Positivismo jurídico lógico-inclusivo

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Positivismo jurídico lógico-inclusivo
Alguns dos nossos próximos
títulos
O conceito e a natureza do direito
Robert Alexy
Ilícitos atípicos
Manuel Atienza e Juan Ruiz Manero
Uma simples verdade
O Juiz e a construção dos fatos
Michele Taruffo
Pensando como um advogado
Frederick Schauer
FILOSOFIA E DIREITO
O direito dos direitos
Carlos Bernal Pulido
Diante da polêmica contemporânea entre positivistas
inclusivistas e exclusivistas, o autor desenvolve, com precisão
e rigor, uma terceira via, que chama de inclusivismo lógico,
ao inverter a forma usual pela qual se vê a relação entre
princípios e regras jurídicas: não são as regras derivadas ou
justificadas pelos princípios morais e de políticas públicas,
mas os princípios é que se legitimam como razões jurídicas
vinculantes na medida em que são endossados pelo conteúdo
das regras. Com isso, o autor chama a atenção para o fato de
que a autoridade e o conteúdo de valores morais empregados
na atividade dos tribunais podem ser derivados da autoridade
das próprias regras postas, assumindo-se a objetividade, ao
menos parcial, do conteúdo das fontes. Essa incorporação
apenas indireta da moralidade, a partir de uma valoração não
engajada das fontes, dá novo fôlego ao ideal de neutralidade
do positivismo jurídico.
Do Prefácio de Tercio Sampaio Ferraz Junior
Juliano Maranhão
Juliano S. de Albuquerque Maranhão, Doutor e Livre-Docente em
Direito pela Universidade de São Paulo, é Professor Associado do
Departamento de Filosofia e Teoria Geral do Direito da Faculdade de Direito da USP. É coordenador e editor da Revista Brasileira de Filosofia.
Juliano Maranhão
ISBN 978-84-87827-28-0
FILOSOFIA E DIREITO
A coleção «Filosofia e Direito» passa a ser editada em português como uma contribuição ao
enriquecimento do debate filosófico na cultura
jurídica brasileira, combinando a publicação de
textos escritos em português com a tradução
de obras originalmente escritas em outras línguas, de modo que as contribuições decorrentes da filosofia, da lógica, da teoria da linguagem, da filosofia da ciência, da filosofia da
mente, da filosofia moral e da filosofia política
constituam extensão conveniente aos horizontes da nossa compreensão do Direito.
Positivismo jurídico
lógico-inclusivo
Juliano Maranhão
Positivismo jurídico lógicoinclusivo
Positivismo jurídico lógico-inclusivo
Uma discussão sobre a teoria do direito
Joseph Raz, Robert Alexy
e Eugenio Bulygin
Entre as muitas maneiras de abordar o estudo
do Direito nas sociedades contemporâneas, a
análise filosófica indubitavelmente desempenha papel de grande relevância. Esta relevância manifesta-se no modo de se conhecer as
bases filosóficas de nossas instituições jurídicas e, desse modo, compreendê-las e submetê-las à crítica.
Coleção
Filosofia e Direito
Direção
Jordi Ferrer
José Juan Moreso
Adrian Sgarbi
Juliano Souza de Albuquerque Maranhão
Positivismo jurídico
lógico-inclusivo
Marcial Pons
MADRI | BARCELONA | BUENOS AIRES | São Paulo
Coleção
Filosofia e Direito
Direção
Jordi Ferrer
José Juan Moreso
Adrian Sgarbi
Positivismo jurídico lógico-inclusivo
Juliano Souza de Albuquerque Maranhão
Capa
Nacho Pons
Preparação e revisão
Ida Gouveia
Editoração eletrônica
Oficina das Letras®
Impressão e acabamento
RR Donnelley
Todos os direitos reservados.
Proibida a reprodução total ou parcial, por qualquer meio ou processo – Lei 9.610/1998.
ISBN 978-84-87827-28-0
[2012]
Impresso no Brasil
© Juliano Souza de Albuquerque Maranhão
© MARCIAL PONS
EDICIONES JURÍDICAS Y SOCIALES, S.A.
San Sotero, 6 - 28037 MADRID
( 00 xx (34) 913 043 303
www.marcialpons.com
Aos Sabinianos.
Agradecimentos
Este livro é um esforço de autoconhecimento, que já vem de pelo menos
uma década e foi estimulado pelos encontros e discussões com Pablo Navarro.
Desde a graduação em direito, foi implantado em meu DNA o livro Normative
Systems de Alchourrón e Bulygin, mas sempre tive alguma dificuldade em
me ver como positivista stricto sensu, já que me inclino a entender o direito
mais como o universo das razões e menos como o domínio da vontade de fato.
Os breves encontros e a leitura de J.J. Moreso me ajudaram a contrabalançar
minha herança biológica e entender, afinal, que tipo de positivista sou eu. No
final, nem só vontade nem só razão, mas a racionalização da vontade.
Embora maturado mentalmente em alguns anos, efetivamente escrevi e
apresentei este livro como requisito para obtenção do título de Livre-Docente
na Faculdade de Direito da USP, em 2010. Nesse processo de elaboração,
a leitura, crítica e aconselhamento de Samuel Rodrigues Barbosa foram de
grande ajuda. No capítulo em que ligo a noção de consequência lógica com o
argumento de redução ao absurdo, aproveitei-me bastante de discussões com
Jean-Yves Béziau e Edelcio Gonçalves de Souza. Testei alguns argumentos
e teses por e-mail sobre alguns pontos críticos com Amalia Amaya, Giovanni
Ratti e Giovanni Sartor, cujas opiniões e contraposições permitiram ou
enxergar melhor minha posição ou refinar mais meu argumento. As constantes
conversas com o Prof. Tercio, que começam com coisas do dia a dia, família,
escritório..., mas sempre desembocam e se alongam sobre filosofia do direito,
também passearam por aqui (normalmente encerradas por um «puxão de
orelha» para que eu não deixasse de publicar!). O convite de J.J. Pons e Jordi
Ferrer-Beltrán, a admiração que tenho pela Editora e a fé que deposito em seu
projeto no Brasil, rica e seriamente desenvolvido por Marcelo Porciuncula,
foram os ingredientes que faltavam. Aline de Souza e Bruna de Bem foram de
grande ajuda com a formatação e a bibliografia.
