Ano IV, número 3, 2013

Transcrição

Ano IV, número 3, 2013
Revista Redescrições
Revista on line do GT de Pragmatismo e Filosofia Norte-Americana
Ano IV, número 3, 2013
ISSN: 1984-7157
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Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 3, 2013
Revista Redescrições é uma publicação quadrimestral do GT-Pragmatismo e Filosofia
Americana da Anpof. O conteúdo dos artigos publicados trata de temáticas relacionadas ao
pragmatismo, à filosofia americana de uma maneira geral, ou uma aplicação do método de
investigação pragmatista a questões contemporâneas
ISSN: 1984-7157
Corpo editorial:
Bjorn Ramberg – Universidade de Oslo (Noruega)
Cerasel Cuteanu – CEFA/Romênia
James Campbell – Universidade de Toledo (EUA)
Leoni Maria Padilha Henning (Universidade Estadual de Londrina)
Michel Weber – Centro “Chromatiques whiteheadiennes” (Bélgica)
Michel Eldridge - Universidade de North Caroline, Charlotte (EUA)†
Inês Lacerda Araújo - PUC-PR
Heraldo Silva – UFPI
José Nicolao Julião- UFRRJ
Gregory Fernando Pappas - Texas A & M University
Maria José Pereira - UCG
Aldir Carvalho Filho - UFMA
Vera Vidal - Fiocruz
Ronie Silveira – UFRB
Reuber Scofano - UFRJ
Sérgio Oliveira – Faculdade São Bento- RJ
Expediente
REDESCRIÇÕES
Revista do GT-Pragmatismo da ANPOF
ISSN: 1984-7157
Editores: Paulo Ghiraldelli Jr. e Susana de Castro
Editor executivo: Marcos Carvalho Lopes
Logo da revista Redescrições: Paulo Ghiraldelli Jr.
Logo do GT de Pragmatismo e filosofia americana: Manufato
Ilustração da capa: Rokin, Amsterdam de Carl Grossberg (1894–1940)
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Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 3, 2013
Revista Redescrições
Revista on line do GT de Pragmatismo e Filosofia Norte-Americana
Ano IV, número 2, 2013
Sumário
Editorial
Notas & Comentários
Entrevista com Luiz Eduardo Soares - por Marcos Carvalho Lopes
Artigos
O NEOPRAGMATISMO É (QUASE) UM EXISTENCIALISMO . Rorty, Sartre e a “incomum”
natureza humana - Aldir Carvalho Filho
LA CRÍTICA SENTIMENTALISTA DE RICHARD RORTY A LOS DERECHOS HUMANOS José María Filgueiras Nodar
DIMENSÃO DA EXPERIÊNCIA NO CONTEXTO ESCOLAR: UM DEBATE A PARTIR DA
SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA- Rafael Bianchi Silva
Tradução
Democracia e Filosofia- Richard Rorty (Trad. Fernando Langkammer dos Santos (PIBIC/UFES)
e Marcelo Martins Barreira (Filosofia/UFES))
Resenha
NUSSBAUM, Martha. Sin fines de lucro. Por qué la democracia necesita de las humanidades.
Trad. Mária Victoria Rodil. Buenos Aires/Madrid: Katz, 2010. 199pp. -Por Marcos Carvalho
Lopes
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Editorial
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Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 3, 2013
EDITORIAL
Olá! Bem vindo(a) ao terceiro número da Revista Redescrições (ano 4). Os
temas desta edição dialogam em torno do pragmatismo, como não poderia deixar de ser,
em suas relações com a epistemologia moderna, sua concepção de direitos humanos, e
suas conseqüências nas áreas de educação e até segurança pública.
Abrindo a revista, na sessão de ‘notas e comentários’, temos uma Entrevista
com Luiz Eduardo Soares, feita por Marcos Carvalho Lopes. Alí Marcos relacionou a
experiência pública do político Luiz Eduardo Soares, principalmente na área de
segurança e como escritor, com seu contato direto com a filosofia de Richard Rorty,
com quem fez seu pós-doutorado. O resultado, para além de conhecer melhor a vida do
entrevistado, é uma mostra prática de como a teoria pragmatista pode ser utilizado no
âmbito político, público; sempre a partir de uma perspectiva poética redescritiva.
Na sessão de artigos, abrimos com o trabalho de Aldir Carvalho Filho: O
neopragmatismo é (quase) um existencialismo. Rorty, Sartre e a “incomum”
natureza humana. Aí pode-se ver uma breve descrição do pensamento neopragmatista
de Richard Rorty, relacionando suas semelhanças e diferenças com o pensamento
existencialista de Jean-Paul Sartre. Para isso, Aldir introduz uma crítica à filosofia
clássica que seria comum em ambos: a crítica à ideia de uma “natureza humana
comum”, ou uma razão a priori nos seres, ou na própria realidade. Depois de delinear
os termos dessa concordância entre os filósofos, Aldir identifica algo que os separa, a
saber, a ideia de uma suposta “condição humana comum” que lhes traria uma obrigação
moral para consigo e para com os demais; ideia que estaria presente em Sartre, mas que
seria abandonada por Rorty. Aldir justifica, com Rorty, o abandono também dessa ideia
que ainda manteria aspectos fundacionistas.
Nesse mesmo sentido, no segundo artigo (La crítica sentimentalista de
Richard Rorty a los derechos humanos), José María Filgueiras apresenta,
primeiramente, a crítica do pensador argentino Eduardo Rabossi à naturalização
moderna da teoria dos direitos humanos sob a forma de fundamentações filosóficas.
Feita esta crítica, Filgueiras acompanha a leitura contemporânea de Rorty da mesma,
relacionando-a a dois pontos de sua filosofia neopragmatista: a natureza plástica dos
seres humanos e a inexistência de obrigações morais universais.
O terceiro artigo é de Rafael Bianchi Silva, onde o foco muda da questão dos
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direitos humanos para a questão educacional: Dimensão da experiência no contexto
escolar: um debate a partir da sociedade contemporânea. Ali o autor dialoga sobre
os desafios da educação contemporânea, com autores como Freire, Bauman, Dewey,
Anisio Teixeira e Rubem Alves. Partindo do conceito de experiência como fio condutor
fundamental
do
processo
educacional,
Rafael
avança
numa
caracterização
essencialmente líquida da sociedade contemporânea. Essa fluidez dificultaria a vivência
densa com o outro, de tal modo que as experiências contemporâneas ficam marcadas
por uma superficialidade solitária. Essa problemática é avaliada pelo autor com o
objetivo de discutir o papel do professor atual, que precisaria transpassar uma realidade
demasiadamente veloz para ser capaz de encontrar o aluno enquanto um outro,
potencializando assim neste a capacidade de experiências mais profundas.
Já na sessão de traduções, temos um artigo do próprio Rorty: Democracia e
filosofia. Ali o filósofo delineia um pouco das características gerais de seu pensamento
antifundacionalista; polemizando com fundacionalistas como Jürgen Habermas, Rorty
defende que atualmente a filosofia perdeu o aspecto de uma ‘importância última’ para a
democracia, tendo sido bem substituída pela historiografia. Seu argumento é sobre a
passagem da necessidade de princípios universais que objetivavam dialogar com a
religião, no séc. XVIII, para a condição contemporânea de justificação pragmática,
historiográfica.
Fechando este número, voltamos para o debate educacional, com a resenha de
Marcos Carvalho Lopes do livro de Martha Nussbaum: Sin fines de lucro. Por qué la
democracia necesita de las humanidades. Ali, segundo Marcos, a autora questiona as
demandas da educação em diferentes países, como Índia e Estados Unidos, perguntando
sobre a compatibilidade ou não de uma educação voltada para o crescimento
econômico, e outra para a formação da cidadania. Esta questão estaria diretamente
ligada à construção de valores democráticos através de virtudes socráticas que
contribuiriam na qualidade da vida em sociedade.
Frederico Graniço, editor adjunto.
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Notas & Comentários
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Entrevista com Luiz Eduardo Soares
por Marcos Carvalho Lopes
Não é por acaso que em outro artigo de Philosophy and Social Hope (p.229)
Rorty chama de “filósofo” o seu amigo Luiz Eduardo Soares (daqui pode diante LES).
O filósofo pragmatista considerava que esta é a denominação adequada para alguém que
“remapeia a cultura, isto é, sugere um modo original e promissor de pensar a relação
entre vários setores da atividade humana” (PSH, p.175). Esta definição da atividade
filosófica é útil por ser provacativamente parcial, descartando aqueles que
tecnicamente/profissionalmente desenvolvem a escolástica de seu tempo. De modo
deweyano, toma a filosofia como mediadora entre o velho e o novo, como uma terapia
direcionada para o futuro, ajudando a descartar formas de retórica e terminologia
antiquadas que obstruem o progresso da Democracia. A filosofia ganha um sentido
utópico, não como uma forma de conhecimento, mas sim como “uma esperança social
concentrada em fazer acontecer um programa de ação, uma profecia para o futuro”.1
Rorty conhecia a tentativa de LES de escrever o romance da violência (no Rio
de Janeiro), abrindo espaço para que a Utopia de uma transformação na segurança
pública gerasse um novo pacto de sentido; uma redescrição poética da sociedade
brasileira e de sua forma de lidar com a violência. LES foi orientado por Rorty em seu
pós-doutorado em 1995 na Universidade de Virgínia; um encontro que transformou a
trajetória do pensador brasileiro potencializando seu movimento da teoria para à
narrativa; assim como, de sua evasão do academicismo nos sentido de desenvolver a
condição de intelectual-público politicamente ativo e comprometido com o melhorismo
democrático.
LES se filia ao melhor da tradição pragmatista comprometendo-se com o
trabalho contínuo de, não meramente distinguir ou cuidar das diferenças entre lobos e
cães2, mas de procurar converter/redescrever o Estado – de lobos – fundando no medo
1
“Philosophy,” Dewey wrote, “is not in any sense what-ever a form of knowledge.” It is, instead, “a
social hope reduced to a working program of action, a prophecy of the future.” (PCP, p.ix APUD: John
Dewey, “Philosophy and Democracy,” in The Middle Works , ed. Jo Ann Boydston (Carbondale:
Southern Illinois University Press, 1982), vol. XI, 43 ).
2
Platão na República compara os guardiões necessários para a segurança de sua polis com cães,
alertando que estes deveriam ser educados com todo o cuidado já que “Para os pastores, a cosa mais
tremenda e mais vergonhosa de todas é criar cães para os ajudarem a cuidar do rebanho, de tal modo que,
devido à falta de disciplina, à fome ou a qualquer outro mal costume, se pusessem eles mesmos a tentar
fazer mal as ovelhas e a assemelhar-se a lobos, em vez de cães” (República 416 a). Não por acaso,
Trasímaco é retratado no começo da República (336b) como um lobo pronto para atacar. O cuidado com
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em uma sociedade que pressupõe a confiança mútua.
Em verdade, hoje provavelmente Rorty concordaria em descrever LES como
fez Paulo Ghiraldelli recentemente: ele é um poeta que procura reconstruir a confiança
prosaica na segurança pública, e que, na medida em que desenvolve seu poema constrói
a si mesmo criativamente. Justificando estas duas denominações existe a força de uma
obra que ultrapassa as fronteiras disciplinares e recoloca, para cada um que trabalha nas
Humanidades, a interrogação acerca do sentido de sua posição como intelectual.
A entrevista a seguir foi realizada em 12 de Janeiro de 2012 e, através dela
podemos entender o que Rorty respresentou na trajetória de Luiz Eduardo Soares e
como ele adaptou e se apropriou criativamente da obra do filósofo norte-americano.
O senhor fez seu pós-doutorado com o Rorty. O que em seu pragmatismo lhe
interessou e que gerou sua aproximação do pensamento dele? O que é útil no
pensamento dele para você?
Luiz Eduardo Soares: Se trata muito mais de um encontro entre alguém que fazia
investigações e pesquisas em torno de algumas questões obsessivas e tinha sido capaz
de negar os tratamentos disponíveis, mas não de formular uma solução satisfatória – que
era eu – e alguém que estava muito adiante e que havia incorporado e respondido essas
questões, oferecendo um ponto de vista satisfatório. Então, o momento em que eu
conheci a obra do Rorty foi muito especial, porque eu não fui impressionado pela obra
do Rorty. Eu encontrei na obra respostas para perguntas que eu publicara, que eu vinha
publicando há vinte anos. Então, de fato, foi um encontro muito maduro nesse sentido.
E qual era a pergunta? Eu desde a graduação, no final da graduação, comecei a me dar
conta de que havia uma questão que, na época, eu, com muito cuidado, porque sabia que
era insatisfatório e que rapidamente dava margem para todo tipo de classificação
desqualificadora etc., chamava de criatividade ou de liberdade do sujeito. Eu não
poderia reificar esse sujeito e nem tratá-lo como um ente metafísico demiurgico, nem
como um sujeito transcendental kantiano. Não se tratava de uma condição de
possibilidade, e sim, ao contrário, de um insurgente materializado com corpo,
corporeidade e dimensões inconscientes que rompia com as estruturas ainda que essas
fossem sempre relevantes. Então, já na graduação, eu me perguntava sobre a parole,
a diferença entre lobos e cães reaparece no Sofista numa analogia entre filósofos e sofistas, “como a entre
o animal mais selvagem e o mais doméstico” (Sofista 231 a).
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estudava literatura, estudava linguística, estudava Saussure. Langue/parole, essa
dualidade. Como é que a parole se realiza? Ela não é uma execução da langue. E depois
encontrar, tantos anos depois em Wittgenstein, questões semelhantes, reformuladas, mas
que eram de fato relevantes. Chomsky oferecia a transformacional, soluções que eram
respostas estruturalistas e neo-estruturalistas, claro que gerativo-transformacionais, mas
que eram modulações das formulações estruturalistas. Durkheim no funcionalismo
pensava nas grandes estruturas e na forma de desempenho. E eu fui procurar na filosofia
da linguagem de Austin muitos anos depois os atos de fala, os atos de palavra e eu via
remições a Marx que não eram muito bem incorporadas, de um Marx que focalizava as
ações para além das estruturas, causalidades etc. Evidentemente, sabendo que o terreno
era muito perigoso. O terreno da metafísica, em que categorias já conhecidas nos
capturariam rápida e facilmente para uma filosofia da consciência, uma filosofia
metafísica já gasta e despotencializada. Como trabalhar o problema da potência, o
problema da intervenção, o problema desse dispositivo, desse sujeito operando. Então
71, 70, 71, 72, o estruturalismo não me oferece uma solução. O marxismo, cada vez
mais marcado pelo estruturalismo, exorciza essa questão complemente. A linguística,
remetendo para a semiologia e para a velha dicotomia – como se a dicotomia fosse
suficiente – langue/parole e o transformacionismo chomskiano. A filosofia da
linguagem não avançava e aí eu cheguei a Wittgenstein. Aí foi um salto extraordinário e
eu chego aos exegetas de Wittgenstein. O que significa seguir uma regra? Agora
estamos chegando muito próximos de questões-chave para compreensão, seja da
linguagem, seja do funcionamento da vida social, seja para as problemáticas atinentes
ao sujeito e às questões relativas ao inconsciente. Lacan me abria perspectivas, mas que
também rapidamente se fechavam, num discurso autorreferido pretensamente positivo,
neopositivo. Não é a toa que formou suas Igrejas de seita, seus gráficos etc.,
solucionando os problemas ainda que ele tenha formulado as questões referentes ao
sujeito de uma maneira extraordinariamente fascinante. Para mim, muito marcante.
Lacan foi muito marcante, mas no fundo eu sentia ali uma sonoridade. Eu sentia uns
ecos hegelianos, de uma dialética que, entretanto, era evidentemente abortada num certo
momento, para que uma suposta ciência neofreudiana fosse apresentada. Então, não era
confortável. Deleuze começa a trabalhar essa questão muito fortemente. Ele tem um
parentesco com Espinosa e traz o problema não mais apenas do desejo dessas formas de
potência e da intervenção, mas o afã teoricista muito marcante na tradição francesa
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Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 3, 2013
acaba subvertendo a totalização de uma filosofia plena um tratamento que poderia se
mais fértil e era para mim insatisfatório. Eu, entretanto, seguia com o problema,
procurando apresentá-lo em suas faces mais triviais, e era muito curioso porque
ninguém respondia as minhas interpelações, os meus questionamentos, nem meus
colegas, meus professores... e a maioria desqualificava o próprio problema. Era uma
situação angustiante. Eu me lembro, por exemplo, de uma exposição, de novo... eu tinha
me reportando a Lúcia do Prado Valadares, falando sobre o fato de ela ser mediadora,
por ter convidado o professor Rene Lourau, ela era anfitriã. Agora eu me reporta a ela, a
uma palestra que ela deu no Museu Nacional. Eu me lembro que eu estava entrando no
Museu, estava realizando o mestrado no Museu em Antropologia e ela tinha terminado
sua tese “Vende-se uma casa”, “Passa-se uma casa”, sobre mercado imobiliário e ações
sociais etc. E ela nesse momento, foi expor o seu trabalho sobre as crises urbanas no
Brasil, os conflitos urbanos que estavam surgindo, quebra-quebra em trens, alguns
sinais, alguns sintomas de que a sociedade começava a dar mostras de inquietação para
além dos controles repressivos que até então impunham-se e silenciavam toda
sublevação. Era muito interessante porque eu ouvia a exposição, que era rica,
interessante, repito, e fazia eco ou depois foi matriz inspiradora de outros tantos
trabalhos, uma série de trabalhos interessantes, todos eles mais ou menos seguindo as
mesmas linhas. E, para simplificar, eu fiz uma intervenção no final da palestra dela
dizendo o seguinte: “Parece que há subjacente a toda reflexão uma espiral conceitual,
teórica. Partem de estruturas mais amplas até determinantes mais imediatos,
contextualizando o evento que é o objeto da reflexão, da pesquisa e, no entanto, falta
sempre um liame, um elo, um laço entre o contexto e o evento. Por mais que se
especifiquem as causas imediatas, as determinações, as condições favoráveis, continua
sendo absolutamente misterioso, enigmático e ininteligível emergência do evento. Tanto
que você tem as mesmas condições alhures e não o evento, assim como você tem a
língua e não o poema. E o poema só existe depois de ter sido escrito e ele é em si
mesmo sua razão de ser e se esgota em si. Há, evidentemente, condições necessárias. É
preciso que haja o poeta, a pena – pare remeter ao século XIX, o papel e a língua e a
tradição e os outros poetas etc., mas isso não basta.
Nenhum poema basta para a poesia, não é.
Luiz Eduardo Soares: Nenhum poema basta. Então, como não há aí encapsulado, não
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há uma irracionalização, o mascaramento de uma interrogação que deveria ser objeto de
nossa interpelação. Será que não há aí nos escombros de uma imensa construção, por
fora magnífica e aparentemente intocável na sua coerência interna, não é que não há um
abismo insondável que é o sujeito e sua liberdade, o seu gesto, o seu ato. E falar disso é
muito difícil; é mais fácil falar no negativo porque senão de novo nós somos capturados
por uma linguagem facilmente desqualificável. O problema não é o mesmo da criação
estética em alguma medida, inevitavelmente guardadas as distinções, mas há uma certa
[especificidade]... pois bem, o problema não era reconhecido, era desqualificado
sempre. As respostas nunca me satisfizeram e, no entanto, isso permanecia. Eu trabalhei
essa questão em “Trotski e travesti”, mostrando como Trotski confundia causalidade
com verossimilhança e como o gesto, o momento, o evento – eu não utilizava a palavra
contingência, posso ter usado, mas não no sentido rortyano aí –, como essa questão era
decisiva. Eu escrevi um texto, “Os impasses da cultura e a precariedade da ordem
social” e eu fui, me tornei professor da UNICAMP, em 1983, e publiquei no caderno da
UNICAMP, acho que de número 13. Depois, eu publiquei um outro texto dando
sequência a esse. Eu tinha escrito esse texto já num trabalho de fim de curso no IUPERJ
quando comecei o doutorado em 1981, 1980. Enfim, essas eram questões sobre as quais
eu escrevia na passagem da década. Eu fui reprovado no Museu Nacional, porque eu
tinha tido... eu tirei primeiro lugar quando entrei no Museu. Havia 98 ou 99 candidatos
em 1975. Eu comecei em março de 1976, tirei primeiro lugar. Fiz ótimos cursos, com
excelentes notas, fui um dos primeiros, o primeiro ou o segundo a terminar a tese de
mestrado. A tese foi depois publicada etc. Quando eu fiz, então, o exame para o
doutorado, eu achava que eu seria aprovado porque havia mais vagas do que candidatos
e eu tinha um histórico muito bom. Então, eu apresentei de uma maneira diferente, mas
no fundo eu apresentei essa grande questão que já era minha questão, para ser
trabalhada teoricamente no doutorado da antropologia e tal, discutindo teorias da
cultura, discutindo marxismo, discutindo o problema da agência e as implicações disso.
E aí eu usava e mobilizava discussões que se davam na filosofia e na própria
antropologia, linguística etc. Mas não era arrogante ou pretensioso, ao contrário. Eu fiz
um esforço grande para deixar bem claro que as questões estavam todas abertas. Eu
estava ali buscando aprender, ouvir dos professores e buscar o amadurecimento dessas
dúvidas. E elas me perseguiam desde o início e eu não tinha encontrado soluções, mas,
de fato eu fiz um esforço, no entanto, de não apresentar ali “invenções da roda”, de
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Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 3, 2013
modo algum. Bom, apesar de ter mais vagas que candidatos eu fui reprovado. Até isso
gerou uma crise lá no Museu, havia problemas políticos internos com meu orientador
que não estava presente, essas coisas. Mas o que importa é que era uma declaração da
instituição de que era a minha questão semostrava impertinente. Está certo, pelo menos
naquele grupo que fazia a seleção. Porque não era falta de vagas, repito, e eu nem tinha
um mal histórico, ao contrário eu apresentei essa mesma proposta para a professora
Ruth Cardoso, que me aceitou na USP. Apresentei para o professor Roberto Cardoso,
que me aceitou na UNB. Apresentei no IUPERJ, fui aceito. Eu preferi ir para o IUPERJ,
porque a UNB não conseguiu abrir o doutorado, porque o reitor era um coronel ligado à
Ditadura – Azevedo, acho –, que perseguia o Roberto Cardoso e proibiu a abertura do
doutorado. A professora Ruth foi super generosa, acolheu-me, mas para eu ter a bolsa da
Fapesp, [que] seria fundamental para eu sobreviver, eu teria que morar em São Paulo.
Eu não podia. Eu tinha acabado de ter filha, ela tinha acabado de nascer. Eu dava aula e
eu tinha que continuar mantendo as aulas porque tinha que sobreviver. Então, não tinha
como ir, mas, surgiu a possibilidade de ir para o IUPERJ, e foi assim que fui para o
IUPERJ. Mas eu estou te contando esse... foi a minha grande frustração na vida
acadêmica essa reprovação para o Museu que era inesperada, que foi de alguma coisa,
de fato uma declaração político-intelectual contra essa questão; e professores da banca
diziam, alguns deles, que era uma questão resolvida, estava arrombando portas abertas,
dando tiros de canhão para matar mosquito. Que isso é bobagem, que a teoria da cultura
tinha resolvido isso. Que o marxismo tinha resolvido isso. Bom, e eu escrevi depois A
indeterminação da subjetividade e a... esqueci o título.3 O texto, um texto longo que
dava sequência ao impasse da teoria da cultura e precariedade da ordem social,
publiquei em Campinas, depois escrevi “Luz Baixa Sob Neblina”, que, alguns anos
depois foi publicado na Revista Dados e depois, foi publicado num dos meus primeiros
livros ou... “ Os Dois Corpos do Presidente” ou “O Rigor da Indisciplina”4. Se você
algum dia tiver oportunidade de ler os vários ensaios que eu escrevia sobre a teoria da
cultura, sobre filosofia, antropologia, sobre filosofia, filosofia política, e sociologia,
sobre teoria da cultura rá rá rá, você ia verificar que eu sempre tratava desta questão
[utilitária], no positivismo eram os meus antípodas, mas o estruturalismo e as soluções
3
Trata-se de “Subjetividade indeterminada, ceticismo da razão sociológica e o colapso da identidade
social: fragmentos de uma reflexão em curso”. In: Linguagem e fundamentos da ciências humanas e
sociais. Rio de janeiro: PUC, 1983.
4
C.f. “Luz baixa sob neblina: relativismo, interpretação e antropologia”. In: O rigor da indisciplina. Rio
de Janeiro: Relume-Dumará, 1994. p.71-95.
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dialéticas não me serviam, as soluções metafísicas e a questão do sujeito da poiesis, eu
não usava essa expressão. E digamos, da autonomia do evento, se colocavam para mim
como absolutamente chave e isso traria impactos muito profundos sobre o que gente
vendia por ciência social por política, por filosofia, política etc. Sem evidentemente
adotar uma perspectiva voluntarista, demiúrgica, ou do grande líder ou do desapreço
pelas estruturas, pelas condições. Não se tratava disso, porque justamente o trabalho da
poiesis ou do poeta é dialogar com as suas condições linguísticas, com o seu passado,
com a influência... com a angústia da ansiedade da influência, da palavra etc. Então,
num certo momento, eu acho que, por mediação do Jurandir Freire Costa, se não estou
enganado, caiu-me um livro do Rorty no colo acho que foi Contingência, Ironia e
Solidariedade. [...]. Eu acho que eu li uma resenha do Jurandir Freire Costa. Fiquei
inteiramente perturbado positivamente. Porque estaria discutindo as questões às quais
eu vinha escrevendo com outra linguagem há séculos. E então eu liguei pro Jurandir que
eu já conhecia e admirava. O Jurandir vinha estudando o Rorty, falou-me sobre o livro.
Na época era muito difícil de a gente conseguir os livros americanos. Ia ter que
importar. Eu consegui, então, que ele me emprestasse, fiz logo uma cópia e comecei a
ler todas as coisas do Rorty. Fiquei impressionado. Mas impressionado porque não foi
aquela descoberta de encanto novo que te abre caminhos, foi o apaziguamento de
tensões que eram ali já, entre aspas, “imemoriais”, virando atávicas. Claro que as
soluções não estão todas dadas, nunca estão. Não é disso que se trata, mas foi possível
encontrar uma outra maneira de falar sobre as grandes questões que me perturbavam e
que me inspiravam de uma maneira muito produtiva e fecunda. E eu percebi que eram
questões autênticas absolutamente legítimas. Se eu tivesse tido um interlocutor um
pouquinho mais sensível e atento, que conhecesse esta outra possibilidade, há algum
tempo eu teria já sido encaminhado para leituras que me teriam ajudado muito.
Infelizmente no campo das ciências sociais, as pessoas se leem mutuamente pouco a não
ser em determinadas condições. Então, aqueles que talvez pudessem ter tido
oportunidade de me ajudar não souberam do que eu fazia, não conheciam as minhas
dúvidas. O fato é que eu permaneci solitário e o psicanalista Jurandir [Freire Costa], que
naquele momento estava trabalhando com o Rorty, foi quem me fez conhecer esta
alternativa. Isso, portanto, bem depois do Filosofia e o Espelho da Natureza, né?
Então foi assim, eu conheci a obra do Rorty quando eu já estava em velocidade cruzeiro
tentando lidar com questões que me atazanavam ao longo de quase duas décadas, uma
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Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 3, 2013
década e meia. E foi muito, muito feliz este encontro para mim.
Você e Rorty tiveram um debate sobre globalização e políticas ligadas à ideia de
identidade. Em quais pontos você se distancia de Rorty?
