PDF - Jornal Plástico Bolha

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PDF - Jornal Plástico Bolha
plástico bolha
aparentemente insólito...
Ano 2 - Número 18 - Novembro e Dezembro/2007
Distribuição Gratuita
2007 está chegando ao fim. Assim como em 2006, neste ano lançamos nove edições do plástico
bolha. Foi um longo caminho. O jornal, que começou o ano com 4 páginas, acabou triplicando de
tamanho. Com isso, passamos a ter mais espaço para a publicação de textos, aprofundando melhor
nossas propostas. Enfim, como bem define Heinz Langer em seus traços, estamos encorpando.
Agora, o jornal e sua equipe vão tirar umas breves e merecidas férias. Se tudo der certo, voltaremos
em 2008, a todo vapor.
O nosso espaço é democrático — figuras renomadas dividem espaço com iniciantes. Colunas
fixas desenham verdadeiras linhas de pesquisa, seja quanto à arte do magistério em Aos alunos com
carinho, seja ao universo feminino em Mulheres-damas. E que tal descobrir aspectos interessantes da
biografia de figuras como Nietzsche, Wittgenstein, Spinoza e Kant, na coluna Puzzles, sempre assinada
por alguém interessante? Gregório Duvivier diverte os leitores em Subjetivas, mostrando como o
humor vai bem com tudo e não é contrário nem à poesia, muito menos ao conhecimento. Santuza
Cambraia Naves continua com suas dicas e observações musicais em Por dentro do tom, e os boxes
do Clique Aqui nos ajudam a encontrar utilidades no mundo virtual. Séries como os Cen’átimos e o
Manifesto Sampler atualizam a discussão, sempre com muita ousadia. Se o que queremos é conhecer
a nós mesmos, a coluna Oráculo, com seus mitos, é o espaço ideal. Se o assunto é poesia, temos
desafios poéticos, exercícios de tradução e muitos convidados especiais. Na hora das entrevistas, não
faltam bons debates com figuras da academia, do mundo literário ou cultural. Para ilustrar isso tudo,
Angelo Abu e seus desenhos geniais.
O jornal se interestadualizou, chegando a Belo Horizonte, onde circula há mais de quatro meses.
São dez pontos da capital mineira, entre faculdades, cinemas e bares, que recebem nossas letras, numa
verdadeira invasão das bolhas cariocas. Por sua vez, os mineiros contra-atacam, na coluna Bolhas
Geraes, um pequeno panorama da nova literatura de Minas, para o nosso deleite.
Pela Guanabara, firmamos ainda mais a nossa relação com os pontos de distribuição. Os cinemas
do grupo Estação; as livrarias Argumento, Letras e Expressões, DaConde, Travessa e Café com
Letras; a loja de música Modern Sound; os teatros Tablado e Casa da Gávea, entre muitos outros
locais, acolheram nossa idéia e abriram um espaço em seus balcões para o jornal. A todos, o nosso
agradecimento.
Isso tudo sem falar nas faculdades. Há muito, o jornal deixou de ser uma publicação restrita
à comunidade PUC-Rio , onde nasceu e é desenvolvido. Alunos e professores da UERJ, UFRJ,
UFF, Cândido Mendes, UniverCidade, Estácio de Sá, Santa Úrsula, FACHA, UFMG, PUC-MG,
FUMEC, entre outras universidades, enviaram seus textos, folhearam nossas páginas, estouraram
suas bolhas.
Já recebemos mais de 700 textos neste período. Agradecemos a todos os que nos enviaram seus
trabalhos e pedimos desculpas aos que ainda aguardam publicação, pois a fila é longa. Aproveitamos
para reiterar que continuaremos aceitando textos no período de férias, que serão publicados no ano
que vem. Envie o seu trabalho para nosso e-mail, que está na página 2.
Deixe sempre este jornal na sua bolsa ou na mochila — você nunca sabe quando será a próxima
fila, a próxima sala de espera, o inevitável engarrafamento. Nossas letras têm o poder de adiantar o
tempo... Bem, tudo isso é plástico bolha. Tudo isso você tem em suas mãos agora, de graça, mesmo
que valha muito. Aproveite, e até 2008!
NESTA EDIÇÃO
mc marechal
anna lee
lÚcia pacheco
heinz langer
santuza cambraia naves
lÉo torres
E N C O R PA N D O
miriam sutter
angelo abu
ger
z Lan
Hein
luisa noronha
antonia ratto
gisela gold
felipe carvalho dos santos
chloe paisley
gregÓrio duvivier
raquel naveira
luiz coelho
chiara di axox
mariano marovatto
carlos andreas
alluana ribeiro
augusto de guimaraens
domingos guimaraens
diana sandes
isabel diegues
natalia guerra
barbara hansen
ricardo sternberg
gustavo paes
paulo henrique motta
felipe aguiar chimicatti
lucas viriato
gustavo gadelha
marcela sperandio rosa
erica ramminger
paulo gravina
lÚcia cordeiro
paulo henriques britto
Aos alunos com carinho
2
É, realmente, com muito carinho que escrevo a
todos os alunos, especialmente aos que iniciaram e têm
conduzido o Plástico Bolha! Quando vocês tiveram a
idéia de fazer um jornal, me procuraram, como Diretora
do Departamento de Letras, para me informar sobre esta
iniciativa. Não pediram ajuda e foram extremamente
gentis em me relatar a sua proposta. Incentivei-os ao
máximo, mas meu incentivo era redundante, já que a
motivação de vocês era genuína, e, como tal, sustentáculo
sólido de uma empreitada que vem crescendo a cada
número publicado!
O Plástico Bolha tem levado o nome do
Departamento de Letras a contextos diversos e, com
o jornal, vão as idéias criativas de alunos da PUCRio, e, mais recentemente, também de muitas outras
instituições de diferentes regiões do país. Mas acho que,
acima de tudo, vai, com cada edição do Bolha, o carinho
que vocês dedicam a esta publicação e o carinho que
todos os professores sentem por ela.
O carinho, aliás, pode ser o veículo e a sustentação
de muitas atividades no contexto acadêmico. Durante
muitos anos ele ficou um pouco esquecido, ou relegado
a um plano menor, porque considerava-se mais
importante o aspecto cognitivo da aprendizagem. Hoje,
felizmente, ele voltou à cena pedagógica, de forma
que, quando pensamos em alunos e professores, em
sua formação e em sua prática, a valorização do afeto é
evidenciada. A aula e outros encontros que acontecem
no contexto escolar ou universitário são eventos sociais
nos quais nos envolvemos como pessoas e, por isso, eles
estão permeados por nossas emoções!
É dentro dessa atmosfera, marcada por muita
emoção, que escrevo este texto, como uma despedida
da Direção, depois de quatro anos acompanhando as
iniciativas de muitos alunos e professores do nosso
Departamento. E a minha trajetória como Diretora de
Letras está relacionada à dos idealizadores do Plástico
Bolha. Em 2005, vocês me deram a honra de ser
entrevistada para a coluna Perfil do primeiro número
do jornal, e construíram meu perfil de maneira muito
verdadeira e fiel ao que sou e ao que penso, como
uma pessoa que vive e convive com outros, que tem
interesses dentro e fora da Universidade e que dá
especial importância ao que as pessoas são, muito
mais do que ao que elas representam. Através daquela
entrevista, vocês me deram a oportunidade de conhecer
melhor outras pessoas, que se aproximaram de mim
por compartilharem os mesmos interesses, como, por
exemplo, cultivar frutas e verduras. E esta é também
uma das mais fortes motivações da minha vida pessoal
e acadêmica — plantar sementes e acompanhar o seu
crescimento.
Agradeço aos alunos responsáveis pelo Plástico
Bolha por mais esta oportunidade de contribuir para o
jornal e, agora, em 2007, de dispor de um espaço tão
querido para poder me despedir! Agradeço também a
todos os alunos de Graduação e Pós-graduação por sua
constante participação na vida do Departamento!