PREFÁCIO
Juliano Maranhão é, hoje, seguramente, um nome expressivo no cenário
brasileiro do positivismo analítico em filosofia do direito. Seu domínio da
matéria lógica, que aprendeu precocemente com o mestre Newton da Costa, o
faz reconhecido também fora do País. E só isso já seria suficiente para introduzir o leitor neste livro.
Mas um prefácio é também uma discussão instigadora. Não obstante a
inserção da temática num debate próprio da filosofia analítica: a neutralidade
valorativa é uma condição de sucesso para uma teoria do direito? – há, no
âmago do seu questionamento metodológico (teorias do direito descritivas ou
avalorativas versus teorias do direito normativas ou justificadoras), a distinção
e aprofundamento da relação entre direito e moral.
Para situar essa problemática, permito-me lançar alguns aspectos da
própria modernidade jurídica, tal como aparece no contexto ocidental. Para
isso é necessário um recuo no tempo histórico.
O destino da filosofia da práxis na cultura ocidental até o limiar dos
tempos modernos conhecerá duas grandes versões da síntese entre phýsis e
ethos, segundo a influência preponderante seja do Estoicismo seja do Cristianismo na tradição do Direito Natural clássico. De um lado, a influência estóica
irá acentuar a transcendência e a imutabilidade da phýsis e, correlativamente,
a necessidade do logos universal em que ela se exprime e que se formula como
nómos eterno, sob cuja égide se constitui a unidade do gênero humano. De
outro lado, a tradição bíblico-cristã caminhará no sentido de um aprofundamento da universalidade subjetiva ou da consciência moral do indivíduo que
o constitui como sujeito propriamente dito ou como instância interior do dever
ser, em face da universalidade objetiva da lei. O aparecimento dessa polaridade
entre a consciência e a lei, que irá acompanhar a evolução posterior da Ética
e do Direito, supõe, por sua vez, o fim do ciclo histórico da antiga polis e, do
ponto de vista da evolução das instituições e das idéias políticas, a formação
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juliano souza de albuquerque maranhão
dos primeiros esboços da sociedade civil no enorme corpo político do Império
Romano e, posteriormente, nas sociedades urbanas da Idade Média.
Nesse novo contexto, a natureza não é mais a phýsis na imutabilidade
de sua ordem e fundamento de um nómos objetivo ao qual deve referir-se a
práxis humana. Nem se oferece mais como um horizonte de universalidade
permanentemente aberto à contemplação do filósofo ou à sabedoria do legislador. Uma nova homologia deverá vigorar entre o modelo da sociedade e a
nova idéia da natureza. A nova homologia fará submeter o pensamento social
e político, bem como o pensamento ético (moral e direito), aos princípios epistemológicos e às regras metodológicas da nova ciência da natureza, ciência de
tipo hipotético-dedutivo e tendo a análise matemática como seu instrumento
conceptual privilegiado.
Já no século XVI, começa assim um movimento de interpretação do
corpus juris em que se busca distinguir entre o entendimento sistemático das
fontes romanas e o seu entendimento histórico-cultural. Explica-se, assim, a
proposta de Donellus (Commentatorium Juris Civilis Libri) que constrói todo
o direito privado como um sistema de direitos materiais (cf. Helmut Coing,
Zur Geschichte des Privatrechtssystems, Frankfurt, 1969, p. 43). Partindo da
famosa formulação de Celsus (jus como honeste vivere, alterum non laedere,
suum cuique tribuere), propõe ele uma definição de direito em termos de ea
quae sunt cuiusque privatim jure tamen illi tributa e, especificamente, como
facultas et potestas jure tributa, expressões que denotam qualidades subjetivas. Com isso, Donellus re-interpreta a dicotomia direito publico/direito
privado em consonância com a idéia de suum cuique tribuere, entendendo o
jus privatum em termos de jus quod privatis et singulis quod suum est, tribuit.
Por conta disso, o Direito Privado passa a ser teoria dos direitos privados
individuais.
A classificação de Donellus e sua concepção de direito subjetivo como
faculdade e poder atribuídos pelo direito ao indivíduo sobre aquilo que lhe
pertence não só incorpora a noção de livre arbítrio como essência humana,
como também exige uma clara distinção entre a personalidade comunitária e
a personalidade individual. A homogeneidade da personalidade comunitária
é garantida pela organização e, como tal, se destaca de seus membros, as
pessoas morais. Esta distinção cria condições para uma outra, aquela entre
a vinculação do comportamento derivada do estatuto social e a derivada do
compromisso contraído, base para uma concepção racionalizada da diferença
entre direito objetivo e subjetivo.
O desenvolvimento de relações juridicamente ordenadas para uma
sociedade do tipo contratual e para o próprio direito como liberdade e, em
especial, para configurações jurídicas da idéia de autonomia autorizada por
regulamentos de um poder central resulta do enfraquecimento da noção de um
estatuto difuso e sagrado, donde o crescimento da liberdade individual.
prefácio
13
Essa liberdade, como um dado típico da espontaneidade humana, opõese à natureza, enquanto um mundo regido por leis determinadas.
De um lado, como a idéia de bem se torna relativa à perspectiva dos indivíduos, o subjetivismo da vontade se separa e se contrapõe ao objetivismo da
razão e da ciência: é a separação entre consciência ética e verdade. De outro,
a vinculação das normas da moral e da religião restringe-se à esfera das decisões privadas da consciência, separando-se da vinculação objetiva das normas
jurídicas: é a separação entre consciência moral e direito. Segue daí uma
terceira separação: a consciência ética deixa de ser vista como um problema
de scientia e passa a um problema de conduta e valoração (voluntas), donde a
separação entre liberdade e natureza como universos distintos.