Luiz Eduardo Soares: Não sei, eu acho que o Rorty, pelo fato de não ter esta formação
antropológica, era mais um homem do ocidente, da sua geração, do meio urbano, um
norte-americano e que as grandes questões não eram as questões relativas à diversidade,
não eram relativas ao um pluralismo mais profundo, mas diziam respeito a distinções
entre vocabulários para descrever experiências e realidade etc. Eu acho que há uma
diferença aí em algum nível político e há uma diferença cultural e até estética na medida
em que de fato o Rorty não incorporou a temática cultural, a temática antropológica
cultural e etnológica, né? E para isso as diferenças que estão no mundo são as diferenças
entre as filosofias. E as filosofias são aquelas conhecidas e apresentadas nas
universidades ocidentais. E ele estaria aberto a considerar qualquer outra, como ele
disse várias vezes, desde que qualquer outra fosse lhe apresentada. E quanto ele dizia
que outras não seriam apresentáveis, que não se davam a ver por apresentação, neste
mesmo sentido, não seriam descrições deste tipo, seriam teorias ou passiveis teorizações
desse tipo, ele sequer compreendia. Eu sugeri que ele lesse Eduardo Viveiros de Castro,
e alguns autores da etnologia. Cultura, pelos menos para mim, eu diria que é a cultura é
muito mais do que um vocabulário, porque envolve profundamente emoções e forma de
funcionamento do sujeito em níveis muito profundos, em toda sua sensibilidade, de tal
maneira que o sujeito não se forma senão já a partir deste campo, que não é um campo
apenas de descrições possíveis, sim de vivência e experiência. E aí há uma outra questão
derivada que também nos afasta, que é o sentido da experiência, quer dizer, a linguagem
de Lacan faz sentido para mim, assim como uma linguagem mais existencialista, e isso
não fazia sentido absolutamente para Rorty. Quando eu pensava o sujeito como
manifesto nas suas ações e nas suas palavras, mas sempre se furtando a dar-se porque
não está ali no lugar em que, entretanto, aparece, na descrição lacaniana, do sujeito na
linguagem, que é o sujeito não substancializável, e perfeitamente compatível com a
visão não existencialista e não fundacionalista do Rorty, mas um sujeito que é
atravessado por linguagem ou você poder dizer também experiências, das quais ele não
dá conta, que o ultrapassam. Que, no entanto, só se dão a conhecer ou a compartilhar
por seu intermédio em alguma medida sem que ele, seja senhor desta reconfiguração no
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Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 3, 2013
sentindo consciente racional. Aí é complicado. Eu acho que a formação da filosofia
analítica faz com que a psicanálise escape. A não ser numa formulação muito cartesiana,
quase positivista. E faz com que a multiplicidade cultural escape, e por isso também o
sentido da política passa a ser um sentido mais reduzido. Ele, por exemplo, me
convidou para falar num seminário que organizou, e cuja finalidade era criticar a visão
dos derridianos de que há política na desconstrução, na desconstrução e no discurso
deste tipo, quando para ele, por mais que ele respeitasse Derrida, política se dá no
movimento social, no sindicato, no partido. Ele queria politizar estas questões. Ele
estava irritado com esta pseudopolitização da universidade americana que reduzia tudo
à teoria, e a boa política era a política da teoria. E eu não concordava com o Rorty. Eu
achava que, apesar de compreer a sua posição, também compreendia a posição dos
derridianos. Eu também achava que era também política a atitude, a intervenção que
eles faziam, porque se tratava de recompor, de reconfigurar uma própria possibilidade
de subjetivação. E isso escapava, isso escapava. Então não estou dizendo que eu
soubesse o que ele não sabia. Não tenho esta ousadia. Nós tínhamos visões um pouco
distintas e a questão da experiência e do sujeito e a problemática da multiplicidade
cultural nos afastava. Aí é claro que, então, a utopia ficava lascada por isso. Eu não
quero dizer com isso de modo algum que ele seja um pensador burguês, pelo amor de
Deus, como ele dizia, porque ele podia dizer, mas eu não posso. Porque ele fazia isso
com auto ironia etc. Burguês no sentido que nós todos somos burgueses sim, óbvio, aí é
uma discussão sociológica, mas poder-se-ia dizer que ele é um americano de sua
geração, um burguês brilhante, muito aberto e democrata, mas que vê o mundo de
Stanford ou de Virginia ou de Chicago etc. e que não incorporou as dimensões mais
profundas da peste psicanalítica, da experiência que naufraga por conta da implosão do
sujeito e que não dá conta do problema da multiplicidade cultural antropológica e
etnológica. Para mim isso é muito forte e tem impacto, evidentemente, da política.
Agora dizer isso não significa desmerecê-lo, pelo amor de Deus. E ele é... Há uma
dimensão também prática da vida dele, que ele não era nada disso. Ele era das pessoas
mais compassivas e generosas que eu já conheci. Fazia pacotes de livros e gastava uma
nota mandando livros para quem não podia comprar, para quem não podia ler ou pra
quem estava proibido de ler pelo regime político. Ele não aceitava dinheiro de países
mais pobres. Quando recebia o pagamento, fazia questão de gastar tudo no país da
maneira que fosse mais solidária. Não admitia secretários ou secretárias. Isso tem a ver
16
Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 3, 2013
com o pai dele, tem a ver com a mãe dele, tem a ver com a prática sindical. Ele ia ao
correio pessoalmente, buscava, levava correspondência, carregava os pacotes, voltava.
Não admitia esta intermediação de vassalagem, sabe, autoritária etc. Tinha um sentido
socialista no sentido melhor que é o... assegura esse termo humanista, socialista, se você
quiser cristão, ou judaico cristão, ou religioso no sentido de uma solidariedade humana
muito forte, uma repulsa à desigualdade, uma repulsa à injustiça, uma repulsa ao
preconceito, uma repulsa à humilhação do ser humano, sabe? De uma forma muito
intensa. Às vezes, você tem um sujeito que é um líder político que fala estas coisas
todas, e que na sua prática faz o contrário.
Como surgiu o projeto da tetralogia? Já no tempo de seu pós-doutoramento?
Luiz Eduardo Soares: Não, isso foi gerado depois, muito depois. Eu nunca tinha
imaginado aí a tetralogia. O que de mais próximo do que aconteceu depois já existia foi
o seguinte: em 98 antes de ter a minha primeira experiência em gestão pública (e já há
mais de 10 anos que eu estava envolvido com estudos, sobre violência, segurança
pública etc.) eu propus ao George Marcus, o antropólogo que na época estava em Rice
no Texas e agora está numa Universidade da Califórnia em Irvine. Ele veio ao Rio no
seminário que eu organizei. Nós somos amigos há muito tempo. Ele editava uma
coleção muito interessante chamada Late Editions na Universidade de Chicago. Eu até
publiquei um capítulo num dos livros que ele organizou do Late Editions.5 Eu propus ao
George e ele topou, e eu estava muito empolgado com este projeto fazer, uma pesquisa
que me permitisse trabalhar diferentes vozes, em que eu pudesse descrever o cotidiano
da produção simbólica e existencial da violência em política, em matizes distintos em
dimensões diferenciadas simultaneamente. Em que eu teria os bastidores de governo em
níveis diferentes. Os bastidores institucionais em níveis diferentes. As unidades
institucionais distintas e em níveis hierárquicos diferentes. O universo médico dos
atendimentos, não só do IML, mas também dos atendimentos de emergência. A
imprensa e esta máquina de redescrição cotidiana. A imprensa e a mídia em geral. Eu
escolheria espaços especialmente relevantes para isso. Achava que uma descrição de um
processo durante um período, um ano, trabalhando cotidianamente a produção da
5
Cf. SOARES, Luiz Eduardo. “A toast to fear: ethnographic Flashes and Two Quasi-Aphorisms”. In:
MARCUS, George (ed.). Paranoia within Reason: A Casebook on Conspiracy as Explanation.
Chicago: University of Chicago Press, 1999 p.225-239.
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Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 3, 2013
noticia – o trabalho da reportagem, corta, recorta, faz a bricolagem, compõe e edita,
incorpora contextos, ressignifica, troca, cita –, isso com suas múltiplas vozes, porque a
mídia é multi vocal, com as práticas de governo e as práticas também médicas e o
sofrimento diretos das famílias, vítimas etc. Eu teria possibilidade de compor um
discurso muito interessante e rico, e que tinha a ver com um texto que eu publicara no
Violência e Política no Rio de Janeiro, chamado “O Herói Serial”6 e com um texto
anterior que o título agora me escapa. Ah, eu acho que é o “Mágico de OZ”7, alguma
coisa assim. Eu escrevi dois textos sobre novos desenvolvimentos sociais e sobre o Viva
Rio etc. E ali já apresentava uma descrição inicial sobre a construção multivocal da
violência como parte social e parte social total inclusive. Eu já apresentava indicações
que conduziram a uma pesquisa nesse sentido. Nesta pesquisa, eu apenas desdobraria o
que ali já se encaminhara ou se indicara em possibilidade, em hipótese interpretativa e
operacional, metodológica etc. O George achou ótimo, ficou animado e eu estava
superencantado com esta possibilidade. E eu estava participando da campanha ao
governo do Estado. Anthony Garotinho era o candidato ao governo do Estado. Como
hoje ele tem uma imagem tão degradada, tão deteriorada, que é sempre muito difícil 10
anos depois ou 11 anos depois ou 12, você explicar este personagem, dado que ele
continua ativo e hoje tem outro significado. Naquele momento era o candidato apoiado
pelas esquerdas que se opunham ao candidato César Maia, apoiado pelos conservadores,
com um discurso muito duro, contrário aos Direitos Humanos, que apontava numa
direção muito perniciosa na área da segurança pública, da violência, no campo criminal
etc. Então não havia dúvida nenhuma na minha tribo, na comunidade de meus
interlocutores, quanto ao que fazer nas eleições. Alguns anulariam o voto porque veriam
já criticamente o Garotinho e lá na frente teriam sua razão. Mas dado que a competição
opunha uma possibilidade de transformação, de inovação com alguns compromissos
que deviam ser assumidos, e um candidato que reiterava o discurso contrário aos
Direitos Humanos etc., para chancelar e oficializar o massacre que tinha ocorrido
poucos anos antes no governo Marcelo Alencar com o General Cerqueira, com
gratificação faroeste. Parecia eticamente justificável que houvesse ali a hesitação, ainda
que a gente compreenda por que alguns tenham decidido anular o voto. Bom, quando o
6
“O Herói Serial e a sensibilidade pragmática”. In: SOARES, Luiz Eduardo et alii,. Violência e política
no Rio de janeiro. Rio de Janeiro: Relume Dumará: ISER, 1996. pp.283-309 .
7
“O Mágico de Oz e outras histórias sobre a violência no Rio”. In: SOARES, Luiz Eduardo et alii,.
Violência e política no Rio de janeiro. Rio de Janeiro: Relume Dumará: ISER, 1996ª, pp.251-272.
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Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 3, 2013
Garotinho venceu e veio me convidar pra participar do governo, eu fiquei muito
surpreso porque a minha expectativa era solicitar que ele abrisse a possibilidade de fazer
aquela pesquisa. Até ao final, inclusive, eu estava conduzindo o grupo de transição,
tinha o papel de conduzir, de coordenar a transição na área da segurança, e até às
vésperas da posse eu não tinha recebido convite nenhum, mas insistia com o Garotinho
para que ele... até porque eu tinha ajudado bastante. Eu tinha escrito livro, tinha ajudado
na orientação na campanha nessa área e essa área tinha sido decisiva para a vitória.
Enfim, tinha dado muita contribuição e achava que merecia que ele abrisse para mim as
portas para que fizesse esta pesquisa. Eu queria fazer esta pesquisa. Bom, quando ele
me convidou, eu, então, troquei a pesquisa pela participação direta. O que acabou sendo
muito vantajoso porque eu tive benefícios de uma nova experiência, que não teria, pela
minha pesquisa. E, por outro lado, percebi claramente o quão ingênuo eu estava sendo
porque não haveria pesquisa alguma, seria inviável. A única pesquisa possível neste
caso, para este tipo de pretensão que eu tinha, era pela imersão direta. Porque a outra só
teria sido viável se eu tivesse o nível de acesso que seria completamente irrealista. É o
tipo de acesso que só se tem quando se está participando efetivamente. O observador
não tem, não pode ter por definição. Isso não existe. Então, acabou sendo, por vias
indiretas, o meio pelo qual eu acabei fazendo o que eu buscava fazer. Eu não fiz em
todas as esferas. Eu não fiz no Instituto Médico Legal e no hospital e nem fiz dentro da
mídia, mas mesmo assim tive um acesso aos editores, aos repórteres e ao seu trabalho
cotidiano que eu nunca tivera antes, com muita profundidade. Porém não foi
evidentemente a observação que poderia fazer. Mas por outro lado deu-me acesso aos
bastidores de governo, bastidores das instituições que eu nunca teria de nenhuma outra
maneira. Portanto, graças a isso, eu pude escrever Meu Casaco de General e muitos
trabalhos subsequentes derivaram desta possibilidade. Então, a tetralogia nasceu mais
tarde de uma maneira muito casual. É claro que essa ideia de múltiplas vozes, de
múltiplas dimensões, meio faulkneriana, da ideia de contar a mesma estória de ângulos
diferentes, simultaneamente, etc. é claro que isso estava presente. Mas isso só foi
possível configurar e se tornar uma realidade um tempo depois. Final de 2002, eu tinha
ajudado o Celso Athayde, meu amigo, a organizar o [prêmio Hútuz] [...] um festival de
Hip Hop que ele organizava todo ano. E era sempre muito difícil organizar. Ele tinha
que trazer gente de todo país e, alugar o salão, fazer a divulgação, realizar iluminação,
aquelas coisas todas que exigem muito recurso. Ele gastava tudo que tinha e o que não
tinha. Vendia o carro modesto que ele tinha, conseguia um empréstimo... não havia
19
Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 3, 2013
muito interesse das empresas em patrocinar. [...] E nesse ano, tentei ajudá-lo. Fui a um
ou outro lugar com ele, para ver se ajudava. Ele ganhou um dinheirinho aqui, outro
dinheirinho alí, mas como sempre acabou com dívidas e superapertado. Ele me ligou:
“Luiz, eu preciso de um empréstimo, vendi meu carro, tudo que eu tinha, tô devendo.
Tenho que dar um jeito nesta situação”. Eu disse: “Celso, eu não tenho um tostão na
poupança, não tenho poupança. Tenho meu ganho mensal, eu não tenho como tirar. Eu
não tenho um carro, não tenho nada. A única coisa que posso fazer nesse momento, a
única liquidez, fonte de liquidez, é o meu contato com editoras e tal...”. E uma editora
tinha um contato comigo e feito uma proposta, se eu tivesse manifestando interesse, se
eu tivesse alguma coisa para publicar porque ela tinha gostado imensamente do Meu
Casaco de General, que disputou o Prêmio Jabuti, ficou no segundo lugar no final,
ficou até o final ali e acabou perdendo. Mas, enfim, eu disse: “Celso, eu posso propor
um livro e pedir um adiantamento, ou alguma coisa assim, e o livro nós dois escrevemos
juntos. Aí, eu te dou o dinheiro que vier e isso vai ser pouco, mas já ajuda. Você topa
uma coisa dessas?”. Aí ele: “Pô, nunca escrevi um livro, mas topo qualquer coisa. Agora
não vou dizer que não. Eu estou precisando de dinheiro, se é esse, vamos lá, vamos
nós.” Eu, “Então tá, então tá, vou a luta.” E falei com a Isa Pessoa, a respeito disso, que
eu tinha a ideia de fazer um livro e se dava para a gente conversar. Ela foi lá em casa,
num sábado. Eu alugava um apartamento com a Miriam ali no Flamengo. E antes da
Isa chegar eu não tinha pensado de fato no que fazer. Eu não tinha nada organizado.
Tinha sido um ano muito político, 2002. Eu fui candidato a vice-governador no Rio,
estava muito envolvido com política. O Lula tinha sido eleito. Eu não tava sabendo o
que ia acontecer no governo Lula, se eu ia participar, como é que ia ser. Tudo uma
enorme interrogação. Eu não tinha plano para nenhum livro. Mas, imaginei: bom, “o
que seria natural?”. Seria legal o [M.V.] Bill também participar. O Celso sempre
trabalhando com o Bill, e nós três fazermos juntos. O Celso também topou isso. O Bill
topou. Então, podia ser que a gente trouxesse a realidade dos jovens envolvidos com o
tráfico nas favelas numa visão mais interna que eles poderiam proporcionar. Eles têm
contatos em comunidades, cresceram em comunidade, têm toda possibilidade de
proporcionar um acesso que eu não teria, por mais que me esforçasse, e por mais que
tivesse outros contatos. Não seria diferente. Então, nós poderíamos escrever e cada um
de nós escrevendo e assinando os capítulos individualmente. Com respeito à
individualidade, com respeito à autoria. Eu faria uma edição geral e tal, só para ajustar,
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Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 3, 2013
mas sem mudar conteúdo, nem o estilo. E nós trabalhando ali no vício, os jovens das
favelas no Brasil e o seu ponto de vista, buscando compreendê-los antes de julgá-los.
Porque eles são desde já objetos de uma ou de outra, ou interpretação sociológica, ou de
um julgamento etc. Vamos ouvi-los. Era um esforço mais vivo de ouvi-los no sentido
mais antropológico, ainda que isso não fosse trabalho acadêmico, com categorias
antropológicas. Muito bem. Eles toparam e eu estava, então, preparando-me para
receber Isa Pessoa e apresentar a ela esta proposta. Aí conversando com Miriam, que me
ajudou a formular esta ideia também, a Miriam disse o seguinte: “Olha, porque você não
propõe uma trilogia? Ao invés de um livro, você propõe uma coleção, uma série. Fica
mais interessante. Tem os meninos... aí você poderia fazer da prisão, os prisioneiros e
depois os egressos. Alguma coisa deste tipo” Aí eu disse: “Pô, interessante, então... tem
razão. Só que eu vou fazer... então, vou propor a polícia, porque eu tenho muito
contato... aí eu faço a polícia, que ainda não se fez. A gente faz os inimigos do tráfico,
os inimigos dos meninos do tráfico, são os policiais, por assim dizer, e depois os presos.
Vamos fazer assim”, “Tá, legal”. A Isa chegou, eu apresentei a ideia e ela gostou
muito.. Contratamos o primeiro, que seria o Cabeça de Porco, foi o Cabeça de Porco.
Passei o adiantamento para o Celso e tal, ele ficou satisfeito e aí tivemos que fazer o
livro. Como eles então, estavam começando a desenvolver, e depois tiveram muito
tempo pra desenvolver, a pesquisa deles mesmos para ro documentário que eles iriam
fazer8, tinham muita entrevista e muita história pra contar nas favelas do Brasil inteiro.
Isso eles foram desenvolvendo a partir daí. Eu fui se Secretário Nacional, só voltei ao
projeto no final de 2003. Então, trabalhei o ano de 2004 inteirinho nesse projeto. No
final de 2003, o ano de 2004 inteirinho e em 2005 no início do ano nós concluímos. Eles
iam mandando para mim ao longo de 2004, desde final de 20003, 2004, eles iam
mandando os textos. A gente se reunia pra conversar e ficou pronto o livro. Quando o
Cabeça tava pronto eu disse: “Bom, então se trata de fazer o outro, né”. Aí eu tinha
vários amigos na polícia e [havia] um deles, que era sempre muito eloquente, com
muitas histórias interessantes. Liguei para o [Rodrigo] Pimentel e propus a ele que nós
fizéssemos um livro que seria a sequência do Cabeça de Porco, mas agora na polícia.
[Perguntei] se ele topava participar comigo. Aí ele topou na hora e disse que seria legal
chamar o [André] Batista. Porque justamente, ele e o Batista, estavam trabalhando com
o Zé [Padilha]. Conversando com o Zé sobre um filme que o ele estava querendo fazer
8
Falcão – meninos do tráfico.
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Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 3, 2013
sobre polícia. Que era bom a gente até se encontrar pra harmonizar as ideias. Ai nós
almoçamos juntos, o Zé Padilha, o André Batista, que eu já conhecia, mas de quem
ainda não era amigo, o Pimentel e eu. Batemos o martelo, “Nós vamos fazer o livro e
eles vão fazer o filme”. O Zé, que já me conhecia pelo Ônibus 174, o documentário que
é um excelente, sensacional trabalho. Eu dou uma longa entrevista para ele no 174. A
entrevista que eu dei foi mediada pelo Pimentel, o Pimentel até que sugeriu, que levou o
Padilha à minha casa, até nessa mesma casa, apartamento, lá no Flamengo. E o Padilha
disse que essa entrevista mudou o filme. Que ele tinha um roteiro, mas fez outro roteiro
que é todo costurado por essa entrevista, e a questão da invisibilidade organiza todo o
filme. Dado que a entrevista foi tão importante e eu adorei o filme, nós criamos esse
laço mais profundo e ele ficou muito satisfeito, então, com a ideia. Nós faríamos um
trabalho, de certa forma conjugado, em diálogo. Não é que o livro seria a base do filme,
nem o filme base do livro, mas ele ia fazer o roteiro. Estava começando a esboçar o
roteiro, eu faria o livro e nós íamos trocando figurinhas e isso seria bom pra todos. Ele
já tinha o título Tropa de Elite. Aí eu na hora disse assim: “o meu é Elite da Tropa”
para a gente manter justamente a ideia da complementaridade e da diferença que
oficialmente tínhamos. Vamos ter as mesmas fontes e as nossas intenções são as
mesmas: criticar a violência policial, mas entendendo como é que os policiais, eles
próprios, tantas vezes são vítimas também no processo do qual são algozes –
paradoxalmente –, porque eles estão educados numa certa cultura e conduzidos a uma
certa prática, sem que isso venha abolir a sua responsabilidade individual ou até a
história. Mas as intenções são as mesmas, as fontes seriam as mesmas e as histórias as
mesmas. Bom, fizemos o Elite da Tropa 1, depois o Elite da Tropa 2. A tetralogia...
como você vê, o mergulho no mundo dos meninos para compreendê-los antes de julgálos, o mergulho no universo policial para compreendê-los antes de julgá-los, ainda que
as questões fiquem bem claras, é claro. E, então, faltava a... surgiu, surgiu não estava
previsto. Eu não fiz a prisão e não escrevi sobre prisão. Isso aí nós resolvemos encerrar
num par, seriam só dois livros. Depois veio o terceiro livro que é Elite 2. Mas como é
que esses três livros viraram uma tetralogia? Porque surgiu o Espírito Santo, por uma
proposta do Carlos Eduardo [Ribeiro Lemos]. Ele é um juiz criminal, que era juiz
criminal, na época, do Espírito Santo e do Rodney Miranda, que à época era secretário
de segurança do Espírito Santo. Quer dizer, quando eles me formularam a proposta, o
Rodney já não era secretário, depois ele voltaria a ser. Ele teve um interregno aí, foi
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Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 3, 2013
secretário em Pernambuco, saiu do Espírito Santo. Nós fomos a Pernambuco em um
seminário, eu e o Carlos Eduardo e o Rodney me apresentaram a ideia: “Será que você
toparia escrever conosco um livro como escreveu o Elite?”. Porque no Elite foi eu que
escrevi, o um e o dois eu é que escrevo sempre, da primeira à última palavra... o acordo
é que eu escrevo. Mas as história no Elite 1, todas as histórias da primeira parte do livro
ou praticamente todas elas, são histórias que o Pimentel e o Batista levantaram. Na
segunda parte são histórias minhas, mas fui eu que escrevi porque o meu interesse era
justamente com a elaboração literária proto-cripto-ficcional e cívica. No Elite 2, são
histórias do Cláudio e dos processos que ele me trouxe, sobre as milícias, com história
minhas pessoais e de Marcelo Freixo. Então eu... ou uma ou outra história do Batista e
Pimentel salteado. Bom, o Espírito Santo, então foi feito assim também. O acordo era:
“Eu escrevo, mas vocês me dão as informações todas. Todos os processos. Vocês me
abrem todas as portas e me trazem entrevistas. Vocês tem que me trazer o conteúdo
porque vocês viveram o processo e eu não vivi, não conheço, só a distância”. Então,
eles trouxeram todo o conteúdo, todas as histórias, toda a documentação e eu escrevi.
Com isso, a gente viu que foi se formando, de fato, uma tetralogia. Porque o Espírito
Santo, na verdade, é uma incursão pela corrupção no judiciário. Não só no governo e na
polícia, no judiciário. Então, nós temos o mergulho no mundo dos jovens envolvidos
com a violência das comunidades e favelas brasileiras, o mergulho no mundo policial,
na violência policial, um mergulho na brutalidade, na crueldade do judiciário, da
corrupção do judiciário e, de novo, na polícia, mas agora mais pelo âmbito das milícias.
E há procedimentos comuns, são sempre vários [autores], ainda que eu sempre escreva.
Com exceção do Cabeça. O Cabeça não fui eu que escrevi, escrevi os capítulos que
assino, o Bill escreveu os capítulos que ele assina e o Celso, os capítulos que ele assina.
Mas os outros livros foram escritos por mim. Isso são, de qualquer forma, trabalhos
modulares, envolvem outros autores que eu me recuso a tratar como fonte porque eles
são fundamentais para o livro.
Em relação à possibilidade do primeiro livro, que eu acho é a possibilidade do
projeto como um todo, de transformação pela literatura, de transformação pela
escrita. É essa a vinculação mais forte com a obra de Rorty?
Luiz Eduardo Soares: Uma das vinculações é essa da empatia. Quando ele dizia: “Esse
não é mais momento dos tratados filosóficos. Nós não vamos construir a paz perpétua
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Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 3, 2013
entre as nações persuadindo com a razão e difundindo e universalizando a filosofia que
esposamos. Nós precisamos de mais etnografias, reportagens, documentários, filmes,
romances, porque nós precisamos criar condições para gerar uma comunidade pela
empatia, por reconhecimento do valor individual e por aproximação humana no sentido
compassivo para que as emoções façam o trabalho que a razão não foi capaz de
desempenhar, de realizar”. Então, há uma dimensão, há uma aproximação clara com
essa ideia porque eu durante lá 30 anos da minha vida, por aí, 25 ou 30 anos, escrevi os
tratados. Fui lido por mil, dois mil, três mil pessoas que são os meus amigos, a minha
família, né? Eu não os persuadia nem era por eles persuadido, porque nós sempre
concordamos
quanto
ao
fundamental.
Nós
nos
enriquecíamos
mutuamente
complementando o conhecimento recíproco com a nossa colaboração, com o nosso
trabalho pessoal, mas na comunidade nós já somos todos – com raríssimas exceções –
defensores dos direitos humanos, nós defendemos a justiça e a democracia. Há uma
comunhão entre nós e, portanto, se, e quando lemo-nos mutuamente, enriquecemo-nos
mutuamente é claro, mas não expandimos muito a nossa visão, não difundimos a nossa
visão, não alcançamos a sociedade com um impacto maior como gostaríamos. Então,
escrevendo livros capazes de emocionar, de sensibilizar, de dialogar com o imaginário
coletivo, criam-se possibilidades novas de interlocução. Novos atores descobrem a
leitura, descobrem o diálogo como forma de construção de opinião, de visão de mundo,
de desenvolvimento de sensibilidade de emoção. O jogo empático atravessa fronteiras e
de fato amplia as possibilidades de intervenção no debate público em sentido político
também.
Parece-me paradigmática para a construção do próprio projeto da tetralogia a
história do Marcinho VP e a relação dele com a literatura, como contada no Cabeça
de Porco.9 Essa crença na transformação através da literatura, dela como abertura
9
No livro Cabeça de Porco, Luiz Eduardo Soares narra um pouco da trajetória do traficante Márcio
Amaro de Oliveira, o Marcinho VP, conhecido traficante de drogas que foi retratado em um livro (do
Caco Barcellos) como o Abusado: o dono do Morro Dona Marta. Na verdade, Marcinho VP ganhou
notoriedade quando foi protagonista do documentário de João Moreira Salles, Notícias de uma guerra
Particular, assim como, pelas entrevistas que deu quando negociou a autorização para que Michael
Jackson subisse o morro para filmar um clip. Aqui, o que nos interessa saber é que a partir do contato com
João Moreira Salles, Márcio começou a desenvolver o sonho de deixar o crime e escrever uma
autobiografia. No entanto, sua tentativa de fugir da imagem de “bandido perigoso”, de reescrever sua
história, acabou de modo trágico: “Preso, Márcio decidiu voltar às leituras. João [Moreira Salles] lhe
fornecia livros. Mostrou-se aplicado nos estudos, comentando cada texto com argúcia e entusiasmo:
Machado de Assis, Lima Barreto, Sérgio Buarque de Holanda e vários outros. Por ocasião do lançamento
do livro sobre sua vida [de Caco Barcellos], revelou a parentes e amigos os riscos que pressentia. Ele já
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Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 3, 2013
para redescrição do sujeito. Você mantém esta crença?
Luiz Eduardo Soares: Eu, se você me permite, redefiniria a questão porque não se
trata de transformar alguém na medida que não há esse alguém substantivamente dado é
ex-ante, né? Você tem um processo sempre de subjetivação. Alguém que passa o seu dia
lendo é alguém diferente como ator concreto, substantivo, sociológico de alguém que
passa o seu dia jogando carta e fumando e organizando ações para agredir terceiros. Há
uma mudança comportamental, empiricamente constatável. O Marcinho que passava os
seus dias na prisão lendo os livros que o João [Moreira Salles] levava era o Marcinho
ator concreto diferente do Marcinho que antes atuava como os demais jogando carteado
e brigando etc. Então, independentemente das profundidades psicológicas do que se
passava na alma de cada um, do Marcinho antes, do Marcinho depois, era ele mesmo,
era ele diferente. O fato é que esse evento leitura interveio no cotidiano, nas relações,
tornou um fato importante, inclusive, micro politicamente a ponto de ele, por isso, não
apenas, mas também por isso, ser morto.
Chegamos a uma questão talvez mais urgente, uma questão que me inquieta
também: ele manteria essa postura fora da cadeia? Aproximar-se da literatura
estando preso, num contexto de privação, é uma coisa, mas até que ponto, tendo a
liberdade, ele manteria essa redescrição?
Luiz Eduardo Soares: A pergunta por um lado é fascinante, do ponto vista de um
ficcionalista e, e por outro, é impertinente, do ponto de vista sociológico, psicológico
etc. Porque é um contrafactual. Ela não tem resposta por definição, porque ele não viveu
para isso. Não há nada que defina um ou outro caminho previamente. Ele poderia
não fazia parte do mundo ao qual era remetido pelo confinamento e pelos ardis simbólicos, dos quais era
vítima e cúmplice. Temia ser assassinado não propriamente porque o livro divulgasse inconfidências que
envolvem terceiros, mas pelo simples fato de ser objeto de um livro, destacando-se, diferenciando-se,
ultrapassando fronteiras simbólicas que o mundo cerrado da comunidade encarcerada erguia. Essas
fronteiras invisíveis eram erguidas justamente para opor-se à diferenciação individualizante — sobretudo
quando ela sugerisse possibilidades de mudança e de superação do universo valorativo compartilhado
pela sociedade dos apenados. Uma coisa é você converter-se à Bíblia, que é parte do código cultural dos
apenados, outra coisa é furar a parede cultural com livros, que são armas poderosas e perigosas porque
absolutamente inclassificáveis. Pouco depois de 2003, Márcio foi encontrado morto numa caçamba de
lixo da penitenciária em que cumpria pena. Seus livros estavam jogados sobre ele, coroados por um
cartaz: “Nunca mais vai ler”. Márcio estava proibido de mudar por uma conspiração inconsciente e tácita,
que reunia os parceiros mais desiguais e insólitos. Companheiros de prisão não permitiram que ele
transgredisse a única lei inviolável: não serás outro (para que eu permaneça o que sou)” (SOARES, 2005,
p.107). Na tentativa de fugir da identidade petrificada que lhe atribuíam (e a que ele mesmo muitas vezes
se condenava a retornar de modo inevitável), Márcio buscou inspiração na leitura.