A vocês, todo o meu carinho,
Lúcia Pacheco
Professora de Estudos da Linguagem da PUC-Rio
Subjetivas
por Gregório Duvivier
Se, por acaso, naquela tarde de quinta-feira
Se, por acaso, naquela tarde de quinta-feira, após ter sentido uma súbita e
inexplicável vontade de fumar, Otávio tivesse comprado um maço de Marlboro em
vez de Derby, Telma, que sentou ao seu lado no ônibus e só fumava Marlboro, teria lhe
pedido um trago, que ele cederia de bom grado, emendando um papo sobre cigarros,
que daria lugar a um papo sobre Janis Joplin, que daria lugar a um papo de “Vamos
ouvir um CD lá em casa”, que certamente terminaria em sexo. Depois do sexo, Telma
revelaria a Otávio que ela morava em Mauá e era divorciada, deixando-o apaixonado
e com uma súbita vontade de ir morar com ela. Largaria, então, seu emprego como
professor de informática e embarcaria em um ônibus da 1001 para descobrir, somente
em Mauá, que Telma tinha três filhos pequenos, que ela esperava que ele adotasse:
Lua, Sol e Terra; este último, na época, um bebê. A princípio ressabiado, mas depois
encantado com as crianças, que no segundo dia já o chamariam de papai, Otávio se
mudaria para lá, onde ficaria cuidando das crianças a semana inteira, enquanto Telma
venderia suas miçangas no Rio de Janeiro. Telma passaria, então, a visitá-los apenas
esporadicamente e a se dedicar integralmente às miçangas e à bebida, sua outra paixão.
Assim, Telma logo começaria a ficar agressiva com as crianças e com Otávio, que
tentaria a todo custo defendê-las. Até o dia em que Telma, totalmente embriagada,
chegasse em casa armada com uma faca e ameaçasse as crianças na frente de Otávio,
que entraria no primeiro ônibus rumo ao Rio com seus filhos adotivos. Chegando
aqui, a escola de informática não o aceitaria mais e, precisando de dinheiro para pagar
a operação de Terra, o menor deles, que sofria do coração, se envolveria com o tráfico
de drogas e logo ganharia um lugar proeminente no esquema internacional por falar
inglês e dominar o Excel. Ganhando rios de dinheiro, ele pagaria uma boa educação
para as crianças, que revelariam ser muito inteligentes e disciplinadas, a não ser por
Terra, o menor deles, que, aos 13 anos, já revelaria ter herdado da mãe o alcoolismo.
Mas Otávio, em sua rotina de traficante internacional, mal se importaria com o gênio
complicado do caçula, até o dia em que Terra, então com 17 anos, provocaria Otávio
até este dizer, no calor da discussão, que Telma, sua mãe, era uma prostituta hippie
que os tinha abandonado na infância. Terra puxaria, então, um canivete do bolso e
partiria para cima de Otávio, que sacaria sua 38 e o acertaria no peito. A bala se alojaria
na espinha dorsal de Terra, que ficaria paraplégico. Lua, a primogênita, traumatizada,
resolveria, então, tentar a vida em Miami, com seu namorado. Sol, sempre estudioso,
iria estudar filosofia em Paris, com bolsa integral, deixando Terra só com Otávio e sua
cadeira de rodas. E, assim, Otávio, arrependido, se desligaria do tráfico, entraria para a
Igreja da Nova Vida e alugaria um apartamento em Copacabana, onde passaria o resto
dos seus dias cuidando de Terra. Saberia ter sofrido muito, mas em momento algum
se arrependeria de coisa alguma e teria a impressão de ter vivido uma vida completa.
Mas, naquela tarde, Otávio comprou um maço de Derby, teve uma vida tediosa
e foi condenado a viver com saudades de tudo aquilo que não aconteceu.
plástico bolha
produzido pelos alunos de Letras da PUC-Rio
Editor
Lucas Viriato
Editora Assistente
Marilena Moraes
Conselho Editorial
Luiz Coelho
Gregório Duvivier
Isabel Diegues
Comissão
Constanza de Córdova
Carlos Andreas
Tomé Lavigne
Julia Barbosa
Isabel Wilker
Edson Santana
Projeto Gráfico
Lucas Viriato
Tiragem: 8.000
Impresso na CUT Graf
Distribuído no Rio de Janeiro e em Belo Horizonte
Coordenação
Paulo Gravina
Lucas Viriato
Revisão
Marilena Moraes
Rubiane Valério
Rafael Anselmé
Gabriel Matos
Equipe
Márcia Brito
Beatriz Pedras
Paloma Espínola
Fernando Fernandes
Joana Petersen
Apoiadores
Maria Lúcia Gomes
Álvaro M. P. de Souza
Envie seus textos para: [email protected]
Brilho
Epifania
Brilha a colher que leva a sopa à sua boca
Brilha a taça que leva o vinho, brilha a faca
Brilha o sorriso que leva aos olhos o brilho:
Brilham os olhos. Brilha a risada que quebra
A morte do ano velho.
Já não sinto mais a mudança
Na virada de um ano pra outro,
Mas num momento qualquer que se passa por
Assassino.
A calma estilhaça o silêncio, revela os dentes
Brancos, brilhantes, imperfeitos: os segredos
Que o vinho mancha, que a saliva lava e que
Roubam toda a luz da mesa de jantar.
Marcela Sperandio Rosa
Chloe Paisley
Ricardo Sternberg
Ricardo Sternberg é professor de Literatura Portuguesa e Brasileira da Universidade de Toronto. Desde a edição #15, o Plástico
Bolha publica e traduz os seus poemas, originalmente escritos em inglês. Nesta edição, Luisa Noronha, aluna de tradução de Letras
da PUC-Rio, traduz o último poema do ano: Dip, o mergulho. As traduções são feitas com a supervisão do tradutor, professor e poeta
Paulo Henriques Britto.
Dip
Mergulho
Once in a blue moon
she did and when she did
she startled moon and stars
with the brief flash
as, streaking meteor,
she plunged into the pond.
De vez em nunca
ela surgia e quando surgia
surpreendia a lua e as estrelas
com o súbito lampejo
quando, como um raio,
lançava-se ao lago.
Shocked out of deep sleep
the pike turned to see
a blond ingot part
the waters with a hiss.
Desperto de seu sono profundo
o peixe virou-se para ver
um lingote loiro
sibilando n’água.
At once those frogs
were at a loss and silenced.
What could they say?
What song in their repertoire
do justice to such event?
De repente aqueles sapos
ficaram perplexos e calados.
O que poderiam dizer?
Qual música em seu repertório
estaria à altura de tal ocasião?
She swam about the dark,
a lazy golden thread
sewing up the pond
then stepped out, a brash
glistening, and dried her hair.
Ela nadou na escuridão
um longo fio dourado
costurando a superficie
depois saiu, emergindo
resplandecente, e enxugou os cabelos.
Lucas Viriato
Angela F. Perricone Pastura
Memórias Indianas
apresenta o livro
Baudelaire por Efração:
A narrativa híbrida do romance
de Lucas Viriato de Medeiros
De Bernard-Henri Levy
CONSULTORIA DE NEGÓCIOS E MARKETING ESPORTIVO
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3
Por dentro do tom
por Santuza Cambraia Naves
Björk. Volta, o show
4
Primeiro vi o show e, em seguida, ouvi o disco. Adorei os dois. E como costuma
acontecer com propostas estéticas como a de Björk, que realizam dentro do show business
a proposta wagneriana de obra de arte total, o show, evidentemente, é mais completo que
o disco. O disco é um dos elementos que dão forma à arte conceitual de Björk, com seus
aspectos musicais e visuais.
O show aconteceu no Rio de Janeiro em 26 de outubro último, por ocasião do
Tim Festival (Marina da Glória). É impossível descrevê-lo sem comentar a performance da
platéia, que parecia complementar conscientemente o espetáculo de Björk através da arte
corporal. Um número significativo de jovens presentes ao show marcava a sua presença
com figurino e inscrições no corpo (de cortes de cabelo a piercings) que destoariam em
outras salas de espetáculo do evento, como, por exemplo, a cena free jazz de Cecil Taylor.
Outra coisa: tive a impressão de que aquela cena específica, com artistas e público, poderia
estar acontecendo em qualquer lugar do mundo.