O resultado desta liberdade é, então, a abertura de oportunidades para
aproveitar-se o indivíduo do emprego inteligente da posse de bens no mercado
sem limitações juridicamente externas para conseguir poder sobre outros
indivíduos. Este poder assume a forma jurídica de uma autorização pré-constituída, fundada na própria liberdade, formalmente acessível a qualquer um,
de fato à disposição daqueles que detêm bens. Em conseqüência, temos uma
organização política caracterizada por uma descentralização do poder para
efeitos de produção de normas jurídicas que obrigam quem se compromete,
mas que exigem uma estrutura global abstrata de coordenação: o Estado.
Contudo, o crescimento desta liberdade formal não impede, mas fortalece a exigência de um poder central com força coativa superior. Max Weber
(Wirtschaft und Gesellschaft Tübigen, 1976, II. Halbband, VII, Par. 2.º) assinala que é com o monopólio da produção jurídica pelo Estado no seu aspecto
formal, que aparece a idéia de um lado, do direito como ordenamento, de
outro, do direito concreto como uma garantia de ação do indivíduo. Centro
de confluência do ordenamento incidente como fundamento dessa garantia, a
aplicação do direito-ordenamento ganha um contorno complexo.
A exigência de garantia cria uma forma aberta a qualquer conteúdo: o
direito de ação. Isto esclarece o aparecimento do aparelho judicial como uma
máquina tecnicamente racional a serviço do cálculo sobre as chances de busca
e concretização da ação, que adquire, assim, um sentido operacional problemático. Ou, como diz o autor deste livro, ao aplicar, o juiz, a um só tempo,
identifica e interpreta (qual é e o que significa a regra do ordenamento?), isto
é, faz inferências e com isso obtém novas normas logicamente derivadas de
normas válidas, base para sua própria norma decisória (sentença). Ora, qual
o estatuto teórico dessa operação e qual seu impacto sobre a ontologia das
normas jurídicas?
Kelsen, em sua obra póstuma, posicionou-se com radicalismo, numa
revisão angustiada de sua obra anterior: normas são produto de vontade e,
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juliano souza de albuquerque maranhão
nessa medida, não há qualquer regulador (lógico ou moral) no processo de
expansão normativa do ordenamento.
Esse radicalismo trouxe para o debate (de que se ocupa o autor neste livro)
a necessidade de se captar a normatividade característica do direito de forma
peculiar a ela, isto é, independentemente da normatividade de outras práticas
sociais também baseadas em regras. Donde a crítica de Hart a Bentham e
Austin, e, nessa extensão, ao próprio Kelsen.
Para o positivismo analítico, contudo, esse debate conduz ao pressuposto
de que a compreensão das chamadas fontes do direito deva ser normativa, não
obstante a perplexidade produzida pelo seu fundamento: a norma fundamental
kelseniana e seu pressuposto de que o ordenamento como um todo seja considerado, globalmente, como eficaz; e a regra de reconhecimento de Hart, cuja
existência é tida como uma questão de fato.
Situada nesse plano fático, torna-se inevitável a discussão da fundamentação normativa em termos de sua legitimação: reconhecimento, por Kelsen,
de uma vontade instituidora como legítima; reconhecimento, por Hart, de que
determinados atos de determinadas instituições constituem atos criadores (do
ponto de vista externo, como mera constatação; do pondo de vista interno,
aceitação da validade). Tanto de uma forma como de outra, essa identificação
do direito como fato social levanta a questão da contingência dos conteúdos das
normas, desde que válidas; donde o tema da separação entre moral e direito (o
mérito moral nada tem a ver com a juridicidade das normas, donde a expansão
normativa via interpretação ser ato valorativo subjetivo, cuja normatividade
decorre de vontade).
O autor percebe, no entanto, com acuidade, que esse posicionamento
depende de outro, com respeito à objetividade das fontes (cujo conteúdo, pelo
menos em parte, deveria ser identificável, ainda que com valoração, sem engajamento moral: tema da neutralidade), que está no cerne da polêmica contemporânea entre positivistas inclusivistas e exclusivistas. Ou a ligação das formas
com as condutas teria instâncias acordadas, a partir da incorporação imediata de
crenças e valores da comunidade, com prejuízo para a separação entre direito
e moral e colocando em risco a própria possibilidade da convenção social, ou
o critério está na mera identificação das autoridades competentes, cuja decisão
soberana ou cujas decisões reiteradas seriam adotadas pela autoridade interpretante, com prejuízo para o tema da legitimação. Diante do dilema, o autor
desenvolve, com precisão e rigor, uma terceira via, que chama de inclusivismo
lógico, ao inverter a forma usual pela qual se vê a relação entre princípios e
regras jurídicas: não são as regras derivadas ou justificadas pelos princípios
morais e de políticas públicas, mas os princípios é que se legitimam como
razões jurídicas vinculantes na medida em que são endossados pelo conteúdo
das regras. Com isso, o autor chama a atenção para o fato de que a autoridade
e o conteúdo de valores morais empregados na atividade dos tribunais podem
prefácio
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ser derivados da autoridade das próprias regras postas, assumindo-se a objetividade, ao menos parcial, do conteúdo das fontes. Essa incorporação apenas
indireta da moralidade, a partir de uma valoração não engajada das fontes, dá
novo fôlego ao ideal de neutralidade do positivismo jurídico.
Em suma, a inserção deste livro no contexto de sua problematização
histórica aponta para um tema filosófico enraizado na própria existência do
homem contemporâneo. Ou seja, se a questão fundamental da antiga filosofia
prática no âmbito da vida social era a determinação dos requisitos essenciais
que asseguravam ao homem, como cidadão, poder exercer na sociedade política os atos próprios da vida virtuosa (eu zen) ou da vida ordenada para o bem
da cidade – identificado com o bem do indivíduo ou com sua autárqueia – a
jusfilosofia positivista analítica, no contexto do pensamento jurídico moderno,
acaba por presumir como sua tarefa primordial propor a solução analiticamente satisfatória ao problema da associação dos indivíduos, tendo como
alvo assegurar a satisfação de suas necessidades vitais. Daí o debate sobre a
separação entre direito e moral.