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Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 3, 2013
qualquer coisa dentro do campo do humano no Rio de Janeiro, das possibilidades
sociológicas oferecidas a um ator como ele. Então, o contrafactual não pode ser
respondido. De toda maneira, eu te diria que alguém que sai da prisão acostumado à
leitura e que agora incorporou ao seu vocabulário outros recursos, e que agora dialoga
consigo mesmo e compõe o seu imaginário com outras interlocuções, outras
ancoragens, outras referências, outros horizontes, que constrói a sua narrativa agora
entrelaçando-a com outras narrativas, é alguém que está num ponto da sua trajetória
muito diferente do que estava anteriormente e é alguém que dispõe de outro
instrumental, de outros recursos, de outras possibilidades. Isso faz com que se torne
perfeitamente plausível a hipótese, ainda que excepcional, de que ele viesse a se tornar
uma pessoa muito diferente do ponto de vista prático, do que fora antes [...]
Se esses livros não fossem esses livros, fossem um só, e se fosse a Bíblia? Nós temos aí
mais ancoragem empírica para verificar. Há muitos casos de conversão que envolvem
transformação de comportamento e muitos casos de conversão que não envolvem
transformação de comportamento. Ler a Bíblia significa ingressar num coletivo, numa
tribo, num grupo social e dialogar como algumas instituições, encontrar alguns apoios,
suportes e uma estrutura de plausibilidade para usar uma sociologia fenomenológica dos
anos 60, uma categoria grata a autores dessa época que trabalhavam com a
fenomenologia e com a sociologia fenomenologia. Uma estrutura de fragilidade que
ofereceria condições para o desenvolvimento de subjetivação adequadas às condições de
um personagem capaz de alterar a sua rota de comportamentos. Isso na religião fica
muito claro, porque não é um livro nem é apenas o imaginário; é um conjunto de
relações, oportunidades, apoios, instrumentos práticos etc. No caso da literatura o que
pesa mais num primeiro momento não é uma comunidade, uma tribo, um conjunto de
relações. O que pesa mais são narrativas alternativas, são figuras imaginárias, o que está
em jogo é mais a redescrição de si mesmo, né?
Isso é muito raro de acontecer, e é por isso que nós temos nem base empírica para supor.
Mas digamos que alguém que leia a sério Sérgio Buarque, que leia Machado de Assis,
que leia os autores do modernismo, que leia Gilberto Freire e Caio Prado... que seja um
sujeito situado diante de possibilidade narrativas muito diferentes, no um estoque de
alternativas de compreensão e interpretação e construção de sua realidade muito
diferente do sujeito que não tem acesso a esse estoque.
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Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 3, 2013
O juiz Alexandre Martins de Castro Filho é descrito em Espírito Santo como
mantendo uma divisão entre duas partes da sua vida, que você destaca na divisão
entre a toga e a tatuagem, da separação que pedia entre espaço privado e espaço
público, do corpo tatuado não se deveria inferir o juiz. Ele pode ser considerado
uma presentificação paradigmática da figura do “ironista liberal” proposta por
Rorty?
Luiz Eduardo Soares: É muito interessante, muito interessante! Talvez sim, eu nunca
tinha pensado nisso, você está trazendo e acho muito interessante. Eu acho que a
maneira que o Rorty resolve o problema de “Trotsky e das orquídeas selvagens” e da
divisão entre o privado e o público é um pouco vicária, subsidiária, sintomática daquilo
que eu considerei, data venia, fragilidade do nosso mestre. Na medida em que o sujeito
está tratado de modo quase positivista e unilateral, unidimensional, ele se converte mais
num suporte de uma filosofia analítica, num suporte de enunciados, num suporte de
vocabulários desprovido de vertebração anímica. Ele perde o espírito, no sentido de que
perde profundidade analítica, experiencial, cultural e antropológica. Se você me permite
como juiz que estou envolvido nessa palavra profundidade etc., pode remeter a uma
filosofia metafísica do sujeito, mas se você compreende associando o que eu estou
dizendo ao que já dissera antes... com as devidas cautelas, o privado e o público vão ser
tratados de modo muito simplório. Para quem compreende que o sujeito não dá conta de
si como eu, que o sujeito é um processo, multívoco, polissêmico, pluridimensional, em
que os centros gravitacionais das dinâmicas fogem ao seu controle e que os sentidos não
são regulados, mas referem-se a dimensões culturais que são formadoras, ainda que
possam ser plasmadas por sua intervenção, e que ele é potente como ator poético, como
agente de poiesis capaz de produzir eventos evidentemente dotado dessa “liberdade”
que é o resto, o resíduo, o que nele resiste às estruturas, às linguagens e aos
encapsulamentos. Se nós o definimos dessa maneira, muito mais tensa e complexa,
evidente que já foi para o espaço o que é eixo na distinção público e privado, porque
dentro do sujeito está o público, a linguagem – como dizia Saussure, inclusive já diziam
os antropólogos e sociólogos. Pode ser político, portanto, o experimento de Artaud
consigo mesmo num certo momento de delírio, o que pra Rorty não faz nenhum sentido,
mas para um deconstrucionista faria todo o sentido. Entende? A experiência de Artaud e
reviver um ritual e ressignificá-lo e escrever a esse respeito tem uma dimensão privada,
mas isso pode se converter também em um signo público que aponta para possibilidades
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Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 3, 2013
novas de vivências objetivas que redefine a própria relação do sujeito com a cultura etc.
Enfim, as orquídeas e o Trotsky estão muito imbricados numa perspectiva mais
etnológica, antropológica, culturalizada e psicanalisada e mais aberta a essas
perspectivas. As orquídeas e Trotsky estão muito mais superpostas e as soluções que
Rorty encontrou foram menos simples. Nesse sentido, também fica complicado. Não
que a sua associação não seja perfeita; ela é perfeita, Rorty provavelmente concordaria,
o Alexandre era um ótimo exemplo do ironista liberal. Mas isso, entretanto, não é
suficiente para manter de pé essa figura do ironista liberal, entende? Eu acho que é uma
construção de persona muito interessante, mas também problemática e vicaria, no
fundo, de um ideário burguês muito limitado.
No Elite da Tropa 2, há uma discussão em torno do conceito ou da definição de
Rorty de Justiça como “lealdade ampliada”, que aparece como epígrafe do livro e
às vezes quando você problematiza quais são as lealdades dos policiais, e isso
remete a toda a estrutura de poder que gira em torno das milícias etc. Já no último
livro Justiça, você se distancia um pouco dessa discussão do Rorty para uma
postura mais propositiva em termos legais. Eu gostaria que você falasse um pouco
dessa diferença da concepção de Justiça. Até que ponto a Justiça pode ser pensada
como lealdade?
Luiz Eduardo Soares: Não, eu acho que essa discussão do Rorty é felicíssima e ela é
insuperável do ponto de vista humano, digamos, demasiadamente humano. É
insuperável porque por mais que os princípios superiores se definam de outra maneira, o
que conta para o ser o humano, até prova em contrário, e nós não conhecemos
experiência humana diversa ainda, é o que o Hume dizia. Porque na origem dessa
discussão do Rorty está a observação do David Hume sobre a benevolência. Dá a ideia
para o Hume de que o ser humano, pelo menos tal como nós o definimos como
indivíduo na sociedade ocidental moderna ou, pelo menos, pré-moderna e moderna, o
indivíduo se orienta para o seu interesse, entendido o sentido mais complexo,
envolvendo os seus desejos e a sua vontade de sobreviver e necessidade de sobreviver a
seus impulsos duais etc. e os interesses e os afetos e os desejos daqueles que são de seu
amor, de seu vínculo primário, do seu vínculo mais constitutivo, são os seus próximos,
em geral os seus próximos, seus familiares etc. O Hume fala da benevolência, ele diz:
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Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 3, 2013
“olha é errado o que o Locke diz a respeito do indivíduo puramente utilitário e voltado
para sim mesmo.”, ou o que o Hobbes diz, porque existe uma mediação. Nós não vamos
sacrificar a vida pela humanidade, mas vamos sacrificar a vida pelo filho, pelo irmão,
pelo amigo querido, pela pessoa que nós amamos. Isso é possível. Eventualmente até,
por isso chamamos humanidade, mas ai não é pela humanidade, mas é por uma ideia. E
aí nós entramos num outro terreno e isso não é usual. O que é, digamos, corriqueiro, o
que pode ser básico numa antropologia é para Hume é a benevolência, o autointeresse, o
interesse e a benevolência. E o que Rorty diz é basicamente isso: “Olha, nós nos
guiamos pela benevolência”. E essa benevolência pode se estender, pode se ampliar
com a nossa educação. Com o desenvolvimento de certos valores, nós somos capazes de
sentir e pensar, a nossa comunidade humana, o que faz sentido pra nós, o nosso bairro, o
nosso grupo, a nossa tribo, a nossa frátria, o nosso país. Nós podemos pensar até a
humanidade como a nossa família, então a benevolência pode se estender. Esse vínculo
que ele chama de lealdade, que é esse vínculo de amor, de afeto, de cumplicidade, pode
se estender. Quando falamos de justiça, do ponto do vista ideal nós sabemos defini-la,
nós temos ou não da definição, que atribuamos a essa palavra, mas sabemos como
defini-la. No entanto, ao praticá-la nós seremos motivados pelos desejos, pelos afetos,
pelas lealdades, e, com muito esforço, sacrificaremos essas lealdades primárias no altar
das lealdades superiores e mais amplas. Isso pode acontecer, mas é mais difícil. Você
tende a esconder o seu filho pra não entregá-lo à polícia. Nós vemos até como uma
espécie de perversão um kantiano que por ventura entregue seu filho à polícia ou um
stalinista que entregue seu filho à polícia. Há uma compreensão de que isso é humano,
tanto que a própria justiça não admite o testemunho dos muito próximos. Desqualifica,
até para protegê-los e porque eles compreendem que esse processo se dê. Portanto, do
ponto da descrição fática e fenomenológica, digamos, e antropológica ele tá dando curso
ao que fora observado por Hume, chamando a atenção para que nós baixemos a bola,
que deixemos o idealismo de lado e pensemos concretamente. Estamos falando das
lealdades. E quando queremos que as pessoas se encantem pelos ideais de justiça temos
que levar em conta essa realidade. Então o que podemos fazer? Nós podemos fazer com
que o sentido afetivo de lealdade se amplie até a comunidade, se estenda até o domínio
que a própria universalidade se constitua e, assim, a justiça ideal se sobreporia à justiça
tal como praticável por seres humanos concretos de carne e osso. Essa ideia muito
simples. No Justiça, no livro eu estou uma certa forma de fazer justiça que seria
perfeitamente compatível, eu acho, com determinados sentimentos básicos. Se você
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quer primeiro restabelecer, reparar o que a vítima perdeu ou em parte perdeu, o seu
sofrimento, isso é compassível em relação à vítima. E se você, por outro lado, acha que
novas vítimas não devem existir, ou seja, quer, portanto, reduzir as chances de que
aquele “mal” se repita, você provavelmente estará de acordo com esforços que lhe
convençam sobre a sua importância no sentido de reduzir a reprodução daquela
dinâmica geradora do mal que você deseja evitar. É bastante natural isso. Eu procuro é
mostrar que aplicar dessa forma nós podemos escutar com outro sentimento meio
atávico, muito forte que o sentimento da vingança. O outro da lealdade, você é leal a
alguém então você odeia quem odeia a pessoa que você ama, ou você odeia a pessoa
que a pessoa que você ama e odeia, ou você odeia a pessoa que faz mal à pessoa que
você ama. Para ser bem simplório, né? Então a vingança é uma espécie de contrapartida
da lealdade, a contraparte dela. É muito difícil você separar a lealdade da vingança, o
amor do ódio etc. E isso é relativamente possível se você demonstrar que vale a pena o
sacrifício de aposentar a vingança. Se você ganhar um universo, um mundo de paz e
uma condição mais propícia à reparação e uma condição mais propícia que não se repita
o ato que você quer evitar, talvez você aceite até sacrificar a vingança em nome desse
ganho. De qualquer forma os motivadores não se alteram. Eu estou respeitando esse
individualismo de quem odeia, ama, é benevolente, busca lealdade.
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Artigos
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O NEOPRAGMATISMO É (QUASE) UM
EXISTENCIALISMO
Rorty, Sartre e a “incomum” natureza humana
Aldir Carvalho Filho1
RESUMO
Este artigo visa a examinar, de modo inicial e provisório, a compatibilidade das
posições filosóficas de Sartre e Rorty acerca da questão da “natureza humana comum”,
em suas afinidades e divergências. A afinidade mais clara é a concordância de ambos
sobre a ausência dessa natureza e a falta de essências. A divergência mais nítida é
relativa às respectivas concepções do homem: de base metafísica, no caso de Sartre,
naturalista e contingente, no caso de Rorty.
Palavras-chaves: neopragmatismo, existencialismo, Rorty, Sartre, natureza humana
comum.
ABSTRACT
This article seeks, in an initial and provisional way, to examine the compatibility of the
philosophical positions of Sartre and Rorty about the issue of “common human nature”,
in their affinity and divergences. The clearest affinity is their agreement on the absence
of such a nature and the lack of essences. The brightest divergence occurs relatively to
their conceptions of man: from a metaphysical basis in the case of Sartre; naturalistic
and contingent in that of Rorty.
Key-words: neopragmatism, existencialism, Rorty, Sartre, human nature.
Inicialmente, desejo parabenizar os dirigentes do Encontro deste ano
2
pelo
acerto na escolha da temática geral do evento e, em particular, dos tópicos selecionados
para esta mesa: filosofia, homem e natureza. Aparentemente escolhidos em virtude de
uma inclinação dialética, tais tópicos estão entre os mais recorrentes na história da
produção intelectual filosófica e, frequentemente, são dos que produzem as discussões
mais acaloradas. Talvez até nem fosse exagero dizer que podemos verificar a
centralidade da preocupação com pelo menos uma dessas categorias em noventa e nove,
de cada cem autores na tradição filosófica.
1
Professor do Departamento de Filosofia do Colégio Pedro II (RJ), cedido à UFMA, onde é colaborador
do DEFIL e Assessor de Relações Internacionais. Docente permanente do Mestrado em Ética e
Epistemologia da UFPI. Pesquisador vinculado ao GT/ANPOF Pragmatismo e Filosofia Americana.
2
Este artigo é uma adaptação da conferência originalmente proferida na abertura do XXVIII Encontro
Nacional dos Estudantes de Filosofia (ENEFIL), realizado na Universidade Federal do Maranhão
(UFMA), em São Luís, em 16 de janeiro de 2012.
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O neopragmatista Richard Rorty e o existencialista Jean-Paul Sartre não ficam
de fora da lista. Por isso, sob a forma de um despretensioso esboço de compatibilização,
decidi tratar da filosofia desses autores a partir de sua peculiar – e parcialmente
congruente – perspectiva de uma “incomum natureza do homem”. Creio, assim,
homenagear o pendant dialético da proposta da mesa, assinalando de saída que Sartre
foi um filósofo que empreendeu uma “crítica da razão dialética” e que Rorty foi um
pensador que verteu a dialética em seus próprios moldes, trocando a inferência e a
negação da negação pela “redescrição filosófica”.
Para os que não conhecem bem Sartre e, principalmente, Rorty, talvez fosse
necessário advertir que o subtítulo carrega uma deliberada ambiguidade. Por um lado,
poder-se-ia imaginar que a pretensão fosse tratar de uma possível especialidade e
unicidade da natureza humana, de uma qualidade “incomum” desse ser, “o homem”, em
particular, quando visto em relação às outras espécies. Tal imagem conjura a visão de
que, por suas qualidades como espécie, no conjunto dos seres naturais, o homem
possuiria uma “natureza incomum”, a sua “diferença específica”, sobre a qual tantos já
tentaram (sem sucesso) discorrer de modo definitivo.
Todavia, considerando em particular a filosofia de Rorty, nada seria mais
oposto às suas ideias do que pensar desse modo. Assim, a ambiguidade do subtítulo
quer mesmo é chamar a atenção para uma segunda possibilidade de leitura, que pretende
precisamente desconstruir a primeira, a da “unicidade da natureza humana”, em que o
homem, supostamente, é uma espécie “incomum” no conjunto dos seres vivos.
Devida à linhagem da tradição filosófica que, iniciando-se com Platão e
Aristóteles, sempre a acalentou generosamente, essa primeira leitura gravita em torno de
um grande equívoco, que é o de imaginar que o homem – como espécie – possua uma
natureza essencial. Para Rorty, no lado oposto do espectro filosófico, é uma inutilidade
pensar que todos os homens possuem uma identidade essencial profunda, sua
“natureza”, que é a “essência humana”. Para ele, a rigor, nada que fosse relevante para
os assuntos humanos mereceria a preocupação em ter definida a sua “essência”.
Convém destacar que, apesar de estudado e divulgado de forma crescente,
pouquíssimos pensadores contemporâneos têm atraído tanta rejeição quanto Rorty. Isso
ocorre principalmente em virtude de sua atitude geral pós-fundacionista e
antiessencialista, o que inclui a negação da “natureza humana” e da qual decorre
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também a sua posição política “liberal” 3. A maioria das críticas – que ele desperta tanto
à direita quanto à esquerda, no espectro político – oscila entre o puro desconhecimento e
um ressentimento quase raivoso. Tal fenômeno não chega a surpreender, pois o espaço
que recebe o maior impacto inicial das ideias de Rorty é exatamente o sistema de ensino
da filosofia tradicional, espaço habitado por uma maioria de profissionais cuja
autoimagem parece reclamar para esta produção literária humana o estatuto de
especialidade acadêmica análoga à das ciências (“rigorosas”). Em sua base de
justificação, os “irados” contra Rorty pressupõem que a crença em essências fixas e
imutáveis (de todo tipo) deva se impor a todos como algo evidente e incontornável.
Num esforço para superar esse ressentimento e “dialetizar” as críticas,
melhorando a qualidade de sua recepção entre nós, este texto quer chamar a atenção
sobre a afinidade particular entre Rorty e um pensador francês que agora é bastante
aclamado, mas que em outra época também recebeu a sua própria cota de críticas
“pouco construtivas”, para dizer o mínimo. O fato é que enquanto ainda se vê Rorty
com suspeita, as ideias de Jean-Paul Sartre circulam hoje pela academia filosófica sem
qualquer problema e com todo respeito intelectual que lhes é devido.
No limite, alguns até dizem que Sartre “saiu de moda”. Mas independente de
concordar ou não com essa avaliação, creio ser válido explorar uma clara afinidade
entre Rorty e Sartre, até aqui pouco ou quase nada estudada, afinidade que só aparece
levemente mencionada em uma ou outra passagem dos escritos do próprio Rorty.
Meu ponto de partida é muito simples: acerca do tema da “natureza humana”,
Sartre afirmou mais ou menos a mesma coisa que Rorty disse, mas o fez muito antes
dele. Logo, se Sartre não causa mais nenhum escândalo, porque Rorty ainda deveria
causar? É provável que a resposta seja: porque Rorty era incuravelmente antimetafísico,
enquanto Sartre ainda flertava com essa tradição, inclusive e principalmente com o
idealismo cartesiano 4.
3
É digno de nota que o “liberalismo” de Rorty possui um sentido não usual que é pouco conhecido na
tradição política, conforme se verá mais à frente. Para os que dizem criticá-lo apenas por esse motivo
específico, isto é, o seu liberalismo, talvez fosse conveniente advertir que o liberalismo rortyano está mais
associado com a luta contra o “autoritarismo” (que, segundo ele, decorre de posições políticas teoricistas
e essencialistas) do que com qualquer outra coisa e, desse modo, possui uma estreita conexão com o seu
antifundacionismo, antiteoricismo e antiessencialismo filosóficos.
4
Não pretendo estender aqui a análise das diferenças até o nível dos engajamentos políticos de cada um –
Sartre com o marxismo e Rorty com o liberalismo. Tal análise pode ficar para outra oportunidade e
apenas serão pontuados, ao final, alguns aspectos do liberalismo rortyano, no que este está associado ao
seu antifundacionismo. A quem estiver interessado em aprofundar essa vertente comparativa a partir de
Rorty, sugere-se o excelente estudo de Alberto T. Rodriguez acerca das relações deste com o marxismo.
Cf. TOSÍ RODRIGUEZ, A. Liberalismo e antimarxismo: Richard Rorty em diálogo com Dewey e
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Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 3, 2013
É possível imaginar, inclusive, que a insuspeitada aproximação entre esses
pensadores remonte à convergência ainda mais inusitada entre as respectivas figuras da
geração anterior que foram, de certo modo, inspiradoras desses pensadores mais jovens:
Heidegger, no caso de Sartre, e Dewey, no caso de Rorty.
Mas não pretendo examinar aqui as afinidades possíveis já a partir das figuras
inspiradoras. Em vez disso, tentarei me concentrar apenas na afinidade entre os
pensadores mais recentes e, é claro, também nas distâncias que os separam, pois, ao
final, pretendo mostrar que, para ser coerente com seu naturalismo historicista, seu
antifundacionismo e suas ideias políticas, Rorty precisou se afastar decisivamente de
Sartre, no que, curiosamente, este ainda carregava de “metafísica” sobre o tema da
natureza humana.
Para Rorty, a Filosofia (com “f” maiúscula) é a história das tentativas de
descrição da “natureza essencial” das coisas, entre elas o homem (RORTY, 1992; 1999).
Tendo sido fundado por Platão e continuado de outros modos por Kant, esse “gênero
literário” sempre trabalhou com a pressuposição de que “a mente é um espelho da
natureza” (RORTY, 2004).
Ora, o diagnóstico de Rorty sobre a história das ideias é que o platonismo e
suas continuações kantianas, positivistas e “falofonologocêntricas” são iniciativas que
prometem colocar os homens em contato com algo maior do que eles mesmos, por
exemplo, a Verdade, a Natureza ou o Ser, palavras grafadas propositalmente com
maiúsculas pelos que as usam recorrentemente em seu vocabulário final 5.
Para
desgosto dessa tradição específica, Rorty afirmava que ela é menor do que a filosofia
como gênero literário. Uma tradição que teria sobrevivido à sua própria utilidade, vindo
a ser historicamente ultrapassada em relevância cultural pela poesia – a arte e a
invenção em geral. E sobreviveu exatamente do mesmo modo como, infelizmente, a
religião sobreviveu à sua própria utilidade, desde que foi historicamente ultrapassada
em importância cultural pela Filosofia e pela ciência moderna.
Contra a Filosofia (com maiúscula) e ao lado de Sartre, Rorty afirmou que não
existe algo como uma “natureza humana essencial” que seja comum a todos os homens,
na medida em que cada “homem” – isto é, cada indivíduo pertencente à espécie animal
Castoriadis. In: ESTUDIO. Utopía y Praxis Latinoamericana. Revista Internacional de Filosofía
Iberoamericana y Teoría Social / ISSN 1315-5216. Ano 9. Nº 24 (Jan-Mar, 2004), p. 9–30.
5
Cf. Rorty, 1992, p. 103: “Todos os seres humanos se fazem acompanhar de um conjunto de palavras que
empregam para justificar as suas ações, as suas crenças e as suas vidas. [...] Chamarei a essas palavras o
‘vocabulário final’ de uma pessoa”.
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Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 3, 2013
e que tenha sido convenientemente socializado – cria-se a si mesmo, não havendo, pois,
qualquer identidade “de natureza” entre os homens. Contrariamente a Sartre (e a vários
outros filósofos), e do modo mais antimetafísico possível, Rorty não sustentou que o
que há de comum entre os homens é a sua “condição” e não a sua “natureza”. Então, o
que veremos é que, sob a aparência da “comum condição humana”, Sartre acabou
destilando apenas mais uma redescrição variada que terminou por apelar subrepticiamente para a mesma ideia da natureza comum entre os homens (seres que
possuem uma “condição incomum na natureza e uma condição comum entre si”).
Mas, considerando por enquanto apenas a ideia de “natureza humana
essencial” para ambos os autores, se a “natureza humana” é incomum é porque não é
compartilhada, porque é “não comum entre os homens”, e não porque é “fora do
normal” (das outras espécies). Portanto, falar de uma incomum natureza humana é falar
de cada homem como uma possibilidade de experiência e invenção de si mesmo, de tal
modo que não há nenhuma identidade essencial entre os homens. O que há de comum
entre os homens é, de modo mais simples, pelo menos, “o contexto comum” (e não “a
condição”) de formas de vida que se fazem linguisticamente e em situações históricas,
sociais e econômicas concretas.
Muito antes que esta concepção tivesse tornado seu defensor atual, Rorty,
motivo de escândalo, ela foi sustentada claramente e com todas as letras por Sartre. É
bem verdade que, no início, Sartre também foi incompreendido: o conhecido escrito
sartreano intitulado O existencialismo é um humanismo é um texto de esclarecimento e
combate produzido, segundo o próprio autor, especialmente para servir de réplica
6
a
críticas desqualificadas sobre as posições existencialistas que ele defendia.
De saída, Sartre se queixou da virulência e da agressividade dessas críticas,
sobre as quais reputava uma profunda ignorância acerca do existencialismo. No texto
que, como este, foi originalmente uma conferência 7, se pode ver a famosa metáfora do
“corta-papel”, pela qual Sartre tentou explicitar com clareza sua visão da “natureza do
homem”, que, de modo algum, ele admitia que fosse “essencial”. Peço perdão por fazer
uma citação tão longa, mas é necessário repassar literalmente todos os esclarecimentos
6
Dizer que o texto se trata de uma réplica de Sartre aos agressores serve também para assinalar, entre
outras, uma diferença de estilo com relação a Rorty, para quem não valia tanto a pena tentar “defender
argumentativamente” uma determinada posição filosófica (pois isto seria conceder ao adversário as armas
e o campo de combate) e melhor seria “mudar o rumo da conversa”, apenas reapresentando a própria
posição em narrativas sempre diferenciadas e fazendo, como ele costumava dizer, um “contorno pelos
flancos”, em vez de um contra-ataque direto.
7
Proferida em 29 de outubro de 1945 e publicada (com revisões das notas estenografadas) em 1946 pelas
Éditions Nagel. Cf. SARTRE, 2012, p. 9.
37
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que o autor extraiu da metáfora. Sartre disse:
[...] Quando consideramos um objeto fabricado, como um livro ou um cortapapel, por exemplo, esse objeto foi fabricado por um artífice, inspirado em
um conceito; ele tinha, como base o conceito de corta-papel e, também, uma
certa técnica de produção anterior que faz parte do conceito e que, no fundo,
é uma fórmula. Desse modo, o corta-papel é simultaneamente um objeto que
se produz de determinada maneira e que, por outro lado, possui uma utilidade
definida, e não se pode supor que um homem produza um corta-papel sem
saber para que tal objeto serve 8. Então dizemos que, para o corta-papel, a
essência – ou seja, o conjunto dos procedimentos e das qualidades que
permitem produzi-lo e defini-lo – precede a existência. [...] Se concebemos
Deus como criador, Ele será, na maior parte das vezes, semelhante a um
artífice superior; e qualquer que seja a doutrina que consideremos, quer se
trate de uma doutrina como a de Descartes ou como a de Leibniz, admitimos
sempre que a vontade segue mais ou menos o entendimento ou, pelo menos,
o acompanha, e que Deus, quando cria, sabe precisamente o que está criando.
Assim, o conceito de homem, na mente de Deus, é semelhante ao conceito de
corta-papel na mente do fabricante; e Deus produz o homem de acordo com
técnicas e com uma concepção, exatamente como o artífice fabrica um cortapapel seguindo uma definição e uma técnica. Dessa forma, o homem
individual realiza um determinado conceito que existe no entendimento
divino. [...] O existencialismo ateu que eu represento [...] declara que, mesmo
que Deus não exista, há ao menos um ser cuja existência precede a essência,
um ser que existe antes de poder ser definido por algum conceito, e que tal
ser é o homem ou, como diz Heidegger, a realidade humana. Que significa,
aqui, que a existência precede a essência? Significa que o homem existe
primeiro, se encontra, surge no mundo, e se define em seguida. Se o homem,
na concepção do existencialismo, não é definível, é porque ele não é,
inicialmente, nada. Ele apenas será alguma coisa posteriormente, e será
aquilo que ele se tornar. Assim, não há natureza humana, pois não há um
Deus para concebê-la. O homem é não apenas como é concebido, mas como
ele se quer, e como se concebe a partir da existência, como se quer a partir
desse elã de existir, o homem nada é além do que ele se faz. Esse é o
primeiro princípio do existencialismo. (SARTRE, p. 23-25).
Se levarmos a sério estas palavras, podemos afirmar que há, nesse sentido
específico, um total acordo entre Sartre e Rorty acerca da impossibilidade de definirmos
uma “natureza humana essencial” e faz do neopragmatismo de Rorty, por assim dizer,
um “existencialismo”, por sua adesão ao “primeiro princípio” do existencialismo. Para
Rorty, esse esforço de definir conceitualmente a natureza humana parece vir, em último
caso, do tipo de desejo profundo de redenção e salvação compartilhado pela religião e
8
Chamo a atenção, pela oportunidade, para o fato de que se é possível dizer que o neopragmatismo é
quase um existencialismo, de certo modo, pode-se dizer também que o existencialismo é quase um
neopragmatismo, posto que a ideia de um “conceito” em Sartre está, de certo modo, associada com a
“utilidade”, como se pode ver na passagem referida. De fato, haveria muito a ser dito acerca das relações
entre “conceito”, “metáfora” e “utilidade” nos dois autores. Mas para Rorty, por exemplo, ao contrário do
“conceito” sartreano, a “metáfora” não tem, inicialmente, qualquer utilidade claramente definida ao início
(e pode nunca vir a ter uma).
