilística da existência e
domínio de si era vivida pelos gregos nos séculos I e II. Os documentos chamados de
hupomnêmata “constituíam uma memória material das coisas lidas, ouvidas ou pensadas; assim,
eram oferecidos como um tesouro acumulado para releitura e meditação posteriores.” O diário de
bordo será utilizado nesta perspectiva de memorial que pode ser chamado, quando necessário, à
ação. Ainda, segundo Foucault (2012, p.145) esses registros “não se destinam a substituir
eventuais falhas da memória”, e sim operam como um material para ser exercitado: lido, relido,
para se meditar sobre, conversado consigo mesmo e com os outros.
Os registros que fomos compondo nos encontros e ao longo do processo da oficina de
teatro são marcas documentais, assim somando-se a elas emergem as marcas do corpo e do
pensamento, cartografando a trajetória desta experiência forjada em um território geográfico e
existencial. Seguimos, como metodologia, as pistas do método cartográfico.
Como em outras cartografias, um testemunho de experiências, que extrapola a condição
de datado, pois “seja qual for seu tempo e seu lugar, trata-se aqui da invenção de estratégias para
a constituição de novos territórios, outros espaços de vida e de afeto, uma busca de saídas para
fora dos territórios sem saída.” (ROLNIK, 2005, p.18) Segundo Passos e Alvarez (2010) a
pesquisa cartográfica ao se instalar pressupõe a habitação de um território, o que provoca ao
próprio cartógrafo adentrar um processo de aprendizagem, de compor uma relação ativa com a
experiência que vai ganhando consistência com o tempo e o propósito de cultivar algo. Esta ação
pressupõe implicação de saber “com” os acontecimentos deste território, de se agenciar com eles,
borrando-se, acompanhando seus ritmos.
A imersão no contexto da experiência nos possibilitou o encontro com um processo
singular, nos chamando ao trabalho da cartografia que se faz “sempre pelo compartilhamento de
um território existencial que sujeito e objeto de pesquisa se relacionam e se codeterminam.”
(PASSOS e ALVAREZ,2010, p.131). Podemos afirmar que este método se faz numa perspectiva
ético-estético-política, pois
A cartografia parte do reconhecimento de que, o tempo todo estamos em processos, em
obra. O acompanhamento de tais processos depende de uma atitude, de um ethos, e não
está garantida de antemão. Ela requer aprendizado e atenção permanente, pois sempre
podemos ser assaltados pela política cognitiva do pesquisador cognitivista: aquele que
se isola do objeto de estudo na busca de soluções, regras, invariantes. O
acompanhamento dos processos exige também a produção coletiva do conhecimento.
Há um coletivo se fazendo com a pesquisa, há uma pesquisa se fazendo com o coletivo.
A produção de dados é processual e a processualidade se prolonga no momento da
74
análise do material, que se faz no tempo, com o tempo, em sintonia com o coletivo.
(BARROS e KASTRUP, 2010, p.73/74)
A fonte da pesquisa se deu na experiência coletiva e continuou se fazendo na memória. As
marcas visíveis e invisíveis podem ser acessadas por meio dos registros e da trajetória marcada
no corpo, o corpo em travessia, da aprendiz-cartógrafa.
Rolnik (1993) apresenta uma possibilidade de trabalho do pensamento partindo da memória.
As marcas que se fazem em nossos corpos, produzidas nas experiências, nos encontros, nos
desencontros, nos forçam a pensar e, assim, somos convocados a criar um corpo outro para que
essa diferença possa existir.
Deixar-se estranhar pelas marcas nos tira do plano do visível, da representação dos fatos em
sequência linear e nos lança a outro plano de realidade. “A memória neste plano é memória das
marcas, ovos sempre atuais, sempre potencialmente geradores de novas linhas do tempo...uma
memória que se compõe das misturas dos mais variados fluxos, de onde se produzem as
diferenças que engendram os devires.” (ROLNIK, 1993, p.243)
Quais registros/marcas nos indicam rupturas com o corpo cristalizado, adoecido, acomodado
rumo às experimentações de um novo estado, ao devir?
A pesquisa se vale destes procedimentos para dar visibilidade àquilo que nos encontros
vinha à tona no grupo ao caminhar, rir, respirar, escorrer, dançar, latir, saltar, cantar, alongar,
silenciar, florescer, partir, ficar, gritar...os corpos afetando e sendo afetados, gerando marcas,
produzindo escapes, gestando novos corpos.
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77
SERVIÇO DE EMERGÊNCIA PSIQUIÁTRICA: ASSISTÊNCIA COM QUALIDADE
PARA USUÁRIOS EM SITUAÇÃO DE CRISE NO MUNICÍPIO DE MARINGÁ-PR
Silvia Marini
Universidade Estadual de Maringá e Faculdade Metropolitana de Maringá
Joyce Anne Silva
Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho
Celene Tonella
Universidade Estadual de Maringá
[email protected], [email protected],
[email protected]
Reforma Psiquiátrica e a Assistência Psiquiátrica nos Hospitais Gerais
Durante décadas a loucura foi aprisionada em instituições antes destinadas aos
leprosos e sifilíticos. Esse aprisionamento iniciado no século XVII foi fruto da vinculação
entre loucura e marginalidade, que exigia medidas que retirassem do espaço social àqueles
representassem risco a ordem social nascente (FOUCAULT, 2003).
Nesses espaços encontravam-se, além dos loucos, delinqüentes, desempregados e
marginais que, sob a defesa da necessidade de assistência mínima, eram mantidos longe do
convívio e do espaço social. Acorrentados, em função de sua suposta agressividade e falta de
controle, esses indivíduos viviam ali as mais variadas formas de violência.
Com o advento do Iluminismo e o desenvolvimento das ciências, a Psiquiatria toma
para si a responsabilidade e o poder sobre a loucura. A experiência que melhor exemplifica
essa transformação é a do médico francês Phillipe Pinel que, ao assumir a direção do hospital
Bicêtre na França em 1973, empreende importantes modificações na forma de assistência
oferecida aos alienados.
Os manicômios foram criados no século XVIII tendo sua forma de assistência
empreendida com base nas necessidades de controle, organização do tempo, o isolamento e a
repressão dos loucos, sob o pretexto de que esses eram elementos essenciais para a cura da
doença mental. Como pano de fundo da necessidade de assistência especializada tem-se a
implementação do processo de higienização do espaço social e da eugenização da população.
Foi nesse contexto que os médicos alienistas brasileiros exigiram a criação do primeiro
hospício do país, o que acorreu em 1852, ainda no Império, com a inauguração do Hospício
Pedro II na cidade do Rio de Janeiro. Durante décadas, esses espaços foram disseminando-se
em todo o mundo e foram responsáveis por um modo de assistência marcado pela violência e
78
por condições precárias de vida. Grande parcela dos internos morria ao ser submetida a
práticas como eletro-choque, privação de alimento e condições mínimas de higiene.
Para Goffman (1974) esses procedimentos objetivavam o controle de grande
contingente de pacientes por uma equipe reduzida e, não, a “cura” ou melhora do paciente.
Banhos frios associavam-se a castigos físicos e as oficinas de trabalho manual a formas de
disciplinarização do corpo.
Tudo isso levou ao surgimento de críticas a esse modelo assistencial em todo o
mundo. No Brasil, o processo de crítica culminou no Movimento de Reforma psiquiátrica que
foi responsável pela criação da Política Pública de Saúde Mental. Marcada pelo princípio da
desinstitucionalização, essa política está organizada em uma série de serviços de base
comunitária que oferecem assistência psicossocial aos usuários e que compõem a Rede de
Atenção Psicossocial (RAPS).
Entra as estratégias da rede assistência está a oferta de leitos para internação em
hospitais gerais, que tem como principal função extinguir a assistência oferecida nos hospitais
psiquiátricos tradicionais. Com vistas a garantir a qualidade e a diminuição do tempo de
internação, essa tem sido uma importante estratégia assistencial.
A Reforma Psiquiátrica no Brasil se deu concomitante a movimentos significativos no
contexto nacional e internacional. No país da década de 1970, os rumores do movimento
sanitário ecoavam a favor da mudança dos modelos de atenção e gestão nas práticas de saúde,
reivindicando principalmente a equidade na oferta de serviços, a participação dos
trabalhadores e usuários na consecução da gestão e da prática do cuidado, ou seja, uma
democratização no sistema de saúde com ampla participação daqueles que faziam uso do
mesmo e sabiam de suas necessidades.
Nas experiências européias, em especial a experiência italiana implementada por
Franco Basaglia, a crítica do movimento psiquiátrico se dava em termos da superação do
modelo asilar, centrado no hospital psiquiátrico de onde não se inspirava cuidados, mas sim a
violência física e psicológica como já mencionado, com tratamentos que excluíam o doente da
sociedade, a sua estigmatização e a submissão a tratamentos que expunham o paciente a dor,
como o eletrochoque.
A instauração da Reforma Psiquiátrica acontece em meio a estes contextos e
ultrapassou os setores envolvidos com a saúde, tornando-se um complexo processo político e
social compreendido como um conjunto de transformações de práticas, de saberes, de valores
culturais e sociais, de intensos esforços pelos direitos dos pacientes psiquiátricos e da
humanização dos serviços de saúde mental.
79
O ano de 1978 é tido como o marco do início da luta pelos direitos dos doentes
psiquiátricos no Brasil, que envolveu o Movimento dos Trabalhadores em Saúde Mental
(MTSM), os familiares e os próprios pacientes, ampliando para outras vertentes da sociedade
em prol de novas ações para a orientação da assistência em saúde mental, denunciando a
violência nos manicômios, a mercantilização da loucura, da hegemonia do saber psiquiátrico e
do modelo hospitalocêntrico.
Eventos importantes aconteceram na década de 1980, como o II Congresso Nacional
do MTSM, realizado em 1987, que adotou como lema “Por uma sociedade sem manicômios”
e também, no mesmo ano, a I Conferência Nacional de Saúde Mental no Rio de Janeiro, o
surgimento do 1º CAPS do Brasil na cidade de São Paulo, e em 1989 a intervenção da
Secretaria Municipal de Saúde de Santos (SP) na Casa de Saúde Anchieta, onde os maus
tratos e mortes de pacientes eram recorrentes, são tidos como fatos importantes de um intenso
processo de renovação da saúde mental que se iniciava no país.
Outros episódios marcantes como a implantação dos Núcleos de Atenção Psicossocial
(NAPS), criações de cooperativas e residências para os egressos das longas internações
psiquiátricas, fizeram de Santos um marco da Reforma Psiquiátrica no Brasil, demonstrando a
construção de uma rede substitutiva aos hospitais psiquiátricos. Em 1989 inicia-se a discussão
no Congresso Nacional do projeto de Lei do deputado Paulo Delgado para a regulamentação
dos direitos das pessoas com transtornos mentais e, a extinção progressiva dos manicômios no
país, o que marcou a legitimação do movimento da Reforma Psiquiátrica brasileira.
É iniciada nesse contexto, de forma progressiva, em vários estados do país, a
substituição dos leitos em hospitais psiquiátricos por uma rede de atenção à saúde mental. Em
1992, o movimento passa a definir seus contornos através do compromisso firmado pelo
Brasil na Declaração de Caracas e da realização da II Conferência Nacional de Saúde Mental,
que passou a vigorar as primeiras normas federais para regulamentação e implantação de
serviços de atenção diários, baseados nas experiências já mencionadas que ocorreram em São
Paulo e Santos e, as normas para a fiscalização e classificação dos hospitais psiquiátricos.
Mesmo com todas essas alterações e com 208 CAPS em funcionamento no país, 93% dos
recursos do Ministério da Saúde ainda eram destinados para a manutenção dos manicômios no
final da década de 1990 (BRASIL, Ministério da Saúde- DAPE, 2005)
Somente no ano de 2001 a Lei Paulo Delgado foi sancionada como Lei Federal 10.216
e ocorreu a realização da III Conferência Nacional de Saúde Mental, dando maior sustentação
a política de saúde mental apoiada pela criação de mecanismos para a fiscalização, gestão e
diminuição programada de leitos psiquiátricos. Este momento é de significativa importância,
80
pois a rede de atenção diária à saúde mental passa a se expandir para locais no Brasil onde a
tradição hospitalocêntrica predominava.
É criado o programa “De Volta para Casa” para auxílio no processo de
desinstitucionalização dos internados de longos e difíceis anos. Somam-se políticas
específicas para álcool e outras drogas consolidando a Reforma Psiquiátrica enquanto política
oficial do governo federal.
Com a realização, em 2001, da III Conferência Nacional de Saúde Mental e suas
etapas municipais e estaduais, a participação ativa dos profissionais, familiares e usuários dos
serviços de saúde mental torna-se um importante dispositivo da democratização e participação
popular à favor das mudanças a se realizar, conferindo as CAPS o valor estratégico para a
mudança do modelo de assistência.
O processo de desinstitucionalização, ou seja, da retirada dos pacientes do
enclausuramento dos hospitais psiquiátricos, se deu a partir de diferentes mecanismos, como:
redução de leitos em hospitais psiquiátricos e a criação de leitos em hospitais gerais,
residências terapêuticas, do programa De Volta para Casa, dentre outras estratégias que
objetivam, sobretudo, a substituição da internação em hospitais psiquiátricos pelo
atendimento em serviços extra-hospitalares que garantam qualidade no atendimento.
Objetiva-se,
sobretudo,
substituir
a
rede
assistência
baseada
na
lógica
hospitalocêntrica, caracterizada por longos períodos de internação em hospitais psiquiátricos,
pela assistência nas redes de atenção psicossocial (RAPS), compostas por serviços que
atendam integralmente a demanda do usuário garantindo seus direitos, como a manutenção da
liberdade e dos vínculos com sua permanência no território.
Contudo, o hospital psiquiátrico como dispositivo de assistência ainda permanece com
força considerável. O estado do Paraná configurou-se por muito tempo como um dos estados
de grande tradição hospitalar e alta concentração de leitos em psiquiatria, chagando ao
número de 2688 leitos psiquiátricos em todo o Estado (BRASIL, Ministério da Saúde- DAPE, 2005).
Para a superação da lógica hospitalocêntrica, enfatizaremos nesse trabalho a estratégia
da assistência psiquiátrica nos hospitais gerais, já que não se nega a demanda por internações
em caso de crises e surtos. Essa assistência é ofertada em Serviços de Emergência Psiquiátrica
que são estruturados pela Portaria SNAS/MS Nº 224/1992, que preconiza o funcionamento
diário por 24 horas, com leitos para internações com duração de até 72 horas. Esses serviços
devem evitar as internações em hospitais psiquiátricos, à medida que oferecem atendimento
resolutivo em situação de crise e encaminhamento pós-alta para serviços extra-hospitalares.
81
Contudo, a implantação de Serviços de Emergência Psiquiátrica nos hospitais gerais
tem sido um dos maiores desafios da Política de Saúde Mental brasileira, isso porque os
hospitais públicos e privados resistem ao fazê-lo alegando complexidade na demanda. Para
exemplificar, o Paraná atualmente conta com 19 hospitais gerais que oferecem ao todo 166
leitos/SUS e 15 hospitais psiquiátricos com 2.460 leitos/SUS para internação (BRASIL,
Ministério da Saúde. Saúde Mental em Dados ‐ 10, 2012). Desse modo, grande parte das
internações psiquiátricas ainda permanece sendo realizada em hospitais psiquiátricos
tradicionais contradizendo o princípio de desinstitucionalização proposto pela Reforma
Psiquiátrica.
Diante a realidade da permanência dos hospitais psiquiátricos tradicionais como
dispositivo de assistência foi criado um instrumento importante estabelecido pela Reforma: o
Programa Nacional de Avaliação do Sistema Hospitalar/Psiquiatria (PNASH/Psiquiatria),
para a avaliação da assistência dos hospitais psiquiátricos conveniados ao SUS, e ao mesmo
tempo, funciona como indicador dos critérios para uma assistência compatíveis às normas
estabelecidas pelo Sistema Único de Saúde, e que descredencia as instituições sem qualquer
qualidade de seus serviços prestados. Esta ferramenta avalia a estrutura física, os processos e
recursos terapêuticos dos hospitais e sua interação com a rede de atenção em saúde mental,
como também realiza entrevistas de satisfação com pacientes internados e às vésperas de
receber a alta, tornando-se uma importante via para a efetivação da política de redução de
leitos e da melhoria da assistência hospitalar.
É importante salientar que todo o processo da Reforma Psiquiátrica pressupõe para a
verdadeira desinstitucionalização da loucura transformações culturais e subjetivas na
sociedade. Costa-Rosa (2014) nos atenta sobre a necessidade de uma atuação diferenciada do
trabalhador da saúde mental e daqueles que são atendidos por tais instituições.
O autor defende uma prática que permita a participação atuante da população no
planejamento, gestão e organizações dos serviços e políticas, como também o aproveitamento
de “brechas” que possam surgir no aparato institucional para a promoção de novas relações
intra-institucionais, como também na implicação do sujeito no seu processo de compreensão
do sofrimento, da sua inclusão necessária como um agente no processo de produção de sua
saúde e não como mero “consumidor” final de medicação, do diagnóstico, alienado de sua
condição subjetiva.
Para ele o nosso Modo de Produção da Saúde Mental é regido pelo Paradigma
Psiquiátrico
Hospitalocêntrico-Medicalizador
(PPHM)
carregado
de
suprimentos
medicamentosos cunhados pelo saber médico que cria um novo Manicômio químico, onde já
82
não são necessários mais os enclaurusamentos físicos dos velhos asilos destinados aos doentes
mentais.
Tal ideologia gera sérias consequências como a separação entre decisão, planejamento
e execução, que se traduz em uma grave realidade da exclusão dos sujeitos dos sofrimentos e
dos próprios trabalhadores, e da população das decisões sobre os contornos que tais serviços e
de seus efeitos. As relações “terapêuticas” operadas nos discursos sociais verticais, como é o
caso do Discurso Médico, são produtoras dos “sentidos” sociais dominantes, que mantém o
sujeito alienado quanto aos possíveis fundamentos do sofrimento sintomático de que se
queixa, e certamente quanto ao seu posicionamento em relação a eles.
Avaliação da assistência recebida no Hospital Psiquiátrico Tradicional e no Serviço de
Emergência Psiquiátrica do Município de Maringá
Os dados aqui apresentados foram fruto de entrevistas semi-estruturadas realizadas
com 12 (doze) usuários de dois serviços da RAPS do município de Maringá-PR (Centros de
Atenção Psicossocial (II e AD), durante pesquisa para elaboração de dissertação de mestrado 4.
Dentre as categorias abordadas nessa pesquisa têm-se a avaliação dos usuários acerca da
assistência recebida no serviço de Emergência Psiquiátrica e no hospital psiquiátrico
tradicional..
De todos os entrevistados apenas 1 (um) nunca foi internado em hospitais psiquiátricos
ou em Serviço de Emergência Psiquiátrica e teve como única forma de assistência o serviço
que utiliza atualmente (CAPS AD). A grande maioria dos entrevistados iniciou a assistência à
saúde mental por meio da internação, fato que evidencia a centralidade dessa estratégia de
atendimento no âmbito da política de saúde mental brasileira.
Dos 11 (onze) usuários que já foram internados, 6 (seis) o foram só em hospitais
psiquiátricos tradicionais, 2 (dois) apenas no serviço de emergência psiquiátrica e 3 (três) em
ambos os serviços. Segue as avaliações que esses usuários fizeram da assistência recebida
durante as internações, sendo que as mesmas foram divididas entre avaliação das internações
em hospitais psiquiátricos e avaliação das internações em serviço de emergência psiquiátrica.
A assistência recebida no hospital psiquiátrico foi avaliada como negativa por 4
(quatro) usuários, as justificativas dessa avaliação estão diretamente relacionadas com o
número insuficiente de profissionais para atender os pacientes. Segundo eles, esse fator leva à
4
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Estadual
de Maringá em 2012.
83
precarização do atendimento e faz com que não haja muitas atividades no projeto terapêutico,
de modo que os internos ficam a maior parte do tempo sem qualquer atividade. E exige,
também, organização interna do hospital voltada ao controle de muitos pacientes por um
número pequeno de profissionais e que encontra na administração excessiva de medicamentos
uma solução. Algumas falas dos usuários são ilustrativas:
Usuário 10: – Lá não tem assistência, você tem vida de cachorro. Lá é que nem gado,
como eu to te dizendo, você vai, você só é mais uma cabeça lá dentro. [...] Lá qualquer coisa
eles te amarram e te dão injeção, não tem outra maneira lá dentro que seja diferente disso.
Amarrado, injeção e remédio, amarra você e te metem a seringa e te põe pra dormir.
Usuário 12: – Eu prefiro ir para a cadeia, lá eles só me davam remédio. Você queria
dormir e não podia porque eles trancavam o portão, você tinha que ficar acordado ruim
mesmo. Davam banho na gente com uma mangueira, eu lembro disso. Sei que é ruim e não
quero passar por lá de novo. Na mesma linha de críticas nas falas abaixo foram incluídas
questões relacionadas, também, a falta de higiene:
Usuária 1: – Tem pouca gente que trabalha lá, por isso fica todo mundo
misturado. Para mim, eles nem procuram atender direito, já vão longo dando injeção para
dormir, que eu não tomei, a não ser no primeiro dia, que não lembro. [...]. De manhã quando
ia no banheiro, tinha que ficar desviando das sujeiras que os outros faziam no chão mesmo.
Sorte que saí de lá logo, se não ia sair de lá pior do que entrei.
Usuária 8: – E cada vez que eu internava, os hospitais de Porto Alegre são podres,
eles nunca, nunca varrem o chão. Então, aquilo é assim contaminado e tinha piolho. [...]
Ficava todo mundo no pátio, e eu não queria ficar lá, queria entrar, mas não podia. As
pessoas ficam caminhando ou deitadas, tinha um casarão onde era o refeitório, sujo, sujo,
sujo, que horror meu Deus! Um dia entupiu o cano e alagou tudo e a gente tinha que
caminhar na água, por que a gente não se acomodava, não parava.
Alguns usuários criticaram as internações por que nos hospitais ficavam presos, eram
obrigados a tomar medicamentos e quando não o faziam eram submetidos a práticas violentas.
A fala da Usuária 5 resume a situação:
– Lá no sanatório eu recebia remédio o tempo todo e era amarrada quando não
queria tomar.
A má qualidade da alimentação, a falta de espaço físico, a ausência de liberdade para
fazer o que se deseja, a falta de interação entre os pacientes e, sobretudo, o péssimo
atendimento por parte dos funcionários, também foram destacados.
Dos usuários entrevistados submetidos à internação em hospitais psiquiátricos, 4
84
(quatro) avaliaram a assistência de forma positiva e 1 (uma) de forma regular. Contudo,
quando foi solicitado aos usuários que justificassem sua avaliação, mesmo aqueles que
avaliaram positivamente a assistência não tinham elementos concretos para fazê-lo, pelo
contrário, teceram uma série de críticas negativas.
Esse foi o caso do Usuário 3. Segundo ele, a assistência no hospital: – É bom, mas eu
não quero ficar mais lá não [...]. E quando perguntado por que, disse: – Porque só deixava
eu preso, não deixava eu ir embora. Lá eu tomava muito remédio e ficava andando assim
(imita um andar lento e descoordenado) quando saia do sanatório por causa do remédio.
O mesmo ocorreu com o Usuário 6 que avaliou a assistência como regular e justificou
respondendo: – Olha eu não desejo aquele lugar para ninguém, não vou falar que a
assistência é péssima porque não se gospe em prato que come. Mas falta a desejar muito
aquele hospital, por falta de espaço físico, por falta de entendimento por parte dos
profissionais [...].
As usuárias 5 e 8 também avaliaram a assistência de forma positiva e justificaram
dizendo:
Usuária 5: – Porque eu tive que passar por tudo isso aí, que foi bom porque eu
aprendi a me controlar, eu não tinha controle. Eu era muito agitada, nervosa. Quando as
pessoas falavam as coisas comigo eu não aceitava. Eu aprendi que não é assim, que eu tenho
que abaixar a cabeça e ouvir, os mais informados do que a gente. [...] lá tem silêncio, eu não
suporto barulho. Também tenho relação ruim com a mulher do meu pai, ela gosta de me
irritar e xingar.
Usuária 8: – Foi graças ao hospital psiquiátrico que consegui melhorar. Em casa eu
só ficava de cama, não comia e nem tomava banho. Quase morri. No hospital que melhorei e
pude vir para cá.
Contudo, mesmo com avaliação positiva e com o reconhecimento do papel dessa
assistência em suas melhoras, elas também apresentaram críticas negativas.
A Usuária 8, por exemplo, diz que sempre pegava piolhos no hospital (inclusive sofreu
um acidente grave quando tentou utilizar um veneno para matá-los) e que os hospitais da
cidade que morava eram podres, sem limpeza e higiene. Já a Usuária 5 queixou-se de ser
amarrada para ser medicada e que para se chegar ao refeitório era necessário passar por um
banheiro sujo.
Assim, percebe-se que todos que avaliaram de forma positiva e regular a assistência
dos hospitais psiquiátricos apresentaram uma série de denúncias com relação à má qualidade
da assistência.
85
Muitos dos usuários foram internados em diferentes hospitais e em diferentes cidades
paranaenses. Uma usuária, inclusive, foi internada em hospitais de outro estado. A realidade
se repete em todos eles. O excesso de medicação, a péssima qualidade do atendimento por
parte dos profissionais, a falta de higiene e a persistência de práticas violentas (amarrar,
dopar) são denúncias recorrentes.
Foi possível perceber que a avaliação positiva e regular parece estar associada ao fato
de que nos momentos de crise e intenso sofrimento, foram os hospitais psiquiátricos que
ofereceram a assistência e os cuidados mínimos necessários para a melhora. Por isso, há o
reconhecimento da necessidade dessa assistência.
O fato de que muitos usuários apresentam dificuldades de relacionamento familiar e
são vítimas de abandono nos momentos de crise, justifica o reconhecimento da importância
desse atendimento em detrimento da sua qualidade. Muitos preferem o isolamento e a
“tranqüilidade” do hospital às relações conflituosas com a família e a falta de cuidado.
O fato é que para os pacientes em crise a solução que se apresenta no âmbito da
política pública de saúde mental, ainda, é a internação. Sendo que os hospitais psiquiátricos
são os que mais oferecem leitos. Sendo reconhecido por alguns usuários e profissionais como
serviço essencial da política, embora os princípios da Reforma Psiquiátrica defendam a
extinção gradativa dessa forma de assistência.
Com as falas dos usuários pode-se perceber que permanece intramuros dos hospitais
psiquiátricos a manutenção de práticas violentas e violadoras da dignidade humana e dos
direitos dos usuários. Muitos afirmaram que não querem voltar lá, que a cadeia é melhor, que
foram tratados como cachorro e que se permanecessem lá iriam piorar. Retomam-se, assim, as
considerações de Foucault (2003) e Goffman (1974) acerca da função cronificadora e de
exclusão social apresentada por essas instituições.
No relatório final da IV CNSM, fica explícita a necessidade de garantir o acesso a
tratamento sem qualquer forma de violação dos direitos humanos, impedindo tratos cruéis ou
degradantes.
Já a Carta de Direitos dos Usuários diz que “Todo serviço de saúde metal deverá
garantir o bem estar físico, mental e emocional de Seus usuários, e as exigências mínimas de
higiene, segurança, condições ecológicas e ambientais, conforto, privacidade e alimentação de
qualidade com supervisão profissional”. Afirma, ainda, que devem ser proibidas formas de
violência pretensamente terapêutica como: camisa de força, cela forte, amarrar, superdosagem
de medicamentos, dentre outros.
86
A partir das falas dos usuários constata-se que essas normatizações e orientações não
estão sendo cumpridas. Tal fato exige maior empenho no processo de implementação da rede
substitutiva e no processo de implantação de serviços de Emergência Psiquiátrica, expandindo
desse modo o número de leitos de internação em hospitais gerais.
Para Hildebrandt e Alencastre (2001, p. 172),
Existem inúmeras vantagens na internação em unidade psiquiátrica de hospital geral.
Muitas podem ser citadas como, por exemplo, o contato mais próximo com outras
clínicas, maior disponibilidade de recursos terapêuticos e diagnósticos, atenuação ou
mesmo supressão do estigma provocado pela internação em manicômios, facilidade
de contato com a família e comunidade de origem, menor tempo de permanência no
hospital e reinserção mais fácil.
Algumas das vantagens descritas acima foram percebidas pelos usuários que avaliaram
a assistência recebida na Emergência Psiquiátrica do Hospital Municipal de Maringá. Todos
os usuários (5) que foram internados nesse serviço avaliaram positivamente a assistência
recebida e, entre as justificativas dadas por eles destaca-se: o bom atendimento, atenção da
equipe, alimentação de qualidade, higiene, organização interna e variedade de atividades
(muitas atividades lúdicas: bingos, sorteios e festas). Segue algumas falas que ilustram essa
avaliação:
Usuária 1: – Lá fui muito bem cuidada, participei de uma festa junina, de sorteio de
brindes, jogo de bingo. Lá tratam a gente bem, por isso eu acho que a ala do Municipal que
ta desativada devia se usada pela emergência, para poder atender mais gente [...] Não quero
mais ser internada, mas se for lá, eu vou tranqüila.
Usuária 7: – Lá eles trata a gente muito bem, as enfermeiras são atenciosas. [...] Lá é
tudo muito organizado, com horários, é muito limpo e a comida é muito boa, tem várias
refeições por dia.
Não houve nenhuma crítica negativa a assistência oferecida nesse serviço. Faz-se
importante destacar que ele é regionalizado, mas o número de leitos existentes não é
suficiente para atender toda a demanda, o que leva ao encaminhamento de grande parte dos
pacientes de outros municípios para o Hospital Psiquiátrico de Maringá. O Serviço de
Emergência Psiquiátrica possui 26 (vinte e seis) leitos de internação, sendo porta de entrada
para as emergências provenientes de 66 municípios paranaenses.
Já o hospital psiquiátrico localizado no município conta com 240 leitos/SUS para
internação. Desse modo, a maioria dos usuários que chagam a Emergência é encaminhada
87
para o serviço com qualidade inferior de atendimento e que possui uma forma de assistência a
ser superada de acordo com os princípios do Movimento de Reforma Psiquiátrica brasileiro.
Por isso é necessário a implantação de novos serviços de emergência psiquiátrica ou
ampliação dos leitos, o que deveria estar associado à implantação de leitos para internação em
outros hospitais gerais do município e região. A oferta de atendimento psiquiátrico nos
hospitais gerais tem sido um dos maiores desafios para extinção dos hospitais psiquiátricos.
No relatório da IV CNSM permanece a necessidade de implementação de rede
assistencial efetiva que possibilite a extinção dos hospitais psiquiátricos e de quaisquer outros
estabelecimentos em regime fechado. Exige, também, a aplicação de legislações específicas
com esse fim.
A preocupação com o direito de receber assistência em serviços abertos e não em
manicômios também está presente na Carta de Direito dos Usuários que prevê a ampliação de
leitos em hospitais gerais e serviços de base territorial. É só por meio dessas ações específicas
que o manicômio poderá ser superado.
Considerações Finais
Há décadas profissionais, familiares e usuário reconhecem a ineficácias dos hospitais
psiquiátricos como instituições assistenciais que contribuam verdadeiramente para melhora e
qualidade de vida das pessoas com sofrimento psíquico em nosso país.
A partir das percepções dos usuários apresentadas nesse trabalho, conclui-se que a
precariedade da assistência e a manutenção de práticas violentas é uma realidade ainda
presente nessas instituições. Mesmo a política de saúde mental tendo criado dispositivos de
fiscalização, não é incomum denúncias de maus tratos e mortes intramuros nos hospitais
psiquiátricos brasileiros.
A
presença
daquilo
que
Costa-Rosa
denomina
Paradigma
Psiquiátrico
Hospitalocêntrico-Medicalizador (PPHM), marcado pelo excesso e centralidade do
medicamento como estratégia assistencial também pode ser identificado. Para legitimar a
centralidade dessa estratégia, práticas violentas (amarrar, prender) são infringidas contra os
pacientes que se recusam a ingerir docilmente os medicamentos ministrados.
Em contrapartida, a política criou uma estratégia que se apresenta como solução para
os usuários em situação de crise e que necessitam da internação: a assistência psiquiátrica nos
hospitais gerais.
88
As avaliações realizadas pelos usuários internados na Emergência Psiquiátrica
demonstram a efetividade desse serviço e qualidade da assistência recebida. A variedade de
atividades, a higiene e a organização dos serviços, somada ao acolhimento dos profissionais,
fazem com que este seja o serviço de referências para os usuários em caso de demanda para
internação.
Contudo, como discutido, o número limitado de leitos faz com que a maioria dos
usuários que a Emergência recebe sejam encaminhados para o hospital psiquiátrico do
município. Dessa forma, o atendimento de qualidade garantido pela Emergência fica restrito a
um número reduzido de pessoas.
A resistência que os hospitais gerais apresentam para a abertura de leitos psiquiátricos
apresenta-se como um entrave para efetiva implantação da Reforma Psiquiátrica em nosso
país. Sob o pretexto da complexidade da demanda, somada ao preconceito e falta de
formação, os hospitais gerais negam aos usuários com transtorno mental o direito de serem
atendidos como os pacientes com outras patologias. Com isso, os hospitais psiquiátricos
tradicionais mantêm-se como serviço assistencial central em caso de crises, mesmo tendo a
qualidade da assistência questionável.
Referências
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Ano VII, nº 10, março de 2012.
BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. DAPE. Coordenação Geral de
Saúde Mental. Reformapsiquiátrica e política de saúde mental no Brasil. Documento
apresentado à Conferência Regional de Reforma dos Serviços de Saúde Mental : 15 anos
depois de Caracas. OPAS. Brasília, novembro de 2005.
BRASIL. Ministério da Saúde. Centro de Documentação do Ministério da Saúde. Relatório
final da IV Conferência Nacional de Saúde Mental. Brasília, DF, 2010.
CARTA de Direitos dos Usuários e Familiares de Serviços de Saúde Mental. Disponível em:
<http://www.inverso.org.br/index.php/content/view/5474.html>. Acesso em: 20 jul. 2014.
COSTA-ROSA A. Atenção Psicossocial além da Reforma Psiquiátrica: contribuições a uma
Clínica Crítica dos processos de subjetivação na Saúde Coletiva. São Paulo: Editora Unesp,
2013.
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89
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Revista Gaúcha Enfermagem, Porto Alegre, v.22, n.1, p.167-186, jan. 2001.
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Tese (Doutorado em Saúde Pública)-Escola Nacional de Saúde Pública da Fundação Oswaldo
Cruz, Rio de Janeiro, 2006.
90
PARA “NOVOS” PROBLEMAS, VELHAS SOLUÇÕES: A UTILIZAÇÃO DE
DISPOSITIVOS DO PARADIGMA HOSPITALOCÊNTRICO MEDICALIZADOR
NO TRATAMENTO DE USUÁRIOS DE CRACK
Clodoaldo Porto Filho
Faculdade de Ciências e Letras de Assis - UNESP
Todos os dias somos “bombardeados” por diversos canais de comunicação alertandonos sobre os riscos da tão alardeada “epidemia” do Crack. Segundo estes meios de
comunicação (principalmente os meios televisivos), praticamente todas as mazelas, tanto na
segurança pública, como na saúde tem um vilão em comum, o Crack.
Em se tratando de segurança pública, os programas jornalísticos televisivos de cunho
sensacionalistas são os protagonistas que fazem a ligação entre a tão “visível” crescente onda
de criminalidade e o Crack. Ou seja, a cada homicídio, roubo, furto, entre outros crimes, a
primeira causa levantada é saber se o cometedor do delito é usuário de drogas (mais
especificamente usuário de Crack). Tendo esta “assertiva” respondida que sim, o apresentador
procura passar-nos a impressão que tudo se encaixa na “simples” teia social que leva um
sujeito a praticar um crime, “a culpa é do Crack”.
Em pesquisa realizada por Romanini & Roso (2010), durante o período de julho de
2008 a julho de 2009 foram monitoradas as matérias publicadas pelos três maiores jornais em
circulação do Rio Grande do Sul a respeito do Crack. Os pesquisadores constataram que nas
matérias que abordam a questão das drogas, o Crack é a única droga citada em 67% destas
reportagens, contra 4,6% da maconha, 7,3% da cocaína, 2,8% do álcool, 0,9% do cigarro.
Assim como, combinações do uso de mais de uma droga: maconha e cocaína (6,4%); álcool e
cocaína (1,8%); Outras (1,8%); álcool, maconha e cocaína (4,6%), e combinações não citadas
(2,8%).
Em relação às consequências do uso do Crack, as algumas matérias (19,3%) não
abordam essa questão. As matérias que tratam de tal assunto apontam como consequências:
Delinquência/Criminalidade (19,3%); Privação de Liberdade (12,8%); Violência praticada por
usuários (11,9%); Morte do usuário (9,2%); Terapêutica (6,4%);
Envolvimento com grupos criminosos/gangues, Problemas de Saúde e Problemas na família
(5,5%); Outros (1,8%); e Violência sofrida por usuários (0,9%).
De acordo com os pesquisadores supracitados, as matérias vinculadas quase nunca
discutiam as causas que levaram os indivíduos ao uso do Crack, e tinham como alvo a
responsabilização dos usuários, sempre na linha do velho ditado: “cadeia ou caixão”.
91
Na área da saúde pública, Moncal et al (2012), pontuam que a Secretaria Nacional de
Políticas sobre Drogas (Senad), do Ministério da Justiça, não dispõe de números atualizados
para mapear a dimensão real da expansão do Crack no país. A pesquisa mais recente
disponível sobre o tema é o Relatório Brasileiro sobre Drogas de 2009, organizado pela
Senad, mas os dados sobre o Crack são de 2005. Atualmente o governo corre contra o tempo
para aprimorar seu diagnóstico. Enfatizamos que com um olhar um pouco mais criterioso
sobre o que há disponível sobre o a “epidemia” do Crack demonstra algo de estranho. Por
exemplo, a Confederação Nacional dos Municípios (CNM) divulgou, em 2011, uma pesquisa
segundo a qual 98% das cidades analisadas dizem enfrentar problemas com o Crack. O estudo
foi baseado em questionários enviados às prefeituras, com perguntas como: “Seu município
enfrenta problemas relacionados ao consumo de drogas? Caso sim, qual: Crack ou outras
drogas?” Certamente o método influencia o resultado, considerando-se que a CNM é uma
associação que realiza a intermediação entre governo federal e prefeituras, sempre em busca
de verbas.
Murta (2007), em reportagem para o jornal Folha de São Paulo, explicita que os
números mais confiáveis são os apresentados pelas Organizações das Nações Unidas em
2007, que mostram que o álcool – droga lícita – continua sendo a que mais problemas causa:
sendo responsável em 2007, por 83% das mortes pelo uso constante de drogas (6.500). No
mesmo período, a incidência do Crack sobre esse índice, de tão pequena, não mereceu
menção na pesquisa da Senad (menos de 1% de usuários em relação a todas as outras drogas).
Nesta linha, Silveira (2011), ressalta que não existe a epidemia de Crack alardeada
pelas campanhas do Ministério da Saúde, haja vista que, nas pesquisas realizadas pelo
Programa de Orientação e Assistência a Dependentes (PROAD) da Universidade Federal de
São Paulo, o álcool continua sendo disparada a principal droga consumida por pessoas que
procuram o Programa. O autor desmistifica o conteúdo apresentado pelas campanhas do
Ministério da Saúde que afirmam que após a primeira tragada a pessoa fica dependente de
Crack, sendo que, de acordo com ele apenas 20 a 25% das pessoas que usam Crack ficam
dependentes, apontando ainda que vários usuários conseguem fazer o uso recreacional da
droga.
Este quadro epidemiológico do Crack apresentado pelas mídias e reforçado pelo
Ministério da Saúde tem causado a nítida sensação de medo e insegurança na população em
geral, dando a droga a propensão de “chaga apocalíptica”, assim como, tem “aberto portas”
para que antigas práticas anteriores a Reforma Psiquiátrica possam retornar, e as que
continuaram existindo possam se perpetuar.
92
Dentre estas práticas abordaremos duas formas de tratamento de usuários de Crack
bastante utilizadas atualmente, e que remetem a tempos bastante anteriores a Reforma
Psiquiátrica: a Psicofarmacoterapia e as internações (voluntárias e involuntárias) em hospitais
psiquiátricos.
Todas
Hospitalocêntrico
estas
duas
Medicalizador
formas
de
tratamento
remetem
proposto
por
Costa-Rosa
(2011),
ao
paradigma
sendo
que,
a
Psicofarmacoterapia e as internações em hospitais psiquiátricos reforçam a antiga ideologia
do médico com figura central do tratamento, dando aos outros profissionais o auspício de
apenas paramédicos, ou seja, auxiliares do médico.
Psicofarmacoterapia
Iniciaremos
no
primeiro
momento
discutindo
unicamente
a
respeito
da
Psicofarmacoterapia. Muito embora ela esteja intrinsicamente ligada às práticas de internação
em hospitais psiquiátricos e presentes em muitas comunidades terapêuticas, propusemos neste
artigo discuti-la em separado (se é que é possível), para que possamos ter uma melhor
compreensão da temática abordada.
Segundo Nascimento (2003), a indústria farmacêutica é um dos segmentos mais
lucrativos do mercado, ela é mais rentável que a indústria automobilística e que o ramo da
construção civil. Particularmente no caso dos psicofármacos, Itaborahy (2009), coloca que a
prescrição médica, a venda e o consumo de psicofármacos no Brasil tem aumentado de
maneira assustadora. No qual, a pesquisadora utiliza como exemplo o Metilfenidato, mais
conhecido comercialmente como Ritalina®. Sendo que, os dados apresentados constam que
de 2002 a 2006 a produção deste medicamento no Brasil teve um crescimento vertiginoso de
465%. Outro exemplo preocupante nos foi fornecido pelo I Levantamento do Uso de
Psicotrópicos no Brasil, realizado em conjunto com o Censo 2000. Segundo o levantamento
realizado, 3,3% da população brasileira utiliza diariamente benzodiazepínicos, sendo o
medicamento comercializado com o nome de Diazepam® o mais consumido. Se pensarmos
que a população brasileira gira em torno dos 190.000.000 de pessoas, então teremos no Brasil
uma média 6.000.000 de consumidores diários de benzodiazepínicos.
Para justificar o crescimento do consumo desenfreado dos psicofármacos no Brasil, foi
necessário que estes medicamentos fossem legitimados pelo que Costa-Rosa (2011),
denomina como Discurso do Mestre, sendo que, neste caso em particular, o mestre (ou sujeito
suposto saber), trata-se dos médicos, que detém o mecanismo da também suposta “verdade
médica”.
93
Nascimento (2003), explicita que a maior parte do investimento da indústria
farmacêutica está atrelada à propaganda e a publicidade. Segundo o autor, dados da CPI dos
medicamentos de 2003 demonstraram que no Brasil, 30% dos recursos da indústria
farmacêutica
são
investidos
anualmente
com
publicidade,
o
que
contabilizou
aproximadamente 4,5 bilhões de reais em 2002. Segundo o autor, a disputa das empresas está
basicamente ligada na associação do nome do medicamento como suposta “solução” para
determinada doença. Vale Lembrar que atualmente no mercado brasileiro já existem mais de
15.000 psicofármacos que se utilizam de nome-fantasia, correspondendo a apenas 2100
nomes-genéricos.
Lamb (2008), aponta que a indústria dos psicofármacos utiliza-se de um outro tipo de
propaganda e vantagens que não aparecerem nas mídias para influenciar a comunidade
médica a prescrever os medicamentos de seu interesse: como financiamento dos congressos e
dos médicos para deles participarem, oferecendo passagens aéreas, hospedagens e outras
regalias. Visitas regulares de propagandistas treinados, distribuição dos mais variados brindes,
durante as visitas aos consultórios, são práticas regulares.
Costa Val (2007), ressalta um fator preocupante que é anterior a prescrição de
psicofármacos pelos médicos. Este fator trata-se da eficácia de certas substâncias no
tratamento das denominadas psicopatologias. O autor coloca que o lobby da indústria
farmacêutica é tão grande que novos psicofármacos são colocados no mercado e publicados
em renomadas revistas científicas sem comprovação de sua eficácia. Sendo que, isto ocorre
quase sempre com o aval da comunidade médica ou de alguns médicos-pesquisadores em
particular, o que coloca em xeque as pesquisas médicas e sua relação com a indústria
farmacêutica. Enfatizando que grande parte das pesquisas em medicina são custeadas pela
iniciativa privada, e esta não o faz apenas pelo espírito de investir pura e simplesmente no
progresso da ciência.
Na questão específica do Crack, Cruz et al (2010), explicita que os estudos existentes
até o momento são propostos para o tratamento para cocaína, sem diferenciar suas formas de
apresentação ou uso. Atualmente não existe qualquer medicação aprovada especificamente
para tratamento da dependência de cocaína, sendo que, diversas medicações têm sido
estudadas sem sucesso no tratamento da dependência da droga. O uso de antipsicóticos não
traz benefícios, não produz controle de efeitos colaterais, não reduz a vontade (fissura) de usar
a droga, nem diminui a quantidade consumida de cocaína durante o tratamento. Vários anticonvulsivantes e diversos anti-depressivos já foram estudados e também não se mostraram
94
eficazes. O estudo de psicoestimulantes mostrou resultados inconclusivos. É importante
lembrar que embora não existam no momento remédios que diminuam a vontade de usar o
Crack, a prescrição de medicações podem ser indicadas para o tratamento das intoxicações e
sintomas físicos da abstinência.
Ressaltamos que não se tem a intenção de diminuir a importância do profissional
médico no processo de Atenção ao usuário de Crack que procura atendimento. Mas sim, situálo no como mais um profissional (ferramenta) de igual importância no que propõe a Estratégia
da Atenção Psicossocial. Onde o protagonista do processo de atendimento é o usuário e as
demandas subjetivas que ele traz (COSTA-ROSA, 2011).
A discussão que se procura fazer situa-se na crítica do psiquiatra ter papel central nos
atendimentos, utilizando particularmente de diagnósticos baseados no DSM e nas prescrições
de psicofármacos como prerrogativas às consultas e aos tratamentos. Dessa maneira, a
psiquiatria triunfa como Medicina Mental e funciona como aliada no Modo Capitalista de
Produção, enriquecendo a indústria químico-farmacêutica e depauperando as formas que os
sujeitos têm para responder aos seus impasses.
Na Estratégia Atenção Psicossocial, a saúde é tida como variável-efeito dos processos
de produção social da vida cotidiana num território, de maneira que nunca se terá uma
“resposta pronta” disponível nos equipamentos de Atenção. A ética que deve reger a EAPS é
a do sujeito como protagonista da produção das respostas de sentido capazes de fazerem
frente aos sintomas.
Para tanto, o psiquiatra deverá destituir-se do posto de mestre para atuar nos laços
sociais: Discurso da Histeria e Discurso do Analista, dando tempo à elaboração significante
por parte do sujeito. Assim, a revolução do modelo de Atenção estará muito mais no modo de
se fazer do que na finalidade da ação em si (COSTA-ROSA, 2011).
Mesmo as normativas do SUS já deixam evidente que toda prática de saúde supõe
lidar com a dimensão subjetiva, e é exatamente esta a exigência que se faz para superarmos
grande parte dos disparates sucedidos neste campo, a exemplo do uso de psicofármacos como
resposta a priori.
As Internações dos Usuários de Crack em Hospitais Psiquiátricos
Outra prática que tem se mantido cotidiana através da história do Brasil (mesmo após
a Reforma Psiquiátrica) é a internação em hospitais psiquiátricos dos sujeitos do sofrimento.
Muito embora a Lei n° 10.216 disponha sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras
95
de transtornos mentais, e redirecione o modelo assistencial em saúde mental, trazendo consigo
uma nova proposta de atendimento no campo da Saúde Mental Coletiva, visando o
atendimento aos “pacientes” de forma extra-hospitalar. Haja vista, que a internação só poderia
ocorrer quando esgotadas todas as outras possibilidades de atendimento (BRASIL, 2001).
A intenção exposta na Lei 10.216 em relação aos indivíduos que tiverem que serem
internados, é normatizar de forma mais humana o atendimento nos hospitais psiquiátricos,
sempre procurando o movimento reduzir as internações nestas instituições. Obviamente que
tivemos avanços neste sentido, mas não podemos furtar-nos de nos depararmos com os
hospitais psiquiátricos ainda extremamente lotados. Sendo muito destes hospitais custeados
parcialmente por convênios estabelecidos com o Ministério da Saúde. Podemos observar que
as instituições psiquiátricas (extremamente lucrativas) estão em grande parte nas mãos da
iniciativa privada, assim em concomitância, as internações nestas instituições tem cumprindo
seu papel nas “engrenagens” do Modo Capitalista de Produção (COSTA-ROSA, 2011). Este
movimento caracteriza-se pelo que denominamos de Privatização da Loucura.
A Lei n° 10.216 é clara ao utilizar o termo pessoa portadora de transtorno mental
(embora não concordamos com tal tipo de denominação que se faz excludente e
preconceituosa), ao que não nos parece se enquadrar o usuário de Crack e outras drogas (a não
ser pelo enquadramento estabelecido DSM e legitimado pela sociedade médica).
Este procedimento de enquadramento do usuário de drogas como portador de
transtorno mental é bastante comum na história da psiquiatria, onde tenta-se justificar
possíveis intervenções que são feitas com outras psicopatologias, ou seja, a medicalização e a
internação. Os hospitais psiquiátricos serviram (e servem) ao longo da história como depósito
de indivíduos “indesejáveis” no convívio social, isto foi realizado com militantes políticos,
miseráveis, etilistas, prostitutas, epiléticos, crianças e leprosos. Todos aspirando os “sonhos”
higienistas do Positivismo dentro da mesma instituição. (AMARANTE, 1996; FLEMING,
1976; FOUCAULT, 1978). Agora esta ideologia materializa-se como forma de tratamento aos
usuários de Crack, ou seja, para novos problemas, velhas soluções.
Podemos perceber um fragmento desta realidade explicitada utilizando como exemplo
o Estado do Paraná, onde os hospitais psiquiátricos privados e conveniados com o SUS
continuam superlotados e lucrativos, mas agora ocupados cada vez mais por dependentes
químicos, dentre eles a grande maioria usuários de Crack.
Um dos pressupostos da reforma psiquiátrica é a redução de leitos em hospitais
especializados – os antigos manicômios – e a criação de leitos em hospitais gerais,
além da criação de outras instituições voltadas a assistência psiquiátrica (como os
CAPS). Porém, a percepção inicial era que os grandes hospitais e clínicas psiquiátricas
atualmente existentes no estado do Paraná, a despeito de sua adequação as normativas
96
legais das políticas governamentais para a área da saúde mental – advindas do
movimento de reforma – mantém grande parcela dos leitos outrora existentes.
Contemporaneamente compreendem uma ocupação maciça por dependentes químicos,
os chamados drogaditos ou adictos, que ocupam parte significativa das antigas vagas
destinadas aos usuários tradicionais destes lugares, isto é, os portadores de transtornos
mentais, mais conhecidos como doentes mentais ou loucos (CASAGRANDE, 2010).
A pesquisa da autora supracitada, realizada em 4 hospitais psiquiátricos do Paraná,
mostra um dado assustador, em alguns hospitais a média de usuários de Crack que são
internados chega a 4 para 1 em relação as pessoas denominadas como portadoras de
transtorno mentais. Sendo que, a maioria dos hospitais tentam fazer alas para separarem a
demanda diferenciada, mas muitas vezes isto acaba não sendo possível.
Casagrande (2010), enfatiza dizendo que a Secretária da Saúde do Estado do Paraná
tem a intenção de criar mais leitos para os usuários de Crack nos hospitais psiquiátricos do
Estado, o que vai totalmente de encontro a Reforma Psiquiátrica. De acordo estão os donos
destes hospitais e clínicas, principalmente com o aumento da internação de adolescentes
usuários de Crack, o que demanda uma verba maior do SUS por paciente. Ressaltando que
cada internado deve permanecer no hospital por pelo menos 1 mês até ser computado pelo
SUS, assim garantindo o recebimento da verba pela instituição.
Obviamente este quadro apresentado não se restringe ao estado do Paraná, mas é uma
frequente em qualquer região do País. Mas ressaltamos que estamos falando de internações no
sentido geral, quando muitas vezes o próprio usuário é que requisita o tratamento de
internação por achar aquela a única solução possível para o seu problema. Este discurso que o
usuário incorpora quase sempre não é seu (mas se torna), foi reproduzido pela mídia,
reforçado por alguns profissionais da saúde (e não são apenas médicos), internalizado por sua
família que idealiza que ao sair da internação determinado indivíduo se subjetivará como
outra pessoa, é claro tomando regularmente seus remédios.
Este Discurso do Capitalista ignora a subjetividade do usuário, ignora o desejo do
indivíduo e as causas que o levam ao uso, que quase sempre são anteriores ao início do
processo de drogadição propriamente dito. Ou seja, mascara-se toda real problematização e a
catalisa em um inimigo em comum: o Crack. Este Discurso do Capitalista só se sustenta por
ser extremamente lucrativo (COSTA-ROSA, 2011).
Tendo desertado o próprio sujeito, sobra o corpo em rota de abolição em direção a um
gozo que finalmente o consome. Demonstração claramente de ordem ética. Denúncia
da ética de uma sociedade que aposta no gozo do objeto como solução para o desejo;
essa aposta não é, afinal, mais que o pretexto de uma economia que faz da extração de
gozo sua causa. O toxicômano nos fornece a demonstração em ato de um consumo tão
renitente que se consome. Tão bem, que se consuma. A propósito, pode-se afirmar que
seu ato de imolação trágica do próprio corpo aparece como afirmação hiperbólica de
97
traços homólogos do consumo predatório, presentes no corpo do próprio planeta.
Traços que a ideologia dominante ainda insiste em apenas dramatizar (COSTAROSA, 2009, p.95).
Mas há outro procedimento de internação que ignora toda e qualquer forma de vontade
e desejo do indivíduo, e que afronta de forma explicita os defensores da verdadeira efetivação
da Reforma Psiquiátrica no Brasil. Este procedimento autoritário e nefasto chama-se
internação compulsória, no caso específico de usuários de Crack.
Os primeiros movimentos para a implantação da internação compulsória como política
de tratamento para usuários de Crack começou a ganhar força a partir da errônea e mal
intencionada interpretação do Estatuto da Criança e do Adolescente no que dispõe sobre a
proteção integral:
Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao
adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à
educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade
e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de
negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.
No que tange a temática, Liberatti (1993) pontua que a doutrina da proteção integral
coloca-se no ECA no sentido de garantir os direitos das crianças e dos adolescentes no Brasil,
a fim de que os mesmos não sejam alvos de decisões judiciais e sejam vistos como seres de
direito. Ou seja, em nenhum momento o Estatuto posiciona-se- no sentido de ferir o direito de
ir e vir dos cidadãos, garantido na Constituição de 1988, e nem as prerrogativas da Lei
10.210. Enfatizamos que não há forma de garantir determinados direitos em prejuízo de
outros.
Utilizando-se de uma interpretação do ECA realizada a bel-prazer e direcionada a
interesses voltados a um processo de higienização das cidades. Haja vista que, segundo
Scisleski (2006), quase na sua totalidade os adolescentes que são internados em hospitais
psiquiátricos apresentam vulnerabilidade de ordem socioeconômica, e muitos já cometeram
algum tipo de ato infracional. Em concomitância SILVEIRA (2011, p.16) pontua que:
Existe uma lógica muito perversa da internação compulsória que atribui a
situação de miséria e de rua à droga, quando na realidade a droga não é a
causa daquilo, ela é consequência. Acredito que o trabalho feito nas ruas, nas
crackolândias e com crianças de rua deveria ser no sentido de resgate de
cidadania, moradia, educação, saúde (...) Acho que o argumento é válido e
acho que é verdade que o Estado realmente tem que cuidar dessas crianças.
Só que não acho que isso seja cuidar. Cuidar é dar moradia, educação, saúde.
Não é colocar a pessoa em um cárcere psiquiátrico, em um manicômio.
Porque é isso que vai acontecer: vão ser grandes depósitos de crianças
desfavorecidas e que usam drogas.
98
Scisleski (2006) enfatiza que as internações compulsórias de adolescentes em hospitais
psiquiátricos no Rio Grande do Sul, diagnosticados com “Transtornos Mentais e de
Comportamento devido a Uso de Substância Psicoativa” (F10-19) cresceram 42% de 2002 a
2006.
Nesta linha, a cidade do Rio de Janeiro em 20 de Maio de 2011 promulgou a resolução
n° 20, esta dispõe sobre a internação compulsória como política de tratamento para crianças e
adolescentes dependentes químicos. Sendo o principal contrassenso da Lei o fato que a
realização da abordagem para a efetivação da internação encontra-se aos encargos da
Secretaria Municipal de Assistência Social (a mesma que deveria garantir os direitos do
público infanto-juvenil). Silva (2011), denota que a efetivação destas internações não ocorrem
pelo poder argumentativo dos agentes municipais, mas sim pela colaboração de policiais
fortemente armados que acompanham estas abordagens.
No caso de adultos as internações compulsórias de usuários de Crack tem ganho
alguns adeptos no setor judiciário, sendo que cada vez mais elas são expedidas, muitas vezes a
pedido da família dos usuários ou profissionais da saúde. Ou em alguns casos mascaradas
como forma de acordo ou remissão das penas dos usuários de Crack que cometeram algum
delito, estas remissões são propostas pelos próprios juízes.
Nesta questão o Conselho Nacional de Justiça é enfático nos Provimentos n° 4 de
2010 e n° 9 de 2010 que especifica que:
A atuação do Poder Judiciário deve se limitar ao encaminhamento do usuário
de drogas à rede de tratamento, não cabendo determinar tipo de tratamento,
duração, nem condicionar o fim do processo criminal à constatação de cura
ou recuperação.
Para obter-se a legitimação jurídica das internações compulsórias, vistas por muitos
como a “solução final” para os problemas das crackolândias brasileiras, alguns projetos de lei
tramitam na Câmara dos Deputados e no Senado Federal em Brasília. Entre eles está o
polêmico Projeto de Lei 110/10 do ex- Senador Demóstenes Torres que propõe não só a
internação involuntária de usuários de drogas, mas sim a prisão dos mesmos como método
para induzi-los ao tratamento médico.
Silveira (2011), contesta do ponto de vista médico a política de internação
compulsória como forma de tratamento aos usuários de Crack, pontuando que nos países que
utilizam este dispositivo, a taxa de recaída no consumo da droga pelos usuários chega aos
98%. Embasados nestes dados podemos nos indagar o por quê do dispositivo da internação
compulsória, se ela não consegue cumprir minimamente os objetivos propostos por seus
99
defensores. A explicação pode estar na reflexão que as vezes os interesses não são apenas os
aparentes, ou seja, o bem-estar dos usuários de Crack.
Considerações Finais
Neste artigo partimos do pressuposto que a produção “Loucura” sempre foi e continua
sendo extremamente lucrativa ao longo da história. O dispositivo da “verdade médica”
continua sendo bastante eficaz ao legitimar qual indivíduo pode ser denominado de “louco”
ou desprovido de “condições de escolha”, como queiram os mais puritanos.
A mídia na forma contemporânea que se apresenta, pode ser utilizada como um
importante dispositivo na disseminação da pior das epidemias, “A Cultura do Medo”.
Podemos observar como exemplo disso, a irônica “Guerra dos Mundos” produzida por Orson
Wells em 1938, onde através de uma transmissão radiofônica, o mesmo comunicou que o País
estava sendo invadido por seres extraterrestres, tal fato causou pânico na população norteamericana da época, que acreditou na “brincadeira” que Wells transmitia pelo rádio. Outro
exemplo é a disseminação do medo constante de possíveis ataques terroristas que tem gerado
bilhões a indústria bélica nos Estados Unidos. No Brasil, um dos principais exemplos da
disseminação do medo está atrelada a indústria da segurança pública, colocando-a como uma
das mais lucrativas do País e transformando residências familiares em verdadeiros “fortes”
protegidos com cercas eletrificadas e monitoradas 24 horas por câmeras e guardas armados
(GLESSNER, 2003).
Ligada a indústria da segurança pública e a indústria da “Loucura” (indústria químicofarmacêutica e hospitais psiquiátricos privados), a suposta epidemia do Crack disseminada
pela mídia tem se espalhado e permitido que a um alto preço conquistas obtidas através de
lutas seculares voltem a serem colocadas em xeque, ou seja, a Reforma Psiquiátrica, a
Atenção Psicossocial, os direitos constitucionais, a prerrogativa das crianças e adolescentes
como cidadãos de direitos, entre outras, possam ser usurpadas pela legitimação de dados
inconclusivos e campanhas que beiram o senso comum. Haja vista, as realizadas pelo
Ministério da Saúde.
Qualquer campanha que fosse realizada em regime de urgência no combate ao uso de
drogas deveria em primeiro momento focar-se nas drogas que causam mais mortes e danos
sociais: o álcool e o cigarro. Fato este não ocasionado pelo lobby da indústrias de cerveja e
tabaco que arrecadam bilhões e pagam bilhões em impostos. Sendo ainda no caso específico
do álcool, feita a permissão para vinculação de propagandas que incentivem o uso da droga.
100
Concluímos dizendo que em nenhum momento negamos a existência de pessoas
dependentes de Crack e que não seja isso um problema de ordem social e que tem que ser
encarado com extrema seriedade tanto pelas secretarias de saúde e assistência social em
âmbitos municipais, estaduais e federal.
Finalizamos com a indagação do por quê desta campanha maçante que tem se
realizada especificamente com o Crack, e que nunca foram feitas com outras drogas ao longo
da história. Talvez a resposta esteja vinculada a reflexão de que boa parte dos usuários de
Crack após curto período de tempo deixem de produzir e consequentemente pagarem seus
impostos. Fato este não acontece com os fumantes que em sua grande maioria fumam por
décadas, assim como os etilistas que conseguem ingerir álcool diariamente por vários anos até
prejudicarem ou deixarem de exercerem suas atividades empregatícias. Ou seja, a discussão
parece-nos bastante ligada ao ser humano produtivo, e se é produtivo para o Discurso do
Capitalista, é “bom”. Mas se não é mais produtivo a pergunta torna-se outra: como poderemos
obter lucro com isso?
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103
A EXPERIÊNCIA DE UM MUNICÍPIO DE PEQUENO PORTE EM BUSCA DA
CONSOLIDAÇÃO DA REDE DE CUIDADOS EM SAÚDE MENTAL
Renata Cristina Marques Bolonheis Ramos
Nádia Ferro
CAPS I – Odeonel Lopes
[email protected]
Introdução
Durante séculos, o tratamento das pessoas com transtornos mentais e usuários de
álcool e outras drogas esteve pautado quase que exclusivamente na sua exclusão e isolamento
social. No decorrer da história, alguns grupos, em diversos países, foram percebendo que esse
modo de atender as pessoas com sofrimento psíquico não trazia resultados positivos, e em
muitos casos até piorava a situação do paciente. Por volta da década de 1970, a preocupação
econômica com os gastos ligados à saúde estimulou vários países do mundo a avaliarem os
tratamentos que estavam sendo oferecidos. Com isso, os atendimentos ambulatoriais, menos
custosos e mais breves que os hospitalares, ganharam repercussão (MARQUES, 2001).
Paralelamente, desenvolvia-se a Reforma Psiquiátrica, movimento iniciado na Itália na
década de 1960, que posteriormente repercutiu para outros países, até ser considerada
atualmente uma referência internacional reconhecida pela comunidade científica e
Organização Mundial de Saúde. A Reforma tem como objetivo fundamental o fim da
instituição psiquiátrica como lugar de violência e exclusão social. Teve suas bases nos
pressupostos defendidos por Franco Basaglia, contou com a participação de familiares e
usuários dos serviços de saúde, e, desse modo, possibilitou o contexto para a consolidação do
processo de criação de novas práticas de atenção psicossocial e de saúde mental
(AMARANTE, 2005).
No Brasil, especialmente a partir da década de 1970, seguindo esse movimento,
trabalhadores da saúde mental, usuários e familiares iniciaram um processo de busca por
melhorias na assistência oferecida às pessoas com transtornos mentais. Esse movimento foi
aos poucos se ampliando, até que em 2001 foi lançada a Lei nº 10.216 (BRASIL, 2001).
Nesse processo de discussão e busca por avanços na assistência à saúde, é importante
lembrar as quatro Conferências Nacionais de Saúde Mental, as quais possibilitaram debates
sobre aspectos fundamentais na atenção às pessoas com transtornos mentais e usuários de
álcool e outras drogas. Com a I Conferência Nacional de Saúde Mental, realizada em 1987,
104
reafirmou-se a implantação da Reforma Sanitária brasileira, tendo como premissas conceituais
a universalidade, integralidade, equidade, descentralização e participação (BRASIL, 1988).
Na II Conferência Nacional de Saúde Mental, que ocorreu em 1992, foi preconizada a
substituição do modelo hospitalocêntrico por uma rede de serviços diversificada e qualificada,
que tivessem como princípio a integridade do cidadão, em seus aspectos sociais, da educação,
cultura, esporte, lazer, seguridade social e habitação (BRASIL, 1994). Em 2001, a III
Conferencia Nacional de Saúde Mental, realizada na sequência da regulamentação da
Reforma Psiquiátrica pela Lei nº 10.216, reafirmou a necessidade de criação de uma rede de
serviços de atenção às pessoas com transtornos mentais e usuários de álcool e outras drogas
integrada ao SUS, que evitasse a internação em hospitais psiquiátricos e em clínicas até então
destinadas para tal (BRASIL, 2002b).
Na IV Conferência Nacional de Saúde Mental, realizada em 2010, foram ratificadas a
criação, o fortalecimento, e a ampliação da rede de saúde mental e de ações articuladas de
saúde mental na atenção básica, Núcleos de Apoio à Saúde da Família (NASF), Residências
Terapêuticas, CAPS, Unidades de Pronto Atendimento (UPA), leitos em hospitais regionais e
gerais, destacando que essa rede deve atuar na lógica antimanicomial e interdisciplinar,
integrada nas três esferas de governo (BRASIL, 2010).
Nesse contexto, foram lançados diversos documentos oficiais - leis, decretos,
portarias, relativos aos serviços de saúde mental. Cabe destacar a Portaria nº 3.088/2011, que
instituiu a Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) com a criação, ampliação e articulação de
pontos de atenção à saúde para pessoas com sofrimento ou transtorno mental e com
necessidades decorrentes do uso de crack, álcool e outras drogas, no âmbito do SUS
(BRASIL, 2011).
A partir dessa Portaria, a RAPS passa a ser constituída pelos seguintes componentes:
 Atenção Básica em Saúde: UBSs, Consultórios de Rua, Centros de Convivência;
 Atenção Psicossocial Especializada: CAPS I, II, III, CAPS AD, AD III e CAPSi;
 Atenção de Urgência e Emergência: SAMU 192, Sala de Estabilização, UPA 24 horas,
pronto atendimento, UBS, CAPS e outros;
 Atenção Residencial de Caráter Transitório: Unidades de Acolhimento, comunidades
terapêuticas;
 Atenção Hospitalar: enfermarias especializadas em hospitais gerais, Serviço
Hospitalar de Referência;
105
 Estratégias de Desinstitucionalização: iniciativas que buscam garantir às pessoas em
situação de internação de longa permanência os seus direitos, promoção de autonomia
e o exercício de cidadania, buscando sua progressiva inclusão social;
 Reabilitação Psicossocial: iniciativas de geração de trabalho e renda, empreendimentos
solidários, cooperativas sociais.
Verificamos, assim, que o tratamento das pessoas com transtornos mentais,
decorrentes ou não do uso de álcool e outras drogas, pode ocorrer em diferentes dispositivos
de atenção, abrangendo desde os cuidados básicos até a necessidade de internação, em uma
rede que lhe possibilite atendimento integral, nos moldes da intersetorialidade defendida pelo
SUS. Desse modo, para que a rede comunitária de cuidados seja efetiva, é imprescindível a
articulação dos diferentes dispositivos que a compõem. Sabemos que não são os serviços em
particular que possibilitam o acolhimento das pessoas com sofrimento mental, mas sim a
organização em rede das diferentes unidades do município.
Contudo, como é de consenso de alguns autores, como Bezerra Jr. (2007), Boarini
(2011), Daúd Júnior (2011), Luzio (2011) e Pitta (2011), apesar da rede de atenção
comunitária ter sido ampliada no Brasil nos últimos anos, os dispositivos existentes ainda
estão longe de darem conta de toda a demanda de atendimento às pessoas com transtornos
mentais e usuários de álcool e outras drogas. Sendo assim, abre-se um espaço para a
permanência e entrada de outros serviços de tratamento a esses pacientes, que não se
coadunam aos princípios da Reforma Psiquiátrica, como os hospitais psiquiátricos e as
comunidades terapêuticas, que inclusive foram incluídas na rede de atenção psicossocial pela
Portaria nº 3.088/2011.
Em outras palavras, apesar de todo movimento pela Reforma e, em tese, serem estes
os princípios que devem embasar o atendimento às pessoas com transtornos mentais e
usuários de álcool e outras drogas, os hospitais psiquiátricos e demais instituições de
internação prolongada continuam sendo admitidos dentro das políticas públicas de saúde
mental e apoiados pela sociedade que clama por soluções imediatas para esse problema.
Como discutido por Zenoni (2000), antes de existir para tratar o sujeito, a instituição de
internamento serve a uma necessidade social, de assisti-lo e colocá-lo à distância.
Assim, além do fato da RAPS não estar plenamente consolidada, segundo Alves
(2009), “a explicação para este esforço de conciliação entre racionalidades divergentes no que
se refere ao conteúdo e à organização das práticas de saúde pode ser remetida ao conflito de
interesses entre representantes dos diferentes modelos assistenciais no país” (p. 2316).
106
Diante disso, o presente trabalho tem por objetivo apresentar a experiência de
profissionais do Centro de Atenção Psicossocial - CAPS I - de um município de pequeno
porte do noroeste do Estado do Paraná, em busca da consolidação de uma rede comunitária de
cuidados, considerando os limites e possibilidades que se apresentam junto aos dispositivos
da RAPS do município em questão e da região.
Vale ressaltar que apesar dessa análise se limitar às práticas cotidianas que se
desenvolvem nos serviços de saúde de um município específico, não podemos perder de vista
os aspectos sociais, políticos e econômicos mais amplos que fundamentam a organização dos
serviços, as práticas profissionais e o próprio entendimento sobre o processo saúde-doença.
Panorama geral sobre o os serviços de saúde mental do município
O município de que trata o presente trabalho localiza-se na região noroeste do Estado
do Paraná, com população censitária em 2010 de cerca de 32.000 habitantes. A população
reside em sua maioria na zona urbana, mas há um contingente significativo de pessoas que
vivem na zona rural, principalmente se considerarmos a população que reside nos quatro
distritos da cidade. O IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) geral do município esteve
na faixa de 0,700 a 0,799 em 2010, o que é considerado um índice alto (IPARDES, 2013).
No que se refere aos serviços de saúde direcionados direta ou indiretamente ao
atendimento a pessoas com transtornos mentais ou com problemas relacionados ao uso e
abuso de substâncias psicoativas, o município conta atualmente com os seguintes serviços e
programas:

7 Equipes ESF (Estratégia Saúde da Família) que oferecem uma cobertura de
praticamente 100% da zona urbana;

11 UBS (Unidades Básicas de Saúde);

02 psicólogas e 01 médico psiquiatra atendendo em nível ambulatorial;

01 CAPS I, com os seguintes profissionais: 2 psicólogas, 1 assistente social, 1
médico psiquiatra, 2 monitoras de artesanato, 1 monitor de música, 1 pedagoga, 1
enfermeira, 1 auxiliar de enfermagem, 2 auxiliares de serviços gerais, 1 auxiliar
administrativo.

01 UPA (Unidade de Pronto Atendimento).
Podemos observar que o município em questão comporta um CAPS I, que teve seus
atendimentos iniciados em 2004, regido inicialmente pela Portaria nº 336 (BRASIL, 2002a),
107
que previa neste serviço atendimentos direcionados para pessoas com transtornos mentais
graves e persistentes. Em 2005, o CAPS I foi habilitado para tratar pessoas com problemas
relacionados ao uso e abuso de substâncias psicoativas. Atualmente, as normativas mais
recentes, incluindo a Portaria 3.088/2011 (republicada em 2013), esclarecem que os CAPS I,
indicado para municípios com população acima de 15.000 habitantes, devem atender pessoas
com transtornos mentais graves e persistentes e com necessidades decorrentes do uso de
crack, álcool e outras drogas de todas as faixas etárias. Contudo, o CAPS deste município
ainda não atende crianças e adolescentes, devido, em boa parte, à falta de estrutura física e de
profissionais em quantidade apropriada.
No tocante aos serviços de internação para pacientes com transtornos mentais ou com
problemas relacionados ao uso e abuso de substâncias psicoativas, a referência para o
município em questão é a emergência psiquiátrica de um hospital geral da região. Essa
emergência psiquiátrica possui 26 leitos e é referência para 66 municípios, o que corresponde
a uma população de cerca de 1 milhão e 200 mil habitantes. Existe também na região um
hospital psiquiátrico com 240 leitos, que recebe pacientes do município em questão. Assim,
muitas vezes os pacientes passam pela emergência e, devido à falta de vagas, acabam sendo
acolhidos no hospital psiquiátrico.
Em se tratando dos dispositivos das outras áreas, que de certo modo podem fazer parte
da RAPS, o município conta com: CRAS (Centro de Referência de Assistência Social);
CREAS (Centro de Referência Especializado de Assistência Social); Serviços de Convivência
e Fortalecimento de Vínculos, no âmbito da assistência social; grupos comunitários (Cristma,
Amor Exigente, Narcóticos Anônimos); ações das Secretarias de Esporte e da Cultura.
No que se refere à demanda da saúde mental do município, em especial de usuários de
substâncias psicoativas, não se tem muitos dados disponíveis, o que de certo modo não é
exclusividade do município foco desta pesquisa. Segundo Stochero, Araújo e Ahmed (2013),
um ano depois de o governo federal lançar o programa "Crack, é possível vencer",
destinando R$ 4 bilhões até 2014 para combater o avanço da droga no país, o
inimigo permanece uma incógnita. (...) O dinheiro, porém, pode estar sendo gasto às
cegas. Apesar de admitir que considera a droga uma "epidemia" no país, o governo
reconhece que não sabe o perfil dos usuários nem onde eles estão nem qual é a
melhor forma de tratá-los.
De acordo com registros levantados no CAPS do município em questão, este serviço
atende cerca de 120 pacientes ao mês, sendo em média 70% diagnosticados com transtornos
mentais e 30% diagnosticados como usuários de álcool e outras drogas. No ano de 2013, de
um total de 162 avaliações agendadas no CAPS, 68 eram casos de uso de álcool e drogas e 94
108
eram casos de transtornos mentais. Com relação aos encaminhamentos para internações,
encontramos registros de que, em 2013, das 37 pessoas encaminhadas, 22 tinham diagnóstico
de abuso de substâncias psicoativas e 15 de transtorno mental grave.
A prática em busca da consolidação da rede sob a ótica de profissionais de saúde
Tendo em vista o panorama brevemente apresentado, buscamos nesse momento
discutir os limites e possibilidades que se apresentam junto aos dispositivos da RAPS do
município em questão, sob o ponto de vista dos profissionais do CAPS I. Apesar de
entendermos que para uma análise consistente seria necessário avaliar a rede sob a perspectiva
dos diversos atores que a compõem (profissionais, usuários, familiares, gestores, etc.), os
levantamentos aqui propostos não pretendem ser conclusivos ou esgotar o assunto. A ideia é
compartilhar experiências e, talvez, a partir das considerações levantadas, suscitar outras
reflexões por parte dos profissionais que compõem as RAPS de diferentes localidades.
Para essa discussão, buscamos pontuar como os serviços do município em questão
estão estruturados e como se estabelecem as relações entre os diferentes dispositivos,
entendendo que a configuração atual da rede pode em algumas circunstâncias indicar limites e
em outras pode representar possibilidades à efetivação da rede de cuidados.
Sendo assim, partimos inicialmente da realidade do CAPS do município, pontuando
avanços e dificuldades vivenciadas na efetivação de seus objetivos, que incluem a
estabilização do quadro clínico e a (re) inserção social dos usuários. Esse serviço, que
funciona no município há cerca de dez anos, apresenta uma boa estrutura para atendimento de
pessoas com transtornos mentais graves e persistentes. A população em geral reconhece a
importância e os resultados alcançados no tratamento dessas pessoas, e os gestores
possibilitam as condições para a manutenção e funcionamento adequado da unidade.
Um desafio importante para o CAPS ainda é o tratamento para os usuários de álcool e
outras drogas. Quando foi pensado e estruturado, o CAPS não tinha como foco a atenção a
esses usuários, cabendo então aos profissionais, ao longo desses anos, buscarem alternativas
que favoreçam a vinculação e atendam às necessidades desse público, exigindo desde
capacitação e busca constante de conhecimento até certa dose de criatividade.
Como aspectos favoráveis ao processo de consolidação da RAPS, verificamos as
parcerias estabelecidas entre o CAPS e alguns serviços das áreas da saúde, assistência social,
educação e trabalho, que objetivam a reinserção social dos usuários atendidos. Dentre esses
serviços, temos: grupos para tabagistas, hipertensos e diabéticos; atendimentos de fisioterapia
109
e nutricionista; CRAS, que oferta grupos de convivência (terceira idade, jovens, gestantes) e
possibilita o acesso a benefícios e programas sociais; CREAS, que atende usuários em
situação de risco pessoal ou social, cujos direitos tenham sido violados ou ameaçados; cursos
ofertados pela Secretaria Municipal de Assistência Social, PRONATEC (Programa Nacional
de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego), SENAR (Serviço Nacional de Aprendizagem
Rural), dentre outros.
Um importante desafio tem sido a (re) inserção das pessoas com transtornos mentais
graves, decorrentes ou não do uso de álcool e outras drogas, no mercado de trabalho. O
município ainda não conta com oficinas de geração de renda e economia solidária. Embora os
produtos confeccionados nas oficinas terapêuticas do CAPS sejam comercializados, o
montante arrecadado é bem pouco para se pensar na autonomia financeira do usuário.
Pensando nisso, a equipe do CAPS tem buscado apoiar a criação de uma associação de saúde
mental no município, composta por usuários e familiares, enquanto um caminho para a
organização de estratégias para geração de renda.
Outro importante limite verificado no CAPS é o fato de não atender crianças e
adolescentes, especialmente pela falta de espaço físico e de profissionais em quantidade
suficiente, e também pela falta de preparo desses profissionais para o manejo adequado dessa
demanda. A situação é agravada no município pelo fato da rede como um todo não estar
organizada para atender a demanda infantil e adolescente em termos da atenção psicossocial.
Embora, em 2012, profissionais do CAPS e da atenção básica tenham elaborado um projeto
para organizar o atendimento a tal demanda, até o momento poucos avanços foram
conseguidos.
Além das ações básicas da Estratégia Saúde da Família, atualmente crianças e
adolescentes podem contar com atendimento psicológico individual e consultas com o médico
psiquiatra. No entanto, os profissionais disponíveis não dão conta de atender as longas filas de
espera existentes. Assim, sem um protocolo de atendimento e sem profissionais que sejam
responsáveis por organizar a rede de cuidados para o público infantil e adolescente, a
integração dos serviços de saúde com os demais dispositivos da rede, que poderiam contribuir
nesse processo, acaba não acontecendo a contento. Existe no município serviços e projetos
voltados para a infância e adolescência que são ofertados pelas áreas do esporte, cultura, lazer.
O desafio no momento talvez seja tornar essas ações cada vez mais extensivas, e não
centralizadas como ocorre atualmente, disponibilizando-as a todas as crianças e adolescentes
e abrangendo os vários territórios existentes no município.
110
As longas filas de espera para os atendimentos psicológico e psiquiátrico também são
observadas para os adultos que apresentam transtornos mentais leves e moderados. Apesar
dos profissionais da psicologia trabalharem com grupos, são grandes as demandas e
expectativas da população em geral por atendimento individual. Tal fator pode em parte ser
atribuído a questões históricas e culturais das ações em saúde, que priorizam práticas
individualizantes em detrimento de ações comunitárias. Como discutido por Yamamoto et al.
(2005), a transposição do consultório particular para o serviço público de saúde ainda é uma
realidade, e isso ocorre, dentre outros fatores, à própria organização do sistema de saúde.
Segundo os mesmos autores, ainda temos na dinâmica organizativa do SUS estruturas de
atendimento “(...) marcadamente compartimentalizadas e assistencialistas” (p. 275).
Para Luzio (2011), apesar de passados mais de dez anos da Lei nº 10.216/2001, ainda
prevalece a concepção de que a atenção em saúde mental deve estar centrada na consulta
psiquiátrica e na medicação, sendo ainda complementares as outras formas de intervenção, de
caráter psicossocial, que privilegiam a articulação de vários saberes. A mesma autora pontua
que alguns setores têm se organizado na busca pela diminuição das estratégias de
confinamento, mas em contrapartida outras estratégias de controle ganham terreno, como
observamos no processo de medicalização social que vem ganhando força especialmente nos
últimos anos.
Nesse sentido, verificamos ainda que, embora as ações da Estratégia Saúde da Família
representem importantes avanços na atenção à saúde mental, poucas ações que possibilitam a
socialização e reinserção social são ofertadas pela atenção básica no município em questão.
As poucas iniciativas de organização de grupos de convivência não foram em frente, devido
em parte à falta de recursos e principalmente à falta de preparo dos profissionais da atenção
básica para trabalhar com as demandas em saúde mental.
Outro aspecto limitante à consolidação da RAPS no município abordado é a pouca
oferta de leitos psiquiátricos em hospitais gerais. No momento, o município não tem um
hospital no qual possam ser pleiteados recursos para atendimento de crises e urgência em
saúde mental. Quando isso ocorre, os usuários são atendidos na UPA e, se necessário,
encaminhados para a emergência psiquiátrica de um hospital geral da região, que é referência
para diversos municípios, correspondendo a uma população de cerca de 1 milhão e 200 mil
habitantes. Como normalmente esse hospital geral não consegue atender à demanda, os
usuários acabam sendo encaminhados para o hospital psiquiátrico da região, onde ficam
internados por semanas e até meses.
111
Sabemos que instituições como esta, após a Lei nº 10.216/2001, não deveriam fazer
parte da rede de atenção à saúde mental e a porta de entrada para internação deveria ser os
hospitais gerais. O processo da forma como vem ocorrendo contradiz ainda o princípio de que
as internações de pacientes em crise devem ocorrer pelo menor tempo possível. Desse modo,
entendemos que a limitação da disponibilidade de leitos psiquiátricos em hospitais gerais
constitui um importante entrave à efetivação dos princípios da Reforma Psiquiátrica e à
atenção integral em saúde.
Nesse contexto, um aspecto que pode contribuir para a ampliação e efetivação da rede
são as capacitações, propostas por instâncias federais e estaduais, destinadas aos profissionais
de saúde, incluindo os da atenção básica, para acolhimento das demandas em saúde mental. O
CAPS, por exemplo, além das capacitações atualmente em andamento, no ano de 2012 foi
contemplado com um projeto de Supervisão Clínico-Institucional voltado para estratégias de
atenção aos usuários de álcool e outras drogas. Recentemente, em 2014, profissionais da
atenção básica passaram por capacitações voltadas à atenção em saúde mental. Observamos
que isso tem possibilitado reflexões por parte dos profissionais da saúde, incluindo médicos,
enfermeiros, dentistas, agentes comunitários de saúde, que cada vez mais concluem que
práticas individualizantes e medicalizantes não dão bons resultados, e que é urgente a
necessidade dos serviços se organizarem em busca de alternativas para o atendimento integral
aos usuários, nos moldes da atenção psicossocial.
Sobre isso, Yasui e Costa-Rosa (2008) apontam que os principais instrumentos que os
profissionais dispõem para a consolidação da Reforma Psiquiátrica nos serviços de saúde são
a formação permanente, que possibilita a redefinição e reorganização dos processos de
trabalho, e a articulação de alianças entre os diferentes setores da sociedade, que em muitos
casos funcionam de formas antagônicas.
Em termos de capacitação, verificamos ainda que os matriciamentos realizados entre o
CAPS e as equipes da atenção básica também têm sido bem proveitosos, no que se refere à
possibilidade de discutir ações para o enfrentamento desses e de outros desafios e limites que
se apresentam na rede do município em questão. Observa-se que a partir desses encontros, os
serviços estão mais interligados e a comunicação entre as unidades tem sido mais constante,
favorecendo a co-responsabilização dos casos atendidos.
Considerações finais
112
Por fim, entendemos que a implementação e consolidação da RAPS passam por
diversos desafios, que devem ser pensados e discutidos em conjunto pelos diferentes atores
que participam dessa construção, incluindo profissionais, usuários, familiares, gestores,
governantes. Sabemos que a maneira como os serviços estão organizados dependem de
inúmeros fatores, que vão desde os limites, capacidades, perspectivas e visões de mundo dos
indivíduos que compõem essa rede, até as questões relacionadas a processos sociais
complexos, alicerçados no modo de produção capitalista.
Assim, entendemos que a consolidação da RAPS não é um processo fácil e que os
problemas que se apresentam não podem ser solucionados com medidas rápidas e genéricas.
As propostas devem partir da análise e reflexão sobre a realidade da população atendida,
possibilitando avanços concretos em serviços que atendam às necessidades dos usuários,
demandando assim uma abordagem interdisciplinar e intersetorial. Como lembram Yasui e
Costa-Rosa (2008, p, 29), é fundamental que se viabilize “(...) a criação e expansão concretas
de uma rede de atenção e cuidados baseada em um território e pautada nos princípios de
integralidade e participação popular”.
Pensamos que a viabilização de tal processo implica um desafio ainda maior, que se
refere a uma mudança de paradigma e visão acerca do modelo de atendimento que vem sendo
proposto, não só no âmbito da saúde mental. Para isso, é necessário superar o modelo
tradicional cujas estratégias de cuidado são centradas na sintomatologia e, por conseqüência,
predominantemente medicamentosas, com ações funcionalistas que buscam meramente “(...) a
adaptação de indivíduos queixosos, desequilibrados ou desajustados” (YASUI & COSTAROSA, 2008, p. 29). E essa mudança de paradigma se torna ainda mais complexa se
pensarmos que a formação básica dos profissionais de saúde em geral está pautada em
perspectivas tradicionais, com disciplinas fragmentadas e pouco articuladas entre si.
Enfim, não são poucos os desafios que se apresentam. Contudo, nossa experiência,
enquanto profissionais de saúde, reforça o entendimento acerca da importância da
consolidação dessa rede de cuidados e, fundamentalmente, dos avanços já conquistados nesse
processo.
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115
FALANDO SOBRE SEXUALIDADE EM UM SERVIÇO DE SAÚDE MENTAL:
RELATO DE EXPERIÊNCIA
Camila Soares
Patrícia Aline de Almeida
Paulo Ricardo Camelo Bandeira Barros
Universidade Federal de São Paulo – UNIFESP
[email protected]
INTRODUÇÃO
No contexto de profundas alterações de princípios e práticas no âmbito da atenção à
saúde, salienta- se a prevenção e a promoção da saúde e a abordagem integral do sujeito
biopsicossocial. Verifica-se que, embora a proposta atual de assistência aos portadores de
sofrimento mental prime por uma abordagem integral, os aspectos relacionados à sua
sexualidade são negligenciados no cotidiano da atenção psiquiátrica (SOARES; SILVEIRA;
REINALDO, 2010, p. 346).
Miranda e Furegato (2004 apud BRITO; OLIVEIRA, 2009, p. 247), se referem ao
preconceito manifesto sobre a sexualidade do doente mental como parte de um mascaramento
social ou uma negação maior e espúria. A negação, repetida no contexto institucional e
profissional, simula um fragmento da sociedade.
Os mesmos autores falam que a imagem corporal do doente mental, na conjuntura da
instituição, pode ser descrita como um corpo despojado de beleza e de vigor físico
confirmando assim, a negação de um sujeito sexualmente desejável e desejante. Sobre os
aspectos físicos desses indivíduos advém o preconceito por não se reconhecer, no contexto
institucional, o corpo jovem, funcional, útil e desejado.
Atribui-se, em geral, o desejo sexual do portador de transtorno psíquico às
manifestações decorrentes da doença psiquiátrica, ao passo que uma das principais causas
para as alterações de libido relaciona-se à ausência de socialização, secundária às internações
prolongadas e ao profundo estigma vivenciado (SOARES; SILVEIRA; REINALDO, 2010, p.
346).
A abordagem da sexualidade do portador de transtorno mental ainda é um campo
pouco explorado pela maior parte dos profissionais de saúde. Esse assunto geralmente não é
contemplado nos currículos de graduação desses profissionais e os serviços de saúde mental
de forma geral não dispõem de programas que abordem essa temática de forma simples e
direta.
116
A sexualidade imprime-se nas concepções dos profissionais de saúde, de modo geral,
vinculada ao ato sexual, distanciando-se da amplitude semântica que a compreende. O
conceito de sexualidade refere-se à expressão da afetividade, à capacidade de estar e manterse em contato consigo e com o outro, perpassando assim a edificação da autoestima e do bemestar pessoal (SOARES; SILVEIRA; REINALDO, 2010, p. 346).
Em um estudo qualitativo realizado com profissionais de Enfermagem em um Centro
de Atenção Integral à Saúde Mental do Município de São Paulo, verificou-se o quanto o
preconceito, crenças, juízos de valor e estigma de trabalhadores da enfermagem interferem de
forma negativa na prestação da assistência. Cada entrevistado percebeu e interpretou a
sexualidade do portador de transtorno mental, de acordo com sua visão e referencial
construídos culturalmente. A única forma de lidar com a mesma deu-se por meio da repressão
(ZILIOTTO; MARCOLAN, 2013, p. 87 e 92).
Levando em consideração o exposto, citamos o relato de experiência acerca de
oficinas terapêuticas sobre sexualidade, que teve como objetivo descrever a experiência de
discentes na discussão da temática “sexualidade” em oficinas terapêuticas, bem como ratificar
a relevância de integrar essa temática ao eixo de atenção aos portadores de transtorno
psíquico.(SOARES; SILVEIRA; REINALDO, 2010, p. 346).
Os autores concluíram que a criação de espaços dialógicos permitiu contemplar
demandas, anseios e questionamentos identificados desde o início da implementação do
projeto, desconstruindo a ênfase socioassistencial na condição psiquiátrica. Abranger o
autocuidado, a autoestima e o bem- estar possibilita percorrer um caminho inverso de
(re)inserção social; é dizer, um percurso que parte do próprio indivíduo, da construção
de um bom relacionamento, primeiramente consigo mesmo.(SOARES; SILVEIRA;
REINALDO, 2010, p. 347 e 348).
Diante dessas considerações, a principal questão desse estudo é tentar responder ao
seguinte questionamento: como abordar a sexualidade do portador de sofrimento psíquico em
um serviço de saúde mental?
O objetivo do presente estudo foi descrever a experiência de coordenação de um grupo
temático sobre saúde com a proposta de discussão de conteúdos relacionados à sexualidade.
Acreditamos que a realização da presente pesquisa seja de grande relevância, pois
permite conhecer a experiência de um serviço extra-hospitalar com a abordagem de assuntos
relacionados à sexualidade do portador de transtorno mental e com isso fornecer subsídios
para que os serviços de saúde mental possam criar espaços de acolhimento e escuta que
possibilitem a reflexão sobre essa temática tão recorrente nos cenários institucionais.
117
ASPECTOS METODOLÓGICOS
Trata-se de um estudo descritivo de abordagem qualitativa na modalidade de relato de
experiência desenvolvido no programa de Residência Multiprofissional em Saúde Mental da
Universidade Federal de São Paulo.
O cenário do estudo foi o Centro de Atenção
Psicossocial II localizado no município de São Paulo, pertencente ao Departamento de
Psiquiatria da Universidade Federal de São Paulo que oferece assistência especializada a
adultos jovens com transtornos mentais graves. A amostra foi constituída por uma média de
15 usuários adultos, de ambos os sexos, na faixa etária de 20 a 56 anos e portadores de
diversos transtornos mentais.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
Caracterização do cenário
Conforme explicitado anteriormente, o CAPS UNIFESP é um serviço do
Departamento de Psiquiatria da Universidade Federal de São Paulo que oferece assistência
especializada a adultos jovens com transtornos mentais graves.
Conta com uma equipe interdisciplinar composta por psiquiatras, psicólogos,
terapeutas ocupacionais, assistente social, enfermeiro, auxiliar de enfermagem e
acompanhantes terapêuticos. Oferece tratamento em regime intensivo, semi-intensivo e
ambulatorial por meio de múltiplas intervenções que ultrapassam a clínica tradicional. Busca
promover saúde através da mediação social e ambiental nos diversos aspectos da vida:
relacionamentos, cultura, lazer e trabalho. Desta forma, possibilita a construção de um novo
significado para a experiência do paciente junto à equipe multiprofissional de saúde mental.
As múltiplas intervenções terapêuticas, a compreensão psicanalítica e o tratamento
farmacológico, integram a base dessa clínica complexa e ampla.
Além dos projetos terapêuticos individuais e grupais é desenvolvido um trabalho
voltado ao estabelecimento de um lugar para a integração das famílias no tratamento. É
campo de formação para residentes de psiquiatria, psicologia, terapia ocupacional, serviço
social, enfermagem e para especializandos e estagiários das diversas áreas da saúde mental.
Percurso e desenvolvimento do grupo
118
A temática sobre sexualidade foi abordada em um grupo de saúde coordenado por uma
equipe multiprofissional e a motivação para discussão se deu a partir da observação de
dúvidas, receios e crenças apresentados pelos usuários no cotidiano do serviço.
O grupo em questão possui as características de ser aberto e heterogêneo, composto
por usuários em diversos estágios do processo saúde-doença, acompanhados em regime
intensivo, semi-intensivo e ambulatorial. A coordenação e organização do grupo foram
divididas entre os membros da equipe multiprofissional.
Foram realizados 04 encontros distribuídos em três meses com discussão aberta e
utilização de recursos de ensino como folders, cartazes, cartilhas e distribuição de
preservativos ao final dos encontros. Além disso, foram desenvolvidas atividades práticas
com instrução sobre a adequada colocação de preservativos femininos e masculinos e a
participação de convidados especialistas.
Durante a coordenação do grupo observamos as diversas manifestações dos usuários
diante da temática sexualidade, enquanto alguns apresentaram comportamento de aversão
sexual e aparente desinteresse, outros se mostraram descontraídos e motivados com as
discussões. Além disso, observamos que grande parte dos usuários possui vida sexual ativa e
experiência no campo da sexualidade o que desconstrói a percepção da maior parte dos
profissionais da saúde de sexualidade negada desses indivíduos.
As principais demandas levadas para discussão em grupo pelos usuários foram
conteúdos relacionados à homossexualidade, efeitos dos psicofármacos no padrão de
sexualidade, masturbação, dúvidas quanto à utilização de métodos contraceptivos, orgasmo
feminino, entre outros.
O grupo foi constituído por indivíduos com grande variedade de sinais e sintomas
relacionados à patologia de base, portanto procuramos abordar os conteúdos de forma simples
e direta, o que facilitou a exposição de dúvidas e a participação dos usuários com dificuldade
de comunicação verbal e interação social.
Por vezes foi necessária a imposição de limites como recurso terapêutico quando
realizadas perguntas fora de contexto, objetivando manter a adequada organização e
funcionamento do grupo.
De forma geral os usuários se mostraram participativos e interessados, e conseguiram
estabelecer uma rica troca de experiências e informações durante as discussões em grupo, o
que permitiu a construção de uma rede de apoio que pode sanar eventuais dúvidas ou receios
que possam vir a aparecer no cotidiano do serviço.
119
Percepção e contribuição dos profissionais da equipe multiprofissional
A escolha do tema foi uma estratégia de educação e promoção da saúde, visto que o
assunto não é abordado de modo significativo nessa população no serviço. Os resultados
permitiram contribuir na criação de espaços para reflexão de mitos, tabus e preconceitos, além
disso, entender como a sexualidade é percebida no cotidiano dos próprios usuários.
Lidar com a sexualidade faz parte da prática de muitos profissionais da área da saúde,
levando muitas vezes a grandes desafios, sendo necessário que os mesmos estejam preparados
e obtenham conhecimento adequado quando se trata do assunto, especialmente na população
em questão e assim estarem aptos a darem respostas efetivas e eficazes, sob uma óptica do
cuidado, sanando as dúvidas e principalmente quebrando preconceitos.
Portando é possível compreender que a educação sexual deve ser assunto abordado
com esse público, visto que a sexualidade é um componente fundamental do ser humano e
que faz parte do seu desenvolvimento e dessa forma, o profissional pode atuar nesse espaço
como lugar de intervenção, uma vez, que diante da literatura a temática é negada pela maioria
dos profissionais da área da saúde.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Enquanto coordenadores observamos que essa temática é pouco abordada com os
usuários no contexto dos serviços de saúde mental, e que a experiência trouxe a oportunidade
de acessar assuntos relacionados à sexualidade desses indivíduos que ainda não é percebida
como uma necessidade humana básica.
A compreensão integral do indivíduo deve orientar a prática dos serviços de saúde
mental, levando em consideração os aspectos biopsicossociais que devem ser percebidos
como pertencentes a um todo inseparável e indivisível. Os profissionais de saúde devem estar
preparados para abordar questões relacionadas à sexualidade dessa população nos diversos
cenários do cuidado, e através de atividades educativas, instruir a população sobre esse
assunto cercado por tantos mitos, tabus e preconceitos.
Destacamos ainda a necessidade de inclusão nos currículos de graduação e pósgraduação de conteúdos relacionados à sexualidade do portador de sofrimento psíquico e com
isso possibilitar a desmistificação da percepção culturalmente construída de sexualidade
negada do doente mental.
REFÊRENCIAS
120
BRITO, Patrícia Francisca de; OLIVEIRA, Cleide Correia de. A sexualidade negada do
doente mental: percepções da sexualidade do portador de doença mental por profissionais de
saúde. Ciências & Cognição, 2009, 14.1: 246-254.
SOARES, Amanda Nathale; DA SILVEIRA, Belisa Vieira; DOS SANTOS REINALDO,
Amanda Márcia. Oficinas de sexualidade em saúde mental: relato de experiência. Cogitare
Enfermagem, 2010, 15.2: 345-348.
ZILIOTTO, Gisela Cardoso; MARCOLAN, João Fernando. Percepção de trabalhadores de
enfermagem sobre sexualidade de portadores de transtornos mentais. Acta Paul Enferm, 2013,
26.1: 86-92.
Unifesp – Departamento de Psiquiatria. Disponível em: http://www.unifesp.br/dpsiq/novo/
Acesso em 30/08/2014.