Enquanto pensava, fascinada com o entorno, que a apresentação dos artistas seria
incapaz de suplantar a da platéia, eis que Björk irrompe no palco com uma grande comitiva
de músicos e com todas as bizarrices possíveis relativas a sons, cores, coreografias, figurinos
e outros elementos das artes cênicas, como flâmulas estampadas com animais reais e do
bestiário medieval. A música triunfal da entrada foi também surpreendente, contrariando
a minha expectativa de que os sons manipulados eletronicamente seriam de agora em
diante absolutamente previsíveis. Além dos instrumentos virtuais, utilizavam-se também
trombones, tubas e trompas (com um efeito visual que remetia à antigüidade) de maneira
inusitada, como se rememorassem tradições inventadas. E Björk é talentosa o suficiente
para fazer com que o passado fake nos pareça familiar. Em um determinado momento do
show, por exemplo, em que a letra falava de nomadismos — a canção Wanderlust —, os
instrumentos metálicos de sopro me lembraram as chamadas sonoras de navios (que, aliás,
não me são nada familiares).
Björk dançou durante todo o show. E nada é mais significativo da indefinição
temporal que ela promove que a sua dança, a qual às vezes nos remetia a uma certa noção
de passado, outras à de um futuro com excesso de informações (ao contrário do futurismo
clean que grassou no cinema dos anos anos 50, 60 e 70) e ao mesmo tempo maquinal
(que lembra o Casanova de Fellini, que faz sexo como quem fabrica objetos em série) e
outras vezes à idéia de um tribalismo atemporal. Esse aspecto fora do tempo converge com
a concepção de José Miguel Wisnik, em O som e o sentido (São Paulo, Companhia das
Letras, 1999), de “mundo modal”, referente a tradições indígenas, orientais e ocidentais
pré-capitalistas, em que a música é vivida nas experiências rituais do sagrado.
mulheres-damas
por Luiz Coelho
Lauryn Hill
vem e canta, voz embargada
versão unplugged, contra-senso,
acorda meus ouvidos avel
udados, destoando enton
ação de último volume,
drum’n bass. abre essa boca caixa
acústica e rabisca a pauta
dos meus olhos arrepiados,
espelhados de motel, com
batom Avon sangrando injúrias
apaixonadas — agulhadas
estridentes de agudo unha
arranha esta cara vinil
para que eu jamais deixe de
repetir teu som na vitrola em
good times unforgettable.
Puzzles
TRANSE EM VENEZA, ONTEM E HOJE
Estamos em 1980. Festival de Veneza. Glauber Rocha se prepara
para o que será seu último combate: a exibição de A idade da terra –– o
filme que acreditava ser uma revolução no Cinema Novo e sobre o qual
falou: “Não vou explicar nada, eu quero que se veja e que se ouça. O filme
tem um som revolucionário (...). Um filme audiovisual, infelizmente, não
é um filme de enredo, um filme clássico, um filme convencional”. (1)
A tensão é muito grande. À medida que o A idade da terra é
projetado, as pessoas levantam-se e saem. No meio delas estão, inclusive,
alguns fãs de Glauber. Quando o filme termina, a sala está vazia. Fora
alguns franceses, os críticos tiveram uma reação pouco favorável.
“Ninguém entendia direito a proposta de A idade da terra e o problema
era que a maioria das pessoas não estava prestando atenção no filme, mas
na figura de Glauber, cada vez mais exaltado”, afirmou o jornalista Pedro
Del Picchia. (2)
No fim do festival, quando premiaram o francês Louis Malle,
Glauber promoveu um evento inusitado: fez uma passeata pelo Lido de
Veneza, enquanto discursava contra o “imperialismo cultural que abafava
nossas raízes, a nossa potencialidade”. Ele não cansava de repetir: “Meu
estilo de filmar está profundamente ligado à cultura popular brasileira (...). É
um cinema feito sobre o povo e com a colaboração cultural do povo (...)”. (3)
Apesar disso, no filme Terra em transe (1967), ao compor o
poeta Paulo Martins com as ambigüidades, as dúvidas e os impasses, que
eram dele próprio, Glauber reconhece sua dificuldade de se aproximar do
povo. Como observa Ivana Bentes (4) , em algumas das cartas que envia
aos amigos, no período em que esteve fora do Brasil, o cineasta se assina
“Paulo Martins”, “o poeta que em Terra em transe ruma para a morte e
‘tem fome do absoluto’”. Glauber ainda disse sobre Terra em transe: “A
única coisa boa deste filme é sair na hora e vingar as pessoas e responder
à brutalidade – mas o povo não entende. O povo vaia e apedreja e eu fiz
para o povo – imagina que mito besta é o povo” Glauber repetia fora das
telas as angústias de Paulo Martins: “Mas o que é o povo?” (5)
No entanto, ele nunca desistiu do povo. Antes de Terra em transe,
tinha feito Pátio, Barravento, Deus e o diabo na terra do sol; depois, até
chegar ao Festival de Veneza, em 1980, fez O dragão da maldade contra
o santo guerreiro, O leão de sete cabeças, Cabeças cortadas, Câncer, Claro,
entre outros. A idade da terra é a radicalização de sua proposta estética. O
ápice de seu processo cinematográfico, que não experimentou a decadência.
Glauber usou e abusou da apropriação subjetiva do imaginário popular.
Em nome de decisões filosóficas pessoais, ele recortou e escolheu à vontade
fatos sociais e políticos brasileiros, multiplicando as potencialidades de
sua arte.
A prova disso é o fato irrefutável de que os gritos de Glauber contra
o “imperialismo cultural que abafava nossas raízes” na passeata pelo Lido
de Veneza ainda ecoam na cultura brasileira contemporânea. Ele tratou de
temas controversos da política brasileira, da miséria, da fome, da relação
colonizado/colonizar, que até hoje nos dizem respeito.
Glauber morre, em 22 de agosto de 1981, menos de um ano após
o lançamento de A idade da terra.
Estamos no século 21. Eryk Rocha, filho do cineasta, lança o
filme Rocha que voa, sobre a passagem do pai por Cuba, e o livro
homônimo, com a proposta de “penetrar nos meandros da história e
reunir as importantes e variadas fontes dessa memória para revitalizá-la
e criar uma ponte que gere uma reflexão atual sobre o tempo presente”:
“Hoje a revolução se faz no dia-a-dia. E aí está o grande desafio da minha
geração, aproveitar-se da ressonância de gritos do passado sobre o espaço
convulsionado do agora para projetar uma imagem do futuro”. (6)
Preste atenção. Escute. Glauber Rocha ainda discursa no Lido de
Veneza.
Anna Lee
Jornalista, escritora e doutoranda em Literatura Brasileira
pela PUC/Rio. Entre outros livros publicou O beijo da morte, em parceria com Carlos Heitor Cony, vencedor do prêmio Jabuti/2004 - categoria Reportagem e Biografia, e O Sorriso da Sociedade. Trabalhou
no Jornal Folha de S. Paulo, na Editora Globo e Revista Manchete.
(1)Glauber, o Filme – Labirinto do Brasil (2004) /Silvio Tendler.
(2) Idem.
(3) Documentário Depois do Transe, em Terra em Transe (1967), versão restaurada/ 2006/ Glauber Rocha.
(4) Rocha, Glauber. Cartas ao mundo. Org.: Ivana Bentes. São Paulo: Cia. das Letras, 1997, p.23.
(5) Idem. p.38
(6) Rocha, Eryk. A rocha que voa. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2002.
(sobre)vivências – dos cen’átimos (brevidades)
por Carvalho dos Santos
alquimias
Uma filosofia jamais é uma casa, mas um canteiro de obras. Mas seu inacabamento não é o da ciência. A ciência
elabora uma porção de partes complexas e os vazios aparecem apenas no conjunto. Ao passo que, no esforço de
coesão, o inacabamento não está limitado às lacunas do pensamento — sobre todos os pontos,sobre cada ponto, está a
impossibilidade do estado último.