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pela Filosofia. Desejo que, em Sartre, podia ser visto negativamente, como “má-fé”.
Mas que, paradoxalmente, podia ser visto de forma positiva, quando tratado como
“angústia”. Mais à frente, veremos o problema que há nisso.
Para Rorty, no caso da religião, a redenção se alcança pelo contato com uma
entidade transumana criadora e salvífica. Na doutrina religiosa, em geral, não há
propriamente necessidade de um esforço teórico, como na Filosofia, na medida em que
o que é a natureza humana está salvaguardado nos textos canônicos das crenças
religiosas.
No caso da Filosofia, a redenção vem pela necessidade de adquirir as crenças
“corretas” sobre “como a realidade realmente é”. Devemos nos lançar à reflexão para
tentar saber conceitualmente, isto é, “de uma vez por todas”, como é a natureza humana
e, em especial a partir da filosofia moderna, como é que se relacionam o homem e a
natureza, do ponto de vista da possibilidade do conhecimento e da ação. Nesse âmbito,
por exemplo, durante muito tempo tornou-se essencial saber como é que a liberdade do
homem (esse ser “incomum” por ser “livre”) pode emergir do determinismo natural do
“animal humano”.
Sartre poderia ter perfeitamente concordado avant la lettre com a avaliação de
Rorty de que a permanência histórica da Filosofia (o tipo de filosofia do platonismo)
para além de sua utilidade se deve, entre outras coisas, à manutenção do desejo religioso
da redenção – travestido como “vontade de conceito e de verdade” – no interior da
Filosofia. Numa passagem intercalada ao próprio texto que destacamos anteriormente,
Sartre assim redescreveu a problemática da essência humana no contexto da filosofia
moderna:
No ateísmo filosófico do século XVIII, a noção de Deus foi suprimida, porém
não a ideia de que a essência precede a existência. Esta ideia pode ser
encontrada praticamente em todo lugar: encontramo-la em Diderot, em
Voltaire e até mesmo em Kant. O homem seria possuidor de uma natureza
humana; esta natureza humana, que é o conceito humano, se encontraria em
todos os homens, o que significa que cada homem é um exemplo particular
de um conceito universal, o homem; dessa universalidade resulta que, em
Kant, o homem da selva, o homem da natureza e o burguês estão todos
encaixados na mesma definição e possuem as mesmas qualidades básicas.
Assim, mais uma vez, a essência do homem precede essa existência histórica
com que nos deparamos na natureza. (SARTRE, p. 24-25)
Para Rorty, a literatura promoveu mais recentemente uma grande virada
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cultural sobre a Filosofia, reeditando agora um processo análogo àquele pelo qual, na
Modernidade, a Filosofia triunfou na cultura, quando ocupou o espaço antes dominado
pela religião (RORTY, 2006). O motivo da atual supremacia da literatura é que nesse
campo cultural o desejo de redenção e salvação é de tipo diverso dos anteriores. Na
literatura, a redenção só pode ser alcançada pelo contato com a maior variedade
possível de seres humanos, e não pelo contato com a identidade profunda e estrutural
entre todos os homens de todos os tempos. É que, na literatura, a ideia de “crença
verdadeira” tem pouca importância.
Segundo a versão rortyana da história das ideias, a partir da ascensão da cultura
literária, a religião e a própria filosofia passaram a ser vistas como “gêneros literários”,
isto é, como objetos de consumo do intelectual literário. Esse é o intelectual que lê todos
os livros – incluindo os de religião e filosofia – como tentativas humanas de encaminhar
soluções para necessidades humanas. Ora, não é qualquer coincidência que o “filósofo”
Sartre tenha sido também um “literato” 9. De fato, ele foi um intelectual literário no
sentido mais amplo da expressão.
O que não desmerece a importância histórica do tipo de filosofia que se
originou em Platão, a Filosofia. De fato, ela foi um progresso transicional e de
maturação cultural, porque serviu para aumentar a autoconfiança dos homens nos
próprios poderes intelectuais
10
. Contudo, essa tradição específica deveria ser
abandonada porque a melhor esperança para uma cultura de liberdade não vem da
“razão” – o que a tradição tem identificado como “natureza racional humana” –, mas,
sim, da “imaginação”, o material com que a literatura é criada. Para Rorty, essa etapa de
efetivo abandono da filosofia teria começado em Nietzsche, passando por Heidegger e
Derrida, e se poderia apresentá-la como “a vitória da poesia sobre a filosofia”.
A
justificativa
dessa
proposta
é
a
necessidade
de
ir
além
do
representacionismo, e, em particular, a necessidade de, como queria Sartre, defender
fortemente a ideia de que os homens é que são exclusivamente responsáveis por si
mesmos. Não há qualquer entidade supra-humana, nem qualquer estrutura ou essência
natural – localizável por religiosos, platônicos, kantianos ou filósofos da mente – que
possa, em último caso, ser utilizada para nos livrar do esforço cotidiano de nos
inventarmos a nós mesmos. Como Sartre dizia (p. 33): “Nós estamos sós, sem escusas”.
9
Sua proeminência “literária” foi tal que ele chegou a ser indicado como ganhador do prêmio Nobel de
literatura do ano de 1964, mas recusou-se terminantemente a receber o prêmio.
10
Cf. Rorty, 2006, p. 84.
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Além disso, retomando as metáforas de Darwin, em favor da contingência e da
historicidade, Rorty afirmava que não temos qualquer diferença “essencial” que nos
distinga de outros seres vivos, sendo essa diferença apenas em grau de complexidade, e
não de natureza essencial. Somos apenas “animais melhorados” que se inventam a si
mesmos de forma tentativa, fazendo, entre outras coisas, história, filosofia e poesia.
Assim, distante do sonho kantiano de uma humanidade que se define por sua Razão,
Rorty estaria mais próximo das metáforas de Freud acerca dos homens, segundo a qual
estes seriam animais reprimidos em suas pulsões e que, por isso, fantasiam (e não
“animais que raciocinam”) 11.
A rigor, não vejo problema em sustentar que há uma profunda concordância de
fundo entre Sartre e Rorty acerca da necessidade de que os homens tenham que se
responsabilizarem por si mesmos, já que estão sós e têm apenas uns aos outros no
mundo. Ambos os filósofos são ateus, naturalistas, contingencialistas e historicistas.
Portanto, antes de verificarmos eventuais divergências, convém reafirmar mais uma vez
essa afinidade. Por exemplo, a partir de formulações de Sartre, com as quais Rorty
estaria inteiramente de acordo, como esta: “[...] a primeira decorrência do
existencialismo é colocar todo homem em posse daquilo que ele é, e fazer repousar
sobre ele a responsabilidade total por sua existência” (SARTRE, p. 26).
Contudo, em que pese tal afinidade de ponto de partida, a questão acerca do
que cada indivíduo pode ou deve fazer com essa responsabilidade com relação aos
outros recebeu respostas muito diversas nos dois autores. Trata-se do tipo de diferença
que decorre da avaliação de cada um deles sobre o impacto das consequências éticas e
políticas de não haver uma natureza humana comum. Uma diferença que, como
veremos, ampara-se, em último caso, nas distintas imagens que possuem acerca “do
homem”.
Já na sequência da passagem sartreana referida imediatamente acima se pode
localizar o foco da divergência principal. Peço novamente desculpas por trazer outra
passagem longa, mas não há modo melhor de ilustrar o assunto. Sartre disse:
[...] Quando dizemos que o homem faz a escolha por si mesmo, entendemos
que cada um de nós faz essa escolha, mas, com isso, queremos dizer também
que ao escolher por si, cada homem escolhe por todos os homens. Com
efeito, não existe um de nossos atos sequer que, criando o homem que
queremos ser, não crie ao mesmo tempo uma imagem do homem conforme
julgamos que ele deva ser. Fazer a escolha por isto ou aquilo equivale a
11
Cf. Rorty, 1992, em especial o Capítulo 2, “A contingência da individualidade”.
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afirmar ao mesmo tempo o valor daquilo que escolhemos, pois não podemos
nunca escolher o mal; o que escolhemos é sempre o bem, e nada pode ser
bom para nós sem sê-lo para todos. Se a existência, além do mais, precede a
essência, e se nós queremos existir ao mesmo tempo em que moldamos nossa
imagem, tal imagem é válida para todos e para nossa época inteira. Assim,
nossa responsabilidade é muito maior do que poderíamos supor, pois ela
envolve a humanidade como um todo.
[...] E se eu quero algo mais individual, casar-me, ter filhos,
embora este casamento dependa unicamente de minha situação, ou de minha
paixão, ou de meu desejo, com isso eu estou envolvendo não apenas a mim
mesmo, mas a toda a humanidade na prática da monogamia. Assim, sou
responsável por mim e por todos e crio uma determinada imagem do homem
que escolho ser; ao escolher a mim, estou escolhendo o homem.
[...] Nada me designa como sendo Abraão. No entanto, sou
obrigado, a cada instante, a realizar atos exemplares. Tudo acontece para cada
homem como se a humanidade inteira estivesse sempre com os olhos sobre o
que ele faz para agir de maneira semelhante. E cada um deve se perguntar:
sou eu mesmo o homem que tem o direito de agir de forma tal que a
humanidade se oriente por meus atos? E se ele não se colocar esta questão, é
porque está mascarando a angústia. (SARTRE, p. 27-30)
Qual a divergência com Sartre que Rorty atestaria a partir daí? É que, para ele,
Sartre não parecia ter extraído todas as consequências de seu próprio existencialismo. E
por quê? Porque Sartre ainda carregaria (de forma compreensivelmente coerente) uma
compreensão particular de homem que desejaria ampliar até o ponto de poder ser capaz
de incluir nela todos os homens. Que compreensão particular seria esta? A de que “todo
homem tem, necessariamente, uma obrigação moral com “todos os outros homens” (em
qualquer tempo e lugar) inscrita em sua ‘liberdade existencial’”. Agora, a pergunta
pertinente que Rorty faria seria esta: como uma fantasia privada de desejo poderia se
converter automaticamente em uma “obrigação moral coletiva”?
Para Rorty, fazer uma passagem do privado ao público desse modo seria um
completo despropósito. De fato, muitos já advertiram contra o terrorismo potencial do
imperativo categórico, inclusive filósofos que ainda professam um compromisso
inarredável com “a unidade da razão” (que, todavia, persiste “na pluralidade de suas
vozes”), como é o caso de Habermas. Rorty diria que mesmo um filósofo ateu e
existencialista como Sartre ainda se deixou levar pela ideia – religiosa – da “obrigação
moral (universal)”, ideia que deixou de fazer sentido desde que a maior parte do público
esclarecido das sociedades democráticas contemporâneas passou a considerar a
metáfora freudiana do inconsciente muito mais útil, do ponto de vista ético e político,
do que a metáfora kantiana da razão pura prática – para os fins práticos da consideração
da variabilidade e diversidade das complexas redes de crenças e desejos que constituem
identidades humanas.
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Rorty perguntaria se, afinal de contas, devemos levar a sério outra passagem
famosa do mesmo escrito de Sartre (2012, p. 32), que diz assim: “Dostoievski
escrevera: ‘Se Deus não existisse, tudo seria permitido’. É este o ponto de partida do
existencialismo.” Ou seja, como considerar coerentemente a ideia sartreana de que, com
o desaparecimento de Deus, também “desaparece toda possibilidade de encontrar
valores em um céu inteligível” (SARTRE, p. 32)? E como tornar compatível o
pressuposto da universalização obrigatória das preferências, máximas e normas do agir
com a ideia de que, sem Deus, “[...] não é mais possível existir bem algum a priori, uma
vez que não existe mais uma consciência infinita e perfeita para concebê-lo” (SARTRE,
p. 32)?
Nessa mesma passagem, Sartre reiterou sua crença de que não há mais normas
preexistentes, ao dizer que “não está escrito em lugar algum que o bem existe, que é
preciso ser honesto, que não se deve mentir, pois estamos exatamente em um plano
onde há somente homens” (SARTRE, p. 32). Apoiar-se em qualquer destas muletas,
como a de uma norma preexistente, seria o que Sartre chamava de “má-fé”, isto é, a
recusa em assumir o ponto de vista da liberdade existencial em fazer escolhas. Mas se
ele disse isso, como pode também querer que todo homem, ao agir, defina,
universalmente, as normas a serem seguidas por todos os outros? E como pode
imaginar, em contrapartida, que um homem “aceite livremente” as normas a ele
impostas pela “liberdade do outro”?
É que, como antecipamos ao tratar da questão da substituição de “natureza
humana” por “condição humana”, Sartre, no fundo, ainda tinha, sim, uma imagem
essencial da natureza do ser humano. Essa imagem foi construída a partir de dois
elementos interconectados: a “verdade absoluta da subjetividade” e a “angústia” que
decorre do desamparo e da absoluta solidão em que essa subjetividade (individual)
originalmente se encontra diante do “imperativo categórico da liberdade existencial”.
Ele escreveu:
Nosso ponto de partida, de fato, é a subjetividade do indivíduo, e isto por
razões estritamente filosóficas. Não por sermos burgueses, mas porque
queremos uma doutrina embasada na verdade [...] Não é possível existir outra
verdade, como ponto de partida, do que essa: penso, logo existo, é a verdade
absoluta da consciência que apreende a si mesma. (SARTRE, p. 46. Grifo
meu).
Ao que parece, Sartre teria endossado alguma espécie de “idealismo
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Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 3, 2013
cartesiano” para distinguir seu existencialismo como um “humanismo”, pois ele
conectou a “dignidade” do existencialismo à “primazia da subjetividade”, pela qual se
deve recusar a grosseria de um materialismo que trata “todos os homens, inclusive a si
mesmo, como objetos [...]” (SARTRE, 2012, p. 47). Mas, ao contrário de Descartes (e
de Kant, aparentemente), Sartre insistiu que “aquele que se apreende [...] pelo cogito,
descobre também todos os outros [...] como a condição de sua própria existência.”
(SARTRE, p. 47). Nesse caso, em vez da liberdade individual absoluta cartesiana e
kantiana, advogou o “mundo da intersubjetividade”, pela qual “o homem decide o que
ele é e o que os outros são” (SARTRE, p. 47).
Em virtude de tal intersubjetividade “constitutiva”, a subjetividade individual
está sempre confrontada com o fato de que suas escolhas terão que envolver,
“necessariamente” a todos os outros homens. Caso alguém não tenha essa clara
percepção, não será alguém “engajado”, e portará, em vez disso, os elementos da má-fé.
Ao contrário, se estiver engajado, o fato com que se depara “necessariamente” é o de
sua subjetividade compreendida como “angústia”:
O existencialista costuma declarar que o homem é angústia; isso significa o
seguinte: o homem que se engaja e que se dá conta de que ele não é apenas o
que escolhe ser, mas é também um legislador que escolhe ao mesmo tempo o
que será a humanidade inteira, não poderia furtar-se do sentimento de sua
total e profunda responsabilidade. (SARTRE, 2012, p. 28. Grifo meu).
Mas, com isso, Sartre estava dizendo o seguinte: há, em algum lugar “fixo e
imutável” – talvez na “verdade absoluta da consciência que apreende a si mesma” – a
norma de que, ao se engajar, isto é, ao reconhecer que tudo é contingência e que não há
normas fixas preexistentes, o homem necessariamente terá que enfrentar a angústia, que
é a norma de “agir segundo o... imperativo categórico (de Kant)”, ou seja, agir sempre
de modo a que a máxima da ação individual seja convertida em norma universal!
Ora, é exatamente este tipo de resíduo metafísico que Rorty não está mais
disposto a aceitar. Para ele, tomar o homem como “angústia” significa claramente recair
na tentação de imaginar que a “essência do homem” ainda está inscrita em algum lugar
celeste, ou mesmo que se tenha secularizado como Razão (ou cogito absoluto) agora
“angustiada”. Significa ainda supor que cada um de nós pode ter acesso privilegiado a
essa essência – por meio do cogito “intersubjetivo” – e, portanto, que a partir de seu
conhecimento, podemos, afinal, encontrar todos os critérios importantes para separar
claramente a ação humana da não humana, a civilização da barbárie, a natureza da
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Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 3, 2013
cultura, o eterno do contingente, a razão do irracional.
A maneira própria de Rorty de tentar dar coerência ao princípio do “ateísmo”
presente no existencialismo sartreano é uma reafirmação completa da “contingência”
pensada de forma naturalista e pragmatista. Se levarmos a contingência a sério, o
máximo que podemos esperar é que, com sorte, alguns homens consigam combinar,
fortuitamente, a dimensão do reconhecimento da própria contingência e a necessidade
de preservar a sociabilidade, a ética e o respeito aos outros.
Rorty cunhou a figura do “ironismo liberal” para designar essa possibilidade,
que é, reafirmemos claramente, uma mera possibilidade e não uma necessidade de tipo
metafísico, como Sartre sugeriu que a angústia fosse. Numa cultura em que a poesia
triunfou sobre a Filosofia, os intelectuais compreendem agora que a redenção pessoal,
isto é, o “caminho e a norma do próprio agir”, pode ser vertida apenas como a tentativa
no sentido heideggeriano de alcançar “propriedade” ou “autenticidade”, isto é, como
a busca de cada um para se tornar algo por sua própria e exclusiva escolha privada, e
não apenas o resultado de nossa aculturação e educação, muito menos o efeito da
pressão de nosso ambiente social. Nesse caso, o tipo de responsabilidade que cada um
tem para consigo mesmo não é comensurável com o tipo de responsabilidade que cada
um tem para com os outros.
Ao contrário de Sartre, Rorty entendia que a ação individual não pode e não
deve ser assumida sob a forma do imperativo categórico. Muito menos que exista a
priori qualquer tipo de intersubjetividade constitutiva, qualquer “identidade profunda e
essencial” entre os homens. Quando muito, devemos ver as ações que considerarmos
boas, em nós e nos outros, como exemplares, como modelos a serem imitados, mas
jamais como uma ação decorrente de norma universal à qual estejamos todos obrigados
a seguir, foro interno, em virtude de possuirmos uma “condição humana comum”, que
seria, em termos sartreanos, a nossa intersubjetividade constitutiva. Mesmo que, no caso
de Sartre, não se tratasse de falar em normas predeterminadas ou preexistentes, ele
sustentou uma espécie de “predestinação humana” por meio da “consciência comum”
constituída pela condição existencial, o que significa uma inevitabilidade da obrigação
moral que habitaria todos os homens, por ele chamada de “angústia”.
Assim, para Rorty, seria a “escolha privada de uma atitude metafísica com
relação ao homem” o aspecto filosófico que o separaria decisivamente de Sartre, ainda
que ambos pudessem ter caminhado juntos na defesa política da liberdade e da
tolerância. De acordo com Rorty, a “condição humana” nem é comum, nem é
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“encontrada pela consciência que se apreende a si mesma”. Ela é simplesmente criada
em circunstâncias frequentemente incomuns. Até porque as circunstâncias decorrem do
fluxo inexorável da contingência, que não permite a sustentação de igualdades por
muito tempo.
Foi exatamente essa consciência de “autocriação privada” de cada um o que a
literatura veio trazer de mais importante para a cultura, após o fim do predomínio da
Filosofia/metafísica. Mas, afinal, que impacto ético-político esperar de uma sociedade
em que os homens tenham assumido, finalmente, a cultura literária como hegemônica?
Nesse tipo de sociedade, os homens não precisam mais concordar em nada quanto ao
que é ser humano, ao que é bom para cada um, ou a qualquer outro tópico de “igual
generalidade”. Para Rorty, nada disso será um problema, desde que as instituições
funcionem à base da cooperação em vez da competição:
O cimento social que liga a sociedade liberal ideal [...] consiste em pouco
mais do que um consenso segundo o qual a justificação da organização social
é deixar que todos tenham uma oportunidade de autocriação até ao melhor
das suas capacidades e segundo o qual este objetivo exige, além da paz e da
riqueza, as “liberdades burguesas” normais. Esta convicção não se basearia
numa ideia acerca dos fins do homem universalmente partilhados, da
natureza da racionalidade, do Bom para o Homem, nem em qualquer outra
coisa. [...] Numa sociedade ideal dessas, a discussão dos assuntos públicos
efetuar-se-á em torno 1) de como equilibrar as necessidades de paz, riqueza e
liberdade, quando as condições exigem que um desses objetivos seja
sacrificado em favor dos outros e 2) de como nivelar oportunidades de
autocriação e depois deixar às pessoas e só a elas a decisão de usar ou de
recusar essas oportunidades. (RORTY, 1992, p. 116-117)
Sartre imaginou que, mesmo sem desculpas, o homem “autêntico” acaba por se
defrontar com a angústia, que é o peso existencial original que acompanha
necessariamente cada uma de nossas escolhas individuais, por “terem que ser estendidas
a todos os outros homens”.
Rorty certamente veria essa metáfora sartreana como um mau exemplo a
estimular os piores pesadelos de um ironista liberal – o terrorismo e o antiliberalismo da
“razão prática” –, pois, em nossa história registrada, o extravasar de fantasias privadas e
particulares como se fossem necessidades públicas tem sido incontestavelmente uma
das maiores fontes de tormento e crueldade.
E por bons motivos: em diversos momentos históricos, todas as definições
fundamentalistas do que é o homem só tiveram como resultado a exclusão, a tortura e a
destruição de todos quantos não se encaixassem nessas definições. Todas essas
doutrinas, a maioria das quais teve o apoio desta ou daquela formulação tradicional da
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Filosofia, são exemplos da tentação de buscar nos aliviar da necessidade de configurar o
drama da história na medida mesma em que avançamos. O passado pode nos iluminar,
mas não pode nos servir como apoio para a escusa de decidir.
Rorty alimentava a esperança de que, com o tempo, abandonemos o desejo de
encontrar uma “essência humana” e, com isso, ampliemos o grau de nossa tolerância
àqueles que, apenas por possuírem outras culturas, por exemplo, são considerados
“desumanos”. O que, é claro, não equivale a dizer que “todas as culturas são igualmente
válidas”, como ele não cansou de enfatizar. Até porque não é possível a um liberal
sincero valorizar, por exemplo, a cultura nazista alemã dos anos ’30 nem a cultura das
gangues stalinistas soviéticas dos anos ’40 do século XX, assim como não se pode
valorizar de modo socialmente útil a subcultura dos gângsteres e traficantes de drogas
da Chicago dos anos ‘20, ou de qualquer cidade em diferentes tempos.
Para concluir, aponto como ficariam, para Rorty, as esperanças utópicas de uma
sociedade em que os indivíduos sejam “liberais”
12
. Uma sociedade idealmente liberal
seria aquela dedicada a aperfeiçoar o equilíbrio entre deixar em paz as vidas privadas
das pessoas e evitar o sofrimento causado por uns a outros. Numa sociedade desse tipo,
apenas o crescente aperfeiçoamento das instituições livres – sempre circunstanciais e
nunca essenciais – funcionando cooperativamente, é que poderia constituir a esperança
de tornar melhores as condições de vida dos homens.
Em resumo, se o marxista Sartre iria provavelmente criticar o liberal Rorty por
seu “relativismo”, Rorty certamente admoestaria Sartre para que suas metáforas
filosóficas permanecessem limitadas à dimensão privada de sua riquíssima autocriação
literária, bastante inspiradora para aqueles interessados na própria autonomia, mas de
modo algum um marco inelutável rumo à definição última do que é “a natureza
humana”.
Ao que parece, até mesmo para honrar o princípio existencialista, faria muito
mais sentido deixar que cada um projete sua vida como quer sem que isto signifique, ao
mesmo tempo, ter que projetar as vidas alheias. E o único acordo que precisaríamos ter
entre nós é o de não fazermos sofrer uns aos outros. Pode não parecer muito, mas é tudo
o que se pode ter.
12
Cabe fazer aqui o esclarecimento que faltava: Rorty usa a expressão “liberal” a partir do vocabulário da
escritora Judith Shklar, com a qual a autora designava “o tipo de pessoa que acredita que a crueldade é a
pior coisa que se pode cometer”.
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REFERÊNCIAS:
RORTY, Richard. Contingência, ironia e solidariedade. Lisboa: Presença, 1992.
______. Consequências do Pragmatismo. Lisboa: Instituto Piaget, 1999.
______. Filosofia e o espelho da natureza. Lisboa: Dom Quixote, 2004.
______. O declínio da verdade redentora e a ascensão da cultura literária. In: ______;
GHIRALDELLI JR., P. Ensaios pragmatistas. Sobre subjetividade e verdade. Rio de
Janeiro: DP & A, 2006. p. 75-104.
______. Filosofia como política cultural. São Paulo: Martins, 2009.
SARTRE, Jean-Paul. O existencialismo é um humanismo. Petrópolis: Vozes, 2012.
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LA CRÍTICA SENTIMENTALISTA DE RICHARD RORTY A
LOS DERECHOS HUMANOS
José María Filgueiras Nodar1
RESUMO
Este artigo começa com a exposição das críticas de Rabossi ao fundamentalismo dos
direitos humanos e, em seguida, expõe em linhas gerais a crítica rortyana aos direitos
humanos, e como ela está relacionada a dois temas que Rorty herdou do pragmatismo: a
natureza plástica dos seres humanos e a inexistência de obrigações morais universais.
Posteriormente, o texto mostra o mecanismo capaz de trazer o progresso moral, de
acordo com Rorty: a expansão do círculo das identidades morais, um processo
conduzido pela educação sentimental.
Palavras-chaves: pragmatismo, Rorty, direitos humanos, sentimentalismo, Rabossi.
RESUMEN
Este artículo comienza con la exposición de la crítica de Rabossi al fundamentalismo de
los derechos humanos y pasa luego a exponer las líneas generales de la crítica a los
derechos humanos realizada por Rorty, así como el modo en que ésta se halla
relacionada con dos temas que Rorty hereda del pragmatismo, como son el carácter
plástico de los seres humanos y la inexistencia de obligaciones morales universales.
Posteriormente, el texto muestra el mecanismo a través del cual Rorty considera que se
produce el progreso moral: la ampliación del círculo de las identidades morales, un
proceso guiado por la educación sentimental.
Palabras clave: pragmatismo, Rorty, derechos humanos, sentimentalismo, Rabossi.
ABSTRACT
This paper begins with the exposition of Rabossi’s criticisms to human rights’
fundamentalism and then it expounds in outline Rortyan criticism to human rights, and
how it is related to two themes Rorty inherited from pragmatism: the plastic nature of
human beings and the lack of universal obligations. Subsequently, the text shows the
mechanism capable of bringing moral progress, according to Rorty: the expansion of
the circle of moral identities, a process driven by sentimental education.
Keywords: pragmatism, Rorty, human rights, sentimentalism, Rabossi.
1
José María Filgueiras Nodar es Doctor en Filosofía Contemporánea por la Universidad Autónoma del
Estado de Morelos (México). Su tesis, presentada en enero del 2007 con el título de La reconstrucción
historiográfica de la epistemología en Richard Rorty, fue dirigida por José Miguel Esteban Cloquell.
Actualmente, es Profesor-Investigador de Tiempo Completo Titular A en la Universidad del Mar (Bahías
de Huatulco, México), donde dirige el Instituto de la Comunicación. Correo electrónico:
[email protected]
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1.-Introducción
Para Rorty, los derechos humanos están sujetos a una objeción fundamental: su
aplicación siempre dependerá de qué grupo o grupos consideramos humanos. Esta
sencilla idea de fondo, mezclada con algunos temas de aparición constante en el
neopragmatismo rortiano, le llevará a una interesante perspectiva que enriquecerá
nuestra comprensión de los derechos humanos. Uno de los mejores lugares para
explorar en profundidad dicha concepción rortiana es su artículo “Derechos humanos,
racionalidad y sentimentalismo”, incluido en el tercer volumen de sus Escritos
Filosóficos. Dado que este texto comenta algunas consideraciones del pensador
argentino Eduardo Rabossi, comenzaremos presentando rápidamente la crítica de este
autor a lo que él denomina ‘fundamentalismo de los derechos humanos’. Después,
pasaremos a exponer las líneas generales de la crítica rortiana a los derechos humanos,
así como el modo en que esta crítica se relaciona con dos temas de raigambre
pragmatista que aparecen en numerosos lugares de la obra de Rorty: el carácter plástico
de los seres humanos y la inexistencia de obligaciones morales universales, claramente
separables de los imperativos de la prudencia. Posteriormente expondremos el
mecanismo a través del cual nuestro autor considera que se produce el progreso moral:
la ‘ampliación del círculo’ de nuestra identidad moral, ligada a la educación de los
sentimientos característica de géneros como la novela el cine (y no, debemos añadir, de
los tratados o las leyes).
2.-Rabossi y la cultura de los derechos humanos
En “La teoría de los derechos humanos naturalizada”, Rabossi defiende la idea
de que el ‘fundamentalismo de los derechos humanos’ es un empeño desfasado. Lo
primero que debemos presentar, por supuesto, es el modo en que entiende tal
fundamentalismo, caracterizado por Rabossi (1990: 160) como la tesis de que:
los derechos humanos necesitan fundamentación o justificación moral;
la fundamentación moral de los derechos humanos supone una contribución
filosófica decisiva para una teoría de los derechos humanos;
los derechos humanos son un tipo de derechos morales;
los derechos humanos se deducen (tienen que deducirse) de un principio
moral o de un conjunto de principios morales.