E justamente aí é que se percebe que o advento da sociedade civil como
lugar histórico da realização da liberdade e, portanto, da vigência da lei e
da validade do direito está, afinal, na origem da cisão moderna entre ethos e
nómos que se exprime nas diversas formas de positivismo jurídico e de positivismo analítico jurídico, como também da separação entre direito e moral que
faz a prática social chamada jurídica pesar sobre o homem moderno como um
destino trágico, como forma dilacerante semelhante àquela “tragédia no ético”
de que falava Hegel: a sociedade moderna como uma sociedade complexa e
altamente desagregada, donde a função do ordenamento como um sistema que
compense a perda da homogeneidade comunitária.
Tercio Sampaio Ferraz Junior
Sumário
Prefácio....................................................................................................... 11
1.Introdução: lógica e metodologia jurídica............................................. 21
2.O debate contemporâneo da teoria analítica do direito.......................... 31
2.1Introdução....................................................................................... 31
2.2O positivismo jurídico: primeira aproximação............................... 33
2.3Críticas preliminares...................................................................... 40
2.4A intriga.......................................................................................... 53
2.4.1 No plano da teoria do direito................................................ 53
2.4.2 O salto para o plano metodológico....................................... 57
2.5O dia seguinte................................................................................. 63
2.6Argumentos contra a consistência da incorporação....................... 67
2.7O que resta do positivismo?........................................................... 76
3. Inclusivismo Lógico-Jurídico................................................................ 79
3.1Introdução....................................................................................... 79
3.2Formas de inferência e normas derivadas................................... 83
3.3Da validade à pertinência............................................................. 89
3.4Da pertinência à origem das razões............................................. 95
3.5Clara non sunt interpretanda ou in claris cessat interpretatio? 100
3.6O discurso da dogmática jurídica................................................. 113
3.7Inclusivismo lógico como contra-argumento a Dworkin........... 117
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juliano souza de albuquerque maranhão
3.8A objeção de Marmor................................................................... 120
3.8.1 Consequência lógica e redução ao absurdo....................... 122
3.8.2Normas derivadas pressupõem coerência do ordenamento? 129
3.9Normas dedutivamente derivadas são razões jurídicas.................. 132
3.10 Princípios derivados por abdução são razões jurídicas................ 135
3.11 Integridade.................................................................................... 141
3.12 Inferência local............................................................................. 145
3.13 Princípios podem ser ingratos?..................................................... 155
4. Conclusão............................................................................................... 169
Bibliografia................................................................................................. 174
«Autoritatem cum rationem
omnino pugnare non posse.»
Vico, De uno universi juris
principio et fine uno, Cap. LXXXIII
1
Introdução: lógica e
metodologia jurídica
O art. 213 do Código Penal brasileiro proibia a relação sexual violenta. O
art. 224, alínea «a», estabelecia a presunção absoluta de que a relação sexual
com menor de 14 anos é violenta. Isso significa que o CP proibia a relação
sexual com menor de 14 anos?
Seria difícil alguém responder que não. Mas a pergunta facilita a resposta,
ao colocar o tema em termos do significado do art. 213. Parece, afinal, que essa
é a interpretação «imediata» ou a consequência «indisputável» desses dois
dispositivos. Trata-se, aliás, de mera inferência dedutiva, o que, no campo
da interpretação, parece colocar a conclusão como aspecto necessário ou
conteúdo «implícito» do sentido dos arts. 213 e 224. A cogência da conclusão
é tal que diríamos que uma resposta negativa à questão acima só poderia vir de
alguém que efetivamente não entendeu o conteúdo dos dispositivos.
Agora retire o «isso significa que» da pergunta e coloque-a no campo
da existência ou validade da norma (não apenas do seu sentido): a proibição
de relação sexual com menor de 14 anos era já uma norma válida no direito
brasileiro?
Nesses termos, a pergunta, em vez de apresentar uma resposta, convida
a novas questões. Seria mesmo possível separar a atividade de interpretação
da resposta sobre a validade da norma? Ou seja, as duas questões iniciais são
mesmo diferentes?
Há alguns anos, os dois dispositivos legais foram alvo de decisão polêmica do Supremo Tribunal Federal, na qual foi concedido habeas corpus a
acusado que manteve relação sexual com menina de 12 anos. A comunidade
jurídica inclinou-se a ver decisão como contra legem e, em seguida, a Lei
12.015/2009 alterou o Código Penal, mantendo a proibição de relação sexual
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juliano souza de albuquerque maranhão
violenta (art. 215) e substituindo o art. 224 “a”, revogado, pelo art. 217-A, que
estabelece a proibição expressa da relação sexual com menor de 14 anos. Essa
nova previsão efetivamente alterou o Código Penal ou a proibição de relação
sexual com menor de 14 anos já estava lá? Essa reação curiosa do legislador
diante da decisão judicial traz duas perguntas: um ato de vontade expresso
é requisito necessário para identificar a validade da norma? Ou é possível
identificar normas válidas recorrendo somente à cognição?
Todas essas questões são centrais para uma teoria do direito e reações a
elas dependerão de um posicionamento, mas também definirão esse posicionamento acerca da questão, que agora coloco em termos mais gerais: normas
logicamente derivadas de normas válidas são também válidas?