(George Bataille)
(Quando eu era menor, e isso não faz tanto tempo assim, eu tinha medo da
sala com visita, da praia cheia, da multidão que julga, da rua com seus passantes de
olhos esbugalhados e em vigília, dos braços retilíneos e de um pretenso caminhar
firme. Eu era duro, imobilizado por mim e pelos outros. Meu sonho de menino
era parar o mundo: a sala, a praia, a rua. Congelar o tempo onde só eu pudesse
continuar perambulando no meio dos homens petrificados. Queria solidificar o ar,
a água ou o fogo, endurecer o que me endurecia. Ambicionava manipular o mundo
material, assim como ele fazia comigo. Queria petrificar os gestos para estudar seus
movimentos.
Esse desejo impede o vagar do ar e seus afagos em nossa face, o mergulho
refrescante nas águas douradas dos rios. Sempre preferi o caminhar em lugares
vazios, onde só eu me presentifico, onde posso, enfim, encontrar a clareza dos meus
pensamentos em meio ao seu turbilhão desenfreado. No entanto, na solidão, tudo é
imóvel e um tanto sem vida. Passamos a experimentar o fluxo da vida no contagio
das potencias do mundo.
A escrita funciona da mesma forma: paralisa ou movimenta em seus embates
com a doxa, através de suas comunicações intertextuais. Aliais, a vida engessa ou
flui. É uma questão de espaço e tempo, as forças da natureza “já são” e prosseguem
em rodopios com os seus ciclos. Ocupamos por empréstimo e efemeramente, um
lugar que habitamos num tempo qualquer.
Hoje é um dia chuvoso e estou de volta às ruas povoadas pela rigidez das faces
contorcidas e tensas — padrões de vida e variações sobre o mesmo tema. A razão
lógica da doxa petrifica e entroniza os gestos porque tem medo do que lhe escapa.
Diante do meu temor interrompe a seqüência do movimento.
Escolho, todavia, persistir — re-insistir —, intervir como antena das forças
mágicas. Deixar-me embaraçar pelo movimento do ar, até que me molde para um
cenátimo. Quero sentir esse infinito fantástico abrindo-se ao meu redor — pois, tão
logo vem, tão logo se esvai. A chuva cai descansada do céu e tento recolher, com
um balde, as primeiras águas da chuva, para seguir em minha intervenção alquímica
do mundo).
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tradutores. Textos, sons, imagens e vídeos
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Pôr do sol na Caxemira
Aquele pôr do sol
maravilhoso
revelou-se,
colorindo
nuvens,
caindo sobre casas e morros
e, não
satisfeito,
ainda repetia
o efeito, multiplicando-se
ondulado nas águas do Lago Naguí.
Lucas Viriato
Anjo e lagarto
Meu amante é mistura de anjo e lagarto,
De lagarto tem um ar rastejante,
Serpente que ganhou pés, mãos
E língua bífida;
De anjo tem um par de asas
Que se abrem sobre mim
Como cisne no lago.
De lagarto tem o olhar contemplativo
De quem fica horas imóvel
Sob o sol;
De anjo tem o poder
De conduzir astros,
De executar leis,
De tornar-me rainha.
Quando lagarto
Posso feri-lo,
Cortar-lhe a cauda
Que se regenera;
Quando anjo
Posso derramar azeite quente
Em suas costas
E traí-lo.
O lagarto
Foi um pássaro gigante,
O anjo,
Uma aspiração impossível.
Meu amante é mistura de lagarto e anjo,
De anjo e lagarto,
Sou mulher
E temo a raça dos demônios.
Raquel Naveira
Mestra em Comunicação e Letras pela
Universidade Mackenzie (SP) e doutoranda em Literatura
Portuguesa na USP. Por seis anos, apresentou o
programa literário Prosa e Verso, no canal universitário.
Atualmente leciona na Universidade Santa Úrsula.
Mudo
surdina engasgada
a brisa me toca
mas nem ligo.
o grande astro-rei
arde, prepotente.
me sufoca e abafa.
abafa tanto essa calamidade.
complacentes,
alegres,
debruçados,
seguimos.
Natalia Guerra
5
Tela em branco
Parece que ainda não enxergou que mito é coisa de grego.
Não cansou. Os poemas ainda eram para ela. Ela que não
era ela. Porque ele não deixava. Era apaixonado por alguém
que não era ela. Mas um mito. Um castelo de areia: frágil
como uma foto de um objeto não identificado. Não levava a
mulher pra noite, mas pro museu, como um bibelô que não
pode ser tocado, um mimo, uma obra de arte apenas para
ser degustada à distância pelos olhos e olhe lá. O encontro
ganhava traje de visita turística. Como estrangeiro admirando
a mulata com a língua de fora.
E quem se lixa praquela barba mal feita, seu hálito de
birita, seu cheiro de cigarro, sua blusa toda aberta com aquela
barriga branquela aparecendo. Realmente a grande atração
era ela. Colocava-se como eterno coadjuvante quando o script
dizia que era ele o ator principal. Aparar a barba, chupar um
drops, malhar pra quê se o objeto de desejo não era ele? Então
era ela quem tinha que ter prazer, assim dizia a cartilha da
baixa-estima, que decorou desde todo o sempre.
Um belo dia, ouviu da então musa que a mesma queria
também ter o direito de investigá-lo, de saber como agradálo, de dar-lhe prazer, de dar-lhe um mimo, de fazer seu prato
predileto, de ter seu homem bem cuidado.
Silêncio.
Ele não sabia muito bem o que gostava de comer —
afinal, beliscava o que trazia pra ela. Não sabia também por
onde deveria começar a tirar aquela barba intocada que já
beirava o mau gosto e já lhe fazia a cara de um pagador de
promessa. E o prazer? Acostumara-se a ter prazer bloqueando
seus buracos com cerveja estupidamente gelada. E bota
estúpida nisso.
Ela falou que precisava admirar o quadro também. Ele
não sabia que cores usar. Ela sugeriu uma tela em branco.
Como a vida quando a gente quer mudar. Ele aceitou. Parece
que vendem tintas frescas por aí. O fornecedor é quentíssimo
6 e só tem o contato quem resolve cuidar de si. Nunca é tarde
pra sair do museu e freqüentar um salão de beleza. Em vez
de olhar pra musa, agora se permitia ver o pôr do sol com ela
ao lado. Ao lado.
Gisela Gold
A quem interessar possa
A quem possa interessar
Esta minha busca eterna por ser feliz,
A esse alguém dedico os versos
Deste poema,
Que ainda não fiz.
A quem possa interessar
O corrigir dos meus erros,
O meu castigo,
Não é que eu não queira,
Não é que eu não tente,
É que simplesmente não consigo...
A quem possa interessar,
Os meus planos de menina...
— sonha, menininha,
Alta demais pra ser princesa,
Baixa demais pra ser rainha.
Erica Ramminger
Bolhas Geraes
Ferreira Gullar: um humanista
Ele vem e se senta timidamente em uma cadeira no centro da banca. Ao seu lado
estão José Eduardo Gonçalves, jornalista da Rede Minas e organizador do evento, e do outro, o
doutor em literatura Antônio Sergio Bueno. A princípio, sério e contido, o poeta desvia olhares
de estranhamento aos únicos dois flashes que tentam vencer a escassez da luz do museu de
Artes e Ofícios, localizados na Praça da Estação, no centro de Belo Horizonte; mas, depois de
alguns minutos de conversa, a timidez dá lugar a uma desenvoltura discursivamente agradável.
Ferreira Gullar, em tom de conversa informal, conduz a palestra pouco a pouco, ponderando
filosofia e cotidiano, arte e coloquialismo. Um poeta humano, isto sim, Ferreira Gullar é um
poeta que, antes de falar da morte do seu filho e da poesia que circundou sua amargura, destoa
um semblante de tristeza; um poeta radiante, que, ao ouvir o emocionado prólogo de Antônio
Sergio Bueno, segura-lhe o braço, reiterando sua gratidão àquelas palavras. O museu está
cheio, as pessoas assistem atentas às palavras de Gullar — umas de pé, outras sentadas — uma
atmosfera de vislumbre se dirige à figura do poeta. Nem mesmo o barulhento metrô que corta
o museu, localizado na Estação Central, quebra a concentração do diálogo. Após falar de vida
(e também da história da própria vida), de arte, de poesia, de temas humanísticos, abre-se
um momento destinado às perguntas. Parecendo não acreditar na poesia, ali, tão próxima,
transbordando pelos poros daquele que mudou a forma de percepção da história e do mundo,
sobretudo o mundo brasileiro, as pessoas dirigiam perguntas sucintas, tímidas, resguardadas
no vislumbre. Mas, ainda sim, uma voz ecoou no museu como uma magnitude que não parecia
vir de uma pessoa — não pelo simples caráter da bela voz daquela mulher —; bem mais do que
isso — pela atmosfera lúdica que se estabelecia ali, desde o início daquela conversa. “Lá vai o
trem com o menino/ Lá vai a vida rodar/ Lá vai ciranda e destino/ Cidade e noite a girar (...)”.
