Prelúdios - revista preludios
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Prelúdios Revista do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da UFBA Prelúdios Salvador v. 4 n. 4 p. 1-135 mar./set . 2015 Universidade Federal da Bahia Reitor: Prof.João Carlos Salles Pires da Silva Vice-reitor: Prof. Paulo César Miguez de Oliveira Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas Diretor: Prof.ª Maria Hilda Baqueiro Paraíso Vice-diretor: Prof. Iole Valim Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais Coordenador: Prof. Clóvis Roberto Zimmermann Vice-coordenador: Profª Lidia Cardel FFCH-UFBA Estrada de São Lázaro, 197 Federação - Salvador, BA - Brasil CEP: 40.210-730 A Revista Prelúdios é uma publicação científica eletrônica semestral. Lançada em 2013, tem como objetivodivulgar artigos, ensaios e resenhas de pesquisadores da área de Ciências Sociais, vinculados a instituiçõesnacionais e internacionais. Poderão ser submetidos para publicação textos originais – ainda não publicadosem outra revista científica nacional ou estrangeira ou em coletâneas – ou publicados em anais de eventos científicos. Comissão Editorial Responsável Alan Rangel Barbosa, Anderson de Jesus Costa, Fernanda Carvalho Silva Faria, Gabriela de Matos Messias, Israel de Jesus Rocha, Lorena Sales de Almeida, Marina Rute de Aquino Marques Pacheco. Financiamento PPGCS (UFBA) Projeto, capa e editoração Rodrigo Oyarzábal Schlabitz Capa e editoração Tiago Santos Preparação de textos Equipe da EDUFBA Prelúdios - www.revistapreludios.com.br Revista do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Faculdade de Filosofia eCiências Humanas da Universidade Federal da Bahia. v. 4, n.4, set./mar. [email protected] Conselho Consultivo Dra. Joana Aparecida Coutinho. (UFMA), Dra. Lidia Maria Pires Soares Cardel. (UFBA), Dr. Jorge Adriano Lubenow. (UFPB), Dra. Ivanilde Guedes de Mattos. (UEFS), Dr. Henrique Codato. (UFC), Dra. Leticia Maria Costa da Nóbrega Cesarino. (UFSC), Dr. Marko Synésio Alves Monteiro, Dra. Márcia Amaral Corrêa de Moraes Em sua integralidade, o conteúdo dos textos publicados é de exclusiva responsabilidade dos autores, não implicando necessariamente na concordância da Comissão Editorial, do Conselho Consultivo ou de qualquerprofissional envolvido com a publicação deste periódico. Prelúdios Revista do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da UFBA Revisão Vinicius Santos Normalização Larissa Queiroz Projeto Gráfico Rodrigo Oyarzábal Schlabitz Editoração Tiago Santos Sistema de Bibliotecas da UFBA Prelúdios : revista do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da UFBA / Universidade Federal da Bahia, Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas. - Ano 1, n. 1 (2013)- . - Salvador, BA : UFBA, FFCH, Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, 2013. v. Semestral. Descrição baseada em: Ano 1, n. 1, jul./dez. 2013. 1. Ciências sociais - Periódicos. I. Universidade Federal da Bahia. Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas. Programa de Pòs-Graduação em Ciências Sociais. CDD - 300.5 SUMÁRIO Editorial / 7 ARTIGOS ( RE ) PENSAMIENTO DE LOS PROBLEMAS AMBIENTALES EN EL MUNDO MODERNO : ANÁLISIS DESDE UNA DIMENSIÓN SOCIOLÓGICA PARA EL DESARROLLO SOSTENIBLE / 13 Yeisa B. Sarduy Herrera COOPERAÇÃO E ORGANIZAÇÃO EM UM LABORATÓRIO DE TERAPIA CELULAR: NOTAS SOBRE UMA SOCIOLOGIA DA PRÁTICA CIENTÍFICA. / 29 Israel de Jesus Rocha CLASSES SOCIAIS NO PAPEL, CLASSES MOBILIZADAS E LUTAS PELA CLASSIFICAÇÃO EM PIERRE BOURDIEU: UMA DISCUSSÃO EM DIÁLOGO COM O FAZER-SE DA CLASSE DE E. P. THOMPSON / 47 Fernando Larrea Maldonado DELIBERAÇÃO DOS COMITÊS DE BACIAS HIDROGRÁFICAS: quem participa, como faz e o que decide? / 65 Isabela S. Santana DEMOCRACIA DE REDUTO NO PARLAMENTO BAIANO: A DOMINÂNCIA ELEITORAL NA ASSEMBLÉIA LEGISLATIVA DA BAHIA NAS ELEIÇÕES DE 2002, 2006 E 2010 / 79 Vladimir Meira Nunes A LUTA POR MORADIA URBANA E OS TRAÇOS DA REPRESENTAÇÃO DOCUMENTÁRIA NO FILME SONHO REAL (2005) Rodrigo Oliveira Lessa MEXE O BALAIO: UM OLHAR SOBRE O PAGODE BAIANO /123 Mariana Bittencourt de Souza Editorial Escrever é o processo mais misterioso e é como um problema exponencial: quando você se senta para começar a escrever algo, tem um papel em branco tenebroso à sua frente e não sabe por onde começar. Assim, a primeira coisa que você escreve, você já pensa: “que fracasso, eu não sei do que estou falando, não tenho nada para escrever.” E isto continua por algum tempo. Você começa uma parte, fica travado, começa outra parte, trava de novo. Mas, de algum modo, magicamente, após muitas tentativas, a coisa começa a decolar, um pouquinho, um pouquinho mais e, ufa! Decola de vez e tudo que pode fazer é agarrar as ideias rápido o suficiente para prendê-las ao papel. É muito, muito estranho, mas há algo de mágico nisso. (INGOLD, 2011) Envolver-se com a escrita situa-nos num universo além das palavras e mobiliza um corpo ensejado pela prática da pesquisa. Entre o mundo da pesquisa, empírica ou teórica, e sua comunicação por revistas acadêmicas e congressos, pesquisadores trilham caminhos diversos e muitas vezes solitários na construção de suas ideias. Comunicar, então, aponta um caminho para o qual a solidão do diálogo com os dados e os argumentos teóricos cede espaço para a conversa, dando vida e desdobramentos muitas vezes não imaginado por seu autor. O texto então passa a emaranhar, no presente, parceiros de um passado envolvidos na construção da pesquisa com seus futuros leitores, que tornarão imprevisíveis seus deslocamentos. Como reiterado em todas as edições, a Revista Prelúdios continua como espaço de fluxo para as produções dos discentes em Ciências Sociais. Nesta edição, mantemos a diversidade de temas que caracteriza as publicações anteriores. Os artigos que apresentaremos adiante circulam desde a profícua discussão sobre as classes sociais no campo das ciências sociais até questões contemporâneas que envolvem o ambiente e as práticas científicas de ordenamento do mundo social e natural. Além desses debates, os processos de deliberação nos comitês relacionados às bacias hidrográficas, o modo como a geografia do voto e dominância eleitoral classificam os padrões de comportamento dos políticos, em três eleições para deputado estadual na Bahia, e a questão de luta por moradia a partir do documentário Sonho Real, compõem esta edição. Prelúdios, Salvador, v. 4, n.4, p. 7-9 set./mar. 2015 / 7 Por fim, questões sobre o corpo são discutidas a partir de estilo musical muito bem conhecido nas ruas soteropolitanas: o pagode. As questões ambientais estão na ordem do dia entre o mundo da ciência e a política. Ainda pouco explorada pelas ciências sociais, a discussão sobre o ambiente assume contornos teóricos na proposta de Yeisa Herrera, autora do artigo que abre a quarta edição da revista. Com o intuito de compreender o atual movimento ensaiado pela ciências sociais, a autora propõe uma articulação entre as dimensões cultural, ambiental e o desenvolvimento sustentável, como forma de pensar a problemática entre o indivíduo, a sociedade e o ambiente. A partir de exemplos do contexto cubano, a autora propõe pensar além da sonolência antropocêntrica soluções alternativas à crise que envolve a questão ambiental. No segundo artigo desta edição, Israel Rocha apresenta uma discussão que envolve o campo dos estudos de ciência e tecnologia a partir de dados de uma pesquisa em um laboratório de terapia celular. Ainda em desenvolvimento no Brasil, os estudos de ciência tem reiteradamente discutido a questão da ciência a partir de sua prática cotidiana. A mesma deixa de ser tratada como um universo hermético e apenas acessível aos iniciados, e passa a ser considerada uma prática que pode ser analisada por sociólogos e antropólogos, descrevendo os detalhes que envolvem as práticas científicas. As classes sociais a partir das perspectivas de Pierre Bourdieu e E. Thompson é o foco do trabalho desenvolvido por Fernando Larreia. A partir de uma análise dos conceitos mais frequentes no trabalho de Bourdieu, Larreia apresenta a crítica deste autor à noção de classe social baseada na discussão econômica, apresentando em seguida uma aproximação com o trabalho de Thompson. Um dos pontos centrais da análise do autor destaca o modo como os autores permitem perceber as classes sociais em termos relacionais. Permite-se, assim, que se perceba a classe social como um fenômeno social produzido material e simbolicamente no desenvolvimento da sociedade. O quarto artigo da revista discute os modos de deliberação em comitês que discutem a implementação de politicas públicas no Brasil. O caso das bacias hidrográficas do Brasil é o mote para o argumento de Isabela Santana. Suas observações apontam para o modo como a organização prática dos comitês permite a participação de poucos setores da sociedade, sendo os demais colocados em posição de coadjuvantes do processo. Esta participação distribuída desigualmente entre os membros dos comitês está relacionada, para a autora, às relações de poder entre os atores envolvidos no processo. Por isso, o comitê, como mecanismo que mobiliza atribuições de caráter consul- 8 / Prelúdios, Salvador, . v. 4, n.4, p. 7-9 set./mar. 2015 tivo, normativo e deliberativo, ainda requer tempo de maturação para se tornar experiência concreta de espaço democrático e de socialização do poder. Continuando com a discussão sobre a questão democrática, o artigo de Vladimir Meira Nunes discute os modos pelos quais é possível pensar os padrões de comportamento político dos parlamentares e partidos, a partir de seus redutos e estratégias eleitorais. A partir dos conceitos de geografia do voto e a dominância eleitoral, o autor aponta para o compartilhamento dos redutos eleitorais entre os parlamentares baianos e a limitação em afirmar que a votação segue linhas governistas. O penúltimo artigo desta publicação aborda as representações sociais mobilizadas pelo cinema documentário, para questões relacionadas à luta por moradia. A partir do filme documentário Sonho Real, alguns elementos como o déficit habitacional, disputa coletiva dos espaços urbanos e o uso da força policial são discutidos por Rodrigo Lessa. Centrado na análise da construção das representações pelo documentário, o autor destaca o compromisso com a objetividade; o levantamento de circunstancias do mundo da vida, focadas na narrativa da luta pela moradia e a construção de uma perspectiva orientada pelo horizonte dos segmentos sociais oprimidos. Concluindo a edição, Mariana Bittencourt apresenta uma discussão sobre um dos estilos musicais mais populares na cidade de Salvador. Ao abordar o pagode baiano, a autora procura analisar questões que envolvem o corpo, sexualidade, gênero e questões raciais. Ao questionar o modo como o corpo é mobilizado a partir das danças, a autora aponta a dimensão de um corpo encarnado, presente na fenomenologia. Neste sentido, Bittencout situa um corpo que é engendrado pelo movimento e continuamente costurado pela prática musical. O pagode dimensiona e reposiciona o corpo, masculino, enfatizado por Bittencourt, em uma plasticidade que constrói uma identidade situada numa posição histórica e social. Se escrever envolve um misterioso engajar-se com a escrita, como nos situa Ingold, a comunicação dessa experiência envolve uma abertura para o desconhecido. O universo relacional autor-leitor. E é a partir dessa abertura para o novo que a Revista Prelúdios o convida para mais um movimento através das páginas que se seguem. Boa leitura. Prelúdios, Salvador, v. 4, n.4, p. 7-9 set./mar. 2015 / 9 ARTIGOS Yeisa B. Sarduy Herrera1 ( RE )PENSAMIENTO DE LOS PROBLEMAS AMBIENTALES EN EL MUNDO MODERNO : ANÁLISIS DESDE UNA DIMENSIÓN SOCIOLÓGICA PARA EL DESARROLLO SOSTENIBLE Resumen El presente artículo2 comprende una propuesta de reflexión, desde un posicionamiento teórico, en torno a la problemática medio ambiental que afecta al mundo de hoy. Analizada desde una perspectiva sociológica, no soslaya para nada la trascendencia de la temática ambiental a otras disciplinas de las ciencias sociales. En este sentido, se han articulado en el análisis la dimensión cultural, el medio ambiente y el desarrollo humano sostenible, en aras de pensar en una forma de cambio consciente, holística y madura donde se desplieguen ulteriormente las potencialidades creadoras que ella encierra. Se esbozan además, acciones desarrolladas en el contexto cubano, y si bien no se proponen soluciones, el propósito del escrito versa en incitar a despertar de la somnolencia antropocéntrica para sentir, pensar y encontrar la salida de la crisis y lograr la ansiada armonía entre el individuo y la naturaleza. Palabras claves: medio ambiente, desarrollo sostenible, perspectiva sociológica, dimensión cultural. A MODO DE INTRODUCCIÓN “La libertad, en este terreno, sólo puede consistir en que el hombre socializado, los productores libremente asociados, regulen racionalmente su intercambio de materias con la naturaleza, lo pongan bajo su control común en vez de dejarse dominar por él como por un poder ciego, y lo lleven a cabo con el menor gasto posible de fuerzas y en las condiciones más adecuadas y más dignas de su naturaleza humana.” (Marx, tomo III, cap. XLVIII) 1 Licenciada en Sociología por la Universidad de La Habana (2008). Máster en Desarrollo Social por la Facultad Latinoamericana de Ciencias Sociales, Sede Cuba (2014). Actualmente se desempeña como investigadora en el Instituto Cubano de Investigación Cultural Juan Marinello. Correo electrónico: [email protected] 2 Este ensayo resultó seleccionado para su presentación como ponencia en el I Congreso Latinoamericano de Estudiantes de Posgrados en Ciencias Sociales, efectuado en México, junio 2014. Prelúdios, Salvador, v. 4, n.4, p. 13-27 set./mar. 2015 / 13 Desde tiempos remotos el hombre encontró la forma de emplear las leyes de la naturaleza a favor propio. Con el uso de los vertiginosos avances tecnológicos y la obtención de ganancias en términos de bienes y servicios, no se preocupó mucho por el carácter finito de los recursos naturales; produciendo transformaciones de mucha intensidad y extensión, las cuales impiden hoy la recuperación de nuestro medio ambiente y conducen a una reducción progresiva de las capacidades para mantener la vida en la Tierra. Ya a fines de los años setenta, se comenzó a admitir la degradación que poco a poco sufría el entorno, estando ligada tal noción al interés de la calidad de vida de las personas tanto en el aspecto fisiológico como por su bienestar y supervivencia económica. De esta forma, la necesidad de una toma de conciencia afloró y se impuso como un tema de especial connotación y sensibilidad en las agendas de trabajo. Tras esta urgente necesidad, se torna esencial entonces, lograr la meta de articular de forma más equitativa la relación entre el hombre y su entorno, pues “[…] la humanidad necesita interactuar de manera más equilibrada con la naturaleza de forma tal que pueda disfrutar de los beneficios de la tecnología en un mundo basado en relaciones de respeto a la diversidad, la justicia y la equidad […]”. (Bidart, Ventosa, Rodríguez: 2006, p. 18). Con ello, se valida el criterio de hacer extensiva la problemática ambiental como eje medular para las Ciencias Sociales. Resulta pertinente entonces, concebir al medio ambiente como un sistema complejo que incorpora la dimensión psicosocial; el patrimonio histórico y cultural; así como la interacción entre todos estos componentes y las sinergias que se producen como resultado de las interacciones entre ellos – hablándose entonces, de un medio ambiente humano, un medio ambiente construido y un medio ambiente natural; lo cual demuestra una noción holística que comprende tanto las dimensiones económicas, sociales, culturales, políticas y naturales, como la gama de significados que la imbricación entre ellas encierra. Se vuelve así, inherente a la temática del desarrollo y reclama para su análisis la superación de enfoques sectoriales y disciplinares reduccionistas. Mucho se trata esta relación, mas hoy, para cada disciplina constituye todo un reto la búsqueda de soluciones que armonicen y viabilicen el desarrollo en el entorno que nos rodea. Constantemente, se produce un debate en cómo llevar a cabo un desarrollo más equilibrado y justo a favor de los individuos y su medio; y la labor si bien pudiera parecer sencilla se torna bastante compleja, puesto que encierra en sí la gran necesidad de concientizar que la preservación del medio ambiente es una responsabilidad de todos en un clima de solidaridad, respeto e igualdad. 14 / Prelúdios, Salvador, v. 4, n.4, p. 13-27 set./mar. 2015 Es en este sentido, que a través de una reflexión teórica se propone discernir algunos elementos epistemológicos que inciten a (re)plantearse nuevas interrogantes que ayuden a pensar y encontrar alternativas que hagan posible alcanzar la ansiada armonía entre el hombre y la naturaleza. Por ello, una mirada a la relación medio ambiente y desarrollo desde la arista sociológica es comprender que lo social y lo ambiental en la medida que se interrelacionan necesitan estar en armonía, pues: “[...] las influencias entre sociedad y medio ambiente son bidireccionales y al igual que la acción antrópica modifica o altera los ecosistemas naturales, del mismo modo los fenómenos y procesos sociales se ven influidos por los factores ambientales en un proceso continuo de retroalimentación [...]” (Aledo, Domínguez, 2001, p. 6). Es meritorio acotar, que si bien se asumió un posicionamiento respecto a determinada disciplina para la realización del análisis, se tuvo siempre en cuenta el alcance transdisciplinar para abordar el tema, siendo vital tal noción para no pecar de ingenuos y meros reduccionistas en el ámbito investigativo. De esta forma, si bien hay disímiles ideas que afloran para el tratamiento de estos ejes, se considera atinados y esenciales los hilos conductuales: medio ambiente y globalización, desarrollo sostenible y la relación existente entre la dimensión cultural del desarrollo y la problemática ambiental, la que no por ser la última resulta menos importante; pues a mi juicio comprende la interconexión entre las anteriores y deviene en visión integradora para ahondar en el eje del desarrollo socio-ambiental y cultural. DIÁLOGO ENTRE CATEGORÍAS: PROPUESTA PARA LA REFLEXIÓN “La cultura debe ser asumida no como un componente complementario u ornamental del desarrollo, sino como el tejido esencial de la sociedad y, por tanto, como su mayor fuerza interna.” (Carranza, 2001, p. 661) “Para que el ser humano responda éticamente por su suerte y la del mundo, es necesario cambiar el paradigma antropológico de occidente y crear una nueva cosmovisión que resignifique el sentido del hombre y del mundo, hoy profundamente disociados (…) La construcción de los valores humanos no puede ser independiente del hábitat, como también la construcción del hábitat es un reflejo de los valores existentes. (Cely, 1998, p. 22) Prelúdios, Salvador, v. 4, n.4, p. 13-27 set./mar. 2015 / 15 Una aproximación a cada una de las líneas en particular, remite primeramente a observar los nefastos efectos de la globalización en el medio ambiente, los cuales relacionados con otros pertenecientes a los ámbitos económicos, políticos, sociales y culturales han generado en la actualidad peligros globales que a grandes escalas pueden resumirse en tres fundamentales, a decir de los investigadores Domínguez y Aledo (2001). Ellos son: daños ecológicos condicionados por la riqueza y los peligros técnico-industriales; los daños ecológicos condicionados por la pobreza, y los peligros que ocasionan las armas de destrucción masiva. El primero, responde a los peligros que originan el desarrollo tecnológico y el consumo de los países más avanzados, cuya extensión y consecuencia se visibilizan en todo el planeta; siendo destacables entre ellos: el agujero de la capa de ozono, el efecto invernadero o las imprevisibles consecuencias de la manipulación genética. Apuntando al segundo problema, es importante señalar que la mayoría de estos son reconocidos como “autodaños” debido a que los sectores y países más pobres buscan vías de soluciones para salir de la pobreza, autoagrediendo el entorno en el que viven con desfavorables consecuencias tanto para ellos como para los otros. De igual forma, el manejo y uso de armas de destrucción relacionado con los anteriores, si bien se encuentran en manos de los gobiernos o establishment, generalmente, pueden hallarse también en manos de grupos terroristas, delincuencia organizada y sectores represivos, conllevando a la afectación de la anhelada paz mundial. Así interconectados todos, traen aparejados numerosos problemas donde de manera sistémica la globalización hace sentir sus desmanes. La aparición de riesgos ecológicos a nivel mundial, tal como el conocido cambio climático es de carácter integrador, puesto que los cambios que se producen en una parte de nuestro planeta afectan a cualquier otro punto del orbe y a todas las clases sociales; agrandando la brecha entre los países ricos y pobres y agravando cada vez más la dependencia económica que marca derroteros hacia la degradación medio ambiental. Consecuentemente, en el marco de esta fuerte competencia a escala global y de una creciente desigualdad, citando a Comas D´Argemir: “la pobreza obliga a comportamientos no sostenibles para lograr sobrevivir, aunque a largo plazo estas prácticas impiden un futuro desarrollo sostenible que les permita salir del círculo retrautoalimentado de pobreza- degradación ambiental en el que los países más pobres se encuentran […]”. (1998, p. 166). 16 / Prelúdios, Salvador, v. 4, n.4, p. 13-27 set./mar. 2015 En tal sentido, el predominio del factor económico, no soslaya la relación existente entre este, la cultura y la esfera social. El fenómeno de la globalización en la medida que atraviesa las economías, es un proceso también sociocultural donde el estilo de vida y los valores que comporta son enormemente contradictorios, pues junto al consumismo exacerbado se exporta una preocupación por las presentes y futuras condiciones ambientales, en la medida que nuevas y latentes inquietudes se hacen notables. Ello, lleva a pensar en la vital necesidad del desarrollo sostenible, no como concepto cuyo uso y abuso del término en moda se escuche constantemente; sino como definición a poner bien en práctica que acuna tanto los aspectos medio ambientales - marcadamente enfocado en su protección- como la mirada a los seres humanos en tanto centro de las preocupaciones relacionadas con el desarrollo; a la equidad intergeneracional, la erradicación de la pobreza como requisito indispensable para el mismo, la equidad entre los géneros, el respeto a las identidades culturales y la interdependencia entre paz. A mi juicio, esto alude a la ventaja de asumir el concepto de cultura en su sentido integral y holístico - antropológico y sociológico- que incluye la cultura simbólica – material, la social y ambiental; lo cual trae consigo el (re)pensar los valores culturales como condicionantes de las relaciones del ser humano con la naturaleza, existiendo por ende, una interrelación entre ecosistemas e identidades culturales, así como entre biodiversidad y diversidad cultural. Igualmente, entender las culturas no como totalidades monolíticas sino como escenarios diversos, prolíferos, llenos de prácticas ético- políticas heterogéneas, donde se dan procesos de cambios y transformación, no evidencia más que la relación “[...] entre las partes, dentro de las partes, y entre las partes y el todo.” (González, Cambra, 2002, p. 53). Dicho aspecto denota la necesaria imbricación entre desarrollo, cultura y medio ambiente, pues el desarrollo sostenible en la medida que aboga por la sustentabilidad y cuidado debe fomentar además, cambios en los modos de vida consumistas y conducir a la reflexión en torno a las repercusiones éticas y sociales de las nuevas tecnologías. Asimismo, pienso que al abogar por un desarrollo sostenible, la dimensión cultural del desarrollo en las/os diferentes regiones y/o países cobra especial connotación, puesto que se trata de: “una educación para una nueva ética global, entendida como un núcleo de principios y valores éticos capaces de criticar la injusticia y la falta de equidad vigentes y de evitar una respuesta relativista a la diversidad cultural, que debe ser alcanzada a través de la tan problemática como desafiante y enriquecedora búsqueda de lo común entre lo diverso, de la unidad en la diversidad”. (Centre UNESCO de Catalunya, 1998, p. 250) Prelúdios, Salvador, v. 4, n.4, p. 13-27 set./mar. 2015 / 17 Precisamente, dar reconocimiento y derecho a lo diverso hace comprender comportamientos y conocimientos relativos al entorno que para nada son insignificantes. El significado de la naturaleza para determinadas comunidades indígenas, su cuidado y uso, al tiempo que las distinguen, forman también parte de su preocupación, supervivencia y desarrollo; en tanto fuente y energía socioculturales. Es este derecho, uno de los contrastes esenciales con respecto a la globalización, pues el justo reconocimiento a lo diverso no como mera mercancía a comercializar en los mercados, sino como parte de la idiosincrasia, el sentir y el vivir de los sujetos; ofrece una mayor integración y conciencia hacia lo autóctono y a su vez, hacia el medio ambiente. El respeto para todas las identidades culturales en un contexto democrático, participativo y de equidad socioeconómica, así como el respeto a la soberanía son precondiciones de la paz. Es impostergable reconocer el poder de las mayorías como condición para que a partir de su propia creatividad forjen y consoliden modos de vida en comunidad y conduzcan un desarrollo humano y cultural. Con relación a las ideas precedentes, se torna pertinente remitirnos al reconocido investigador Enrique Leff (1986), quien comparte algunos razonamientos centrales en su texto Ecología y capital. Racionalidad ambiental, democracia participativa y desarrollo sustentable. El autor establece un paralelismo entre las tradiciones, ideologías y formaciones culturales de los pueblos, con sus prácticas sociales o productivas, a la vez que estas también forman parte de sus expresiones culturales. Esto quiere decir, según las cosmovisiones y los significados que las comunidades le atribuyen a la naturaleza, estarán determinados el uso y el manejo de los recursos que la componen, lo “que también irá estableciendo paulatinamente las pautas y comportamientos socio- económicos, biológicos y demográficos de estas sociedades.” (Duharte, 2013, p. 5) Cuestión que incentiva al célebre teórico e intelectual para reflexionar sobre el término “cultura ecológica”. De tal manera, considera necesario fomentarla pensando en los distintos niveles donde actúa la cultura y donde puede expresarse, ya sea desde los valores incorporados o a desarrollar en una sociedad, así como en las prácticas donde se ponen de manifiesto tales valores y los conocimientos adquiridos por los individuos o colectividades. Reconoce y plantea además, que: 18 / Prelúdios, Salvador, v. 4, n.4, p. 13-27 set./mar. 2015 “la cultura se convierte en un principio activo en el desarrollo de las fuerzas productivas y de un paradigma alternativo de producción, en el que la innovación tecnológica y la productividad ecológica están entretejidas con los procesos culturales que definen la productividad social global.” (Leff, 1986, p. 192) Con esta afirmación establece la ineludible relación entre la cultura y otros procesos que intervienen en la producción, concibiéndola más allá de las costumbres y características de una comunidad para presentarla como componente, vertiente y arista esencial o determinante del desarrollo, de los recursos naturales. El eje del desarrollo, compuesto de la visión ambientalista, social, cultural y económica es un proceso integrador y general que interpela cada día de nuevos saberes. No basta con aglutinar conocimientos desde los distintos enfoques, se necesita también de la convergencia de múltiples actores, la participación plural y la unión de voluntades que conduzcan a la sustentabilidad y cómo lograrla. De tal propósito, cabe señalar en palabras del sociólogo norteamericano Edward Benton (1996), que se hace urgente: “[...] retomar un sentido de la proporción, una reevaluación de lo que siempre ha estado ahí: las fuentes de satisfacción y significado de la vida que no sólo no necesitan el sistema mercantil, sino que son sistemática y erróneamente apropiadas y luego destruidas por los estragos de éste [...]”. (1996, p. 188). Reflexionar alrededor de los usos, cuidados y daños en torno al medio ambiente, lejos de ser una cuestión meramente “verde”, articula nociones complejas que conducen a una revisión de la realidad que vivimos, no desde visiones utópicas o proyectos que pretendan mostrar rápidas alternativas; sino desde la máxima de que : “precaución es la palabra de orden y el industrialismo y el proyecto de dominio de la naturaleza son el problema, no la solución”. (Delgado, 1999, p. 417). La interpretación del término desarrollo sostenible -como se ha expresado en diversos espacios-, es polémica y suscita variadas interpretaciones desde posicionamientos políticos- ideológicos diferentes. Disímiles autores, como Esteva y Reyes (1998) plantean que la propuesta de desarrollo sustentable, no puede tener un único significado, la misma ha de adaptarse a contextos y circunstancias determinadas. Al definir qué se entiende por desarrollo sustentable, se está definiendo qué tipo de sociedad se aspira a construir o alcanzar, resultando Prelúdios, Salvador, v. 4, n.4, p. 13-27 set./mar. 2015 / 19 ser para cada país y/o región una tarea y estrategia que demanda un compromiso con el cambio que aboga por la inclusión, respeto e igualdad entre todos los actores sociales. • Existen diferentes características y principios que rigen la definición de este desarrollo (Leff, 1994; Esteva y Reyes, 1998; Díaz, 1999 y Caballeros, 1999, citado por Muñoz Campos, 2003, p. 10), ellas son: • Equidad social en la distribución de la riqueza. • Percibir la realidad desde una perspectiva global, compleja e interdependiente, que permita comprender que los problemas ambientales son multicausales y articular los diferentes procesos que intervienen en el manejo integrado y sostenido de los recursos. • Respetar los ritmos de renovación o regeneración de los recursos naturales, a través de la preservación de la biodiversidad y mediante el acceso y el uso adecuado de dichos recursos. • Ampliar los márgenes de participación social a través de la descentralización económica y la gestión participativa de los recursos. De esta manera se fortalecerá la capacidad autogestionaria de las comunidades locales, así como la autodeterminación con relación a la utilización de las tecnologías por parte de los diferentes países y pueblos. Cabe indicar entonces, que el sentir no está solo en construir un orden social mejor, radica en influir decisivamente en los comportamientos y patrones culturales que se han ido expandiendo durante décadas. Debe pensarse en una forma de cambio consciente, maduro y holística donde se desplieguen ulteriormente las potencialidades creadoras que ella encierra. No se trata de plantear ventajas y limitaciones, puesto que todo en su devenir debe tenerlas, más allá de eso, se trata de imbricar áreas y propuestas que reflejen un desarrollo sostenible. En aras de ello, juega un papel primordial la educación y formación ambiental, ya que la crisis ambiental que se sucede induce la formación de conocimiento desde los diferentes saberes, reclamando: “la percepción desde los diversos ámbitos de las relaciones que al interior se producen- en lo social, económico, cultural y ecológico- vinculados con los diferentes intereses que movilizan la reconstrucción del saber y la reapropiación del medio ambiente.” (Leff, 2000, p.274). 20 / Prelúdios, Salvador, v. 4, n.4, p. 13-27 set./mar. 2015 De esta situación, resultará entonces la articulación entre educación y formación con vistas a crear nuevos valores vinculados a transformar la realidad, teniendo en cuenta una estructura socioeconómica que internalice las condiciones ecológicas del desarrollo sustentable y aquellos valores que orienten a una racionalidad ambiental. El individuo comprenderá que interactuar armoniosamente con un medio ambiente sano, saludable, diverso y rico es parte de la felicidad y la satisfacción. CUBA EN EL ANÁLISIS: ENTRE ACCIONES Y ESTRATEGIAS A FAVOR DEL DESARROLLO SOSTENIBLE Si bien anteriormente, se han compartido nociones generales acerca de la tríada naturaleza - desarrollo- cultura, es oportuno abordar brevemente la misma en el escenario cubano, pues si todavía queda por parte del Estado y del resto de la sociedad hacer un trabajo más intenso para contrarrestar tendencias favorables que afectan el entorno en aras del éxito económico; es meritorio apuntar que pese a la compleja coyuntura económica que debemos afrontar y las políticas a implementar en las distintas esferas, contamos con condiciones para impulsar el salto cultural que la solución del problema ambiental exige. Para ello, puede citarse la labor realizada por instituciones científico – recreativas y educativas, tales como: museos, jardines botánicos, acuarios, parques zoológicos, entre otros; donde se ha mostrado una larga experiencia en el desarrollo de programas educativos dirigidos a niñas/os, jóvenes, y población en general, con la intención de ofrecer siempre conocimientos acerca de la flora y la fauna, su protección; así como del patrimonio cultural y otros importantes elementos del medio ambiente. Es indispensable tener un mayor conocimiento sobre nuestros recursos naturales, así como el medio social y cultural que nos rodea que haga posible una utilización inteligente del potencial natural que poseemos. En este sentido, sobresalen El Programa Nacional sobre Medio Ambiente y Desarrollo (adecuación cubana a la agenda 21) y la Estrategia Nacional Ambiental con la presentación y difusión de su Plan de Acción, aprobada en el año 1997. La estrategia ha constituido la base para la elaboración e implementación de posteriores estrategias locales y territoriales, así como de otras actividades que se sustentan y definen en una voluntad política comprometida. Cabe mencionar también, la política ambiental cubana como exponente del trabajo articulado entre decisores, formuladores de políticas y académicos con el propósito de implementar estrategias que contemplen planes y proyecciones, así como el cumplimiento y evaluación de su efectividad. Prelúdios, Salvador, v. 4, n.4, p. 13-27 set./mar. 2015 / 21 De esta manera, elevar la formación y capacidad de los actores es una meta indispensable si se tiene en cuenta que en la actualidad y en un futuro cercano, ellos estarán estrechamente relacionados con la toma de decisiones, la proyección de políticas sociales y de desarrollo, la explotación de los recursos naturales y la prestación de los servicios, “por lo que de su actuación dependerá en gran medida el rumbo que tome el proceso de desarrollo en nuestro país.”