Um dos projetos mais ambiciosos em elevar o saber jurídico ao status
de ciência autônoma sucumbiu exatamente diante dessa questão. Poucos anos
após a publicação daquela que parecia ser a formulação final de sua Teoria
pura do direito, delineando o estatuto de uma ciência jurídica independente
de especulações morais e distinta da mera descrição de regularidades do
comportamento social, Kelsen publicou o artigo Direito e lógica, em meio
a um período de correspondências com o lógico Ulrich Klug, no esforço de
responder justamente se a lógica desempenharia algum papel na ontologia
das normas jurídicas. A conclusão de Kelsen foi um surpreendente «não!»,
que desembocou no angustiado esforço de reescrever sua obra, postumamente
publicada em Teoria geral das normas, na qual Kelsen depura sua teoria de
todo neokantismo para cair em voluntarismo radical.
No mesmo período, um lógico finlandês sofreu da mesma angústia do
jurista que ousou flertar com a lógica, mas agora pelo caminho inverso, flertando com o direito. Von Wright (re)criou a lógica deôntica moderna em
intervalo de seus estudos sobre lógica modal, especificamente num inocente
passeio às margens do rio Cam. Foi seu artigo mais citado e seu pecado mais
mortal. Não mais descansou, publicando diversas revisões, novos sistemas
e reinterpretações do que significaria a lógica de normas, pois jamais esteve
satisfeito com a resposta oferecida àquela mesma questão, ou, em seus termos,
se uma norma poderia necessariamente existir ou inexistir em função da existência de outras, apenas por razões lógicas. No início da década de 1980, a
sua identificação com Alf Ross no sentido de que o discurso jurídico seria
«alógico» e que, portanto, os sistemas de lógica deôntica seriam apenas ideais
de racionalidade a serem comparados com ordenamentos reais foi praticamente ignorada pela já madura comunidade de lógica deôntica, que, segundo
Von Wright, continuou seu trabalho insistindo em cometer o pecado de introduzir relações lógicas no reino próprio das normas.
O radicalismo das reações à pergunta não deveria surpreender. Na verdade,
ela funciona como um teste binário (sim ou não) para problema nascido na era
moderna com a própria empreitada de sistematização do direito aos moldes
introdução: lógica e metodologia jurídica
23
das ciências naturais: a conciliação entre cognição e volição como fundamento
das obrigações jurídicas. Trata-se da dificuldade de racionalização do direito
como produto da vontade, com todas as suas conotações e implicações no
campo moral e político, em termos de um esforço de legitimação moral da
autoridade do Estado.
O teste é impetuoso. Se a cognição preenche algum papel na identificação
de nossas obrigações jurídicas, então, no mínimo, deveríamos reconhecer que
inferências dedutivas imediatas identificam obrigações, ou normas existentes,
com força obrigatória. Se uma dedução simples como aquela a partir dos
arts. 213 e 224 do CP brasileiro não tem essa força, então o que dizer de
outras construções do conhecimento jurídico? Por outro lado, se a resposta
for afirmativa, o problema que se coloca é: qual o limite para a cognição na
identificação/constituição de normas válidas?
A cognição parece ser capaz de revelar «conteúdos implícitos» ou
suprimir «conteúdos aparentes», por exemplo, no caso de identificação de
inconsistências entre sentidos atribuídos a duas normas distintas ou de incompatibilidade entre o conteúdo da norma e aquilo que seria seu propósito ou sua
ratio.
Assim, o jurista não hesita em afirmar que uma lei estabelecendo um
imposto retroativamente é inválida diante da norma constitucional que proíbe
a retroatividade de qualquer tributação. O fator por trás dessa afirmação da
supressão do vínculo legal nada mais é do que o princípio de não contradição.
Mas seria ele mesmo suficiente para, por si, operar esse efeito na ordem jurídica?
E o jurista, para usar o conhecido exemplo de Siches, também afirmaria
com tranquilidade que se for proibido, por força de uma lei, entrar com
cachorros no trem, então a mesma regra proíbe que se entre com ursos no trem.
Embora a entrada com urso pareça uma instância clara de aplicação da regra,
entra em jogo aqui uma inferência não dedutiva, que envolve a formulação
de hipóteses sobre a motivação do legislador. Mesmo assim, há, nesse caso,
forte grau de cogência: sobre aquele que insistir em entrar com ursos no trem
por inexistir proibição expressa, diríamos que não entendeu propriamente a
proibição de entrar com cachorros. Mas a proibição de entrar com ursos já
existe nesse ordenamento? Ou a inferência que me leva a essa conclusão tem
força criadora?
O problema aqui está em encontrar o ponto em que passo da revelação
ou descrição dessas normas «implícitas» ou «aparentes» para a criação de
conteúdo pelo próprio jurista. O jurista não estará mais tão confortável em
afirmar que uma lei banindo a veiculação de propaganda de cigarros é inválida
diante de uma constituição que determina que a lei apenas «restrinja a propaganda de cigarros». Também não estará tão seguro em afirmar que é permitido
24
juliano souza de albuquerque maranhão
entrar com uma bicicleta em parque que proíbe a entrada com veículos. Isso
muito embora as operações lógicas envolvidas sejam fundamentalmente as
mesmas.
Em parte dos casos, o jurista afirma que as normas já estão lá ou já não
estão mais lá. Em outra parte, acusa seus colegas de criarem normas onde
não há ou de excluírem indevidamente normas cujas consequências não lhes
agradam. Porém, não há como delimitar precisamente esses dois conjuntos
de situações, de modo que é difícil estabelecer quando acaba a cognição e
começa a volição na identificação do ordenamento.
Mas se na reconstrução cognitiva do ordenamento, a vontade do jurista
ou operador do direito pode fazer escolhas, expressando preferências valorativas, com consequências diretas na definição daquilo que é certo ou errado
em determinada comunidade, então as regras concebidas nessa atividade
cognitiva/volitiva são ou deveriam ser vistas como moralmente justificadas?
E, por fim, se a resposta for afirmativa, a teoria do direito, para dar conta
adequadamente dessa prática social de identificação do direito deveria também
se engajar em sua justificação moral?