121
O PROCESSO DE TRABALHO EM SAÚDE NO BRASIL: CONSIDERAÇÕES A
PARTIR DO CAMPO DA SAÚDE MENTAL
Natália Aparecida Barzaghi
Universidade Estadual Paulista – UNESP/Assis e Faculdade Ingá (Maringá-PR)
[email protected]
À apreensão e significação da palavra trabalho no cotidiano pode-se vincular uma
série de elementos do campo afetivo, social, moral e econômico. Em relação à compreensão
etimológica da palavra em português, encontra-se na origem, o vocábulo do Latim tripalium
que faz referência a um instrumento composto por três paus salientes, por vezes com a
presença de ponta de ferro, utilizado primeiramente por agricultores durante o traquejo com
culturas de cereais e posteriormente como objeto de tortura. A este radical liga-se o verbo,
também latino, tripaliare que significa torturar, desta matriz semântica relacionada a
sofrimento surge a acepção de obrar, esforçar-se, laborar. Por meio da análise desta trajetória
chega-se ao entendimento de que para haver trabalho faz-se necessário que haja também
esforço (ALBORNOZ, 1992).
O significado concreto do trabalho para o desenvolvimento do homem e da sociedade
é feito por Karl Marx, que entende que a essência do ser humano está no trabalho, o que os
homens produzem é o que eles são. Para ter a dimensão da importância do trabalho para as
análises marxistas, é por meio deste que o homem alcança a sua humanidade e se distingue
dos animais.
Para Engels (1990) o trabalho fundamenta a vida humana, por conta do fato de ser o trabalho
que cria o próprio homem, o autor fundamenta sua postura a partir da análise da evolução do
macaco. No final do período geológico terciário a terra era habitada por uma raça de macacos
antropomorfos, estes animais tinham o corpo coberto por pelos, viviam nas árvores e em
manadas, possuíam a necessidade de se segurarem nos galhos ao mesmo tempo em que
realizavam outros movimentos com os pés, por conta disso foram, paulatinamente, assumindo
uma postura cada vez mais ereta e concomitantemente diferenciando as habilidades e funções
dos pés e mãos. Tal fato foi decisivo para a evolução, as mãos dos macacos encontravam-se
livres, e, a partir de então puderam evoluir em destreza e habilidade, características que foram
transmitidas geneticamente e aprimoradas a cada geração, o desenvolvimento da mão do
macaco foi de fundamental importância para o inicio do que se conhece como trabalho.
Este desenvolvimento influenciou no desenvolvimento societário, em determinado
momento de sua evolução e por força das influencias externas, os homens tiveram a
122
necessidade de se comunicar, aos poucos nasceram o órgão vocal e a laringe do macaco, bem
como as articulações de sua boca foram se desenvolvendo até dar origem a fala e a linguagem.
Neste sentido, entende-se a origem da linguagem a partir e por intermédio do trabalho.
Os primeiros instrumentos criados pelo homem são relacionados às funções de caça e pesca,
posteriormente e por conta do processo de migração o homem aprendeu a construir habitações
para se proteger, deste modo outras modalidades de trabalho foram sendo desenvolvidas.
Concomitantemente o desenvolvimento do cérebro humano o levou à separação entre o
planejamento e execução das ações. (ENGELS, 1990).
De acordo com Engels (1990), todos os modos de produção da vida que já existiram
visavam apenas o utilitarismo do trabalho, de modo direto e imediato. Quando da organização
comunitária da terra houve o esgotamento de terras livres, há a decadência da noção de
comunidade, a população é dividida em dois grupos distintos, um deles domina e o outro é
oprimido. Posteriormente todos os modos de produção tem por base esta divisão, e os
interesses da classe dominante impulsionam à produção, sobrando à classe oprimida a
manutenção de sua sobrevivência de maneira cada vez mais precária.
Fica nítido que as noções de trabalho e divisão de classes são conceitos chave para o
entendimento da organização social desta perspectiva. Marx define o trabalho como: “um
processo entre o homem e a Natureza, um processo em que o homem, por sua ação, medeia,
regula e controla seu metabolismo com a Natureza” (MARX, 1983, p.149). É, portanto, por
meio desta relação de domínio da Natureza que o homem se destinge dos demais animais, ao
passo que este por meio de sua ação e visando um objetivo transforma a natureza e também é
transformado no que tange ao seu ser social.
Outro ponto importante diz respeito a intencionalidade e antecipação da ação do
homem em seu trabalho, algo que não ocorre em outras espécies. A fim de elucidar esta
premissa Marx apresenta a clássica diferenciação entre uma abelha e um arquiteto, ambos
podem construir uma moradia, todavia a abelha o faz seguindo uma espécie de comando
instintivo gerando sempre um mesmo resultado, uma colmeia, o que torna possível a
conclusão de que há uma noção de abelha genérica que repete os mesmos rituais produzindo a
mesma coisa. Já o arquiteto, ou qualquer humano que construa uma moradia, realizará
anteriormente esta construção em seu aparelho mental, ou seja, o homem constrói primeiro a
moradia em sua cabeça para depois exterioriza-la, levando em consideração um recorte
interessado, qual seja, o tipo de moradia que vai construir e com qual finalidade, implica-se a
ideia de que não há um código fixo do que é morar ou como morar (MERHY, 2002).
123
Neste sentido, o processo de trabalho do homem é composto por alguns elementos
relativamente estáveis, sendo eles o trabalho em si, representado pela ação do trabalhador, a
matéria-prima e as ferramentas utilizadas no trabalho, porém, a simples junção destes
componentes não traduz a produção de algo, é necessário que haja uma articulação e
organização em torno do projeto de produção, ou seja, é preciso que haja certo nível de
qualificação por parte de quem realiza o trabalho a fim de organizar e levar a cabo a
realização do trabalho e construção de um determinado produto.
O trabalho humano tem uma função social, atender a necessidade primária de
transformar a natureza em bens materiais a fim de satisfazer as necessidades humanas. Porém,
para que se avance na compreensão do trabalho faz-se necessário o entendimento do conceito
de organização capitalista dos meios de produção e seu correspondente, a mais valia. Levando
em consideração a divisão da sociedade em duas classes opostas, a burguesia e o proletariado,
tem-se que o primeiro grupo se constitui enquanto detentor dos meios de produção da vida, ao
passo que o segundo, expropriado, possui apenas sua força de trabalho, que é vendida à
burguesia em troco da sobrevivência. Sendo, a exploração e a acumulação de capital por parte
da burguesia fundantes da sociedade de classes, a mais-valia é o processo pelo qual o burguês
se apropria do trabalho excedente realizado pelo proletário, é a diferença entre o valor do
trabalho pago e do trabalho produzido.
No contexto dos setores de trabalho no capitalismo, há a diferenciação entre
trabalhador- assalariado e proletário, relacionados aos conceitos de trabalho produtivo e
trabalho improdutivo, na perspectiva do conceito de trabalho abstrato. Trabalho e trabalhador
produtivos não são aqueles que produzem algo para si, mas para o próprio capital, ou seja, é
produtivo na medida em que gera mais-valia para o capitalista ou se presta à autovalorização
do capital. Neste sentido, é possível a afirmação de que toda transformação da natureza é
produtiva, todavia, nem todo o trabalho produtivo necessariamente transforma a natureza
(LESSA, 2003).
O Trabalho em si é condição sine qua non da vida social, classificar o Trabalho em
produtivo e improdutivo é peculiar da sociedade capitalista. No momento em que a produção
capitalista atinge determinado ponto, é mais interessante ao industrial dedicar-se apenas a
indústria enquanto os outros setores compartilham a mais-valia por ele expropriada dos
proletários. É neste momento que se torna clara a divisão entre os trabalhadores proletários e
os trabalhadores assalariados não proletários, os primeiros produzem e valorizam o capital ao
passo que os segundos fazem apenas uma destas funções, como exemplo do último grupo é
possível pensarmos um médico e sua relação com uma instituição privada de saúde. Há ainda
124
os trabalhadores improdutivos que nem produzem e nem valorizam o capital, neste grupo
situam-se os funcionários públicos e os trabalhadores do setor administrativo dos negócios
burgueses, como os engenheiros, gerentes, contadores e outros (LESSA, 2003).
No Brasil, os estudos referentes ao processo de trabalho em saúde são iniciados por
Maria Cecília Ferro Donnangelo através de suas análises das relações saúde e sociedade por
meio da contraposição entre profissão médica e práticas sociais, pontuando que tais relações
encontram-se impregnadas pelo conteúdo social. Destaca-se também, a importância de
Ricardo Bruno Mendes Gonçalves, discípulo e colaborador de Donnangelo que formulou o
conceito de processo de trabalho em saúde (PEDUZZI & SCHRAIBER, n.d).
Na construção do conceito, é feito uma aproximação entre os componentes do
processo de trabalho em Marx – objeto de trabalho, instrumentos, finalidades e agentes – com
a prática em saúde. Neste sentido, o objeto representa aquilo a ser transformado (matéria
prima) no setor representado pelas necessidades humanas de saúde, sobre isso incide a ação
do trabalhador. A intencionalidade do processo de trabalho é representado pelo olhar
interessado do profissional que evidencia a característica potencial do objeto, qual seja, o fato
de conter o produto resultante da transformação representada pelo trabalho. Os instrumentos elementos inseridos entre o trabalhador e o objeto de trabalho - são constituídos
historicamente e ampliam as possibilidades de intervenção, além disso, são classificados em
materiais e não-materiais, sendo os primeiros vinculados a equipamentos, medicação, material
de consumo e outros desta espécie, ao passo que os segundos representados pelos saberes que
possibilitam a apreensão do objeto de trabalho. Objeto e instrumentos de trabalho só assumem
sua potência à medida que são intermediados pela ação do agente do trabalho, que lhe
imprime finalidade especifica. Na saúde, o agente pode ser entendido também como
instrumento do trabalho e sujeito da ação, dado que, levam para dentro do processo de
trabalho para além de um projeto e sua finalidade, concepções ideológicas de caráter tanto
coletivo quanto pessoal (PEDUZZI & SCHRAIBER, n.d).
O trabalho em saúde deve ser observado em seus pormenores. Podemos tê-lo como um
trabalho reflexivo e permeado por incertezas e descontinuidades, o que dificulta a completa
normatização das ações, bem como dos critérios econômicos de produção a ele vinculados,
todavia, assim como o setor industrial, o setor saúde tem na organização de seu processo de
trabalho influência dos moldes tayloristas/fordistas de produção, o que gera problemáticas no
que tange a autonomia profissional em relação às regras institucionais (PEDUZZI, 2003).
A divisão do trabalho em saúde pode ser relacionada ao processo de especialização da
atividade médica, do qual deriva o desenvolvimento das áreas de atuação complementares,
125
tais como a Psicologia, Nutrição, Fisioterapia e outros. Este processo possibilita um avanço
qualitativo referente aos cuidados especializados, porém, tem por consequência a gênese da
fragmentação do cuidado em saúde. Concomitantemente ao movimento de coletivização do
trabalho, há a institucionalização da saúde por meio da qual as formas instantâneas, informais
e alternativas de cuidado tendem à extinção.
Outra peculiaridade do trabalho em saúde é o fato de que a produção e o consumo do
produto (ações de saúde) ocorrem simultaneamente, isso nos faz pensar que o trabalho na/em
saúde se dá por meio do encontro entre o sujeito trabalhador e o sujeito usuário do serviço.
Nesta perspectiva há a construção de um espaço intersubjetivo potencial entre estes dois
atores, e cada qual pode oferecer uma série de elementos que dão corpo à qualidade do
encontro. Desta forma, sobre as especificidades do âmbito subjetivo do trabalhador e do
usuário podemos pensar que:
Um, ao ‘carregar’ a representação de um dado ‘problema’ como ‘problema
de saúde/necessidade de saúde, procura obter neste encontro, no mínimo,
uma relação de compromisso que tenha como base a ‘sinceridade’, a
‘responsabilização’ e a ‘confiança na intervenção, como uma possível
solução’; o outro, também está procurando nesta relação algumas coisas,
também tem necessidades, mas esta procura não necessariamente tem algo a
ver com o que o outro espera (MERHY, 2002 pp 76-77).
Sobre o pensamento acerca do trabalho em saúde, destaca-se as contribuições de
Merhy (2002), o trabalho vivo é a esfera das abordagens mais relacionais, do encontro.
Vincula-se a noção de “tecnologia leve”. Tal conceito e seus correlatos “tecnologia leve-dura”
e “tecnologia dura”, são criados por Mehry e tem inspiração na contribuição de Ricardo
Bruno Gonçalves Mendes acerca de tecnologias materiais e não materiais para o trabalho em
saúde. Estas tecnologias estão sempre associadas no processo de trabalho, estando em maior
ou menor relevância dependendo do arranjo da produção do cuidado. As tecnologias duras
são representadas pelas máquinas e instrumentos, as leve-duras pelo conhecimento técnico, e
as leves, vinculadas a esfera das relações micropolíticas estabelecidas no encontro. Ao
pensarmos a prática do cuidado pautada no modelo Biomédico de atenção a Saúde, temos a
prevalência de tecnologias duras e leve-duras, neste sentido, para que haja quaisquer tipos de
mudança na produção de saúde, é preciso que haja uma inversão das tecnologias do trabalho
este processo é denominado transição tecnológica. A transição tecnológica se caracteriza por
uma alteração que causa impacto tanto na relação existente entre os núcleos tecnológicos do
cuidado, quanto na composição técnica do trabalho. Ela deve ser pensada como um processo
de construção social, político, cultural, subjetivo e tecnológico, que imprime um novo sentido
126
para as práticas assistenciais com resultados a serem obtidos para os usuários e trabalhadores
(MEHRY, 2002).
Para se pensar o trabalho em Saúde Mental se faz necessário, mesmo que brevemente,
uma contextualização da Reforma Psiquiátrica no Brasil, vale salientar que ao se tratar de
Reforma Psiquiátrica entende-se aqui mudanças que estão para além da estruturação dos
serviços, a entende-se como um processo social complexo, à noção de processo aproxima-se a
ideia de movimento e interferência de diversos elementos, à titulo de sistematização e
didática, Amarante (2007), apresenta as dimensões de tal processo, para alterações efetivas no
campo da saúde mental há de se pensar as nuances socioculturais, técnico-assistenciais,
teórico-conceituais e jurídico-políticas envolvidas no cuidado.
Percebe-se que a proposta da Reforma Psiquiátrica brasileira não se ateve apenas a
ideia da desospitalização ou da melhoria dos cuidados no âmbito dos manicômios, isto porque
questiona elementos que estão para além da estrutura física do equipamento em questão, tal
fato, deve-se em parte pela influencia da Psiquiatria Democrática Italiana. Franco Basaglia
(1924-1980), seu percursor, propôs uma alteração radical ao romper com a Psiquiatria
enquanto ideologia dominante. O pensamento basagliano tem como fundamento as seguintes
premissas: a destruição do aparato manicomial, entendido não só como a estrutura física do
manicômio, mas como uma série de relações que perpetuam o estigma, a segregação e os
conceitos de periculosidade e irrecuperabilidade associados à Loucura; o combate a
tecnificação, compreendido como: “a luta obstinada de não substituição por outros saberes
científicos sobre a doença, criando assim novas ideologias para justificar assim novas
intervenções” (AMARANTE, 1994 p. 63); a constituição de uma relação contratual em que o
sujeito despido de preconceitos saia da condição de tutelado e alcance a relação de um
contrato de cuidado e por fim, a clara consciência de que tais avanços só se efetivarão
mediante lutas sociais e políticas. Outros conceitos importantes de Basaglia alimentaram a
construção da Reforma no Brasil, tais como a noção de duplo da doença mental e a
perspectiva de colocar a doença mental entre parênteses para que se olhe o sujeito por trás do
diagnóstico. Além da influência intelectual, as vindas de Basaglia e de outros militantes ao
Brasil foram fundamentais para os rumos da Reforma Psiquiátrica, destaca-se sua visita ao
Manicômio de Barbacena em 1979 e a repercussão de seus depoimentos sobre o mesmo nos
veículos midiáticos nacionais e internacionais.
Retomando a ideia de processo social complexo, no que tange a dimensão técnicoassistencial residem elementos importantes para a reflexão acerca do trabalho em saúde
mental, a superação do paradigma psiquiátrico tradicional impele a mudanças importantes em
127
relação ao processo de trabalho, à medida que há uma alteração na concepção de objeto das
ações, outrora focada exclusivamente na doença mental entendida como algo individual e ahistórico, para o entendimento da experiência humana em sua complexidade trazendo a baila
fatores sociais, culturais e psicológicos. Desta forma, o ‘cuidado’ que fora de domínio quase
que exclusivo do médico psiquiátrico precisa ser repensado (YASUI, 2006).
Todavia, e entendendo o processo histórico da categoria dos psicólogos no Brasil, a
inserção deste profissional e sua relação com o cuidado em saúde mental não fora algo
simples e rápido, a título de elucidação no auge do modelo manicomial no país e na
insurgência do Movimento dos Trabalhadores em Saúde Mental (MTSM) nos fins da década
de 1970 a participação da categoria era praticamente insignificante, de acordo com
Vasconcelos (2004) neste período havia 23 Postos de Atendimento Médico com assistência
ambulatorial psiquiátrica no estado do Rio de Janeiro, nestes trabalhavam 269 médicos
psiquiatras e 6 profissionais da Psicologia, em contrapartida, sobre a formação dos psicólogos
no período subsequente que vai de 1980 à 1987 ao qual o autor denomina a partir dos
acontecimentos da época de: “Expansão e Formalização do Modelo Sanitarista (Ações
integradas de Saúde e Sistema Único de Saúde); Montagem de Equipes Multiprofissionais
Ambulatoriais de Saúde Mental; Controle e Humanização no Setor Hospitalar, Ação a partir
do Estado”, tem-se uma postura bastante incoerente com os desafios que vão se desenhando,
trazendo aos serviços consequências importantes, nas palavras do autor:
Em decorrência deste tipo de formação e da cultura profissional mais difusa
na categoria, os psicólogos que entraram na rede pública se mostraram
completamente despreparados para os novos desafios e serviços que
encontraram, tendendo a repetir nos serviços ambulatoriais, com clientela
oriunda principalmente das classes populares, o padrão de prática
hegemônico nas clínicas privadas (VASCONCELOS, 2004 p.76).
Ainda em 1987, dois momentos importantes para a história da Reforma Psiquiátrica,
acontecem a I Conferência Nacional de Saúde Mental, que além de trabalhadores da saúde
contou também com a participação de usuários dos serviços de saúde e seus familiares, e o II
Congresso dos trabalhadores em Saúde Mental, realizado no município de Bauru, no interior
do Estado de São Paulo, proposto pelo MTSM no intuito de reavaliar seus princípios e
estratégias, nesta ocasião o movimento ganha contornos de movimento social e por Luta
Antimanicomial passamos a entender um movimento social que abrange além dos
profissionais de saúde mental, associações de usuários e familiares, estudantes, artistas bem
como intelectuais e outros sujeitos protagonistas que levam para o interior da comunidade a
discussão da Loucura (AMARANTE, 1997).
128
Em 1989 entra em tramitação no congresso nacional o Projeto de Lei 3657/89 de
autoria do deputado Paulo Delgado, após 12 anos aprova-se em 2001 a lei 10.216, conhecida
como lei da Reforma Psiquiátrica que: “Dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas
portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental”
(BRASIL, 2001).
Ao propor o tratamento preferencialmente em serviços comunitários de saúde mental,
a lei fortalece os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) como dispositivo estratégico da
Reforma Psiquiátrica Brasileira, o cuidado de base territorial reveste-se de importância à
medida que possibilita o fechamento dos leitos manicomiais no país substituindo-os e
organizando o cuidado em rede, neste sentido, cabe aos CAPS:
É função dos CAPS prestar atendimento clínico em regime de atenção diária,
evitando assim as internações em hospitais psiquiátricos; promover a
inserção social das pessoas com transtornos mentais através de ações
intersetoriais; regular a porta de entrada da rede de assistência em saúde
mental na sua área de atuação e dar suporte à atenção à saúde mental na rede
básica. É função, portanto, e por excelência, dos CAPS organizar a rede de
atenção às pessoas com transtornos mentais nos municípios (BRASIL,2004,
p.13).
No campo da produção do conhecimento científico em psicologia, as pesquisas acerca
do trabalho em saúde mental a partir do processo da reforma psiquiátrica, são relativamente
escassas, devido, dentre outras coisas, ao curto espaço temporal destas experiências
(SAMPAIO ET AL, 2011).
Para alcançarmos os objetivos da Reforma Psiquiátrica a partir do entendimento da
alteração paradigmática e do processo social complexo os desafios são imensos, pois como já
ressaltado anteriormente não se trata de mudanças apenas no âmbito da estrutura dos serviços
ou da legislação. Para Dimenstein (2004), a desinstitucionalização da assistência psiquiátrica
no Brasil tem como principais desafios a reconstrução da subjetividade do trabalhador da
Saúde Mental com base nos pressupostos de uma outra concepção de loucura, além da
promoção de alterações na cultura organizacional dos serviços, caso contrário corre-se o risco
de encampar: “ uma reforma superficial ou pseudodesinstitucionalização, na medida em que
mantemos os dispositivos de segregação internalizados, compondo uma subjetividade
manicomial” (DIMENSTEIN, 2004 p.113).
No que tange aos aspectos do Trabalho enquanto constructo teórico é preciso
entendermos as relações entre trabalhador da saúde mental e usuários do serviço a partir de
uma perspectiva histórico-dialética, inserida em uma sociedade com
características
especificas advindas do modo de produção capitalista. Nesta perspectiva e pensando a
129
transição paradigmática, tem-se que em relação à psiquiatria tradicional o objeto de trabalho
era a doença mental e a finalidade do processo de trabalho era a cura, considerando a ‘doença
mental’ enquanto algo do domínio individual, a-histórico, moral e orgânico e a cura entendida
como adaptação aos padrões de normalidade. Outros pressupostos desta racionalidade
incluem o isolamento como proposta ‘terapêutica’ e o manicômio como locus do ‘tratamento’.
Ao pensarmos o Trabalho na perspectiva do CAPS e pautado nos pressuposto da
desinstitucionalização, assim como é entendida a partir do pensamento basagliano, se faz
necessário uma alteração radical dos elementos constituintes do processo de trabalho, o objeto
passa a ser entendido como a complexidade da vida humana, seus laços e vínculos sociais, o
sujeito deve, inclusive, ser inserido em sua proposta de cuidado, acerca dos instrumentos é
preciso rever uma série de relações cristalizadas no campo da saúde, e construir novas
configurações de trabalho, como as equipes multiprofissionais que devem transpor relações
hierarquizadas de poder (OLIVEIRA, 2007).
Para Yasui (2006), a equipe de saúde mental é de extrema importância para o contexto
da
Reforma
psiquiátrica,
posto
que:
“é
o
principal
instrumento
de
intervenção/invenção/produção dos cuidados em saúde mental” (p.134), ou seja, é campo
privilegiado para operar mudanças efetivas, todavia, para que tal objetivo seja alcançado
alguns elementos devem ser levados em consideração pois apenas o fato dos trabalhadores
estarem inseridos em um mesmo serviço não garantem um trabalho em equipe, pelo contrário,
podem operar e internalizar uma lógica altamente burocratizante, isto devido a elementos que
extrapolam a discussão da Saúde Mental, vejamos:
Uma primeira questão refere-se ao fato de que a reprodução da divisão social
do trabalho no campo da saúde gera uma hierarquização das relações, nas
quais o saber médico prepondera sobre outros saberes que cumprem um
papel secundário. Esta mesma divisão produz uma compartimentalização de
atividades e tarefas com pouca ou nenhuma relação entre si (YASUI, 2006 p.
136).
Há de se considerar ainda que o campo em questão é marcado por tensionamentos e
que existem forças contrárias a proposta da Reforma Psiquiátrica que defendem o modelo
hospitalocêntrico por uma serie de interesses particulares, ademais vale salientar que desde
seu principio o manicômio cumpre junto a sociedade um papel social, qual seja, o de que
tutelar àqueles que destoam da norma social vigente ( SALES & DIMENSTEIN, 2009).
Sobre as características do trabalho em saúde mental, especificamente no CAPS,
pesquisas realizadas recentemente abordam as questões materiais do trabalho, sobretudo a
precarização dos vínculos de trabalho e fragilidade da rede de atenção, como responsáveis
130
por dificuldades no âmbito da efetivação do cuidado psicossocial (SALES & DIMENSTEIN,
2009; DIMENSTEIN, 2004; OLIVEIRA, 2007; SAMPAIO ET AL, 2011; GUIMARÃES;
JORGE; ASSIS, 2011).
Os vínculos trabalhistas por meio de contrato são prejudiciais ao trabalho/trabalhador
a medida que não proporcionam segurança e autonomia aos trabalhadores, para Paim e
Teixeira (2007) a forte influencia neoliberal da década de 1990 alicerçada na
desresponsabilização do Estado em relação aos direitos sociais conquistados pela sociedade,
impôs problemas para a organização da assistência pública à saúde por meio do aumento do
número de organizações sociais (OSCIP– Organização da sociedade Civil de Interesse
Público) e outras formas contratuais, terceirizando a gestão e precarizando o trabalho em
saúde, tais iniciativas são identificadas a desresponsabilização estatal que causam
consequências negativas para o projeto do SUS. Acerca da gestão dos estabelecimentos de
saúde, percebe-se a herança de clientelista, concretizada pelos ‘cargos de confiança’ na
direção dos serviços, por vezes assumindo tom hierárquico.
Outro elemento importante para a discussão do trabalho em saúde mental é a questão
da formação profissional, Vasconcelos (2004) analisa o percurso das políticas públicas em
saúde mental e a interface com a formação do psicólogo, sinaliza que foram as necessidades
da prática que impulsionaram o desenvolvimento da discussão teórica sobre o assunto,
todavia, embora as entidades representativas da categoria (Sindicatos e Conselhos)
historicamente demonstrassem apoio e simpatia a causa o mesmo movimento não acontece
com os cursos de graduação, que perpetuam, em sua maioria, uma formação pautada no
modelo clínico-tradicional e individual de atuação, incoerente com a lógica da atenção
psicossocial, sobre isso o autor afirma que:
Ou seja, tivemos interesse em investir na sistematização de práticas e
formação adequadas aos novos desafios do campo da saúde mental por parte
da direção das principais entidades corporativas dos psicólogos, de
administrações governamentais de programas de saúde mental e de alguns
gestores de cursos de pós-graduação, mas a formação a nível dos cursos de
graduação mudou pouco nas principais universidades e faculdades dos país,
ainda polarizada hegemonicamente pelo modelo do consultório particular,
pela prática profissional liberal e pelos paradigmas convencionais do saber
psi (VASCONCELOS, 2004 P.85).
Mesmo diante deste cenário não se pode esquecer, retomando Mehry (2002), que no trabalho
em saúde não é possível pensar em impotência, dado que o mesmo se concretiza em ato e na
micropolítica dos encontros pode se construir relações potentes e linhas de fuga perante o que
é instituído e tido como imutável. Sales e Dimenstein (2009) afirmam ainda que ao pensarmos
a proposta da desisntitucionalização e o trabalho com as múltiplas facetas da existência do
131
sofrimento humano é preciso: “que se preserve ao máximo o potencial de trabalho vivo dentro
dos serviços substituitivos” (p.824). Todavia, assumir esta postura não implica em ignorarmos
as necessidades materiais para a efetivação de tal proposta, de modo que se carece de
mudanças tanto no processo de financiamento e gestão das políticas quanto na estruturação do
ensino a fim de operacionalizar a Reforma Psiquiátrica.
Para o trabalhador que está inserido no contexto do trabalho em saúde mental é
necessário pensar estratégias que os potencializem em suas ações, neste sentido, ressalta-se a
importância da construção de espaços de troca de falas e afetos para os trabalhadores de modo
que os proteja de uma mecanização de seu trabalho, entendendo-o como potencial
transformador (SALES & DIMENSTEIN, 2009).
Outro elemento importante tanto à análise quanto à
efetivação da reforma é
lembrarmo-nos sempre que o campo em questão é marcado por tensionamentos da esfera
econômica, política e cultural, neste sentido, devemos retomar o movimento da Luta
Antimanicomial enquanto movimento social que se posiciona em relação a loucura, ao
cuidado e sobretudo a cidadania e a liberdade. Lembrarmo-nos também que vivemos sobre a
lógica do capitalismo e é preciso que utilizemos tanto dos espaços garantidos
institucionalmente para este fim como dos espaços de produção e transmissão do
conhecimento para a problematização e construção de um novo projeto de sociedade, sobre o
trabalho em saúde mental frente a os elementos problematizados percebe-se que não há uma
solução mágica ou definitiva e para pensarmos como um processo revolucionário é preciso
entendermos que:
O trabalho/ cuidado emancipatório, característico da atenção psicossocial,
não se realiza pelo uso de uma determinada técnica, nem pela realização num
determinado lugar, ou pela qualificação profissional de quem o realiza, ou
pela especificidade de quem é atendido. Ele ocorre pela Desalienação de
todos os envolvidos (usuários e profissionais), pelo reconhecimento de que
somos, todos, sujeitos e cidadãos com direito à liberdade e com
responsabilidade pelas escolhas livres que fazemos, livres na medida em que
dizem sobre a nossa participação social (OLIVEIRA, 2007 p. 701).
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2006.
134
RELATO DE EXPERIÊNCIA: INTERVENÇÕES PSICOSSOCIAIS COM
MULHERES ENCARCERADAS NA CASA DE PRISÃO PROVISÓRIA, GOIÁS
Rubia Vaz Borges Freitas
Orcélia Pereira Sales
Instituição: Projeto Mãos Livres – TOTAL Educação e Cultura
[email protected], [email protected]
INTRODUÇÃO
O aprisionamento conforme Frinhani e Souza (2005) sempre fez parte da história da
humanidade. Na Antiguidade Foucault (2002) refere que os acusados ficavam nas prisões
aguardando o julgamento ou a sentença de morte.
As primeiras prisões de acordo com Jesus e Lermen (2013) foram construídas para
transformar os indivíduos considerados criminosos através de trabalhos não onerosos. As
penitenciárias modernas surgiram na Europa no século XVI para recolher os vagabundos,
mendigos, delinquentes e prostitutas (FOUCAULT, 2002; JESUS; LERMEN, 2013).
No Brasil as prisões surgiram no século XIX, a partir das construções de instituições
públicas compartilhadas por homens e mulheres. Em 1942 foi criada a primeira penitenciária
feminina (JESUS; LERMEN, 2013).
Historicamente no entendimento de Fernandes e Miyamoto (2013) as mulheres eram
consideradas pouco ameaçadoras por isso raramente recebiam punições, mas gradualmente
deixaram de serem vítimas do sistema penal e assumiram o papel de réu.
A criminalidade segundo Canazaro e Argimon (2010); Lopes, Mello e Argimon
(2010) é considerada um grave problema de saúde pública mundial, representa um fenômeno
complexo que envolve diversas causas com abrangências nos fatores biológicos, ambientais,
sociais, econômicos, psicológicos e psiquiátricos.
O Brasil está em quarto lugar no ranking dos países com maior população carcerária, e
as mulheres é protagonista em muitos crimes o índice atual de encarceradas é de 37,47%,
representando 11,19% do total da população penitenciária brasileira (LOPES; ARGIMON,
2010; BRASIL, 2011).
Em Goiás o índice de mulheres presas aumentou 161,32% no período de cinco anos.
Em 2010 a população carcerária feminina foi de 669 e em 2011 o estado tinha 746 mulheres
presas, sendo que só dispunha de 601 vagas (BRASIL, 2011; BRASIL, 2012).
135
Segundo Frinhani e Souza (2005) o cárcere impõe uma subcultura prisional com
exposição à ociosidade, promiscuidade, más condições de habitação, condições precárias de
saúde, uso abusivo de drogas, álcool e outras substancias.
Diante dessa problemática o uso abusivo de drogas, álcool e outras substâncias faz
parte da realidade carcerária. A Organização Mundial da Saúde (OMS) define que droga é
qualquer substâncias não produzida pelo organismo que tem a propriedade de atuar sobre um
ou mais sistemas produzindo alterações em seu funcionamento. A Classificação Internacional
de Doenças, 10ª Revisão (CID-10) lista as substâncias que podem provocar dependência:
álcool; opióides (morfina, heroína, codeína, diversas substâncias sintéticas); canabinóides
(maconha); sedativos ou hipnóticos (barbitúricos, benzoadiazepínicos); cocaína; outros
estimulantes (como anfetaminas e substâncias relacionados a cafeína); alucinógenos; tabaco;
solventes voláteis (BRASIL, 2009).
O Relatório Brasileiro sobre Drogas refere que com exceção de álcool e tabaco, as
drogas com maior uso na vida são: maconha (8,8%), solventes (6,1%), benzodiazepínicos
(5,6%), anorexígenos (4,1%) e estimulantes (3,2%) (BRASIL, 2007). Em 2008 o Ministério
da Justiça divulgou um diagnóstico nacional sobre as mulheres encarceradas, mas entre os
dados nenhum foi referente ao uso de drogas (BRASIL, 2005).
A redução de danos conforme Pacheco (2013) é uma política de saúde instituída pelo
SUS, que foi inserida no ano de 1994 com o objetivo inicial de orientar práticas de prevenção
da Síndrome da imunodeficiência Adquirida (AIDS) e Hepatites virais e que hoje também
visa reduzir os danos causados por e as diversas demandas existentes nos contextos
vulneráveis.
Este trabalho é fruto das experiências realizadas nos atendimentos psicológicos a
mulheres encarceradas na Casa de Prisão Provisória (CPP) do Complexo Prisional de
Aparecida de Goiânia, Goiás. Portanto diante do exposto, foi estabelecido como objetivo:
descrever a experiência dos atendimentos psicossociais realizados pela psicóloga com
mulheres encarceradas.
METODOLOGIA
Trata-se de um relato de experiência sobre os atendimentos psicossociais realizado
com mulheres do Projeto Mãos Livres dentro do contexto prisional. A implementação dos
136
atendimentos ocorreram durante um período de aproximadamente dois anos no cenário da
Casa de Prisão Provisória no Município de Aparecida de Goiânia, Goiás. O Projeto Mãos
Livres tem como princípio a mobilização social destinado às mulheres que se encontra em
regime de detenção na Casa de Prisão Provisória de Aparecida de Goiânia - Goiás.
Este projeto utiliza a arte como ferramenta para resgatar a identidade, autoestima e a
dignidade da mulher. Ao passo que oferece uma atividade terapêutica e de lazer, contribuindo
para que as mulheres aprendam uma nova maneira de perceber a vida e o futuro, bem como
vislumbrar sustento e independência financeira.
Nesse contexto de ensino de uma atividade laborativa eram realizados os atendimentos
psicológicos individuais ou em grupos foram realizados semanalmente com um grupo de
cerca de 20 mulheres.
Nos encontros que ocorriam uma vez por semana, durante o período da manhã por
aproximadamente quatro horas e trinta minutos, sendo esse tempo era dividido em uma hora e
trinta minutos de psicoterapia individuais conforme necessidades apresentadas pelas detentas.
Entre as abordagens utilizadas se destacam: Entrevista de identificação (coleta de
dados pessoais, familiares, dados de saúde, construção de um projeto de intervenção);
Construção do PTI (projeto terapêutico individualizado); Entrevista motivacional (entrevista
utilizada para atendimento de pessoas com problemática em álcool e outras drogas);
Atendimentos breves (atendimentos focalizados na problemática emergente), utilizando
técnicas psicodramáticas (duplo, espelho, troca de papeis, inversão de papeis, dramatização,
role playing) e abordagens baseadas em redução de danos (BRITO, 2006).
RELATO DE EXPERIÊNCIA
O relato de experiência seguiu com a descrição da experiência durante a realização dos
encontros por meio de técnicas como: entrevistas semi-dirigidas para coleta de dados,
entrevista motivacional para entendimento do histórico do uso de substâncias psicoativas e
motivação criminal, terapia comunitária e terapias de grupo, como método terapêutico
principal o Psicodrama, que é um método qualitativo de ação que proporciona um contexto
terapêutico e experimental (MORENO, 1975).
O Psicodrama busca uma resposta espontânea e criativa, sendo que segundo Moreno
(1975) a espontaneidade e criatividade são recursos inatos do homem, os quais ele traz
consigo desde o nascimento. Estes recursos são imprescindíveis para seu desenvolvimento,
entretanto estes recursos podem ser perturbados pelo ambiente ou pelas situações
137
constrangedoras vivenciadas, levando a uma cristalização de comportamentos inadequados,
ou seja, a perpetuação de condutas indesejáveis ou prejudiciais. Para que isto venha ser
mediado é necessário lançar mão de uma terapêutica que propicie o aparecimento da
espontaneidade e da criatividade.
O Psicodrama, portanto é um método de tratamento que busca como resultado
principal do ser humano uma resposta espontânea e criativa, e segundo Moreno (1975) a
espontaneidade e criatividade são recursos inatos do homem, os quais ele traz consigo desde o
nascimento.
Moreno (1975) também explica que não se pode conceber a espontaneidade separada
da criatividade, já que essa é expressa no ato criador; e a espontaneidade é vista então como
um catalisador da ação enquanto a criatividade é a substância para esta ação, assim ambas se
complementam. Moreno (1975, p. 152) também explica que a espontaneidade é como:
uma resposta dramática, original, criadora e adequada”, de modo que a resposta
dramática tem a função de energizar e unir o eu. A função original da
espontaneidade vem a ser um livre curso da expressão; é uma expansão ou variação
da conserva cultural, ou seja, diferente do modelo já estabelecido. A função plástica
“adequação das respostas” busca “respostas adequadas a situações novas,
(MORENO, 1975, p.152).
É a criatividade que dá uma forma nova e viva aos sentimentos, ações e expressões, às
quais o indivíduo vivenciou, de modo que a resposta criadora esforça-se para criar um eu e
um meio adequado a ela. Quando há um bloqueio na espontaneidade isto influencia no
desempenho de papéis por parte do indivíduo, afetando suas relações, e configurando-se como
um entrave na capacidade de adequação do indivíduo em deste modo é necessário recuperar a
espontaneidade, o que pode ser feito por meio terapêutico, buscando a transformação das
ações e rompimento de padrões de conduta indicando muitas vezes o adoecimento de papéis
os quais estão cristalizados ou arraigados ao indivíduo (MORENO, 1983).
Por papel Moreno (1983) diz que este pode ser definido como as formas reais e
tangíveis que o eu adota. O papel é a cristalização final de todas as situações numa área
especial de operações, pelas quais o indivíduo passou.
Todos esses recursos são imprescindíveis para seu desenvolvimento, entretanto estes
recursos podem ser perturbados pelo ambiente ou pelas situações constrangedoras
vivenciadas, levando a uma cristalização de comportamentos inadequados ou seja a
perpetuação de condutas
que são indesejáveis e prejudiciais. Para que esta problemática
venha ser mediada é necessário lançar mão de uma terapêutica que propicie o aparecimento
138
da espontaneidade e da criatividade. Estes são conceitos principais da abordagem
psicodramática, a qual foi o pilar dos atendimentos.
Inicialmente era realizada a entrevista semi-dirigida para coleta de dados que contava
com alguns eixos norteadores das perguntas, porém permitia a livre expressão da detenta ao
contar suas histórias, experiências e expressar seus pensamentos e sentimentos relativos à
vivência, a entrevista motivacional trata-se de um instrumento particular usado para
entrevistar pessoas com problemática de uso e abuso de substâncias psicoativas que busca
ajudar as pessoas a reconhecer e fazer algo a respeito de seus problemas presentes ou
potenciais, coloca a pessoa a caminho da mudança (MILLER; ROLLNICK, 2001).
A terapia comunitária integrativa consistiu em uma ferramenta de construção de redes
solidárias, ferramenta esta que foi criada pelo psiquiatra e antropólogo Adalberto de Paula
Barreto no ano de 1987 em Fortaleza. Esta metodologia possibilitou um espaço de troca de
experiências e criação de vínculos, tendo em vista que o tanto o uso de substâncias psicoativas
quanto o encarceramento prejudicam os as redes sociais de interação psicossocial. Sendo
também eram utilizados textos e outros jogos psicodramáticos, os quais se adequavam a
necessidade do momento (BARRETO, 2007).
As técnicas do Psicodrama utilizadas durante as sessões foram: Duplo, espelho, a troca
de papéis, solilóquio, dramatização, psicodrama interno e inversão de papéis. Posteriormente
as sessões de Psicodrama eram transcritas e estudadas a luz da teoria psicodramática.
Também eram utilizados textos de temas diversificados e outros jogos psicodramáticos.
Também foram utilizadas tarefas relativas à prevenção de recaídas, contidas em um
manual para pessoas com problemas pelo uso de álcool e drogas, já que esta problemática
atingia um grande número das mulheres que estavam encarceradas.
A prevenção de recaídas em problemáticas com Álcool e outras drogas e com a
reincidência criminal de modo que era trabalhada a motivação para mudança do
comportamento criminal. Para se trabalhar estas questões utilizamos um manual com
atividades semanais, sobre a prevenção de recaídas.
Pacheco (2013) diz que a OMS por meio da CID 10 define a dependência química
como tendo como característica descritiva um ou até incontrolável desejo pela substância
psicoativa em questão, de modo que o diagnóstico deve conter três ou mais das diretrizes
diagnósticas:
1. Forte desejo ou compulsão para uso da substância;
2. Dificuldades em controlar o comportamento de consumir a substância, no que diz
respeito ao início do uso, término, e níveis de consumo;
139
3. Estado de abstinência fisiológica, quando o uso cessou ou foi reduzido, evidenciando a
síndrome da abstinência;
4. Evidencia de tolerância, ou seja, de um desejo intenso e crescente de maiores doses da
substância;
5. Abandono progressivo dos prazeres ou interesses alternativos em detrimento do uso da
substância psicoativa, evidenciando um aumento nos níveis de consumo e no tempo de
uso;
6. Persistência no uso da substância mesmo com claras evidências dos danos causados ao
fígado, ao pulmão, e outros órgãos do corpo, por exemplo, em detrimento do uso
constante e ou abusivo da substância de preferência, e ainda do uso de inúmeras
substâncias associadas, tratando com irrelevância a problemática existente.
Estes critérios da problemática do uso de substâncias psicoativas são idênticos para
todas as pessoas com dependências psicoativas, entretanto no que diz respeito ao uso por
mulheres estes critérios ainda são associados ao estigma social.
As mulheres que usam substâncias psicoativas são mais agressivas, promíscuas, e
possuem maiores falhas no cumprimento de seus papéis sociais tais como os papéis de mãe,
papéis de trabalhadora, entre outros (PACHECO 2013).
Quanto à criminalidade associada ao uso abusivo ou dependência de substâncias
psicoativas, existe uma correlação entre álcool e violência, entretanto não desconsideram a
influência primária da personalidade nestas incidências.
No que diz respeito a outras drogas há uma forte ligação do uso de drogas ilícitas com
o cometimento de atos violentos, que este associado a três fatores: os efeitos
psicofarmacológicos da droga, as necessidades financeiras do usuário, e a violência
relacionada com o controle e repasse das drogas ilícitas.
140
ASSISTÊNCIA DOMICILIAR DO ENFERMEIRO: PLANEJAMENTO
ESTRATÉGICO SITUACIONAL - UNIDADE BÁSICA DE SAÚDE ALMERINDO
ALVES BARBOSA FARIAS DO MUNICÍPIO DE JANAÚBA / MG
Cristiane Pereira Guimarães
INTRODUÇÃO
A busca por estratégias que reduzem custos nas ações de saúde sempre fizeram parte
das políticas públicas de saúde no Brasil. Neste contexto o Programa de Saúde da Família
(PSF) ou Estratégia Saúde da Família (ESF) surge como uma proposta de estratégia de
reorganização do modelo assistencial da rede básica, cujo foco são as famílias de determinado
território em que se utiliza a adstrição de clientela, a definição de microárea de risco, o
trabalho em equipe e a presença de Agentes Comunitários de Saúde (ACS), de forma a
integrar ações de promoção, prevenção, assistência e reabilitação (VERRI, 2006).
Uma atividade regular do programa Saúde da Família é a Visita Domiciliar (VD)
realizada pelos ACS, enfermeiro e outros profissionais que trabalham na Estratégia Saúde da
Família e que, por sua expressão numérica e potencial de intervenção na relação do programa
com as famílias, constitui-se em objeto privilegiado de reflexão no interior do modelo
assistencial (MANDÚ et al. 2008).
A VD possibilita a concretização da integralidade, acessibilidade, longitudinalidade e
a interação entre o profissional e o usuário e a família. A assistência de Enfermagem prestada
por meio de a visita domiciliar (VD) constitui um instrumento de atenção à saúde que
possibilita - a partir do conhecimento da realidade do indivíduo e sua família in loco fortalecer os vínculos do paciente, da terapêutica e do profissional, assim como atuar na
promoção de saúde, prevenção, tratamento e reabilitação de doenças e agravos (SANTOS,
2008).
Historicamente no Brasil a visita domiciliar surgiu no século XX através das práticas
sanitárias trazidas da Europa, em especial por Oswaldo Cruz, Emílio Ribas e Carlos Chagas
que realizaram as intervenções domiciliárias no combate às doenças transmissíveis daquela
época (SANTOS, 2008).
De acordo com o Ministério da Saúde a visita domiciliar é o instrumento de realização
da assistência domiciliar. Sendo constituída pelo conjunto de ações sistematizadas para
viabilizar o cuidado a pessoas com algum nível de alteração no estado de saúde (dependência
física ou emocional) ou para realizar atividades ligadas aos PSF (BRASIL, 2003).
141
Diagnóstico situacional
O município de Janaúba, localizado no norte de Minas Gerais possui uma população
de 66.803 habitantes em 2010 com uma densidade demográfica (hab/km2) de 30,63. O clima é
semiárido, expondo a cidade a secas periódicas. Tem como atividade principal a agropecuária
e o comércio em geral. Atualmente são grandes os índices de desemprego e subemprego. Nos
últimos anos a violência tem se tornado um fator preocupante, mas com tudo isso Janaúba é
conhecida por ser uma cidade extremamente acolhedora com um povo hospitaleiro (IBGE,
2010).
Janaúba possui uma infraestrutura de cidade de porte médio com uma área de unidade
territorial (km2) 2.181,319. De acordo com o último censo do IBGE a cidade apresentou um
IDH de 0,804 crescimento anual da população 0,81%, urbanização 90,67% e Densidade
Demográfica 30,63 hab/km (IBGE, 2010).
Dados recentes do município referem 20 Equipes de Saúde da Família, composta por
136 médicos, 25 cirurgião dentista, 47 enfermeiros, 11 fisioterapeutas, 08 fonoaudióloga, 06
nutricionista, 10 farmacêutico, 10 assistente social, 07 psicólogo, 82 auxiliares de
enfermagem e 30 técnico de enfermagem. De acordo com o DATASUS, 97% da população
possui cobertura pelo programa, com despesa total com a saúde por habitantes de R$ 279,01
reais (BRASIL, 2012).
Janaúba apresenta ainda um número total de 53 estabelecimentos, prestando ou não
serviços ao SUS, sendo 17 públicos e 35 privados. No Setor público dois são do centro de
Atenção psicossocial, oito do Centro de Saúde/Unidade Básica de Saúde, dois consultórios
isolado, três Posto de Saúde, uma Unidade Móvel Terrestre, uma Unidade de Serviço de
Apoio de Diagnose e Terapia. No setor Privado 17 são Clínica Especializada ou Ambulatório
Especializado, dez consultório isolado, oito unidade de serviço de apoio de Diagnose e
Terapia.
A Unidade de Saúde Almerindo Alves Barbosa Farias fica localizado na Avenida
Mestre Alfredo Barbosa, número 346, bairro Rio Novo. Hoje conta com duas equipes II e IV,
cada equipe apresenta 09 agentes de saúde, 01 enfermeiro, 01 médico, 01 cirurgião dentista. O
funcionamento acontece de segunda-feira a sexta-feira das 07:00 horas às 17:00 horas.
Alguns dos problemas enfrentado na Unidade são referentes: à estrutura inadequada, o
descumprimento de carga horária pelas equipes e falta de material na unidade. Observa-se que
esta situação compromete o atendimento e desmotiva os profissionais que ali estão inseridos.
142
A unidade possui duas equipes de saúde e atende atualmente um total de 2.200
famílias. As equipes são identificadas através dos nomes: Equipe Saúde Total que cobre 4.210
moradores, distribuídos em 09 micro áreas; e a Equipe Construir Saúde que conta com 4.008
moradores também distribuídos em 09 microáreas.
Cada equipe da Unidade Básica de Saúde (UBS) Almerindo Alves Barbosa Farias é
composta por 01 enfermeiro, 01 auxiliar de enfermagem, 01 médico, 09 agentes comunitários
de saúde, 01 cirurgião dentista e 01 ACD. A UBS ainda promove o suporte a uma pequena
micro área rural que possui 109 famílias.
A unidade de saúde conta com tecnologias próprias como: salas climatizadas, salas de
curativos, sala de nebulização, sala de vacinação, consultório odontológico, farmácia,
transporte para APS, serviços de apoio diagnóstico. Tem ainda a garantia de referência ao:
Centro Viva Vida; Hospital Regional; Fundajan e contra referência (UBS).
Os problemas detectados pelo diagnóstico situacional da UBS se destacam: uma
estrutura física inadequada; o descumprimento de carga horária pelas equipes; a falta de
material na unidade; e a falta de carro para as visitas domiciliares. Estas situações
comprometem o atendimento e desmotiva os profissionais que trabalham na Unidade.
Justificativa
O enfermeiro é um dos profissionais mais atuantes e próximos à equipe isso possibilita
o apoio e coordenação das atividades e o planejando junto com a equipe das intervenções
necessárias a saúde do usuário o que torna seu trabalho reconhecido e valorizado. O
profissional de saúde realiza durante a VD as ações de orientações, vigilância à saúde
cadastramento e controle de casos clínicos.
No decorrer da minha prática como enfermeira em uma Unidade Básica de Saúde
observei que a visita domiciliar é um instrumento de intervenção fundamental da estratégia de
Saúde da Família, sendo utilizado pelas equipes de saúde para conhecer as condições de vida
e saúde das famílias sob sua responsabilidade. Para isso, deve se utilizar as habilidades e
competências não apenas para o cadastramento dessas famílias, mas também para a
identificação de suas características sociais. Acerca dessa ação gostaria destacar a dificuldade
em realizar a visita domiciliar na UBS devido à falta de um carro a disposição para essa
finalidade.
O desenvolvimento de estudos sobre o tema de Assistência Domiciliar do Enfermeiro
na Saúde da Família propiciará mais facilmente o planejamento de ações de enfermagem de
143
acordo com condições observadas no domicílio. Assim como produzirá um melhor
relacionamento do grupo familiar com o profissional de saúde, por ser um atendimento
diferenciado, priorizado, sigiloso e menos formal.
Sabe-se que este tema é bastante discutido e devido à relevância no âmbito da saúde
tem promovido diversas pesquisas, artigos, dissertações o que demonstra que é hora de um
avanço real na prática clínica do Programa Saúde da Família.
Um questionamento surgiu após a leitura sobre a temática: Um projeto de intervenção
pode melhorar o atendimento na visita domiciliar? Após exaustiva pesquisa sobre o assunto,
ficou constatado que nos dia atual é comum o conviver com uma gama de problemas que
mudam intensamente a capacidade dos serviços de saúde de responderem de forma eficaz às
demandas por saúde na vida dos cidadãos brasileiros e isso pode ser detectado através da
pouca efetividade das ações de promoção e proteção dos indivíduos e da coletividade.
Destaco que durante a minha vivência como enfermeira bolsista do Programa de
Valorização dos Profissionais da Atenção Básica (PROVAB) no período de junho de 2012 até
junho de 2013 experienciei dificuldades para realizar todas as visitas priorizadas pelos ACS.
Dezoito grávidas de alto risco agendas para o pré-natal não compareciam a UBS e 39 idosos
acamados que precisavam de um atendimento direto. Estes pacientes necessitavam também
ser acompanhados pelo profissional médico e a UBS estava sem esse profissional há oito
meses.
Diante de toda essa problemática os entraves burocráticos e políticos prejudicaram o
andamento das ações, conforme já destacado que a unidade não tinha carro disponível para a
realização das visitas domiciliares. Portanto esse trabalho é relevante porque pode contribuir
com outros profissionais enfermeiros que enfrentam essa problemática em suas práticas a
incentiva-los a buscarem novos conhecimentos e estratégias de resolução para a realização
eficaz das visitas domiciliares.
Objetivos
Objetivo geral
Elaborar um projeto de intervenção utilizando o modelo preconizado pelo
Planejamento Estratégico Situacional na Unidade Básica de Saúde Almerindo Alves Barbosa
Farias do Município de Janaúba-MG para a visita domiciliar.
144
Objetivos específicos
 Identificar os principais problemas encontrados durante a visita domiciliar realizada
pela enfermeira da UBS Almerindo Alves Barbosa Farias;
 Descrever as ações desenvolvidas pela enfermeira na visita domiciliar da UBS
Almerindo Alves Barbosa Faria
MÉTODO
O Planejamento Estratégico Situacional (PES) foi desenvolvido a partir da década de
70 por Carlos Matus. O PES é utilizado como um instrumento flexível para identificação e
resolução de problemas (DIAS, et al., 2012).
O PES permite ao profissional trabalhar com a complexidade dos problemas sociais,
pois, possibilita a explicação de um problema a partir da visão do ator que o conhece. Esse
planejamento permite a identificação das possíveis causas e a busca por diferentes modos de
abordar e propor soluções. O planejamento é estruturado em cinco etapas: momento
explicativo; momento normativo; momento estratégico; e momento tático-operacional (DIAS,
et al., 2012).
A primeira etapa foi à realização do diagnóstico situacional da área de abrangência
onde foram identificados os problemas:
1-Falta de médico: Fatores condicionantes e determinantes relacionados a contrato
sem garantias trabalhistas, falta de perspectiva de carreira, remuneração insatisfatória.
2-Estrutura Física Inadequada: Fatores condicionantes e determinantes relacionado a
duas equipes de ESF dividindo a mesma estrutura física, pequeno espaço para realizar
procedimentos clínicos, uso indevido da verba do fundo nacional de saúde.
3-Falta de recursos materiais: Fatores condicionantes e determinantes relacionados à
falta de planejamento dos profissionais de saúde, uso inadequado dos recursos materiais.
4-Dificuldade frente à população em aderir e colaborar na ESF: Fatores
condicionantes e determinantes relacionados à falta de compreensão da população quanto à
política da ESF (permanecem com visão do modelo de saúde de assistência curativo),
baixo nível socioeconômico-cultural na área adstrita.
5- Falta de carro para a realização de visita domiciliar: Fatores condicionantes e
determinantes relacionados à burocracia que dificultam a realização das visitas domiciliares.
Entre todos esses problemas detectados foi priorizado neste trabalho à visita domiciliar.
145
Para respaldar a revisão de literatura e também o plano de intervenção foi feita uma
pesquisa narrativa da literatura. Esta modalidade de pesquisa permite o levantamento de uma
investigação com base em material já elaborado, constituído principalmente de livros e artigos
científicos. Uma das principais vantagens de realizar uma pesquisa bibliográfica reside no fato
deste tipo de estudo permitir ao pesquisador a cobertura de uma gama de fenômenos muito
mais ampla do que aquela que poderia pesquisar diretamente (GIL, 2008).
Para busca dos artigos foi utilizado o banco de dados SciELO e publicações do
Ministério da Saúde através das palavras-chave: Visita domiciliar de Enfermagem, Programa
Saúde da Família, Cuidados domiciliares de Saúde, Serviços de Enfermagem, Planejamento
Estratégico.
Com a investigação bibliográfica nos periódicos correspondentes foram selecionados
os artigos que atenderam os critérios de escolhas: artigos publicados no período de 2000 a
2014, em português. Os artigos selecionados foram divididos por tema, após leitura a
sistematizada os assuntos de interesse do estudo foram imergindo e sobressaindo nos
fichamentos. Posteriormente foi elaborado o projeto de intervenção.
O diagnostico situacional foi realizado com base nos problemas encontrados na visita
domiciliar:
a) Grávidas de risco: pré-eclampsia, diabetes gestacional e retardo do crescimento
uterino.
b) Idoso acamado os principais problemas detectados: formação de úlcera de pressão e
incontinência urinária.
Com base nesses problemas foi realizado o diagnostico situacional cumprindo as
etapas dentro da proposta do PES. Especificamente essa intervenção esta embasada em dez
passos assim compreendidos: Definição dos problemas; Priorização dos problemas; Descrição
do problema selecionado; Explicação do problema; Seleção dos “Nós Críticos”; Desenho das
operações; Identificação dos recursos críticos; Análise e viabilidade do plano; Elaboração do
plano; Gestão do plano.
BASES CONCEITUAIS
A assistência domiciliar no contexto da Saúde da Família
As equipes básicas de trabalho da Estratégia Saúde da Família (ESF) devem ser
capazes de "planejar, organizar, desenvolver e avaliar as ações que respondam às
146
necessidades da comunidade e de articular os diversos setores envolvidos na promoção da
saúde" (LIONELLO et al. 2012, p. 104).
A equipe da ESF é composta geralmente por 01 médico, 01 enfermeira, 01 técnicos de
enfermagem e no máximo 12 agentes comunitários de saúde. Cada equipe fica responsável
por no máximo 4.000 pessoas, sendo a média recomendada de 3.000 pessoas (BRASIL,
2011).
Os profissionais na ESF possuem como atribuições a realização do cuidado em saúde
da população local tanto na unidade de saúde quanto no domicilio (LIONELLO et al. 2012).
A atenção domiciliar a saúde é um modelo que surgiu como resposta às inúmeras
alterações que passou a sociedade brasileira no decorrer da história do sistema de saúde no
Brasil com a implantação do Sistema Único de Saúde (LACERDA et al. 2006).
Entre as principais alterações que a sociedade brasileira enfrentou ao longo dos anos
estão à transição demográfica; a mudança no perfil epidemiológico da população; o
desenvolvimento de equipamentos tecnológicos; o aumento da procura por cuidados de saúde;
os custos do sistema hospitalar cada vez mais elevado; o interesse dos profissionais de saúde
por novas áreas de atuação; a exigência por maior individualização, privacidade e
humanização da assistência à saúde, existindo também uma maior necessidade de integração
entre a equipe de saúde e a família (LACERDA et al. 2006).
A atenção domiciliar é definida como uma terminologia comum que envolve no
domicílio as ações desenvolvidas de promoção à saúde, prevenção e tratamento de doenças e
reabilitação (BRASIL, 2005).
As ações de saúde são realizadas no domicílio do paciente por uma equipe
multiprofissional, os profissionais envolvidos neste processo realizam o diagnóstico da
realidade em que o paciente está inserido, com vista à promoção, manutenção e/ou
restauração da saúde, portanto, é uma atividade que envolve não só os diferentes profissionais
da área da saúde, como também o cliente e sua família, visando ao estabelecimento da saúde
como um todo (LACERDA, 2005).
O atendimento no domicílio propícia para os profissionais de saúde o desenvolvimento
de atividades de maneira que o paciente perceba que pode diminuir ou até eliminar os fatores
que colocam em risco a sua saúde participando assim no seu processo de saúde/doença e não
ficando apenas com as informações trazidas pelos profissionais (ARAÚJO, 2008).
A atenção domiciliar à saúde é um dos meios que o profissional da ESF promove
através recursos locais disponíveis a família, o indivíduo e a comunidade sua participação no
147
planejamento, organização, operação e controle dos cuidados primários em saúde (ARAÚJO,
2008).
A assistência no domicilio promove também o conhecimento dos profissionais de
saúde para a pessoa em sua própria casa, cujo objetivo final é o bem estar, além de contribuir
para a qualidade de vida e para o funcionamento do estado de saúde, substitui o cuidado
hospitalar (LACERDA, 2005).
O atendimento domiciliar pode propiciar um contato mais estreito dos profissionais de
saúde com o paciente e seus familiares em seu próprio meio, podendo este momento ser útil
para uma avaliação das condições que o cercam, por vezes, de grande importância para o
sucesso do acompanhamento. O atendimento domiciliar é, portanto, um conjunto de ações que
busca a prevenção de um agravo à saúde, a sua manutenção por meio de elementos que
fortaleçam os fatores benéficos ao indivíduo e, concomitantemente, a recuperação do cliente
já acometido por uma doença ou sequela (ARAÚJO, 2008).
O atendimento domiciliar envolve ainda a realização de orientação, ações educativas,
demonstração de procedimentos técnicos a ser ensinada ao cliente ou ao seu cuidador, e
também a delegação da execução de procedimentos pela equipe multiprofissional no
domicílio do cliente. (DRULLA et al. 2004)
A visita domiciliar é o termo mais difundido no sistema de saúde no Brasil e nas
praticas de saúde na comunidade, pois é durante esta ação que é acontece o contato dos
profissionais de saúde com as populações de risco e seus familiares e nesta ocasião a coleta de
informações e/ou orientações (ARAÚJO, 2008).
É durante a visita domiciliar que são desenvolvidas as ações de orientação, educação,
levantamento de possíveis soluções de saúde, fornecimento de subsídios educativos, para que
os indivíduos atendidos tenham condições de se tornar independentes (ARAÚJO, 2008).
A visita domiciliar pode ser útil ainda na intervenção no processo saúde e doença de
indivíduos ou o planejamento de ações visando à promoção da saúde coletiva. Portanto a
visita domiciliar é uma forma de assistência domiciliar à saúde, que dá subsídios para a
execução dos demais conceitos desse modelo assistencial. É por meio de a visita domiciliar
que os profissionais captam a realidade dos pacientes e família assistidas pelo PSF
reconhecendo seus problemas e suas necessidades de saúde (FREITAS et al. 2000).
Os profissionais de saúde e/ou equipe durante a visita domiciliar buscam avaliar as
demandas exigidas pelo paciente e seus familiares, bem como o ambiente onde vivem,
visando estabelecer um plano assistencial (LACERDA, 2006).
148
Geralmente as orientações realizadas envolvem informações sobre o saneamento
básico, os cuidados com a saúde, e o uso de medicamentos, além da amamentação, controle
de peso, ou qualquer coisa que diga respeito àquele paciente, à família e à comunidade em
que residem (SANTOS; MORAIS, 2011).
Embora a atenção domiciliar ou visita domiciliar esteja em processo de ascensão nas
práticas de saúde essa ação ainda não está esgotada completamente inserida nos sistemas de
atendimento à saúde e na formação e/ou capacitação dos profissionais de saúde.
Portanto os profissionais procuram levar as ações de saúde sempre mais próxima da
família, com a finalidade de melhorar a qualidade de vida dos usuários, rompendo assim com
o modelo de atenção das unidades básicas de saúde tradicionais e estendendo suas ações e
serviços para e junto à comunidade local.
A Assistência domiciliar na prática do enfermeiro
O domicilio é considerado um espaço de interação entre a enfermeira, a equipe de
enfermagem e a família, pois é no cuidado domiciliar que o profissional desenvolve a análise
e revisão do desenvolvimento do processo saúde e doença. A atenção e cuidado no domicilio
é definida como um termo que envolve ações de promoção à saúde, tratamento de doenças,
reabilitação e prevenção e isso abrange todas as modalidades e níveis de atendimento
prestados no domicílio, incluindo a assistência, a internação VD (LIONELLO et al. 2012).
Quando a VD é realizada pela equipe da ESF esse serviço transpõe as ações
institucionalizadas, formando a construção de novas práticas com base na inserção dos
profissionais de saúde no contexto de vida dos usuários, além de propiciar a construção de
vínculo e favorecer a assistência integral (MANDÚ et al. 2008).
Na ESF a enfermeira é responsável por realizar a assistência integral e isso envolve a
promoção e proteção da saúde, diagnóstico, tratamento, prevenção de agravos, manutenção e
reabilitação da saúde das famílias e indivíduos na unidade de saúde e sempre que necessário
ou indicado atendimento também no domicílio (LIONELLO et al. 2012).
A atenção domiciliar possui uma gama de possibilidades terapêuticas, mas apesar
desta amplitude as práticas ainda encontram-se centradas no atendimento de queixas básicas
dos usuários e há falta de capacitação dos profissionais de saúde para a utilização desse
espaço de atenção (GIACOMOZZI; LACERDA, 2006).
A visita domiciliar oferece a oportunidade para o enfermeiro entrar em contato com o
modo de vida do usuário, conhecer o ambiente e as relações intrafamiliares, abordar questões
149
que vão além da doença física e que contemplem também os problemas sociais e emocionais,
proporcionando orientações mais voltadas para as reais necessidades de saúde do usuário, e
assim buscar novas maneiras e dimensões na forma de cuidar (SAKATA et al. 2007).
É da competência da enfermeira o cuidado domiciliar na atenção básica, e isso
compreende uma série de procedimentos que devem ser executados e que ao serem
desempenhados facilita a compreensão do contexto de vida dos usuários (SANTOS;
MORAIS, 2011).
Para quaisquer procedimentos ou ações o enfermeiro deve conhecer as condições de
vida do usuário e sua família para o planejamento das visitas. A VD é um espaço de trabalho
para os profissionais na ESF, sendo utilizada como um instrumento para os cuidados em
saúde e uma possibilidade de organização dos cuidados em saúde (SAKATA et al., 2007).
Ao realizar a visita domiciliar o enfermeiro utiliza uma visão diferenciada acerca do
processo de adoecimento das pessoas e por ter uma maior aproximação da família e sua
integração nos cuidados, tem a possibilidade de visualizar e compreender o contexto
domiciliar e nele interagir produtivamente (SANTOS; MORAIS, 2011).
Para uma visita domiciliar eficiente alguns aspectos devem ser levados em
consideração entre estes o conhecimento das condições do meio, como saneamento e moradia
são fatores essenciais para o estabelecimento de medidas de promoção da qualidade de vida
do indivíduo, família e comunidade (SAKATA et al. 2007).
O contexto domiciliar tem uma dinâmica específica em cada casa como renda,
religião, crença, costume, moradia que são fatores que influenciam a vida da família, tais que
inclui diferentes respostas frente aos problemas apresentados, e engloba as pessoas que
compartilham um mesmo ambiente de vida e de relações (GIACOMOZZI; LACERDA,
2006).
As ações desenvolvidas durante a visita domiciliar são relatadas às vezes como
educação, às vezes como fiscalização. A visita domiciliar deve ser realizado sob a ótica da
educação em saúde, ao tornar os usuários e sua família capacitada para efetuar o seu próprio
cuidado, sendo a função educadora da enfermeira imprescindível nesse processo (SOSSAI;
PINTO, 2010).
As principais ações desenvolvidas nas visitas domiciliares são: o cadastramento de
famílias, orientações, vigilância à saúde e acompanhamento de casos clínicos conforme
avaliação da equipe de saúde. Além dessas ações as enfermeiras procuram acolher a todas as
demandas dos usuários. Ao identificarem as necessidades dos usuários, as enfermeiras
150
procuram incorporar na prática da VD o acolhimento e o acesso aos serviços de saúde
(BRASIL, 2004).
Apesar da visita domiciliar ser uma atividade comum a todos os profissionais da
equipe multidisciplinar de saúde da família. Os profissionais enfermeiros realizam a visita
com o intuito de educar, verificar, fornecer, atender, orientar, acompanhar os casos clínicos
através da consulta de enfermagem que é o instrumento legal de suas ações. Com isso durante
a visita é possível o desenvolvimento específico de orientações necessárias para autonomia e
responsabilidade dos pacientes para a gestão de seu autocuidado.
PROPOSTA DE INTERVENÇÃO
Por meio do levantamento de problemas realizado pela equipe de saúde da Unidade de
Saúde Almerindo Alves Barbosa Farias, do município de Janaúba – MG e a priorização dos
problemas foi o ponto de partida para elaboração do plano de ação.
O plano de ação teve como objetivo o método do PES os cinco primeiros passos fazem
parte do momento explicativo e foi realizada a análise da situação encontrada na visita
domiciliar para grávidas de alto risco e idosos acamados.
O próximo passo foi à priorização de problemas onde se levou em consideração a
importância e a urgência dos problemas e a capacidade dos pacientes em enfrentar esses
problemas. Na descrição do problema selecionado foram utilizados os dados registrados pelos
ACS.
Para explicar melhor os problemas foi criado no quarto passo um quadro esquemático
para facilitar a visualização dos problemas a serem enfrentados e para uma melhor definição
de ações para o seu enfrentamento.
No quinto passo foi realizado os "nós críticos" do problema para a intervenção. O
sexto passo é o desenho da operação onde se tem as ações que vão ser desenvolvidas durante
execução do plano.
O sétimo passo é a identificação dos recursos críticos onde foi criado estratégias de
viabilização para transformar a realidade das grávidas de alto risco e dos idosos acamados. No
oitavo passo foi feito uma analise de viabilidade do plano.
Já o nono passo foi criado uma elaboração do plano operativo para distinguir os
responsáveis pelas operações e estabelecer prazos de execução. O último passo é a gestão do
plano criado para coordenar e acompanhar a execução das visitas domiciliares.
151
PRIMEIRO PASSO: Definição dos problemas
Quadro 1: Problemas encontrados na visita domiciliar
GESTANTE
Gravidez de alto risco.
IDOSOS
Acamados com dificuldade de deambulação.
Fonte: Elaborado pela autora
SEGUNDO PASSO: Priorização dos problemas
Quadro 2: Priorização dos problemas encontrados na visita domiciliar
Principais
Problemas
Importância
Urgência
Capacidade de
enfrentamento
Seleção
GESTANTE
Gravidez de alto
risco
Alto
10
Parcial
1
IDOSOS
Acamados
Alto
9
Parcial
2
Fonte: Elaborado pela autora
TERCEIRO PASSO: Descrição do problema selecionado
Quadro 3: Descrição dos problemas selecionados
Descritores
Valores
Fonte
Pré-natal agendada para gravidez de risco
18
Registro dos ACS
Idosos acamados
39
Registro dos ACS
Fonte: Elaborado pela autora
QUARTO PASSO: Explicação do problema
Baixo nível socioeconômico, aspectos culturais e
crenças erradas adquiridas em experiências com a
doença no contexto social.
- Falta de conhecimento por parte do paciente sobre a
doença.
-
152
Determinantes
- Surgimento
de uma geração
com comportamentos
inadequados de saúde.
- Falta de informação
- Resistência em aderir ao tratamento
-Estilo e hábitos de vida inadequados
Favorecendo
Grávida: Gravidez de
risco;
Idoso: Acamado
Problemas
Pode causar
Grávida: pré-eclampsia,
diabetes gestacional, retardo
do crescimento uterino.
Idoso: lesões na pele (úlcera
de pressão), incontinência
urinária.
QUINTO PASSO: Seleção dos “Nós Críticos”
 Pré-eclampsia.
 Diabetes gestacional.
 Retardo do crescimento uterino.
 Formação de ulcera de pressão.
 Incontinência urinaria.
SEXTO PASSO: Desenho das operações
Quadro 4: Desenho da operação
Nó Crítico
Operação/Projeto
Pré-eclampsia
Aumentar o nível de
informação
das
grávidas sobre os
serviços
oferecidos
Resultados
Esperados
Grávidas
informadas sobre
onde buscar os
serviços
e
Produtos
Esperados
Orientar
as
grávidas
para
recolher os sinais e
sintomas de pré-
Recursos Necessários
Cognitivo: Informação
sobre o pré-eclampsia
Organizacional:
Organização
do
153
pela
UBS
no
domicilio e pela rede
de
saúde
do
município.
Diabetes
gestacional
Atraso
crescimento
uterino
Facilitar
o
conhecimento sobre
diabetes gestacional.
atendimentos para
o alto risco na
gravidez. Grávidas
reconhecendo
e
identificando
os
principais sintomas
da pré-eclampsia.
Grávidas
reconhecendo
e
identificando
os
principais sintomas
da
diabetes
gestacional.
eclampsia.
Promover
informações sobre
o
diabetes
gestacional.
do
Saber o histórico
gestacional se também
foi de risco.
Grávidas
com
pouco
conhecimento
sobre o atraso do
crescimento
uterino.
Realizar anotações
no
cartão
da
mulher sobre a
altura de fundo
uterino.
Formação de ulcera
de pressão
Facilitar
o
conhecimento sobre as
lesões de pele e
cuidados gerais com o
idoso acamado.
Família
com
insuficiente
conhecimento
sobre os cuidados
com
o
idoso
acamado.
Realizar orientação
para a prevenção
de
úlcera
de
pressão.
Incontinência
urinária
Facilitar
o
conhecimento sobre a
incontinência urinária.
Família
com
insuficiente
conhecimento
sobre os cuidados
com
o
idoso
acamado e sobre a
incontinência
urinária
Realizar orientação
para a prevenção
de
úlcera
de
pressão.
cronograma
de
atendimento na rede
publica
através
de
encaminhamento.
Político: Parceria com a
rede de saúde e atuação
da equipe de ACS.
Cognitivo: Informação
sobre
o
diabetes
gestacional.
Organizacional:
Organização
do
cronograma
de
atendimento na rede
publica
através
de
encaminhamento.
Político: Parceria com a
rede de saúde e atuação
da equipe de ACS.
Cognitivo: Informação
sobre o crescimento
fetal.
Organizacional:
Organização
do
cronograma
de
atendimento na rede
publica
através
de
encaminhamento para o
hospital de referencia;
marcação de exames.
Político: Parceria com a
rede de saúde e atuação
da equipe de ACS.
Cognitivo: Informação
como prevenir as lesões
da pele.
Organizacional:
Orientação
para
o
cuidador familiar sobre
como cuidar do idoso
acamado.
Político:
Parceria com a rede de
saúde e atuação da
equipe de ACS.
Cognitivo: Informação
a incontinência urinária.
Organizacional:
Orientar o familiar
cuidador
sobre
a
incontinência urinária.
Político: Parceria com a
rede de saúde e atuação
da equipe de ACS.
Fonte: Elaborado pela autora
154
SÉTIMO PASSO: Identificação dos recursos críticos
Quadro 5: Identificação dos recursos críticos
Operação/Projeto
Aumentar o nível de informação das grávidas sobre os
serviços oferecidos pela UBS no domicilio e pela rede
de saúde do município.
Facilitar o conhecimento sobre diabetes gestacional
Saber o histórico gestacional se também foi de risco.
Facilitar o conhecimento sobre as lesões de pele e
cuidados gerais com o idoso acamado.
Facilitar o conhecimento sobre a incontinência
urinária.
Recursos Críticos
Político - Parceria com a rede de saúde, ou seja, pedir
prioridade no atendimento dos encaminhamentos.
Financeiro - folhetos explicativo sobre o atendimento da
rede de saúde do município.
Organizacional - realizar o teste de rápido de HGT, folhetos
explicativos sobre o assunto. orientação sobre a diabetes.
Política - liberação das consultas no hospital de referencia.
Financeiros - providenciar locomoção da grávida.
Organizacional – organizar das consultas e monitoramento
do cartão da mulher.
Política - liberação das consultas no hospital de referencia.
Organizacional – organizar visitas de orientação aos
cuidadores familiares.
Político – ação de orientação para os cuidados específicos
com o idoso acamado, fornecer material sobre o assunto.
Organizacional – organizar visitas de orientação aos
cuidadores familiares.
Político – ação de orientação para os cuidados específicos
com o idoso acamado, fornecer material sobre o assunto.
Fonte: Elaborado pela autora
OITAVO PASSO: Análise de viabilidade do plano
Quadro 6: Análise de viabilidade do plano
Operações/Projetos
Recursos Críticos
Ator que controla
Motivação
Ações Estratégicas
Aumentar o nível de
informação das grávidas
sobre os serviços oferecidos
pela UBS no domicilio e
pela rede de saúde do
município.
Político - Parceria
com a rede de saúde,
ou
seja,
pedir
prioridade
no
atendimento
dos
encaminhamentos.
Financeiro - folhetos
explicativo sobre o
atendimento da rede
de
saúde
do
município.
Organizacional
realizar o teste de
rápido
de
HGT,
folhetos explicativos
sobre
o
assunto.
orientação sobre a
diabetes.
Política - liberação
das consultas no
hospital de referencia.
Financeiros
providenciar
locomoção
da
grávida.
Organizacional
–
organizar visitas de
Secretaria
Municipal de Saúde
Favorável
Firmar parceria com
os setores de apoio à
saúde.
Secretaria
Municipal de Saúde
Favorável
Firmar parceria com
os setores de apoio a
saúde.
Secretaria
Municipal de Saúde
Favorável
Firmar parceria com
os setores de apoio à
Facilitar o conhecimento
sobre diabetes gestacional
Facilitar o conhecimento
sobre as lesões de pele e
155
cuidados gerais com o idoso
acamado.
orientação
aos
cuidadores familiares.
Político – ação de
orientação para os
cuidados específicos
com o idoso acamado,
fornecer
material
sobre o assunto.
Facilitar o conhecimento Organizacional
–
sobre
a
incontinência organizar visitas de
urinária.
orientação
aos
cuidadores familiares.
Político – ação de
orientação para os
cuidados específicos
com o idoso acamado,
fornecer
material
sobre o assunto.
Fonte: Elaborado pela autora
Setor
de
Assistência Social.
Indiferente
Secretaria
Municipal de Saúde
Favorável
Setor Assistência
Social.
Indiferente
saúde e assistência
social.
Firmar parceria com
os setores de apoio à
saúde e assistência
social.
NONO PASSO: Elaboração do plano operativo
Quadro 7: Elaboração do plano operativo
Operações
Resultados
Produtos
Aumentar o nível
de informação das
grávidas sobre os
serviços oferecidos
pela
UBS
no
domicilio e pela
rede de saúde do
município.
Grávidas
informadas sobre
onde buscar os
serviços
e
atendimentos para
o alto risco na
gravidez.
Grávidas
reconhecendo e
identificando os
principais
sintomas da préeclampsia.
Família
com
insuficiente
conhecimento
sobre os cuidados
com
o
idoso
acamado.
Orientar
as
grávidas
para
recolher
os
sinais
e
sintomas de préeclampsia.
Família
com
insuficiente
conhecimento
sobre os cuidados
com
o
idoso
acamado e sobre a
incontinência
urinária
Fonte: Elaborado pela autora
Facilitar
o
conhecimento sobre
as lesões de pele e
cuidados
gerais
com
o
idoso
acamado.
Facilitar
o
conhecimento sobre
a
incontinência
urinária.
Ações
Estratégicas
Firmar parceria
com os setores
de
apoio
a
saúde.
Responsável
Prazo
Equipe
de
Saúde
da
Família
(Enfermeira e
Agentes
Comunitárias
de Saúde)
Imediato.
Realizar
orientação para
a prevenção de
úlcera
de
pressão.
Firmar parceria
com os setores
de apoio à saúde
e
assistência
social.
Inicio
mês.
em
2
Realizar
orientação para
a prevenção de
úlcera
de
pressão.
Firmar parceria
com os setores
de apoio à saúde
e
assistência
social.
Equipe
de
Saúde
da
Família
(Enfermeira e
Agentes
Comunitárias
de Saúde)
Equipe
de
Saúde
da
Família
(Enfermeira e
Agentes
Comunitárias
de Saúde)
Inicio
mês.
em
2
156
DÉCIMO PASSO: Gestão do plano
Quadro 8: Gestão do plano
Produtos
Orientar as grávidas
para recolher os
sinais e sintomas de
pré-eclampsia.
Responsável
Equipe
de
Saúde
da
Família
(Enfermeira e
Agentes
Comunitárias
de Saúde)
Realizar orientação Equipe
de
para a prevenção de Saúde
da
úlcera de pressão.
Família
(Enfermeira e
Agentes
Comunitárias
de Saúde)
Realizar orientação Equipe
de
para a prevenção de Saúde
da
úlcera de pressão.
Família
(Enfermeira e
Agentes
Comunitárias
de Saúde)
Fonte: Elaborado pela autora
Prazo
Imediato
Situação Atual
Em andamento
Justificativa
Encaminhamentos
atendidos.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
Todos os profissionais da equipe do Programa Saúde da Família realizam a visita
domiciliar, mas a o profissional enfermeiro desenvolve além do atendimento clínico por meio
do exame físico, orientações à saúde e prescrição de cuidados específicos para o paciente e
sua família.
A visita domiciliar é um importante instrumento no processo de trabalho do
enfermeiro, pois esta ação lhe confere autonomia e reconhecimento perante os usuários do
sistema de saúde.
É durante a visita domiciliar que o é oportunizado ao enfermeiro a utilização do saber
clínico na prática assistencial, junto com o saber epidemiológico em situações de risco, assim
como o enfoque educativo nas ações de promoção e prevenção à saúde. A oportunidade de
exercer essas ações provoca no profissional um sentimento de bem estar em fazer a coisa
certa.
Entretanto na prática diária os enfermeiros encontram muitas dificuldades para a
realização das visitas domiciliares, pois a sobrecarga de serviço e atribuições influencia
157
diretamente no atendimento humanizado e muitas vezes essa a visita fica designada ao Agente
Comunitário de Saúde que informa em relatório a realidade do paciente.
Por isso é necessário que a equipe multidisciplinar repense e analise a sua pratica a
partir princípios que norteiam o SUS para viabilizarem as transformações necessárias, e não
mais se mantenha no modelo de assistência biomédico.
A elaboração de um plano de ação é uma maneira sistematizada de o enfermeiro obter
sucesso na sua vida profissional não lhe permitindo mais trabalhar de maneira improvisada.
Mas o enfermeiro não trabalha sozinho e para que esse sucesso seja permanente é
fundamental que a equipe esteja participando junto no monitoramento e avaliação de todas as
etapas do plano de ação.
Portanto através do PES é possível ainda levantar outros debates e reflexões que visem
à melhoria e mudanças nas formas de atendimento do enfermeiro nas visitas domiciliares, por
isso esse assunto não se esgota e necessita ser abordado por diferentes ângulos e propostas.
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159
AGRESSIVIDADE NA EDUCAÇÃO INFANTIL: INVESTIGAÇÃO E
INTERVENÇÃO POR MEIO DE ATIVIDADES LÚDICAS
Camila Lucas Chaves
Andréia Cristiane Silva Wiezzel
UNESP - Campus de Presidente Prudente - Faculdade de Ciências e Tecnologia – Pedagogia
[email protected]
Introdução
No ano de 2009, iniciou-se o projeto Contribuições às relações interpessoais e a
dinâmica em sala de aula na FTC – Unesp, campus de Presidente Prudente, com a ideia de
realizar um trabalho em extensão e pesquisa para transformar as relações interpessoais no
âmbito escolar. Atualmente o projeto é desenvolvido sob o título Agressividade e timidez na
escola. O projeto surgiu a partir de reclamações constantes de professores em relação às
condutas agressivas de alguns alunos em sala de aula, bem como de crianças apáticas, tímidas,
que não participavam da aula e deixavam os professores preocupados com o desenvolvimento
de sua socialização.
O objetivo principal do projeto é o de diminuir os quadros de agressividade e timidez
das crianças participantes por meio das atividades lúdicas, tomando-se, como base, que o
brincar possui efeito terapêutico. Além disso, os professores receberiam orientações sobre
formas de trabalho com essas crianças.
Para os estudantes do curso de Pedagogia, o projeto contribuiu à formação acadêmica
por meio da relação teoria-prática, tendo em vista que, com a proximidade com o ambiente
escolar foi possível construir uma linha de pensamento maior no que se refere ao
desenvolvimento emocional e às necessidades afetivas infantis, além de trazer experiência
com as crianças agressivas e tímidas.
Como se sabe, os cursos de Pedagogia ainda não contemplam o estudo da
agressividade e timidez na primeira infância, o que dificulta a interação dos professores com
os alunos que as manifestem em sala de aula, pois estes não sabem como agir com eles.
Assim, o projeto atua na formação inicial e continuada de professores, melhorando as relações
interpessoais em sala de aula.
Será apresentado neste artigo o resultado do projeto de extensão e pesquisa realizado
com uma criança de uma escola municipal de Presidente Prudente-SP, abordando o trabalho
160
de uma das alunas bolsistas. O artigo se refere, portanto, a um recorte do projeto mais amplo,
redigido pela bolsista, sob orientação e revisão da coordenadora do projeto.
1. A agressividade escolar no contexto do desenvolvimento emocional e das
interações afetivas
Para Winnicott (2005) é uma tarefa muito difícil identificar as origens da
agressividade, mesmo depois que se manifesta. Isto porque de todas as tendências humanas
esta é a mais escondida, desviada, disfarçada e atribuída a agentes externos.
Existe no interior da personalidade da criança, um jogo de forças destrutivas, onde
podemos encontrar, de fato, forças boas e más. “Quando as forças cruéis ou destrutivas
ameaçam dominar as forças de amor, o indivíduo tem de fazer alguma coisa para salvar-se, e
uma das coisas que ele faz é pôr para fora. Assim então o controle pode ser estabelecido por
meio da fantasia dramatizada” (WINNICOTT, 2005, p.98)
Quando existe no indivíduo esperança referente às coisas internas, pode utilizar os
impulsos instintivos, inclusive os agressivos, para converter em bem, na vida real, o que era
dano na fantasia. A agressividade, que dificulta seriamente o trabalho da professora, é quase
sempre essa dramatização da realidade interior que é ruim demais para ser tolerada. Encontrar
formas seguras de eliminar a maldade é um problema constante de crianças e adultos. É
possível eliminar o sentimento de frustração por meio de jogos, brincadeiras ou trabalhos que
envolvam uma ação distinta que possa ser desfrutada com prazer.
Na construção da personalidade um dos objetivos é tornar o indivíduo capaz de
absorver cada vez mais o instintual. Isso envolve a capacidade crescente para reconhecer a
própria crueldade e ganância, e só então poderem ser dominadas e convertidas em atividade
sublimada. Só será importante observar que uma criança sabe construir uma torre de cubos, se
soubermos que ela quer derrubá-la.
Mesmo com fatores hereditários que fazem das pessoas aquilo que são e as
tornam indivíduos distintos uns dos outros, fundamentalmente todos eles são semelhantes em
sua essência. Existem amplas constatações a respeito do desenvolvimento da personalidade
que são aplicáveis a todos os seres humanos, desde os primeiros anos de vida até a
independência adulta. Há, nos problemas humanos, denominadores comuns. Embora algumas
crianças apresentem a mesma dificuldade, pode ser que uma tenda para a agressividade e a
outra dificilmente revele qualquer sintoma. Essas duas crianças, simplesmente estão lidando
de maneiras diferentes com as suas cargas de impulsos agressivos.
161
Na criança que expressa agressividade a tendência é obter o alívio que faz parte da
manifestação aberta da agressão e hostilidade. Essas experiências, ainda que perturbem o
ambiente, permitem à criança descobrir que a hostilidade manifestada é limitada e
consumível, constatação não possível às crianças que não expressam a agressividade - como
as crianças tímidas -, o que faz com que tenham muito medo da força de sua agressividade.
O brincar torna a criança capaz de experimentar tudo o que se encontra em sua
íntima realidade psíquica pessoal, que é a base do sentimento de identidade que está em
desenvolvimento, algo que contém possibilidades infinitas, havendo tanto agressividade como
amor. Nesta criança que está em processo de amadurecimento, surge uma opção muito
importante à destruição, isto é, a construção. O surgimento e a manutenção do brincar
construtivo é um dos mais importantes sinais de saúde na criança. Isso aparece com o tempo,
como resultado de todas as experiências de vida da criança no ambiente, proporcionadas pelos
pais ou aqueles que atuam como pais.
A criança, para dominar as ideias e excitações agressivas e ser capaz de controlálas sem perder a capacidade para ser agressivo em momentos apropriados, precisa de muito
tempo. Seja ao odiar ou ao amar, é muito complicado. Observando-se as crianças, vemos que
elas tendem a amar aquilo que machucam. Segundo (WINNICOTT, 2005, p.109) “Na mágica
infantil, o mundo pode ser aniquilado num abrir e fechar de olhos, e recriado através de um
novo olhar e uma nova fase de necessidade”. A destruição mágica caminha lado a lado com a
criação mágica, e isto é comum às crianças nas primeiras fases de seu desenvolvimento.
A mãe que acompanha a criança com sensibilidade nessa fase vital do início do
desenvolvimento, dará ao filho tempo para adquirir todas as formas de lidar com o choque de
reconhecer que existe um mundo situado fora do seu controle mágico. Quando há tempo para
os processos de maturação, a criança, ao invés de aniquilar magicamente o mundo, será capaz
de ser destrutiva e de odiar, agredir e gritar sem que isso seja necessário. “A agressão concreta
é uma realização positiva” (WINNICOTT, 2005, p.110).
Normalmente essas mudanças ocorrem de maneiras sutis e gradualmente e
acompanham as evoluções da criança em desenvolvimento, porém, se houver uma
participação deficiente dos pais, essas mesmas mudanças ocorrem bruscamente e de uma
maneira imprevisível à criança. Quando isto ocorre, a criança perde o sentido de continuidade
do ser, em decorrência do processo de privação de um contato gratificante com pais. O
resultado da privação são lacunas, distorções ou mesmo fixações
no desenvolvimento
emocional e, em caos mais graves, em desintegração da personalidade.
162
Quando existe participação adequada da mãe e boa orientação dos
pais, a maioria das crianças alcança a saúde e a capacidade para deixar
de lado o controle e a destruição mágica, e para desfrutar da agressão
que nelas acompanha as gratificações e todas as relações ternas e
riquezas pessoais íntimas que compõem a vida da infância
(WINNICOTT, 2005, p.110).
Para que se realize um determinado grau de integração na personalidade, é
necessário que a criança receba cuidados suficientemente bons nas primeiras fases. Com isso
o perigo de uma irrupção maciça de destrutividade se torna improvável. O mais importante é
reconhecer o papel desempenhado pelos pais em facilitar os processos de maturação de cada
criança, no decurso da vida familiar.
Apesar da importância dos pais neste contexto, nem sempre as crianças poderão
contar com o ambiente familiar seguro e estável que necessitam ao desenvolvimento de seus
aspectos emocionais e, consequentemente o domínio da agressividade. É comum os
professores relatarem casos de crianças que as agridem e também aos colegas de sala de aula,
sem motivo aparente. Para Winnicott (2005) a agressividade nunca é manifestada sem uma
causa, ou a criança está exercitando a agressividade com a intenção de aprender a dominá-la
ou então a está utilizando como forma de pedido de ajuda, diante de um momento de
esperança de retorno ao desenvolvimento emocional saudável.
Quando a criança esgota seus recursos no lar, passa a incomodar a escola, ou
alguma pessoa que ela imagina que se importa com ela - no caso, os professores - para que a
auxilie em seus momentos de descontrole. Por isso Winnicott (2005) afirma que a criança
tende a atacar as pessoas de que mais gostam. A criança espera, com este recurso que a
natureza lhe oferece, receber apoio de um ambiente que lhe seja continente e lhe ofereça afeto
e regras constantes e estáveis. Ela precisa desse cuidado para que possa retomar o ponto em
que seu desenvolvimento foi interrompido e dar continuidade a este. Se a escola conseguir
identificar este chamado, poderá estar salvando uma vida.
2. O brincar como mediador em caso de agressividade na educação infantil
163
Por meio da brincadeira a criança tem a capacidade de relacionar a realidade que
vive externamente com a que vive internamente. Para Winnicott (1982) a brincadeira acontece
por ser prazerosa e auxilia a criança a lidar com os sentimentos e situações difíceis a ela.
Tal como as personalidades dos adultos se desenvolvem através de
suas experiências de vida, assim as das crianças evoluem por
intermédio de suas próprias brincadeiras e das invenções de
brincadeiras feitas por outras crianças e por adultos (WINNICOTT,
1982, p. 163).
Na faixa etária de dois a seis anos, um meio fundamental para a criança trabalhar
com suas dificuldades emocionais é a brincadeira. É por meio do brincar que ela encontra
uma maneira de lidar com seus impulsos e sentimentos, sejam eles a agressividade ou outros
como a angústia, o medo, a ansiedade, a tensão.
Segundo Winnicott:
Visto as crianças em idade pré-escolar tenderem a ser vítimas de suas
próprias emoções fortes e agressivas, a professora deve, por vezes,
proteger as crianças delas próprias e exercer o controle e orientação
necessários na situação imediata, e, além disso, assegurar o
fornecimento de atividades lúdicas satisfatórias para ajudar a criança a
guiar sua própria agressividade para canais construtivos e para
adquirir habilidades eficazes. (WINNICOTT, 1982, p. 223)
É necessário que a criança tenha contato com o maior número de experiências
possíveis, com objetos que possam ser experimentados de diferentes formas: mordedor,
quebra-cabeças, brinquedos de encaixe, chocalho, bonecos, carrinhos, bolas, entre outros.
O ato de brincar permite que as crianças tenham um espaço para se expressarem e
se beneficiarem dos efeitos terapêuticos que o brincar possui por si só. Dessa maneira, elas
podem externalizar seus impulsos, conflitos e sentimentos e até mesmo elaborá-los.
Devido à relevância que o brincar possui ao desenvolvimento emocional infantil,
segundo Winnicott (1982), as atividades lúdicas foram escolhidas como parte da intervenção a
ser desenvolvida junto à criança agressiva selecionada para participar do projeto. Os
pormenores destas atividades serão apresentados mais adiante.
164
4- Objetivos
O projeto tem, como objetivo geral, investigar e mitigar ações que concorram à
minimização da agressividade infantil em sala, utilizando, especialmente, atividades lúdicas.
5- O projeto em prática
A pesquisa, de natureza qualitativa e de tipo estudo de caso, teve como principal
referencial a teoria winnicottiana, importante referência para o entendimento do
desenvolvimento emocional da criança e dos processos que envolvem a agressividade infantil.
5.1- Sujeito
A criança atendida foi um garoto de seis anos – Edward (nome fictício) – aluno do Pré
II que frequenta a instituição em período integral. Na concepção da professora e dos
coordenadores ele era apto a participar do projeto por apresentar atitudes consideradas
agressivas, tanto em sala de aula, quanto no horário de atividade livre.
Por intermédio da entrevista com a professora, foi possível ter uma ideia mais
abrangente da conduta da criança dentro da sala de aula. Ela o classificou como uma criança
“agitada” e com dificuldades de concentração, o que, em sua concepção, resultava em um
rendimento escolar abaixo do esperado, partindo do padrão da maioria do grupo etário escolar
a que ele pertencia.
Perguntas sobre sexualidade, por parte da criança, eram frequentes e sempre
questionava, particularmente, “como os bebês entram na barriga” e sobre o nascimento do
irmão mais novo. A criança também reclamava de dores na barriga, as quais justificava estar
com “vermes”. Quando isto ocorria, ainda conforme a professora, esta pedia a ele para ir
passear e tomar uma água, se a dor persistisse, a escola entrava em contato com a família para
ir buscá-lo, mesmo acreditando que aquilo era “manha” e que ele estava mentindo.
A criança também apresentava dificuldades em cumprir as regras e desafiava a
professora quando alguma lhe era imposta. Por conta disto, possuía um relacionamento
conturbado com os colegas, em que os provocava e era agressivo. A professora disse que o
165
aluno era muito nervoso e expressava sua agressividade por meio de chutes, socos e
xingamentos e, por esses motivos, os colegas acabavam se afastando dele, o que causava um
isolamento da criança e pouco contato com as outras durante as brincadeiras.
A professora informou que a criança tem sido acompanhada pelo Conselho Tutelar, pois
houve denúncias – inclusive da escola – de agressões por parte do avô. Após estes
acontecimentos a agitação e o comportamento violento da criança aumentaram. Para
contornar as situações em que a agressividade aparecia, primeiramente, a professora tentava
conversar com ele, porém, se isso não resolvesse, o colocava sentado por alguns minutos ao
seu lado, ou em mesa separada dos colegas.
O Edward frequenta as aulas sem possuir muitas faltas, porque tem o benefício Bolsa
Família - auxilio financeiro do governo às famílias, que exige a presença do aluno na escola.
Para a professora, Edward necessitava de uma avaliação neurológica e um acompanhamento
com psicólogo, mas a família afirma que, no momento, isso não é possível por ter um grande
gasto com a outra filha que possui Transtorno de Atenção e Hiperatividade, fazendo uso de
remédios controlados. Quanto à estrutura emocional familiar, a professora disse que, pelo
contato que possui com os membros da família, percebe que eles são um pouco ausentes e que
há falta de limites para a criança por parte dos pais.
A entrevista com a mãe, por sua vez, foi muito importante e esclarecedora de algumas
situações que ocorreram na brinquedoteca. Apesar de não comentar alguns fatos que foram
relatados pela professora, os dados obtidos auxiliaram muito a uma melhor compreensão da
criança.
Edward é o filho mais velho e possui ainda mais três irmãos, sendo Alice (nome
fictício) do mesmo pai e da mesma mãe, com quatro anos de idade, Emmett (nome fictício) da
mesma mãe e pai diferente, com dois anos de idade e Bella (nome fictício) do mesmo pai e
mãe diferente, com apenas seis meses. Edward mora com os avós e Alice, e a mãe reside na
casa dos fundos com o atual marido, com quem não possui filhos. A mãe do garoto está no
terceiro casamento, o que, durante os encontros, se manifestou pelo fato de o aluno, a cada
momento, dizer o nome de um pai diferente. A ideia de pai é muito confusa para Edward.
A criança é cuidada pelos avós maternos desde nasceu, pelo fato de a mãe trabalhar o
dia inteiro e sempre chegar cansada em casa. Mesmo assim, ela se julga muito presente na
vida dos filhos. O pai de Edward era usuário de drogas desde que se relacionava com a mãe
dele, e não possui nenhum tipo de relacionamento com os filhos, pois abandonou a família
desde que Edward era pequeno, logo depois que a Alice nasceu.
166
Em meados de 2013 ele voltou à cidade, porém já estava casado e com uma filha
pequena, de seis meses. O relacionamento entre a mãe e o pai de Edward era conturbado,
cheio de discussões. Apesar de a gravidez ter sido planejada, a gestação não foi tranquila por
conta do vício do pai, porém, não houve “dificuldade” em cuidar da criança quando ela era
bebê, porque a mãe sempre teve o apoio dos pais (avós de Edward, que o assumiram).
A relação de Edward com os irmãos, descrita pela mãe, é bem diferente da retratada
durante as brincadeiras nos encontros lúdicos. Em casa, Edward é bastante agressivo com a
irmã Alice, e quando o irmão Emmett vai passar um tempo com a mãe, Edward é carinhoso e
se relaciona muito bem com Alice.
Os comportamentos agressivos apresentados em casa aumentavam, ainda na percepção
da mãe, quando esta dava mais atenção para algum dos irmãos, isso deixava Edward muito
nervoso e “estourava” com facilidade em situações de conflitos, em que repetia frases do tipo:
“Quero matar todo mundo” e “Não quero saber de mais ninguém”. A mãe disse que se
exaltava com esse tipo de comportamento e acabava gritando e “dando umas palmadas” para
controlar este comportamento agressivo. Ela acreditava que estes comportamentos
começaram com a chegada da Alice. Quando a mãe conversava com calma e abraçava a
criança, ou seja, manifestava carinho e lhe oferecia proteção, acolhimento, essas situações de
comportamentos agressivos diminuíam consideravelmente.
A rotina da criança em casa, segundo a mãe, "começava só depois da escola", já que
permanecia na instituição em tempo integral. Ele voltava de van para casa, onde os avós
ofereciam o jantar e o colocavam para dormir. No tempo entre o jantar e o horário de dormir,
ele gostava de brincar de carrinho e bonecos. Quando a Alice participava das brincadeiras,
normalmente acabava em briga e discussão. A mãe observava que o humor da criança mudava
com muita facilidade, mas que ele era muito amoroso e calmo quando não estava próximo à
irmã.
