Prelúdios - revista preludios

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Prelúdios - revista preludios
Prelúdios
Revista do Programa de Pós-Graduação
em Ciências Sociais da UFBA
Prelúdios
Salvador
v. 4
n. 4
p. 1-135
mar./set . 2015
Universidade Federal da Bahia
Reitor: Prof.João Carlos Salles Pires da Silva
Vice-reitor: Prof. Paulo César Miguez de Oliveira
Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas
Diretor: Prof.ª Maria Hilda Baqueiro Paraíso
Vice-diretor: Prof. Iole Valim
Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais
Coordenador: Prof. Clóvis Roberto Zimmermann
Vice-coordenador: Profª Lidia Cardel
FFCH-UFBA
Estrada de São Lázaro, 197
Federação - Salvador, BA - Brasil
CEP: 40.210-730
A Revista Prelúdios é uma publicação científica eletrônica semestral. Lançada em 2013, tem como objetivodivulgar artigos, ensaios e resenhas de pesquisadores da área de Ciências Sociais, vinculados a instituiçõesnacionais e
internacionais. Poderão ser submetidos para publicação textos originais – ainda não publicadosem outra revista
científica nacional ou estrangeira ou em coletâneas – ou publicados em anais de eventos científicos.
Comissão Editorial Responsável
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Israel de Jesus Rocha, Lorena Sales de Almeida, Marina Rute de Aquino Marques Pacheco.
Financiamento
PPGCS (UFBA)
Projeto, capa e editoração
Rodrigo Oyarzábal Schlabitz
Capa e editoração
Tiago Santos
Preparação de textos
Equipe da EDUFBA
Prelúdios - www.revistapreludios.com.br
Revista do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Faculdade de Filosofia eCiências Humanas
da Universidade Federal da Bahia. v. 4, n.4, set./mar. [email protected]
Conselho Consultivo
Dra. Joana Aparecida Coutinho. (UFMA), Dra. Lidia Maria Pires Soares Cardel. (UFBA), Dr. Jorge Adriano
Lubenow. (UFPB), Dra. Ivanilde Guedes de Mattos. (UEFS), Dr. Henrique Codato. (UFC), Dra. Leticia Maria
Costa da Nóbrega Cesarino. (UFSC), Dr. Marko Synésio Alves Monteiro, Dra. Márcia Amaral Corrêa de Moraes
Em sua integralidade, o conteúdo dos textos publicados é de exclusiva responsabilidade dos autores, não implicando necessariamente na concordância da Comissão Editorial, do Conselho Consultivo ou de qualquerprofissional envolvido com a publicação deste periódico.
Prelúdios
Revista do Programa de Pós-Graduação
em Ciências Sociais da UFBA
Revisão
Vinicius Santos
Normalização
Larissa Queiroz
Projeto Gráfico
Rodrigo Oyarzábal Schlabitz
Editoração
Tiago Santos
Sistema de Bibliotecas da UFBA
Prelúdios : revista do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da UFBA /
Universidade Federal da Bahia, Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas. - Ano 1,
n. 1 (2013)- . - Salvador, BA : UFBA, FFCH, Programa de Pós-Graduação em Ciências
Sociais, 2013.
v.
Semestral.
Descrição baseada em: Ano 1, n. 1, jul./dez. 2013.
1. Ciências sociais - Periódicos. I. Universidade Federal da Bahia. Faculdade de
Filosofia e Ciências Humanas. Programa de Pòs-Graduação em Ciências Sociais.
CDD - 300.5
SUMÁRIO
Editorial / 7
ARTIGOS
( RE ) PENSAMIENTO DE LOS PROBLEMAS AMBIENTALES EN EL MUNDO
MODERNO : ANÁLISIS DESDE UNA DIMENSIÓN SOCIOLÓGICA
PARA EL DESARROLLO SOSTENIBLE / 13
Yeisa B. Sarduy Herrera
COOPERAÇÃO E ORGANIZAÇÃO EM UM LABORATÓRIO DE TERAPIA
CELULAR: NOTAS SOBRE UMA SOCIOLOGIA DA PRÁTICA CIENTÍFICA. / 29
Israel de Jesus Rocha
CLASSES SOCIAIS NO PAPEL, CLASSES MOBILIZADAS E LUTAS PELA
CLASSIFICAÇÃO EM PIERRE BOURDIEU: UMA DISCUSSÃO EM DIÁLOGO
COM O FAZER-SE DA CLASSE DE E. P. THOMPSON / 47
Fernando Larrea Maldonado
DELIBERAÇÃO DOS COMITÊS DE BACIAS HIDROGRÁFICAS:
quem participa, como faz e o que decide? / 65
Isabela S. Santana
DEMOCRACIA DE REDUTO NO PARLAMENTO BAIANO:
A DOMINÂNCIA ELEITORAL NA ASSEMBLÉIA LEGISLATIVA DA BAHIA
NAS ELEIÇÕES DE 2002, 2006 E 2010 / 79
Vladimir Meira Nunes
A LUTA POR MORADIA URBANA E OS TRAÇOS DA REPRESENTAÇÃO
DOCUMENTÁRIA NO FILME SONHO REAL (2005)
Rodrigo Oliveira Lessa
MEXE O BALAIO: UM OLHAR SOBRE O PAGODE BAIANO /123
Mariana Bittencourt de Souza
Editorial
Escrever é o processo mais misterioso e é como um problema exponencial:
quando você se senta para começar a escrever algo, tem um papel em branco tenebroso à sua frente e não sabe por onde começar. Assim, a primeira
coisa que você escreve, você já pensa: “que fracasso, eu não sei do que estou
falando, não tenho nada para escrever.” E isto continua por algum tempo.