E, aos poucos, com alegria na voz, meio como quem vence o vislumbre, aquela mulher arranca
de Gullar o que faltava: alguns versos, em uníssono com a música, e um semblante carregado
de emotividade, mais forte e voraz do que a tímida demonstração de gratidão ao prólogo de
Bueno. E, ao finalizar aquele momento mágico, de uma terça-feira que poderia ser qualquer
dia rotineiro, mediante muitos pedidos, o nosso poeta — mais nosso do que de qualquer país
— lê duas poesias, em tom de despedida — ovacionado de pé por dois curtos minutos; os
amantes de poesia e de Gullar se despedem daquele homem de óculos finos, cabelos longos
e esbranquiçados e olhos que comportaram e comportam toda a humanidade da poesia.
Felipe Aguiar Chimicatti
A coluna Bolhas Geraes é dedicada aos nossos leitores e colaboradores
mineiros, que, desde a edição #13, recebem o Plástico Bolha em diversos pontos de
Belo Horizonte. Envie também os seus trabalhos para [email protected]
Os Sete Novos
Publicar pela primeira vez nunca é fácil. Três amigos, Augusto de Guimaraens Cavalcanti, Domingos
G u i m a r a e n s e M a r i a n o M a r o v a t t o , f o r m a m o g r u p o O s S e t e No v o s , q u e e s t r e o u p e l a 7 L e t r a s .
Mariano lançou o livro O primeiro vôo. Domingos lançou A gema do sol e Augusto Poemas para se ler ao meio-dia
Aqui, vai uma amostra do novo trabalho do grupo: uma série de textos sobre os Estados Unidos. São três, mas valem por sete...
Nutricionistas americanos
“Nutricionistas
americanos
defendem
McDonald’s para crianças inapetentes” era a
manchete de um jornal que jorrava delirantes
números transgênicos de gordura saturada vindos de
uma universidade na Califórnia. Enquanto isso, no
centro-oeste da potência, caminhava por Milwaukee,
Wisconsin, um pequeno inapetente com seu jornalmanchete-guia debaixo do braço. No seu décimo
terceiro McDonald’s da semana, ali na interseção
da E. Potter Avenue com Kinnickinnic, o pequeno
inapetente triturou seu vigésimo segundo BicMac do
mês. Em seu sangue começava a pulsar uma antiga
canção menominee ativada pelo excesso de gordura
trans naqueles genes indígenas adormecidos! Entre
palavras tribais e um inglês de convulsiva língua
enrolada, espinhentos funcionários do estabelecimento
observavam, com temor, aquele ritual xamânico da
criança inapetente que verborrajava a profecia do
maior shopping indígena dos Estados Unidos da
América! THE KENOSHA PROJECT! — urrava
o pequeno lobo das neves do Wisconsin! Urrava
dominado pelo espírito dos ancestrais trazido à tona
pelos números transgênicos saturados da manchete do
jornal! Milwaukee parou, ouvindo os gritos inumanos
da profecia menominee... Os espíritos antigos estavam
libertos pelas mãos de Ronald McDonald! Uma legião
de índios com nariz de palhaço, vestidos de vermelho e
amarelo, construiriam o Shopping Nação Menominee!
Eram os urros de uma nova era... Mas toda nova era
pode ser abafada com um golpe de mestre da CIA.
“Criança vestindo penacho indígena é
encontrada com 13 BigMacs não-digeridos no
estômago, às margens do lago Michigan” era a
manchete de um jornal sensacionalista, numa manhã
de Milwaukee...
Domingos Guimaraens
Kentucky
A verdadeira balada de Jackson Hole Valley
A garotinha da famosa balada em
homenagem ao famoso cowboy do Wyoming
poderia ser Jenny, filha do proprietário do
rancho Flat Creek, Damon Fuller. No rancho
do sr. Fuller, não só as mulas, principal atração
para as crianças, são famosas, mas também
os búfalos reprodutores da raça Carabao.
“A comunidade homossexual de todo o país
vem até o meu rancho exclusivamente para
apreciar o coito de meus búfalos!”— afirma
Damon, enquanto o casal nova-iorquino
Jerry Liotta e Javier Cruz olham atentamente
para a ereção que surge entre as quatro patas
de Tony, o mais bem dotado búfalo do Flat
Creek. “Em Nova York, nunca veríamos um
desses”, explica, espantado, Javier, nascido
em Porto Rico. Porta de entrada para o
parque de Yellowstone, Jackson parece um
turbilhão de alegria e entusiasmo, até mesmo
no inverno, quando cerca de 14 mil turistas,
em sua maioria gays do sexo masculino,
vêm assistir aos rodeios, visitar o parque
nacional Refúgio dos Alces e, principalmente,
fazer amor sob os picos nevados destas
maravilhosas montanhas que se erguem no
Wyoming. Isto sim é que é vida selvagem!
O quarto-azul-horizonte, a aritmética do
prazer e suas rotas de vento. Giletes subterrâneas de
petróleo. O veneno do carnaval: as garras são guindastes e as cicatrizes são poemas visuais.
Na opinião bem fundamentada de William
Blake, é sobre as crateras do Kentucky que sairá a
“quinta raça”, a raça cósmica que realizará a concórdia
universal, será neta das dores e das esperanças da
humanidade inteira.
Os mártires do asfalto sabem melhor
do que ninguém sobre os sacrifícios da bandeira:
No Kentucky é carnaval todo final de mês pela
comemoração da vitória apolínea do mundo, são doze
os apolos de Kentucky saudados em uma macumba
com muita cachaça e KFC em cima das estrelas dos
grandes Estados Unidos da Vertigem. O nome do
preto velho do Kentucky, portador da quinta raça, é
Dom Cruzeiro das Almas ou, mais especificamente
para os íntimos, Mr. Sailor of Souls.
Para os navegadores do quarto azul-horizonte,
a aritmética do prazer e suas rotas de vento levam
sempre ao transe do babalorixá Coronel Sanders. Eles
sabem que todo corrimão é movediço; os degraus,
por exemplo, estão a todo momento se esfacelando
sobre os pés......a estrada estava lá há dois minutos,
mas já não está.
Ali na encruzilhada entre Fort Knox e
Frankfort, cada mãe de santo recebe a graça do
frango transgênico e ainda leva para casa um balde
involuntário de tristeza. Sem dúvida nenhuma se
comemora o carnaval!!!!!!
Nos cafundós de Wasteland, Kierkegaard, o
mulato dinamarquês ensaia sua dança ao luar apolíneo
desta miríade chamada Kentucky.
O quarto azul do horizonte já se abriu. José
Agrippino de Paula devora um frango frito enquanto
espera pela quinta margem na Panamérica do nada.
Mariano Marovatto
Augusto de Guimaraens Cavalcanti
“Ó garotinha linda, beije sua mula
Ó garotinha linha, beije sua mula
Que o jackson hole cowboy
Levantará seu chapéu para a gloriosa América”
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7
5 km
8
Andei cinco quilômetros e não encontrei nada. Sentei na beira da rua
e fiquei esperando. Não que eu achasse que uma mensagem divina fosse cair
como maná do céu ou que alguém viria andando por aquele beco deserto e
cheio de ratos para me dar uma orientação. Eu estava cansado mesmo. Estava
esperando a disposição voltar para levantar e continuar andando. Chutei duas
baratas para longe, esmaguei mais três só de raiva, levantei, tirei a poeira e
continuei andando.