(CITMA, 1997, p. 2). La implementación de una política nacional de educación ambiental coherente, integradora, de amplia participación ciudadana es un camino que hay que recorrer; instruir desde la educación formal e informal es un quehacer que requiere de la responsabilidad y la colaboración de todos. Una directriz importante de esta política y de la estrategia que la misma encierra, es sin dudas, la vinculada a los procesos educativos hacia las comunidades para capacitarlas en la participación de la toma de decisiones, y en la solución de los problemas locales que contribuyan a mejorar las condiciones de su medio ambiente natural y psicosocial, transitando hacia modos de vidas más sanos. También, es de aludir dentro de la educación ambiental que se potencia, el desempeño de los centros de investigación y el sistema educativo cubano. Desde los niveles escolares inferiores hasta los centros universitarios se trata de fortalecer el trabajo, incorporando la dimensión ambiental en los diferentes planes de estudio. Al tiempo que, se busca “incentivar el potencial universitario en función de solucionar problemas locales y comunitarios”. (Muñoz, 2003, p. 3) Se trata de modificar enfoques e incentivar una conciencia de protección hacia el medio ambiente, al tiempo de que los estudiantes obtengan nuevos conocimientos. Es indiscutible que el conocimiento en estos tiempos es un factor decisivo en el proceso del desarrollo. En lo que respecta a la realidad cubana, es necesario tener un mayor conocimiento acerca de nuestros recursos naturales y su protección para utilizar racional y responsablemente las riquezas naturales en pos del beneficio social. Pensar y analizar nuestra situación- entiéndase, afrontar los disímiles retos presentes en las diferentes esferas de nuestra sociedad- nunca ha sido obstáculo para reflexionar en torno a la problemática socio-cultural y ambiental foráneas, a través de la implementación de una política ambiental internacional, trazada y desarrollada acorde con los lineamientos generales de la Cumbre de Río y nuestras prioridades estratégicas; se persigue: “[…] contribuir con el ejemplo y voluntad del país, a la búsqueda de soluciones a los problemas ambientales, y a denunciar la responsabilidad 22 / Prelúdios, Salvador, v. 4, n.4, p. 13-27 set./mar. 2015 de los países desarrollados en el deterioro ambiental y social del planeta, planteando las verdaderas causas de la situación ambiental global de los países subdesarrollados.” (Tabloide: Introducción al conocimiento del Medio Ambiente, 2008). Asumir dichas intenciones, más que una necesidad, constituye derroteros esenciales para el logro del desarrollo sostenible. Se trata de conjugar praxis y teorías a favor de la equidad tanto nacional como global. No debe olvidarse que los problemas ambientales son transfronterizos y conciernen a todo el orbe, por lo que accionar conjuntamente con respeto e igualdad puede conducir a un futuro mejor. “Necesitamos una nueva ética humana que nos ayude a reubicar nuestras relaciones con el resto del entorno.” (Delgado, 1999, p.86). Debe trascenderse la concepción estrecha de medio ambiente- como se aludía en los inicios del texto- para comprender la interdependencia existente entre las acciones humanas y los procesos naturales y sociales que determinan la satisfacción de las necesidades materiales, espirituales y culturales. Debe valorarse el impacto de las acciones de los diferentes actores sociales: individuos, agentes e instituciones- en los tres niveles: micro, meso y macro social- e incidir en su transformación en los casos que se requiera. Es imprescindible para el desarrollo sostenible articular dimensiones sobre las bases ecológicas, éticas, de equidad social, diversidad cultural y participación. CONSIDERACIONES FINALES La meta a lograr en todo este camino es la articulación viable de las dimensiones medioambiental, social y cultural en la consecución de la salida de la crisis ecológica, en tanto pretensión de vida armoniosa entre el hombre y la naturaleza. Mas ello, encierra también comenzar a concentrarnos en la calidad de vida de las personas, eliminando la pobreza como flagelo que azota a la gran mayoría y reconociendo la diversidad de las comunidades humanas, en la medida que apreciemos lenta y colectivamente que la cantidad no es lo más importante. Podríamos acercarnos a la sustentabilidad, siempre y cuando reconozcamos la sostenibilidad, la biodiversidad, los límites y la eficiencia medio ambientales como equidad intergeneracional, pues hoy en pleno siglo XXI, emprender acciones cuya finalidad sea debatir y (re)pensar el eje del desarrollo desde sus múltiples dimensiones, exige de los individuos que nos involucremos con voces y criterios propios en estos debates. Lo que seamos capaces de construir hoy será el futuro nuestro y el de las próximas generaciones. Prelúdios, Salvador, v. 4, n.4, p. 13-27 set./mar. 2015 / 23 Urge desarrollar una nueva conciencia que tenga implícita una solidaridad generacional, puesto que nuestros hijos y nietos necesitan - y merecen- un mundo mejor, donde la ciencia y la tecnología se usen de manera socialmente responsable, teniendo presente las implicaciones éticas de sus implicaciones, de manera que estas no resulten dañinas a los seres humanos ni a su entorno natural. Las teorías sociológicas que abordan la cuestión medioambiental no son pocas, sin embargo, aún son insuficientes. No fue hasta los años 70 de la pasada década, como se planteaba al inicio del artículo, que se produjo una pre ocupación, despertar o punto de ascenso en las cuestiones relativas a la dimensión citada, reconsiderándola como un eje central del proceso del desarrollo y, componente importante cuando se alude al tema de la sostenibilidad. La perspectiva sociológica en el abordaje de esta temática, se torna esencial, en tanto permite al igual que otras ciencias como la biología, la etnología y la arqueología una reconstrucción histórica de las relaciones entre naturaleza y sociedad. Favorece a determinar o identificar la posible multicausalidad de los procesos no solo por factores sociales, culturales, sino económicos, ambientales, demográficos, políticos, etcétera. “Todo ello desde un enfoque participativo, incorporando al individuo como actor del desarrollo que es, no como ser acrítico, mediado o determinado por las condiciones ambientales y relaciones de mercado.” (Duharte, 2013, p. 10) La intención de este escrito no versó en presentar soluciones, sino más bien, compartir reflexiones de manera breve sobre el entorno en que vivimos. El camino a recorrer está delante de nuestros ojos y sólo resta tener responsabilidad, disposición, conciencia y participación para el logro de una vida mejor en armonía con la naturaleza. La pobreza, la desigualdad social y el deterioro de la naturaleza constituyen el resultado más inmediato del modelo de desarrollo que impera y domina al orbe. Nos encontramos frente a un escenario mundial lleno de incertidumbres y acelerados cambios que demanda de políticas más justas y equitativas, sostenidas en valores éticos comprometidos con cambios a favor del bienestar de los individuos y sus entornos. Carlos Delgado, reconocido investigador cubano, nos incita a despertar de la somnolencia antropocéntrica para sentir, pensar y encontrar la salida de la crisis y es en este cambio de dirección, que puede existir la posibilidad de una coexistencia pacífica donde realmente “entendernos a nosotros mismos como miembros y ciudadanos de una comunidad natural superior permita disfrutar de una relación más feliz con los seres humanos y con el resto del mundo [...]”. (Delgado, 1999, p. 424). 24 / Prelúdios, Salvador, v. 4, n.4, p. 13-27 set./mar. 2015 (RE)THINKING THE ENVIRONMENTAL PROBLEMS IN THE CONTEMPORARY WORLD: PRELIMINARY ANALYSIS FROM A SOCIOLOGICAL DIMENSION FOR SUSTAINABLE DEVELOPMENT Abstract This article includes a proposal for reflection, from a theoretical positioning around the environmental issues affecting the world today. Viewed from a sociological perspective, does not obviate the importance for anything other environmental disciplines in the social sciences subject. In this sense, has been articulated in analyzing the cultural, environmental and sustainable human development, in order to think of a form of conscious, holistic and mature change where she holds creative potential is further deployed. Are also outlined actions in the Cuban context, and while solutions are proposed, the purpose of the letter on encouraging versa awakening anthropocentric drowsiness to feel, think and find the way out of the crisis and achieve the desired harmony between individual and nature. Keywords: environment, sustainable development, sociological perspective, cultural dimension REFERENCIAS ALEDO, A.; DOMÍNGUEZ, J. A. Arqueología de la Sociología Ambiental. Sept./2001. Disponível em: < http://www.ua.es/personal/antonio.aledo/librosociologia.html. > Acceso em: 25 oct. 2010. BENTON, Edward. El enverdecimiento del socialismo: ¿un nuevo concepto del progreso? In: Delgado Díaz, Carlos J. (Coord.). CUBA VERDE: En busca de un modelo para la sustentabilidad en el siglo XXI. La Habana: Ed. José Martí, 1999. pp. 184- 196. BIDART, L.; VENTOSA, M .L.; Rodríguez, D. Mapa Verde: una mirada al desarrollo local. La Habana: La Habana: Publicaciones Acuario, Centro Félix Varela, 2006. 37 p. CABALLEROS, Rómulo. 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Prelúdios, Salvador, v. 4, n.4, p. 13-27 set./mar. 2015 / 27 Israel de Jesus Rocha COOPERAÇÃO E ORGANIZAÇÃO EM UM LABORATÓRIO DE TERAPIA CELULAR: NOTAS SOBRE UMA SOCIOLOGIA DA PRÁTICA CIENTÍFICA Resumo O presente texto tem como objetivo analisar, à luz dos estudos sociais, em ciência e tecnologia (STS) a organização de um laboratório e o modo como se dá a cooperação entre os pesquisadores associados ao mesmo. Para tanto, as evidências empíricas partem de quatro entrevistas realizadas com os pesquisadores que desenvolvem pesquisas com células-tronco em um laboratório de terapia celular. O laboratório possui uma configuração em que ao mesmo tempo está organizado em termos de projetos individuais de pesquisadores associados, ele pode ser visto como uma unidade integrada graças ao vínculo mantido por todos com o líder do laboratório e a possibilidade de cooperação entre os cientistas do laboratório. Por fim pode-se perceber que muito da organização do laboratório centra-se em seu líder, acentuando o seu papel articulador, bem como a dificuldade de relações de cooperação entre os pesquisadores. Palavras-chave: células-tronco; cooperação; organização; sociologia da ciência; antropologia da ciência. INTRODUÇÃO Este artigo tem um duplo movimento. De um lado, ele pretende apresentar em linhas gerais algumas perspectivas do que comumente chamamos de estudos sociais sobre a ciência e tecnologia. Uma área de estudos que têm ganhado espaço entre os pesquisadores brasileiros e inspirada, sobretudo, em trabalhos como Vida de laboratório: a produção dos fatos científicos de Bruno Latour e Steve Woolgar (1997), resultado de uma etnografia feita no Instituto Salk, na Califórnia, envolvendo as pesquisas com hormônios. Por outro, há uma tentativa de discutir algumas questões de pesquisa proposta por aquela área. Desse modo, o segundo movimento situa-se na descrição e análise de dados coletados em um laboratório de imunologia e terapia celular, tentando desdobrar as tramas que ligam laboratórios, cientistas em redes sociotécnicas, numa área de inovação das ciências naturais. Prelúdios, Salvador, v. 4, n.4, p. 29-45 set./mar. 2015 / 29 Entre os anos de 2008 e 2009 foi desenvolvido o projeto1 que originou dados para este artigo. Desenvolvido num laboratório de pesquisa científica, vinculado a um centro de pesquisa em terapia celular, a questão central estava na compreensão do modo como as trajetórias dos médicos e pesquisadores envolvidos com inovação mobilizavam uma extensa e complexa rede de sustentação da ciência. Aqui há uma tentativa de analisar alguns dados coletados do projeto, mais como uma prática do que como um corpo de enunciados que ensina o caminho da razão. O projeto considerava as ciências, e não a Ciência2, a partir de sua vida ordinária, nas bancadas e refeitórios, entre os percursos de distração dos pesquisadores e a seriedade dos experimentos. Não buscava, portanto, as justificativas dadas pelos cientistas para as suas pesquisas de maneira isolada, mas o modo como eles construíam as ciências, a partir da prática cotidiana no laboratório e além de seus muros. Acompanhamos, durante um ano, o cotidiano dos pesquisadores de um dos laboratórios que desenvolvia pesquisas com terapia celular para tratamento de doença de Chagas, com visitas periódicas ao laboratório, participação nas reuniões de comunicação de resultados, promovidas entre os próprios cientistas, participação em encontros com públicos externos ao laboratório e entrevistas semiestruturadas com os pesquisadores envolvidos nos experimentos com células-tronco, tanto no laboratório como nas aplicações clínicas em um hospital da rede pública. Aqui, manuseamos as anotações de contexto do campo e as entrevistas – utilizamos dados de quatro do total de nove que foram realizadas. Buscou-se, nessas entrevistas, recuperar os caminhos percorridos pelos pesquisadores até o momento que trabalhavam com pesquisas que envolvem uso de células-tronco, elemento central de nosso projeto. Atentamos para as histórias pessoais, motivações, treinamentos, diferentes experiências profissionais e relações sociais estabelecidas, as carreiras e as contingências que envolvem a produção e a prática científica no país, imprimindo uma circulação dos pesquisadores entre muitos centros e institutos no Brasil e em outros países. Além destas questões relacionadas com a trajetória, procuramos evidenciar as práticas cotidianas destes pesquisadores no laboratório, a maneira como lidam com as questões e problemas levantados por seus projetos individuais e os usos que fazem de um espaço coletivo como o laboratório. 1 Este trabalho foi desenvolvido a partir de dados coletados durante uma pesquisa de iniciação científica na Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFBA. 2 Ao estudar a prática científica é preciso observar uma distinção elaborada por Bruno Latour (2000) entre a “Ciência”, com inicial maiúscula, essa que conhecemos apenas pelo modo que se apresenta nos manuais, na televisão e nas jornadas de descobertas épicas, e as “ciências”, minúscula e plural, que destaca os aspectos práticos e idiossincráticos da atividade ordinária de produção dos fatos. 30 / Prelúdios, Salvador, v. 4, n.4, p. 29-45 set./mar. 2015 Neste sentido, há aqui um argumento teórico-metodológico originado na área de sociologia da ciência e posteriormente estendido de um modo geral para as pesquisas em ciências sociais, em que para compreender dinâmicas sociais é preciso seguir o trabalho de feitura promovido pelos atores envolvidos com suas práticas. (LATOUR, 2000; LATOUR; WOOLGAR, 1997; LAW, 2005) Pressuposto esse que permeia todo artigo. A partir desses elementos, toma-se como questão central desse artigo, os modos pelos quais os cientistas cooperam e organizam pesquisas em um laboratório de terapia celular, considerando os elementos humanos e não-humanos que permitem tal cooperação e organização. Portanto, começaremos pela delineação, em termos gerais, do que se chama estudos sociais de ciência, mesmo com uma complexa heterogeneidade de perspectivas, que envolve o campo, e apontaremos caminhos que delineiam nossa perspectiva de análise dos dados que serão apresentados na segunda parte do artigo. AS PRÁTICAS DE LABORATÓRIO A PARTIR DOS ESTUDOS SOCIAIS SOBRE A CIÊNCIA E TECNOLOGIA O leitor deve estar se perguntando as razões de um estudo sociológico sobre laboratórios de pesquisa em biologia molecular. As práticas científicas até o final da década de 70 eram pouco destacadas nos estudos clássicos sobre a ciência. Autores como Robert K. Merton (2013), Thomas Kuhn (2009) e Pierre Bourdieu (1969), trataram da ciência em diversas perspectivas que transitaram desde os aspectos normativos e os valores até a questão da produção e reprodução do poder no campo científico, passando pelos aspectos culturais que envolvem a cultura na ciência. Por mais relevantes que tenham sido as análises propostas por essas perspectivas, elas ainda não trataram com detalhes os aspectos que envolvem a prática da ciência. Pouco discutida, a dimensão prática surgia apenas como ilustração de argumentos que envolviam questões como valores e interesses e as normas que organizam e regem a comunidade científica. Diferenças consideráveis nas perspectivas tornam os estudos de ciência um campo heterogêneo e aqui não analisaremos os conceitos que envolvem cada perspectiva. Nos interessa, para este estudo, uma mudança teórico-metodológica, ocorrida em torno das pesquisas interessadas em estudar a ciência e suas relações com a sociedade. A partir do final da década de 70 diversas propostas de pesquisa começaram a destacar o papel da prática científica para a compreensão da ciência. Esses estudos tiveram uma considerável orientação Prelúdios, Salvador, v. 4, n.4, p. 29-45 set./mar. 2015 / 31 antropológica em que muitos de seus propositores resolveram investigar a prática científica a partir de um local privilegiado. O laboratório. Os estudos sociais sobre ciência e tecnologia começaram a enfatizar que a produção da ciência é marcada por inúmeras redes que se estendem, desde a organização dos equipamentos no interior do laboratório até os inúmeros espaços externos a ele. (LATOUR, 2000; LATOUR; WOOLGAR, 1997; LAW, 1992) Políticas de financiamento, congressos, números de pesquisadores envolvidos, camundongos e equipamentos passam a ser considerados como mediadores no processo de estabilização dos fatos da ciência. No interior do laboratório, as decisões sobre os equipamentos adequados para realização de determinados experimentos, os testes dos artigos publicados em outros laboratórios e a maneira como as decisões sobre tal e qual procedimento, tecnologia e instrumento são tomadas, produzem certos efeitos técnicos que configuram as particularidades locais desses espaços de produção de fatos. (LATOUR, 2000; LATOUR; WOOLGAR, 1997; LAW, 1992 KNORR-CETINA, 1983) Desde então, não só o laboratório se tornou um locus privilegiado de pesquisa, como também outros elementos tratados de maneira residual ganharam destaque nos estudos sobre a ciência. Diferente do ponto de vista que até então tratava a ciência apenas em seus aspectos normativos e culturais (MERTON, 2013; KUHN, 2009), e em termos de conflitos a partir de um Campo gerador de Habitus (BOURDIEU, 1969), produzindo análises que pouco consideraram as práticas científicas e o modo como os fatores sociais de produção da ciência permeavam as relações entre humanos e não humanos, os estudos produzidos a partir da virada teórico-metodológica sobre a ciência e tecnologia enfatizaram o caráter contextual e contingente, inserido num processo de construção contínuo. (LATOUR; WOOLGAR, 1997; KNORR-CETINA, 1983) Desse modo, muitos sociólogos e filósofos iniciaram pesquisas etnográficas com o objetivo de colocar sob o escrutínio da área, enunciados que até então eram interpretados a partir das perspectivas mais tradicionais. No lastro dos resultados dos primeiros trabalhos etnográficos, Latour (2000) sugere que o caminho seja o de estudar as ciências abertas e incertas permeadas de fontes de controvérsias. Para isso, era necessário superar e, em certa medida, estender algumas proposições já colocadas pelo “programa forte” de David Bloor (2009). Segundo este autor, para compreender a ciência é preciso traçar um movimento simétrico de tratamento tanto do erro como do acerto. Apenas este último era tratado quando se falava em ciência, atribuindo ao erro a interferência de fatores sociais e psicológicos, e assim explicados sociologi- 32 / Prelúdios, Salvador, v. 4, n.4, p. 29-45 set./mar. 2015 camente. Era preciso tratar ambos simetricamente e usar os fatores externos à ciência tanto para um quanto para o outro. (LATOUR; WOOLGAR, 1997) O princípio da simetria proposto por Bloor possibilitou uma série de investigações sobre o estatuto do erro e o papel da linguagem na ciência (GILBERT; MULKAY, 2009) e constituiu-se como um relevante programa de pesquisa envolvendo os aspectos sociais que interferiam na produção dos fatos científicos. Lançou, assim, as bases para pesquisas sobre a prática da ciência. Se por um lado Bloor (2009) configurou-se como um dos pontos centrais na virada de perspectiva sobre a ciência, é com as abordagens construtivistas que experimentamos relatos sobre a prática, a partir de dados etnográficos, em que tanto as explicações para os erros passaram a ser descritos pelas ciências sociais, como também o processo de fechamento das caixas pretas e a produção mesma dos fatos científicos. Este princípio de simetria proposto no programa forte foi de algum modo radicalizado nas etnografias, que procuravam além de igualar vencedores e vencidos, simetrizar natureza e sociedade nas explicações dos fatos científicos. Esta perspectiva construtivista da ciência pode ser apresentada nos seguintes pontos: os objetos científicos não se referem a entidades externas, dadas na natureza, nem se referem ao simples pensamento do cientista, mas são o resultado de uma fabricação. Quatro aspectos são destacados desta concepção: a) o caráter artifactual da realidade que os cientistas lidam; b) a especificação de propriedades do processo de produção artifactual; c) o caráter transformacional da ciência e d) o aspecto autorreferente das operações construtivas. (KNORR-CETINA, 1983) As fontes de informação dos cientistas em boa parte são manipuladas, selecionadas, alimentadas, criadas, nutridas, purificadas com o fim de serem usadas no laboratório. Esta seleção sugere que a natureza está menos presente no ambiente do laboratório e que os modos como são feitas as observações neste espaço, com uso de instrumentos de medida, tornam ainda mais distinta a qualquer observação ordinária. As habilidades e a preocupação com que as coisas funcionem de forma prevista indicam que as atividades no laboratório procuram produzir mais efeitos técnicos do que observações da natureza. A observação também sugere uma forma de produção da própria natureza. Segundo, os objetos científicos são antes o resultado de uma construção e o que acontece neste processo não pode ser considerado irrelevante para o que é obtido. Além de envolver o uso de instrumentos e materiais, esse processo envolve também decisões e interpretações. Estas seleções e escolhas no curso da ação sugerem que o objeto científico tem pouca probabilidade de ser reproduzido em circunstâncias diferentes. Desse modo, as seleções podem ser postas Prelúdios, Salvador, v. 4, n.4, p. 29-45 set./mar. 2015 / 33 em questão e desconstruídas quando desafiadas, desde que outros laboratórios consigam reproduzir condições análogas ao experimento original. Outro ponto destacado é o caráter transformacional dos objetos científicos. Estas transformações comumente são caracterizadas como seleções feitas para deslocar o subjetivo para o objetivo, o fabricado no que foi encontrado, operando um velamento dos rastros de sua produção, como Latour (2000) sugere, o fechamento em black box. Estes argumentos, no entanto, não apontam para um sentido ao qual se poderia considerar a fabricação como algo falso. A fabricação aponta para a dimensão contextual que envolve diversos elementos heterogêneos, desde a produção das culturas de células até a aprovação dos projetos de pesquisa por agências de fomento que está no cerne da prática científica. Em Ciência em ação, Latour (2000) sugere que esses passos sejam dados de forma a tornar o que é extremamente contingente em fatos que já possuem uma força que permite transbordar seu contexto local de produção. Podem existir como fatos da própria natureza, em nada problemáticos. Os enunciados que marcam o primeiro momento geralmente são afirmações vagas em torno de algum experimento, de alguma observação da literatura. Neste sentido, uma série de mediações dos inscritores3 no laboratório produzem incessantemente provas e mais provas que tornam enunciados frágeis em fortalezas inquestionáveis. Por fim, há de se destacar o aspecto autorreferente dessas operações construtivas. A ciência não é algo externo, mas opera como qualquer outra prática social. Ela se refere às suas condições de reprodução, principalmente quando os cientistas preocupam-se em estabelecer distinções entre fato e artefato. Quando um cientista defronta-se com um artefato, este é atribuído mais a um resultado de engano do cientista ou a algo que deu errado durante o experimento. (KNORR-CETINA, 1983) Neste sentido, uma das características mais relevantes desses estudos reside no fato de revelar como as seleções contextuais e contingentes são sustentadas e atravessadas por relações que transcendem o laboratório, e são permeadas de relações que envolvem humanos e não-humanos. A dimensão prática da ciência aqui assume contornos relevantes para o argumento central deste artigo. Consideramos os elementos que permeiam a prática científica a partir das considerações feitas pelos cientistas de um laboratório que realiza pesquisas, como terapia celular. As entrevistas são uma fonte 3 Inscrição é um conceito que permeia as obras de Bruno Latour desde a publicação de Vida de Laboratório. Refere-se aos numerosos registros produzidos por equipamentos no interior de um laboratório. Registros que possibilitam uma simples afirmação trocada entre colegas no refeitório de se tornar um fato inquestionável depois de uma cadeia de mediações que o tornam resistente a prova. 34 / Prelúdios, Salvador, v. 4, n.4, p. 29-45 set./mar. 2015 de acesso aos dados manuseados neste artigo, bem como observações realizadas durante as visitas ao laboratório. Essas observações ajudaram a compreender a prática científica e diversos elementos que surgiram nas entrevistas. Elementos estes que chamavam atenção para dados contextuais de produção do laboratório estudado. Essa breve introdução aos estudos de ciência serve-nos para localizar os argumentos e o modo como uma observação prática da ciência está inserida em um conjunto de perspectivas, às vezes dispares, do que é a ciência como prática e instituição. Nos localizamos a partir dos argumentos que pautam a prática como um dado relevante para a compreensão da ciência. Isso nos aproxima do argumento de autores como Bruno Latour (2000), Michael Callon (2007) e John Law (1992), que formam o escopo do que conhecemos por Teoria Ator Rede (TAR) ou Sociologia das Associações. Para os autores da Teoria Ator Rede ou sociologia das associações a prática científica mobiliza uma série de elementos heterogêneos que produzem redes com uma estabilidade precária. (CALLON, 2007) A precariedade relaciona-se com o esforço constante de manutenção das realidades como coisas duráveis no tempo e espaço. Neste sentido, um fato pode se tornar fonte de controvérsia permanente ou mesmo permanecer uma caixa preta após os inúmeros atores provocarem mediações constantes. Destacamos que a organização do laboratório como será descrita nas páginas seguintes procura mostrar como este caráter contextual e prático está presente no laboratório em estudo. Não trataremos, então, de considerar as abordagens clássicas, mostrando apenas como o campo passa por diversos deslocamentos até a consideração sobre a prática científica como um dado importante para a compreensão da ciência. E o laboratório (seja ele de ciências naturais ou sociais) surge como local privilegiado para tratar da prática científica. Para isso, estaremos atentos à prática dos pesquisadores, desde o acesso ao correio eletrônico e aos periódicos, até a seleção e preparação dos experimentos diários, típicas atividades de rotina dos cientistas. O LABORATÓRIO ORGANIZADO COMO PROJETOS INDIVIDUAIS Uma das primeiras questões que nos deparamos quando iniciamos uma pesquisa sobre a prática científica diz respeito ao modo como um laboratório de terapia celular se organiza? Podemos falar de cooperação entre os pesquisadores? Qual o papel do chefe do laboratório na articulação ente os diversos pro- Prelúdios, Salvador, v. 4, n.4, p. 29-45 set./mar. 2015 / 35 jetos que encontramos no laboratório? Estas e outras perguntas que procuraremos tratar nesta seção. Para isso, achamos por bem dividi-la em duas seções. Na primeira, destacaremos a questão da organização do laboratório como projetos individuais centrados no líder do laboratório. Na segunda, discutiremos algumas questões relativas à cooperação no laboratório, sendo este um espaço coletivo. Para ambas utilizaremos trechos das entrevistas concedidas pelos pesquisadores e observações feitas nas sessões científicas em que os pesquisadores trocavam informações sobre as pesquisas. Para manter o anonimato, não serão apresentados os nomes dos pesquisadores entrevistados, apenas farei referências às falas utilizando letras que identificarão os relatos. Praticamente em todas as entrevistas concedidas pelos pesquisadores, existem referências ao chefe do laboratório. Esta ocorrência não parece ser fortuita e demonstra a importância do líder para o entendimento da organização do laboratório. Os relatos dos pesquisadores sugerem que a organização do laboratório está centrada nos projetos individuais de cada um que participa e ocupa o espaço com seus projetos. Portanto, partiremos inicialmente de breves descrições destes trabalhos no laboratório. O que há de comum em muitos projetos desenvolvidos no laboratório estudado é o fato de aplicarem a terapia celular. Entretanto, outros tipos de experimentos como a fitoterapia, o uso de fármacos para as diversas metas e objetivos dos projetos também são desenvolvidos. Não é objetivo aqui detalhá-los. Aqui trataremos da organização de duas maneiras. Primeiro, relacionado aos projetos individuais de cada pesquisador e, em seguida, como o chefe é evidenciado como o articulador de todos estes projetos. Os projetos dos cientistas são marcados por suas metas, atividades experimentais e tarefas nas quais procuram apresentar como seus projetos próprios. Estes projetos agregam lado a lado com cientistas, materiais, instrumentos, bancadas, ajuda de técnicos ou estudantes e formam pequenos ambientes no interior do laboratório. Além destas contribuições, os pesquisadores comumente procuram contribuições em outros laboratórios com o objetivo de sustentar o andamento de suas pesquisas. (KNORR-CETINA, 1999) Estes pequenos arranjos podem ser vistos em termos de habilidades. Esses são componentes fundamentais na composição de um arranjo no laboratório. A simples presença de uma técnica especializada em um equipamento raro produz significativas diferenças nos outputs do laboratório, como muitos pesquisadores evidenciaram. Ao chegarem ao laboratório, ou mesmo serem convidados, estes pesquisadores trazem uma gama de técnicas e maneiras de lidar com certos instrumentos, que podem ser desenvolvidas no laboratório. 36 / Prelúdios, Salvador, v. 4, n.4, p. 29-45 set./mar. 2015 M: [...] a gente não sabe por que é novo o trabalho né, ninguém tinha feito isso, mas uns cinco meses talvez, por aí, a gente não sabe que é tudo muito novo esse equipamento é único em toda América Latina, só tem aqui, então o tratamento com ecocardiograma é um equipamento antigo, mas pra fazer em camundongo é muito complicado porque é de humano, pra usar em camundongo você não tem a mesma qualidade de imagem [...] (Informação verbal) Essa pesquisadora tinha poucos meses trabalhando no laboratório. Chegou nele a partir de um pós-doutorado e com uma habilidade de manejo do equipamento que poucos dominavam integralmente no laboratório. Além da operação, um dos seus trabalhos também era treinar jovens pesquisadores em habilidades e usos do equipamento. Para um leitor desavisado, pensar que um pós-doc é mobilizado para operar um equipamento parece um dado irrelevante diante da posição e titulação que esta pessoa já possui. Nas práticas de laboratório, desenvolver habilidades de operação (o que parece meramente do ambiente técnico) configura-se como uma porta de acesso aos recursos de inúmeros laboratórios pelo país e o mundo. Foi no cenário de congresso que o líder do laboratório o convidou para integrar a equipe. O próprio aparelho configura-se como um ator que produz mediações em torno do laboratório. Torna o laboratório o ponto de convergência de muitas pesquisas que dependem das inscrições produzidas a partir do aparelho. O deslocamento feito para produzir inscrições envolvendo camundongos é o desafio colocado pelo equipamento no laboratório. A pesquisadora, além do treinamento dos jovens pesquisadores no uso do aparelho, precisou desdobrar uma série de elementos para estabilização daquele não-humano no laboratório. O que parecia estabilizado em um contexto, tratamento com humanos, em outro demandou novos arranjos e adequações, sobretudo o deslocamento de pessoas qualificadas para sua operação. Do ponto de vista do chefe do laboratório, estes pequenos arranjos podem melhorar tanto o trabalho como a projeção do laboratório. A pesquisadora acima foi uma de duas apenas que receberam o treinamento para operar o novo ecocardiograma capaz de fazer leituras de corações de camundongos. Esse aparelho requer certas habilidades que a pesquisadora já desenvolvia, como demonstra no trecho seguinte: M: [...] me deram a maior força aí eu vim pra cá porque eu tenho habilidade pra fazer ecocardiograma, que é mexer naquele equipamento de ultrassom, Dr. R. tinha acabado de comprar um ultrassom aqui, que eu Prelúdios, Salvador, v. 4, n.4, p. 29-45 set./mar. 2015 / 37 não conhecia [...] estou vendo agora, estou montando, estou fazendo, ai ele falou: olha você vem continua na área de cardiologia porque aqui eles trabalham com a doença de chagas e ainda continua mais ou menos na sua área que é área do ultrassom, só que ao invés de fazer terapia com genes agente faz a terapia com células-tronco [...] Quando as habilidades não estão diretamente ligadas ao uso de um aparelho específico, podem envolver interesses em novas linhas de pesquisa. C: [...]pra conversar com você... ela disse pode vir na mesma hora... ai eu fui, eu amei ela foi muito receptiva, não pode vir, vem pro laboratório, desenvolve aqui, [...] ai ele falou... vem vamos desenvolver, o que que você quer comprar, pode montar farmacologia da dor aqui a gente tem interesse tal e ai a gente começou a comprar as coisas pra montar essa parte lá pra fazer dor lá [...] Neste relato, a pesquisadora demonstra o interesse que o chefe do laboratório tem em desenvolver outra área de pesquisa que ainda não está sendo desenvolvida no laboratório. Relata já no mesmo instante os equipamentos necessários para montagem dos experimentos e a aquisição pelo laboratório. Um dos elementos que destacam as habilidades do chefe do laboratório está em mobilizar e prospectar futuras linhas de pesquisa e frentes de trabalho para manter o laboratório em funcionamento. Os pesquisadores de bancada envolvidos nos experimentos diários são conectados a partir dessa referência ao esforço do líder em articular muitos projetos e experimentos inovadores para o laboratório. Seu esforço não é a bancada. Como o cientista empresário, descrito por John Law (2005), o chefe desse laboratório exerce o trabalho de prospecção entre agências de financiamento e espaços de socialização dos resultados, ao mesmo tempo em que capta novos pesquisadores para os trabalhos de bancada. Estas habilidades sugerem uma organização do laboratório em termos de projetos individuais, no qual se tem desde pesquisadores desenvolvendo iniciação científica até pós-doutorado, que parecem estar ligados ao laboratório pela presença do chefe. Em parte das entrevistas discutidas neste texto, os pesquisadores, ao traçarem suas trajetórias, apontam contatos, indicações e referências ao chefe do laboratório. Neste sentido, o líder articula não apenas o que acontece no interior do laboratório, mas também as suas redes além dos muros. São nos congressos, encontros e eventos que se reforçam contatos e conhecem pesquisadores que desenvolvem determinadas habilidades, como no caso das 38 / Prelúdios, Salvador, v. 4, n.4, p. 29-45 set./mar. 2015 pesquisadoras C e M. E o laboratório, diferente do que uma visão externalista da ciência parece sugerir, agrega mais habilidades para manusear e criar experiências a partir dos arranjos locais, do que uma simples referência a titulação dos membros pode sugerir. Ser um pós-doc também significa realizar um trabalho de bancada, de forma a produzir resultados interessantes para laboratório. Para Knorr-Cetina (1999), assim como em Law (1992), tornar-se um líder de laboratório parece ser um estágio final na carreira de pesquisador. Argumenta que além do pesquisador permanecer nos seus projetos individuais ele passa por vários estágios em sua carreira, desde o nível de estudante até o estágio de pesquisador maduro. O último estágio parece ser o de tornar-se chefe. Muitos pesquisadores entrevistados, mesmo que ainda não estejam cursando o doutorado, já demonstram o desejo de ter o seu próprio espaço. Este espaço é sempre descrito como o próprio laboratório, um local para desenvolver um trabalho mais autônomo, com mais liberdade. R: Minha expectativa provavelmente é pós-doutorado, ensino, pesquisa, continuar em laboratório vê se monta uma estrutura que a gente possa tá comandando [...] continuar ligado e fazendo coisas mais independentes quando a gente tem autonomia para fazer, por exemplo, nas universidades que a gente começa a dar aula, na faculdade, na Baiana, nessa, naquela faculdade que existe possibilidade de montar uma coisa a partir de nós, agora nós, sendo os propulsores daquela instituição, daquele ambiente tal, isso eu acho que é o crescimento normal, a ambição normal que a gente tem, é um trabalho árduo, é óbvio que a gente vai ter a raiz ligada à pesquisa central, ao local central que é o laboratório, mas agente na medida do possível vai estar fazendo coisas que a gente imaginava ter feito, ou que a gente pensa ter feito, que as vezes não podem ser feitas porque o laboratório tem uma linha, tem um determinação [...] ter o nosso laboratório de pesquisa público trabalhando para atender a sociedade, que são anseios nossos[...] Outra pesquisadora descreve nestes termos: M: ...penso em dar aula, eu penso muito em entrar na universidade federal pra dá aula e ter meu próprio grupo de pesquisa, acho que isso acaba sendo uma vontade da maioria que está fazendo pesquisa, porque orientar um aluno, formar um aluno é muito prazeroso, é uma coisa muito boa, então quem sabe ter um, não sei se um laboratório de pesquisa, não é muita coisa talvez, mas ter a minha linha de pesquisa, ainda que aqui dentro dessa instituição, mas eu poderia dar aula na federal, ter minha linha de pesquisa aqui dentro, ter alguns alunos e trabalhar em colaboração aqui Prelúdios, Salvador, v. 4, n.4, p. 29-45 set./mar. 2015 / 39 com o laboratório Dr. R. com Drª. M. com o pessoal do INCOR como agente já colabora, montar mais uma série [...] O caminho da independência ainda é descrito por outra pesquisadora que deseja construir seu próprio espaço: C: [...]acho que é hoje o que tá conseguindo fazer com que eu caminhe, mas eu tenho total convicção que o caminho da independência é o melhor [...] então eu pensei eu preciso ter um espaço meu, eu até agora fiz pesquisas na casa dos outros, e eu preciso ter a minha casa, mesmo que seja pequena, mesmo que seja simples, eu preciso começar aqui, então, o que eu fiz, desde que eu cheguei aqui, comecei a abrir os editais[...] Todos os relatos descrevem uma situação em que apenas a criação de um