Você começa uma parte, fica travado, começa outra parte, trava de novo.
Mas, de algum modo, magicamente, após muitas tentativas, a coisa começa
a decolar, um pouquinho, um pouquinho mais e, ufa! Decola de vez e tudo
que pode fazer é agarrar as ideias rápido o suficiente para prendê-las ao
papel. É muito, muito estranho, mas há algo de mágico nisso.
(INGOLD, 2011)
Envolver-se com a escrita situa-nos num universo além das palavras
e mobiliza um corpo ensejado pela prática da pesquisa. Entre o mundo da pesquisa, empírica ou teórica, e sua comunicação por revistas acadêmicas e congressos, pesquisadores trilham caminhos diversos e muitas vezes solitários na
construção de suas ideias. Comunicar, então, aponta um caminho para o qual
a solidão do diálogo com os dados e os argumentos teóricos cede espaço para
a conversa, dando vida e desdobramentos muitas vezes não imaginado por seu
autor. O texto então passa a emaranhar, no presente, parceiros de um passado
envolvidos na construção da pesquisa com seus futuros leitores, que tornarão
imprevisíveis seus deslocamentos.
Como reiterado em todas as edições, a Revista Prelúdios continua como
espaço de fluxo para as produções dos discentes em Ciências Sociais. Nesta
edição, mantemos a diversidade de temas que caracteriza as publicações anteriores. Os artigos que apresentaremos adiante circulam desde a profícua
discussão sobre as classes sociais no campo das ciências sociais até questões
contemporâneas que envolvem o ambiente e as práticas científicas de ordenamento do mundo social e natural. Além desses debates, os processos de deliberação nos comitês relacionados às bacias hidrográficas, o modo como a geografia do voto e dominância eleitoral classificam os padrões de comportamento
dos políticos, em três eleições para deputado estadual na Bahia, e a questão de
luta por moradia a partir do documentário Sonho Real, compõem esta edição.
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Por fim, questões sobre o corpo são discutidas a partir de estilo musical muito
bem conhecido nas ruas soteropolitanas: o pagode.
As questões ambientais estão na ordem do dia entre o mundo da ciência e a política. Ainda pouco explorada pelas ciências sociais, a discussão sobre
o ambiente assume contornos teóricos na proposta de Yeisa Herrera, autora do
artigo que abre a quarta edição da revista. Com o intuito de compreender o atual
movimento ensaiado pela ciências sociais, a autora propõe uma articulação entre as dimensões cultural, ambiental e o desenvolvimento sustentável, como
forma de pensar a problemática entre o indivíduo, a sociedade e o ambiente.
A partir de exemplos do contexto cubano, a autora propõe pensar além da sonolência antropocêntrica soluções alternativas à crise que envolve a questão ambiental.
No segundo artigo desta edição, Israel Rocha apresenta uma discussão
que envolve o campo dos estudos de ciência e tecnologia a partir de dados de
uma pesquisa em um laboratório de terapia celular. Ainda em desenvolvimento no Brasil, os estudos de ciência tem reiteradamente discutido a questão da
ciência a partir de sua prática cotidiana. A mesma deixa de ser tratada como um
universo hermético e apenas acessível aos iniciados, e passa a ser considerada
uma prática que pode ser analisada por sociólogos e antropólogos, descrevendo
os detalhes que envolvem as práticas científicas.
As classes sociais a partir das perspectivas de Pierre Bourdieu e E. Thompson é o foco do trabalho desenvolvido por Fernando Larreia. A partir de uma
análise dos conceitos mais frequentes no trabalho de Bourdieu, Larreia apresenta a crítica deste autor à noção de classe social baseada na discussão econômica, apresentando em seguida uma aproximação com o trabalho de Thompson.
Um dos pontos centrais da análise do autor destaca o modo como os autores
permitem perceber as classes sociais em termos relacionais. Permite-se, assim,
que se perceba a classe social como um fenômeno social produzido material e
simbolicamente no desenvolvimento da sociedade.
O quarto artigo da revista discute os modos de deliberação em comitês que discutem a implementação de politicas públicas no Brasil. O caso das
bacias hidrográficas do Brasil é o mote para o argumento de Isabela Santana. Suas observações apontam para o modo como a organização prática dos
comitês permite a participação de poucos setores da sociedade, sendo os demais colocados em posição de coadjuvantes do processo. Esta participação
distribuída desigualmente entre os membros dos comitês está relacionada,
para a autora, às relações de poder entre os atores envolvidos no processo.