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En su opinión, los filósofos que defienden esta tesis están equivocados, porque
no toman en cuenta un hecho del mundo, como es la existencia de “una floreciente
cultura de derechos humanos” (Rabossi, 1990: 159), de la cual formamos parte y en la
cual nos hallamos inmersos. Rabossi (1990: 159) ofrece una visión de lo que a nuestro
juicio representa disponer de una tal cultura en uno de los primeros párrafos de su
artículo, que pese a su extensión no nos resistimos a exponer:
Estamos acostumbrados a “ver” cierto tipo de acontecimientos “como”
violaciones de los derechos humanos: los rechazamos, nos manifestamos
contra ellos, nos entristecemos ante ellos. Reconocemos la existencia de
grupos y movimientos a favor de los derechos humanos: los defendemos, los
criticamos, nos unimos a ellos. En alguna ocasión nos descubrimos valorando
nuestros sentimientos, creencias y comportamiento —y los de nuestros
semejantes—, según el estándar de los derechos humanos: presuponemos,
desde luego, que sería injusto no lamentarnos con ellos. Nos hallamos
familiarizados con un grupo de normas e instituciones —internacionales y
regionales— que enumeran los derechos humanos y proporcionan una
impresionante estructura institucional: confiamos en ellos, cuando es
necesario, siendo conscientes de que para innumerables seres humanos estas
normas e instituciones constituyen el único recurso frente a la injusticia y las
persecuciones. (RABOSSI, 1990: 159)
Para mostrar el error de los fundamentalistas, Rabossi realiza una crítica de las
opiniones de dos pensadores especialmente destacados dentro de esa posición teórica:
Carlos Nino y Alan Gewirth. Nosotros nos centraremos en las críticas a este último,
debido a que son las que Rorty recoge en su argumentación. Al respecto, Rabossi
comienza haciendo un resumen de las concepciones de Gewirth, expuestas en su
artículo “The Epistemology of Human Rights”, un texto destinado a responder la
pregunta de si existen los derechos humanos, que para Gewirth tienen como objeto
ciertos bienes que constituyen las condiciones necesarias para la acción de cualquier ser
humano2. Por lo que se refiere a la existencia de los derechos humanos, Gewirth
considera que la palabra ‘existencia’ resulta ambigua en ese contexto, ya que puede
referirse tanto a las condiciones de los derechos humanos a nivel institucional (por
ejemplo, su promulgación o su reconocimiento por parte de la sociedad), un sentido que
rechaza por diversas razones, como a la justificación moral de dichos derechos. En este
segundo sentido, que existan los derechos humanos significará que existan razones que
fundamenten o justifiquen “los requisitos morales que constituyen la naturaleza de los
derechos humanos” (Gewirth, citado en Rabossi, 1990: 168). Para Gewirth, esto quiere
2
La relación entre derechos humanos y acción humana es explorada de una manera particularmente
perspicaz por Michael Ignatieff (2003), para quien tales derechos son, precisamente, los requisitos
fundamentales de la agencia humana.
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decir que la existencia de los derechos humanos depende de la posibilidad de construir
un argumento moral que los justifique. Además, afirma que la existencia de dicho
argumento es algo que descubrimos, no algo que inventamos, de modo que, si no somos
capaces de encontrarlo, no debemos pensar que no existe (sino, presumiblemente,
redoblar los esfuerzos de búsqueda).
La crítica de Rabossi a Gewirth comienza señalando que éste no discute el
carácter moral de los derechos humanos, sino que únicamente lo postula, dándolo por
hecho en la discusión ulterior. Gewirth afirma también que el mundo actual “contiene
elementos y corrientes de pensamiento que son antitéticas a la idea de los derechos
humanos, y que se necesita entonces un intento de discusión o prueba” (Rabossi, 1990:
170) de éstos. Para Rabossi, Gewirth confunde dos maneras en que se puede hablar del
grado en que los derechos humanos se integran en nuestra cultura: por un lado, los
derechos humanos tomados como componentes reales de la misma, y por otro, los
derechos humanos que se materializan realmente en nuestra cultura. Nadie puede dudar,
afirma Rabossi, que los derechos humanos son componentes reales de nuestra cultura.
El hecho de que también existan violaciones de los derechos humanos o corrientes de
pensamiento que se oponen a ellos, así como el hecho de que en el mundo todavía
existan muchas personas que no disfrutan de los mismos, no implica que tales derechos
no sean un componente real de nuestra cultura. Porque ellos lo son, afirma Rabossi
(1990: 170), “podemos «ver» y expresar las violaciones de los derechos humanos”. La
conclusión de Rabossi es que la argumentación de Gewirth no se adecúa a los hechos,
pues presupone una concepción del mundo que ya ha sido sobrepasada. Aunque la
crítica de Rabossi continúa, discutiendo si el razonamiento de Gewirth sobre el carácter
moral de los derechos humanos es lo suficientemente persuasivo (y respondiendo
negativamente a tal cuestión), a nosotros nos bastará con esta exposición, puesto que es
el aspecto del texto en que Rorty parece centrarse.
3.- La reconstrucción histórica de Rorty
Tal y como Rorty (2000a: 223) lee a Rabossi, éste estaría pidiendo a los
filósofos “que dejen de situarse por detrás o por debajo de este hecho [la cultura de los
derechos humanos], que no sigan intentando detectar y defender sus llamadas
presuposiciones filosóficas”. Que acepten, pues, dicha cultura como “un hecho nuevo y
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feliz del mundo postholocausto” (Rorty, 2000a: 223) y dejen de “sostener que los
derechos humanos no pueden depender de hechos históricos” (Rorty, 2000a: 223). Es
por ello que las afirmaciones de Rabossi con respecto a que “el fenómeno de los
derechos humanos convierte el fundamentalismo de los derechos humanos en pasado de
moda e inaplicable” (Rabossi, 1990: 174) le parecen tan interesantes a Rorty.
Aquí consideramos necesario sugerir como hipótesis que parte del interés de
Rorty puede deberse a que estas consideraciones de Rabossi resultan altamente
compatibles con otras que aquél ha defendido a lo largo de su obra. Se aprecia este
efecto cuando observamos el modo en que Rorty entiende el fundamentalismo de los
derechos humanos, al cual considera “el esfuerzo de ciertos cuasiplatónicos para
cobrarse, por fin, una victoria definitiva sobre sus oponentes” (Rorty 2000a: 223). En
este punto resulta conveniente recordar las grandes líneas de la reconstrucción del
devenir histórico de la filosofía realizada por Rorty, pues atender a ésta nos llevará a una
mejor comprensión de las intenciones y las declaraciones de nuestro autor.
A grandes rasgos, Rorty entiende la historia de la filosofía como la crónica de
una rebelión, en la cual un grupo de pensadores, a los que denomina ‘pragmatistas’
(incluyendo bajo esta etiqueta a autores pertenecientes a corrientes muy dispares), se
alza contra una tradición opresiva, la ‘tradición platónico-kantiana’. Esta disputa,
referida sobre todo al terreno de la epistemología, es elaborada por Rorty en diversos
lugares de su obra (véase p. ej. Filgueiras 2007a,b, y Filgueiras y Esteban 2013) y, en
nuestra opinión, es lo que da sentido a muchas de las concepciones de Rorty,
especialmente aquellas más polémicas, que difícilmente podrían entenderse sin tomar en
cuenta este trasfondo. Esto se entenderá mejor tras una presentación de los principales
hitos de este conflicto secular, para lo cual comenzaremos mostrando los tres rasgos que
definen a la tradición platónico-kantiana, la cual abarca, además de a los dos pensadores
que le dan nombre, a autores tan destacados como Descartes, Locke, Hussserl, Russell o
el primer Wittgenstein. Para Rorty, todos estos autores parecen compartir tres
presuposiciones comunes: la primera de ellas es el esencialismo, que Rorty entiende,
más o menos, como la consideración de que sólo existe una descripción correcta de cada
cosa. La segunda, el fundacionalismo, es decir, la idea de que el conocimiento o la
ciencia tienen que apoyarse en bases sólidas, de ser posible inmunes a cualquier ataque
escéptico. La tercera presuposición que parecen compartir todos los pensadores de la
tradición platónico-kantiana es el representacionalismo, esto es, la consideración de que
“saber es representar con precisión lo que se encuentra fuera de la mente” (Rorty, 2001:
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Los pensadores que Rorty denomina ‘pragmatistas’ reaccionan de diversas
maneras ante estos tres presupuestos. Evidentemente, no es fácil resumir en unas líneas
una serie de movimientos del pensamiento llevados a cabo durante siglos, pero podemos
recordar algunos hitos especialmente destacados. Para ello, nos centraremos
especialmente en el tratamiento que hacen de la noción de verdad, lo cual nos permitirá,
además, desplazarnos del terreno de la epistemología al de la moral (un desplazamiento,
además, que resulta plenamente coherente con la trayectoria filosófica del propio
Rorty).
Como sabemos, el concepto de verdad ha tenido numerosas interpretaciones a
lo largo de la historia de la filosofía. Según la tradición platónico-kantiana, tal concepto
se liga a lo que es denominado usualmente el ‘correspondentismo’, esto es, la
consideración de que la verdad debe entenderse como adecuación o correspondencia, lo
cual hace presentes los tres presupuestos de la tradición platónico-kantiana que hemos
comentado. Su representacionalismo es evidente desde el momento en que nos damos
cuenta que estamos hablando de la adecuación o correspondencia de nuestras
representaciones (sean éstas entendidas como ideas, expresiones lingüísticas, o de
cualquier otro modo) con el mundo. El esencialismo aparece al reparar que la única
descripción correcta que se puede dar de un fenómeno es, precisamente, la verdad, y el
fundacionalismo, a su vez, cuando consideramos que lo único que puede
proporcionarnos el tipo de base sólida capaz de basar nuestro conocimiento es también
la verdad.
Se han producido numerosas reacciones en contra de este concepto de verdad.
Nosotros las agruparemos en dos grandes vertientes, que se corresponden con la
discutida distinción entre “analíticos” y “continentales” (véase p. ej. D’Agostini, 2000).
Los primeros en reaccionar ante el concepto tradicional de verdad fueron los idealistas
alemanes, especialmente Hegel, de quien Rorty destaca su historicismo. Posteriormente
vendría Nietzsche (1980), con su virulento ataque a la noción de verdad en sentido
extramoral. A este respecto, Rorty cita aprobatoriamente, en numerosas ocasiones, la
3
Desde esta perspectiva, el fundacionalismo puede considerarse como una especie de vínculo capaz de
vertebrar la tradición, pues conecta los tres pilares de ésta de la siguiente forma: para Platón, la
contemplación directa de las esencias (del Mundo de las Ideas) era lo que fundamentaba el
conocimiento); para Descartes, por su parte, ese fundamento del conocimiento venía dado por la certeza,
la cual sólo podía lograrse de aquello inmediatamente presente ante la mente, las ideas o representaciones.
Para el representacionalismo posterior a Kant, como el de los filósofos analíticos, se tratará de un
fundacionalismo basado en representaciones privilegiadas.
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consideración nietzscheana de la verdad como ejército de metáforas, las cuales, debido
al uso, acaban por parecer obligatorias y canónicas. Ulteriormente, Heidegger
radicalizaría la posición nietzscheana, en la dirección de la crítica de la metafísica de la
presencia, del olvido del ser, y aun de los conocidos temas heideggerianos posteriores a
la Kehre. Y más tarde Derrida haría lo propio con Heidegger, convirtiendo a la filosofía
en nada más que otro género de escritura. Esta serie de reacciones frente al concepto de
verdad, dentro de la tradición continental, desdibujan en gran medida la noción
tradicional, basada principalmente en la correspondencia, y acaban proponiendo, a
grandes rasgos, que debemos entender a la verdad en un sentido muy parecido al
planteado por Nietzsche, como un conjunto de metáforas que las distintas comunidades
van construyendo y aceptando a lo largo de su devenir histórico.
Pasando ya a la vertiente analítica de la rebelión, debemos decir que, debido al
gran interés de esta corriente por el tema de la verdad, nos hemos visto obligados a
seleccionar únicamente tres críticas, aquéllas a las que Rorty presta mayor atención. La
primera de ellas es el ataque de Quine (1995) a la distinción analítico/sintético, basada
en un cuidadoso estudio de la noción de sinonimia y que, entre otras cosas, derriba la
distinción entre verdades analíticas (dependientes del significado) y sintéticas
(dependientes de los hechos). Sellars (1956) y su ataque al Mito de lo Dado nos
proporcionan la segunda crítica. Grosso modo, el ataque de Sellars a este mito
fundacionalista está basado en la idea de que no existen verdades indudables acerca de
nuestra experiencia sensorial, capaces de fundamentar nuestro conocimiento, ya que
existe siempre la posibilidad de que las conceptualizaciones con que reaccionamos a las
experiencias sensoriales puedan estar equivocadas.
Según Rorty, Quine y Sellars se quedaron a medio camino en sus ataques. No
es sino hasta Davidson (1990) que la filosofía puede considerarse libre de la negativa
imagen que este autor denomina ‘el dualismo de esquema y contenido’. La base del
ataque de Davidson es el contacto directo (de orden causal) entre nosotros y el entorno,
contacto que hace innecesario cualquier tipo de intermediario representacional
(lenguaje, ideas o ‘marco conceptual’) entre el individuo y el ambiente, eliminando, por
tanto, cualquier apoyo a una teoría de la verdad como adecuación, correspondencia, o
algo por el estilo.
Teniendo en mente estos precedentes, Rorty nos proporciona una concepción
de la verdad que Putnam (1995: 114) caracteriza de un modo a nuestro juicio muy
acertado: “para Rorty, «es verdadera» es tan sólo una suerte de cumplido que hacemos a
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las oraciones con las cuales estamos de acuerdo. Las propiedades esenciales que
queremos que tengan tales oraciones son: (1) que sean «correctas» según las pautas de
nuestros pares culturales […] y (2) que nos permitan «proceder con éxito»”. Es difícil
presentar aquí todas las consecuencias que podrían extraerse de esta noción de la
verdad; a efectos de nuestra exposición bastará con destacar que tras renunciar a una
Verdad absoluta, Rorty apuesta decididamente por la proliferación de múltiples
descripciones, es decir de múltiples verdades con minúscula, pues es fácil comprobar
que existen numerosas descripciones capaces de cumplir las dos condiciones expuestas
por Putnam. Lo importante aquí es que el ‘proceder con éxito’ de que habla éste, que
podría entenderse fácilmente en un sentido pragmatista como ‘resolver problemas’,
puede expandirse a numerosos ámbitos, desde la tecnología o la ciencia hasta el arte y la
moral. Tenemos entonces que, como mencionábamos, el análisis del concepto de verdad
nos ha sacado del campo de la epistemología y nos ha situado en el terreno éticopolítico, que es donde se desarrollan (entre otros) los debates sobre los derecho
humanos. En el siguiente apartado, expondremos la visión rortiana de algunas aristas de
este debate.
4.- Naturaleza humana y obligaciones universales.
Después de haber expuesto las líneas generales de la reconstrucción rortiana,
nos será fácil entender en todo su alcance por qué puede decir nuestro autor que la tesis
a defender en “Derechos humanos, racionalidad y sentimentalismo” es “que nada que
sea relevante para la decisión moral separa a los seres humanos de los animales excepto
ciertos hechos del mundo históricamente contingentes, hechos culturales” (Rorty,
2000a: 24). En efecto, desde la antigua Grecia se ha considerado que los humanos nos
diferenciamos de los demás animales por nuestra capacidad de conocer verdades
universales, una capacidad que estaba ligada a una facultad humana denominada
‘racionalidad’, a la cual, como enseguida veremos, Rorty otorga muy poca relevancia
para el debate sobre los derechos humanos. Pero antes de seguir comentando este punto,
debemos preguntarnos cómo entiende Rorty dichos derechos humanos.
En “Ética sin obligaciones universales”, comenta que la visión habitual es
considerarlos “los límites infranqueables de la deliberación política y moral” (Rorty,
2000b: 216). Dice también que suele darse por hecho que tales derechos se encuentran
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“más allá de cualquier debate” (Rorty, 2000b: 216), llegando a considerarlos, un tanto
irónicamente, “los motores inmóviles de la mayor parte de la política contemporánea”
(Rorty, 2000b: 216). En la misma línea, prosigue diciéndonos que hablar de derechos
humanos, universales, inalienables, etc., “es un eslogan ni mejor ni peor que aquel otro
de «obediencia a la voluntad de Dios»” (Rorty, 2000b: 216). Lo único que se expresa al
invocar tal eslogan es, en su opinión, que no se puede discutir más, que se ha llegado al
tope de nuestras posibilidades argumentativas, pues tales derechos no son razones que
puedan justificar nuestras acciones, sino tan sólo anuncios de que hemos tomado la
decisión de ajustar tales acciones al marco que los mismos nos proporcionan. Es por
ello que no los considera objetos interesantes para un análisis filosófico, el cual no
podrá avanzar más allá de esa frontera que representa el ser anuncios de una decisión.
Los filósofos que intentan llevar a cabo ese análisis, preguntándose, por ejemplo, si los
seres humanos tienen realmente tales derechos, se extralimitan. Y gran parte de su error
se debe a que siguen sosteniendo viejas concepciones (de origen griego), que relacionan
la ética con el conocimiento, el comportamiento moral con la racionalidad, ideas que
Rorty considera netamente características de la tradición platónico-kantiana, a la cual,
como hemos visto, se opone su pragmatismo.
No entraremos a exponer en detalle la particular (y polémica) versión del
pragmatismo sostenida por Rorty, que ha recibido numerosas críticas 4. Baste con decir
que existen dos elementos característicos del neopragmatismo rortiano que se
encuentran detrás de su visión de los derechos humanos y que por ello merecen ser
explicados antes de continuar con nuestra exposición de tal visión. Estos elementos, que
trataremos en los epígrafes subsiguientes, son: (a) la consideración de que no existe una
naturaleza humana, y (b) el punto de vista según el cual no tiene sentido hablar de
obligaciones morales universales. Para apreciar su interpretación de cada uno de estos
elementos, debemos tener en cuenta que Rorty, desde un momento relativamente
temprano de su carrera, entiende al pragmatismo como una forma de antiesencialismo.
Recordemos, por ejemplo, una de las caracterizaciones que proporciona en
Consecuencias del Pragmatismo, donde considera a esta corriente filosófica como “la
aplicación del antiesencialismo a nociones como «verdad», «conocimiento»,
«lenguaje», «moralidad» y semejantes objetos de especulación filosófica” (Rorty, 1996:
243). Este antiesencialismo, como se puede ver fácilmente, se desplegará en diversos
4
Véase, por ejemplo, Saatkamp (1995), así como Haack (2001) y Esteban (2003, 2006).
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frentes, de la epistemología a la ética. Dicho esto, podemos continuar con nuestra
exposición.
(a) El primer elemento que influye en la lectura rortiana de los derechos
humanos es el hecho de que para un pragmatista como nuestro autor los seres humanos
no poseen una esencia definida. Por un lado, Rorty se da cuenta de que los humanos
somos tan plásticos, tan proteicos, que difícilmente podremos dejarnos captar en una
definición “esencial” como las que pretendía Aristóteles. Gran parte de nuestra
plasticidad, debemos decir, se debe a razones históricas o culturales. Épocas diferentes y
civilizaciones diferentes generan personas y culturas diferentes. Más aun, cada época y
con bastante probabilidad cada cultura ha propuesto definiciones presuntamente
universales de lo que significa ser un humano. Por otro lado, Rorty se da cuenta también
de que tales definiciones no han tenido otra utilidad que la exclusión de determinados
grupos de nuestra consideración moral. Bárbaros, negros, mujeres, homosexuales y
otros muchos grupos han sido dejados a un lado por considerar, sencillamente, que no se
ajustaban a la definición y por tanto, dicho de manera un tanto cruda, que no eran
humanos.
Que los seres humanos no poseen una esencia o naturaleza establecida de
antemano es un tema tratado por Rorty en diversos lugares. Nosotros expondremos
algunas consideraciones inspiradas en su obra Contingencia, ironía y solidaridad. En el
primer capítulo de este libro, Rorty defiende la idea de que debemos entender al
lenguaje, más que como un instrumento privilegiado para representar el mundo, como
una herramienta de entre las muchas de que disponemos los seres humanos para
adaptarse y modificar el entorno (tanto físico como social). En este punto debemos
advertir que cuando Rorty habla del lenguaje se está refiriendo a un concepto ampliado
del mismo, en el que incluye, además de a las lenguas propiamente dichas, elementos
como los paradigmas científicos (el lenguaje de Newton, el aristotélico), las corrientes
artísticas (el lenguaje romántico, impresionista), los grandes movimientos sociales (el
lenguaje de la Ilustración, de las democracias modernas), etc. Todos estos lenguajes, y
otros que podíamos citar, han aparecido de manera contingente, debido a una serie de
circunstancias concretas e irrepetibles. Posteriormente, tuvieron que adaptarse al
entorno, o modificarlo para ser aceptados como parte del mismo. Los lenguajes
exitosos, dice Rorty, acaban por conformar el mundo, de modo que las personas
comienzan a describir a éste en los términos proporcionados por los mismos. Las
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personas, que en otro lugar Rorty (1991: 98) considera “léxicos encarnados”, son en
gran medida producto de estos lenguajes. Si tenemos en cuenta que, además de los
puramente biológicos, el único factor con credenciales suficientes como para
considerarse lo característicamente humano es la posesión de lenguaje, y aceptamos la
contingencia del lenguaje, podemos entender por qué Rorty (1998: 110) no piensa que
“tengamos una identidad central y verdadera en virtud de nuestra pertenencia a la
especie humana, una identidad que responda al llamado de la razón”. En lugar de ello,
dice Rorty, resulta más fácil aceptar posturas como la defendida por Daniel Dennett
(1995) quien considera al yo como una especie de centro de gravedad narrativo, dado
que su principal consecuencia para la ética sería el permitir que los seres humanos, al
disponer generalmente de varias opciones narrativas, puedan hacer suyas diversas
identidades morales.
(b) Pasamos así al segundo elemento que queremos comentar, la inexistencia
de obligaciones universales e incondicionales. Al respecto, Rorty (2000b: 201ss.)
considera que la distinción entre tales obligaciones y las que sólo son condicionales o
hipotéticas se relaciona con la conocida diferenciación entre la moral (ligada al deber y
la ley, que a su vez se relacionarían con la racionalidad) y la prudencia (ligada esta
última a la conveniencia y al interés propio, aspectos que suelen ser relacionados con
los sentimientos). Nos recuerda entonces el modo en que John Dewey interpretó la
diferenciación entre moral y prudencia, “en términos de la distinción entre relaciones
sociales rutinarias y […] no rutinarias” (Rorty, 2000b: 201). Para Dewey, la prudencia
(como el hábito o la costumbre) describe la manera habitual de adaptarse al entorno
físico o social. Mirar si vienen carros antes de cruzar la calle, o confiar en nuestros
padres más que en los extraños, por ejemplo, son comportamientos prudentes, y afloran,
además, de una forma espontánea. Cuando aparece una controversia que ya no puede
ser resuelta apelando a estos comportamientos prudentes, en casos como el choque de
nuestras necesidades con las de nuestra familia, o la necesidad de nuestra comunidad de
ponerse de acuerdo con una comunidad vecina, entonces surge la moral. Según Rorty, la
principal virtud de esta interpretación deweyana es que convierte a la dicotomía
prudencia-moralidad en una cuestión de grado.
Defendiéndose de las habituales críticas de corte kantiano, según las cuales
Dewey (al igual que los utilitaristas) confunde la autoridad de la ley moral con la
necesidad de adaptarnos al entorno, este autor plantea una analogía, que Rorty considera
muy interesante, entre la moralidad y el lenguaje. Acusar a una concepción como la
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defendida por Dewey de que “convierte [a la moral] en algo secundario con respecto al
puro hecho” (Dewey, citado en Rorty, 2000b: 203), significa partir de una distinción
falsa. Una distinción que nos obliga a decir que las normas o bien son previas a las
costumbres (y que por tanto dan a éstas su valor moral) o bien brotan de las propias
costumbres, convirtiéndose así en meros productos secundarios de las mismas. Si
observamos el lenguaje, prosigue Dewey (citado en Rorty 2000b: 203), nos daremos
cuenta de que, a pesar de haber surgido de “un barboteo ininteligible (…) y de la
presión de las circunstancias (…) una vez empieza a existir, existe como lenguaje y
funciona como tal”. Tal y como Rorty lee esta analogía, lo que Dewey quiere decir es
que no existe un momento en el cual podamos decir que el lenguaje deje de ser un
conjunto de reacciones frente al comportamiento de los demás, y pase (como cree la
tradición platónico-kantiana) a proporcionarnos representaciones de la realidad. Y
tampoco existe un momento definido en el cual los razonamientos prácticos dejen de
estar guiados por la prudencia y la utilidad y se conviertan en razonamientos morales,
adquiriendo de repente autoridad.
De este modo, a quien le dijera que la moral procede de una facultad exclusiva
de los seres humanos, la razón, mientras que la prudencia es algo que compartimos con
los demás animales, Dewey probablemente le replicaría que “lo único específicamente
humano es el lenguaje” (Rorty, 2000b: 203). Y cuando observamos la historia del
lenguaje, nos encontramos con que “desde un punto de vista evolucionista la única
diferencia entre los gruñidos y los tratados es la mayor complejidad de estos últimos”
(Rorty 2000b: 203-204). Ello no quiere decir que haya dejado de ser relevante la
diferencia entre los animales que usan el lenguaje y los que no, lo mismo que la
diferencia entre las culturas implicadas en la deliberación moral y las que no. Al
contrario, estas diferencias siguen conservando su relevancia, y siguen siendo evidentes,
sólo que se han convertido en diferencias de grado y no de género. Tratar de
transformarlas en diferencias ontológicas sólo conseguirá generar “unos problemas tan
insolubles como artificiales” (Rorty, 2000b: 204), precisamente la clase de problemas
que han estado ofuscando a la filosofía casi desde sus inicios. Y que todavía ofuscan a
quienes intentan fundamentar filosóficamente los derechos humanos.
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5. La crítica de Rorty a los derechos humanos
Como decíamos al inicio de este texto, la objeción de base que Rorty plantea a
los derechos humanos es que su aplicación siempre estará determinada por nuestra
definición previa de lo que consideramos un ser humano. Rorty comienza poniendo
algunos ejemplos tomados de la guerra de la ex Yugoslavia. Basándose en un reportaje
de David Rieff (citado en Rorty, 2000a: 219), nos cuenta que “para los serbios, los
musulmanes han dejado de ser humanos…Un guardia serbio que conducía una pequeña
furgoneta de reparto pasó por encima de unos prisioneros musulmanes que estaban
esperando para ser interrogados” o que “un musulmán en Bosansi-Petrovac
[fue]
obligado a arrancarle el pene de un mordisco a un correligionario suyo”. De esta
relación de hechos, Rorty extrae una moraleja que nos permitirá entender la clave de su
crítica a los derechos humanos. En su opinión, “los asesinos y violadores serbios no
creen estar vulnerando los derechos humanos. Pues esas cosas no se las están haciendo a
congéneres humanos, sino a musulmanes. No están siendo inhumanos, sino que
diferencian entre verdaderos humanos y pseudohumanos” (Rorty, 2000a: 219). Los
nazis, que diferenciaban entre arios verdaderamente humanos y judíos humanoides,
probablemente pensasen de la misma manera, de modo que podrían entender el
Holocausto como un intento de purificar la humanidad de elementos pseudohumanos y
así valorarlo positivamente.
Para Rorty, esto se deriva de que tendemos a usar la expresión ‘seres humanos’
para significar ‘la gente que es como nosotros’. Esa calidad humana se va perdiendo a
medida que nos alejamos de ese caso paradigmático que somos nosotros mismos, de
manera que cuando nos encontramos con personas muy diferentes, es posible que
lleguemos a considerarlas como pseudohumanos. Esta consideración puede adoptar
diversas formas: las personas pertenecientes a razas o culturas diferentes pueden ser
consideradas como animales (recordemos los “perros infieles” de que hablaban los
cruzados) o como niños (de ahí la costumbre en ciertos estados norteamericanos de
referirse a los afroamericanos de cualquier edad como “muchachos”); en otros casos,
como afirma Rorty (2000a: 222) “ser no humano es ser no varón”. Reparando en esto,
es fácil darse cuenta de que, por ejemplo, un nazi podría ser un convencido defensor de
los derechos humanos, podría aceptar todas las declaraciones y tratados que se han
hecho al respecto, y sin embargo estar dispuesto a enviar a miles de judíos a la cámara
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de gas. El nazi del ejemplo puede amar sinceramente a la humanidad, puede considerar
que todos los humanos tienen derechos inalienables, y al mismo tiempo no preocuparse
en absoluto por los judíos, puesto que no considera que éstos sean humanos. En este
caso, el problema básico no es el contenido de los derechos humanos, ni sus detalles,
sino sus mismas condiciones de aplicación. Lo que estaría en juego aquí es a quiénes
consideramos humanos y, por tanto, sujetos a la aplicación de los derechos. “Pues todo
depende –afirma Rorty (2000a: 232)– de quién cuente como otro ser humano semejante
nuestro, quién cuente como agente racional en el único sentido relevante: el sentido en
el cual agencia racional es sinónimo de pertenencia a nuestra comunidad moral”. En
ausencia de tal reconocimiento de pertenencia, de poco servirán las apelaciones usuales
a un rasgo común compartido por todos los seres humanos y que justificaría la
aplicación universal de los derechos humanos.