Dois passos — foi tudo o que consegui andar. Um grande estrondo
me fez pular e virar na direção de onde eu havia acabado de levantar. Olhei
e vi uma pessoa igualzinha a mim sentada. Ele chutou duas baratas na minha
direção, esmagou mais três só de raiva, levantou, tirou a poeira e começou a
andar. Matei as baratas e saí da frente, já que ele parecia muito mais apressado
do que eu. Ouvi o estrondo novamente e, como a essa altura eu já esperava,
outro de mim apareceu.
Já tinha esmagado umas vinte baratas, que eles insistiam em chutar na
minha direção. Cansado disso, conseguia ver, ao longe, para aonde ia a fila de
eus. Resolvi segui-los. Ultrapassei uns cinco de mim até chegar a uma praça
ampla, com estátuas de cavalos sem generais, pilares de mármore desgastado
por séculos de exposição ao tempo, chafarizes secos e pombos empalhados
pelo chão. Ao chegar lá, os eus davam uma volta completa, admiravam as
estátuas, se debruçavam sobre as flores mortas dos jardins e mergulhavam no
chafariz como se pulassem em uma piscina olímpica de uma competição de
salto ornamental.
Intrigado, me aproximei do chafariz e olhei para dentro dele. Não
via nada, somente o fundo de mosaicos incompletos e amarelados. Resolvi
dar uma chance à loucura, voltei à entrada da praça e me encaixei na fila.
Os cavalos, em posições de ataque, ostentavam pomposos generais sobre
suas selas. Os pilares brilhavam com o mármore mais branco. Os grandes
chafarizes umedeciam o próprio ar com suas águas dançarinas. Tudo parecia
ter se encaixado perfeitamente, menos para os pombos que, como que
percebendo que eu não era como os outros, voavam em minha direção, quase
batendo em mim mais de uma vez e atrapalhando um pouco o caminho
dos outros eus. Cheguei ao final do percurso a tempo de me ver entrando
no chafariz principal. Um belo mergulho, por sinal. Não sabia que eu podia
mergulhar tão plasticamente bem. Preparei o salto, recolhendo todos os anos
de treinamento em piscinas de clubes e casas de amigos. Distraído em minha
concentração, atrapalhei o eu seguinte, que, apressado, forçou passagem, me
jogando de qualquer maneira dentro da água azulada.
Com os olhos fechados pelo susto, não vi de onde veio a sucção
que me puxava cada vez mais para o fundo. Fundo que nunca chegava, por
sinal. Abri os olhos para um túnel que se aproximava rapidamente de mim,
com eus, pombos, pilastras e generais descendo pela água cristalina. Um rio
entubado, foi o que me veio à mente na hora. Estranhamente, não sentia falta
de respirar. Seguia nadando rio abaixo como se estivesse em terra.
Já devia estar há uns quinze minutos descendo e, como a correnteza
estava forte o suficiente, resolvi tirar um cochilo. Não sei por quanto tempo
dormi, me pareceu muito. Um sono tranqüilo, sem sonhos. Acordei, sozinho,
a tempo de ver uma placa passando por mim. “5 km”, dizia o sinal de metal.
“Cinco quilômetros de onde para onde?”, não pude deixar de me perguntar
em voz alta. A situação já era tão estranha que uma resposta, vinda do nada,
não me surpreenderia. Mas nem essa resposta eu tive. Segui a corrente até
chegar ao que parecia ser o ponto final da jornada. Emergi em um pequeno lago.
Andei cinco quilômetros e não encontrei nada. Sentei na beira da rua
e fiquei esperando. Não que eu achasse que uma mensagem divina fosse cair
como maná do céu, ou que alguém viria andando por aquele beco deserto e
cheio de ratos para me dar uma orientação. Eu estava cansado mesmo. Estava
esperando a disposição voltar para levantar e continuar andando. Chutei duas
baratas para longe, esmaguei mais três só de raiva, levantei, tirei a poeira e
continuei andando.
Léo Torres
Poemasó.
No poema ficou o fogo mais secreto
O intenso fogo devorador das coisas
Que esteve sempre muito longe e muito perto.
Sophia de Mello Breyner.
Se quer seguir-me, narro-lhe; não uma aventura, mas experiência, a
que me induziram, alternadamente, séries de raciocínios e intuições...
Leio Benjamin. Ciclo: angústia, destino, culpa: ciclo. Preciso
de coragem para incendiar o mito em que vivo. A palavra queima, é
perigosa, mas insisto. Minha pele tostada faz com que as sensações
no corpo se tornem mais sutis e a sensibilidade aumente. Descamo.
A pesadez desaparece. Esse incêndio do mito acontece nas palavras,
no texto e também no corpo do escritor e do leitor. No meu corpo. A
fumaça produzida faz com que os limites entre mim e o fogo se tornem
cada vez menos claros: o fogo me queima e está em mim. (Seus olhos
ardem e podem enganar você, pois, além da semelhança sensível há uma
semelhança imaterial que você não vê. Há um mistério...) Só assim, no
limite entre o interior e o exterior, entre o sujeito e o objeto, é possível
descobrir alguma verdade.
Benjamin me pergunta: como relatar uma experiência forte
demais? Só podemos escrever uma história a partir de seu presente
— em contato com o fogo. Decerto a fogueira que incendeia o mito
não é a mesma em que se reúnem antigos contadores de histórias para
a troca de experiências. As narrações coletivas não são mais uma prática
comum na contemporaneidade; mas, através da literatura, da arte,
tudo é comunicável, tudo é transmissível. Minha pele está queimada,
ardendo, porque a leitura não se restringe mais ao livro. Palavras
incandescentes me atingem. A literatura torna-se uma arte menos
propensa a realizar obras que a disseminar experiências, diz Ladagga.
Todos os sentidos estão envolvidos na experiência da linguagem.
Também para Benjamin, a arte é a única capaz de revelar a
própria realidade do mito em que vivemos para então nos liberarmos
dele. Mas não precisamos de narrações coletivas: na contemporaneidade
a experiência não se encontra no compartilhar, mas na própria palavra
— Poemasó. A experiência é vivência, é a materialidade da linguagem. A
escrita não é mais a expressão de alguém, não se aprisiona (o escritor está
constantemente trocando de pele e não encontra mais limites para seu
corpo). Tem a ver com o jogar-se todo na linguagem, na visceralidade
de seu instinto; tem a ver com um traço luminoso de outra vida, outra
história, que é revelado na escritura.
Onde estou? Quem está falando? Uma força imaginária na
escrita que me leva. Um gesto. Uma contingência. Existo no limite
— dentro e fora da pele queimada. Frente ao fogo, estou viva; mas, em
contato com ele, estou morta. Esta é a magia possível na linguagem.
Morte e vida, Severina, ao mesmo tempo. É preciso coragem para me
deixar atravessar. E eu deixo; sei que só aqui consigo ser livre: dançando,
com a pele queimada, ao redor da fogueira, cantarolando, engasgada
com a fumaça, uma nova música que vai fundar uma nova tradição.
Observações
O título deste ensaio é uma homenagem à Ana
Chiara, que traz tatuado em seu braço: poemasó. No entanto, a
tatuagem é também um acaso, pois só pode ser vista no verão...
Como o próprio Benjamin diz, este trabalho deve desenvolver
ao máximo a arte de criar sem usar aspas. Por isso, muitas vezes, sou
Guimarães Rosa, e o próprio Benjamin. Por respeito, os termos que
não são meus estão em itálico mas sem nenhuma referência imediata.
Alluana Ribeiro
Bibliografia
BENJAMIN, Walter. “O narrador” In: Magia e Técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1987. (Obras escolhidas; vol. I).
ROSA, João Guimarães. “O Espelho” In: Primeiras Estórias. Rio de Janeiro: José Olímpio, 1974.
Desafio poético
Desde a edição passada, o plástico bolha está propondo sempre desafios para os amantes da poesia.
Nesta edição, o desafio é escrever um poema sobre um objeto: o sabonete. Vejamos a seguir os poemas que recebemos.
Para a próxima edição, o objeto será “a amêndoa”. Todos estão convidados a trovar o fruto da amendoeira e a sua semente,
basta mandar seu poema sobre o tema para o e-mail do jornal.