Por isso, o comitê, como mecanismo que mobiliza atribuições de caráter consul-
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tivo, normativo e deliberativo, ainda requer tempo de maturação para se tornar
experiência concreta de espaço democrático e de socialização do poder.
Continuando com a discussão sobre a questão democrática, o artigo
de Vladimir Meira Nunes discute os modos pelos quais é possível pensar os
padrões de comportamento político dos parlamentares e partidos, a partir de
seus redutos e estratégias eleitorais. A partir dos conceitos de geografia do voto
e a dominância eleitoral, o autor aponta para o compartilhamento dos redutos
eleitorais entre os parlamentares baianos e a limitação em afirmar que a votação
segue linhas governistas.
O penúltimo artigo desta publicação aborda as representações sociais
mobilizadas pelo cinema documentário, para questões relacionadas à luta por
moradia. A partir do filme documentário Sonho Real, alguns elementos como
o déficit habitacional, disputa coletiva dos espaços urbanos e o uso da força
policial são discutidos por Rodrigo Lessa. Centrado na análise da construção
das representações pelo documentário, o autor destaca o compromisso com
a objetividade; o levantamento de circunstancias do mundo da vida, focadas na
narrativa da luta pela moradia e a construção de uma perspectiva orientada pelo
horizonte dos segmentos sociais oprimidos.
Concluindo a edição, Mariana Bittencourt apresenta uma discussão
sobre um dos estilos musicais mais populares na cidade de Salvador. Ao abordar o pagode baiano, a autora procura analisar questões que envolvem o corpo, sexualidade, gênero e questões raciais. Ao questionar o modo como o corpo
é mobilizado a partir das danças, a autora aponta a dimensão de um corpo encarnado, presente na fenomenologia. Neste sentido, Bittencout situa um corpo
que é engendrado pelo movimento e continuamente costurado pela prática musical. O pagode dimensiona e reposiciona o corpo, masculino, enfatizado por
Bittencourt, em uma plasticidade que constrói uma identidade situada numa
posição histórica e social.
Se escrever envolve um misterioso engajar-se com a escrita, como nos
situa Ingold, a comunicação dessa experiência envolve uma abertura para o desconhecido. O universo relacional autor-leitor. E é a partir dessa abertura para
o novo que a Revista Prelúdios o convida para mais um movimento através das
páginas que se seguem.
Boa leitura.
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ARTIGOS
Yeisa B. Sarduy Herrera1
( RE )PENSAMIENTO DE LOS PROBLEMAS
AMBIENTALES EN EL MUNDO MODERNO :
ANÁLISIS DESDE UNA DIMENSIÓN SOCIOLÓGICA
PARA EL DESARROLLO SOSTENIBLE
Resumen
El presente artículo2 comprende una propuesta de reflexión, desde un posicionamiento teórico, en torno a la problemática medio ambiental que afecta al mundo de hoy.
Analizada desde una perspectiva sociológica, no soslaya para nada la trascendencia de
la temática ambiental a otras disciplinas de las ciencias sociales. En este sentido, se han
articulado en el análisis la dimensión cultural, el medio ambiente y el desarrollo humano sostenible, en aras de pensar en una forma de cambio consciente, holística y madura donde se desplieguen ulteriormente las potencialidades creadoras que ella encierra.
Se esbozan además, acciones desarrolladas en el contexto cubano, y si bien no se proponen soluciones, el propósito del escrito versa en incitar a despertar de la somnolencia
antropocéntrica para sentir, pensar y encontrar la salida de la crisis y lograr la ansiada
armonía entre el individuo y la naturaleza.
Palabras claves: medio ambiente, desarrollo sostenible, perspectiva sociológica, dimensión cultural.
A MODO DE INTRODUCCIÓN
“La libertad, en este terreno, sólo puede consistir en que el hombre socializado, los productores libremente asociados, regulen racionalmente su intercambio de materias con la naturaleza, lo pongan bajo su control común
en vez de dejarse dominar por él como por un poder ciego, y lo lleven a cabo
con el menor gasto posible de fuerzas y en las condiciones más adecuadas y
más dignas de su naturaleza humana.” (Marx, tomo III, cap. XLVIII)
1
Licenciada en Sociología por la Universidad de La Habana (2008). Máster en Desarrollo Social por la Facultad
Latinoamericana de Ciencias Sociales, Sede Cuba (2014). Actualmente se desempeña como investigadora en
el Instituto Cubano de Investigación Cultural Juan Marinello. Correo electrónico: [email protected]
2
Este ensayo resultó seleccionado para su presentación como ponencia en el I Congreso Latinoamericano
de Estudiantes de Posgrados en Ciencias Sociales, efectuado en México, junio 2014.