Para entender la escasa efectividad de tal medida, Rorty nos pide que
regresemos a la idea de los kantianos, quienes afirman que el reconocimiento de una
esencia común que compartimos por igual todos los seres humanos (entendida
generalmente como racionalidad) constituye el primer paso en el camino del progreso
moral, una idea que en opinión de nuestro autor carece por completo de cualquier
utilidad práctica. Los matones nazis que golpeaban a judíos por las calles durante los
años ‘30 del siglo XX sabían que estaban golpeando a gente sensible e inteligente,
muchos de los cuales eran profesionistas con una gran cultura. Pero ese hecho no hacía
que dejaran de golpearlos; al contrario, dice Rorty, sólo incrementaba el placer que
sentían al hacerlo. Más allá de esta constatación histórica, preguntémonos cómo
podríamos convencer racionalmente al nazi de nuestro ejemplo. Pensemos que se sienta
en una mesa a discutir con nosotros la Declaración Universal de los Derechos Humanos,
concretamente el primer apartado de su artículo segundo, donde se afirma que factores
como el sexo, la raza o la religión no deben ser causa de exclusión en la aplicación de
los derechos. Tal vez parezca difícil malinterpretar este apartado, pero este sujeto podría
pensar, sin ir más lejos, que cuando la Declaración habla de razas, se está refiriendo
únicamente a ciertos grupos humanos que él considera “admisibles”. Con respecto a
esos grupos, acepta que no se produzcan diferencias de trato, de modos que todos gocen
de derechos. Los demás grupos, que no son humanos por más que se parezcan a
nosotros, dejarían de estar resguardados por los derechos humanos. Desde luego, esta
interpretación del artículo es aberrante, pero difícilmente podríamos considerarla
62
Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 3, 2013
irracional, dentro de su particular lógica.
Quizá la argumentación racional tenga utilidad en los países occidentales de
cultura postilustrada, como los del Atlántico Norte, pero eso se debe, en opinión de
Rorty, a que sus habitantes están dispuestos a considerarse en primer lugar como seres
humanos y en segundo lugar como miembros de un determinado grupo étnico, tribal o
religioso. Sin embargo, esa no es la situación habitual en la mayor parte del mundo. Por
el contrario, lo que nos encontramos en multitud de lugares es una situación muy
distinta. Así, “en los países con una renta media anual inferior a dos mil libras, la
mayoría de las mujeres siguen sin contar” (Rorty, 2000a: 232), y “allí donde las
rivalidades tribales y nacionales tengan importancia, no contarán los miembros de las
tribus y naciones rivales” (Rorty, 2000a: 232). En casos como los citados, de poco
servirán los llamamientos kantianos a un componente común a todos los seres humanos,
que Rorty (2000a: 232-233) considera imposibles de defender desde premisas neutrales,
puesto que la mayoría de la gente, en su opinión, “es incapaz de comprender por qué la
pertenencia a una determinada especie biológica habría supuestamente de bastar para
formar parte de una comunidad moral”. Y la causa de tal incapacidad no es la falta de
racionalidad, sino el hecho constatable de que a menudo es demasiado peligroso
ensanchar los límites de nuestra identidad moral más allá de nuestra comunidad
inmediata. De hecho, afirma Rorty, su identidad moral depende en un sentido crucial de
lo que no son5.
Teniendo en cuenta estas ideas de Rorty, parece que sus comentarios críticos
sobre los derechos humanos nos han llevado a plantear una pregunta diferente. Después
de ver que la argumentación no es demasiado útil fuera del mundo postilustrado,
debemos preguntarnos ahora cómo se puede extender la cultura de los derechos
humanos, o incluso cómo lograr el progreso moral, sin recurrir a la argumentación.
Expondremos la respuesta de nuestro autor en el próximo epígrafe.
6.- La ampliación del círculo y la educación sentimental
Una respuesta inicial a esta pregunta es bastante sencilla: si vemos que la
cultura de los derechos humanos se ha extendido con relativa rapidez en el entorno
5
“Lo crucial para su sentido de quiénes son es que no son infieles, que no son maricas, que no son
mujeres, que no son intocables. Precisamente porque son pobres y su vida corre continuo peligro, apenas
tienen otra cosa para conservar su autoestima que el orgullo de no ser lo que no son” (Rorty, 2000a: 233234).
63
Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 3, 2013
noratlántico, la solución más evidente sería crear más países noratlánticos. Estos países
se caracterizan, a juicio de Rorty, por poseer una renta muy superior al promedio
mundial, lo cual ha redundado en diversos beneficios para sus habitantes, como una
mayor disponibilidad de tiempo libre y un mayor acceso a la educación. Aunque Rorty
afirma a veces que eso es todo lo que necesita para que se dé el progreso moral, cuando
descendemos a los detalles nos damos cuenta de que la situación de relativa riqueza y
comodidad de que disfrutan dichos países es más bien una precondición para que se
ponga en marcha el mecanismo capaz de producir verdadero progreso moral, al cual
nuestro autor denomina ‘la ampliación del círculo’.
Para presentar este concepto, Rorty (1998) expone una serie de situaciones
introductorias. Supongamos, nos pide en la primera de ellas, que un familiar o un amigo
muy cercano llama a nuestra puerta en mitad de la noche pidiéndonos que lo ocultemos
de la policía. La mayoría de nosotros ayudaríamos a nuestro amigo, aun a sabiendas de
que ha cometido un crimen. Incluso, afirma, seríamos capaces de cometer perjurio para
defenderlo. Pero nos sentiríamos mal, afirma Rorty, si por culpa de nuestra declaración
condenaran a una persona inocente. Este malestar sería mayor cuanto más pudiéramos
identificarnos con tal persona: tal vez no nos sentiríamos demasiado mal si el acusado
fuera un extranjero, o alguien de otra raza. En cambio, si el acusado fuese un compañero
de trabajo, un vecino u otro familiar o amigo cercano, nos sentiríamos mucho peor. El
conflicto que se produciría en un caso como éste podría describirse como un conflicto
entre la justicia y la lealtad que debemos a nuestro amigo.
Sin embargo, Rorty lo redescribe como un conflicto entre lealtades de distinto
rango: por un lado a nuestro grupo de referencia inmediato (al que pertenece nuestro
amigo) y por otro a un grupo más amplio, que incluye a la otra persona. En ciertos
casos, significativamente en situaciones extremas, como una guerra o una hambruna,
nos concentramos en nuestro grupo inmediato, de modo que disminuye nuestra lealtad a
los grupos de mayor rango, y podemos llegar a excluir de nuestras consideraciones
morales a personas que anteriormente estaban incluidas en ellas6. Rorty reafirma esta
idea con otra historia sobre los derechos de los animales no humanos y el uso que
hacemos de éstos para nuestros fines. En general, dice, “todos estamos medio
6
“Compartir la comida con gente empobrecida de la calle es natural y correcto en circunstancias
normales, pero quizá no en medio de una hambruna en la que hacerlo supusiera deslealtad con la propia
familia. Según las cosas se ponen más feas, los lazos de la lealtad con los que nos son cercanos se
estrechan, mientras los que nos unen con los lejanos se relajan” (Rorty, 1998: 105-106).
64
Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 3, 2013
convencidos de que los vegetarianos tienen algo de razón” (Rorty, 1998: 106). Sin
embargo, si se descubriese que algunas especies son portadoras de un virus que mata a
los humanos, todos apoyaríamos el exterminio de dichas especies, sin vacilación alguna.
Estos ejemplos le sirven a nuestro autor para proponer una hipótesis sobre el
modo en que los seres humanos funcionamos a nivel moral: todos tenemos un círculo de
personas por las que nos preocupamos más, hasta el punto de que nuestro bienestar
depende del suyo. En el caso de los miembros de este primer círculo, no tiene
demasiado sentido hablar de justicia o de obligaciones morales para con ellos: decir que
una madre está obligada a cuidar a su hijo, fuera de ciertas excepciones, no es necesario.
Y no lo es porque la preocupación de una madre por su hijo surge de manera
espontánea. A medida que nos alejamos de este primer círculo, nuestra lealtad se va
diluyendo7, hasta el punto de que pueden llegar a existir grupos por los cuales no
sintamos más que indiferencia, cuando no un claro rechazo. Entonces, si queremos que
se produzca progreso moral, nos encontramos con que el círculo tiene que ser ampliado.
La investigación nos ha llevado así a otra pregunta: ¿cómo podemos ampliar el círculo
de nuestras lealtades morales? Es importante señalar que, para Rorty, este círculo no va
a ampliarse “racionalmente”. Nadie nos va a convencer de tal ampliación argumentando
racionalmente, porque no existen premisas neutrales (en principio, podemos considerar
que todas están “cargadas” histórica y culturalmente). En este punto, Rorty hace
aparecer otro de los conceptos clave de su mundo moral: la educación sentimental, que
podemos caracterizar esquemáticamente como la manipulación de los sentimientos
humanos en el sentido de una mayor apertura de nuestras lealtades. ¿Cómo funciona
esta educación sentimental?
Aunque Rorty, a nuestro juicio, deja espacio para las vías más usuales de
educación (que podríamos caracterizar como ‘formales’), en general el modo en que
entiende la educación sentimental es bastante informal, similar al modo en que las
personas cambian de pareja o de círculo de amigos. De entrada, como ya hemos visto,
los tratados filosóficos o las propias leyes no sirven para educar sentimentalmente, sino
que la tarea, más bien, debe estar a cargo de géneros como el reportaje periodístico, el
documental, o, por supuesto, la literatura. Respecto a ésta, que Rorty entiende como el
género de mayor relevancia a la hora de alcanzar el progreso moral, nuestro autor
parece referirse exclusivamente a un tipo de literatura con contenido social, y capaz de
7
Las madres cuidan de sus hijos de manera espontánea, pero casi todos necesitamos de cierta presión
para hacer caso, por ejemplo, al reglamento de tránsito o a nuestras obligaciones fiscales.
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lograr cambios en el modo en que unas personas tratan a otras. Un ejemplo destacado de
este tipo nos lo ofrece la obra La cabaña del tío Tom, escrita por Harriet Beecher-Stowe.
Como sabemos, esta novela publicada en 1851 narra las difíciles condiciones de los
esclavos de color en el Sur de los Estados Unidos durante la época anterior a la Guerra
de Secesión. Cuenta la leyenda que cuando la autora fue presentada a Abraham Lincoln,
éste le preguntó si ella era “la pequeña mujer que ha iniciado esta gran guerra”. La
razón de esta pregunta, que de otro modo parecería absurda, es que la novela de Beecher
había hecho que muchas personas fueran capaces de ver el mundo desde la perspectiva
de un esclavo, por lo cual estaban predispuestas a favorecer la causa abolicionista. El
libro había educado sentimentalmente a su público, había sido capaz de romper
numerosas ‘costras de convención’ (por usar la expresión deweyana) y hacer que la
gente considerase a los negros como parte de su comunidad moral. Según esto, el
método propuesto por Rorty parecería haber funcionado a la perfección.
Teniendo en cuenta este ejemplo, así como otros muchos que podríamos
escoger, si aceptamos las conclusiones de Rorty, deberíamos ponernos a pensar en cómo
extender la cultura de los derechos humanos, más que en fundamentar dicha cultura.
Nuestros esfuerzos deberían darse ahora en la dirección de una difusión todavía mayor,
capaz de lograr que la misma se materialice efectivamente en todo el mundo. Las
consecuencias positivas de una mayor generalización de los derechos humanos hacen
que los esfuerzos por fundamentar los mismos puedan verse prácticamente como una
pérdida de tiempo.
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Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 3, 2013
DIMENSÃO DA EXPERIÊNCIA NO CONTEXTO ESCOLAR:
UM DEBATE A PARTIR DA SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA
Rafael Bianchi Silva1
RESUMO
Este trabalho faz uma reflexão sobre o lugar da experiência na sociedade
contemporânea, para, a partir disso, construir o papel da escola quanto a tal
problemática. Em um primeiro momento, é realizada uma discussão sobre o conceito de
experiência; a seguir, uma análise em dois eixos que incluem os impactos da
contemporaneidade na formação humana e o lugar do outro nesse processo. Por fim,
levanta-se que tal discussão é de importância fundamental para a formação de
professores, já que além de uma dimensão epistemológica, é possível na análise da
experiência, incluir um debate ético-estético-político acerca da educação humana.
Palavras-Chaves: Experiência; Contemporaneidade; Ética; Alteridade
ABSTRACT
This paper discuss about the place of experience in contemporary society, so after that,
built the school's role in front of these questions. At first, we held a discussion on the
concept of experience; at second time, it’s analyzed in two directions that include the
impacts of human development in the contemporary and the place of the other in this
process. Finally, we defend the fundamental importance of this discuss for the training
of teachers, as well as an epistemological dimension, it is possible in the analysis of
experience, including an ethical-political-aesthetic debate about education of man.
Keywords: Experience, Contemporaneity, Ethics, Alterity
1. INTRODUÇÃO (OU UMA BREVE DIGRESSÃO SOBRE OS
CAMINHOS PERCORRIDOS OU A PERCORRER)
Este artigo nasceu de um convite para uma conferência realizada no ano de
2011 dentro das atividades do Grupo de Pesquisa Pragmatismo e Positivismo e suas
Relações com a Educação. De certa forma, acabou sendo o elo entre as reflexões
realizadas na dissertação de mestrado desenvolvida entre os anos de 2007 e 2008 e as
discussões que construídas ao longo da tese de doutorado defendida no final de 20122.
1
Doutor em Educação (Unesp/Marilia), Mestre em Educação (UEL). Email: [email protected]
A dissertação de mestrado citada foi orientada pela profa.Leoni Maria Padilha Henning no Programa de
Pós-Graduação em Educação na UEL com o título “Autonomia e Formação Humana: Trajetos
Educativos” e a tese de doutorado foi orientada pelo prof.Alonso Bezerra de Carvalho no Programa de
2
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O objetivo da breve reflexão que segue é analisar as possibilidades de uma
experiência formativa – tomando como referência o conceito a partir do pragmatismo –
no contexto societário contemporâneo.
Por essa razão, de certa, pensar sobre limites e possibilidades desse processo
também diz respeito a refletir sobre os efeitos da própria prática educativa enquanto
professor e pesquisador. Dessa forma, coloca-se aqui um primeiro ponto: a experiência,
ainda que tomada como um conceito que implica relação, traz em si, a marca de cada
um. Por essa razão, o caminho que traçamos deve ser visto como uma escrita em
primeira pessoa, demarcada diretamente pela condição atual da experiência vivida
enquanto educador, ou seja, do impacto afetivo que o mundo gera em mim enquanto
agente de atuação/mudança. Retomo aqui as palavras de Alves (1980, p.28-29):
[...] E que recuperemos a coragem de falar na primeira pessoa, dizendo com
honestidade o que vimos, ouvimos e pensamos. Escrever biograficamente,
sem vergonha.
[...]
[...] Minhas palavras são extensões do meu corpo, meus membros se apóiam
nelas – daí que elas não são nunca, para o sujeito que sangra, meros reflexos
ideais, sublimados, inversões óticas da realidade. Quando a realidade está em
jogo, quem toca em uma de minhas palavras é como se tocasse na menina
dos meus olhos... [...].
Tal processo pode ser visto a partir de três dimensões que se mostram
simultaneamente enquanto sujeitos em formação que atuam dentro do campo
educacional. Primeiro, somos enquanto professores, aqueles que se deparam com os
impasses da impossibilidade de determinar todas as variações presentes na sala de aula
e, com isso, vive a busca constante de respostas para conduzir a própria prática.
Segundo, como aluno, somos aprendentes que se negam a ser objetos tutelados em
relação ao mundo da difusão técnica. E, por fim, como um “produto” desses dois
elementos anteriores, enquanto pesquisador, buscamos construir alternativas que não
aderem unicamente a própria realidade, mas sim, busca generalizações para novos
contextos e atuação com diferentes sujeitos. Dessa forma, configura-se uma condição de
intensa curiosidade sobre os fenômenos educativos, em especial, da relação professoraluno:
Como professor devo saber que sem a curiosidade que me move, que me
Pós-Graduação em Educação na Unesp/Marília com o título “Lugares para a Amizade na Sociedade
Contemporânea: Caminhos Educativos a partir da obra de Zygmunt Bauman”.
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inquieta, que me insere na busca, não aprendo nem ensino. Exercer a minha
curiosidade de forma correta é um direito que tenho como gente e a que
corresponde o dever de lutar por ele, o direito à curiosidade. Com a
curiosidade domesticada posso alcançar a memorização mecânica do perfil
deste ou daquele objeto, mas não o aprendizado real ou o conhecimento cabal
do objeto [...] (FREIRE, 1996, p.85).
Descrevo, portanto, um caminho, um continuum, uma experiência. Estar
marcado por esse processo é reconhecer-se como que cravado no mundo e
impossibilitado de analisar e refletir a atuação do educador fora dessa relação de sujeito
vivente e mundo vivido. Somente posso reconhecer-me enquanto pesquisador, aluno e
professor porque encontro-me marcado pelas experiências vividas na união com o
mundo a minha volta. Explica Amatuzzi (2008, p.9, grifo nosso) que
[...]o termo experiência, pela sua origem, significa o que foi retirado (ex) de
uma prova ou provação (perientia); um conhecimento adquirido no mundo da
empiria, isto é, em contato sensorial com a realidade. Experiência relacionase com o que se vê, com o que se toca ou sente, mais do que com o
pensamento. O que se deduz a partir do que se vê não é propriamente
“experiencial”, mas pensado. Conhecimento experiencial é o diretamente
produzido pelo contato com o real.
O mundo vivido, portanto, é o mundo experienciado, sentido com o próprio
corpo, atualizado pelas percepções a todo instante, que é refletido e conduzido pela e na
ação, construindo o que entendemos por existência humana, ou seja, o processo de
constituição daquilo que se é. Como afirma Bondía (2002, p.21), “A experiência é o que
nos passa, o que nos acontece, o que nos toca. Não o que se passa, não o que acontece,
ou o que toca [...]”.
Ainda sobre a questão, Teixeira (1985, p.115) afirma que
[...] se a vida não é mais que um tecido de experiências de toda a sorte, se não
podemos viver sem estar constantemente sofrendo e fazendo experiências, é
que a vida é toda ela uma longa aprendizagem. Vida, experiência,
aprendizagem – não se podem separar. Simultaneamente vivemos,
experimentamos e aprendemos.
Em outras palavras, esse processo que implica sensações e percepções
relaciona-se com o fato de que a experiência implica em vida. Teixeira (1969) faz uma
longa análise sobre o vínculo entre experiência e vida relacionando esse processo com o
campo do que é sentido. Segundo o autor, “[...] os sentidos e as sensações não são meios
ou caminhos do conhecimento, mas estímulos, provocações e sugestões de ação,
mediante os quais o organismo age e reage, ajustando-se às condições ou modificando
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as condições para esse ajustamento” (p.20).
Este processo não é um fato isolado, mas sim, um encontro entre diferentes em
determinado tempo histórico, que surge como algo inexplicável, que atua e retira o
organismo de seu equilíbrio. Isso se dá porque o fundamento do mundo é a mudança, o
que gera uma necessidade praticamente imperativa ao organismo de sair de um eixo
relativamente estável e adentrar em um campo de novas possibilidades. Os elementos
desse processo devem de alguma maneira integrar-se ao que sou efetuando o traço de
continuidade (fundamental ao caráter formativo da experiência). Assim, o processo de
constituição humana – que inclui o conhecimento – se mostrar como “[...] como o
problema da relação de uma existência com outras existências ou eventos [...]”
(ARAÚJO, 2008, p.2).
Dewey (2008, p.18), afirma que “[...] todas as interações que afetam a
estabilidade e a ordem do fluxo de troca, são ritmos [...]. O resultado é o equilíbrio e o
contraequilíbrio que não é estático ou mecânico. Ambos expressam um poder que é
intenso que se mede através da superação de uma resistência [...]”. Ou nas palavras de
Teixeira (1985, p.117),
A vida se caracteriza, mesmo em seus mais modestos aspectos, por essa força
de duração ou resistência, que lhe permite renovar-se, ainda quando julgamos
que se destrói. Onde quer que apareça, envolve luta e conflito entre o
organismo e o meio ambiente [...].
Tal processo, como desdobramento desse apontamento, leva a necessidade de
compreender o humano como um ser em relação, o que implica em duas direções de
análise: primeiro, qual o contexto em que tais relações ocorrem e; segundo, quais os
atores que estão em jogo, ou seja, em processo de troca nesse campo experiencial, o que
provoca um deslocamento da centralidade do sujeito para a questão da
intersubjetividade.
2. PRIMEIRO EIXO: SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA
Conforme aponta Teixeira (1969, p.77-78), aponta que, a partir do
pragmatismo de Dewey, os processos vinculados ao conhecer, ganham novas matizes
com o conceito de cultura já que através dela:
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Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 3, 2013
1) [...] é que se retêm e se transmitem às gerações subsequentes as
habilidades, informações e hábitos adquiridos [...].
2) Graças à cultura, as atividades orgânicas ou biológicas, já humanas a esta,
ganham novas características [...].
3) [...] A existência de símbolos (da linguagem) permite recordar e esperar
deliberadamente e, deste modo, criar novas combinações dos elementos
componentes da experiência revivida sob a forma simbólica ou verbal.
4) As atividades orgânicas terminam em ação, que é irreversível. Mas, se uma
atividade pode ser figurada em representação simbólica, não há um
compromisso final [...].
Assim, vemos que a vida – bios – possui íntima relação com o contexto
societário, suas regras e valores, que fundamentam o fazer humano enquanto atuação
que permite a construção do conhecimento e a formação de si. Conforme aponta Cunha
(2001, p.379), isso se deve a uma mudança na concepção de natureza humana proposta
pelo pragmatismo:
[...] se existe uma natureza humana, ela é essencialmente social, constituída
no mundo em que o indivíduo vive, mundo este que é formado pela herança
cultural das gerações passadas, pelos elementos físicos e espirituais do
presente e pelas relações que os homens estabelecem entre si, bem como pela
experiência de cada indivíduo neste mesmo mundo. Como tudo isso muda de
tempos em tempos, a natureza humana deve ser entendida como algo
constantemente mutável, jamais passível de ser definida aprioristicamente.
Indo para além disso, têm-se as bases para a construção da vida moral. Para a
compreensão de tais caminhos, expressa Dewey (1986, p.196) a necessidade de “[...]
estudar o processo interior, determinado pelas condições ou transformações das
condições exteriores, e a conduta ou instituição exterior, determinada pelo objeto
interior ou pelo fato de afetar a vida interior [...]”.
A questão que se coloca, indica a necessidade de compreensão de tais
condições exteriores, formulando um diagnóstico dos elementos presentes, para assim,
observar qual o fundamento relacional ao qual o homem se encontra inevitavelmente
ligado em nosso tempo. Ou em outras palavras, traçar as vias para o processo de
desenvolvimento a partir dos códigos de relação social que, em seu termo, são
fundamentadas nos laços entre os seres humanos.
Estabelece-se, então, a questão: quais as características de nosso tempo? Quais
os elementos existentes nas configurações relacionais de nosso contexto atual de
existência? Tal reflexão nos levará ao debate daquilo que chamamos atualmente de
“modernidade líquida”. Segundo Bauman (2009a, p.11-12 ), o contexto de liquidez se
define da seguinte forma:
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O "derretimento dos sólidos” traço permanente da modernidade, adquiriu,
portanto, um novo sentido, e, mais que tudo, foi redirecionado a um novo
alvo: um dos efeitos mais importantes dessa troca de direção foi a dissolução
das forças que poderiam ter mantido a questão da ordem e do sistema na
agenda política. Os sólidos tem sido submetidos à dissolução e o que estão
derretendo neste momento, o momento da modernidade fluida, são os
vínculos que entrelaçam as escolhas individuais e os projetos e as ações
coletivas - os padrões de comunicação e coordenação entre as políticas de
vida conduzidas individualmente, de um lado, e as ações políticas de
coletividades humanas, de outro.
Esse é o ponto inicial da pesquisa de doutoramento que se encontra em
construção: mapear as bases de nosso contexto atual para traçar de que forma os
vínculos tem sido construídos. E quando falamos de vínculos, procura-se estabelecer
uma dupla relação: com o conhecimento e com o outro ser humano. A premissa do viver
junto parece estar minada na dificuldade, quase impossibilidade que gera afastamento e
negação de estreitamento de laços.
Com isso, observam-se impactos na configuração da experiência formativa
humana já que conforme indica Dewey (2008, p.18), “[...] em um mundo de mero fluxo,
as trocas não seriam acumulativas [...]”. Tal traço gera um processo de contínua ruptura
da vida, ainda que ela esteja qualificada enquanto fluidez. Encontramos dificuldade de
gerar pontos de significação; o mundo, determinado apenas pelo movimento, não
atingimos o que o autor pontua como sendo o nível “estético” da experiência. As coisas
simplesmente acontecem, não gerando reflexão sobre os eventos que atingem o sujeito.
Tais experiências fragmentadas unificadas a lógica da virtualização da vida,
culminam em um afastamento do mundo vivido: escondido em um mundo a parte, junto
de muitos e afastado de todos (uma experiência de solidão, segundo aponta BAUMAN,
2011), o homem contemporâneo, vê o tempo passar, sem construir necessariamente uma
visão de futuro ao qual possa estar inserido. Como impacto, têm-se a privatização de
questões grupais e a transformação de espaços de mediação intersticiais (como a escola)
em locais vazios, aparentemente sem nada a contemplar para a vida do sujeito.
Se na dissertação, havia sido um tema importante, devido a idéia da
fragmentação do sujeito e perda de referências identitárias como dispositivo das
técnicas de controle presentes na modernidade, o desafio agora é pensar qual a relação
desse processo com a educação, e em especial, com o papel do educador ao longo desse
processo. E não apenas isso, mas também analisar o papel da escola frente a esse
panorama de fluidez subjetividade e enfraquecimento das instituições consideradas até
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então como ponto de sustentação para as formas de viver humano.
Construir esse espaço de relações, portanto, nos cabe enquanto tarefa para a
formação de um sentimento de co-responsabilidade em relação ao mundo. E isso é
expresso na condição de ser livre, não em seu caráter perverso – como indicamos
anteriormente – mas sim, enquanto agentes éticos que respondem a novas demandas de
re-criação da própria existência no mundo.
Esse contexto, movido pela crise das instituições (que pode ser vista como uma
perda do sentido da organização da experiência) e pela fragilidade dos vínculos, ao
mesmo tempo, traz consigo também a transformação da experiência enquanto
mercadoria, rápida e com perda de intensidade no que diz respeito ao valor tanto
emocional quanto cognitivo3. Segundo Bondía (2002, p.23):
Esse sujeito da formação permanente e acelerada, da constante atualização,
da reciclagem sem fim, é um sujeito que usa o tempo como um valor ou
como uma mercadoria, um sujeito que não pode perder tempo, que tem
sempre de aproveitar o tempo, que não pode protelar qualquer coisa, que tem
de seguir o passo veloz do que se passa, que não pode ficar para trás, por isso
mesmo, por essa obsessão por seguir o curso acelerado do tempo, este sujeito
já não tem tempo. E na escola o currículo se organiza em pacotes cada vez
mais numerosos e cada vez mais curtos. Com isso, também em educação
estamos sempre acelerados e nada nos acontece.
A sociedade contemporânea constrói um discurso que potencializa diferentes
possibilidades formativas que, ao mesmo tempo, não trazem consigo o valor formativo
da “experiência” conforme proposto pelo pragmatismo, principalmente, àquelas que
implicam na relação com outras pessoas. Esse processo transforma este tipo de relação
em obstáculo a satisfação pessoal. Esquece-se do prazer da relação dos chamados
“laços densos”. Perde-se também, a capacidade de “exposição”, ou seja, viver o risco de
encontro do novo, condição inerente ao processo formativo. Assim, a ampliação da
experiência, se coloca como um problema fundamental no tempo presente.
Por essa razão, torna-se fundamental analisar o segundo caminho proposto para
análise que insere novos elementos que servem de resistência – e, portanto, lugar de
singularidade - a tal lógica uniformizante e mortífera, movida pela defesa de um
individualismo que se mostra onipotente em frente às possibilidade de articulação da
felicidade com objetos de consumo rápido.
3
Esse traço pode ser visto, por exemplo, na venda de atividades de entretenimento com o nome de
“experiências”. Dentre estas, destacam-se de um jantar romântico a um salto de paraquedas.
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3. SEGUNDO EIXO: O OUTRO
Ainda que tenhamos falado anteriormente do caráter eminentemente individual
da experiência, não podemos confundir o que chamamos de “autonomia” com a idéia de
transcendência a partir de um suporte metafísico ou mesmo de um ser fechado em si
mesmo (em suma, solipsista). Muito pelo contrário. Quando falamos de sujeito
autônomo parte-se do reconhecimento deste em sua particularidade como ser vivente
em determinado espaço-tempo, único em sua apreensão do mundo e radicalmente
marcado pela experiência do Outro.
E o que é o “Outro”? Indicamos que se trata de um lugar subjetivo que pode ser
ocupado por vários “outros”. Ele configura um ponto de relação e um tipo de
posicionamento do sujeito em relação ao mundo. Assim, ao indicar a relação do sujeito
com o Outro fazemos referência à maneira com que cada um interage tanto com as
coisas do mundo quanto com as outras pessoas. O que está em jogo é o reconhecimento
da impossível solidão4: não se está sozinho no mundo, o que implica na necessidade de
construir relações com aquilo que está a sua volta.