O sabonete
É sedoso e perfumado
Colorido e espumante
Que no banho é tão usado
Na banheira dos amantes
Delicadas aparências
Formas côncavas, oblíquas
Eu só penso em indecências
Saboteio minhas rimas
No banheiro dos solteiros
Ele vive tão sozinho
E só tem de companheiro
Um temível pentelhinho.
Paulo Henrique Motta
Ex-puma
Mon ephebo
opaco transpiro
grudado às fendas do cárcere
suor glicerina
Quando seu Phebo escorregou
e você se abaixou
suado e docemente constrangido
foi o início do nosso amor.
Agora, só Lux (úria).
Luiz Coelho
Barbara Hansen
Plantei um alfinete
Com a cabecinha verde
No ponta de um sabonete.
Fiz um barco branco, lindo!
Mas ele afundou na banheira.
sob a teia leitosa,
cremosa de filetes,
ressecado do banho
de ontem, o sabonete.
Lúcia Cordeiro
Isabel Diegues
9
Sabonete
À primeira vista são aromas de brisa.
Prometem-se cicatrizantes, adstrigetes,
refrescantes, hidratantes.
Vêm com rótulo: “íntimo”,
e levo um pra casa. Logo
percebo que arde aos olhos.
E desaparece aos poucos.
Tento apanhá-lo, mas,
escorregadio, foge pelo ralo,
levando embora meus resíduos.
Me deixa nua, espumando,
e ele desmanchado, imóvel.
Enfim: “Desinfeta!”
Antonia Ratto
Deixa-me cair de alturas imensas no chão num emaranhado de pelos molhados e nojentos
arrastam-me por suas peles a minha pele que se renova todo dia até me parecer
morrendo como tudo que morre a todo tempo nessa ingrata forma de viver
quadrado e aos poucos me distanciando em espumas de sofrimentos
cansado dos sovacos das unhas das melecas dos pés fedorentos
suo o insulto do sulco de sepulcro das soltas sujeiras a descer
escorregando com o meu contato com as partes a esconder
quando se não pode mostrar a quaisquer ventos
empoeirados a jogar em mim toda a solução
oh por que não sou a molécula do músculo
que fosse pelo menos um líquido sabão
deus por que nasci um corpúsculo
que jamais morre na mão
vive minúsculo
Gustavo Paes
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Testemunho dos dedos da minha mão esquerda
ORÁCULO
Enigmas & profecias
10
Narrar histórias, ainda que curtas, passou a ser um luxo em
nossa cultura altamente informatizada. Não há tempo hábil para ouvir
ou ler narrativas que não informem com precisão fatos, estatísticas,
descobertas e notícias. Mas cada época reage às circunstâncias a seu
modo. Um sintoma dessa reação na contemporaneidade talvez seja a
febre das coletâneas de contos que inundam as prateleiras de nossas
livrarias. Em um só livro, encontramos muitas narrativas organizadas
sob os mais diversos critérios de seleção: narrativas fantásticas,
narrativas bíblicas, narrativas de um autor específico, narrativas de
mitos, narrativas de autores selecionados por gerações, narrativas
de contos de fada, narrativas de terror, etc., e todas direcionadas a
um público adulto. O conto, por sua brevidade, parece ser a forma
literária apropriada ao ritmo de vida nosso de cada dia. E que os anjos
digam “Amém!”, pois, sem nossas histórias, como sobreviveríamos
a uma odisséia que afirmam ser pós-moderna?
Trago-lhes, então, uma pequena profecia fictícia, mas nem
por isso menos verdadeira, apesar de sediciosa. Foi escrita a modo
de enigma, forma muito usada e apreciada pelos antigos para treinar
o espírito e curar as doenças da alma.
As coisas desunidas se unirão e adquirirão força tal, que hão
de restituir aos homens a memória perdida.
O autor desse pequeno enigma “profético” é Leonardo da
Vinci. Leia o original e sua resposta logo abaixo:
Le cose disunite s’uniranno e ricieveranno in se tal virtù, che
renderanno la persa memoria alli omini. (Cioè i papiri, che son fatti
di peli disuniti e tengono memoria delle cose e fatti delli omini.)
(Isto é, os papiros, que são feitos de folhas desunidas e contêm
a memória das coisas e dos feitos dos homens — e que sabemos ser
os livros, repositórios de nossas narrativas). Mas também podemos
decifrar o enigma de modo diferente, e dizer que os contos, tais
como folhas avulsas, são as “coisas desunidas” que, unidas em
múltiplas coletâneas, nos resgatam a memória literária e colorem a
vida. Meno male!, ainda que sob as leis do mercado de consumo ou
sob as do gozo apressado ou imediatista.
Miriam Sutter
Professora de Letras Clássicas da PUC-Rio
Gibraltar
Um dirigível sobre Stalingrado
Aponta o carrossel de moças rocas
Balões sobre Varsóvia arrombam bocas
Balões e aeronaves sobre o sítio
O Encouraçado Branco em Estocolmo
Cala mercadores de palavras nobres sobre a Prússia
Cala as almofadas e leituras nos lunáticos ermos da Alsácia
E em outubro essas coisas não são mais sonhos de maio
Em dezembro elas agostam, os sapatos e agasalhos
Em Abril jaz o Rolls-Royce, conversível em frangalhos
Convertido entulho férreo e olvidado
Uma sucata a mais no escuro pátio da estação bombardeada.
Carlos Andreas
Eu não posso escrever sobre mim, caso eu queira costurar alguma
coisa com a linha frágil que enlaça a verdade às minhas memórias. É
necessário que eu escreva, então, sob mim. À minha maneira, eu busco
minhas cicatrizes que, diferentemente de tatuagens, marcam tanto o meu
“eu” exterior quanto o meu “eu” interior. Partindo do pressuposto que a
tatuagem é um signo da resposta “quem sou” ao exterior, a cicatriz é uma
resposta do diálogo entre o meu “eu” exterior e o meu “eu” interior. E eu
sou esses dois “eus”. Ao mesmo tempo em que eu me chamo Kiara para
o mundo, eu me chamo “Eu” para mim. Menos quando eu estou muito
brava comigo mesma. Nessas ocasiões, eu me chamo como se uma terceira
pessoa me habitasse. Aqui, esse não é o caso.
Para contar a história que cobre e costura esses dois “eus” — e
muitos outros “eus” que conversam comigo num pequeno pedaço de tempo
—, eu quebrei a linha dos meus pensamentos e a desentortei enquanto eu
marchava em linha pelos caminhos da linha da vida. Eu andei pelas calhas
da minha mão direita, eu tropecei nas cicatrizes e eu cantei em silêncio
sobre os meus “eus”. A canção me parou em mergulhos de segundos e, por
causa disso, eu vi meu dedão napoleônico. Nesse dia, eu descobri que as
linhas que formulavam minha vida não eram lineares, mas curvas. Depois
que eu descobri isso, minha cabeça começou a mudar completamente e eu
pude ver minha mão esquerda e todos os meus dedos...
*
Eu nasci num dia preciso, de um mês quase preciso, de um ano
impreciso, numa família muito imprecisa com sua memória. Nós habitávamos
a Terra, eu acredito. Para melhor explicar, é um planeta que dizem azul, mas
onde eu posso ver muito mais cores. A minha mãe era vermelha e o meu
pai, uma variação entre cinza e preto.
A minha mãe era uma mulher apaixonadamente religiosa. Tanto
que praticamente toda noite ela batia na parede que separava seu quarto do
meu, gritando: “Oh, meu Deus! Oh, meu Deus!”.
Sobre o meu pai, a única coisa que eu tenho dele — além dos olhos,
mas eu nunca compreendi isso — é uma foto. A minha mãe me dizia que o
meu pai morreu quando eu nasci. Imagino eu que seja por isso que a minha
mãe fazia vigílias noturnas no seu quarto com pessoas diferentes. Ela era
tão religiosa que os vizinhos a chamavam de Madalena.