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Desde tiempos remotos el hombre encontró la forma de emplear las leyes de la naturaleza a favor propio. Con el uso de los vertiginosos avances tecnológicos y la obtención de ganancias en términos de bienes y servicios, no se
preocupó mucho por el carácter finito de los recursos naturales; produciendo
transformaciones de mucha intensidad y extensión, las cuales impiden hoy la
recuperación de nuestro medio ambiente y conducen a una reducción progresiva de las capacidades para mantener la vida en la Tierra.
Ya a fines de los años setenta, se comenzó a admitir la degradación que
poco a poco sufría el entorno, estando ligada tal noción al interés de la calidad
de vida de las personas tanto en el aspecto fisiológico como por su bienestar
y supervivencia económica. De esta forma, la necesidad de una toma de conciencia afloró y se impuso como un tema de especial connotación y sensibilidad
en las agendas de trabajo. Tras esta urgente necesidad, se torna esencial entonces, lograr la meta de articular de forma más equitativa la relación entre el hombre y su entorno, pues “[…] la humanidad necesita interactuar de manera más
equilibrada con la naturaleza de forma tal que pueda disfrutar de los beneficios
de la tecnología en un mundo basado en relaciones de respeto a la diversidad,
la justicia y la equidad […]”. (Bidart, Ventosa, Rodríguez: 2006, p. 18). Con ello, se
valida el criterio de hacer extensiva la problemática ambiental como eje medular
para las Ciencias Sociales.
Resulta pertinente entonces, concebir al medio ambiente como un sistema complejo que incorpora la dimensión psicosocial; el patrimonio histórico
y cultural; así como la interacción entre todos estos componentes y las sinergias
que se producen como resultado de las interacciones entre ellos – hablándose
entonces, de un medio ambiente humano, un medio ambiente construido y
un medio ambiente natural; lo cual demuestra una noción holística que comprende tanto las dimensiones económicas, sociales, culturales, políticas y naturales, como la gama de significados que la imbricación entre ellas encierra.
Se vuelve así, inherente a la temática del desarrollo y reclama para su análisis
la superación de enfoques sectoriales y disciplinares reduccionistas.
Mucho se trata esta relación, mas hoy, para cada disciplina constituye
todo un reto la búsqueda de soluciones que armonicen y viabilicen el desarrollo
en el entorno que nos rodea. Constantemente, se produce un debate en cómo
llevar a cabo un desarrollo más equilibrado y justo a favor de los individuos
y su medio; y la labor si bien pudiera parecer sencilla se torna bastante compleja,
puesto que encierra en sí la gran necesidad de concientizar que la preservación
del medio ambiente es una responsabilidad de todos en un clima de solidaridad,
respeto e igualdad.
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Es en este sentido, que a través de una reflexión teórica se propone discernir algunos elementos epistemológicos que inciten a (re)plantearse nuevas
interrogantes que ayuden a pensar y encontrar alternativas que hagan posible
alcanzar la ansiada armonía entre el hombre y la naturaleza. Por ello, una mirada a la relación medio ambiente y desarrollo desde la arista sociológica es
comprender que lo social y lo ambiental en la medida que se interrelacionan
necesitan estar en armonía, pues:
“[...] las influencias entre sociedad y medio ambiente son bidireccionales
y al igual que la acción antrópica modifica o altera los ecosistemas naturales, del mismo modo los fenómenos y procesos sociales se ven influidos
por los factores ambientales en un proceso continuo de retroalimentación
[...]” (Aledo, Domínguez, 2001, p. 6).
Es meritorio acotar, que si bien se asumió un posicionamiento respecto a determinada disciplina para la realización del análisis, se tuvo siempre en
cuenta el alcance transdisciplinar para abordar el tema, siendo vital tal noción
para no pecar de ingenuos y meros reduccionistas en el ámbito investigativo.
De esta forma, si bien hay disímiles ideas que afloran para el tratamiento de
estos ejes, se considera atinados y esenciales los hilos conductuales: medio ambiente y globalización, desarrollo sostenible y la relación existente entre la dimensión cultural del desarrollo y la problemática ambiental, la que no por ser
la última resulta menos importante; pues a mi juicio comprende la interconexión entre las anteriores y deviene en visión integradora para ahondar en el eje
del desarrollo socio-ambiental y cultural.
DIÁLOGO ENTRE CATEGORÍAS: PROPUESTA PARA LA REFLEXIÓN
“La cultura debe ser asumida no como un componente complementario u
ornamental del desarrollo, sino como el tejido esencial de la sociedad y, por
tanto, como su mayor fuerza interna.” (Carranza, 2001, p. 661)
“Para que el ser humano responda éticamente por su suerte y la del mundo,
es necesario cambiar el paradigma antropológico de occidente y crear una
nueva cosmovisión que resignifique el sentido del hombre y del mundo,
hoy profundamente disociados (…) La construcción de los valores humanos
no puede ser independiente del hábitat, como también la construcción del
hábitat es un reflejo de los valores existentes. (Cely, 1998, p. 22)
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Una aproximación a cada una de las líneas en particular, remite primeramente a observar los nefastos efectos de la globalización en el medio ambiente, los
cuales relacionados con otros pertenecientes a los ámbitos económicos, políticos,
sociales y culturales han generado en la actualidad peligros globales que a grandes escalas pueden resumirse en tres fundamentales, a decir de los investigadores
Domínguez y Aledo (2001). Ellos son: daños ecológicos condicionados por la riqueza y los peligros técnico-industriales; los daños ecológicos condicionados por
la pobreza, y los peligros que ocasionan las armas de destrucción masiva.