Tal processo deve ser visto como o reconhecimento radical da existência de um
outro que se mostra em sua estranheza e unicidade. Isso somente é possível a partir do
momento em que se constrói uma diferenciação deste em relação aos demais objetos
existentes exatamente pelo caráter de indeterminação, ou seja, não há uma relação
causal direta entre a presença do Outro e o desejo do sujeito vivente (SILVA;
HENNING, 2010). É através do fundamento da co-existência com o Outro que é
possível falarmos de uma comunidade humana. Por essa razão, a formação
intersubjetiva humana não pode ser de forma alguma dissociada da questão éticopolítica:
O ético é colocado nesse nível primário da relação com o outro; subjetividade
e sociabilidade têm um caráter ético. A ética não vai se exprimir nos
princípios universais, ela não possui uma forma normativa, mas surge da
situação elementar do encontro (ORTEGA, 2010, p.18).
Esse panorama geral da dinâmica relacional está também presente na
4
Bauman (2011) faz uma análise da diferença entre “solidão” e “solitude”. O autor aponta que o segundo
termo indica uma condição que potencializa, quando reconhecida, o laço com o outro, diferente da
primeira que se trata do reconhecimento de uma posição de afastamento ao outro.
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Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 3, 2013
experiência derivada da relação professor-aluno. Defendo, portanto, a importância do
professor conhecer e investigar o caráter concreto desse vínculo e seus condicionantes
no contexto histórico-social em que a prática pedagógica acontece. Tal contexto de
afastamentos e aproximações aparentemente vazias coloca desafios para o educador.
Dentro dessa perspectiva, Bauman (2009b, p.170-171) aponta a construção de uma
possível saída para as questões que enfrentaremos ao longo dessa pesquisa.
É precisamente porque estamos dispostos “a constituir amizades e
companheirismos profundos”, e ansiamos por isso de modo mais vigoroso e
intenso do que nunca, que nossos relacionamentos são cheios de som e fúria,
repletos de ansiedade e estados de alerta perpétuo. Estamos dispostos a isso,
já que os vínculos de amizade são [...] nossa única “escolta [social] em meio
às águas turbulentas” do mundo líquido-moderno [...]. A mão amiga de um
parceiro leal, confiável, “até que a morte nos separe”, a mão que se pode
contar que será estendida prontamente e de boa vontade quando for
necessário – o que as ilhas oferecem a náufragos potenciais ou oásis a
pessoas perdidas no deserto – precisamos dessas mãos, e queremos tê-las –
quanto mais delas em torno de nós, melhor...(grifo do autor).
O que há na experiência de amizade senão a capacidade de construção de um
tipo de vínculo que se mostra em seus desdobramentos como portador do
desenvolvimento do que chamamos comumente não de alteridade? Essa parece ser uma
nova questão-base para a formação do professor. Isso se mostra a partir de uma
constatação em minha prática: enquanto educador, observo que tem sido muito difícil
estabelecer essa relação junto ao meu aluno. As salas de aula estão sempre lotadas, o
tempo parece ser cada vez mais curto e as demandas individuais gritam em relação
àquelas trazidas pelo campo coletivo. Somado a isso, encontramos um contexto de
trabalho também pautado pelo sentimento de insegurança e inconstância no qual o laço
institucional também encontra-se tão instável de forma a poder se configurar ao limite
do suportável. Se a amizade possui o potencial de servir como suporte a sobrevivência a
tais inconstâncias, a pergunta que faço é: como?
A relação professor-aluno está pautada na atualização da dependência estrutural
do ser humano. É bem verdade que ao nascer, necessita-se do Outro para garantir a
sobrevivência, porém, o grande paradoxo é que essa mesma situação que garante a vida,
pode também levar a condição da barbárie expressa pela falsa idéia de que basta estar
vivo para se viver.
Fica, portanto, a pergunta: enquanto professor, de que forma, pelos meus atos,
mantenho tal relação assimétrica com meus alunos? Não seria, a formação de tal tipo de
vínculo o oposto do que entendemos por amizade? Essas duas questões abrem novas
77
Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 3, 2013
perspectivas de análise e trouxeram para a construção dessa pesquisa uma nova
dimensão teórica para o debate das problemáticas aqui propostas.
Creio que a questão fundamental diante de que devemos estar, educadoras e
educadores, bastante lúcidos e cada vez mais competentes, é que nossas
relações com os educandos são um dos caminhos de que dispomos para
exercer nossa intervenção na realidade a curto e a longo prazo. Neste sentido
e não só neste, mas em outros também, nossas relações com os educandos,
exigindo nosso respeito a eles, demandam igualmente o nosso conhecimento
das condições concretas de seu contexto, o qual os condiciona [...] (FREIRE,
1997, p.53).
Essa fala de Paulo Freire oferece uma interface importante para nossas
reflexões. Primeiramente, o autor indica que é através da relação com o Outro – vista na
relação professor-aluno – a possibilidade de modificar o mundo em que vivemos de
forma que seja possível encontrar nele a beleza do existir. Por outro lado, isso somente é
possível a partir do conhecimento que tenho de meu aluno e de sua condição de vida
que se encontrou com a minha, enquanto docente, nos trajetos descritos pelo que
entendemos por educação.
Vemos uma perspectiva que aponta para a necessidade de investigação de de
outros tipos de laços. Conhecer o aluno não seria o início, portanto, de uma relação de
amizade? Acreditamos que sim e por essa razão torna-se importante compreender
através de quais processos é possível estabelecer essa troca. Em outras palavras,
relacionar-se com o aluno não se trata de uma ação individual, mas sempre entredois, o que aponta a direção oposta à crise das ações coletivas indicadas como traço de
nossa modernidade líquida. Dessa forma, a construção de tal vínculo possui uma
dimensão muito mais ampla do que as paredes da sala de aula, gerando impactos para o
mundo em volta dos sujeitos envolvidos. Ela ganha uma dimensão política.
O encontro com o Outro, que somente é viável através da criação de
oportunidades que implicam na presença viva de diferentes sujeitos, torna-se viável para
própria ação humana. A investigação das relações vinculares entre os diversos sujeitos
no contexto escolar passa pela necessária análise da escola e de seu espaço. Para tanto é
necessário conceber o espaço como
[...] subjetividade, constitui-se como reciprocidade, isto é, a própria
sociabilidade. O olhar que o delimita e concentra a escolha é a relação
sujeito-objeto, de onde emerge um projeto existencial. Sendo assim, as
relações espaço-temporais se realizam em fluxos expressivos de como se
observa, compreende e interage. Tais relações se manifestam através de
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trocas seletivas e hierarquizantes. O espaço deve ser considerado como um
conjunto unificado de que participam, de um lado, certo arranjo de objetos
geográficos, naturais e sociais, e, de outro, a vida que os preenche e que os
transforma (EWALD, GOLÇALVES E BRAVO, 2008, p.767).
Encher o espaço de vida torna-se uma tarefa necessária, entendendo aqui a
vida como o laço que une as pessoas. Vale a pena reiterar a posição freireana (2001,
p.43), na qual, apontando para a formação humana enquanto processo, indica que
“ninguém nasce feito. Vamos nos fazendo aos poucos na prática social de que fazemos
parte”.
O espaço escolar é o lugar próprio das práticas e atuações dos sujeitos que tem
possibilidade de experienciar novas formas de ser e estar junto com o outro. Não basta a
escola ser um espaço, mas possuir acima de tudo, uma dimensão pública e, portanto,
política. Garantir esse espaço é possibilitar ao futuro a existência do próprio ser
humano. Segundo Teixeira (1967, p.47), uma das formas disso acontecer é
desenvolvendo a postura democrática que implica:
[...] na supressão de qualquer imposição de classe, fundada no postulado ou
na crença de que os conflitos e problemas humanos, sejam econômicos,
políticos, ou sociais, são solucionados pela educação, isto é, pela cooperação
voluntária, mobilizada pela opinião pública esclarecida [...].
Esse processo implica a construção de um espaço de liberdade, mediado por
um sistema de regras que propicia a participação de todos os envolvidos, gerando assim,
condições para o desenvolvimento – maturação – a partir da inter-ação para a resolução
de questões próprias do grupo em processo de mudança.
Isso implica a construção de um mundo comum caracterizado pela diferença
entre os diversos envolvidos e que tem como traço principal a resistência à
simplificação em uma visão unilateral e pretensamente neutra. Nesse sentido, a presença
de sujeitos com histórias de vidas próprias e únicas favorece a troca simbólica e
potencializa o desenvolvimento do que chamamos comumente de alteridade. Esse
processo de encontro com a Diferença – visto enquanto modo de subjetivação, ou seja,
de construção da subjetividade humana - é expresso por Ribetto (2004, p.2):
O outro é, em parte, aquilo que eu nomeio ou invento como tal através da
linguagem, e tem a ver com a minha subjetividade; mas é também aquilo que
eu não posso nem poderei nomear nem inventar porque escapa, escorre
produzindo desorientação e que se enfrenta com meu invento [...]
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Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 3, 2013
Consideramos, portanto, que uma das tarefas da educação é exatamente buscar
a construção e manutenção esses espaços que servem de suporte para o surgimento de
novas dimensões de vida para os indivíduos dele participantes, o que necessita também
na mobilização das energias dos indivíduos, guiando seus interesses para “[...]para
trabalhos que, em seu decurso, por si mesmos, propiciem tornar o mero interesse em um
esforço contínuo para a consecução de um fim [...]” (ANDRADE, 2007, p.30). Ao
mesmo tempo, tal espaço é a possibilidade de ultrapassar o caráter de prescrição e
controle, próprios da realidade escolar:
[...] ainda que o ser humano passe pelo processo educacional – seja ele
escolar ou não – que aponta para o traço de sujeição de um por outro, ele
permanece aberto à multiplicidade de formas, não passível de simplificação
de conduta ou pensamento e/ou ainda, por uma submissão radical. Educar o
ser humano é trazê-lo ao campo das múltiplas possibilidades e mutabilidades
que a própria existência coloca como condição do viver (SILVA E
HENNING, 2010, p.38, grifo do autor).
Mas o que é o múltiplo? É aquilo que ultrapassa o sujeito da verdade, ou seja,
aquilo que é sentido em seu corpo como marca da Diferença. Em outras palavras, a
abertura ao Outro se configura como um novo campo de investigação e descoberta na
qual o sujeito não se basta. Passa a atuar em comunhão em relação ao diferente, sendo
tanto aprendiz quanto ensinante (FREIRE, 1987). Portanto, a construção de uma
situação de amizade parece pressupor essa aberta ao Outro concretizada no que
chamamos de diálogo:
Essa abertura para a dialética apontada acima parece estar permeada de
enganos. Vemos a importância desse processo para o estabelecimento do
diálogo entendido como campo de inter-relação entre os dois elementos
presentes na dialética. Encontramos, frequentemente entre duas pessoas que
estabelecem uma conversa, exatamente o oposto: um “monólogo a dois” ou
um “diálogo de surdos” onde a resposta do outro é apenas um espaço de
descanso para a própria voz (SILVA, 2008, p.151).
A passagem acima indica a dificuldade que é estabelecer um vínculo dialógico
com o Outro. É esta, porém a maior das tarefas da educação e, pensando na educação
escolar, também do educador. Segundo Freire (1985, p.46), “a educação é comunicação,
é diálogo, na medida em que não é transferência de saber, mas um encontro de sujeitos
interlocutores que buscam a significação de significados”.
Observamos que o diálogo possui, então, a marca da Diferença entre os
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Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 3, 2013
homens, ao mesmo tempo, em que desnuda a impossibilidade do consenso enquanto
processo perene. O diálogo, portanto, é eminentemente fundado na contradição que
por sua vez possibilita a ampliação da capacidade de intervenção no mundo dos sujeitos
viventes. Como afirma Lippman (1995), a relação entre professores e alunos é
potencialmente lugar de construção de respeito mútuo, como também de aprendizagem
de habilidades transmitidas de uma geração para a outra.
Ao longo desse processo de ação novos conhecimentos são também
construídos, o que gera um redimensionamento da posição dos sujeitos envolvidos em
relação aos significados que dão às suas existências. Entre aproximações e afastamentos
vão sendo construídos os trajetos de vida.
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Como bem aponta Dewey (s/d, p.8),
[...] Uma vez que vida significa crescimento, um ser vivo vive tão
verdadeiramente e positivamente tanto num estádio como noutro, com a
mesma plenitude intrínseca e as mesmas pretensões absolutas. Por isso
educação é a iniciativa de proporcionar as condições que asseguram o
crescimento, ou adequação de vida , independentemente da idade [...]
Considerando este apontamento, em conjunto com os elementos levantados
anteriormente, surgem algumas questões: quais são as estratégias utilizadas em nosso
contexto atual para guiar esse processo chamado de “educação”? Para onde ele está
sendo direcionado? Qual o papel dado às trocas intersubjetivas que por sua vez, trazem
consigo a marca da experiência única de cada um? Quais os efeitos éticos desses
processos?
Para além disso, poderíamos apontar o papel da estrutura escolar e dos
chamados “especialistas da educação” que atuam diretamente na escola, como forma de
garantir o sucesso dos procedimentos ali adotados tanto do ponto de visto
epistemológico, como também, ético e político. Como bem aponta Araújo (2008, p.5),
“[...] o progresso da ciência afetou os aspectos técnicos e práticos da vida, mas ela não
foi usada para o progresso moral [...]”.
Assim, torna-se fundamental perguntar qual deve ser a perspectiva adotada na
educação do educador e quais devem ser as características esperadas para este sujeito
que prepara outro para educar dentro desse contexto problemático de aniquilamento da
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Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 3, 2013
Diferença. As respostas apontam reflexões para o debate da formação docente. Isso não
significa,
porém,
construir
propostas
tomadas
como
universalmente
válidas
independentes do contexto em que serão realizadas.
As experiências na sociedade contemporânea ganham o estatuto da
individualidade (conforme apontamos anteriormente – SILVA, 2012). Porém, se não
levarmos em conta a ambivalência e tal afirmação, corremos o risco de transformar tal
traço em individualismo ou centralidade do eu que implica afastamento de um em
relação ao outro. Essa problemática deveria ser trabalhada na escola desde muito cedo
ao aluno e fazer parte do contexto escolar em suas várias dimensões institucionais.
Porém, para além da questão da individualidade, a imprevisibilidade também é
um fator de grande impacto no mundo contemporâneo. Quanto a este ponto, a
dificuldade se encontra no fato de que as problematizações presentes na vida não podem
ser programadas, transformando a sala de aula em um campo de indeterminações que
colocam ao educador novos desafios.
Por essa razão, como término, faço minhas as palavras de Mansano (2010,
p.214):
Consideramos, então, o quanto a sala de aula tornou-se, hoje, uma aventura
que, para além do preparo técnico tão importante na formação profissional,
convida os seus agentes sociais a inventarem novas relações e novas
maneiras de produzir afeto e conhecimento. As dificuldades emergentes nesse
novo contexto não são poucas ou simples. Mas, ainda assim, podemos dizer
que elas cumprem uma função importante e colaboram para colocar
professores e alunos numa espécie de tensão diante do novo, do
desconhecido. Essa tensão praticamente os obriga a inventar novas formas de
relação com o outro, com a vida, com o conhecimento.
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Tradução
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Democracia e Filosofia1
Por Richard Rorty2
A filosofia é uma escada pela qual subiu o pensamento político do Ocidente e
depois deixou de lado. No início do século XVII, a filosofia desempenhou um
importante papel na limpeza do caminho para o estabelecimento de instituições
democráticas no Ocidente. E o fez pela secularização do pensamento político –
substituindo questões sobre como poderia ter feito a vontade de Deus para questões
sobre como seres humanos poderiam levar uma vida mais feliz. Filósofos sugeriram que
as pessoas deveriam colocar a revelação religiosa de lado, ao menos para propósitos
políticos, e agissem como se os seres humanos fossem donos de si mesmos – livres para
formarem suas próprias leis e suas próprias instituições para atenderem suas desejadas
necessidades, livres para fazerem um novo começo.
No século XVIII, durante o Iluminismo europeu, diferenças entre instituições
políticas e movimentos de opinião política refletiam diferentes concepções filosóficas.
Os simpáticos ao antigo regime eram menos susceptíveis de serem ateus materialistas
do que aqueles que queriam mudanças sociais revolucionárias. Agora, contudo, quando
os valores do Iluminismo foram tomados como óbvios por todo o Ocidente, este não é
mais o caso. Atualmente a política lidera o caminho e os temas filosóficos a seguem.
Alguém primeiramente decide a partir de uma perspectiva política e, então, se tiver
interesse por esse tipo de coisa, procura por uma referência filosófica. Tal interesse,
porém, é opcional e bastante incomum. Muitos intelectuais ocidentais sabem pouco
sobre filosofia e se importam ainda menos [com isso]. Aos olhos deles, pensar que os
propósitos políticos refletem convicções filosóficas seria como pensar que é o rabo que
1
Agradecemos à Eurozine, em nome de sua diretora-gerente, Veronika Leiner, por nos autorizar a
publicação do artigo traduzido. Este artigo foi publicado pela primeira vez em inglês em Kritika &
Kontext 33 (2007) e tem sido disponibilizado por Eurozine (<http://www.eurozine.com>). © Richard
Rorty / Kritika & Kontext / Eurozine
2
Tradução do bolsista Fernando Langkammer dos Santos (PIBIC/UFES) e do professor Marcelo Martins
Barreira (Filosofia/UFES). Este artigo é o texto de uma palestra dada por Richard Rorty em abril de 2004
no “Center for Cultura Studies” em Teerã. A palestra foi apresentada como parte de uma série de palestras
de intelectuais ocidentais em Teerã organizada por Ramin Jahanbegloo. Além de Rorty, incluem-se como
palestrantes Jürgen Habermas, Noam Chomsky, Ágner Heller, Timothy Garton Ash, Michael Ignatieff,
Adam Michnik e Paul Ricoeur. Ramin Jahanbegloo foi preso em 30 de março de 2006 pela polícia
iraniana e mantido sob custódia; apesar de um apelo internacional. Após cinco meses de investigação, ele
foi liberto em agosto de 2006. Isso aconteceu após ele ter admitido, sob coação, que havia colaborado
com diplomatas ocidentais em traçar uma “revolução de veludo” no Irã, que poderia derrubar o atual
regime e substituí-lo por uma democracia de tipo ocidental.
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sacode o cachorro.
Desenvolverei este tema da irrelevância da filosofia para a democracia em
minhas observações. A maior parte do que direi se refere à situação em meu próprio
país, mas penso que boa parte se aplica bem igualmente para as democracias europeias.
Nesses países, como nos EUA, a palavra “democracia” veio gradualmente a adquirir
dois significados distintos. Em sentido restrito e minimalista, a democracia se refere a
um sistema de governo no qual o poder está nas mãos de governantes [officials] eleitos
livremente. Chamarei de “constitucionalismo” à democracia neste sentido. Em sentido
lato, [a democracia] se refere a um ideal social, àquele da igualdade de oportunidade.
Neste segundo sentido, a democracia é uma sociedade em que todas as crianças têm as
mesmas oportunidades na vida, em que ninguém sofre por ter nascido pobre; ser
descendente de escravos; ser mulher ou homossexual. Chamarei de “igualitarismo” a
democracia neste sentido.
Suponha que, na época das eleições presidenciais dos EUA em 2004, você
tivesse perguntado aos eleitores que eram a favor da reeleição do presidente Bush se
eles, de coração, acreditavam na democracia. Eles ficariam surpresos com a pergunta e
responderiam que, claro, acreditavam. Mas tudo o que eles entendiam por isso é que
eles acreditavam num governo constitucional. Por causa dessa crença, eles estavam
preparados para aceitar o resultado da eleição, qualquer que fosse o resultado. Se John
Kerry tivesse ganho, eles estariam raivosos e indignados. Eles, no entanto, nem
imaginariam tentar impedir que ele tomasse posse, saindo às ruas. Eles ficariam
totalmente horrorizados com a sugestão de que generais no Pentágono deveriam
promover um golpe militar a fim de manter Bush na Casa Branca.
Os eleitores que, em 2004, consideravam Bush o pior presidente americano dos
tempos modernos, e que esperavam desesperadamente pela vitória de Kerry, também
eram constitucionalistas. Quando Kerry perdeu, estavam feridos profundamente. Mas
eles não sonharam em fomentar uma revolução. Os democratas de esquerda são tão
empenhados em preservar a constituição dos EUA quanto os direitistas republicanos.
Mas se, em vez de perguntar a esses dois grupos se eles acreditavam na
democracia, você lhes perguntasse o que entendem com o termo “democracia”, você
provavelmente receberia diferentes respostas. Os eleitores de Bush geralmente estariam
contentes em definir a democracia simplesmente como um governo [composto por]
governantes eleitos livremente. Muitos dos eleitores de Kerry – especialmente os
intelectuais – diriam, porém, que a América – apesar dos séculos de eleições livres e da
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gradual expansão dos direitos civis para incluir todos os cidadãos adultos – ainda não é
uma democracia plena. O ponto deles é que, mesmo sendo uma democracia no sentido
constitucional, ainda não é uma democracia no sentido igualitário. Não se atingiu a
igualdade de oportunidades. O fosso entre ricos e pobres está aumentando em vez de
diminuir. O poder é cada vez mais concentrado nas mãos de poucos.
Esses democratas de esquerda irão lembrar-lhe o provável destino dos filhos de
americanos pessimamente escolarizados, tanto negros quanto brancos, criados num lar
em que o tempo integral de trabalho do pai e da mãe rendem somente 40 mil dólares por
ano. Isso soa como muito dinheiro, mas, na América, crianças cujos pais têm esse nível
de renda ficam privadas de muitas vantagens; serão provavelmente incapazes de
ingressar numa faculdade e será improvável conseguir um bom emprego. Para os
americanos que se consideram politicamente de esquerda, essas desigualdades são
ultrajantes. Elas demonstram que, apesar de a América ter um governo
democraticamente eleito, ela ainda assim não é uma sociedade democrática.
Desde que Walt Whitman escreveu seu ensaio “Democratic Vistas” na metade do
século XIX, uma parte substancial da opinião pública escolarizada dos EUA tem usado
“democracia” para significar “igualitarismo social” em vez de simplesmente “governo
representativo”. Usar o termo [democracia] nesse sentido se tornou comum na “Era
Progressista” e mais comum ainda sob o “New Deal”. Esse uso permitiu que o
movimento dos direitos civis, liderado por Martin Luther King; o movimento feminista
e o movimento de direitos de gays e lésbicas, a se descreverem como tentativas
sucessivas de “cumprir a promessa de uma América democrática”.
Até agora, eu não disse nada sobre a relação da religião com a democracia
americana. Para uma compreensão do contexto das interpretações constitucionalistas e
igualitaristas da democracia, contudo, é importante perceber que os americanos
politicamente de esquerda tendem a ser menos comprometidos e religiosamente atuantes
do que as pessoas politicamentes de direita. Pessoas de esquerda que são crentes
religiosos evitam vincular suas convicções de fé e suas preferências políticas. Eles
tratam a religião como um assunto privado e endossam a tradição jeffersoniana da
tolerância religiosa; além de serem enfáticos em sua preferência pela estrita separação
entre Igreja e Estado.
No tocante à direita política, porém, convicções políticas e religiosas estão
frequentemente interligadas. Os eleitores mais entusiasmados de Bush não são apenas
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Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 3, 2013
consideravelmente mais propensos a frequentar uma igreja do que os eleitores mais
entusiasmados de Kerry, mas também são consideravelmente mais propensos a
simpatizarem com a insistência de Bush na necessidade de se eleger governantes que
levem Deus a sério. Eles geralmente consideram os Estados Unidos da América como
uma nação especialmente abençoada pelo Deus cristão. Eles gostam de dizer que seu
[país] é “um país cristão” e não percebem que essa frase é ofensiva para seus
concidadãos judeus e muçulmanos. Eles tendem a ver o florescimento da América como
a única superpotência instituída, e não apenas como um acidente da história, mas como
evidência de um beneplácito divino.
Por causa dessa diferente postura quanto à crença religiosa, pode-se ser tentado a
pensar a oposição entre a política de direita e a política de esquerda como refletindo
uma diferença entre aqueles que pensam a democracia como construída sobre
fundamentos religiosos e aqueles que a pensam como construída sobre fundamentos
filosóficos. Como eu já sugeri, porém, isso seria um equívoco. Exceto para alguns
professores de teologia e filosofia, nenhum intelectual de direita ou de esquerda pensa a
democracia, no sentido do constitucionalismo, como tendo quaisquer tipos de
fundamentação.
Caso sejam questionados para justificarem suas preferências por um governo
constitucional, os dois lados estariam mais propensos a recorrer à experiência histórica
em vez de a princípios religiosos ou filosóficos. Ambos provavelmente endossariam o
comentário muito citado de Churchill de que “A democracia é a pior forma imaginável
de governo, com exceção de todas as outras que foram experimentadas até agora.”
Ambos concordam que uma imprensa livre, um judiciário livre e eleições livres são as
melhores garantias contra o abuso do poder governamental característico das antigas
monarquias da Europa, e dos regimes fascistas e comunistas.
As discussões entre quem é de esquerda e quem é de direita sobre a necessidade
de uma legislação social igualitária são também assuntos para os quais sequer [caberia]
opor nem crenças religiosas e nem princípios filosóficos. O desacordo entre aqueles que
pensam no compromisso com a democracia como um compromisso com uma sociedade
igualitária e aqueles que não encontram sentido para o Estado de bem-estar e para as
regulamentações do governo destinadas a assegurar a igualdade de oportunidades, não é
[uma discussão] travada em bases religiosas ou filosóficas. Mesmo os mais fanáticos
fundamentalistas não tentam argumentar que as Escrituras cristãs fornecem razões para
que o governo americano não redistribua a riqueza, usando o dinheiro dos contribuintes
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Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 3, 2013
para enviar os filhos dos pobres à faculdade. Seus oponentes de esquerda não afirmam
que a necessidade de se usar o dinheiro dos contribuintes para esse fim é de algum
modo baseado no que Kant chamou de “tribunal da razão pura.”
Normalmente os argumentos entre os dois campos são muito mais pragmáticos.
A direita reivindica que a imposição de altas taxas, a fim de beneficiar os pobres, levará
a um “governo pesado” comandado por burocratas e de economia fraca. A esquerda
admite que há o perigo de uma forte burocratização e uma forte centralização
governamental. Eles argumentam, contudo, [que] esses perigos são superados pela
necessidade de compensar as injustiças produzidas numa economia capitalista – um
sistema que pode jogar milhares de pessoas fora do mercado de trabalho da noite para o
dia, tornando impossível para eles se alimentarem, muito menos educarem suas
crianças. A direita argumenta que a esquerda é muito inclinada a impor seus próprios
gostos à sociedade como um todo. A esquerda responde que aquilo que a direita
denomina uma “questão de gosto” é realmente uma questão de justiça.
Tais argumentos procedem, não por um apelo a obrigações morais
universalmente válidas, mas por um apelo à experiência histórica – a experiência da
forte regulamentação e sobretaxação de um lado, e a experiência da pobreza e
humilhação de outro. Quem é de direita acusa os de esquerda de serem tolos
sentimentais – liberais de coração mole – que não entendem a necessidade de manter
mínimo o governo, de modo que a liberdade individual possa florescer. Quem é de
esquerda acusa de crueldade quem é de direita – de ser incapaz ou de não querer
imaginar-se na situação de um pai que não consegue ter renda suficiente para vestir sua
filha como as colegas da escola dela estão vestidas. Tais polêmicos embates se dão num
nível pragmático, nenhuma sofisticação teológica ou filosófica é requerida para
conduzi-los. Nem tal sofisticação poderia fazer muito para fortalecer cada lado.
Até agora eu estava falando sobre a forma que toma a desavença na política
contemporânea americana, enfatizando a irrelevância da filosofia para tais disputas.
Venho argumentando que nem o acordo entre esquerda e direita, a respeito da sabedoria
de se manter um governo constitucional, e nem a discordância entre eles, sobre que leis
aprovar, tem muito a ver com qualquer convicção política ou opinião filosófica. Você
pode ser um participante muito útil e inteligente na discussão política em sociedades
democráticas contemporâneas, como a dos EUA, mesmo que você não tenha qualquer
interesse seja em religião ou filosofia.
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Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 3, 2013
Apesar desse cenário, ocasionalmente, ainda se depara com discussões entre
filósofos sobre se a democracia tem “fundamentos filosóficos” e sobre quais poderiam
ser [tais fundamentos]. Não considero esses debates muito úteis. Para entender porque
eles ainda são realizados, ajuda retomar o que disse no início: quando as revoluções
democráticas do século XVIII eclodiram, a disputa entre religião e filosofia tinha uma
importância que hoje nos falta. Para essas revoluções, [os revolucionários] não eram
capazes de apelar ao passado. Eles não podiam apontar para os sucessos obtidos por
regimes democráticos e secularizados; pois poucos de tais regimes já tinham existido e
aqueles que existiram nem sempre tinham se saído bem. Logo, o único recurso deles era
justificar-se por referência a um princípio, princípio filosófico. A razão, disseram eles,
revelou a existência de direitos humanos universais, portanto, uma revolução era
necessária para colocar a sociedade sobre uma base racional.
“Razão”, no século XVIII, era supostamente o que os anticlericais tinham para
compensar a falta do que o clero chamava “fé”. Os revolucionários daqueles tempos
eram necessariamente anticlericais. Uma de suas principais reclamações foi a
assistência que o clero prestara às instituições feudais e monárquicas. Diderot, por
exemplo, ansiou famosamente por ver o último rei estrangulado com as tripas do último
padre. Nesse período, o trabalho de filósofos seculares como Spinoza e Kant foi muito
importante para criar um clima intelectual propício a uma ação política revolucionária.