(Há uma coisa que eu nunca entendi sobre sua religiosidade. Por
que algumas pessoas diziam que ela não podia cruzar as pernas? Isso seria
porque cruzar as pernas era um pecado? A religião permite apenas fazer
o sinal da cruz com a mão? E como seria fazer o sinal da cruz com as
pernas?)
Um dia, passada a meia-noite, eu a vi em penitência, ajoelhada com
as mãos cruzadas e próximas ao seu rosto. Diante dela, um homem preto —
um padre, creio eu — que acariciava sua cabeça e dizia: “Bem-aventurada...
bem-aventurada... Oh, que paraíso! Meu anjo!”.
*
Desde os quatro anos de idade, eu ia para a escola, mas quando a
diretora descobriu que a minha mãe tinha convertido seu marido com as
preces noturnas, a minha mãe decidiu que mudássemos para outro lugar
mais colorido. A mamãe me prometeu!
Nessa época, a fera com olhos de fogo e dentes de ferro — a guerra!
— começou a nos perseguir. E, pela primeira vez, eu vi a minha mãe em
penitência diante de mim. As cores de seu rosto tinham mudado.
Enquanto o mundo se tornava amarelo e branco, a minha mãe foi
ficando de mais em mais cinza...
...até que um dia, quando eu estava no planeta, no meu quarto
branco, eu a recebi em cinza e preto — como meu pai. Ela sorria numa
revista.
Chiara di Axox
Entrevista por Lucas Viriato
Batalhando com as palavras
MC Marechal é, ao pé da letra, um Mestre de Cerimônias. Todas as quintas-feiras ele apresenta a Batalha do Conhecimento
na Fundição Progresso, na Lapa. O evento procura promover todos os elementos da cultura Hip Hop. Conversamos um
pouco com ele, que foi integrante do grupo Quinto Andar, sobre o trabalho dos MC´s e sobre a sua relação com as palavras.
Há quanto tempo acontece a Batalha do
Conhecimento? Como surgiu esse projeto e
desde quando você o apresenta?
Acontece há pouco mais de 6
meses... o projeto surgiu a partir de uma
parceria minha com o CIC (Centro
Interativo de Circo), que já vem sendo
firmada há algum tempo... tive a idéia do
projeto pelo motivo de não concordar
muito com a forma tradicional de
batalhas de rap em que 2 MC´s, que
muitas vezes nem se conhecem, ficam
trocando ofensas para a “alegria” do
público que decide quem foi “melhor”...
eu faço parte do Hip Hop e acredito
que o fundamento da cultura vai além
disso... acredito que os MC´s devam
passar mensagens e conhecimento...
O projeto surgiu a partir disso,
em conjunto com alguns amigos
e a organização do CIC, fomos
formulando o projeto com a inclusão
dos filmes, debates, incentivo à forma
de trabalho independente, etc...
Apresento desde a primeira
edição junto com todos os amigos que
colaboram...
Qual a diferença desta para outras batalhas?
apenas isso... existe um ditado de que
gosto muito... os verdadeiros reconhecem
os verdadeiros...
Quando se compõe no improviso, no calor
da batida, o que estaria guiando sua
criação?
“A humildade relativa do ar...”
(MC Anastácio)
Dá onda?
Quando o bagulho é bom, com
certeza...
Quanto do sucesso de um MC depende de
Poderia dizer quem são para você, entre
sua performance e atitude no palco?
veteranos e novas revelações, os melhores
Acredito que o sucesso do MC´s de hoje?
MC depende da sua sinceridade, sua
Mano
Brown,
Sabotagem,
responsabilidade e sua naturalidade...
Gutierrez, MR. Catra, Kamau, Emicida,
GOG, Black Alien, Gil, Marcelo D2...
Qual a importância dos últimos versos, na
hora em que a batida pára? Um MC que
não tenha boas chaves de ouro pode pôr Algum conselho final para quem deseja
tornar-se um bom MC?
sua apresentação a perder?
Se você sente mermo que isso é
Um bom MC não fica pensando
É só tirar suas próprias conclusões...
seja bem- vindo toda quinta feira no nos últimos versos... manda seu conteúdo pra você... nunca esqueça o amor que
CIC, na Fundição Progresso, a partir de em tempo integral... o público sabe te fez querer ser parte disso... seja real
independentemente do que os outros
reconhecer isso...
17h30...
pensem... se você não for você estará
traindo os fundamentos da cultura...
Paz pra todos ... procure entender
O MC é um artista da palavra? Qual a sua Um MC precisa ler, ou a oralidade já é
seus inimigos...
suficiente para compor seus versos?
relação com as palavras?
Um só caminho...
Cada um adquire experiência à sua
Acredito que também... minha
relação com as palavras é de respeito... maneira... eu costumo ler.. mas no meu
quero cada vez mais ter o conhecimento caso acho que o que mais me acrescenta Se você quer saber mais sobre o trabalho de
para empregá-las da melhor forma, nos é ouvir... a oralidade é natural... bem Marechal ou sobre a filosofia Hip Hop visite:
simples mermo, irmão... seja você... www.myspace.com/mcmarechal
momentos certos...
11
ADMIRÁVEL COXEAR NOVO
(A PERNA DE CASSANDRA)
Quando caminho, apenas meio
Passo dou. O outro é obra do estorvo.
Assim, cada estrada que não veio
Saúda-nos com o medo do novo,
O medo, de novo. Qual pressa que nada!
Eu e meu camarada nos entendemos
Às maravilhas. Diante de terrenos
Movediços, seguimos nossas pisadas.
A perna fantasmagórica toma
A dianteira e, como bengala,
Tateia o lodo onde segura, se entrona
Para enfim avisar-me onde resvala.
Paro, medito, mudo o rumo e sigo.
Para trás, mais uma vez — onde o medo é antigo.
Gustavo Gadelha
12
O primeiro poeta
Qual foi a primeira palavra proferida?
Imagino o primeiro homem, ainda meio macaco,
tentando exprimir algo completamente novo,
que os grunhidos habituais simplesmente
não conseguiam alcançar. Dirão todos que
hoje vivemos uma peste da linguagem, uma
fragmentação completa em que as palavras não
têm mais significado e em que cada discurso,
cada conceito, cada Deus e cada sujeito devem
ser desconstruídos e esmagados com um
martelo. Mas esquecem-se eles desse primeiro
marco, desse anseio inaugural pela unidade.
Em que modulação sonora diferenciou-se ele
dos outros? Era “ele” um homem ou uma
mulher? O que pretendia ele dizer? Pretendia ele
descrever uma visão? Ou um pensamento? Ou
um sabor que seus companheiros desconheciam
completamente? Será que queria conquistar
uma parceira disputada? Ou dar um conselho a
seu filhote, ainda no colo? Queria ele falar do
passado, do presente ou do futuro? Ou quem
sabe dos três, de algo eterno e além do tempo
e do espaço? Será que, como Narciso, foi a
perplexidade ante a sua própria imagem? Ou,
como Arquimedes, queria ele anunciar uma nova
descoberta? Ou ainda, como Hamlet, questionava
ele a validade das suas próprias ações? Terá sido
a percepção da nossa pequenez diante de um
universo indiferente? Ou algo tão mais simples
quanto a percepção da beleza das coisas em seus
mínimos detalhes? Será que ele se deu conta
de sua invenção? Ou era somente algo que
necessitava para falar de uma dor completamente
inédita e insuportável, cujos desdobramentos
e complexidade seus companheiros jamais
poderiam reconhecer: a dor solitária de ser,
pela primeira vez, humano. Mais do que o
primeiro ser humano, este foi o primeiro poeta.
Paulo Gravina
Palavras profanas lhe interpelam os lábios quentes — tentam calar-se, mas as letras regurgitam
sobre meu corpo estendido. Minhas mãos retraem-se, num instinto defensivo. Meu corpo estremece
e grita tantas outras palavras cuspidas, como sopa de letrinha que se espalha de forma desordenada na
vasilha quente. As almas esfaqueiam-se como se fosse falta do que fazer. Agora, invento outras formas de
fazer, como buscar uma outra parte de mundo, escondida em algum lugar longe da minha vista. Às vezes
é melhor ficar calado do que arrebentar as cordas vocais e perder a música a cantar nos seus ouvidos.
Diana Sandes

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