El primero, responde a los peligros que originan el desarrollo tecnológico y el consumo de los países más avanzados, cuya extensión y consecuencia se
visibilizan en todo el planeta; siendo destacables entre ellos: el agujero de la capa
de ozono, el efecto invernadero o las imprevisibles consecuencias de la manipulación genética. Apuntando al segundo problema, es importante señalar que
la mayoría de estos son reconocidos como “autodaños” debido a que los sectores y países más pobres buscan vías de soluciones para salir de la pobreza, autoagrediendo el entorno en el que viven con desfavorables consecuencias tanto
para ellos como para los otros. De igual forma, el manejo y uso de armas de destrucción relacionado con los anteriores, si bien se encuentran en manos de los
gobiernos o establishment, generalmente, pueden hallarse también en manos
de grupos terroristas, delincuencia organizada y sectores represivos, conllevando a la afectación de la anhelada paz mundial.
Así interconectados todos, traen aparejados numerosos problemas donde
de manera sistémica la globalización hace sentir sus desmanes. La aparición
de riesgos ecológicos a nivel mundial, tal como el conocido cambio climático
es de carácter integrador, puesto que los cambios que se producen en una
parte de nuestro planeta afectan a cualquier otro punto del orbe y a todas las
clases sociales; agrandando la brecha entre los países ricos y pobres y agravando cada vez más la dependencia económica que marca derroteros hacia la
degradación medio ambiental.
Consecuentemente, en el marco de esta fuerte competencia a escala global y de una creciente desigualdad, citando a Comas D´Argemir:
“la pobreza obliga a comportamientos no sostenibles para lograr sobrevivir, aunque a largo plazo estas prácticas impiden un futuro desarrollo
sostenible que les permita salir del círculo retrautoalimentado de pobreza- degradación ambiental en el que los países más pobres se encuentran
[…]”. (1998, p. 166).
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En tal sentido, el predominio del factor económico, no soslaya la relación existente entre este, la cultura y la esfera social. El fenómeno de la globalización en la medida que atraviesa las economías, es un proceso también sociocultural donde el estilo de vida y los valores que comporta son enormemente
contradictorios, pues junto al consumismo exacerbado se exporta una preocupación por las presentes y futuras condiciones ambientales, en la medida que
nuevas y latentes inquietudes se hacen notables. Ello, lleva a pensar en la vital
necesidad del desarrollo sostenible, no como concepto cuyo uso y abuso del término en moda se escuche constantemente; sino como definición a poner bien
en práctica que acuna tanto los aspectos medio ambientales - marcadamente
enfocado en su protección- como la mirada a los seres humanos en tanto centro de las preocupaciones relacionadas con el desarrollo; a la equidad intergeneracional, la erradicación de la pobreza como requisito indispensable para el
mismo, la equidad entre los géneros, el respeto a las identidades culturales y la
interdependencia entre paz.
A mi juicio, esto alude a la ventaja de asumir el concepto de cultura en su
sentido integral y holístico - antropológico y sociológico- que incluye la cultura simbólica – material, la social y ambiental; lo cual trae consigo el (re)pensar los valores
culturales como condicionantes de las relaciones del ser humano con la naturaleza,
existiendo por ende, una interrelación entre ecosistemas e identidades culturales,
así como entre biodiversidad y diversidad cultural. Igualmente, entender las culturas no como totalidades monolíticas sino como escenarios diversos, prolíferos,
llenos de prácticas ético- políticas heterogéneas, donde se dan procesos de cambios
y transformación, no evidencia más que la relación “[...] entre las partes, dentro de
las partes, y entre las partes y el todo.” (González, Cambra, 2002, p. 53).
Dicho aspecto denota la necesaria imbricación entre desarrollo, cultura
y medio ambiente, pues el desarrollo sostenible en la medida que aboga por la
sustentabilidad y cuidado debe fomentar además, cambios en los modos de vida
consumistas y conducir a la reflexión en torno a las repercusiones éticas y sociales de las nuevas tecnologías. Asimismo, pienso que al abogar por un desarrollo
sostenible, la dimensión cultural del desarrollo en las/os diferentes regiones y/o
países cobra especial connotación, puesto que se trata de:
“una educación para una nueva ética global, entendida como un núcleo de
principios y valores éticos capaces de criticar la injusticia y la falta de equidad vigentes y de evitar una respuesta relativista a la diversidad cultural,
que debe ser alcanzada a través de la tan problemática como desafiante y
enriquecedora búsqueda de lo común entre lo diverso, de la unidad en la
diversidad”. (Centre UNESCO de Catalunya, 1998, p. 250)
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Precisamente, dar reconocimiento y derecho a lo diverso hace comprender comportamientos y conocimientos relativos al entorno que para nada son
insignificantes. El significado de la naturaleza para determinadas comunidades indígenas, su cuidado y uso, al tiempo que las distinguen, forman también
parte de su preocupación, supervivencia y desarrollo; en tanto fuente y energía
socioculturales.