Chega-se, nesse último passo, à questão metodológica usualmente apresentada pela oposição entre teorias do direito descritivas ou avalorativas, de
um lado, e teorias do direito normativas ou justificadoras, de outro. A linha
divisória é expressa na discussão sobre a possibilidade de separação entre a
identificação do direito como ele é (Sein) em oposição à crítica sobre como o
direito deveria ser (Sollen). A distinção aparece em dois níveis: o da dogmática ou ciência do direito (Jurizprudenz), consistente no trabalho doutrinário
contendo proposições acerca de um sistema normativo em particular; e o da
teoria do direito (Metajurisprudenz), cujo objeto é a atividade da ciência do
direito.1 A tarefa da metodologia do direito seria Meta-Metajurisprudenz, i.e.
trataria das condições de adequação e sucesso de teorias do direito. A questão
metodológica central, portanto, em torno da separação entre o que é e como
deve ser o direito seria: a neutralidade valorativa é uma condição de sucesso
para uma teoria do direito?
Essa última questão desdobra-se em três: Com relação a que tipo de
valoração a neutralidade se refere? A neutralidade é possível? Como pode ser
alcançada?
Já no que se refere à primeira questão, a separação entre teorias descritivas e normativas não é inteiramente adequada se a «atividade descritiva» for
1.
Com essa distinção de níveis de discurso, Bobbio (1967: 10) identifica matriz com quatro
possibilidades: (i) Jurisprudenz descritiva e uma Metajurisprudenz prescritiva (onde ele chega
a colocar o positivismo, que prescreveria à ciência do direito o uso do discurso descritivo); (ii)
Metajurisprudenz descritiva de uma Jurisprudenz prescritiva; (iii) Jurisprudenz e Metajurisprudenz descritivas; (iv) Jurisprudenz e Metajurisprudenz normativas.
introdução: lógica e metodologia jurídica
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levada ao «pé da letra». É certo que para a explicação de qualquer fenômeno,
natural ou social, pelo menos em sentido trivial, exige-se alguma valoração,
i.e. que o teórico selecione os aspectos que considera mais importantes do
fenômeno a ser explicado e o organize de determinada forma, considerando a
coerência de sua teoria. Esse tipo de valoração, pelo menos à primeira vista,
parece insignificante, pois está presente em qualquer teoria sobre qualquer
domínio e não seria, portanto, peculiar ao direito. O tipo de valoração que
interessa aqui diz respeito a sua qualificação moral.
Diferentemente de outros ramos do conhecimento, o direito é uma prática
social que envolve valorações sobre as ações dos próprios participantes dessa
prática. Tal condição coloca em questão a possibilidade de uma explicação
adequada desse fenômeno a partir da mera correlação causal de eventos.
Explicar a prática social chamada direito não significa descrever suas causas,
mas compreender suas razões. E compreender razões de uma ação ou prática
implica atribuir propósitos aos agentes (por qual razão ou para qual fim isso ou
aquilo foi feito?). Mais do que isso, a própria compreensão de qual é a prática
ou ação parece depender do propósito estipulado pelo intérprete. Afinal, para
entender o que foi proibido muitas vezes dependemos da compreensão de
qual seria o propósito da proibição. Além disso, o direito é um tipo de prática
social «reflexiva», a ser percebida de seu ponto de vista interno: o conteúdo do
direito, que determina como devem se comportar os participantes, é identificado a partir das valorações dos próprios sujeitos e agentes dessa prática sobre
a forma pela qual se comportam.2
A questão é, então, a possibilidade de apreender essa prática social valorativa sobre como agir, na qual razões morais e políticas estão em jogo nas
interações entre os agentes, sem que o observador se envolva nessa mesma
justificação moral. Esse é o sentido de neutralidade, não valorativa, mas moral
do conhecimento jurídico. Para identificar aquilo que é direito, o jurista precisa
identificar um conteúdo moralmente bom ou correto? E o teórico do direito,
ao traçar as condições de adequação de uma teoria dogmática deve advogar
princípios que entende trazer melhores consequências na identificação do
direito?
No pensamento jurídico, a mais forte afirmação da neutralidade moral
como condição de sucesso para teorias jurídicas é formulada pelos positivistas, que creem na possibilidade de apurar tais valorações dos participantes
como um dado externo objetivo, socialmente identificável, sem necessidade
de engajamento em considerações morais. Esse dado externo, produto de atos
de vontade identificados como dotados de autoridade, constituiria o que o
direito é, ainda que seu conteúdo possa ser moralmente reprovável.
2.
Hart, 1997.
26
juliano souza de albuquerque maranhão
Tal ideal de neutralidade, afirmada em versões mais radicais como
exigência de um discurso descritivo do direito despido de qualquer valoração,
foi alvo de uma série de objeções no âmbito da filosofia do direito, da primeira
metade, até o final do século passado, nas suas mais diversas correntes:
neokantianas, hegelianas, fenomenológicas, culturalistas etc. O valor moral
intrínseco ao fenômeno do direito ou ao seu conhecimento por uma «ciência
do espírito» é postulado por essas teorias mesmo quando se reconhece que
as normas jurídicas seriam manifestações de vontade ou parte de uma realidade socialmente determinada. A moralidade do direito penetra, seja porque
o direito tem que ter um conteúdo moralmente justificável, seja porque seria
impossível compreendê-lo sem identificar seus propósitos morais. Esse
conteúdo necessário – e não socialmente contingente – de moralidade pode
aparecer em diferentes formas, que, como propõe Larenz,3 são de três ordens
na história do pensamento jurídico: ou por um resgate do ideal jusnaturalista
(como uma ordenação racional de valores morais que condicionam a cognição)
ou por uma perspectiva historicista (como um reflexo da inserção do jurista
em determinada cultura, com valores morais historicamente constituídos, dos
quais as normas, o direito e seu conhecimento são expressão e dela não podem
ser dissociados), ou por uma síntese de ambos.