espaço próprio pode realizar um pesquisador profissionalmente. Antes de ser um líder de laboratório, um pesquisador, dentro da organização exposta aqui, parece ser apenas um elemento no arranjo do laboratório. Depois que é feita a transição, o laboratório passa a ser o próprio arranjo. Tornar-se o chefe do laboratório parece ser o que completa um pesquisador. (KNORR-CETINA, 1999) Ao mesmo tempo, como sugere Andrew Pickering (1995), a autonomia pode ser descrita como uma forma de não ingressar numa lógica de big Science, mantendo-se em pequenos espaços de construção de fatos. Mesmo com as características apontadas pelos pesquisadores no sentido de buscar um espaço em que possam liderar, essa autonomia está ligada a habilidade de desenvolver resultados que produzam diferença na área. Esta mudança de um pesquisador centrado em seus projetos individuais para um pesquisador que mobiliza não apenas objetos como também uma rede de relações sociais fora do laboratório é evidenciado num relato do trabalho do líder feito por um pesquisador no laboratório trabalhado: R: Dr. R. tem se afastado de algumas coisas de docência etc. para meio que fazer o despacho, vamos dizer, despachar as prioridades do laboratório em termos burocráticos, em termos de angariamento de recursos e etc [...] Este líder já não realiza o trabalho de bancada e através da sumarização, explicação e definição do trabalho do laboratório para o público externo. Constrói e amplia redes, relações pessoais, obtendo financiamento e reconhecimento para o laboratório. (KNORR-CETINA, 1999) Seus atributos passam a ser o de revisar o campo de pesquisa, escrever parte de artigos, organizar informações, conversar com outros pesquisadores e sustentar a rede que se estende 40 / Prelúdios, Salvador, v. 4, n.4, p. 29-45 set./mar. 2015 laboratório afora. (LATOUR, 2005; LAW, 1992) Entretanto, o líder ainda tem de sustentar laços com o trabalho do laboratório, pois este trabalho está sendo continuamente observado e avaliado e os interesses dos pesquisadores e do líder precisam a todo o momento ser negociados. (KNORR-CETINA, 1999) Em muitos arranjos, essa ligação é feita por pesquisadores intermediários, que assumem as orientações, as mediações diretas entre a bancada e os projetos individuais com a sumarização e divulgação fora do laboratório. A COOPERAÇÃO NO LABORATÓRIO Esta segunda seção tratará de aspectos relacionados à cooperação no laboratório. Segundo Knorr-Cetina (1999), em laboratórios de biologia molecular, o que tende a unir os pesquisadores como unidades individuais, é o mesmo que os divide, criam tensões, conflitos e resistências. A cooperação surge como uma tentativa de retribuição de serviços prestados em diversos momentos da carreira do pesquisador em suas trajetórias; dos produtos obtidos por certos experimentos que só são realizados em laboratórios devidamente equipados; do uso instrumentos que requerem certas habilidades adquiridas com a trajetória e através da troca de informações que circulam pela rede a qual o pesquisador circula. Ainda que haja cooperação entre os pesquisadores, como evidenciaremos nos relatos a seguir, encontramos relações conflitantes devido ao uso coletivo do espaço do laboratório. Ao mesmo tempo em que fala do uso coletivo do espaço, a pesquisadora, mencionada abaixo, se refere às tensões frequentes que ocorrem no laboratório por conta de uma organização com hierarquia diluída, caso diferente do que acontece nos laboratórios industriais, em que as hierarquias se desdobram de maneira mais rígida: RE: [...] aqui no centro e uma coisa cada um, eu tenho que lavar o que eu sujo no laboratório, eu tenho que lavar as minhas coisas, então é totalmente diferente a forma como funciona né [...] as pessoas tão o tempo todo muito discutindo, e um discute com outro, um discute com o orientador do outro, por que não tem muito essa hierarquia né, então lá [na indústria] é tudo feito pra que as coisas ocorram na maior produtividade e no menor estresse interpessoal possível [...] Muitas questões relacionadas à cooperação dizem respeito ao uso dos equipamentos e troca de informações entre os pesquisadores do laboratório. Prelúdios, Salvador, v. 4, n.4, p. 29-45 set./mar. 2015 / 41 No trecho abaixo, a cooperação acontece ao nível de aprendizados sobre as técnicas utilizadas no laboratório. M: [...] então a gente tá trabalhando juntos, R. e eu acho que é a pessoa que mais sabe aqui dentro do laboratório, ele é o braço direito de Dr. R. e ele sabe todas as técnicas que são utilizadas, então ele que está me treinando, apesar dele ainda não ter o doutorado, mas o nível dele tá muito além do título que ele ainda não pegou, por falta do prazo, de defesa de tese, é só uma questão burocrática, mas ele sabe, e muito [...] A cooperação pode ocorrer não apenas ao nível interno do laboratório, mas estender as suas cooperações para outros laboratórios. Este argumento está presente em algumas entrevistas em que a transferência de pesquisadores para outro acaba gerando uma rede de colaboração entre os laboratórios. Frequentemente, esta cooperação acontece a partir de trocas de materiais, quando há um impedimento da burocracia na compra dos mesmos, ou, na escrita de artigos, ou no uso de alguns equipamentos específicos: M: [...] a colaboração assim, a gente precisa de alguma coisa, tem alguma dúvida eles também, eles também fixam metas lá, eles querem mandar camundongos pra gente examinar aqui, então, às vezes, a gente precisa de alguma coisa em biologia molecular que eles tem lá, ou na hora de escrever o artigo, eu escrevo uma parte, eles escreve outra, a gente faz essas colaborações em pesquisa [...] Este tipo de colaboração entre laboratórios pressupõe que ambos estejam preparados para suprir as necessidades do outro. Estes serviços comumente parecem acontecer numa lógica da troca. Isto porque a cooperação nestes laboratórios surge da complexidade de manutenção da pesquisa e da competição, o que faz acelerar os passos da pesquisa. (KNORR-CETINA, 1999) Muitos pesquisadores entrevistados demonstraram a necessidade de uma relativa rapidez nas publicações dos resultados obtidos nos experimentos, pelo elevado grau de competição. Há ainda três questões que precisamos discutir. A cooperação implica no entendimento que os pesquisadores têm de que o produto dos seus projetos não é individual, mesmo que o laboratório esteja organizado a partir de projetos individuais. Estes produtos são frequentemente ações coletivas no interior do laboratório, em que nem todas as etapas de experimentos são realizadas pelo pesquisador. O segundo ponto é que as largas unidades criadas a partir de atividades individuais tendem a tornar-se individualizadas através da figura do líder. A função do líder, como mostra Knorr-Cetina (1999), é a de representar o laborató- 42 / Prelúdios, Salvador, v. 4, n.4, p. 29-45 set./mar. 2015 rio. A terceira questão é que a individualização do líder é construída em parte pela invisibilidade do suporte da pesquisa no laboratório. No laboratório estudado, enquanto o líder realiza as atividades externas ao laboratório, outra pesquisadora dá suporte internamente: R: ... Sempre [quem orientou] foi Dr. R, agora ultimamente, Dr.ª M. Dr R. como tem essa responsabilidade com um monte de coisa a mais ele não estava podendo dá tempo, sempre foi Dr. R. no papel e sempre Dr.ª M. no laboratório, que é quem fica geralmente a maior parte do tempo no laboratório... Ocupando posição de confiança, esta pesquisadora faz a mediação entre as rotinas nas bancadas e as rotinas de fora da bancada. Ainda movimenta-se com frequência pelo laboratório a partir das orientações, mas já ocupa uma posição de articulação entre os diferentes inputs e outputs que configuram o trabalho no laboratório. Este aspecto a coloca numa zona de tradução entre os andamentos dos experimentos e os aspectos mais contingenciais que são vividos fora do laboratório, sobretudo pelo líder, que reúne uma agenda considerável de rotinas fora dos muros e dos limites do laboratório. CONCLUINDO ORGANIZAÇÃO E COOPERAÇÃO Procurando entender a maneira como o laboratório se organiza, em torno de projetos individuais, e como a questão da cooperação acontece no laboratório, apresentamos alguns relatos de pesquisadores que trabalham num laboratório em Salvador. A organização do laboratório centra-se muito nos projetos que são desenvolvidos pelos pesquisadores e não pode ser entendida se não for considerada essa questão. Ao passo que formam unidades individuais, estes projetos são articulados em torno da presença de um líder, através do qual as pesquisas ganham uma dimensão de um laboratório. Quando o chefe do laboratório fala em presença de outros públicos, sua referência é sempre a uma lista de atividades que o laboratório desenvolve. Os projetos individuais são deslocados para uma perspectiva que os coloca em termos da força que o laboratório possui a partir de seus resultados. (KNORR-CETINA, 1999) O trabalho do líder parece ser o do cientista empresário descrito por Law. Seu trabalho é o de associar um conjunto heterogêneo de elementos diversos em seu laboratório. Estes elementos podem vir dos arranjos no interior do próprio laboratório, através da maneira como são, junto aos processos, ordenados, ganhando uma nova forma. Podem vir também de redes exteriores diretamente associadas Prelúdios, Salvador, v. 4, n.4, p. 29-45 set./mar. 2015 / 43 ao trabalho do líder, como no caso de pesquisadores que desenvolvem determinadas habilidades e que podem ser importantes peças no laboratório (LAW, [s.d]). Sua face pública é destacada pelas conexões que estabelece com outros laboratórios. Obter créditos com as agências de financiamento e com diversos atores que conformam a rede do laboratório, mantenha o público externo informado sobre o trabalho desenvolvido no laboratório, concedendo entrevistas. O laboratório apresenta esta organização peculiar centrada nos projetos individuais e articulada pela presença de um chefe, que ao mesmo tempo é a face externa do laboratório e mediador de conflitos e cooperação no interior do laboratório. Ao nível da cooperação, o laboratório estende suas relações a outros, além da cooperação interna. Esta acontece no uso de equipamentos, treinamento e tradução, ao nível dos estudantes, de técnicas e procedimentos utilizados no laboratório, o uso de substâncias produzidas por outro pesquisador, entre outras. A nível externo, a troca de materiais e a cooperação na produção de artigos se dão devido as articulações que o chefe e outros pesquisadores conseguem estabelecer com outros ambientes, seja laboratório ou indústria. As questões colocadas aqui direcionam uma perspectiva do laboratório a partir de suas práticas. Neste sentido, procura-se mais tratar dos aspectos que demonstram como os arranjos espaciais e pessoais configuram uma dinâmica e produção local, a partir do que é possível fazer com a atração de novos talentos para a pesquisa no laboratório. Este parece sobreviver a partir da dinâmica de produção de fatos que produzam diferenças no mundo, atendendo também aos interesses coletivos, empresariais e também individuais. Não parece ser uma realidade nas ciências sociais um jovem sociólogo desejar um Prêmio Nobel, mas configura-se no horizonte de muitos pesquisadores, ainda na iniciação científica, que trabalham em áreas de inovação como as células-tronco, nas quais as controvérsias estão em pleno vapor e os fatos pouco estabilizados. Referências como essas, captamos em diversos momentos que tivemos contato indireto com os pesquisadores no campo, como em uma interação ao final de reuniões científicas de discussão dos resultados, em que sem muita dificuldade, comentavam entre si possíveis consequências de suas pesquisas. COOPERATION AND ORGANIZATION IN A LABORATORY CELL THERAPY: NOTES ON A SOCIOLOGY OF SCIENTIFIC PRACTICE. Abstract In this article the aims to analyze the light of the social studies of science and technology (STS) the organization of a laboratory and how it gives the cooperation among resear- 44 / Prelúdios, Salvador, v. 4, n.4, p. 29-45 set./mar. 2015 chers associated with it. In addiction, empirical evidence run four interviews conducted with researchers developing research with stem cells in a laboratory cell therapy. The laboratory has a particular structure because the same time that is organized in terms of individual projects associated researchers, it can be seen as an integrated unit thanks to the connection maintained by all with the leader of the laboratory and the possibility of cooperation between laboratory scientists. Finally it can be perceived that much of the organization of the laboratory focuses on its leader, emphasizing its coordinating role, as well as the difficulty of cooperation relations among researchers. Keywords: stem-cells; cooperation; organization; sociology of Science; anthropology of Science. Referências BLOOR, D. Conhecimento e imaginário social. São Paulo: Ed. UNESP, 2009. BOURDIEU, P. O campo científico. In: ORTIZ, R. (Org.). Bourdieu: Sociologia. São Paulo: Ática, 1983. (Coleção Grandes Cientistas Sociais) CALLON, M. 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Produzindo em um laboratório: uma análise sociotécnica de suas práticas de produção de ordem. 2001. Tese (Doutorado) – Programa de Pós-Graduação em engenharia de produção, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2001. 46 / Prelúdios, Salvador, v. 4, n.4, p. 29-45 set./mar. 2015 Fernando Larrea Maldonado1 CLASSES SOCIAIS NO PAPEL, CLASSES MOBILIZADAS E LUTAS PELA CLASSIFICAÇÃO EM PIERRE BOURDIEU: UMA DISCUSSÃO EM DIÁLOGO COM O FAZER-SE DA CLASSE DE E. P. THOMPSON Resumo O presente artigo indaga em torno à conceição das classes sociais no pensamento de Pierre Bourdieu em estreita vinculação com as noções chaves de seu arcabouço teórico: espaço social, campo, habitus, tipos de capital. Apresenta se a forma como Bourdieu concebe o espaço social para derivar nele recortes entre grupos de agentes que partilham similares condições de existência, condicionamentos e propriedades, configurando o que Bourdieu denomina de “classes no papel”. Posteriormente, se aborda a perspectiva construtivista de Bourdieu em sua conceição das “classes reais”, constituídas através de processos simbólicos e políticos, colocando-a em diálogo com o “fazer-se” da classe de E. P. Thompson. Finalmente, se destacam alguns claro-escuros, na visão das classes de Bourdieu, evidenciando algumas de suas potencialidades e limites. Palavras-chaves: teoria social, classes sociais, lutas simbólicas, representação. Pois a classe não é nem constatada, nem decretada; assim como o fatum do aparelho capitalista, assim como a revolução, antes de ser pensada ela é vivida a título de presença obcecante, de possibilidade, de enigma e de mito.” (Maurice Merleau-Ponty)2 INTRODUÇÃO Em vários de seus trabalhos, Pierre Bourdieu aborda e desenvolve a discussão sobre as classes sociais e sua definição. Em certo sentido, esta discus1 Mestre em Ciências Sociais pela Facultad Latinoamericana de Ciencias Sociales (FLACSO, Quito - Equador); Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal da Bahia; email: [email protected] 2 Merleau-Ponty, (1999: 598). Prelúdios, Salvador, v. 4, n.4, p. 47-64 set./mar. 2015 / 47 são ultrapassa todo o prolífico itinerário da produção intelectual de Bourdieu, desde seus primeiros trabalhos sobre Argélia no final dos anos 50 e início dos 60, do século passado,3 continuando com A distinção4 que se situa no centro de sua produção, até suas últimas pesquisas e estudos desenvolvidos na França, nos anos 90, momento particularmente relevante para um Bourdieu engajado politicamente, que acompanha as lutas de sindicatos e movimentos sociais contra o neoliberalismo.5 Bourdieu questiona uma compreensão meramente econômica das classes sociais, ao mesmo tempo em que rejeita uma visão substancialista ou essencialista em sua definição; assim, coloca a discussão dentro de seu próprio arcabouço teórico, isto é, em uma perspectiva relacional e vinculada estreitamente as noções de espaço social, campo, capital e habitus. A conceição das classes, em Bourdieu, desenvolve-se consequentemente nessa fina e instável faixa em que decorre sua teoria da prática, na qual busca conciliar ou superar a antinomia entre objetivismo e subjetivismo, entre estrutura e ação. Pode-se dizer que em sua compreensão das classes sociais põe-se em tensão todo seu arcabouço teórico metodológico, mostrando algumas de suas potencialidades e possibilidades para a análise concreta de distintas realidades empíricas, como também expressando seus limites e fissuras. O presente artigo indaga algumas das aristas e dos claro-escuros que a perspectiva de Bourdieu, sobre as classes sociais, traz dentro de sua abordagem teórica, com seus conceitos centrais, sintetizados nas noções de espaço social, campo, habitus e tipos de capital. Após uma apresentação dos elementos centrais da conceição bourdieusiana das classes sociais e de suas críticas e rupturas com uma tradição marxista mais ortodoxa, desenvolve-se a discussão sobre as perspectivas que abrem suas potencialidades e limites, colocando-as em diálogo com a visão sustentada por E. P. Thompson, em seus estudos históricos e suas reflexões teóricas sobre as classes sociais; este último autor partilha com Bourdieu uma abordagem construtivista crítica, mas que se mantém dentro de uma perspectiva marxista. 3 Entre os trabalhos de Bourdieu, nesta etapa, deve-se mencionar especialmente Trabalho e Trabalhadores na Argélia, publicado em 1963, no qual o autor desenvolve um esboço para a descrição das classes sociais na sociedade argelina. Ver Baranger, (2012). 4 A distinção: critica social do julgamento (BOURDIEU, 2008a), publicada em francês, em 1979, considerada uma obra central na carreira intelectual de Bourdieu. Posteriormente, o autor publicará, em 1984, o artigo “Espaço Social e gênese das classes”, onde apresenta uma síntese de seu posicionamento teórico em torno às classes em forma mais acabada, incorporando todas as implicâncias já pressentes em A distinção (BARANGER, 2012). Este artigo está publicado em português como um capítulo do livro O poder simbólico. (BOURDIEU, 2010) 5 Nesta fase, destaca-se a pesquisa coordenada por Bourdieu chamada A Miséria do Mundo, sobre o sofrimento socialmente induzido na França contemporânea, publicada originalmente em 1993. (BOURDIEU, 2003) Sobre esta fase de engajamento político de Bourdieu, ver Braga, (2011); também Bensaid, (2002). 48 / Prelúdios, Salvador, v. 4, n.4, p. 47-64 set./mar. 2015 Esta discussão apoia-se, também, em uma série de reflexões e contribuições de distintos autores, sobre o pensamento de Bourdieu, entre os que se destacam aqueles que se inserem dentro do que Braga define como um “marxismo aberto”, isto é, um tipo de marxismo que se caracteriza por: a) uma compreensão da história como um processo “aberto” (afastando-se de uma visão teleológica); e b) que entende que a obra de Marx representa um projeto intelectual “aberto” a permanente atualização e fundamentalmente crítico. (BRAGA, 2011, p. 62) Estes autores têm atualizado, nos últimos anos, o diálogo entre Marx, os marxismos e as propostas teórico-metodológicas de Bourdieu, destacando espaços de confluência e de diferenciação6. ESPAÇO SOCIAL E A CONSTRUÇÃO DE CLASSES: AS CLASSES NO PAPEL Para Bourdieu, o mundo social pode ser representado desde uma perspectiva sociológica como um espaço multidimensional, construído empiricamente, sobre a base de um conjunto de fatores ou propriedades que sustentam as diferenças observadas, em um universo social determinado. Estas propriedades são as distintas “formas de capital” que estão ativas nesse universo e que são capazes de conferir poder ou força aos agentes que as possuem. (BOURDIEU, 2001, p. 105)7 Tomando como referência concreta a sociedade francesa contemporânea, Bourdieu distingue quatro formas de capital como as fundamentais: o capital econômico, em suas distintas espécies; o capital cultural, também em seus diversos tipos; e duas formas de capital adicionais fortemente relacionadas com as duas primeiras, o capital social, baseado em conexões e pertença grupal; e o capital simbólico, que é a forma adotada por os outros tipos de capital, uma vez percebidos e reconhecidos como legítimos (2001, p. 106). Consequentemente, os agentes se distribuem no espaço social ocupando distintas posições segundo estes princípios de diferenciação, isto é, segundo a distribuição destas formas de capital. Bourdieu salienta que a noção de espaço “contém em si o principio de apreensão relacional do mundo social” pelo qual contribui para romper com a tendência da sociologia de pensar o mundo social de maneira substancialista. 6 Nesta direção, pode-se mencionar o livro de Michael Burawoy escrito em colaboração com Karl Von Holdt, chamado Conversations with Bourdieu: The Johannesburg Moment. (BURAWOY; VON HOLDT, 2012) Uma versão prévia dos textos de Burawoy foi publicada no Brasil, sob a organização de Ruy Braga. (BURAWOY, 2010) Ver também (BRAGA, 2011; CORCUFF, 2009; CORCUFF, 2002; BENSAID, 2002). 7 Ver também (BOURDIEU, 2010; BOURDIEU, 2008b). Prelúdios, Salvador, v. 4, n.4, p. 47-64 set./mar. 2015 / 49 A realidade que a ideia de espaço social designa reside na “exterioridade mutua dos elementos que a compõem” e os agentes diretamente visíveis nesse espaço, sejam eles indivíduos ou grupos, “existem e subsistem na e pela diferença”, ao ocupar “posições relativas em um espaço de relações que, ainda que invisível e sempre difícil de expressar empiricamente, é a realidade mais real [...] e o princípio real dos comportamentos dos indivíduos e dos grupos”. (BOURDIEU, 2008b, p. 48-49) Nesta direção é que Baranger (2012, p. 121) destaca que a preeminência da noção de espaço social no pensamento de Bourdieu se afirma em um sentido ontológico (o espaço social é real), epistemológico (é possível conhecer este espaço) e metodológico (o primeiro é construir o espaço). Consequentemente, para Bourdieu (2008b, p 49-50), dado que todas as sociedades se apresentam como espaços sociais, como “estruturas de diferenças”, o papel da ciência social é, precisamente, “construir e descobrir o princípio de diferenciação, que permite reengendrar teoricamente o espaço social empiricamente observado”, isto é, o princípio da estrutura de distribuição dos tipos de capital eficientes no universo social considerado, que variam de acordo aos lugares e momentos. Utilizando uma variedade de métodos qualitativos e quantitativos, é em A distinção (2008a) que Bourdieu desenvolve e põe à prova esta conceição do espaço social em “uma pesquisa inseparavelmente teórica e empírica” referida à sociedade francesa nos anos 70. (BOURDIEU, 2008b, p. 14) Nesta pesquisa, os agentes são distribuídos na totalidade do espaço social em torno de três dimensões: na primeira dimensão, segundo o volume global do capital (capital econômico, capital cultural e capital social) que possuem; na segunda dimensão, em função da estrutura do seu capital (peso relativo dos diversos tipos de capital no volume global); e na terceira dimensão, segundo sua trajetória, isto é, sua evolução no tempo (trajetória passada e seu potencial no espaço social), do volume e composição do seu capital. (BOURDIEU, 2008a, p. 95-161) A partir desta distribuição dos agentes no conjunto do espaço assim construído, é possível realizar recortes em áreas especificas deste espaço, onde se agrupam os agentes que partilham posições próximas entre si. Estes recortes representam, então, “classes lógicas”, ou “classes no papel”, construídas analiticamente desde uma perspectiva sociológica, nas quais os indivíduos agrupados em uma mesma classe caracterizam-se por manter a maior semelhança possível no maior número de aspectos. Ao partilhar condições objetivas parecidas, estes agentes estão sujeitos aos mesmos fatores condicionantes, consequentemente têm todas as possibilidades de ter disposições e interesses similares e de produ- 50 / Prelúdios, Salvador, v. 4, n.4, p. 47-64 set./mar. 2015 zirem práticas, representações e tomadas de posição do mesmo tipo, isto é, de ter os mesmos habitus. (BOURDIEU, 2001) A noção de habitus8 é central no arcabouço teórico de Bourdieu, porque permite a conexão entre as estruturas objetivas do espaço social as condições concretas de existência dos indivíduos e a ação e práticas concretas dos agentes no mundo social. Produto, ele mesmo, da interiorização das estruturas, de sua inscrição nos corpos. O habitus é o princípio gerador e organizador das práticas individuais e coletivas, configurando o conjunto de respostas possíveis e adequadas dos agentes, em situações muito diversas: “[...] sendo o produto de uma classe determinada de regularidades objetivas, o habitus tende a engendrar todas as condutas ‘razoáveis’, do ‘senso comum’, que são possíveis nos limites dessas regularidades”, condutas que podem ser sancionadas positivamente porque estão objetivamente ajustadas à lógica de um campo social dado; ao mesmo tempo, tende a “excluir ‘sem violência, sem arte, sem argumento’ todas ‘as loucuras’ (‘isso não é para nós’)”, todas as condutas que podem ser negativamente sancionadas por ser incompatíveis com as condições objetivas. (BOURDIEU, 2009, p. 92) Mas ao mesmo tempo em que os habitus organizam as práticas e sua percepção, as práticas resultantes apresentam-se como “configurações sistemáticas de propriedades”, que exprimem as diferenças objetivamente existentes e as “distâncias” entre as classes no espaço social, e que ao serem percebidas pelos agentes dotados dos princípios de percepção e apreciação necessários para identificá-las e interpretá-las, funcionam como estilos de vida (BOURDIEU, 2008a p. 164), constituindo assim diferenças simbólicas e signos distintivos9. Como salienta Bourdieu: “Assim como as posições das quais são o produto, os habitus são diferenciados, mas são também diferenciadores, distintos, distinguidos, eles são também operadores de distinções [...]”. Os habitus são princípios geradores de práticas distintas e distintivas – o que o operário come, e, sobretudo sua maneira de comer, o esporte que pratica e sua maneira de praticá-lo, suas opiniões políticas e sua maneira de expressá-las diferem sistematicamente do consumo ou das atividades correspondentes do empresário industrial; mas são também esquemas classificatórios, princípios de classificação, princípios de visão e de divisão e gostos diferentes. (BOURDIEU, 2008, p. 22) 8 Para uma compreensão mais detalhada das noções de habitus e de campo social ver Bourdieu, 2009. 9 Em A Distinção, Bourdieu analisa precisamente os gostos e os estilos de vida como “marcadores” simbólicos privilegiados da “classe”. “O gosto classifica aquele que procede à classificação: os sujeitos sociais distinguemse pelas distinções que eles operam entre o belo e o feio, o distinto e o vulgar; por seu intermédio, exprime-se ou traduz-se a posição desses sujeitos nas classificações objetivas”. (BOURDIEU, 2008a, p. 13) Prelúdios, Salvador, v. 4, n.4, p. 47-64 set./mar. 2015 / 51 Bourdieu enfatiza a importância dos processos de classificação (classements) que acontecem na existência corrente, no dia a dia, e que realizam os próprios agentes no universo social. Os habitus constituem os princípios desde os quais se produzem permanentemente na prática estas classificações, a partir das posições ocupadas pelos agentes no espaço social (posições segundo as quais eles são classificados e desde as quais eles classificam aos outros), como parte das estratégias postas em jogo por eles para mantê-las ou modificá-las, pois estas posições para Bourdieu (2008a, p. 229) são “inseparavelmente localizações estratégicas, lugares a defender e conquistar em um campo de lutas”. Para Bourdieu (2008b), o espaço social global pode ser concebido ao mesmo tempo como um campo de forças cuja necessidade impõe-se aos agentes nele envolvidos e como um campo de lutas, no qual os agentes se enfrentam desde suas condições, contribuindo para a conservação ou para a transformação de sua estrutura. Aqui, evidencia-se no pensamento de Bourdieu a conceição agonística do mundo social,10 isto é, como produto permanente das lutas que nele operam. Ao mesmo tempo, aqui se fecha e concilia o circuito entre estrutura e ação, ao colocar em relação no seu sistema teórico “as posições sociais (conceito relacional), as disposições (habitus) e as tomadas de posição, as escolhas que os agentes fazem nos domínios mais diferentes da prática”. (BOURDIEU, 2008b, p. 18) O espaço social nas sociedades altamente diferenciadas, além de constituir ele mesmo um macro campo de forças e de lutas, está conformado, por sua vez, de uma pluralidade de campos sociais mais específicos, os quais constituem também “microcosmos sociais” relativamente autónomos11 (tais como o campo artístico, o campo científico, religioso, político, jurídico, econômico, etc.), dotados de uma lógica própria e que, igualmente, funcionam como espaços de posições sociais e estratégias dos agentes. Um campo social se caracteriza por ser, por um lado, um sistema de forças que se impõe ao conjunto de agentes envolvidos nele, independentemente da posição que ocupem e da percepção que tenham ou não das mesmas, mas por outro lado é, também, a arena de lutas destinadas a modificar ou conservar o estado das relações de força e a distribuição do capital específico sobre o qual este estado se baseia. (WACQUANT, 2001) Bourdieu (2009, p. 109) utiliza a metáfora de um jogo para ilustrar esta noção de campo social, isto é, “o espaço de jogo, as regras de jogo, o que está em jogo”, com a diferença que no caso dos campos sociais, ao ser resultado de um longo processo de autonomização, “não se entra no jogo mediante um ato de 10 Ver Waquant, 2001. 11 Ver Bourdieu e Wacquant, 1995: 63-78. Também Baranger, 2012. Baranger aborda em detalhe a discussão sobre o conceito de campo social no pensamento de Bourdieu, suas implicâncias e as críticas que tem recebido. 52 / Prelúdios, Salvador, v. 4, n.4, p. 47-64 set./mar. 2015 consciência, se nasce no jogo, com o jogo, e a relação de crença, de illusio,12 de investimento é tanto mais total, incondicional, quanto ela se ignora como tal”. Com o conjunto de elementos, descritos neste rápido percurso pelos aspectos centrais do arcabouço teórico de Bourdieu, podemos resumir seus argumentos em torno das “classes teóricas” ou “classes no papel”, derivadas de sua concepção do espaço social. Como foi dito, as classes construídas analiticamente, baseadas no conhecimento das posições e de seu recorte no espaço social, podem ser caracterizadas como o conjunto agregado de agentes que, pelo fato de ocupar posições similares no espaço social (isto é na distribuição de poderes ou tipos de capital), estão sujeitos a similares condições de existência e fatores condicionantes e, como resultado, estão dotados de disposições similares que os levam a desenvolver práticas e tomadas de posição semelhantes. (BOURDIEU, 2010, p. 136) Estas “classes no papel”, para Bourdieu, têm existência teórica, mas não devem ser confundidas com as classes reais, com as classes atuantes e mobilizadas para a luta. Mesmo que estejam bem fundamentadas e que possam proporcionar explicações mais completas da realidade social, estas “classes lógicas” devem ser consideradas apenas como “classes prováveis” cujos componentes podem se aproximar, mobilizar e constituir grupos, sobre a base de suas semelhanças de interesses e disposições, mas não estão realmente mobilizados. (BOURDIEU, 2001, p. 112) AS CLASSES MOBILIZADAS E AS LUTAS DE CLASSIFICAÇÕES: O FAZER-SE DA CLASSE Para Bourdieu (2001, p. 111), a tradição marxista comete a falácia teórica de equiparar as “classes construídas” que existem somente no papel com as classes reais, motivadas pela consciência da identidade de sua condição e interesses, mas também constituídas em forma de grupos mobilizados, confundindo assim “as coisas da lógica com a lógica das coisas”.13 Bourdieu levanta esta crítica à concepção marxista das classes por considerar que ela conduz, seja à transposição mecânica sem mediar processo nenhum entre o grupo teórico derivado analiticamente da estrutura e o grupo prático, seja para estabelecer a passagem 12 Bourdieu usa a noção de illusio para substituir a noção de interesse e evitar a confusão com o senso dado a este conceito pela teoria utilitarista. Para Bourdieu a noção de “illusio” diz respeito ao fato de estar envolvido, de ser prendido no jogo e pelo jogo. Estar interessado quer dizer aceitar que o que acontece em um jogo social determinado tem senso, que as apostas são importantes e dignas de serem empreendidas. (BOURDIEU; WACQUANT, 1995, p. 80) 13 Bourdieu usa esta frase de Marx com a qual ele criticava Hegel. Ver Marx, (2010). Prelúdios, Salvador, v. 4, n.4, p. 47-64 set./mar. 2015 / 53 desde a “classe em si” definida desde um conjunto de fatores objetivos, para a “classe para si” fundada em fatores subjetivos; passagem “celebrada como uma verdadeira promoção ontológica” decorrente da “tomada de consciência” como o efeito da realização da verdade objetiva sob a “direção esclarecida do partido”. (BOURDIEU, 2010, p. 138) O alvo central desta crítica de Bourdieu concentra-se na substancialização ou teleologização da classe assim como na “misteriosa” passagem de um momento para o outro, atribuídas a “uma tradição marxista indeterminada”.14 (BRAGA, 2011) Bourdieu (2001) considera que a construção de “uma classe sobre o papel”, mesmo que esteja bem fundamentada na realidade e apoiada nos princípios subjacentes das práticas em um universo social determinado, não se impõe de forma evidente para os agentes atuantes no mundo social, nem prevalece automaticamente nas suas percepções do mesmo. As representações individuais e coletivas que os agentes fazem do mundo social, em suas práticas cotidianas, podem estar referidas a outros princípios de classificação ou categorias, totalmente diferentes daquelas segundo as quais são construídas as classes teóricas, por exemplo, critérios étnicos, raciais, nacionais, religiosos ou estabelecidos em função de divisões ocupacionais, locais ou comunais. Assim, ao equiparar as classes construídas desde uma perspectiva analítica com os grupos reais, por uma parte, prescinde-se do processo e trabalho político necessário para impor um princípio de visão e divisão do mundo social, e, por outro, desconsidera-se as classificações, continuamente produzidas pelos agentes na sua existência corrente, como parte das lutas simbólicas, para manter ou modificar sua posição objetiva no espaço social. (BOURDIEU, 2010) Como acrescenta Bourdieu: Não se passa da classe-no-papel à classe “real” a não ser por um trabalho político de mobilização: a classe “real”, se é que ela alguma vez existiu “realmente”, é apenas a classe realizada, isto é, mobilizada, resultado da luta de classificações como luta propriamente simbólica (e política) para impor uma visão do mundo social, ou, melhor, uma maneira de construí-la, na percepção e na realidade, e de construir as classes segundo as quais ele pode ser recortado. (BOURDIEU, 2008b, p. 26) 14 Evidentemente as críticas de Bourdieu à teoria marxista referem-se a um “marxismo ‘oficial’ como, se não o único, ao menos o mais autêntico representante da tradição marxista” (Braga, 2011: 68). Além da crítica à substancialização da classe, nas perspectivas marxistas mais ortodoxas, Bourdieu também acrescenta sua ruptura com o economismo, que reduz o espaço social que tem um caráter multidimensional ao campo econômico ao definir as classes em função unicamente da posição nas relações de produção e, também, a crítica ao objetivismo, que leva a ignorar a importância das lutas simbólicas nos distintos campos sociais, “nas quais está em jogo a própria representação de mundo social” e a hierarquia no seio de cada um dos campos e entre os diferentes campos” (BOURDIEU, 2010, p. 133). 