Es este derecho, uno de los contrastes esenciales con respecto a la globalización, pues el justo reconocimiento a lo diverso no como mera mercancía
a comercializar en los mercados, sino como parte de la idiosincrasia, el sentir y el vivir de los sujetos; ofrece una mayor integración y conciencia hacia lo
autóctono y a su vez, hacia el medio ambiente.
El respeto para todas las identidades culturales en un contexto democrático, participativo y de equidad socioeconómica, así como el respeto a la soberanía son precondiciones de la paz. Es impostergable reconocer el poder de
las mayorías como condición para que a partir de su propia creatividad forjen
y consoliden modos de vida en comunidad y conduzcan un desarrollo humano
y cultural.
Con relación a las ideas precedentes, se torna pertinente remitirnos al
reconocido investigador Enrique Leff (1986), quien comparte algunos razonamientos centrales en su texto Ecología y capital. Racionalidad ambiental, democracia participativa y desarrollo sustentable. El autor establece un paralelismo
entre las tradiciones, ideologías y formaciones culturales de los pueblos, con sus
prácticas sociales o productivas, a la vez que estas también forman parte de sus
expresiones culturales. Esto quiere decir, según las cosmovisiones y los significados que las comunidades le atribuyen a la naturaleza, estarán determinados
el uso y el manejo de los recursos que la componen, lo “que también irá estableciendo paulatinamente las pautas y comportamientos socio- económicos,
biológicos y demográficos de estas sociedades.” (Duharte, 2013, p. 5) Cuestión
que incentiva al célebre teórico e intelectual para reflexionar sobre el término
“cultura ecológica”.
De tal manera, considera necesario fomentarla pensando en los distintos niveles donde actúa la cultura y donde puede expresarse, ya sea desde los
valores incorporados o a desarrollar en una sociedad, así como en las prácticas
donde se ponen de manifiesto tales valores y los conocimientos adquiridos por
los individuos o colectividades. Reconoce y plantea además, que:
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“la cultura se convierte en un principio activo en el desarrollo de las fuerzas productivas y de un paradigma alternativo de producción, en el que
la innovación tecnológica y la productividad ecológica están entretejidas
con los procesos culturales que definen la productividad social global.”
(Leff, 1986, p. 192)
Con esta afirmación establece la ineludible relación entre la cultura
y otros procesos que intervienen en la producción, concibiéndola más allá de las
costumbres y características de una comunidad para presentarla como componente, vertiente y arista esencial o determinante del desarrollo, de los recursos
naturales.
El eje del desarrollo, compuesto de la visión ambientalista, social, cultural y económica es un proceso integrador y general que interpela cada día de
nuevos saberes. No basta con aglutinar conocimientos desde los distintos enfoques, se necesita también de la convergencia de múltiples actores, la participación plural y la unión de voluntades que conduzcan a la sustentabilidad y cómo
lograrla. De tal propósito, cabe señalar en palabras del sociólogo norteamericano Edward Benton (1996), que se hace urgente:
“[...] retomar un sentido de la proporción, una reevaluación de lo que
siempre ha estado ahí: las fuentes de satisfacción y significado de la vida
que no sólo no necesitan el sistema mercantil, sino que son sistemática
y erróneamente apropiadas y luego destruidas por los estragos de éste
[...]”. (1996, p. 188).
Reflexionar alrededor de los usos, cuidados y daños en torno al medio
ambiente, lejos de ser una cuestión meramente “verde”, articula nociones complejas que conducen a una revisión de la realidad que vivimos, no desde visiones
utópicas o proyectos que pretendan mostrar rápidas alternativas; sino desde la
máxima de que : “precaución es la palabra de orden y el industrialismo y el proyecto de dominio de la naturaleza son el problema, no la solución”. (Delgado,
1999, p. 417).
La interpretación del término desarrollo sostenible -como se ha expresado en diversos espacios-, es polémica y suscita variadas interpretaciones desde
posicionamientos políticos- ideológicos diferentes. Disímiles autores, como Esteva y Reyes (1998) plantean que la propuesta de desarrollo sustentable, no puede tener un único significado, la misma ha de adaptarse a contextos y circunstancias determinadas. Al definir qué se entiende por desarrollo sustentable, se
está definiendo qué tipo de sociedad se aspira a construir o alcanzar, resultando
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ser para cada país y/o región una tarea y estrategia que demanda un compromiso con el cambio que aboga por la inclusión, respeto e igualdad entre todos los
actores sociales.