Tais críticas procuram mostrar como a noção de «realidade» adotada
pelos positivistas é demasiado estreita e desconsidera entidades nela presentes,
que não permitem sua redução a um elemento externo objetivo, independente
de considerações de natureza moral pelo sujeito cognoscente ou manifestadas
no próprio fenômeno.4 Da segunda metade para o final do século passado, essa
linha de críticas torna-se mais contundente quando o foco do fenômeno a ser
investigado passa a ser, principalmente, a percepção do direito no momento
de sua concreção ou adjudicação, em que as valorações refletidas em normas
jurídicas são objeto de deliberação no processo de subsunção de uma norma
a um caso, inclusive com deliberação de valores aparentemente supra ou
extralegais.5 A cognição do que é o direito pela ciência jurídica deveria ser
fiel à forma pela qual esse é interpretado e aplicado pelos tribunais, devendo
dar conta dos mecanismos de interpretação e argumentação jurídicas que
permitem a concreção de direitos e deveres particulares.
Dado que o direito é entremeado de valorações morais pelos participantes dessa prática e essas se manifestam de forma particularmente aguda no
momento de concreção ou adjudicação, seria possível uma descrição (ainda
que valorativa) deste sem recurso a considerações morais, ou seja, sem considerações sobre seu propósito moral ou uma justificação de sua moralidade?
3.
4.
5.
Larenz, 1989: 113 e ss.
Larenz, 1989: 160.
Larenz, 1989: 167 e ss.
introdução: lógica e metodologia jurídica
27
Esse problema metodológico será o pano de fundo deste trabalho, desenvolvido nos quadros da teoria analítica do direito contemporânea.
Há uma diferença importante quanto aos pressupostos e ao método
empregado pela filosofia analítica, consistente em tratar problemas filosóficos como problemas de linguagem. Com relação aos problemas filosóficos
da «natureza do direito» e do «método da ciência jurídica», esses poderiam
ser resolvidos, ou dissolvidos, seja pela reforma e precisão do sentido do
termo «direito» e das proposições da ciência sobre o direito, seja pela melhor
compreensão da forma pela qual esse termo é empregado no discurso por seus
operadores. É já uma questão própria se essa redução do problema à análise da
linguagem elimina a postulação de «entidades» metafísicas na realidade, ou se
pressupõe um postulado metafísico ainda mais forte sobre a correlação entre a
linguagem e a realidade.6 Mas a vantagem oferecida, apesar da possível, mas
necessária, redução da complexidade do fenômeno analisado, está na precisão
dos conceitos e teses empregadas, inclusive com recurso a métodos formais
para representação da linguagem ideal reformadora ou de clarificação e articulação da linguagem natural na qual o problema se manifesta.
O próprio positivismo jurídico foi construído com forte apoio no método
analítico. Na tradição continental, Kelsen, embora não seja um representante
típico dessa corrente e tenha recorrido a postulações neokantianas, definiu
projeto bastante afeito à filosofia analítica ao buscar a definição das propriedades necessárias do que é «direito», universalmente considerado, que fosse
capaz de distingui-lo de outras manifestações sociais e normativas. Seu exame
dos problemas tradicionais da filosofia do direito também traz notas desse
método, na medida em que Kelsen supera dicotomias por meio da precisão
de conceitos como «dever jurídico», «pessoa jurídica», reduzindo-as a uma
definição central de norma jurídica, além de seu esforço em precisar o tipo
de discurso e estrutura das proposições da ciência do direito. Seus principais
continuadores como Bobbio, Weinberger e Bulygin já se enquadram típica e
expressamente nessa tradição.
Já a tradição anglo-saxã, em particular a proveniente de Hart, define
expressamente o problema de identificação do que é o direito, com a identificação do significado desse conceito. E foi Hart quem colocou o problema da
valoração em relevo, ao incorporar a hermenêutica de Wittgenstein, em sua
análise do conceito de direito sob «o ponto de vista interno» dos participantes
dessa prática. Esse ponto de vista seria capaz de identificar o compartilhamento
de critérios sobre o uso do termo «direito» nas atitudes de aprovação ou reprovação de comportamentos, em particular, pela comunidade de juízes. Usa-se
o termo «direito» para se referir ao núcleo de sentido ou às instanciações não
Para uma caracterização da virada linguística dada pela filosofia analítica ou filosofia da
linguagem, ver Rorty, 1992: 1-40.
6.
28
juliano souza de albuquerque maranhão
problemáticas das regras decorrentes de fontes sociais convencionadas pela
comunidade de juízes como dotadas de autoridade.
O aprofundamento dessa postura hermenêutica de compreensão do
conceito de direito vai levar à crítica de Dworkin sobre as valorações exercidas por esses participantes, em particular nos atos de adjudicação, em que
é posta em prática a atividade de reconstrução interpretativa do direito. O
recurso, pelos tribunais, a princípios morais e de políticas públicas, encarados
pelos positivistas como «extralegais», revelaria a ausência de convenção
sobre critérios objetivamente identificáveis sobre o uso do termo «direito».
Não haveria consenso, mas discrepância entre os próprios participantes sobre
o conteúdo e propósitos morais da prática jurídica. Daí a impossibilidade de
compreensão moralmente neutra dessa prática, sem que o teórico se posicione
sobre a mesma.
Esse ataque provocou uma grande divisão entre os positivistas, que,
aparentemente, convergiam sobre teses centrais, em particular sobre a objetividade do núcleo de sentido dado pelo termo «direito». A crítica, porém, mostrou
que aquilo dado como certo, envolvia diferenças importantes, principalmente
com relação ao papel da interpretação e o pressuposto de objetividade desse
núcleo de sentido. Com isso, Dworkin trouxe um avanço importante ao seio
da teoria analítica, consistente no resgate da hermenêutica e da justificação
de normas e decisões jurídicas por princípios morais ou de políticas públicas
colhidos pela vivência do direito em uma comunidade.