54 / Prelúdios, Salvador, v. 4, n.4, p. 47-64 set./mar. 2015 Nesta direção, Bourdieu destaca a importância das lutas de classificações na mesma definição das classes e suas fronteiras, lutas simbólicas que constituem “uma dimensão esquecida da luta de classes”. (BOURDIEU, 2008a, p. 447) O autor relembra que a própria existência ou inexistência de classes é uma das mais importantes apostas na batalha política e que o processo de produção real de classes, isto é, constituídas e expressadas politicamente por órgãos de representação, por símbolos, acrônimos e demarcações, obedece a uma lógica específica de produção simbólica (BOURDIEU, 2001), lógica por meio da qual é possível tornarem público, fazerem existir em estado explícito, visível, dizível e, até mesmo, oficial a constituição de grupos.15 (BOURDIEU, 2010) Além do processo de produção simbólica das classes, Bourdieu também enfatiza o papel da representação no processo de produção política da classe, isto é, a presença e a atuação de porta-vozes autorizados para falar em nome da classe e para representá-la em distintos espaços públicos. Nessa direção, para este autor, uma classe (social, sexual, étnica) só existe realmente quando há agentes autorizados para falar e atuar oficialmente em seu lugar e em seu nome, exercendo um poder sobre aqueles que, reconhecendo neles o poder de falar e atuar em seu nome reconhecem-se, ao mesmo tempo, como membros dessa classe. (BOURDIEU, 2001) Estes porta-vozes, autorizados a falar em lugar de um grupo, põem sub-repticiamente a sua existência, instituem o grupo em questão, “pela operação de magia que é inerente a todo o ato de nomeação .”16 (BOURDIEU, 2010, p. 159) Em suma, para Bourdieu, a existência de uma classe real, uma classe mobilizada, só acontece quando se produz estes processos coletivos, de construção simbólica e produção política da classe que, por sua vez, implicam que ela tenha se dotado de representantes ou porta-vozes, de um aparelho institucional (sindicato, partido, etc.), de visões comuns do mundo social e, consequentemente, de discursos que as expressem. Nesta linha de pensamento, ao destacar que a constituição dos grupos ou das classes na realidade social obedece sempre a um complexo trabalho histórico de construção, Bourdieu assume um enfoque construtivista, próxi- 15 Para Bourdieu, nas sociedades modernas as batalhas e disputas coletivas propriamente políticas, travadas pelos agentes (quase sempre especialistas tais como os políticos) têm como último objetivo, precisamente, o poder de nomeação possuído pelo Estado (BOURDIEU, 2001, p. 123); trata-se do poder de “nomeação oficial”, que produz as classificações oficiais, como ato de imposição simbólica que tem a seu favor a força do coletivo, do consenso, do senso comum ao estar operada por um mandatário do Estado. (BOURDIEU, 2010, p. 146) 16 Bourdieu chama de “mistério do ministério” este processo de “magia social” mediante a qual uma pessoa se torna algo diferente do que ela é (um homem), para passar a representar um grupo de homens, um coletivo ou uma entidade, dotando ao mesmo tempo de existência a esse grupo ao falar por ele, a favor dele e no lugar dele. (BOURDIEU, 2010, p. 158) Prelúdios, Salvador, v. 4, n.4, p. 47-64 set./mar. 2015 / 55 mo ao de Edward P. Thompson. De fato, Bourdieu sublinha que o título do famoso trabalho de Thompson, The Making of the English Working Class,17 deveria ser tomado de forma bastante literal em relação à classe trabalhadora e ao processo político de construção, de fabricação desta classe, como a conhecemos hoje. (BOURDIEU, 2001,p. 114)18 Corcuff (2009) destaca que a abordagem construtivista sobre as classes sociais de Bourdieu beneficiou-se dos trabalhos de Thompson que ele conhecia bem e da pesquisa de Boltanski (colaborador de Bourdieu na época) sobre Les Cadres19 (engenheiros e executivos da classe dirigente), para ampliar os elementos de sociologia construtivista dos grupos sociais em uma perspectiva “post-marxista”, distinta à perspectiva de Thompson. Neste sentido é que uma leitura dos elementos comuns e das diferenças entre estes dois autores é relevante. Igual a Bourdieu, Thompson (2012) rejeitou uma posição meramente objetivista ou substancialista da classe. Em suas pesquisas e trabalhos históricos, confrontou diretamente diversas tradições intelectuais e políticas, que concebem a classe como uma noção estática, seja na sociologia positivista,20 seja naquelas tendências do pensamento marxista que derivam as classes de um modelo estático de relações de produção no capitalismo, deslocando para um segundo plano a atuação humana e o papel da classe trabalhadora, na construção da história.21 Contrariamente a estas posições, Thompson considera a classe enquanto “categoria histórica”, que se “deriva de processos sociais através do tempo”. (THOMPSON, 2012, p. 270)22 Neste sentido, sua abordagem não procede de um dualismo teórico que opõe a estrutura à história e, pelo contrário, considera a formação das classes como processos históricos concretos modelados pela lógica das determinações materiais. (MEIKSINS WOOD, 1983) Neste aspecto também coincide com o posicionamento de Bourdieu na sua tentativa de sair da antinomia comum nas ciências sociais entre o objetivismo e o subjetivismo.23 Assim, quando Thompson fala do “fazer-se” da classe, refere-se a “um processo ativo que se deve tanto à ação humana como aos condicionamentos” ou determinações objetivas. Na sua pesquisa histórica sobre o processo de for17 Ver Thompson, (2011). 18 Ver também Bourdieu (2008b, p. 29). 19 Refere-se ao trabalho de Boltanski chamado Les cadres. La formation d’un groupe social, París, Minuit, 1982. 20 Thompson refere-se, de forma geral, com este qualificativo àquelas tradições sociológicas que reduzem a discussão sobre as classes a medições quantitativas, por exemplo, número de assalariados, de burocratas, etc. 21 Ver Meiksins Wood (1983). Neste trabalho, a autora discute as principais proposições relacionadas à conceição, de Thompson, sobre a classe enquanto relação e processo, debatendo as críticas levantadas a Thompson, por diversos pensadores dentro do marxismo. 22 Ver também Thompson, 1984. 23 Ver Bourdieu, (2001, p. 2010). 56 / Prelúdios, Salvador, v. 4, n.4, p. 47-64 set./mar. 2015 mação da classe operária inglesa, entre 1780 e 1832, recupera concretamente o papel dos sujeitos como fazedores da história. Enfatiza a noção de classe como uma relação histórica que “escapa à análise” quando se tenta “imobilizá-la num dado momento e dissecar sua estrutura” e que “precisa estar sempre encarnada em pessoas e contextos reais”. Para Thompson (2011, p. 9-10), “a classe acontece quando alguns homens, como resultado de experiências comuns (herdadas ou partilhadas), sentem e articulam a identidade de seus interesses entre si, e contra outros homens cujos interesses diferem (e geralmente se opõem) dos seus”. Como se pode observar, esta noção da classe em termos relacionais e do fazer-se da classe como um processo político, simbólico e cultural ativo, encarnado e diretamente vinculado com os protagonistas das lutas sociais, e que consequentemente não se deriva automaticamente de uma estrutura, tem elementos comuns com a visão da “classe mobilizada” de Bourdieu. Embora Thompson tenha sido acusado de subjetivismo ou voluntarismo, por sua ênfase nos processos históricos concretos de formação da classe, em lugar de derivá-la mecanicamente de uma estrutura, ele não desconhece o peso que as determinações objetivas, concretizadas em uma dada inserção nas relações de produção, exercem sobre as pessoas, mas sua postura focaliza-se nas formas concretas como estas relações são experimentadas e vivenciadas. Em palavras do autor: A classe se delineia segundo o modo como homens e mulheres vivem suas relações de produção e segundo a experiência de suas situações determinadas, no interior do ‘conjunto de suas relações sociais’, com a cultura e as expectativas a eles transmitidas e com base no modo pelo qual se valeram dessas experiências em nível cultural. (THOMPSON, 2012, p. 277) A dimensão de antagonismo também é um elemento chave na concepção da classe de Thompson. Assim, este autor sublinha “o fato de a classe no seu sentido heurístico ser inseparável da noção de ‘luta de classes’” e considera que foi dada uma excessiva atenção, muitas vezes de maneira anti-histórica, à “classe”, e, muito pouca, pelo contrário, à “luta de classes”. (THOMPSON, 2012, p. 274) Neste sentido, como destaca Meiksins Wood (1983), o princípio que sustenta o trabalho histórico de Thompson é o de que as classes são feitas e se formam nos processos de luta e conflito, nos quais se identificam interesses divergentes e se estabelecem antagonistas. Como acrescenta Thompson: “as classes surgem porque homens e mulheres, em relações produtivas determinadas identificam seus interesses antagônicos e passam a lutar, a pensar e a valorar em termos de Prelúdios, Salvador, v. 4, n.4, p. 47-64 set./mar. 2015 / 57 classe: assim o processo de formação da classe é um processo de autoconfecção embora sob condições que são ‘dadas’”. (THOMPSON, 1981, p. 121) Em termos gerais, é possível observar alguma coincidência desta dimensão com o agonismo, presente na noção de campo social de Bourdieu, e na sua visão das lutas de classificações como parte dos processos permanentes de disputa simbólica, que contribuem para a definição das classes e suas fronteiras na sociedade. Mesmo assim, é preciso ter alguma cautela, pois na concepção bourdesiana das classes, os agentes que ocupam posições dominadas ou dominantes no interior do conjunto aberto de campos relativamente autônomos e que lutam constantemente por melhorar ou manter sua posição, não necessariamente constituem-se em grupos antagonistas.24 Para finalizar esta parte, é importante ressaltar a centralidade que o conceito de “experiência” tem na visão de Thompson sobre os processos concretos do “fazer-se da classe”. A “experiência” é concebida por este autor como o “termo médio necessário entre o ser social e a consciência social: é a experiência (muitas vezes a experiência de classe) que da cor à cultura, aos valores e ao pensamento”. (THOMPSON, 1981, p. 112) Enquanto mediação entre as determinações e relações objetivas dadas e a forma como estas relações são processadas concretamente pelos agentes, a noção de experiência permite a transmutação da estrutura em processo, a recuperação do substrato histórico no presente e a reinserção dos sujeitos na história: Os homens e mulheres também retornam como sujeitos, [...] não como sujeitos autônomos, “indivíduos livres”, mas como pessoas que experimentam suas situações e relações produtivas determinadas como necessidades e interesses e como antagonismos, e em seguida, ‘tratam’ essa experiência em sua consciência e sua cultura [...] das mais complexas maneiras e em seguida (muitas vezes, mas nem sempre, a través de estruturas de classe resultantes) agem, por sua vez, sobre sua situação determinada. (THOMPSON, 1981, p. 182) Além de algumas diferenças evidentes enquanto conceitos com um papel de mediação teórica, é possível identificar algumas similaridades entre a noção de “experiência” de Thompson e de habitus em Bourdieu, a primeira atuando como mediação entre o ser social e a consciência social, entre as determinações estruturais e a ação dos sujeitos na história e o segundo como mediação entre estrutura e ação, entre o campo social e as práticas concretas dos agentes. 24 Ver Bourdieu, 2010. 58 / Prelúdios, Salvador, v. 4, n.4, p. 47-64 set./mar. 2015 Mesmo assim – e sendo os dois conceitos bastante abertos no que diz respeito a suas propriedades e conteúdos específicos que puderem assumir em função de distintas realidades empíricas concretas a serem analisadas – a noção de experiência de Thompson pareceria permitir uma consideração mais adequada das contingências da história e a compreensão do papel dos sujeitos nas lutas e transformações sociais e culturais em processos históricos de maior alcance, enquanto que o conceito de habitus cobra força para compreender as relações de poder em um campo determinado e as diversas práticas e estratégias postas em jogo pelos agentes que derivam em diferenças simbólicas. COMENTÁRIO FINAL: OS CLARO-ESCUROS NA PERSPECTIVA DAS CLASSES DE BOURDIEU Após este percurso em torno da conceição das classes no papel, as lutas de classificações e as classes mobilizadas em Bourdieu, passando pelo “fazer-se da classe” de E. P. Thompson, gostaria de apontar, a modo de conclusão, algumas das contribuições e potencialidades da conceição das classes de Bourdieu, assim como vários elementos críticos e limites para a análise de diversas realidades empíricas. Evidentemente, uma das contribuições mais significativas da conceição das classes em Bourdieu é sua recusa a qualquer visão que essencialize as classes, desafiando-nos, permanentemente, a pensá-las e concebê-las em termos relacionais, seja desde uma perspectiva analítica ou teórica, seja em termos descritivos dos processos concretos que decorrem numa realidade determinada. Vinculada a esta visão relacional das classes sociais, sua alerta no que diz respeito a evitar e considerar como classes reais às classes resultantes das análises que os estudiosos fazem das estruturas objetivas presentes na sociedade num momento determinado, sem considerar os processos de produção simbólica e de construção política dos grupos, promove desde a perspectiva de um construtivismo crítico, uma compreensão mais processual e dinâmica das práticas sociais relativas à formação das classes. Um segundo aspecto no qual as contribuições da conceição das classes de Bourdieu são fundamentais refere-se ao tratamento integrado das distintas dimensões econômicas, sociais, políticas, culturais e simbólicas, que configuram as relações de poder presentes em distintos campos sociais e que marcam a produção de diferenças sociais. Na conceição Bourdieusiana das classes, os elementos simbólicos não são um mero reflexo das diferenças econômicas na Prelúdios, Salvador, v. 4, n.4, p. 47-64 set./mar. 2015 / 59 posição dos agentes, mas eles mesmos são, ao mesmo tempo, produtores e afirmadores das diferenças. A ênfase no trançado teórico de Bourdieu, nas lutas de classificações que fazem parte das lutas simbólicas, que acontecem continuamente na sociedade, abre uma interessante trilha de pesquisa teórica e empírica sobre os critérios de diferenciação operados pelos agentes, as linhas de classificação e divisão do mundo social e o papel de determinados marcadores simbólicos que configuram as diferenças e as relações de poder, orientando as práticas concretas dos agentes. Nesta direção, é possível compreender, por exemplo, como se produz, em termos concretos, o entrelaçamento de critérios de diferenciação simbólica, baseados em divisões sociais, étnicas, raciais ou de gênero que determinam formas de exclusão ou de discriminação, nas relações cotidianas de poder decorrentes das relações de força entre distintos setores sociais. Ao mesmo tempo, também, abre outro campo de visibilidade relacionado com o papel do Estado e das instituições nas lutas de classificação na definição de critérios classificatórios ou na legitimação daqueles colocados por determinados grupos. Corcuff (2009) ressalta outra contribuição da perspectiva analítica de Bourdieu que tem sido pouco debatida. Trata-se da forma como, por meio do conceito de habitus, se considera a singularidade individual constituída nas relações sociais (que vai além da visão do individualismo liberal), a partir da relação entre o habitus de classe e o habitus individual.25 Para Corcuff, esta relação26 entre as disposições coletivas decorrentes das experiências comuns que têm as pessoas de uma classe como consequência de ter vivenciado condicionamentos semelhantes (habitus de classe), e os habitus individuais, cujo princípio de diferenciação dos primeiros radica na “singularidade das trajetórias sociais”, abre a possibilidade e o desafio de pensar ao mesmo tempo o coletivo e o singular, isto é, o coletivo dentro do singular, onde cada pessoa exprimiria uma singularidade feita do coletivo e o habitus seria uma individuação irredutível de princípios e experiências coletivas, cuja combinação nos faz únicos. (Corcuff, 2009, p. 22) Nesta direção, a sociologia disposicional de Bourdieu contribuiria para uma leitura pluridimensional da individualidade.27 Na mesma linha, no que diz respeito à perspectiva dos campos sociais desenvolvida por Bourdieu, enquanto esferas autônomas e diferenciadas da vida social, nas quais se diversificam e tornam mais complexas as relações de poder e dominação entre os agentes que agem neles, Corcuff (2009) conside25 Sobre a diferença entre o habitus de classe e o habitus individual, ver Bourdieu, (2009). 26 Relação que Bourdieu qualifica como de “diversidade na homogeneidade”. (BOURDIEU, 2009, p. 100) 27 Para uma discussão mais detalhada de esta perspectiva de leitura da individualidade na sociologia clássica e contemporânea ver Corcuff, (2008). 60 / Prelúdios, Salvador, v. 4, n.4, p. 47-64 set./mar. 2015 ra que as noções de totalidade social e de “sistema” tendem a se diluir no pensamento de Bourdieu, diante a pluralidade dos campos com sua heterogeneidade e temporalidade próprias. Isso abriria outras formas de generalizar sem deixar de lado a pluralidade, desde uma ideia de globalidade plural mais afinada ao procedimento empírico-teórico das ciências sociais. Como acrescenta Braga (2011) também contribuiria para pensar a pluralidade dos modos concretos como se exerce a dominação no capitalismo. Mesmo assim, a perspectiva dos campos autônomos em relação à caracterização das classes sociais no pensamento de Bourdieu não deixa de ter algumas arestas problemáticas. Uma delas refere-se as escassas referências às conexões entre os distintos campos e sub-campos, reconhecendo apenas uma subordinação quanto a seu funcionamento e às suas transformações ao campo de produção econômica (Bourdieu, 2010), mas sem especificar como opera esta subordinação. Também não se estabelece com clareza a influencia recíproca que diversos campos podem exercer sobre os habitus de agentes, que por diversas circunstancias devem interagir ao mesmo tempo ou em sua trajetória de vida em distintos campos. De outro lado, no pensamento de Bourdieu, na definição da estrutura dos distintos campos sociais que determina as posições que ocupam os agentes, tem centralidade a distribuição dos distintos tipos de capital ou de poder. Como aponta Burawoy (2010),28 chama atenção a supressão da categoria de exploração na caracterização das relações entre as classes nas sociedades capitalistas. Junto com esta ausência, também não se aborda os aspectos relativos à produção (processo de trabalho, divisão do trabalho, relações produtivas) inclusive na análise que Bourdieu faz das estruturas de produção e consumo no mercado imobiliário.29 Outro elemento crítico resultante do arcabouço teórico de Bourdieu decorre da tendência dos habitus de interiorizar e de ajustarem-se à estrutura objetiva de relações de dominação e poder presentes nos campos, igual a tendência à naturalização e legitimação destas relações nas categorias de percepção do mundo social dos agentes, tornando os dominados em cúmplices de sua própria dominação. Esta visão, que contribui para compreender as dimensões simbólicas da dominação e seus mecanismos de legitimação, traz dificuldades para explicar os processos de mudança social. Ao mesmo tempo em que deixa pouco espaço para compreender os processos de resistência à dominação presentes nas práticas e na cultura dos dominados. Como aponta Corcuff (2009), 28 Ver também Burawoy e Von Holdt, (2011) 29 Burawoy (2010) refere-se ao trabalho de Bourdieu chamado “As estruturas sociais da economia”. Prelúdios, Salvador, v. 4, n.4, p. 47-64 set./mar. 2015 / 61 tende a encerrar as práticas populares e as práticas dos dominados dentro do olhar dos dominantes, por exemplo, percebendo somente carências na cultura popular em relação à cultura legítima. CLASSES ON PAPER, MOBILIZED CLASSES AND CLASSIFICATION STRUGLESS IN PIERRE BOURDIEU: A DISCUSSION IN DIALOGUE WITH THE MAKING OF THE CLASS OF E. P. THOMPSON Abstract This article inquires about the conception of social classes in the thought of Pierre Bourdieu, closely linked to the key notions of his theoretical framework: social space, field, habitus, and types of capital. It shows how Bourdieu sees the social space to derive from there cuts among groups of agents who share similar living conditions, constraints and properties, configuring Bourdieu calls classes on paper. Subsequently discusses the constructivist approach of Bourdieu’s conception of the real classes constituted through different symbolic and political processes, placing it in dialogue with the making of the class of E. P. Thompson. Finally, highlights some chiaroscuro in Bourdieu’s perspective of classes showing some of its potential and limits. Key words: Social theory, social classes, symbolic struggles, representation. Referências BARANGER, D. Epistemología e metodología en la obra de Pierre Bourdieu. 2. ed. Posadas: [s.n.], 2012. Primeira edição eletrônica. BENSAID, D. Pierre Bourdieu: l’intellectuel et le politique. Contretemps, Paris, n. 4, p.158-168, mayo 2002. BOURDIEU, P. Poder, derecho y clases sociales. 2. ed. Bilbao: Desclée de Brouwer, 2001. (Derechos humanos y desarrollo, 6). BOURDIEU, P. A miséria do mundo. Petrópolis: Vozes, 2003. BOURDIEU, P. A distinção: crítica social do julgamento. 5. ed. São Paulo: Edusp; Porto Alegre: Zouk, 2008a. BOURDIEU, P. 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Assim, inicialmente, introduziremos em linhas gerais o conceito de deliberação e em seguida o de participação, à luz da teoria democrática, estabelecendo relação destes com questões relacionadas à gestão de águas na Bahia. Por fim, apresentamos as nossas considerações finais. Palavras-chave: deliberação; comitês; participação. INTRODUÇÃO O sabiá no sertão Quando canta me comove Passa três meses cantando E sem cantar passa nove Porque tem a obrigação De só cantar quando chove. (Zé Bernardinho) Ao tratarmos neste artigo da temática “Condicionantes da Política Estadual de Recursos Hídricos: limites e possibilidades da efetividade das deliberações dos membros de Comitês de Bacias Hidrográficas” é prudente, de início, 1 Universidade Federal da Bahia – Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais. Mestranda em Ciências Sociais – e-mail: [email protected] Prelúdios, Salvador, v. 4, n.4, p. 65-78 set./mar. 2015 / 65 expormos a questão central da pesquisa em curso: de que forma as deliberações dos membros de Comitês de Bacias Hidrográficas são operacionalizadas no processo de formulação e implementação da Política de Águas da Bahia? Esta pergunta é pertinente haja vista que temos como objetivo central compreender a efetividade de uma das principais instâncias criadas legalmente e institucionalmente para deliberar e decidir sobre a gestão de águas. Nesse sentido, procuraremos hipoteticamente demonstrar que embora se admita, em essência, que os processos de formulação e implementação da política supracitada são correlacionáveis, e os fundamentos da metodologia participativa sejam lançados, as técnicas e métodos utilizados tanto no momento da sua elaboração quanto execução, ora se aproximam da realidade do órgão executor, ora do servidor, ora de um dos segmentos dos Comitês de Bacias Hidrográficas, sendo os demais membros coadjuvantes nesse processo, impondo limites as suas deliberações. A última década é o marco temporal do processo de instituição e criação dos Comitês de Bacias Hidrográficas no Brasil. No entanto, pouco se sabe sobre a efetividade da participação dessas estâncias nos processos decisórios políticos institucionais, mesmo quando já lhes são garantidos todo um marco legal e institucional que fundamenta sua existência e atuação. Ou seja, quem participa, como faz, o que decide e como se dá o processo de construção do interesse coletivo no âmbito dos comitês? Questões estas relevantes para pesquisa ora apresentada. A Política Estadual de Recursos Hídricos e o Sistema Estadual de Gerenciamento de Recursos Hídricos – SEGREH – Lei Estadual nº 11.612 /2009 – alterada pela Lei Estadual nº 12.377/11, da Bahia, em conformidade com a Política Nacional de Recursos Hídricos e o Sistema Nacional de Recursos Hídricos – SINGREH, Lei Federal nº 9433/1997, definem a água como bem natural, dotada de valor econômico, que pode ter usos múltiplos (consumo humano, produção de energia, transporte aquático, lançamento de esgotos, entre outros. Com essas diretrizes legais, a gestão dos recursos hídricos passa a ser descentralizada, contando com a participação do poder público, usuários e comunidade. Importa-nos saber como nos espaços públicos colegiados, a exemplo os Comitês de Bacias Hidrográficas, a gestão deste bem natural ou econômico é entendida e praticada. Nesses espaços colegiados, a gestão do uso e apropriação desse bem e ou recurso constitui-se em elemento central de disputa e conflito de interesses. A natureza e os graus de conflito variam de acordo com as especificidades de cada comitê, especialmente, no que tange as diferentes concepções 66 / Prelúdios, Salvador, v. 4, n.4, p. 65-78 set./mar. 2015 e escolhas políticas das partes envolvidas no processo de Planejamento e Gestão das Águas. Quanto à composição do Sistema Estadual de Gerenciamento de Recursos Hídricos – SEGREH, verifica-se que o conceito de gestão descentralizada e participativa aparece como elemento norteador do nosso modelo de Planejamento e Gestão das Águas. Entretanto, nem sempre as funções de decisão e execução da Política Estadual de Recursos Hídricos são constituintes e constituídas de práticas ou exercício de poder compartilhado. Esta suposição toma como referência os entes que compõe o SEGREH: o Conselho Estadual de Recursos Hídricos – CONERH; a Secretaria Estadual do Meio Ambiente – SEMA; o Instituto do Meio Ambiente e Recursos Hídricos – INEMA; (Alterado pela Lei Estadual 12.377/2011); os Comitês de Bacia Hidrográfica; as Agências de Bacia Hidrográfica (nenhuma criada na Bahia); os órgãos setoriais e/ ou sistêmicos, cujas atividades ou competências guardam relação com a gestão ou uso dos recursos hídricos e a Companhia de Engenharia Ambiental e Recursos Hídricos – CERB – que vão reproduzir, muitas vezes, modelos ou concepções políticas resistentes à democratização dos espaços decisórios. Dentre os entes acima citados, os Comitês de Bacias Hidrográficas, colegiados constituídos por representantes dos governos e da sociedade civil – compreendendo segmentos dos usuários e entidades não governamentais – serão objeto de estudo de nosso trabalho de pesquisa, que ora se inicia, no curso de mestrado em Ciências Sociais, da Universidade Federal da Bahia. Diante do exposto, apresentaremos neste artigo algumas reflexões teóricas, sucintas e introdutórias, sobre o conceito de deliberação e participação, apresentadas na teoria democrática contemporânea. Por considerarmos relevantes para nosso problema de pesquisa. Desta forma, um resumo do projeto de pesquisa2 se faz necessário, pois nos ajudará a entender a pertinência ou incoerência dessas reflexões, discorridas neste artigo. Definimos, neste projeto, como nossa área de abrangência as Regiões de Planejamento e Gestão das Águas (RPGA’s) da Bahia. Selecionamos quatro Comitês de Bacias Hidrográficas (CBH’s) desse universo: do Rio Grande, do Rio Itapicuru, do Rio Verde Jacaré e do Rio Paraguaçu. Os critérios de seleção deram-se a partir de observações e identificação de elementos e ou condições que os diferenciam, tais como: localização geográfica, disponibilidade hídrica 2 Projeto de pesquisa em desenvolvimento intitulado: Condicionantes Políticos do Processo de Institucionalização da Política Estadual de Recursos Hídricos da Bahia: limites e possibilidades para incorporação das deliberações dos Comitês de Bacias Hidrográficas. Prelúdios, Salvador, v. 4, n.4, p. 65-78 set./mar. 2015 / 67 das regiões, campos de disputa de interesse pela água e graus de qualificação técnica e política dos membros dos comitês. Objetivamos, com esse trabalho investigativo, desenvolver uma reflexão crítica sobre o caráter participativo da gestão de águas no nosso estado, na perspectiva de entender em que medida as deliberações dos membros de Comitês de Bacias Hidrográficas influenciam o processo de formulação, discussão e execução da Política de Águas. Importa compreender como os diferentes segmentos interessados – poder público, usuários e entidades não governamentais, que compõem esse colegiado, decidem como planejar e gerenciar, de forma participativa, o uso e apropriação da água, compatibilizando os seus diversos usos: abastecimento, uso industrial, irrigação, transporte, produção de energia, entre outros. Para tanto, pretendemos metodologicamente fazer, além de estudos bibliográficos, análises de atos administrativos, de diferentes espécies, especialmente os de caráter normativos, consultivos e deliberativos, expressos em documentos institucionais e administrativos, como: atas, moções, deliberações, notas técnicas, resoluções, decretos, instruções normativas, leis, comunicações internas e ofícios, praticados pelos membros que compõe três dos entes do Sistema Estadual de Gerenciamento de Recursos Hídricos: CONERH, INEMA e CBH’s. Analisar as metodologias utilizadas em alguns dos instrumentos considerados estratégicos pelo órgão executor da Política de Recursos Hídricos (programas, projetos e ações) e pelas instâncias responsáveis por fazer a articulação política e institucional dos comitês (diretorias e coordenações) do respectivo órgão, a fim de identificarmos mecanismos que potencializam ou fragilizam a descentralização e participação da gestão de águas. E ainda, por meio de entrevistas e grupo de discussão, com atores sociais que atuam e atuaram, no SEGREH, investigar condicionantes políticos do processo de institucionalização da Política Estadual de Recursos Hídricos da Bahia que impõem ou podem impor limites e possibilidades às deliberações dos Comitês de Bacias Hidrográficas na Bahia, na perspectiva de responder a questão central da pesquisa acima mencionada. Assim, pretendemos, ao longo de todo o texto, extrair das discussões teóricas sobre democracia deliberativa e participativa, na atualidade, o conceito de deliberação e participação, enquanto processo decisório político institucional, por entendermos que são ferramentas analíticas, imprescindíveis, para analisarmos essa inovação democrática da gestão de águas no Brasil: os comitês de bacias hidrográficas. 68 / Prelúdios, Salvador, v. 4, n.4, p. 65-78 set./mar. 2015 DELIBERAR E PARTICIPAR: LIMITES E POSSIBILIDADES DOS MEMBROS DE COMITÊS DE BACIAS HIDROGRÁFICAS É partindo da questão acima que vamos buscar respostas condizentes seguindo, sucintamente, a trilha conceitual da teoria democrática contemporânea, mais especificamente, quando estabelece relação entre democracia, deliberação e participação, na tentativa de fazer interfaces entre Gestão Pública das Águas e alguns princípios presentes nos modelos de democracia deliberativa e participativa. Desta forma, trazer para nossa analise e avaliação sobre a efetividade da participação dos diferentes atores que compõem essa entidade colegiada e tripartite o conceito de deliberação e participação, nos serve como alternativa viável para entendermos o sentido de democracia que adotamos nesse modelo de gestão. Dito de outra maneira, parece-me que hoje a questão central na disputa em torno do sentido da democracia encontra-se justamente na definição da natureza e da posição que podem e/ou devem ocupar a participação e a deliberação de cidadãos e cidadãs no estado democrático de direito. (NOBRE, 2004, p. 22) Como perspectiva teórica, iniciaremos nossa discussão sustentada em leituras de autores que trabalharam o conceito de deliberação, relacionado com algumas experiências teóricas e empíricas desenvolvidas pela teoria democrática, a partir da segunda metade do século XX, lembrando sucintamente teóricos da corrente deliberativa como os pensadores Jürgen Habermas, Joshua Cohen e James Bohman. Tomando como referência a indicação e subsídios teóricos, de Leonardo Avritzer (2000, p. 25-46), ao caracterizar o processo de transição da teoria democrática, entre a primeira e segunda metade do século XX, a partir da relação estabelecida entre prática democrática e processo deliberativo, avaliamos que o modelo de gestão descentralizada e participativa que aparece implícito e explicitamente na Política Estadual de Recursos Hídricos e no Sistema Estadual de Gerenciamento de Recursos Hídricos – SEGREH – Lei Estadual nº 11.612 /2009 –, alterada pela Lei nº 12.377/11 da Bahia, nos serve como objeto central de estudo para se entender a concepção de democracia adotada pelo Estado e em qual lugar deve ser discutida, formulada, efetivada e avaliada. As questões levantadas por esse autor sobre as contradições existentes entre o conceito decisionístico de deliberação e o conceito argumentativo de deliberação, trazidos pelos teóricos da democracia, especialmente este último, poderá nos servir como fundamentação teórica, no desenrolar do trabalho de Prelúdios, Salvador, v. 4, n.4, p. 65-78 set./mar. 2015 / 69 pesquisa, para discutirmos sobre o quê, com quem, com qual centralidade e como deliberam alguns Comitês de Bacias Hidrográficas na Bahia. E assim, entendermos de que maneira suas deliberações são incorporadas no processo de institucionalização da Política Estadual de Recursos Hídricos da Bahia. Haja vista que tanto a legislação federal quanto estadual lhes confere atribuições de caráter deliberativo, consultivo e normativo, portanto, consideramos essa entidade colegiada o espaço privilegiado da democratização da Gestão Pública de Águas. O que pode ser reforçado por Leonardo Avritzer quando afirma que: ao nosso ver, o local da democracia deliberativa devem ser os fóruns entre o Estado e sociedade “[...] Esses fóruns seriam, no caso, brasileiro, os conselhos e o orçamento participativo”. (AVRITZER, 2000, p. 43) Analisando as características dos arranjos deliberativos dos pensadores, Jürgen Habermas, Joshua Cohen e James Bohman, embora estes se aproximem do conceito argumentativo de deliberação, trazendo, assim, a discussão acerca da democracia deliberativa, apresentam diferenças conceituais, substanciais, sobre o termo deliberação. Ao discutir o conceito de deliberação, Jurgen Habermas traz para analise do político o debate argumentativo, como o fez Joshua Cohen e James Bohman. Entretanto, o fez de forma diferente e variada ao longo de seu trabalho teórico. Para Habermas, existe uma dimensão argumentativa no interior da relação Estado/sociedade que está além do processo de formação da vontade geral. Tal formulação faz com que a opinião dos indivíduos nesse processo argumentativo não possa ser reduzida à vontade da maioria, como quer Rousseau, ou à representatividade de um só indivíduo na posição original, como quer Rawls. É preciso que esse indivíduo expresse as suas opiniões em um processo de debate e argumentação. (AVRITZER, 2000, p. 36- 37) Podemos perceber em Habermas, que o conceito de deliberação aparece vinculado à relação estabelecida entre os procedimentos institucionalizados do sistema político (processos formais) e as interações e comunicações geradas na esfera pública (processos informais). Em outros termos, é na relação estabelecida entre esses processos que o entendimento sobre deliberação é explicitado, ou seja, sua definição aparece como o processo pelo qual a sociedade legitima as decisões políticas democráticas. Deliberação seria, portanto, uma categoria normativa onde os processos formais e informais exigem o debate e a negociação. Ou seja, a deliberação seria o processo onde é identificada ou conhecida uma diversidade de posições 70 / Prelúdios, Salvador, v. 4, n.4, p. 65-78 set./mar. 2015 em torno de um problema na perspectiva de respondê-lo. Nesse sentido, ao se referir a Habermas, Lubenow (2010, p. 232) conclui: ‘Deliberação’ é uma categoria normativa que sublinha uma concepção procedimental de legitimidade democrática, segundo Habermas. Esta concepção normativa gera uma matriz conceitual diferente para definir a natureza do processo democrático, sob os aspectos regulativos (ou exigências normativas) da publicidade, racionalidade e igualdade. Embora também tenha um caráter empírico-explicativo, a ênfase da concepção habermasiana de democracia procedimental assenta no caráter crítico-normativo. A concepção procedimental de democracia é uma concepção formal e assenta nas exigências normativas da ampliação da participação dos indivíduos nos processos de deliberação e decisão e no fomento de uma cultura política democrática. Habermas reincorpora a argumentação no mundo social a partir da ideia de mundo social reflexivo de Popper, segundo Avritzer (2000). O autor vai conjecturar e admitir que as formas de argumentação são próprias ao mundo social e que cada situação pode demandar interpretações diversas, significando que divergir da maioria não significa estar errado e nem tão pouco atribuir a limitação de informação de alguns sujeitos a não construção de consensos. Trazendo a ideia de deliberação habermasiana para o contexto da gestão pública das águas, mais especificamente a sua aplicabilidade no âmbito de um dos seus principais organismos colegiados – os Comitês de Bacias Hidrográficas – é importante considerarmos a questão central de nosso projeto de pesquisa, ao qual trouxemos, inicialmente, nesse texto, uma pergunta introdutória, sem pretensão de respondê-la, mas suscitar algumas conjecturas, ou seja, as deliberações dos membros de Comitês de Bacias Hidrográficas interferem na agenda de governo? Conseguem, estas deliberações, influenciar a formulação e implementação da Política de Águas da Bahia? Em outras palavras, pela nossa experiência3 a gestão de água estaria ligada a um processo de deliberação coletiva? Ou melhor, para sermos mais exatos, os comitês são espaços deliberativos? As opiniões dos três segmentos, que os compõem, conseguem influenciar o processo de tomada de decisão relacionada aos usos múltiplos da água? Através de estudos prévios, acreditamos que a participação dos principais atores interessados ou afetados por decisões políticas relacionadas à gestão 3 A autora deste estudo desenvolve atividades socioambientais na Secretaria de Meio Ambiente e no órgão executor da Política Estadual de Recursos Hídricos da Bahia desde 2008. Prelúdios, Salvador, v. 4, n.4, p. 65-78 set./mar. 2015 / 71 de águas – poder público, sociedade civil e usuários – conseguem de alguma forma influenciar a sua condução. Trata-se de uma suposição que requererá maiores estudos. Vele ressaltar que nossas opiniões, neste momento, resultam de nossas observações e apreciações feitas sobre a estrutura organizacional e as atribuições que são conferidas a essa entidade colegiada, apresentadas em alguns instrumentos legais, em