A mãe estava ciente das dificuldades do Edward na escola, mas acreditava que eram
decorrentes do fato de ser muito preguiçoso e por não ter um bom relacionamento com a
professora. Ele era muito teimoso e desafiador na escola, comportamento que ele tinha
inclusive com a própria mãe. Quando questionada se a criança fazia pergunta sobre
sexualidade, ela respondeu que não.
O fato de a criança ser acompanhada pelo Conselho Tutelar não foi dito em nenhuma
parte da entrevista, porém a mãe contou que o avô do Edward foi diagnosticado com
transtorno bipolar e que tinha crises de raiva quando não estava medicado e acabava a
167
agredindo, cenas essas presenciadas pela criança. Apesar disso, Edward era muito apegado a
ele.
5.2- Procedimento
A pesquisa, de natureza qualitativa – tipo estudo de caso – privilegiou, como
instrumentos de coleta de dados, observações com a criança agressiva selecionada, entrevista
com pais e professores e atividades lúdicas. Para a intervenção, considerando os efeitos
positivos do brincar sobre o psiquismo da criança, optou-se pela realização de atividades
lúdicas com a criança, junto à brinquedoteca escolar e oferecer ao professor orientação sobre
formas alternativas de interações com ela.
Os encontros lúdicos aconteceram uma vez por semana, de forma individualizada, e
possuíam a duração de, aproximadamente, uma hora. A criança tinha à disposição uma caixa
que continha vários brinquedos, selecionados de acordo com a sua faixa etária. Ela tinha
liberdade para escolher quais os brinquedos e brincadeiras que queria realizar. Se a criança
requisitasse, a estagiária que a acompanha, poderia participar das brincadeiras, caso contrário,
ela se restringia às observações.
Antes do início das atividades lúdicas, a criança foi observada dentro da sala de aula,
para que um levantamento fosse feito a partir de como ela interagia com outras crianças e
professores, para se ter certeza de que possuía o perfil indicado à participação no projeto. Os
dados levantados neste contexto e nas entrevistas com pais e professores foram fundamentais
para que se pudesse compreender o cotidiano da criança e reconstruir aspectos importantes da
sua história de vida. Todos os resultados obtidos foram analisados com base na teria
winnicottiana e cotejados, de forma a auxiliar na orientação da professora, de forma que esta
pudesse ajudar a criança a interagir melhor no âmbito escolar, e de maneira a melhor conduzir
as atividades lúdicas dela.
3- Apresentação dos dados e discussão
Os encontros lúdicos iniciaram-se em junho de 2013. Nos primeiros dias de
observação em sala de aula, foi possível notar que Edward era um garoto curioso, e que
interagia com os colegas de sala de aula. Questionava bastante os fatos que ocorriam ao seu
redor e parecia ser muito desconfiado e assustado. Foi possível presenciar, logo no primeiro
168
dia, uma discussão na fila de entrada, onde um dos colegas o acusou de “furar a fila” e de têlo empurrado, sendo necessária a intervenção da professora para resolver o ocorrido.
Desde o início dos encontros lúdicos, Edward confiava bastante na estagiária e se sentia
à vontade para escolher com o que gostaria de brincar, mas sempre estava desconfiado e
questionando se aquilo era certo. As brincadeiras variavam durante o tempo previsto para o
encontro, algo em torno de 50 minutos.
Dentro da caixa de brinquedos, havia um conjunto de bonecos de pano, que era
composto da seguinte maneira: um vovô, uma vovó, um pai, uma mãe, um filho, uma filha e
um bebê. As brincadeiras mais importantes de Edward aconteceram com esses bonecos, cada
um foi nomeado de acordo com os membros da família de Edward.
Ao brincar com os bonecos, por várias vezes, Edward fazia menção ao pai. Porém, a
casa vez que fazia tais menções, chamava o boneco por nomes diferentes, no total de três
nomes. Suas representações estavam mostrando que não havia uma estabilidade nos
relacionamentos que mantinha com esses homens, isto é, parece que nenhum deles, por
motivos diversos, pode ter uma relação efetiva com o garoto. Para ele e, infelizmente, na
realidade, a presença do pai biológico era vaga e os outros relacionamentos da mãe, por serem
curtos e não envolverem uma relação mais próxima com ele (pois ela deixava as crianças a
cargo dos avós e morava apenas com o cônjuge em casa nos fundos), acabam por
impossibilitar um relacionamento mais profundo e o desenvolvimento de um apego seguro
com eles, ou com pelo menos um deles.
O avô, dentro de suas possibilidades, desempenhou o papel de figura masculina junto
ao garoto, pois, quem acabava assumindo as responsabilidades de educação e cuidados com a
criança (e das outras duas), eram os avós maternos. Porém, o avô possui transtorno bipolar e,
quando se esquecia de tomar a medicação, agredia fisicamente tanto Edward quando sua filha
(a mãe do garoto). Edward, em função da forma como se via tratado pela mãe e avô, acabava
nutrindo sentimentos de raiva e ódio de ambos, alternando com momentos em que sentia
amor por eles. Isto ficou claro durante as brincadeiras em que ele “matava” os bonecos que
representavam a mãe e o avô e os “ressuscitavam” minutos depois.
Dentre as lembranças que Edward mais gostava, ele sempre se referia às pescarias que
o avô o levava, quando estava bem. Quando relembrava tais momentos, parecia diminuir a
raiva que sentia pelo avô quando este o agredia. Porém, logo era tomado por uma raiva, que
fazia com que ele atirasse o boneco que representava o avô “à água” (ele reproduzia, com os
169
brinquedos, a pescaria), o mantendo lá até que passasse seu sentimento. A ausência da mãe
também causava desconforto ao garoto, que buscava apoio na irmã mais nova, de quatro anos.
Esta situação familiar, evidentemente, fazia com que o garoto, em busca de atenção às
suas necessidades afetivas, agisse de forma que seus familiares sentissem raiva, tristeza e
angústia e isto produzia nele medo de ser rejeitado ainda mais, sentia muita culpa, porém,
presumiu-se que ninguém estava em condições emocionais de cuidar dele e, portanto, as ações
que deveriam funcionar como um apelo, provocavam ainda mais dificuldades no lar. Edward
fazia “arte” em casa e sofreu tanto que o Conselho Tutelar foi acionado pela escola.
Além disso tudo, havia ainda o bebê Emmett, de dois anos de idade, que morava com
Edward e era seu irmão apenas por parte de mãe. A relação que Edward mantinha com o bebê
era de ódio, bem diferente da relatada pela mãe durante a entrevista. O bebê foi “morto” em
quase todos os dias de encontros lúdicos na brinquedoteca e de várias maneiras possíveis,
sendo até enterrado – enterros nos quais que ele pedia ajuda da estagiária para realizar. O
irmão nunca foi ressuscitado em nenhuma das brincadeiras.
Com a Alice, que era a irmã com quem tinha mais contato, pois moravam na
mesma casa, ao contrário da percepção materna, ele tinha uma relação de proteção para com
ela. Por meio das brincadeiras foi possível perceber que ele sentia um grande carinho e se
preocupava em fazer com que ela se sentisse bem. Na hora em que as brincadeiras ficavam
mais violentas, Edward a deixava de lado. Só a colocava de volta, se o intuito era o de “salvala”.
Os blocos de montar e os copos de encaixe estavam entre os brinquedos que ele
mais gostava. Eram utilizados para brincadeiras de penetração (fazendo referência aos
questionamentos sexuais que ele fazia), que estão ligados à reparação. Em algumas situações,
os blocos de montar eram usados para construir muralhas e barreiras de proteção, e o
protegido variava de acordo com o dia. Era possível entender que, quando havia algum
conflito em casa, ele decidia sobre quem deveria proteger na brincadeira. Os copos de
encaixe, por diversas vezes, foram utilizados como caixão, numa tentativa de “enterrar”, se
livrar, do conflito que possuía com o irmão Emmett. As brincadeiras com blocos de montar
são muito importantes, pois mostra que embora a criança esteja disposta a destruir, também
possui potencial para a construção e a consequente elaboração da agressividade.
Na semana em que a estagiária não pode dar sequência às atividades lúdicas por
estar doente, e isto já próximo ao término dos encontros lúdicos de 2013, (quando Edward já
apresentava sinais evidentes de melhora), ele deu um chute no estômago de um colega de
classe - que desmaiou - após ser sido empurrado pelo mesmo. A mãe foi chamada à escola e
170
decidiram, como castigo, que Edward ficaria sem brincar por uma semana. Os brinquedos que
utilizava em casa e na escola foram retirados e, quando a estagiária chegou à escola para leválo à brinquedoteca, a professora tentou impedir. Ela não conseguia compreender o processo e
nem acreditava no valor do projeto e do brincar para aquela criança, especialmente naquele
período, em que estava ainda mais vulnerável. A estagiária, diante do fato, justificou que o
projeto não deveria ter relação com o castigo e levou Edward, assim mesmo, à brinquedoteca.
A professora estava participando das reuniões de orientação, mas o fazia sem muita vontade,
sem se envolver a ponto de dar uma chance ao aluno. Ela estava no magistério há 15 anos e,
visivelmente, estava muito cansada e endurecida pelo sofrimento.
Neste dia, as brincadeiras dele na brinquedoteca foram bastante agressivas. Com
os blocos de montar ele criou várias armas, de diferentes tamanhos e “matou” todos os
bonecos de pano, que representavam a família dele. Foi o dia em que Edward se mostrou mais
agressivo e nenhum dos bonecos foi ressuscitado. Provavelmente, o encontro lúdico no qual a
estagiária não pode ir fez falta a ele, que teve que manifestar sua agressividade em sala de
aula mesmo, já que o espaço da brincadeira estava indisponível naquela semana. Porém, como
a intensidade de sua raiva estava muito alta, algo deve ter ocorrido e o deixado terrivelmente
perturbado. Em geral, quando se acompanham casos de crianças que têm manifestações
agressivas, é comum que hajam recaídas durante o processo e, conforme nossa experiência,
tais recaídas, em geral, estão relacionadas a algum evento estressante que ocorreu nas
interações sociais pouco antes.
É interessante ressaltar que todas as vezes em que as brincadeiras realizadas pela
criança estavam relacionadas a um de seus conflitos mais difíceis, Edward sentia dores na
barriga, atribuindo-as a vermes. Ele pedia que a estagiária o ajudasse a retirar esses vermes
que estavam na barriga dele, que eram representados em algumas brincadeiras por aranhas de
diversos tamanhos. Isso mostra o interesse que ele tinha em resolver o que o estava deixando
angustiado e com medo, em se ver livre daquele sofrimento. A dor na barriga, em geral, está
associada à ansiedade.
Apesar de a professora dizer que ele ainda voltava “agitado” dos encontros
lúdicos, Edward não apresentava agressividade, em sua concepção. Na brinquedoteca, houve
diferenças nas brincadeiras; verificou-se que
estava menos agressivo ao manusear os
brinquedos e até mesmo nas brincadeiras em si e passou a conversar com a estagiária.
É importante ressaltar que a estagiária nunca se sentiu desrespeitada ou foi tratada
com agressividade por Edward. Desde o início do projeto ele se apegou bastante a ela, a ponto
de lhe confiar seus mais difíceis e complexos sentimentos. O brincar possui função
171
terapêutica por si só, e isto, aliado a uma relação empática, de compreensão e segurança
proporcionada pela estagiária, auxiliou na formação de um campo que permitiu a ele trabalhar
com os sentimentos.
Embora o projeto tenha terminado, Edward ainda necessita da continuidade do
trabalho, pois muito ainda pode ser feito por ele. Sabe-se que o garoto enfrenta fatores de
risco todos os dias, então, antes que a agressividade evolua a um ponto em que não mais
possa ser ajudado pelo projeto, ele será localizado (frequentava o Pré II em 2013 e em 2014
seguiria para uma escola do ensino fundamental) e o trabalho terá continuidade em 2014. Os
encontros lúdicos ficaram prejudicados porque começaram três meses depois do previsto,
devido ao atraso no processo seletivo dos projetos.
6- Considerações finais
Os fatores que podem causar a agressividade infantil são muitos e não devem ser
desconsiderados pelos professores na lida com a criança. É importante levar em conta o
ambiente interno e externo à escola e as emoções sentidas pela criança que manifesta
agressividade. Alguns fatores a serem considerados são: a intensidade da raiva que a
criança
sente, a insatisfação pelos acontecimentos que são vividos por ela, a
representação que a criança atribui a estes acontecimentos, a maneira como é repreendida
pelo seu comportamento agressivo, a questão da imitação dos modelos agressivos que
observa e tem contato, o modo como manifesta a agressão bem como os possíveis fatores
internos à escola que a pode deflagrar, tais como a rejeição, os maus tratos, as agressões
por parte de outras crianças, as provocações. É comum que, por conta da quantidade de
trabalho, os professores direcionem sua atenção apenas ao “produto final”, isto é, quem
agrediu a quem. Nossa experiência tem demonstrado que, muitas vezes, a agressividade é
mobilizada como forma de defesa a um ataque inicial.
Se o professor possuir conhecimento adequado sobre o desenvolvimento
emocional infantil, estará melhor instrumentalizado para lidar com situações em que as
manifestações agressivas se façam presentes. Winnicott (1982) afirma que é preciso que o
professor tenha sentimentos de compreensão e solidariedade para com a criança. Usar o
castigo ou a punição nem sempre funcionam ou são a melhor estratégia para este tipo de
comportamento, o fundamental é que a criança perceba que existem limites para suas
atitudes e sinta que as pessoas se importam e que a querem ajudar em seus momentos de
dificuldades, descontrole. Suas atitudes agressivas requerem atenção, pois, em geral,
172
sinalizam que algo está faltando e tal falta está comprometendo seu desenvolvimento
emocional e social.
Através da brincadeira a criança tem a oportunidade de resolver dificuldades que
fazem parte do seu desenvolvimento emocional. Pelo brincar se faz possível que a criança
trabalhe seus conflitos internos e dê vazão à sua agressividade, permitindo que ela seja
manifestada sem o retorno punitivo do meio. Em suma a criança terá na brincadeira, um
recurso para minimizar seu sofrimento e conflitos, o que será refletido em suas interações
sociais. Isso posto, ressalta-se a importância da brincadeira no lar e na escola.
7- Referências
WINNICOTT, D. W. A criança e seu mundo. Álvaro Cabral (trad.). Rio de Janeiro: LTC,
1982.
WINNICOTT, D. W. Privação e delinquência. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
8- Bibliografia
ABERASTURY, Arminda. A criança e seus jogos. Marialzira Perestrello (trad.). Porto
Alegre: Artmed, 1992.
173
CONTRIBUIÇÕES DA ANÁLISE INSTITUCIONAL E O
PSIQUIÁTRICO COMO UM ANALISADOR DA SAÚDE COLETIVA
HOSPITAL
JOÃO RENATO CIABATTARI PAGNANO
Silvio José Benelli
[email protected]
Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UNESP Assis
Tendo em vista o objetivo de construir uma vertente crítica para trabalhar o tema da
internação psiquiátrica, prática ainda muito utilizada no Brasil, tanto nos séculos passados
quanto no atual, como forma de tratamento aos indivíduos portadores de sofrimento mental,
bem como aos alcoolistas e usuários de drogas, é relevante utilizar uma abordagem rigorosa
que possa dar conta da complexidade dessa problemática. A Análise Institucional (AI),
portanto, oferece essa condição de subsidiar a construção deste trabalho, dedicando seu estudo
ao efeito de tudo que permanece invisível nas instituições e abrindo linhas de transformação
sem o que não seria possível escapar dos jogos de poder praticados no interior destes locais.
Para fundamentar o instrumental composto pela AI nos utilizamos dos seguintes autores:
Lourau (1995), Goffman (1987), Baremblitt (1994), Foucault (1999b), Benelli (2003a, 2003b,
2004, 2013), Altoé (2004) e L’abatte (2012).
O Movimento Institucionalista de onde surge a AI emergiu na década de sessenta do
século XX, visando promover movimentos de auto-organização em grupos, instituições e
comunidades, partindo de uma crítica sobre os efeitos de alienação institucional ocasionados
pela heterogestão e também da proposta de desmistificação do saber denominado científico. O
Institucionalismo surgiu para fazer frente ao cientificismo tradicional, de matiz
predominantemente classificatório, arbitrário e repressivo no qual o cientista era concebido
como o detentor universal do saber (e consequentemente, do poder). Nessa situação, era
praticamente inaceitável para o status quo qualquer tentativa de questionamento por parte da
população (BAREMBLITT, 1994). De modo a esclarecer estas questões, partimos da idéia de
que nossa civilização nas ultimas décadas sofisticou suas produções de conhecimento, e suas
aplicações muito intensamente em nossa civilização têm produzido um saber acerca de seu
próprio funcionamento como objeto de estudo, gerando profissionais, intelectuais, experts que
são os conhecedores dessa estrutura e do processo dessa sociedade em si.
Nossa sociedade cria técnicos, os "especialistas", os conhecedores da estrutura e do
processo da vida social. O relevante é que não se pode ocultar por critérios de uma análise
174
crítica da sociedade que, predominantemente esses “sábios” trabalham a serviço do Estado e
das empresas privadas, e temos como conseqüência aniquiladora uma população que têm-se
visto despossuídas de um saber que tinham acumulado ao longo de muitos anos acerca de sua
própria vida, de seu próprio funcionamento. Esse saber, criado e acumulado pelas
comunidades sociais durante tantos anos de experiência vital, a partir do surgimento do saber
científico e tecnológico, fica relegado, colocado em segundo plano, como se fosse rudimentar
e inadequado. E estão em todos ramos produtivos, primários, secundários e terciários, os
especialistas de produção de bens materiais, ou seja, comida, vestuário, moradia, transporte:
aqueles bens materiais indispensáveis à sobrevivência que em outras épocas era parte comum
por exemplo de uma família como: cortar o cabelo uns dos outros, costurar roupas pros filhos
e hoje até o almoço está nas mãos de outrem, como indica frase irônica nos restaurantes de
“comida caseira”.
Mas noutro plano, referindo aos problemas de saúde, de educação, aos assuntos
familiares, aos psicológicos e subjetivos, há um conceito básico o qual vamos encontrar na AI
que se chama demanda. É possível afirmar que as comunidades ou coletividades não têm
necessidades básicas indiscutíveis e universais, essas necessidades são colocadas diariamente
através da exigência de produtos e de serviços correspondentes. Em todas as épocas da
história, mas particularmente na nossa, não existem necessidades básicas "naturais", não
existem demandas "espontâneas", pois em todas e em cada uma dessas organizações a noção
das necessidades é produzida, assim como a demanda é modulada, ou seja, aquilo que os
povos pensam que todos os membros de uma população e todos os povos do mundo precisam
como "mínimo" não existe. As pessoas acham que precisam aquilo que os experts dizem que
elas necessitam, e eles nos dizem o que querem dizer. Tomemos como exemplo uma situação
de um determinado gênero alimentício, a laranja. Se for interessante, pois há um estoque na
produção de laranja, é sugerido na mídia, incluindo os jornais televisivos, que essa fruta
segundo cientistas é importante para muitos aspectos da saúde e todos saem às compras.
Então, os coletivos têm perdido, têm alienado o saber acerca de sua própria vida, a noção de
suas reais necessidades, de seus desejos, de suas demandas, de suas limitações e das causas
que determinam essas necessidades e essas limitações. Eles têm perdido um certo grau de
compreensão e o controle sobre que tipos de recursos e formas de organização devem dispor
para colocar e resolver seus problemas. Mal podem organizar-se para resolver seus problemas
se não conseguem saber, com precisão, quais são seus verdadeiros problemas e o que requer
para resolvê-los e neste ponto entram os dois objetivos da AI que é a auto-análise e o outro a
autogestão.
175
O Institucionalismo propõe uma estrutura organizacional horizontal e uma reflexão
crítica acerca das reais necessidades da população para, a partir daí, buscar a auto-análise e
autogestão dos coletivos sociais. Nestas circunstâncias, o cientista não seria mais concebido
como um ser onipotente detentor da verdade, mas sim como um “intelectual orgânico”,
buscando valorizar o saber produzido de um modo coletivo e democrático. Trata-se da
retomada do saber próprio, do qual outrora fora destituído do povo (BAREMBLITT, 1994). A
auto-análise consiste em que as comunidades mesmas, como protagonistas de seus problemas,
necessidades, interesses, desejos e demandas, possam enunciar, compreender, adquirir ou
readquirir um pensamento e um vocabulário próprio que lhes permita saber acerca de sua
vida, ou seja: não se trata de que alguém venha de fora ou de cima para dizer-lhes quem são, o
que podem, o que sabem, o que devem pedir e o que podem ou não conseguir. Mas os experts
devem submeter seu saber, suas glórias, seus métodos, suas técnicas, suas inserções sociais
como profissionais a uma profunda crítica que os faça separar, dentro dessas teorias, métodos
e técnicas, dentro dos organismos aos quais pertencem, o que é produto de sua origem, de sua
pertença ao bloco dominante das forças sociais e o que pode ser útil a uma auto-análise, a uma
autogestão, da qual os segmentos dominados e explorados sejam protagonistas. Para poderem
efetuar essa autocrítica, eles não podem fazê-lo permanecendo encerrados em seus
laboratórios de estudo, não podem fazê-lo nas Universidades ou Centros de Pesquisas. Devem
de fato entrar em contato direto com esses coletivos que estão se auto-analisando e
autogestionando para incorporar-se a essas comunidades desde um estatuto diferente daquele
que tinham. Esse estatuto deve resultar de uma crítica das posições, postos, hierarquias que
eles têm dentro dos aparelhos acadêmicos ou jurídicos e políticos do Estado, ou ainda das
diretivas das grandes empresas nacionais e multinacionais. Sendo a AI uma corrente
originária do Movimento Institucionalista, ao estabelecer um campo de análise (no qual situa
um determinado objeto de investigação) nunca deixa de levar em consideração as dimensões
micro e macro políticas, considerando sempre o atravessamento do Estado e do sistema
econômico vigente, bem como a transversalidade dos momentos revolucionários. (LOURAU,
1995; BAREMBLITT, 1994).
É importante que os experts reformulem sua condição profissional, seu saber
específico numa gestão, num trabalho feito em conjunto com essas comunidades e na mesma
relação de horizontalidade com que qualquer membro dessa comunidade o faz. Isso permitirá
que eles, eventualmente, quando a comunidade conseguir organizar-se, tenham algum lugar
dentro das organizações específicas que a comunidade se deu a si mesmo para esses fins.
Então seu saber, sua capacidade e sua potência produtiva estarão plenamente integrados ao
176
movimento de auto-análise e autogestão dessa comunidade. Eles poderão assim reformular,
aprendendo e ensinando seu saber e sua eficiência nessa nova e inédita situação. À parte dessa
reinvenção de sua disciplina, os experts poderão aprender como eles serão capazes de
propiciar outros movimentos autogestivos e auto-analíticos quando forem chamados a
participar. Torna-se necessário implicar-se assim em apenas uma certa especialização de
algumas tarefas, porque estes dispositivos estão feitos de tal maneira que as decisões de fundo
são tomadas coletivamente. Em todo caso, os quadros hierárquicos não são mais que
expressões da vontade consensual, são executores, mas não são executores do mandato das
elites mediatizado por organismos burocráticos, por correias de transmissão. Na autogestão os
coletivos mesmos deliberam e decidem. Eles têm maneiras diretas de comunicar as decisões.
Existem hierarquias moduladas pela potência, peculiaridades e capacidade de produzir; mas
não há hierarquias de poder, ou seja, a capacidade de impor a vontade de um sobre o outro.
Contudo, é evidente que o Institucionalismo, tanto quanto os processos auto-analíticos,
são produtores de conhecimentos, e que todo saber envolve, necessariamente, um poder, e
ambos não são homogeneamente distribuídos. Mas este saber é um saber coletivo, produzido,
distribuído e exercitado na vida coletiva. O Institucionalismo é alguma coisa assim como o
resultado do ensinamento dessas iniciativas históricas sobre os próprios experts. Nós, os
experts – médicos, engenheiros, advogados, comunicólogos, psicólogos, etc. –, temos
aprendido que isso existe e que poderíamos colaborar para seu desenvolvimento a partir das
experiências históricas que já existiram nesse sentido e das que estão existindo e se
desenvolvem perfeitamente ou dificilmente sem a nossa participação. Por outro lado, a gênese
conceitual refere-se ao campo das idéias, conceitos e funções: todas aquelas teorias, conceitos,
idéias, categorias que têm sido produzidas pela humanidade no decorrer da história do
conhecimento podem contribuir para dar base, para fundamentar ainda mais a proposta
institucionalista.
Do ponto de vista da AI, uma sociedade nada mais é do que um entrelaçamento de
instituições, segundo o grau de formalização que adotem, podem ser leis, normas ou
regularidades de comportamentos.
O fato de fundar uma família, o ato do casamento, ou ainda o fato de fundar
uma associação, de iniciar um negócio, de criar uma empresa, um tipo de
ensino, um estabelecimento de socorros são fenômenos que recebem
também o nome de instituição. (LOURAU, 1975, p. 9).
177
Para uma melhor compreensão temos como exemplos: a linguagem, as relações de
parentesco, a educação, a religião etc. “Em termos de um plano formal, uma sociedade não é
mais que isso: um tecido de instituições que se interpenetram e se articulam entre si para
regular a produção e a reprodução da vida humana sobre a terra e a relação entre os homens”.
(BAREMBLITT, 1994, p.29)
Apenas alguns detalhes, de fácil compreensão devem ser sempre lembrados quando
estudamos a AI, mas no entanto fundamentais para o manejo dos conceitos, é que as
instituições se materializam em dispositivos concretos, as organizações, que por sua vez se
compõem de unidades menores, nomeadas de estabelecimentos. Os estabelecimentos
costumam incluir dispositivos técnicos: as instalações materiais, maquinaria, arquivos,
aparelhos. Esse conjunto de elementos recebe o nome de equipamentos. Todos esses
elementos: instituição, organização, estabelecimento, equipamento, adquire dinamismo
através dos agentes (atores institucionais), os sujeitos que são os suportes e protagonistas da
atividade coletiva microfísica responsável pela substância da instituição. Os atores
institucionais protagonizam práticas sociais que podem ser verbais, não-verbais, discursivas,
teóricas ou técnicas. Enfim, avisados sobre esses conceitos podemos seguir construindo as
analises sobre a instituição que pretendemos trabalhar, o que significa que problematizamos a
própria constituição do seu campo como um conjunto de saberes e práticas, relacionados a um
contexto amplo, de ordem político-social, ideológica e técnico científica, considerando neste
caso a Saúde Coletiva como uma instituição, a Saúde Mental como uma organização e o
Hospital Psiquiátrico como apenas um estabelecimento desta instituição.
Nesta perspectiva, as relações pedagógicas, terapêuticas, educativas entre a
equipe dirigente e pacientes não se configuram como relações estáticas entre
pólos constituídos, mas apresentam-se em permanente constituição e
ordenação – plenas de vicissitudes – em constante transformação dos lugares
e posições no interior das relações, numa pulverização dos lugares
instituídos e instituintes. Desse modo, não podemos conceber práticas e/ou
sujeitos autônomos, pois toda prática é efetivada por relações nas quais se
configuram sujeitos. Essa é a principal condição para que as instituições
existam concretamente. A solidez institucional residiria nos vínculos entre os
sujeitos que as fazem cotidianamente, vínculos invisíveis, microfísicos, que
se plasmam em relações instituintes e instituídas no contexto institucional,
podendo ser mapeadas a partir das forças e dos poderes moleculares que as
permeiam. O hospital psiquiátrico parece ter seu núcleo subjetivizante
centrado numa formação disciplinar, ao mesmo tempo moral e psicológica.
A ação institucional, entre reconhecimentos e desconhecimentos incide
normativamente sobre as condutas. (BENELLI; COSTA-ROSA, 2003, p.
46-47)
178
É possível distinguir duas dimensões fundamentais das instituições: o plano instituinte
(processo dinâmico, dialético) e o plano instituído (produto) (BAREMBLITT, 1994).
Instituinte remete ao conjunto de forças que tendem a fundar instituições, momento
fundacional original, e atualiza-se constantemente como processo ou movimento criador e
dinâmico, que mantém a instituição viva e sempre renovada, atualizada, transformada e em
transformação. Instituído seria o resultado material dessa força instituinte. Para entender uma
instituição é preciso ter em mente que os instituídos, os organizantes-organizados que
constituem a rede social, e a dimensão instituinte, não atuam separadamente, eles se
interpenetram em vários níveis. Convencionou-se chamar Atravessamento à interpenetração
do nível reprodutivo, conservador. Transversalidade designa o movimento de interpenetração
do instituinte, do criativo, do novo (Ibidem). A finalidade mais “operatória” da organização
(sua função oficial) esta ligada a outras finalidades criadas pela existência de relações
contínuas entre tal organização e as outras existentes que possuem funções diferentes, e
também por suas relações com o conjunto do sistema social. Definir racionalmente uma
organização pelos serviços que presta, não basta. É preciso também levar em conta o fato de
uma fabrica ou uma firma produzirem modelos de comportamento, manterem normas sociais,
integrarem seus usuários em um sistema total. É preciso finalmente levar em conta o fato de
que na fabrica não se organiza somente, ou principalmente, o trabalho, a produção, o
acréscimo do rendimento dos serviços, mas existe também um fluxo que permeia o
funcionamento por uma lógica de classificação social e da luta de classes (LOURAU, 1975, p
12).
A unidade de uma organização é feita, de um lado, por uma disposição específica das
funções sociais em redor de uma função oficialmente privilegiada, e de outro lado, pela
exclusão oficial de certo numero de outras funções, que se tornam então latentes, acidentais
ou informais. Para a AI o instituinte vai muito além daquilo que se contrapõe de modo
articulado ao instituído, um não pode ser sem o outro, e ainda como imaginaríamos ser
possível manter-se em constante transformação ou em eterna cristalização inabalável, no
campo das chamadas contradições dialéticas compreendemos todo um campo de pulsações
que ainda não passaram pela mediação ideológica e imaginária, e que podem escapar a elas,
funcionando como linhas de transformação dinâmica do campo institucional com seus
diversos componentes. Uma análise complexa deve então articular esses dois planos das
relações entre instituído e instituinte (BAREMBLITT, 1994). Para analisar dialeticamente o
conceito de instituição é necessário decompô-lo em três momentos: universalidade,
particularidade e singularidade. O momento da universalidade é o da unidade positiva do
179
conceito, aqui ele é plenamente verdadeiro se entendermos esse verdadeiro geralmente como
algo abstrato. O salário e a família são normas universais da sociedade e o momento da
particularidade exprime a negação deste momento precedente. Assim é que, em nossas
sociedades regidas pelo trabalho assalariado e pelo casamento, um indivíduo pode ser nãoassalariado e solteiro, sem incorrer em sanções oficiais. Toda verdade deixa de ser tal
plenamente desde que se encarna, se aplica em condições particulares, circunstanciais,
determinadas, isto é, no grupo heterogêneo e variável dos indivíduos diferentes pela origem
social, idade, sexo e posição. E a sociedade funciona ao seu modo porque as normas
universais, ou admitidas como tais, não se encarnam diretamente nos indivíduos, mas passam
pela mediação de formas sociais singulares, de modos de organizações mais ou menos
adaptados a uma delas ou a algumas de suas funções. O momento da singularidade é
resultante da ação do universal com o particular. Fundamentos da instituição estatal, a
propriedade privada e o casamento (significando uma restrição da vida sexual e uma restrição
do uso do solo) representam a essência da instituição: a segurança, a consolidação, a duração
da satisfação das necessidades, todos estes caracteres pelos quais primordialmente se
recomendam estas instituições nada mais são do que formas e encarnações do universal, onde
a finalidade última da racionalidade se afirma nesses objetos. A família e a sociedade civil
(que tira sua substância da instituição familiar) são duas esferas que tendem a sair de sua
idealidade para si e a se tornarem espírito real infinito. O espírito ou ideia real em ato,
enquanto infinito, é o que distribui nessas esferas o material dessa realidade finita, isto é,
distribui os indivíduos, assim como as massas, de tal modo que esta atribuição parece
produzida para cada particular pelas circunstâncias, o livre arbítrio e a escolha pessoal do
destino. Tudo se passa como se uma dupla articulação, ainda aqui, presidisse à instituição das
relações sociais, esta operação é o que transforma o material finito em matéria significante, e
que, no caso da sociedade, dá ao indivíduo a ilusão de poder reinventar a qualquer momento a
linguagem, de encontrar livremente sua linguagem própria, para pensar o que lhe acontece, a
palavra é assim a primeira instituição social. (LOURAU, 1975)
Outro ponto importante que devemos tomar o devido cuidado ao longo de uma
pesquisa é assimilar as formas sociais singulares às normas universais, ou reduzi-las à
mentalidade dos indivíduos. No primeiro caso, trata-se de uma concepção tradicionalista,
positivista e autoritária, que vê a ordem estabelecida como o caminho da verdade absoluta. No
segundo caso, encontramos o psicologismo, que pretende que todos os fenômenos sociais são
imaginários, e que vale mais “modificar o homem” antes de pensar em mudar a ordem social.
180
Os conceitos que também não podem deixar de serem citados, pois fazem parte do
embasamento teórico da AI, são o campo de análise, que nos permitirá delimitar um objeto ou
um campo e aplicar-lhe o aparelho conceitual da análise institucional para entendê-lo, para
saber como funciona, como estão colocadas e articuladas suas determinações, causas e como
geram seus efeitos. E o analisador institucional que será outra ferramenta importante, esse
não precisa ser constituído de material verbal, pode ser um monumento, uma planta
arquitetônica, um arquivo, uma distribuição do tempo ou espaço na organização, sua
materialidade expressiva é totalmente heterogênea, é analítico em si mesmo, contendo
elementos para se auto-entender, para começar o processo de seu próprio esclarecimento. É
um produto que pode analisar-se. Os analisadores podem ser históricos, quando são
produzidos na história e no próprio contexto da instituição analisada, mas também podem ser
construídos, inventados com o objetivo de explicitar os conflitos e resolvê-los. Neste
momento para uma compreensão do campo que denominamos como a Saúde Coletiva, temos
para compreendê-lo o analisador Hospital Psiquiátrico, questionando que significado para este
coletivo faz existir em seu meio um estabelecimento tal como esse, que importância, quais
necessidades, quais os efeitos de sua existência, que por mais negado que seja, ao menos de
modo latente algo do seu funcionamento sempre vai significar uma marca no imaginário
coletivo da rede de saúde que o possuí. Em diferentes momentos da constituição de um
campo de análise é possível a realização desse e de vários outros tipos de diagnósticos,
sempre provisórios, da estrutura, da dinâmica, dos processos, das contradições principais e
secundárias, meramente opositivas em suas diferenças e antagônicas (contraditórias no
sentido dialético), dos conflitos, das defesas, das magnitudes de produção, reprodução e
antiprodução, dos analisadores, dos territórios e das linhas de fuga da organização estudada.
Em uma pesquisa tal como a que Goffman (1987) realizou no hospital psiquiátrico e a
que Benelli realizou em um seminário católico é possível pensar que as instituições
constituem-se num bloco de condições materiais objetivas, de relações de comunicação, de
saber e de poder, e estes elementos formam o plano instituído, que pode ser mapeado através
de observação participante e de entrevistas (BENELLI, 2003) com os diversos atores
institucionais. Existe um elemento fundamental no plano instituinte que provavelmente não
teria uma relação com um objetivo que estaria relacionado à concepção tradicionalista,
autoritária que vê a ordem como algo positivo e uma verdade intocável. Podemos fazer
inúmeras comparações, tais como: um seminário católico e um hospital psiquiátrico ou, por
exemplo, uma fábrica e uma prisão, uma prisão e uma escola ou uma fábrica e uma escola,
que tal como outras formas sociais, mas sob o signo do princípio do rendimento, único
181
principio de realidade da sociedade industrial, ela é atravessada pelo fator educativo e pelo
carcerário, que até certo ponto também fazem parte dos três primeiros exemplos. A fábrica é
uma escola, uma dura escola para os indivíduos que a sociedade priva de escola desde o fim
da infância. A fábrica é uma prisão, uma prisão onde ninguém é retido, mas onde certos
indivíduos são forçados a entrar pela “lógica” da origem social, da herança cultural e da
seleção escolar, o hospital psiquiátrico é uma prisão médica, bem como um seminário uma
rígida e autoritária escola.
As finalidades e o funcionamento de uma prisão não são idênticas às finalidades e ao
funcionamento de uma fábrica, um hospital psiquiátrico, um seminário católico ou de uma
escola, mas verificamos diversas similaridades. Suas funções ortopédicas, de cuidados
maternais, de sistema de vigilância, de repressão, etc., são de tal modo evidentes que chegam
– pelo menos aos olhos dos usuários – a ter precedência sobre a função oficial de cada
estabelecimento. Enquanto lugar onde se trabalha, a escola não é mais fabrica do que um
seminário católico. Mas a organização das tarefas, o controle delas, a sanção dos resultados, a
ideologia do esforço, a interiorização das normas fixadas, tudo isto cria ao menos homologias
entre o universo do trabalho explorado e o universo da aprendizagem escolar (LOURAU,
1975). Existem ainda mais exemplos para expandirmos nossa perspectiva da sociedade, a
bolsa de valores pode não ser algo vivido pelos proletariados, mas nem por isso deixam de ser
os fundamentos institucionais de sua situação de proletários. Assim como a internação
psiquiátrica também não é experiênciada por grande parte da população e tão pouco deixa de
estar ligada aos que não estão internados, pois só podem estar porque há quem esteja
internado. E toda essa dialética, por fim, nos serve para entender que de fato um verdadeiro
Estado e um verdadeiro governo só se produzem quando há diferenças antagônicas.
As instituições, organizações, estabelecimentos, agentes e práticas desempenham uma
função. Toda instituição, toda organização, todo estabelecimento apresenta esta função a
serviço dos exploradores, dos dominadores, dos mistificadores. Só que esta função raramente
se apresenta como ela é, justamente por causa da questão da mistificação. A função apresentase deformada, disfarçada, mostra-se como um objetivo natural, desejado e lógico das
instituições e das organizações. Isto é, não se manifesta claramente ao nível do instituído e do
organizado. E as exprimem de tal maneira que as fazem parecer "naturais", desejáveis e
eternas, ao passo que o instituinte e o organizante são sempre inspirados pela utopia, estão
sempre a serviço dos objetivos que, provisoriamente, chamamos de Justiça, de Igualdade e
Fraternidade. Essas forças, esses processos, recebem o nome de funcionamento. Então, o
funcionamento é sempre instituinte, é sempre transformador, é justiceiro e tende à utopia: a
182
função, ela é predominantemente reacionária, conservadora, a serviço da exploração, da
dominação e da mistificação, e se apresenta aos olhos não atentos como eterna, natural,
desejável e invariável (BAREMBLITT, 1994).
Agora, pode-se definir outros termos que temos aqui presentes. O instituído, o
organizado, enquanto produtivo, enquanto expressão apropriada, enquanto recurso operante é
claro que é necessário. Acontece que, rapidamente, tendem a cair fora do seu sentido de
funcionamento para adotar a característica da função, coisa que se compreenderá melhor
quando se entender que a característica essencial do instituinte, do organizante e dos seus
produtos operantes é serem propícios à produção, produção que é a geração do novo, daquilo
que almeja a utopia; funcionamento e produção são a mesma coisa. Função é sinônimo de
reprodução: é a tentativa de reiterar o mesmo, de perpetuar o que já existe, aquilo que não é
operativo para propiciar as transformações sociais. Então: instituinte e instituído, organizante
e organizado, produção contra reprodução, funcionamento contra função. Essa é uma tentativa
de enunciar o entrelaçamento, a interpenetração que existe entre todos os instituintes e
instituídos, entre todos os organizantes e organizados. Essa interpenetração acontece ao nível
da função e ao nível do funcionamento; ao nível da produção e ao nível da reprodução; ao
nível daquilo que funcionará a favor da utopia e ao nível daquilo que está contra.
Quanto às práticas, agora diretamente referindo as práticas de saúde, trata-se de
analisar como vem ocorrendo, atualmente, a convivência de atividades de caráter individual
ou coletivo com as atividades mais tradicionais da saúde. Trata-se também de perceber o
usuário como uma pessoa portadora de vontades e de desejos, capaz de agir e reagir diante do
que está sendo oferecido a ela como resposta às suas queixas e aos seus incômodos. Para tanto
se torna necessário aproximar a saúde coletiva de campos disciplinares como a filosofia e a
psicanálise, tendo em vista a complexidade que as questões da saúde assumem na atualidade.
Trata-se, enfim, de perceber com um outro olhar as relações entre o coletivo e o individual.
De perceber que, na verdade, elas se constituem em configurações extremamente dinâmicas e
mutáveis, são micro processos num fluxo molecular permanente e contínuo, que atravessam o
conjunto das atividades humanas, e dentre elas as relacionadas à saúde. Enfim, podemos
inferir que as relações entre o coletivo e o individual constituem-se em analisadores históricos
da maior importância para toda a constituição da saúde coletiva e a compreensão do seu
campo de saberes e práticas. Este termo analisadores é porque provoca, faz a instituição saúde
coletiva falar, mostrar suas contradições, seus limites e possibilidades.
183
A trajetória construída e em construção articulando Análise Institucional e
Saúde Coletiva, a meu ver, apresenta-se como promissora, e em franco
desenvolvimento. Daí a necessidade de divulgá-la para que outros estudiosos
possam dela se aproximar. O importante é que, dentro de uma postura crítica
e ao mesmo tempo construtiva, haja abertura para outras possibilidades,
outros arranjos. Aqui me permito criar um outro efeito Lourau: o de não se
conformar com o que já está formatado, ou seja, instituído; mas, ao
contrário, desconfiar sempre do trabalho que apenas repete o que já foi
realizado. Não ter medo de inovar e de aceitar os desafios que a Saúde
Coletiva está, a todo momento, nos propondo. (L’ABBATE, 2012, p. 214).
De forma geral apontamos como conclusão que sem transformar as práticas cotidianas
dos profissionais dos serviços de saúde, não haverá mudança na forma desses serviços
funcionarem, no sentido de garantir o acesso, a qualidade e a resolutividade no atendimento
de saúde à população. Isso significa levar em conta alguns dos princípios fundamentais da
proposta desafiadora da AI, ainda que um sistema esteja já oficialmente instituído
praticamente em toda rede de Saúde Mental que possuí um Hospital Psiquiátrico. E mais: sem
levar em consideração todas essas dimensões, não será possível construir uma nova
intersubjetividade entre os sujeitos envolvidos na produção da saúde. Apesar das diferenças
de aportes teóricos nos quais fundamentaram este trabalho, podemos abrir muitas
possibilidades para processos de intervenção, na perspectiva da AI. Trata-se de intervenções
no interior das organizações de saúde que objetivam transformá-las em espaços menos
burocratizados, não produtores/reprodutores de indivíduos passivos e submissos. Ou seja,
intervenções nas quais as perspectivas do sujeito, da subjetividade e da autonomia sejam
respeitados e até promovidos, desde que tais processos estejam, eles mesmos, postos “em
análise” (L’ABATTE, 2012).
Ao longo deste estudo procuramos revelar a importância das ferramentas teóricas da
AI para que pudéssemos refletir sobre o nosso papel profissional no interior de uma Saúde
Coletiva que em pleno século XXI ainda possui estabelecimentos tão rudimentares como os
hospitais psiquiátricos. Perceber e atuar sobre um coletivo, no sentido de torná-lo mais
autônomo e com processos de trabalho mais adequados, inovadores e produtivos não é tarefa
fácil para o profissional que enfrenta o cotidiano destes trabalhos. E mesmo assim, ainda
podemos contribuir para aumentar nossa capacidade de análise e de intervenção, fortalecendo
o grau de autonomia das equipes, e com isso, melhorando o padrão de oferta de serviços e os
resultados em termos de produção de saúde. Destacando na realização desse trabalho, a
relevância da utilização, em seus três momentos, dos conceitos de instituição, organização e
estabelecimento, bem como a percepção da transversalidade, a elucidação de um analisador,
e, sobretudo para nós que optamos por analisar situações relacionadas diretamente a sua
184
situação de internação psiquiátrica, o contato com as nossa próprias implicações, o que nos
permite uma maior clareza de possibilidades e/ou impossibilidades de atuar e intervir neste
campo.
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186
CARTOGRAFIAS DOS SENTIDOS HISTÓRICOS DA ASSISTÊNCIA E DO
CUIDADO EM SAÚDE MENTAL NA LEGISLAÇÃO BRASILEIRA: DA PRIMERIA
REPÚBLICA AOS DIAS ATUAIS
Eneida Santiago - [email protected] - Universidade Estadual de Londrina - UEL
Silvio Yasui – Unesp/Assis
Como “campo de conhecimento e de atuação técnica no âmbito das políticas públicas
de saúde” (AMARANTE, 2007, p. 15), o território da saúde mental foi, e ainda é,
dinamicamente composto por forças de diferentes origens, diversos atores e variadas
instituições e dispositivos que impactam mudanças nas legislações, políticas, ideários e
práticas de assistência, atenção e cuidado relativos ao sofrimento psíquico, ao mesmo tempo
em que são impactados por eles.
Certos desse processo, mas claros da necessidade de problematizarmos sua trajetória
histórica, neste artigo cartografamos, a partir da Primeira República até a atualidade, as
legislações de assistência psiquiátrica brasileira e as políticas públicas de saúde mental. Tais
materiais são analisados enquanto discursos norteadores oficiais e oficiosos sobre a loucura.
Discutimos o projeto legal, social e subjetivo que enquadra o doente mental como suposto
detentor da loucura. Refletimos ainda sobre como esses escritos de legislações e políticas
propõem se colocarem como continência para a amplitude da vida, bem como sobre de que
maneira, a partir de que discursos e de que compreensões. Nossa trajetória ao estabelecermos,
desconstruirmos e problematizarmos alguns marcos históricos na composição da legislação
brasileira em saúde mental, objetiva delinear a forma como a perspectiva integral da vida
emergem como efeito discursivo político e social, mas também subjetivo.
Quem sabe sobre a doença mental?
A apreciação do projeto legislativo brasileiro em suas leis específicas sobre a doença e
a saúde mental permite o delineamento de alguns questionamentos que poderiam suscitar
diferentes respostas, a partir dos contextos históricos, sociais e políticos que se privilegiassem.
Esses questionamentos norteiam o objeto “doença” e o sujeito “doente”, a partir de seus
retratos na legislação e nas políticas públicas de saúde mental brasileira: quem detém o saber
sobre a loucura? A quem, ou a quais grupos, fica a vestimenta de detenção factual sobre o
discurso científico de toda verdade sobre o padecimento e os padecidos mentalmente? De que
elementos esses discursos são compostos? Quais objetivos esses discursos se propõe a
alcançar?
187
A posse dos ditames sobre a doença mental autoriza a seu detentor uma privilegiada
posição de perito do poder normalizador ao definir e guiar o lugar, os limites, as
potencialidades e as intervenções cabíveis e possíveis aos desafortunados. A análise da
primeira lei brasileira de assistência aos alienados é um significativo reflexo disso. Aprovado
em 22 de dezembro de 1903, o Decreto 1.132 (BRASIL, 1903) é a iniciativa de uma
legislação mais abrangente sobre os doentes mentais, tendo por proposição “Reorganizar a
assistência aos alienados”. Tal decreto foi redigido por João Carlos Teixeira Brandão, que
empenhou seus esforços como psiquiatra e como deputado federal para elaborar e promulgar
essa lei, que entrou para a história com seu nome. A história de Teixeira Brandão exemplifica
o processo de constituição e fortalecimento da hegemonia psiquiátrica no Brasil, tanto no
campo técnico da saúde mental quanto político. Teixeira Brandão se tornou médico no Rio de
Janeiro em 1877, tendo permanecido por um período estudando psiquiatria na França,
Alemanha e Itália. Nos anos seguintes ao seu retorno, foi o primeiro diretor geral brasileiro de
Assistência Médico-Legal de Alienados com formação específica em psiquiatria (TEIXEIRA,
2008).
Foi muito particular o contexto em que Teixeira Brandão se tornou e se aprimorou
como médico alienista. Foram momentos em que, no Brasil, os espaços destinados aos
desvalidos se caracterizavam pelo conflito entre autoridades quanto à responsabilização pela
definição/avaliação da carência de cuidado e abrigo aos loucos de todo gênero. Muitos eram
aqueles auto autorizados a falarem sobre a loucura, tais como figuras proeminentes da
administração pública brasileira (como ministros e legisladores da administração), e mesmo
autoridades consideradas distintas (e não necessariamente médicas) das organizações de
saúde (TEIXEIRA, 2008).
Diante da questão “quem sabe sobre a loucura?”, identificamos como resposta, neste
momento histórico, a pulverização dos saberes pautada pela relação de poder institucional e
social estabelecido, ou potencializado, pelo seu detentor (clínicos, provedores institucionais,
legisladores, entre outros). O fato de muitos falarem sobre a loucura evidencia (e reforça) a
percepção social de que o Hospício (e anteriormente as enfermarias das Santas Casas de
Misericórdia) eram espaços de depósitos e caridagens de todo tipo de desafortunados, em um
importante (e historicamente recente) papel no sistema de normalização social, como
discutido por Foucault (2010b).
Três pontos são marcantes na ascensão do nascente campo da medicina mental, que o
jovem alienista Teixeira Brandão ajudava a delinear: a reformulação da gestão institucional e
188
das sistemáticas de assistência, a adesão a ditames considerados mais científicos na época e os
esforços por um delineamento de um arcabouço legal sobre o louco e a loucura.
Até 1920, Teixeira Brandão exerceu dois mandatos como deputado federal, assumindo
a posição de relator da Comissão de Saúde do Congresso. Elaborou o Projeto de Lei (PL)
1.132, aprovado em dezembro de 1903. Apesar do importante papel na história da
psiquiatrização dos alienados no Brasil, naquele momento, o principal representante do
movimento alienista brasileiro era Juliano Moreira e não, Teixeira Brandão. Como primeira
lei geral brasileira de jurisprudência específica sobre a alienação e os alienados, conforme
nossas análises, ela inaugura um novo olhar sobre a loucura e os dispositivos que gravitam
sobre ela, chamando o Estado a um lugar intervencionista diante da questão da doença e do
doente mental, como identificamos no artigo 1º. desta lei que situa o operador de uma
reorganização da instituição asilar para atender aos norteadores científicos da época, que são
conclamados pela citada legislação. A dessimetria entre as variadas figuras médicas,
administrativas e de autoridade pública é revogada. Os arbítrios policialescos, religiosos e
sociais direcionados aos insanos são enquadrados e submetidos ao novo senhor do castelo: o
alienista.
A partir do Decreto de 1903, a Psiquiatria se torna a única legitimada para produzir os
seus sequestros ao tornar o arbítrio dos enclausuramentos não arbítrio (PORTOCARRERO,
2002). Ao mesmo tempo, essa Psiquiatria também assume uma função de intervencionista e
saneadora social: responsabilizando-se pelos loucos, ela realiza uma defesa da coletividade,
contribuindo com a higienização das cidades e das famílias, ao mesmo tempo em que reforça
o princípio de liberdade individual que o Ideário Republicano conclamava naquele momento.
Os primeiros anos do século passado, no Brasil, foram marcados por mudanças e
redefinições várias na sociedade e nos grupos sociais. O Estado, chamado a intervir e
transformar esses meios, reconhece necessidades de regulamentações, como a questão da
doença mental, sendo que a partir de 1903 este Estado trará oficialmente a alienação mental
para o âmbito de sua competência, como colocado no artigo 12º. (BRASIL, 1903). O decreto
em questão é também revelador da instauração de uma cidadania dos internos que se torna
tutelada pelos alienistas, sendo estes positivados como elos que ligam os pacientes à
sociedade. A psiquiatrização e a tutela do louco responde ao chamado de um processo de
normalização dos doentes mentais, que se fortalecerá por meio desta primeira representante de
uma legislação psiquiátrica.
Os processos de normalização são regimes de poder que se constituem pela elaboração
de sistemas de distribuição e correção de indivíduos, objetivando homogeneizá-los a partir de
189
um modelo de referência (uma norma). Esses processos são substancializados em técnicas e
estratégias de estabelecimento de limites e enquadramentos, por isso então serem
denominados de normalização. Compostos de significativa amplitude, os dispositivos de
normalização são instâncias produtoras do deve ser de indivíduos e grupos, que são
essencializados, substancializados e naturalizados, pleitos dos quais fazem parte instituições
(que se tornam aparelhos de governo) como escolas, prisões, fábricas e hospitais, como os
psiquiátricos, assim como nascentes disciplinas (que são conjuntos de saberes), como a
demografia, a estatística, a economia política e a medicina social (FOUCAULT, 2010b).
Com a emergência dos Estados modernos e do capitalismo, a gestão da vida e das
populações (e não da morte, como nas sociedades de soberania) demanda esforços. Táticas
são criadas e articuladas para colocar limites em uma sociedade em que os corpos ganham
valor e visibilidade, sendo necessário garanti-los, controlá-los e administrá-los, para que a
própria sociedade moderna tenha sua existência assegurada. A essa tecnologia de poder,
Foucault (2010a) denominou biopolítica.
Tendo o corpo como objeto e a normalização como objetivo, os dispositivos
biopolíticos de governo da vida não acontecem fora do campo político, pelo contrário. Um
novo regime de forças de relações entre Estado e indivíduos é destacado por Foucault (2010a)
como sendo extremamente presente, ainda mais quando em momentos em que a interferência
político estatal no social é mais do que necessária; é uma das táticas criadas:
[A] teoria do governo não se trata de impor uma lei aos homens, mas de dispor as
coisas, isto é, utilizar mais táticas do que leis, ou utilizar ao máximo as leis como
táticas. Fazer, por vários meios, com que determinados fins possam ser atingidos.
Isto assinala uma ruptura importante: enquanto a finalidade da soberania é ela
mesma, e seus instrumentos têm a forma de lei, a finalidade do governo está nas
coisas que ele dirige, deve ser procurada na perfeição, na intensificação dos
processos que ele dirige e os instrumentos do governo, em vez de serem constituídos
por leis, são táticas diversas (FOUCAULT, 1986, p.284).
A ação estatal tomada por uma racionalidade foca o bem-estar da sociedade, ao
mesmo tempo em que se propõe a promover a felicidade das pessoas. Nesse contexto,
podemos afirmar que a prática do governo, por meio de intervenções, fomentará o surgimento
de legislações e políticas públicas no ocidente a partir do século XIX.
Como potencializador da vida e do viver, a saúde (e em seu universo, a saúde mental)
ganha destaque e o arcabouço jurídico e legal alimentará essa posição, além de se constituir
igualmente como respostas às demandas sociais, regulamentando os corpos e os fenômenos
coletivos. A partir disto, a discussão que aqui promovemos assume o sentido crítico de que a
ação estatal no social, por meio das legislações e políticas, cumpre um papel de patologizar e
medicar esse social. A função de medicalização social da primeira legislação geral brasileira
190
de jurisprudência específica sobre a assistência psiquiátrica pode ser identificada a partir de
alguns elementos presentes e ausentes em suas resoluções. A direta preocupação com a
manutenção do social e das populações é localizada logo no 1º. artigo do decreto de 1903 5,
quando este sanciona que “O individuo que, por molestia mental, congenita ou adquirida,
comprometter a ordem publica ou a segurança das pessoas, será recolhido a um
estabelecimento de alienados” (BRASIL, 1903, p. 01). Nota-se que o arranjo social é
prioridade, justificando o inedismo da deliberação do decreto, que é reorganizar a assistência
a alienados, e exigindo também o esforço em metrificar a questão, que se localiza nas
repetitivas solicitações de quantificações sobre os enfermos e no detalhamento utilitário
organizativo das instituições psiquiátricas, como nos mostra o artigo 2º. e o artigo 14º. do
mesmo decreto (BRASIL, 1903).
A exigência do levantamento de informações sobre o interno, sua vida e sua doença
alimentam o campo de visibilidade que o doente mental adentra legalmente. Sua vida, mas
não sua existência, visto que, apesar de solicitar dados que poderiam denotar um interesse por
sua particularidade, o mesmo decreto em nenhum momento lança qualquer iniciativa de dar
voz ao alienado: o administrador do asilo assume funções, o juiz de direito, os peritos de
polícia e o Ministro de Justiça são citados e, claro, o alienista fica na função de diretor do
Hospício, não havendo discurso possível ou autorizado ao sujeito adoecido, que tem sua fala e
sua imagem individualizadas para fins de sequestro (já que sua fotografia podia ser tirada
quando no momento de internação). Sua única colocação verbal possível é a de “reclamar, por
si ou por pessoa interessada, novo exame de sanidade, ou denunciar a falta dessa
formalidade.” (BRASIL, 1903, p. 02), ou seja, de dar manutenção a sua posição.
Para nossas discussões, a principal consideração a ser feita desta lei é uma lacuna. Ao
longo de todo o Decreto 1.132/1903 fala-se em alienação, em moléstia mental, considerada
como podendo ser de origem congênita ou adquirida; o indivíduo considerado adoecido é
nomeado como enfermo mental, alienado. Porém, em nenhuma resolução há qualquer
esclarecimento ou definição rígida do que seria a alienação ou uma proposta de semiologia
dos alienados mentais. Mesmo tratando-se de um documento jurídico, reforçamos o fato de
um médico psiquiatra ter participado da redação e aprovação do decreto; logo, o impedimento
legal em debruçar-se mais atentamente sobre a questão mental, sua caracterização e
delineamento, não se justifica. Inclusive, a partir de nosso ponto de vista, essa dificuldade se
5
Nos trechos citados das legislações de época, optamos por manter a grafia original.
191
acentua conforme a complexidade da loucura passa a alimentar de forma mais intensa o
direito brasileiro.
As condições assistenciais e jurídicas de proteção integral aos alienados mentais
proclamados pelo Decreto 1.132/1903 são progressistas para a época e, em certa medida,
também para os dias de hoje. Questões com discussões controversas nos últimos anos sobre as
ações de cuidado e atenção em saúde mental em consonância com a liberdade individual dos
indivíduos mentalmente adoecidos estão presentes na legislação: a regulamentação da
internação psiquiátrica e o estabelecimento de critérios para impedir internações ilegítimas, a
necessidade da atenção integral ao doente mental (mesmo com um integral bem limitado), o
estabelecimento de ordenamento e garantias dos bens dos doentes e de sua capacidade civil, a
presença estatal no cuidado em saúde mental (fiscalizando e intervindo nas situações e
instituições específicas). Liberdade individual, garantias legais dos enfermos, proteção social,
bem-estar e qualidade de vida em situação de adoecimento são princípios sustentados ou
esboçados no documento de 1903 que muito se aproximam das contemporâneas assimilações
dos direitos humanos.
Nas décadas seguintes, poucas alterações ocorreram na legislação direcionada à
questão mental. Em julho de 1934, o Decreto de 1903 é revogado pelo Decreto 24.559, que
“Dispõe sôbre a profilaxia mental, a assistência e proteção á pessôa e aos bens dos psicopatas,
a fiscalização dos serviços psiquiátricos (além de) outras providências” (BRASIL, 1934,
p.01). Ao dispor sobre a assistência psiquiátrica, o Decreto 24.559/1934 estabelece que esta
assistência objetiva (Art. 1º) “proporcionar aos psicopatas tratamento e proteção legal; dár
amparo médico e social, não só aos predispostos a doenças mentais como também aos
egressos dos estabecimentos psiquiátricos; concorrer para a realização da higiêne psiquica em
geral e da profilaxia das psicopatias em especial.” (BRASIL, 1934, p. 01).
Se a internação era obrigatória aos alienados, aos demais doentes mentais, como “os
toxicómanos e intoxicados habituais e os psicopatas ou indivíduos suspeitos" (BRASIL, 1934,
p. 03), medidas de profilaxia mental e higiene social ampliavam tão intensamente o escopo de
aspectos relevantes e indicativos de necessidade de assistência psiquiátrica, que eram poucos
aqueles categorizados como enfermos mentais (ou indivíduos suspeitos) que não
experimentavam a clausura institucional ao longo de sua vida, ação que foi juridicamente
facilitada. Dessa forma, a legislação de 1934 decreta o modelo assistencial psiquiátrico
brasileiro como sendo centralizado e hospitalocêntrico, ao mesmo tempo em que reafirma a
incapacidade do doente mental e consolida o psiquiatra como perito da loucura, ambos os
aspectos já trazidos pelo documento de 1903.
192
A produção de tecnologias para que o Estado operasse seu projeto de promoção do
bem-estar social necessitava da identificação de parcelas vulneráveis da população. Eram
segmentos a serem trabalhados, guiados, estimulados e orientados a seguirem caminhos
considerados saudáveis e moralmente desejáveis. Moral do dever, do “deve ser” normalizado
que se sofistica em uma cada vez mais eficiente regulação utilitária da vida: se a base da
biopolítica está nas normas, são as anormalidades que devem ser gerenciadas em processos de
recuperação, reabilitação e ressocialização (FOUCAULT, 2008a; 2010a).
A racionalidade política do Estado se faz presente no Decreto 24.559/1934, que,
conforme nossas reflexões, é influenciada por três importantes aspectos que se casam nesse
documento. O primeiro é o contexto social, quando, a partir da Revolução de 1930 e do início
da Era Vargas, o país inicia um período histórico marcado pelo nacionalismo e ações de
nacionalização dos indivíduos, bem como de restrição às liberdades individuais, autoritarismo
e centralidade do poder nas relações políticas em um Estado totalitário e corporativo. A
chegada ao Brasil da ideologia nazifacista incrementa ainda mais esses aspectos (FAUSTO,
2012).
Como segundo contribuinte, observamos como, a partir da década de 1930, a
Psiquiatria Brasileira lentamente se afasta do modelo do alienismo francês, aproximando-se
do pensamento alemão fundamentado no ideário eugenista que compunha um modelo de
higiene mental de valorização do organicismo e com argumentações pautadas em
características étnicas, sociais e políticas marcadas pelo racismo e xenofobismo. As novas
linhas de força produziram no país uma releitura do fenômeno da loucura por parte dos
psiquiatras (BIRMAN, 2010; COSTA, 2007).
Como terceiro componente, temos a Liga Brasileira de Higiene Mental (LBHM), que
nas décadas de 1920 e 1930 sustentou o ideário psiquiátrico preventivista no Brasil. Fundada
em 1923, a LBHM teve como objetivo inicial “melhorar a assistência aos doentes mentais
através da renovação dos quadros profissionais e dos estabelecimentos psiquiátricos”
(COSTA, 2007, p. 45). Para isso visavam à prevenção, à eugenia, e à educação moral e
mental.
Em um contexto marcado pelo extremo acompanhamento e julgamento das questões
individuais e grupais, e na forma como estas poderiam interferir em um coletivo maior (o
terreno social), a composição do Decreto 24.559/1934 reflete a prevenção assumindo a
posição de tecnologia principal em uma sociedade policialesca, em que a potencialidade do
risco passa a ser uma preocupação eugenista. Risco que se traduzia em periculosidade social
identificada em considerações de raças inferiores, indivíduos incapazes e comportamentos
193
condenáveis que poderiam ameaçar ao rebaixamento físico e mental gerações futuras. Os
psiquiatras, através da voz da Liga Brasileira de Higiene Mental e municiados pelo momento
histórico, faziam apelos e pressões para ações e intervenções políticas estatais que pudessem
solucionar essas questões identificadas, a partir de então, como psiquiátricas. “A medicina
mental ratificou em sua definição de doença mental a equação doente mental-perigo social.
Sendo assim, a definição jurídica não poderia deixar de reafirmar a sua presença."
(AMARANTE et al., 2000, p. 189). Se loucura e periculosidade se tornam diretamente
relacionadas, o tratamento psiquiátrico assume posição de punição.
Nominações como “psicopatas”, “toxicômanos”, “intoxicados habituais”, “menores
anormais” e “indivíduos suspeitos” são utilizadas como denominações aos doentes, enquanto
terminologias como “contágio mental” e “suspeitas de afecção mental” fundamentam
argumentações de reclusão ou de manutenção dela (BRASIL, 1934). Incapacitados diante dos
atos e da vida civil, aos adoecidos mentalmente restava o saber instituído pela psiquiatria e o
poder exercido pela instituição psiquiátrica, posições sacramentadas pela letra jurídica, que os
colocavam como despossuídos de razão e de cidadania, já que essa última em especial seria
privilégio dos normais (CANABRAVA et al., 2010). Aos loucos era destinado a reclusão do
corpo físico e jurídico. Comparativamente ao Decreto de 1903, este de 1934 apresentava
novas menções e nominalidades do doente mental. Muitas eram as possibilidades para
denominações aos loucos, muitas eram também as características dos comportamentos
desviantes. Em nossa compreensão, começa um ensaio de ampliar o olhar sobre a doença
mental, e por isso a construção de listagens de aspectos a serem avaliados, anotados e
atentados era necessária. Desta forma, presenciamos, no decreto de 1934, o reabastecimento
do discurso jurídico a partir da sofisticação dos critérios e condições da doença mental, que
levaram ao refinamento do tratar e do curar. Era o efeito conjugado de forças sociais, políticas
e médicas, em um movimento de adequação da tecnologia de poder, como Foucault (2004)
sinaliza como possível.
Quanto ao modelo assistencial disposto, o decreto o centraliza na instituição
hospitalar, mas estabelece três regimes de internação, que são, a nosso ver, assistenciais e
terapêuticos: o que denomina de estabelecimento psiquiátrico de regime aberto, fechado ou
misto. Uma análise dos critérios de encaminhamento dos pacientes para cada modalidade de
acolhimento institucional demonstra diferentes perspectivas de um mesmo foco e
preocupação: a periculosidade. Aos doentes que não recusem a internação, o destino era o
regime aberto. Aos que se mostrassem perigosos, com risco de fuga ou fossem encaminhados
por ordem judicial, o lugar definido seria o do regime fechado. Aos que apresentassem
194
suspeitas de doença mental, o regime aberto o receberia até a internação definitiva após
comprovação da condição. Observa-se que, como já discutimos, a noção de periculosidade se
alarga. A avaliação de sua factualidade ou de sua potencialidade permite que uma variedade
de comportamentos fossem rotulados como alvos a serem contidos. A própria legislação trazia
palavras dúbias e pouco esclarecedoras sobre esses indicativos definidores dos regimes a
serem encaminhados. São expressões citadas e não definidas, como “ofender a moral”,
“medidas para benefícios dos psicopatas”, “pessoa idônea moral e profissionalmente”,
“psicopata crônico, tranquilo”, entre outros.
Para Foucault (1996), a noção de periculosidade é evidência analisadora da
emergência da norma, em que, mais do que o fato ou o ato, interessa o possível. Identificar a
potência do perigo “significa que o indivíduo deve ser considerado pela sociedade ao nível de
suas virtualidades e não ao nível de seus atos; não ao nível das infrações efetivas a uma lei
efetiva, mas das virtualidades de comportamento que elas representam” (FOUCAULT, 1996,
p. 85).
Ainda de acordo com Foucault (2004), as relações de poder podem ser olhadas a partir
de um prisma flutuante. Não haveria uma gênese do poder a ser localizada, ou um grupo
possuidor e outro destituído do poder. Em uma correlação de formas e conteúdos, as conexões
e configurações de poder mobilizam forças que podem reelaborar o mapa das relações. O
poder relacional, flutuante, constitui uma rede que articula dispositivos que são móveis e
plurais e se configuram em micro e macropoderes produtores de discursos, de modos de
pensar e viver, de subjetivação e de instituições. No âmbito político, estrategicamente o poder
capilarmente se dissemina pelos escritos jurídicos, legislações e documentos de políticas
públicas, onde se constituem em um operador de exercício do poder e disciplinarização da
vida e da sociedade, ao afirmarem estes como positivamente e por determinarem um lugar de
saber para a população a que fala.
As legislações psiquiátricas brasileiras de 1930 e 1934 são exemplos de exercícios de
formas oficiais de governamento de indivíduos e grupo, narrando o corpo-biológico da
loucura. Mais do que a assistência psiquiátrica, os documentos proferem o bom controle e a
modelagem da vida a um modelo histórico e cientificamente bem específico de sociedade.
Dessa forma, são monumentos de normalização de uma polícia discursiva imposta aos corpos
fugídios que, insistentes em desobedecer ao discurso-verdade traçado e proferido, são
medicalizados para retornarem para a norma, para voltarem a serem obedientes ao poder.
Novamente, com o questionamento “quem sabe sobre a loucura?”, as possibilidades de
respostas perfazem uma certeza: com a legislação de 1934, o alienista-psiquiatra ainda detém
195
muito do saber sobre, mas destacada mesmo é a identificação, não de quem sabe, mas de
quem é posicionado sobre total esvaziamento e negatividade: o doente mental, o louco. Se ao
profissional da psiquiatria todo o saber é possível, ao louco todo saber é destituído.
Entre a positividade absoluta e a negatividade instaurada, lembremos como a
resistência também é parte constitutiva de toda relação de poder, sendo ela o anúncio de
descontentamentos e o combustível para a busca por espaços de exercício de liberdade
política e existencial. No âmbito da legislação psiquiátrica e das políticas em saúde mental,
algumas décadas (desde os anos de 1930) se passaram antes que uma maior liberdade ao
louco pudesse ser juridicamente autorizada.
Quem sabe sobre a saúde mental?
Vimos como o pensamento preventivista provocou uma nova configuração na
assistência psiquiátrica brasileira que se iniciou ao longo da década de 1930, com a
demarcação de um novo espaço de atuação em substituição ao da doença mental. Esse novo
território era a saúde mental, em que, além da prevenção, a promoção em saúde se mostrou
como uma importante estratégia de intervenção nas causas e no surgimento da questão mental
(AMARANTE, 1996), porém ainda estando extremamente tomadas pelo objetivo de
normalização. A instituição psiquiátrica, junto a outros elementos, compôs uma aparelhagem
com uma função social definida, a de segregar impedindo o contato com o mundo forahospício de grupos inteiros da população, identificados como marginalizados ou, em uma
nomenclatura mais contemporânea, em vulnerabilidade.
No Brasil, assim como em outros países, as décadas posteriores aos anos de 1930
presenciaram diversas iniciativas reformadoras das práticas de assistência psiquiátrica, junto a
discursos antipsiquiátricos que apontavam o modelo asilar como violento, ineficiente e
produtor de pacientes cronificados. O contexto das instituições manicomiais por aqueles anos
era de superlotação com elevados custos, o que contribuiu para que, a partir dos anos 50, o
Governo Federal e alguns estados brasileiros (como São Paulo) adotassem políticas de
expansão da rede de assistência com a compra, com recursos públicos, de serviços
particulares, em um processo de privatização da assistência em saúde mental, mas não
somente nela.
A necessidade de ampliação da estrutura sanitária era identificada por instâncias em
saúde que tinham sua atuação constituída por uma baixa e concentrada cobertura assistencial.
Ineficácia e centralização geográfica, política e assistencial caracterizavam as políticas de
saúde no Brasil nos anos de 1950, não sendo diferente no campo da saúde mental, que pouco
se deixou influenciar pelas discussões de desinstitucionalização que ocorriam na Europa no
196
pós-guerra. Pelo contrário, o predomínio era do empreendedorismo e investimento
econômico, industrial e infraestrutural que percorria o Brasil e acompanharia os governos
democráticos e militares das décadas seguintes. No ensejo desenvolvimentista, o investimento
em saúde, e especialmente em saúde mental, era visto como secundário em uma trajetória de
fortes cores econômicas que se acreditava como suficiente para que o Brasil alcance os países
ocidentais de primeiro bloco (MESSAS, 2008).
Mesmo não tendo em momento algum destaque na agenda política estatal,
compreendemosa que a assistência em saúde mental é reconfigurada em suas possibilidades
durante esse momento de investimentos e esforços para o desenvolvimento nacional. No fluxo
desenvolvimentista, identifica-se a intensa concentração de esforços no âmbito do resgate ou
organização da capacidade laboral de internos asilados em um adestramento para o trabalho.
No avanço dos anos de 1950, iniciou-se o direcionamento de esforços políticos para
corrigir a realidade assistencial psiquiátrica brasileira. Todavia, com o início da ditadura
militar em 1964, esta conduziu uma política de saúde caracterizada pela expansão da
assistência por meio do acirramento da compra de serviços, procedimentos e leitos privados.
Durante a ditadura militar brasileira, a assistência em saúde e em saúde mental foi ampliada
em uma verdadeira organização médico-previdenciária-privatista-industrial de psiquiatria de
massa, tendo a lucratividade como principal pauta em uma prática curativa, individual e
especializada. Desta forma, durante o período militar tivemos uma política pública de saúde
discriminatória, que incluía poucos, ao mesmo tempo em que excluía muitos.
O modelo de assistência hospitalocêntrico foi fortalecido pela psiquiatria privatizada
altamente rentável de uma indústria da loucura caracterizada por internações de alta
permanência, cronificantes e com preponderância medicamentosa. Aspectos que garantiram a
retro alimentação do sistema, que somente vivenciou indicativos de crise financeira a partir
dos anos de 1970. Crise não somente de ordem financeira, também social e política que
caracterizou o período de 1960 até a década de 1980.
Em um contexto de efervescências políticas e culturais em várias partes do mundo, o
Brasil foi palco de mobilizações sociais que produziram questionamentos e proposições
coletivas para outros modos de vida, distintos do a que eram submetidos. Na saúde mental, os
próprios trabalhadores da saúde mental discutiram e propuseram formas contra-hegemônicas
de olhar e cuidar da loucura, inclusive descontruindo o Hospital como lugar primordial desse
fenômeno. Da mobilização de profissionais da loucura, foi constituído em fins da década de
1970 o Movimento dos Trabalhadores da Saúde Mental (MTSM) que ainda nesta década deu
origem ao Movimento de Luta Antimanicomial, que nasceu marcado pelo resgate da
197
cidadania e dos direitos daqueles em sofrimento. A discussão sobre a constituição dos
cuidados em saúde e em saúde mental perpassou aspectos organizativos, econômicos,
políticos e ideológicos em questionamentos legítimos sobre como constituir/expandir uma
rede de serviços de assistência em atenção em saúde mental, coordenada entre os níveis
municipal, estadual e federal, e articulada com outros órgãos e serviços que integrassem
outras ações com as de saúde, isso tudo de forma humanizada e com baixo custo.
Em abril de 2001, a Lei 10.216 foi promulgada no Brasil, dispondo sobre a proteção e
os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redirecionando o modelo
assistencial em saúde mental (BRASIL, 2001). Sua trajetória pelas instâncias do legislativo
nacional foi longa e difícil, recebendo emendas e alterações substanciais que evidenciavam as
dificuldades vivenciadas pelo movimento da Reforma Psiquiátrica, assim como pela própria
possibilidade de abertura do olhar (científico, social, jurídico e político) para a questão do
sofrimento psíquico. Tanto é assim que, nos manuscritos e artigos que a citam, é recorrente o
uso da denominação de Lei da Saúde Mental, ou Lei da Reforma Psiquiátrica, nomenclaturas
que evidenciam a compreensão da referida lei como um marco jurídico da Reforma
Psiquiátrica brasileira. Com a aprovação da Lei 10.216/2001, o Decreto de 1934 foi revogado,
constituindo finalmente um instrumento legal federal para que a assistência e o cuidado em
saúde mental pudesse ser revisto. Em sua proposição, a Lei de 2001 dispôs sobre o
redirecionamento do modelo de assistência psiquiátrico brasileiro até então existente,
incluindo princípios fundamentais de direitos humanos para as pessoas em sofrimento
psíquico:
Definitivamente, a partir de 2001, a preocupação com a vida e a subjetividade daquele
adoecido começa a ser objeto das políticas públicas, em uma tentativa de (re)constituir um
sujeito de direitos.
O sujeito em sofrimento psíquico como sujeito de direitos se torna instituído pela
política oficial de 2001 enquanto intenção. A constituição e expressão de sua existência
passaram a ser legislada em discurso que colocou o cotidiano, os laços diversos e as várias
relações sociais em um lugar de reconhecimento legal e estatal, visto que o Estado foi
diretamente responsabilizado por tornar a intenção expressa na letra jurídica, em gesto, como
aponta o artigo 3º. desta lei.
Com relação ao modelo assistencial proposto, a Lei 10.216 transformou a anterior
centralidade hospitalar em posição de coadjuvante, impondo mecanismos de controle aos
hospitais de internação. Tal estratégia se baseia na orientação para a integralidade do
tratamento, sendo que este deveria ocorrer preferencialmente em serviços e dispositivos
198
diversificados, comunitários e multidisciplinares, visando permanentemente à reinserção
social a partir de um processo de Reabilitação Psicossocial. Também dita regras e condições
quanto às internações voluntárias, involuntárias e compulsórias, que não poderiam mais
ocorrer em instituições com características asilares, proposição com objetivos de impedir uma
reprodução velada da lógica hospitalocêntrica, antes preponderante.
Analisando os princípios e diretrizes desinstituicionalizantes que a Lei 10.216/2001
coloca, destaca-se o chamamento quanto à participação da sociedade no projeto ideário
apresentado. A partir do engajamento da sociedade se espera não só a mudança de
modalidades e práticas de cuidado na saúde mental, mas a transformação da própria sociedade
quanto às formas de olhar, pensar e vivenciar o sofrimento psíquico (seja o próprio sofrimento
ou o sofrimento de outro). Mesmo enquanto processo necessário, nos indagamos quanto à
vagarosa temporalidade dessa jornada de transformação e os impactos disso sobre a
efetividade da lei, sabendo que não há modificação factual que possa ser acelerada ou forjada
senão sob duras penas.
Michel Foucault (2004), ao esquadrinhar a sociedade disciplinar, evidenciou como,
antes do poder agir e circular por meio da reabilitação, punição e modelagem dos indivíduos
às normas, se investia no cerceamento dos corpos em campos institucionais de reclusão, em
uma tecnologia política da vida obediente, que o autor nomeou de “modelo da lepra”, ou
“mecanismo de disciplina-bloqueio”. Ao se interrogar sobre as formas do poder disciplinar na
sociedade moderna, o mesmo Foucault (2005), em oposição ao modelo citado, falou de uma
transição, de um desdobramento das formas de poder até então estabelecidas que objetivariam
uma defesa social. A essa outra tecnologia ele chamou de “modelo da peste”, ou “mecanismo
de disciplina-inclusão”. Inclusão que é condição de governabilidade. Enquanto dispositivo
essencialmente estratégico, a tecnologia inclusiva é revestida de positivação do saber-poder,
ou seja, a inclusão seria a forma de conduzir, em condições de realidade, a exclusão. Assim,
na modernidade, processos de inclusão e exclusão seriam dinâmicas de um mesmo processo
de racionalização e de produção de saberes em seus efeitos sociais. No discurso foucaultiano
(2004; 2010b), os termos inclusão e exclusão são polissêmicos e não fixados, de modo que
são possibilitados e podem ser pensados, e usados, na dinâmica de práticas contextualizadas.
A legislação federal 10.216 de 2001, como operador biopolítico qualificado da
tecnologia de inclusão, produziu corpos produtivos e sadios socialmente. Ponto a ser
delineado quando ocorrer o alcance da reinserção social, citada em variados momentos da
carta legal. Tal lei se propõe a apontar caminhos e estratégias diferenciadas de atenção em
199
saúde mental, mas enquanto discurso concreto ela se limitou a criar um instrumento de
regulação da internação.
Apesar da ruptura propositiva legal promovida, são imprevisíveis as formas com que
as ações cotidianas apreendem estas falas, de forma que não há transformação social
unicamente através de um ato formal. Mesmo com a nomeação do Estado e o depósito de
expectativas na confecção de políticas específicas, estas podem não se mostrar suficientes,
como de fato muitos vezes não o são, como discutido ao longo dessas páginas. Mesmo com
questionamentos de aspectos possivelmente problemáticos, devemos acrescentar que todo
discurso da política estatal não existe por si só, de forma descontextualizada. Ele perpassa
contextos, cotidianos e existências, não definindo de forma engessada uma temática ou
negando veementemente uma nova composição. Ao enunciar proposições, a lei encontrará o
embate de forças da vida real dos serviços, das cidades, dos sujeitos.
A concretude para um outro lugar social da loucura
Em 1990, as promulgações das Leis Federais 8.080 e 8.142 estabeleceram o Sistema
Único de Saúde (SUS), tendo como princípios constitucionais básicos a universalidade de
acesso, a integralidade da assistência, a equidade do cuidado, a descentralização dos serviços
e a participação social. Com o SUS, foi constituída uma rede de ações e serviços públicos, em
novos arranjos para dar conta de uma nova concepção de saúde. No campo da saúde mental,
para implementar uma política de cuidado ao sujeito em sofrimento que fosse garantido pela
legislação federal, um arcabouço normativo dentro do SUS foi implementado. Dessa forma,
pode-se compreender que a legislação em saúde mental foi, e ainda é, produtora de uma
política pública de saúde mental ao mesmo tempo em que é produto dela.
A partir do SUS e da Lei 10.216/2001, uma Política Nacional de Saúde Mental foi
constituída, assim como preconizou uma rede de atenção ampliada de base comunitária e
territorial, que somou esforços aos movimentos desinstitucionalizantes, já presente na área.
Ambas as legislações visam fomentar e garantir o cuidado em saúde mental a partir de um
campo diversificado de serviços e ações com cunho intra e intersetorial. Nesse sentido, as
políticas públicas de saúde mental atuais são configurações que se disponibilizam para
diversas funções, tais como estabelecer parâmetros para a gestão em saúde, municiar tomadas
de decisões técnicas, viabilizar e garantir a oferta de serviços e ações, direcionar e orientar a
utilização de recursos e financiamentos, entre outras.
A política pública de saúde mental é uma diretriz que somente se materializam nos
contatos e encontros entre serviços, profissionais de saúde e população. O caráter subjetivo do
sofrimento psíquico é proferido e circundado pela política, aspecto que não pode ser ignorado.
200
Esse mesmo componente subjetivo alimenta, e é alimentado, por debates acirrados e
antagônicos sobre concepções e critérios de saúde/doença e normalidade/anormalidade, isso
quanto ao que é ofertado em termos de tratamentos e cuidados diante dos que são procurados
e disponibilizados. O que frisamos aqui é que as políticas de saúde mental, não sendo
parâmetros fixos e enjaulados, estão a todo o momento estabelecendo mandatos sociais dos
profissionais da saúde, dos usuários da rede e dos sujeitos sociais.
Em análise de suas proposições, as políticas públicas brasileiras de saúde mental
gozam do mérito de terem transformado iniciativas práticas em saúde mental e da Reforma
Psiquiátrica em política de Estado (FURTADO; CAMPOS, 2005).
Com políticas e um sistema de saúde mental desinstitucionalizado e não manicomial
inseridos no SUS, a partir de 2001 foram colocadas referências de concretude para que se
construísse um outro lugar social mais ampliado e integral para a loucura e para o sujeito em
sofrimento. Mas também, lembremos como, a partir da redemocratização pós-ditadura, já se
batalhava pela composição de um outro lugar para a sociedade brasileira como um todo. Um
outro lugar em que as relações de poder, de produção e reprodução da vida foram
reconfigurados.
Com a Lei Federal 10.216 de 2001 e com o SUS, a política brasileira de saúde mental,
em suas proposições, desafios e limites, é discurso configurado na perspectiva da Reforma
Psiquiátrica. Com esta Lei de 2001 legalmente referendou um processo social e político já em
andamento, a saber, o de redirecionamento da assistência e da atenção em saúde mental a
partir do tratamento em serviços comunitários e não manicomial, em que a recuperação e
reinserção na família, na comunidade eram finalidades do processo de cuidado do sujeito em
sofrimento.
Qual o lugar político e social do louco e da loucura?
A partir das configurações aqui mapeadas, fica relevante que não houve constituição
de um projeto legislativo brasileiro de saúde mental sem os contribuintes do universo
histórico - político. Os ideários da Primeira República, as movimentações da Era Vargas e da
República Nova, o endurecimento da Ditadura Militar e a redemocratização política,
evidenciam isso.
Contemporaneamente, o modo de viver em sociedade coloca o investimento em saúde
como um importante dispositivo auxiliar de instauração de regimes de racionalidade de
anatomia-político-disciplinar e biopolítico, a partir de estratégias calculadas para a
manutenção e o desenvolvimento do capitalismo moderno. Nesse sentido, a saúde como
política discursa manifestações sobre as intencionalidades civis do ser normal. Já a saúde
201
como ação, cumpre o objetivo de manter ou restaurar a funcionalidade do corpo biológico.
Em ambas as perspectivas, a norma se faz presente alimentando uma proliferação de materiais
legislativos.
Para Ewald (1993), a norma pode ser definida como uma nota coletiva que se constitui
como regra válida para toda sociedade. “A medida comum é uma realidade eminentemente
política. É aquilo a partir do qual um grupo se institui como sociedade, aquilo que define os
seus códigos, que a pacifica e lhe fornece os instrumentos da sua regulação” (EWALD, 1993,
p. 124).
As normas se tornam parâmetros na construção de leis, decretos, portarias, políticas
públicas, afirmando-se como poder. O poder da norma aproxima todos a um padrão, em
processos de regulação e valorização social, por um viés que é também legal. Dessa forma,
norma e legislação se retroalimentam, em que o histórico e o político são os canais que
tornam esse processo facilitado.
Ao nos questionarmos sobre o que tornou a questão da loucura alvo de materiais
jurídicos e políticos, cabe o resgate da enunciação de que o direito e a prática jurídica agem a
partir de racionalidades particulares e historicamente constituídas, nunca universais. Isso quer
dizer que a loucura e o louco ganham importância política para dar conta de distintas funções,
conforme o momento social. A partir da modernidade, a valorização das contribuições
individuais para a sobrevivência da sociedade e do capitalismo como um todo trará para o
Estado o contribuinte das políticas de governo como tecnologias integrantes à autorregulação
imposta aos indivíduos. Dessa forma, as legislações e políticas, além de se configurarem
como estratégias normalizadas e normalizadoras de governo da vida coletiva e de
autogoverno, também suprem a função de formatar e reformatar trabalhadores a partir modos
de existir qualificados. Sendo assim, com nossas leituras e com o mapeamento realizado,
delineamos três linhas ao longo do processo de constituição da legislação psiquiátrica e das
políticas de saúde mental brasileira.
Inicialmente, com o inaugural Decreto Lei 1.132 em 1903, identificamos um momento
em que a legislação de assistência psiquiátrica estava a serviço do objetivo de medicalizar a
loucura e o louco. Os incentivos eram para uma segregação institucionalizada, com estímulos
para a criação de asilos e a proibição de enclausuramentos de alienados em espaços
carcerários. Notamos que no escrito legal o foco não era a cura, mas a moralização dos
desviantes mentais, tanto que a escrita se dedica à contenção do desvio e dos desviantes, não
havendo detalhamentos ou caracterizações da doença mental. Como fenômeno estranho ao
202
universo jurídico, a loucura se tornou responsabilidade dos alienistas, não sendo aleatória,
mas sintomática, a autoria do Decreto ser justamente de um alienista.
Em 1934, em um segundo delineamento, o Decreto 24.559 fundamentou a
medicalização do social. Com nossas análises, destacamos a preocupação com a manutenção
da ordem social a partir de parâmetros normalizantes do “deve ser”, em que o mínimo
incômodo coletivo e a potencialidade de periculosidade eram flagrantemente procurados, para
ser rapidamente contido. A preocupação e a disciplina se exerciam sobre o que se é, não sobre
o que se faz, mas do que se pode fazer (FOUCAULT, 1986). O psiquiatra era o grande perito
da norma, um delegado social que cresceu em importância e se infiltrou no universo coletivo,
diagnosticando e tratando a sociedade, em especial os indivíduos de vidas infames.
As ações medicalizadas propostas pelos documentos de 1930 e 1934 cumpriam
ideários distintos: na primeira lei, o louco inspirava medo, por isso se justificaria sua
contenção; na segunda lei, se investia na assepsia social e, para tal, o medo sentido pelo louco
viria de contrapeso. Ou seja, o louco e a loucura deixam de causar medo (por seu desajuste,
como que contaminante), para assumir a posição investida de sentir medo (de ser
desajustado). Ambos os decretos são exemplares da anatomia política do detalhe para garantir
vidas normalizadas, que se integravam também pelo controle biopolítico. A biopolítica
compreende a loucura como fenômeno acidental e antinatural, uma doença que subtrairia dos
indivíduos a força produtiva e o tempo de dedicação ao capitalismo, precisando ser contida. A
vida normalizada, e virtuosa, reconstituiria a população em sua posição de base da
prosperidade de uma nação (FOUCAULT, 2004; 2008b). Os loucos, capturados pela
psiquiatria e pelos escritos jurídicos, tinham seus corpos invadidos e moldados em suas
dimensões biológica, social e histórica. Gestão de toda uma população, e da sociedade, que
exclui o governo de si, tanto que até a Lei de 10.216/2001, é ausente qualquer menção ou
proposta de abertura para que o sujeito considerado adoecido fosse escutado ou arguido; ele
sofre sua questão ou condição, sendo tutelado civil e existencialmente.
Em um terceiro delineamento, a Lei 10.216 de 2001 ampliou o olhar e o entendimento
ético-político quanto ao sofrimento psíquico, incentivando questionamentos e orientando para
espaços de aprofundamentos e estudos. O doente mental, subjugado a saberes legalmente
amparados e institucionalmente estabelecidos, foi reposicionado terminologicamente como
em uma existência-sofrimento. Juridicamente, a descoberta da vida que acontecia no fora da
arquitetura física do Hospital Psiquiátrico colocou igualmente o desafio de saltar a arquitetura
simbólica da loucura. A descoberta do território comunitário em práticas e equipamentos de
203
atenção extra-hospitalares foram estratégicos no processo de desconstrução da premissa de
institucionalização, até então hegemônico.
Discutimos ao longo destas páginas, como as legislações e políticas são pautadas,
atravessadas e constituídas pela história, não havendo unidade jurídica e política fora de uma
conjuntura histórica e social. As relações e práticas coletivas, e políticas, de atenção em saúde
e saúde mental que se produziram no Brasil a partir do final da Primeira República foram
inscritas em códigos dominantes, ou seja, capitalistas. E como tal, precisaram (e ainda
precisam) se organizar de forma atenta ao cuidado que se pretendia promover. Discutimos
como as razões desse cuidado responderam a chamados de potencialização de modos de vida
compatíveis com as normas sociais valorizadas a cada momento histórico: gerir riscos,
ampliar estratégias de controle e disciplina social, fomentar existências homogeneizadas e
obedientes às formas capitalistas da modernidade, bem como neoliberais.
A ambiguidade da (re)inserção social pela via do trabalho no contexto da atenção em
saúde mental não pode ser ignorada ou minimizada, seja pelos militantes e trabalhadores da
saúde mental, seja pelos usuários e sujeitos políticos e sociais, que somos todos nós. Nos
escritos legislativos e políticas públicas, tal preocupação se fez presente de forma muito
significativa a partir da Lei 10.216/2001, mas afirmamos serem elas ainda insuficientes para
produzirem lógicas de cuidado e atenção em saúde mental que não sejam excludentes e
segregadoras quanto às arquiteturas simbólicas da loucura, de uma existência-sofrimento, ou
da diferença, seja ela qual for. Atualmente, podemos dizer que a arquitetura física do
manicômio foi abandonada, faltando a superação da arquitetura simbólica, a reconstrução do
que Foucault (1987) denominou de sensibilidade social à loucura, ou seja, as formas com que
uma sociedade se relaciona e convive com o louco e a loucura.
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Disponível
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<http://www.polbr.med.br/ano08/wal1108.php>. Acesso em 10 dez 2013.
205
MATRICIAMENTO: RECURSO ESTRATÉGICO PARA CAPACITAÇÃO EM
SAÚDE MENTAL DE PROFISSIONAIS DA EQUIPE DE ESTRATÉGIA DE SAÚDE
DA FAMÍLIA DA PREFEITURA DE VARGINHA/MG.
ANDERSON JOSÉ DE SOUZA
Psicólogo do CAPS de Varginha/MG
[email protected]
Introdução
O tema do presente trabalho surgiu com as observações realizadas nas reuniões de
matriciamento do CAPS (Centro de Atenção Psicossocial) com as ESF (Equipes de Saúde da
Família). O matriciamento tem o objetivo de apoiar as ESF no atendimento a pessoas em
sofrimento mental através de discussão dos casos e construção de um plano terapêutico
singular para tratamento da pessoa em sofrimento mental em sua própria unidade da ESF.
Em 2012, foi realizada uma pesquisa pela então coordenadora da atenção básica
Heloísa de Moura Lessa Barroso e foi constatada a insatisfação das ESF com o modelo de
matriciamento realizado na época. Na pesquisa relataram que sentiam falta da participação de
um número maior de profissionais da equipe do CAPS e, principalmente da presença do
médico psiquiatra nas reuniões. Apontaram também a dificuldade de deslocamento até o
CAPS e a baixa participação de outros profissionais da ESF, como os agentes comunitários de
saúde, que nunca participaram dos matriciamentos.
A partir desses relatos, foi proposta a realização do matriciamento nas unidades das.
Esse formato conta com uma equipe de saúde mental formada por representantes de cada
CAPS e o médico psiquiatra. Hoje, o Município de Varginha/MG conta com CAPS, CAPSi
(Centro de Atenção Psicossocial da Infância e Adolescência) e o CAPSad (Centro de Atenção
Psicossocial de Álcool e Drogas). Os CAPS foram criados como modelos substitutivos à
internação em hospitais psiquiátricos após o movimento da reforma psiquiátrica, que
aconteceu no início da década de 70 e que modificou a forma de tratamento dispensada a
pacientes com transtorno mental grave (GONÇALVES; SENA, 2001).
O matriciamento é uma ferramenta utilizada por vários CAPS para auxiliar as ESF
no tratamento das pessoas em sofrimento mental. A lógica ultrapassa a ideia de que o
tratamento deve ser sempre realizado unicamente por equipe especializada. Entende-se que a
206
oferta de possibilidades deve estar presente nas ESF, praticando assim a clínica ampliada.
Uma das metas com a criação dos CAPS é tratar as pessoas em sua própria comunidade, por
isso o matriciamento deve ser encarado como um recurso estratégico ofertado pelos CAPS.
O intuito desse trabalho é realizar e acompanhar a implantação do modelo de
matriciamento em Varginha/MG e identificar sua eficácia ou não, através de pesquisa
realizada com os participantes desse processo.
Espera-se que, ao final deste estudo consiga-se levar até à pessoa em sofrimento
mental um atendimento de qualidade. Deseja-se que o matriciamento seja reconhecido como
um recurso estratégico que deve ser utilizado pelos CAPS com a finalidade de diminuir a
demanda encaminhada para os mesmos.
A problematização de questões relativas à saúde mental leva a repensar nos
atendimentos realizados e ultrapassar paradigmas que ainda emperram na realização de um
atendimento de qualidade que valorize o sujeito.
Estratégia de Saúde da Família, Saúde Mental e Matriciamento
É fato histórico que os ditos loucos sempre foram colocados às margens da sociedade
e em muitos casos não podiam fazer parte dela. Eram retirados do convívio em sociedade por
que pensavam e agiam totalmente diferente dos ditos padrões normais de conduta.
(GONÇALVES; SENA, 2001).
Por essa razão, na história da humanidade, existem vários casos de atrocidades
cometidas contra pessoas em sofrimento mental. A loucura sempre existiu e para trata-la
criaram-se modelos de hospitais psiquiátricos (GONÇALVES; SENA, 2001). O modelo de
assistência nos hospitais psiquiátricos era exclusivamente direcionado a internação. Foi uma
maneira de retirar das ruas e da sociedade o que era considerado diferente. O argumento para
esse tipo de intervenção era que resguardando o paciente no hospital, ele seria melhor tratado.
Gonçalves e Sena (2001, p. 49) constam que:
Tratar do doente mental foi então sinal de exclusão, de reclusão e
asilamento. Hoje, esta realidade ainda existe, porém de forma mais
consciente e menos exclusiva. Por não se admitir a exclusão, corre-se
o risco de não se admitir a diferença. Esta não pode ser negada, é
necessário reconhecê-la e conviver com ela sem ter que excluir,
conforme a grande aspiração da reforma psiquiátrica.
207
Com a reforma psiquiátrica, que no Brasil se configura por ser um movimento social,
político e econômico; vem ocorrendo a redução dos leitos destinados à internação em
hospitais psiquiátricos em consonância com o surgimento de modelos substitutivos, que são
os CAPS. O modelo hospitalar de tratamento foi criado com base na legislação de 1934.
Apesar de ter avançado muito, ainda assim, as internações psiquiátricas, continuam sendo
utilizadas no Brasil (GONÇALVES; SENA, 2001).
Historicamente, as denúncias contra as instituições asilares fizeram com que o
movimento da reforma psiquiátrica tomasse corpo e propiciasse o questionamento dos
tratamentos oferecidos pelas instituições aos pacientes em sofrimento mental. No final da
década de 70, um amplo movimento liderado pelos trabalhadores de saúde mental e familiares
de pacientes fundou novas alternativas para tratar as pessoas ditas “loucas”. Os marcos desse
movimento foram as conferências de saúde e a criação das leis do SUS. Foi um caminho
percorrido por vários anos com amadurecimento teórico de muitos trabalhadores em relação
aos tratamentos oferecidos nos hospitais psiquiátricos. Esse fato possibilitou ultrapassar a
ideia de encarceramento da loucura, do diferente. (GONÇALVES; SENA, 2001)
“A reforma psiquiátrica, hoje, é discutida como parte das políticas de saúde,
principalmente no âmbito dos governos municipais.” (GONÇALVES;SENA,2001, p. 50) As
ações praticadas e priorizadas pela reforma psiquiátrica preveem o deslocamento das práticas
psiquiátricas para além de um modelo substitutivo aos hospitais psiquiátricos. Tais práticas
estabelecem que o tratamento de saúde mental deva acontecer próximo à comunidade e
preferencialmente na atenção primária em saúde com o apoio da atenção especializada
representada pelos CAPS.
Com essa maneira de agir toda a equipe de saúde é responsabilizada pelo tratamento
dos pacientes em sofrimento mental. A loucura passa, então, a ser discutida e problematizada
pela
sociedade.
Este
é
um
dos
maiores
méritos
da
reforma
psiquiátrica:
a
“desinstitucionalização” da loucura. (GONÇALVES; SENA, 2001)
Com a criação dos CAPS, a saúde mental passa a ter um instrumento de suma
importância para o tratamento de saúde mental. Os CAPS desenvolvem atendimentos
especializados em saúde mental, absorvendo assim as pessoas acometidas por transtornos
mentais graves. Os pacientes que frequentam os CAPS, em sua maioria, já passaram por
muitas internações e muitos permaneceram internados nos antigos manicômios durante anos.
O desenvolvimento de ações para possibilitar o retorno do paciente para sua vida em
comunidade é um objetivo a ser alcançado em todos os CAPS. A permanência do paciente no
CAPS acontece somente enquanto esse necessita de uma atenção especializada, depois, o
208
paciente é encaminhado para suas Unidades Básicas de Saúde, onde continuam recebendo os
atendimentos necessários para manter seu tratamento.