• Existen diferentes características y principios que rigen la
definición de este desarrollo (Leff, 1994; Esteva y Reyes, 1998;
Díaz, 1999 y Caballeros, 1999, citado por Muñoz Campos, 2003,
p. 10), ellas son:
• Equidad social en la distribución de la riqueza.
• Percibir la realidad desde una perspectiva global, compleja e
interdependiente, que permita comprender que los problemas
ambientales son multicausales y articular los diferentes procesos
que intervienen en el manejo integrado y sostenido de los
recursos.
• Respetar los ritmos de renovación o regeneración de los recursos
naturales, a través de la preservación de la biodiversidad y
mediante el acceso y el uso adecuado de dichos recursos.
• Ampliar los márgenes de participación social a través de la
descentralización económica y la gestión participativa de los
recursos. De esta manera se fortalecerá la capacidad autogestionaria
de las comunidades locales, así como la autodeterminación con
relación a la utilización de las tecnologías por parte de los diferentes
países y pueblos.
Cabe indicar entonces, que el sentir no está solo en construir un orden
social mejor, radica en influir decisivamente en los comportamientos y patrones
culturales que se han ido expandiendo durante décadas. Debe pensarse en una
forma de cambio consciente, maduro y holística donde se desplieguen ulteriormente las potencialidades creadoras que ella encierra. No se trata de plantear
ventajas y limitaciones, puesto que todo en su devenir debe tenerlas, más allá de
eso, se trata de imbricar áreas y propuestas que reflejen un desarrollo sostenible.
En aras de ello, juega un papel primordial la educación y formación ambiental,
ya que la crisis ambiental que se sucede induce la formación de conocimiento
desde los diferentes saberes, reclamando:
“la percepción desde los diversos ámbitos de las relaciones que al interior se producen- en lo social, económico, cultural y ecológico- vinculados
con los diferentes intereses que movilizan la reconstrucción del saber y la
reapropiación del medio ambiente.” (Leff, 2000, p.274).
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De esta situación, resultará entonces la articulación entre educación y
formación con vistas a crear nuevos valores vinculados a transformar la realidad, teniendo en cuenta una estructura socioeconómica que internalice las
condiciones ecológicas del desarrollo sustentable y aquellos valores que orienten a una racionalidad ambiental. El individuo comprenderá que interactuar
armoniosamente con un medio ambiente sano, saludable, diverso y rico es parte
de la felicidad y la satisfacción.
CUBA EN EL ANÁLISIS: ENTRE ACCIONES Y ESTRATEGIAS A FAVOR DEL DESARROLLO SOSTENIBLE
Si bien anteriormente, se han compartido nociones generales acerca
de la tríada naturaleza - desarrollo- cultura, es oportuno abordar brevemente
la misma en el escenario cubano, pues si todavía queda por parte del Estado
y del resto de la sociedad hacer un trabajo más intenso para contrarrestar tendencias favorables que afectan el entorno en aras del éxito económico; es meritorio apuntar que pese a la compleja coyuntura económica que debemos afrontar
y las políticas a implementar en las distintas esferas, contamos con condiciones
para impulsar el salto cultural que la solución del problema ambiental exige.
Para ello, puede citarse la labor realizada por instituciones científico – recreativas y educativas, tales como: museos, jardines botánicos, acuarios, parques
zoológicos, entre otros; donde se ha mostrado una larga experiencia en el desarrollo de programas educativos dirigidos a niñas/os, jóvenes, y población en general, con la intención de ofrecer siempre conocimientos acerca de la flora y la fauna,
su protección; así como del patrimonio cultural y otros importantes elementos del
medio ambiente. Es indispensable tener un mayor conocimiento sobre nuestros
recursos naturales, así como el medio social y cultural que nos rodea que haga
posible una utilización inteligente del potencial natural que poseemos.
En este sentido, sobresalen El Programa Nacional sobre Medio Ambiente y Desarrollo (adecuación cubana a la agenda 21) y la Estrategia Nacional Ambiental con la presentación y difusión de su Plan de Acción, aprobada en el año
1997. La estrategia ha constituido la base para la elaboración e implementación
de posteriores estrategias locales y territoriales, así como de otras actividades
que se sustentan y definen en una voluntad política comprometida.
Cabe mencionar también, la política ambiental cubana como exponente
del trabajo articulado entre decisores, formuladores de políticas y académicos
con el propósito de implementar estrategias que contemplen planes y proyecciones, así como el cumplimiento y evaluación de su efectividad.
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De esta manera, elevar la formación y capacidad de los actores es una
meta indispensable si se tiene en cuenta que en la actualidad y en un futuro
cercano, ellos estarán estrechamente relacionados con la toma de decisiones,
la proyección de políticas sociales y de desarrollo, la explotación de los recursos naturales y la prestación de los servicios, “por lo que de su actuación dependerá en gran medida el rumbo que tome el proceso de desarrollo en nuestro
país.”(CITMA, 1997, p. 2).