particular, três resoluções do Conselho Estadual de Recursos Hídricos – CONERH (Resolução nº 52/2009, 55/2009 e 73/2010). Ou seja, na estrutura organizacional do comitê – diretoria (presidente, vice-presidente e secretario), secretaria executiva, grupo de trabalho, câmeras técnicas e Plenário – podemos perceber que as deliberações dos seus membros somente são legitimadas em assembleia geral, considerada instância máxima, sendo assim, essa configuração política administrativa nos leva a crer que os membros de comitês conseguem influenciar de alguma forma os rumos da gestão de águas. E, ainda, habersianamente, se é que assim se pode falar, podemos, observando a sua composição e suas atribuições, hipoteticamente, dizer que as preferências de seus atores não são dadas, mas construídas na interação e na comunicação. Assim, os comitês são estruturalmente pensados para deliberar outras hipóteses, a partir de um processo de discussão que consegue influenciar a política de governo petista. Pensando, em termos institucionais, talvez aos moldes habermasiano, esse modelo, pretensamente democratizante da gestão, posto pela Política de Águas da Bahia, onde são apresentados pressupostos, arranjos institucionais e mecanismos de controle político, nos sirva como indicador para se pensar quem deve efetivamente participar, como deve fazer, sem, contudo, responder sobre o que se decide neste espaço de decisão partilhada ou espaço de deliberação. Buscar, também, na discussão de Joshua Cohen, referente ao conceito de deliberação, elementos relacionáveis ao modelo de gestão de águas na Bahia, no intuito de entender o caráter deliberativo dos comitês, será um caminho aberto de possibilidades analíticas em nosso trabalho. Para Cohen, a deliberação compreende discussão e participação nas tomadas de decisões da sociedade junto com o Estado. Diferentemente de Habermas, o conceito de deliberação é um misto de participação e discussão. Tomando esse debate como referência, e a partir de uma base empírica, que será posteriormente sistematizada, arriscáramo-nos a afirmar que embora se admita, em essência, que os processo de formulação e implementação da Política Estadual de Recursos Hídricos são correlacionáveis e os fundamentos 72 / Prelúdios, Salvador, v. 4, n.4, p. 65-78 set./mar. 2015 da metodologia participativa sejam lançados, as técnicas e métodos utilizados, tanto no momento da sua elaboração quanto execução, ora se aproximam da realidade do órgão executor, ora do servidor, ora de um dos segmentos dos Comitês de Bacias Hidrográficas, sendo os demais membros coadjuvantes. Em outros termos, o reconhecimento de que no âmbito do comitê, enquanto entidade que decide em primeira instância, conforme previsão legal, os processos participativos e discursivos se fazem presentes, não significa dizer que essa participação e discussão seja substancial a ponto de fazer com que suas deliberações interfiram positivamente ou satisfatoriamente nos desígnios do planejamento e gestão das águas. Ou seja, um estudo mais aprofundado sobre esta questão nos permitirá enxergar em que medida a dialogicidade, enquanto princípio metodológico, se faz mister na sua efetivação. Ou melhor, seguindo a lógica de explicação de Bohman, deliberação consiste num processo dialógico. Assim, não há deliberação sem dialogicidade, isto é, as lógicas aparentemente inconciliáveis e antagônicas, que movem os processos deliberativos e decisórios dos membros de comitês, se completam e se associam. Para tanto, é imprescindível, para se entender melhor esse conceito, considerar que a discussão e a participação entre os atores interessados na gestão das águas pressupõe que sejam sempre qualificados. Isso significa dizer que, seguindo a definição de Bohman, o diálogo no contexto desse ente colegiado deve advir de uma relação mais horizontalizada e não vertical de um com o outro. É esse processo dialógico que permite que se construa uma cultura política fundada no respeito e na colaboração. Entendendo o Comitê de Bacia Hidrográfica como o lugar do conflito de interesses e da contradição, percebemos que a relação estabelecida entre Estado e sociedade civil, na gestão das águas, se dá de maneira desigual. A exigência de qualificação técnica e política de seus membros dificultam, principalmente, os representantes da sociedade civil de entenderem e cumprirem seu papel enquanto partícipes da gestão de recursos hídricos no Estado, impondo barreiras ao partilhamento efetivo do poder. Nessa direção Evelina Dagnino (2002, p. 35) considera que: A característica central da maior parte dos espaços estudados – seu envolvimento com políticas públicas, seja na sua formulação, discussão, deliberação ou execução – exige quase sempre o domínio de um saber técnico especializado do qual os representantes da sociedade civil, especialmente os dos setores subalternos, em geral não dispõem. Além disso, outro tipo de qualificação se impõe, o que diz respeito ao conhecimento sobre o funcionamento do Estado, da máquina administrativa e dos procedimentos envolvidos. Prelúdios, Salvador, v. 4, n.4, p. 65-78 set./mar. 2015 / 73 Nessa perspectiva, é necessário trazer para o debate o conceito de participação enveredado pela teoria democrática na atualidade, mais especificamente, para não alongarmos a discussão, dado os limites espaciais deste texto, recuperaremos aqui apenas, o conceito de participação, da inglesa Carole Pateman e do canadense C. B. Macpherson. Considerando as diretrizes gerais do SEGREH, ou seja, que a gestão dos recursos hídricos deve ser descentralizada, contando com a participação do poder público, usuários e comunidade, acreditamos, assim como Carole Pateman, que uma vez estabelecido o sistema participativo, é possível que os membros de comitês de Bacias Hidrográficas com a sua vivência, experiência e prática, ao longo da gestão de águas, aprendam a participar no sentido de democratizar efetivamente a gestão. Como resultado de sua participação na Tomada de Decisões, o indivíduo é ensinado a distinguir entre seus próprios impulsos e desejos, aprendendo a ser tanto um cidadão público quanto privado. [...] Uma vez estabelecido o sistema participativo (e este é um ponto de maior importância), ele se torna autossustentável por que as qualidades exigidas de cada cidadão para que o sistema seja bem-sucedido são aquelas que o próprio processo de participação desenvolve e estimula: quanto mais o cidadão participa, mais ele se torna capacitado para fazê-lo. (PATEMAN, 1992, p. 39) Para Pateman, participação é um modo de proteger os interesses privados e públicos e, acima de tudo, é uma ação educativa, ou seja, é a inclusão de todos nos processos decisórios capaz de permitir o desenvolvimento individual e, por conseguinte, o coletivo. “Novamente, na teoria participativa, a ‘participação’ refere-se à participação (igual) na tomada de decisões ‘igualdade política’ refere-se à igualdade de poder na determinação das consequências das decisões”. (PATEMAN, 1992, p. 61-62) Essa definição de participação, aplicada no contexto dos comitês, enquanto espaços deliberativos, seria o processo no qual cada membro isolado tem igual poder de determinar o resultado final das decisões referentes aos usos múltiplos da água. Entretanto, não podemos precisar no momento se essa participação é escassa ou abundante, se existe igualdade política entre os seus membros, se um dos segmentos, que os compõem, domina os demais, se ela consegue fortalecer o sentimento de cidadania, se gera solidariedade e desenvolve nos indivíduos certas competências que aplicarão em outros setores, além da própria política. 74 / Prelúdios, Salvador, v. 4, n.4, p. 65-78 set./mar. 2015 Sabemos apenas reconhecer que não devemos extirpar desse universo o conflito de interesses e a contradição, tanto sobre o entendimento que se tem de participação, quanto a sua efetividade, mesmo quando na construção de consensos, os membros dos Comitês de Bacias Hidrográficas apresentam assimetrias sociais relevantes (de gênero, de classe, de território, de raça, entre outros) que precisam ser enfrentadas para que, apropriadamente, entendamos quem, como e o que se decide sobre as águas em nosso estado. Esse reconhecimento do comitê, enquanto espaço de conflito e contradição, é extremamente importante para respondermos certas questões de forma suficiente, porém não acabada, necessárias para comprovarmos ou negarmos nossas hipóteses, levantadas ao longo do texto sobre a efetividade da participação dos membros de comitês no processo de execução e implementação da Política Estadual de Recursos Hídricos, quais sejam: a relação estabelecida entre Estado e sociedade civil se dá de maneira desigual? Quais variáveis dificultam ou favorecem o entendimento e cumprimento do papel de cada representante enquanto partícipes da gestão de recursos hídricos? Essa prerrogativa nos faz refletir se essas assimetrias, relacionadas às condições materiais, técnicas e políticas dos membros de comitês obstaculizam a descentralização e participação da gestão de águas. Após apresentarmos alguns possíveis desafios a serem enfrentados, discorreremos brevemente sobre o conceito de participação de C. B. Macpherson, para analisarmos, à luz da teoria, a sua relação com o modelo de gestão de águas na Bahia. Macpherson (1978) ao discutir, em termos de modelo, a essência da democracia liberal em sua obra A Democracia Liberal. Origens e Evolução, identificando limites e possibilidades desse regime, nos apresenta alguns modelos de democracia liberal: a “protetora”, a “desenvolvimentista”, a de “equilíbrio” e a “participativa” – dentre os quais, defende e propõe um modelo de Democracia Participativa. Ao defender um modelo de democracia participativa, Macpherson afirma que o principal problema dos sistemas democráticos é conseguir fazer com que a democracia seja alcançada. Para o autor, importa saber que os requisitos necessários para que haja transformação democrática é a mudança de consciência do povo e diminuição da desigualdade social e econômica. Inferimos então, que participação seria o meio pelo qual o povo, em condições de igualdade social e econômica, toma decisões e partilham do poder. Como alternativa para resolver esse impasse, preocupado com o futuro dos sistemas de governos mais participativos, o autor nos alerta quanto à necessidade de mesclar democracia representativa com instituições participativas, Prelúdios, Salvador, v. 4, n.4, p. 65-78 set./mar. 2015 / 75 incluindo aí os conselhos. Para tanto, como garantia de obtenção de uma democracia participativa mais simples, propõe o sistema piramidal. [...] um sistema piramidal com democracia direta na base e democracia por delegação em cada nível depois dessa base. Assim, começaríamos com a democracia direta ao nível de fábrica ou vizinhança – discussão concreta face a face e decisão por consenso majoritário, e eleição de delegados que formariam uma comissão no nível mais próximo seguinte, digamos, um bairro urbano ou subúrbio ou redondezas [...] Assim prosseguiria até o vértice da pirâmide, que seria um conselho nacional para assuntos de interesse nacional, e conselhos locais para assuntos desses segmentos territoriais. (MACPHERSON, 1978, p. 110) Ao refletirmos sobre este sistema, entendemos que a participação da população nos processos de decisão, formulação, implementação e avaliação da gestão de águas, em todos os níveis piramidais, considerando o proposto em Macpherson, são requisitos importantes para sua democratização. Em suma, se conseguirmos assegurar que a democracia direta (na base) e indireta (por delegação) sejam efetivadas, maior será a capacidade de entendimento e intervenção e menor serão as assimetrias apresentadas, em especial, as de caráter técnico e político, dos atores sociais que compõem os comitês. Se considerarmos os Comitês de Bacias Hidrográficas, enquanto um nível após a base, a constituir-se como meios públicos de deliberação, criados para promover a participação da sociedade, não podemos desconsiderar que a democratização da gestão de águas e seu planejamento, no âmbito de cada Bacia Hidrográfica, implicam na garantia da qualidade da participação e dos instrumentos oferecidos em nível local. Portanto, a implementação de políticas e instituições participativas, formais e não formais, no contexto da gestão de águas da Bahia, em particular, no governo do Partido dos Trabalhadores, traz desafios importantes relacionados ao modelo de democracia que temos e ao que almejamos alcançar. Em resumo, no contexto da gestão pública das águas, mais especificamente, em um dos seus principais organismos colegiados, os Comitês de Bacias Hidrográficas, é importante considerarmos que a participação supõe uma relação de poder entre as partes envolvidas, Estado e sociedade civil, exigindo determinados procedimentos e comportamentos ordenados e sistematizados. Nesses espaços públicos, o compartilhamento do poder, expressos nas suas concepções e projetos políticos, se dá de forma tensa e conflituosa. Em outras palavras, o conflito e a tensão serão maiores ou menores dependendo do quanto 76 / Prelúdios, Salvador, v. 4, n.4, p. 65-78 set./mar. 2015 compartilham – e com que centralidade o fazem – as partes envolvidas. (DAGNINO, 2002) Por esta razão, a garantia da efetividade das atribuições de caráter consultivo, normativo e deliberativo dos membros de CBH’s, requer tempo para que se efetivem de fato em experiências concretas de espaços democráticos e de socialização do poder. Muitos estudos dirigidos à análise e avaliação do funcionamento de determinados espaços públicos colegiados revelam que, apesar dos avanços conquistados, ainda resta um longo caminho a ser percorrido para que essas inovações institucionais superem os constrangimentos e dificuldades ainda presentes nesses espaços democráticos. A exemplo, Evelina Dagnino pontua alguns limites e possibilidades da gestão pública compartilhada e participativa, especialmente os relacionados à partilha do poder. O reconhecimento dos diferentes interesses e a capacidade de negociação sem perda da autonomia, a construção do interesse público, a participação na formulação de políticas públicas que efetivamente expressem esse interesse são algumas das dimensões que constituem essa novidade. (DAGNINO, 2002, p. 34) Concluímos assim que, neste momento, a entrada da sociedade civil nos debates políticos, a respeito da gestão pública de águas e de seus respectivos programas, traz algo de novo. Sua inserção impõe um contraponto às concepções e programas fechados aos espaços participativos, em distintas esferas e atividades públicas, por impor limites ao aumento e fortalecimento desses atores, e a exigência de um novo modelo de se fazer políticas públicas, pautadas na transformação, a qual é permitida a conformação de políticas públicas como resultado da participação. Entretanto, é importante considerar que em todo processo de criação, execução e maturação de qualquer entidade colegiada – e os comitês não são diferentes, o processo tende a ser lento, gradual e evolutivo. Desta forma, esperamos que este trabalho de pesquisa seja capaz de responder, diante desse cenário de atuação conjunta entre poder público, usuário e sociedade civil, nosso problema de pesquisa. Referências AVRITZER, L. Teoria democrática e deliberação pública. Lua Nova, São Paulo, n. 50, p.25-46. 2000. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/ln/n50/a03n50.pdf>. Acesso em: 01 jul. 2010. Prelúdios, Salvador, v. 4, n.4, p. 65-78 set./mar. 2015 / 77 BAHIA. CONERH. Resolução nº 55, de 2009. Aprova o Regimento Interno Base para Comitês de Bacias Hidrográficas Estaduais. Diário Oficial, Salvador, 11 set. 2009, ano XCIV, n. 20.079. p. 1-13. BAHIA. CONERH. Resolução nº 52, de 2009. Estabelece diretrizes e critérios para a formação e a renovação de Comitês de Bacia Hidrográfica no âmbito do Estado da Bahia e da outras providências. Diário Oficial, Salvador, Salvador 27/28 jun. 2009, ano XCIII, n. 20.018 e 20.019, 27.p. 01 - 22. BAHIA. CONERH. Resolução nº 73, de 2010. Altera o prazo dos mandatos dos membros de Comitês de Bacias Hidrográficas – CBHs. Diário Oficial, Salvador, 29/30 maio 2010, ano XCIV, n. 20.282 e 20.283. p. 01- 2. BAHIA. Lei 11.612, de 08 de outubro de 2009. Instituiu a Política Estadual de Recursos Hídricos e cria o Sistema Estadual de Gerenciamento de e Recursos Hídricos, e dá outras previdências. Diário Oficial, Salvador, 23 dez. 2009, ano ano XCIV, n. 20.161. p. 1-44. (Alterada pela Lei12.035/10 e Lei 12.377/11). BRASIL. Lei nº 9433, de 8 de janeiro de 1997. Institui a Política Nacional de Recursos Hídricos, cria o Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos, regulamenta o inciso XIX do art. 21 da Constituição Federal, e altera o art. 1º da Lei nº 8.001, de 13 de março de 1990, que modificou a Lei nº 7.990, de 28 de dezembro de 1989. Diário Oficial da União, Brasília, DF, [9 jan. 1997]. Disponível em: <http://www.planalto. gov.br/ccivil_03/LEIS/L9433.htm>. Acesso em: 05 jul. 2010. DAGNINO, E. Sociedade civil, espaços públicos e a construção democrática no Brasil: limites e possibilidades. In: DARGINO, E. (Org.). Sociedade civil e espaços públicos no Brasil. São Paulo: Paz e Terra; Campinas: UNICAMP. p. 9-15. LUBENOW, J. A. Esfera pública e democracia deliberativa em Habermas: modelo teórico e discursos críticos. Kriterion. n. p. 121, v.51, p. 227-258, jun. 2010. 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São Paulo: Paz e Terra, p. 47-103. 78 / Prelúdios, Salvador, v. 4, n.4, p. 65-78 set./mar. 2015 Vladimir Meira Nunes1 DEMOCRACIA DE REDUTO NO PARLAMENTO BAIANO: A DOMINÂNCIA ELEITORAL NA ASSEMBLÉIA LEGISLATIVA DA BAHIA NAS ELEIÇÕES DE 2002, 2006 E 20102 Resumo O artigo estuda as bases eleitorais dos deputados estaduais da Bahia, nas eleições de 2002, 2006 e 2010, a partir da dimensão vertical de suas votações. A Dominância eleitoral é aqui estudada como contribuição dos estudos da Geografia do Voto, os quais procuram classificar determinados padrões de comportamento político de parlamentares e partidos a partir de seus redutos e estratégias eleitorais. É estudada também em diálogo com pressupostos da teoria democrática e dos teóricos da modernização, para os quais maiores índices de competitividade – logo, menor oligarquização – representam maior qualidade democrática. O cálculo da Dominância foi feito de acordo com a fórmula sugerida por Carvalho (2003) e foi aplicada à votação de todos os deputados estaduais nos três pleitos; em seguida, avaliamos se o padrão Dominante das votações é predominante no partido governista, a partir dos reposicionamentos do PT e PFL/DEM nos três pleitos selecionados. Os resultados sugerem que o legislativo estadual baiano não possui um padrão oligárquico de competição, já que quase metade dos seus parlamentares possui padrão de votação Não-Dominante, ou seja, compartilham seus redutos eleitorais. Sugere também não se poder afirmar que o padrão de votação Dominante é necessariamente governista. Palavras-chave: Geografia do Voto; deputados estaduais; dominância eleitoral; oligarquização; qualidade democrática. INTRODUÇÃO O presente artigo tem como objetivo a discussão de questões que se referenciam na literatura acerca da teoria democrática, qualidade da democracia, 1 Baccharel e mestre em Ciências Sociais (Ciência Política) pela UFBA e-mail: [email protected]. 2 Artigo elaborado a partir de resultado parcial da dissertação de mestrado, que contou com apoio financeiro da Fapesb (Fundação de Amparo à Pesquisa da Bahia), através da concessão de bolsa. Foi originalmente preparado como trabalho final da disciplina Teoria Política Contemporânea, ministrada pela Profª. Drª. Maria Salete Amorim, do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da UFBA, em agosto de 2014. Sofreu modificações a partir de importantes sugestões de parecerista anônimo da Revista Prelúdios, a quem agradeço pela contribuição. Prelúdios, Salvador, v. 4, n.4, p. 79-97 set./mar. 2015 / 79 problematizando aspectos apontados também pelos teóricos da modernização, a partir de análise empírica sobre uma das dimensões trabalhadas nos estudos da Geografia do Voto: a Dominância Eleitoral. Os autores das vertentes teóricas aqui utilizadas procuram avaliar o processo de consolidação da democracia enquanto regime político vigente em diversos países, assim como, comparar e apontar os principais aspectos de variados sistemas políticos adotados nas antigas e novas democracias existentes – estas oriundas da terceira onda democrática, de acordo com Huntington. (apud DAHL, 2001) A abordagem à teoria da modernização representa uma ponte direta com um campo da ciência política e dos estudos de sociologia eleitoral, que discute e analisa a Geografia do Voto, buscando relacionar desempenhos eleitorais de partidos políticos e candidatos, a aspectos territoriais, demográficos e socioeconômicos. Este estudo tem como base empírica as eleições para Deputado Estadual na Bahia em 2002, 2006 e 2010. A votação desses deputados é aqui investigada à luz das questões problematizadas pelas abordagens acima mencionadas. A análise da Geografia do Voto, trabalhada neste texto, leva em consideração uma das dimensões das bases eleitorais na Bahia, espécie de distritos informais característicos da eleição dos nossos parlamentares. Essa dimensão passou a ser explicitada a partir da inovação metodológica estabelecida no trabalho de Ames (2003), que visava dar conta não apenas da distribuição territorial das votações dos deputados, como também da competitividade de determinado reduto, visualizando o patamar de “controle” de um parlamentar sobre um município específico. Essa inovação proporcionada pelo estudo de Barry Ames (2003) seguiu a tradição dos estudos da geografia eleitoral, que, até ali, davam maior peso à análise da distribuição territorial dessas votações – se dispersa ou concentrada em determinados municípios ou regiões. A dimensão horizontal foi visualizada inicialmente por Fleischer (1976), sobre a base territorial dos deputados de Minas Gerais. Neste estudo, o autor encontrou considerável número de deputados com votação concentrada em determinadas regiões – “fato que, posteriormente, se viu interpretado, pela literatura sobre o tema, como indício da possível existência de um ‘sistema distrital de fato’ operando no interior de nosso sistema proporcional”. (CARVALHO, 2009, p. 371) Carvalho (2009) também nos aponta outros trabalhos que encontraram resultados em consonância com o fenômeno observado por Fleischer (1976), seguindo enfoques metodológicos diversos. Autores como Indjaian, e Dias (apud CARVALHO, 2003) estudaram as bases dos deputados de São Paulo, Paraná e 80 / Prelúdios, Salvador, v. 4, n.4, p. 79-97 set./mar. 2015 Rio de Janeiro e encontraram elevado número de deputados com base territorial de suas votações concentradas. Esses estudos terminaram provocando uma importante discussão acerca da operacionalização do sistema eleitoral brasileiro, já que, elegendo representantes com bases eleitorais delimitadas territorialmente, estariam “deformando” o princípio normativo orientador da ideia da proporcionalidade, o qual deveria, em tese, favorecer a eleição de deputados de votação dispersa, teoricamente não paroquial. De toda sorte, a literatura da geografia eleitoral da época estabelecia claro juízo acerca das caracterizações dessas diferentes bases eleitorais típicas dos deputados: se um reduto se apresentava como majoritariamente concentrado, seus representantes teriam comportamento tipicamente paroquial; se a votação fosse de tipo disperso, o parlamentar teria comportamento mais universalista. Essa interpretação adviria da ideia de que o [...] representante eleito com os votos, esforços e recursos de pessoas de uma área geográfica específica naturalmente atribui importância especial a suas visões e demandas, tanto por um senso de obrigação como de autointeresse. (CAIN; FAREJOHN; FIORINA, apud CARVALHO, 2009, p. 372-373) A diferença na interpretação sobre essas questões tem relação com a discussão acerca da localização das bases eleitorais destes parlamentares. Conforme nos aponta o próprio Carvalho (2003, 2009), há nítida distinção de comportamento entre parlamentares com votação concentrada em grandes cidades – capitais e municípios mais desenvolvidos –, e deputados com votação concentrada em pequenos municípios – diferença demonstrada justamente quando se correlaciona essa dimensão com a dominância destes deputados sobre essas bases. Nas capitais, dada a grande dimensão da base eleitoral, os parlamentares seriam desestimulados a atraírem políticas de cunho distributivista, já que a delimitação dessas bases é mais difusa, dificultando a reivindicação de crédito por estas iniciativas. Por conta disso, os representantes com votação de tipo concentrada, mas em bases de grande dimensão, teriam comportamento mais universalista, assumindo posições relacionadas a determinados temas. Estariam ancorados no chamado “voto de opinião”. É essa discussão que será relacionada com a perspectiva teórica apontada. A segmentação territorial da votação dos parlamentares obedece a determinadas estratégias eleitorais adotadas por eles. A perspectiva dos teóricos da modernização é de melhores condições para a manutenção e aprofundamento do regime democrático à medida que uma dada sociedade apresenta maiores níveis de desenvolvimento socioeconômico. Autores da teoria democrática, Prelúdios, Salvador, v. 4, n.4, p. 79-97 set./mar. 2015 / 81 como Dahl (1997), defendem que é possível a existência de condições mínimas à manutenção de uma democracia mesmo em sociedades de menor desenvolvimento, a partir da percepção do patamar de competitividade de determinado contexto social. Sendo elevada a competitividade, melhor a qualidade dessa democracia e menor a oligarquização do regime. Quanto maior o indicador de dominância eleitoral na votação dos parlamentares, mais oligárquico é o reduto e o processo eleitoral. Por outro lado, sustenta-se também que menores índices de desenvolvimento social proporcionam maior concentração dos recursos de poder, com isso, representa maior possibilidade de a votação do parlamentar ser de tipo dominante – menor a competitividade do reduto, portanto, mais oligárquico. O trabalho aqui exposto se divide em duas partes: na primeira, referencia-se a discussão teórica, abordando aspectos da teoria democrática e qualidade da democracia, relacionando à literatura da geografia do voto. Nesta seção, apontam-se os pressupostos que embasam parcela da análise empírica, a que se refere ao comportamento político dos municípios da Bahia que caracterizam a votação dos parlamentares em dominante e não-dominante. A partir dessa questão, discutiremos outra dimensão empírica, que relacionará o posicionamento dos partidos frente aos governos à característica de suas bases eleitorais nos três pleitos selecionados. Estas questões trabalhadas no plano empírico serão o conteúdo da segunda parte, com seus resultados e desdobramentos. TEORIA DEMOCRÁTICA E GEOGRAFIA DO VOTO O filósofo político italiano Noberto Bobbio, em seu livro O Futuro da Democracia (BOBBIO, 1997), utiliza o termo “permuta” para qualificar como clientelista o voto de maior incidência na democracia contemporânea, em detrimento do fortalecimento do “voto de opinião”. Isso seria consequência de uma promessa não cumprida da democracia: a de educar o cidadão para o exercício da prática democrática. (BOBBIO, 1997, p. 31) Permuta tem significado relacionado com negociação, troca, barganha. O que equivaleria, seguindo seu raciocínio, a uma prática “paroquial”, a qual precisaria, normativamente, ser superada. A adjetivação “clientelista” para um padrão de comportamento político também leva em consideração outras questões relevantes. Parte do suposto da existência de trocas assimétricas, onde a relação “patrão-cliente” é a estabelecida. Isso seria permitido pela desigualdade de recursos econômicos e sociais, tendo como desdobramento a má distribuição dos recursos de poder na sociedade. 82 / Prelúdios, Salvador, v. 4, n.4, p. 79-97 set./mar. 2015 Esse fenômeno estaria na raiz de alguns dos principais dilemas de democracias mais recentes, convivendo com índices, de desenvolvimento socioeconômico, relativamente baixos, que afetariam a efetividade de suas políticas e governos. A contramão dessa tendência seria o que defendem os teóricos da modernização, para os quais a evolução e modernização das sociedades trariam em seu bojo um processo de ampliação e aperfeiçoamento do regime democrático. Se uma determinada sociedade tende a melhorar seus indicadores sociais, ampliando o acesso a bens econômicos a uma maior parcela da população, ela criaria as condições para uma melhor qualidade da democracia. O pressuposto dos teóricos da modernização parte do pioneiro estudo de Lipset (1960), em que se correlacionou níveis de democracia a indicadores de desenvolvimento econômico, sustentando a hipótese de que “quanto mais próspera uma nação, maior as chances de sustentar a democracia”. (LIPSET, apud CARVALHO, 2009, p. 69) Maior desenvolvimento econômico, portanto, seria capaz de possibilitar maior estabilidade e a manutenção do regime democrático. Dentre os autores que referenciam esse artigo, Robert Dahl é um dos principais teóricos. Sua vasta obra é grande referência nos estudos da teoria democrática, sendo marcada pelo diálogo, em fases distintas de sua vida, com três correntes da ciência política: os teóricos da modernização, a teoria da escolha racional e a perspectiva da cultura política. (ABU-EL-HAJ, 2008) Seu contato com a teoria da modernização tinha uma dupla problemática, uma completamente oposta, outra no sentido de problematizar e aperfeiçoar a consideração de um determinado argumento. No primeiro caso, o clássico estudo de Dahl (1997), Poliarquia, procura romper com as interpretações vigentes até então, influenciadas pelos teóricos da modernização, para os quais a transição para regimes democráticos estaria relacionada ao patamar de desenvolvimento histórico de determinadas sociedades. Assim, principalmente a partir de Dahl (1997), a política passa a adquirir autonomia e condição explicativa para determinados fenômenos sociais, assim como para as transições de regimes. (LIMONGI, apud DAHL, 1997) A intervenção de atores e suas escolhas institucionais também precisam ser consideradas na explicação de determinados regimes políticos, onde transições podem ocorrer a partir dessa interferência. No segundo caso, esse contato estaria vinculado à consideração de determinados condicionamentos explicativos advindos da estrutura social. Diferentemente dos teóricos da modernização, Dahl (1997) descarta os condicionantes históricos e se concentra nas características da estrutura social que afetam diretamente o mundo da política, procurando estudar os efeitos Prelúdios, Salvador, v. 4, n.4, p. 79-97 set./mar. 2015 / 83 da concentração e controle dos recursos de poder socioeconômicos sobre o processo democrático. (LIMONGI, apud DAHL, 1997) Em todo caso, o principal elemento a se considerar tem relação com a ideia da competitividade. Para Dahl (2012), a inclusão política era uma consequência do confronto entre situação e oposição. A modernidade se acharia relacionada de maneira próxima à democracia, já que um de seus principais desdobramentos está na dispersão dos recursos políticos entre todos os atores sociais. Para ele, uma “sociedade pluralista moderna” conteria traços de modernidade, como “altos níveis de riqueza, consumo, renda e educação, grande diversidade ocupacional, população urbana expressiva, uma diminuição notória na população agrícola e a importância relativa da produção econômica”. (DAHL, 2012, p. 251) Com esse processo de modernização, os dois vetores de progresso da Poliarquia se viabilizam: permite o desenvolvimento de um sistema político competitivo, num primeiro momento, e inclusivo, numa etapa final. Essa ideia da competitividade, presente no argumento de Dahl (1997), dialoga favoravelmente com outra questão levantada por Bobbio (1997), dentre as promessas não cumpridas da democracia: a derrota do poder oligárquico. Para o autor italiano, retomando argumentos de autores da Teoria das Elites, apesar de os regimes democráticos de governo não eliminarem jamais as oligarquias no poder, não negando a existência de elites, a defesa é “a presença de muitas elites em concorrência entre si para a conquista do voto popular”. (BOBBIO, 1997, p. 27) Dentre as questões que dão substrato aos estudos da geografia do voto, algumas estão presentes, e em diálogo, com afirmações contidas nos estudos anteriores. A primeira que se apresenta é a ideia do comportamento paroquial no regime democrático. Bobbio (1997) afirma que esse comportamento teria relação com a não-educação para a prática democrática por parte dos cidadãos, uma das promessas não cumpridas da democracia. Na geografia eleitoral, esse tipo de comportamento político estaria relacionado com uma localização territorial de determinadas bases eleitorais, que exerceriam influencia sobre mandatos parlamentares. Essas bases seriam suscetíveis a uma prática política menos “qualificada”, justamente por não ter acesso a determinados serviços públicos essenciais, ou os teriam de forma muito aquém das necessidades. Níveis de escolaridade, de renda e acesso a serviços de saúde, seriam muito baixos, tornando essas populações dependentes de políticas de cunho distributivista de benefícios concentrados, as quais não seguiriam um padrão universalista de atendimento. Os parlamentares vinculados a esse perfil de reduto eleitoral possuem, geralmente, uma votação de tipo dominante, justamente pelo papel que cumprem de intermediador privilegiado destas políticas, muitas vezes pela relação 84 / Prelúdios, Salvador, v. 4, n.4, p. 79-97 set./mar. 2015 que manteriam com o governo. Essas localidades, portanto, teriam baixo patamar de competitividade, estando, também, aquém do padrão necessário a uma maior qualidade democrática. A possibilidade de avaliar o patamar de dominância de determinado parlamentar sobre um reduto passou a ser feita de maneira mais cuidadosa a partir da contribuição de Ames (2003), quando outra dimensão da análise da geografia eleitoral, para além apenas da distribuição territorial da votação em concentrada ou dispersa, passou a ser observada. Alguns parlamentares podem ter votação de tipo concentrada, porém, não estarem ancorados nas grandes cidades e regiões metropolitanas. Portanto, seus redutos podem também incentivá-los a uma prática política de tipo paroquial. Assim, de acordo com esse entendimento, que ficou conhecido na Ciência Política como Conexão Eleitoral, haveriam determinados tipos de redutos que norteariam o comportamento de determinados parlamentares: deputados com votação de tipo não-dominante, geralmente ancorada em distritos de grande dimensão, são desincentivados a reivindicarem crédito pela alocação de alguns benefícios – políticas – por conta da baixa visibilidade que teriam. Sendo assim, estariam mais propensos a dar prioridade à tomada de posição com relação a grandes temas – seriam, portanto, parlamentares com base eleitoral vinculada ao chamado “voto de opinião”, com comportamento mais universalista. Por outro lado, deputados com votação dominante, possuem base eleitoral geralmente de média e pequena dimensão, buscando com isso alocar recursos e projetos aos distritos que compõem sua base eleitoral, tendo em vista atender às demandas destas localidades. Estes seriam parlamentares com comportamento mais particularista, paroquial, estimulando práticas políticas de ordem clientelista. É preciso, no entanto, problematizar melhor o argumento relacionado com os estudos da conexão eleitoral. De acordo com Amorim Neto e Santos (2003) e Ricci (2003), determinadas considerações de autores que interpretam a realidade brasileira a partir de pressupostos do distributivismo, apontando como prioritária a meta da reeleição por parte dos parlamentares – a exemplo da lógica prevalecente nos Estados Unidos –, seriam incoerentes em termos teóricos e marcados por baixo teor analítico. Para Ricci (2003), políticas distributivistas nem sempre atendem a uma lógica paroquial, já que podem produzir benefícios concentrados ou difusos. O fato de o sistema eleitoral proporcional de lista aberta adotado no Brasil estar combinado com distritos de elevada magnitude, com população numerosa, incentivam os políticos a produzirem “legislação de cunho difuso [...]