O matriciamento surge com a incumbência de fornecer as UBS apoio
necessário para tratar ou dar continuidade ao tratamento de pessoas
com transtorno mental grave. Matriciamento ou apoio matricial é um
novo modo de produzir saúde em que duas ou mais equipes, num
processo de construção compartilhada, criam uma proposta de
intervenção pedagógico-terapêutica. (CHIAVERINI, 2011,p.13)
O matriciamento tem sido implementado em todo país como uma ferramenta para
auxiliar as UBS no atendimento em saúde mental. Trata-se de um trabalho colaborativo entre
saúde mental e atenção básica (CHIAVERINI, 2011). O matriciamento acontece utilizando o
conhecimento de vários profissionais em suas diferentes especialidades. Nesse espaço
fundado acontece à criação legitima de novas formas de lidar com o paciente com transtorno
mental, quebra-se a rigidez verticalizada ainda presente em vários modelos da administração
publica e privilegia uma gestão participativa e favorecendo a clínica ampliada.
...apoio matricial e equipe de referência são, ao mesmo tempo,
arranjos organizacionais e uma metodologia para gestão do trabalho
em saúde, objetivando ampliar as possibilidades de realizar-se clínica
ampliada e integração dialógica entre distintas especialidades e
profissões. (CHIAVERINI,2011, p.14)
“O matriciamento constitui-se numa ferramenta de transformação, não só do
processo de saúde e doença, mas de toda a realidade dessas equipes e comunidades”
(CHIAVERINI, 2011,p.15). É um espaço para aprendizado, pois se estabelece uma troca de
experiências entre a equipe de saúde mental e a equipe da UBS.
A prática do matriciamento é um convite para repensar o papel da
reforma sanitária, representada pela ESF, e da reforma psiquiátrica,
representada pelo CAPS, assim como o papel das Unidades de Saúde
da Família, ambulatórios de saúde mental e hospitais.
(KAREN;FORTES; DELGADO, 2009, p.72)
O matriciamento acontece como resposta à pergunta realizada por tantos
trabalhadores e estudiosos da saúde pública no Brasil: como oferecer integralidade no
atendimento em saúde? (Campos; Domitti, 2007 apud TOFÒLI; FORTES, 2007).
209
Dentre as ações que as equipes de apoio matricial podem realizar
estão consultorias técnico-pedagógicas, atendimentos conjuntos, e
ações assistenciais específicas, que devem ser sempre dialogadas com
a equipe de referência e, como uma regra geral, coletivas. (TOFÒLI;
FORTES, 2007, p.35)
Na prática em saúde mental, a pessoa que realiza tratamento em alguns casos não é
atendida em sua real necessidade de saúde, esse fato acontece muitas vezes por supervalorizar
o transtorno mental como principal causa de seu adoecimento, esquecendo que a pessoa em
sofrimento mental também adoece fisicamente. “Isto se traduz não só pelo fato de que
portadores de sofrimento mental podem adoecer fisicamente, quanto pelo fato que o
adoecimento físico pode levar a sofrimento psicológico.” (BRASIL, 2003 apud TOFOLI;
FORTES, 2007, p.35).
O matriciamento é considerado pelo Ministério da Saúde como a principal estratégia
para a realização das ações em saúde mental. (TOFÒLI; FORTES, 2007)
A esse respeito, vale mencionar também que o apoio matricial vem
servindo como um instrumento importante para que a APS possa
acolher, de forma efetiva, pacientes provenientes dos CAPS que
receberam alta parcial ou total para algum tipo de acompanhamento na
ESF. Isso ocorre através de avaliação conjunta pelas duas equipes na
APS, para que decisões compartilhadas sobre seu tratamento sejam
realizadas. (TOFÒLI; FORTES, 2007,p.38)
“Também se notou que a alta de pacientes estabilizados do CAPS para a APS era
mais fácil nas unidades que recebiam matriciadores.” (TOFÒLI; FORTES, 2007, p.38) Para
Chiaverini (2011, p. 197), “o campo da saúde mental na APS está em construção e novas
técnicas de abordagem à identificação, ao tratamento e à integração estão em constante
desenvolvimento no Brasil e em outros países.”
Uma discussão constante na saúde diz respeito à responsabilidade de cada serviço. A
divisão da saúde em especialidades contribuiu para que muitos serviços realizassem seus
trabalhos atendendo somente aquilo o que acredita ser de sua competência. Dessa forma a
pessoa em sofrimento mental é encaminhada para o serviço especializado sem receber o
atendimento em sua ESF. É necessário entender que a saúde mental não se restringe apenas
aos serviços especializados. Ela faz parte da saúde como um todo. (CHIAVERINI,2011)
O modelo de matriciamento deve fugir da normatização criada pelos protocolos, pois
estamos falando de territórios e de práticas que envolvem, sobretudo, o relacionamento entre
profissionais de diversas áreas. É a oportunidade de criar um modelo que favoreça o
210
atendimento real das pessoas que procuram o serviço da ESF e dos CAPS, e se necessário
realizar um encaminhamento responsabilizado.
Principalmente os matriciadores, mas também os membros equipe da
APS, precisam estar conscientes da realidade na qual se inserem,
compreendendo os limites, meandros e atalhos do sistema necessários
para os cuidados à saúde mental dentro de sua prática.
(CHIAVERINI,2011, p.198)
O atual modelo utiliza a prática de encaminhamento das unidades de saúde para os
serviços especializados. Na maioria dos encaminhamentos não há uma contra referência. Esse
modelo favorece que os profissionais de saúde se sintam descompromissados em relação aos
pacientes de saúde mental. (CHIAVERINI, 2011)
No modelo de matriciamento que será realizado nas unidades de saúde teremos a
oportunidade de criar juntos, intervenções que favorecerão o tratamento dos pacientes de
saúde mental. Será uma troca de conhecimento entre os matriciadores e a equipe de ESF.
“Essa rede de saberes gera a primeira possibilidade de rede, que vincula, que
corresponsabiliza” (CHIAVERINI, 2011,p.200). Segundo Sluzki (1997, p. 37 apud
CHIAVERINI, 2011,p.202 ), no trabalho em redes:
...as fronteiras do indivíduo não estão limitadas por sua pele, mas
incluem tudo aquilo com que o sujeito interage – família, meio
ambiente... – podemos acrescentar que as fronteiras do sistema
significativo do indivíduo não se limitam à família nuclear ou extensa,
mas incluem todo o conjunto de vínculos interpessoais do sujeito:
família, amigos, relações de trabalho, de estudo, de inserção
comunitária e de práticas sociais.
A rede de apoio é um importante meio para diagnóstico situacional, quanto melhor
for a rede de apoio, melhor será a saúde mental dos usuários. (PORTUGAL, 2005 apud
CHIAVERINI, 2011,p.203)
O modelo proposto de matriciamento terá como objetivo melhorar o atendimento
dos pacientes de saúde mental, pois fortalecerá a rede quando existir a participação dos
profissionais envolvidos nos atendimentos.
Metodologia e levantamento de dados
211
Com subsídio de um levantamento bibliográfico, procedeu-se à realização de uma
pesquisa com os participantes do matriciamento utilizando questionários, cujos dados foram
analisados de forma qualitativa e quantitativa. Dessa maneira, procuraram-se explicar
questões relacionadas ao atendimento a pessoas em sofrimento mental realizado na rede
pública de saúde da cidade de Varginha/MG, em especial as ESF, em março de 2014.
A pesquisa utilizou metodologias de uma pesquisa-ação, pois os participantes
estavam envolvidos no processo de matriciamento e foram parte fundamental no
levantamento dos dados da pesquisa.
Os questionários foram aplicados no mês de março de 2014 e junho de 2014; o
primeiro questionário foi respondido por 67 participantes e o segundo questionário foi
respondido por 42 participantes.
Os questionários foram aplicados com o objetivo de avaliar a implantação do modelo
de matriaciamento em saúde mental proposto para as ESF (Equipes de Saúde da Família). O
primeiro questionário constou de sete questões que foram divididas em categorias para melhor
compreensão dos dados obtidos. Foi aplicado em 67 participantes do matriciamento
Resultados
Primeiro questionário aplicado em março de 2014
No primeiro questionário aplicado 34 participantes consideram que nas ESF existe
atendimento em saúde mental, 32 consideram que não existe atendimento em saúde mental e
um participante não respondeu o questionário. Percebeu-se que, nas unidades de saúde, o
grupo denominado de benzodiazepínico foi o mais citado já que são medicamentos de uso
contínuo. Em segundo lugar apareceram consulta médica, encaminhamento ao CAPS e
conversação clínica.
Ficou evidente que a procura por atendimento nas UBS (Unidade Básica de Saúde)
foi alta, pois os valores mais escolhidos pelos participantes se concentraram entre as escalas 3
e 9, com os maiores valores na escala 8, 6 e 5, 9 respectivamente. Este resultado indicou que
parte dos atendimentos se destinou a pacientes com algum tipo de transtorno mental e por essa
212
razão os profissionais deveriam estar preparados para atender esse tipo de demanda. Os
atendimentos mais procurados por ordem dos mais citados foram: depressão, troca de receita,
psicoterapia, ansiedade, álcool e drogas, insônia, esquizofrenia, transtorno bipolar,
acompanhamento de doenças crônicas, neuroses e consulta individual. Esses dados obtidos
demonstraram que os pacientes atendidos nas unidades de saúde estavam geralmente
participando apenas de grupos que renovavam as receitas.
Consideraram que a maior dificuldade para atender os pacientes de saúde mental foi
a falta de treinamento ou capacitação dos profissionais das equipes de ESF. Foi citado,
também, que a estrutura física ou a inadequação da mesma prejudica o atendimento de
pacientes de saúde mental. Faltaram atendimentos em grupo, com psicólogo, atendimento
psiquiátrico, o que gerou dificuldade para atender a população com transtorno mental.
Os participantes acreditam no matriciamento que privilegia a realização de discussão
de casos nos territórios onde as equipes de ESF atuam. Os resultados indicaram que os
participantes consideram que o modelo proposto irá favorecer o atendimento de pacientes
com transtorno mental. As justificativas utilizadas pelos participantes foram que o
matriciamento ajudará a resolver problemas psicológicos e sociais, possibilitará a
proximidade com a unidade de saúde e com a realidade do atendimento. Todos compreendem
que o funcionamento da rede será melhor: promoverá união dos funcionários, discussão mais
produtiva dos casos, mais informação e irá preparar melhor os profissionais para lidar com os
pacientes.
A preocupação dos participantes com capacitação foi o item mais citado nos
questionários respondidos. O segundo mais citado pelos participantes foi a criação de grupos
terapêuticos nas unidades. Na mensuração dos dados observamos que os grupos existentes,
em sua maioria, foram para trocar as receitas de medicamentos controlados. O terceiro item
mais citado, novamente, foi a respeito da necessidade de um profissional de psicologia na
unidade de saúde. Foi destacada, também, a importância de ter palestras com a comunidade
que é uma das funções das equipes de ESF (Estratégia de Saúde da Família).
Segundo questionário aplicado em junho de 2014
Contribuição do matriciamento para o atendimento em saúde mental
213
Os resultados obtidos indicaram que o matriciamento contribuiu com o atendimento
aos pacientes de saúde mental. A equipe de matriciadores na questão 2 foi unânime na escolha
afirmativa. Quanto aos participantes das ESF, 28 participantes responderam “sim” e apenas 1
participante respondeu “não”.
Os participantes justificaram a melhora no atendimento aos pacientes graças a:
melhora do acompanhamento do paciente na ESF, troca de informações, auxílio apropriado
para a ESF, corresponsabilização pelo cuidado, discussão dos casos, interação entre os CAPSs
e ESF e melhor acompanhamento de cada caso.
Interesse da ESF (Estratégia de Saúde da Família) pelo matriciamento
As equipes de ESF e matriciadora entenderam que existe interesse pelo nova
proposta de matriciamento. Na escala, o valor “8” foi o mais marcado pelos participantes da
pesquisa. Esse resultado demonstrou que o matriciamento é uma ferramenta importante no
atendimento à pessoa com transtorno mental e indica também que as equipes envolvidas no
matriciamento preocupam-se em melhorar o atendimento à população.
Resultado do matriciamento na elaboração de intervenções com a ESF
Os componentes das equipes acreditaram que o matriciamento proporcionou
elaboração de intervenções junto à equipe de ESF. Apenas um entrevistado respondeu que
“não”. O matriciamento passou a se configurar como um suporte técnico que possibilitou a
construção conjunta de intervenções, além daquelas realizadas pelas unidades separadamente.
As justificativas elencadas pela equipe matriciadora para a mudança na elaboração de
intervenção propiciada pelo matriciamento foram a troca de informações e melhor
comunicação com os CAPS, maior envolvimento na resolução dos casos, formulação de
condutas terapêuticas, conhecimento do contexto familiar/social e intervenções junto aos ACS
(Agente Comunitário de Saúde).
Os participantes da ESF justificaram, nessa questão, que o matriciamento
proporcionou interação entre ESF e CAPS, resolução dos casos discutidos, elaboração de
214
intervenções conjuntas, intervenção objetiva, conhecimento da rotina do paciente,
aprendizado do manejo com o pacientes e na comunicação entre as equipes.
O matriciamento como ferramenta de aprendizagem
Um dos principais objetivos da realização do matriciamento é proporcionar um
treinamento contínuo às equipes de ESF, utilizando discussões de casos e dúvidas trazidas
pela equipe de ESF. Todos os participantes consideraram que o matriciamento contribuiu para
o aprendizado.
Comunicação entre a ESF (Estratégia de Saúde da Família) e CAPS
Nessa categoria sugeriu-se para aos participantes que escolhessem numa escala de 1
a 10 o valor que melhor expressassem a comunicação entre as ESFs e os CAPSs. Ao ser
realizado o atendimento, a comunicação entre as equipes sempre foi uma preocupação.
Quanto mais houver interação e comunicação entre as equipes, mais assertiva será a
intervenção realizada com o paciente. Os resultados indicaram que as duas equipes
consideram a melhora na comunicação com escore “8” escolhido pelas das equipes.
Dificuldades e sugestões para a realização do matriciamento
A equipe de matriciamento elegeu como dificuldade para realização do
matriciamento a locomoção em mais de uma UBS (Unidades Básicas de Saúde), pois em uma
manhã eram feitas duas reuniões de matriciamento em cada uma das ESF. Indicaram também
o tempo escasso pela grande demanda de pacientes, a resistência das UBS em participar do
matriciamento e a discussão dos casos desorganizada. Com menos evidência, citaram o
problema da agenda médica lotada que os impedia na participação do matriciamento e por
último um local apropriado para as reuniões.
Os participantes das equipes das ESF consideraram como dificuldades o atraso para
começar os encontros, o horário da realização do matriciamento que causava dificuldade em
215
reunir a equipe multiprofissional, agendamento de capacitações no mesmo dia, tempo muito
longo e falta de organização.
As sugestões para melhorar o matriciamento pela equipe matriciadora foram:
 a necessidade de acesso aos prontuários para discussão de casos;
 o comprometimento da UBS, a diminuição das equipes por matriciamento;
 o fechamento da agenda dos médicos, mais objetividade nas discussões de
caso;
 retorno do matriciamento ao CAPS, maior participação dos médicos;
 presença de enfermeiros e outros profissionais;
 pontualidade;
 eleição prévia dos pacientes que terão os casos discutidos;
 participação de todas as unidades;
 cuidado da organização antes do matriciamento.
As equipes de ESF sugeriram:
 tempo maior para que haja um matriciamento eficaz e sem pressa;
 pontualidade;
 melhor planejamento da reunião;
 programação prévia por parte da SMS e GRS das capacitações a serem
realizadas;
 dinamicidade e objetividade;
 aumento da periodicidade;
 maior participação dos agentes de saúde.
Considerações Finais
Durante o primeiro semestre de 2014, foi realizada uma reunião de matriciamento
com cada equipe de ESF (Estratégia de Saúde da Família), onde cada uma destas participou
de cinco reuniões de matriciamento com calendário previsto até maio. Foram discutidos
216
nessas reuniões casos de pacientes que realizam tratamento em saúde mental no CAPS ou na
ESF. Através dessas reuniões com as discussões dos casos dos pacientes houve a necessidade
de compor o PTS (Plano Terapêutico Singular), assim como orientar os profissionais de saúde
e fornecer-lhes subsídios de como agir com os pacientes de saúde mental. Ao final do plano
de execução do matriciamento ocorrido, foi aplicado um questionário com a equipe
matriciadora e com as equipes de ESF.
Com a tabulação dos questionários, foi possível mensurar se o modelo de
matriciamento realizado atingiu seus objetivos e, assim, propor ações para os próximos
matriciamentos que serão realizados no segundo semestre de 2014. Todas as atividades
propostas nessa pesquisa foram feitas conforme descrita na metodologia. Durante a
transcrição dos resultados, preservou-se a fidedignidade dos dados obtidos.
Com a realização deste estudo, foi possível identificar quais características do
matriciamento os participantes identificaram como relevantes para sua realização. Os
resultados indicaram que houve uma intervenção que possibilitou modificar ou criar novas
intervenções em saúde mental.
A abertura para discussão sobre a saúde mental resultou na problematização do
modelo de atendimento presente nas unidades de saúde e no próprio CAPS que é uma unidade
especializada para o atendimento em saúde mental. As discussões dos casos levaram a uma
ação conjunta para resolução e orientação sobre condutas terapêuticas que antes eram feitas
isoladamente pela equipe do CAPS ou ESF.
Um ponto importante evidenciado pela pesquisa foi a necessidade de treinamento
apontada pelos participantes e, até certo ponto, o matriciamento foi um agente que
proporcionou a aprendizagem das pessoas que dele participaram. Entende-se que, para atingir
uma eficácia maior em relação ao matriciamento, leva-se tempo. Vive-se hoje uma
supervalorização dos especialistas e o CAPS na rede de atenção psicossocial configura-se
como um especialista para onde devem ser encaminhados todos os pacientes de saúde mental.
A proposta do Ministério da Saúde é que a maioria dos casos sejam tratados de
preferência em sua unidade de saúde da comunidade. Para ultrapassar ideias enraizadas, como
a de que a ESF deva realizar somente consultas, é necessário um processo longo e trabalhoso.
Requer uma educação constante da comunidade e dos profissionais de saúde na mudança da
forma de pensar.
A realização desse trabalho, proporcionou o primeiro passo para que os pacientes de
saúde mental permaneçam em seu tratamento em sua equipe ESF e próximo a sua
comunidade.
217
Realizar o matriciamento no local da ESF favoreceu a valorização do trabalho
realizado nessas localidades ao abranger, também, outros profissionais que antes ficavam fora
das reuniões de matriciamento, como os agentes comunitários de saúde. Conhecer o território
foi relevante para realizar a intervenção e com as informações fornecidas pelos agentes
comunitários de saúde foi possível uma melhor aproximação da realidade do sujeito.
A experiência permitiu programar melhorias por meio de novas propostas de
matriciamento para o próximo semestre de 2014.
A primeira pesquisa realizada antes do desenvolvimento do matriciamento, facilitou
a compreensão sobre como os atendimentos em saúde mental acontecem nas equipes de ESF
(Estratégia de Saúde da Família). Sabe-se que estes são muito procurados e as unidades que
afirmaram apresentar assistência identificaram o grupo de troca de receita como mais comum.
Esse dado indica que há uma supervalorização ainda presente, na saúde, da intervenção que
valoriza a medicalização. Muitos pacientes necessitam da utilização de medicamentos, mas
ressalta-se que a intervenção em saúde mental também pode ser preventiva nas unidades de
ESF.
Outro dado relevante que a pesquisa indicou foi o tipo de atendimento mais
procurado que é a depressão. Grande parte das pessoas que procuram tratamento para
depressão já chegam com o diagnóstico feito erroneamente. Na verdade o que aconteceu foi a
apropriação de um termo técnico pelo senso comum e o profissional de saúde tem que estar
atento a esta situação.
Com a execução do matriciamento em longo prazo, os profissionais se sentirão mais
capacitados para atenderem pessoas em sofrimento mental, por meio da prática vivenciada em
seu território.
Desde o início os participantes disseram acreditar que o matriciamento foi importante
para atender a população. Haverá, então, um contexto favorável no desenvolvimento das
intervenções em saúde mental.
No último questionário aplicado, os participantes também confirmaram que o
matriciamento contribuiu de forma significativa para o aprendizado, na elaboração de
intervenções em saúde mental e na comunicação entre as equipes (CAPSs e ESFs). Porém,
relataram que os próximos matriciamentos devam ser mais organizados em relação ao tempo
de duração, horário de início e local para sua realização. Esta questão foi previsível, pois, ao
longo do desenvolvimento do matriciamento surgiram alguns problemas de deslocamento das
equipes e horário de inicio do matriciamento.
218
Concluiu-se que, que através dessa pesquisa que modificar uma prática de
atendimento em saúde leva tempo.
Os resultados desse trabalho, contudo indicaram que um novo caminho se abriu e
que no futuro poderão ser feitas novas intervenções mais corretas em saúde mental.
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Sobral, v.6, n.2, p.34-42, jul./dez. 2005/2007
219
DEPRESSÃO E IDEAÇÕES SUICIDAS ENTRE PESSOAS COBERTAS POR
UNIDADES DA ESTRATÉGIA SAÚDE DA FAMÍLIA EM PARANAÍBA-MS
Vitor Corrêa Detomini6 (Universidade Federal de Uberlândia - UFU); Renata Bellenzani
(Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, campus de Paranaíba - UFMS/CPAR); Cláudia
Maria Negrão (Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, campus de Paranaíba UFMS/CPAR).
1 INTRODUÇÃO
121 milhões de pessoa são afetadas pela depressão, o que equivale a algo próximo de
2% da população mundial (OMS, 2001). Não obstante, só uma pequena minoria tem acesso a
tratamentos. A OMS destaca a urgência de desenvolver estratégias e procedimentos técnicos
para monitorizar a saúde mental nas comunidades e a responsabilidade dos órgãos públicos
em apoiar as pesquisa em saúde mental e vigilância epidemiológica, dado os custos que os
agravos psíquicos geram em termos humanos, sociais e econômicos.
Dados do Ministério da Saúde apontam que no Brasil a depressão acomete ao longo da
vida, entre 10% e 25% das mulheres, e entre 5% a 12% dos homens (BRASIL, 2006). Quanto
mais precoce o tratamento, mais rápida é a remissão dos sintomas e menor a chance de
cronificação.
A depressão é um transtorno mental de curso episódico, recorrente ou persistente ao
longo do tempo, que pode trazer prejuízos funcionais nas esferas psicológicas,
comportamentais, sociais, familiares e ocupacionais (ZANETTI; LAFER, 2008). O transtorno
depressivo maior tem sido o mais reconhecido e ocupa a agenda da Saúde Pública, em
especial pela sua alta prevalência identificada durante os atendimentos médicos no nível
primário, com significativo impacto na qualidade de vida de usuários e familiares envolvidos
(FLECK; GRUPO LIDO et al., 2002).
Pesquisadores destacam as dificuldades em conceituar a depressão e em diagnosticála, devido às múltiplas formas de manifestações (ROMANO, 2001). Quanto à etiologia,
devem ser levados em conta fatores genéticos, orgânicos, ambientais e sociais, acrescentandose os psicológicos, psicossociais, psicodinâmicos ou “subjetivos” (JURKIEWICZ, 2008).
Ações de proteção da saúde mental da população e assistência específica nesta área
são direitos dos cidadãos no Brasil, previstos na Constituição Federal, para assegurar bemestar mental, integridade psíquica e pleno desenvolvimento intelectual e emocional (BRASIL,
6
[email protected]
220
2012). Parte da responsabilidade sanitária das ações de saúde mental é do nível primário,
atualmente organizado segundo o modelo da Estratégia Saúde da Família (BRASIL, 2003).
Este trabalho objetivou verificar a prevalência de depressão, com e sem ideações suicidas, em
adultos da população de Paranaíba-MS, e caracterizar o perfil dos sintomáticos. Este
município tem aproximadamente 40.174 habitantes, conforme Censo de 2010 do IBGE;
19.965 homens e 20.209 mulheres. No perímetro urbano vivem 35.731. Sua rede básica de
saúde municipal é composta, na área urbana, por setes unidades da Estratégia Saúde da
Família.
2 MÉTODO
Realizou-se, estudo observacional de corte transversal, com os residentes acima de 18
anos do município de Paranaíba - MS. A amostra foi composta por 314 indivíduos adultos, de
ambos os sexos, residentes no município, que estavam cadastrados nas sete unidades básicas
de saúde (UBS) existentes na área urbana. Para determinar o tamanho amostral, consideramos
a taxa de urbanização do município, a proporção de adultos e as proporções por faixa etária e
sexo das pessoas casdastradas em cada UBS, a partir dos dados do Sistema de Informação da
Atenção Básica (SIAB) de 2010.
Foram utilizados dois instrumentos: 1) questionário sociodemográfico e com questões
fechadas sobre variados aspectos; 2) PHQ-9: “questionário sobre a saúde do paciente - 9”,
para rastreamento de transtornos mentais, desenvolvido a partir do PRIME-MD (Primary
Care Evaluation of Mental Disorders), onde o escore total pode variar de 0 a 27; escores de 5
ou mais indicam depressão. Escores “5”, 10”, “15” e “20” são limites para depressão leve,
moderada, moderada a grave e grave, respectivamente (KROENKE; SPITZER; WILLIAMS,
2001). No presente estudo utilizou-se a versão brasileira do PHQ-9 em toda amostra.
Os procedimentos de coleta de dados foram realizados em sua maioria por
entrevistadores em duplas, nos domicílios. Eram explicados os objetivos e em caso de aceite,
assinado o Termo de Consentimento Livre Esclarecido (TCLE). As questões eram lidas pelos
pesquisadores e as respostas preenchidas no instrumento. Com relação aos aspectos éticos, as
entrevistas da pesquisa se caracterizavam como um acolhimento. Todo participante
identificado com depressão e/ou ideação suicida era escutado quando compartilhava
sentimentos e questões pessoais; o clima era de apoio. Foram feitas orientações e algumas
221
pessoas foram incentivadas a buscarem atendimento na unidade básica, no Centro de Atenção
Psicossocial (CAPS) ou na Clínica-Escola do Curso de Psicologia da Universidade
responsável pelo estudo.
Os dados foram digitados duas vezes no banco de dados e uma revisão de consistência
foi realizada. A análise dos dados foi feita com o software IBM SPSS Statistics 20. As
variáveis de desfechos foram inicialmente categorizadas segundo os escores de classificação
de risco e/ou diagnóstico da escala PHQ-9, conforme estabelecido pela literatura específica. À
princípio foram feitas análises descritivas dos dados, sendo que, futuramente, serão feitas
análises correlacionais.
3 RESULTADOS E DISCUSSÃO
Foram analisados os dados das 314 pessoas, dos sete serviços que compuseram a
amostra, totalizando 219 mulheres (69,7%) e 95 homens (30,3%). As mulheres são maioria
nos cadastros consultados.
Para 168 entrevistados, o escore do PHQ foi ≤ 5, ou seja, não apresentam sintomas de
depressão. Desses, 103 mulheres (61,3%) e 65 homens (38,7%). Para 146 entrevistados o
escore do PHQ foi ≥ 5, portanto, apresentam sintomas de depressão, o que corresponde a uma
prevalência de 46,4%. Desses, 116 mulheres (79,5%) e 30 homens (20,5%).
De acordo com as faixas de escores do PHQ9 correspondentes aos “graus” de
depressão (KROENKE; SPITZER; WILLIANS, 2001), a situação geral dos entrevistados é
seguinte, conforme a Tabela 1: a maioria, quase 58,2%, apresenta depressão “leve”; 24,6%
“moderada”; 10,9% “moderada a grave” e 6,3% “grave”.
Tabelas 1 – Graus de depressão da amostra, segundo Kroenke, Spitzer, & Willians (2001)
Grau de depressão
Depressão leve (score de 5 a 9)
Depressão moderada (score de 10 a 14)
Depressão de moderada a grave (score de 15 a 19)
Depressão grave (score de 20 a 27)
n = 146
85 (58.2%)
36 (24,6%)
16 (10,9%)
9 (6,3%)
A caracterização sociodemográfica que se segue foi feita para todas as variáveis
investigadas, comparando os dois grupos: “com sintomas” de depressão e “sem sintomas”.
222
Quanto à cor, a maioria dos entrevistados declarou-se da cor branca, seguida pela
parda. Como se vê na Tabela 2, a cor/etnia “preta” tem uma porcentagem maior no grupo
“com sintomas” (15,8%) em relação aos “sem sintomas” (9,5%); a cor “amarela” também é
ligeiramente maior. Para brancos e pardos as porcentagens diminuem.
Tabela 2 – Comparação de dados quanto á cor/etnia
Cor/raça
Preta
Parda
Branca
Amarela
Com sintomas (n = 146)
23 (15,8%)
52 (35,6%)
68 (46,6%)
3 (2,1%)
Sem Sintomas (n = 168)
16 (9,5%)
71 (42,3%)
81 (48,2%)
0
Estudo de Robbins e Regier (1991, apud LIMA, 1999) não encontrou diferenças
relevantes quanto à correlação entre depressão e cor/raça. As diferenças eventualmente
encontradas desapareceram quando, na análise, foram controlados fatores como idade, local
de residência e situação socioeconômica. Em nosso estudo, futuras análises de correlação
elucidarão a respeito, inclusive sobre a influência dos fatores “renda” e “escolaridade”,
associada à “cor/etnia”.
Quanto à situação conjugal, na Tabela 3 identifica-se leves variações em todas as
alternativas; variação um pouco mais expressiva na categoria “casados”, que cai em torno de
7% no grupo “com sintomas”.
Tabela 3 – Comparação de dados quanto à situação afetivo/conjugal
Situação Conjugal
Casado
União estável (amasiado)
Solteiro sem namorado
Separado/Divorciado
Viúvo
Namorando
Com sintomas (n = 146)
43 (29,5%)
35 (24%)
24 (16,4%)
13 (8,9%)
14 (9,6%)
17 (11,6%)
Sem Sintomas (n = 168)
62 (36,9%)
34 (20,2%)
34 (20,2%)
17 (10,1%)
13 (7,7%)
8 (4,8%)
Estudo de Lima (1999) encontrou maior prevalência depressão entre pessoas
divorciadas ou separadas, do que entre solteiros e casados, além de que a viuvez recente
estaria associada à alta ocorrência de depressão. Segundo o autor, esses riscos parecem variar
de acordo com o sexo, onde mulheres solteiras parecem ser menos suscetíveis à depressão do
que as casadas e, com os homens, ocorre o oposto.
Quanto à escolaridade, vê-se na Tabela 4, o predomínio de participantes com poucos
anos de estudo. Somando-se ensino fundamental (completo e incompleto) com analfabetos,
eles representam 48,8% dos “sem sintomas” e, ainda mais, entre os “com sintomas”, 56,8%.
223
Tabela 4 – Comparação de dados quanto à escolaridade
Escolaridade
Ensino fundamental incompleto
Ensino fundamental completo
Ensino médio incompleto
Ensino médio completo
Curso técnico
Universitário/graduação
Pós-graduação
Analfabetos (liam pouco ou nada)
Com sintomas (n = 146)
65 (44,5%)
4 (2,7%)
26 (17,8%)
11 (7,5%)
1 (0,7%)
20 (13,7%)
1 (0,7%)
18 (12,3%)
Sem Sintomas (n = 168)
69 (41,1%)
19 (11,3%)
34 (20,2%)
14 (8,3%)
1 (0,6%)
16 (9,5%)
2 (1,2%)
13 (7,7%)
Segundo Lima (1999), vários estudos populacionais sugerem que pessoas com baixa
escolaridade e renda apresentam maiores prevalência de transtornos mentais. Entretanto, no
estudo norte-americano ECA, com exceção dos resultados encontrados na Carolina do Norte,
a associação entre baixa renda e depressão foi fraca. Noutro estudo no país, sobre
comorbidade, as pessoas com menor renda apresentaram maiores prevalências de transtornos
afetivos (KESSLER, MCGONAGLE, ZHAO et al., 1994, apud LIMA, 1999). Na pesquisa de
Morbidade Psiquiátrica na Grã-Bretanha, de Mason e Wilkonson (1996, apud LIMA, 1999) as
pessoas com depressão maior apresentaram menor escolaridade e situação econômica inativa,
do que aquelas sem depressão ou outro transtorno mental.
Quanto à renda, na Tabela 5, vê-se que a maioria dos participantes, em ambos os
grupos, pertence às classes menos favorecidas (renda familiar de R$ 500,00 a R$ 1500,00). A
partir do estrato de R$ 501,00 a R$ 1000,00, conforme cresce a renda, diminuem as
respectivas porcentagens no grupo com sintomas.
Tabela 5 – Comparação de dados referentes à renda
Renda
Até R$500,00
De R$501,00 a R$1000,00
De R$1001,00 a R$1500,00
De R$1501,00 a R$2000,00
De R$2001,00 a R$3000,00
De R$3001,00 a R$4000,00
Mais de R$4000,00
Não souberam ou não responderam
Com sintomas (n = 146)
5 (3,4%)
47 (32,2%)
39 (26,7%)
19 (13%)
18 (12,3%)
4 (2,7%)
5 (3,4%)
9 (6,2%)
Sem Sintomas (n = 168)
9 (5,4%)
38 (22,6%)
33 (19,6%)
32 (19%)
32 (19%)
12 (7,1%)
1 (0,6%)
11 (6,5%)
Pode-se observar na Tabela 6, que a maioria dos participantes tem uma atividade
laboral remunerada, seja emprego formal ou informal. Há variações sutis, entre os grupos sem
e com sintomas, na maioria das ocupações, exceto na categoria “empregados”. Entre os sem
sintomas, 38,1% são empregados, contra 24% dos sintomáticos.
224
Tabela 6 – Comparação de dados quanto à ocupação
Ocupação
Empregados
Trabalho Informal
Desempregados
Aposentados
Donas de casa
Pensionistas
Estudantes
Sob licença
Nunca trabalhou
Com sintomas (n = 146)
36 (24,7%)
23 (15,8%)
17 (11,6%)
22 (15,1%)
26 (17,8%)
9 (6,2%)
7 (4,8%)
3 (2,1%)
3 (2,1%)
Sem Sintomas (n = 168)
64 (38,1%)
36 (21,4%)
12 (7,1%)
18 (10,7%)
27 (16,1%)
6 (3,6%)
4 (2,4%)
1 (0,6%)
0
A maioria dos participantes reside com companheiro(a) e filhos, em ambos os grupos,
embora 10% menor no grupo com sintomas. Na Tabela 7, comparando-se os dados de pessoas
com sintomas e sem sintomas de depressão, as proporções de cada alternativa tendem a se
manter ou apresentam poucas variações.
Tabela 7 – Comparação de dados referentes à com quem residem os participantes
Com que residem
Sozinho
Com familiares (exceto esposa e filhos)
Com esposa, companheira e filhos
Com amigos/colegas
Outros
Com sintomas (n = 146)
14 (9,6%)
32 (21,9%)
84 (57,5%)
4 (2,7%)
12 (8,2%)
Sem Sintomas (n = 168)
13 (7,7%)
39 (23,2%)
113 (67,3%)
0
3 (1,8%)
Quanto à religião, a maioria dos participantes na amostra geral, afirma ter uma religião
(82,8%) e quase a metade (54,7%) frequenta uma instituição religiosa pelo menos uma vez ao
mês. Vê-se, na Tabela 8, que religião e frequência em suas instituições também não variam
muito do grupo sem sintomas para o com sintomas.
Tabela 8 – Comparação de dados referentes à religião e frequência em instituições religiosas
Religião
Sim
Não
Não respondeu
Frequência
Mais de uma vez por semana
Uma vez por semana
Duas a três vezes ao mês
Algumas vezes por ano
Uma vez por ano ou menos
Nunca
Com sintomas (n = 146)
117 (80,1%)
29 (19,9%)
0
n = 117
20 (17,1%)
31 (26,5%)
27 (23,1%)
21 (17,9%)
9 (7,7%)
9 (7,7%)
Sem Sintomas (n = 168)
143 (85,1%)
24 (14,3%)
0 (0,6%)
n = 143
20 (14%)
41 (28,7%)
33 (23,1%)
25 (17,5%)
16 (11,2%)
8 (5,6%)
225
Quando questionados se tinham amigos ou colegas, a maioria dos participantes
(93,9%) afirmou que sim. Destes, metade afirmou que encontra seus amigos/colegas
diariamente. Na Tabela 9, não se observam grandes variações, entre os dois grupos, embora
seja um pouco maior o número de pessoas que não têm amigos entre os sintomáticos.
Tabela 9 – Comparação de dados referentes a amigos/colegas e frequência de encontro
Amigos/colegas
Sim
Não
Frequência
Diariamente
2 a 3 vezes por semana
Pelos menos semanalmente
Pelo menos mensalmente
Poucas vezes no ano
Nunca
Com sintomas (n = 146)
132 (90,4%)
14 (9,6%)
n = 132
61 (46,2%)
26 (19,7%)
21 (15,9%)
8 (6,1%)
12 (9,1%)
4 (3%)
Sem Sintomas (n = 168)
163 (97%)
5 (3%)
n = 163
76 (46,6%)
40 (24,5%)
31 (19%)
12 (7,4%)
2 (1,2%)
2 (1,2%)
Sobre ter companhia para realizar tarefas corriqueiras do dia-a-dia, como assistir
televisão, na hora das refeições, ir à igreja, visitar familiares ou amigos, além de outras
atividades de lazer, não são encontradas diferenças consideráveis, entre os dois grupos. No
entanto, em todos os cinco tipos de atividade, é menor o número dos que respondem
afirmativamente e maior o número dos que respondem negativamente, no grupo com
sintomas, como se vê na Tabela 10.
Tabela 10 – Comparação de dados referentes à companhia para as atividades do dia-a-dia
Companhia para ver TV
Sim
Não
Não responderam
Companhia durante as refeições
Sim
Não
Companhia para ir à igreja
Sim
Não
Não responderam
Companhia para visitar familiares ou
amigos
Sim
Não
Não responderam
Companhia para outras atividades de
lazer
Sim
Não
Não responderam
Com sintomas (n = 146)
99 (67,8%)
37 (25,3%)
10 (6,8%)
n = 146
114 (78,1%)
32 (21,9%)
n = 146
94 (64,4%)
23 (15,8%)
29 (19,9%)
n = 146
Sem Sintomas (n = 168)
126 (75%)
35 (20,8%)
7 (4,2%)
n = 168
140 (83,3%)
28 (16,7%)
n = 168
121 (72%)
22 (13,1%)
25 (14,9%)
n = 168
108 (74%)
35 (24%)
3 (2%)
n = 146
130 (77,4%)
34 (20,2%)
4 (2,4%)
n = 168
117 (80,1%)
23 (15,8%)
6 (4,1%)
144 (85,7%)
22 (13,1%)
2 (1,2%)
226
Em se tratando das respostas referentes à ocorrência de problemas de saúde nos doze
meses que antecediam a entrevista, na Tabela 11 tem-se entre os sintomáticos mais pessoas
que tiveram problemas de saúde, tanto “uma vez”, como “mais de uma vez”. O aumento é de
aproximadamente 15% em ambas as alternativas em relação aos sem sintomas.
Tabela 11 – Comparação de dados quanto à problemas de saúde e período de ocorrência dos participantes
Problemas de saúde
Sim, uma vez
Sim, mais de uma vez
Não
Período de ocorrência
Há menos de um mês
Entre 1 e 6 meses atrás
Entre 7 e 12 meses atrás
Não souberam ou não responderam
Com sintomas (n = 146)
51 (34,9%)
29 (19,9%)
66 (45,2%)
n = 80
18 (22,5%)
35 (43,7%)
25 (31,2%)
2 (2,5%)
Sem Sintomas (n = 168)
41 (20%)
10 (5,7%)
117 (74,3%)
n = 51
10 (19,6%)
23 (45,09%)
15 (29,4%)
3 (5,8%)
Quanto à vivência de problemas emocionais, acesso a tratamento e em que tipo de
serviço, 38,5% dos participantes respondeu afirmativamente, ou seja, passou por problemas
emocionais nos últimos doze meses. Destes, quase a metade afirmou não ter precisado de
tratamento. Nota-se que entre os com sintomas, aproximadamente um terço (32,5%) está em
tratamento e 4,8% não está em tratamento por não ter conseguido vaga. Um dado curioso é
que 47% das pessoas que afirmaram problemas emocionais nos último ano, e estavam com
sintomas depressivos na ocasião da entrevista, afirmaram não terem buscado tratamento, pois
na ocasião dos problemas emocionais não acharam necessário. Isto suscita ao menos duas
questões: ou o baixo reconhecimento da eventual necessidade de tratamento, embora
estivessem deprimidas, ou os sintomas depressivos surgiram recentemente, após um tempo
das vivências dos problemas emocionais. Os dados mostram também que o tratamento é
exclusivamente medicamentoso para 55,5% do grupo dos deprimidos, e ocorre nas Unidades
Básicas de Saúde para a maioria; 27,5% responderam “outros serviços”, referindo-se
possivelmente a consultórios privados ou conveniados aos planos de saúde.
Paykel (1994, apud BAPTISTA, 2004), afirma que um grande número de eventos
estressantes atuais funcionaria como fatores de risco para o desenvolvimento da depressão, já
que os mesmos teriam a tendência a desestabilizar o equilíbrio emocional. Comparando as
pessoas com e sem depressão, na Tabela 12, a porcentagem de pessoas com “problemas
emocionais” foi maior no grupo com sintomas (56,8% comparada a 22,6%), um aumento
superior a 30%.
227
Tabelas 12 – Comparação dos dados referentes à problemas emocionais, tratamento, última consulta e
serviço de saúde utilizado
Problemas emocionais
Sim
Não
Não souberam ou não responderam
Tratamento
para
problemas
emocionais
Sim, mas não estou mais
Sim, e continuo o tratamento
Não, pois não consegui vaga para este
tipo de tratamento
Não, pois não cheguei a precisar de
tratamento
Tipo de tratamento
Medicação
Medicação e seguimento de outros
profissionais
Terapia individual
Medicação e terapia individual
Terapia individual e seguimento de
outros profissionais
Medicação,
terapia
individual
e
seguimento de outros profissionais
Apoio/Seguimento
de
outros
profissionais
Última consulta
Há menos de 1 mês
Entre 1 e 6 meses
Entre 7 e 12 meses
Há mais de 1 ano
Serviço de saúde
ESF/UBS
CAPS
Outros
USF/CAPS
USF/Santa Casa
USF/Outros
Hospital Psiquiátrico/Outros
Hospital Psiquiátrico/CAPS
Com sintomas (n = 146)
83 (56,8%)
62 (42,5%)
1 (0,7%)
n = 83
Sem Sintomas (n = 168)
38 (22,6%)
128 (76,2%)
2 (1,2%)
n = 38
13 (15,7%)
27 (32,5%)
4 (4,8%)
8 (21,1%)
8 (21,1%)
0
39 (47%)
22 (57,9%)
n = 40
22 (55%)
9 (22,5%)
n = 16
9 (56,3%)
1 (6,3%)
2 (5%)
4 (10%)
1 (0,7%)
2 (12,5%)
2 (12,5%)
0
1 (0,7%)
1 (6,3%)
1 (0,7%)
1 (6,3%)
n = 40
16 (40%)
18 (45%)
4 (10%)
2 (5%)
n = 40
21 (52,5)
1 (2,5%)
11 (27,5%)
1 (2,5%)
2 (5%)
3 (7,5%)
1 (2,5%)
0
n = 16
5 (31,3%)
8 (60%)
2 (12,5%)
1 (6,3%)
n = 16
5 (31,3%)
0
8 (50%)
0
0
2 (12,5%)
0
1 (6,3%)
Foi perguntado para os participantes o que eles acreditavam ter contribuído para que
seus problemas emocionais surgissem (questão aberta, cujas respostas foram categorizadas) e,
como se vê na Tabela 13, os problemas relacionados às suas famílias foram os mais citados
em ambos os grupos, 48% dos sem sintomas e 37,5% dos com sintomas. Também foram
citados problemas pessoais, falecimentos de pessoas próximas (que, por sinal, não variou
entre os com e sem sintomas), problemas com o trabalho e de saúde.
Tabela 13 – Comparação de dados referentes aos motivos, segundo os participantes, que teriam
contribuído para que os problemas emocionais surgissem
Motivos
Com sintomas (n = 104)
Sem Sintomas (n = 39)
228
Falecimento (sobrinho, filho, pessoas
próximas)
Familiares
(problemas
familiares,
preocupação com filhos, gravidez da
filha,
homossexualidade,
relacionamento, etc.)
Saúde (enxaqueca, remédios, aborto,
depressão pós-parto, coluna)
Trabalho
(financeiros,
pressão,
exploração, salário baixo)
Pessoais (falta de paciência, medo
desde a infância)
Não sabe
12 (11,5%)
4 (10,2%)
39 (37,5%)
19 (48,7%)
13 (12,5%)
3 (7,6%)
7 (6,7%)
3 (7,6%)
17 (16,34%)
3 (7,6%)
17 (16,34%)
7 (17,9%)
Quanto aos problemas relacionados com uso de álcool e/ou outras drogas e ao
tratamento desses problemas, a maioria dos participantes da amostra geral afirmou nunca ter
tido problemas nessa esfera (89,4%). A maioria dos que afirmaram problemas com uso de
álcool e/ou outras drogas nunca passou por tratamento (78,7%). Na Tabela 14, vê-se que as
porcentagens de pessoas com problemas atuais (4,1%) ou pregressos (11%) envolvendo uso
de álcool e drogas, são maiores no grupo com sintomas depressivos, comparado aos sem
sintomas - 6% e 0,6%, respectivamente. Entre os sem sintomas, o tratamento foi voltado para
uso de álcool, inclusive numa porcentagem maior, comparado aos com sintomas, e nenhuma
pessoa referiu tratamento para drogas ilícitas, enquanto que no grupo com sintomas, sim.
Tabelas 14 – Comparação dos dados referentes aos problemas com álcool e/ou outras drogas e tratamento
Problemas com álcool e/ou outras drogas
Com sintomas (n = 146)
Sim, tenho
6 (4,1%)
Sim, já tive, mas estou bem
16 (11%)
Não, nunca tive
124 (84,9%)
Tratamento
n = 22
Sim, álcool
3 (13,6%)
Sim, álcool e outras drogas
1 (4,5%)
Sim, somente outras drogas
1 (4,5%)
Não, nem para álcool, nem para outras drogas 17 (77,3%)
Tipo de tratamento
n=5
Medicação
2 (40%)
Medicação e terapia individual
1 (20%)
Medicação e seguimento de outros 1 (20%
profissionais
Apoio/segmento de outros profissionais
1 (20%)
Última vez que foi tratado
n=5
Entre 1 e 6 meses
1 (20%)
Há menos de 1 ano
4 (80%)
Sem Sintomas (n = 168)
1 (0,6%)
10 (6%)
157 (93,4%)
n = 11
2 (18,2%)
0
0
9 (81,2%)
n=2
1 (50%)
0
0
1 (50%)
n=2
0
2 (100%)
229
Sobre a ocorrência de problemas emocionais entre os familiares dos participantes,
nota-se que a porcentagem de resposta afirmativa é bem maior no grupo com sintomas,
65,1%, contra 41,1% nos sem sintomas com se vê na Tabela 15.
Tabela 15 – Comparação dos dados referentes aos participantes com familiares que fizeram tratamento
para problemas emocionais
Familiares tiveram problemas
emocionais
Não
Sim
Não sei
Com sintomas (n = 146)
Sem Sintomas (n = 168)
47 (32,2%)
95 (65,1%)
4 (2,7%)
92 (54,8%)
69 (41,1%)
7 (4,2%)
Um dado que chama atenção se refere às tentativas de suicídios pelos familiares dos
entrevistados, porcentagens altas em ambos os grupos: 33,9% entre os sem sintomas e 37%
entre os com sintomas, como se vê na Tabela 16. Altas porcentagens também foram
encontradas sobre mortes por suicídio de familiares dos entrevistados, semelhantes nos dois
grupos, em torno de 19%.
Nos dados referentes ao falecimento de parentes próximos nos últimos doze meses,
vê-se que o número de pessoas que mencionaram a vivência de um, ou mais falecimentos, no
período, totaliza 60, o que corresponde a 41% das pessoas com sintomas de depressão
(n=146). Não se observa variação maior entre pessoas sem e com sintomas de depressão, com
relação aos que mencionaram a ocorrência de um falecimento no período (de 31% para
32,9%). No entanto, houve uma variação de 4% do grupo dos sem sintomas (4,2%) para os
com sintomas (8,2%), entre as pessoas que mencionaram a ocorrência de mais de um
falecimento.
Tabela 16 – Comparação referente aos participantes que tiveram familiares que tentaram o suicídio ou de
fato cometeram suicídio, e do falecimento de entes queridos nos últimos 12 meses
Familiares tentaram suicídio
Não
Sim
Não sei
Familiares cometeram suicídio
Não
Sim
Não sei
Falecimento de entes queridos
Sim, um falecimento
Sim, mais de um falecimento
Não
Com sintomas (n = 146)
86 (58,9%)
54 (37%)
6 (4,1%)
Sem Sintomas (n = 168)
108 (64,3%)
57 (33,9%)
3 (1,8%)
113 (77,4%)
27 (18,5%)
6 (4,1%)
131 (78%)
32 (19%)
5 (3%)
48 (32,9%)
12 (8,2%)
86 (58,9%)
52 (31%)
7 (4,2%)
109 (64,9%)
230
Das 146 pessoas com sintomas de depressão, 22 tinham ideações suicidas: “pensavam
em se ferir de alguma maneira ou que seria melhor estarem mortas” (item 9 do instrumento),
seja “vários dias”, “mais da metade dos dias”, ou “quase todos os dias”. Isto corresponde a
uma prevalência de 15% de pessoas cujos sintomas gerais de depressão incluíam ideações
suicidas, contra 75% que apresentavam outros sintomas de depressão, mas não ideações.
Pode-se concluir, também, que na amostra geral de 314 pessoas, a prevalência de sintomas
depressivos, incluindo ideações, foi de 7% (22 pessoas). 4 pessoas não estavam com sintomas
de depressão, mas tinham “isoladamente” ideações suicidas no escore mais baixo, o que
corresponde a uma prevalência geral de 1,2%.
Das 26 pessoas com ideações (com ou sem outros sintomas depressivos), 14 delas
(53,8%) relataram tentativas de suicídio por familiares e 5 (19,2%) relataram óbitos de
familiares por suicídio. Quando comparados com o grupo das pessoas que apresentaram
ideações suicidas, seja com ou sem outros sintomas de depressão, chama a atenção que mais
da metade (53,8%) das pessoas desse grupo afirma ter histórico familiar de tentativas de
suicídio, sendo que, destes, 19,2% disseram ter havido morte por suicídio entre seus
familiares. Experiências de luto no último ano foram afirmadas por 34,6% das pessoas com
ideações (sem outros sintomas) e por 41,2% das pessoas com sintomas de depressão (sem
ideações suicidas).
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Tendo em vista que, dos 314 participantes, 46,4% apresentaram sintomas de depressão
e, entre estes, além desses sintomas, 15,06% apresentaram ideações suicidas, os dados
apontam para alta prevalência de depressão e para possíveis associações a serem investigadas
entre depressão e ideação suicida.
A grande maioria dos participantes com sintomas de depressão eram mulheres, dados
estes condizentes com a literatura (BRASIL, 2006). No entanto, a predominância de mulheres
na amostra geral, requer tratamento estatístico apropriado, ainda em curso. A baixa
escolaridade e renda também predominaram na amostra geral e nos sintomáticos.
Baptista, Baptista e Oliveira (2004) apontam algumas hipóteses psicossociais para
explicar as relações entre sexo/gênero e a depressão. Parece haver maior tendência das
mulheres a internalizar eventos estressantes (PAJER, 1995; BAPTISTA; BAPTISTA;
231
OLIVEIRA, 2004). Em diversas sociedades, os direitos e o status da mulher são inferiores aos
dos homens; elas mulheres são mais vitimizada, por roubos, estupros, assédios, incestos, etc.
Weich, Slogget e Lewis (1998, apud BAPTISTA; BAPISTA; OLIVEIRA, 2004), levantam a
hipótese de que talvez as mulheres tenham mais responsabilidades, como, por exemplo, ter
que participar do sustento da casa, cuidar dos filhos, etc. Algood-Merten et al. (1990, apud
BAPTISTA; BATISTA; OLIVEIRA, 2004) levantam a hipótese da relação entre depressão e
expectativas estéticas, como a busca do “corpo perfeito”. Obeidallah, Mchale e Silbereisen
(1996, apud BAPTISTA; BATISTA; OLIVEIRA; 2004) relacionam a cultura e a educação
machista, que podem contribuir com baixa auto-eficácia associada aos sintomas depressivos
das mulheres.
A maioria das pessoas identificadas pelo presente estudo com sintomas de depressão
apresentou, pelo menos, um episódio relacionado a problemas de saúdes, nos últimos doze
meses. Além disso, grande parte da amostra mencionou ter passado por problemas emocionais
nos últimos doze meses, mencionando diferentes razões para os mesmos, sendo mais citados
os problemas familiares. Das pessoas que têm ou tiveram problemas com uso de álcool e/ou
outras drogas, destaca-se que poucas delas passaram por tratamento, aspecto relevante de ser
investigado em estudos futuros.
Grande parte das pessoas com sintomas de depressão afirmou que familiares já
passaram por tratamento para problemas emocionais. Destacam-se, também, o número de
participantes cujos familiares já tentaram suicídio, e que faleceram por suicídio.
Pretendeu-se com o estudo, contribuir para adensar os dados epidemiológicos sobre
depressão no Brasil, no Estado de Mato Grosso do Sul e no nível municipal, além de produzir
subsídios para ações de cuidado e prevenção pela rede de saúde. Tratamentos estatísticos e
análises de correlação, ainda em realização pelos pesquisadores, possibilitarão resultados
adicionais e complementares aos apresentados.
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integrativos. In: Baptista, M. N. (org.) Suicídio e depressão atualizações. Rio de Janeiro:
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2008.
234
A INSERÇÃO DA MULHER NO MERCADO DE TRABALHO E A FAMÍLIA
Fatima Itsue Watanabe Simões. Professora substituta da FCL-UNESP/Assis e titular da
Universidade Paulista. [email protected]
1-Introdução
No Brasil, 37,3% dos lares têm na mulher a maior referência familiar, em termos de
suporte financeiro. No período de 2000 a 2010 o percentual de famílias chefiadas por
mulheres no país passou de 22,2% para 37,3%. De acordo com os dados do Censo
Demográfico de 2010, divulgado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE),
também aumentou o número de mulheres solteiras com filhos e o percentual de casais sem
filhos.
De acordo com o IBGE, é responsável pela família a pessoa reconhecida como tal
pelos demais membros do lar. Conforme o levantamento, mais da metade dos responsáveis
(56,8%) tinha entre 30 e 54 anos em 2010. Os dados mostram ainda que as mulheres têm
chefiado mais famílias mesmo quando possuem marido. Nesses casos, houve um aumento
percentual de 19,5% para 46,4%, no mesmo período estudado. Sendo assim, o trabalho
feminino passa a garantir, inúmeras vezes, a subsistência das famílias (Lipovetsky, 2000;
Papalia & Olds, 2000; Rocha-Coutinho, 2000; Andrade, Postma e Abraham, 1999).
Para o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), esse aumento se deve a
uma "mudança de valores relativos ao papel da mulher na sociedade e a fatores como o
ingresso maciço no mercado de trabalho e o aumento da escolaridade em nível superior,
combinados com a redução da fecundidade". Segundo Fleck & Wagner (2003, p. 32),
pesquisas têm revelado como este papel assumido pela mulher tem repercutido na dinâmica
familiar, nas questões conjugais, bem como na educação dos filhos (Bertolini, 2001; Garcia,
2001; Preston, Rose, Norcliffe e Holmes, 2000; Arrighi & Maume, 2000).
No século XX, um conjunto de acontecimentos especialmente relacionados ao
processo de urbanização e desenvolvimento das cidades e à entrada das mulheres no mercado
de trabalho levou a mudanças econômicas da sociedade que contribuíram não só para o início
do processo de autonomia e independência financeira da mulher diante do homem como
também acenam para mudanças nos usos, costumes, valores e projetos de família.
235
Por conta dessas alterações o modelo de família baseado na complementariedade de
papéis com o pai provedor e a mãe dona de casa em período integral começa a sofrer rupturas,
sinalizando o início da decadência da versão mais tradicional da família nuclear.
Este trabalho tem por objetivo examinar brevemente a entrada da mulher no mercado de
trabalho e o impacto social que essas mudanças provocaram nas relações familiares. Não é
objetivo deste trabalho abordar as diferentes constituições familiares advindas desse processo.
Apresentar esse recorte histórico não significa reduzir, generalizar ou mesmo
privilegiar um determinado conceito de família em detrimento de qualquer outro, pois, sabese que campo das instituições familiares é assunto fecundo e complexo. A história da família
e do lugar que a criança ocupa no discurso familiar envolve uma ampla rede social e
particularidades regionais e sociais. Este percurso teórico de investigação é apenas uma
maneira possível de considerar as configurações familiares e obter uma compreensão de
determinados aspectos da composição da organização e dos modos de produção das relações
sociais da família resultantes da entrada da mulher no mercado de trabalho.
2-A entrada da mulher no mercado de trabalho
No século XX, um conjunto de acontecimentos especialmente relacionados ao
processo de urbanização e desenvolvimento das cidades e à entrada das mulheres no mercado
de trabalho levou a mudanças econômicas da sociedade que contribuíram não só para o início
do processo de autonomia e independência financeira da mulher diante do homem como
também acenam para mudanças nos usos, costumes, valores e projetos de família.
Por conta dessas alterações o modelo de família baseado na complementariedade de
papéis com o pai provedor e a mãe dona de casa em período integral começa a sofrer rupturas,
sinalizando o início da decadência da versão mais tradicional da família nuclear.
O sistema familiar tradicional, na sociedade ocidental judaico-cristã, sempre foi uma
estrutura a ser preservada e seguida. Tal configuração familiar era pautada por uma clara e
rígida divisão de trabalho com papéis sociais e culturalmente estabelecidos; o pai como o
único provedor e o responsável por desbravar o mundo e a mãe como a única responsável
pelas tarefas domésticas e pelas necessidades da prole. O homem se voltava para o externo,
para o mundo dos negócios, das realizações profissionais, se envolvia com o trabalho
remunerado; enquanto à mulher era reservado o espaço de dentro, do âmbito doméstico, onde
se dedicava aos afazeres domésticos, incluindo a administração da casa e os cuidados com os
filhos, – os quais previam o envolvimento emocional e a vigilância. Provavelmente, era esse o
modo de lidar com a situação do cotidiano e também de se relacionar consigo próprio e com a
236
sua realidade psíquica. Dessa forma, algumas características de personalidade são estimuladas
e identificadas; no homem, por exemplo, a competição e agressividade; na mulher, a
sensibilidade, a capacidade de observação, o cuidado e a afetividade. Essa estrutura de
funcionamento familiar facilitava a transmissão da cultura e a continuidade da espécie.
Algumas mudanças, especialmente na economia, contribuíram para o declínio desse modelo
familiar no final do século XIX e inicio do século XX.
As transformações na economia mundial nos últimos anos, resultaram de processos
como a urbanização, a industrialização e o avanço tecnológico. Como consequência, houve
redução na oferta de empregos e aumento da concorrência no mercado de trabalho. Com isso,
os empregadores tiveram de diversificar seus empreendimentos para garantir sua permanência
no mercado e a mulher pôde ingressar no âmbito profissional. É cada vez mais expressiva a
participação feminina no mercado de trabalho remunerado e em algumas situações chega a ser
o principal suporte financeiro no orçamento familiar.
Isso permite destacar que, além da maternidade, a mulher passa a preocupar-se com a
sua satisfação pessoal e o sucesso de sua carreira profissional buscando, por exemplo, o
aperfeiçoamento por meio de estudos, a fim de garantir sua ascensão no mercado de trabalho.
A entrada da mulher no âmbito do trabalho traz repercussões na organização e na estrutura de
funcionamento familiar, levando à proposição de novas configurações, arranjos familiares
com interferências diretas nas relações sociais.
Mas essa história nem sempre foi assim. Em tempos passados, a sociedade acreditava
que o homem era o único provedor da família e a mulher a mantenedora do lar e da educação
dos filhos. Ela não podia sequer pensar em ganhar dinheiro.
Nos últimos tempos, as mulheres têm conquistado espaço significativo no mercado de
trabalho e começaram a alcançar melhores ocupações e fatias de poder no mundo todo. Hoje
temos um grande número de mulheres que deixaram de ser somente esposas, donas de casa e
mães, e que deixando para trás barreiras seculares, passaram a contribuir para a economia
nacional. Desde as primeiras décadas do século XX, tornou-se visível a presença feminina em
distintos segmentos do mercado de trabalho, especialmente no ramo têxtil, constituindo
maioria majoritária da mão de obra. A participação da mulher no mercado de trabalho deu-se
de forma crescente entre as décadas de 1920 e 1980, acompanhando o processo de
urbanização e industrialização da sociedade brasileira. Esse período é marcado por um grande
contingente de mulheres exercendo ocupações em condições precárias de trabalho, sem
proteção social e com baixa remuneração.
237
No entanto, pesquisadores apontam que mudanças significativas para a conquista pela
mulher de um espaço no mercado de trabalho começaram de fato com as Guerras Mundiais
(1914-1918 e 1939-1945). Os homens iam para as frentes de batalhas e as mulheres assumiam
os negócios da família, ocupando cada vez mais espaço no mercado de trabalho. Ao findar o
conflito, muitos homens que eram chefes de família haviam falecido, e, dos sobreviventes,
muitos ficaram mutilados e impossibilitados de voltar a trabalhar. Foi nesse momento, de
acordo com Araújo (2004) que as mulheres sentiram-se na obrigação de deixarem a casa e os
filhos para levar adiante os projetos e o trabalho que eram realizados pelos seus maridos.
[...] As que ficavam viúvas e eram de uma elite empobrecida, e precisavam se virar para se
sustentar e aos filhos, faziam doces por encomenda, arranjo de flores, bordados e crivos,
davam aulas de piano, etc. Mas além de pouco valorizadas, essas atividades eram mal vistas
pela sociedade. (PROBST, 2003, p. 1).
Por meio de suas produções e de modo informal e muito timidamente, algumas
mulheres ingressaram no mercado de trabalho. O trabalho era importante não apenas como
complemento da renda familiar, mas também, por suas consequências sociais, tais como:
transformações nas expectativas de realização pessoal e profissional, independência
financeira, a alteração nas relações familiares e entre a mãe e os filhos, etc.
No século XIX, com a consolidação do sistema capitalista, ocorreram inúmeras
mudanças na produção e na organização do trabalho feminino. Com o desenvolvimento
tecnológico e o intenso crescimento dos equipamentos industriais, boa parte da mão de obra
feminina foi transferida para as fábricas. A partir de então, algumas leis foram implementadas
para beneficiar as mulheres.
Pela Constituição de 1932, ficou estabelecido que não haveria distinção de sexo
quanto à remuneração; que seria proibido que mulheres grávidas trabalhassem durante o
período de quatro semanas antes do parto e quatro semanas depois e que também seria
proibido despedir mulheres grávidas pelo simples fato de estarem grávidas. Mesmo com essas
conquistas, algumas injustiças e explorações perduraram ao longo de muito tempo como, por
exemplo, as diferenças salariais acentuadas entre homens e mulheres. A justificativa desse
fato era a de que o homem trabalhava para sustentar a mulher e os filhos.
Dessa forma, não era necessário a mulher ganhar o equivalente ao homem.
Atualmente, um dos fatores que têm contribuído para a permanência da mulher no mercado de
trabalho é o de que a mulher tem adiado ou deixado de lado o sonho da maternidade. A
redução do número de filhos pode ser um fator que tem colaborado para facilitar a evolução e
a presença feminina no mercado.
238
De acordo com Fleck & Wagner (2003) e Vanalli & Barham (2008), a maior
participação em atividades remuneradas implicou em mudanças no modo de vida de
mulheres, especialmente no funcionamento da família brasileira, já que as mulheres passaram
a compartilhar as responsabilidades pela manutenção financeira da casa, desencadeando uma
redefinição dos padrões da hierarquia familiar.
Diniz (1999) destaca que trabalhar fora de casa pode contribuir para aumentar a auto
estima e o senso de confiança da
mulher, contribuindo de forma satisfatória para um
desempenho das funções familiares. Por outro lado, as tradições políticas, sociais e culturais
têm dificultado à mulher conciliar os encargos sociais e familiares. A falta de tempo para a
família e as dificuldades em acompanhar o crescimento dos filhos são vistas pela mulher
como perdas.
Dessen & Braz (2000) destacam que, além das mudanças sociais no âmbito
profissional, a migração das pessoas do campo para a cidade ou para outras regiões em busca
de trabalho ou melhores condições de vida tem levado a um distanciamento geográfico dos
familiares, reduzindo a rede de apoio familiar em decorrência do distanciamento físico e
psicológico entre os membros de uma mesma família.
Além disso (Vanalli & Barham, 2008), a disponibilidade de apoio familiar também
baixou em função do envolvimento dos avós no mercado de trabalho, diminuindo a
disponibilidade de cuidado dos netos. Considerando-se também as políticas públicas, no
Brasil a licença maternidade é um direito socialmente constituído, legalmente previsto, em
que há o afastamento temporário e remunerado da mãe para cuidar do recém-nascido. Com o
final da licença, a mãe precisa decidir se retornará ao emprego, se permanecerá em casa
cuidando de seu bebê ou se terá ter de lidar com a difícil tarefa de conciliar a maternidade e o
trabalho. Aquelas que decidem retornar ao trabalho enfrentam diversas preocupações em
relação à manutenção dos cuidados com a criança e à qualidade de seu desempenho
profissional. Um dos grandes desafios que se impõe à mulher, ao optar pelo trabalho
remunerado, é o de ter de lidar com a culpa, pois muitas mulheres, ao priorizar o trabalho
remunerado, sentem que negligenciaram a função materna (Franco, 2001).
Uma outra interferência do ingresso da mulher no mercado de trabalho em sua função
materna diz respeito ao período de amamentação e desmame. Muitas vezes, especialmente nas
áreas urbanas, devido à distância entre a casa e o trabalho e à separação diária prolongada da
mãe de seu filho, as mulheres reduzem o período de amamentação para não correrem o risco
de perder o emprego, transformando o desmame em um período penoso física e
239
psicologicamente, com impactos sobre a relação mãe-filho. (Vanalli & Barham, 2008;
Schirmer, 1997; Rea,Venâncio, Batista, Santos & Greiner, 1997).
Contudo, mesmo com a vivência desses conflitos em decorrência do trabalho, dos
métodos de procriação artificial e dos métodos contraceptivos, do divórcio e da possibilidade
de compor novos relacionamentos amorosos, a mulher conquista o direito de poder escolher
ter ou não filhos e o momento mais adequado de tê-los. Este novo papel assumido pela
mulher tem repercutido na dinâmica familiar, nas questões conjugais, bem como na educação
dos filhos (Bertholini, 2001; Garcia, 2001). Um dos grandes desafios para a mulher envolve o
imperativo de conciliar as funções afetivas, profissionais, familiares, acadêmicas e ainda
continuar cuidando da organização da casa e da educação dos filhos.
Nesse sentido, é possível dizer que na vida conjugal os papéis desempenhados pelo
homem e pela mulher tem-se delineado diferentemente da estrutura familiar tradicional. Há
algum tempo atrás o pai era o único provedor e mãe era aquela que ficava em casa para cuidar
da casa e da criação dos filhos. Hoje o que vem ocorrendo na maioria das famílias brasileiras
de nível sócio-econômico médio é um processo de transição, no qual pais e mães
compartilham as tarefas referentes à família, especialmente o cuidado com os filhos (Wagner,
Predebon, Mosmann & Verza, 2005; Fleck & Wagner, 2003).
Figueira (1987) define esta configuração familiar de “família igualitária”. Nessa
composição mulheres e homens exercendo funções remuneradas no mercado de trabalho
passam a dividir dentro de casa as responsabilidades dos afazeres domésticos e da criação dos
filhos. Mesmo que ainda a parcela maior de responsabilidade sobre a casa e os filhos recaia
sobre a mulher, este é o início de uma tentativa de ambos se responsabilizarem e conciliarem
a vida de trabalho fora de casa e a ocupação doméstica.
Assim o homem é obrigado a se envolver numa relação de proximidade e de
envolvimento afetivo com os filhos e a mulher passa a ter aspirações externas ao âmbito
doméstico. Osório (2002) aponta que os papéis de homens e mulheres já não se vinculam
mais à identidade sexual e sim à condição humana e suas circunstâncias. Por conta disso, o
padrão de relacionamento entre pais e filhos também se modificou. A tendência atual é a de
que se valorize mais o relacionamento baseado na troca afetiva, na preocupação e cuidado em
substituição à imposição de respeito; autoridade e hierarquia e aos princípios vinculados à
moralidade religiosa, ideário patriótico e higienismo médico.
240
Araújo (1993) em sua dissertação, ao investigar as transformações atuais da família no
Brasil, observou que, por volta da década de 1960, o movimento feminista ao defender a
liberdade e a igualdade entre os sexos, combatendo todas as formas de discriminação social e
lutando pela redefinição do papel da mulher na sociedade, foi fundamental para a
transformação e modernização da família. Assim, os ideais de igualdade passaram a substituir
os de autoridade e hierarquia na família:
A reivindicação da igualdade, direito à liberdade sexual, fim do padrão moral da virgindade,
controle da função reprodutiva, fim da autoridade exclusiva do homem dentro da família,
igualdade de direitos políticos e civis, incluindo as mudanças na legislação familiar e
trabalhista, levaram a família gradativamente a se reorganizar em função dos novos padrões.
(ARAÚJO, 1993, p. 50).
Zanetti (2009) destaca que na década de 70, o culto à droga e a chamada revolução
sexual que predominava na cultura da juventude brasileira, especificamente entre os jovens
dos seguimentos médios urbanos, levava-os a assumir uma postura de distanciamento em
relação a qualquer reflexão crítica e ou participação política. Havia uma busca por
experiências novas envolvendo o sexo e novas formas de relacionamento afetivo-sexual. Vale
relembrar que o período dos anos 70 foi marcado pela censura, repressão, tortura de presos
políticos e pelos investimentos governamentais para recuperar o crescimento da economia
brasileira, fatores esses que certamente dificultavam o senso crítico e o ativismo político e
cultural.
Sendo a família alvo de questionamentos por conta de sua atuação autoritária e
repressora, Araújo (1993) em sua análise assevera que estes fatores colaboram para que a
família revisse seu modo de operar.
Com a intervenção do governo na economia brasileira, houve uma melhoria na
qualidade de vida da população refletindo num aumento do poder aquisitivo das famílias e,
como consequência, ocorreram inovações e reformulações das concepções e valores
referentes ao casamento e à vida em comum. Sobre esse assunto, Russo (2002), esclarece que,
com a ascensão social, é inevitável que ocorra o distanciamento do indivíduo do seu universo
de origem ou da família, assim como o contato com valores, usos e costumes, não apenas
diferentes, mas mais modernos e cosmopolitas. Esses fatores, segundo o autor, levam a
sociedade a questionar os modelos de família, os papéis masculinos e femininos e a própria
organização familiar.
O conceito de família tem evoluído com o tempo e sofrido transformações
significativas nesse período, não só em relação às funções enquanto sistema, mas também em
241
relação às tarefas desempenhadas por cada membro do grupo. Nos dias atuais um número
cada vez maior de mulheres trabalha fora de casa e contribui para o sustento familiar. Hoje a
identidade da mulher não está mais diretamente associada à maternidade, ao casamento e à
procriação. A mulher vem conquistando novos espaços, assumindo novos papéis e funções,
sendo inegável a ascensão da mulher no mercado de trabalho e na vida intelectual.
3-Discussão
As convenções sociais do início do século passado estabeleciam que as mulheres eram
as mantenedoras do lar e responsáveis pela educação e criação dos filhos e o homem, o
provedor. Desde então, o papel da mulher sofreu grandes transformações e, hoje, no início do
século XXI, as mulheres ocupam postos no topo das grandes empresas, comandam tropas e
governam países.
Foi dito anteriormente que as mudanças advindas das Guerras Mundiais contribuíram
para mudanças significativas no âmbito do trabalho e nas relações sociais. Esses
acontecimentos históricos contribuíram para a entrada da mulher no mercado de trabalho e
para mudanças nos papéis femininos e na relação familiares. Especialmente, com o fim da 2ª
Guerra Mundial, houve o processo de expansão e os meios de comunicação desempenharam
um papel fundamental, especialmente no que diz respeito as mudanças de comportamentos.
Sob as influências da televisão, das telecomunicações e da imprensa falada e escrita, o padrão
de comportamento sexual das famílias começa a mudar. O modelo familiar embasado no pai
provedor e chefe de família e na mulher dona de casa e a rainha do lar começa a ruir.
Schlickmann (2012), diz que foi nesta época que o feminismo atuou com firmeza nas
novas definições sociais e políticas do papel da mulher, trazendo os métodos contraceptivos
hormonais, concedendo-lhes uma nova possibilidade de ter controle do seu próprio corpo. O
feminismo lutava pelas conquistas de espaço igual para homens e mulheres, como, por
exemplo, nas universidades e em “profissões de elite”, de forma a poder contribuir com o
desenvolvimento do país. Foi nesse contexto que se deu a entrada da mulher de classe média
no mercado de trabalho. Mesmo assim, era patente a preocupação quanto ao direcionamento
dessas mulheres no mercado de trabalho: dever-se-ia cuidar para que executassem funções
que não concorressem com a sua feminilidade, que não oferecessem risco de ameaçar a
autoridade masculina no lar ou qualquer outra relação de poder na sociedade em geral. Para
que a mulher de classe média pudesse sair de casa, era necessário que outra pessoa exercesse
seu papel no lar; daí a entrada da empregada doméstica para cuidar dos filhos, da casa e da
família, uma vez que, nessa época, segundo Rago (1997, p. 207), a casa era valorizada como
242
se fosse o “ninho sagrado” a mulher, como “a rainha do lar” e o filho, era tratado como “o
reizinho da família”.
Assim, lentamente houve uma nova redefinição do papel da mulher e da mãe na
sociedade. Atualmente a inserção da mulher no mercado de trabalho já é fato consolidado,
sendo possível ter satisfação para além da maternidade. Essa possibilidade de opções deixa
marcas indeléveis na sociedade, uma vez que a maioria das mulheres contemporâneas pode
escolher entre casar ou não, com o avanço da medicina e dos métodos contraceptivos, pode
escolher o momento de conceber filhos ou optar por não tê-los, pode viver sua sexualidade
fora do casamento e inclusive criar seus filhos sozinha, sem que isso signifique exclusão
social. Essa abertura da sociedade para a questão da maternidade e as possibilidades de
escolhas conquistadas pela mulher traz em seu bojo questionamentos acerca do que é ser mãe
e sobre a maternidade, como conciliar a vida laborativa, o exercício da função materna, a
relação mãe-filho e as relações familiares.
Faria e Barham (2004) destacam que as pessoas que trabalham fora de casa permitem
que as demandas profissionais (horas extras, reuniões, viagens profissionais) interfiram na sua
vida familiar com frequência maior do que permitem que demandas familiares (doenças de
um filho, reuniões escolares) interfiram no seu desempenho profissional. Assim, o bem estar
da família, bem como os cuidados com o filho, pode estar mais em risco do que a qualidade
do desempenho profissional. Isso pode criar sentimento de culpa entre as mulheres que
prosseguem em suas carreiras enquanto seus filhos são pequenos (Cooper & Lewis, 2000).
Desse modo, ao resolver exercer a profissão, a mulher sente-se “dividida”, pois tem de
optar por trabalhar fora e não poder cuidar do filho integralmente. Muitas mulheres, ao
priorizarem o trabalho remunerado, angustiam-se por considerarem que estão deixando de ser
boas mães. Entende-se que muitas delas continuam sendo “regidas” pelo estereótipo de que a
mulher realmente deve ser a principal responsável pela prole e pelos cuidados domésticos.
Kolbenschlag (2001) identifica esse conflito na experiência da mulher atual, que tenta
conciliar estes papéis, e assevera:
Uma carreira satisfatória e o compromisso com um projeto profissional constituem realmente
a melhor preparação para a maternidade. Um alto nível de interesse e de envolvimento em
algum tipo de trabalho é, muitas vezes, o melhor prognóstico de alegria e sucesso no papel
materno. (KOLBENSCHLAG, 2001, p. 124).
Dessa forma, segundo Faria (2011, p. 4) é possível considerar que a maternidade está
vinculada à essência feminina, misturando-se muitas vezes fertilidade com o ser mulher; o
que faz com que muitas mulheres procurem encontrar-se e preencher-se através da
243
maternidade, tornando-se difícil mensurar se o verdadeira desejo de ser mãe encontra-se em
forças biológicas, sociais ou psicológicas.
Ao final destas proposições acerca da trajetória da mulher no mercado de trabalho, é
possível que as reflexões sejam enriquecidas com as contribuições de Badinter (2003), que
destaca ser o instinto materno um mito; o amor materno e o sentido que se atribui à
maternidade é um valor socialmente construído como qualquer outro sentimento. Da mesma
forma que a figura idealizada de boa mãe é também uma construção simbólica da
maternidade. Essa autora esclarece que a maternidade é uma capacidade e não um instinto e,
por conta disso, pode não estar inscrito em sua natureza que a mãe tenha de sacrificar a sua
vida, seus ideais e o trabalho pelo filho. Essa expectativa quanto aos papéis desempenhados
pela mulher deve-se muito mais aos interesses da sociedade e do Estado, do que propriamente
a uma questão de essência feminina, uma vez que a maternidade e a função feminina nem
sempre foram pensadas e valorizadas desse modo. Até o século XVIII a maternidade tinha
uma conotação diferente da que temos hoje.
Ao conscientizar-se a mulher quanto a esses valores sociais, talvez seja possível à
mulher viver a maternidade e desempenhar seu trabalho com mais tranquilidade, menos
sofrimento e culpas.
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246
PSICODIAGNÓSTICO INTERVENTIVO E A HISTÓRIA NA HISTÓRIA DO SER
HUMANO.
Fatima Itsue Watanabe Simões. Professora substituta da FCL-UNESP/Assis e titular da
Universidade Paulista. [email protected]
Introdução:
Este trabalho constitui-se do relato de experiência de estágio supervisionado de
Psicodiagnóstico, desenvolvido em clínicas–escola de Universidade. O objetivo principal é o
de refletir sobre o livro de histórias, instrumento que utilizamos no psicodiagnóstico infantil
interventivo segundo a abordagem fenomenológica. Entendemos o psicodiagnóstico de uma
perspectiva interventiva, integrando aspectos avaliativos e terapêuticos, de tal forma que as
devolutivas parciais ocorrem ao longo do processo. O encerramento do psicodiagnóstico pode
dar-se de diferentes maneiras. Uma delas é a devolução diagnóstica à criança por meio da
elaboração de um livro de história infantil. Não se trata de qualquer história, mas daquela
história (SINATTOLLI, 2008) que o cliente realmente necessite escutar para integrar o que
foi tocado durante todo o processo e que, ao mesmo tempo, possa fazer sentido a ele ou ajudar
a ressignificar determinados conteúdos. O enredo da história tem como pano de fundo a
própria história do cliente, seus medos, conflitos, dificuldades e até mesmo os conteúdos
suscitados no decorrer do psicodiagnóstico. Normalmente a história relatada no livro diz
respeito a um personagem, não necessariamente a própria criança, mas alguém com quem ela
possa identificar-se. O livro é lido e entregue à criança no último dia de atendimento. O
propósito é o de que ela possa levar consigo algo que a ajude a gradativamente se apropriar
das analogias e compreender o motivo pelo qual foi levada à clínica e, assim, elaborar a sua
problemática na medida de suas possibilidades egóicas. Pretende-se também que, mesmo após
o encerramento do processo, ela possa continuar elaborando os conteúdos que, porventura,
não puderam ser compreendidos até aquele momento. A confecção do livro de história é uma
metáfora que expressa a síntese do processo psicodiagnóstico. Tem por objetivo principal
possibilitar à criança o entendimento de seu sintoma e a percepção de sentimentos por ele
suscitados, contextualizando-o no enredo de sua história pessoal e familiar e considerando o
momento evolutivo da criança e seus recursos para lidar com as situações apresentadas.
Diversas são as reações das crianças ao serem apresentadas aos livros: prontamente se
identificam com os personagens, manifestam interesse e disponibilidade para interagir e
247
participar da narrativa da história contada e sentem desejo de partilhar com pais, colegas e
professores. Sendo assim, pelo fato da criança se identificar com os personagens e a história
apresentada, a devolutiva em forma de história tem-se mostrado uma possibilidade lúdica, que
pode auxiliar a criança no trabalho de elaboração psíquica dos conteúdos despertados no
processo terapêutico, contribuindo para o conhecimento e fortalecimento de si mesma.
O processo de psicodiagnóstico
De acordo com Cunha (2000, p. 26), Psicodiagnóstico é um processo científico,
limitado no tempo, que utiliza técnicas e testes psicológicos (input), em nível individual ou
não, seja para entender problemas à luz de pressupostos teóricos, identificar e avaliar aspectos
específicos, seja para classificar o caso e prever seu curso possível, comunicando os
resultados (output), após a seleção e integração dos dados, na base dos quais são propostas
soluções, se for o caso. Segundo a referida autora, essa prática é considerada um processo
científico, pois parte de levantamento prévio de perguntas ou hipóteses iniciais que serão
confirmadas ou não através de um plano de avaliação com passos predeterminados e com
objetivos precisos. Todos os dados obtidos devem ser inter-relacionados com a história
pessoal, clínica ou com outros dados que norteiam o psicodiagnóstico.
Araújo (2007) destaca que, no Brasil, o modelo de psicodiagnóstico desenvolvido por
Ocampo et al. (2001) e Arzeno (1995) tem norteado e trabalho de grande parte dos
profissionais da área. Refere a autora que Ocampo et al. (2001) e Arzeno (1995)
sistematizaram o procedimento do psicodiagnóstico dentro do referencial psicanalítico. Este
método de trabalho enfatiza a importância da entrevista clínica, a relação transferencial que se
estabelece entre os envolvidos no processo e a entrevista de devolução de informação ao final
do processo.
Ocampo et al. (2001) propõem em seu método de trabalho que a investigação
psicológica deve conseguir uma descrição e compreensão da personalidade do paciente a fim
de explicar a dinâmica total do caso, a partir dos dados apresentados no material recolhido, e
integrá-la num quadro global incluindo seus aspectos patológicos e adaptativos, sempre com o
objetivo de formular recomendações terapêuticas adequadas.
Dentro dessa abordagem, o processo psicodiagnóstico se configura como uma situação
bipessoal de duração limitada, cujo objetivo é conseguir uma descrição e compreensão, o mais
profunda e completa possível, da personalidade do paciente ou do grupo familiar. Além disso,
investiga aspectos segundo a sintomatologia e as características de indicação abrangendo os
248
aspectos passados, presentes e futuros desta personalidade a partir da utilização de técnicas
específicas como as entrevistas e os testes psicológicos, técnicas projetivas, entrevista de
devolução, etc.
Ocampo et al. (2001, p. 12) defendem que processo psicodiagnóstico envolve quatro
etapas: A primeira seria constituída pelo contato inicial e a primeira entrevista com o
paciente; a segunda compreende o momento de aplicação de testes e técnicas projetivas; a
terceira constitui-se do encerramento do processo que compreende a devolução oral ao
paciente (e/ou aos pais); e a quarta etapa consiste na elaboração do informe escrito para o
solicitante.
Essas autoras (Ocampo et al. 2001, p. 13) postulam a necessidade de utilizar um
enquadramento ao longo do processo, a fim de se manterem constantes certas variáveis que
podem interferir no processo, tais como:
 Esclarecimento dos papéis respectivos e o estabelecimento da natureza e o limite da
função que cada integrante do contrato desempenha. Este esclarecimento é importante
para que tanto o psicólogo quanto o cliente tenham seus papéis definidos durante o
processo;
 Local onde serão realizadas as entrevistas;
 Horário e duração do processo, tomando cuidado para não estabelecer uma duração
muito curta nem muito longa;
 Honorários, caso se trate de uma consulta particular ou de uma instituição privada;
Ressaltam as autoras que o estabelecimento do enquadre depende especialmente das
características dos pacientes e dos pais/responsáveis.
Esse enquadramento é necessário para o desenvolvimento do processo, porém é
recomendável que o psicólogo possa manter uma atitude aberta e permeável tanto para as
necessidades do paciente, quanto para as suas próprias necessidades, mantendo condições
sustentáveis de trabalho e, dessa forma, evitar o prolongamento/encurtamento excessivo do
processo, a falta de limites ou a imposição de limites muito rígidos ou o delineamento confuso
de sua tarefa e que pode acarretar prejuízo para o processo e especialmente para o
cliente/paciente. A plasticidade (Ocampo et al., 2001, p. 13) aparece como uma condição
valiosa para o psicólogo, favorecendo que este possa se situar diante do caso e manter o
enquadramento apropriado, como também poder discriminar entre uma necessidade real de
modificação do enquadramento e uma ruptura com este.
249
Arzeno (1995) descreve essas etapas em sete passos. O primeiro passo inclui desde o
momento em que há a solicitação da consulta pelo cliente até o primeiro encontro pessoal com
o profissional. Nessa etapa, é importante observar como o cliente e/ou grupo familiar
estabelecem o contato inicial com o profissional, quais as primeiras impressões etc. O
segundo passo envolve a realização das primeiras entrevistas, quando se busca identificar o
motivo latente e manifesto da consulta, as ansiedades e defesas que o paciente, pais e/ou
família apresentam, as expectativas e fantasias de doença e de cura que trazem, o
entendimento que cada um tem da situação e a construção da história de vida do paciente e do
grupo familiar. É importante observar, segundo Araújo (2007), como o paciente se coloca, o
que é priorizado no relato, que tipo de relação estabelece com o psicólogo (e entre si, no caso
do casal e/ou família), para identificar os aspectos transferenciais e contratransferenciais, bem
como as resistências e a capacidade de elaboração e mudança. O terceiro passo é o momento
dedicado à reflexão sobre o material colhido e análise das hipóteses iniciais, para
planejamento dos passos seguintes e escolha dos instrumentos diagnósticos a serem
utilizados. O quarto passo compreende a realização da estratégia diagnóstica planejada –
entrevistas e aplicação dos testes e técnicas selecionadas, de acordo com o caso. Em geral,
age-se conforme o planejado, mas, se houver necessidade, pode-se introduzir modificações
durante o processo. Por isso, segundo a autora, não se recomenda a utilização de um modelo
rígido de psicodiagnóstico. É a experiência clínica e a capacidade de análise profissional que
nortearão o desenvolvimento do processo. O quinto passo é o momento da análise e
integração dos dados levantados. É o estudo conjunto (Araújo, 2007) do material apreendido
nas entrevistas, nos testes e na história clínica, que possibilitará uma compreensão global do
caso. Essa fase exige do profissional domínio teórico-metodológico e grande capacidade
analítica a fim de identificar as recorrências e convergências entre os dados, assim como os
aspectos mais relevantes dentro do material, que possibilitam uma compreensão ampla da
personalidade do indivíduo e/ou da dinâmica familiar e do casal. O sexto passo é o momento
da entrevista de devolução da informação, que pode ser feita em uma ou mais entrevistas.
Geralmente, realiza-se a entrevista de forma separada: uma com a pessoa que foi trazida como
protagonista principal da consulta, e outra com os pais e o restante da família. É um momento
repleto de ansiedade por parte do paciente, da família e muitas vezes do psicólogo também.
Pode ocorrer, durante a entrevista devolutiva, que surjam novos elementos, os quais ajudam a
validar as conclusões ou esclarecer os pontos obscuros. O último passo consiste na elaboração
do laudo psicológico com as conclusões diagnósticas e prognósticas, incluindo as
recomendações, orientações, encaminhamentos e indicações terapêuticas pertinentes ao caso.
250
O psicodiagnóstico de tipo compreensivo foi desenvolvido por Trinca (2003, p. 15) em
decorrência da necessidade de um modelo de trabalho que abarcasse a multiplicidade de
fatores em jogo no estudo do caso. Tem por objetivo a busca da compreensão do sentido para
o conjunto de informações obtidas, tomando em consideração aquilo que é relevante e
significativo na personalidade, os aspectos das dinâmicas psíquicas, os aspectos
intrafamiliares e socioculturais. Segundo o autor é necessário entrar empaticamente em
contato emocional e conhecer os motivos profundos da vida emocional do cliente para se
alcançar uma visão totalizadora e integradora da personalidade do indivíduo. Para alcançar
esse objetivo, utilizam-se referenciais múltiplos para evitar a unilateralidade que se encontra
nos demais processos (Trinca, 2003).
Na década de 70 do século passado, Constance Fisher, nos Estados Unidos e na década
seguinte, Marília Ancona-Lopez, no Brasil, foram as precursoras na introdução do
Psicodiagnóstico Interventivo. Segundo a autora, como o próprio nome indica, o método
rompe com o modelo proposto por Ocampo et al. (2001) e Arzeno (1995), fazendo do
atendimento um processo ativo e cooperativo. O que fundamentalmente o caracteriza é a
possibilidade de intervenção (Donatelli, 2013, p. 46).
Segundo Donatelli (2013),
as intervenções no Psicodiagnóstico Interventivo se caracterizam por propostas
devolutivas ao longo do processo, acerca do mundo interno do cliente. São
assinalamentos, pontuações, clarificações, que permitem ao cliente buscar novos
significados para suas experiências, apropriar-se de algo de si mesmo e ressignificar
suas experiências anteriores (DONATELLI, p.46).
Nesse modelo de atendimento, acredita-se no compartilhar de experiências e
percepções a fim de construir-se uma nova compreensão, um novo sentido que possibilite ao
psicólogo compartilhar com o cliente suas impressões (Donatelli, 2013), sempre com o
objetivo de diminuir ou eliminar o sofrimento psíquico da criança. Pressupõe-se que a família
esteja envolvida no problema, conforme atesta Yehia (1995):
Mesmo sendo a criança a precisar de atendimento psicológico, são os pais que arcam
com muitos dos custos do atendimento infantil: o tempo para levar e buscar a
criança, o pagamento das sessões (quando essas são gratuitas, o pagamento das
conduções) e os possíveis efeitos transformadores do atendimento infantil na
dinâmica da família. Desta forma, sem informações, sem apoio e motivação para
este atendimento, fica difícil esperar que os pais estejam dispostos a leva-lo adiante
(Yehia, 1995, p. 118).
251
A família está sempre de alguma forma, implicada na dinâmica das dificuldades
atribuídas à criança no momento da queixa e, por conta disso, deve ter participação ativa
(Donatelli, 2013) e colaborativa no referido processo.
A esse respeito Yehia (1995) comenta:
A situação do psicodiagnóstico torna-se então uma situação de cooperação, em que a
capacidade de ambas as partes observarem, apreenderem, compreenderem, constitui
a base indispensável para o trabalho (Yehia, 1995, p. 120).
Nessa perspectiva o psicodiagnóstico é considerado um processo no qual o psicólogo,
os pais e a criança têm participação ativa e conjunta no diagnóstico, pois
atribui-se grande valor às informações trazidas pelos pais, à forma de compreensão
do problema do filho, às explicações prévias, às fantasias e expectativas construídas
antes e no momento da procura do psicólogo [...] não há uma relação verticalizada,
pois o psicólogo não se põe no lugar de quem “detém o saber”; ao contrário, dialoga
com os clientes no sentido de construírem, juntos, possíveis modos de compreensão
acerca do que está acontecendo com a criança (Donatelli, 2013, p. 47-8).
Nesse método de trabalho a identificação das experiências e vivências do cliente são
valorizadas de modo que as referências técnicas e os conceitos teóricos não são os únicos
instrumentos pelos quais o psicólogo pode se guiar. De acordo com Ancona-Lopez (1995), o
psicólogo juntamente com o cliente busca desconstruir a situação apresentada para encontrar
o seu significado principal, exigindo que o profissional se envolva, mergulhe no mundo do
cliente, compartilhe seus códigos e impressões, enfim, que o psicólogo se reconheça nesse
outro para que haja uma possível re-significação que possibilite mudanças no modo de estar
consigo e com o outro (Ancona-Lopez, 1995, p. 49).
O psicodiagnóstico interventivo evita obter um diagnóstico do cliente quanto às
patologias, a partir das definições de personalidade ou nível mental do indivíduo.
Donatellli (2013, p. 50) coloca que este é um modelo de atendimento descritivo na
medida em que faz um recorte na vida da pessoa, em dado momento e em determinado
espaço, focalizando seu modo de estar no mundo, com os significados nele implícitos.
Segundo a autora essa modalidade de atendimento pode ser realizada individualmente ou em
instituições e as etapas do processo constituem-se em: entrevista inicial, história de vida da
criança, contato inicial com a criança, sessões devolutivas com os pais/responsáveis,
encontros com a criança, visita domiciliar e visita escolar, elaboração de laudos e relatórios e
a devolutiva final para a criança.
252
O encerramento do processo para a criança pode-se dar de diversas formas. Uma delas
(Donatelli, 2013) pode ser a confecção de um livro cuja história é a própria história da criança
(Donatelli, 2013). Esse procedimento baseia-se nas propostas de Constance Fisher (1998),
desenvolvidas no Brasil por Becker (2001, 2002), Donatelli (2001, 2002), Donatelli e
Santiago (2001), Santiago (2001, 2002) e Santiago e col. (2003 e 2004).
O enredo do livro deve conter a história de vida da criança, seus conflitos e os
aspectos trabalhados durante o desenvolvimento dos atendimentos de psicodiagnóstico. O
livro é lido e entregue a criança no dia de sua devolutiva. Tem por objetivo principal que a
criança continue elaborando aspectos que, por alguns motivos, não lhe foi possível elaborar
até aquele momento. Santiago (2001, p. 34) esclarece alguns aspectos do livro história, como
se segue.
No livro de história trabalhamos basicamente com analogias, o que permite
à criança uma compreensão de sua problemática na medida de suas possibilidades
egóicas. Neste sentido, o livro relata a história de um personagem com o qual a
criança possa se identificar mas ao contrário de suas produções não necessariamente
terá de relacioná-lo consigo mesma. Supomos que o trabalho de elaboração psíquica
pode ocorrer após o encerramento do psicodiagnóstico, visto que o livro é entregue a
ela no final do processo, e seu texto ou gravuras podem servir de estímulo para que
gradativamente se aproprie das analogias (Santiago, 2001, p. 34).
Sobre a utilização do livro de história como procedimento devolutivo no
psicodiagnóstico infantil
O ato de contar histórias é uma tradição milenar e está presente nas diversas culturas e
em nosso cotidiano sob as mais diferentes formas, quer seja pelas canções de ninar para
acalmar, tranquilizar os bebês e fazê-los dormir; quer seja nos hospitais para acalentar os
pacientes ali internados.
De acordo com Hisada (1998), o ser humano tem a capacidade de transmitir uma
experiência emocional por meio de um canal plástico, como, por exemplo, a poesia, a música,
o teatro e as histórias enfim, pelas manifestações da cultura.
Podemos considerar que se relataram as primeiras histórias sobre o uso de histórias no
encerramento do psicodiagnóstico com crianças em um Encontro de Clínicas-Escolas
mediante intervenção de Becker (1999).
253
Autores como Safra (1984), Fischer (1989, 1994), Donatelli (2001) e Hisada (1998)
demonstraram em seus estudos a eficácia da devolutiva com histórias enquanto instrumento
terapêutico.
Safra (1984) esclarece que as:
... histórias infantis, por falarem ao cliente através de personagens existentes no
campo da imaginação, recriam o fenômeno da ilusão que o cliente pode usar como
fonte de informações para uma maior autoconsciência da realidade psíquica,
podendo em seguida utilizar essas informações para representação de suas angústias
que até então não encontraram expressão em um código linguístico. (Safra, 1984,
p.84).
O mesmo autor destaca que, ao se construírem as histórias é recomendável que os
personagens sejam escolhidos de acordo com o grau de afinidade que eles possuam com o
paciente uma vez que esses personagens são representantes de condensações e identificações
do psiquismo da criança. Possibilita-se dessa forma, que a criança tenha percepção acerca de
seu sintoma e a expressão dos sentimentos a ele associados e que também encontre um
sentido para o seu mundo de relações, ressignificando as suas experiências e desenvolvendo
recursos para lidar com as dificuldades apresentadas.
De acordo com Becker, Donatelli & Santiago (2004) a elaboração do livro de histórias
para a devolutiva supõe alguns elementos norteadores:

O livro de histórias é uma metáfora que expressa a compreensão do
psicodiagnóstico. É uma síntese que contempla a história vital da criança e
suas vivências durante o psicodiagnóstico, suas dificuldades e recursos
internos, em uma linguagem acessível à sua compreensão.
 A história e os personagens devem ser escolhidos em função das afinidades e
analogias com os conteúdos evidenciados no psicodiagnóstico. Por exemplo,
pulgas e macaquinhos como personagens para crianças com condutas
hiperativas, pássaros e peixes como personagens para famílias migrantes.
Deve-se dar especial atenção ao emprego de personagens que têm,
culturalmente, sentidos conotativos. No Brasil, veados, burros, urubus e gatos
pretos podem ligar-se a sentidos pejorativos.
 Quanto ao conteúdo formal é fundamental que o livro de história traduza:
 a história de vida (familiar e da criança);
254
 o sintoma;
 a busca de atendimento e a relação com o psicólogo;
 a explicitação dos sentimentos do personagem de identificação;
 a integração dos diferentes aspectos observados através da hora de jogo,
testes, visitas, etc.
 O final da história ainda é um tema controverso, entretanto, é muito importante
que a criança tenha a oportunidade de expressar sua própria solução final
quanto ao encaminhamento dado.
O procedimento do livro de história pode ser um elemento facilitador (Sinattolli, 2008,
p.39) no processo psicoterapêutico por oferecer continência, por facilitar o desempenho da
função de espelho, função psíquica de estruturação do psiquismo, e por ajudar o paciente a
reconhecer o material pertencente ao próprio self.
Essas questões serão apresentadas a partir de um relato de experiência de um
atendimento psicodiagnóstico interventivo infantil, realizado no Centro de Psicologia
Aplicada, da Universidade Paulista, Campus de Assis.
O nome aqui utilizado será fictício para que possamos preservar a identidade do
cliente.
Trata-se de Laura, uma criança de 7anos. Os pais de Laura são casados e, além dela,
têm um filho, fruto do relacionamento anterior de um dos cônjuges.
Os pais procuraram por atendimento porque Laura tem apresentado uma grande
dificuldade em ficar sozinha em qualquer ambiente, até mesmo em sua casa. Além disso, ela
está com dificuldades de adaptação escolar e, quando volta da escola, sua mãe tem de chegar
antes dela, caso contrário Laura entra em desespero. Desde que nasceu, dorme na cama com a
mãe enquanto o pai dorme em seu quarto. Tem dificuldade na fala, trocando letras, e
dificuldade na leitura.
Durante o processo de Psicodiagnóstico, realizaram-se 16 encontros alternados entre a
criança e seus pais. Contou-se com a participação deles em todos os encontros e também nas
16 grandes-rodas (rodas de reflexões e dinâmicas feitas em grupos) realizadas com as crianças
e os pais atendidos no psicodiagnóstico.