Kant argumentou que mesmo as palavras de Cristo precisariam ser avaliadas em
referência aos ditames da razão humana universalmente compartilhada. Para os
pensadores do Iluminismo, como Jefferson, foi importante argumentar que a razão é
base suficiente para a deliberação moral e política, e que a revelação é desnecessária.
Autor de ambos [os documentos], do “Estatuto da Liberdade Religiosa da
Virginia” e da “Declaração de Independência Americana”, Jefferson foi um típico
intelectual de esquerda de seu tempo. Ele lia bastante filosofia e a levava, de fato, muito
a sério. Ele escreveu na “Declaração”: “Consideramos estas verdades como
autoevidentes: que todos os homens são criados iguais; que são dotados por seu Criador
de alguns direitos inalienáveis entre os quais se contam a vida, a liberdade e a busca da
felicidade”. Como um bom racionalista iluminista, ele concordava com Kant que a
razão era a fonte de tais verdades e que a razão era suficiente para fornecer uma
orientação moral e política.
Muitos intelectuais do Ocidente atual (dentre eles Jürgen Habermas, o mais
influente e qualificado filósofo vivo) pensam que houve algo diretamente importante no
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Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 3, 2013
que toca ao racionalismo iluminista. Habermas acredita realmente que a reflexão
filosófica pode oferecer uma orientação moral e política, pois ela pode desvelar
princípios que possuem o que denomina de “validade universal”. Filósofos
fundacionalistas como Habermas veem a filosofia desempenhando o mesmo papel na
cultura que Kant e Jefferson atribuíram a ela [filosofia]. Basta tomar o pensamento para
[nele] se revelar o que Habermas chama de “pressupostos da comunicação racional” e,
assim, fornecerem critérios que possam orientar a escolha moral e política.
Muitos intelectuais de esquerda na América e no Ocidente geralmente
concordariam que a democracia tem esse fundamento. Eles também acham que algumas
verdades morais e políticas, se não exatamente autoevidentes, são, contudo,
transculturais e ahistóricas – o produto de uma razão humana enquanto tal; não
simplesmente de uma determinada sequência de acontecimentos históricos. Eles ficam
incomodados e perturbados com escritos de filósofos antifundacionalistas como eu, que
argumentam que não há uma tal coisa como “razão humana”.
Nós antifundacionalistas, entretanto, consideramos o racionalismo iluminista
como uma tentativa infeliz de se derrubar a religião no próprio jogo da religião – o jogo
de fingir que há algo acima e além da história humana que pode presidir um julgamento
sobre essa história. Nós argumentamos que, apesar de algumas culturas serem melhores
do que outras, não existem critérios transculturais de “superiodade” [betterness] para o
qual podemos apelar quando dizemos que as sociedades democráticas modernas são
melhores do que as sociedades feudais, ou que sociedades igualitárias são melhores do
que as racistas ou sexistas. Nós temos certeza de que sermos administrados por
governantes eleitos livremente por eleitores alfabetizados e com boa escolarização é
melhor do que sermos administrados por sacerdotes ou reis; mas não tentaríamos
demonstrar a verdade dessa afirmação para um defensor da teocracia ou da monarquia.
Nós suspeitamos que, se o estudo da história não pode convencer tal defensor da
falsidade de seus pontos de vista, nada mais pode fazê-lo.
Professores de filosofia antifundacionalistas, como eu, não pensam que a
filosofia seja tão importante como Platão ou Kant a pensaram. Isto se dá porque não
pensamos que o mundo moral tenha uma estrutura que pode ser compreendida por uma
reflexão filosófica. Somos historicistas porque concordamos com a tese de Hegel de que
“a filosofia é o seu tempo realizado em pensamento”. O que Hegel disse, conforme eu
absorvo isso, era que as práticas sociais humanas em geral, e das instituições políticas
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Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 3, 2013
em particular, são o produto de situações históricas concretas e que elas têm de ser
julgadas em referência às necessidades criadas por essas situações. Não há nenhuma
maneira de se escapar da história humana e olhar para as coisas sob o aspecto de
eternidade.
A filosofia, nessa perspectiva, subordina-se à historiografia. A história da
filosofia deve ser estudada no contexto das situações sociais que criaram sistemas e
doutrinas filosóficas; da mesma forma que estudamos a história da arte e da literatura. A
filosofia não é e nunca será uma ciência – no sentido de um acúmulo progressivo de
verdades perenes.
A maioria dos filósofos do Ocidente anteriores ao tempo de Hegel foram
universalistas e fundacionalistas. Como Isaiah Berlin afirmou, antes do fim do século
XVIII, os pensadores ocidentais encaravam a vida humana como a tentativa de se
resolver um quebra-cabeça. Berlin descreve o que tenho designado como a esperança
[desses pensadores] de fundamentos filosóficos universais para a cultura, como segue:
Deve haver alguma forma de juntar todas as peças. O ser todo-sábio, o ser
onisciente, se Deus ou uma criatura onisciente terrena – do jeito que se queira
conceber isso – é, em princípio, capaz de montar todas as peças num padrão
coerente. Qualquer um que faça isso saberá como o mundo se parece: o que
as coisas são; o que foram; o que será; o que são as leis que a regem; o que é
o homem; qual a relação do homem com as coisas e, portanto, quais são as
necessidades do homem; o que ele deseja e como obter isso.3
A ideia de que o mundo intelectual, incluindo o mundo moral, é como um quebracabeça, e que os filósofos são as pessoas encarregadas de conseguir encaixar todas as
peças, pressupõe que a história realmente não importa: que nunca houve nada de novo
debaixo do sol. Essa hipótese foi enfraquecida por três eventos. O primeiro foi a onda
de revoluções democráticas no final do século XVIII, especialmente aquelas na América
e na França. A segunda foi o Movimento Romântico na literatura e nas artes – um
movimento que sugere que o poeta, não o filósofo, era a figura que mais tinha como
contribuir para o progresso social. O terceiro, que veio um pouco mais tarde, foi a
aceitação geral da explicação evolucionista de Darwin sobre a origem da espécie
humana.
Um dos efeitos desses três eventos foi o surgimento da filosofia
antifundacionalista – de filósofos que desafiam a perspectiva de ver as coisas como um
quebra-cabeça. A tradição filosófica ocidental, dizem esses filósofos, estava errada em
3
Isaiah Berlin – Roots of Romanticism, 23
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Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 3, 2013
pensar que o duradouro e estável era preferível ao novo e ao contingente. Platão, em
particular, estava errado ao tomar a matemática como modelo de conhecimento.
Desse ponto de vista, não há tal coisa como a natureza humana, pois os seres
humanos fazem a si mesmos na medida em que seguem adiante. Eles se criam como os
poetas criam poemas. Não há tal coisa como a natureza do Estado ou a natureza da
sociedade para ser entendida – só existe uma sequência histórica de tentativas
relativamente bem sucedidas e relativamente mal sucedidas de se atingir uma
combinação de ordem e justiça.
Para ilustrar ainda
mais a diferença entre fundacionalistas e não-
fundacionalistas, deixe-me retornar à afirmação de Jefferson de que os direitos à vida,
liberdade e à busca da felicidade são autoevidentes. Fundacionalistas insistem em que a
existência de tais direitos é uma verdade universal, que não tem nada a ver com a
Europa em particular, mais do que [teria a ver] com a Ásia ou África; ou com a história
moderna em vez de [ter a ver] com a história antiga. A existência de tais direitos, dizem,
é como a existência dos números irracionais; tal como a raiz quadrada de dois – algo
que qualquer um que pense seriamente sobre o assunto pode ser levado a reconhecer.
Tais filósofos concordam com a afirmação de Kant de que a “consciência moral
comum” não é um produto histórico, mas parte da estrutura da racionalidade humana. O
imperativo categórico de Kant, postulando que não devemos usar outros seres humanos
como simples meios – não se deve tratá-los como meras coisas –, é traduzido em termos
políticos concretos por Jefferson e pelos autores da “Declaração dos Direitos Humanos
de Helsinque”. Essas traduções simplesmente reformulam convicções morais que
devem ter parecido verdades autoevidentes nos dias de Platão e Alexandre, como o são
agora. O papel da filosofia é o de nos lembrar do que, de alguma forma, no fundo de
nossos corações, nós sempre soubemos ser verdadeiro. Neste sentido, Platão estava
certo quando disse que o conhecimento moral é uma questão de lembrança – uma
questão a priori; não o resultado de um experimento empírico.
Em oposição, antifundacionalistas como eu concordam com Hegel que o
imperativo categórico de Kant é uma abstração vazia até ser preenchido com o tipo de
detalhe concreto que só a experiência histórica pode fornecer. Dizemos o mesmo sobre a
afirmação de Jefferson sobre direitos humanos autoevidentes. Em nossa visão, os
princípios morais nunca são nada além de meios de se resumir certo corpo de
experiência. Chamá-los de “a priori” ou “autoevidentes” é persistir em usar a analogia
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Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 3, 2013
completamente equivocada, de Platão, entre certeza moral e certeza matemática.
Nenhum enunciado pode, ao mesmo tempo, ter implicações políticas revolucionárias e
ser uma verdade autoevidente.
Dizer que um enunciado é autoevidente é, nós antifundacionalistas acreditamos,
meramente um gesto retórico vazio. A existência dos direitos, que os revolucionários do
século XVIII reivindicaram para todos os seres humanos, não tinham sido evidentes
para a maioria dos pensadores europeus nos últimos mil anos. Que a sua existência
parece autoevidente para americanos e europeus, duzentos e tantos anos depois que eles
os afirmaram pela primeira vez, explica-se mais por uma doutrinação cultural específica
do que por um tipo de co-naturalidade entre a mente humana e a verdade moral.
Para elaborar a nossa hipótese, nós antifundacionalistas apontamos para
desagradáveis fatos históricos, tais como o seguinte: as palavras da “Declaração” foram
consideradas, pelo governo supostamente democrático dos EUA, para serem aplicadas
apenas a pessoas de origem europeia. Os “pais fundadores da América” empregaram
tais termos unicamente aos imigrantes que vieram pelo Atlântico para escapar dos
governos monárquicos da Europa. A ideia de que os americanos nativos – as tribos
indígenas, que eram os habitantes aborígenes – tivessem tais direitos foi raramente
levada a sério. Os indígenas que resistiram foram massacrados.
De novo, foi apenas uma centena de anos depois da “Declaração de
Independência” que os cidadãos dos EUA começaram a tomar a sério os direitos das
mulheres – começaram a se perguntar se às mulheres americanas estavam sendo dadas
as mesmas oportunidades para alcançar a felicidade como as que foram [dadas] aos
homens americanos. Demorou quase uma centena de anos, e uma guerra civil
extremamente custosa e cruel, antes de os negros norte-americanos receberem o direito
de não serem mantidos como escravos. Mais outros cem anos foram necessários para os
negros americanos passarem a ser tratados como cidadãos de pleno direito, com direito
às mesmas oportunidades que os brancos.
Esses fatos da história do meu país são muitas vezes citados para mostrar que a
América é uma nação completamente hipócrita, que nunca foi levada a sério em suas
solenes declarações sobre os direitos humanos. Eu penso, no entanto, que essa rejeição
aos EUA é injusta e enganosa. Uma razão de o país se tornar muito melhor, mais justo,
mais decente e mais generoso no decorrer de dois séculos foi que as liberdades
democráticas – em particular a liberdade de imprensa e a liberdade de expressão –
tornou possível a opinião pública forçar os homens brancos de descendência europeia a
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considerarem o que eles haviam feito e estavam fazendo aos indígenas, às mulheres e
aos negros.
O papel da opinião pública na gradual expansão do alcance dos direitos humanos
nas democracias ocidentais é, em minha opinião, a melhor razão para preferir a
democracia a outros sistemas de governo que se poderia propor. A história dos EUA
ilustra o caminho pelo qual uma sociedade que se preocupou principalmente com a
felicidade dos proprietários de terra pôde, gradual e pacificamente, transformar-se numa
[sociedade] em que mulheres negras e pobres se tornaram senadoras, ministras e juízas
das mais altas cortes. Jefferson e Kant ficariam confusos com as mudanças que têm
ocorrido nas democracias ocidentais nos últimos duzentos anos; pois eles não pensaram
sobre a igualdade de tratamento para negros e brancos, ou sobre o voto feminino, como
dedutível dos princípios filosóficos por eles enunciados. Seu hipotético assombro ilustra
o ponto antifundacionalista de que a visão moral não é, como em matemática, um
produto da reflexão racional. Ao invés disso, ela é uma questão de se imaginar um
futuro melhor, observando as tentativas dos esforços de se realizar esse futuro. O
conhecimento moral, como no conhecimento científico, é em especial consequência de
se fazer experiências e ver como elas funcionam. O sufrágio feminino, por exemplo,
tem funcionado bem. O controle centralizado da economia de um país, por outro lado,
não.
A história do progresso moral, desde o Iluminismo, ilustra o fato de que o
importante sobre a democracia é muito mais uma questão de liberdade de expressão e de
imprensa; bem como a capacidade de cidadãos furiosos de trocar maus governantes
eleitos por melhores governantes eleitos. Um país pode ter eleições democráticas, mas
não faz nenhum progresso moral se aqueles que estão sendo maltratados não têm chance
de fazerem seus sofrimentos conhecidos. Em tese, um país pode continuar a ser uma
democracia constitucional mesmo se o seu governo nunca tomou medidas para melhorar
a igualdade de oportunidades. Na prática, a liberdade de se debater questões políticas e
de se apresentar candidatos [ao pleito eleitoral] vai garantir que a democracia, no
sentido do igualitarismo, seja uma consequência natural da democracia como governo
constitucional.
A moral do sermão antifundacionalista, que venho pregando para você, é que
para os países que não tenham sido submetidos à secularização, que foi o efeito mais
importante do Iluminismo europeu, ou que somente agora veem o surgimento de um
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governo constitucional, a história da filosofia ocidental não é uma área particularmente
proveitosa de estudo. A história dos sucessos e fracassos de várias experiências sociais,
em vários países, é muito mais rentável. Se nós antifundacionalistas estivermos certos, a
tentativa de colocar a sociedade sobre um fundamento filosófico deve ser substituída
pela tentativa de se aprender a partir do registro histórico.
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Resenha
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NUSSBAUM, Martha. Sin fines de lucro. Por qué la democracia necesita de las
humanidades. Trad. Mária Victoria Rodil. Buenos Aires/Madrid: Katz, 2010. 199pp.
Marcos Carvalho Lopes1
Quem já leu o livro de Martha Nussbaum Cultivating Humanity encontrará neste
novo opúsculo poucas novidades. A principal delas é o tom apocalíptico desta obra que é um
manifesto com a “intenção de funcionar como um chamado para a ação” (2010: p.162). A
urgência de seu apelo estaria justificada pelo cenário de crise econômica global, que tornou
mais evidente e acirrado o conflito entre as demandas de uma educação voltada para a cidadania
contra um modelo tecnicista de educação com o objetivo de gerar crescimento econômico em
curto prazo. Este embate é descrito por Nussbaum como uma crise silenciosa da educação que
coloca em risco a própria Democracia, já que este sistema de governo pressupõe o cultivo de
diversas crenças e hábitos de ação que capacitam o cidadão para uma vida plena e não somente
para funcionar de modo lucrativo. Estaríamos dispostos a abrir mão da Democracia em nome do
crescimento econômico de curto prazo?
O exemplo de Singapura é aquele que assombra os educadores como um mal guia.
Singapura é uma cidade-estado muito rica (com o terceiro maior PIB por habitante do mundo) e
economicamente competitiva. Sua prosperidade econômica ajuda a manter a estabilidade de um
regime político contrário às liberdades democráticas. A vigilância e censura sobre o
comportamento público e privado anda junto com políticas de eugenia (destinadas a aumentar a
natalidade naquelas classes consideradas altamente produtivas) e um sistema de educação
altamente hierárquico e tecnicista (NUSSBAUM, 2004: p.15). Os índices sobre a qualidade de
educação em Singapura são excepcionais – ocupa, por exemplo, o quinto lugar no índice de
leitura, a segunda posição em Matemática e a quarta em Ciência no Pisa, Programa
Internacional de Avaliação de Alunos que envolve 65 países (DORETTO, 2012); o que cabe
questionar é se o foco neste modelo de educação direcionado para bons resultados em provas
quantitativas de múltiplas escolhas seria adequado para a formação de cidadãos críticos e
autônomos. O exemplo de “bom desempenho” de um professor dentro de uma Ditadura pode
servir de espelho para países democráticos? O presidente norte-americano Barack Obama é um
dos que se mostrou seduzido pelo modelo tecnicista daquela cidade-estado. Comparando o
sistema de educação de Singapura e outros países do Oriente com o dos Estados Unidos
afirmou: “eles passam menos tempo ensinando coisas que não importam. Não preparam seus
alunos só para a universidade ou para a escola secundária. Os preparam para uma carreira de
trabalho. Nós não” (citado por NUSSBAUM: 2010: p.183).
Nussbaum concordaria com Obama na avaliação de que os Estados Unidos nunca
tiveram “um modelo de educação voltado puramente para o crescimento econômico” (2010,
1*
Doutorando em Filosofia no PPGF/UFRJ, bolsista da CAPES e professor temporário na UNIRIO.
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p.38), justamente por manter uma orientação humanística que fomenta uma cultura política
democrática. Abrir mão desta perspectiva humanística seria, para a filósofa norte-americana,
como abrir mão da própria “alma” (soul).2 Em verdade, o que Nussbaum chama de alma teria
uma melhor tradução em português como “espírito” no sentido hegeliano daquilo que permite
participar da conversação da humanidade, já que ela se refere “às faculdades de pensamento e
imaginação, que nos fazem humanos, que tornam nossas relações, relacionamentos humanos
plenos, ao invés de relações de uso e manipulação”(NUSSBAUM, 2010b: p.6). No entanto, esta
terminologia não é utilizada por acaso: o uso de “alma” faz com que o conflito sobre o modelo
de educação seja visto platonicamente como algo que se repete dentro de cada individuo, como
se a Democracia necessitasse do cultivo por parte de cada cidadão de determinadas virtudes
democráticas:
Se o verdadeiro choque de civilizações reside, como penso, na alma (soul) de
cada indivíduo, com a ganância e o narcisismo lutando contra o respeito e
amor, todas as sociedades modernas estão perdendo a batalha em um ritmo
acelerado, pois estão alimentando as forças que impulsionam a violência e a
desumanização, ao invés das que conduzem a uma cultura de igualdade e
respeito. Se não insistimos na importância fundamental das artes e das
humanidades, elas desaparecerão, porque não servem para ganhar dinheiro.
Produzem algo muito mais valioso do que isso; geram um mundo em que
vale a pena viver, com pessoas capazes de ver os outros seres humanos como
pessoas plenas, merecedoras de respeito e empatia, com pensamentos e
sentimentos próprios; e nações capazes de superar o medo e a desconfiança
em prol de um debate simpático e razoável (tradução minha NUSSBAUM,
2010: p.189).
Mas o crescimento econômico combina com o cultivo de valores democráticos? A
resposta de Nussbaum para esta questão parece dúbia; por exemplo, por um lado afirma que
“existem dados empíricos que demonstram a escassa correlação existente entre” o crescimento e
a melhoria “da saúde, da educação ou da liberdade política” (NUSSBAUM, 2010a: p.34); por
outro, afirma que o cultivo da imaginação através das artes e do pensamento crítico são
“fundamentais para o crescimento econômico e a conservação de uma cultura empresarial
sadia”(NUSSBAUM, 2010a: p.151). Esta aparente indecisão se esclarece em parte pelo
questionamento que a filósofa norte-americana faz da ideia corrente de desenvolvimento e
progresso como crescimento do PIB. Para ela é preciso que o crescimento econômico não
descarte valores que as sociedades democráticas tomam – em sua constituição – como
inalienáveis, os direitos civis e políticos que garantem a igualdade – independente de raça,
gênero ou credo religioso – perante a lei (NUSSBAUM, 2010a: p.37). Tanto os Estados Unidos
quanto a Índia, países que são o foco de sua análise, assumem estes compromissos democráticos
em sua constituição; o que deve significar o cultivo de valores democráticos para além de
qualquer obcecação por crescimento econômico. Por isso mesmo, seria mais adequado pensar o
2
Na tradução espanhola se utiliza” alma” para traduzir o termo “soul” do original inglês.
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progresso e a saúde econômica tomando o paradigma do Desenvolvimento Humano criado por
Amartya Sen, aonde o mais importante são as oportunidades ou “capacidades” para que cada
pessoa tenha acesso à saúde, integridade física, liberdade política, participação política e
educação (NUSSBAUM 2010a: p.47 e 2010b: p. 24). A partir desta perspectiva mais ampla do
que significa progresso e crescimento econômico, quando a distribuição de renda e o acesso a
bens primordiais contam como índice de avaliação, as artes e as ciências humanas são
valorizadas como adequadas para desenvolver certas capacidades que permitem participar da
conversação da humanidade. E as enumera: 1) capacidade de desenvolver um pensamento
crítico, o que significa o autoexame em sentido socrático, questionando tradições e só aceitando
crenças que sobrevivem as exigências da razão; 2) capacidade de se posicionar como “cidadão
do mundo”, transcendendo as lealdades nacionais como ser humano vinculado aos demais seres
humanos; e 3) a capacidade de imaginação narrativa, que permite se colocar no lugar de outra
pessoa (NUSSBAUM 2005: p.28-30 e 2010a: p.26). Cada uma destas capacidades é tema de um
dos capítulos do livro de Nussbaum.
No entanto, antes de tematizar detidamente tais capacidades, Nussbaum desenvolve
através de exemplos da psicologia uma espécie de “genealogia” antinietzschiana; procurando
justificar porque aqueles que defendem a manutenção das instituições democráticas baseadas no
respeito ao próximo, devem enfrentar as constantes ameaças do egoísmo, já que esta postura
gera aversão ao Outro e a tendência para hierarquização. A autora parte da descrição do bebê
imerso no egoísmo infantil, um principio natural narra a partir do qual deve-se pensar seu
desenvolvimento moral até que adquira a possibilidade de desenvolver relações de
reconhecimento pleno e simpatia em relação ao outro. Para tanto, é preciso que supere o
egotismo, o que se dá primeiramente através de relações instrumentalizadas, até que adquira as
capacidades de (1) compreensão, vendo o outro como um fim e não como um meio (algo que
destaca ser característica comum de outros mamíferos, como macacos, elefantes e cachorros) e
(2) de pensamento empático, a aptidão para perceber o mundo a partir da perspectiva do outro
(algo que os macacos são capazes de fazer).
O estimulo ao desenvolvimento destas habilidades ajudaria a superar as construções
infantilizadoras que separam os seres em puros e impuros, humanos e monstros. Nussbaum
critica os contos infantis que promovem esta divisão, dando a ideia de que o mundo encontrará a
paz quando os diferentes – monstros, bruxas, ogros etc. – forem exterminados; em contraste,
exalta o universo complexo dos filmes de Hayao Miyazak (diretor das animações como A
Viagem de Chihiro e Túmulo de vagalumes) e o livro Onde vivem os monstros de Maurice
Sendak.
A filósofa descreve diversos contextos em que o egocentrismo infantil tende a se
repor, como por exemplo, no “mito do controle total”, na fantasia de invulnerabilidade e de
possuir uma competência maior que os demais humanos. Esta tentativa de “controle total”,
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geralmente masculina, tende a gerar vergonha e intolerância ante o fracasso inevitável; algo que
pode ser contornado com a aceitação da debilidade humana (o que noutro contexto Nussbaum
chama de dimensão trágica da existência), da interdependência e necessidade de ajuda mútua. A
“fragilidade da bondade” é demonstrada através da descrição de alguns experimentos de
psicologia (como os clássicos testes de Stanley Milgran, que expôs que as pessoas continuavam
dispostas a aplicar choques elétricos em outros humanos mesmo que estes últimos
demonstrassem dor, uma vez que eram avalizadas pela autoridade do cientista que lhes dava
ordens) por meio dos quais, exemplifica, como a ausência de responsabilidade, a falta de
opinião crítica e a desumanização do outro geram contextos em que as pessoas se tornam
propensas a ter um comportamento perverso (NUSSBAUM 2010a: p.72). Esta tendência de
transferir responsabilidade para o outro é algo que o cultivo da capacidade/virtude socrática de
autoexame ajuda a superar.
Nussbaum destaca a importância da pedagogia socrática, caracterizada por incentivar
os alunos a desenvolver questionamentos e o autoexame de suas crenças. A autora se utiliza do
controverso termo “maiêutica socrática”, o que faz crer que a partir dos estímulos corretos todos
os alunos chegariam ao desenvolvimento de pensamento crítico e empatia em relação ao outro e
aos valores democráticos. Nussbaum descreve uma narrativa de desvelamento deste método que
pede a participação ativa da criança partindo de Sócrates e passando por Jean-Jacques Rousseau,
Johann Pestalozzi, Friendrich Froebel, Bronson Alcott, Horace Mann etc. que culmina nos
exemplos de John Dewey nos Estados Unidos e de Rabindranath Tagore na Índia.
Em relação à “cidadania mundial”, Nussbaum critica os norte-americanos por ficarem
demasiadamente presos a sua cultura: seria primordial que tivessem contato mais próximo com
culturas estrangeiras e que aprendessem ao menos outro idioma. Mas o exemplo principal da
autora são os efeitos perversos que as distorções no ensino de História podem provocar:
denuncia a ausência de uma perspectiva cosmopolita lembrando o exemplo negativo das
narrativas que desconsideram continentes inteiros – como a África e a Ásia – mantendo uma
visão eurocêntrica.
Também põe em questão as narrativas provincianas e nacionalistas, especificamente
trata de como a história da Índia aparece em alguns péssimos livros didáticos (desenvolvidos
para a memorização acrítica), que relatam as origens do país como uma espécie de civilização
superior a todas as outras que foi contaminada negativamente pela presença estrangeira. Em
livros didáticos do Estado de Gujarat as narrativas xenófobas chegam ao extremo de destratar
Gandhi e exaltar Hitler como um herói. Não por acaso este estado optou por um modelo
excludente de desenvolvimento econômico e por uma educação tecnicista. Não por acaso
também, em 2002 um massacre em Gujarat promovido por elementos violentos da direita matou
2000 muçulmanos e, em 2012, causou escândalo a inauguração de uma loja de roupas
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masculinas com o nome “Hitler” e a suástica como logotipo. Existe um punhado de lojas com
nomes semelhantes na região, o que é sintoma da ausência de uma cultura política democrática.
Para uma cidadania mundial é necessário que a narrativa da História seja desenvolvida de um
modo complexo, mostrando a interconexão entre diferentes povos e culturas, problematizando
as possibilidades interpretativas, incentivando cada pessoa a superar suas lealdades imediatas na
direção de uma visão mais abrangente.
Na descrição dos benefícios da literatura e das artes no desenvolvimento da
capacidade de empatia, Nussbaum se concentra em exemplos de sua experiência pessoal com o
teatro, do valor dado à dança para Tagore, educador indiano, e dos resultados de inclusão que a
formação de corais alcançou em Chicago. Estas atividades nos ajudam a desenvolver a
imaginação criativa, colocando os alunos na perspectiva de outras pessoas, muitas vezes de
culturas diferentes. Neste ponto a descrição de Nussbaum vale pelo sentimento que procura
incutir, atraindo a identificação do leitor. Quem quiser uma argumentação detalhada sobre o
lugar que a filósofa norte-americana dá à literatura, por exemplo, terá que procurar outras obras.
O livro de Nussbaum, contra suas intenções, pode servir como um instrumento para
justificar a valorização das humanidades, já que, de acordo com sua argumentação, economias
sadias que apostam na inovação precisam contar com as virtudes imaginativas que as
humanidades são capazes de desenvolver. A recusa de Nussbaum em pensar a utilidade das
humanidades para o desenvolvimento econômico – tomando-as como fundamento de virtudes
democráticas que devem ser valorizadas em si mesmas – acaba enfraquecendo seu discurso em
um horizonte não essencialista. Isso não retira a urgência e validade de seu apelo. A narrativa
apaixonada de Nussbaum não trás muita coisa nova para aqueles que lidam com a Educação,
mas deixa manifesto: o rei está nu.
Referências:
DORETTO, Juliana.”Vale quanto ensina”.Saber.In: Folha de São Paulo. 18/04/2011.
Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/saber/sb1804201101.htm Consultado
em 08/10/2012.
NUSSBAUM, Martha. A República de Platão: a boa sociedade e a deformação do
desejo. Trad. Ana C. da Costa e Fonseca, et Al. Porto Alegre: Bestiário, 2004.
_______. El cultivo de la humanidad. Uma defensa clásica de La reforma em La
educación liberal. Trad. Juana Pailaya. Barcelona: Paidós, 2005.
_______. Not for profit.
_______. Sin fines de lucro. Por qué la democracia necesita de las humanidades. Trad.
Mária Victoria Rodil. Buenos Aires/Madrid: Katz, 2010a.
______. Not for profit : why democracy needs the humanities. Princeton: Princeton
University Press, 2010b.
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Revista Redescrições
Revista on line do GT de Pragmatismo e
Filosofia Norte-americana
Ano IV, número 3, 2013
ISSN: 1984-7157
Editor Convidado: Frederico Graniço
Editores: Paulo Ghiraldelli Jr. e Susana
de Castro
www.ppgf.org
www.gtdepragmatismo.com
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