. Daí estar equivocada a literatura que trata da predominância de atividade paroquial (do tipo pork barrel) Prelúdios, Salvador, v. 4, n.4, p. 79-97 set./mar. 2015 / 85 no Congresso brasileiro”. (RICCI, 2003, p. 724) Portanto, predominaria dentre as políticas distributivistas produzidas pelos parlamentares na Câmara dos Deputados, as que possuem benefícios difusos, não a de benefícios concentrados, mais identificados com a lógica paroquial. Analisaremos a dimensão geográfica de dominância da votação dos Deputados Estaduais da Bahia para observar até que ponto é possível identificar determinados deslocamentos de suas bases eleitorais, assim como, das características das relações destes deputados com as bases em contextos diferenciados de posicionamento partidário, frente às esferas do poder político. Portanto, se afirmamos que determinado parlamentar domina um reduto eleitoral específico, entende-se que este reduto apresenta baixa competitividade eleitoral, logo, o referido parlamentar seria um intermediador “privilegiado” (principal representante) daquela localidade. Portanto, nesse artigo não aprofundaremos a análise no sentido de direcionar o olhar também à arena parlamentar, com foco na produção legislativa dos parlamentares. Apenas discutiremos determinados pressupostos apontados por esses estudos, buscando identificar as características das bases eleitorais dos parlamentares do Legislativo estadual baiano. Sendo assim, uma das questões que a próxima seção buscará dar conta se refere a esta correlação entre situação frente aos governos/dominância eleitoral. O primeiro pressuposto é o de que partidos que vieram de uma trajetória de oposição aos governos possuem um padrão típico de votação Não-Dominante, justamente por possuírem maior vinculação a bases eleitorais de grande dimensão e maior competitividade; passando para a condição de partidos no governo, é possível afirmar que seus parlamentares também alteraram seus padrões da Geografia do Voto? Por outro lado, partidos com trajetória governista mais relevante, com padrão de votação Dominante, ao passar para a condição de oposição, passam a um padrão Não-Dominante? Resumindo: pode-se afirmar que o voto de tipo Dominante é governista? Essa dimensão da Geografia do Voto possibilita verificar o alcance vertical da votação dos parlamentares, identificando em que medida um determinado deputado domina um reduto específico; com isso, demonstra, também, o grau de competitividade desse mesmo reduto ao qual o parlamentar está vinculado. Adotaremos nesse estudo que o partido de oposição possui presença eleitoral vinculada a grandes cidades, nas quais não conseguem atingir uma dominância eleitoral. Essas cidades, por serem as mais urbanizadas, possuem melhores indicadores de desenvolvimento socioeconômico. Estando relacionadas a uma maior competitividade eleitoral, portanto, possuem “maior” qualidade democrática. O inverso seria o desempenho eleitoral do partido no governo 86 / Prelúdios, Salvador, v. 4, n.4, p. 79-97 set./mar. 2015 estar mais vinculado a redutos de pequena e média dimensão – municípios com baixos indicadores de desenvolvimento social, mais distantes da capital e população reduzida. Esses municípios, dadas essas características, sugerem menor competitividade eleitoral, nos quais o parlamentar estabelece uma dominância. Sendo a realidade de parcela significativa do distrito eleitoral – o Estado da Bahia –, marcado por baixos índices de desenvolvimento socioeconômico, a indicar uma menor presença de parlamentares com votação de tipo Dominante, pode significar aumento do patamar de competitividade, mantendo o diálogo com pressupostos da teoria democrática: em Dahl (1997), com a ideia da prevalência da política, em detrimento dos condicionantes históricos e sociais, ou seja: haveria elevado nível de competitividade – competição plural – não somente nas grandes cidades. Por conta disso, não se pode generalizar a predominância de um conflito com umas das promessas da democracia apontadas por Bobbio (1997), ou seja, a competição não se daria somente em moldes oligarquizados. ANÁLISE DOS PADRÕES DE DOMINÂNCIA DAS VOTAÇÕES DOS DEPUTADOS ESTADUAIS DA BAHIA NAS ELEIÇÕES DE 2002, 2006 E 2010 Para dar conta da análise da Geografia do Voto dos deputados estaduais da Bahia é preciso verificar a variável Dominância desse fenômeno, que nos possibilitará identificar em que medida um parlamentar domina eleitoralmente determinado reduto – demonstrando o grau de competitividade desse mesmo reduto ao qual o parlamentar está vinculado. A operacionalização do conceito de Dominância, sua classificação, seguiu as orientações de Carvalho (2003), através da fórmula: Onde vi= número de votos recebidos pelo deputado estadual da cidade i; pi= número total de votos válidos para deputado estadual na cidade i; V= total de votos recebidos pelo deputado estadual no estado inteiro, e n=15 municípios. Registra-se que o índice de dominância utilizado segue Carvalho (2003) e faz o recorte de 15 cidades nas quais o deputado obteve o maior percentual de votos, já que entre essas, em média, o deputado faz mais de 75% de sua votação entre os três pleitos selecionados. Prelúdios, Salvador, v. 4, n.4, p. 79-97 set./mar. 2015 / 87 A estipulação das faixas de dominância leva em consideração o desvio padrão com relação à média de dominância da Legislatura para a divisão das quatro faixas classificatórias de penetração vertical: Sem Dominância, Baixa Dominância, Média Dominância e Alta Dominância. Nisso, uma ponderação diz respeito à classificação adotada após a aplicação da fórmula, já que o índice de dominância é variável contínua. Em seguida, porém, convertem-se estas faixas numa variável dicotômica: dominância/não dominância. Para exemplificar o procedimento de operacionalização do conceito de Dominância, apresenta-se a eleição de 2002, na qual, primeiramente, calculou-se a média aritmética dos valores do Índice de Dominância obtidos através da fórmula citada anteriormente. Essa média é calculada através da soma dos valores dos Índices de Dominância dividida por 63, que é o total de casos (parlamentares da legislatura). Em seguida, fazemos o cálculo de desvio padrão através da fórmula seguinte: Onde S= Desvio Padrão; Xi= valor do Índice de Dominância; = média aritmética dos valores do Índice de Dominância da legislatura e n= o universo de 63 deputados estaduais eleitos. Dessa forma, obtivemos que a média aritmética do Índice de Dominância da eleição de 2002 foi 0,164; já o Desvio Padrão ficou em 0,101. As faixas de dominância, portanto, foram: parlamentares Sem Dominância (SD): aqueles que tiveram o Índice de Dominância menor ou igual a 0,063; deputados com Baixa Dominância (BD): tiveram o Índice de Dominância maior que 0,063 e menor ou igual a 0,164, que foi o valor da média aritmética; parlamentares com Média Dominância (MD): tiveram o Índice de Dominância maior que 0,164 e menor ou igual a 0,265; e representantes com Alta Dominância (AD): tiveram o Índice de Dominância maior que 0,265. Trazendo a operacionalização do conceito de Dominância para as três eleições selecionadas, e estabelecendo também a identificação das faixas de penetração vertical da votação dos deputados, temos a distribuição a seguir: 88 / Prelúdios, Salvador, v. 4, n.4, p. 79-97 set./mar. 2015 Tabela 1 – Classificação dos parlamentares de acordo com os quatro padrões de Dominância dos votos, nas eleições de 2002, 2006 e 2010 SD % BD % MD % AD % TOTAL %TOTAL 2002 16 25,40% 13 20,64% 24 38,09% 10 15,87% 63 100% 2006 12 19,05% 22 34,92% 17 26,98% 12 19,05% 63 100% 2010 11 17,46% 22 34,92% 20 31,75% 10 15,87% 63 100% SD: Sem Dominância; BD: Baixa Dominância; MD: Média Dominância; AD: Alta Dominância. Fonte: Elaboração própria a partir de dados coletados no site do TSE. De acordo com a tabela, o único padrão de votação dos parlamentares em que a variação apenas aumenta no período selecionado é o de Baixa Dominância, que sai de um patamar de 20,64% dos deputados, e atinge a marca de 34,92% dos parlamentares eleitos em 2006 e 2010. A única variável que apresenta queda em sua representação nos dois pleitos seguintes ao de 2002 é a Sem Dominância, que no primeiro pleito atinge 25,40% dos deputados, caindo 6,35% em 2006; e mais 1,59% em 2010, alcançando o patamar de 17,46% dos parlamentares eleitos neste último processo eleitoral. O padrão de Alta Dominância é o que obteve menor variação no período, e também é o de menor presença entre os parlamentares eleitos: apenas 10 Deputados Estaduais eleitos em 2002 tiveram votação desse perfil, com uma pequena ampliação para 12 deputados em 2006, e retornando para a mesma marca de 10 deputados em 2010. O de Média Dominância variou um pouco mais que o anterior, sendo o padrão de maior presença no pleito de 2002, com 38,09% dos parlamentares, caindo para o patamar de 26,98%, e crescendo a representação para 31,75% dos parlamentares em 2010. Convertendo as quatro faixas de penetração eleitoral, em uma variável dicotômica, ou seja, Dominantes/Não-Dominantes, temos o quadro a seguir: Tabela 2 – Classificação dos parlamentares na variável dicotômica Dominante/Não Dominante de suas votações, nas eleições de 2002, 2006 e 2010. Dep. Vot. Dominante %D Dep. Vot. Não Dom. 2002 34 53,97% 29 46,03% 63 2006 29 46,03% 34 53,97% 63 2010 30 47,62% 33 52,38% 63 % ND Total D: Dominante; ND: Não-Dominante. Fonte: elaboração própria a partir de dados coletados no site do TSE. Prelúdios, Salvador, v. 4, n.4, p. 79-97 set./mar. 2015 / 89 Na tabela, é possível observar certo equilíbrio entre os dois padrões, com leve predominância, em dois dos pleitos, do tipo Não-Dominante. Por si só, esse dado já corrobora com os achados de Carvalho (2003), no qual, contrapondo-se à defesa de Ames (2003), apresenta que cerca de metade dos parlamentares da Câmara dos Deputados possuíam padrão de votação de tipo dominante, sugerindo que, seguindo o critério adotado por Ames (2003), somente 50% dos parlamentares do país seriam estimulados a adotarem um comportamento “paroquial”, de reivindicar benesses para suas bases geográficas, dado o perfil dessas bases eleitorais. O Legislativo da Bahia, portanto, apresenta uma distribuição de seus parlamentares em termos de Geografia do voto equivalente à distribuição dos deputados federais do país. Estabelecendo um diálogo com a perspectiva de Bobbio (1997), pode-se notar que a predominância de um patamar de competitividade equilibrado entre os dois conjuntos de padrões de Dominância faz supor que, em parcela significativa das bases eleitorais representadas em pelo menos metade dos deputados da Assembléia baiana, não predomina um padrão oligárquico de competição/ comportamento político. Esse achado também dialoga com a discussão de Dahl (1997), em certo sentido, contornando o argumento dos teóricos da modernização, na medida em que não somente em contextos de maior desenvolvimento socioeconômico predomina uma competição mais plural, ou seja, não se pode generalizar um padrão de votação dominante no conjunto dos parlamentares eleitos. Não é possível, porém, identificar uma tendência à ampliação ou à redução da competitividade nos distritos baianos, na medida em que chama a atenção, ao se observar o quadro dois, que o efeito do pleito de 2006 operou uma ampliação do padrão de votação não-dominante, no entanto, esse efeito foi atenuado com o pleito de 2010, mesmo não alterando a predominância desse padrão. Com a análise da subseção a seguir, observaremos que esse efeito atenuante possui relação com o reposicionamento em relação aos dois planos de governo, por parte dos dois partidos selecionados, onde o PT, em 2010, acumularia sob sua influencia direta duas instâncias de poder. Esse achado sugere uma continuidade desse estudo em estabelecer correlação dessas distribuições territoriais das votações com indicadores socioeconômicos, para qualificar melhor a caracterização dessas bases eleitorais. Na subseção a seguir, analisaremos a manifestação dos padrões de dominância eleitoral nas votações das bancadas do Partido dos Trabalhadores (PT) e do Partido da Frente Liberal (PFL) – posteriormente Democratas (DEM3) –, 3 O Partido da Frente Liberal (PFL) se reorganizou no ano de 2007 dando origem ao Democratas (DEM). 90 / Prelúdios, Salvador, v. 4, n.4, p. 79-97 set./mar. 2015 ambos à frente do governo do estado em situações distintas nos três pleitos analisados. A DOMINÂNCIA ELEITORAL DAS BANCADAS DO PT E DO PFL/DEM Nesta subseção, damos continuidade à análise da manifestação da dimensão vertical da Geografia do Voto, a partir da observação da dominância das bancadas dos partidos, nos três pleitos selecionados. Dessa forma, serão identificados se esses padrões sofreram modificações na medida em que os partidos se reposicionavam frente às esferas de governo, a partir da avaliação do desempenho das duas siglas mais relevantes no período: o PFL/DEM e o PT – as únicas que estiveram na primeira e segunda colocação nas três eleições. O pressuposto adotado é o de que o PT, que em 2002 estava na condição de oposição no plano estadual e federal, tem sua votação vinculada ao padrão Não Dominante. Conforme vimos, esse padrão está associado a uma presença maior em grandes centros urbanos, ou bases eleitorais de grande dimensão, nas quais é praticamente impossível um parlamentar exercer dominância eleitoral. Já o PFL, que estava na condição de situação nos dois planos em 2002, tinha sua votação no padrão Dominante. Nos pleitos posteriores – 2006 e 2010 – com os reposicionamentos frente às esferas de governo, verificaremos se os padrões de votação também se alteraram. Nas eleições de 2002 o governador eleito era do PFL, partido que vinha de uma presença no governo desde o início dos anos 1990, estando também na condição de situação no Plano Federal. A principal coligação de oposição era liderada pelo PT, que vinha se afirmando como principal partido de oposição na Bahia desde o pleito anterior, de 1998; nos pleitos posteriores seria o principal partido à frente do Governo do Estado. Neste ano, porém, uma situação nova se apresenta: a coligação liderada pelo PT a nível nacional vence as eleições à Presidência da República, fazendo com que o partido estivesse no pleito seguinte na condição de oposição estadual e situação nacional; o inverso se aplicando ao caso do PFL. Em 2006, o PT lidera a coligação vitoriosa nas urnas para o governo da Bahia e também reelege Lula no plano nacional. A principal coligação derrotada em 2006 era liderada pelo PFL – partido que seria deslocado do governo do estado pela primeira vez, desde a eleição de 1990. Portanto, na eleição de 2010, o PT participaria do processo como situação nos dois planos e o PFL (agora como Prelúdios, Salvador, v. 4, n.4, p. 79-97 set./mar. 2015 / 91 DEM) na dupla oposição ao governo petista – invertendo os papéis com relação ao pleito de 2002. Nessa análise, utilizaremos a classificação de dominância de maneira agregada, ou seja: Sem Dominância + Dominância fraca (Baixa) são identificados como Não Dominante (ND); Média Dominância + Alta Dominância são identificados como Dominante (D). Tabela 3 – Classificação da votação das bancadas do PFL/DEM e PT em Dominante/ Não Dominante, nas eleições de 2002, 2006 e 2010. 2002 2006 2010 D ND D ND D ND PFL/DEM 15 1 13 3 4 1 PT 2 8 0 10 4 9 Fonte: Elaboração própria de acordo com dados do TSE. Analisando os dados da tabela, pode-se verificar a significativa presença de parlamentares com padrão de votação de tipo Dominante vinculados ao partido governista, nas eleições de 2002 – apenas um dos deputados possui votação de padrão Não Dominante. Apenas dois parlamentares do Partido dos Trabalhadores dominam seus redutos eleitorais. A grande maioria, portanto, possui votação de tipo Não Dominante. O corte, partido de oposição/votação Não-Dominante, partido governista/votação Dominante, fica evidente neste pleito. O posicionamento nas esferas de governo possibilita, em tese, que o partido disponha de acesso a determinados recursos de poder, com interlocução política privilegiada. Na eleição de 2006, a predominância do padrão Dominante permanece vinculada aos deputados do PFL, desta vez, porém, esse partido não participaria do processo eleitoral como situação nos dois planos. Com a vitória do PT na eleição presidencial em 2002, o PFL em 2006 era governista somente no plano estadual (2003-2007). Mantém o mesmo número de parlamentares eleitos, apesar de contar com dois parlamentares a mais com padrão de votação Não Dominante. Em que pese ter participado do processo eleitoral, no campo governista, em nível federal, o PT mantinha a condição oposicionista no plano estadual. O desdobramento dessa conjuntura foi a manutenção do padrão de votação Não Dominante como predominante, dessa vez, sem nenhum parlamentar dominando seu reduto eleitoral, assim como, também, não ampliando sua represen- 92 / Prelúdios, Salvador, v. 4, n.4, p. 79-97 set./mar. 2015 tação nessa esfera – demonstrando que a condição de governo no Plano Federal não exerceu influência significativa sobre as bases eleitorais do PT no Legislativo estadual. Essa observação é ainda mais relevante quando se confronta esses dados com o resultado eleitoral para Governo do Estado – em que o PT, de forma surpreendente, vence o grupo governista já no primeiro turno – e com o mapeamento das bases eleitorais que dão a vitória ao PT no plano majoritário estadual e Federal. De acordo com Nicolau & Peixoto (2007), os principais redutos eleitorais do PT, na eleição presidencial de 2006, são vinculados a pequenas cidades, de baixo desenvolvimento, positivamente correlacionadas com o direcionamento de recursos dos programas sociais do Governo Federal. O mesmo é afirmado por Borges (2010) com relação às bases do PT para o Governo do Estado, no mesmo pleito, onde os municípios atingidos pelo Programa Bolsa Família, do Governo Federal, são os de melhor desempenho do partido. Já no pleito de 2010 podem ser observadas algumas mudanças. Nesta eleição o Partido dos Trabalhadores foi reconduzido ao Poder Executivo estadual e Federal, e tem sua bancada ampliada para treze (13) representantes. É expressivo o impacto desse pleito sobre o número de deputados com padrão de votação Dominante do partido: eram dois em 2002, nenhum em 2006, passando para quatro parlamentares em 2010 com esse padrão de votação. Em que pese essa presença do padrão Dominante sobre a bancada do PT neste pleito, a maioria dos seus representantes continuaram com bases eleitorais de padrão Não Dominante: nove parlamentares, um a mais que 2002 e um a menos que 2006. A predominância do padrão de votação desse partido nos três pleitos eleitorais, portanto, é do tipo Não Dominante. É significativo também o caso do – agora – DEM (antigo PFL): atuando enquanto partido da oposição nos dois planos, reduz drasticamente sua representação, saindo de dezesseis (16) parlamentares eleitos em 2006 para somente cinco (5), em 2010. Dentre estes, quatro com votação de tipo Dominante – não alterando, portanto, o padrão predominante de sua votação, mesmo após o reposicionamento frente aos governos. Confrontando os dados do PT e do PFL/DEM no período, temos um cenário que não invalida a pressuposição de uma mudança de tendência para o caso do PT – já que ampliou o número de parlamentares com votação de tipo Dominante –, porém não corrobora com a ideia de que, migrando da condição de governo para oposição, teria o padrão de votação predominante de suas bases eleitorais alterado. O PT permanece com predominância do padrão Não Dominante de sua votação, podendo indicar, com isso, duas situações: por um Prelúdios, Salvador, v. 4, n.4, p. 79-97 set./mar. 2015 / 93 lado, ainda permanece com suas bases relacionadas a cidades mais desenvolvidas e de maior dimensão; por outro lado, dada a expressiva redução da bancada do PFL/DEM, a votação do PT pode ter se expandido sobre essas bases eleitorais, indicando um cenário de ampliação da competitividade em redutos de pequena ou média dimensão – corroborando com um cenário já apontado na seção anterior, condizente com situações sugeridas pela teoria democrática: no caso de Dahl (1997), indícios de algumas condições para a existência de uma poliarquia, em termos de competitividade, mesmo em contextos de menor desenvolvimento; no caso de Bobbio (1997), não conflitando com uma das promessas da democracia, na medida em que não se pode admitir a predominância de uma competição oligarquizada. O PFL/DEM, apesar de passar para a condição de oposição nos dois planos, não alterou o perfil de seus redutos eleitorais, mesmo tendo diminuído sua representação: o partido permanece com predominância de votação Dominante, ou seja, com votação em municípios e regiões de menor desenvolvimento. É preciso considerar que possíveis mudanças mais substanciais sobre as bases eleitorais desses dois partidos podem ser sinalizadas em futuros pleitos, pois apenas um cenário de competição eleitoral com reposicionamento nos dois planos foi aqui verificado. Ou seja: maior concentração de poder sob controle de um partido – no caso o PT em 2010 – proporcionou alguma mudança sobre suas bases eleitorais; insuficientes para alterar a predominância desses padrões. Mais um cenário de competição eleitoral com os mesmos posicionamentos frente aos governos observados em 2010 pode sugerir uma maior aproximação das bases eleitorais desses partidos. Portanto, somente com os dados analisados nesse artigo, não se pode sustentar a ideia de que o voto governista é necessariamente dominante, como verificado no pleito de 2002. CONSIDERAÇÕES FINAIS Neste artigo, procuramos estudar as bases eleitorais dos deputados estaduais da Bahia, nas eleições de 2002, 2006 e 2010, a partir da dimensão vertical de suas votações. A Dominância eleitoral é aqui estudada como importante contribuição dos estudos da Geografia do Voto, os quais procuram classificar determinados perfis e padrões de comportamento político de parlamentares e partidos, a partir de seus redutos e estratégias eleitorais. Confrontando com questões de natureza teórica, presentes em estudos da teoria democrática, a análise sobre a segmentação geográfica das votações 94 / Prelúdios, Salvador, v. 4, n.4, p. 79-97 set./mar. 2015 pode contribuir na compreensão acerca da qualidade da democracia, na medida em que aponta o nível de competitividade, assim como de oligarquização dos redutos eleitorais. Assim, o plano empírico aqui abordado apresenta a predominância de um patamar de competitividade equilibrado entre os dois conjuntos de padrões de dominância eleitoral: pouco menos da metade dos deputados estaduais da Bahia dominam seus redutos eleitorais; pouco mais da metade não dominam eleitoralmente seus redutos. Isso, em diálogo com a perspectiva de Bobbio (1997), sugere que em parcela significativa das bases eleitorais da Bahia representadas em pelo menos metade dos deputados da Assembléia baiana, não predomina um padrão oligárquico de competição/comportamento político. Considerando o perfil socioeconômico da maior parte dos municípios baianos, de baixo desenvolvimento, sustenta-se a percepção, apontada por Dahl (1997), de que é possível a existência de condições mínimas à poliarquia, mesmo nesses contextos sociais, a partir de um patamar de competição pluralista – refutando considerações reivindicadas pelos teóricos da modernização. Quando se analisa a distribuição das votações, a partir dos dois principais partidos políticos do período, outra observação pode ser acrescentada: mesmo alterando seus posicionamentos em relação aos governos, esses partidos não alteraram a predominância dos seus padrões de votação nos três pleitos selecionados. Apesar disso, entre 2006 e 2010, a bancada do PT se ampliou, na medida em que se reduziu drasticamente a bancada do PFL/DEM. Portanto, em parcela dos redutos eleitorais da Bahia, para o caso da disputa ao Legislativo estadual, amplia-se o patamar de competitividade, já que é menor o número de parlamentares do principal partido governista Dominando esses redutos, assim como esse partido pode ter crescido sobre as bases eleitorais do principal partido oposicionista – que obteve as maiores perdas nesse pleito. Somente desenvolvendo esse estudo em outras dimensões, com maior aporte de dados, será possível aprofundar determinadas considerações. Uma delas, inclusive, se refere à identificação de possíveis mudanças mais substanciais sobre as bases eleitorais desses dois partidos, já que, nesse artigo, apenas um cenário de competição eleitoral com reposicionamento nos dois planos foi observado. Maior concentração de poder sob controle de um partido – o PT em 2010 – proporcionou mudanças sobre suas bases eleitorais, mesmo insuficientes para alterar a predominância de seus padrões de votação. O que significa dizer que mais um cenário de competição eleitoral com essas características de alinhamento em relação aos governos pode sugerir maiores impactos sobre os perfis geográficos e socioeconômicos dessas bases. Correlacionar essas votações a indicadores sociais também possibilitará perceber melhor as Prelúdios, Salvador, v. 4, n.4, p. 79-97 set./mar. 2015 / 95 características dessas bases, no decorrer desse período, se confirmam uma maior proximidade, ou mantém os perfis eleitorais de maior penetração em zonas urbanas e mais desenvolvidas, no caso do PT, e menor presença nessas regiões no caso do PFL/DEM. LOCALIST DEMOCRACY OF THE PARLIAMENT OF BAHIA: THE ELECTORAL DOMINANCE IN THE LEGISLATIVE ASSEMBLY OF BAHIA IN 2002, 2006 AND 2010 ELECTIONS Abstract The paper studies the constituencies of the state deputies of Bahia in 2002, 2006 and 2010 elections, from the vertical dimension of their votes. The electoral dominance is studied as a contribution of the Vote Geography Studies, which attempts to classify certain patterns of parties and parliamentarians political behavior from their strongholds basis and electoral strategies. The electoral dominance is studied also as dialogue among assumptions of the democratic theory and the modernization theorists, for which the higher levels of competitiveness represent a better democratic quality. The calculation of the electoral Dominance was done according to the formula suggested by Carvalho (2003) and was applied to the vote of all state legislators in three elections; then, it was evaluated whether the dominant pattern of voting is prevalent in the ruling party, from the repositioning of PT and PFL / DEM in three selected claims. The results suggest that the state legislature of Bahia does not have an oligarchical pattern of competition, since almost half of its parliamentarians’ vote has a non-dominant standard, in other words, they share their constituencies. It also suggests that it is not possible to say that the standard of Dominant vote is necessarily ruling. Keywords: Vote Geography; state deputies; Electoral Dominance; oligarchical pattern; democratic quality. Referências ABUL-EL-HAJ, J. Robert Dahl e o Dilema na da Igualdade na Democracia Moderna. Análise Social, Lisboa, v. 43, n. 186, p. 159-180, jan. 2008. AMES, B. Os entraves da democracia no Brasil. Rio de Janeiro: FGV Ed., 2003. AMORIM NETO, O.; SANTOS, F. O Segredo Ineficiente Revisto: o que propõem e o que aprovam os deputados brasileiros. Dados: Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, v. 46, n. 4, p. 661-698, 2003. BOBBIO, N. O futuro da democracia: em defesa das regras do jogo. 6. ed. 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Prelúdios, Salvador, v. 4, n.4, p. 79-97 set./mar. 2015 / 97 Rodrigo Oliveira Lessa1 A LUTA POR MORADIA URBANA E OS TRAÇOS DA REPRESENTAÇÃO DOCUMENTÁRIA NO FILME SONHO REAL (2005) RESUMO O presente artigo busca compreender as representações sociais no cinema documentário, a partir dos elementos estéticos determinantes para a expressão e o levantamento de questões que envolvem o cotidiano da cidade, no filme Sonho Real: uma história de luta por moradia (2005). Dentre estas questões, encontram-se o déficit habitacional estatal, a disputa coletiva de espaços urbanos para a construção de habitações populares, o exercício oculto da força policial em áreas suburbanas e a divulgação jornalística marcadamente ideológica de fatos envolvendo o uso da violência policial. Tais questões dizem respeito ao conflito social que envolveu a ocupação de uma propriedade privada, em maio de 2001, na cidade de Goiânia, articulada pelo movimento dos sem-teto. Um gênero de conflito social comum nas cidades brasileiras. A análise pôde destacar três aspectos que repercutiram decisivamente no perfil de sua maneira de representar o conflito e oferecer um novo olhar sobre fenômenos de embate social no cinema documentário: a) valorização autoral de padrões interpessoais de evidência e argumentação que determinam seu compromisso com a objetividade no documentário, b) a captação da tomada cinematográfica que recorta e registra a circunstância de mundo – onde sobressai a luta por moradia – no seu transcorrer e c) a construção de uma representação que expressa o conflito social sob a perspectiva política de segmentos sociais oprimidos pelas forças policiais no mundo urbano, neste caso, os sem-teto. Palavras-chave: cinema documentário, representações, conflitos sociais, moradia, cidades. INTRODUÇÃO As circunstâncias que envolvem a insurgência de conflitos sociais, resultantes da luta por moradia nas grandes cidades do Brasil, estão geralmente num âmbito de atenção ou divulgação pública bastante aquém da sua relevância, seja enquanto fato social ou acontecimento de interesse público. Ao prevalecer em áreas suburbanas com pouca assistência governamental e cobertura deficiente 1 Doutorando em Ciências Sociais pela Universidade Federal da Bahia. E-mail: [email protected]. Prelúdios, Salvador, v. 4, n.4, p. 99-121 set./mar. 2015 / 99 por parte dos meios de comunicação, estas situações de embate político e luta coletiva permanecem relacionadas ao exercício de uma espécie mais ampla de repressão social, pouco combatida e normalmente legitimada por uma sociedade que desconhece suas características. O filme documentário, Sonho Real, traz para o meio cinematográfico um ponto de vista até então pouco referenciado, no que diz respeito a informações sobre este tipo de luta popular e coletiva. Ao registrar a vida cotidiana dos acampados do sítio Sonho Real – propriedade situada na cidade de Goiânia e destinada à construção de condomínios de alto padrão –, os autores do filme irão buscar entre os recursos estéticos do cinema e, em particular, do filme documentário, a possibilidade de realizar uma contraposição narrativa às outras versões sobre os acontecimentos. Deste modo, esta obra revelará não só uma face desconhecida sobre o contexto que envolve este tipo de conflito social, mas também algumas das condições fundamentais da representação social do filme documentário que traduzem a inclinação deste gênero do cinema para uma revelação mais direta de questões pertinentes à realidade objetiva e ao cotidiano das cidades brasileiras. O FILME SONHO REAL E A QUESTÃO DA MORADIA POPULAR NO BRASIL A história de luta por moradia, retratada em Sonho Real, começou com a ocupação espontânea de uma propriedade privada, no Parque Oeste Industrial da cidade de Goiânia, por parte de pouco mais de 20 famílias pobres, em maio de 2004. O parque compreende uma área suburbana e afastada do centro, Zona Oeste da cidade, onde tradicionalmente encontrava-se um comércio ativo e pequenas indústrias. De acordo com relatos dos moradores da localidade, esta área ficou abandonada durante mais de 40 anos, servindo de ponto para desova de corpos por parte de criminosos e onde ocorriam estupros. A resposta jurídica à ocupação foi imediata e a justiça local impetrou um mandado de reintegração de posse em favor do proprietário. No entanto, a execução foi prorrogada durante meses, até que no auge do processo eleitoral para a prefeitura de Goiânia, ocorreu uma série de negociações entre moradores da ocupação e políticos da região – dentre eles os eminentes aspirantes à prefeitura e o próprio governador do estado – o que trouxe esperança para os habitantes do sítio Sonho Real. Os candidatos eram então Pedro Wilson, do PT, prefeito da cidade na época, candidato à reeleição; Iris Rezende do PMDB, 100 / Prelúdios, Salvador, v. 4, n.4, p. 99-121 set./mar. 2015 que já havia sido governador do estado e prefeito da cidade; e por último Sandes Júnior, do PP, radialista e deputado federalapoiado pelo governador do Estado, Marconi Perillo, do PSDB. Figura 1 – Encarte de sonho real (2005) Fonte: Coletivo de Mídia Independente de Goiânia ([20--]) Encarregando-se das atividades de seu governo, o próprio Marconi Perillo veio a se reunir com as lideranças da ocupação. Entre promessas e garantias, o governador afirmou para os sem-teto que eles poderiam ficar na área e que a desapropriação caberia apenas ao prefeito, mas que certamente ocorreria em razão do proprietário ter um débito de cerca de 2 milhões de reais de Imposto Predial Urbano, com a prefeitura. Por último, garantiu que a polícia militar de maneira alguma agiria para retirá-los da propriedade. A esperança de moradia cresceu entre os sem-teto da cidade de Goiânia em razão do andamento das negociações, de modo que até à intensificação do conflito já viviam lá mais de três mil famílias à espera de um lote, com boa parte já tendo iniciado a construção de casas e comprado, a prazo, artigos para o lar. Embora um novo mandado de reintegração de posse fosse expedido em setembro de 2004, a sua execução foi adiada, em função de uma rodada de negociações envolvendo o governo do Estado. Neste período, já se anunciava o propósito de políticos aliados ao governador de pressionarem as autoridades para a retirada das famílias da propriedade, sob a alegação de que a área não era apropriada para moradias populares. Os advogados do proprietário integravam o coro contra os manifestantes, afirmando que o valor do terreno chegava à casa dos 38 milhões Prelúdios, Salvador, v. 4, n.4, p. 99-121 set./mar. 2015 / 101 de reais, por estar próxima de condomínios de luxo. Esta informação confirmou as suspeitas dos moradores acerca da ociosidade programada da área, durante 40 anos, para efeito de especulação imobiliária, gerando forte indignação, tendo em vista a dívida suntuosa de IPTU contraída junto à prefeitura. Fruto de problemas estruturais da organização socioeconômica e geográfica da sociedade brasileira, o déficit de moradia nas capitais nacionais é um problema comum em áreas devolutas e, principalmente, suburbanas das cidades brasileiras. O que aponta não só para um quadro de desemprego generalizado da população pobre, que não tem condições de financiar a sua própria moradia, mas também para a ausência de uma política pública efetiva de construção de moradias e planejamento urbano em seu favor. O último projeto com tal perfil implantado no Brasil até então, nos remete ao período inicial da ditadura quando, por volta de 1964, o governo federal criou o Sistema Financeiro de Habitação (SFH), que através do Banco Nacional de Habitação (BNH) investiu na construção e financiamento de moradias para a população de baixa renda, embora também não tenha contemplado as camadas mais pobres e necessitadas. A partir de 1968, o BNH, já com aporte maior de capital, implementou projetos restritos em localidades específicas, sem grande impacto para diminuição do déficit habitacional histórico, sendo extinto pouco tempo depois. Suas atribuições foram todas passadas para a Caixa Econômica Federal, o que deu um fim ao último projeto público real de habitação popular. A partir daí, a iniciativa do Estado se limitaria à realização de concessões para construção de moradias em áreas públicas devolutas ou desapropriadas por meio de luta social e reivindicação popular. O principal motivo das cidades tornarem-se superpopulosas são os altos índices migratórios e no caso do Brasil este fenômeno acentuou-se a partir da segunda metade do séc. XX. Neste intervalo, é notória a inversão demográfica de ocupação do território brasileiro: o país, antes rural, passa a ser predominantemente urbano, com sobrecarga de população que exige planejamento urbano envolvendo saneamento básico, saúde, educação, transporte, habitação e outros recursos, comumente requisitados numa cidade de grande ou médio porte. Em Viramundo (1965), documentário de Geraldo Sarno, que apresenta o cotidiano de agricultores nordestinos que chegam à cidade de São Paulo no chamado “Trem do Norte”, estão indicadas circunstâncias fundamentais para a compreensão da migração em massa: falta de terra para o provimento da subsistência e desemprego nas áreas rurais, o que faz de centros urbanos, como a cidade de São Paulo (mostrada no filme), uma esperança de sobrevivência. Problema diretamente relacionado ao passado agrário recente de patrimonialis- 102 / Prelúdios, Salvador, v. 4, n.4, p. 99-121 set./mar. 2015 mo e monocultura no Brasil, onde a posse de terras permaneceu historicamente nas mãos de uma minoria de latifundiários. Uma conjuntura que se perpetuou por meio de herdeiros diretos de senhores de terras que barganharam as terras públicas devolutas a partir da Lei de Terras, em 1850, via a sua ocupação pela grilagem, exercício direto da violência contra agricultores mais pobres ou, por último, negociação com pequenos proprietários em razão de garantias ilusórias de vida na cidade como assalariados. Até o fim do séc. XX e início do séc. XXI, a terra não só seria um bem escasso para os pequenos proprietários, mas também insuficiente para empregar montantes populacionais crescentes em uma agricultura cada vez mais mecanizada, com cultivo direto da monocultura e dedicada à produção de artigos de exportação. Quadro bastante comum em áreas de plantio de soja, no sul e no centro-oeste do país, ou por último no sul da Bahia e norte do Espírito Santo, onde se mantém em pleno funcionamento uma filial da Aracruz Celulose, indústria que produz papel a partir do eucalipto e já atingiu gravemente os meios de subsistência de tribos indígenas e grupos quilombolas da região. Tal como no caso do proprietário do sítio Sonho Real e das áreas do Parque Oeste Industrial de Goiânia, dedicadas a receber o comércio, pequenas indústrias e condomínios de alto padrão são os grandes empreendimentos operacionalizados por uma política social de privilégio às atividades do capital investidor que se sobrepõem aos desejos populares de habitação, moradia e provimento da subsistência. Eventos históricos, conhecidos como a luta