255
Além dos encontros terapêuticos, utilizaram-se como ferramentas de investigação: a
anamnese, atividades lúdicas, visita domiciliar, visita escolar, entrevista familiar diagnóstica e
entrevista devolutiva com os pais e o procedimento da devolutiva com história para a Laura.
Desde o primeiro encontro que tivemos com os pais, notaram-se diversos conflitos entre o
casal, desde brigas e ameaças, na sua maioria presenciadas pela criança.
O medo de Laura de ficar sozinha em casa e em outros lugares está fortemente
relacionado com a instabilidade familiar e o medo dos pais separarem-se e a deixarem
sozinha.
Durante os contatos com a mãe de Laura, esta demonstrou ser uma pessoa muito
exigente e insegura, afirmando ser ciumenta e rígida. Em contrapartida, o pai de Laura
mostra-se permissivo com a filha, fazendo todas as suas vontades, contribuindo para que a
criança se perceba como o centro das atenções. Assim, Laura demonstrou por diversas vezes
no setting terapêutico uma exigência grande consigo mesma, preocupando-se com não se
sujar e obedecer fielmente todas as regras, com patente insegurança emocional. Laura não
aceita ser colocada em segundo plano tanto em casa quanto na escola, não aceita perder em
jogos e apresenta propensão para manipular regras que a favoreçam. Sua dificuldade na fala e
na leitura demonstra ser de fundo emocional, pois apresenta um desenvolvimento cognitivo e
intelectual correspondente a sua idade cronológica, segundo consultas realizadas com
especialistas da área.
Percebemos que, no processo de leitura, Laura tem dificuldade de juntar as silabas
para ler, substituindo o que está escrito pela fantasia. Sendo assim, através desse
comportamento, ela substitui também a realidade que vivencia em seu lar.
A dificuldade de Laura em ter seu espaço, como dormir em seu próprio quarto, vai
além de sua vontade, pois a criança percebe que é responsável por manter a família “unida”.
Tem medo de que, desocupando este espaço, possa vir a ser abandonada pela mãe. Por não
estar mais presente ao lado deles, teme que seus pais possam vir a se separar, fragmentando-se
a sua família.
Através do trabalho clínico pudemos perceber que Laura é uma criança saudável,
inteligente e dinâmica, e que os conflitos que traz consigo são reflexos da sua vida familiar.
Essas questões serão solucionadas com a reflexão e ressignificação da própria família e do
espaço a ela destinado na dinâmica familiar. Ao final do processo psicodiagnóstico,
sugerimos psicoterapia ao casal e deixamos como sugestão que a criança pratique esportes e
que se dê continuidade a seu tratamento com o fonoaudiólogo e, caso necessário, que haja a
intervenção de um profissional da área de pedagogia.
256
A devolutiva com Laura foi realizada com uso de material lúdico, o livro-história. O
livro infantil contava a história de uma cachorrinha que tinha medo e que não queria ser
deixada na escola.
O objetivo inicial era o de que Laura se reconhecesse na história, o que aconteceu de
imediato. Ela não apenas se reconheceu como, ao final da sessão, deu sua resposta, deixando
claro que entendeu a mensagem contida no livro. Pediu para brincar de casinha e, enquanto o
fazia, disse que estava montando sua casa, colocando cada personagem nos lugares em que
cada membro da família deveria agora dormir. Ao fim do psicodiagnóstico interventivo se
mostrou mais fortalecida e pronta para viver novas experiências em sua vida, como dormir em
sua cama e ter seu espaço. Dessa forma, foi possível perceber a identificação da criança com a
história contada e a compreensão acerca de sua problemática durante o processo
psicodiagnóstico.
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258
O ESTADO MENTAL NO TEMPO
TEMPORALIDADE FRENTE AO DEVIR
DA
ADOLESCÊNCIA
E
SUA
Universidade Estadual de Londrina
Rosemarie Elizabeth Schimidt Almeida¹
Alexia Rodrigues Ruiz²
Gheovana Carla Brites²
RESUMO
A concepção da temporalidade do adolescente é ativa numa lógica binária, do tudo ou nada,
de dois extremos e surge como um desdobramento do seu estado mental. Essa concepção
entra em conflito com a concepção temporal dos pais e da sociedade, o que pode causar a
impossibilidade de o adolescente viver a sua própria temporalidade. A temporalidade
adolescente pode nunca ascender a um terceiro termo, existente entre o agora ou nunca, e
quando o adolescente reconhece esse terceiro tempo ele pode se permitir escolher entre viver
o futuro ou o não viver. Tais questões podem ser confirmadas à medida que as atividades
propostas no grupo de adolescentes - com foco em Orientação Vocacional e Profissional e
realizadas na Clínica Psicológica da Universidade Estadual de Londrina/PR - ampliam as suas
concepções de temporalidade. Esta questão deve ser tratada como ponto fundamental nas
intervenções que acontecem em atendimento às questões dos adolescentes, haja vista que, na
sociedade capitalista, a importância da identidade profissional é confundida com a identidade
pessoal. O paradoxo se confirma à medida que, para o profissional de Psicologia, algum tipo
de transtorno na escolha de uma ocupação é parte de um aspecto somente da identidade do
sujeito em constituição, ou melhor, reconstituição, na fase da adolescência: a criação de uma
temporalidade que pode pensar o futuro, o vir a ser.
Palavras-chave: adolescência; temporalidade; orientação vocacional; escolha profissional
¹ Professora Dr. Docente do Departamento de Psicologia e Psicanálise – UEL/PR
² Acadêmicos Estagiários do Projeto de Atendimento de Orientação Vocacional e Profissional de Adolescentes
na Comunidade de Londrina e Região – UEL/PR
E-mail apresentadora: [email protected]
INTRODUÇÃO
259
O encontro freqüente entre o tema da adolescência e da questão da temporalidade não
é casual. Freqüentemente o adolescente é marcado por encontros vividos intensamente. São
questões acerca da sexualidade, da escolha profissional, das exigências de responsabilidade e
de mudanças psíquicas e fisiológicas que perpassam essa fase do desenvolvimento. Nesse
trabalho abordaremos as possibilidades que os grupos de Orientação Vocacional e
Profissional da Clínica Psicológica da Universidade Estadual de Londrina/PR possuem para
lidar com as questões da temporalidade, dos lutos, angústia e do momento de escolha
profissional vivido nessa fase caracterizada pelas inúmeras transformações – a adolescência.
Especialmente, este trabalho também tem como objetivo orientar adolescentes frente
à problemática da escolha profissional visto ser este um período de intensas transformações e
questionamentos que abrangem a personalidade, haja vista um quantum de afeto e emoções
que podem tornar-se condutas de risco frente ao seu amadurecimento. Dessa maneira, nesse
espaço temporal transicional criado para a reflexão de suas trajetórias, os adolescentes
exploram aspectos da sua própria temporalidade em torno da adolescência e de suas
identidades pessoal e profissional.
Desta forma, o grupo fornece ao adolescente o espaço para a busca de algo análogo do
precursor objeto transicional da infância, no espaço temporal transicional, ofertado pelo grupo
de pares, por meio das atividades operativas e de aprendizagem o adolescente pode viver este
estado mental temporal de transição psicossocial, que ocorre neste período da vida.
ADOLESCÊNCIA E PSICANÁLISE
No campo da psicologia, o reconhecimento da adolescência como fase do
desenvolvimento humano só veio com estudos de Stanley Hall (1925 apud FERREIRA e
FARIAS, 2010) que tematizou e problematizou a adolescência, colocando-o como um período
representado por
emotividade e estresse aumentados, no qual ocorrem expressões
exacerbadas ora de irritação, ora de excitação, alternadas com episódios de depressão ou de
confusão mental.
Na perspectiva psicanalítica alguns autores como Winnicott, Aberastury, Knolbel, Erik
Erikson, e Outeiral abordaram o período da adolescência em diferentes perspectivas.
Winnicott compreendeu a fase da adolescência como mais uma fase do amadurecimento e
desenvolvimento humano. Descreve que a necessidade do adolescente está associada a
questões de sua existência no mundo e à preocupação de sentir-se real, de buscar sua própria
260
identidade e o seu lugar no mundo. O autor ainda retrata que o adolescente, preocupa-se com
o “ser”, com o “estar em algum lugar”, e que essa fase- juntamente com suas mudanças
intensas- não podem ser caracterizadas como doença (WINNICOTT, 1967 apud MORETTO,
2013).
Segundo Winnicott (1982 apud FROTA, 2006), puberdade e adolescência não são a
mesma coisa, mas estão ligadas. A puberdade está relacionada ao amadurecimento biológico e
sexual, enquanto a adolescência constitui-se como um período em que o indivíduo se torna
adulto, isso ocorre através do desenvolvimento emocional. Diante disso, Frota (2006) diz que
é possível passar pela puberdade sem se tornar um adolescente, uma vez que a determinação
do amadurecimento emocional pode não acontecer em efeito. Frota (2006, p. 59) afirma que
“a puberdade pode ser compreendida como uma situação desalojadora, já que introduz o
novo, aquilo que rompe com o que está estabelecido, inclusive com um si-mesmo infantil”,
sendo assim, a puberdade viria como uma situação transformadora, que rompe com a imagem
e identidade da infância.
Diante disso o adolescente deve buscar constituir sua própria identidade, seu si-mesmo.
Winnicott (1994 apud FROTA, 2006) diz que na fase da adolescência o indivíduo revive as
angústias dos estágios precoces, uma vez que nesse momento da vida aparenta introduzir uma
nova subjetividade. No entanto, neste momento, para se introduzir essa nova subjetividade é
necessário já ser, ou seja, “somente quem teve um nascimento psíquico anterior pode, na
adolescência, viver um novo nascimento, uma reinstalação do si-mesmo” (FROTA, 2006, p.
59).Enquanto busca se reinstalar no mundo, o adolescente seria um ser isolado e somente
quando “define sua subjetividade e identidade é que é capaz de manter uma relação
verdadeira consigo, com o mundo e com os outros” (FROTA, 2006, p. 60).
Winnicott (1993) diz que o adolescente vive um sentimento grande de irrealidade e sua luta
principal seria com o sentir-se real. Diz que nessa transição da dependência a independência o
ambiente facilitador é extremamente importante, pois é ele que vai se ajustar “às necessidades
individuais da criança, deixando-a ser o que é” (FROTA, 2006, p. 60). Algumas dificuldades
vividas pelos indivíduos na adolescência partem dos problemas ambientais, dessa forma, um
ambiente facilitador é crucial para o desenvolvimento do ser humano em todas as fases da
vida.
Frota (2006, p. 63) diz que sob a ótica winnicottiana, a adolescência poderia ser
“compreendida como uma reencenação de fases anteriores, embora com peculiaridades
próprias, assim como uma experiência a ser repetida mais no futuro”. Diante disso,a
261
movimentação do crescimento emocional apontaria pra uma integração do ser, para o
amadurecimento dos instintos e a evolução da personalidade (FROTA, 2006, P. 63).
Segundo Arias (1998) à adolescência seria como um processo definido em função da
temporalidade. E, por vezes, em situações de estados mentais críticos e de confusão temporal.
Da mesma forma Aberastury(1986 apud MORETTO, 2013) fala sobre esses estados mentais
e de confusão vividas na adolescência . Sendo assim denominou essa fase como Síndrome da
Adolescência Normal, que seria “mais do que uma etapa estabilizada, é desenvolvimento, e
que, portanto, deve se admitir e compreender a sua aparente patologia” (ABERASTURY,
1986, p. 28).
É possível compreender a adolescência como uma fase em que comportamentos
considerados anormais ou patológicos em outras fases são absolutamente normais nesse
período. Aberastury e Knolbel (1970) dizem que o grau de anormalidade aparentada pelo
adolescente dependerá da realização dos processos de identificação e luto comuns a essa fase.
O autor Erik Erikson (1972, apud FERREIRA e FARIAS, 2010) aliou, em sua teoria, a
psicanálise ao campo do cultural. Erikson constrói o triângulo pai-mãe-filho, através de um
modelo que reúne em um vértice a família, no segundo a dimensão tempo-sociedade-cultura e
no terceiro o próprio indivíduo. No cruzamento e entrecruzamento desses vértices o autor
elaborou oito etapas de desenvolvimento psicossocial para representar momentos diferentes
de investimento da energia psíquica. Dentro dessa visão a adolescência corresponde à quinta
crise normativa, definida em torno do conflito entre identidade e difusão de papéis.
Por definição o autor sugere que a adolescência deva ser reconhecida como uma etapa
que impele o indivíduo a uma redefinição da própria identidade, ao avaliar sua inserção no
plano espaço-temporal, integrando o passado, com suas identificações e conflitos, ao futuro,
com suas perspectivas e antecipações. Erikson (1972, apud FERREIRA e FARIAS, 2010)
insiste na necessidade de o adolescente fazer uma integração de seu passado e futuro, através
de um processo de recapitulação e antecipação.
Atualmente, com o reconhecimento social de que a fase da adolescência é um pouco
mais duradoura, temos por base também os conflitos enfrentados pelo o que seria a sexta fase
do desenvolvimento de Erikson, na qual o interesse, além de profissional, gravita em torno da
construção de relações profundas e duradouras, podendo vivenciar momentos de grande
intimidade e entrega afetiva, é marcado por uma fase de reconhecimento e estabelecimento de
intimidade ou o recolhimento para o isolamento afetivo.
262
Entretanto, a perspectiva psicanalítica, ligada a alguns autores, nos remete a reflexão
dominante ainda hoje na psicologia do desenvolvimento da adolescência, os quais enfocam os
processos de desenvolvimento segundo critérios normativos, e se resumem à prescrição de
comportamentos que qualificariam a chamada adolescência normal, em lugar de se ocupar da
descrição e compreensão das práticas sociais que constituem o ser adolescente em dado
contexto. Contudo, em qual momento dessa fase conflituosa o adolescente é convidado a
refletir sobre suas angustias, medos na tentativa de elaboração de alguns lutos tão típicos
dessa fase?
OS LUTOS E A TEMPORALIDADE NA ADOLESCÊNCIA
Os adolescentes, de forma geral, lidam com diversos lutos, tais como, o luto pelo
corpo infantil, o luto pela identidade de criança e pelos pais da infância. Depois de deixar de
ser um bebê o corpo do ser humano mantém uma identidade até a puberdade e o início da
adolescência, e com as mudanças corporais que ocorrem nessa fase, essa identidade corporal
fica desorganizada e o adolescente tem como tarefa psíquica definir seu papel e sua identidade
sexual, bem como os limites corpóreos. (ABERASTURY, 1990; CAMPAGNA E SOUZA,
2006).
Lage e Monteiro (2007, p. 60) dizem que a “separação da autoridade dos pais se
organiza enquanto uma perda, pois antes, aos pais da infância era atribuída uma posição
idealizada, que o adolescente (...) necessita abrir mão”. Ao mesmo tempo em que o
adolescente não idealiza mais as figuras parentais, é essa percepção nova que permite que este
adolescente crie uma direção nova para si mesmo e invista em suas próprias escolhas (LAGE
E MONTEIRO, 2007).
A vida é uma passagem, passagem de uma idade a outra, de um status a outro, de uma
ocupação a outra. Durante essas passagens, e graças ao social e cultural, existem cerimônias
que demarcam essa passagem de tempo e a necessidade de amadurecimento. A função das
cerimônias é facilitar, simbolizar e marcar essas passagens, sejam elas nascimentos, infância,
adolescência, noivado, casamento, gravidez, paternidade, iniciação religiosa, formaturas,
funerais e outras tantas manifestações propriamente humanas.
Segundo Tuner (1974) os adolescentes, ao serem iniciados a outras fases de suas vidas através
dos rituais, marcam psiquicamente essa mudança através do afastamento social, dos
263
sofrimentos do tempo de separação, do festejo quando de sua reintegração e pelos presentes
que recebe ou pelas marcas no corpo que os identificam e ao mesmo tempo diferenciam.
Ainda o mesmo autor trabalha com a idéia de que, para o adolescente marcar a
passagem de tempo e dar significado as mudanças que ocorrem, eles recorrem a rituais de
passagem, que podem ser colocados em três fases: separação, liminaridade e reintegração. A
separação é a primeira fase de um ritual, onde aquele que será iniciado cumpre com
obrigações de separar-se de seu meio cultural para ir “vagar” por um espaço e tempo
diferentes de onde saiu.
Na fase liminar, o sujeito vai experimentar toda sorte de provações, pensamentos,
ensinamentos, cumprimento de tarefas, que o farão retornar para seu meio cultural de forma
diferenciada. O principal objetivo desta fase é destacar que essas experiências produzem
registros psíquicos (conscientes e inconscientes) que determinaram como será as reflexões
realizadas pelo adolescente frente a algumas decisões e assuntos que irá enfrentar.
A terceira fase do ritual, a reintegração, compreende as comemorações na qual o
sujeito, após passar pelas fases anteriores e cumprir as tarefas a ela associadas e sofrer os lutos
necessários, retorna ao meio social, agora renascido com as marcas que o fizeram passar de
um status a outro, de uma idade a outra, de uma função a outra. Terá acesso a atividades e uso
de objetos que, até então lhe eram proibidos, terá privilégios e assumirá responsabilidades,
bem como será cobrado que apresente definições e escolhas condizentes ao seu período de
desenvolvimento.
O que se percebe é que o período de desenvolvimento denominado adolescência é
cobrado e é perpassado por diversos conflitos e rituais, sendo que cada um destes produzem
uma serie de sentimentos e indagações ao individuo que tenta abordar cada assunto de forma a
passar por cada fase ritualística descrita acima. Em resumo o que se tem é uma mente em
confusão e intenso sofrimento psíquico.
Além de viver todos esses lutos, crises e confusões, o adolescente vive sua própria
temporalidade, caracterizada pela lógica binária, do tudo ou nada, de urgência e de dois
extremos. Knobel (1974 apud OUTEIRAL, 2005) diz que:
“Desde o ponto de vista da conduta observável, é possível dizer que o adolescente
vive com certa desconexão temporal: converte o tempo presente e ativo como uma
maneira de manejá-lo. No tocante à sua expressão de conduta, o adolescente parece
viver em processo primário com respeito ao temporal. As urgências são enormes e,
às vezes, as postergações são aparentemente irracionais.”
264
Outeiral (2005) diz que o adolescente vive predominantemente em função das
demandas internas, inconscientes, do tempo interno, ou seja, os adolescentes vivem em
função do tempo de suas transformações psíquicas. O autor ainda afirma que o adolescente
adquire progressivamente uma noção de tempo mais contextualizada, que implica numa
noção de passado-presente-futuro, interno e externo, e a aceitação da perda do corpo e da
identidade infantil, além dos pais da infância (ABERASTURY, 1973; OUTEIRAL,
1983/2005).
O período da adolescência é complexo, com muitas crises e lutos, e é nessa fase que
ele se depara com uma série de escolhas e possibilidades para definir o futuro, tais como a
escolha profissional. O adolescente vive questões acerca da identidade e Sampaio (2005)
avalia a identidade como um processo dinâmico resultante das assimilações e renúncias de
identificações feitas ao longo da vida e também de influências sociais.
Almeida e Pinho (2008) afirmam que o processo de constituição da identidade do
indivíduo se torna mais complexo diante da abundância de opções que a sociedade
contemporânea oferece e da sua constante transformação. Diante dessas múltiplas opções o
adolescente se sente mais confuso e ansioso para efetuar suas escolhas. Diante dessa formação
da identidade do indivíduo, a identidade ocupacional ocupa um espaço importante.
Portanto, o adolescente busca no grupo algo análogo do precursor objeto transicional
da infância, no espaço temporal transicional, ofertado pelo grupo de pares, por meio das
atividades operativas e de aprendizagem o adolescente pode viver este estado mental temporal
de transição psicossocial, que ocorre neste período da vida.
IDENTIDADE OCUPACIONAL E ORIENTAÇÃO VOCACIONAL
Segundo Bohoslavsky (1985, p.30) a identidade ocupacional seria o “processo
submetido às mesmas leis e dificuldades daquele que conduz à conquista da identidade
pessoal”. A identidade ocupacional pode ser vista como o “reflexo de como o jovem lida com
sua crise de identidade, lançando mão de suas capacidades em prol de uma atitude
ocupacional” (SARRIERA et al., 2001, p. 28). Partindo desse princípio podemos dizer que o
adolescente, frente a todas as suas formações e transformações deve lidar com suas
identificações, anseios e formar sua identidade, e uma forma de expressar sua identidade seria
sua escolha profissional.
265
Bohoslavsky (1985)
define orientação vocacional sendo um
conjunto de
procedimentos realizados para pessoas que enfrentam, em determinados momentos da vida, a
necessidade e possibilidade de tomar decisões. No caso da orientação vocacional e
profissional essas necessidade e possibilidades de decisões se referem à escolha de uma
profissão.
Ao se deparar com um momento de escolha, o adolescente se sente confuso, ansioso e
a orientação vocacional e profissional é capaz de auxiliá-lo na realização de uma escolha mais
esclarecida, ou seja, reconhecer as diversas influências que ele sofre no dia-a-dia que estão
relacionadas ao ambiente em que ele se desenvolveu, tais como a família, a escola, a religião,
o meio social e econômico e as questões psicológicas (BARRETO E AIELLO-VAISBERG,
2007, p.109).
O processo de escolha profissional é perpassado pelas identificações que o adolescente
realizou ao longo de seu desenvolvimento, além das influências culturais, sociais e
econômicas. Podemos dizer que a escolha profissional permeia, além da possibilidade de
satisfação laboral, a satisfação pessoal do adolescente (BARRETO, 2000). O procedimento
de orientação vocacional e profissional trabalha todas as dúvidas e questões típicas do período
da adolescência, além da possibilidade de propiciar maiores reflexões a respeito das
influências sofridas, mitos a respeito de algumas profissões, propiciar um espaço de
acolhimento de angústias e contribuir com parte da formação da identidade pessoal do
adolescente.
GRUPOS DE ORIENTAÇÃO VOCACIONAL E PROFISSIONAL
Diante desse momento o adolescente se depara com as questões “quem sou?”, “o que
eu quero?”, “o que eu quero ser no futuro?”, e o grupo de Orientação Vocacional e
Profissional de adolescentes seria uma das ferramentas de auxílio nesse momento perpassado
por tantas dúvidas e ansiedades. A demanda por Orientação Vocacional e Profissional vem
aumentando a cada dia, em face das inúmeras questões que perpassam a fase da adolescência,
dentre elas não só a escolha profissional, mas também as demandas familiares e socioculturais
que surgem na atualidade.
Os grupos de Orientação Vocacional e Profissional ocorrem na Clínica Psicológica da
Universidade Estadual de Londrina - UEL/ PR, os atendimentos não são apenas na
modalidade grupal, há também atendimentos individuais. O público-alvo se consiste em
266
adolescentes das escolas públicas de Londrina e Região, visto que, nas próprias escolas
públicas não há um trabalho similar sendo desenvolvido pela administração, e, além disso, o
trabalho nas escolas do estado do Paraná seria uma forma de devolutiva pela educação
proporcionada pelo próprio estado aos orientandos de psicologia da UEL.
Os grupos são caracterizados por entrevistas clínicas, uso de instrumentos de
avaliação do potencial intelectual, habilidades, interesses e traços de personalidade, além do
uso de técnicas de dinâmica de grupo, visando sensibilizar os orientandos para uma reflexão
sobre a escolha profissional como parte do processo de construção da identidade pessoal. Os
grupos também possuem um setting, que tem como desdobramento a premissa de que a
escolha de uma carreira os remetem a um estado mental perpassado por um tempo de
tendências reparatórias.
Ressalte-se que a reparação nunca é total, visto que na realidade isso se torna
impossível, porém surge uma modalidade de reparação, que oferece uma saída a um tipo de
conflito. Sendo assim, as intervenções realizadas no grupo, junto aos adolescentes visam o
bom funcionamento dos estados mentais e o acolhimento.
Knobel (1981 apud ABREU, 1999; ALMEIDA, 2012), trata esta questão como uma
deslocalização temporal, onde o pensamento adquire as características de pensamento
primário: converte o tempo em presente e ativo, numa tentativa de manejá-lo. As urgências
são enormes e as postergações são aparentemente irracionais Rubinstein (2005, apud
ALMEIDA 2012), ao fazer um aporte sobre reflexões acerca da pratica psicanalítica com
adolescentes denomina a saída da latência e puberdade, quando há a substituição dos pais
pelo grupo como um “espaço” temporal “transicional”. Sendo assim, torna-se fundamental a
criação de um setting grupal, além do individual.
A escolha profissional surge na adolescência também, como dado de temporalidade,
uma vez que é uma tarefa que remete ao futuro e ajuda o adolescente, dotado de
temporalidades peculiares e muitas vezes confusas, a se situar diante da passagem do tempo, o
que pode causar muitos conflitos.
Portanto, o adolescente busca nos atendimentos algo análogo ao precursor objeto
transicional da infância, no espaço temporal transicional, ofertado pelo grupo de pares. Por
meio das atividades operativas e de aprendizagem, o adolescente pode viver este estado
mental temporal de transição psicossocial, que ocorre neste período da vida. Esse espaço
267
oferecido aos adolescentes produz novas tarefas evolutivas, frente ao amadurecimento.
(ALMEIDA, 2006).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Apesar desta falta de um corpo teórico único - ou precisamente graças a ele - a
Psicologia Vocacional e de Orientação Profissional tem encontrado uma diversidade de
metodologias que se adaptam à orientação, educação e/ou ao aconselhamento de carreira,
integrando métodos mais tradicionais como a entrevista ou a avaliação psicológica com
métodos mais dinâmicos como as narrativas, a utilização de metáforas ou o confronto das
crenças individuais e que podem incluir atividades estruturadas realizadas em grupo, com
conteúdos e processos tão diversos quantos as populações destinatárias e os objetivos a definir
por cada indivíduo.
O que se pode concluir deste estudo é que através da criação de um espaço para o
adolescente refletir sobre seus conflitos, tão característicos desta fase de desenvolvimento, o
amadurecimento da escolha profissional pode ser colocada em questão e trabalhada, de forma
a amenizar o sofrimento psíquico acerca dos lutos e das responsabilidades exigidas.
Observa-se que há uma elevação do espaço transicional temporal na criação de um
terceiro tempo , que extrapola a lógica binária do “tudo ou nada”adolescente ,que se redefine
como uma visão de futuro e de realização, aplacando as dores do estado mental adolescencial,
promovendo a saúde mental . Tal premissa nos faz recomendar um aprofundamento e uma
ampliação de espaços temporais que possam ser ofertados para o atendimento de adolescentes
em grupos, como o de grupos com foco em orientação vocacional e profissional.
Além de se trabalhar a escolha profissional, o espaço de reflexão dos conflitos
adolescentes também trabalha com a temporalidade própria dessa fase e as angústias geradas
pelas múltiplas possibilidades para o futuro, o vir a ser- o devir.
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270
INTERNAÇÃO PSIQUIÁTRICA: AS MARCAS DA INSTITUCIONALIZAÇÃO E A
PERDA DE UM LUGAR DE PERTENCIMENTO.
HUGO HIGINO PEREZ DE ANDRADE
Elimara de souza pereira
Veline Filomena Simioni Silva
Ruzia Chaouchar Dos Santos
[email protected],
UFMT
IDENTIFICAÇÃO E HISTÓRICO DA INSTITUIÇÃO
O presente estágio foi realizado na instituição do Complexo Integrado de Atenção
Psicossocial (CIAPS) Adauto Botelho – Unidade I, localizado na Rua Adauto Botelho, s/n
Coxipó, Bairro: Coophema, CEP: 78085-200 – no Município de Cuiabá/MT.
O Centro Integrado de Assistência Psicossocial Adauto Botelho – CIAPS é um
complexo de unidades de saúde mental, atualmente, constituído pelas respectivas unidades:
Central de Vagas, Centro de Apoio Psicossocial para Dependentes Químicos – CAPS AD,
Centro de Atenção Psicossocial Infantil – CAPSI, Unidade I –Hospital Adauto Botelho –
Internação (masculina e feminina) Unidade II Pascoal Ramos, e Unidade III – Internação
Álcool e Drogas - adulto (masculino), residência de cidadãos portadores de deficiência física
e mental tutelados pelo Estado de Mato Grosso – Lar Doce Lar, e apresenta a finalidade de
prestar atendimento aos cidadãos portadores de transtornos mentais e comportamentais e
usuários de substâncias psicoativas, fomentando a implementação da Política Nacional de
Assistência em Saúde Mental na esfera estadual, sendo assim, a principal referência de Mato
Grosso nesta área, de acordo com informações coletadas em campo e confirmadas pelo site da
Secretaria Estadual de Saúde de Mato Grosso. Assim sendo, o CIAPS Adauto Botelho
reafirma o compromisso com os pressupostos da Reforma Psiquiátrica e da Luta
Antimanicomial no Brasil, no processo de construção de novas práticas em saúde mental –
com enfoque depositado na ressocialização e reintegração dos usuários na vida social, de
modo a promover sua qualidade de vida – segundo as premissas da lei nº 10.216, com as
Diretrizes da Organização Mundial de Saúde (OMS) e da Organização Pan-americana de
Saúde (OPAS). (SES - SECRETARIA DO ESTADO DE MATO GROSSO).
Em meados do século XIX, o Estado brasileiro implementou
uma política de
higienização social, em prol de um nação desenvolvida e civilizada, aspirada pelos segmentos
representativos da classe dominante do país, fundamentada nos ideais de modernidade das
271
nações europeias. Em decorrência da política de higienização, foram criadas instituições que
não apresentavam cunho terapêutico, tendo como função de controle e ordem social, de modo
que o processo de internação foi realizado como prática de recolhimento dos indivíduos que
representam a desordem, a serviço da institucionalização de modos de pensar e de agir.
(BEZERRA, 2008).
No contexto Cuiabano, de acordo com Oliveira & Alessi (2005) (apud Siqueira,
1990) a cidade aderiu, mesmo que de forma lenta, os pressupostos do projeto de uma nova
nação civilizada e desenvolvida que vinha sendo estruturado e difundido nacionalmente.
Mediante tais condições sociais e históricas, dentre as medidas de higienização em Cuiabá
que denotavam preocupação com a saúde pública, foi fundada em 1816 a Santa Casa de
Misericórdia de Cuiabá, sendo a primeira forma de institucionalização de práticas de
assistência à saúde no estado.
Após a inauguração da Santa Casa, em 1816, o tratamento dispensado às pessoas
ditas portadoras de doença mental no estado seguia os mesmos procedimentos utilizados pelas
comunidades que ainda não tinham o “louco/alienado” como objeto de estudo da área médica,
visto que estes caminhavam pelas ruas cuiabanas, caso fossem inofensivos, ou eram
recolhidos pelos familiares, e caso estivessem “possuídos” eram presos quando ameaçavam a
ordem pública. (OLIVEIRA, 1988, In OLIVEIRA & ALESSI, 2005).
De acordo com o projeto de modernização implantado no país nos primeiros anos de
república, as relações da sociedade com os ditos loucos estavam passando por transformações,
pautadas pelos pressupostos da medicina. Seguindo tais “avanços da ciência”, no ano de 1905
foi inaugurada a Enfermaria de Alienados na Santa Casa de Misericórdia de Cuiabá, que foi a
primeira medida de atendimento médico aos portadores de doenças mentais em Mato Grosso.
Com a falta de incentivos destinados à saúde mental a Enfermaria de Alienados passa
a apresentar-se insuficiente para atender a demanda de prestação de serviço aos portadores de
transtorno mental da região. Passou a ser utilizado como abrigo e reclusão dos ‘alienados’ um
precário casarão, mantido pelo governo, localizado em uma chácara as margens do rio Coxipó
da Ponte, distante 10 quilômetros da cidade. A “Chácara dos loucos” como ficou
popularmente conhecida, recebia voluntários, atendimento médico e de enfermagem
esporádicos e voluntário, e guarda feita por policiais. (OLIVEIRA, 1998; Apud OLIVEIRA &
ALESSI, 2005).
Resende (1994) pontua que a sociedade esperava que à psiquiatria coubesse somente
o papel de “recolher e excluir as sobras humanas de cada organização social, de cada
momento histórico”, além do que, era necessário que a psiquiatria desse provas de sua
272
eficiência, mas as condições dos hospitais psiquiátricos da época eram provas contrárias.
(RESENDE, 1994, p.56 Apud OLIVEIRA & ALESSI, 2005, p. 71).
Permeado em tais contextos históricos e sociais, o governo estadual firmou um
convênio com o governo mato-grossense e o Serviço Nacional de Doenças Mentais para a
construção de um hospital psiquiátrico em Cuiabá, e no mesmo local onde se situava a
“Chácara dos loucos”, foi inaugurado no ano de 1975, o Hospital psiquiátrico Adauto
Botelho. (OLIVEIRA & ALESSI, 2005).
De acordo com Relatório da Secretaria do Estado de Mato Grosso do ano de 1975, o
Serviço de Saúde mental na região iniciou-se em 07 de outubro de 1995, posteriormente a
publicação da Portaria n°108/75 em que o secretário designa o primeiro responsável pela área.
Neste mesmo relatório foi citado a informação de que o Mato Grosso era, nesse período, um
dos únicos estados que não apresentava um órgão de coordenação responsável pela Saúde
Mental, fato que pode confirmar a história de Mato Grosso incorporar tardiamente
as
tendências políticas centrais, devido a situação periférica no âmbito político e científico
nacional(MATO GROSSO, 1975; In: OLIVEIRA & ALESSI, 2005).
Mediante a tal contexto histórico da época, a Psiquiatria Preventiva, constituída a
partir da crítica referente às estruturas asilares, buscou superar as formas de estruturação de
tais instituições, deslocando-se, portanto, o objeto de intervenção da psiquiatria tradicional
para a sociedade, mudando o enfoque da intervenção terapêutica para a prevenção da doença,
propiciando a ampliação do campo de atuação da psiquiatria, sendo que houve uma ampliação
de seu objeto de estudo, que passou da doença mental para também atuar na saúde mental,
contudo, percebe-se que manteve-se os aspectos racionais presente na medicina
intervencionista (BIARMAN, 1982 apud OLIVEIRA & ALESSI, 2005).
Pelo fato de em Mato Grosso haver um único serviço de Saúde Mental pública
enquanto outras regiões a partir da Reforma Psiquiátrica passaram a comprar de leitos no
setor privado, o Estado vivia um cenário ainda desatualizado nesta questão, sem possuir essa
área do setor privado. Em decorrência disso, não ocorreu em Mato Grosso durante as décadas
de 60 e 70 o processo caracterizado com “Indústria da loucura”. (OLIVEIRA, 1998; In:
OLIVEIRA & ALESSI, 2005)
No final dos anos 70 e inicio da década 80, ocorreu, o movimento inicial da Reforma
Psiquiátrica brasileira, processo reconhecido com a fase inicial da Reforma Psiquiátrica
brasileira. Ao contrário de outras regiões nacionais, Mato Grosso apresentava uma
peculiaridade, pois no estado no estado havia inicialmente um hospital psiquiátrico publico,
caracterizando assim o processo de Reforma Psiquiátrica como um movimento oposto a
273
política de compras de leitos no setor privado. Posteriormente a divisão do estado em Mato
Grosso e Mato Grosso do Sul ocasionou um intenso crescimento populacional, advindo de
uma política de ocupação e incremento econômico, nesse contexto local de incipiente
organização descentralizada de assistência a saúde, inaugurou-se em 1989 no município de
Cuiabá o primeiro Hospital psiquiátrico privado de grande porte o Instituto de
Neuropsiquiatria, que inicialmente tinha um estrutura capaz de atender 150 leitos, mas já
sendo ampliado no primeiro ano de funcionamento, passando a capacidade de 500 leitos, dos
quais 483 eram contratados do Sistema Único de Saúde (SUS) (OLIVEIRA & ALESSI,
2005).
Segundo Oliveira (1998), no final da década de 80 o Estado apresentava
consequências do intenso fluxo de imigrantes devido a política “desenvolvimentista” adotada
pelo Brasil na década de 70, que realiza exigências por modernizações em todas as áreas, e
consequentemente modernizações na prestação de serviços de saúde mental. Sendo assim:
“[...] não se admitia mais que a assistência psiquiátrica, mesmo sendo historicamente
marginalizada na organização dos serviços de saúde, fosse responsabilidade de um único e
antigo hospital, tão visivelmente sucateado como era o Hospital Adauto Botelho”.
(OLIVEIRA & ALESSI, 2005, p.85).
As demandas sociais e econômicas da época apontaram a necessidade de melhorias
no Hospital Adauto Botelho que se apresentava em situação precária. Em 16 de março de
1991, o mesmo foi fechado para reforma, permanecendo por dois anos e meio fechado para a
reforma e a demanda de atendimento em saúde mental foi transferida toda para o Instituto de
Neuropsiquiatria, e o atendimento ambulatorial redirecionado aos Centros de Saúde que não
funcionavam de forma regular e contínua, não existindo em Cuiabá outras formas de
atendimento para portadores de doença mental na rede pública. Foi nesse momento em que a
“Indústria da Loucura” tornou-se presente na região. Fruto da lógica do mercado empresarial,
que passou a definir as regras no âmbito da saúde mental, aliada um intenso crescimento
demográfico, o numero de leitos aumentou em aproximadamente 260% no estado, todos
exclusivamente no único hospital privado conveniado. Logo, o Estado passa a ter sua
hospitalização psiquiátrica completa no setor privado como “novo”, enquanto que este era
criticado por estar “ultrapassado” em relação ao resto do país, principalmente na região Sul e
Sudeste, pelo movimento nacional de Reforma Psiquiátrica. (OLIVEIRE & ALESSI, 2005)
No ano 1993 O Hospital Adauto Botelho foi reinaugurado com o nome de Centro
Integrado de Atendimento Psicossocial (CIAPS) Adauto Botelho, pois agora englobava outras
unidades e não apenas a internação. Mesmo com o movimento de Reforma Psiquiátrica, nota274
se que prevaleceu novamente a lógica do capital, de modo que o setor privado fica
privilegiado. Observa-se que mesmo com uma reforma significativa em sua estrutura física
esta instituição reproduziu novamente as práticas manicomiais, a exemplo:
[...] denúncia da presença de guardas/seguranças que “aplicavam
eletrochoque” na ausência de médicos [...] e que faziam a contenção
física de pacientes deste hospital de forma inadequada e violenta, além
da ausência de médicos psiquiatras em plantões. (CASTRO, 2004, In:
OLIVEIRA & ALESSI, 2005).
Com a implementação de cursos de capacitação de pessoal feita pelo Ministério da
Saúde, a fim de reverter o paradigma do modelo hospitalocêntrico de atendimento psiquiátrico
no ano de 1994, novos encontros e conferências foram criados e promovidos, com o intuito de
se fortalecer o atendimento em rede, capacitando os profissionais da rede de Atenção
Psicossocial de Cuiabá. (OLIVEIRA & ALESSI, 2005, p.87).
Em agosto do ano de 2013 o pronto atendimento (PA) do CIAPS Adauto Botelho, foi
fechado. Essa unidade do CIAPS atendia não só os casos de urgência e emergência em saúde
mental, mas diversas outras demandas, centralizando no hospital ações que, de acordo com a
legislação em saúde mental do brasil (lei federal 10216/2001, portaria gm 336/2022 e portaria
3088/2011) deveriam ser realizadas nos municípios. Assim, o fechamento dessa unidade
deveu-se não somente à falta de recursos terapêuticos necessários para seu funcionamento
pleno, mas também e principalmente pela necessidade de reordenamento da rede de atenção
psicossocial.
Atualmente, esse atendimento é realizado no município de Cuiabá na Unidade de
Pronto Atendimento UPA do bairro Morada do Ouro. Tal unidade ainda não possui estrutura
adequada, e nem profissionais capacitados para atender essa demanda. O atendimento
oferecido limita-se ao tratamento medicamentoso e realização de exames, para posteriormente
encaminhar o paciente para outros serviços existentes na rede, entre eles a Unidade I do
CIAPS, se necessário.
INTERNAÇÃO
PSIQUIÁTRICA,
INSTITUCIONALIZAÇÃO
E
DESINSTITUCIONALIZAÇÃO
Os hospitais, ao contrário do que temos hoje, surgem atrelados ao um viés
assistencialista, voltado principalmente para filantropia e caridade. Amarante (2007) ressalta
em sua obra “Saúde mental e atenção psicossocial”, a trajetória percorrida pela instituição
275
“hospital”, desde os processos assistencialistas e de controle social até a sua constituição
enquanto lugar de saber científico.
A partir de uma concepção liberal de sujeito, respaldado nos escritos de Locke, surge
a noção de “Alienação Mental”, a qual seria responsável pela desordem social. Amarante
(2007) pontua que os motivos para a internação estavam associados à noção de Liberdade.
Contudo acreditava-se que pessoas “alienadas mentalmente”, assim estariam pelas condições
sociais, logo: “Se as causas da alienação mental estão presentes no meio social, é o isolamento
que permite afastá-las, transportando o indivíduo enfermo para um meio onde as mesmas não
podem mais prejudicá-lo”. (AMARANTE, 2007, p.29).
Amarante (2007) pontua que: “Alienação mental era conceituada como um distúrbio
no âmbito das paixões, capaz de produzir desarmonia na mente e na possibilidade objetiva do
indivíduo perceber a realidade.” (Ibidem, p.30). Logo, “Na medida em que alguém nesta
condição de alteridade poderia representar um sério perigo à sociedade, por perder o Juízo, ou
a capacidade de discernimento entre o erro e a realidade, o conceito de alienação mental nasce
associado à ideia de ‘periculosidade’.” (Ibidem, p.31).
Mesmo com as transformações das concepções a cerca da “loucura”, vemos presente
até os dias de hoje, práticas relacionadas à saúde mental, atreladas a essa concepção de
periculosidade, visando o encarceramento do sujeito em sofrimento psíquico, em detrimento
de uma “segurança social” para os sujeitos ditos como normais.
No processo histórico da saúde mental, em meados de 1950, surge nos Estados
Unidos, um movimento conhecido como Psiquiatria Preventiva, a qual propunha um processo
de desinstitucionalização dos sujeitos. Segundo Amarante (2007):
Por desinstitucionalização, entendia-se um conjunto de medidas de
‘desospitalização’, isto é, de redução do ingresso de pacientes em hospitais
psiquiátricos, ou de redução de tempo médio de permanência bospitalar, ou
ainda de promoção de altas hospitalares. (AMARANTE, 2007, p.50).
Levando em conta a herança histórica dos processos de internação e
institucionalização, o autor continua pontuando:
Esmiuçando os mecanismos e sistemas desta modalidade de
institucionalização, em que se destacam a carreira moral, a
estigmatização ou a mortificação do eu, a noção de
desinstitucionalização torna-se mais complexa e passa a distanciar-se
da noção norte-americana, sinônimo de desospitalização. (Ibidem,
p.54).
276
Para além da desospitalização, a desintitucionalização seria o processo de
ressignificação do adoecimento do sujeito em sofrimento psíquico. Contudo para isso é
necessário o total abandono dos modelos manicomiais.
De acordo com Basaglia (2005):
A institucionalização é o complexo de danos derivados de uma longa
permanência coagida no hospital psiquiátrico, quando o instituto se
baseia sobre princípios de autoritarismo e coerção. Tais princípios,
donde surgem as regras sob as quais o doente deve submeter-se
incondicionalmente, são expressão e determinam nele uma
progressiva perda de interesse que através de um processo de
regressão e restrição do EU, o induz a um vazio emocional.
(BASAGLIA, 2005, p. 259).
A internação desnecessária, sem indicação clínica e utilizada apenas como forma de
exclusão traz marcas profundas nas pessoas institucionalizadas, gerando segregação e
exclusão sobrevindas do preconceito enraizado no processo de internação, advindo da noção
de periculosidade atrelada ao sofrimento psíquico durante toda a história da loucura.
UMA HISTÓRIA DE NÃO PERTENCIMENTO
Um exemplo deste brutal processo de institucionalização é do interno André 7.
André foi um dos internos dos quais mais interagi durante o estágio. Ele é jovem morador do
CIAPS – Adauto Botelho Unidade I, o qual passou por um longo processo de
institucionalização. Desde sua infância passou por diversas instituições, perdendo assim
totalmente o vínculo de referência social. Toda vez que este interno estava em discussão
ficava claro a opinião da equipe a respeito do caso: “o interno não é paciente de internação”.
Todavia, por causa do processo de institucionalização, o interno não consegue se “ver” ou
criar vínculos extramuros. André não consegue atribuir outros significados para a vida em
sociedade além da exclusão, preconceito e estranheza. Ele identifica a Unidade I como sua
casa, e os profissionais como seus familiares. Durante o estágio a equipe tentou inseri-lo no
atendimento do CAPS, propondo assim que o tratamento dele seja feito fora do hospital, para
que ele comece a criar um vínculo social, através do atendimento em rede nas unidades de
Atenção Psicossocial.
7
O nome usado no relato é fictício a fim de preservar a identidade do sujeito.
277
Os processos de estigmatização, preconceito, e segregação podem ser vistos na
maneira como o processo de inserção no CAPS se deu, ou melhor, essa tentativa. O interno
foi levado ao CAPS pela psicóloga do Posto I da ala masculina em um dos dias em que
visitamos a Unidade I, em um dos dias em que estivemos na instituição, e até a próxima
supervisão em sala não foi mais citado esse fato. Na supervisão subsequente à tentativa de
inserção ao CAPS ficamos extremamente surpresos com o relato dos outros colegas que
estavam estagiando no CAPS para qual André foi encaminhado. Segundo nossos colegas, o
CAPS tomou uma posição arredia com o interno, segundo eles na reunião de equipe do CAPS
um profissional disse que “a Unidade I estava transferindo um ‘problema’ para o CAPS
porque a unidade estaria em processo de fechamento”. Tal fato gerou uma discussão grande
entre nós e os estagiários do CAPS, pois a versão que foi trazida em sala de André não
condizia com o que estávamos vendo em nossas visitas na Unidade I. Desta forma o CAPS
que seria uma possibilidade de reinserção social deste interno aparentemente estava com
resistência em recebê-lo. Tal resistência teria origem por parte de uma experiência ruim de
uma das profissionais do CAPS que já trabalho na Unidade I.
O caso de André é só mais um dentre tantos outros que existem. As marcas, causadas
pelo processo de internação psiquiátrica, inviabilizam a reinserção social de uma pessoa que
tenha sido internada uma única vez se quer.
Segundo Duarte (2007 apud GUEDES et. al 2010), a desinstitucionalização consiste
no processo de desconstrução de práticas manicomiais e construção de novos saberes, os
quais sejam capazes de privilegiar a subjetividade e autonomia do indivíduo, bem como o
livre exercício de sua cidadania.
Na história de André encontramos a intenção da equipe correspondente a essa noção
de desinstitucionalização, com o intuito de proporcionar a ele o acesso tanto aos serviços
substitutivos, quando na vivência extramuros. Todavia, a proposta da equipe esbarra
diretamente em profissionais, os quais ainda atuam com resquícios das práticas manicomiais.
Tais processos de estigmatização acontecem muitas vezes por uma herança das
práticas manicomiais, e das mentalidades difundidas a cerca da loucura. Como no caso de
André, muitas vezes é negada a possibilidade de uma vivência extramuros, privando os
sujeitos em sofrimento psíquico dos seus direitos garantidos na Constituição de 1988.
De acordo com as diretrizes da Clínica Ampliada (2004):
[...] não podemos esquecer que às vezes o próprio diagnóstico já traz
uma situação de discriminação social que aumenta o sofrimento e
dificulta o tratamento. Cabe à clínica ampliada não assumir como
278
normal essas situações, principalmente, quando comprometem o
tratamento. (BRASIL, 2004, p.09).
A dificuldade de aceitação de André no serviço substitutivo demonstra uma possível
deficiência na formação continuada, uma vez que a unidade substitutiva é corresponsável no
tratamento, e fundamental para reinserção e desinstitucionalização dos usuários.
CONSIDERAÇÕES
Embora a reforma psiquiátrica e o movimento de luta antimanicomial sejam reais no
contexto da saúde mental, é de conhecimento dos profissionais da psiquiatria e da sociedade
em geral a existência de instituições que adotam ainda, mesmo que de forma implícita, a
estrutura manicomial como modelo de assistência. Moffatt (1984) ressalta que não pretende
negar a existência da loucura: ela existe e às vezes vai além do que se pode imaginar. Todavia
em geral, o tratamento direcionado ao sujeito após a ocorrência do surto psicótico é uma
espécie de readaptação ao convencional. Tal readaptação não é algo simples, uma vez que o
sujeito em sofrimento psíquico teve seus laços e vínculos cotidianos cortados, por vezes sendo
despedidos de seus empregos e/ou rejeitado pelos familiares. Este contexto gera o estigma do
paciente psiquiátrico, cuja maior lesão se dá pela desqualificação, patologização, ocasionando
o retorno ao ambiente manicomial, ocasionando a cronificação da vivência do sofrimento
psíquico grave.
Partindo deste viés, encontramos dentro da Unidade I esta realidade apontada por
este autor, uma parcela dos usuários foi abandonada por suas famílias, a maioria na época em
que o Hospital Neuropsiquiátrico ainda funcionava, perdendo assim toda referência
extramuros, contrariando assim a política em saúde mental, a qual prevê a reinserção dos
sujeitos na comunidade, contrariando a Constituição que prevê como direito de cada um o
acesso ao lazer, à saúde, a educação, a alimentação e moradia.
É no cotidiano dos serviços da rede de atenção à saúde mental e na militância, nos
movimentos sociais antimanicomiais, de forma geral, que usuários e familiares estão
conseguindo garantir seus direitos, apoiando-se mutuamente, para provocar mudanças nas
políticas públicas e na cultura de exclusão do louco da sociedade, já que, o grande desafio da
Reforma Psiquiátrica é construir um novo lugar social para os “loucos”. (Brasil, 2005).
Na busca da superação do paradigma psiquiátrico pela atenção psicossocial, além de
fundamental, a participação dos usuários nos serviços de saúde mental resulta benefícios para
279
todos os envolvidos, gestores, profissionais demonstrando assim, a indissociabilidade do
processo participativo social-terapêutico nesse campo. (OLIVEIRA & CONCIANI, 2009).
Acreditamos na necessidade de implementação de um apoio matricial para
fortalecimento da rede de atendimento em saúde mental em conjunto com a rede de atenção
primária, pois assim a reinserção dos sujeitos se dá de maneira mais eficaz, já que a atuação
dos ESFs (Estratégia de Saúde em Família) são fundamentais para a recuperação do sujeito
em sofrimento psíquico. Vasconcelos et. al (2012) apontam que:
[...] o apoio matricial em saúde mental se estrutura com o objetivo de
promover a interlocução entre os serviços especializados de saúde
mental, como os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) e a atenção
primária, numa atuação conjunta com os Centros de Atenção à Saúde
da Família (CSF). Destina-se, principalmente, à ampliação do olhar
sobre a clínica de forma articulada e singular, e à promoção da saúde e
da diversidade de ofertas terapêuticas, favorecendo a
corresponsabilização entre as equipes de apoio (especializadas e
representadas por profissionais do CAPS) e matriciais (equipes da
Estratégia de Saúde da Família - ESF), com vistas à maior eficiência e
eficácia das ações para a construção de um modelo tecnoassistencial
centrado no usuário (BEZERRA; DIMENSTEIN, 2008;CAMPOS;
DOMITTI, 2007 apude VASCONCELOS et. al p. 167).
Assim sendo, percebemos como é importante a atuação em rede, tanto para o
fortalecimento da saúde pública em saúde mental, quanto para a desconstrução efetiva do
modelo hospitalocêntrico, o qual está cristalizado na sociedade. Contudo, para que o
atendimento em rede seja efetivo, é fundamental que haja uma formação continuada, e que o
apoio matricial seja realmente efetivo, pois só assim é possível o diálogo entre as unidades de
atendimento primário e as unidades de atendimento em saúde mental.
Acreditamos que é possível um atendimento mais humanizado, diferenciado e
singular, uma vez que pudemos observar tais práticas na Unidade I, e principalmente, do
empenho da equipe em concretizar tais princípios. Todavia, é necessária também a atenção do
poder público para as questões institucionais e estruturais, bem como de recursos humanos e
de qualificação dos servidores.
Por fim, acreditamos que o estágio nos proporcionou uma experiência única e
enriquecedora, permitindo que observássemos na prática o que temos estudado no curso.
Entrar em contato, tanto com a equipe quanto com os usuários, nos permitiu perceber como é
fundamental para nós, futuros psicólogos e profissionais da saúde, uma disposição para atuar
de maneira diferenciada, com um olhar diferenciado, e principalmente politizado a cerca do
280
atendimento em saúde mental, caso contrário será impossível atuarmos segundo os
pressupostos pautados em tais paradigmas antimanicomiais.
REFERÊNCIAS
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282
AS CONTRIBUIÇÕES DO BRINCAR AO DESENVOLVIMENTO EMOCIONAL DA
CRIANÇA NA ESCOLA
Andreia Cristiane Silva Wiezzel - Unesp - Presidente Prudente/SP - [email protected]
IINTRODUÇÃO
São frequentes as queixas de professores envolvendo alunos que apresentam apatia,
timidez excessiva, atitudes agressivas, isolamento e outras características congêneres que
podem interferir em sua aprendizagem e/ou na do grupo.
A presente pesquisa justifica-se não apenas pelo fato de que um satisfatório clima de
trabalho em sala de aula influencie de forma decisiva no processo de ensino-aprendizagem
mas, sobretudo, pela carência de trabalhos na área em nível nacional. Com relação à
agressividade na escola há trabalhos, mas muitos voltam-se à questão do bullyng, indisciplina,
ou até realizam estudos sobre a agressividade, porém, no sentido de diagnosticá-la apenas ou
com o objetivo de identificar a atuação dos professores diante do caso. Com relação ao tema
timidez, ainda com relação a pesquisas nacionais, a situação é ainda mais complicada pois
estas são, nos termos da pesquisa ora apresentada, praticamente inexistentes.
Apesar das dificuldades que pode trazer à criança, conforme Winnicott (2005), a
agressividade é algo inerente ao ser humano. É experimentada muito precocemente pela
criança, já no início de sua vida, em sua relação com a mãe.
A criança necessita da
agressividade como forma de adaptação e segurança no início de sua vida. A agressividade e a
timidez não são concebidas como algo ruim ou necessariamente patológico na lida com o
aluno. Ambos fazem parte da essência humana, constituindo-se a partir de dificuldades no
desenvolvimento emocional. A proposta é trabalhar com os casos de dificuldades de condução
dessas manifestações por parte dos alunos, professores e pais. Como a pesquisa é muito
ampla, apresentar-se-á, neste artigo, um recorte, no qual que será enfocada mais a questão da
intervenção com as crianças.
1 A RELAÇÃO ENTRE DESENVOLVIMENTO EMOCIONAL
E AS
DIFICULDADES DE RELACIONAMENTO
Ainda que seja um tanto complicado delimitar a prevalência das dificuldades de
relacionamento, dada a possibilidade de haver causas múltiplas a estas, não são raros os
283
estudos que indicam uma correlação entre atitudes desejáveis em relacionamentos sociais e a
influência das relações familiares no desenvolvimento emocional das crianças.
Uma boa relação entre mãe e criança, a guisa de exemplo, vem sendo associada, por
meio do tipo de relação de apego que desenvolve, a uma menor ocorrência de problemas
sócio-emocionais e cognitivos nos anos iniciais da escolarização. Tais estudos são inspirados
na teoria de Bowlby (1989) que, em análise das relações entre mães e filhos, destaca que a
raiz da personalidade relaciona-se aos primeiros relacionamentos da infância.
As crianças cujos relacionamentos na infância tenham proporcionado segurança e
autoestima tendem a ser mais autônomas e a desenvolver relacionamentos mais estáveis.
Winnicott (1997), no mesmo sentido, ressalta que a criança necessita não apenas de cuidados
físicos, mas de conforto, afeto, atenção, proteção e calor. A mãe que é capaz de acolher seu
filho e provê-lo dos cuidados básicos que este necessita (físicos e psíquicos) é denominada
por Winnicott (1982) com uma mãe suficientemente boa, ou mãe-ambiente.
Uma criança que contava com uma mãe suficientemente boa, mas que por algum
motivo foi privada dessa mãe, pode vir a desenvolver, por exemplo, a tendência antissocial.
Ressalta Winnicott (2005) que esta tendência tem base em uma boa relação que se perdeu,
ocasionando a deprivação propriamente dita. É uma característica essencial que o bebê tenha
atingido a capacidade de perceber que a causa do desastre reside numa falha ou omissão do
ambiente. O conhecimento por parte da criança de que a causa da depressão é externa a ela é
responsável pela distorção da personalidade e pela busca da cura por meio do ambiente.
Portanto, o grau de maturidade do ego determina o desenvolvimento da tendência antissocial,
em vez de doença psicótica.
A tendência antissocial não é um diagnóstico e pode ser encontrada em qualquer
criança. Caracteriza-se por forçar o ambiente a exercer o controle: a criança obriga alguém a
encarregar-se de cuidar dela. Ela pode vir a acreditar na estabilidade dos cuidados externos se
houver uma experiência contínua de controle por pessoas que sejam cuidadosas e lhe
apresentem regras por um período prolongado de tempo.
O roubo está no centro da tendência antissocial, associado à mentira. A criança
que rouba um objeto não está em busca do mesmo, mas da mãe e do amor aos quais foi
privado. Além disso, pode-se observar, também, uma tendência a desordens, à destrutividade,
perda de apetite ou enurese noturna.
Quanto à timidez, a questão que envolve os afetos é, também, primordial.
Winnicott (1982) associa a timidez a contextos em que à criança sejam associados
sentimentos de rejeição, insegurança, cobrança excessiva, frieza, relações parentais que lhe
284
traga angústias (medo de não ser amado, de não ser atendido em suas necessidades, de não
poder contar com a alguém que a auxilie, dentre outros). Tais sentimentos são elaborados na
convivência com a mãe e demais membros da família. Se a relação da criança com essas
pessoas não permitir que seja aceita, amada e segura, esta tenderá a desenvolver
características associadas à timidez.
Assim como na criança agressiva, a criança tímida terá impulsos agressivos e a raiva,
que não será associada, propriamente, aos impulsos mas às condições dos relacionamentos
que tem ou que fantasia ter. A criança reprime seus sentimentos e sua timidez constitui
expressão do represamento das emoções que não pode manifestar.
Ao se propor que a criança precisa ter uma boa relação parental, principalmente,
durante os dois primeiros anos de vida, não se pretende definir um tipo de família “ideal”,
composta por estes ou aqueles membros. O que é importante ressaltar é a qualidade do
ambiente e das relações afetivas que se estabelecem neste espaço:
A vivência de uma relação calorosa, íntima e contínua com a mãe ou
mãe substituta permanente, ou seja, uma pessoa que desempenha,
regular e constantemente, o papel da mãe, mostra-se essencial à saúde
mental do bebê. É essa relação complexa, rica e compensadora com a
mãe nos primeiros anos de vida, enriquecida por inúmeras maneiras
pelas relações com o pai e familiares, que a comunidade científica
julga estar na base do desenvolvimento da personalidade e saúde
mental (BOWLBY, 1989, p. 139)
Diante das necessidades emocionais que estão, em geral, na base das manifestações de
agressividade ou timidez excessiva, necessário se faz compreender melhor tais fenômenos
para que se possa pensar em formas alternativas de colaborar com a criança, já que nem todas
poderão contar com o apoio familiar que necessitam
para um desenvolvimento emocional
saudável.
2 MOTIVAÇÕES PARA MANIFESTAÇÃO DA AGRESSIVIDADE EM SALA DE AULA
Winnicott (2005) ressalta que a agressividade constitui tendência humana,
especialmente disfarçada, escondida, desviada, o que torna difícil a identificação das suas
raízes ao se manifestar. As raízes da agressividade, portanto, devem ser consideradas tanto em
torno das relações afetivas primárias da criança quanto no âmbito de impulsos agressivos
285
primitivos, porém, relata que, quando esta se manifesta em sala de aula, nunca é apenas uma
questão de impulsos primitivos.
Não é sempre que a criança poderá contar com o suporte físico e emocional que
demanda. Muitas vezes, os padrões de interação familiar não permitem que a criança sinta-se
amada, protegida. Quando isto ocorre, fica mais difícil para a criança aprender a lidar com
suas emoções, a afetividade e os impulsos agressivos. Posteriormente, tais dificuldades se
manifestam na escola, em sua convivência com professores e outras crianças.
A criança tida como agressiva apresenta, quase sempre, as seguintes características: vão
contra as regras sociais, apresentam baixa tolerância à frustração, explosões de raiva
frequentes, desobediência aos pais, dificuldades nas interações sociais, insucesso escolar,
agride os colegas, os pais, os professores. Em estágio considerado mais grave, a criança já não
aparenta sofrimento psíquico ou constrangimento com suas próprias atitudes e não se importa
em ferir as pessoas ou desrespeita-las. Frequentemente incomoda, ameaça ou intimida os
outros, inicia lutas corporais,
ataca fisicamente as pessoas, mente, furta objetos, não
permanece na sala de aula, pratica vandalismo, dentre outros.
Um aspecto interessante é que a criança, em suas explosões de raiva, sempre atinge
pessoas das quais gosta. Isto ocorre porque a agressividade constitui-se um pedido por
socorro, é uma forma de comunicar a dificuldade que está sentindo em dominar seus impulsos
agressivos. Por este motivo o professor é sempre muito visado nas investidas da criança, pois,
esta acredita que somente poderá ser auxiliada por alguém que se preocupe realmente com
ela. A criança somente é capaz de empregar as atitudes tidas como agressivas, se ainda
possuir um sentimento de esperança. Esperança esta relacionada ao reestabelecimento de
padrão ou estabilidade afetiva que acredita ser necessária para retomar seu desenvolvimento
saudável.
Devido a proximidade e convivência dos professores com os alunos, é possível aos
primeiros auxiliar os educandos em seus conflitos e possibilitar que encontrem na escola uma
situação de segurança suficientemente boa, que propicie a expressão de suas angústias e que
encontrem o acolhimento tão necessário ao reestabelecimento do desenvolvimento emocional
saudável que se perdeu ou foi interrompido em algum estágio.
A esperança e o impulso que levam a criança a buscar o estado de coisas que
existia antes da deprivação, são características de fundamental importância e, para que a cura
seja possível, devem ser reconhecidas pelo ambiente. Se os sinais não forem compreendidos e
desperdiçados a criança não terá condições de retomar o seu amadurecimento normal.
286
Deve-se ter um olhar atento sobre as crianças antissociais antes que se
estabeleçam os ganhos secundários, pois a partir daí a criança tenderá a desenvolver
habilidades delinquentes. Segundo Winnicott (2005) uma criança tem maiores chances de ser
ajudada aos seis ou sete anos do que aos dez ou onze. O tratamento da tendência antissocial
deve ser o manejo, o corresponder aos momentos de esperança da criança.
3 MOTIVAÇÕES PARA MANIFESTAÇÃO DA TIMIDEZ EXCESSIVA EM SALA DE
AULA
A entrada na educação infantil marca um momento em que há um expressivo
alargamento das relações sociais das crianças, que antes se limitavam à família. As
experiências decorrentes de tais relações são muito enriquecedoras às crianças, porém, nem
sempre, elas conseguem se beneficiar tendo em vista o fato de apresentarem condutas que
mais as isolam do que as aproximam do grupo. Isto ocorre porque, em geral, temem não
conseguir se relacionarem satisfatoriamente.
Essas crianças, segundo Falcone (2000), são nervosas e inibidas em novas situações,
possuindo medo de serem avaliadas negativamente. Costumam apresentar sudorese, tremor,
rubor, diarreia, ansiedade, temem exposição a situações sociais, têm dificuldades em fazer
amigos, falam pouco, a voz é baixa, têm medo e se isolam. Por conta disso evitam situações
que lhes causem desconforto, não expressam suas opiniões e se mantém caladas. Em alguns
casos, as crianças se sentem perseguidas, como se alguém quisesse destruí-las, e isto dificulta
muito a aproximação com as pessoas.
Os sintomas psicológicos são mais frequentes que os físicos, causando o medo da
rejeição, pensamentos negativos, perfeccionismo, crenças negativas de adequação social e
déficit de habilidades sociais. Para David Abrahmsen (apud MOTTA FILHO, 1969, p. 35) “a
timidez é em geral, um escudo, um disfarce de hostilidade para consigo mesmo e para com os
demais.”
A família possui importância fundamental neste processo. Falcone (2000) postula que
a rejeição ou super proteção estão ligadas a inibição social. Winnicott (1982) aponta para as
percepções e reações que as crianças têm a respeito da conduta dos pais:
O fator ativo é o pai e a mãe, a conduta de ambos e as relações recíprocas dos
pais, tal como a criança as percebe. É isso que a criança absorve, imita ou
contra o que reage; é também o que a criança usa centenas de vezes num
processo pessoal de autodesenvolvimento.” (WINNICOTT, 1982, p. 204),
287
Como as crianças tímidas, em geral, não são percebidas pelos professores, pois,
geralmente “não dão trabalho”, estas crescem carregando as dificuldades. Cabe a famílias e a
escola trabalhar juntas para compreender e ajudar essas crianças, evitando um possível
comprometimento na sua vida adulta. Se a timidez se torna excessiva pode evoluir para um
quadro de fobia social, causando mais problemas para esse indivíduo nos âmbitos sociais,
profissionais, econômicos, sexuais e familiares.
Em suma, nota-se que tanto a agressividade quanto a timidez estão muito relacionadas
a conflitos/sentimentos vividos pelas crianças em suas relações afetivas primárias. A
diferença é que, no primeiro caso, as crianças tendem a expressar seu mal estar de forma mais
explícita, ao passo que aquelas consideradas mais tímidas, tendem a reprimir seus
sentimentos, não os expressando de forma direta.
4 OBJETIVOS
O objetivo consiste em investigar, do ponto de vista da psicanálise winnicottiana,
dificuldades de relacionamento em salas de aula - sobretudo a agressividade e a timidez -,
privilegiando momentos de intervenção junto às crianças, visando uma melhoria na qualidade
das interações sociais em sala de aula.
5 METODOLOGIA
5.1 Participantes
Participaram da pesquisa, no ano de 2013, 17 (dezessete) crianças de uma escola
municipal de Educação Infantil de Presidente Prudente-SP, sendo 12 indicadas pelos
professores pelo fato de terem condutas agressivas e cinco pelo fato de apresentarem
características relacionadas a uma timidez excessiva.
5.2 Procedimento
A investigação é desenvolvida com base na pesquisa qualitativa, em contribuição com
a teoria winnicottiana. Como os estudos na linha da psicanálise privilegiam a investigação dos
fenômenos psíquicos inconscientes, esta abordagem é utilizada nesse contexto como forma de
compreender os fenômenos que podem estar mobilizando as condutas das crianças.
288
A coleta de dados ocorre por meio de observações e entrevistas com pais e professores
dos alunos e, também, por meio do brincar. É importante ressaltar que o brincar é utilizado
com finalidade dupla no trabalho, isto é, tanto como forma de coleta de dados - já que não
seria interessante se ater somente aos conteúdos provindos de entrevistas - quanto como forma
de intervenção, possibilitando, também, um espaço de possível expressão e elaboração de
conflitos pelas crianças.
A opção pelo brincar se deu por dois fatores. Primeiramente, por se tratar de crianças,
o brincar é algo que está integralmente relacionado com a sua vivência diária, que ocorre a
qualquer momento, com qualquer objeto e em qualquer situação. O segundo fator é que de
acordo com as teorias estudadas sobre o brincar, este é um momento em que a criança aponta
seus medos, suas fantasias e representa aquilo que não consegue expressar com palavras:
Ao brincar, a criança desloca para o exterior seus medos, angústias e
problemas internos, dominando-os por meio da ação. Repete no
brinquedo todas as situações excessivas para seu ego fraco e isto lhe
permite, devido ao domínio sobre os objetos externos a seu alcance,
tornar ativo aquilo que sofreu passivamente, modificar um final que lhe
foi penoso, tolerar papéis e situações que seriam proibidas na vida real
tanto interna como externamente e também repetir à vontade situações
prazerosas. (ABERASTURY, 1992, p. 15)
As brincadeiras não são dirigidas, mas sim espontâneas e realizadas de forma
individual na brinquedoteca escolar. Cada estagiário é responsável por, uma vez por semana,
possibilitar à criança um espaço em que possa brincar. Durante esses encontros, que tem a
duração aproximada de 50 minutos, a criança pode brincar, desenhar, escrever, ler, conversar,
ouvir histórias. O estagiário oferece à criança, além do espaço garantido ao brincar, a
possibilidade de estabelecer um vínculo positivo e empático.
Winnicott (2005) afirma que a atividade lúdica além de possibilitar a expressão e
elaboração de conflitos resulta em efeito terapêutico sem uma atividade terapêutica em
sentido estrito. A atenção e a disponibilidade do pesquisador enquanto acompanha as
brincadeiras das crianças favorecem este efeito terapêutico.
O projeto, nesta perspectiva, propicia a estas crianças momentos de intervenção lúdica,
em que possam externalizar angústias que podem ou não ser decorrentes de sua vivência
escolar e que estejam interferindo na qualidade de seus relacionamentos, buscando promover
289
uma melhoria nos processos interacionais, ao mesmo tempo em que investiga as possíveis
origens de suas dificuldades.
Com relação aos pais cujos filhos seja desejável pela escola a participação no projeto,
é esclarecido que os dados obtidos serão mantidos sob sigilo e, no caso de serem divulgados
em eventos, serão utilizados nomes fictícios. Os pais e professores envolvidos assinam ao
Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.
6 RESULTADOS PARCIAIS
Para apresentação neste artigo serão considerados os dados relativos ao ano de 2013.
Com relação às intervenções, 17 crianças foram atendidas: quatro delas por duas bolsistas do
Núcleo de Ensino; dez crianças por nove estagiários que não dispuseram de bolsa, duas
crianças por uma bolsista BAE (Bolsa de Apoio ao Estudante) e uma por bolsista
PIBIC/CNPq. Esse total se divide da seguinte forma: 12 crianças agressivas e cinco tímidas.
Tais crianças participaram dos encontros lúdicos uma vez por semana, durante 50
minutos, aproximadamente. Participaram, ainda, doze professores, sendo estes do pré I e pré
II, dos períodos da manhã e tarde, e treze pais, juntamente com a coordenadora pedagógica da
escola e a diretora.
Por meio de entrevistas (tanto com relação àquelas relativas aos pais como as dos
professores), observações realizadas pelos estagiários e intervenções lúdicas com as crianças,
pode-se esboçar, ainda que preliminarmente, um perfil das crianças tidas como agressivas
atendidas no projeto: 1- as idades variam entre quatro e cinco anos; 2- há um predomínio de
crianças do sexo masculino; 3- as crianças permanecem, em média, meio período na escola;
4- moram com, pelo menos, o pai ou a mãe e outros parentes como avós, tios e primos; 5- não
apresentam relações satisfatórias com os colegas e professores, mostrando-se briguentos8,
arteiros, sem regras, sem limites, desobedientes, pegam coisas dos outros escondidos, muito
carente, choram quando são contrariados ou brigam, batem, são ciumentos, competitivos;
rebeldes. Quase sempre as demais crianças da sala de aula conversam muito pouco com elas,
pois, as brigas são constantes.
Com relação à questão da aprendizagem, tais crianças apresentam dificuldades de
concentração, distração, não são caprichosas, apresentam desempenhos tidos como razoável
8
Os termos colocados em itálico referem-se, literalmente, às falas dos pais e professores.
290
ou com muita dificuldade, atrapalham a aula, se acham donos da sala, fazem o que dá na
cabeça, emburrados, super estressados, mudam de humor, insistente, agitados, nervosos e
ficam bravos quando contrariados.
No que se refere à dinâmica familiar, em geral, as crianças demonstram sentir falta de
seus pais que, em sua maioria, trabalham muito, moram em outra cidade ou mesmo
encontram-se privados de sua liberdade. Há crianças que não conhecem os pais. O aspecto
comum, nesse caso, é o fato de passarem pouco tempo com os pais e tal tempo não ser de
“qualidade”, além do fato de se sentirem rejeitados por vários motivos. Em geral as relações
afetivas entre as crianças e os cuidadores são marcadas por “falta de paciência”, distância
física e frieza.
As crianças estudadas não ficam doentes com muita frequência; quando fazem alguma
queixa é com relação a resfriados, dores de cabeça e alergias que, embora não ocorram
sempre, podem ser relacionadas a sintomas que encaminham a conflitos internos. Um fato
recorrente é que a maior parte delas passou, ou tem passado, fatos que as fizeram (fazem)
sofrer física e emocionalmente (prisão dos pais, separação, evitação por parte dos pais).
Com relação aos encontros lúdicos, de maneira geral, sempre se mostram receptivos
ao trabalho, assim como afirmam as estagiárias:
“No decorrer desses atendimentos, percebo que nem sempre a criança que tem
características agressivas, apresente tais traços com os estagiários durante o processo da
brincadeira. Aos poucos vamos criando certos vínculos que tornam a criança mais próxima
de nós e dá-nos também a responsabilidade de não falhar com essa criança”. (estagiária G.)
“No primeiro dia, fui buscá-lo na sala de aula e fui muito bem recebida, convidei-o
para brincar e prontamente aceitou”. (estagiária A.)
As crianças, durante as brincadeiras, tinham preferência pelos animais de plástico,
bonecos de super herói, bonecas e brinquedos de montar. Os animais sempre participavam de
brigas, de ataques, de mordidas, ferindo-se uns aos outros e aos bonecos, que normalmente
representavam as pessoas com as quais as crianças estavam em conflito. Também utilizaram
facas (do conjunto de panelinhas) para atingir, brincando, as estagiárias e bonecos e/ou
animais.
As estagiárias sempre eram convidadas a fazer parte das brincadeiras, frequentemente as
crianças brincavam com estas “de morrer”, de “tomar veneno” e outras brincadeiras
congêneres. Há que se ressaltar o fato de os meninos quebrarem muitos bonecos de super
herói, especialmente quando estes representavam seus pais.
291
Questões de ordem sexual apareciam, também, nas brincadeiras. As crianças simulavam
encontros íntimos de maneira sutil e, por meio disso, apontavam dados que remetem à sua
própria vida sexual. Apresentam algumas características comuns durante as brincadeiras:
angústias decorrentes do Complexo de Édipo, concepções sobre si mesmas com base em
valores ou como é vista/tratada pelos cuidadores, conflitos com irmãos, conflitos com a
chegada de novos irmãos, conflitos sexuais, abandono ou rejeição dos pais.
Durante as brincadeiras as crianças não só externalizam seus conflitos e preocupações
como têm a possibilidade de elaborá-los e compreendê-los, tendo em vista, também, o fato de
que certos desejos podem ser manifestados e satisfeitos. Além disso, elas se envolvem com
as estagiárias, sentindo liberdade para conversar, falar o que pensam sobre sua vida, expor
seus medos e insatisfações.
Muitas delas não queriam voltar para a sala de aula, exigindo do estagiário habilidade
para conseguir convencê-las: “semana que vem eu volto para brincar com você”, “vou
guardar os brinquedos e quando você voltar, eles estarão aqui”. As crianças, por sua vez, e
em decorrência de seus conflitos, chegavam a duvidar do que as estagiárias diziam, e
afirmavam: “eu sei que você não vai voltar”, “você não volta não”.
Quanto às crianças consideradas extremamente tímidas, obteve-se o seguinte perfil: 1as idades variam entre quatro e cinco anos; 2- há um predomínio de crianças do sexo
masculino; 3- as crianças permanecem, em média, meio período na escola; 4- moram com os
pais ou com os avós; 5- mostram-se “passivos”, “interagem pouco com colegas”, “não
participam da aula”, “são bem aceitas pelo grupo”, “não se envolvem em confusão ou
brigas”, ”tem vínculo maior com alguns coleguinhas”, “quase não sorriem”, “quando
sorriem é bastante discreto”, “falam baixo”, “são tranquilas”; “não apresentam atos
agressivos para com outras crianças”, “não demonstram sentimento de raiva, de ficarem
bravas ou contrariadas”, são “distantes e “carinhosas”, “choram à toa”, “brigam às vezes
apenas, se isolam até dos amigos”.
No que concerne à questão da aprendizagem, tais crianças apresentam dificuldades
mais relacionadas à participação em atividades que as "exponham" em sala de aula. Com
relação à dinâmica familiar, em geral, as crianças demonstram sentir falta de seus pais que,
em sua maioria, trabalham muito ou encontram-se privados de sua liberdade. O aspecto
comum, nesse caso, é o fato de passarem pouco tempo com os pais ou nunca vê-los, além do
fato de se sentirem rejeitados por vários motivos.
As crianças estudadas não ficam doentes com frequência; quando fazem alguma queixa
é com relação a dores de cabeça. Um fato recorrente é que, a maior parte delas, passou ou
292
tem passado, por fatos que as fizeram (fazem) sofrer física e emocionalmente, notadamente a
ausência permanente dos pais (separações, abandono, prisões e mortes).
Com relação aos encontros lúdicos, de maneira geral, sempre se mostravam receptivas
ao trabalho, porém, levavam mais tempo para obter confiança no estagiário. Na interação com
os brinquedos, no início, alguns não utilizavam o período completo da intervenção, pediam
para sair antes. Houve casos de a criança nem querer brincar, apenas se sentava ao lado da
estagiária e contava sobre sua vida, seus problemas, fazia queixas. Quando estavam brincando
não queriam encerrar a atividade, mas ainda assim, voltavam à sala de aula.
As crianças, durante as intervenções, tinham preferência pelos animais de plástico,
bonecos de super herói, bonecas e brinquedos “de casinha”. Manifestavam o desejo de serem
fortes, corajosos e destemidos, já que passavam por ansiedades e precisavam serem “fortes”
para suportá-las, tais como o nascimento de irmãos gêmeos, medos de uma série de fantasias
decorrentes de nascimentos, medo do escuro, insegurança, medo dos irmãos, ressentimento
com os pais, o desejo de ter brinquedos, o abandono dos pais, o desejo de ter uma família.
Apareciam, também, lutas diversas entre o bem e o mal, podendo sugerir a questão da
ambivalência em suas relações com seus pais.
Questões de ordem sexual apareciam, também, nas brincadeiras. As crianças simulavam
encontros íntimos de maneira explícita e, por meio disso, apontavam dados que remetem à sua
própria vida sexual e, possivelmente a de seus pais. Apresentam algumas características
comuns durante as brincadeiras: curiosidade diante do sexo, angústias decorrentes do
Complexo de Édipo, concepções ou fantasias acerca da sexualidade dos pais.
A respeito do impacto do projeto sobre as interações sociais das crianças, isto depende
muito das condições internas e externas a estas, podendo ocorrer oscilações na evolução das
crianças. Em entrevistas realizadas pelos estagiários, o projeto tem sido bem avaliado pelos
professores envolvidos e pelos pais, que manifestam interesse na continuidade do mesmo.
Afirmam os professores que as crianças (tanto as tímidas como as agressivas) têm
estado mais alegres, tranquilas e mais comprometidas com a realização das atividades em sala
de aula, demonstrando melhora em vários aspectos: as crianças se desenvolveram bastante,
já estão melhor; estão mais tranquilas e alegres; demonstram preocupação em fazer as
tarefas; parou de sumir as coisas; agora [fulano]) tem um bom relacionamento; melhorou
com relação às regras; quando voltam da brinquedoteca ficam quietas, parece que
extravasaram, sentam, fazem a lição; está mais tranquilo; melhorou em tudo; está mais
sociável, as crianças conversam bastante com ele, antes não; dá atenção [às
pessoas];tiveram grande melhora, assimilam melhor, houve melhora em comportamento,
293
obedecem mais, melhorou a parte da agressividade e atenção à lousa; está mais alegre, estão
mais comunicativas; estão mais participativas.
A direção da escola envolvida tem apoiado e colaborado amplamente na realização do
trabalho. Como o projeto está em seu quinto ano em tal instituição, já foi possível estabelecer
um procedimento e uma rotina de trabalho, em que as atividades desenvolvidas já estão
previstas Projeto Pedagógico da Escola. O grupo está bastante empolgado, coeso e satisfeito
com a experiência e está estudando muito para aperfeiçoar o trabalho proposto.
O projeto está se mostrando relevante, também, pois além de colaborar nas relações
interpessoais na escola, tornando o ambiente de sala de aula mais propício ao processo de
ensino-aprendizagem, envolve trabalho preventivo: o quanto antes se puder auxiliar essas
crianças mais elas terão condições de se organizarem emocionalmente, de forma a minimizar
o desenvolvimento de patologias futuras ou atos delinquentes.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
É de extrema importância que a criança tenha um bom relacionamento com os pais ou
responsáveis para que tenha condições de se desenvolver emocionalmente de forma saudável.
Esse bom relacionamento é algo que deve existir desde os primeiros anos de vida e, segundo
Winnicott (1982), falhas decorrentes desse processo podem causar dificuldades no
desenvolvimento emocional e social das crianças.
Ainda que à criança seja oferecida a base necessária a um desenvolvimento emocional
saudável, isto não impede a existência de impulsos agressivos, dado que tais impulsos são
inerentes à constituição do ser humano. A criança começa a lidar muito cedo com a
agressividade e depende, para alcançar uma organização interna que a permita integrar a
própria destrutividade, de um ambiente acolhedor e que a auxilie na lida com seus impulsos.
Para isto é necessário que o professor esteja atento para reconhecer os sinais do aluno e
oferecer apoio e atenção, já que à escola cabe auxiliar a criança, também, em seu
desenvolvimento social.
O processo envolve tratar a criança com autoridade, afeto e
cuidado, ao invés de gritar com ela, excluí-la e estigmatizá-la, algo muito comum nas escolas
e que acaba por agravar o problema.
Ainda que percebam as dificuldades da criança e almejem ajudá-la, a formação
dos professores não os permitem ir para além do procedimento rotineiro, que tende a
desgastá-los muito e não produzir os efeitos desejados. Com a compreensão da criança com
294
dificuldade nos relacionamentos, os professores poderão estar mais próximos de seu mundo
interno e entender o que se passa com ela, de forma a poder refletir sobre alternativas para
auxiliá-la. À medida que forem conscientizados e sensibilizados acerca do desenvolvimento
emocional das crianças bem como sobre suas necessidades afetivas, acredita-se que o
acolhimento será facilitado.
O projeto proporciona às crianças acompanhadas um espaço em que possam
expressar livremente seus sentimentos e emoções através do brincar e a experiência de uma
relação positiva com o aluno estagiário. Trata-se de um tipo de relação que podem não ter em
outro lugar.
REFERÊNCIAS
ABERASTURY, A . A criança e seus jogos. 2 ed, Porto Alegre: Artmed, 1992.
BOWLBY, J. Uma base segura: aplicações, clínica da teoria do apego. Porto Alegre: Artes
Médicas, 1989.
WINNICOTT, D. W. A criança e seu mundo. Rio de Janeiro: Imago, 1982.
WINNICOTT, D. W. A família e o desenvolvimento individual. São Paulo: Martins Fontes,
1997
WINNICOTT, D. W. Privação e Delinquência. São Paulo: Martins Fontes, 2005 .
FALCONE, Eliana. Ansiedade social normal e ansiedade fóbica: limites e fundamentos
etológicos. Revista de Psiquiatria Clinica, v. 27, n.6, jun. 2000. Disponível em:
<http://www.hcnet.usp.br/ipq/revista/vol27/n6/artigos/art301.htm>. Acesso em: 09 mar. 2010.
MOTTA FILHO, C. Ensaio sobre a timidez. São Paulo: Martins Fontes, 1969.
295
SAÚDE MENTAL NA ESCOLA: RELAÇÕES HUMANAS,
ESTUDANTIL E A CONTRIBUIÇÃO DO PSICÓLOGO ESCOLAR
LIDERANÇA
Ana Cristina Paes Leme Giffoni Cilião Torres - UEL
[email protected]
Dayenne Karoline Chimiti Pelegrini - UEL
[email protected]
INTRODUÇÃO
O que se pode pensar a partir do tema saúde mental na escola? Tal pergunta, nos leva a
refletir sobre as diferentes formas de promoção da saúde mental no âmbito escolar. Portanto,
primeiramente é preciso descrever o entendimento do termo saúde mental. Tarefa complicada
e inconclusa, mas que possibilita o pensar sobre elementos importantes que compõem a
questão da saúde mental.
Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), a saúde mental é definida como “o
estado de bem-estar no qual o indivíduo realiza as suas capacidades, pode fazer face ao stress
normal da vida, trabalhar de forma produtiva e frutífera e contribuir para a comunidade em
que se insere”. Vale ressaltar aqui o termo bem-estar, esse conceito implica em reconhecer as
adversidades da vida, sabendo lidar com emoções positivas e também negativas. Dentro dessa
perspectiva e com a experiência na área de Psicologia Escolar, pensar a qualidade da saúde
mental na escola nos torna bastante importante.
Com o cenário educacional que hoje vivenciamos destacar a necessidade de
promovermos o desenvolvimento de emoções e relações sociais positivas nesse contexto são,
portanto fundamentais para o desenvolvimento humano. Entendendo que as interações sociais
vivenciadas pelo indivíduo é a mola propulsora de seu desenvolvimento, o cuidado com as
formas de mediações afetivas que acontecem no meio educativo e sua qualidade, passa a
constituir-se essencial ao olhar do psicólogo.
Ao pensarmos na organização do cotidiano de trabalho no espaço educativo
precisamos destacar que muitas vezes os discursos presentes neste local gira em torno de
referenciais ancorados na “normalidade”. De acordo com Souza et al. (2013, p. 41) o campo
escolar “consolida valores, modos, tempos e marca lugares, classifica e impõe certa ordem ao
mesmo tempo que cria o que escapa a esse padrão, o que é avesso, o que é desordem”,
seguindo prescrições impostas socialmente. Essas formatações acabam gerando conflitos e
desgastes que repercutem a condição de trabalho e conseqüentemente as relações e formas de
296
vivências dos sujeitos envolvidos nesses espaços. Ainda segundo os autores supracitados “as
equipes da educação trabalham cada vez mais de forma acelerada, vivendo os efeitos das
práticas coletivas que tecem as tramas, que sistematizam e naturalizam formas de agir, sem
conseguir entender o que se passa e como criar alternativas às impotências” que são
constantes e crescentes (SOUZA et al., 2013, p. 41).
Assim, quando pensamos na psicologia escolar inserida no campo da saúde mental,
queremos propor uma reflexão acerca das condições que estão postas no campo de trabalho
educacional, ou seja, caminharmos ao encontro do
acolhimento das imprevisibilidades, às tentativas de colocar em
análise coletiva o que é produzido no cotidiano da sala de aula, da
escola, favorecendo a experimentação de outro tempo menos
acelerado, mas talvez mais inventivo, para dar conta do que não
conhecemos, do que suscita problemas porque foge às expectativas e à
ordem vigente (SOUZA et al., 2013, 41).
Além disso, é interessante resgatar que a construção histórica da Psicologia Escolar
esteve muito fundamentada nos pressupostos fisiológicos e biológicos do homem. Manteve-se
como um saber que tinha por intuito prover conceitos e instrumentos científicos que
garantiam à adaptação dos indivíduos a nova ordem social. Em seu processo de solidificação
como campo da ciência lançou mão de procedimentos que sustentaram a prática de
profissionais da psicologia durante o século XX, tais como: classificar os indivíduos,
sobretudo, crianças em idade pré-escolar e escolar primária.
Contudo, nossa perspectiva se estrutura como uma vertente crítica, que ganhou grande
visibilidade na década de 80 do século XX, que tem tentado desconstruir esse movimento.
Essa perspectiva em parte traz uma discussão teórico metodológica dentro de uma perspectiva
emancipatória. As políticas públicas elaboradas no campo educacional tiveram um papel
importante na reconstrução dessa Psicologia Escolar. Nesse sentido, com a Constituição
Federal de 1988 ampliaram-se os horizontes de instâncias em que o profissional da psicologia
escolar poderia atuar. De acordo com essa nova perspectiva educacional pautada em uma
Gestão Democrática, há que se perceber a necessidade de repensar o papel e a função
daqueles que constituem o espaço escolar.
A Gestão Democrática possibilita o exercício da participação e decisão coletiva.
Segundo De Blasi e Falcão (2008, p.71) “A participação dos sujeitos de uma Instituição de
ensino nessa perspectiva implica um processo crítico das relações sociais, das visões de
mundo e de conhecimento”, articular esses vários elementos torna-se fundamental para o bom
andamento do processo educacional em nossas escolas. Porém, também é um desafio a ser
297
perseguido que exige a organização e o entendimento das diferentes instâncias institucionais
para que de fato isso possa acontecer. Dentro deste contexto destacamos o Grêmio Estudantil,
que para a implementação da Gestão Democrática é considerado espaço de formação e
exercício da cidadania. Tendo em vista essa discussão buscamos ampliar conhecimentos que
possibilitasse o entendimento de quais contribuições a Psicologia Escolar poderia oferecer
para a implantação desse projeto, e a partir disso estabelecer ações que favorecem o processo.
Assim, o objetivo desse trabalho é relatar a experiência vivida por meio de nosso
projeto de extensão em uma escola pública do estado do Paraná quanto a formação de
representantes de turma ou líderes estudantis, formação essa, que tem como eixo central a
reflexão sobre as relações interpessoais do dia a dia escolar articulada às formas de expressões
e mediações afetivas vivenciadas pelo grupo. Observamos, portanto, a importância dessa
intervenção para o bem-estar dos participantes, o como a constituição de um espaço de fala e
escuta contribui para o desenvolvimento de capacidades e potencialidades diversas que muito
contribuem para a qualidade das relações interpessoais estabelecidas. A base teórica do
trabalho é a abordagem histórico-cultural. Procuramos resgatar conhecimentos acerca da
concepção de homem e democracia fundamentados por uma perspectiva histórico-crítica
relacionando-os à composição de grupos de trabalho e seus respectivos processos além dos
tipos de lideranças possíveis na constituição dos grêmios.
Compreendendo a escola como espaço privilegiado para o desenvolvimento e
produção de relações, indagamos como as políticas públicas, como a possibilidade e o
incentivo do desenvolvimento dos grêmios estudantis, podem auxiliar a construção de
cidadãos críticos e atuantes, capazes de intervirem na sua realidade. O trabalho foi realizado a
partir de uma revisão de literatura acerca da história da Psicologia Escolar, e as concepções
que a fundamentam e a sua contribuição para a formação de representantes de turma.
Para alcançar os propostos do texto ele foi dividido em três partes que compuseram e
fundamentaram as práticas desenvolvidas nesse projeto. A saber, tratamos da relação entre a
psicologia escolar e sua contribuição para as lideranças estudantis.
Com esse estudo constatou-se que a Psicologia Escolar tem muito a oferecer para a
formação desses representantes e a consequente repercussão para a implantação dos Grêmios
Estudantis nas escolas. Entende-se que dessa forma se contribui também para a constituição e
desenvolvimento de sujeitos comprometidos com mudanças da realidade social. Seguimos
trazendo a metodologia utilizada para a execução do projeto o que nos serve como base para a
elaboração do presente texto. Apresentamos os resultados e discussões obtidos através do
projeto e por fim, as considerações acerca da contribuição da Psicologia Escolar para o campo
298
da saúde mental a partir de projetos que visem as relações interpessoais como a constituição
de lideranças estudantis.
PSICOLOGIA ESCOLAR E LIDERANÇA
Para compreendermos como o psicólogo escolar pode nos auxiliar na construção de
lideranças estudantis, sobretudo na implantação de um Grêmio estudantil, devemos ter uma
noção ampla das possibilidades desse profissional dentro do campo educativo. De acordo com
Martinez (2003, p.107), o trabalho do psicólogo escolar tem como objetivo “contribuir para
otimizar o processo educativo, entendido este como complexo processo de transmissão
cultural e de espaço de desenvolvimento da subjetividade”. Devemos salientar que o campo
de trabalho desse profissional abrange instituições sociais complexas, que segundo Andaló
(1984, p. 46) são “hierarquizadas, resistentes à mudanças e refletem a organização social
como um todo”.
Essa complexidade se encontra em parte, por ser o campo educacional composto por
diferentes sujeitos. Esses sujeitos, então, passam a serem integrantes de grupos diversos. São
formados por vontades, valores, identificações e, sobretudo, pela necessidade de ser
reconhecido pelos outros. Sendo esse um espaço de contrastes, devemos conceituar o termo
grupo para melhor entendermos quais repercussões, dificuldades e anseios existem dentro
dessas instituições. Assim, de acordo com Zimerman e Osório (1997) pode se entender por
grupo tanto um conjunto de três pessoas juntas quanto os grupos de formação espontânea ou
de uma composição artificial, como por exemplo, o de uma sala de aula. No caso do presente
projeto, essa definição é imperiosa já que trabalhamos com o grupo formado pelos
representantes de turma e os ensinamos a trabalhar com o grupo que irá compor o Grêmio
Estudantil, bem como com seus desdobramentos.
Nessa conjuntura se formam os grupos dos quais esses sujeitos passam a fazer parte.
Esses grupos variam desde o núcleo familiar até as relações de trabalho, sempre em uma
busca constante de sua identidade individual e grupal. Como mais uma área da psicologia
escolar, Martínez (2010, p.47)), esclarece que “tradicionalmente, aspectos relacionados com
processos grupais, liderança, estilos de gestão, motivação para o trabalho [...]” muitas vezes
são estudados nas áreas da Psicologia Social ou Psicologia Organizacional e do Trabalho, ou
seja, “não são vistas como próximas da Psicologia Escolar”. No entanto, a autora entende que
os conhecimentos produzidos em relação a tais temas acabam servindo e sendo essenciais
para o trabalho do psicólogo na escola.
299
Para nos auxiliar nessa empreitada, precisamos ampliar nossa visão e enfocarmos
nessa relação entre a questão das constituições grupais, as formas de lideranças e sua relação
com o campo da Psicologia Escolar. Pensando nas constituições grupais, recorremos a Kurt
Lewin. Zimerman e Osório (1997) entendem que Lewin teve grande destaque no campo de
estudos grupais, contribuindo com definições e dando condições para que os profissionais da
psicologia aumentassem suas possibilidades dentro dessa área de pesquisa. Esses autores,
baseados na teoria de Lewin, entendem que os grupos são formados e se mantém a partir da
autenticidade nas comunicações dentro das relações interpessoais que ocorrem nesse
ambiente.
Desta forma, ao pensarmos na constituição de grupos para a formação de jovens
líderes que participam de implantação de Grêmios estudantis a psicologia no campo
educacional pode proporcionar esse aprendizado através do próprio grupo. Segundo
Zimerman e Osório (1997), essa autenticidade pode e deve ser aprendida para que as relações
estabelecidas sejam passíveis de transformações sociais tal qual se pretenda com a instituição
desses Grêmios.
Outro aspecto muito importante que trazemos como elemento essencial para a
formação dessas lideranças, também constituído por Lewin (1944), são os tipos de lideranças
existentes quando pensamos em formações grupais. Pensamos ser fundamental a elucidação
desses conceitos, uma vez que, o próprio manual elaborado pela Secretaria de Estado da
Educação do Paraná para a constituição e implantação dos Grêmios Estudantis nas escolas já
traz um alerta acerca das possibilidades divergentes que podem ocorrer a partir dessa ação.
Entre as ditas “armadilhas” contidas no manual, se encontram os Grêmios tidos como
autoritários ou ditatoriais, que se trata daqueles em que “não permitem a participação” de
todos e “não está voltado para os interesses da maioria”. Outra condição seria o Grêmio
“paternalista ou centralizador”, que se traduz como àquele “bonzinho”, mas que “não deixa
ninguém participar porque acha que, se ele não centralizar tudo, a coisa não anda”. Por fim,
apresenta o Grêmio intitulado “festivo” ao qual se preocuparia apenas com festas e que fica
alheio às “necessidades dos estudantes. É totalmente despolitizado” (PARANÁ, s/d, p.10).
Vimos como crucial levarmos essa discussão a respeito da composição das lideranças,
já que esse é um ponto apresentado e discutido no manual. Assim, subsidiados pela teoria de
Lewin, buscamos sua proposição sobre as três formas de liderar que podem ser encontradas
nas formações grupais. São estilos de liderança, a autocracia, o laissez-faire ou permissiva e a
democracia. Entendemos que levar esse conhecimento às lideranças estudantis é fundamental
para que tenham clareza de qual liderança se pretende com a constituição dos Grêmios. A
300
autocracia, segundo Zimerman e Osório (2010), se trata do tipo de liderança na qual ocorre
total centralização do poder. Esse poder passa a ser exercido através da coerção. Já uma
liderança ao estilo laissez-faire é àquela em que não há efetividade na ação do líder, ou seja,
cada integrante do grupo age como deseja. Por fim, os autores apresentam a liderança
democrática, na qual as decisões são tomadas a partir da maioria e o líder é apenas um
representante de seu grupo.
Ao idealizarmos um projeto para a formação de líderes estudantis, visando a
constituição de Grêmios aos moldes sugeridos pela Secretaria do Estado da Educação do
Paraná, pensamos em uma liderança democrática que consiga alcançar o proposto esperado,
ou seja, “para que os alunos atuem na escola e na comunidade” e “para que desenvolvam a
capacidade de liderança ao aprender, na prática, a fazer política” (PARANÁ, s/d, p. 7) .
METODOLOGIA: RELATO DE EXPERIÊNCIA
A experiência prática apresentada neste recorte trata-se do relato de ações
empreendidas a partir do projeto de extensão desenvolvido no curso de Psicologia de uma
Universidade pública do Paraná.
Com o objetivo de contribuir para o processo de formação de líderes estudantis a partir
da reflexão sobre a organização e estruturação da escola e as relações sociais estabelecidas
nesse processo, nosso projeto buscou por meio de encontros, desenvolver atividades que
possibilitassem aos participantes o entendimento dessas questões, bem como compreender o
papel do líder nesse contexto.
O grupo de participante é composto por 22 alunos de idade entre 14 e 17 anos, que
cursam do 8º ano do Ensino Fundamental ao 2º ano do Ensino Médio, de uma escola pública
da cidade de Londrina, Paraná.
Esse projeto é um projeto de extensão, que tem também como participantes, seis
alunos do 4º e 5º ano do curso de Psicologia, possui uma professora coordenadora e duas
professoras colaboradoras. Com os alunos do curso de Psicologia são feitos encontros
semanais de estudos e preparação da atividade prática a ser desenvolvida na escola. Os temas
estudados até o momento são: Processo de Participação; Gestão Democrática; Movimento
Estudantil, história e condições atuais; Liderança e a formação da Liderança Estudantil; Papel
do líder e sua contribuição quanto ás relações humanas na escola; Grêmio Estudantil, políticas
públicas, implantação, ações e contribuições ao processo educacional de qualidade.
Todos esses temas foram norteadores da nossa ação, bem como serviram de base para
as discussões feitas junto ao grupo de alunos da escola.
301
Nos encontros quinzenais com os líderes estudantis da escola, a metodologia consiste
em dinâmicas de grupo, análise e discussão de vídeos, estudos teóricos e estabelecimento de
ações junto à equipe pedagógica da escola, mediante a proposta de interação e
estabelecimento de relação interpessoal positiva que busque uma aproximação entre o grupo e
o corpo técnico da escola, já que além de propiciar a reflexão sobre as questões relativas á
participação discente na gestão escolar a preocupação também se dá quanto às formas de
mediações estabelecidas entre esses sujeitos. Há sempre o cuidado em não perder o foco das
relações sociais, já que se considera que só por meio dessas interações positivas, pode-se
construir de fato uma escola participativa que vislumbre uma Gestão Democrática.