Essa caracterização dos princípios morais empregados na adjudicação,
por estarem na base das valorações que justificam a criação das normas,
funcionou como um divisor de águas: seriam esses princípios extrajurídicos
ou jurídicos? A recusa em ver os princípios empregados pelos tribunais como
parte do conceito de direito parece ignorar a forma pela qual os participantes
aplicam esse termo, muito embora tenha sido essa a reação de muitos positivistas. Mas, por outro lado, se esses parâmetros normativos são jurídicos, o
que caracterizaria sua juridicidade?
A resposta a tal pergunta é crucial para a ideia ou a possibilidade de
neutralidade. Caso a juridicidade decorra de uma valoração moral, pelo
observador, do mérito do conteúdo dos princípios e esses justificam normas
válidas, então se quebra a possibilidade de captar tais valorações como um
dado externo. Mas como seria possível justificar a juridicidade de princípios
com conteúdo moral sem recorrer à moralidade?
O propósito deste livro é ensaiar uma resposta exatamente a essa
pergunta. Resgatando a questão inicial sobre a validade das normas logicamente derivadas, defendo que a juridicidade de valorações morais ou políticas
subjacentes ao direito, usualmente recolhidas sob a alcunha de «princípios
jurídicos», decorre, não do mérito moral de seu conteúdo, mas da relação
introdução: lógica e metodologia jurídica
29
que seu conteúdo guarda com o conteúdo de regras que formam o núcleo de
sentido do termo direito, identificáveis de forma independente de considerações morais. Essa relação entre o conteúdo dos princípios e desse núcleo é
dada por inferências lógicas de diferentes tipos, envolvidas no processo de
interpretação, mas, em particular, por inferências abdutivas. As inferências
abdutivas não são dedutivas e envolvem valorações e atribuições de propósitos
capazes de explicar as regras de base como resultados de atos racionais, porém
dentro de um processo controlado de derivação que se reflete nas técnicas
hermenêuticas.
Assim, os valores morais ou políticas públicas envolvidos na reconstrução interpretativa do ordenamento pelos tribunais ou pela dogmática
jurídica derivam, tal como as regras, sua autoridade de um dado externo: a
convenção social sobre as fontes de direito. Porém, esses princípios não são
derivados imediatamente dos critérios e nem são parte dos critérios dessa
convenção. São, antes, derivados por inferências lógicas, não necessariamente dedutivas, a partir das regras por ela identificadas. O ponto é que se os
conteúdos de valores morais valem como razões jurídicas, valem não pelo seu
mérito, mas pelo fato de serem derivados por processos racionais a partir das
regras dotadas de autoridade, que, indiretamente, os endossam. A neutralidade
moral (mas não valorativa) da ciência do direito é, assim, recolocada como
uma possibilidade teórica.
Para percorrer esse caminho, será apresentado, no Capítulo 2, o debate
atual da filosofia analítica do direito, centrado na crítica de Dworkin ao positivismo. Será examinada com cuidado a tese que chamo de «objetividade das
fontes», que reputo crucial para entender a forma pela qual Dworkin pretende
minar as bases do positivismo, além do que, aponta um caminho de resposta
a sua objeção.
No Capítulo 3, faço uma breve apresentação da inferência abdutiva, sem
me ater aos aspectos formais, apesar do grande desenvolvimento de lógicas
abdutivas no campo da inteligência artificial. Estou menos preocupado em
explicitar ou formalizar os mecanismos desse tipo de inferência no discurso
normativo e mais em pensar nas consequências para a teoria do direito em se
assumir a relação entre regras e princípios como uma relação de inferência
abdutiva. Enfrento, então, a questão colocada no início desta introdução: se
normas logicamente derivadas de normas válidas são válidas. Delimito o que
entendo como dado externo objetivo que forma o núcleo de sentido do termo
«direito» e proponho a versão de positivismo chamada aqui de «inclusivismo
lógico». Como resultante dos argumentos em defesa do inclusivismo lógico
sobressai, aqui, ainda que de forma esboçada, uma concepção de direito como
o conjunto de sistemas normativos (fechados em suas consequências lógicas
abdutivas e dedutivas) que resultam de reconstruções interpretativas do ordenamento jurídico. Argumento que essa concepção é capaz de explicar satis-
30
juliano souza de albuquerque maranhão
fatoriamente as valorações morais empregadas pelos tribunais como razões
jurídicas, sem incorrer em problemas enfrentados por outras teorias positivistas que buscaram se reformular para dar conta desse fenômeno valorativo
na atividade de adjudicação.
Meu intuito aqui é somente mostrar a plausibilidade dessa alternativa de
resposta à crítica de Dworkin, em particular ao seu desafio à possibilidade de
neutralidade moral da ciência do direito. Na verdade, ela consiste em reconsiderar o papel dos princípios como justificações das normas e apontar que
não necessariamente essa relação leva ao moralismo. Assim, apenas quero
defender que a crítica por ele formulada não leva à conclusão pretendida sobre
a impossibilidade de um conhecimento moralmente neutro do direito.
Isso alivia meu onus probandi e delimita as expectativas do leitor.
Não esperem qualquer afirmação, muito menos demonstração, de que seria
possível a neutralidade moral da ciência jurídica. Apenas faço uma objeção a
uma determinada crítica que pretendeu mostrar sua impossibilidade. Também
não esperem qualquer esforço de demonstração de equívoco das demais alternativas positivistas de resposta a essa crítica, ou que a minha proposta seria
superior àquelas em qualquer sentido. Apenas vou indicar que algumas objeções por elas enfrentadas podem ser contornadas pela versão de inclusivismo
lógico aqui proposta. Em suma, quero apenas colocar mais uma possibilidade
na mesa da teoria analítica do direito para discussão desta questão metodológica que reputo central: a neutralidade moral como condição de adequação e
sucesso da teoria do direito.
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Sobre
o Autor
Juliano Maranhão
Juliano S. de Albuquerque Maranhão, Doutor e
Livre-Docente em Direito pela Universidade de
São Paulo, é Professor Associado do Departamento de Filosofia e Teoria Geral do Direito da
Faculdade de Direito da USP. É coordenador e
editor da Revista Brasileira de Filosofia.
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