das Ligas Camponesas, na década de 60 no Nordeste – também registradas no documentário Cabra Marcado Para Morrer (1984), de Eduardo Coutinho –, a política do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra) de combate ao latifúndio, a partir dos anos 1980, ou a ocupação do sítio Sonho Real, que apresenta uma nova força popular de luta das camadas proletárias da sociedade – a dos sem-teto –, expressam nos conflitos contra corporações e interesses particulares de grandes proprietários uma contradição material inerente ao modo de produção capitalista, que por sua vez também tem alcançado as grandes cidades na forma de lutas sociais. Em um ou em outro caso, a apropriação privada dos meios de produção e de subsistência gera conflitos diretos entre os que detêm e negociam os meios de produção e aqueles que estão a lutar para conquistar os seus meios de sobrevivência. Em meio a estes conflitos, dois tipos de desdobramentos têm sido renitentes: o uso da violência clandestina ou policial contra a população pobre participante de organizações sociais que enfrentam os grupos dominantes e o Estado e, em segundo, a cobertura incompleta ou mesmo tendenciosa dos meios de Prelúdios, Salvador, v. 4, n.4, p. 99-121 set./mar. 2015 / 103 comunicação sobre os conflitos e o uso de força física pela polícia. Com a ocupação do sítio Sonho Real não foi diferente. Duas operações policiais executadas pela polícia militar do estado de Goiânia são acompanhadas pelas imagens do filme, a Operação Inquietação e a Operação Triunfo, retratando o uso desproporcional da violência contra os acampados. Ao mesmo tempo, no próprio filme, consta a cobertura televisiva da imprensa, que traz informações destoantes dos fatos apresentados pelas imagens do documentário. As contradições no modo de produção nas cidades evidenciam-se no documentário pela oposição entre os interesses materiais de proprietários de meios de produção e os trabalhadores no momento em que estes são atingidos pelo desemprego, tornando-se parte do exército industrial de reserva, que atua para a diminuição do valor social da força de trabalho e, ao fim das contas, impossibilita economicamente um montante significativo de trabalhadores de adquirirem a sua própria moradia. Os trabalhadores da ocupação, ao tempo em que assumem a condição de cidadãos impossibilitados de ocupar um espaço onde possam exercer, mesmo a partir da providência pessoal, seu direito social à habitação, são surpreendidos por um novo impedimento: o de construir suas casas em razão de um mercado de especulação mobiliária, que opera a disponibilização de residências para camadas financeiramente privilegiadas. Não obstante, aqueles que lamentam a existência de uma superpopulação nas cidades e creditam unicamente à concentração de pessoas nos centros urbanos os problemas conjunturais – aliando-se inclusive ao discurso segundo o qual os sem-terra, representam na verdade habitantes das cidades sem emprego – ignoram que a presença do capital no campo também faz parte da realidade brasileira. “O nosso campesinato é constituído com a expansão capitalista, como produto das contradições desta expansão. (MARTINS, 1981, p. 16).” Na ausência de ações efetivas do Estado para resolver o déficit habitacional no Brasil, acredita-se ainda ser suficiente a elaboração de projetos para garantir o direito à moradia e construção de habitações, quando hipoteticamente se manteria a convivência pacífica de interesses antagônicos nas cidades. No entanto, as ciências sociais mostram que os chamados direitos sociais para uma vida digna da população pobre estão constantemente em conflito com os direitos civis das camadas mais abastadas. “Pois os direitos sociais dos trabalhadores [...], colidem com os interesses materiais imediatos dos patrões ou seus direitos civis de montarem seus empreendimentos em liberdade, sem a intervenção do Estado.” (ZALUAR, 1994, p. 224) 104 / Prelúdios, Salvador, v. 4, n.4, p. 99-121 set./mar. 2015 A OCUPAÇÃO SE CONVERTE EM ACONTECIMENTO PÚBLICO O sítio Sonho Real, como já foi dito, localiza-se numa região afastada do centro da cidade de Goiânia, na Zona Oeste, onde prevalece a instalação de indústrias, onde havia um comércio e se iniciava a construção de condomínios de luxo. Região ainda por ser valorizada sob o ponto de vista do mercado imobiliário, o espaço ocupado e habitado pelos sem-teto não configura uma zona central da cidade, por onde circula a maioria da população e para qual converge a atenção dos meios de comunicação. Tempos após a expedição do segundo mandado de reintegração de posse em favor do proprietário, os jornais mais acompanhados da cidade, “O Popular” e o “Diário da Manhã”, passaram a cobrir os acontecimentos que culminaram na intensificação do embate entre a justiça local e os proprietários contra o movimento de ocupação, quando já havia uma pressão para a desocupação da propriedade e a intervenção policial a ser mobilizada pelo governo do estado. Deste período do mês de setembro até o fim do ano, o movimento já havia conseguido o apoio de parlamentares e do “Movimento Terra, Trabalho e Liberdade”, que se prontificavam a dar suporte à luta no sítio Sonho Real. Também se uniram temporariamente ao movimento, estudantes e ativistas que se articulavam para ir ao Fórum Social Mundial, e o chamado Coletivo de Mídia Independente (CMI) de Goiânia, organização que assina a produção do documentário. O tipo de representação do movimento dos sem-teto, na ocupação que este coletivo viria a fazer, reconhece influência do que estava sendo exibido na imprensa local de Goiânia, que segundo eles deturpava e ocultava detalhes importantes daquela luta. Um filme documentário toma forma, neste sentido, como a possibilidade de uma representação da realidade do cotidiano dos acampados, que viesse a mostrar a história sob o ponto de vista dos sem-teto, daqueles que, até então, estavam geograficamente deslocados do centro e sem possibilidades efetivas de intervir pela intercomunicação, no tipo de cobertura que estava sendo realizada pelos jornais locais. Apesar de toda a demora que tivemos para estabelecer um contato direto com os ocupantes, a aceitação ao CMI foi grande e construída rapidamente. Cansados de serem difamados pela grande imprensa da cidade, os moradores ficaram surpresos ao saber que havia um meio de comunicação disposto a ouvi-los e mostrar o outro lado, o lado de dentro, o que pudemos constatar convivendo cerca de 3 semanas dentro da ocupação foi algo bastante diverso do que era publicado pela grande mídia. Ali viviam em sua maioria esmagadora famílias pobres, em pequenos barracões onde Prelúdios, Salvador, v. 4, n.4, p. 99-121 set./mar. 2015 / 105 moravam várias pessoas. Todos procuravam fugir da ditadura do aluguel, que tanto oprime os trabalhadores de nosso país e fazem a fortuna de proprietários e imobiliárias. Lá vimos também pessoas de bem, muito diferente do perfil criminoso apresentado pelos jornais e TVs locais. Lá viviam trabalhadores típicos deste Brasil injusto, explorados, com poucos recursos e em busca do sonho da casa própria. (COLETIVO DE MÍDIA, [20--]) Toma forma, com esta iniciativa, um conjunto de filmagens que iria acompanhar o cotidiano dos sem-teto, configurando, a partir das imagens captadas, e de uma contextualização factual e sociopolítica sobre toda a conjuntura que envolveu a ocupação, uma refiguração alternativa dos eventos. As possibilidades estéticas de representação da realidade do filme documentário servem, portanto, como instrumento socialmente empenhado numa versão dupla e combinada do conflito social de luta pela moradia. De um lado, levantando traços de uma realidade pertinente a uma grande cidade. De outro, produzindo, através do cinema e dos recursos que a criatividade e a imaginação permitem, uma obra criativa que se apresente como fruto da inspiração e da identificação íntima do artista com seu objeto, ou seja, uma obra de arte dotada de originalidade2. Nesta medida, sendo o filme documentário este instrumento ou expressão artística, utilizado pelos agentes do Coletivo de Mídia Independente de Goiânia para produzir um olhar sobre o conflito social, que envolve a luta por moradia nesta capital brasileira, podemos afirmar que o modo pelo qual a refiguração da arte se apresenta no filme Sonho Real como um meio de conhecimento para compreender as contradições e conflitos da vida social na cidade está relacionado aos elementos fundamentais que agem enquanto condições sociais para a representação social do documentário. Afinal, imaginário, ideologia, ideias, técnicas artísticas, conhecimentos de um modo geral ou mesmo contextos socioeconômicos exercem influência a partir do rol de circunstâncias em que os realizadores do filme empreenderam o projeto. Dentre as particularidades desta representação, surgem com destaque em Sonho Real alguns recursos de interlocução muito comuns no pensamento cotidiano (ou senso comum), no meio audiovisual (cinema, jornalismo, etc.), no campo do cinema documentário em particular e, de algum modo, alguns que são comuns mesmo ao meio científico. Quais são eles: primeiramente, a técni- 2 “Se assim deve ser, na verdade, a objetividade de um artista, conclui-se que a representação é o produto da sua inspiração, pois, como sujeito, ele identifica-se com o objeto, e é da sua alma, da sua fantasia, da sua vida interior, em suma, que extrai os elementos para a sua encarnação numa obra de arte (HEGEL, 1983, p. 179).” 106 / Prelúdios, Salvador, v. 4, n.4, p. 99-121 set./mar. 2015 ca de valorização autoral de padrões interpessoais de evidência e argumentação, que determinam o compromisso do realizador com a relação de objetividade acompanhada da contraposição realizada dentro do filme à cobertura da imprensa sobre os fatos – um traço presente nas narrativas não-ficcionais no campo do cinema documentário, mas que é forte também no meio científico. Em segundo, o registro da circunstância de mundo que envolveu a intervenção violenta da polícia no acampamento, no seu transcorrer, ou seja, no momento exato em que elas estavam ocorrendo. A técnica de registrar audiovisualmente os eventos ,no exato momento em que eles ocorrem, é extremamente recorrente no filme documentário – e que é também valorizada no meio jornalístico. Por último, a possibilidade de inclusão de uma externalização criativa e íntima de traços do pensamento cotidiano no argumento narrativo do filme documentário – procedimento comum à arte, de um modo geral, e que também faz tradicionalmente parte da forma estética do filme documentário. Segundo Georg Lukács (1965), a noção de refiguração ou representação da realidade aponta para a existência de três tipos de reflexo possíveis de serem destacados, a partir do exercício da racionalidade humana em contato com a realidade objetiva. Inicialmente, sua noção de “reflexo” leva a uma incorrência direta da experiência material sobre a mente, algo precipitado tendo em vista a potencialidade bastante limitada desta mesma racionalidade na apreensão de tudo que está materialmente disposto no mundo e do próprio papel da subjetividade para a apreensão e a externalização deste “reflexo”. No entanto, o modo pelo qual esta racionalidade se manifesta sob três formas características, através da refiguração da “arte”, da “ciência” e do “pensamento cotidiano”, nos permite indentificar na representação do filme documentário elementos que correspondem aos três tipos de manifestação da racionalidade ou do pensamento humano, em contato com a realidade objetiva, presentes também no filme Sonho Real. A característica mais importante desta discussão sobre a representação tradicionalmente encontrada na arte, na ciência e no pensamento cotidiano, é a de que os três tipos de refiguração originam-se e convergem para uma mesma realidade, em detrimento de idiossincrasias: a “realidade objetiva”. Ou seja: os três tipos de reflexo tem origem em uma mesma realidade e são capazes de levantar, cada um com suas potencialidades e limitações, traços da realidade objetiva. A partir do momento em que destacamos os três tipos de refiguração da vida cotidiana na representação do filme documentário que se coloca, ao mesmo tempo, como meio de comunicação para veiculação de informações sobre o mundo histórico não-ficcional – onde todos nós somos atores sociais, de fato –, como Prelúdios, Salvador, v. 4, n.4, p. 99-121 set./mar. 2015 / 107 obra de arte e como externalização de um “bom senso” ou pensamento cotidiano, podemos identificar em Sonho Real como cada um destes elementos foi articulado em função dos traços da realidade que este foi capaz de levantar. Um primeiro aspecto citado pertinente à conduta estética de Sonho Real e à utilização de elementos pertinentes à representação social do documentário é o comprometimento para com padrões interpessoais de evidência e argumentação, o que por sua vez determina e sobreleva o quesito de compromisso com a objetividade no filme documentário. Neste sentido, o filme documentário, ou de não-ficção, distingue-se da ficção por apontar para situações que ocorrem no mundo histórico, diferentemente de um “mundo de fantasia”, hipotético, criado a partir da imaginação do autor, e também por valer-se de padrões reconhecidos de evidência, argumentação, interpretação, seleção de informações, etc., na vinculação de dados sobre a realidade. O que nos remete, de modo sucinto, a uma relação de objetividade entre autor e espectador, elemento tradicionalmente reconhecido à representação da realidade executada pela ciência. (CARROL, 1996). Este é, portanto, o elemento fundamental de um tipo de refiguração da vida cotidiana presente no filme. Sonho Real, nesta direção, começa com planos que apresentam um suposto acampamento com pessoas, casas e artigos do cotidiano, bem como fotos de reuniões coletivas do mesmo ambiente que de imediato são referenciados pela placa que traz o endereço exato de localização deste acampamento: “Rua Cambara, QD. 02, LT.24 – Sítio Sonho Real”. (SONHO REAL, 2005) Mais adiante, assembléias são apresentadas por tomadas que trazem entrevistas de uma personalidade local num telão – onde parece ocorrer uma reunião de acampados – e depois no registro direto de uma coletiva de imprensa, evento que reúne pessoas ligadas ao meio político ou burocrático do Estado de Goiás. Ainda nesta sequência, é identificado, por meio de legenda, um líder do movimento ligado ao conselho Pró-moradia do Sonho Real: o senhor Américo Rodrigues. Este aparece em sua explanação na coletiva, situando em sua fala a data da ocupação, maio de 2004, fornecendo ainda informações precisas sobre o número de acampados do sítio Sonho Real. Há, neste sentido, uma intenção assertiva declarada logo no início do filme da qual o autor se vale para traduzir aquelas informações alí vinculadas, como parte de uma realidade que diz respeito a um lugar e a um período em particular, a uma situação do mundo histórico, levando a uma postura também assertiva do público para tomá-las como reais3. E isso se estabelece na medida 3 Este laço ou relação comunicativa faz parte do conceito de não-ficção, em Noel Carrol: “Ou, em termos mais sucintos, um filme é de asserção pressuposta se e apenas se envolve uma intenção de sentido por 108 / Prelúdios, Salvador, v. 4, n.4, p. 99-121 set./mar. 2015 em que o autor seleciona imagens ou tomadas capazes de trazer esta referência situacional ou, de modo mais direto, por texto em off – que tem um efeito próximo ao da voz off. É, portanto, o caso da imagem com o texto que sucede a entrevista do participante do conselho na imagem: “Algumas histórias Reais...”, acompanhada por outro plano que traz uma placa de rua com o endereço da ocupação: “Parque Oeste Industrial – Rua do Tear – CEP. 74375-710”. (SONHO REAL, 2005) Assim, delineiam-se a partir destas primeiras e de outras opções estéticas uma estruturação narrativa documental que reafirma este direcionamento no filme, esclarecendo de imediato qual postura deverá ser assumida pelo espectador para o seu pleno entendimento. O mais interessante, contudo, é o fato deste compromisso com a execução de um filme documentário e com padrões de evidência e argumentação em Sonho Real – inicialmente indexada pela referência espacial e histórica da situação retratada – ser, não só uma opção estética que aproxima o filme de um gênero do cinema em particular, mas e, sobretudo, um instrumento de contraposição a outras representações anteriormente efetuadas. Seus realizadores, antes de começar o filme, já haviam se colocado em posição de enfrentamento político à cobertura supostamente tendenciosa da imprensa televisiva e escrita, e neste sentido mostraram-se dispostos a utlizar-se de todos os recursos presentes na representação documentária para realizar este contraponto. Com bastante consciência dos autores, o filme passa a apresentar situações no andamento da montagem onde os fatos apresentados pelo filme se contrapõem às promessas de autoridades políticas, declarações de pessoas ligadas à polícia ou à cobertura efetuada pela imprensa local. O que por sua vez termina por dar uma noção bastante clara das limitações da cobertura midiática, principalmente no que diz respeito à imprensa televisiva, a qual se aproximaria mais do filme do por também se valer da imagem em movimento para conquistar a atenção do espectador. A segunda sequência do filme vai sendo apresentada, após a exibição da placa, como o momento de acompanhar o cotidiano do acampamento e das pessoas que vivem naquele espaço. Entre crianças que brincam, moradores que falam da esperança da conquista do espaço e grupos de entrevistados que conversam com os cinegrafistas, chama a atenção a declaração de uma mulher, pela forma segura e direta com que presta seu depoimento e firma sua reivindicação: parte do cineasta que fornece a base para a compreensão de sentidos pelo público, assim como uma intenção assertiva por parte do cineasta que serve como base para adoção de uma postura assertiva pelo público.” (CARROL, 2005. p. 91). Prelúdios, Salvador, v. 4, n.4, p. 99-121 set./mar. 2015 / 109 A imprensa humilha agente, demais, eles falam que só tem vagabundo... Aqui não tem marginal, nós não somos marginais, nós não somos vagabundos, aqui todo mundo tem filho, todo mundo perdeu seu serviço pra conseguir um terreno pra gente. Agora eles vêm falar que nós somos um bando de arruaceiros, um bando de vagabundos, isso não! Eu acho que a imprensa devia respeitar agente. (SONHO REAL, 2005) A entrevista já coloca de início um elemento importante para a contraposição: os próprios sem-teto, com todas as dificuldades e limitações, acompanham a representação da imprensa e discordam profundamente do papel que assumem na voz dos jornalistas. O espectador, com isso, é levado a entrar na problemática da cobertura do evento pelos jornais, ou pelo menos assimilar a questão como o ponto de vista de um dos sem-teto. A tomada com a declarante cede espaço, com o decorrer do filme, para uma assembléia onde os manifestantes relembram as palavras do governador de que a desapropriação estava garantida e não haveria uso da força policial para retirá-los de lá. As declarações fazem menção às palavras proferidas pelo governador nas reuniões de negociação, mostradas num telão no início do filme e apresentadas agora pelo áudio que traz a voz deste e uma imagem onde sua fala encontra-se legendada por texto em off: “‘O que eu tenho que fazer nessa hora, aqui, agora, é garantir que eu não vou mandar a polícia. Se for algum policial lá, algum comandante lá, vai ser demitido. Eu não aceito, vai ser demitido’ – Governador Marconi Perillo.” (SONHO REAL, 2005) Após a exibição de uma gravação com o trecho que contém esta afirmação, proferida pelo próprio governador em reunião com os sem-teto, o filme traz estrondos de bombas e imagens fortes da segunda, e mais violenta, operação da polícia militar para retirar os manifestantes. Ou seja, as palavras do governador não foram cumpridas e o filme faz questão de mostrar isso. A primeira operação apresentada é a “Operação Inquietação”, executada pela polícia militar do estado de Goiânia durante dez dias do mês de novembro, segundo consta no filme. À noite, policiais chegam ao acampamento e passam a alvejar o espaço com bombas de gás lacrimogêneo e de efeito moral, além de fogos de artifício especiais, tiros com bolas de borracha e até mesmo armas de fogo, atingindo um morador no braço, como mostram as imagens. A operação tem por objetivo amedrontar e gerar sentimentos de medo e angústia nos moradores, que por outro lado insistem em unir-se para enfrentar as bombas, mesmos desarmados ou munidos de estilingues. Findada as imagens com a operação, o filme mostra a partir da filmagem de uma televisão comum a cobertura feita pela imprensa, ao mesmo tempo em 110 / Prelúdios, Salvador, v. 4, n.4, p. 99-121 set./mar. 2015 que se revoltam com as informações veiculadas: “Primeiro a energia [do acampamento] foi cortada e em seguida começou a ‘troca de tiros’. Surgiram também clarões causados por bombas lançadas ‘dos dois lados’.” (SONHO REAL, 2005) A cobertura se contrapõe com bastante clareza às imagens do filme, que trazem a polícia numa ofensiva constante e os sem-teto sem porte de qualquer instrumento ameaçador, além do registro das cápsulas das bombas usadas pela polícia e os projéteis de balas de fogo que foram utilizados contra os manifestantes. Um último momento fundamental da contraposição de representação no documentário se dá com as imagens da operação mostrada para desmentir as palavras do governador, a “Operação Triunfo” (de 16 de fevereiro de 2005), executada pela polícia militar após a “Operação Inquietação” para a retirada dos moradores da localidade por meio da força. Primeiramente, a sequência traz, de forma quase que imediatamente sucedida, declarações do Tenente Cel. Antônio, da polícia militar, afirmando dentre outras coisas que a imprensa seria autorizada a fazer a cobertura da operação. No entanto, logo em seguida, o texto em off dá a informação de que esta cobertura havia sido negada pela polícia no momento da operação, mostrando o espaço afastado que foi reservado para os jornalistas, além da informação ,também no texto em off, de que dois voluntários do CMI tiveram seu equipamento de filmagem roubado pela polícia e ainda haviam sido espancados pelos mesmos. A sequência é concluída com as palavras do secretário de segurança da cidade de Goiânia, o senhor Jônatas Silva, em coletiva, afirmando sobre esta operação que “O batalhão de choque não estava armado, porque o batalhão de choque usou cacetete.” (SONHO REAL, 2005). Cena que é contraposta com a da entrada da polícia de choque armada com pistolas automáticas durante a Operação Triunfo no acampamento. Com algumas das passagens utilizadas pelos autores para realizar uma contraposição de representações, podemos perceber o modo pelo qual a relação de objetividade do documentário e o compromisso com critérios de evidência, argumentação, seleção, interpretação, etc., são utilizados como ferramenta fundamental para conceder ao filme, enquanto uma obra de arte, a possibilidade de levantar questões e acontecimentos importantes envolvendo o cotidiano de conflitos da cidade de Goiânia. A qualidade suburbana da localização do sítio Sonho Real, afastada do centro da cidade, onde prevalece um pequeno centro Prelúdios, Salvador, v. 4, n.4, p. 99-121 set./mar. 2015 / 111 Figura 2 – Imagem do filme Sonho Real (2005)4 Fonte: Coletivo de Mídia Independente de Goiânia. industrial e há movimentação afastada do centro da cidade, onde prevalece um pequeno centro industrial e há movimentação menos intensa de pessoas, contribui para uma publicidade menos adequada ao decorrer dos acontecimentos. Se para a imprensa seria possível esta cobertura, os cineastas mostram que as imagens da imprensa, retratadas no filme, não se aproximaram o suficiente do espaço e das pessoas para levantar informações importantes. Algo que, por outro lado, diz respeito a uma questão bastante comum às grandes capitais brasileiras, tendo em vista que a grande imprensa elabora representações dos conflitos sociais de modo bastante conservador. A tendência se configura pelo efeito de direcionamento ideológico firmado a partir da influência dos grandes financiadores das redes de televisão, que participam com a vinculação de propagandas. Afinal, são justamente as grandes empresas, indústrias e corporações de mobilização do capital, as partes mais interessadas em denunciar as mobilizações sociais que pleiteiam a conquistas de direitos sociais como motins populares, pois entram em conflito com os direitos civis dos grandes proprietários. A representação fílmica dos conflitos sociais originários das contradições de interesses de classe, do modo de produção capitalista na cidade, também está sujeita à ocultação de informações que demonstram os abusos e a violência impetrada pelos grandes proprietários. Algo inerente não apenas à vida do campo, onde esta violência é ainda mais facilmente acobertada sem que a maioria da população tome notícia, restando às estatísticas que apresentam os 4 Imagem do filme Sonho Real (2005) na oportunidade em que a polícia se preparava para entrar no acampamento através da Operação Triunfo. 112 / Prelúdios, Salvador, v. 4, n.4, p. 99-121 set./mar. 2015 números de camponeses mortos em chacinas – quase sempre em função de disputas de terra – o papel de fazer circular os dados com pouca comoção pública. A CAPTAÇÃO DA TOMADA CINEMATOGRÁFICA QUE REGISTRA A CIRCUNSTÂNCIA DE MUNDO NO SEU TRANSCORRER Outro elemento igualmente importante para a representação do conflito social dos sem-teto na cidade de Goiânia, e que está contemplado no filme Sonho Real, é a captação da circunstância de mundo que envolve a questão da luta por moradia no seu transcorrer. A partir deste elemento em particular, podemos observar que uma opção ou mesmo circunstância de realização do documentário presente na conduta estética de seus realizadores é fundamental para uma captação bastante rica dos eventos reais envolvendo a luta social dos moradores da ocupação, principalmente no que diz respeito ao exercício da violência policial. Ele deriva de uma forma particular de produzir a imagem documental para alcançar o que Fernão Ramos (2005) denomina a “cicatriz da tomada”, “imagem intensa paradigmática” ou captação de uma imagem extraordinária. O conceito procura definir uma busca comum da tradição documental para atribuir um máximo de evidência à tomada cinematográfica no seu embate com a circunstância de mundo histórica, circunstância esta que é o foco central do gênero cinema documentário. Se analisarmos a conduta estética dedicada ao filme Sonho Real, veremos que a sua composição resgata recursos de diversas tradições documentárias, mas duas delas se apresentam com mais evidência. Em primeiro lugar, o filme está permeado por textos em off, o que indica o fato do seu autor se preocupar em direcionar a interpretação do espectador para as imagens que circundam a montagem, e, através deste e de outros elementos, apresentar uma tese ou argumento sobre a questão levantada. Algo que os aproxima da forma clássica de produzir um documentário, historicamente encontrada em diretores como Robert Flaherty, no caso do texto em off, ou Humberto Mauro na questão de haver uma tese, idéia ou valor a ser transmitido por meio do filme. No entanto, a aproximação mais forte da narrativa, principalmente no que diz respeito à captação da tomada no seu transcorrer, é com as tradições pertinentes ao cinema direto e ao cinema verdade, o primeiro emblematicamente referenciado no filme Primárias (1960), de Robert Drew, e o segundo na obra Crônicas de um verão (1961), de Jean Rouch e Edgar Morin. Prelúdios, Salvador, v. 4, n.4, p. 99-121 set./mar. 2015 / 113 No segundo estilo prevalece uma resolução da polêmica lançada contra o modelo clássico, quando a posição extremamente ativa do autor e passiva do público foi criticada para, logo em seguida, ser contestada também uma suposta intenção de fazer um filme onde a sua representação não acompanhasse uma tendência valorativa ou interpretativa das imagens ou questões abordadas por parte dos autores. O Cinema Verdade, protagonizado pela figura de Rouch, como última versão desta polêmcia, trará a posibilidade de admitir a intervenção da subjetividade do cineasta no filme e de seu ponto de vista particular ao tempo em que procura desvendar uma verdade dos acontecimentos pelo documentário, mas já como uma “verdade do filme”, e não como uma verdade no sentido usual do cinema documentário até ali. A partir daí, o cineasta se preocupará em demonstrar ao espectador a sua participação nos planos de imagem, aparecendo muitas das vezes como mais um personagem da história que está interpretando os fatos e interferindo na busca das informações juntamente com os outros atores sociais, protagonistas ou coadjuvantes do eixo de interesse central da obra. Embora em Sonho Real não deixe de haver uma posição firmada, uma tese declarada e conclusiva sobre os acontecimentos, a participação dos cineastas como personagens da história é um dado bastante referenciado. Logo no início, quando a segunda sequência do filme traz as filmagens do acampamento em sua vida ordinária, habitual, o cinegrafista conversa com os personagens, com grau relativo de intimidade, e mesmo não aparecendo na câmera, ele expressa, sem ressentimentos, a sua inserção entre os sem-teto. Em uma das primeiras cenas, uma senhora diz ao câmera, sorrindo: “‘Tá’ filmando é, João?” (SONHO REAL, 2005) Em outras entrevistas, os autores do filme fazem perguntas aos sem-teto, que por sua vez vão respondendo numa conversa de tom bastante informal. Esta participação surge em outros momentos, como na já citada abordagem policial contra os voluntários da CMI que registravam a onda de violência no acampamento. O desdobramento mais importante desta conduta estética conjugada, todavia, destaca-se na forma pela qual foram registradas as operações da polícia. Neste momento, podemos observar, integrados, o comportamento participativo do Cinema Verdade com a possibilidade de registrar circunstâncias decisivas do conflito no seu transcorrer, possibilidade esta que recebeu destaque pela estética do Cinema Direto, a partir da realização de filmagens com mais liberdade – em função da câmera se tornar ainda mais leve – e com som direto – que permitiu pela primeira vez a gravação simultânea do áudio de campo. Tanto na “Operação Inquietação” quanto na “Operação Triunfo” os cinegrafistas estavam presentes no acampamento, do lado de dentro, passando 114 / Prelúdios, Salvador, v. 4, n.4, p. 99-121 set./mar. 2015 pela mesma situação de medo e angústia dos moradores do local, o que de imediato dá maior dramaticidade às imagens. Na primeira operação, à noite, a escuridão contrasta com as explosões que estouram no microfone da câmera com enorme força, produzindo um audio que reage à força das bombas de efeito moral, produzidas justamente para gerar esta intimidação auditiva. Também as imagens, pelo próprio efeito do conflito, são constantemente balançadas, tremidas e agitadas em razão das bombas que são arremeçadas na direção do próprio cinegrafista, assumindo quase que espontaneamente uma função rítmica, muito utilizada no cinema para projetar uma participação subjetiva do espectador em ocasiões de tensão ou surpresa, definida por Marcel Martin (1990), como a “expressão subjetiva do ponto de vista de um personagem em movimento”. Por último, em lapsos de extrema coragem durante a “Operação Triunfo” – a mais violenta, com 2 mortos –, o cinegrafista se expõe como alvo para os policiais armados, visando conseguir imagens fortes da entrada da polícia no acampamento, escondendo-se, momentos depois, junto aos manifestantes numa casa, onde por sua vez chora uma criança que sofre com os efeitos angustiantes do gás lacrimogêneo. Segundo Fernão Ramos (2005), a tradição documentária indica através dos recursos utilizados na produção de filmes reconhecidamente relacionados ao gênero algumas particularidades que o distinguem da tradição ficcional. A primeira delas envolve a própria formação da “tomada”, que pode ser entendida inicialmente como a circunstância de mundo a partir da qual a imagem-câmera é constituída para o espectador pelo sujeito-da-câmera (sujeito que sustenta a câmera). Na maioria das imagens documentárias, predomina uma “homogeneidade espacial” entre o campo da imagem e a circunstância de mundo que a circunda, enquanto, na ficção, é marcante a “heterogeneidade espacial” nesta relação, que pode ser exemplificada pelo uso do cenário nos filmes ficcionais. Ou seja: no primeiro caso o sujeito-da-câmera participa da circunstância de mundo que está no campo da imagem, enquanto no segundo, não. Esta predominância da homogeneidade, no caso do documentário, influi diretamente na importância da captação de uma circunstância de mundo no seu transcorrer para o gênero documentário: “Na tradição documentária, o peso da circunstância de mundo em seu transcorrer, que cerca a circunstância da tomada (ou melhor resumindo, o peso da circunstancia da tomada), tem uma dimensão infinitivamente maior do que no cinema de ficção.” (RAMOS, 2005, p. 161). E apenas numa condição de homogeneidade espacial do sujeito da câmera com a circunstância de mundo, como acontece no documentário, é que este peso poderia se fazer significativo na apreensão do espectador. Prelúdios, Salvador, v. 4, n.4, p. 99-121 set./mar. 2015 / 115 Inserida neste contexto de homogeneidade espacial, a intensidade da imagem-câmera é propriamente o momento em que este sujeito que sustenta a câmera, o sujeito-da-câmera, encontra-se presente numa circunstância de tomada extraordinária, incomum. E é a esta intensidade que corresponde à “cicatriz da tomada” na imagem. A captação da circunstância de mundo histórica – pertinente à dimensão da realidade objetiva – do uso da força policial, neste sentido, é revelada com grande ênfase pelo resultado estético do filme. O cinegrafista e os outros membros da equipe, como fica claro, são personagens daqueles acontecimentos, e estão sujeitos aos mesmos perigos dos sem-teto, o que por sua vez é transmitido para imagem-câmera e atinge o espectador, que termina por se projetar subjetivamente na mesma circunstância. Ao aproveitar a oportunidade de registrar os eventos e o caráter portátil da câmera, os autores de Sonho Real passam da situação de atores da história para a de observadores privilegiados, fato que é materializado numa sucessão de imagens que não só projetam emoção ao filme, mas, sobretudo, reforçam a relação de objetividade no documentário e reafirmam, a partir de evidências claras, a contraposição estabelecida contra as informações, até então, veiculadas pela cobertura da imprensa sobre os sem-teto e a sua militância de conquista do direito à moradia. Para os habitantes de Goiânia, do resto do Brasil ou para a própria imprensa local, as imagens retratadas no filme são únicas, extraordinárias sob o ponto de vista do modo como foram realizadas, e ainda pelo fato de não haver, até então, outras representações com a mesma inserção pragmática. As imagens de Sonho Real atuam com este efeito representativo e contrapositivo, pois apresentam uma especificidade evidente que se destaca frente ao perfil retórico da imagem de um programa jornalístico televisivo. A princípio, embora só no primeiro caso tenha existido um acompanhamento dos acontecimentos em tempo real, tanto a imagem no seu transcorrer, quanto à imagem, que tradicionalmente é realizada pela imprensa de televisão – quando o repórter irá se colocar fisicamente no local do acontecimento para falar sobre um fato que no mais das vezes já se esgotou – se colocam numa condição passível de convencimento do espectador. “Quando cortamos para o repórter ele invariavelmente está no primeiro plano do quadro enquanto o plano de fundo serve para documentar, ou provar, sua localização [...]