Entendemos que se essas questões forem respeitadas e valorizadas, é possível construirmos
um espaço que traga bem-estar a todos que o compõem, portanto teremos uma qualidade na
saúde mental desses sujeitos, com vivências mais positivas e que possa propagar para além
dos muros da escola.
RESULTADOS E DISCUSSÕES
Ao traçarmos nesse item a apresentação dos resultados obtidos por meio da execução
do projeto, podemos perceber a importância desse processo. Nossa experiência demonstrou a
grande dificuldade enfrentada hoje pela escola quanto ás relações estabelecidas no âmbito
escolar, trazendo para o contexto educacional um clima de animosidade e de distanciamento
entre aqueles que o compõem, contribuindo para o mal-estar em geral. Na fase inicial de
nosso projeto, nos encontros com o grupo de lideres, quando da discussão do papel e função
dos representantes de turma, ficou claro o quanto esses não compreendiam e nem haviam sido
preparados para o exercício de tal função. Constantes eram as verbalizações de críticas e de
entendimento de que a liderança estudantil deveria estar empenhada em apontar os pontos
negativos da escola. Não havia uma conscientização de que se deveria lutar por um espaço de
discussão e reflexão conjunta das diferentes forças que constituem a escola e de como essas
poderiam se mobilizar para o estabelecimento de ações que contribuíssem para a superação
dos entraves para uma educação de fato qualitativa. Os temas abordados e a metodologia
utilizada ao longo do trabalho até agora tem nos proporcionado o desenvolvimento de
reflexões e consequentemente a partir da compreensão por parte dos lideres de como ao
pensarmos a organização e a estruturação escolar, bem como o papel e a função de cada um
nesse processo é de extrema importância a união daqueles que a constituem, dando um novo
sentido ao fazer e estar na escola. Houve uma notável mudança de atitudes por parte desses
alunos, atualmente observa-se a preocupação em estabelecer diálogo com a equipe
302
pedagógica da escola, trazendo com isso benefícios positivos às relações, construindo-se cada
vez mais formas de mediações positivas. No intuito de se promover uma gestão participativa,
que busque na discussão e reflexão da realidade, traçar novos caminhos de superação de
dificuldades e entraves do aprender e do ensinar, nossa ação junto à liderança estudantil nos
reporta à necessidade de se promover cada vez mais espaços de discussão e participação
coletiva, trazendo para o cenário educativo o estabelecimento de novos valores e modos
educacionais que contribuam para a melhoria das relações interpessoais no cuidar do outro e
com o outro, na busca de espaços mais saudáveis e favoráveis ao desenvolvimento humano.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Toda discussão até aqui empreendida a partir do relato de nossa experiência com o
projeto nos leva a entender a problemática das interações e articulações dos diversos
componentes educacionais. Na diversidade de olhares e sentidos dados à escola, promover
condições de reflexão conjunta, no entendimento do papel, da função de cada um e com isso
vislumbrarmos o todo nos permite a construção de um ambiente mais saudável e agradável a
todos. Diante dessas constatações, ao pensarmos a saúde mental na escola devemos ter a
consciência de que o bem-estar coletivo está diretamente ligado às formas de como se
possibilita a participação coletiva, no exercício da alteridade e do fazer humano.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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e Profissão, Brasília , v. 4, n. 1, 1984 .
DE BLASI, J. e FALCÃO S. Gestão participativa na escola. Rev. Sinergia, São Paulo, v. 9,
n. 1, p. 70-76, jan/jun. 2008.
CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA. Referências técnicas para Atuação de
Psicólogas(os) na Educação Básica. Conselho Federal de Psicologia. - Brasília: CFP, 2013.
MARTINEZ, Albertina Mitjáns. O que pode fazer o psicólogo na escola? Em Aberto,
Brasília, v. 23, n. 83, p. 39-56, mar. 2010.
ZIMERMAN, David Epelbaum; OSORIO, Luiz Carlos. Como trabalhamos com grupos.
Porto Alegre: Artes Médicas, 1997.
303
VIOLÊNCIA SEXUAL CONTRA CRIANÇAS E ADOLESCENTES: UM ESTUDO
SOBRE O PERFIL DOS AGRESSORES
Jair Izaias Kappann; Juliana Possebon Agua, Luis Fernando Rocha. Universidade Estadual
Paulista,UNE SP/Assis. E-mail: [email protected]
O presente trabalho propõe uma reflexão sobre os crimes sexuais cometidos contra
crianças e adolescentes, à luz da legislação vigente e ao quadro teórico da Psicologia. Para
investigar o tema, foi realizada uma pesquisa na Delegacia de Defesa da Mulher (DDM) de
Assis/SP, objetivando estudar o perfil socioeconômico dos agressores que praticaram
violência sexual contra crianças e adolescentes, através do exame dos inquéritos policiais
instaurados.
Os dados estatísticos para a realização do presente estudo provieram da análise dos
boletins de ocorrência e inquéritos policiais instaurados na DDM referentes aos anos de 2010
a 2012. Optou-se por uma análise qualitativa dos dados obtidos, com base na técnica de
análise de conteúdo e modalidade temática, possibilitando uma compreensão mais ampla do
fenômeno estudado.
Nesse contexto, a Porta de Entrada – termo utilizado por Faleiros (2003), referente ao
início do percurso da revelação e da queixa em situações de violência sexual – é a Delegacia
de Defesa da Mulher (Unidade Policial especializada, destinada ao recebimento de
reclamações e tomada de medidas legais, nos casos de crimes em que as vítimas são
mulheres).
Assim, o processo de responsabilização do agressor inicia-se com um registro da
Ocorrência Policial e termina com o recurso da decisão final (caso haja), passando pela
Delegacia de Polícia (DDM), pelo Ministério Público e pelo Poder Judiciário.
A violência sexual infantojuvenil
Segundo Rocha (2006), a violência sexual infantojuvenil pode ser definida como
sendo toda e qualquer conduta ou manipulação sexual por parte de um adulto em relação a
crianças ou adolescentes, com a finalidade de estimulá-los ou utilizar sexualmente para
obtenção de prazer sexual, sem a necessidade de que haja uso de violência ou de força física,
por parte do agressor.
Desde o desenvolvimento da teoria sobre a sexualidade infantil, postulada por
Sigmund Freud (1972), sabe-se que esta faz parte do universo das crianças. Entretanto, ter
uma sexualidade, sabê-la e exercê-la são coisas distintas. Conforme Freud (1972), a
sexualidade está presente na criança, desde o nascimento, mas ela será canalizada para um
304
comportamento sexual somente na vida adulta. Devido a esse fato, as crianças e adolescentes
não estão prontos para explicitarem tal conhecimento e comportamento, por isso, a violência
sexual é tão dolorosa, gerando consequências físicas e psíquicas extremamente negativas nas
vítimas.
A noção de infância que se tem hoje em dia foi social e historicamente construída. A
inscrição simbólica de criança e sua diferenciação da adolescência e da vida adulta
constituíram-se com a sociedade industrial. Antes, na Idade Média, a infância não existia, não
era considerada como uma fase distinta do desenvolvimento humano. E, nesse período de
grande fragilidade humana, rejeição, abandono e infanticídio eram vistos com naturalidade. A
partir das mudanças ocorridas na sociedade industrial, na educação e na organização do
espaço social e familiar, forma-se o conceito de infância e uma nova maneira de perceber esse
período como uma fase em que a pessoa está se desenvolvendo e necessita de proteção do
adulto (ARIÈS, 1981).
A Legislação brasileira e a contribuição da Psicologia
No Brasil, a partir do momento em que a sociedade civil começou a tomar consciência
da gravidade do fenômeno da violência sexual infantojuvenil, fóruns e debates populares
foram organizados e acabaram por pressionar e colaborar para a formulações de leis de
amparo à infância, numa perspectiva de direitos e de proteção integral.
Conforme a Convenção adotada pela Organização das Nações Unidas (ONU), que
retrata o consenso mundial sobre o principio da proteção integral, foi aprovado o Estatuto da
Criança e do Adolescente (ECA), lei n. 8.069, de 13 de julho de 1990, em substituição ao
Código de Menores de 1979 (KAPPANN, 2011).
Eloy (2007) afirma que a necessidade de intervenção da Psicologia nos procedimentos
judiciais está relacionada à busca de soluções para os conflitos, nos quais, na maioria dos
casos, estão envolvidos por situações emocionais e relacionamentos familiares. A principal
função do psicólogo judiciário, nesses casos, é assessorar o Magistrado nas decisões judiciais,
apresentando uma avaliação psicológica das pessoas envolvidas e análise da veracidade das
informações constantes nos autos e dos danos causados às vítimas.
Ainda segundo Eloy (2007), a Psicologia é requisitada mediante quesitos a ser
respondidos pelo profissional ou na utilização do laudo psicológico; tais quesitos são
elaborados tanto por advogados, no intuito de buscar benefícios aos seus clientes, como pelos
Promotores de Justiça e Juízes de Direito, a fim de subsidiar as decisões judiciais e determinar
a culpabilidade ou inocência dos agressores.
305
Além de fornecer avaliação psicológica relacionada às vítimas, o psicólogo jurídico
pode exercer um trabalho com foco no agressor. A avaliação psicológica forense desse tipo de
criminosos pode ter diversos objetivos, como avaliar a saúde mental do indivíduo, podendo
alegar insanidade ou não; definir necessidades específicas desse sujeito, para melhor atendê-lo
em serviços de saúde mental, dentro e/ou fora da instituição penal; prever reincidências
futuras, principalmente em casos de liberdade condicional; e investigar diferenças básicas
entre subgrupos de criminosos sexuais infantis (CHANTRY; CRAIG, 1994).
De acordo com o Código Penal, apesar da inviolabilidade da família e da proteção
contra violações, no seu seio, a Constituição de 1988, no artigo 226, parágrafo 8º, prevê a
necessidade de proteger “[...] cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a
violência no âmbito de suas relações”.
Ainda pelo nosso Código, crimes sexuais cometidos por pai adotivo, padrasto, irmão,
tutor ou curador, preceptor ou empregador, ou qualquer outro tipo de pessoa que tenha
autoridade sobre a criança, não é considerado incesto, pois não reflete as verdadeiras
consequências de uma relação incestuosa. Os crimes sexuais estão inseridos na parte especial
do Código Penal brasileiro, no Título VI dos crimes contra a dignidade sexual.
Anteriormente, era considerado estupro “[...] constranger mulher à conjunção carnal,
mediante violência ou grave ameaça” (art. 213). Desde 2009, as leis contra a dignidade sexual
passaram por reformas e hoje o estupro é considerado, segundo o Código Penal brasileiro,
constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar
ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso.
A partir do art. 217, começam a ser tratados os crimes contra a criança e o adolescente,
no capítulo II dos crimes sexuais contra vulnerável (anteriormente nomeado de capítulo II da
sedução e corrupção de menores). De acordo com o Art. 217-A, é considerável estupro de
vulnerável ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de catorze anos,
com pena de reclusão de oito a quinze anos.
As vítimas de violência sexual
Conforme as estimativas do National Committee for the Prevention of Child Abuse, a
cada ano são relatados aproximadamente 150.000 a 200.000 novos casos de abuso sexual
infantil no mundo. Entretanto, as taxas de ocorrência reais são provavelmente mais elevadas
do que as estimativas existentes, já que muitas crianças vitimadas não são atendidas pelo
poder público, devido ao fato de muitas famílias não formalizarem a denúncia (HABIGZANG
et al., 2005).
306
No entanto, a verdadeira incidência de casos de violência sexual infantil é imprecisa,
pois o número de denúncias ainda é pequeno. O principal responsável pelo tímido número de
denúncias é o pacto de silêncio (DREZETT, 2001) que funciona como arma do agressor em
seduzir e ameaçar a vítima e potencializar nela sentimentos de culpa, resultando no silêncio
sobre o acontecido. A vulnerabilidade da criança deixa-a impotente e faz com que ela
mantenha o silêncio em relação à violência sofrida, com medo do agressor (GUERRA, 2013).
A necessidade da intervenção da Psicologia nos procedimentos judiciais está
relacionada com a busca de soluções para os conflitos, sendo a maioria destes precedidos por
situações emocionais difíceis. O desafio é superar a dicotomia individual e social e trazer para
seu âmbito os componentes sociais que constituem o fenômeno psicológico (ELOY, 2007).
O protagonista da violência sexual
Landini (2003), a partir de uma análise das matérias da Folha de S. Paulo, observou
que, na maioria das vezes, o termo “pedofilia” designa casos de violência sexual infantil,
pornografia infantil e até mesmo de estupro. Nas matérias sobre casos passados no Brasil, os
termos mais utilizados são abuso sexual e estupro, e, em casos ocorridos fora do país, faz-se
uso mais frequente dos termos pedofilia e pornografia infantil.
Quanto à estrutura psíquica dos agressores sexuais, De Masi (2008) afirma que a
organização patológica que domina o pedófilo é um núcleo delirante, no qual a
criança/adolescente é venerada como um ídolo, prometendo um prazer sexualizado. Para o
agressor, a criança não é apenas um ser sexualizado, mas também um objeto com energia e
vitalidade. Para esse autor, a violência sexual infantil pode ser dividida em duas formas: a
pedofilia estruturada – em que os objetos sexuais são exclusivamente crianças ou adolescentes
– e a pedofilia ocasional – em que o adulto tem uma vida aparentemente normal e relaciona-se
com outros adultos, existindo certo grau de consciência e culpa pelo ato criminoso.
Serafim et al. (2009) enfatizam que a pedofilia é caracterizada em duas classes: os
abusadores e os molestadores. Os abusadores são caracterizados pelo perfil psicológico
imaturo. Em algum ponto de sua vida, descobre-se a possibilidade de obter prazer sexual com
crianças. Já o molestador tem um perfil mais invasivo, sendo o uso de violência recorrente por
esse tipo de indivíduos.
De Masi (2008) define ainda a agressão como podendo ser romântica ou cínica. A
pedofilia romântica se alimenta da figura idealizada e erotizada da criança, de modo que o
mundo do agressor está centrado na vida dos menores, seja no aspecto afetivo, seja no
imaginário erótico. Já no pedófilo cínico, a excitação mental só é alcançada imaginando maus
307
tratos ou violências sobre a criança, tornando-a um objeto submisso e sem sentir nenhum
fascínio pelo mundo infantil, como acontece na pedofilia romântica.
Além da psicoterapia, mencionada anteriormente como forma de tratamento, existem
programas de prevenção de recaídas para violentadores sexuais de crianças e adolescentes. De
acordo com Spradlin et al. (2003), os programas para prevenção de recaídas para agressores
sexuais infantis (localizados nos Estados Unidos) dependem de o indivíduo querer mudar, de
tratamentos anteriores e da capacidade de autocontrole.
A prevenção de recaídas é um programa de manutenção, incluindo avaliações
cuidadosas das violações do agressor e dos eventos antecedentes a estas, conhecimento da
história do paciente e de sua admissão de suas violações, desenvolvimento de metas,
substituição de atividades que proporcionem comportamento de violação por novas
habilidades de vida e monitoramento do agressor, por um longo período. Como esse tipo de
tratamento é quase todo verbal, a eficácia depende da relação estabelecida entre o
comportamento verbal e os estímulos e eventos que levam ao crime sexual (SPRADLIN et al.,
2003).
Percebe-se que não existe a ideia de eliminação do comportamento sexualmente
ofensivo, apenas a crença de autocontrole. Para os autores, maior investimento e reajustes em
tais programas deveriam ser realizados. Os custos seriam altos, mas não mais altos e nem
mais invasivos do que as prisões, além de proteger a sociedade e proporcionar ao indivíduo
uma convivência social e, consequentemente, diminuir a incidência de ataques sexuais
(SPRADLIN et al., 2003).
A violência sexual infantil, quando cometida por indivíduos de classes sociais
abastadas, é vista como doença mental de uma pessoa que sofreu traumas na infância. Já
quando cometida por indivíduos de classes socioeconômicas pobres, o tema é abordado como
violência. Assim, a mídia contribui para a construção de uma visão do senso comum de que a
violência é fruto da pobreza, enquanto, nas classes mais ricas, é vista como desvio psicológico
(FIGUEIREDO, s.d.).
Dentro dos tribunais, em vários discursos da população e até mesmo nas famílias de
crianças violentadas sexualmente, é notória a culpabilização das vítimas pelo acontecido e até
mesmo a negação do ato, em determinadas situações (SCHMICKLER, 2006).
Esse tipo de violência é extremamente ambivalente, por isso algumas questões devem
ser esclarecidas para maior entendimento. Na perspectiva de Ferenczi (apud MENDES,
2012), o traumatismo psíquico decorrente da violência sexual não resulta apenas do evento
em si, mas ainda da reação dos adultos e de sua indiferença diante do sofrimento da criança.
308
Muitos adultos classificam as revelações da criança como “fantasiosas”, fruto de sua
“imaginação”, não dando crédito ao relato, principalmente quando o agressor é uma pessoa
próxima da família ou mesmo um familiar, o que faz com que esta tenha mais dificuldades em
aceitar o fato.
Por outro lado, quando a criança é estimulada a contar várias vezes a história, isso
causa um grande sofrimento psíquico. Normalmente, isso faz com que a criança passe a negar
o relato e a dizer que mentiu, inventou, o que faz com que ela minimize o seu sofrimento
psicológico e, em caso de depoimento na justiça, pode inocentar o agressor por falta de
provas.
De acordo com os desenvolvimentos freudianos da realidade psíquica e do complexo
de Édipo, a criança deseja seduzir o adulto com sua linguagem de ternura (sexualidade prégenital e lúdica). Porém, ao se deparar com a sexualidade genital de um adulto perverso, suas
fantasias inconscientes de sedução com respeito ao adulto tendem a se confundir com a
realidade, produzindo um forte sentimento de culpa na vítima. Esse processo é chamado por
Ferenczi (apud MENDES, 2012) de “confusão de língua”, levando a vítima a pensar que foi
ela a culpada pela agressão.
Um comportamento comumente observado em crianças vítimas de violência sexual é a
atitude de passividade extrema, de maneira a obedecer mecanicamente ou a se fixar em uma
atitude obstinada. Ferenczi desenvolveu a hipótese metapsicológica de que a clivagem de
extensão poderia ser uma explicação para a instalação de tais configurações psíquicas
permeadas pela passividade (apud MENDES, 2012).
De acordo com o Vocabulário de Psicanálise, de Laplanche e Pontalis (1988), a
clivagem do ego pode ser definida da seguinte maneira:
Expressão usada por Freud para designar um fenômeno muito
particular que ele vê operar sobretudo no fetichismo e nas psicoses: a
coexistência, no seio do ego, de duas atitudes psíquicas para com a
realidade exterior na medida em que esta vem contrariar uma
exigência pulsional: uma tem em conta a realidade, e outra nega a
realidade em causa e coloca em seu lugar um produto do desejo. Estas
duas atitudes persistem lado a lado sem se influenciarem
reciprocamente. (p.49).
Freud (1938) relaciona a clivagem egoica à rejeição de um fragmento da realidade,
cujo resultado consiste sempre na formação de duas atitudes opostas que convivem lado a
lado sem entrar em conflito. Para Ferenczi, a clivagem é consequência de um trauma e está
associada com a tentativa de encobrir o trauma e com manifestações de desorientação
psíquica (apud MENDES, 2012).
309
A identificação com o agressor pode instalar duas figuras no psiquismo: a criança
maltratada e o agressor, que atua de forma semelhante ao superego sádico. Quando o
psiquismo não puder suportar a parte que representa o agressor, esse fragmento é projetado
para o mundo externo, sendo levado a agir como um sádico. O resultado é um indivíduo que
tenta destruir o que projetou no mundo externo, agindo ele próprio como um violentador
(MENDES, 2012).
Todavia, muitos agressores sexuais não sofreram qualquer tipo de violência sexual em
suas infâncias, porém, tiveram uma infância da qual saíram de forma traumática, em seguida à
perda da confiança nos pais. Assim, estes se refugiam em um mundo sexualizado, fonte
contínua de excitação e sustentação. O comportamento sexual desviante geralmente origina-se
na primeira infância de crianças abandonadas e afetivamente carentes (DE MASI, 2008).
Resultados e discussão
Foram identificados 72 casos de violência contra crianças e adolescentes ocorridos em
Assis-SP, no período de 2011 a 2012, dos quais apenas 55 se enquadravam nos requisitos da
pesquisa e apenas 15 inquéritos policiais foram acessados.
Dentre os 55 casos relatados, existiram 68 vítimas, das quais 15 eram do sexo
masculino e 53 do sexo feminino. Em 07 dos casos relatados, existiu mais de uma vítima,
porém, o perfil do autor foi único em todos os relatos. A maioria dos autores era adulta, com
exceção de dois relatos, onde a idade era de 13 e 15 anos. Já a idade das vítimas variou de 01
a 17 anos.
Quanto à idade, o Estatuto da Criança e do Adolescente considera a infância até os
doze anos não completados. Contudo, a presente pesquisa optou por seguir as normas do
Código Penal, onde vítimas menores de quatorze anos são consideradas vulneráveis. De
acordo com tal Código, 53 vítimas eram vulneráveis e apenas 16 tinham idade a partir de
quatorze anos completos.
A maioria dos representantes das vítimas que efetivaram a denúncia na Delegacia foi a
mãe, presente em 41 casos. O pai só apareceu como representante em 03 casos. Os demais
variaram entre policiais, funcionários de instituições, como a escola, o programa Pétala, Casa
de Acolhimento e conselheiros tutelares, enfermeiros e, em um caso, a tia foi a representante.
Tabela 1: Tipo de crime sexual perpetrado, consoante as faixas etárias estudadas
Crime sexual
Crianças
Adolescentes
Total
F
M
F
M
N
%
310
Estupro
3
0
4
0
7
10,3
Estupro
+ 0
0
1
0
1
1,5
Estupro +AVPA
0
0
1
0
1
1,5
AVPO + AVPA
0
7
0
0
7
10,3
AVPO
1
0
0
0
1
1,5
AVPA
0
0
1
0
1
1,5
AVP
17
4
1
0
22
32,4
CCC
6
0
5
1
12
17,5
Suspeita
6
1
0
0
7
10,3
Outro
5
2
2
0
9
13,2
Total
38
14
15
1
68
100
AVPO
AVPO: Atentado Violento ao Pudor com coito oral
AVPA: Atentado Violento ao Pudor com coito anal
CCC: Conjunção carnal consentida
Verifica-se que o atentado violento ao pudor foi a violência mais praticada pelos
agressores. As agressões de caráter anal e oral aparecem em maior número em crianças do
sexo masculino. Outro dado é que doze vítimas tiveram conjunção carnal consentida com o
agressor, o que mostra o caráter sedutor e distorcido da violência praticada. Em crianças
muito pequenas, a agressão é mais difícil de ser identificada, permanecendo apenas uma
suspeita.
Durante o período examinado na investigação, apareceram apenas duas agressoras
mulheres. As características de ambos os crimes foram semelhantes, sendo as vítimas do sexo
masculino e já adolescentes, com a menção de uma relação amorosa e consentida entre eles.
Além disso, os crimes, mesmo tendo se dado há algum tempo, ainda são lembrados
pelas funcionárias da Delegacia e, aparentemente, as deixam mais indignadas do que os
crimes cometidos por homens, mesmo estes sendo, do ponto de vista da violência física
ocorrida, mais graves do que os cometidos pelas mulheres.
Tabela 2: Tipificação de 50 agressores identificados como responsáveis pela perpetração do
crime sexual, consoante as faixas etárias estudadas
Agressor
Crianças
Adolescentes
Total
Pai Biológico
F
M
F
M
N
%
06
06
0
0
12
19,8
311
Padrasto
06
0
01
0
07
11,5
Avô
04
01
0
0
05
8,2
Tio
03
0
0
0
03
4,9
Vizinho
03
0
01
0
04
6,5
Parceiro atual
01
0
04
01
06
9,8
Conhecido
08
06
04
0
18
29,5
Desconhecido
01
0
03
0
04
6,5
Outro
02
0
0
02
3,3
Total
34
13
01
61
100
0
13
Alguns autores se repetem na tabela, pois são os mesmos violentadores de mais de
uma vítima, portanto, o total tem referencial no número de vítimas.
Em cinquenta casos, foi possível estabelecer um grau de proximidade entre as vítimas
e seus agressores. Nos outros 05 casos, a falta de informações não permitiu tal análise. Em 08
casos, o pai apareceu como o agressor (com 12 vítimas) e, em 06 casos, foi o padrasto/amásio
da mãe. Em apenas 04 casos, o autor era desconhecido das vítimas. Em outras 09 ocorrências,
o autor foi outro familiar e em 05, foi o namorado.
Tabela 3: Local da abordagem do agressor, consoante as faixas etárias estudadas
Local
Crianças
Adolescentes
Total
F
M
F
M
N
%
do 16
06
03
01
26
42
da 03
0
01
0
04
6,5
do 08
04
01
0
13
21
de 0
01
0
0
01
1,6
de 01
0
01
0
02
3,2
Creche/Escola
02
0
0
0
02
3,2
Carro
01
0
01
0
02
3,2
Outro
04
01
07
0
12
19,3
Residência
agressor
Residência
vítima
Residência
agressor/vítima
Residência
familiares
Residência
conhecidos
312
35
Total
12
14
01
62
100
Pelas informações contidas no material coletado, foi possível identificar o local do
crime de 49, dos 55 casos (com, no mínimo, uma vítima). Dez dos casos de violência
aconteceram na residência de ambos, autor e vítima. Em 26 casos, a violência ocorreu na
residência do autor e, em apenas 03 casos, na casa da vítima.
A maioria dos crimes se passou em local conhecido das vítimas e autores, variando
entre suas residências, escola e casa de familiares e conhecidos. Em dois relatos, a violência
foi virtual. Em apenas dois casos, as vítimas foram levadas para uma residência desconhecida
e, em outro, para um motel. Em uma quarta denúncia, houve um estupro consumado em um
terreno baldio.
Apesar da menor porcentagem em casos relatados, a violência sexual contra crianças e
adolescentes eventualmente é cometida por mais de um agressor. Existem dados consistentes
que apontam sequelas psicológicas mais severas, quando esse tipo de crime é cometido por
múltiplos perpetradores (KELLOGG, 1997).
Para Figueiredo (s.d.), a pedofilia não é apenas resultado de um conjunto de aspectos
psicopatológicos do sujeito, mas também pode ser favorecida por aspectos políticos (relações
de força e de poder entre dois grupos), sociais (sociedade do consumo e espetáculo que visa a
prazeres imediatos e a qualquer custo) e econômicos (a pornografia infantil e o tráfico
internacional de crianças e adolescentes para fins comerciais).
A principal ponte para contato entre agressor sexual e a Psicologia é o sistema
judiciário. Esse tipo de violência apresenta interface com questões policiais e jurídicas,
exigindo da equipe interdisciplinar conhecimentos apropriados de medicina legal e sexologia
forense. Em acréscimo, a negligência dos profissionais com os aspectos de treinamento e
capacitação, paciência e experiência pode resultar na revitimização do paciente pelos serviços
de saúde (DREZETT, 2001).
Já em relação à figura do agressor, faz-se necessário o desenvolvimento de um
programa de acompanhamento multidisciplinar dentro do sistema judiciário, objetivando o
tratamento de problemas psicológicos desses indivíduos. Com isso, seria possível trabalhar
preventivamente na ocorrência de novos casos de violência, até porque a reincidência na
prática dos atos, principalmente nos casos de pedofilia, é muito grande. Com isso, estaríamos
atuando indiretamente na proteção integral das crianças e adolescentes, tal como preconiza o
Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).
313
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316
QUAL LUGAR CONSTRÓI O PROFISSIONAL DE PSICOLOGIA NO CAMPO DA
SAÚDE MENTAL?
ANDRÉIA MARIA DE LIMA ASSUNÇÃO
Ruzia Chaouchar dos Santos
[email protected]
Cuiabá-MT
Introdução
O presente relato de experiência surgiu a partir de visitas ao Complexo Integrado de
Atenção Psicossocial (CIAPS) Adauto Botelho - Cuiabá/MT. A inserção das estudantes de
psicologia na referida instituição propiciou reflexões acerca da concepção de doença mental
existente nas práticas profissionais, visto que esta irá embasar as ações envolvidas no
tratamento destinado as pessoas em sofrimento psíquico. A fim de buscar uma compreensão
efetiva acerca da instituição CIAPS Adauto Botelho, é necessário realizar uma
contextualização histórica do desenvolvimento de saúde mental em Mato Grosso a partir da
implantação da referida instituição, de modo a refletir sobre a trajetória de seus aspectos
estruturais, e os processos de mudança conduzidos pelos pressupostos da Reforma
Psiquiátrica e da Luta Antimanicomial no país.
Assim, pretende-se problematizar a atuação do profissional psicólogo, com o objetivo
de desnaturalizar as práticas de dominação existentes no campo da saúde mental. Diante
disso, é preciso desinstitucionalizar saberes e práticas, assim como a formação acadêmica,
questionando as formas instituídas que atravessam as ações destes profissionais,
principalmente aquelas que podem ser entendidas como instrumentos de poder e controle
social. Neste sentido, os pressupostos teóricos que orientam este trabalho são baseados nas
contribuições de Amarante (2007), Bezerra (2008), Canova (2006, 2013), Oliveira (2005),
Pinheiro (2009), Goffman (2008) e Silva (2011).
O levantamento de dados foi realizado em duas etapas. Primeiramente, a análise
compreensiva do conteúdo do Projeto Terapêutico dos postos de internação dos usuários do
CIAPS Adauto Botelho – Unidade I, que forneceu informações relativas ao histórico da
instituição, considerações acerca da condução terapêutica, funcionamento das equipes,
serviços e atividades realizadas, dentre outros aspectos.
E, posteriormente, foi realizada a observação participante. Segundo Barros e Lehfeld
(1990) a observação é uma das técnicas de coleta de dados imprescindível em toda pesquisa
científica. Observar significa aplicar atentamente os sentidos a um objeto, para dele, adquirir
317
um conhecimento claro e preciso. A maior vantagem do uso da observação está relacionada
com a possibilidade de se obter a informação na ocorrência espontânea do fato, de modo a
obter dados mais próximos à realidade e, portanto, mais fidedignos, colaborando para uma
análise de maior qualidade.
Por meio da utilização da instituição como viabilizadora ao acesso aos usuários do
serviço de saúde mental, a relevância deste estudo é constatada, à medida que, ao buscar esta
compreensão, fomentam-se análises e reflexões que possam colaborar para a elaboração de
novas propostas de serviços a serem realizados, assim como possibilita cogitar formas de
atuação profissional interdisciplinar, proporcionando uma base mais ampla e sólida para a
formação do profissional psicólogo.
A atuação e inserção da psicologia na saúde mental: algumas considerações
Compreende-se que a atuação do profissional de psicologia no Brasil é recente, e com
a regulamentação da profissão em meados da década de 1960, o psicólogo começou a
trabalhar em quatros principais áreas, a clínica, a escolar, a industrial e o magistério.
Atualmente, de acordo com Dimenstein (apud PINHEIRO, 2009) “[...] esse campo de atuação
aumentou, principalmente no setor público, e entre as áreas de atuação que o psicólogo
conquistou está a assistência pública à saúde.” (p. 38).
Ainda de acordo com a autora (2009), este movimento não ocorreu de forma isolada,
visto que decorre de mudanças econômicas e políticas significativas no país, como, por
exemplo, o processo de reforma nas políticas públicas de saúde que aconteceu no final da
década de 1970 e na década de 1980, o que possibilitou a entrada de profissionais de outras
áreas de conhecimento na saúde pública, e dentre estes, os psicólogos.
A partir desta nova configuração no âmbito da saúde, proporcionada pela Reforma
Sanitária – que também foi responsável por alterações na atuação e nas estratégias utilizadas
pela psicologia –, é importante ressaltar que, com a inclusão desta área de conhecimento, foi
evidenciado um interesse e questionamento no que diz respeito ao papel social do profissional
psicólogo. Dessa forma, Pinheiro (2009) pontua que o foco da saúde é alterado para os
profissionais, incluindo-se o profissional de psicologia atuante principalmente na saúde
mental, de modo que esta destitui-se de um modelo assistencial e direciona-se para
[...] ‘o conjunto de condições coletivas da existência [...]; superando, dessa forma,
uma concepção medicalizada da saúde’. Priorizava-se a formação de equipes
multiprofissionais, ampliando assim a abertura para profissionais de diferentes áreas,
318
apostando em uma ‘[...] visão integral do sujeito usuário [...]’. (DIMENSTEIN apud
PINHEIRO, 2009, p. 38-39).
Assim, a inserção do psicólogo no campo de saúde mental desencadeou uma abertura
no mercado, visto que houve um aumento no contingente de contratação desses profissionais
no setor público, diferenciando-se do modelo de atuação privado vigente até então, o que
colaborou para a modificação da noção de responsabilidade social da referida categoria
profissional. Portanto, é possível notar que as demandas de mercado desta profissão aparecem
de maneira diferenciada neste período, de modo que, o que anteriormente era voltado para
uma população pertencente à classe média e era pautada em um modelo privado, passa a
estabelecer uma relação mais próxima às comunidades pela inserção destes profissionais no
setor público (PINHEIRO, 2009).
A reflexão sobre a construção da prática clínica junto ao processo de reforma nos
situa frente às possibilidades de criar outras formas de atuar e perguntar: de que
clínica estamos falando? Como vem sendo forjada? Ela não vem pronta e não está
dada, mas entendemos que segue o fluxo da vida e está presente no cotidiano.
(PINHEIRO, 2009, p. 40)
A autora propõe que o dia-a-dia de um serviço tem o potencial de adquirir outras
dimensões, de modo que estas podem ir para além das estruturas físicas da instituição como,
por exemplo, pela realização de um passeio. Este modo de perceber a atuação denuncia que as
práticas cristalizadas foram assim legitimadas por uma construção histórica, o que permite
reconhecer que não foi dada a priori e que, portanto, pode ser desmontada para, então, assumir
outras definições e formas. Desse modo, o processo de desinstitucionalização ocorre no dia-adia de trabalho, não se limitando, portanto, a um processo de reforma, mas pode ocorrer a
partir da expansão e movimentação de formas de atuar que coloquem em análise as práticas
de dominação existentes.
Para que isso ocorra é preciso ‘desinstitucionalizar’ nossos saberes e práticas, nossa
formação acadêmica, questionando as formas instituídas que atravessam nossos
cursos e que produzem um saber sobre o outro, tomando como verdade absoluta, e
que nos servem mais como instrumentos de poder e controle social (DIMENSTEIN
apud PINHEIRO, 2009, p.41).
Para tanto, Pinheiro (2009) propõe que há a necessidade de romper com a lógica de
doença-cura para que os profissionais e, por conseguinte, suas intervenções, sejam capazes de
proporcionar outras formas de ser e estar na situação de trabalho, criando-se assim ocasiões de
319
questionamento e de reformulação de saberes e práticas que precisam ser suscitados
diariamente e em conjunto com a atuação profissional.
Desse modo, a saúde passou por mudanças e reformas desde a década de 1970, que
ficou conhecido como Movimento de Reforma Sanitária, visto que, era importante no
contexto da saúde construir outras práticas e saberes.
Dessa forma, este movimento
conquistou dimensões políticas e lutou por um programa de saúde integral e descentralizado,
o que deveria propiciar uma universalidade ao acesso. Este movimento culminou na VIII
Conferencia Nacional de Saúde, um marco na luta em prol do Sistema Único de Saúde. Nessa
perspectiva, o sistema de saúde do Brasil foi respaldado pela Constituição de 1988, e
apresentou como princípios norteadores: a integralidade, a equidade e o acesso
universalizado. Acrescenta-se ainda que, a partir deste período, iniciou-se o desenvolvimento
de programas da saúde (PINHEIRO, 2009).
No que concerne à saúde mental, o movimento da Reforma Psiquiátrica começou a
ganhar apoio a partir de uma série de eventos que deflagraram a Crise da Dinsam (Divisão
Nacional de Saúde Mental), em que os profissionais de saúde iniciaram uma greve que
denunciava a assistência prestada e a precariedade com que trabalhavam. Após este processo,
iniciou-se a criação do Movimento dos Trabalhadores da Saúde (MTSM) que concebeu as
iniciativas pela reforma que contaram com a participação de outros movimentos
(AMARANTE apud PINHEIRO, 2009). Neste contexto, formou-se a organização do
movimento da Luta Antimanicomial, que teve como ressonância a criação de portarias, leis,
além de movimentos que tinham como objetivo encontrar outras formas de conceber a
loucura, visando a desinstitucionalização.
Dessa forma, a Reforma Psiquiátrica no país apresentou influência da Reforma
Italiana, pela iniciativa de Franco Basaglia, a qual procurou desmontar o modelo vigente das
instituições psiquiátricas clássicas, através da ruptura do paradigma racionalista problemasolução (doença-cura). Nessa perspectiva, Pinheiro (apud ROTELLI, 2009) aponta que “[...] o
mal obscuro da psiquiatria está em haver separado o sujeito fictício, a doença, da existência
global complexa e concreta dos pacientes e do corpo social.” (p. 25).
Desse modo, compreende-se que o processo de desinstitucionalização deve ser
realizado trabalhado diariamente pelos profissionais, que devem estar empenhados em
dinamizar e potencializar este processo a partir de suas práticas, visando a mudança do
paradigma doença-cura, através do oferecimento de outra forma de relação, tanto para quem
busca o atendimento, como também para a pessoa que chega desacreditada no sistema de
saúde (PINHEIRO, 2009).
320
Foi neste contexto que a presença de psicólogos foi considerada relevante nas
unidades de saúde, e se tornou propícia pelo estabelecimento de serviços tais como os Centros
de Atenção Psicossociais (CAPS) e, posteriormente, pela criação de Serviços Residenciais
Terapêuticos (SRT). Pinheiro (2009) pontua ainda que alguns serviços já passaram por
reformulações de portarias, contudo, é importante ressaltar que os espaços abertos, as oficinas
e a equipe multidisciplinar não são por si mesmos produtores de liberdade, uma vez que, um
novo modelo assistência não necessariamente se configura como uma ruptura com o modelo
doença-cura.
Desse modo, é necessário que os indivíduos se sintam provocados a realizar mudanças
nas relações com os usuários, visto que, a atenção à saúde deve ser compreendida a partir da
complexidade da relação do indivíduo com seu sofrimento psíquico. Sendo assim, é
importante que o profissional da área da saúde
[...] sair de trás da mesa de atendimento, do lugar de suposto saber, para usar outras
estratégias, ocupar outros espaços e apostar em outras abordagens, como nos
encontros que acontecem no corredor, com os familiares, nas festas, nas ruas, nas
idas e vindas à praia. São situações possíveis de intervenção que acontecem dentro
e fora dos serviços, e que abrem vistas a outra estratégia clínica que inclui os
atendimentos individuais, mas não se restringe a eles, e se expande para
atendimentos em grupo, participação em feiras, realizações de oficinas, movimentos
comemorativos, participação nos blocos de carnaval, caminhadas, visitas familiares
etc. (PINHEIRO, 2009, p.29).
Desse modo, compreende-se que a autora propõe a importância de pensar nesse
movimento através dos efeitos produzidos nos serviços, considerando-os para fora de seus
espaços oficiais. No que concerne aos novos serviços e estabelecimento do governo,
compreende-se que houve um aumento dos serviços substitutivos, que propõe alterações ao
modelo clássico de atenção, promovendo, portanto, a expansão do Movimento de Luta
Antimanicomial em quase todas as regiões brasileiras. Este movimento que tem como lema
“Por uma sociedade sem manicômios” iniciou-se entre os anos de 1986 e 1987, buscando
atuar junto às comunidades e governantes locais, com a finalidade de criar dispositivos para
suprimir os manicômios, em prol da ampliação da rede de atenção substitutiva como foco da
atenção a saúde (PINHEIRO, 2009).
Contudo, é importante salientar que ainda há manicômios e hospitais psiquiátricos em
todo o país e muitos funcionam com um número significativo de leitos ocupados,
apresentando internações de longa permanência. Entretanto, o aumento da oferta de novos
serviços colaboram para a modificação deste panorama, visto que foi observada a redução
crescente de leitos e internações. Neste sentido, compreende-se que novas propostas estão
321
sendo realizadas a partir dos pressupostos que priorizam a convivência com os familiares e a
comunidade, provocando alterações na lógica de atendimento vigente até então (PINHEIRO,
2009).
É importante acrescentar ainda que, de acordo com Pinheiro (2009), a partir da
reformulação das portarias que regulamentam os serviços de saúde oferecidos pelos CAPS
ocorreram alterações visando a ampliação da rede que, ao contrário de se reduzir à uma rede
de serviços assistenciais que se responsabiliza por um determinado problema, passa a propôr
uma atuação implicada na tentativa de compreender a complexidade do indivíduo.
Breve descrição acerca da implantação da Chácara dos Loucos, atualmente, CIAPS Adauto Botelho
Segundo Bezerra (2008), foi implantada no Brasil uma política de higienização social
no século XIX. Esta política era baseada nos ideais de modernidade advindos das nações
europeias. Assim, começaram a surgir as primeiras instituições médicas no Brasil, que
funcionavam como hospedarias de cidadãos ditos “loucos”. Estas não apresentavam cunho
terapêutico, e passaram a cumprir uma função de ordem social e política mais explícita, de
modo que o processo de internação foi realizado como prática de recolhimento dos indivíduos
que representam a desordem, a partir de um projeto de controle social à serviço da
institucionalização de modos de pensar e de agir. Desse modo, submetida aos projetos
modernizadores no final do século XIX e início do século XX, a loucura foi transformada em
problemática no âmbito do projeto de construção de uma nação moderna (BEZERRA, 2008).
Na perspectiva de Goffman (2008), instituições de internações são espaços em que as
pessoas são separadas do convívio social por um período de tempo, no qual levam uma vida
fechada, regida por obrigações e regras iguais para realização de atividades impostas, e que
ocorrem sob administração rigorosa e formalmente administrada.
Segundo Oliveira & Alessi (2005), o estado de Mato Grosso também aderiu a estes
pressupostos de civilidade e modernidade, mesmo que de forma lentamente. A região,
nomeadamente conhecida na época como local de atraso e babárie, tal projeto foi então uma
maneira de confrontar a estas representações comumente disseminadas. Assim, Canova
(2013) afirma que as medidas de higienização foram tomadas como instrumentos para a
implantação deste modelo de sociedade, de modo que a repressão social e a
322
institucionalização, principalmente dirigidos aos considerados vagabundos, infratores, os
leprosos e, mais tarde, aos loucos, tornaram-se estratégias para alcançar este fim.
Nesta perspectiva, conforme Oliveira & Alessi (2005), a primeira forma de
institucionalização de práticas destinadas à assistência de saúde mental no estado de Mato
Grosso, aconteceu em 1896, quando foi criada a Santa Casa de Misericórdia em Cuiabá. Esta
medida refletia a adesão do estado aos pressupostos de uma nova nação civilizada e moderna
que estava sendo difundido em nível nacional.
Nesse contexto, devido às preocupações governamentais com as questões higiênicas,
sanitárias e de modernização e reorganização dos espaços urbanos, no ano de 1905 foi
fundada a Enfermaria de Alienados na Santa Casa de Misericórdia na cidade de Cuiabá, que
foi medida de assistência à portadores de doença mental baseada no modelo biomédico. E em
anos posteriores, 1908, com o objetivo de evitar fugas, a enfermaria é configurada a partir de
um modelo prisional, no qual os doentes permaneceriam com a liberdade restrita. O local
passa a cumprir, então, o papel de preservar a ordem moral e era regida pelo saber médico, o
que culminou na marginalização e na representação do louco como perigo.
Porém, a presente enfermaria passa a ser insuficiente frente à demanda da região, de
modo que outro local passa a ser utilizado para abrigar os portadores de doença mental, uma
chácara que era mantida pelo governo e se localizava às margens do Rio Coxipó em Cuiabá,
local este que anteriormente era utilizado para abrigar prisioneiros da Guerra do Paraguai.
Este local, popularmente conhecido como Chácara dos Loucos, recebia visitas de médicos e
enfermeiros esporadicamente e a segurança era realizada por policiais. Assim, evidencia-se
que o lugar de reclusão do doente mental deveria ser realizada distante da cidade, visto que a
chácara ficava a dez kilômetros de distância de Cuiabá, coadunando com um modelo
civilizador que tinha o confinamento como principal instrumento (OLIVEIRA & ALESSI,
2005).
De acordo com Canova (2006), este período de reclusão dos loucos neste local ocorreu
aproximadamente em 1920 e descreve que o local possuía a aparência de um estábulo,
acrescentando ainda que nesta época não havia em Cuiabá profissionais especializados para o
tratamento da loucura. Residiam no local entre 50 a 60 internos, e estes tinham por volta de 30
à 60 dias de reclusão; e eram tratados com medicações e eletroconvulsoterapia.
Com o passar dos anos, já no ano de 1975, foi construído, no local onde existia a
Chácara dos Loucos, o Hospital Psiquiátrico Adauto Botelho na cidade de Cuiabá,
possibilitado por um convênio com o governo de Mato Grosso e o Serviço Nacional de
323
Doenças Mentais. Por ser o único hospital psiquiátrico do estado, a instituição abrigava por
volta de 600 pacientes (OLIVEIRA & ALESSI, 2005).
Tal como pontua Canova (2006), a assistência do referido hospital era precária tal
como as outras instituições públicas do Brasil, havendo superlotação dado a insuficiência de
leitos e das condições de abrigo. Este posicionamento também é apresentado por Oliveira &
Alessi (2005), que afirmam que os leitos do hospital correpondia à metade dos internos, e que
o atendimento era realizado por um número insuficiente de profissionais, sendo que estes, na
maioria das vezes, eram despreparados para fornecer os serviços de assistência direcionados a
locura, na época.
Nesse contexto, em 7 de outubro de 1975, foi criado o Serviço de Saúde Mental em
Mato Grosso, dentre suas ações, houve a ampliação do Hospital Psiquiátrico Adauto Botelho
e mudanças nos aspectos técnicos e administrativos, além da realização de um censo no
hospital com a finalidade de realizar diagnóstico psicossocial dos internos. Nessa perspectiva,
não há registros concisos sobre a data de início da atuação do psicólogo no âmbito da saúde
mental em Mato Grosso, contudo infere-se que ocorreu nesse período (SILVA, 2011).
Nessa perspectiva, no final dos anos 70 e início da década 80, iniciou o processo de
Reforma Psiquiátrica brasileira, e ao contrário de outras regiões brasileiras, o estado de Mato
Grosso organizou-se como um movimento em direção a política de compras de leitos no setor
privado, através da criação do Instituto Neuropsiquiátrico (INC), instituição privada, que
posteriormente foi conveniada com o serviço de saúde público do estado. Funcionou
inicialmente com 150 leitos, e posteriormente a um ano e meio já possuía aproximadamente
500 leitos. Nessa época, instalou-se em Mato Grosso a “indústria da loucura”, visto que a
assistência aos portadores de doença mental estava vinculada a lógica do lucro empresarial.
Em 1991 o hospital Adauto Botelho foi fechado para reforma. Essa instituição
permaneceu dois anos e meio sem funcionar, e a demanda de assistência psiquiátrica ficou
depende de um único hospital privado e conveniado e do atendimento ambulatorial em
Centros de Saúde que não funcionavam de forma regular e contínua. Conforme Oliveira &
Alessi (2005), devido ao elevado crescimento da população e a falta de serviços assistenciais
na área da saúde mental, cresce em aproximadamente 260% o número de leitos, beneficiando
a instituição privada que visava manter os internos por período prolongado de internação.
No ano de 1993, o hospital psiquiátrico Adauto Botelho foi inaugurado, e nomeado de
Centro Integrado de Atendimento Psicossocial (CIAPS) Adauto Botelho, visto que este
passou a integrar outras unidades de assistência à saúde e não apenas o serviço de internação.
Com o número reduzido de leitos, o Adauto Botelho atuava com uma espécie de regulação do
324
Instituto de Neuropsiquiatria, que continuou funcionando até o ano de 2004, quando foi
descredenciado da rede de assistência psicossocial.
Análise do conteúdo do Projeto Terapêutico dos postos de internação dos usuários do
CIAPS Adauto Botelho – Unidade I
Este tópico tem como objetivo analisar e descrever o Projeto terapêutico realizado no
CIAPS Adauto Botelho – Unidade I, de modo que as informações a seguir foram retiradas do
documento intitulado “Projeto Terapêutico dos Postos de Internação dos Usuários do CIAPS
Adauto Botelho – Unidade I”.
O Centro Integrado de Assistência Psicossocial – CIAPS Adauto Botelho é um
conjunto de instituições de saúde mental que fornece serviços de assistência à população,
sendo composto pelas unidades CAPS AD – voltado para o uso prejudicial de substâncias
como o álcool e substâncias psicoativas; CAPSi – diracionado para crianças e adolescentes
com transtorno mental grave; Pronto Atendimento – livre demanda e assistência à urgência e
emergência em saúde mental (14 leitos); Unidade I – possui postos de internação para adultos
de ambos os sexos com transtorno mental grave (70 leitos); Unidade II – internação masculina
para pessoas com transtorno mental sob medida de segurança (22 leitos); Unidade III –
internação de usuários do sexo masculino que se utilizam de substâncias químicas de forma
prejudicial (50 leitos); Lar Doce Lar – oferece residência aos usuários portadores de
deficiência física e mental sob tutela do Estado de Mato Grosso (22 moradores) (MATO
GROSSO, 2013).
Neste sentido, o presente documento tem como objetivo divulgar de forma pública o
Projeto Terapêutico dos postos de internação dos usuários do CIAPS Adauto Botelho –
Unidade I, local o qual o presente relato de experiência decorre. Assim, o objetivo desta
instituição seria o de atender em nível de internação, pessoas em crise aguda ou crônica de
sofrimento psíquico (MATO GROSSO, 2013).
As ações terapêuticas realizadas na instituição abrangem diversas atividades, tais
como as oficinas terapêuticas coletivas, a oficina de carnaval, a oficina junina, a gincana
cultural, oficina da primavera, arte no parque, oficina de natal, aniversariante do mês, sessão
de cinema, show de calouros, oficinas terapêuticas grupais, oficina de movimento, oficinas
artísticas, oficina de dança, oficina literária, oficina de beleza, barbearia do Sr. Joaquim,
325
socialização no pátio, visita assistida, grupos familiares e atendimentos individuais (MATO
GROSSO, 2013).
No que se refere às ações desenvolvidas pelos profissionais técnicos de nível superior
desta unidade, as atividades consistem no acolhimenro e avaliação do usuário, realização de
entrevista com familiares e usuário, a promoção do vínculo entre usuário e equipe
multidisciplinar, condução e participação em todas as atividades terapêuticas, visitas
domiciliares, acompanhamento de licenças terapêuticas visando a reinserção social, cuidados
na alta a partir do encaminhamento e acompanhamento do usuário nos serviços de referência,
acompanhamento do usuário no retorno a sua residência, dentre outras (MATO GROSSO,
2013).
Assim, de acordo com o presente documento, o projeto terapêutico desta intituição tem
como referência para a condução terapêutica o Plano Nacional de Humanização e nas
cartilhas do Ministério da Saúde denominadas “Humaniza SUS, Prontuário Transdisciplinar e
Projeto Terapêutico” e a “Clínica Ampliada, Equipe de Referência e Projeto Terapêutico
Singular”. Neste sentido, a atuação dos profissionais é norteada pelos dispositivos da Clínica
Ampliada e da Escuta.
Assim, o projeto terapêutico desta instituição tem como objetivo tornar público os
pressupostos orientadores das ações de saúde realizadas, assim como o seu compromisso com
os ideais da Reforma Psiquiátrica e da Luta Antimanicomial e dos princípios de
Acessibilidade, Equidade e Integralidade da assistência do Sistema Único de Saúde.
Análise do acompanhamento da atividade denominada Oficina de Carnaval
A presente experiência possibilitou uma reflexão acerca das práticas do profissional
psicólogo no serviço público de saúde, a oportunidade vivenciar uma experiência singular e
enriquecedora através da interação com os profissionais e usuários em sofrimento psíquico
grave e agudo. Sendo assim, esta vivência proporcionou uma oportunidade de aprendizagem e
crescimento tanto profissional como pessoal.
Dessa forma, notei que nessa instituição há um movimento, da maioria dos
profissionais, de transformação dos modos tradicionais de lidar com a pessoa em sofrimento
psíquico, que não resume à desospitalização e na criação de novos serviços, mas implica na
reinvenção de saberes e práticas neste campo, com propósitos pautados na reinserção social
do indivíduo e na integração deste à comunidade.
326
Assim, o processo de desinstitucionalização é realizado diariamente no trabalhado
destes profissionais, que estão empenhados em dinamizar e potencializar a mudança do
paradigma doença-cura ao oferecer outra forma de relação com o usuários, realizando as
intervenções a partir das necessidades singulares dos mesmos. Neste sentido, mesmo em uma
instituição marcada pela lógica de exclusão, é possível notar a tentativa da equipe de realizar
mudanças que coadunem com os paradigmas da Reforma Psiquiátrica.
No cotidiano dessa instituição observei a importância da equipe multidisciplinar, que é
constituída por profissionais de diferentes áreas da saúde e que compartilham a
responsabilidade de integralidade do cuidado ao usuário. Deste modo, foi possível observar
que nesta instituição há profissionais comprometidos com os paradigmas da Reforma
psiquiátrica, os quais realizam seu trabalho em prol da promoção de saúde dos usuários
levando em consideração a singularidade dos mesmos, contudo nem sempre isso acontece,
visto que alguns profissionais não se apropriam das práticas psicossociais pautadas nos
princípios na clínica ampliada, a qual deve substituir as práticas da clínica tradicional.
Nesta perspectiva, compreende-se que o trabalho na saúde mental requer a realização
de um elo entre os profissionais que conduzem o tratamento dos usuários, sendo que juntos
estes devem resguardar a singularidade das pessoas em sofrimento psíquico, de modo a evitar
intervenções terapêuticas evasivas.
Desse modo, através do processo de observação percebe-se a importância das oficinas
em espaços abertos, visto que promovem a socialização entre usuários e equipe
multidisciplinar. Nesse contexto, foi possível notar que essas atividades são fundamentais
para o processo de interação dos usuários, uma vez que estes espaços possibilitam, de forma
direta ou indireta, que os mesmos expressem suas dificuldades, temores e expectativas de
integrar-se novamente à comunidade. Assim, de acordo com Amarante (2007)
As equipes podem continuar acompanhando as pessoas em diferentes graus de
autonomia e independência. Existem pessoas dependentes que não conseguem
realizar as atividades de ida cotidiana, mas, nem por isso, deveriam ser mantidas em
instituições fechadas. [...] Para saber até onde podem ir, só há uma opção:
possibilitar-lhes participar do processo de desinstitucionalização! (AMARANTE,
2007, p. 88-89)
Na Unidade I são realizas oficinas sob a coordenação da equipe multidisciplinar, que
visam a socialização e reinserção social dos internos. No ano de 2013, as autoras deste relato
de experiência tiveram a oportunidade de participar da organização da Oficina de Carnaval,
que ocorre anualmente na instituição, e tem como finalidade realizar uma confraternização
327
compartilhada entre os internos desta e de outras unidades integradas ao CIAPS Adauto
Botelho, assim como profissionais, familiares, estagiários e convidados.
Na ocasião desta oficina, além dos usuários da Unidade I, estiveram presentes a equipe
e os internos provenientes da Unidade III de internação voltada para a internação das pessoas
que mantém uso prejudicial de álcool e e outras drogas. A participação desta outra unidade,
além de proporcionar a interação com pessoas que não são aquelas encontradas no cotidiano
destes usuários, vai de encontro com a perspectiva de atuação em rede, visto que agrega em
uma única atividade unidades de saúde diferentes, promovendo bem estar e oportunidade para
a criação de outros vínculos.
Nesse contexto, foi possível observar o empenho de alguns profissionais em propiciar
aos usuários um novo espaço de interação, externo à instituição, visto que esta atividade foi
realizada em um parque nas proximidades da Unidade I. De acordo com Amarante (2007)
[...] as políticas públicas devem oferecer condição para o processo de
desinstitucionalização dessas pessoas. Um passo inicial se dá com a organização de
equipes multiprofissionais, cujo objetivo é acompanhar as pessoas, ajudando-as a
construir autonomia e independência [...]. (AMARANTE, 2007, p. 88)
Desse modo, através de diálogos com os usuários foi possível notar a expectativa
destes durante os preparativos para a oficina. Na ala feminina, as usuárias se empenharam em
realizar oficinas para a confecção dos colares que seriam utilizados no dia da Oficina do
Carnaval. E na ala masculina, na oficina de espaço aberto, alguns usuários realizavam
pinturas e máscaras com a temática do carnaval para enfeitar o espaço da comemoração.
Assim, é possível notar que a festa do carnaval era um momento esperado e foi uma atividade
construída em conjunto, na qual os usuários, equipes e convidados participaram de sua
organização.
No dia da festa, antes de todos se dirigirem ao parque, os usuários tiveram a
oportunidade de fazer maquiagem, pinturas e utilizarem vestimentas que os representariam
como um bloco de carnaval, de modo que a equipe de referência e os convidados auxiliaramnas neste momento. E, com a chegada dos internos da Unidade III, todos se dirigiram ao
parque o qual a oficina seria realizada.
Todos foram caminhando, portanto, no trajeto foi possível notar a interação entre
usuários e equipes de diferentes unidades, assim como dos convidados e estudantes de
psicologia e demais estagiários que também se fizeram presentes na ocasião. Ao chegar no
parque, ao som das tradicionais “marchinhas” de carnaval, com um espaço aberto e
328
arborizado decorado e preparado para recebê-los. A interação entre todos os participantes
aumentou ainda mais ao som das músicas e das rodas de dança que eram puxadas tanto pelos
usuários, como equipe e demais convidados, evidenciando que aquele era um momento de
comemoração e socialização.
Considerações
Neste sentido, foi possível notar a importância e necessidade de existirem outros
espaços e outras pessoas nas atividades, a inserção de atividades que sejam diferenciadas da
rotina da instituição e que, principalmente, forneçam oportunidades de criar vínculos e outras
formas de se relacionar com a própria equipe e entre usuários. Atividades como estas, abertas
e que possibilitem a participação de outros atores, além de essencial para o tratamento do
usuário, são de extrema importância para o processo de superação do estigma da loucura tanto
da comunidade que reside nas proximidades da instituição, quanto da população em geral.
Nessa perspectiva, no que se refere à atuação profissional, foi possível compreender na
prática a necessidade de o profissional psicólogo sair de trás de mesa de atendimento e
extrapolar os muros das instituições, retirando-se do lugar do suposto do saber, pois a
promoção da saúde mental pode ser realizada de outras formas, através de uma prática que
aposta em outros espaços, como pla realização de oficinas, caminhadas ao parque, dança,
música e arte, encontros com familiares, dentre outras possibilidades. Neste sentido, algumas
destas estratégias ocasionalmente possam incluir os atendimentos individuais, mas não devem
se restringir a eles.
Assim, percebe-se que os espaços abertos, oficinas e uma equipe multidisciplinar não
são por si mesmas produtores de liberdade, pois há a necessidade de que estes profissionais se
sintam provocados a realizar mudanças na relação com os usuários cotidianamente, visto que
a atenção à saúde precisa ser compreendida a partir da complexidade da relação do indivíduo
com seu sofrimento psíquico. É importante ressaltar, então, que o usuário não é e não pode ser
colocado no lugar de sujeito passivo em seu tratamento, dada a necessidade de incitar o
protagonismo e a emancipação dos mesmos, assim como a criação de vínculos extramuros.
Assim, esta vivência demonstrou uma experimentação de outras possibilidades de
práticas terapêuticas, pautadas na reinserção do usuário no meio social e na tentativa de
desistitucionalização, com intuito de que este possa recuperar sua cidadania, como também
pôde-se visualizar uma relação que não estava permeada pelo estigma da loucura, ainda
329
recorrente em nossa sociedade. Na caminhada ao parque próximo ao hospital, os trajetos já
eram, de uma forma ou de outra, familiares aos usuários, mas havia naquela ocasião algo de
singular, que diferenciava aquela ida ao parque de um simples passeio.
No CIAPS Adauto Botelho, percebe-se que há internações em que o hospital não tem
conhecimento da origem do usuário, e após a realização de seu tratamento, não há uma
reinserção social do mesmo, devido ao desconhecimento de seu local de origem, de modo
que, o usuário continua na dependência da instituição, o que pode acarretar outros tipos de
sofrimento ao usuário e até mesmo o agravemento do caso, visto que alguns deles ainda são
mantidos institucionalizados mesmo após seu tratamento. Sobre esta questão, Amarante
aponta que
O modelo psiquiátrico e asilar que as oprimiu reduziu-lhes as expesctativas,
obstruiu-lhes os projetos de vida, achatou-lhes as expressões e sentimentos. Desta
forma, a grande maioria delas não tem condição de voltar a viver sem a ajuda de
terceiros e, por isso, é muito importante que sejam organizados programas e
estratégias de residencialidade e de subsídios financeiros. Depois de muitos anos
vivendo institucionalizadas, muitas não querem sair do claustro, muitas não têm
famílias ou suas famílias não as desejam mais em casa. (AMARANTE, 2007, p. 88)
Desse modo, tornou-se evidente a necessidade de colocar em prática, de forma
engajada, um modelo de atenção em saúde mental que não segregue o indivíduo em
sofrimento psíquico da sociedade. Sendo assim, compreende-se que os serviços substitutivos
não são por si só produtores de atenção psicossocial; assim, evidencia-se a importância de que
os psicólogos e demais profissionais questionem suas práticas cotidianamente, a fim de não
reproduzirem práticas manicomiais, mas ofertar um atendimento ao usuário que coadune com
os princípios da Reforma Psiquiátrica e, por conseguinte, da Luta Antimanicomial.
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Rio de Janeiro: Imago; Brasília, DF: CFP, 2011.
331
INVESTIGAÇÃO SOBRE O ESTADO MENTAL E ASSUNÇÃO DA ESCOLHA
PROFISSIONAL DE ADOLESCENTES DE GÊNERO FEMININO, QUE
PROCURAM OS SERVIÇOS DE ATENDIMENTO NA UNIVERSIDADE
ESTADUAL DE LONDRINA.
Rosemarie Elizabeth Schimidt Almeida¹
Introdução
O contexto “pós” moderno dissemina novas modalidades de estética e erótica nos
relacionamentos baseadas em fatores que estão sendo modificados velozmente (OUTEIRAL,
2001). As implicações estruturais e psíquicas decorrentes destas inovações, de um paradigma
de imagens desfocadas, descartáveis, de vicissitudes que não contemplam um início–meio–
fim, ocasionam, cada vez mais, a brevidade dos contatos entre as pessoas, bem como a
existência de uma fragilidade nos sistemas de apoio vigentes.
Os jovens que procuram os serviços institucionais , encontram-se em sua maioria, em
situações consideradas como de risco de vida, haja vista o número crescente da taxa de
suicídio, depressão, uso de drogas, doenças sexualmente transmissíveis, gravidez na
adolescência e outras condições clínicas mostradas por outros pesquisadores em seus estudos.
Estas situações requerem propostas urgentes de intervenção, voltadas ao tratamento e à
prevenção.
Segundo Rouquayrol (1999),por exemplo, uma gravidez não desejada pode levar a
jovem à tentativa de aborto; por esta prática ser ilegal no Brasil, surgem complicações e riscos
de vida. Os casos de gestação que vão até o final expõem, de acordo com alguns estudos, a
adolescente a situações de risco importantes, como: demandas nutricionais do feto e da
própria gestante que podem ser insuficientes; um corpo em crescimento acolhendo um outro, o feto; dificuldades na hora do parto; falta de amadurecimento na assunção do papel materno,
refletido na taxa de mortalidade; perda de oportunidades sociais, educacionais e profissionais,
as quais comprometem a vida futura.
Neste sentido, em muitos atendimentos, realizados através dos projetos, foi observado
que, além das queixas comuns deste período da vida, alguns jovens eram usuários do sistema
de saúde mental, com diagnósticos de depressão, em sua maioria.
332
1- Profª. Drª. do Departamento de Psicologia e Psicanalise, UEL – Paraná
Surgiam questões imbricadas a estes diagnósticos, que traziam à tona alguns
questionamentos relacionados a fatores Ambientais e Psicossociais, sobrepostos aos lutos do
crescimento, principalmente em jovens que já eram ingressos da fase final da adolescência e
início da adultez..
Esse trabalho não tratou de discorrer sobre os Transtornos de Ajustamento e
Depressão, inseridos no Eixo-I e Eixo-IV do DSM-IV, respectivamente. Tampouco de
realizar um estudo exaustivo sobre a Depressão em adultos jovens, pois há muitos estudos
atuais sobre a depressão, inclusive por parte da Psicanálise.
Pretendeu, sim, realizar um nível de ação com o caráter de investigar e
considerar as especificidades e características dos problemas com os quais os jovens se
deparam. E, quem sabe propor alguma contribuição para a área da saúde mental, através de
uma pesquisa colaborativa e multifacetada por métodos e instrumentos distintos, mas
complementares.
Adolescência e Saúde
Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS) há, na adolescência, duas
fases: a primeira, dos dez aos dezesseis anos; e a segunda, dos dezesseis aos vinte anos.
Ferrari (1996) diz que é frequente, na adolescência, o surgimento de
sintomas, como o único meio encontrado para enfrentar as mudanças intensas dessa fase. Eles
têm a função de tranquilizar o adolescente a respeito da própria identidade, podendo
constituir-se como sintoma clínico: vômito, hipertermia, dismenorreia, incomunicabilidade,
estados, confusionais e delírio, anorexia e bulimia, toxicodependência, crises psicóticas e
inibições várias, que podem envolver comportamentos, desempenhos e o crescimento em
geral. Poderão ocorrer transtornos, haja vista o surgimento de condições de desajustes, como a
depressão, gravidez na adolescência, doenças sexualmente transmissíveis, etc.
A sociedade brasileira, segundo Outeiral (1997, 2001) considera que a
adolescência é delimitada por três fases: a adolescência inicial (10 a 14 anos), período de
transformações corporais e de alterações psíquicas derivadas desse processo; a adolescência
média (14 a 16 e 17 anos), caracterizada pelas questões sexuais, quando ocorre a passagem da
bissexualidade para a heterossexualidade; a adolescência final (16/17 anos a 20/25 anos), em
que há várias modificações em relação ao vínculo com os pais, à questão profissional
associada ao término do 2º grau (ensino médio). Essa é uma divisão de idades arbitrariamente
333
estabelecida, porquanto os critérios de definição da finalização do período adolescente
remetem à questão de uma análise psicossocial.
Aberastury e Knobel (1984) mostram que, na adolescência, ocorre a
“Síndrome Normal da Adolescência”, caracterizada, muitas vezes, por jovens apresentando
comportamentos semelhantes ao de um quadro psicopatológico, no entanto, por ser
transitória, é considerada normal. Não é fácil estabelecer o conceito de normalidade; ele varia
com relação ao meio socioeconômico, político e cultural e é regido pelas normas sociais
vigentes, seja implícita ou explicitamente.
Erikson (1976) diz que o principal acontecimento, nesse período, seria a
formação da identidade, no qual o adolescente passaria por um processo de elaboração das
experiências vividas, tanto em relação às opiniões de outras pessoas, quanto às próprias ideias
a respeito de si, sendo influenciado por aspectos profissionais, ideológicos, religiosos,
sexuais. É no desenvolvimento psicossocial, conforme Erikson (1976), que “o adolescente
deve enfrentar o conflito básico: identidade versus difusão de papéis”.
Adolescência e Depressão
O adolescente para a assunção de sua individuação precisa superar os
estados transitórios e confusionais peculiares a esta idade. Devido a estas condições, o papel
da família e do ambiente onde o adolescente vive tem importância fundamental. É um período
no qual deverá elaborar as perdas mais significativas a serem enfrentadas, ou seja, os lutos:
perda dos pais da infância; do corpo infantil; de todas as relações objetais infantis; do luto
pela bissexualidade. Estes lutos irão desencadear sentimentos de tristeza, desamparo, num
percurso normal; ao contrário num movimento patológico, surge a depressão.
Freud (1917), nos seus achados sobre o luto e a melancolia, já descrevia algumas
manifestações simbólicas que sugeririam afecções somáticas descritas psicodinamicamente.
Estes traços mentais distintos já caracterizavam o estado de melancolia como um luto
patológico, semelhante ao tipo de transtorno depressivo maior descrito no DSM-IV, Eixo-I.
Pois de acordo com o Eixo-I do DSM-IV, os transtornos de humor são: episódio
depressivo maior, maníaco, misto, hipomaníaco e transtorno ciclo tímico. Para o adolescente,
neste caso, ser diagnosticado como portador de um episódio depressivo maior, será precisos
pelo menos, cinco sintomas, presentes por volta de duas semanas, entre estes: humor
deprimido, perda de interesse, perda do prazer, humor irritativo, alteração no apetite, perda
334
e/ou ganho de peso, insônia, hipersonia, sentimentos de inutilidade, [...]pensamentos
recorrentes de morte etc.
Traços mentais distintivos da melancolia são um desânimo
profundamente penoso, a cessação de um interesse pelo mundo
externo, a perda da capacidade de amar, a inibição de toda e qualquer
atividade, e uma diminuição dos sentimentos de autoestima [...]
culminando com uma expectativa delirante de punição” (Freud, 1917:
276).
Ao se considerar essas manifestações, devem-se refletir, sobre as influências
diretas e indiretas que o jovem sofre, como oriundas “de questões de natureza social: miséria,
violência, ignorância, desemprego, fome, migrações, abandono, falta de modelos
identificatórios, bem como elementos inibidores e facilitadores da vida pulsional, inerentes à
cultura a que pertencem o jovem e sua família (Levisky, 1998.
Desta maneira, definir o que é normal ou patológico é poder observar que as
avaliações sintomáticas, fenomenológicas, de natureza epidemiológica, são importantes.
Entretanto elas são pouco reveladoras da dinâmica inter e intrapsíquica de cada caso,
Para Levisky ,“este autor, em um trabalho realizado sobre o Estudo e
Discussão Nosográfica sobre as Psicoses Infantis”, ele pode observar algumas discrepâncias
entre uma avaliação estritamente fenomenológica e uma avaliação metapsicológica
(LEVISKY, 1998: 163).
Para Winnicot (1975 apud Abreu, 1999), o melhor tratamento para a
adolescência é o tempo. Sob o ponto de vista de uma metáfora cartográfica análoga à
metáfora freudiana de um “topo”, há, nesta visão, o espaço, um lugar transicional. E à teoria
do objeto, neste caso: “a teoria do objeto transicional”.
A ideia de transição à da noção de um espaço intermediário constituído na
ilusão (a palavra ilusão aqui entendida como brincar, do latim ludere, de acordo com
Winnicott)”. Para Winnicott (1975:79): “É no brincar, e talvez apenas no brincar, que a
criança ou o adulto fruem sua liberdade de criação”.
[...] descobrimos que os indivíduos vivem criativamente e sentem que
a vida merece ser vivida, ou, então, que não podem viver
criativamente e têm dúvidas sobre o valor do viver. Essa variável nos
seres humanos está diretamente relacionada à qualidade e à
335
quantidade das provisões ambientais no começo ou nas fases
primitivas da experiência de vida de cada bebê (WINNICOTT, 1975:
103).
“Os objetos transicionais e os fenômenos transicionais pertencem ao
domínio da ilusão que está na base do início da experiência” (WINNICOTT, 1975: 30).
Segundo a teoria do desenvolvimento Winnicottiana, o viver criativo depende de
experiências “suficientemente boas” que acontecem no espaço potencialmente transicional,
fundadas na confiança entre o bebê e a mãe, a criança e a família, o indivíduo e a sociedade.
Ao contrário, experiências más levam a um estado patológico e de sofrimento; com a eclosão
de sentimentos ruins, que fazem com que o indivíduo não consiga livrar-se deles, pois não
dispõe de meios para tanto .
A própria literatura psiquiátrica, segundo Kaplan (1993), na descrição feita
sobre transtorno de identidade e nos critérios diagnósticos enfatizados, faz pouca menção a
este quadro patológico, a depressão. Essa falta de discussão é causada, provavelmente, pelo
fato de muitos adolescentes com os sintomas de transtorno de identidade, de ajustamento,
estarem sofrendo, na verdade, de um transtorno diferente. Além disso, supostamente, muitos
deles não chegam à atenção dos profissionais.
O início desse tipo de transtorno ocorre, frequentemente, quando o jovem se
encontra na fase final da adolescência, tendo de enfrentar situações decisórias ligadas à
família, ou aos estudos, ao trabalho, à sexualidade; ou todas elas, ao mesmo tempo. Estudos
epidemiológicos realizados até a atualidade têm-se mostrado sem confiabilidade e, ainda, são
escassos. A etiologia deste transtorno é supostamente psicológica e é perpassada pelas
questões psico-sócio-culturais.
Segundo as características clínicas, curso e prognósticos descritos,
caracteriza-se o transtorno de identidade na fase final da adolescência, quando o jovem
procura ascender a um novo status quo, o de adulto. Por outro lado, esta vivência poderá ser
representada por uma sintomatologia e análise diferencial, amplamente difusa, podendo
tornar-se extremamente prejudicial. Poderá ser tratada como uma “síndrome depressiva,
borderline, dentre outras”.
Em virtude da multiplicidade de aspectos clínicos que podem ser
diagnosticados, faz-se cada vez mais necessário o desenvolvimento de estudos, capazes de
rever algumas questões ligadas a certas doenças, pois há estudos inconclusivos quanto às
336
razões de seus inícios em diferentes idades, havendo um aumento progressivo, com o avanço
da idade, como, por exemplo, a depressão. Ao mesmo tempo, configura-se a necessidade de
outras pesquisas, relacionadas aos fatores de risco desta população, a fim de atender a
demanda, cada vez maior, de atendimento clínico, de forma efetiva e profilática.
Neste contexto de uma visão de experiências emocionais com falhas
ambientais precoces, localizadas na experiência cultural atual, os jovens cada vez mais
assumem condutas de riscos e as vivenciam com comportamentos de menos valia para a vida.
Em um estudo realizado por Abreu, et al (2004), foi constatado que, iniciadas estas condutas
de risco nas idades de 10 a 16 anos, significativamente elas aumentam nas idades de 17 a 25
anos, aumentando a sua “prevalência”. Segundo a O.M.S., idades que caracterizam a
adolescência e o início da adultez jovem.
Depressão (os transtornos mentais) e o Eixo-IV do DSM-IV
Por se considerar a importância de critérios de um diagnóstico diferencial no
mapeamento da depressão e seus caminhos na adolescência e na adultez, levar-se-á em conta
uma visão clinica colaborativa adicional, iniciando - a com a seguinte questão para os
psicólogos, preferencialmente.
“Mas o que é um Transtorno Mental?” (Baron, 2002).
A maioria dos psicólogos concorda que os transtornos mentais incluem
modelos de comportamento ou pensamentos que são julgados como incomuns ou atípicos na
sociedade. As pessoas que apresentam estes transtornos não se comportam, não pensam como
deveriam, e estas diferenças são frequentemente observadas por quem vive ao seu redor.
Tais transtornos usualmente geram angústia, sentimentos negativos e
reações, nas pessoas que os experimentam. Os transtornos mentais interferem nas habilidades
individuais de funcionar normalmente, e atrapalham as demandas da vida diária.
Com a confirmação destes pontos, os transtornos mentais podem ser
definidos como distúrbios no comportamento dos indivíduos, no funcionamento psicológico,
não são aceitos culturalmente e que levam à angústia - aflição psicológica, à inabilidade
comportamental e ao enfraquecimento de todas as funções.
Segundo Bahls (2002), a depressão maior, embora não diagnosticada e não
tratada, é comum na adolescência e envolve um alto grau de morbidade e mortalidade.
337
Também Donald (2000) aponta que a depressão maior em adolescentes
constitui morbidade para a saúde mental e abusos de substâncias psicoativas, gravidez não
planejada, prejuízo acadêmico e social e altas taxas de suicídio.
Na faixa etária de adolescentes e adultos jovens a depressão tem uma prevalência
de 16,8%, sendo uma doença incapacitante para o trabalho, habilidades educacionais e
interações sociais. Haja vista que os adolescentes e adultos jovens estão numa fase chave de
socialização em termos de carreira profissional e relações interpessoais, esse índice indica um
considerável risco potencial para complicações e futuro risco de cronicidade do estado de
depressão (WITTCHEN; MELL SONC; LACHNER, apud ABREU et al, 2004).
Adultos jovens que apresentam transtornos psiquiátricos, já na adolescência haviam
tido episódios depressivos severos, com maior número de sintomas, recidivas e até história de
tentativas de suicídio. (LEURINSOHN et al, 2000)
Segundo Leurinsohn et al (apud ABREU et al, 2005), indivíduos que
iniciaram episódios depressivos antes da idade de 19 anos apresentam risco elevado de
episódios depressivos, com aumento da refratariedade da doença, o que demanda diagnóstico
correto e tratamento preventivo ou profilático eficaz.
Variáveis que predizem transtorno depressivo recorrente incluem: múltiplos
episódios depressivos na adolescência, história familiar de depressão recorrente, sexo
feminino, conflito com os pais e personalidade borderline.
Kendal (2005) relata que a atrofia dos neurônios do hipocampo que ocorre
em pacientes depressivos, por fatores estressantes e contínua exposição a eles, pode ser
reversível, em face dos “estressores psicossociais”, serem interrompidos o mais cedo possível.
Segundo Vargas et al (1998:44), o transtorno depressivo maior (Manual
Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais – DSM-IV) “apresenta uma prevalência para
toda a vida de 10 a 20% nas mulheres e de 5 a 12% nos homens em amostras comunitárias”.
Fédida (2002:14) arguiu a ideia de que a depressão é uma doença do
humano ao mesmo tempo em que o estado deprimido é, em suma, comum e familiar: é o
estado do desumano: “Hoje estamos confrontados a um estranho paradoxo: os estados de
depressão são banalizados e generalizados, no momento em que a psiquiatria não tem mais
tempo para se dedicar à observação e escuta dos doentes”.
Diz que há uma
338
“Diferença que deve ser estabelecida entre a depressividade inerente
à vida psíquica (a vida psíquica e depressiva no sentido em que
garante proteção, equilíbrio e regulação à vida) e o estado deprimido,
que representa uma espécie de identificação com a morte ou com um
morto”. (FÉDIDA, 2002:14).
O estado deprimido, no seu aspecto mais comum e grave, é a depressão
maior, que, se não for devidamente diagnosticada e tratada, resulta numa taxa de risco de
suicídio de 15 a 30% das pacientes de média e severa gravidade.
Atualmente, a depressão é um dos transtornos mentais mais frequentes e o
seu desencadeamento recebe a influência dos fatores genéticos e, principalmente, de fatores
socioeconômicos, como: ausência de perspectiva de futuro, abandono familiar e falta de
diálogo interpessoal e social, solidão e outros.
Esta estatística elevada tem preocupado cada vez mais os profissionais que
lidam com pessoas, na área da saúde (KAPLAN; WILKINSON, apud BERNIK, 1999).
“A depressão é muito comum nos jovens, diante do desafio de uma
vida competitiva num mundo conflituoso. Apesar da dificuldade de
diagnóstico e ainda do pequeno nível de conscientização dos próprios
adolescentes e da família, calcula-se que cerca de 20% a 25% das
pessoas têm comprometimento afetivo” (BERNIK, 1999:350).
Estudos epidemiológicos mostram que, pelo menos, 10 a 15% das pessoas
apresentam sintomas depressivos, conforme critérios do CID-10 ou do DSM-IV (APA). Tais
sintomas são causadores de transtornos na vida das pessoas. Cada vez mais, o percentual de
atingidos vem aumentando .Há uma medição segundo a qual, anualmente, os novos casos são
de 1/100 homens e de 3/100 mulheres (STAHL, apud BERNIK, 1999). Estes dados mostram
que as mulheres estão mais sujeitas à depressão, e isto aumenta cada vez mais.
Fatores socioculturais e econômicos devem ser os responsáveis por fatores
estressores que as sensibilizam mais significativamente, em relação à população masculina.
Há, também, fatores hormonais sazonais .Por outro lado, a incidência de suicídio é maior
entre homens, principalmente os mais jovens, embora o número de intenções suicidas e
parassuicidas (tentativas com finalidade manipuladora) tenham aumentado mais entre as
mulheres, nos últimos anos.
339
De acordo com BERNIK (1999), no grupo de pessoas deprimidas, ressaltase o maior índice de suicídio entre todas as doenças. E, cada vez mais jovens tentam o
suicídio, na faixa dos 15 anos acima o suicídio é a segunda causa de morte, além de mortes
que ocorrem por overdose de drogas e acidentes automobilísticos.
Em razão destes índices, todos os envolvidos com os jovens – a família, os
ambientes sociais e acadêmicos, profissionais da área da saúde – precisam prestar muita
atenção a estas questões por causa do período de moratória psicossocial vivido pelo jovem e
da violência social que o acomete. E ainda, a sociedade, a família e a escola encontram-se
num período de transição e ajustamento.
Portanto, respaldar o diagnóstico diferencial da depressão, de acordo com
essa visão classificatória do Eixo-1 do DSM-IV, não poderá ser objeto de exclusão em
hipótese nenhuma, principalmente o Eixo-IV: Problemas Psicossociais e Ambientais, visto
que a análise dos estressores psicossociais é de extrema relevância nestas idades, pois
investiga os problemas que são desencadeantes da crise como:
Problemas com o grupo de apoio primário: por exemplo, morte de um
membro da família; problemas de saúde na família: ruptura da família por separação, divórcio
ou desavença, despeja de casa, novo casamento do pai/mãe; abuso sexual ou físico,
superproteção pelos pais; negligência da criança; disciplina inadequada; discórdia com
irmãos, nascimento de um irmão.
Problemas relacionados ao ambiente social: por exemplo, morte ou perda
de um amigo; apoio social inadequado; viver sozinho; dificuldades com aculturação;
discriminação; adaptação à transição no ciclo de vida (tal como casamento).
Problemas
educacionais:
por
exemplo,
analfabetismo,
problemas
acadêmicos, discórdia com professores ou colegas de escola, ambiente escolar inadequado.
Problemas ocupacionais: por exemplo, desemprego, ameaça de perda de
emprego, problemas no trabalho estressante, condições de trabalho difíceis, insatisfação com
o emprego, mudança de emprego, discórdia com chefe ou colegas de trabalho.
Problemas de moradia: por exemplo, falta de moradia, moradia
inadequada, vizinhança perigosa, discórdia com vizinho ou locador.
Problemas econômicos: por exemplo, extrema pobreza, recursos
financeiros inadequados, apoio previdenciário inadequado.
340
Problemas com o acesso aos serviços de cuidados à saúde: por exemplo,
serviços inadequados de cuidados à saúde, indisponibilidade de transporte aos locais de
cuidados à saúde, seguro saúde inadequado.
Problemas relacionados à interação com o sistema legal/criminal: por
exemplo, detenção, encarceramento, litígio, vítima de crime.
Outros problemas psicossociais e ambientais: por exemplo, exposição a
desastres, violência na comunidade e outras hostilidades, discórdia com prestadores de serviço
que não fazem parte da família, tais como conselheiro; assistente social ou clínico;
indisponibilidade de agências de serviços sociais.
Bleger (1963 apud Vaisberg ET AL, 2003) constata: “[...] tomar a conduta como
objeto de estudo de todas as ciências humanas, aí incluída a psicanálise, entendeu que o
acontecer clínico se dá em um campo inter-humano”.
A Depressão: Outras pesquisas; outros projetos
Pesquisas sobre a Depressão, de acordo com os critérios diagnósticos do Eixo-I,
são desenvolvidas com populações variadas e diversas especificidades conceituais, por outro
lado não foi localizada nenhuma pesquisa que faça o enfoque do Eixo-IV do DSM-IV,
Problemas Psicossociais e Ambientais na população de adultos jovens, como a realizada nessa
tese.
Faz-se necessário considerar que somente na atualidade esta havendo uma
mudança de paradigma na área da saúde, principalmente da área Mental, que começa a
enfatizar
as
questões
ambientais
e
socioculturais,
que
transcendam
os
estudos
epidemiológicos clássicos, bem como a orientação da psicopatologia clássica, inclusive da
Psicanálise mais ortodoxa.
Percebe-se que todas as pesquisas que privilegiam aspectos contemporâneos
sobre a depressão, são perpassadas por uma metodologia que aplica instrumentos para o
diagnóstico da depressão e são representados por escalas de medição, através de critérios
diagnósticos específicos.
Identifica-se neste rastreamento de pesquisas realizadas mais recentemente
acerca da depressão, um expressivo enfoque sobre a identidade de gênero feminino, ou seja,
vários estudos foram realizados com mulheres com diagnóstico de depressão. Haja vista o
341
número de observações realizadas sobre um maior número de pacientes do sexo feminino com
diagnóstico de depressão e, também, de um maior número de tentativas de suicídio.
Villela (2000), na sua dissertação “O Grupo Operativo como Estratégia para
Assistência de Enfermagem: mulheres em depressão”, aborda esta questão, relatando que
escolheu as mulheres por entender, através de suas observações, que elas apresentam uma
gama maior de conflitos de vivência depressiva.
Araújo (2003) também quis compreender como é “A Vivência da
Sexualidade em Mulheres com Quadros de Depressão, Tratadas com Medicamentos
Antidepressivos e Psicoterapia”, utilizando-se, para isso, da escala do Beck Depression
Inventary.
Mello (2004) estudou a prevalência da “Depressão em Mulheres Infectadas
pelo Vírus HIV”, tendo utilizado na avaliação dos transtornos afetivos, o CID-DSM-IV,
Escala de Hamilton 21, Escala de Hamilton não somática e Inventário de Beck.
De Felice (1999) verificou no “Estudo Psicodinâmico do Puerpério em
Mulheres Primíparas”, que, de acordo com a qualidade da elaboração da posição depressiva
infantil (visão psicanalítica de Melaine Klein) é que as mulheres poderão viver de forma
melhor suas experiências emocionais, neste período, necessitando de apoio adequado das
pessoas do seu ambiente.
Simão (2003), na sua pesquisa sobre “Depressão Pós-parto e Aspectos
Psicossociais Associados: Suporte social e eventos vitais adversos: revisão de literatura”
identificou aspectos multideterminantes da depressão neste evento da vida.
Ribeiro (2005), ao relatar a sua pesquisa de tese “Mortalidade por Causas
Externas em Mulheres de 10 a 49 anos, nas Capitais Brasileiras”, apresenta um índice de
43,4% de morte por suicídio, com referência familiar a algum tipo de transtorno mental, tendo
verificado a depressão em 71% destes casos.
Faz-se necessário, abordar novamente a importância dos aspectos evolutivos
que determinam a depressão em mulheres, em pesquisas que enfatizam o transtorno
relacionado à identidade de gênero. E, levar em consideração, o seu grau mais grave de
depressão que leva ao suicídio ou a tentativa deste.
Avanci (2004) relacionou o fenômeno do suicídio com a adolescência. Ao
examinar todas as tentativas que foram atendidas no ano de 2002, de adolescentes na faixa
342
etária entre 10 e 19 anos, na Unidade de Emergência do Hospital das Clínicas da Faculdade de
Medicina de Ribeirão Preto (USP), 77,8% dos casos foram do sexo feminino, na faixa etária
de 15 a 19 anos, cor branca, bairros de baixo nível socioeconômico.
O estudo de Giusti (2004) sobre “Adolescentes Usuários de Drogas que
Buscam Tratamento: as diferenças entre os gêneros”, também apontou uma prevalência (Nº
124 adolescentes) de suicídio, e depressão no sexo feminino.
Campagna (2003), numa pesquisa com 20 garotas de 12 anos, classe média
e média alta de São Paulo, com o objetivo de entender o início da adolescência na mulher,
verificou que a fragilidade egóica é grande devido às dificuldades que o meio social impõe, de
padrões idealizados de beleza e de dificuldades de reorganização da identidade frente aos
lutos do crescimento e as perdas que ocorrem, ocasionando uma autoimagem negativa,
sentimentos de menos-valia, portanto, depressivos.
Higa (2000), ao investigar as expectativas dos adolescentes em relação ao
futuro, em alunos do supletivo, nas idades de 14 a 21 anos, verificou um descrédito por parte
deles para com a sociedade e para com o sistema produtivo, educacional e profissional. Para
ela, “É na esfera familiar que os adolescentes depositam suas expectativas”; a família é a
fonte de referência interna e externa para todos os modelos futuros.
Todos estes estudos podem traçar um mapeamento que tenha impacto para
os clínicos que atuam nesta área, principalmente os que exercitam o seu saber na prática
clínica.
Devem integrar pesquisa com prática, pois as pesquisas devem convencer os
clínicos de que o que os pesquisadores estão estudando está relacionado com que eles fazem
(os clínicos), e que seus achados são importantes visto que as publicações das pesquisas,
frequentemente, estão repletas de jargões estatísticos e metodologias que não são bem
compreendidas pelos clínicos (Piper, 2001).
Segundo o mesmo autor, o desafio para os pesquisadores de psicoterapia no
século atual é estabelecer uma colaboração que integra diferentes objetivos e metodologias de
pesquisa em psicoterapia.
As psicoterapias na área da saúde mental têm-se expandido através da
formação de grupos que são caracterizados por suas classificações diagnósticas como, por
exemplo, grupo de mulheres jovens com depressão , grupo de [...]; por outro lado, não há uma
correlata expansão de pesquisas na área, como aponta a literatura especializada.
343
Guanais (2000) estudou o grupo de apoio com pacientes psiquiátricos
ambulatoriais, com esta finalidade. Alves (2001), também quis verificar a eficácia do método
da Psicoterapia Breve Operacionalizada (PBO), com adolescentes.
Tal unidade social representada nesta pesquisa por adolescentes adultos
jovens, mulheres, que frequentavam o Hospital das Clínicas e Hospital Universitário da
Universidade Estadual de Londrina – Pr, em busca de auxílio e ajuda frente aos períodos de
desajustamento e sofrimento biopsicossocial existencial.
Algumas Considerações sobre a Investigação dos Fatores que Multideterminam o
Diagnóstico da Depressão em Mulheres no Início da Adultez
Com o percurso de trabalhos já realizados com adolescentes e adultos jovens, sugere-se
que, ao se formar grupo, deve-se levar em consideração uma pré-seleção somente em relação
a critérios de idade (fase da vida), identidade de gênero, devido às especificidades sócioculturais e ambientais e não utilizar critérios de seleção da psicopatologia, segundo vários
estudiosos.Esta pesquisa, ao contrário fez uso de um diagnostico diferencial, portanto critérios
da psicopatologia, devido a um aumento grande do número de jovens com depressão. São
jovens em sofrimento psíquico, com prejuízos físicos, socioambientais e culturais.
Winnicott (1975: 91), nas suas considerações sobre o exame da sociedade,
diz:
Temos de aprender a deixar de procurar pelo cidadão mundial,
[...].Com efeito, precisamos aceitar o fato de que as pessoas
psiquiatricamente sadias dependem para sua saúde e sua realização
pessoal da lealdade a uma área delimitada da sociedade, talvez os
clubes de boliche. E Por que não! [...]
Justifica-se o ato de Fé desta pesquisa, ao buscar examinar e desenvolver
algo que possa coincidir com Winnicott (1975), nas suas considerações sobre o exame da
sociedade, nas quais ele privilegia a saúde e não a doença.
A partir deste percurso reflexivo, faz-se necessário o desenvolvimento de
um método de intervenção com grupos de adultos jovens com transtornos que considere as
orientações diagnósticas do DSM-IV relacionadas ao Eixo-I: Depressão e Eixo-IV: Problemas
Psicossociais e Ambientais.
344
Ao contrário das proposições de outros autores, as intervenções foram
realizadas com pacientes diagnosticadas de acordo com um critério nosológico da
psicopatologia como já havia sido dito, de diagnóstico diferencial sobre transtornos mentais.
Estes jovens, devido à cronicidade de seus transtornos, não aderem ao tratamento de forma
efetiva, vivendo uma periodicidade crítica quanto aos atendimentos.
Nesta pesquisa, o enfoque é o “acontecer clínico”, compreender que ele se
dá, conforme Vaisberg et al (2003) num “campo inter-humano”.Há nos encontros: o clínico, o
de pessoas, dos pesquisadores, pessoas e instituição, a interlocução do método psicanalítico
como metáfora destes encontros que são, entre as pessoas (inter-humanos), que pode
acontecer num espaço transicional, denominado psicoterapêutico.
“Quando nos referimos ao acontecer clínico, queremos chamar a atenção
para o fato de que se trata sempre de um encontro inter-humano, seja o paciente um indivíduo,
atendido individual ou grupalmente, ou um sujeito coletivo” (VAISBERG et al, 2003:11).
Ou seja, caracterizar a área de pesquisa em Psicologia Clínica, como uma
atuação à saúde que visa desenvolver ações que privilegiem a promoção da saúde no âmbito
psicossocial e ambiental. Visar à cura... Winnicott (apud Celeri, 2005: 51) “Em uma palestra
para médicos e enfermeiros na Igreja de São Lucas, em outubro de 1970, poucos meses antes
de morrer, relembra à audiência que a palavra ‘cura’ em sua raiz etimológica, significa
‘cuidado’”.
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346
“LOUCOS VARRIDOS” POR DIGNIDADE: O RELATO DE UMA EXPERIÊNCIA
PERMEADA POR DESAFIOS!
CELINA DE FARIAS COSTA MACEDO
Cleiton Charles da Silva
Luciana Meire do Nascimento Tolentino
[email protected]
[email protected]
[email protected]
CAPS I Barra de Santa Rosa/PB
INTRODUÇÃO
A extinção progressiva dos manicômios no modelo em curso da assistência à saúde
mental é a mais significativa expressão da Reforma Psiquiátrica, sendo o Centro de Atenção
Psicossocial (CAPS) um dos dispositivos essenciais, cujo foco não recai apenas na
desospitalização e, sim, na desinstitucionalização.
Ressalto alguns pressupostos da desinstitucionalização e entre
outras coisas chamo a atenção para: 1)a reformulação da relação
terapêutica paciente-profissional e paciente-instituição e; 2)o
transtorno mental possui um caráter inter e transdisciplinar e não
pode ser reduzido ao tratamento de único profissional, sendo o
médico psiquiatra o profissional mais conhecido e valorizado
(WAIDMAN e ELSEN, 2005, p.342).
Esse cenário exige dos atores que nele se encontram mudanças de posturas; da família,
uma nova relação com o usuário: se antes se posicionava como observadora passiva do
tratamento ofertado, agora pode funcionar como elemento imprescindível no processo de
reabilitação; dos serviços de saúde mental substitutivos, como o CAPS, foco nas
potencialidades e contemplação das necessidades dos usuários e, não mais, nos sintomas, na
“doença”, na “cura”.
Saraceno (2005) nos alerta sobre o risco de que as ações que são
executadas nos serviços substitutivos se limitem a reproduzir
técnicas isoladas e acabem por perder sentido e resultem na
347
fragmentação dos serviços e dos usuários. As intervenções
muitas vezes são pensadas de forma isolada, sem a participação
da equipe, do paciente e da família (MÂNGIA, CASTILHO e
DUARTE, 2006, p. 89).
O Projeto: “Loucos Varridos” por dignidade, concretizado a partir da aprovação na
II Chamada de seleção de projetos de fortalecimento do protagonismo de usuários e familiares
na Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), promovido pelo Ministério da Saúde, emergiu da
nossa inquietação diante das vivências no CAPS I9 do município de Barra de Santa Rosa/PB,
as quais apontavam para a necessidade de fortalecimento dos vínculos entre usuários e
familiares, assim como ambos com a RAPS, sendo a viabilidade norteada pelos seguintes
aspectos:
-pelo fato de a pessoa com transtorno mental e sua família conviverem com o estigma
da loucura, o que requer ênfase no processo de ressignificação para a desconstrução de
saberes e práticas que negam a dignidade e, por conseguinte, o protagonismo do usuário, bem
como do seu familiar;
-por apresentar relevância social, quando almeja contribuir para a construção de um
trabalho que envolve os diversos atores da RAPS, usuário e familiares com a proposta da (re)
integração social;
-por se propor a estimular o estreitamento de laços entre familiar e usuário, assim
como uma relação não apenas verticalizada da família com os Serviços, especialmente o
CAPS, atendendo ao que apregoa a Carta dos Direitos dos usuários da saúde;
-por estar consonante com as diretrizes da Lei n. 10.216 (de 6 de abril de 2001),
especialmente com o seu inciso II do parágrafo único do Art. 2º no tocante à importância da
inserção da pessoa com transtorno mental no cotidiano do seu território;
-por se propor à consolidação do modelo de reorientação da assistência à saúde
mental, conforme à Política Nacional de Saúde Mental, à lei 10.216/01 e às Conferências
Nacionais em Saúde Mental;
-por pautar as atividades em Educação Popular em Saúde e no referencial teóricometodológico freireano conferindo, assim, autonomia aos sujeitos participantes, minimizando
os estigmas.
9
Esse CAPS também atende às populações dos municípios de Damião e Sossego/PB.
348
O Projeto teve como objetivo geral: estimular os usuários do Serviço CAPS I e seus
familiares a terem acesso aos diversos Serviços da RAPS com significativo poder de
contratualidade fortalecendo, assim, o protagonismo no modo de viver.
No que concerne aos objetivos específicos foram estabelecidos os seguintes:
1-Proporcionar aos usuários, seus familiares e aos colaboradores do projeto
conhecimentos acerca dos princípios da Reforma Psiquiátrica, SUS, Política Nacional de
Saúde Mental - PNSM, Lei 10.216/01, dentre outros intrínsecos à área de saúde mental, com
base na perspectiva da Educação Popular em Saúde, para aplicação no cotidiano em forma de
protagonismo;
2-Sensibilizar
usuários
e
familiares
para
a
desmistificação
da
loucura
e,
consequentemente, garantir troca de experiências e construção coletiva de novos conceitos;
3-Identificar aptidões artísticas de usuários e familiares que contribuam no desejo de
reagir à uma cultura que marginaliza, segrega ;
4-(Re) avivar a autoestima e, simultaneamente, a dignidade dos usuários e familiares
envolvidos no Projeto, promovendo relações interpessoais respeitáveis e igualitárias;
5-Divulgar o trabalho desenvolvido pelos usuários e familiares através da utilização dos
espaços, equipamentos e recursos disponíveis no território10;
6-Incentivar a continuidade desse projeto como adoção de estratégia para
funcionamento de uma rede de atenção em saúde mental efetiva.
Dessa forma, a necessidade premente de produção de autonomia, a partir do
estabelecimento de novos modos sociais de relações, reflete a substituição proposta pela
Reforma Psiquiátrica: ao invés de “tratar” a “doença mental”, trabalha-se com a promoção de
saúde mental, o que confere a essencialidade de reestruturação do pensamento (AMARANTE,
1995).