. Nesse caso, a presença física tem uma função retórica.” (NICHOLS, 2005, p.85). No entanto, logo percebemos também o quanto o plano da imagem televisiva pode servir para o convencimento sobre qualquer texto proferido pelo repórter, bastando que não destoe muito dos objetos que aparecem no próprio plano. A tomada cinematográfica do documentário que capta a circunstância de mundo no seu transcorrer, por outro lado, traz na imagem 116 / Prelúdios, Salvador, v. 4, n.4, p. 99-121 set./mar. 2015 o evento sobre o qual se posiciona crítica ou ideologicamente, fazendo da própria evidência um argumento e uma interpretação dos acontecimentos. A representação de Sonho Real em contraposição à cobertura televisa, por isso, encontra na circunstância da tomada um aspecto insubstituível. Como último tipo de refiguração da realidade presente no filme documentário Sonho Real, podemos destacar de modo sucinto e direto, o fato de abarcar, na sua narrativa e argumento, uma face do pensamento cotidiano, ou do “bom senso”, tendo em vista que se trata de uma posição sociopolítica tomada a partir de uma vivência e de uma externalização da opinião construída a partir dela. Neste sentido, o filme se coloca contra a demagogia dos políticos, que fizeram promessas aos sem-teto e não cumpriram; contra a justiça, que decretou o despejo contra os moradores do acampamento que já haviam investido em suas moradias; contra o ato violento da polícia militar que efetivou a ação; contra os próprios proprietários do sítio Sonho Real e, por último, contra a imprensa, que teria ocultado o massacre resultante das operações policiais. Embora pareça, inicialmente, ser um elemento que compromete a informação e a representação da realidade no documentário, a defesa retórica da uma posição política de uma categoria desfavorecida também quanto à participação nos espaços públicos de discussão e vinculação de informações constitui, na verdade, uma fissura importante no sistema ideológico de divulgação pública de acontecimentos, envolvendo o cotidiano da cidade. A subjetividade, mesmo na ciência, não é motivadora direta da impossibilidade de se manter a relação de objetividade entre comunicador e receptor de informações ou conhecimento. Pelo contrário, para a dialética materialista, por exemplo, a subjetividade é um dos caminhos para que o indivíduo se aprofunde na configuração das relações sociais, pois ela é condicionada pela base econômica da sociedade, a intraestrutura, e pela suprerestrutura de conhecimentos e instituições sociais que se ergue sobre ela para dar fôlego ao desenvolvimento das forças produtivas. A intimidade reflexiva tem, portanto, uma face coletiva, a qual pode vir a ser externalizada pelo indivíduo de diversas maneiras, sendo a arte a forma de conhecimento que por excelência dá total espaço para que ela se apresente e revele os termos do embate do sujeito com o mundo social e material que o circunda. No caso de Sonho Real, o documentário como expressão artística à disposição do Coletivo de Mídia Independente de Goiânia, constituiu um meio pelo qual a arte pode servir a um grupo desprivilegiado economicamente – os sem-teto – como forma de divulgar idéias e acontecimentos que fizeram parte de uma passagem importante de suas vidas, um momento de ruptura Prelúdios, Salvador, v. 4, n.4, p. 99-121 set./mar. 2015 / 117 com práticas cotidianas, gerando a possibilidade de ocupar um espaço comunicativo mínimo, mas já eficiente, na conquista do apoio de outros setores da sociedade, em função de uma causa ignorada pelas instâncias e instituições majoritárias no seu gerenciamento ideológico, político e econômico. Pôde, neste sentido, ser o caminho de uma sensibilização dos membros da equipe com a condição dos sem-teto, expressando no seu resultado um exercício de aprofundamento da consciência de classe, a partir da problematização das zcontradições entre capital e trabalho suscitadas pela questão da moradia numa grande capital brasileira. CONSIDERAÇÕES FINAIS Os diferentes tipos de refiguração da realidade objetiva, possíveis de serem encontrados num filme documentário, se apresentam necessariamente de forma articulada, ou mesmo dissolvida. Num ou noutro elemento específico pertinente à representação social do filme Sonho Real como um todo, podemos observar a atuação de elementos distintos que nos remetem consequentemente a outras formas de refiguração aparentemente relacionadas a momentos diferentes da narrativa fílmica. Se, a este respeito, a relação de objetividade se colocou como um elemento central foi, justamente, porque a partir dela os autores perceberam a possibilidade de realizar um filme que trabalhasse a questão da contraposição de representações e tocasse de forma mais direta o espectador, remetendo-o ainda à mesma sensação de indignação frente ao tipo de cobertura realizada pela imprensa. Do mesmo modo, o efeito das imagens que registram a circunstância da invasão policial no acampamento decorre também de um envolvimento estético pertinente ao desenvolvimento de toda a narrativa, seja pela garantia da evidência proporcionada pela relação de objetividade ou por meio da identificação do espectador com o pensamento cotidiano assumido pelos autores e integrado à narrativa. Esta apresentação articulada chama a atenção para o fato de que elementos pertinentes aos três tipos de refiguração – ciência, arte e pensamento cotidiano – tem origem no contato dos indivíduos com a realidade objetiva e, consequentemente, no exercício racional de refletir sobre ela, podendo ser encontrados em alguns de seus elementos fundamentais na representação social do filme documentário. O que, por sua vez, nos remete diretamente à consideração de que os três tipos operam de forma integrada neste gênero, atuando como meios válidos para viabilizar reflexões sobre a realidade da vida cotidiana 118 / Prelúdios, Salvador, v. 4, n.4, p. 99-121 set./mar. 2015 e denunciar as contradições de classe que emergem nas lutas sociais do mundo contemporâneo. Por último, o exercício de levantar traços desta realidade objetiva ao âmbito da reflexão humana possibilita ao pensamento cotidiano, como o âmbito de refiguração socialmente compartilhado, um avanço no processo de superação e compreensão da vida material, dando à razão uma forma mais desenvolvida na sua apresentação cotidiana. THE STRUGGLE FOR URBAN HOUSING AND THE ELEMENTS OF DOCUMENTARY REPRESENTATION IN THE FILM SONHO REAL (2005) Abstract This article seeks to understand the social representations in documentary filmmaking from the determinants for expression and raising issues involving the life of the city in the aesthetic elements of Sonho Real: uma história de luta por moradia (2005). Among these issues are the state housing deficit, the collective struggle of urban spaces for the construction of affordable housing, the hidden exercise of the police force in suburban areas and markedly ideological journalistic disclosure of facts involving the use of police violence. Such issues relate to social conflict which involved the occupation of private property in May 2001 in the city of Goiânia, articulated by the movement of the homeless. A common genre of social conflict in Brazil’s cities. The analysis could highlight three aspects that resonated decisively on its way to represent the conflict and offer a fresh look at phenomena of social struggle in the documentary film profile: a) appreciation of interpersonal standards of evidence and argument to determine their commitment to objectivity in the documentary, b) capture film making that cut and records the fact that world - where stands the struggle for housing - in its elapse, and c) the construction of a representation that expresses the social conflict in the political perspective of oppressed social groups by the forces police in the urban world, in this case, the homeless. Keywords: documentary filmmaking, representations, social conflicts, housing, cities. Prelúdios, Salvador, v. 4, n.4, p. 99-121 set./mar. 2015 / 119 Referências CABRA marcado para morrer. Direção Eduardo Coutinho. Rio de Janeiro: Globo vídeo, 1984. 1 videocassete, (119 min.). son. col., VHS. CARROL, N. Ficção, não-ficção e o cinema de asserção pressuposta: uma análise conceitual. In: RAMOS, F. (Org.). Teoria contemporânea do cinema.São Paulo: Ed. Senac, 2005. p. 159-226. CARROL, N. Theorizing the moving image. New York: Cambridge University Press, 1996. COLETIVO de mídia Independente de Goiânia. Goiânia, [20--] Disponível em: <http:// www.midiaindependente.org/pt/red/static/about.shtml>. Acesso em: 22 abr. 2008. CRÔNICAS de Um Verão. Direção : Jean Rouch e Edgar Morin. 1961. 85min. HEGEL, G. W. F. Estética: o belo artístico ou o ideal. 3. ed. Lisboa: Guimarães, 1983. LUKACS, G. El film. In.: LUKACS, G. Estética I: la peculiaridad de lo estetico. v. 1. Barcelona: Grijalbo, 1982. p. 173-207. LUKÁCS, G. Los problemas del reflejo en la vida cotidiana. In: LUKACS, G. 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Tomar o pagode enquanto manifestação genuinamente baiana e soteropolitana é coloca-lo diante de um ethos no qual se transportam valores, costumes, hábitos e crenças que constroem comportamentos novos e solidifica outros tantos presentes em nossa cultura. Por fim, deve-se notar que o “universo pagodeiro” constitui-se de uma complexidade de temas enriquecedores para os cientistas sociais, pesquisadores de cultura e profissionais ligadas à temática da corporeidade. Palavras-chave: Pagode baiano; Corpo; Sexualidade; Ciências Sociais; Cultura. O BALAIO Percorrer as ladeiras e ruas na cidade de Salvador é entrar em contato com um imenso balaio de costumes e hábitos que configuram a realidade cultural e social de uma capital, onde os vendedores de café com seus carrinhos tocam o ritmo da Bahia! As mulheres travam uma corrida para arrumar seus cabelos, pintar as unhas, customizar suas roupas e correr para arranjar um transporte que as leve para mais uma das edições dos “megafest’s” na cidade. Os homens, por sua vez, equipam seus carros com o que para eles é o mais sofisticado sistema de som e outros tantos acessórios para ouvir em alto volume seu ritmo favorito. Nas festas de rua, é possível se contagiar pela multidão de desconhecidos que em poucos minutos dançam de forma espontânea a mesma coreografia, e de repente estão a cantar um refrão que não se sabe quem é seu interprete, muito menos seu compositor. 1 Licenciada em Ciências Sociais pela Universidade Federal da Bahia. Especialista em Gestão Educacional Integrada pela Faculdade Afonso Claudio. Especialista em Arte em Educação pelo Centro de Estudos Avançados em Pós Graduação e Pesquisa; email: [email protected] Prelúdios, Salvador, v. 4, n.4, p. 123-135 set./mar. 2015 / 121 Nos vemos incorporando novas gírias às nossas conversas; pode-se ainda, se deparar com uma multidão de jovens garotas alucinadas com o novo ícone do momento: “e ele é um negão, todo lindo!” ( como me disse certa vez uma jovem que continuou a me dizer “que faria loucuras só pra ficar perto dele”); até em um ambiente cheio de pompas e protocolos, que é o poder legislativo da cidade, nos deparamos com Leo Kret, vereadora da cidade, oriunda do pagode , famosa por ser um travesti e hábil dançarina desse ritmo. Nos ônibus coletivo logo somos tomados pelo espanto de ver uma turma de adolescentes voltando do colégio tocando pagode no fundo do “buzú,” onde estão compartilhando , criando e recriando novas canções. As academias lotam, nos meses que antecedem o verão e o carnaval, para o ensino do suingue baiano; as denúncias sociais do cotidiano violento tomam o lugar dos refrãos jocosos; outros ritmos contemporâneos são chamados à parceria; o jazz se funde com o popular e cria-se a Orquestra Sinfônica de Pagode; Em plena festividade carnavalesca cantor se exalta quando vê o racismo se manifestar de forma tão latente; os meninos passam a se preocupar com o corte de seus cabelos, a linhas que seus músculos irão delinear, depilam seus corpos e sobrancelhas, etc. Assim, a qualquer transeunte é possível perceber que o pagode marca a vida cotidiana na cidade de Salvador, fazendo parte do dia a dia dos que consomem, produzem, reproduzem e até dos que se acham indiferentes a esse ritmo musical. Em pleno avançar das políticas socioeconômicas do país e a presença da classe média brasileira podendo se deparar com uma situação social, na qual os padrões de consumo e renda se alteram, rumo ao desenvolvimento desejado, pelos grandes capitalistas, encontra-se, o pagode do sul da Bahia, versificando a ostentação e a luxúria, que de pecado capital transforma-se em estilo de vida e comportamento da juventude. PARA ALÉM DO RITMO Diante desse quadro, é possível encontrar a razão, ou as várias, para que um ator no social torne o pagode para além de ritmo estético. Antes que o tornem o repertorio da construção de um papel assumido em suas vidas cotidianas, demonstrando a força expressiva e simpática que nasce da transmutação, do encontro e do desencontro de identidades e territórios na capital da Bahia. Para tanto, a proposta aqui apresentada é a de investigar a juventude na cidade de Salvador que se apresenta como construtora de um cenário sociocultural, 122 / Prelúdios, Salvador, v. 4, n.4, p. 123-135 set./mar. 2015 onde parece predominar uma conduta específica, constituída de uma determinada forma de representação e de identidade no âmbito social e a construção de uma performatividade, do ponto de vista estético e cultural, na vivência do pagode baiano. Para uma melhor compreensão do universo social que está sendo investigado na pesquisa, se faz necessário entender como está sendo empregado o uso de alguns conceitos centrais. Assim, o esclarecimento da problemática vai ser conduzido por uma bibliografia sobre a produção musical baiana, explorando as origens do gênero musical em evidência, até as transformações históricas e sociais pela qual passou, além dos reflexos dessa transitoriedade na agencia e na construção de sujeitos que se enquadram enquanto publico consumidor desse contexto de produção musical e social na cidade de Salvador e, consequentemente, a observação e a exploração direta dos bailes, reuniões em praças, espaços de diversão dos mais variados que movimenta esse publico. Posto que a performance assumida pelo ator constitui em uma serie de adaptações a heranças corporais, de modos de percepção e das tendências de ação vinculadas a essas heranças, às logicas de produção e o consumo de informação.( RODRIGUES, 2006) O que interessa nesse projeto de pesquisa é encontrar, através dos próprios atores, quais as motivações, as maneiras, os comportamentos que fazem com que esses indivíduos assumam uma representação diante de outros, que fazem com que o pagode baiano não seja apenas um estilo musical nas suas vidas. Entendendo que estamos nos referindo ao pagode: [...] que vicejou na mídia baiana a partir do final dos anos 80, e é sucessor próximo do samba-de-roda, por sua vez herdeira da chula, inclusive em formas que se aproximam do partido-alto. Tem forte apelo sensual, colocando no centro quase sempre o jovem negro baiano, corpulento e conquistador. Consolidou-se na radio e na televisão a partir do grupo Gerasamba [...] Todos os seus ídolos são jovens negros atléticos [...] que se consagram mediante desenvoltura em conjugar os desempenhos como vocalista, dançarino e símbolo sexual. (MOURA, 2010, p. 7) Diante da referência acima, podemos identificar que esse ritmo se apresenta como herdeiro de quadros estéticos anteriores que encontramos em ambientes bem diversificados da realidade, em tempos atuais. Desta maneira, visualizamos a pertinência da analise da transitoriedade estética e cultural desse gênero musical que se apresenta no balaio das relações sociais, desde a periferia aos bairros nobres da cidade de Salvador na Bahia. Prelúdios, Salvador, v. 4, n.4, p. 123-135 set./mar. 2015 / 123 Como também, é importante salientar o universo de signos que alimentam o imaginário simbólico da população em torno desse ritmo musical. Verificando com isso as visões que se tem em torno do pagode em tempos atuais. Será mesmo que sua origem está na chula do recôncavo? Essa imagem relacionada à população negra masculina pode ser reificada? Assim, interessa-nos saber como as pagodeiras e os pagodeiros, que consomem esse ritmo musical, constroem e vêm construindo um repertório de signos e símbolos, a exemplo, observa-se que há uma maneira específica de se vestir (shorts jeans tipo biquíni, tops de malha nas meninas; blusas de gola v, short estilo surfista nos meninos), onde encontramos o uso de determinadas marcas de roupa e sapatos (mulheres de salto alto, calça jeans com etiqueta de griffs, como ELLUS; tênis de marcas como NIKE). Há uma preferência por marcas e cores de carros (majoritariamente de modelos como Celta, Gol, de cores vermelhas e brancas, todos com vidros fumê); há uma forma específica de agir no momento da paquera (forma mais sensualizada de representação perante o outro) etc., Portanto, creio que entender como esse universo se constrói é de relevância no estudo das transformações socioculturais, operadas na capital baiana. Para resolver as questões, o estudo irá observar a juventude (com uma faixa etária entre 18 e 25 anos) que consome a música e os signos sociais dela surgidos e que se reúnem em praças públicas na cidade de salvador (como por exemplo o bairro do Tororó) para trocarem experiências das mais diversas possíveis, no processo de aquisição do pagode. A escolha da juventude se dá por existir nela uma expressão mais significativa do consumo deste estilo musical. Não significando dizer que outro estudo não possa vir a ser feito envolvendo sujeitos em outra faixa etária. Dentro desse horizonte, deve-se buscar qual a origem do pagode no ambiente urbano. A maioria das pesquisas oferecem o pagode baiano como sendo oriundo de ritmos como a chula do Recôncavo, sendo esta uma manifestação da cultura de território mais ruralizado. Em contrapartida, encontramos na capital baiana um ritmo musical pouco citado nas pesquisas acadêmicas, mas que tem um espaço de grande importância na ressignificação da identidade negra na cidade de Salvador: o samba junino, que por ser urbano, está mais próximo da origem do pagode baiano reconhecido por nós, a partir da década de 1990. Inclusive a semelhança está marcada pelo caráter jocoso que impregna e marca as letras do pagode baiano. Julgo a relação entre samba junino e pagode baiano importante, por apresentar aspectos territoriais e de construção estética que nos fazem com- 124 / Prelúdios, Salvador, v. 4, n.4, p. 123-135 set./mar. 2015 preender a realidade vivida pela sociedade baiana. Essa relação demonstra a importância dos bairros na construção da representação dos indivíduos nesse contexto. A reunião nas praças para festejar, paquerar, fazer música, criando novos signos, novas linguagens, novas danças é de fundamental importância no entendimento da performance do ator social nesse contexto. A malícia é marca dos grupos de pagode baiano, traço este presente desde os primeiros gêneros populares urbanos. “Espetacularizando as tradições baianas”. (NASCIMENTO, 2008) Nos anos 1980, inicia-se a construção de um quadro social onde o mercado avança na busca de ampliação dos seus consumidores e esses gêneros musicais mais populares ganham mais força diante dos avanços de consumo e avanços tecnológicos. É interessante notar que por mais próximo que o pagode esteja do universo de outros ritmos genuinamente negros, ele se reconfigura, se (re)territorializa, e se encaixa no universo branco e de novas classes sociais que antes o rejeitavam/discriminavam. Caso muito parecido com o que nos lembra Goli Guerreiro com os blocos carnavalescos na cidade de Salvador. Pode-se dizer que chegam até a polarizar a cidade em territórios de brancos e de negros, transformando-a em um verdadeiro “quadro em preto e branco”. Cabe então observar o papel que o processo midiático tomou na configuração do mundo urbano contemporâneo, na forma lúdica e de entretenimento, na cidade de Salvador, e de como essa imagem da festa e da alegria são criadas ou fortalecidas nos turistas. “Carnavalizar seu cotidiano” passou a ser o fundamento construtor de espaços de lazer que tem na música seu principal catalizador. CONSTRUINDO IDENTIDADES Diante desse complexo leque cultural que é a sociedade soteropolitana, o presente trabalho propõe investigar a relação existente entre masculinidade, corpo e dança no pagode baiano. Tendo em vista, inclusive, as discussões atuais que as ciências sociais possibilitam no que toca os referenciais de sexualidade. Assim, a pergunta de partida é como uma performatividade do que é ser masculino se forma e se fomenta no pagode baiano? Propondo-se, portanto, em entender como as identidades sexuais e de gênero se fundam e se fomentam em torno do horizonte social do pagode baiano. É possível notar o uso do corpo através da dança, como uma forma de comunicação. Dando origem a uma identidade de masculino, que é importante destacar, com isso uma identidade de gênero e de sexualidade. Como se pode Prelúdios, Salvador, v. 4, n.4, p. 123-135 set./mar. 2015 / 125 perceber o desvio ao pensar numa perspectiva heteronormativa de masculino. Existe empoderamento diante das identidades sexuais e de gênero em uma sociedade patriarcal? Recorrendo às possibilidades dadas pelo campo de pesquisa, pode-se encontrar o exemplo de uma manifestação que se apresenta de modo ímpar no presente contexto: o samba do papelão. Este é um evento que ocorria no bairro do Garcia, durante muitos anos, aos domingos. A marca do pagode está impressa no bairro onde vários outros eventos congêneres formam aquele calendário festivo semanal. Aos domingos, o samba do papelão lota as ruas do Garcia em busca da diversão e colocar em praça pública, esferas de uma relação permeadas por uma performance extremamente sexualizada. O público é constituído principalmente de homens que naquele espaço dançam, se comunicam, paqueram, e executam seus instrumentos e canções. Entretanto, o que vem chamar a atenção é a presença peculiar de uma figura. Eleita a Rainha do Samba do Papelão tem-se: Riana – um menino travestido de mulher. Diante de Riana, se constrói uma relação distinta. Riana, naqueles espaços, predominantemente masculino e patriarcal, a figura transposta em gênero feminino é tida, para aquele universo, como um símbolo de sexualidade e de desejo masculino. Tem-se um travesti como sendo a rainha do pagode. Esse é o desvio que eu considero relevante para travar uma discussão contundente. Compreender como esse corpo transfigurado em outro gênero é capitalizado no contexto do pagode? Pode-se pensar em autonomia, emancipação, empoderamento numa dimensão tão marginalizada? Como o masculino se constrói, reconstrói e se destrói nestes espaços? A relação de raça é relevante nesse contexto? A relação sexo e corpo é um par de importante papel nessa realidade social? A ideia de feminino construída está a serviço de quem? O IMAGINÁRIO SOCIAL A pertinência que tem o tema na realidade soteropolitana através do pagode, e por existirem no imaginário (inclusive acadêmico) vários estereótipos e estigmas sobre aqueles que consomem essa forma artística. Observamos que os consumidores desse ritmo são tratados como alienados, machistas e pobres. As mulheres são vistas como “piriguetes”, pelo comportamento que assumem diante da sua sexualidade. Portanto, a importância desse estudo está em inves- 126 / Prelúdios, Salvador, v. 4, n.4, p. 123-135 set./mar. 2015 tigar a construção da performance da juventude no pagode e a derrubada de alguns preconceitos para com os consumidores desse gênero musical. As encenações, gestos e manifestações dos mais diferentes tipos que pipocam na cidade, para quem consome e incorpora o papel social do pagodeiro, fazem com que essa pesquisa se difira das demais. Por apresentar-se em uma conjuntura onde o pagode se apresenta como fenômeno de massa, de uma década nova da musica baiana, que foi marcada por outras influencias musicais em outros momentos, como o samba reggae e o axé music. O lugar ocupado pelo pagode ultrapassa o estilo. Assim, o pagode “não é um gênero ou estilo musical [...] é um repertório formado em torno da ideia de um padrão de sociabilidade baiana, exitoso, prazeroso e feliz, fortemente ancorado nos eixos da familiaridade, religiosidade e sensualidade”. (MOURA, 2010, p. 6). A problematização, apresentada através deste projeto, dá margem para a elaboração de pesquisas com outros focos de análise presentes até o momento, ligadas ao empoderamento LGBTT, como é expresso no caso Leo Kret. É importante a investigação de modalidades rítmicas e estéticas que se mostram transitando por territórios em definição na época contemporânea, como o mercado de bens simbólicos, não somente o cultural projeta esse ritmo em suas diversas facetas e a relação do uso de psicotrópicos entre os adeptos desse estilo musical. Enfim, uma profundidade de questões poderiam ser admitidas para a elaboração de questões posteriores, podendo ser temática de diversos trabalhos, porém, a delimitação ao que diz respeito a performance, representação e identidade é o marco central da análise ao qual esse projeto tenta se validar. Esse projeto se justifica, portanto, pela relevância de apresentar um tema oriundo do cotidiano da realidade de centros urbanos que carregam consigo um imenso balaio de manifestações e condutas culturais, que permitem, ao observador atento, novas análises sobre a transformação desse espaço urbano. Apesar da produção acadêmica sobre o tema da música baiana ser explorado em estudo desde a década de 1990 (GODI, 1997; GOLI, 1997; NOGUEIRA, 2008; CASTRO, 2009), o pagode ainda é uma temática que concentra poucos estudos. (LIMA, 2002; CASTRO, 2006; NASCIMENTO, 2008; RODRIGUES,2008) Este tema é ainda uma abordagem pouco explorada nas ciências sociais, havendo uma série de discussões pertencentes ao senso comum ordinário e acadêmico, onde se estabelece vários tipos de questionamentos e afirmações relativas a vários aspectos como: sexualidade, gênero, drogas, etc., porém, a produção ainda requer uma maior demanda para responder a estas questões. Interessante ao leitor é neste momento se permitir a uma travessia para a exploração do universo dos costumes, dos signos e das manifestações de rua, que o pagode Prelúdios, Salvador, v. 4, n.4, p. 123-135 set./mar. 2015 / 127 baiano origina. E o que deve ser explorado aqui é o pagode sendo abordado através da ótica da identidade, tomando os atores como os principais reveladores dessa realidade. MASCULINIDADE, CORPO E DANÇA Entender como masculinidade, corpo e dança no pagode baiano estão relacionados, partirá de uma perspectiva que tem o referencial teórico onde sujeito, identidade, agência e identificação são categorias analíticas de suma importância. Desta forma, observar como os homens que consomem o ritmo e vivenciam o pagode formam, portanto, identidades sociais, que são efeitos da forma como o conhecimento é organizado e que tal produção social de identidades é “naturalizada” nos saberes dominantes. A sexualidade normalizada por meio da delimitação de suas formas mais aceitáveis e perversas (MISKOLCI, 2009) constroem gêneros específicos na realidade cultural baiana. Entende-se por gênero, neste trabalho, o olhar que homens e mulheres depositam em torno de si próprios, definindo, portanto, condutas de corpo e de sexualidade. Desta forma, é possível o entendimento que o corpo colocado em questão se encontra para além da relação biológica, mas se coloca em evidência por uma relação de ordem antropológica. Assim, o corpo é modelado ao longo da historia, e o que se deseja é uma compreensão da autonomia do corpo, como também o entendimento de percepções e práticas sexuais. O corpo é pertencente ao individuo, e aqui se trata do pagodeiro, onde a modernidade chega a este, de forma disciplinadora, com uma cultura corporal, sob uma ética puritana aliada ao consumo de massa, permeando o horizonte cultural contemporâneo. Assim, o homem redescobre o seu corpo e a sua sexualidade nas três últimas décadas. Mas observamos, que ao longo da historia, as transformações do sentido de corpo. A exemplo da concepção platônica de corpo nos deparamos com a dualidade corpo e mente, “ dualismos psicofísico”, a dupla realidade da consciência separada do corpo. Onde o corpo é também ocasião de corrupção e decadência moral, e se a alma superior não souber controlar as paixões e os desejos, seremos incapazes de comportamento moral adequado. No ascetismo medieval, o corpo passa a ser sinal de pecado e degradação. Com o cristianismo, o termo ascetismo passa a significar o controle dos desejos pela renúncia dos prazeres do corpo, o que podia ser feito pela mortificação, por meio de jejum, abstinência e flagelos. Por exemplo, chicoteando o próprio corpo. Ao examinar a relação corpo-alma, Agostinho afirma que eles constituem uma unidade, embora a alma seja imortal e o corpo, a sua dimensão ter- 128 / Prelúdios, Salvador, v. 4, n.4, p. 123-135 set./mar. 2015 rena e mortal. Pelo livre arbítrio e auxiliado pela graça divina, o ser humano consegue evitar o mal, porque a alma pode governar o corpo. No Renascimento e na Idade Moderna presencia- se a dessacralização do corpo. Passa a ser objeto das ciências, e a filosofia cartesiana servirá como contribuição para uma abordagem do corpo, em uma concepção nova. Assume-se o corpo como uma pura exterioridade, uma substância extensa, material. Embora ainda se mantenha o dualismo platônico, apresenta a diferença de se tratar de um corpo-objeto, associado à ideia mecanicista do ser humano-máquina. Submetido ás leis naturais. A fenomenologia traz consigo uma noção de corpo que considero inovadora e permitirá uma divagação mais profunda na pesquisa a que me proponho. A superação da dicotomia corpo-mente é trazida à tona pela ideia de intencionalidade, por descobrirmos nesse polo relações de reciprocidade. Se o corpo não é coisa nem obstáculo, mas integra a totalidade do ser humano, meu corpo não é alguma coisa que eu tenho: eu sou meu corpo. Ao estabelecer o contato com outra pessoa, me revelo pelos gestos, atitudes, mímicas, olhar. Enfim, pelas manifestações corporais. O corpo é o primeiro momento da experiência humana. Para mim, a visão trazida pela fenomenologia, de observar o corpo enquanto um meio de interação social, onde uma formação da existência do corpo se dá pela relação com o outro e dos significados que são construídos, é de fundamental importância no estudo da dança no pagode baiano e em toda a construção de sexualidade, masculinidade, e, por fim, do corpo e dos seus significados dentro desse grupo social. Há uma integração corpo/consciência. A sexualidade também não deve ser vista como atividade puramente biológica, separada da pessoa integral. Na verdade, sempre houve a tendência em considerar o sexo separado da totalidade da existência, o que é ilustrado pelas posições opostas do puritanismo e do libertinismo. A sexualidade humana é, na verdade, erotismo, e, sob esse aspecto, constitui parte integrante do ser total, e não apenas o resultado exclusivo do funcionamento glandular. É expressão do ser que deseja, escolhe, ama, e que se comunica com o mundo e com o outro, numa linguagem mais humana, à medida que consegue se expressar de maneira pessoal e única. CONSIDERAÇÕES FINAIS É perfeitamente possível investigar de que maneira as instâncias de poder atuam sobre ele para criar formas de agir e de pensar. Ou seja, vamos exami- Prelúdios, Salvador, v. 4, n.4, p. 123-135 set./mar. 2015 / 129 nar como a imposição de comportamentos passa pela domesticação do corpo. A obra de Foucault é um bom exemplo de como há um rigor na normalização dos gestos e dos padrões de comportamento. O resultado desse processo é a interiorização do olhar de quem vigia. A corpolatria é uma nova forma de se interpretar o corpo. O esforço de liberação das amarras do corpo redunda em sua idolatria, mudança radical que não passa por sua recuperação equilibrada e pelo amadurecimento do sujeito. Segundo Gilles Lipovetsky, o narcisismo realiza a missão de normalização do corpo: o interesse febril que temos pelo corpo não é de modo nenhum espontâneo e livre, obedece a imperativos sociais, como a linha, a forma, o orgasmo, etc. A normalização pós moderna apresenta-se sempre como o único meio de o indivíduo ser realmente ele próprio, jovem, esbelto, dinâmico. Pode-se concluir dizendo que “meu corpo sou eu mesmo me expressando”. O meu corpo nunca nos é dado como mera anatomia nem como objeto de culto: é a expressão de valores sexuais, amorosos, estéticos, éticos, ligados bem de perto às características da civilização a qual pertencemos. Convém saber discernir em que medida essas características nos cerceiam e quanto podemos subvertê-las, segundo princípios a serviço da liberdade e da melhor coexistência humana. (ARANHA, 2009, p. 33) Percebemos, portanto, através do pagode, como o corpo masculino é redimensionado, onde a plasticidade forma uma identidade, posto que, o ser humano é construído ao longo da existência. Onde o corpo se apresenta como consumo pertinente ao seu momento histórico e à sua posição social. O que dá ao corpo, nesse contexto, um caráter provisório, acompanhando o desenvolvimento desta manifestação cultural, que é a dança do pagode baiano. Esta, traz à luz do dia comportamentos já existentes, que eram vividos com estigmas, proibidos, ocultos. Os indivíduos imitam atos, comportamentos e corpos que obtiveram êxito e que tem prestigio em sua cultura. É o corpo que deve ser exibido, moldado, manipulado, trabalhando, costurado, enfeitado, escolhido, construído, produzido, imitado. É o corpo que entra e sai da moda, desse jeito no pagode: é um corpo popular e manifesta na diversidade da cultura brasileira, nos regionalismos, nas varias expressões que nos envolvem, e como não poderia ser diferente, na gestualidade marcada por regras, valores, moralidade e sentido ético-estético. (LARA, 2004, p. 61) O corpo inscreve suas marcas observáveis, e, em todas as atividades humanas tomam forma e despertam a suas simbologias. Quando pensamos no “tabu do corpo”, as normatizações sociais, destacando formas de enquadrá-los 130 / Prelúdios, Salvador, v. 4, n.4, p. 123-135 set./mar. 2015 em diferentes culturas, através de sistemas de classificação –, as regras são entendidas como uma espécie de código que exercem um poder social. No caso do pagode, há uma quebra com essa regra, a vida ética do individuo é posta em cheque, como podemos lembrar o caso da “professorinha”. Resta, enfim, saber se os pagodeiros se apresentam enquanto um desvio ou um padrão, no bojo dessa discussão que une sexualidade e cultura baiana. Desconstruindo e reconstruindo olhares, diante dos conhecimentos ofertados pelo campo de pesquisa que se abre diante das práticas sociais, onde a sexualização dos corpos, dos desejos e dos atos é um dispositivo de poder, onde encontramos a regulação e controle. E os olhares que são orientados diante do pagode se dão justamente nesse sentido de regular os atores sociais e de controlá-los, fazendo-nos crer que ainda somos os vitorianos. (FOCAULT, 1979) Além disso, a baianidade, no contexto do pagode, pode ser entendida como “explicação da construção de práticas e comportamentos humanos espetaculares organizados. Através de experimentos sociais pode chegar a conclusões de que o espaço geográfico e social contribui para a determinação da comunicação sensorial entre seus membros”. (MATRIZES ESTÉTICAS..., [201-?]) 2 Sendo assim, o comportamento que se realiza em torno do pagode é ilustrativo da afirmação acima. Permitindo que a cidade de Salvador se configure num entreposto de tradições, novas tecnologias e economia de mercado. Uma verdadeira encruzilhada de artes, ofícios, etnias, religiões, línguas e ideias. Desta forma, a baianidade seria uma forma claramente mestiça de associação entre novas tecnologias, tradição e comércio, onde encontramos o pagode enquanto produto desse processo cultural. Por fim, resta observar e testificar que novas formas de vivenciar lazer, para a juventude negro-mestiça em Salvador, se constroem e reconstroem a cada dia. Não só as opções em termo de música tem aumentado como a oferta de símbolos ligados a essa música é mais ampla. Havendo uma recriação de identidade, recriação de sociabilidade, como também, a popularização de tradições dentro da modernidade (universo do samba junino /neopagode) e a presença do lúdico no ambiente do pagode. Além disso, há a legitimação de diversos paradigmas que as Ciências Sociais tentam quebrar ou superar, como é o caso do machismo presente e reificado nas letras e nas atitudes de alguns grupos baianos, fato que não pode se deixar escapar aos olhos do bom observador. 2 MATRIZES ESTÉTICAS: o espetáculo da baianidade. [S. l.: s. n.]. [201-?]. Disponível em: http> teatro.ufba. br/jipe/arquivos-pdf/matrizes.pdf Acesso em: 08/05/2011. Prelúdios, Salvador, v. 4, n.4, p. 123-135 set./mar. 2015 / 131 Toda essa série de “capital subcultural” é o que representa esse ritmo enquanto uma maneira de vida e de identidade comportamental. Dando vazão a um deslocamento entre o local e o global, onde os símbolos e mercadorias associadas à cultura juvenil globalizada hipnotizam as multidões pesquisadas. Há algo de efêmero, duradouro e tradicional. Destaca-se, portanto, a relevância que tem o pagode nas análises da sociedade baiana, as reflexões sobre identidade (baianidade), as interpretações simbólicas do social, as tarefas políticas (étnica e de gênero). THE BALAIO MOVES: A LOOK ON BAIANO PAGODE ABSTRACT This article is the result of a monographic project. Given the vast field of research was possible to infer about aspects of daily life to respect the perspectives of the body, sexuality, race and gender. Exploited in fields such as social sciences. Please note the symbolic and evaluative character that the pagoda as a product of social brings Brazilian and Bahian reality. Take the pagoda while genuinely Bahia and Salvador ‘and puts it on the manifestation of an ethos in which carries the values, customs, habits and beliefs that build new behaviors and solidifies many others present in our culture. Finally, it should be noted that the “universe pagodeiro” consists of a complexity of enriching themes for social professionals linked to the theme of corporeality scientists, researchers and culture. Keywords: Bahia Pagoda; Body; Sexuality; Social Sciences; Culture. Referências ARANHA, M. L. de A.; MARTINS, M. H. P. Filosofando: introdução à Filosofia. São Paulo: Moderna, 2009. FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I: a vontade de saber. Rio de Janeiro: Graal, 1979. GOLI, G. Um mapa em preto e branco da música na Bahia: territorialização e mestiçagem no meio musical de Salvador (1987-1997). In: SANSONE, L.; SANTOS, J. T. dos.(Org.) Ritmos em trânsito: sócio-antropologia da música baiana São Paulo: Dynamis Editorial, 1997. p. 97-122. LARA, L. M. 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