1.PERCURSO METODOLÓGICO
O ponto de partida para dar vazão ao pretendido foi o edital da II Chamada de seleção
de projetos de fortalecimento do protagonismo de usuários e familiares na RAPS (Ministério
10
“Território não é apenas uma área geográfica, embora sua geografia também seja muito importante para
caracterizá-lo. O território é constituído fundamentalmente pelas pessoas que nele habitam, com seus
conflitos, seus interesses, seus amigos, seus vizinhos, sua família, suas instituições, seus cenários (igrejas,
cultos, escola, trabalho, boteco etc). É essa noção de território que busca organizar uma rede de atenção às
pessoas que sofrem com transtornos mentais e suas famílias, amigos e interessados” (BRASIL, 2004, p. 11).
349
da Saúde), lançado em junho/2013, que oferecia apoio a projetos distribuídos em três
modalidades (até R$15.000,00; até R$30.000,00; até 50.000,00).
Dentre os critérios, os projetos deveriam contemplar, pelo menos, duas linhas de ação
propostas pela Chamada (1-Processos formativos para construção, ampliação de
conhecimentos de usuários, familiares e outros atores da sociedade civil; 2-Ações que
visassem o enfrentamento do estigma e da superação do lugar de menor valor; 3-Produção de
material ilustrativo e educativo; 4-Projetos de educação inclusiva; 5- Desenvolvimento
institucional de associações e organizações de saúde mental).
O “Loucos Varridos” por dignidade foi aprovado, recebendo recurso no valor de R$
15.000,00 (quinze mil reais) para o beneficiamento a, no mínimo, 30 (trinta) pessoas,
contando com um prazo de 06 (seis) meses para a execução das ações.
Na definição do público participante foram adotados os seguintes critérios de inclusão:
usuários de ambos os sexos, com histórico de vínculo fragilizado com familiar; escassas
relações mantidas no território, postura de submissão à condição de marginalizado (vivência
de estigmas) e disponibilidade espontânea para participação.
Quanto a critério de exclusão, ficou estabelecida a condição de o usuário não
demonstrar qualquer interesse/motivação para participação, mesmo diante de estímulos.
A proposta de ações firmou-se em não restringi-las ao ambiente do CAPS, podendo
ser realizadas em outros equipamentos do território e fora dele, sendo as ações divididas em
08 (oito) etapas, descritas a seguir:
1ª: Formação de usuários, familiares, colaboradores, sociedade civil, comunidade de
uma forma geral, a partir de Seminários11 com foco nas temáticas essenciais ao trabalho com
saúde mental, ficando o tema do 4º Seminário12 a critério do público participante (Mês 01);
2ª: Sensibilização para reflexão dos estigmas vivenciados (Mês 01);
3ª: Verificação de habilidades (Mês 02);
4ª: Produção artístico-cultural, através das Oficinas de: construção de brinquedos e
objetos em madeira; pintura em tela; música; teatro (Meses 02 a 06);
5ª: Viagem dos sonhos (Mês 03);
6ª: Edição de documentário (Mês 06);
7ª: Avaliação do Projeto em Assembleia (Mês 06);
11
Seminário 1: “Reforma Psiquiátrica: o processo de ressignificação das formas de lidar com a loucura”;
Seminário 2: “Ferramentas para o exercício da cidadania e inclusão social: por que conhecer o SUS?”;
Seminário 3: “Eu, cidadão do mundo: o protagonismo em ação”.
12
O Seminário 4 foi intitulado: “A criança e a família: a importância do vínculo”, temática escolhida pela equipe
do CAPS, tendo em vista não terem sido apresentadas propostas.
350
8ª: I Mostra Cultural (Mês 0613).
Tais ações foram pensadas tendo como suporte as diretrizes da educação popular em
saúde, pelo entendimento de que é uma estratégia contrária às práticas repetitivas dos serviços
de saúde, que não destitui os sujeitos de quaisquer saber e valor.
A educação popular em saúde tem uma concepção diferenciada
da hegemônica da educação em saúde. Organiza a partir da
aproximação com outros sujeitos no espaço comunitário,
privilegiando os movimentos sociais locais, num entendimento
de saúde como prática social e global e tendo como balizador
ético-político, os interesses das classes populares. Baseia-se no
diálogo com os saberes prévios dos usuários dos serviços de
saúde, seus saberes “populares”, e na análise crítica da realidade
(FALKENBERG et al, 2014).
Associado às concepções da educação popular em saúde, o referencial teóricometodológico freireano foi utilizado, buscando estimular os participantes à uma reflexão
crítica sobre suas vidas, mas principalmente sobre o lugar de desfavorecimento em que são
constantemente colocados.
As contribuições do pensamento de Paulo Freire (conhecido no meio acadêmico como
o “Pedagogo da Libertação”) na execução desse trabalho fundamentaram as ações que, sob os
pilares da liberdade, justiça e democracia, culminaram nos primeiros passos para um
movimento emancipatório, centrando-se no conceito de leitura de mundo, a partir do princípio
de que todo e qualquer processo educativo/reflexivo deve levar em consideração as vivências
dos sujeitos, pois só se aprende/apreende interagindo (COSTA, 2013).
Considerando que, de acordo com Bardin (1997), a observação participante se
apresenta como um recurso metodológico bastante valioso, pois oferece subsídios suficientes
para a compreensão do universo que delineia o funcionamento de um indivíduo em grupo, a
partir dos costumes, posturas, interesses e formas de relacionar-se, utilizamo-na com respaldo
de análise sob à luz da Teoria das Representações Sociais14.
13
A proposta é que a I Mostra Cultural acontecesse no último mês do Projeto; os usuários através de votação
decidiram que a mesma deveria ocorrer no mês de dezembro/2014.
14
No artigo intitulado: Representação Social e subjetividade do adoecer psíquico, BRITO e CATRIB (2004)
dizem: “Moscovici (1989) salienta que as representações sociais são conjuntos de conceitos, afirmações e
351
É primordial a consideração de que a construção social da realidade acontece por meio
das representações sociais: é o que impulsiona os comportamentos através das atuações
sociais, onde as ideias se transformam em práticas e vice-versa.
2- RESULTADOS E DISCUSSÕES
2.1-A expressão “Loucos Varridos”
A ideia de se ter um projeto aprovado pelo Ministério da Saúde repercutiu
positivamente no Serviço, motivando boa parte dos usuários e parcela significativa dos
profissionais.
Mesmo ainda não tendo sido iniciadas as ações (o que ocorreu no mês de
março/2014), o bloco carnavalesco do Serviço (que saiu às ruas em fevereiro) foi intitulado
por usuária como: “Somos loucos sim, mas por respeito!”, tendo recebido influência direta do
título do Projeto; sob o mesmo referencial, outro usuário construiu uma paródia (“Marchinha
do CAPS”), a qual foi cantarolada pelas principais ruas da cidade, chamando a atenção da
população pelo teor de reivindicação da cidadania.
Vale salientar que, inicialmente, esse título causou estranhamento pela representação
social associada à expressão “loucos varridos”, bastante comum na nossa cultura para se
dirigir àqueles percebidos como desprovidos de razão, respeito, enfim, dignidade. Tal
estranhamento também se estendeu a alguns membros da equipe e, assim, trabalhar tal
expressão se caracterizou como o primeiro desafio.
Ocorre que, a intenção foi essa mesma: a de provocar inquietações, manifestações,
críticas de quaisquer teores, repúdios para, assim, fazer vim à tona as relações que
estabelecemos com a loucura e, assim, ser proposta a retirada do véu que ainda enturva a
visão e separa a normalidade da anormalidade.
Wachelke15 (2005) discute as representações sociais acerca da loucura, afirmando ser a
loucura um objeto envolto por insegurança e ambigüidade, geralmente representado como
algo muito distante daquele que o representa, o que ficou perceptível com o impacto do nome
dado ao projeto, comprovando ainda haver impedimentos históricos para a sociedade conviver
com as diferenças.
explicações, verdadeiras teorias do senso comum, que permitem a interpretação e a construção de realidades
sociais”.
15
No artigo “O vácuo no contexto das representações sociais: uma hipótese explicativa para a representação
social da loucura”.
352
2.2-A Dignidade
Se recorrermos ao dicionário, dentre outras descrições para o termo dignidade
encontramos o de honestidade/honra, estando, assim, o conceito intrinsecamente relacionado a
respeito.
No cotidiano do CAPS (foco de nossa atenção), os discursos/posturas dos usuários e
seus familiares, em sua grande maioria, retratam acentuada dificuldade para se perceberem
como pessoas dignas o que, por vezes, é reforçado pelo ambiente familiar, pela comunidade
onde vivem, pelos serviços pelos quais circulam: apresenta-se, então, o segundo desafio.
Inicialmente houve muita resistência desse público para se engajar nas Oficinas, tendo
em vista o desacreditar nas suas habilidades, onde alguns se negavam à participação ativa,
limitando-se à postura de observador/ouvinte, situação modificada ao longo do tempo.
As Oficinas de expressão verbal e corporal (Música, Teatro) foram as que as pessoas
mais apresentaram dificuldades de participação, portando-se de forma inibida, o que ficou
explícito como resquício da absorção das violações de direito, estigma e discriminação
sofridas.
Azevedo e Miranda (2011), na publicação do artigo “Oficinas Terapêuticas como
instrumento de reabilitação psicossocial: percepção de familiares”, retrataram o valor dos
impactos positivos dessas oficinas no cotidiano dos usuários (melhora da harmonia familiar,
estabilidade e diminuição das crises, dentre outros), alertando para que não funcionem como
mero dispositivos de ocupação do tempo.
Através da redescoberta de alguns valores, aptidões artísticas e, principalmente, do
sentimento decorrente da capacidade de fazer e de ser (o que foi proporcionado
principalmente pelas Oficinas e pela viagem dos sonhos), percebeu-se uma elevação
importante na autoestima da maior parte dos usuários, o que suscitou o repensar acerca da
condição de não-digno.
2.3-Algo mais sobre os usuários
Dos 35 (trinta e cinco) usuários participantes do Projeto, a sua maioria é pertencente
ao sexo feminino, tendo em vista que são em número de 22 (vinte e duas), representando
63%. Quanto ao universo masculino, são em número de 13 (treze), 37%.
Das 22 (vinte e duas) mulheres, 01 (uma) é criança e 02 (duas) são adolescentes,
enquanto que, dos 13 (treze) homens, há 02 (duas) crianças e 02 (dois) adolescentes.
Observando a localização da zona de moradia vimos que das 22 (vinte e duas)
mulheres, 15 (quinze), 68,2%, encontram-se na zona urbana e 07 (sete), 31,8%, na rural;
353
constatamos que, dentre os 13 (treze) homens, 09 (nove), 69,2%, pertencem à zona urbana e
04 (quatro), 30,8%, à zona rural.
A grande maioria (27 – vinte e sete), 77,1%, reside no município de Barra de Santa
Rosa, local de sede do CAPS, o que facilita a vinda ao Serviço, enquanto 07 (sete), 20%, em
Sossego e 01 (um), 2,9%, em Damião.
O acesso ao Serviço para àqueles que residem em outros municípios é prejudicado por
depender de fatores externos, como por exemplo, a disponibilidade de transporte pelos órgãos
públicos, promovendo uma desvantagem acentuada aos usuários do município de Damião 16,
fato já percebido em momentos anteriores ao projeto (inclusive com a população também do
município de Sossego), que só confirmam a preocupação de não se estar incorrendo em
desassistência, o que vai de encontro aos princípios da Reforma Psiquiátrica: eis o terceiro
desafio.
2.4-A família
Dos 35 (trinta e cinco) usuários participantes, 09 (nove), ou seja, 25,7% não tiveram a
presença de um familiar em quaisquer das etapas, enquanto que dos demais, 18 (dezoito),
69,3%, foram acompanhados em algum momento por aqueles com quem mantinham bom
convívio, não atendendo ao que pretendíamos no tocante ao estreitamento de laços.
Os familiares participaram de poucas atividades do projeto, demonstrando
desmotivação e alegando indisponibilidade de tempo/outros interesses, o que exige de nós,
profissionais da área de saúde mental, o desenvolvimento de estratégias outras que consigam
aproximar a família do seu usuário e, assim, funcionar como importante ferramenta no
cuidado pretendido: está estabelecido o 4º desafio.
Consideramos que a sensibilização (por nós proposta) de usuários e familiares para a
desmistificação da loucura teve início, mas por não ser um processo imediato ou a curto
prazo, e que só é alcançável através das relações, foi dificultado, também, pela não
participação efetiva dos familiares, numa explícita rejeição às mudanças. AZEVEDO e
MIRANDA(2011) falam acerca da relação família/usuário:
[...] o comprometimento da família direcionado ao cuidado do
portador de transtorno mental passa a exigir uma nova
organização familiar e aquisição de habilidades capazes de
16
A única usuária participante do município de Damião comparece ao Serviço, na maioria das vezes, através de
transporte próprio (moto).
354
desarticular o cotidiano e funcionamento deste núcleo. Da
mesma forma, o familiar pode se tornar um parceiro da equipe
de saúde no cuidado ao usuário.
2.5-Percorrendo as etapas
Os usuários foram bem participativos na etapa de formação, comparecendo aos
Seminários e demonstrando interesse pelas discussões provocadas, transformando esses
momentos em um espaço de socialização de suas experiências percebidas como negativas, em
contraponto com o exposto, sendo o 1º seminário um dos mais provocantes, por tratar das
maneiras que a sociedade tem lidado com a loucura (resgate histórico).
O tema do 4º seminário, cuja escolha deveria ser feita pelos participantes, não o foi,
tendo os mesmos deixado-o a cargo da equipe, por ainda desacreditarem na importância das
suas escolhas.
O fato de o 3º seminário ocorrer em outro município (Damião) foi motivo de
satisfação, corroborando que as atividades extra-CAPS precisam ser mais corriqueiras.
As etapas de sensibilização e verificação de habilidades possibilitaram uma maior
aproximação com o público do projeto, tendo em vista o aflorar das emoções nas oficinas de
história de vida e rodas de conversa dispor sobre os enclausuramentos de ordem subjetiva.
A fase da produção artístico-cultural foi transformadora: estar diante do que antes era
uma impossibilidade, a partir de relações recíprocas, em ações potenciais de vinculação,
permitiu a abertura para ser e fazer num movimento dialético de construir-se, desconstruir-se
e reconstruir-se.
Conhecer o mar foi uma experiência única para os usuários que demonstraram, tanto
verbal quanto corporalmente, a alegria sentida na realização de um desejo tantas vezes adiado
ou refutado por ser, até então, do campo do inatingível.
O documentário, em fase de edição, tem a intenção de retratar o que foi o projeto para
o usuário e familiares, e suas repercussões no cotidiano, na qualidade de vida.
2.6-O Projeto no olhar dos profissionais do CAPS
A adesão dos profissionais do CAPS foi satisfatória, com níveis diferentes de
envolvimento, mas poderia ter sido mais contundente pela necessidade de uma maior
mobilização que atendesse às exigências cotidianas dos usuários e familiares, o que apareceu
como o 5º desafio.
355
Na visão desses profissionais o projeto pôde proporcionar aos seus participantes, em
sua maioria, a (re) descoberta de valores, aptidões artísticas, habilidades e direitos,
desenvolvimento da concentração, psicomotricidade e autonomia, contribuindo para a
evolução pessoal, desmistificação de alguns conceitos/posturas e elevação da autoestima.
As maiores possibilidades de fazer laço social, expressar as próprias opiniões, o que
contribuiu para a não mais submissão aos “comandos” dos familiares, também foram
comentados como fatores relevantes.
No tocante aos enfrentamentos, atuais e nos que ainda estão por vir, destacaram a
tímida participação da família (caráter de resistência, com cunho de “obrigatoriedade” e não
com foco na inclusão), da sociedade, o que incorre na fragilização das dimensões das redes de
relações dos usuários.
As histórias de vida, de superação e de desejos sensibilizaram alguns profissionais que
nutrem o desejo de que esse trabalho seja conhecido por outras pessoas, além da
demonstração de interesse na continuidade com as seguintes missões: quebra de barreiras
sociais, principalmente na comunidade onde vivem; contribuição na melhora da assistência
em saúde mental na região, na busca da dignidade do usuário.
Ainda chamou a atenção o fato de ser uma situação incômoda a presença de
profissionais no Serviço com atitudes que remetem ao modelo biomédico, com foco na
sintomatologia do usuário, o que pode funcionar como entrave na sensibilização da família e
da sociedade (6º desafio).
Como perspectivas apontaram a materialização da conquista dos direitos e lugar na
sociedade, o que ainda insiste ser negado à pessoa com sofrimento psíquico.
3- CONSIDERAÇÕES FINAIS
A partir da experiência com o Projeto “Loucos Varridos” por dignidade ficou evidente
que o Serviço CAPS I do município de Barra de Santa Rosa/PB trilha o caminho para um
modelo de atendimento que não apresenta tendência para sobrepor o saber da equipe ao do
sujeito em sofrimento psíquico.
A proposta de adentrar no universo dos usuários e dos seus familiares para possibilitar
um olhar diferenciado ao transtorno mental e, assim, romper com os muros separadores dos
ditos “normais” e “anormais”, oferece menos riscos de que se produzam ou se perpetuem
enclausuramentos com novas roupagens.
356
Levando-se em consideração que não houve grandes avanços no trabalho dos laços
com a família, faz-se urgente que, na continuidade desse projeto, as ações foquem na
participação efetiva da mesma junto ao seu usuário, a partir do repensar de que fatores
dificultaram e/ou impediram o envolvimento familiar, inclusive para ser trabalhada a
sobrecarga emocional, por vezes presente nessa relação.
Priorizar atividades extra-CAPS é fundamental, já que poucas ações ocorreram nesse
âmbito, não envolvendo a comunidade pela discreta utilização dos espaços, equipamentos e
recursos disponíveis no território.
A intervenção nas lacunas deixadas pelas dificuldades de acesso dos usuários
residentes nos municípios de Damião e Sossego precisa ser intensificada, como garantia de
que esses usuários (re) conquistem a dignidade de sujeitos com direito à singularidade e às
diferenças.
Uma relação menos verticalizada com os Serviços da RAPS começa a ser desenhada,
embora a conquista do protagonismo se constitua um desafio pessoal e coletivo numa cultura
ainda segregadora, reforçada por representações sociais da loucura de cunho estigmatizante
que tem interferido na efetivação da cidadania plural.
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358
O LOCAL DA INFÂNCIA NAS POLITICAS DA SAÚDE MENTAL: REFLEXÕES
SOBRE O CAPSI DE CUIABÁ MT
HENRIQUE ARAUJO ARAGUSUKU
Naiana Marinho Gonçalves
Maria Fernanda Aguilar Lara
Universidade Federal do Mato Grosso
Cuiabá- MT
[email protected]
Introdução
No estágio básico são desenvolvidas práticas que proporcionam o exercício das
habilidades a que se propõe serem construídas e estabelecidas durante o curso de psicologia,
viabilizando discussões no tocante à realidade efetiva, e também reflexões éticas sobre o
processo de formação e atuação do psicólogo em diferentes contextos. O presente artigo foi
construído como uma reflexão acerca desta experiência curricular, a disciplina de Estágio
Básico IV: Contextos Clínicos e de Saúde, do curso de Psicologia da Universidade Federal de
Mato Grosso, Campus Cuiabá. Durante a referida disciplina, as alunas e alunos são
preparados para a inserção nas unidades de atenção básica à saúde mental, a fim de que se
compreendam as práticas e processos de trabalho e organização das demandas executadas nos
serviços de saúde mental, que fazem parte da rede de atenção básica no município de Cuiabá.
O estágio observacional foi realizado no Centro de Atenção Psicossocial Infanto
Juvenil, podendo este centro ser caracterizado enquanto unidade da Rede CIAPS Adauto
Botelho, da Secretaria do Estado de Saúde de Mato Grosso (SES/MT). A unidade realiza seus
serviços em sede própria, localizada à Avenida Antônio Dorilêo, s/n. Bairro Lucianópolis,
Parque da Saúde, na cidade de Cuiabá, Mato Grosso.
O CAPSI - Centro de Atenção Psicossocial Infanto Juvenil de Cuiabá, pode ser melhor
caracterizado, a partir de seu Projeto Terapêutico Global (CAPSI, 2013), como:
[...] uma instituição que trata de crianças e adolescentes com situação de
sofrimento psíquico severo, onde a criança/adolescente esteja acometida por
transtorno mental grave e que a decorrência desta experiência esteja lhe
inviabilizando o desenvolvimento e exercício de sua vida psíquica,
emocional, social e cidadã (p.1).
359
Ainda neste âmbito de caracterização do ambiente de estágio, é válido citar outra frase
encontrada no Projeto Terapêutico Global (CAPSI, 2013), sendo esta “[...] a lógica de um
CAPSi não está na patologia de seu usuário e sim no seu estado clínico, psíquico e social.”
(p.1). A partir desta breve contextualização apresentam-se como importantes categorias de
análise, para a compreensão do trabalho de assistência em saúde mental na instituição
presente observado, as reflexões acerca das construções sociais das categorias criança/infância
(SARMENTO, 2009), adolescente/adolescência e família. Além da concepção de saúde e
saúde mental (AMARANTE, 2007; PAIM, 2009) adotadas como princípios norteadores das
construções das práticas profissionais, bem como a reflexão acerca da articulação entre o
pensar saúde mental em transversalidade, com estas construções sócio-culturais e históricas
de criança/infância, adolescente/adolescência e família.
Pontua-se também como importante a compreensão da rede de relações que se
estabelece para a efetivação e consolidação da proposta de uma RAPS (Rede de Atenção
Psicossocial), e como dentro desta atua o CAPSi, inclusive distinguindo suas demandas e
práticas de outras unidades que também constituem a rede de atenção básica em saúde mental
no município, como os CAP’s (Centros de Atenção Psicossocial).
Deste modo, o presente trabalho, de caráter exploratório, pretende contribuir para
continuar impulsionando reflexões acerca da saúde mental pensada a partir das perspectivas
da infância e adolescência, com base principalmente na articulação dos dados obtidos durante
o período de observação na referida unidade de saúde.
Sobre a construção social da Infância e Adolescência
A concepção de infância que se tem atualmente consolidada, pode ser considerada
relativamente nova, quando realizado um retrocesso histórico sobre imagens sociais da
infância construídas. As imagens da infância pré-sociológicas concebem a criança a partir da
ideia hegemônica de um “ser em devir”, o que tem como séria consequência a anulação por
um longo período de tempo da complexidade da realidade social infantil. A ausência de
consciência da infância produz-se a partir destes pressupostos, que consideram a criança a
partir da perspectiva adultocentrada, e nesta, seus significados e vivências não são fidedignos,
pois não possuem valor relevante diante da realidade do mundo adulto. Ao insurgir a
sociologia da infância, constroi-se outro significado a ser atribuído à criança, ou melhor, fazse um movimento de ressignificação, e nesta a criança deixa de ser olhada e compreendida
360
pela imperfeição, incompletude ou miniaturização do adulto, e passa a ser analisada como
parte, como autora de uma fase, própria do desenvolvimento humano. (SARMENTO, 2007,
p.28).
No que concerne à construção social do período categorizado como adolescência,
pode-se dizer que muitas concepções acerca deste período do desenvolvimento humano
caracterizam-no com base em generalizações, e universalização de características, de forma a
naturalizá-las, esquecendo-se de uma contextualização ao período sócio-histórico-cultural, do
qual se fala e se analisa o sujeito que o vive e o percebe. Propõe-se então a partir das críticas
da autora Checchia (2010) a estas concepções, pensar a adolescência como um período
socialmente construído, a partir de discursos e expectativas imputadas aos sujeitos que estão
vivenciando-o. Esta concepção fundamenta-se na ideia de homem construída na Psicologia
Sócio-Histórica, pois esta o considera como “[...] um ser histórico com características forjadas
de acordo com as relações sociais contextualizadas no tempo e no espaço histórico em que ele
vive, estabelecendo-se uma relação dialética entre este e a sociedade [...]” (p.43).
Ainda sobre a infância, é importante discorrer e refletir acerca da invisibilidade cívica
destes sujeitos que vivenciam esse período de desenvolvimento – as crianças. Sarmento
(2007) descreve que: “O confinamento da infância a um espaço social condicionado e
controlado pelos adultos produziu, como conseqüência, o entendimento generalizado de que
as crianças estão “naturalmente” privadas do exercício de direitos políticos.” (p.37). Por meio
desta afirmação, pode-se então iniciar uma compreensão mais aprofundada das razões pelas
quais existam tantos entraves para se pensar políticas de assistência em saúde mental para
crianças e adolescentes, visto historicamente estes sujeitos terem sido invisibilisados da
possibilidade em reivindicar seus direitos; e esta invisibilidade acaba também por incorrer na
ausência da consideração dos impactos das decisões políticas sobre a infância e a
adolescência, dificultando ainda mais a compreensão em se garantir a melhoria e consolidação
de políticas que pensem de modo mais específico o atendimento a sujeitos, que estejam
vivenciando estes períodos do desenvolvimento humano, e necessitem de assistência básica
em saúde, principalmente no âmbito da saúde mental.
A construção de novos paradigmas na saúde mental
A Reforma Psiquiátrica no Brasil pode ser considerada contemporânea do “movimento
sanitário”, nos anos 70 ocorrido no país. Compreendida como um conjunto de transformações
de práticas, saberes, valores culturais e sociais, instituiu-se após um período intenso de lutas
361
para sua consolidação, como Política de Estado no Brasil, avançando no cotidiano da vida das
instituições, dos serviços e das relações interpessoais, marcado por impasses, tensões,
conflitos e desafios. (MINISTERIO DA SAUDE, 2005, p.6).
Este movimento surge como mobilizações em favor das transformações dos modelos
de atenção, gestão e práticas de saúde instituídas com base no modelo biomédico de
tratamento, e no que concerne à área da saúde mental, nos sistemas de tratamento
centralizados nos hospitais psiquiátricos enquanto estratégia prioritária de atenção básica aos
sujeitos.
Surge em defesa de uma perspectiva da saúde que fosse coletiva, e é importante
entendê-la como algo maior do que a sanção de novas leis e normas, e ainda maior do que o
conjunto de mudanças nas políticas governamentais e nos serviços de saúde, pois representou
o início da mudança de paradigmas sociais em relação a formas de se construir nacionalmente
o que denominamos atualmente por saúde.
Com a aprovação e institucionalização da Lei 10.216, de 06 de dezembro de 2001, há
oficialmente um redirecionamento da “[...] assistência em saúde mental, privilegiando o
oferecimento de tratamento em serviços de base comunitária, dispõe sobre a proteção e os
direitos das pessoas com transtornos mentais, mas não institui mecanismos claros para a
progressiva extinção dos manicômios.” (MNISTERIO DA SAUDE, 2005, p.8). Sendo assim
podem ser identificados diferentes movimentos neste período de transformações, ocorrendo
simultaneamente: “[...] a construção de uma rede de atenção à saúde mental substitutiva ao
modelo centrado na internação hospitalar, por um lado, e a fiscalização e redução progressiva
e programada dos leitos psiquiátricos existentes, por outro.” (MINISTERIO DA SAUDE,
2005, p.9). Neste movimento se consolidam de fato as reivindicações da reforma psiquiátrica,
sendo esta estabelecida como política oficial do governo federal. Esta Lei também irá dispor
sobre o tratamento de usuários de álcool e outras drogas, propondo por meio do SUS, novas
tecnologias de cuidado.
Neste contexto histórico de avanços, garantias de direitos, e importantes
transformações políticas e de reconstrução de paradigmas sociais, faz-se notória a reflexão
acerca do lugar da criança e do adolescente, na construção deste conjunto complexo de
transformações. E como são realizadas na prática cotidiana as articulações entre os diversos
setores sociais responsáveis pelos cuidados aos sujeitos viventes destes períodos do
desenvolvimento humano (judiciário, educação, saúde, assistência social), e quais as
produções provenientes do estabelecimento destas relações, visto ter sido compreendida a
362
necessidade de um trabalho articulado de modo multidisciplinar, a fim de que os sujeitos
sejam pensados em suas complexidades e não fragmentações.
No processo de construção e consolidação dessa rede de assistência em saúde mental é
essencial pensar que a dimensão estruturante, o eixo principal de trabalho são as pessoas, sua
existência e seu sofrimento. Para tanto, se fazem necessárias articulações entre diferentes
serviços, a fim de que as demandas sejam atendidas efetivamente, por isto, os CAPS
costumam e devem trabalhar em conjunto com as equipes de Saúde da Família, Agentes
Comunitários, bem como na promoção da vida comunitária e da busca em proporcionar a
construção de uma maior autonomia dos usuários, partindo da articulação de todos os recursos
existentes e ao alcance das equipes das diversas redes, como “[...] sócio-sanitárias, jurídicas,
cooperativas de trabalho, escolas, empresas etc.” (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2004, p.12).
O CAPSi pode ser caracterizado, de acordo com o Ministério da Saúde (2004), pela
oferta de um serviço de atenção diária, específico ao atendimento de crianças e adolescentes
comprometidos psiquicamente. Nesta categoria, incluem-se crianças e adolescentes
portadoras de autismo, psicoses, neuroses graves e todos aqueles que, por sua condição
psíquica, estão impossibilitados de manter ou estabelecer laços sociais. (MIISTÉRIO DA
SAÚDE, 2004). Neste âmbito de reflexão, pode-se dizer que tanto o Estatuto da Criança e do
Adolescente (ECA) estabelecido em 1990, como a Lei 10.216 em 2001, assim como a portaria
336 de 2002, tem contribuído enormemente para a modificação do panorama de formulação
de políticas de assistência em saúde mental para crianças e adolescentes (MINAS GERAIS,
2006 apud DIAS, 2009, p.3).
Pensando nas representações sociais da criança, é interessante ressaltar que:
No caso específico de crianças sabemos que, numa perspectiva
evolutiva, sua representação repousa sobre a idéia de um “ainda não”;
ainda não atingiu a faixa etária, ainda não atingiu os objetivos
esperados pela escola ou pelos pais, ainda não responde por si mesma,
etc. Esta moratória da criança no “ainda não” além de conferir a ela
um lugar de objeto nas mãos do outro, reforça a vigilância e
expectativa exercida sobre elas para que correspondam a um ideal de
normalidade, produzido e pactuado por um grupo social. (DIAS, 2009,
p.4).
Esta invisibilidade da existência de uma cidadania da criança contribui
significativamente para que haja muitas dificuldades neste processo de pensá-las dentro do
contexto de políticas públicas de assistência em saúde mental. No que concerne ao
363
adolescente, por esta fase do desenvolvimento humano já ser fortemente caracterizada por
ideias generalizantes de um período “de crise”, pode-se refletir acerca da possibilidade de
muitos dos seus conflitos agravarem-se, transformando-se em intensos sofrimentos psíquicos,
pelo fato de serem naturalizados em decorrência dessas generalizações caricatas acerca do
período da adolescência. Ressalta-se, porém, como não sendo válida a desconsideração de
conflitos e entraves sociais os quais os adolescentes possam vivenciar em seu cotidiano, mas
se enfatiza a necessidade do cuidado em analisar o contexto do ambiente vivenciado pelo
sujeito de quem se fala, a fim de que as generalizações não excluam suas singularidades no
decorrer deste processo.
Muitos dos transtornos que constituem as demandas mais comuns para o CAPSi não
possuem uma causa isolada que possa ser apontada como determinante, mas o que se tem
feito na prática, têm suscitado bons resultados e possibilidades para um estado de melhora do
sofrimento psíquico dessas crianças e adolescentes.
O CAPsi em Cuiabá
O Centro de Atenção Psicossocial Infanto Juvenil caracteriza-se como uma unidade da
Rede CIAPS Adauto Botelho, regulamentada pela Secretaria do Estado da Saúde de Mato
Grosso (SES/MT). A unidade realiza seus serviços em sede própria, localizada à Avenida
Antônio Dorilêo, s/n. Bairro Lucianópolis, Parque da Saúde, na cidade de Cuiabá, Mato
Grosso.
No que concerne ao seu histórico, pode-se dizer que Vuolo (2005) relata o CAPSi de
Cuiabá como tendo sido o primeiro serviço especializado em saúde mental para a realização
do atendimento de crianças e adolescentes do estado de Mato Grosso, implantado no mês de
novembro de 2002. A iniciativa de implantação do CAPSi veio da Secretaria de Estado da
Saúde de Mato Grosso (SES/MT), como unidade integrante da mesma, o que demonstra uma
especificidade do Estado quanto ao desenvolvimento das redes em saúde, pois acaba por não
se consolidar a municipalização de alguns serviços, mas isto ocorre em detrimento de como se
estabelecem as relações de poder, e política na região, e como a saúde é tratada nesta
conjuntura.
De modo a trazer um panorama sobre os serviços de saúde mental e a rede de atenção
básica de saúde na cidade de Cuiabá na época de fundação do CAPSi, Vuolo (2005) apresenta
as unidades que já estavam em funcionamento na época: um Centro Integrado de Atenção
Psicossocial – CIAPS Adauto Botelho, um Centro de Atenção Psicossocial para Dependentes
364
de Álcool e Drogas – CAPSad e um Centro de Atenção Psicossocial (CAPS I) – CAPS Júlio
Muller.
Neste ano em que foi inaugurado (2002), o CAPSi funcionou durantes os meses de
novembro e dezembro. Para que o processo de sua implantação fosse consolidado foram
criadas algumas estratégias, como a redação e revisão anual do Projeto Terapêutico Global
(PTG) da unidade, o treinamento interno específico da equipe, também realizado anualmente,
ocorrendo na mesma ocasião de revisão e aperfeiçoamento do PTG, como também a garantia
da intersetorialidade no trabalho, e a elaboração do Projeto Terapêutico Individual (P.T.I). A
elaboração do P.T.G, este documento norteador e de socialização com a comunidade acerca
da explicação de como funciona o CAPSi e sua importância social, viabilizou além desta
organização da equipe quanto às suas próprias funções enquanto CAPSi, a possibilidade de se
exercer de modo mais qualificado a identificação da demanda infantil e adolescente,
invisibilizada até então pelas políticas públicas de saúde mental no Estado. Aos poucos foi se
instituindo um modo específico de se pensar a construção das atividades terapêuticas de
acordo com características como idade, sexo, inserção social, acesso a direitos, patologia
instalada, risco e vulnerabilidade, condições de desenvolvimento e sofrimento psíquico. De
acordo com o relatório produzido acerca das atividades desenvolvidas no CAPSi no período
entre os anos de 2002 a 2011 (SES- CIAPS ADAUTO BOTELHO, CAPSI – CUIABÁ,
2012):
O
CAPSi
(Centro
de
Atenção
Psicossocial
Infanto-Juvenil/CAPS
Infantil)/CIAPS Adauto Botelho/SES-MT, é uma unidade-equipamento da
rede de saúde, cuidado e proteção à criança e ao adolescente, que atende em
clínica especializada crianças e adolescentes, de 0 a 17anos, com transtorno
mental severo, em cuidado aberto, através das modalidades intensiva, semiintensiva e não intensiva. É composto por equipe multiprofissional com
médico psiquiatra infantil, médico pediatra, enfermeiro, psicólogos,
assistentes sociais, terapeuta ocupacional, fonoaudiólogo, nutricionista,
técnico em educação artística, técnicos de enfermagem, auxiliares
administrativos, serviços gerais e segurança. O horário de funcionamento é
integral, de segunda a sexta feira, das 7h às 18h, sito à Avenida Antônio
Dorilêo, S/N, Bairro Lucianópolis, Parque da Saúde, Cuiabá-MT, Fone 65
3661 7226, Fax 65 3661 6677.
365
O CAPSi de Cuiabá é definido como uma unidade-equipamento da rede de saúde,
sendo que esta colocação pode ser entendida pelo fato de que ele representa um conjunto de
concepções de atenção, de modos de intervenção, regidos por uma determinada lógica do
cuidado (ELIA, 2005). Essa lógica do cuidado mencionada trata-se de fazer valer as diretrizes
das políticas de saúde mental, portanto, o CAPSi pode ser entendido também como uma
unidade – dentre muitas outras da rede de atenção básica – que atua como ordenadora da rede
e uma porta de entrada para seus usuários, ao passo que em suas relações estabelecidas com
outras unidades pode receber e encaminhar usuários.
Além de estar na faixa etária entre 0 a 17 anos e 11 meses para que a criança ou
adolescente seja acolhido pela primeira vez, este só adentra a unidade e inicia um tratamento
no CAPSi quando apresentar prejuízos graves em algum âmbito de sua vida seja pessoal e
social e familiar e escolar – o que é denominado como “[...] os “3 ES®” do CAPSi [...]”
(CAPSI, 2013, p.4). A equipe de profissionais do CAPSi trabalha com base na
intersetorialidade e multidisciplinaridade, possuindo 24 profissionais em sua constituição
(CAPSI, 2013, p.18-19), de diversas áreas, mas que juntos desenvolvem ações sempre
visando o trabalho em prol da saúde mental voltada às crianças e adolescentes.
Segundo informações observadas no Projeto Terapêutico Global de 2013, e em
informações obtidas pelas observações durante o trabalho de campo, o quadro de servidores é
constituído por membros efetivos, e contratados, sob regência direta do CIAPS Adauto
Botelho/SES-MT (CAPSI, 2013). Os cargos são denominados de acordo com a legislação do
SUS, sistema ao qual o CIAPS e, o CAPSi, estão integrados. Além destes profissionais, a
unidade conta com a prestação de serviços terceirizados, regidos por empresas privadas que
possuem contratos com a Secretaria do Estado de Saúde (SES/MT), realizados por meio de
editais públicos.
Perfil da Clientela atendida
Foram levantados dados referentes aos atendimentos realizados pelo CAPSi no ano de
2013, tendo sido atendidos neste ano 1235 casos de crianças e adolescentes. Como pode ser
demonstrado pela Tabela 1, a idade dos usuários atendidos varia bastante, com um domínio
maior de atendimento aos usuários com idade entre 11 e 17 anos. É válido lembrar que 17
anos e 11 meses é a idade máxima, instituída por lei, para o primeiro acolhimento em
unidades de atendimento à saúde mental de crianças e adolescentes.
366
Quanto a essa discussão, a equipe do CAPSi por meio das discussões em grupo
percebeu o aumento da demanda por tratamento à população adolescente, que é uma demanda
também com muitas especificidades, assim como a infantil, sendo que a adolescente inclui
bastantes reflexões acerca das construções sobre projetos de futuro de vida, bem como a
inserção no mercado de trabalho, e a questão da inserção e aceitação na sociedade. A partir
disso, e pela revisão no início deste ano do P.T.G da unidade – 2014 – a equipe planeja pensar
atividades que pautem a discussão em grupo sobre independência, independência financeira,
formação profissional, configurando o vislumbre da abertura de um novo campo de trabalho
na unidade, oriundo das novas necessidade apresentadas pelos usuários do CAPSi.
O CAPSi é uma unidade que constitui uma rede, a rede de atenção á saúde mental, e
como única unidade do município de Cuiabá recebe crianças e adolescentes da cidade inteira,
de todos os bairros, inclusive alguns usuários oriundos de cidades vizinhas e do interior,
porém tendo como maior demanda os usuários de Cuiabá – MT, o que pode ser analisado por
meio dos dados demonstrados na Tabela 3.
Assim como pode ser observado pelos dados demonstrados na Tabela 2, a grande
maioria dos usuários é do sexo masculino. Na Tabela 4 nota-se que a quantidade de
atendimentos subsequentes é bem superior à quantidade de casos compreendidos como
primeiros acolhimentos/contato das crianças e adolescentes com a unidade, o que demonstra a
rotina e prática da unidade quanto ao acompanhamento dos casos. A demanda da unidade
segue uma lógica de organização que passa por etapas como agendamento, acolhimento,
discussão do caso e elaboração do Projeto Terapêutico Individual (PTI), para então iniciaremse as práticas de tratamento.
Sobre o agendamento, é considerado como requisito básico o encaminhamento de
outros serviços integrados à rede de atenção básica à saúde, o que contribui para que a
demanda seja reconhecida pelos serviços da rede e, consequentemente, contribui para que o
CAPSi seja consolidado como um serviço de assistência ao portador de transtorno mental
severo, com idade entre 0 e 17 anos (CAPSI, 2013). No entanto, demandas espontâneas de
quadros agudos que requisitam a unidade, são atendidas de acordo com a demanda da criança
ou adolescente. O agendamento é uma tarefa atribuída aos técnicos administrativos da
unidade. Após realização do agendamento, segue-se à etapa do acolhimento. O acolhimento é
feito, inicialmente, por meio de uma abordagem individual da família com a
criança/adolescente, em um momento em que o técnico colhe informações que vão desde a
queixa inicial, para identificar a chegada daquela criança ou adolescente ao CAPSi, passando
por questionamentos que visam compreender como se deu o desenvolvimento desta criança.
367
Aquele que realiza o acolhimento é identificado como técnico de referência da
criança/adolescente. Se o caso requerer um encaminhamento externo, o técnico de referência
torna-se responsável por realizar um encaminhamento, passando informações atualizadas e
precisas sobre os outros serviços que compõem a rede. Para o encaminhamento interno, pode
haver duas situações:

a primeira, diz respeito a admissão imediata para tratamento da criança ou do adolescente
mediante a elaboração do PTI;

a segunda situação, é aquela em que a criança ou adolescente acolhida seja admitida à
instituição para uma avaliação e investigação diagnóstica para só depois realizar a elaboração
do PTI.
Ao trabalhar-se com esta criança ou adolescente, a equipe, com base nos objetivos e
princípios norteadores do trabalho no CAPSi, procura fazer a reinserção do mesmo na escola
e propiciar ganhos em outras áreas de sua vida, mas isso não é feito de imediato como um
primeiro passo ou finalidade do tratamento. O que a equipe técnica faz é trabalhar as
prioridades desse adolescente e dessa criança, de acordo com a urgência de suas demandas e
do que é necessário para o seu desenvolvimento.
Quanto à caracterização sociodemográfica dos usuários do CAPSi, cabe ser ressaltado
novamente que por ser a única unidade que oferece este tipo de serviço na cidade de Cuiabá, a
demanda é grande e oriunda de diversos bairros da cidade, até mesmo com a ocorrência de
alguns casos de cidades do interior do estado.
Ainda discorrendo sobre a caracterização da demanda do CAPSi, em virtude dos
usuários dos serviços se tratarem de crianças e adolescentes, há uma distribuição dos mesmos
pelas séries dos ensinos fundamental e médio, quando estes frequentam a escola. Com base
em relatos de profissionais da unidade e pelo descrito no P.T.G (CAPSI, 2013), entende-se
que o fato de uma criança ou adolescente não frequentar a escola torna-se um dos critérios
para que esta seja aceita na unidade. É importante ressaltar que, de acordo com os
profissionais, esse dado não é considerado como uma necessidade obrigatória para que o
acolhimento da criança/adolescente na unidade seja realizado, mas é um dado relevante, por
dizer respeito ao desempenho escolar.
TABELA 1: FAIXA ETÁRIA DOS USUÁRIOS DO CAPSI – CUIABÁ EM 2013.
FAIXA ETÁRIA – ATÉ OUTUBRO
DE 2013
NÚMERO
DE
USUÁRIOS
368
0 A 5 ANOS
359
6 A 10 ANOS
286
11 A 17 ANOS
590
TOTAL
1235
Fonte: Dados obtidos pelo relatório do CAPSi (2013) acerca da clientela atendida.
TABELA 2: SEXO DOS USUÁRIOS DO CAPSI – CUIABÁ EM 2013
SEXO
PORCENTAGEM
(%)
MASCULINO
69,64
FEMININO
30,36
Fonte: Dados obtidos pelo relatório do CAPSi (2013) acerca da clientela atendida.
TABELA 3: PROCEDÊNDIA DOS USUÁRIOS DO CAPSI – CUIABÁ EM 2013.
PROCEDÊNCIA
PORCENTAGEM
(%)
CUIABÁ
94,49
VÁRZEA GRANDE
0,89
INTERIOR
4,62
OUTROS ESTADOS
0
Fonte: Dados obtidos pelo relatório do CAPSi (2013) acerca da clientela atendida.
TABELA 4: TIPO DE ATENDIMENTOS REALIZADOS PELO CAPSI – CUIABA EM 2013.
ENTRADA NO CAPSI
PORCENTAGEM (%)
PRIMEIRO CONTATO
22,27
SUBSEQUENTE
77,73
Fonte: Dados obtidos pelo relatório do CAPSi (2013) acerca da clientela atendida.
369
TABELA 5: RELAÇÃO DOS
2013.
DIAGNÓSTICOS DOS CASOS ATENDIDOS PELO
CID 10
CAPSI
NO ANO DE
PORCENTAGE
M (%)
F84
12,97
F90
6,86
F84.9
11,38
F29
6,78
F20
2,76
F20.0
2,59
F32
2,93
Fonte: Dados obtidos pelo relatório do CAPSi (2013) acerca da clientela atendida.
Considerações Finais
O CAPSi, segundo Elia (2005) pode ser compreendido enquanto uma das instituições
reguladoras na rede de saúde mental, em virtude de atuar de forma integrada com outras
unidades, não só da saúde, e poder tanto realizar os acolhimentos e atender os usuários,
quanto encaminhar estes usuários para outros serviços, assim como encaminhar a outros
serviços os não usuários, quando ocorrem casos em que crianças ou adolescentes são
avaliados e não necessitam do tratamento no CAPSi. Por meio da observação das redes de
relações construídas na unidade percebeu-se que estas articulações com as outras unidades e
serviços ocorre em função da demanda cotidiana, ou seja, são realizadas na prática partindo-se
das necessidades e demandas de cada caso atendido na unidade, bem como pelos
encaminhamentos de outras instituições ao CAPSi
Historicamente, o vazio no campo da atenção em saúde mental pública para crianças e
adolescentes portadores de transtornos mentais, e a ausência de uma diretriz política para
instituir o cuidado para estas populações foram preenchidos por instituições, na sua maioria
de natureza privada e/ou filantrópica, que, durante muitos anos, serviram como únicas opções
de acompanhamento, orientação e/ou atenção dirigidas às crianças, aos jovens e aos seus
370
familiares. Segundo o Ministério da Saúde (2004), um dos maiores desafios para a área de
Saúde Mental atualmente constitui a elaboração de uma política voltada para a população de
crianças e adolescentes, que considere suas peculiaridades e necessidades enquanto sujeitas,
cidadãs e atuantes na construção de sua própria história, e que siga os princípios estabelecidos
pelo SUS.
Este estudo exploratório possibilitou perceber o quão necessário se faz a construção de
um engajamento concreto e real da equipe em construir uma política de assistência em saúde
mental que seja construída por um olhar diferenciado às crianças e adolescentes, que as vejam
enquanto sujeitos totais e não como fragmentados, e apenas pela ótica da patologia. Provendo
um olhar mais crítico no que se refere à reflexão sobre a relação entre indivíduo e a patologia,
direcionando um olhar que identifique o indivíduo enquanto sujeito único. E a construção de
espaços que primam por compreender e objetivar enquanto foco de análise o olhar às
peculiaridades e necessidades dos sujeitos, de modo a considerar um indivíduo em sua
integralidade, inserido nas suas diversas esferas de atuação, é essencial e indiscutível para a
consolidação e construção de políticas públicas de saúde neste âmbito, que terão reflexos não
só na saúde enquanto âmbito específico de tratamento, mas sim em todas as formas de
serviços que se destinem a pensar as vivências das crianças e dos adolescentes, e também ao
se analisar que o conceito de saúde diz respeito a um conceito ampliado, por meio da visão
proporcionada pelos paradigmas SUS.
Estes fatores (proporcionados por uma visão de saúde enquanto um conceito
ampliado) são observados no CAPSi e suas implicações para o atendimento dispensadas às
crianças e aos adolescentes, se faz visível quando a equipe opta por ações que considerem o
indivíduo como o principal foco de ação das intervenções, mas também, conseguem atuar
sobre questões familiares, escolares e sociais.
Sarmento (2007) aponta a existência de um processo de invisibilização da infância na
cena pública, naturalizado por discursos pautados na ideia de proteção e cuidado. De modo
que: “O confinamento da infância a um espaço social condicionado e controlado pelos adultos
produziu, como consequência, o entendimento generalizado de que as crianças estão
‘naturalmente’ privadas do exercício de direitos políticos.” (p.37).
Neste sentido compreender a criança e o adolescente a partir deste panorama suscita a
reflexão de que este processo de invisibilidade pode ser considerado homólogo a um processo
de exclusão social, e “Para a recusa da compreensão das crianças como actores sociais com
competências políticas concorre um conjunto de factores, que se articulam e conjugam no
371
mesmo efeito, embora tenham proveniência em momentos históricos distintos [...]”
(SARMENTO, 2007, p.38).
Os reflexos dessa vivência demonstraram as dificuldades ainda muito presentes, de
consolidação dos novos paradigmas de saúde trazidos pelo projeto do SUS, proveniente das
ideias do movimento da Reforma Psiquiátrica, e também como estas se complexificam ao
passo que estão direcionadas a categorias sociais do desenvolvimento humano:
infância/adolescência, as quais não possuem uma condição de cidadania política e civil
(MARSHALL, 1967 apud SARMENTO, 2007), e de visibilidade cívica consolidada. Tendo
como impactos, por conseguinte, a ausência de consideração de impactos políticos para as
vidas dos sujeitos desta categoria, por isto, as políticas do SUS, no que concernem à saúde
mental de crianças e adolescentes constituem uma contra-hegemonia no modo de pensar o
tratamento e o cuidado para com estes atores sociais, que se pautem em suas necessidades
específicas, advindas principalmente de sua faixa etária; o que provoca uma necessidade de
intensa e contínua renovação desta mudança de paradigmas, por meio das práticas
profissionais cotidianas, desenvolvidas em equipamentos de saúde da rede, como os CAPSi’s.
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373
OS PROCESSOS DE TRABALHO EM UMA ENFERMARIA PSIQUIÁTRICA EM
HOSPITAL GERAL E A INTEGRALIDADE: RELATO DE EXPERIÊNCIA
Camila Thomé Souza de Freitas
Giovana Romani Rinaldi
Jéssica Santos de Araújo
Thiago da Silva Domingos
FAMEMA- Faculdade de Medicina de Marília (SP)
[email protected]
1. INTRODUÇÃO
A Reforma Sanitária de 1988 realizou transformações significativas no modo de
operação do sistema de saúde brasileiro, através dos princípios da universalidade,
descentralização, integralidade, equidade, regionalização e hierarquização, construindo um
novo modelo de gestão e assistência em saúde.
Imbricada nesse contexto social, político e cultural, a Luta Antimanicomial buscou
mais do que o fechamento dos hospitais psiquiátricos/manicômios, mas principalmente a
mudança de um modelo de cuidado, que deixe de olhar para a patologia como centro do
cuidado, e sim para as necessidades do sujeito na perspectiva da integralidade e da sua
reinserção no território. Esse processo é realizado principalmente pelo Movimento dos
Trabalhadores em Saúde Mental (MTSM), pelo Centro Brasileiro de Estudos em Saúde
(CEBES) e pelo Movimento de Luta Antimanicomial.
O movimento dos trabalhadores em saúde mental iniciou na década de setenta com a
abertura do regime militar, junto com outros movimentos sociais da época (LUCHMANN;
RODRIGUES, 2007). No final da década de 70 iniciam-se as primeiras exposições sobre esse
novo paradigma de cuidado, e em 1979 é realizado o I Encontro Nacional do Movimento dos
Trabalhadores em Saúde Mental para discutir a implantação de um cuidado integral e
humanizado, considerando a subjetividade dos sujeitos, e a aproximação com os outros
movimentos sociais. A I Conferência Nacional de Saúde Mental e o II Congresso Nacional do
MTSM (Bauru/SP) são dois eventos muito importantes para impulsionar a participação
popular na Luta Antimanicomial e o distanciamento do movimento do estado. Diante deste
processo, vale destacar que o Manifesto de Bauru marca a fundação do movimento da Luta
Antimanicomial.
374
A Lei elaborada pelo Deputado Paulo Delgado, aprovada em 2001, é a primeira a
defender os direitos do sujeito com transtornos mentais, e suas deliberações foram embasadas
nas discussões realizadas na I Conferência Nacional de Saúde Mental.
É a partir desses movimentos que é impulsionada a criação de novos serviços
substitutivos aos hospitais psiquiátricos, como os CAPS, que buscam atender as necessidades
das pessoas com transtornos mentais nessa nova lógica do cuidado.
Apesar dos avanços legislativos no campo da saúde mental, ainda resiste a
impunidade e a violação dos direito humanos aos sujeitos com transtorno mental,
principalmente nos hospitais psiquiátricos que ainda existem (GRUNPETER; COSTA;
MUSTAFÁ, 2007). A luta por uma sociedade que respeite os direitos e a dignidade do ser
humano, considerando a sua subjetividade, independente de sua patologia, ainda é um desafio
na atualidade para a nossa sociedade, já que tem impregnado em sua cultura trancafiar o
“doente mental”.
A tradicional forma de “tratar” a loucura, dispensada, sobretudo à classe trabalhadora
que perdeu a capacidade laborativa, caracteriza-se pelo asilamento e pela violência
institucionalizada (GRUNPETER; COSTA; MUSTAFÁ, 2007). O tratamento realizado nos
hospitais psiquiátricos atualmente, ainda é utilizado como controle social dos trabalhadores
que deixaram de ser ativos, e assim param de produzir, o que é desinteressante para o sistema
capitalista em que vivemos. Podemos concluir que a Reforma Psiquiátrica iniciada na década
de 70 ainda não foi concretizada, o grande número de leitos psiquiátricos existentes e as
denuncias de maus tratos ocorridas nesses hospitais, e que em sua maioria os responsáveis
não são punidos, demonstram isso.
A partir da regulamentação do decreto 7.508 que organiza as Redes de Atenção a
Saúde, é publicado a portaria 3.088, que implementa e organiza a Rede de Atenção
Psicossocial (RAPS), com serviços que propõem o cuidado integral, humanizado, e a
reinserção do sujeito na sociedade.
No Brasil, mesmo com leis que garantem os direitos da pessoa com transtorno
mental e a criação de novos pontos de atenção, ainda existem serviços no modelo manicomial
contrapondo com os novos modos de assistência, assim tem-se o desafio de não permitir que,
com a desospitalização, os novos serviços propostos se transformem em mini-manicômios,
desconsiderando os principais objetivos da Reforma Psiquiátrica, a liberdade e autonomia do
sujeito, bem com a reinserção social.
Assim, podemos situar as políticas de saúde no Brasil em um campo amplo e
heterogêneo, imersas em um movimento de transição paradigmática. Nota-se em muitos
375
espaços de saúde a militância dos trabalhadores, usuários e gestores em defesa do Sistema
Único de Saúde (SUS) e da efetivação da proposta da Integralidade e Humanização da
atenção com ideais que possam reformular a produção do cuidado em saúde, bem como
fortalecer a ampliação dos conceitos que embasam a prática e possam provocar fissuras no
modelo enrijecido do pensar e agir em saúde de forma fragmentada e em modelos
totalizadores.
Destaca-se que este modo de organização das práticas de saúde brasileira está
inserido em um contexto atravessado por construções históricas que influenciam o propósito e
os resultados do trabalho em saúde. De acordo com Santos (1988) nos encontramos numa fase
histórica de transição paradigmática e problematizadora da racionalidade científica do modelo
determinista universalizante da ciência moderna, devido seus próprios limites e insuficiências
estruturais. Tal modelo conduziu o entendimento sobre o homem a partir do olhar
fragmentado do especialista baseando-se no dualismo queixa-conduta e estabelecendo os
parâmetros fronteiriços entre o normal e o patológico. Tais delimitações produzem um hiato
entre o sujeito e sua experimentação singular com o mundo, e inda hoje, entre o emaranhado
de discursos que compõe as formas de cuidado em saúde se mostra imperativa e determinante.
Basta pensar a ênfase em saúde mental dentro de um conceito ampliado. A noção de
uma entidade própria
da saúde mental
sinalizando-a enquanto
um
ramo,
um
desmembramento, uma especificidade da saúde cujo objeto primordial é a saúde integral da
população. A partir de tal pensamento, é possível afirmar, a todo o momento, a fragmentação
do saber direcionado aos sujeitos. Produzem-se práticas tendenciosas que provocam o
reducionismo e simplificação da complexidade da vida em categorias de sintomas
psiquiátricos cuja intervenção se encerra na supressão de sintomas e correção de
comportamentos os quais cerceiam os processos de subjetivação em padrões de normalidade e
universalidade (FOUCAULT, 1975).
Em contrapartida a este pensamento, a Reforma Psiquiátrica imersa nesse amplo
processo político, aposta em uma ruptura importante com o modo da racionalidade
psiquiátrica de olhar e compreender os sujeitos em sofrimento psíquico. Propõe a substituição
do modelo asilar manicomial que gera exclusão social e fere os Direitos Humanos pela
criação de modelos mais humanizados de tratamento, inscritos em uma dimensão ética e
política do cuidado. Aliada à Reforma Sanitária, a Reforma Psiquiátrica brasileira busca
desfazer as fronteiras rígidas entre as disciplinas e propor a construção de um campo teóricoconceitual cujo eixo fundamental é o diálogo entre os diversos núcleos de saberes. Esse
movimento busca superar a hegemonia do modelo biomédico unilateral sobre o sujeito,
376
valorizando a dimensão subjetiva e a produção desejante que implica o sujeito nesse processo.
É preciso desconstruir o conceito tradicional da clínica centralizado na doença e pautado no
entendimento biologicista e assim fortalecer a contextualização do processo saúde-doença
atravessado pela multiplicidade de aspectos históricos, culturais, políticos, sociais,
econômicos e subjetivos (YASUI, 2010).
Acerca dessas desconstruções da racionalidade da clínica, Rotelli afirma que:
A ruptura do paradigma fundante dessas instituições, o paradigma clínico,
foi o verdadeiro objeto do projeto de desinstitucionalização: e a ruptura do
paradigma se fundamentava também na ruptura da relação mecânica causaefeito na análise da constituição da loucura. Negação da instituição, bem
mais que o desmantelamento do manicômio, foi e é, a desmontagem desta
causalidade linear e a reconstrução de uma concatenação de possibilidadeprobabilidade: como toda ciência moderna nos ensina diante de objetos
complexos. O projeto de desinstitucionalização coincidia com a reconstrução
da complexidade do objeto que as antigas instituições haviam simplificado
(ROTELLI, F.,1990, p.1).
A proposta de ruptura com este modelo hegemônico ainda encontra entraves à sua
efetivação, assim como toda a proposta da implantação do SUS. Foram criados serviços
substitutivos para a reorganização da rede assistencial, no entanto, pela observação de nossa
prática é possível afirmar que a lógica fragmentada e determinista permanece. Desta forma,
torna-se necessário promover reflexões críticas acerca do processo de trabalho e a implicação
nos modos de produção de saúde, sendo estes, inseparáveis ao processo de produção de
subjetividades (CAMPOS, 2003).
Foram criados aparatos que intentam substituir as internações de longa duração em
hospitais psiquiátricos a partir de uma rede intersetorial diversificada de serviços de atenção
que atravessam a atenção básica, os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), urgência
psiquiátrica e, se necessária internação, leitos em hospital geral.
A enfermaria psiquiátrica para internações de curta duração foi criada em consonância
com as propostas do movimento da Reforma Psiquiátrica na reorientação da assistência. Tais
unidades são instaladas dentro do hospital geral como prática alternativa ao modo asilar de
segregação e preza pelo retorno breve ao convívio familiar e social. Sendo este o local o qual
vamos analisar o processo de trabalho de uma equipe, vale contextualizar o movimento desta
unidade de internação em questão. O projeto desta enfermaria sofreu várias represálias no
momento da implantação, a comunidade hospitalar não via com bons olhos as demandas de
saúde mental, o sujeito em crise dentro deste hospital geral. No entanto, em 1989, este projeto
377
foi colocado em prática. Esta unidade, inicialmente, tinha capacidade para receber 16
pacientes de ambos os sexos, cujo intuito era realizar internações breves para pacientes em
surto psicótico agudo, de preferência, casos de primeira internação (BOSELLI, 1992). Ao
longo dos anos, consolidou-se o trabalho nesta unidade, possibilitando o aumento da
capacidade de acolhimento e atualmente são oferecidos 18 leitos para pacientes em crise.
Vale ressaltar que os parâmetros norteadores do cuidado nesta enfermaria ainda são
centralizados na figura do médico e da medicalização dos sintomas descritos. Contudo,
podemos pensar o conceito de crise baseado em uma visão ampliada e direciona-lo a uma
outra compreensão enquanto um momento de sofrimento psíquico atravessado por inúmeras
experiências singulares inscritas em determinado contexto social, político, histórico e cultural,
desvinculando-a de um conceito estritamente patológico cuja intervenção se encerra na
supressão de sintomas e correção de comportamentos os quais cerceiam os processos de
subjetivação. Assim, Paiva (2000, p. 52) afirma que o sujeito é “como campo de inscrição de
saberes, códigos, práticas e batalhas que o atravessam e o constituem” e está inserido em uma
rede de conexões que se dão a partir de atravessamentos da história. A subjetividade é algo
que se inscreve no corpo, este enquanto o modo imediato pelo qual acontecem os encontros e
relações com as coisas, com a história e o tempo (CARDOSO JR, 2005).
Guiada por essa lógica, a organização dos processos de trabalho da equipe de saúde é
de fundamental importância, pois a relação que estabelece junto ao usuário constitui um
momento significativo na produção de sentido ao reposicionamento do sofrimento psíquico.
Com isso, serão discutidos os processos de trabalho no contexto de uma enfermaria
psiquiátrica em um hospital geral, a fim de propor transformações no modelo de atenção para
além de intervenções reducionistas e fragmentadas ampliando as ações em saúde do SUS por
meio do conceito da Integralidade.
2. MÉTODO
Pesquisa descritiva e exploratória de caráter qualitativo. Considerando o objetivo
desse trabalho, utilizou-se o estudo de caso como método de pesquisa, pois, permite, por meio
de estratégias qualitativas, descrever e analisar o contexto e as relações imbricadas no objeto.
Considerou-se ainda o fato de que os pesquisadores estavam inseridos no contexto de
pesquisa, e com isso, puderam observar diretamente o objeto de estudo e as relações que
estabelecia (MINAYO, 2010).
378
Como etapas dessa pesquisa, Minayo (2010) propõe: (i) definição do foco de
pesquisa, (ii) determinação da unidade de análise, (iii) justificativa do estudo, (iv) formulação
das proposições, (v) esclarecimento entre as proposições e (vi) estabelecimento de critérios
para a interpretação dos dados.
Foram realizados cinco encontros, distribuídos durante três semanas, entre
profissional do serviço de uma unidade de internação psiquiátrica de um hospital geral e a
equipe multiprofissional de residentes de um programa em saúde mental enquanto
desenvolviam trabalhos nessa unidade. Durante esse encontros foram discutidos,
coletivamente, aspectos inerentes ao processo de trabalho de quatro núcleos profissionais,
sendo eles: enfermagem, psicologia e terapia ocupacional.
Nesses encontros, identificaram-se as fragilidades relacionadas aos processos de
trabalho da equipe multiprofissional, assim como as divergências com os pressupostos da
Reforma Psiquiátrica brasileira e da Integralidade, enquanto um princípio do SUS e eixo
norteador da organização dos serviços de saúde. Com isso, foi possível estar diante das
distâncias entre a prática e a teoria, do contexto e do texto. Tendo alcançado essa etapa, foram
construídas propostas de intervenções sobre o processo de trabalho que potencializem o
cuidado como uma tecnologia em saúde, construída em meio a processos de trabalho
coletivos resgatando a figura do usuário como sujeito no processo saúde-doença e cuidado.
3. RESULTADOS E DISCUSSÃO
A discussão está organizada em dois momentos que se correlacionam e se dedicam a
repensar o processo de trabalho, pois, há uma concordância dos participantes de que o modo
de organização do trabalho está intrinsecamente ligado aos modos de produção de sujeitos
(CAMPOS, 2003).
Primeiramente, uma etapa intensamente descritiva, baseada nos encontros realizados
pelos profissionais e que se destinavam a elaborar uma identificação e uma caracterização dos
processos de trabalho que foram apreendidos pelos participantes da pesquisa. Em seguida, um
espaço para a construção de propostas, baseada nos referenciais teóricos adotados, que
possam resgatar a potencialidade dos mesmos processos de trabalho como meios e
instrumentos de produção de cuidado atrelada à produção de subjetividades.
3.1 Caracterizando os processos de trabalho e a tipologia do trabalho em equipe
379
Durante os primeiros dois encontros, os participantes se dedicaram em apresentar os
processos de trabalho que constituem os núcleos de suas respectivas profissões. Nesse espaço,
foi possível observar que a especificidade de cada profissão, encerrada no interior de suas
responsabilidades específicas, foi identificada como um fator promotor angústia para o
profissional, pois, outras formas de explorar os meios e os instrumentos dos processos de
trabalho de cada profissão foram encontradas, no entanto, essa tensão de limites profissionais
está diretamente subordinada ao tipo de constituição do trabalho em equipe adotado nessa
enfermaria.
Esse mesmo sentimento foi suscitado quando o núcleo profissional não está
completamente constituído, como o caso da Enfermagem que concomitantemente à
desconstrução de um cuidado calcado na fiscalização e na punição, tenta se constituir olhando
para as possíveis formas de produzir subjetividades, estando inserida em uma equipe
multiprofissional e sob à luz dos preceitos da Reforma Psiquiátrica e da reabilitação
psicossocial (ARANHA e SILVA; FONSECA, 2005).
Além disso, a ênfase sobre a constituição do trabalho em equipe, fundamentada sobre
a especificidade dos núcleos profissionais, permite apreender outras características do
funcionamento dos processos de trabalho, como: pouca articulação das intervenções
profissionais, hegemonia do modelo biomédico e práticas terapêuticas fundamentadas sobre a
medicalização. Vale ressaltar esses apontamentos, embora critiquem os próprios processos de
trabalham, representam a primeira etapa para iniciar um trabalho de transformação das
práticas. Ainda mais, revelam a racionalidade e a intencionalidade que sustentam os processos
de trabalho dessa equipe, significando-os em um contexto sócio-histórico e cultural que
expressam como as políticas de saúde são operacionalizadas na microesfera do trabalho
(PEDUZZI, 2007).
Essa reflexão crítica sobre os processos de trabalho e suas características possibilita
classificar o trabalho em equipe na modalidade equipe agrupamento, proposto por Peduzzi
(2001). Baseada na justaposição das ações de profissionais que ocupam o mesmo ambiente de
trabalho sem estarem intencionados com integração de suas ações, tende a manter a
fragmentação das ações atravessadas pelo estranhamento e distanciamento das relações que
estabelecem entre si e com o usuário.
Outro aspecto abordado durante as discussões nos encontros realizados pelo grupo
refere-se à interpretação que essa equipe de trabalho lança sobre o conceito e o fenômeno
crise. Essa compreensão está diretamente ligada às influências do modelo biomédico
380
discutido acima e que, por sua vez repercute sobre as intervenções junto ao usuário e ao
processo de saúde-doença e cuidado, que são marcados pela medicalização.
Reflete-se que o intuito do tratamento medicamentoso voltado para a crise necessita,
fundamentalmente, estar associado a intervenções que explorem sua ressignificação pelo
usuário, atrelando-a ao seu contexto de vida. Com isso, evita-se uma medida encerrada na
administração de medicamentos e que contém a crise em um momento estritamente
patológico da vida usuário. Por fim, ações que auxiliem o usuário refletir sobre esse fenômeno
vão de encontro à produção de subjetividades, respeitando os modos de andar a vida e
ampliam a clínica de cada profissão (CAMPOS, 2007).
3.2 Ampliando o cuidado por meio de novas relações entre trabalhadores e
usuários
Uma das formas para construir um processo de trabalho satisfatório, explorando
novas maneiras de fazer saúde, é fortalecer o acolhimento, pois, a forma como é realizado
determina o desenvolvimento do cuidado ao usuário nos serviços. Para que seja
desempenhado de modo adequado, é preciso mais que uma estrutura física acessível, inclui a
intenção profissionais que se preocupem com sua técnica e postura, utilizando-o como uma
tecnologia leve nos processos de trabalho das diferentes relações estabelecidas com o usuário
e com outros trabalhadores da equipe multiprofissional (SILVA JÚNIOR; MASCARENHAS,
2004).
A partir disso, é necessário o estabelecimento de vínculos entre os usuários, os
profissionais e os gestores, tendo em vista que ambos – acolhimento e vínculo permitem e
favorecem a criação da autonomia através da corresponsabilidade compartilhada entre todos
os sujeitos envolvidos. Dessa forma, (re)estrutura-se o cuidado integral em saúde mental,
dando ênfase a produção de subjetividade e a singularidade de cada indivíduo. (JORGE,
2011).
Para que haja um cuidado integral do usuário, é preciso refletir sobre quais são as
condutas terapêuticas a serem seguidas e de que forma elas se articulam. Assim, o processo de
trabalho carece de discussões da equipe multiprofissional para a definição do projeto
terapêutico, o qual deve superar o paradigma biomédico através de condutas coletivas que
respondam às necessidades dos indivíduos (BARROS, 2009). O projeto terapêutico deve ser
uma ferramenta que possa responder a todas as necessidades, objetivas e subjetivas, dos
381
sujeitos e que possibilite a produção de autonomia e apropriação de seu processo de cuidado
(MERHY, 1998).
De modo geral, o trabalho em equipe deve se fundamentar nas necessidades dos
sujeitos, na integralidade e na interdisciplinaridade e, para que isso ocorra de modo pleno,
devem ser planejados novos meios no modo de organização e nas relações de poder entre os
gestores, os profissionais e os usuários. Nesse sentido, utilizando os espaços das reuniões de
equipe semanais, já praticadas no processo de trabalho dessa equipe, propõe-se ampliar os
espaços de discussão das diferentes profissões e suas respectivas intervenções. Essa
intervenção tem como objetivo reconhecer o trabalho do outro, levando-o efetivamente em
consideração o que, por sua vez, resgata o caráter comunicativo e ético da interação humana
(PEDUZZI, 2007).
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
No cotidiano das ações e na micropolítica que rege a organização dos processos de
trabalho dessa equipe de saúde mental notam-se algumas limitações caracterizadas por uma
relação instrumental entre os diferentes integrantes ao exercerem práticas assistenciais
atravessadas por normas e valores distintos daqueles que poderiam ter sido validados de
forma comunicativa, favorecendo a intersubjetividade. Dessa forma, foram sinalizados como
valores a fragmentação e individualização das ações, hierarquização e paroxismo instrumental
e, assim, observa-se a proximidade da tipologia “equipe agrupamento” (PEDUZZI, 2001).
Em relação às produções discursivas e exercícios do poder endereçados ao sujeito em
sofrimento, cabe lançar um olhar mais atento e minucioso às práticas cotidianas que
permeiam o trabalho em saúde e questionar o quanto tais práticas servem para afirmar uma
naturalização e imposição de padrões universais a partir de uma lógica psiquiátrica. No
emaranhado de saberes que incide sobre esse campo, precisamos problematizar esses modos
de verdades e interrogar os efeitos das práticas bem como elucidar as linhas que compõe esse
cenário, o modo como está sendo alvo de inúmeros discursos os quais cerceiam os processos
de subjetivação ao estabelecer padrões de normalidade e universalidade e medicalização do
sujeito.
Permanecer no lugar onde cristalizamos é uma proposta sedutora, pois, provocar um
movimento de reorganização implica estar, constantemente, em um embate de forças, é
preciso abrir brechas à potência do trabalho singular, inventivo e produzido a partir do
encontro com os sujeitos para que as práticas não se tornem institucionalizadas e normativas e
382
assim, perdem o sentido amplo e torna-se um trabalho mecânico que cerceia as múltiplas
possibilidades de existência. O propósito de novas formas de cuidado é possível quando existe
um processo que evidencie a prática clínica e a gestão desta prática em constante
questionamento e que nos leva à singularização dos sujeitos envolvidos, tanto dos usuários
como dos profissionais que compõem estes cenários.
Diante dessa disputa do campo da saúde e produção de saberes e práticas, podemos,
com a elaboração desse trabalho, elencar alguns avanços que se somam à proposta de um
outro paradigma em saúde que possa superar a fragmentação teórica e prática direcionando a
uma dimensão ética e política do cuidado integral.
Assim a produção de saúde passa a ser construída no coletivo de protagonistas
combatendo qualquer relação de tutela, desrespeito, desqualificação e pretensão de localizar
os saberes em uma única corporação ou categoria, combatendo práticas de individualismo e
de corporativismo, produzindo modos outros de humanidade que afirmem a vida em sua
multiplicidade e possam subverter lógicas pré-determinadas.
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384
SAÚDE MENTAL NO NASF: AFETOS E PERCEPÇÕES SOBRE SITUAÇÕESLIMITE NO APOIO MATRICIAL
Larissa Dall’ Agnol da Silva; Maria Paula Bertol; Maurício da Silva
AWM Faculdades Integradas
[email protected]
INTRODUÇÃO
A Atenção Primária em Saúde (APS) representa um complexo de conhecimentos e
modalidades de intervenções no cuidado em saúde, construído de acordo com a Política
Nacional da Atenção Básica (PNAB) atualizada pela portaria nº 2488, 21 de Outubro de 2011.
Com base em princípios e diretrizes do SUS, a APS é, então, a porta de entrada prioritária do
sistema de saúde brasileiro.
Entretanto esta complexidade representa uma importante vertente na Estratégia de
Saúde da Família (ESF), caracterizada por ser uma estratégia que objetiva o cuidado
regionalizado e humanizado, centrado nas famílias como um sistema integrado. Atualmente, a
implantação da ESF vem promovendo significativa transformação no modelo de atenção à
saúde no país.
Conforme a PNAB, a ESF visa a territorialização do cuidado e o fortalecimento dos
vínculos entre usuários e trabalhadores, oferecendo um cuidado mais abrangente de acordo
com a realidade de cada família (biológica, cultural, social e econômica), baseado no
princípio da integralidade. Ainda, entre as competências da equipe de ESF, está a ampliação
da abrangência do cuidado em casos mais específicos, sem necessidade de encaminhamento
para serviços especializados.
São instituídos pelo Ministério da Saúde em 2008 os Núcleos de Apoio à Saúde da
Família (NASF), com o objetivo oferecer o apoio matricial (AM) necessário para a resolução
de cada situação, assim como potencializar a autonomia da equipe, estimulando o processo
através de algumas estratégias possíveis. Sabe-se que, atualmente, existem três modalidades
de equipes NASF, as quais se diferenciam pelo número e composição dos profissionais, e pelo
número de habitantes. A escolha destes profissionais é realizada pelos gestores municipais,
conforme as necessidades das equipes de ESF e dos territórios.
Questionando um modelo de atenção burocratizado e centrado na enfermidade,
385
Campos (1999) propõe o AM como uma estratégia de organização do trabalho em saúde,
cujas ações devem ser complementares ao sistema de referência e contra referência e às
centrais de regulação da atenção especializada. Desta forma, o AM objetiva a transformação
nas intervenções do especialista, preconizando um perfil dialógico e de relações horizontais
com os demais profissionais da rede.
O trabalho do NASF tem suas atribuições, tais como: identificar, em conjunto com a
ESF e a comunidade, as atividades, as ações, o público e as práticas a serem adotadas em cada
uma das áreas cobertas; atuar de forma integrada e planejada, acompanhando os casos de
acordo com os critérios pré estabelecidos, acolher os usuários a partir de um cuidado
humanizado, desenvolver ações coletivamente, com vistas à intersetorialidade; promover a
gestão integrada e a participação dos usuários, por meio de participação popular e controle
social; elaborar junto às equipes estratégias de comunicação social e sensibilização à
atividades na comunidade; avaliar as ações desenvolvidas e seu impacto na situação de saúde
por meio de indicadores e elaborar projetos terapêuticos singulares (PTS) em conjunto com os
profissionais da ESF potencializando o cuidado compartilhado.
O apoiador matricial é um profissional com formação em alguma área de
conhecimento que difere da área de conhecimento dos profissionais das equipes de referência.
Prioritariamente, os profissionais também devem ter formação sanitarista. O profissional pode
atuar na retaguarda, de forma que possa contribuir com seus saberes e propor intervenções, a
fim de potencializar o rendimento das ações realizadas pela ESF.
Nesse sentido, Campos e Cunha (2011) compreendem a interdisciplinaridade como
uma fundamental diretriz de trabalho para a realização do apoio matricial, ressaltando a
importância de uma ferramenta conceitual, que contribui na produção das transformações,
motivando na flexibilização das fronteiras entre cada profissão de saúde. Tal ferramenta
corresponde aos conceitos de núcleo e campo.
O conceito de núcleo se refere a um conjunto de conhecimentos e práticas específicos
de determinada categoria profissional. Por sua vez, o campo corresponde à abertura da
identidade profissional cristalizada para uma atuação voltada à interdisciplinaridade e à
interprofissionalidade. Nessa lógica, o conceito de campo representa um saber a ser
apropriado pelos profissionais trabalhadores em um mesmo contexto, visando a eficácia do
trabalho. Apesar dos conceitos de campo e núcleo as especificidades compreendem o
processo de trabalho como integrado.
386
METODOLOGIA
O presente estudo refere-se a uma reflexão teórica, qualitativa, com base em uma
cartografia pessoal, a partir do lugar de apoiador matricial à Estratégia de Saúde da Família. A
pesquisa qualitativa pressupõe capacidade de incorporar os atos, as relações e as estruturas
sociais como fatores inerentes ao processo e a intencionalidade das experiências vivenciadas.
A cartografia possibilita algumas respostas e cria forma na medida em que se vive o
cotidiano do território, dando lugar ao que está em processo de constituição. Para Deleuze e
Guattari (1995), é um método que compreende a subjetividade em sua dimensão processual,
não excluindo o cartógrafo do processo.
Segundo Deleuze e Guattari (1995), a presente metodologia trata-se de uma
investigação em processo de produção, no acompanhamento à um traçado insólito, em um
tempo que dura. Assim, a cartografia ocupa-se de um plano movente, interessando-lhe as
metamorfoses e anamorfoses tomadas como processos de diferenciação.
Essa modalidade pode ser produzida pela via dos acontecimentos, e não mais como
construção dialética, na busca de analisadores, como promulgam algumas intervenções de
base socioanalítica. Pode ser vista, no entendimento dos autores, como um mapa aberto que se
vai desenhando pelas conexões feitas a partir do que é vivenciado no campo, sempre
relacionando com as implicações do próprio pesquisador, ou seja, levando em conta seus
desejos, perguntas, curiosidades e entendimentos.
Rolnik (1989) traz uma proposta de realização de “cartografias sentimentais”,
utilizando o termo sentimental no sentido de afeto, com o objetivo de traçar diagramas do
afetar e ser afetado. Em suas próprias palavras:
“Paisagens psicossociais também são cartografáveis. A cartografia,
nesse caso, acompanha e se faz ao mesmo tempo em que o
desmanchamento de certos mundos – sua perda de sentido – e a
formação de outros: mundos que se criam para expressar afetos
contemporâneos, em relação aos quais os universos vigentes
tornaram-se obsoletos. Sendo tarefa do cartógrafo dar língua para
afetos que pedem passagem, dele se espera basicamente que esteja
mergulhado nas intensidades de seu tempo e que, atento às
linguagens que encontra, devore as que lhe parecem elementos
possíveis para a composição das cartografias que se fazem
necessárias. O cartógrafo é antes de tudo um antropófago.”
(ROLNIK, 1989, p.15-16).
387
Sendo assim, este estudo foi trilhado no percurso em busca do objetivo desta reflexão
utilizando o máximo de informações, levando em conta as diferentes experiências da
trajetória, que seguem presentes na memória da pesquisadora em sua prática profissional.
NA REDE: NOVAS TECITURAS EM PROCESSO DE SIGNIFICAÇÃO
A chegada na rede me envolveu de tal forma, que em algumas vezes senti-me na
responsabilidade de enfrentar inúmeros desafios, entre eles, estar preparada para encontrar no
processo alguns “nós” para reelaboração e planejamento do trabalho no dia-dia. Minhas
andanças enquanto apoiadora foram potencializando e motivando em mim, as tranformações
necessárias para dar segmento ao acompanhamento das equipes. Elas perpassam pelas mais
cristalizadas identidades, padrões de funcionamento e hábitos rotineiros.
Na tentativa de propor é comum que as novas reflexões das intervenções em questão,
geralmente passem resistência por parte dos profissionais que ali estão. Porém, em
contraponto a isto, reconheço com suma importância a ambientalização neste trabalho, para
que as angústias e frustrações não atropelem o percurso enquanto trabalhadora que visa
contribuir junto ao coletivo.
Para Galván (2007), o estado das coisas pode gerar:
“[...] um movimento contrário à rigidez e ao isolamento disciplinar
que se caracteriza pela formação de equipes de saúde, onde as
disciplinas estejam representadas, mas não isoladas; numa tentativa
de abarcar o todo, através da junção das partes, dos diferentes
olhares sobre um mesmo fenômeno”. (GALVÁN, 2007, p. 54)
O Ministério da Saúde propõe para viabilizar o trabalho da ESF diretrizes que
norteiam as equipes no desenvolvimento de suas ações. Mediante a isto a é papel da gestão
disponibilizar aos trabalhadores os protocolos relacionados as práticas que compreendem a
atenção primária em saúde. Contudo, cada equipe apresenta uma identidade ou perfil
subjetivo para reorganizar seu processo de trabalho considerando as diferentes situações
encontradas na comunidade em questão.
O processo de subjetividade é caracterizado pela itinerância a qual o trabalhador em
saúde se propõe na trajetória profissional. Cabe aqui, no presente estudo ressaltar que esta
construção é parte da significância relativa ao campo social e suas múltiplas possibilidades na
388
concretude, modelagem, serialização e homogeneização dos processos.
Guattari & Rolnik, (1985), fundamentam os processos de subjetivação como
“equipamentos sociais e dos dispositivos políticos de poder têm a função de definir
coordenadas semióticas determinadas, que se infiltram no comportamento dos indivíduos”
Ainda, para Guattari (1992), a produção de subjetividade “pode funcionar para naturalizar ou
desnaturalizar saberes e instituições sociais os mais diversos em qualquer ponto ou instância
do sistema social.”
Dentre os principais desafios no cotidiano deste trabalho, um deles tem sido ser capaz
de discernir o que é mais importante para cada equipe em cada momento, já que cada caso se
configura em um formato. Saber o que propor, como conduzir, viabilizar e também a
confiabilidade das habilidades que têm surgido na medida em que são destrinchadas as
situações, bem como, as demandas espontâneas.
Mas para isso, tenho percebido entre os processos de trabalho no qual vivenciei, que a
observação cautelosa de cada realidade é fundamentalmente relevante no planejamento em
toda e qualquer ação, a arte de reinventar alternativas objetivas e menos complexas em
discursos muitas vezes vazios. Ao longo do percurso, venho refletindo a significância das
ações que tenho me ocupado, a observação, a escuta qualificada, o acolhimento e as
possibilidades da tecitura em rede e coletivamente.
O presente artigo visa além da reflexão teórica, a incorporação no amadurecimento
pessoal, profissional, ético, político e participativo. Cabe compreender que o mesmo se dá
pela beleza que é ser trabalhador do SUS na atenção primária e tudo que a implicação
expressa neste caminho.
Em alguns momentos a ansiedade reconfigura passo a passo algumas sensações, uma
delas, quero socializar aqui, o vazio. Acredito que seja carregado de fantasmas anteriores a
este processo, então foi preciso ressignificar, compondo em mim, quantias generosas de
sensibilidade e fluidez.
O NASF também compõe, em conjunto com outros serviços e dispositivos, a Rede de
Atenção Psicossocial (RAPS), atuando de forma compartilhada e corresponsabilizada. Nesse
sentido, é possível oferecer assim um cuidado mais amplo, complexo e integralizado,
potencializando a APS na atenção à saúde mental trabalhando de acordo com princípios da
Reforma Psiquiátrica e, ao mesmo tempo, estimulando a territorialização do cuidado.
389
MATRICIAMENTO: APOIO OU ALÍVIO?
Tratando-se de apoio matricial em saúde mental, são compartilhados diferentes casos
com os apoiadores. Desde os graves e persistentes de transtornos mentais que não tem adesão
ou necessidade de encaminhamento e acompanhamento às equipes especializadas de saúde
mental, até os de baixa complexidade e prevenção.
Pude perceber que muitas equipes de ESF não se sentem à vontade para acompanhar
os casos de transtornos mentais. Mediante a este processo, já existem as diretrizes e
protocolos adequados de trabalho que são disponibilizados às equipes de atenção básica nos
casos de transtornos, ou situações de vulnerabilidade social.
De qualquer forma, eximir-se dos casos, não é justificável. Porém, o apoiador pode
auxiliar na resolução dos problemas encontrados. Compreendo tais questionamentos, pela
complexidade do trabalho, e devolvo da seguinte forma, evoluir é preciso. Na atualidade as
políticas públicas nos exigem aprimoramento a abertura para seguir no SUS. Da mesma
forma, a existência de um NASF não significa oferta de atendimentos especializados, pois já
existem serviços para esta finalidade, e sim um trabalho coletivo e compartilhado com as
equipes de referência.
Segundo Onocko e Campos (2012), a dificuldade de atuação do apoiador matricial
pode estar associada à uma sensação de impotência, solidão e desamparo dos trabalhadores da
atenção primária para lidarem com a complexidade da saúde mental. Assim, a um apoiador
matricial, impõem-se uma série de desafios. Entre eles, podemos considerar o diálogo com
outros profissionais de saúde e a realidade complexa da maioria dos usuários e famílias que
são atendidos pelo SUS.
Para que seja garantida a integralidade da atenção, assim como a ampliação da
resolutividade do SUS, faz-se indispensável a construção interdisciplinar do trabalho. Sendo
assim, nós apoiadores, podemos contribuir com nosso conhecimento específico, enquanto a
equipe de referência é quem continua possuindo o vínculo e conhecendo o território e suas
particularidades.
A Saúde Mental é um dos diferentes campos no qual é oferecido apoio matricial. A
portaria nº 154 do Ministério da Saúde, de janeiro de 2008, recomenda que cada núcleo conte
com pelo menos um profissional de saúde mental (psicólogos e psiquiatras), em virtude da
magnitude epidemiológica dos transtornos mentais.
390
O campo da saúde mental é transversal a todo cuidado em saúde, em sua amplitude de
múltiplas ações, que não é estático, nem exclusivo de responsabilidade destes profissionais.
São incluídos na prática, bem como, em estudos equipes multiprofissionais que acolhem
outras áreas profissionais, tais como: educação física, terapia ocupacional, fisioterapia,
odontologia, nutrição, entre outros.
A potência do percurso está em também encontrar muitos trabalhadores e equipes
trabalhando de forma multi e interdisciplinar, que realizam suas intervenções sem medo do
enfrentamento, de forma compartilhada, e que se destacam contribuindo na consolidação de
tais políticas. Saliento que as intervenções já realizadas são descritas positivamente pelos
apoiadores, inclusive o quanto é primordial que os mesmos reforcem dadas ações. É preciso,
muitas vezes, tranquilizar estes trabalhadores de que muitas vezes já estão no caminho certo.
Levo em consideração, ainda, a importância de avaliar o que é mais complexo,
estagnado e de difícil resolutividade, pensando em otimizar o que é lógico. Porém, muitas
equipes paralisam e às vezes esperam pelos profissionais do apoio matricial com urgência e
desmotivação, subestimando a própria capacidade de resolutividade no enfrentamento das
situações encontradas.
Percebo estes processos de trabalho, sem a presença do apoiador, cronificados em suas
ações, em padrões estagnado, pois bem, que acabam por minimizar o cuidado, a base de
sustentação coletiva e as diferentes enfermidades. Refiro-me a uma lógica de trabalho
relacionada uma prática curativa e que desvia da principal foco da atenção básica, a prevenção
e a promoção da saúde.
Enfatizo aqui a sintomatologia e o alívio dos sintomas, sintomas estes de uma prática
que é, por si, adoecedora. Apesar de ser uma prática incongruente ao atual modelo e política
de trabalho que nosso sistema de saúde preconiza, infelizmente ainda é possível encontra-la
imbricada no pensamento e nas ações de muitos profissionais de saúde.
Certas práticas de cuidado em saúde, atualmente, oferecem alívio ao sujeito em
sofrimento psíquico, sendo capaz de reduzir quase imediatamente a sensação desagradável
que o incomoda. No entanto, em muitos casos me coloco em dúvidas sobre isto.
Neste sentido, tomo cuidado para não ser capturada por este movimento, que pela
“facilidade” parece tentar prevalecer o tempo todo. Uma facilidade na qual desconhecemos
suas consequências. Mas o que mais me intriga é pensar pra quem está sendo produzido este
391
alívio, para o doente ou para o trabalhador?
CUIDADO: MORAL HIGIENISTA X CUIDADO HUMANITÁRIO
Frequentemente encontramos algum usuário que julgamos moralmente a forma em
que o mesmo se encontra, ou seja, quando não acoplamos nosso olhar “antropos” acabamos
interferindo na realidade dos mesmos compilados pela sociedade, bem como, para a nossa
realidade egocêntrica e higienista. Algumas profissões ao longo de sua história, estão
distantes destes julgamentos, à exemplo disto é a terapia ocupacional, com a qual aprendi
sobre a ocupação humana e as áreas de desempenho ocupacional.
É preciso, de acordo com Galheigo (2003), graduar o processo de ressignificação do
cotidiano, é preciso dar sentido as “coisas e pessoas”, uma vez que a vida cotidiana dos
sujeitos se revela no confronto com a realidade exterior e da realidade psíquica, movida pelas
relações sociais em atividades de autocuidado, e automanutenção em manifestações de
solidariedade. A terapia ocupacional tem como objetivo uma posição privilegiada ao poder
contribuir para a elaboração crítica do cotidiano do sujeito.
Já diria Moscovici (1998):
“[...] todas as culturas que conhecemos possuem instituições e
normas formais que conduzem, de uma parte, à individualização, e
de outra, à socialização. As representações que elas elaboram
carregam a marca desta tensão, conferindo-lhe um sentido e
procurando mantê-las nos limites do suportável. Não existe sujeito
sem sistema nem sistema sem sujeito. O papel das representações
partilhadas é o de assegurar que sua coexistência é possível”
(MOSCOVICI, 1998, p. 12).
Também encontramos famílias que vivem em conflitos, onde cada um se encontra em
seu papel dentro de cada configuração familiar. A partir das experiências vivenciadas, cabe
ressaltar que foi identificada a importância de estar atento na tentativa de auxiliar, evitando
oferecer subsídios ou soluções baseados na moral e que não correspondem com a realidade
presente do usuário.
EDUCAÇÃO PERMANENTE: ESTAMOS DEIXANDO DE TRABALHAR?
Cabe aqui abranger uma temática indispensável à esta este estudo. Podemos destacar a
Educação Permanente como ferramenta essencial, visando garantia de um trabalho de
392
qualidade na assistência, na prevenção e na promoção de saúde, nesta realidade estudada e
vivenciada que é a atenção primária.
O termo refere-se à aprendizagem no trabalho, de acordo com o Ministério da Saúde,
onde o aprender e o ensinar se incorporam à prática. Ela se baseia em uma aprendizagem
significativa, sendo este aprender é uma possibilidade de transformar as práticas profissionais.
Pode ser entendida, nesta lógica, como aprendizagem-trabalho, por acontecer no cotidiano de
trabalho. (BRASIL, 2009)
Nas experiências vivenciadas, a Educação Permanente tem sido proposta como
estratégia de reflexão e de aperfeiçoamento das ações e intervenções realizadas pelos serviços
de atenção à saúde, com objetivo de fomentar a aprendizagem coletiva, oportunizar o diálogo
e a cooperação entre os profissionais e potencializar o enfrentamento e a resolução dos
problemas com qualidade.
A Política Nacional de Educação Permanente em Saúde (PNEPS) é estruturada com
vistas a efetivar um processo coletivo de modo a estimular a participação dos diversos atores
na sua concretização. Conforme Ceccim (2005), o trabalho em saúde é essencialmente
coletivo e, como tal, composto por sujeitos singulares que assumem espaços ocupacionais e
de poderes distintos.
Nas realidades vivenciadas deparei-me muitas vezes com a dificuldade em dar
concretude a essa proposição. Destaco como entrave para efetivação da EPS como atividade
coletiva o trabalho fragmentado no contexto da produtividade e a predominância das ações
assistenciais, conforme refletidos anteriormente. Dificuldades em conceber os momentos de
reflexão e formação como integrantes do processo de trabalho podem ser identificadas,
frequentemente, em discursos como: “É complicado deixar de trabalhar...”
São compreensíveis as resistências sobre as mudanças no processo dos trabalhadores
ao perceber sua autonomia ameaçada, por mais auspiciosa que seja a intenção que fundamente
estas transformações. As intervenções no processo de trabalho de natureza vertical também
estão cristalizadas no cotidiano dos trabalhadores, de modo que estejam mais apropriados e
habituados a tal.
Considero os espaços de educação permanente fundamentalmente importantes na
representação das práticas existentes na atualidade. Podemos refletir que, se a PNEPS é
regulamentada como uma estratégia, certamente o Ministério da Saúde pretende viabilizar o
393
planejamento e reformulação do trabalho nas equipes multiprofissionais com consistência,
ética, responsabilidade para melhoria direta e indireta nos serviços para os usuários do SUS. E
tudo isso é incumbência nossa como trabalhador, podendo ser propiciado entre o apoio
matricial e as equipes de saúde.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
É possível perceber o trabalho coletivo como um dos fatores fundamentais para que o
apoio matricial venha a se tornar realidade. É essencial a presença de profissionais que se
unam com o objetivo comum de transformar a fragmentação existente no processo do trabalho
em saúde, com objetivo de ampliar a qualidade dos serviços oferecidos à população. E que
desta forma, componham a eficácia de um modelo de atenção à saúde que corresponda à
política de trabalho que propõe o nosso sistema de saúde.
Faço alguns apontamentos no decorrer deste estudo, com perspectivas construtivas,
ciente de que o apoio que oferecemos é complexo e bastante desafiador. Abrangendo desde
apoio técnico em discussão de casos bem como na sua resolução, mediação de conflitos tanto
nas comunidades como nas próprias equipes, planejamento, entre outras situações, buscamos
oferecer novas alternativas de cuidado em saúde para os usuários. Mesmo assim, sabemos que
não existem fórmulas prontas e que nem sempre o que propomos é viável, sendo um
destrinchar constante.
Reconheço neste percurso, com o respaldo de diferentes referenciais bibliográficos e
pelas legislações que regem o sistema de saúde brasileiro, o constante fortalecimento da rede,
bem como práticas regulares de educação permanente como fundamentais ao processo de
consolidação do nosso sistema de saúde.
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396
SAÚDE MENTAL NA ATENÇÃO BÁSICA: o medo de fazer
Cintia Marcondes Vargas
Enfermeira formada pelas Faculdades Integrada de Ourinhos,
Enfermeira Coordenadora da Estratégia de Saúde da Família
Navegantes (São Lourenço do Sul-RS).
RESUMO
O relato de experiência visa expor os sentimentos pessoais de medo, que
desencadeou um grande desgaste emotivo em uma equipe de Saúde da Família em relação aos
atendimentos voltados as demandas de Saúde Mental. A partir das discussões geradas iniciouse a busca pela reorganização do processo de trabalho, onde rodas de conversa sobre
acolhimento e acompanhamento desses usuários passou a ser tema principal das reuniões de
equipe semanalmente. Em busca pela reorganização do processo de trabalho, quebrando os
paradigmas da Saúde Mental centralizada e hospitalocêntrica, na busca de ser um espaço de
construção da cidadania, a equipe começou a discutir sobre as Diretrizes do SUS, a Política
Nacional de Saúde Mental e a Política Nacional Atenção Básica, a Reforma Psiquiátrica, a
Rede de Saúde Mental e os dispositivos da área e contando com o Apoio Matricial para a
Educação Permanente e orientação e auxílio nas intervenções com alguns usuários. A equipe
entendeu que o atendimento deve ser integral, multiprofissional, multisetorial, compartilhado
e singularizado, e que todos têm capacidade para serem ouvintes, pois o que as pessoas
precisam é desabafar, é falar sobre seus problemas e que nem sempre teremos respostas, por
isso não se deve temer em perguntar. A equipe estabeleceu um vínculo com os outros serviços
da rede, como os Centro de Apoio Psicossocial (CAPS), e hoje trabalham juntos propiciando
ações e intervenções dentro do território da equipe de Saúde da Família, e para isso usa a
ferramenta mais importante para os profissionais da Atenção Básica, o vínculo profissionalusuário.
PALAVRAS-CHAVES: Atenção Básica; Saúde Mental; Medo; Integral.
INTRODUÇÃO
O modelo de assistência à saúde tradicional priorizava as consultas médicas
individuais, sendo o enfoque a doença e a cura. Com a criação do Sistema Único de Saúde
(SUS), em 1988, que tinha como diretriz a integralidade, universalidade e equidade da
atenção, tornou-se imprescindível à reorganização dos processos de trabalho em saúde que
valorizasse o espaço da coletividade enquanto espaço de cuidado. A Estratégia de Saúde da
Família (ESF) vêm para atuação no território através de diagnóstico situacional,
enfrentamentos dos problemas de saúde em pactuação com a comunidade, buscando o
cuidado dos indivíduos e das famílias ao longo do tempo; buscar a integração com instituições
e organizações sociais, ser espaço de construção da cidadania, trabalhando em equipe, de
397
forma interdisciplinar com a rede de serviços, e têm como instrumento de trabalho o
acolhimento e o cuidado humanizado, com gestão do cuidado compartilhado com a família e a
equipe multidisciplinar.
No final da década de 1970, teve início o movimento da Reforma psiquiátrica
Brasileira, caracterizado como um movimento político, social e ideológico em que se
acreditavam outras formas de tratamento que não somente a medicalização e a hospitalização.
Buscavam então a desinstitucionalização e a reabilitação psicossocial, tratando o indivíduo
como um todo e reinserindo-o na sociedade. O trabalho em rede da ESF e a saúde mental
possibilitam a reabilitação psicossocial a partir do território do usuário, tentando reduzir o
número de internações psiquiátricas, facilitando o atendimento integral na família,
aumentando o vínculo usuário/família e modificando as relações de cuidado, pois os
indivíduos em sofrimento psíquico têm direitos e deveres como todos e deve ser participante
ativo do seu tratamento.
A reabilitação psicossocial, define-se como um saber fazer no contexto da reforma
psiquiátrica, e traz considerações onde o transtorno psíquico é um dado da história de vida
deste indivíduo, que vive em um território, que mantém relações social/afetiva/laboral, que
faz parte de uma família e que apresenta um transtorno mental com diferentes repercussões
em sua vida. Por isso, o vínculo da equipe da ESF é fundamental, pois os alicerces começam
com o Agente Comunitário de Saúde e se firma com os outros trabalhadores da Unidade
Básica de Saúde. É dessa reformulação do trabalho, do cuidado integral, atendimento a
usuários com sofrimentos ou transtornos, que surge o medo, pois ter que observar
intimamente o indivíduo, correlacionar alterações com o âmbito familiar, ter que levantar
hipóteses para poder obter respostas, ter que discutir sobre os problemas familiares e da
sociedade, tentando sanar os anseios do usuário, e ate mesmo tentar mostrar que não se tem
resposta para todas as perguntas e que muitas das atitudes, quem tem de tomar são eles
mesmo. Não se deve temer a pergunta, pois não precisamos ter as respostas, é ai que nos
enganamos, é o que acaba nos atrapalhando para refletirmos e atuarmos no processo de
cuidado. E ainda quebrar paradigmas de que o acolhimento ou o acompanhamento deve ser
medico e/ou enfermeira centrado. A responsabilização deve ser multiprofissional,
multisetorial, ou seja, totalmente compartilhada.
Boa parte da formação dos profissionais de Saúde tem o seu foco de trabalho na
doença. Com isso muitas expectativas e dificuldades surgem com os casos de saúde mental,
por isso são justificados alguns dos medos colocados por profissionais de saúde sobre o
manejo e as ações das demandas de saúde mental, pois existe a expectativa de cura. Alguns
398
profissionais dizem que não vão saber o que perguntar ou o que falar com medo de piorar o
quadro do paciente. É daí que surge os sentimentos negativos, como medo, ansiedade,
inquietação, negação, incapacidade e outros. Registra-se ainda um relato de experiência de
uma equipe de Saúde da Família em relação ao atendimento aos usuários de Saúde Mental na
Atenção Básica.
DESENVOLVIMENTO
A saúde mental vem sendo transformada há muitas décadas. No Brasil, se iniciou no
final da década de 70, e é resultado da mobilização de usuários, familiares e trabalhadores da
Saúde que tinham como objetivo mudar a realidade dos manicômios onde viviam pacientes
com transtornos mentais questionando as instituições psiquiátricas e suas formas asilares de
tratamento, num processo de desconstrução crítica dos manicômios, de rupturas conceituais e
na busca de novas propostas assistenciais. Os pacientes até então, tachados como loucos da
sociedade eram restritos ao isolamento, à violência e à ausência de qualquer direito, dentro
dos manicômios, longe da família, e tratados com terapias convencionais da época, como
eletrochoque, banhoterapia, lobotomia e medicalização, ficavam trancados e ate mesmo
restringidos no leito ou em paredes e com camisas de força.
Esse movimento foi impulsionado pela luta pelos direitos humanos no combate à
ditadura militar e espelhou-se na reforma psiquiátrica Italiana com Franco Basaglia, com a
substituição do modelo saúde mental baseado no hospital psiquiátrico por um modelo de
serviços comunitários e inserção territorial.
O Movimento Social da Luta Antimanicomial segue em busca da mudança do
modelo de atenção e de gestão do cuidado iniciando a Reforma Psiquiátrica, que tem como
uma das vertentes principais a desinstitucionalização e conseqüentemente a desconstrução dos
manicômios e dos paradigmas que os sustentam, mas para isso, necessita de novas praticas
terapêuticas.
O modelo antigo de assistência ao paciente psiquiátrico que predominava no Brasil,
oferecia a hospitalização e o asilamento, para atender, sobretudo, a segurança da ordem e da
moral pública.
O movimento da Reforma Psiquiátrica aponta as inconveniências do
modelo que fundamentou os paradigmas da psiquiatria clássica e
399
tornou o hospital psiquiátrico a única alternativa de tratamento,
facilitando a cronicidade e a exclusão dos doentes mentais em todo o
país. A reforma psiquiátrica, hoje defendida, é fruto de maior
maturidade teórica e política, alcançada ao longo das últimas décadas,
com maior conscientização da sociedade civil organizada.(Amarante,
1996)
Na década de 1980, iniciaram a desinstitucionalização de alguns moradores de
manicômios, e criaram serviços de atenção psicossocial para realizar a (re)inserção de
usuários em seus territórios. Com isso, foram fechados alguns hospitais psiquiátricos, mas na
medida em que se expandiam os serviços diversificados de cuidado tanto longitudinal quanto
intensivo para os períodos de crise.
O objetivo da atenção aos portadores de transtornos mentais é oferecer o pleno
exercício de sua cidadania, e não somente o controle de sua sintomatologia. Para isso, é
necessário reorganizar os serviços, ter a participação ativa dos próprios usuários e formar
redes com outras políticas públicas. Não só criar novos circuitos mas sim habitar os existentes
no próprio território da sociedade, e isso leva o desafio para além do SUS, pois para isso a
sociedade precisa se abrir para a sua própria diversidade.
A articulação da atenção básica a uma rede substitutiva de cuidados à
saúde mental tem se estabelecido como uma das diretrizes históricas
para a consolidação da reforma psiquiátrica brasileira, que reitera a
centralidade da constituição de dispositivos de base comunitária e
territorial enquanto equipamentos importantes para que se supere a
iatrogenia da assistência à saúde mental hospitalocêntrica (Vecchia;
Martins, 2009).
Ao longo da década de 1990 a aprovação das leis estaduais refletem a progressão
desse processo político de mobilização social não só na saúde como também no conjunto da
sociedade. Em 2001 foi sancionada a Lei nº 10.216 que afirma os direitos das pessoas
portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental. Os
princípios do movimento se torna uma Política de Estado. Na década de 2000 ampliou-se a
rede de atenção psicossocial (RAPS), que a partir do Decreto Presidencial nº 7508/2011
integram como equipamentos substitutivos ao modelo manicomial os Centros de Atenção
Psicossocial (CAPS), os Serviços Residenciais Terapêuticos (SRT), os Centros de
400
Convivência (CECOS), as Enfermarias de Saúde Mental em Hospitais Gerais, as Oficinas de
Geração de Renda, as Unidades Básicas de Saúde, entre outros.
Segundo o Caderno de Saúde mental da Atenção Básica a mesma caracteriza-se
como porta de entrada preferencial do SUS, formando um conjunto de ações de Saúde, no
âmbito individual e coletivo, que abrange a promoção e a proteção da saúde, a prevenção de
agravos, o diagnóstico, o tratamento, a reabilitação, a redução de danos e a manutenção da
saúde com o objetivo de desenvolver uma atenção integral que impacte na situação de saúde e
autonomia das pessoas e nos determinantes e condicionantes de saúde das coletividades.
A Atenção básica deve estar mais próxima a vida das pessoas, deve ser o centro das
comunicações da rede. Deve atender o sujeito de forma integral na sua singularidade e
inserção sociocultural, orientando-se pelos princípios da universalidade, acessibilidade,
vínculo, continuidade do trabalho, integralidade da atenção, responsabilização, humanização,
equidade e da participação social e sempre buscando produzir a atenção integral.
Na construção dessa atenção integral, a Atenção Básica deve contribuir com o
funcionamento das Redes de Atenção à Saúde, para isso deve ser a base, célula
descentralizadora, ser resolutiva, identificar riscos, necessidades e demandas, produzir
intervenções singulares, coordenar o cuidado, produzir e acompanhar os projetos terapêuticos
singulares, reconhecer e organizar a programação dos serviços para a população sob sua
responsabilidade, sob a necessidade levantada no território de abrangência.
Como se pode verificar, o trabalho em rede supõe que nenhum serviço pode sozinho
consegue resolver todas as demandas de cuidado das pessoas de um determinado território.
Na atenção básica, as ações são desenvolvidas em um território geograficamente
conhecido e isso possibilita aos profissionais de saúde uma proximidade para conhecer a
historia de vida das pessoas e estabelecer vínculo com a comunidade do território. Com isso,
pode se dizer que o cuidado em saúde mental na atenção básica é bastante estratégico, pela
facilidade do acesso da equipe aos usuários em geral e aos em sofrimento psíquico, por sua
vez, suscita muitas dúvidas, curiosidades e receios nos profissionais de saúde.
Em decorrência desse modelo biomédico, aprendemos a lidar com as
doenças dos doentes e não aprendemos a lidar com as pessoas, com
401
as famílias, com as comunidades; ou seja, não aprendemos a lidar
com a saúde (Amarante, 2008).
A representação dessa possibilidade se dá com as equipes de Saúde da Família, pois
elas devem estar preparadas para também promover a saúde mental num contexto geral e
tentar prevenir o adoecimento mental. Também identificar situações e fatores de risco e poder
dar respaldo a essa demanda.
As demandas de saúde mental vêm se constituindo uma realidade no trabalho das
Estratégias de Saúde da Família, pois os usuários em processo de adoecimento ou em crises
procuram o serviço de saúde do seu território, geralmente em busca de medicamentos para o
alívio das suas dores e angustias. Contudo, existe uma carência de ações estratégicas em geral
para esse público.
E como não são poucas as situações que levam as pessoas a buscarem
a terapêutica medicamentosa como uma válvula de escape, na
tentativa de resolverem o seu sofrimento emocional, observou-se que
a distribuição de psicofármacos vem sendo extremamente significante
nos serviços da atenção básica. Isso confirma ainda mais a
importância das ações de saúde mental na saúde da família com o
objetivo da desmedicalização (Amarante, 2008).
De acordo com o Caderno de Saúde Mental da Atenção Básica, os profissionais de
Saúde costumam refletir consigo e por vezes ficam em dúvida sobre quais situações de sua
realidade cotidiana necessitam de intervenções em saúde mental. Ao escrever este caderno,
imaginamos que, algumas vezes todo profissional de Saúde já tenha se sentido inseguro,
surpreso ou sem saber como agir assim que identificou uma demanda de saúde mental.
Também acreditamos ser provável que em algumas destas situações o profissional se sente
improvisando, ou usando a intuição e o bom senso. Pois bem, para início de conversa,
podemos dizer que estas reflexões e sensações são comuns à prática em saúde. Contudo,
sentir-se sem chão ou sem um saber técnico específico não é indicativo suficiente para definir
que uma intervenção em saúde mental possa estar equivocada.
As praticas em saúde mental na Atenção básica podem e devem ser realizadas por
todos os profissionais de saúde. O conhecimento do território e o vínculo com o os usuários
402
unificam os objetivos dos profissionais para o cuidado em saúde mental, pois ate mesmo os
profissionais especializados em saúde mental elaboram as suas intervenções a partir da
vivência nos territórios.
Portanto o cuidado em saúde mental não é algo de outro mundo ou fora do nosso
mundo, não foge ao cotidiano da equipe, cada intervenção é concebida singularmente, ou seja,
conforme o paciente, o território onde vive e o seu lar. O que deveria acontecer é uma maior
aproximação com o território, para conhecer quais dispositivos da área poderiam contribuir
para tais ações, e essas ações de saúde mental muitas vezes são realizadas cotidianamente sem
que os profissionais as percebam em sua prática.
Uma pessoa é composta por vários sentimentos e conhecimentos, tem uma vida
passada e com isso a memória de tudo que já viveu, na família, no trabalho, no cotidiano, tudo
isso faz parte da sua vida presente e de como ela vê o mundo. Para a vida futura a pessoa cria
seus sonhos e tem suas expectativas e crenças, e isso influencia muito a vida presente. O
mundo cultural influencia a saúde, as doenças, atitudes consideradas adequadas e inadequadas
para a sociedade, frente aos problemas da vida, e interferir no seu ser político, com seus
direitos e obrigações. Um sofrimento de maior intensidade pode gerar medo em perder essa
vida futura. E se a pessoa é privada de qualquer uma dessas esferas e o profissional de saúde
ignorar, deixara de abordar uma importante causa de sofrimento.
A pessoa não é somente um corpo, como visto em anatomia, biologia e bioquímica,
cada um tem a sua própria relação com a história pessoal, suas emoções, formas ser e estar na
sociedade, a autoimagem, sendo assim, fonte de segurança e orgulho ou de ameaça e medo.
Com todas essas correlações nos transformamos a cada dia.
Dentre as situações de risco e os problemas que mais comprometem o vinculo do
usuário com a família e com a sociedade estão o alcoolismo, dependência ou abuso de drogas
lícitas (álcool e benzodiazepínicos) ou de drogas ilícitas, transtornos mentais ou de humor,
vulnerabilidade social, exclusão social, desemprego, prostituição em geral, violência
doméstica, casos ou tentativas de suicídios e muitos outros. Por tudo isso, a equipe da
Atenção Básica deve possuir ferramentas de enfrentamento para essa realidade, pois
cotidianamente se deparam com esses problemas, por sua proximidade com as famílias e o
território.
403
É inegável dizer, que o vínculo da equipe começa com os Agentes Comunitários de
Saúde, pois esses foram os primeiros profissionais de saúde a realizar visitas domiciliares
rotineiras, conseguindo assim, conhecer todo o território, as pessoas que neles vivem, as
famílias, os contextos familiares, os históricos, levantar as demandas e estabelecer um vínculo
difícil de superar por outros membros da equipe. Para alguns usuários os Agentes
Comunitários se tornam mais um amigo da família, e contam suas queixas e demandas.
Conforme o Caderno de Saúde Mental da Atenção Básica boa parte da formação dos
profissionais de Saúde tem orientado o seu foco de trabalho na doença. Por essa razão, entre
outras, muitas das expectativas que temos acerca de como lidar com os casos de saúde mental
são de acabar com os sintomas que os usuários nos expõem. No âmbito da Saúde Mental,
muitas vezes não conseguiremos corresponder a esta tradição e expectativa. E devemos
realmente perguntar se os sintomas manifestados pelos usuários são as causas dos seus
problemas ou se tais sintomas também não estão realizando uma função de indicar que algo
não vai bem com aquele usuário.
São justificados alguns dos medos colocados por profissionais de saúde sobre o
manejo e as ações das demandas de saúde mental, pois existe uma expectativa de cura. Alguns
profissionais alegam não saber o que falar, o que perguntar, tem medo de piorar o quadro do
paciente, e as vezes acreditam que este campo do saber não lhes é acessível.
É comum entre uma conversa entre membros da equipe sobre alguma demanda de
saúde mental vir a dúvida e questionamentos de como agirem nesse caso. No contexto da
Atenção Básica se vive diferentes sensações, emoções e sentimentos entre usuários e entre a
equipe. É pertinente que surja questionamentos quanto aos nossos conhecimentos, as técnicas
utilizadas, atitudes e intervenções realizadas com os usuários e com outros membros da
equipe.
Por iguais razões, vou colocar como se deu a inclusão do acolhimento e do
acompanhamento das demandas de saúde mental na Equipe de Estratégia de Saúde da Família
Navegantes, em São Lourenço do Sul-RS, onde num primeiro momento a equipe vivenciou
sentimentos negativos, como medo, ansiedade, inquietação, negação, incapacidade e outros.
Em março de 2011, a cidade de São Lourenço do Sul sofreu uma enxurrada que
desolou boa parte da zona urbana, o bairro navegantes ficou quase todo em baixo d’água com
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níveis da água de ate 2 metros de altura. A população do bairro era em torno de 5 mil pessoas
e em torno de 1500 famílias e a Unidade Básica de Saúde era tradicional. Começou então a
atuação dos Agentes Comunitários de Saúde, que junto com a equipe de Saúde Mental do
município começaram a fazer visitas domiciliares e a detectar pessoas sofrendo de stress póstraumático, para serem acompanhados na unidade de saúde pela equipe de Saúde Mental. Em
seguida, foi criado um Grupo de Apoio para esses usuários, que era realizado semanalmente e
coordenado por um Psicólogo.
Em Dezembro de 2011, iniciaram as mudanças para a transformação da equipe em
Estratégia de Saúde da Família e quando eu assumi como Enfermeira Coordenadora da
Equipe. O grupo já não tinha o mesmo sentido, pois o perfil dos usuários já tinha mudado o
problema não era mais a enxurrada, eram os problemas do cotidiano. Iniciava-se agora o
Apoio Matricial, e a reavaliação dos usuários da área de abrangência, onde os Agentes
Comunitários de Saúde foram orientados a realizar busca ativa de pacientes que estivessem
sofrendo algum tipo de sofrimento. Todos passavam em consulta conjunta da Enfermeira com
a Psicóloga, e esse tipo de atendimento logo se espalhou, gerando grande procura pelos
próprios usuários. O Matriciamento se dava semanalmente, realizávamos visitas domiciliares,
intervenções fora da Unidade de Saúde.
De modo geral, com a população já assistida, o encontro matricial passa a ser
quinzenal e de caráter matricial mesmo e o Grupo de Apoio agora pertencia à equipe da
Unidade de Saúde. Agora todos os usuários seriam acompanhados pela equipe da Unidade de
Saúde, os casos deveriam ser discutidos em reunião de equipe, o atendimento deveria ser
multiprofissional, ou seja não medico/enfermeiro centralizado, no dia do Matriciamento
discutiríamos os casos e faríamos as intervenções necessárias, quando necessário
encaminhávamos os pacientes para os CAPS. Em rápidas pinceladas, colocarei falas de alguns
membros da equipe pertinentes ao assunto em questão.
Começou ai discussões sobre essa nova perspectiva de trabalho, toda a equipe ficou
apreensiva, nervosa, surgiam muitos debates e discussões, principalmente nos dias de reunião
de equipe, ninguém queria fazer os atendimentos, não se achavam capazes e diziam que não
tinham estudado para isso.
“Quando começaram a falar sobre acolhimento de saúde mental, eu achava que cada um tinha
que fazer o seu trabalho: “o técnico de enfermagem tem que fazer o curativo e eu tenho que
405
fazer a escuta!”. Mas com as rodas de conversa comecei a ver que todos podemos fazer a
escuta e encaminhar se necessário. Mas ainda tenho medo, medo de não saber o que responder
em algum momento” (Nair, Agente Comunitário de saúde).
O escutar é considerado uma prática do senso comum, e não uma técnica específica
do profissional de saúde, ofertar a escuta para o desabafo pode parecer algo menor quando
comparado com outras condutas técnicas.
Posta assim a questão, verificamos a importância de realizar rodas de conversa
durante as reuniões de equipe e de aproveitar o Matriciamento, para nos auxiliar nesse
processo de trabalho, também começamos a fazer contatos e estabelecer vínculos com os
trabalhadores da saúde mental, pois esses também poderiam nos dar o suporte desejado e
atenderíamos os usuários do território na sua totalidade.
“Quando começamos a fazer as rodas de conversa nas reuniões de equipe sobre acolhimento à
demanda de saúde mental, me senti mais segura para poder também fazer o acolhimento, pois
qualquer pessoa pode fazê-lo, não precisa ter estudo pra isso. Aqui no balcão eu converso com
todo mundo, e às vezes as pessoas se abrem comigo, e ai depois eu chamo alguém da
enfermagem pra tentar ajudar a pessoa” (Marina, Secretaria).
No dia a dia é muito comum desabafar e escutar um desabafo, independentemente se
você trabalha ou não numa área relacionada à saúde.
O trabalho entre as equipe de saúde da família consiste em responsabilidade
compartilhada no cuidado das demandas de saúde mental da área, singularizando e
personalizando cada cliente, buscando assim potencializar o papel terapêutico, com isso cada
profissional devido ao seu vínculo poderá acompanhar o processo saúde-enfermidadeintevenção de cada paciente, e por mais que os casos sejam discutidos na reunião de equipe é
diferente cada vez que um profissional diferente atende o usuário, pois ele acabara tendo que
falar tudo novamente, e muitas vezes ele não gosta de desabafar com esse profissional. Nesta
postura cabe a fala:
“Foi difícil no início, porque a psicóloga atendia e hoje eles conversam com a equipe. Eles
diziam que não era a mesma coisa, e queriam ser atendidos pela psicóloga. Hoje já se
acostumaram e cada um tem seu profissional de referencia, aquele com quem já fortaleceu o
406
seu vínculo, eu tenho mulheres que só se abrem comigo, e não me autorizam a falar delas com
ninguém, então eu tento ajudar do meu jeito, e da tudo certo. Se for necessário eu passo pra
equipe” (Débora, Agente Comunitário de Saúde).
“Eu acho bom o atendimento multiprofissional, mas o difícil é a população aceitar o nosso
atendimento, não por acharem desqualificado, mas por ser ainda médico-psicologo centrado”
(Natalia, técnica de enfermagem)
“Eu tinha medo de não ter entendimento da situação, por a família às vezes não colocar a real
problemática. E assim não poder fornecer um atendimento adequado que a pessoa esta
precisando.” (Silvana, Agente Comunitário de saúde).
Muitas vezes o usuário ao se dá conta de que os seus conflitos e os seus sofrimentos
podem estar relacionados e ser reflexo daquilo que ele pensa, fala ou faz. O profissional da
saúde pode atuar como interlocutor auxiliar a lidar com esses sofrimentos do cotidiano, que
muitas vezes são os responsáveis pela somatização ou ate mesmo complicações clínicas.
“Quando a gente faz o vínculo, entende ate o paciente que não fala ou não consegue expressar
a fala, entendemos os gestos que ele faz, e por conhecer a família a gente consegue fazer os
atendimentos” (Fernanda, Técnica de Enfermagem).
A Fernanda usa o exemplo de uma família onde a avó, a mãe e 3 filhos têm
transtornos mentais graves e um filho usuário de álcool, que é quem cuida toda a família,
sempre que precisamos explicar algo é ele quem chamamos, nem todos são usuários do
CAPS, e todos são acompanhados pela equipe da ESF.
“Hoje nós temos mais autonomia, detectamos e acompanhamos os usuários, sendo que antes,
passávamos os casos pra psicóloga e ela fazia os encaminhamentos e acompanhamento
necessário, hoje nós acompanhamos, e encaminhamos se necessário” (Gisela, Agente
Comunitário de Saúde).
A escuta proporciona um espaço de desabafo para o paciente, onde o mesmo pode
contar e ouvir o seu sofrimento de outra perspectiva, por um interlocutor que esta disposto e
atento para ouvir o que ele tem a dizer, nesta postura, o usuário encontrará no profissional de
saúde uma pessoa interessada por sua vida e em lhe ajudar.
407
“Eu recém agora estou me sentindo mais confiante, pois eu também estava precisando de
acompanhamento. Fiz acompanhamento com a enfermeira e hoje me sinto mais confiante,
corajosa e animada para o meu trabalho, teria sido muito mais fácil tu ter me mandado embora
mesmo” (Juliana, Agente Comunitário de Saúde).
Esta Agente Comunitário de Saúde não conseguia fazer as visitas porque tinha medo
das pessoas lhe falarem dos problemas e ela não conseguir resolver, chegou a pedir demissão
e ao invés de encaminharmos o pedido, fizemos acompanhamento intensivo, e hoje trabalha
naturalmente e participa com motivação dos grupos de saúde emocional e esta montando
agora o grupo de Artesanato para as mulheres depressivas e solitárias.
Interessante se faz esta fala da Agente Comunitário de Saúde, pois não podemos
forçar o vínculo, ele se dá naturalmente, pois a segurança para realizar intervenções ou
orientações surge com o vínculo produzido ao longo do tempo, e o Agente Comunitário de
Saúde é o profissional que têm mais contato com os usuários, já que muitos não freqüentam
rotineiramente a Unidade Básica de Saúde. Neste momento se faz interessante colocar a fala:
“Desse jeito, daqui a pouco, nós seremos os pacientes, nós também precisamos de cuidado”
(Silvana, Agente Comunitário de saúde).
A Agente Comunitária falou quando abordamos o assunto em relação a algumas
pessoas que tentam nos manipular emocionalmente para conseguir algum benefício dela em
relação a família, como por exemplo, conseguir convencer o marido a autorizar novamente as
suas compras nas lojas da cidade, já que as bloqueou por a esposa ser compulsiva por
compras. Essa é uma preocupação que temos que ter dentro de cada equipe, pois se não
estivermos bem, como poderemos atender bem as pessoas em sofrimento, é inegável dizer que
já ouvimos desabafos de algum usuário onde a queixa seria a mesma que nós profissionais
estaríamos passando nesse momento, pois todos somos pessoas composta por sentimentos e
conhecimentos como já dito anteriormente.
“Quando perdi o meu filho, fui acompanhada no CAPS por 4 anos, era medicada pra dormir e
pra acordar, sai do mercado de trabalho. Hoje vejo que se tivesse tido esse apoio que damos
hoje, teria sido diferente” (Silvana, Agente Comunitário de saúde).
408
O ato de narrar seus sofrimentos, proporciona ao usuário a possibilidade de escutar a
si mesmo, e alem de ser ouvido por um profissional de saúde, neste passo, o usuário pode
criar outras possibilidades de ver a sua vida e as suas escolhas e em seguida, ofertar a si
mesmo outras formas de perceber e dar significado aos seus sofrimentos.
“Acho que os cursos de educação permanente dentro e fora da equipe foram imprescindíveis
para o meu trabalho, pois hoje tenho um olhar mais amplo quando faço as minhas visitas, eu
entro na conversa e nas casas olhando para tudo e para todos, para tentar detectar alguma
coisa” (Gisela, Agente Comunitário de saúde).
Nesta fala a Agente Comunitário de Saúde fala da importância da Educação
Permanente para a equipe tanto dentro como fora da mesma, pois precisamos do respaldo da
gestão, da Equipe do NASF, dos CAPS, para podermos conseguir desempenhar um bom
trabalho com a nossa população.
“Eu me sentia assustada, incapaz de fazer esses atendimentos, mas hoje eu sei que eu posso e
sou capaz, pois quando precisei do apoio do CAPS, eu mesma liguei e tive o retorno que
esperava” (Sandra, Agente Comunitário de saúde).
“Medo eu não tive, porque a Graziela Psicóloga estava na roda de conversa e disse que
tínhamos é que escutar. Eu deixo a pessoa falar tudo o que ela sente, às vezes ate chorar, pois
nem sempre elas querem ouvir, eles querem é falar. Nós não vamos resolver os problemas das
pessoas” (Izete, Agente Comunitário de saúde).
“Antes eu tinha medo de atender esses usuários, quando eu trabalhava no hospital, eles
pareciam ser todos impregnados de medicação, andavam de um lado para o outro, babando,
com olhar perdido, parece que nenhum tinha melhora do quadro. Eles não iam a postos de
saúde, hoje eu consigo conversar e ate mesmo dizer não quando necessário, e são tratados da
mesma forma que os outros pacientes, entram, saem, vem fazer curativos, participam de
grupos do hiperdia e o de saúde emocional, ate se sentam na sala de espera como todo mundo
faz”. (Claudete, Auxiliar de Enfermagem há 20 anos nessa UBS).
409
Esta fala mostra como esta se tornando normal a freqüência dos usuários de saúde
mental no território e nos dispositivos onde vivem.
“Acho que quando a pessoa participa de grupos diversos na UBS ela têm maior vínculo com
outros usuários. Mas participando do grupo de caminhadas, pode haver uma melhora ainda
mais significativa, como por exemplo uma usuária que teve alta do CAPS e vinha uma vez ao
mês para fazer sua medicação e hoje não fala de doença, nem de medicações ou receitas, as
falas são sempre sobre assuntos da vida e da caminhada” (Eduardo, ACS)
CONCLUSÃO
Diante desse cenário, percebemos o quanto o cotidiano do ser humano influencia nas
suas ações, modo de viver, de reagir, causando seus sofrimentos, sejam eles grandes ou
pequenos. Cada um tem uma forma de absorver ou sofrer. O que não podemos é banalizar,
fazer com que todos os tipos de sofrimentos sejam tratados como geradores de possíveis
transtornos, e também não acreditar que os portadores de transtornos mentais possam sofrer
emocionalmente ou fisicamente. Cada pessoa vive em seu território, deve desfrutar dos
dispositivos nele encontrados, e cabe a nós enquanto trabalhadores da saúde, poder auxiliar e
proporcionar intervenções sadias, buscando a co-responsabilização com a rede de saúde,
fornecendo um cuidado integral e na sua totalidade ao usuário.
Para a equipe estreitar as relações com os outros serviços da rede foi imprescindível,
o atendimento multiprofissional também é relevante e contar com o apoio matricial da rede de
serviços de saúde mental e do NASF é de suma importância e têm caráter intra e
interinstitucional, essa rede é tida como uma dinâmica de comunicação solidaria que se dá
entre os profissionais em geral e os usuários no contexto de políticas publicas de não
abandono e a desconstrução desse circuito hospitalocêntrico e institucionalizante que foi
criado, e é nisso que se baseia a Luta Antimanicomial, e devemos todos lutar por um mundo
desinstitucionalizado, em que os usuários de saúde mental sejam respeitados na sua
singularidade e tenham seus direitos garantidos, e cabe a nós trabalhadores da saúde
proporcionar esse serviço com qualidade, as vezes podemos ter dificuldade de lidar
emocionalmente mas nem por isso devemos desistir.
410
REFERÊNCIAS
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411
PRIMEIROS PASSOS DA PSICOLOGIA NO ÂMBITO DA SAÚDE MENTAL EM
MATO GROSSO
RUZIA CHAOUCHAR DOS SANTOS
Jane Teresinha Domingues Cotrin
Andréia Maria de Lima Assunção
[email protected]
Cuiabá- MT
FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA
Breve histórico das concepções sobre a loucura
Por ter como objetivo a (re)construção da história da psicologia no campo da saúde
mental em Mato Grosso, evidencia-se a necessidade de realizar uma breve contextualização
histórica sobre a história da loucura no mundo, a partir das contribuições de Foucault (1991;
2005) e Amarante (2007), visto que fornecerá informações que serão relevantes para subsidiar
a análise e compreensão das concepções e práticas em torno da loucura encontradas no
decorrer do estudo.
Conforme Foucault (2005), na história da civilização sempre existiu um grupo
considerado excluído. Na época da Renascença, práticas de exclusão social eram utilizadas
para expulsar os loucos das cidades. Muitas vezes, estes eram levados por marinheiros para
lugares distantes do convívio social e alguns alienados eram humilhados e chicoteados em
praças públicas. Desse modo, eles acabavam sendo banidos das cidades e foram levados em
embarcações para outros locais.
Para Foucault, no século XVI, a loucura tonar-se uma forma relativa à razão, isto é, a
loucura “[...] só existe com relação à razão, mas toda a verdade desta consiste em fazer
aparecer por um instante à loucura que ela recusa.” (FOUCAULT, 2005, p, 56). Nota-se que,
nesse momento, a loucura é estruturada a partir da razão e a não razão. Nesse panorama, o
louco é visualizado através da impossibilidade da razão.
No século XVII, novamente, as pessoas que não se adequam à moral vigente são
perseguidas e segregadas. Nesse contexto, a problemática da loucura passa para um espaço de
exclusão, de onde não se libertará. Ao tratar da Grande Internação, o autor ressalta que nesse
século há a criação de um número abrangente de casas de internação na Europa. Por meio
dessas habitações pretendia-se acabar com a mendicância, visto que o trabalho era
compreendido como um medicamento para o desemprego e estímulo ao desenvolvimento de
412
manufaturas. Dessa forma, essas instituições cumpriam a função de acolhimento de pessoas
que não se adaptavam às exigências da produção e da mão-de-obra; assim, esses espaços
exerciam o papel de isolamento e segregação destes segmentos sociais.
Nesse contexto, o autor pontua que a criação de Hospitais Gerais em Paris, a partir do
ano de 1956, tratava-se de uma política de assistência – que exercia um papel de ordenação
social e política mais explícita – destinada aos pobres “[...] de todos os sexos, lugares e
cidades, de qualquer qualidade de nascimento, e seja qual for sua condição, válidos ou
inválidos, doentes ou convalescentes, curáveis ou incuráveis”. (FOUCAULT, 2005, p.56). A
fundação do Hospital Geral foi de essencial importância para definir um novo lugar social
para a loucura, assim como para o louco na sociedade ocidental, visto que propiciou o
isolamento e a segregação de alguns segmentos da sociedade.
Nesse viés, conforme o autor a internação passou a ser determinada por autoridades
reais e judiciárias. Desse modo, ao tratar da Grande Internação, o autor discute os papéis
representados pelos Hospitais Gerais e também pelas Santas Casas de Misericórdia. No
Brasil, assim como na Europa, estas instituições cumpriram importante papel de reclusão,
alojamento e recolhimento e, muitas vezes, eram provedoras das principais necessidades
humanas, sobretudo aquelas concernentes à alimentação.
Em meados da metade do século XIX, houve um grande número de internações.
Conforme Amarante (2007) “Foi nestas instituições que muitos médicos foram atuar no
sentido de humanizá-las e adequá-las ao novo espírito moderno, principalmente após a
Revolução Francesa, e acabaram por transformá-la em instituições médicas”. (p. 24). Em
concordância com o lema que norteou o ideário da Revolução Francesa “Igualdade, Liberdade
e Fraternidade”, era necessária a democratização dos espaços sociais. Diante disso, as
instituições hospitalares passaram a ser instituições de intensas mudanças, de modo que vários
internos que ali estavam, em consequência da doutrina autoritária do Antigo Regime, foram
libertados e novas instituições assistenciais foram construídas pelo Governo Republicano,
como: reformatórios, orfanatos, centros de reabilitação, escolas normais, dentre outras.
Dessa forma, o hospital que até então tinha o papel de instituição de caridade e,
posteriormente, de controle social, passou a assumir uma nova função: a de tratar de
enfermos. Sendo assim, o hospital foi transformado em instituições médicas. Para afirmar seu
funcionamento, o modelo hospitalar precisava instaurar ações disciplinares que garantissem
esse novo modo de instituição. Portanto, surgem medidas de delimitação desse espaço físico,
onde são essenciais os princípios de vigilância constante e registro contínuo, de forma a
garantir que nenhum detalhe escape a esse saber. (AMARANTE, 2007).
413
O processo de medicalização do hospital se estruturou principalmente a partir de uma
tecnologia política: a disciplina. Foucault (apud AMARANTE, 2007) apresenta uma
discussão sobre este conceito.
Na prática, o que significa a disciplina no âmbito da
instituição? Inicialmente uma arte de distribuição
espacial dos indivíduos; daí o exercício de um controle
sobre o desenvolvimento de uma ação (e não sobre o
seu resultado); em consequência, uma vigilância
perpétua e constante dos indivíduos; [...] e, finalmente,
um registro contínuo de tudo o que ocorre na
instituição. (p. 26).
Dentro desse espaço, em que é registrado tudo que acontece, nota-se uma
institucionalização das relações, o que propiciou cada vez mais o afastamento do indivíduo de
seu convívio social. Nessa perspectiva, o hospital tornou-se um espaço de institucionalização
da doença e de reprodução do saber médico, onde o tratamento dos enfermos pautou-se no
enquadramento das doenças e doentes, que implica em uma relação profissional centrada na
enfermidade, e não na pessoa que tem a doença (AMARANTE, 2007).
Conforme Foucault (1991) “[...] a doença só tem realidade e valor de doença no
interior de uma cultura que a reconhece como tal.” (p.71). Nessa dimensão, a doença é assim
compreendida quando condutas e comportamentos considerados inadequados em uma dada
sociedade passam a ser patologizados e discriminados; para tanto, a realização de um
diagnóstico legitima o processo de exclusão do enfermo. Diante disso, os loucos foram cada
vez mais excluídos e isolados em hospícios, e estigmatizados pela sociedade mercantilista,
onde a capacidade de trabalhar está relacionada à concepção de saúde física e mental.
Breve histórico das concepções de loucura em Mato Grosso
Conforme Antunes (2007), no século final do século XIX e nas primeiras décadas do
século XX aconteceram grandes mudanças na sociedade brasileira, de um lado houve a
expansão das ideias positivista e liberal, a luta contra o modelo hegemônico agrárioexportador, a busca de caminhos para a modernidade, representada pela concretização do
ingresso do Brasil no mundo industrializado, e, por outro lado, surgem movimentos sociais
que questionam os fundamentos sobre os quais a sociedade estava se “modernizando”.
Nesse contexto de progresso e desenvolvimento de uma nova nação foi preciso buscar
o controle não apenas dos problemas de epidemia, mas também da conduta humana, no
414
interior de uma formação social dependente e atrasada. Desse modo, em busca da
modernidade, o Estado brasileiro implantou uma política de higienização social, visando uma
nação desenvolvida e civilizada.
No contexto mato-grossense, segundo o relato de Steinen no ano de 1942, ao chegar a
Mato Grosso ele e seus companheiros hospedaram-se em uma pousada localizada distante de
Cuiabá, onde “Um rico e avarento italiano, de nome Pascal, que apesar de sua demência senil,
entendia bem de cálculos, tomou-nos como seus pensionistas oferecendo-nos dois amplos
quartos”.
(p.994). Esse relato denota que pessoas em sofrimento psíquico realizavam
atividades produtivas e chegaram a circular em festas promovidas por famílias conservadoras.
Desse modo, de acordo com Galetti (apud Canova, 2013), é no período da República
que ocorre as reais transformações no anseio de construir uma identidade nacional.
Para conferir os efeitos da civilização era preciso
relativizar, entre os Estados da federação, as diferenças
geográficas, culturais, econômicas e sociais. Construir
uma nação significava, em certo sentido, ser capaz de
amenizar a dicotomia entre litoral civilizado e interior
bárbaro (GALETTI apud CANOVA 2013, p. 156).
Dessa forma, o discurso de civilização e controle sobre a sociedade cuiabana propiciou
aos dirigentes desse período implantar um projeto de segregação dos infratores, dos leprosos,
e, posteriormente, a exclusão dos loucos.
De acordo com Oliveira (apud Oliveira & Alessi, 2005), nesse momento a população
central da região, que se destacava pela alta densidade demográfica devido à produção
agrícola e comercial, estando à mercê de um conjunto de estratégias políticas de organização
de espaços, reclamava por assistência – naquele período com característica caritativareligiosa. Nesse contexto, dentre as medidas de higienização em Cuiabá que denotavam
preocupação com a saúde pública, foi fundada em 1816 a Santa Casa de Misericórdia de
Cuiabá, que foi a primeira forma de institucionalização das práticas de assistência à saúde no
estado.
Nesse contexto, compreende-se que de acordo com o cenário político, social e
econômico, há quase um século após a inauguração da Santa Casa, em 1816, pode-se inferir
que, no que concerne aos tratamentos dispensados às pessoas ditas portadoras de doença
mental, estas caminhavam pelas ruas cuiabanas; caso fossem inofensivos, eram recolhidos
pelos familiares; caso estivessem “possuídos”, eram presos quando ameaçavam a ordem
pública.
415
Nessa perspectiva, para atender o projeto de modernização da nação em Cuiabá, a
Santa Casa de Misericórdia prestou serviços assistenciais a vários segmentos sociais, aos
pobres, aos doentes, aos famintos, às mulheres desamparadas, aos loucos que não podiam
andar pela cidade, dentre outros, de modo que sua função assistencialista permitia o
saneamento do espaço urbano, representando um refúgio aos problemas enfrentados na
organização da cidade. Nesse período, não havia na delegacia da capital uma enfermaria para
realizar atendimento aos presos, de modo que era concebida essa função à Santa Casa,
instituição que deveria prestar esse serviço à esfera policial e à sociedade de forma geral.
Conforme Canova (2006), os presos doentes, os alienados e os indigentes eram
encaminhados para o hospital da Santa Casa de Misericórdia, que oferecia abrigo e
alimentação aos marginalizados. Por meio de seu trabalho beneficente, esta instituição
respondia aos anseios de um novo modelo de sociedade, pautada em um conjunto de valores
modernos. Nesse sentido, a Santa Casa de Misericórdia dependia da generosidade dos
cuiabanos para receber doações, de modo que não possuía investimentos suficientes para
atender a demanda social.
O hospital desta Santa Casa, ultimamente, está se
transformando em hospício de alienados e asylo de
mendicidade sem que esta sociedade disponha de
accomodações e recursos ssufficientes para por-se em
execução que é determinado em artigo [...] (CANOVA,
2006, p.998)17.
Nesse viés, a Enfermaria de Alienados da Santa Casa neste momento demonstra-se
insuficiente para atender a demanda de prestação de serviço às pessoas em sofrimento
psíquico. Desse modo, passou a ser utilizada para abrigo e reclusão dos “alienados” um
precário casarão, mantido pelo governo, localizado em uma chácara as margens do rio Coxipó
da Ponte que, anteriormente, era destinada aos prisioneiros da Guerra do Paraguai; naquele
período, a casa ficava a 10 quilômetros da cidade, distância considerada longe para a época. A
“Chácara dos loucos”, como ficou popularmente conhecida, recebia visitas médicas e de
enfermagem esporádicas e voluntárias, sendo que o local ficava sob vigilância de policiais.
De acordo com Resende (apud Oliveira & Alessi, 2005) mesmo após um século de
denúncias referentes às condições desumanas dos portadores de transtornos mentais no Rio de
Janeiro, local de origem dos primeiros hospícios no Brasil, Dom Aquino Corrêa – na época
17
A presente citação de Canova (2006) foi retirada do Relatório Beneficente da Santa Casa de Misericórdia,
Cuiabá, 1923, p. 12ss.
416
governador do estado de Mato Grosso – operou a construção de um casarão nas proximidades
das margens do Rio Coxipó, a fim de abrigar um pelotão de polícia. Assim, esse casarão de
polícia era utilizado para guardar presos políticos, na maioria das vezes, soldados do exército
paraguaio, mas também residiam os loucos.
Conforme Lambert & Oliveira (apud CANOVA, 2006), por volta do ano de 1920
ocorreu o período de reclusão dos loucos, momento em que todos, sem exceção, foram
dirigidos ao casarão na Chácara à margem do Rio Coxipó. De acordo com a descrição dos
mesmos, esse lugar se assemelhava à um estábulo e não havia na cidade de Cuiabá
profissionais especializados para o tratamento de doentes mentais. Na época, a quantidades de
loucos residentes nessa chácara, também conhecida como Chácara dos Loucos, era em torno
de 50 a 60 internos, sendo a maioria deles do estado de Mato Grosso. Esses pacientes
permaneciam na Chácara por volta de 30 a 60 dias.
Muitos internos trabalhavam na roça, plantavam frutas e verduras, criavam animais, e
cuidavam dos serviços de limpeza em geral. Nesse casarão os pacientes eram tratados, tal
como apresentado no trecho a seguir
Cardiozoloterapia
(tratamento
baseado
na
administração de injeções de Cardiozol, com a
finalidade de provocar crises epiletiformes);
eletroconvulsoterapia
(tratamento
que
produz
convulsão através da corrente elétrica); insuliterapia
(tratamento através da administração de insulina com o
intuito de provocar o choque insulínico ou
hipoglicêmico); malarioterapia (tratamento onde se
obtém a crise convulsiva,
ao inocular sangue de uma pessoa portadora de
plasmodium vivax) (LAMBERT & OLIVEIRA apud
CANOVA, 2006, p. 9)
Neste contexto, a Chácara dos loucos do Coxipó da Ponte, a qual “[...] oferecia o mais
lúgubre cenário aos olhos das desalentadas autoridades que sofrem verdadeiros arrepios ante
as cenas medievais ali existentes.” (RESENDE apud OLIVEIRA & ALESSI, 2005, p. 72).
Desse modo, nota-se que o ideal de moradia para os loucos era mantê-los o mais distante
possível do centro urbano da cidade. Cuiabá ingressava nos parâmetros do modelo civilizador,
de modo que o confinamento servia como instrumento explícito de controle do espaço urbano.
Segundo Silva (apud CANOVA, 2006), ao abordar a institucionalização da loucura em
Cuiabá, a data de construção do Adauto Botelho teria sido no ano de 1950, de modo que o
“[...] Hospital Adauto Botelho tem sua origem na transferência dos pacientes do antigo Asilo
417
dos Alienados, às margens do rio Coxipó, para localização atual, à direita da BR-364 no
Coxipó da Ponte.” (p.11). Nesse contexto, o governo estadual firmou um convênio com o
governo mato-grossense e o Serviço Nacional de Doenças Mentais para a construção de um
hospital psiquiátrico em Cuiabá, e no mesmo local onde se situava a “Chácara dos loucos”, foi
inaugurado no ano de 1975, o Hospital psiquiátrico Adauto Botelho.
Na década de 1970, o Adauto Botelho era o único hospital psiquiátrico do estado e
aglomerava aproximadamente 600 pacientes. Segundo Oliveira (apud CANOVA, 2006)
A assistência era precária, como era a assistência em
praticamente todos os hospitais psiquiátricos públicos
brasileiros; não havia sequer condições de abrigo
razoáveis, uma vez que o número de leitos era de
aproximadamente a metade do número de pacientes
(p.11).
Conforme Oliveira & Alessi (2005), até a década de 1960 a região matogrossense era
pouco povoada, posteriormente a essa década, ocorreu um intenso processo de transformação
econômica nessa região, com a inclusão desses novos espaços ao processo produtivo e ao
mercado nacional. Desse modo, a região começou a receber intensos fluxos migratórios,
principalmente da região nordeste. Por este motivo, a tendência predominante na assistência
psiquiátrica brasileira estava fundamentada no modelo privatista e “modernizante” da área da
saúde, tal como estava sendo implantado no país naquele período. Desse modo, a política
nacional de saúde e, consequentemente, a assistência psiquiátrica, privilegiou a prática médica
curativa, individual, especializada em detrimento de medidas preventivas de interesse
coletivo.
Nesse contexto, a crise financeira da Previdência, na década de 1970, suscitou
reformas no sistema com a consequente criação do Ministério da Previdência e Assistência
Social (MPAS) no ano de 1974, além de várias outras ações que objetivavam racionalizar os
custos, contudo, sem haver realizado uma reformulação do sistema. Em Mato Grosso, no
mesmo período, o estado contava com um único hospital psiquiátrico, o Adauto Botelho,
hospital público que apresentava aproximadamente 500 leitos, com a capacidade de atender
aproximadamente 250 pacientes internados.
Em 7 de outubro de 1975, foi criado o Serviço de Saúde Mental em Mato Grosso. Até
então o estado era um dos únicos que não dispunha de um órgão de coordenação das
atividades em Saúde Mental. Dentre as primeiras ações desse serviço, houve a ampliação do
número de leitos do Adauto Botelho. O que demonstra que a assistência à saúde mental
418
estava pautada em práticas de exclusão social pela internação, sem mudanças em seus
aspectos técnicos e administrativos.
De acordo com Oliveira & Alessi (2005), no final dos anos e na década 80, ocorreu,
sobretudo, na região sudeste, o movimento inicial da Reforma Psiquiátrica brasileira, processo
reconhecido com a fase inicial da Reforma Psiquiátrica, iniciada por familiares, usuários e
profissionais da saúde mental. Esse movimento reivindicava condições humanas de
assistência à saúde mental, e o fim de hospitais psiquiátricos que funcionavam como
depósitos de pessoas, sem finalidade terapêutica, utilizando-se de práticas manicomiais.
Na contramão de outras regiões brasileiras, o estado de Mato Grosso caracterizou-se
como retrocesso ao movimento de Reforma Sanitária e Psiquiátrica. Pois em 1989 inaugurouse no estado o primeiro Hospital psiquiátrico privado de grande porte o Instituto de
Neuropsiquiatria (INC), que inicialmente tinha uma estrutura capaz de atender 150 leitos, mas
um ano depois já possuía 500 leitos, dos quais 483 eram contratados do Sistema Único de
Saúde (SUS).
Nesse contexto, o estado de Mato Grosso passou a ser criticado em âmbito nacional,
por apresentar um Hospital psiquiátrico vinculado ao SUS, e baseado no modelo de
instituições psiquiátricas manicomiais, mesmo depois de amplas críticas dos trabalhadores da
área, gestores, da I Conferência Nacional de Saúde Mental (1987) e do debate nacional.
Segundo Oliveira & Alessi (2005), o estado de Mato Grosso, no final da década de 80,
apresentava consequências do intenso processo de imigração decorrente do ideário
“desenvolvimentista” que vinha sendo estruturado e difundido nacionalmente na década de
70. Desse modo, houve uma preocupação com as reorganizações dos espaços destinados à
prestação de serviço da saúde mental, devido precária assistência a pessoas em sofrimento
psíquico, como acontecia no único Hospital responsabilizado pelo tratamento da saúde mental
no estado de Mato Grosso. Assim, eram necessárias melhorias no hospital Adauto Botelho
que se apresentava em situação precária.
Em 16 de março de 1991, a instituição Adauto Botelho foi fechada para reforma, e a
demanda de atendimento em saúde mental foi totalmente remanejada para o Instituto de
Neuropsiquiatria, e para o atendimento ambulatorial em Centros de Saúde que não
funcionavam de forma regular e contínua. Perante o elevado crescimento demográfico, e à
falta de ações psicossociais e comunitárias no estado, o número de leitos cresceu em
aproximadamente 260% em Mato Grosso no único hospital psiquiátrico privado conveniado.
Em 1993 inaugurou-se o hospital Adauto Botelho, agora nomeado Centro Integrado de
Assistência Psicossocial (CIAPS). Este passou a ser compostos por outras unidades e não
419
apenas a internação. Devido ao número reduzido de leitos, o hospital funcionava como uma
espécie de regulação ao INC, que ainda continuou funcionando até o ano de 2004, quando foi
descredenciado da rede, e consequentemente, desativado.
METODOLOGIA
O presente estudo utiliza como metodologia a técnica de pesquisa qualitativa histórica
em Ciências Humanas, que buscará investigar a forma como a loucura foi concebida por esses
profissionais que atuaram no estado nas décadas de 1980 e 1990, considerando as primeiras
iniciativas registradas oficialmente nessa época. Os estudos históricos na área de Ciências
Humanas e da Saúde têm assumido especial relevância nos meios acadêmicos e científicos,
por se apresentarem como uma forma genuína de explicar o estado atual do atendimento de
serviços de saúde mental, bem como refletir sobre práticas e planejar ações futuras.
Assim, o método adotado será o historiográfico, tal como sintetiza Jacó-Vilela (2000),
por se tratar de um processo de reconstrução e reconstituição da história. Nessa perspectiva,
conforme Jacó-Vilela (2000) a história não pode ser compreendia por meio de uma série de
fatos passados, mas como um processo em contínua construção, por se referir a uma
sociedade em constante movimento. Sendo assim, torna-se imprescindível o seu estudo, uma
vez que propicia a compreensão de saberes e práticas atuais.
Investigar a história da psicologia nos permite, portanto,
proceder à desnaturalização de nossos atuais saberes e
práticas. [...] Encontrar o ignorado, o encoberto, então, nos
permite verificar as condições de possibilidade do surgimento
ou consolidação do saber – e também, se quisermos correr os
‘riscos da história-ficção’, pensar o que poderia ter sido e não
foi (JACÓ-VILELA, 2000, p. 33-34).
Nesse panorama, a metodologia historiográfica proposta na presente pesquisa buscará
realizar uma coleta de dados por meio de entrevistas, após a identificação das fontes primárias
de informação sobre a temática, o que possibilitará não somente conhecer uma área em
construção, mas colaborar com o estudo da história da cultura e da contemporaneidade, numa
tentativa de diálogo entre o presente e o passado.
Desse modo, a pesquisa será realizada em duas fases complementares. A primeira
concerne à identificação dos psicólogos pioneiros, credenciados e atuantes no estado de Mato
420
Grosso. Esta etapa de caráter documental será realizada junto ao CRP-18, a qual consiste no
levantamento dos primeiros psicólogos inscritos que atuaram no âmbito da saúde mental no
estado.
Posteriormente, na segunda fase será feita a coleta de dados com os profissionais
pioneiros, a partir de entrevistas semi-estruturadas, realizadas no local indicado pelos
entrevistados. Após, será realizada uma coleta de materiais disponibilizados por esses
profissionais, assim como: filmagens, documentos, fotos, entre outros. É importante
acrescentar ainda que serão feitas visitas nas instituições citadas pelos mesmos, no instituto de
constatar as informações coletadas, assim como buscar outras fontes de informações que
possam colaborar com o estudo.
ANÁLISE DE DADOS
A análise de dados será realizada a partir de uma entrevista com um dos psicólogos
pioneiros do âmbito da saúde mental do estado de Mato Grosso, que consentiu em participar
do estudo. A coleta de informações foi feita em concordância com o termo de consentimento
livre e esclarecido assinado pelo entrevistando. Diante dos dados coletados, foram destacadas
as seguintes categorias:
1. FORMAÇÃO, INÍCIO DAS ATIVIDADES E LOCAL DE TRABALHO:
O entrevistado formou em 1980, em Brasília. Iniciou as atividades aos 24 anos, trabalhando
na Secretaria da Saúde – área de saúde mental, psiquiatria. Hospital Adauto Botelho/
FUSMAT. Optou por fazer isso. E, foi contratado pela Universidade Federal de Mato Grosso
– UFMT. Atuou na saúde e no ensino superior.
2. ÁREAS DE ATUAÇÃO NO ESTADO DE MATO GROSSO:
Na década de 1980, os psicólogos pioneiros atuaram em vários espaços, dentre eles: secretaria
de saúde, secretaria de educação, Centro de Reabilititação e na UFMT. O número de
profisisonais psicólogos nessa época era reduzido, aproximadamente, 20 psicólogos em todo
estado. Conforme o entrevistando, ele foi o primeiro psicólogo contratado pelo estado para
atuar no hospital psiquiátrico Adauto Botelho, onde iniciou sua carreira profissional.
“[...] agora você imagina um psicólogo recém-formado, com
pouca experiência né. E, foi com uma estrutura dessa com
800 pessoas alí em tratamento né, entre aspas [...] mas, para
mim foi uma experiência gratificante, porque tudo que eu sei
421
eu aprendi alí, justamente para gente acabar com aquela
estrutura né. Eu falei vou fazer o que aqui, foi onde engajei
minha luta antimanicomial” (PIONEIRO, 2014).
3. ESPECIALIZAÇÃO PROFISSIONAL:
Os psicólogos pioneiros realizavam suas especializações profissionais no campo da saúde
mental em outras regiões brasileiras.
“[...] eu fui a Santos, eu fui conhecer a estrutura de Santos.
Era referência em nível de Brasil, que era os NAPS,
antigamente falava-se NAPS, núcleo né, que posteriormente
passou a CAPS. E, eu fui a Santos buscar informações, como
é que se tratava né, o doente mental diferentemente do que é
internação apenas. E, eu fui também, tive oportunidade de ir
a Fortaleza, ao Ceará, conhecer outra estrutura do interior,
eu percebi que não tinha nada assim sofisticado, não havia a
necessidade de uma estrutura física, o que se falava, que
precisava de recursos e mais recurso, para se criar outras
alternativas, que não, não a hospitalização” (PIONEIRO,
2014).
4. SERVIÇOS DE ASSITÊNCIA À SAÚDE MENTAL:
O hospital psiquiátrico Adauto Botellho era a principal referência de assitência à saúde mental
no estado de Mato Grosso. Esta instituição atendia a maior parte da demanda psiquiátrica do
estado. Também havia em Mato Grosso, na cidade de Rondonópolis o hospital psiquiátrico
Paulo de Tarso. Estes serviços de assistência à saúde mental pautavam-se na lógica
manicomial.
“[...] eram as duas referências que se tinha para tratamento
de pessoas com transtornos mentais, era justamente esses
dois hospitais. E, não só para pessoas com transtornos
mentais, como pessoas abandonadas, o pobre, o mendigo né,
todos eram encaminhados. Como aqueles hospitais de
Barbacena, aqueles macro-hospitais, e tinha 800 pessoas alí,
entendeu,
internadas alí no Adauto Botelho [...]”
(PIONEIRO, 2014)
Conforme o entrevistando, contrariando os paradigmas das Reformas Sanitária e Psiquiátrica
que estavam acontecendo em nível nacional, foi inaugurado o Instituto de Neuropsiquiatria
em Cuiabá, instituição privada e conveniada com a rede pública de saúde, onde o tratamento
de pessoas portadoras de doença mental estava pautado no modelo biomédico e na exclusão e
reclusão de seus internos.
“[...] Nesse período, infelizmente, veio para cá também um
hospital particular, tinha 600, 800 leitos também, era um
422
hospital particular de um empresário da psiquiatria, que foi o
quinto hospital que ele montou no Brasil, foi esse aqui em
Cuiabá. O Neuropsiquiátrico, no Coxipó da Ponte, era uma
estrutura também que dificultava muito mais a nossa, a
nossa luta” (PIONEIRO, 2014).
O estado passou a comprar serviços psiquiátricos do setor privado, de modo que a assistência
à saúde mental em Mato Grossou esteve à mercê do interesse da lógica empresarial. Dessa
forma, criou-se nesse momento a “indústria da loucura” no estado.
5. CRITÉRIOS DE AVALIAÇÃO UTILIZADOS PARA ADMISSÃO DE PACIENTES:
As internações no Hospital Adauto Botellho eram realizadas a partir de uma avaliação
psiquiátrica, de modo que, o saber médico ditava se o sujeito deveria ser institucionalizado.
Não existia na prática assistencial um trabalho interdisciplinar em equipes. ,
“[...] o médico era a pessoa que falava, que ditava, que dava
coordena, que tinha que ser assim. O modelo era
essencialmente médico né, hospitalar né, não existia equipe,
não existia equipe multiprofissional de maneira nenhuma.
Existiam alguns profissionais nutricionista, dentista,
assistente social, mas o corpo clínico não era os
profissionais, eram só os médicos, e eles mantinham essa
estrutura, faziam questão de manter essa estrutura, então o
médico que determinava se internava ou não” (PIONEIRO,
2014).
6. REFORMA PSIQUIÁTRICA E LUTA ANTIMANICOMIAL:
Esses movimentos compuseram o cenário nacional de luta em prol de transformações
políticas e práticas psiquiátricas destinadas as pessoas em sofrimento psiquico. No estado
Mato Grosso, a adesão a esses movimentos aconteceu de forma superficial. Os serviços
tratamento em saúde mental eram pautados no modelo hospitalocêntrico e nas práticas
reclusão e exclusão dos internos.
de
de
de
de
“[...] era complicado, porque a resistência era muito
grande, pesada realmente e, para se mudar essa
estrutura, mudar para quê? Se tinha uma estrutura alí
hospitalar, centrada no atendimento médico né, não
existia equipe né. [...] Então foi muito, foi muito difícil
né, a luta foi complicada, para gente começar a
implantar um outro modelo, que não centrada no
atendimento médico hospitalar [...]
a gente foi
buscando informações, e fomos somando, somando
com a universidade, aí vieram outros psiquiatras mais
conceituados na época que incorporou a equipe do
Adauto, vieram outros psicólogos, vieram assistentes
sociais, e fomos formando um grupo e começamos a
pensar uma forma diferente de atuar aqui em Mato
423
Grosso e, principalmente, no Adauto Botelho[...]”
(PIONEIRO, 2014).
7. EXPERIÊNCIA PROFISSIONAL:
Conforme o entrevistado, este não atuava especificamente a partir de uma abordagem teórica
no Hospital Adauto Botelho. Seu trabalho era pautado no compromentimento com a cidadania
do sujeito. Desse modo, suas ações voltadas à condução terapêutica eram realizadas através
de uma prática voltada para singularidade do sujeito, não para sua doença. Para tanto, este em
parceria como outros profissionais da instituição, comunidade, familiares e internos,
procurava oferecer aos portadores de doença mental, possibilidades de socialização e
reinserção social, através de atividade como: encontros, passeios, feiras, dança, música, dentre
outras.
“[...] a gente recuperou muitos alí, foi justamente através da
música, da dança, folclore. Contratamos a Domingas,
conhece a Domingas? Domingas da flor ribeirinha,
Domingas é uma mulher tradicional lá da comunidade do
São Gonçalo. E, nós a levamos pro Adauto Botelho,
contratamos a Domingas para dar, como se diz de massa,
trabalho com barro, e criamos o grupo de siriri Zé Bolo Flor,
e dançava não tinha, não era grupo de siriri dos doidos não,
nós mesclamos com pacientes com problemas, família,
funcionários, você entendeu. E, a Domingas veio e fizemos
um trabalho excelente, participamos do primeiro folclore
internacional que foi em Cáceres, e através da dança e da
música nós fomos ao segundo encontro nacional de luta
antimanicomial, que foi lá em Belo Horizonte [...]”
(PIONEIRO, 2014).
8. CRIAÇAO DO JORNAL ADAUTO BOTELHO:
O entrevistando com a colaboração de outros profissionais e internos da instituição, criou
o “Jornal do Adauto” que era um dos meios de questionar e denunciar a estrutura do
hospital psiquiátrico Adauto Botelho, e o tratamento destinado aos internos dessa
instituição.
“[...] a gente criou o jornal do Adauto Botelho. Porque
através do jornal a gente iria questionar aquela estrutura,
primeiro a gente fez um trabalho junto aos pacientes, da
necessidade deles escreverem, de registrar alguma coisa. E,
criamos justamente o Jornal do Adalto, e era oportunidade
também da gente reunir em grupos né [...] o jornal foi algo,
assim, que facilitou muito, a gente questionar e denunciar
aquela estrutura, aquelas coisas que aconteciam lá, por
exemplo, apesar do eletrochoque ser um procedimento
médico, ele era utilizado muito inadequadamente, vamos
424
falar assim, e através do jornal a gente começou a questionar
[...]” (PIONEIRO, 2014).
9. PARTICIPAÇÃO NO PROCESSO DE CONSTRUÇÃO DO HOSPITAL DIA:
O psicólogo pioneiro na área de saúde mental participou ativamente na construção do
Hopstial Dia, unidade de assistência à saúde mental anexa ao hospital psiquiátrico Adauto
Botelho.
“[...] eu fui o primeiro coordenador, para juntar uma equipe
para trabalhar lá era difícil, e eu batia duro que tinha que ser
com portão aberto [...] eu e uma auxiliar de enfermagem
ensinava o paciente a tomar o ônibus. Logo, ele já estava
independente, indo pro Adauto para participar do Hospital
Dia, e no final da tarde ía para casa, um fugia, o outro,
entendeu [...] pouco aconteceu isso, de alguém não suportar
aquele portão aberto lá, foram poucos, pouquíssimos. E,
agente conseguiu mostrar que era possível trabalhar sem a
necessidade de internar, e com o portão aberto, era uma
referência que se tinha naquela época, era o Hospital Dia
[...]” (PIONEIRO, 2014).
10. ATUAÇÃO PROFISSIONAL ATUAL:
O psicólogo no momento atua em uma emissora de rádio, onde tem espaço para realizar
discussões sobre os serviços de assistência à saúde mental do estado de Mato Grosso.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A assistência oferecida às pessoas em sofrimento psíquico sofreu diversas
transformaçoes historicamente. Por muito tempo, o modelo manicomial configurou-se como a
princincipal prática de tratamento a loucura. Nesse panorama, as influências dos movimentos
mundiais de crítica à lógica manicomial surgidos na Itália foram percebidas no Brasil. E, a
partir do final da década de 1970 devenvolve-se no país o movimento de Reforma
Psiquiátrica, no interior do processo de Reforma Sanitária e dos movimentos sociais
contrários ao regime militar.
O que provocou um intenso momento de discussão e
mobilizaçao de vários segmentos da sociedade, em prol da superaçao dos serviços de
assistência à saúde mental que eram pautados no paradiga da psiquiatria; que se estrutou em
torno do isolamento e exclusão de pessoas em sofrimento psíquico. Nesse contexto, o estudo
da História da Psicologia em Mato Grosso no campo da saúde mental em revelado que a
425
atuação dos psicólogos pioneiros nessa área, no início da década de 80, estava pautada na
participação da luta pela transformação das políticas e práticas de assistência à saúde mental
que estavam acontecendo no cenário nacional.
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Paulo: Educ, 1998, 5ª. Ed., 2007.
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da Reforma Psiquiátrica. Cuiabá: EdUFMT, 2005.
426
A NEGAÇÃO DE UM CORPO DESEJANTE
Juliana Cristina Bessa; Fernando Silva Teixeira Filho.
Universidade Estadual Paulista - UNESP Assis.
Email: [email protected].
Introdução
A problemática da Saúde Mental, em todos os seus atravessamentos, configura-se
como campo de discussão amplo e complexo. A existência de espaços para problematização
de tais questões é resultante dos movimentos da Reforma Psiquiátrica Brasileira que,
iniciados na década de 1970 constituem, até hoje, as principais estratégias de enfrentamento
ao paradigma da psiquiatria biológica e sua metodologia etiológico-orgânica para o trabalho
com o sofrimento psíquico.
Caracterizada como um processo social complexo, a Reforma Psiquiátrica Brasileira
sustenta a ruptura com a estrutura médico-psiquiátrica, até então vigente, a partir de um novo
paradigma de orientação às ações em saúde mental: a Atenção Psicossocial, com uma
proposta de reorientação do cuidado em saúde mental e do olhar ao sofrimento psíquico. O
nível de complexidade proposto é atingido a partir da articulação de quatro dimensões,
interdependentes e complementares: jurídico-política, técnico-assistencial, teórico-conceitual
e sociocultural (AMARANTE, 2008).
Podemos pensar o paradigma psiquiátrico biológico, como um modelo que contribuiu
para estigmatização e exclusão de alguns sujeitos em nossa sociedade. Com a perspectiva da
objetividade, do olhar único, do internamento, de espaços disciplinados, de técnicas de
controle dos comportamentos e, concomitantemente, com a descoberta e utilização dos
psicofármacos, aumentaram as práticas da psiquiatria asilar, fortificando o paradigma do
internamento e a ampliação do modelo classificador das doenças.
Diante desse contexto, e como possibilidade de enfrentamento a ele, propõe-se o
paradigma da Atenção Psicossocial, o qual pensa novas formas de encarar o sofrimento, o
olhar e o cuidado para o sujeito e todo o seu entorno, sua complexidade e a forma em que este
habita o território. Se faz necessário através de mudanças de olhares, não apenas para a
427
loucura, sofrimento, mas o deixar de lado preconceitos, e pensar novos referenciais teóricos,
recursos metodológicos e conceituais juntamente com novas práticas de cuidado.
Com a proposta do paradigma da Atenção Psicossocial leva-se em consideração os
processos subjetivos em seus múltiplos atravessamentos, o sofrimento psíquico é deslocado
de uma causalidade orgânica e de uma responsabilidade individual do sujeito e inserido em
uma rede complexa de saberes e relações. Investe-se em coeficiente de singularização de cada
sujeito e suas condições de existência e subjetivação: afetos, história de vida, laço social,
constituições familiares, relações de trabalho, relações amorosas e afetivas, condição
socioeconômica, moradia, demandas.
Com isso, a retomada do sujeito e sua autonomia podem ser caracterizadas como fio
condutor do Paradigma da Atenção Psicossocial, uma vez que deve ser origem e destino para
criação e implantação das políticas de saúde, para organização dos serviços e para a formação
dos trabalhadores.
Desse modo, a subjetividade d@ usuári@ de saúde mental, deve ser resgatada, e com
isso a história destes atores sociais, proporcionando a restauração da liberdade e partindo do
direito de ser um sujeito histórico e desejante. No entanto na maioria das vezes, essas pessoas,
são interditadas em relação aos seus desejos, por serem consideradas doentes, em tratamento,
não sendo "autorizadas" a desejar, a querer, a sentir. Assim como as manifestações
psicopatológicas são controladas, a sexualidade d@ usuári@ em sofrimento psiquico também
é controlada, quando não, negada.
A partir desse contexto, o intuito desse trabalho é fazer um relato de experiência
acerca da reflexão e problematização das sexualidades18 enquanto um atravessamento
importante na complexidade dos processos subjetivos d@s usuári@s de serviços de saúde
mental; partindo do pressuposto de que não há essas problematizações nos serviços de saúde
mental tanto em relação às posturas dos profissionais quanto dos usuários entre si.
A necessidade, de tal problematização iniciou-se da aproximação das sexualidades
18
O termo sexualidades será tratado por nós, tanto no singular como no plural: sexualidades. Efetuamos essa
escolha para referimos a várias sexualidades em suas diversas manifestações, algo além de pensar apenas
enquanto uma prática sexual e também heteronormativa. Entretanto, ao longo do trabalho, poderá haver a
aparição do terno no singular, isso deve a escolhas realizadas pelos autores utilizados como referência, como por
escolhas pessoais conforme o contexto em que o tema se insere.Não se trata, de assuntos diferentes, apenas a
escolha sintática do termo.
428
com a saúde mental, por percebermos como manisfestações/questões das sexualidades
apareciam em alguns serviços de saúde mental. Começamos a refletir e questionar o porquê
não era pensada as sexualidade dessas pessoas, considerando as sexualidades para além de
seus aspectos biológicos, e sim como constitutiva da subjetividade e/ou identidade individual
e social, como representação, desejo ou simplesmente como comportamento. Uma
sexualidade que permeia todas as relações sociais do indivíduo. Na maior parte dos casos, tais
questões não eram consideradas importantes ou, até mesmo, ignoradas em sua origem.
Na busca por um respaldo teórico, percebemos também que não há muitas referências
bibliográficas acerca desse assunto. A partir de um breve levantamento bibliográfico realizado
em bases de dados (Scielo, Bireme e BVS-Psi) e nos documentos do Ministério da Saúde,
encontramos poucos trabalhos que articulavam sexualidade, saúde mental e Atenção
Psicossocial. Nos poucos artigos e textos encontrados são abordadas questões da sexualidade
na saúde mental, com uma perspectiva mais preventiva, biológica, em uma visão biomédica,
higienista, sanitarista. Com isso, compreende-se que não existem muitas problematizações
acerca das sexualidades no campo da saúde mental.
Dessa forma, apresentamos esse texto como possibilidade para (re)pensar o que é
sexualidade; que lugar a sexualidade ocupa nos processos subjetivos de cada usuári@ dos
serviços de saúde mental e de todos os que fazem parte de sua rede de relações; destacando a
importância de incluir a problematização dessas questões no cotidiano dos cuidados em saúde
mental.
(Re) pensando questões das Sexualidades...
A sexualidade pode ser pensada como constitutiva da subjetividade e/ou identidade
individual e social, como representação, desejo ou simplesmente como comportamento. Em
uma sociedade complexa e heterogênea a sexualidade tende a adquirir significados e valores
diversos para os indivíduos que fazem parte de diferentes segmentos sociais (HEILBORN,
1999).
Entendida como uma construção social, histórica e cultural a sexualidade foi, e é
construída discursivamente, isso pensando sob uma ótica foucaultiana, e, assim sendo,
entendida como uma produção histórica que deixará de ser vista como uma questão pessoal e
particular e passa a ser compreendida como uma questão social e política.
429
Essa construção da sexualidade envolve um tipo de poder específico: biopoder – poder
sobre a vida destinado a produzir forças, a fazê-las crescer e ordená-las, atingindo os corpos
como máquina e como espécie em uma doutrina de regulamentação e regulação do corpo
social. A vida emerge no âmbito das técnicas políticas e a sexualidade será um dos
dispositivos de sustentação desse processo – o sexo como matriz das disciplinas e princípio
das regulações (FOUCAULT, 2010; ASSMANN et. all, 2007).
Para Foucault, a sexualidade é o nome que pode ser dado a um dispositivo histórico:
não à realidade subterrânea que se apreende com dificuldade, mas à
grande rede da superfície em que a estimulação dos corpos, a
intensificação dos prazeres, a incitação ao discurso, a formação dos
conhecimentos, o reforço dos controles e das resistências encadeiamse uns aos outros, segundo algumas estratégias de saber e de poder
(FOUCAULT,1997, p.100).
O dispositivo da sexualidade vinha sendo construído pelos discursos da igreja, da
psiquiatria, da sexologia, do direito, desde os finais do século XIX. Tais discursos produziram
classificações, dividiram indivíduos e práticas, criaram “espécies” e “tipos” e,
simultaneamente, modos de controlar a sexualidade. Produziram sujeitos e corpos ou, para
usar a contundência de Judith Butler, se constituíram (e continuam se constituindo) em
discursos que “habitam os corpos”, que passam a ser carregados pelos corpos “como parte do
seu próprio sangue” (BUTLER apud LOURO, 2009, p.136).
Assim sendo, escola, a igreja, a mídia, a medicina e outras instâncias sociais exercitam
pedagogias da sexualidade. É ensinado o discurso socialmente correto: o que deve falar, o que
deve silenciar, o que mostrar ou esconder; com isso podemos ver como são refletidas as
desigualdades, as diferenças históricas e socialmente atribuídas através de marcas de gênero,
normatizações e políticas de regulação social que silenciam, disciplinam e marginalizam
alguns sujeitos (LOURO, 2007).
(…) o que constitui a fixidez do corpo, seus contornos, seus
movimentos, será plenamente material, mas a materialidade será
430
repensada como o efeito do poder, como o efeito mais produtivo do
poder. Não se pode, de forma alguma, conceber o gênero como um
constructo cultural que é simplesmente imposto sobre a superfície da
matéria – quer se entenda essa como o ‘corpo’, quer como um suposto
sexo. Ao invés disso, uma vez que o próprio ‘sexo’ seja compreendido
em sua normatividade, a materialidade do corpo não pode ser pensada
separadamente da materialização daquela norma regulatória. O ‘sexo’
é, pois, não simplesmente aquilo que alguém tem ou uma descrição
estática daquilo que alguém é: ele é uma das normas pelas quais o
‘alguém’ simplesmente se torna viável, é aquilo que qualifica um
corpo para a vida no interior do domínio da inteligibilidade cultural
(BUTLER, 2003, p.155).
Desse modo, percebemos como certas normas regulam a sociedade, estas que, segundo
Butler, “supõem continuidade e conseqüência entre sexo, gênero e sexualidade” (BUTLER,
apud LOURO, 2009, p.138). Devido a essas normas, juntamente com a ótica binária que
sustenta tal processo, não é pensada a multiplicidade dos gêneros e da sexualidade (LOURO,
2009).
Nesse contexto, as normas regulam a vida das pessoas, e acabam também atravessando
a identidade das mesmas, que, muitas vezes, tornam-se identidades marcadas pelo social.
Com isso, as pessoas só correspondem aos seus desejos quando se sentem livres para
expressá-los e quando esses desejos correspondem aos padrões normativos que estão
inseridos nos discursos científicos e conseqüentemente na sociedade. Nesse caso os discursos
sobre sexualidades, as regras e as normas regulam e sustentam aquilo que é considerado ou
não normal/patológico, verdadeiro/falso, masculino/feminino, hetero/homossexual, etc.
(TEIXEIRA FILHO et. all., 2011).
Foucault irá defender que os sujeitos não possuem identidades fixas e impermeáveis,
mas são atravessados por uma multiplicidade de forças que os subjetivam incessantemente.
Somos constituídos por multiplicidades, devires, podendo “expressar muitas formas de
discursos e corporeidades, variando temporalmente em cada espaço sócio- histórico, cultural e
político pelo qual transitamos” (PERES, 2009, p.236).
431
No entanto, dentro de alguns serviços de saúde mental, percebemos ainda, territórios
cristalizados e subjetividades assujeitadas que muitas vezes não permitem inovações e
criações. Assim, as pessoas tornam-se mais vulneráveis, sendo atravessadas por esses
discursos normativizados, perdendo força do questionamento e da crítica (PERES, 2009).
Pode-se dizer que somos, muitas vezes, expressões desses corpos dóceis; pois somos
constituídos pela norma, pela disciplina, pelos discursos instituídos. É muito mais fácil
disciplinarizar, docilizar do que fazer pensar e fazer questionar, uma vez que a sociedade é a
expressão do conjunto de regras no qual os papéis sociais estão cristalizados (FOUCAULT,
2010).
Dessa forma, percebe-se o quão difícil é desmonopolizar essa hegemonia de saberes
instituídos e amplamente divulgados como verdades inquestionáveis e/ou universais. Há
necessidade de pensar sobre formas de desconstruir esses modelos identitários cristalizados,
para que possa haver espaço dentre essa ditadura de formas reducionistas de vida.
Diante disso, é de tamanha importância refletir sobre a transformação dessas vidas
assujeitadas em vidas potentes, sendo alicerces de resistência contra autoritarismos e
preconceitos em que virtualizem de fato uma sociedade democrática e mais igualitária. Na
tentativa de escapar ao instituído, tenta- se pensar em estratégias de resistência e
enfrentamento à lógica dominante, consolidando, assim, práticas que favoreçam a
potencialização da vida em suas múltiplas possibilidades. Pois, nessa política da regulação
social que separa e/ou classifica para controlar, na qual todos são diferentes entre si, mas
todos giram em torno da norma, essa norma que disciplina, acredita-se que se não
disciplinarizar o indivíduo pode tornar-se um desviante.
Dessa maneira, ainda que a sexualidade emergisse, cada vez mais, ao longo da
história, a uma condição de visibilidade, vigilância, de produção discursiva, os corpos
doentes, seja orgânica ou psiquicamente, são localizados, são envoltos, em direção oposta, por
certa invisibilidade. Como ações higiênicas que constroem a ausência de possibilidade de vida
e de desenvolvimento para os considerados indóceis e/ou inúteis.
Relatos de Experiência
Através da inserção no Campo da Saúde Mental e Coletiva, muitos questionamentos,
432
reflexões e indagações surgiram relacionados a algumas questões. A partir da vivência no
serviço de Saúde Mental emergem reflexões acerca do lugar das sexualidades dentro desse
espaço.
A aproximação das questões das sexualidades com a saúde mental nos instigava por
perceber que estas, muitas vezes, são da ordem da invisibilidade. Começamos a questionar o
porquê não eram pensadas as sexualidades d@s usuári@s; a refletir então: o que se entende
por sexualidade? Qual o lugar das sexualidades no campo/contexto da saúde mental?
Na busca por um respaldo teórico, tal como apresentado anteriormente, podemos
perceber também que não há muitas referências bibliográficas acerca desse assunto. Nos
poucos artigos etextos encontrados são abordadas questões da sexualidade na saúde mental
com uma perspectiva mais preventiva, biológica, organizadas no sentido da prevenção, de
uma visão biomédica, higienista, sanitarista. São articulações atreladas às noções de práticas
sexuais e polítcas de prevenção. Com isso, podemos compreender que não existem muitas
problematizações acerca dessa intersecção, fato este que não concebemos como questões
separadas.
Através da vivência no serviço de saúde mental, espaço das diferenças, no qual, estas
deveriam ser respeitadas, podemos perceber que as sexualidades são na maioria das vezes,
invisibilizadas, pelos profissionais, funcionários, técnicos. Observamos como a norma, as
regras e a vigilância produzem corpos dóceis, corpos disciplinarizados (FOUCAULT, 2010).
A sexualidade d@ usuári@ em sofrimento psíquico é vista como estigma, pois é
compreendida como desviante, como desvantagem, muitas vezes, negada e reprimida. A
manifestação da mesma é vista de forma exacerbada e descontrolada, bem como o próprio
usuário; a instituição busca controlar o excesso para manter a ordem interna, usando de
diversas
estratégias
para
isso,
através
dos
discursos
rígidos
normalizadores
e
disciplinarizadores e também através de medicações para cessar esse "problema". É assim,
que os jogos de pedagogias atuam, formando e administrando a vida das pessoas.
(VASCONCELOS, 2010).
As pessoas têm concepções da sexualidade que são reduzidas apenas a uma de suas
dimensões que é a prática sexual. No entanto, nos serviços de saúde mental, quando há
manifestações da mesma, ela é percebida apenas nos momentos de crise e como algo
patológico. Entendem a manifestação da sexualidade como sintoma ou indício de crise. De
433
uma forma geral, alguns profissionais têm concepções sobre a sexualidade do usuário bem
reducionistas, como por exemplo:
- o ato sexual pensado como única expressão da sexualidade, principalmente enquanto uma
prática heterossexual;
- verbalização do desejo de praticar o ato sexual manifestada pelo usuário; logo essa
verbalização pode também estar associada a uma forma de manifestação de um estado
delirante do mesmo;
- uma erotização exagerada, normalmente quando o usuário entra em uma crise; o surto em
forma de delírio como uma explicação para manifestação da sexualidade;
- o ato da masturbação, às vezes, em público como expressão da sexualidade; (BRITO;
OLIVEIRA; 2009)
Com isso, podemos evidenciar como o desejo, a vontade do sujeito é reduzida,
controlada e negada. Há também, por parte dos profissionais, atitudes paternalistas e de
infantilização do usuário, eles são tratados como eternas crianças, uma condição em que sua
sexualidade é inexistente e caso exista, há que negá-la e sublimá-la. (BRITO; OLIVEIRA;
2009).
No cotidiano do serviço observamos também como as condições de infatilização são
visíveis. A invisibilidade desses corpos é acompanhada por um viés de infantilização, que
marca um modo de tratamento sustentado pela regressão e negação da sexualidade, como se
jamais houvesse experienciado afetos e desejos, como se essa sexualidade fosse inexistente.
Somado a isso, práticas discursivas marcadamente preconceituosas, que reforçam a
sexualidade enquanto função reprodutiva, e engrossam um discurso preventivo pautado na
dita impossibilidade de procriação dessas pessoas.
A imagem corporal d@s usuári@s é vista por muitos como fora dos padrões
normativos, onde, além da exclusão decorrente de suas diferentes condições psíquicas, @s
usuári@s são excluídos das redes de relações afetivos pelas diferenças e estereótipos
marcados em seus corpos. Considerados despojados de beleza, de vigor físico, de jovialidade,
encrudescidos pelas medicações são percebidos como corpos mortos, sem desejo, consumidos
pelos transtornos e seus sintomas.
434
Foucault ao falar do corpo, afirmava que
O corpo: superfície de inscrição dos acontecimentos (enquanto que a
linguagem os marca e as idéias os dissolvem), lugar de dissociação do EU (que
supõe a quimera de uma unidade substancial), volume em perpétua
pulverização. A genealogia, como análise da proveniência,está, portanto no
ponto de articulação do corpo com a história.Ela deve mostrar o corpo
inteiramente marcado de história [sobre o corpo se encontra o estigma dos
acontecimentos passados] e a história arruinando o corpo (Foucault apud
Vasconcelos, 2010 p. 291).
É no corpo que muitas vezes essas pessoas trazem a marca de sua estória. São por
motivos diversos, pelo seu sofrimento, por tratamento com medicações, enfim, pelo
desenrolar da vida, que mostram um corpo despojado de beleza, certo descuido físico e até
mesmo higiênico, pois talvez, isso não seja mais prioritário em sua vida. O sofrimento
psíquico para muitos é de certa forma produtor de estigmas que excluem e marcam os corpos
dos sujeitos, colocando-os na posição de impotência, incompetência e até mesmo de certa
periculosidade (2009, TINOCO).
É marcada também a relação entre eles/elas usuári@s, pois alguns não estão mais
acostumados com afetos, com toques, abraços, e quando acontece esse contato físico causa
um estranhamento. Um toque, um abraço, ou mesmo um olhar e um sorriso podem afetar
tanto o usuário que este pode se confundir causando um afastamento ou mesmo uma intensa
aproximação com o outro. Porém, quando isso ocorre dentro do serviço há uma repressão das
condutas e não há uma problematização, não há uma escuta a respeito do que o/a usuári@
sente, deseja, das suas confusões; isso já é logo, barrado, é como se uma pessoa em
tratamento, não pudesse sentir. Dessa forma, há negação de um sujeito sexualmente desejável
e desejante.
É evidente como o novo, o que propõe descontruir o que está parado, cristalizado é
difícil e problemático. Como os corpos são invalidados por práticas disciplinadoras, nas quais
devem estes corpos permanecer enrigecidos, pois sendo assim é mais fácil controlá-los. De
acordo com Foucault (1984) todo esse tipo de controle sobre os corpos atuam como
dispositivos de controle e adestramento normatizadores.
Observamos também como a sexualidade de alguns/algumas usuári@s, é marcada por
435
uma religiosidade extrema, em que o discurso da religião diz o que é correto e aceito; são
valores e crenças fundamentadas na culpa e na proibição, uma moral de inspiração religiosa.
É bem notável, quando se refere a manifestações de uma sexualidade dissidente, que não a
heterossexual, pois além de não ser aceita por algumas religiões, ela é também discriminada
por alguns profissionais, por achar que quando ocorre um desejo homoerótico é algo
patológico, que não deve levar tanto em consideração, que isso é passageiro ou que isso não é
importante para o tratamento daquele/daquela usuári@, que existem outras coisas para
observar, priorizar no tratamento, porém, que essa manifestação não deve retornar.
Dentro desses espaços, @s usuári@s vivem de modo com que os discursos e práticas
sejam impostos de forma naturalizada, muitas vezes rotulando e negando-os seus desejos.
Os/as usuári@s são aqueles sujeitos que já possuem um rótulo, um diagnóstico e um "futuro
previsível".
É através desses discursos que podemos compreender que não há uma escuta
desse/dessa usuári@ em toda sua singularidade, não há um olhar para essa pessoa. Como não
achar que a sexualidade seja importante? Muitos sofrimentos estão ligados ao corpo, ao afeto
não recebido, ao desejo não correspondido ou mesmo não aceito socialmente, e muitas outras
questões referentes à sexualidade que não são problematizadas por não serem consideradas
prioritárias ou mesmo por permanecerem na ordem da invisibilidade e dos reducionismos.
Esses tipos de condutas envolvem não só os profissionais, funcionários. Muitos/muitas
usuári@s dos serviços de saúde mental, por serem considerados incapazes e muitas vezes
interditados juridicamente, acabam por ficar sob a tutela de suas famílias ou responsáveis
legais, que, grande parte das vezes, compartilham e reforçam essas condições de negação,
infantilização e invisibilidade. Isso tudo compõem uma série de empecilhos às estratégias de
trabalho com a promoção e resgate da autonomia desses sujeitos, não só em relação ao
sofrimento psíquico, mas também às suas escolhas, encontros e afetos.
Considerações Finais
A sexualidade ainda é um tema tabu para muitas pessoas, por isso alguns profissionais,
funcionários, sentem-se inseguros em abordar tais questões, uma vez que tenham que abrir
mão de valores e crenças, para fazer possível à escuta e o olhar para o/a usuári@. Existem
436
questões que vão à contra mão do que acreditamos ou pensamos sobre algo, desta forma, os
preconceitos e a discriminação encontram-se, às vezes, alocados no profissional em si e não
no/na usuári@. Assim, se faz importante o trabalho de formação com a equipe, tendo em vista
a abordagem e reflexões sobre essas problematizações, caso contrário, os discursos e práticas
vão se traduzindo em pedagogias de gênero e sexualidade, formando e informando relações
institucionais e práticas profissionais, não voltadas para a singularidade d@ usuári@.
É necessário que ocorra uma mudança de postura desses profissionais, é preciso
desconstruir valores, crenças, para que exista uma escuta desse/dessa usuári@, sem (pré)
conceitos, sem diagnósticos e rótulos. Tendo em vista, assim, a diversidade que nos atravessa,
sem pensar a sexualidade como negaçao de algo ou uma associaçao a condutas desviantes,
que resultam em transgressões e patologias.
O estigma classifica e marca as pessoas, uma vez que é tido com um desvio do padrão
de comportamento social, o preconceito reforça esse processo identitário. Muitas vezes, a
sexualidade d@ usuári@ sofre a ação do estigma por ser classificado como desvio
comportamental e moral e, consequentemente, o preconceito afirma esse atributo,
fundamentado em valores socialmente aceitos.
É necessário pensar em orientação e capacitação dos profissionais da saúde no intuito
de tratarem seus pacientes como sujeitos desejantes e que às vezes sofrem por desejarem e
não conseguirem lidar com isso. O profissional possa ser preparado quando for confrontado
com suas próprias pré-noções sobre a sexualidade, pois muitos profissionais apresentam-se
com posturas rígidas e com certa fixidez e distorções referentes às identidades sexuais e de
gêneros.
As sexualidades quando são pensadas nos serviços que trabalham na perspectiva da
Atenção Psicossocial é trabalhada apenas em sua dimensão da prática sexual heterosssexual.
A homossexualidade, por exemplo, que tende a ser publicizada apenas em momentos de crises
psicóticas, por isso muitos costumam articular psicose e homossexualidade, em espaços
individualizados ou em espaços destinados à discussão de questões relacionadas à
sexualidade. Mesmo assim, alguns temem, sentem-se inseguros em falar, perguntar, assumir
por temer discriminação, estigmatização e rotulação. É só aceito o que é politicamente
correto, o que está na norma social.
A articulação entre sexualidades e saúde mental -pautada nos preceitos da Atenção
437
Psicossocial- é um desafio para as políticas públicas, pois sinalizam limites e limitações que
devem ser superadas. É de tamanha importância, discutir os saberes e fazeres que produzam e
naturalizam corpos normalizados, ou mesmo discursos que negam esses corpos.
Considero uma necessidade de grande de avanço acerca da problematização das
sexualidades de maneira geral. Retomar as discussões do que é sexualidade, para além das
práticas (hetero)sexuais, e livrá-la da moral e do julgamento de valor que cada um de nós
realiza. Há que se fazer um questionamento a todo o corpo social.
Colocar em pauta a sexualidade d@s/n@s usuári@s dos serviços, é colocar em pauta
a própria sexualidade – de cada profissional – e seus valores e concepções de afeto, sexo,
prazer, desejo, etc. A sexualidade em nós deve ser colocada em discussão para que alcance a
Atenção Psicossocial de maneira a promover o trabalho com a complexidade e o
reposicionamento do sujeito em sua existência, tão caros a esse paradigma.
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440
DESAFIOS PARA MUDANÇA NA LÓGICA DO TRABALHO EM SAÚDE: o NASF
como mobilizador de práxis psicossocial
Renata Heller de Moura
Universidade Estadual de Maringá – UEM
[email protected]
Introdução
Este texto19 apresenta o Núcleo de Apoio à Saúde da Família (NASF) como uma
ressonância do entrelaçar de dois movimentos reformistas que se desenvolvem no âmbito da
saúde no Brasil: o movimento da Reforma Sanitária e o movimento da Reforma Psiquiátrica.
Especificamente neste texto, apresentamos um recorte dessa pesquisa de doutorado, com o
objetivo de demonstrar as análises por nós desenvolvidas sobre o NASF como um dispositivo
capaz de produzir mudanças na lógica do trabalho em saúde. Para tanto, apresentamos uma
síntese das sistematizações realizadas e das análises desenvolvidas sobre os contextos de
trabalho de uma equipe de NASF.
Entendemos que tanto o NASF, como as proposições deste trabalho, são fruto do
amadurecimento de uma série de transformações que vem ocorrendo no Brasil, desde a
década de 1970. Até esse período, o modelo biomédico vinha se desenvolvendo amplamente
no país, sem encontrar muita resistência política ou ideológica.
Centrado na doença, o modelo biomédico permitiu o desenvolvimento de um lucrativo
aparato hospitalocêntrico, cujas bases assentam-se sobre uma concepção de saúde biologicista
e liberal privatista. Entretanto, esse modelo, custoso e excludente para a grande maioria da
população brasileira, entrou em crise no final de 1970. O esgotamento do modelo biomédico
para apresentar respostas aos problemas de saúde da população tem nos conduzido a buscar
outros modelos que permitam a construção de novos modos de gerir, cuidar e produzir saúde
(FLEURY, 1997; ESCOREL, 1998).
O período do final da década de 1970 e início da década de 1980 foi bastante propício
para o desenvolvimento de mobilizações sociais no Brasil. Nesse período, acirraram-se as
desigualdade sociais e o modelo político e econômico em vigor – o regime militar – passou a
ser fortemente tensionado e criticado. A sociedade civil organizou-se em torno de uma série
19
Ele é fruto de uma pesquisa que desenvolvemos em nível de doutorado para investigar de que maneira o
NASF tem sido um dispositivo capaz de mobilizar o que, nesta pesquisa, denominamos de práxis psicossocial e
verificar suas possibilidades e fragilidades no desenvolvimento de atenção à saúde mental, no âmbito da Atenção
Básica.
441
de reivindicações e o principal item da pauta de luta era a democratização política do país.
Nesse contexto, no âmbito da saúde, dois movimentos reformistas ganham força e
visibilidade: a Reforma Sanitária e a Reforma Psiquiátrica.
O movimento da Reforma Sanitária mobilizou e ainda continua mobilizando diversos
atores sociais20 na arena política, econômica e ideológica do campo da saúde. O modelo de
saúde reivindicado por esse movimento é um modelo de saúde coletiva que estrutura-se em
torno dos princípios de cobertura universal, atenção integral e equânime da saúde e
participação social na construção e fiscalização do sistema de saúde brasileiro. O Sistema
Único de Saúde (SUS), criado em 1988, é fruto dessa luta que atualmente continua sendo
travada tanto fora, como no interior dele mesmo. Para implementar a proposta de atenção à
saúde de modo universal, integral, equânime e com participação social, o SUS desenvolveu
amplo aparato jurídico-político, ideológico e assistencial. A Atenção Básica, a Estratégia
Saúde da Família e o Núcleo de Apoio à Saúde da Família, enfatizados neste trabalho, são
expressão desses aparatos.
O movimento da Reforma Psiquiátrica, do mesmo modo, também mobilizou e
continua mobilizando diversos atores sociais (em alguns momentos, os atores são os mesmos,
inclusive) na luta por uma atenção à saúde mental livre da violência asilar, da segregação e
marginalização da “loucura”. A recente criação da Rede de Atenção Psicossocial, em 2011, é
fruto das lutas travadas por esses dois movimentos reformistas em discussão, os quais, desde a
década de 1980, permitiram a emergência de dispositivos extra-hospitalares para o
atendimento à pessoa em sofrimento psíquico.
O modelo biomédico, no que diz respeito à área específica da saúde mental,
contribuiu muito para que o hospital psiquiátrico fosse pensado como lugar “privilegiado”
para o desenvolvimento de cuidados às pessoas em sofrimento psíquico. A concepção
biologicista e liberal privatista de saúde, centrada na doença, intensificou a ideia de
sofrimento psíquico como uma doença do cérebro, caracterizada por desiquilíbrios
bioquímicos que provocam comportamentos socialmente desajustados. Logo, a internação e
20
Alguns dos diversos atores sociais que podemos reconhecer travando lutas, conflitos e embates no interior
desse movimento são: os trabalhadores dos serviços públicos de saúde federais, estaduais e municipais, os quais
muitas vezes se organizaram em movimentos sociais específicos ou em sindicatos e entidades de categoria
profissional; os usuários e seus familiares, os quais também se organizaram em torno de associações que os
represente (associações de bairro, associações comunitárias e entidades de base comunitária); os pesquisadores
universitários e seus grupos de pesquisa; os proprietários de hospitais, clínicas, centros e convênios de saúde
privados; a indústria farmacêutica e seus muitos representantes (laboratórios, centros de pesquisa e de
comercialização de medicamentos); e os gestores e órgãos do governo, tais como ministérios e secretarias
municipais e estaduais.
442
contenção (química ou física) do “doente” foram entendidas como as melhores respostas para
esse tipo de problema.
Entretanto, no contexto das reivindicações de luta pela democratização do país, o
movimento da Reforma Psiquiátrica ganhou força e uma série de denúncias e de
questionamentos foram colocados em curso. As denúncias que mais chocaram a sociedade
brasileira foram aquelas que evidenciaram os maus tratos e as péssimas condições de
assistência prestadas à pessoa em sofrimento psíquico, em uma série de hospitais psiquiátricos
do país (AMARANTE, 1995). A hospitalização de pessoas por longos períodos acabou por se
tornar uma fonte de renda bastante lucrativa para donos de hospitais e clínicas psiquiátricas. É
nesse contexto de crise e de crítica ao modelo biomédico que o movimento da Reforma
Psiquiátrica ganhou espaço para iniciar um processo de mudança de modelo na atenção à
saúde mental no Brasil. Nas décadas seguintes, dispositivos extra-hospitalares e um amplo
aparato jurídico-político, ideológico e assistencial também foram desenvolvidos nessa área
específica da saúde. O modelo da Atenção Psicossocial é um exemplo disso.
Desde o final do século XX, portanto, está em curso no Brasil uma mudança de
modelo de atenção à saúde mobilizada pelos dois movimentos reformistas citados e ambos
buscam a superação do modelo biomédico tal como descrito acima. Contudo, tanto o modelo
de saúde coletiva – sustentado pela Reforma Sanitária e incorporado em alguns dos aparatos
constitutivos do SUS –, quanto o modelo de Atenção Psicossocial – defendido pela Reforma
Psiquiátrica e adotado como diretriz legal para atenção à saúde mental no Brasil –, não
lograram êxito em fustigar as reações e pressões que lhes são contrárias. Tais modelos
continuam se apresentando como alternativas para a superação: da divisão social do trabalho
em saúde, da concepção de saúde como doença e de tratamento como cura. A integralidade do
cuidado realizada no território de pertencimento dos sujeitos, a humanização da gestão e dos
processos de trabalho, a desinstitucionalização e a reinserção social são alguns dos princípios
que ainda vislumbramos implementar com maior efetividade.
Para que os aparatos institucionais e assistenciais desenvolvidos pelo SUS e pela
Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) superem o modelo de cuidado biomédico, ainda temos
muito a avançar em aspectos infraestruturais, políticos e prático-ideológicos (práxis).
Nesse sentido, dispositivos de saúde nos quais atuam equipes multiprofissionais têm
sido implantados nos três níveis de complexidade de atenção à saúde no Brasil: nível
hospitalar, nível ambulatorial especializado e nível básico. Neste trabalho, entretanto,
queremos enfocar o nível da Atenção Básica, por entendermos que esse nível de atenção à
saúde é fundamental para a efetiva mudança de modelo e da lógica de trabalho em saúde.
443
A Rede de Atenção Básica (RAB) é responsável por fazer o ordenamento das Redes
de Atenção à Saúde (RAS) no país. De acordo com a Política Nacional de Atenção Básica, a
RAB é responsável por “coordenar o cuidado: elaborar, acompanhar e gerir projetos
terapêuticos singulares, bem como acompanhar e organizar o fluxo dos usuários entre os
pontos de atenção das RAS. Atuando como o centro de comunicação entre os diversos pontos
de atenção [...]” (BRASIL, 2012a, p. 26). Trata-se de uma relevante instância em que a lógica
de fragmentação do cuidado, de biologização das práticas, de especialismo e de internação
desnecessária deve ser rompida. Portanto, como um programa desse nível de atenção,
entendemos que o NASF é um importante dispositivo a ser compreendido.
Nosso interesse ao investigar o NASF foi o de percebê-lo como um dispositivo capaz
de mobilizar uma determinada práxis. Para tanto, buscamos por conhecer os contextos de
trabalho nos quais atuam os profissionais de um NASF, em um município do interior do
Paraná.
Baseando-nos em Gramsci (1999) e Vázquez (1977), entendemos a práxis como uma
atividade material do ser humano que age na história, provocando transformações que
superam os ajustes sociais e procurando romper com as práticas repetitivas que expropriam as
riquezas materiais e imateriais do ser humano. Em outras palavras, trata-se do modo como o
ser humano produz seu saber-fazer no cotidiano de sua relação com a sociedade, por meio das
ações que desenvolve.
Estamos chamando de práxis psicossocial o conjunto de saberes e práticas necessários
para a consolidação das propostas reformistas defendiadas pela Reforma Sanitária e pela
Reforma Psiquiátrica. Dentre os atores sociais que contribuíram para o desenvolvimento
desses movimentos, muitos foram aqueles que já registraram acontecimentos, debateram
experiências e publicaram textos sobre suas proposições teórico-práticas21. Neste trabalho,
apoiamo-nos em muitos pontos de debate já travados, registrados e publicados. Queremos
partir dessa história já contada e colocada em movimento e apresentar uma síntese da práxis
por eles defendida.
A práxis que foi sendo desenvolvida e se expresa tanto no modelo da saúde coletiva
(defendido pela Reforma Sanitária), como no modelo da atenção psicossocial (defendido pela
Reforma Psiquiátrica) são práxis comprometidas: 1) com a revisão histórica e social da
concepção de saúde-doença; 2) com o entendimento de que a intervenção em saúde se faz no
21
Como muito já foi produzido e publicado sobre isso, indicamos a leitura de Amarante (1995), Paim (2003),
Campos (2006) e Vasconcelos (2009), os quais fazem detalhada recuperação desses acontecimentos.
444
estabelecimento de uma relação entre sujeitos históricos, capazes de transformar a si mesmos
e o mundo; 3) com o resgate da cidadania dos usuários do SUS e com a premissa da saúde
como um direito e dever do Estado; 4) com a concepção de terapêutica como cuidado integral,
produzido horizontalmente e coletivamente por meio da relação 

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