La implementación de una política nacional de educación ambiental
coherente, integradora, de amplia participación ciudadana es un camino que
hay que recorrer; instruir desde la educación formal e informal es un quehacer
que requiere de la responsabilidad y la colaboración de todos. Una directriz importante de esta política y de la estrategia que la misma encierra, es sin dudas,
la vinculada a los procesos educativos hacia las comunidades para capacitarlas
en la participación de la toma de decisiones, y en la solución de los problemas
locales que contribuyan a mejorar las condiciones de su medio ambiente natural
y psicosocial, transitando hacia modos de vidas más sanos.
También, es de aludir dentro de la educación ambiental que se potencia, el
desempeño de los centros de investigación y el sistema educativo cubano. Desde
los niveles escolares inferiores hasta los centros universitarios se trata de fortalecer el trabajo, incorporando la dimensión ambiental en los diferentes planes de
estudio. Al tiempo que, se busca “incentivar el potencial universitario en función
de solucionar problemas locales y comunitarios”. (Muñoz, 2003, p. 3) Se trata de
modificar enfoques e incentivar una conciencia de protección hacia el medio ambiente, al tiempo de que los estudiantes obtengan nuevos conocimientos.
Es indiscutible que el conocimiento en estos tiempos es un factor decisivo en el proceso del desarrollo. En lo que respecta a la realidad cubana, es
necesario tener un mayor conocimiento acerca de nuestros recursos naturales
y su protección para utilizar racional y responsablemente las riquezas naturales
en pos del beneficio social.
Pensar y analizar nuestra situación- entiéndase, afrontar los disímiles
retos presentes en las diferentes esferas de nuestra sociedad- nunca ha sido obstáculo para reflexionar en torno a la problemática socio-cultural y ambiental foráneas, a través de la implementación de una política ambiental internacional,
trazada y desarrollada acorde con los lineamientos generales de la Cumbre de
Río y nuestras prioridades estratégicas; se persigue:
“[…] contribuir con el ejemplo y voluntad del país, a la búsqueda de soluciones a los problemas ambientales, y a denunciar la responsabilidad
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de los países desarrollados en el deterioro ambiental y social del planeta, planteando las verdaderas causas de la situación ambiental global de
los países subdesarrollados.” (Tabloide: Introducción al conocimiento del
Medio Ambiente, 2008).
Asumir dichas intenciones, más que una necesidad, constituye derroteros esenciales para el logro del desarrollo sostenible. Se trata de conjugar praxis
y teorías a favor de la equidad tanto nacional como global. No debe olvidarse
que los problemas ambientales son transfronterizos y conciernen a todo el orbe,
por lo que accionar conjuntamente con respeto e igualdad puede conducir a un
futuro mejor. “Necesitamos una nueva ética humana que nos ayude a reubicar
nuestras relaciones con el resto del entorno.” (Delgado, 1999, p.86).
Debe trascenderse la concepción estrecha de medio ambiente- como se
aludía en los inicios del texto- para comprender la interdependencia existente
entre las acciones humanas y los procesos naturales y sociales que determinan
la satisfacción de las necesidades materiales, espirituales y culturales. Debe valorarse el impacto de las acciones de los diferentes actores sociales: individuos,
agentes e instituciones- en los tres niveles: micro, meso y macro social- e incidir
en su transformación en los casos que se requiera. Es imprescindible para el
desarrollo sostenible articular dimensiones sobre las bases ecológicas, éticas, de
equidad social, diversidad cultural y participación.
CONSIDERACIONES FINALES
La meta a lograr en todo este camino es la articulación viable de las dimensiones medioambiental, social y cultural en la consecución de la salida de la
crisis ecológica, en tanto pretensión de vida armoniosa entre el hombre y la naturaleza. Mas ello, encierra también comenzar a concentrarnos en la calidad de
vida de las personas, eliminando la pobreza como flagelo que azota a la gran mayoría y reconociendo la diversidad de las comunidades humanas, en la medida
que apreciemos lenta y colectivamente que la cantidad no es lo más importante.
Podríamos acercarnos a la sustentabilidad, siempre y cuando reconozcamos
la sostenibilidad, la biodiversidad, los límites y la eficiencia medio ambientales como equidad intergeneracional, pues hoy en pleno siglo XXI, emprender
acciones cuya finalidad sea debatir y (re)pensar el eje del desarrollo desde sus
múltiples dimensiones, exige de los individuos que nos involucremos con voces
y criterios propios en estos debates. Lo que seamos capaces de construir hoy
será el futuro nuestro y el de las próximas generaciones.
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Urge desarrollar una nueva conciencia que tenga implícita una solidaridad generacional, puesto que nuestros hijos y nietos necesitan - y merecen- un
mundo mejor, donde la ciencia y la tecnología se usen de manera socialmente
responsable, teniendo presente las implicaciones éticas de sus implicaciones, de
manera que estas no resulten dañinas a los seres humanos ni a su entorno natural.
Las teorías sociológicas que abordan la cuestión medioambiental no son
pocas, sin embargo, aún son insuficientes. No fue hasta los años 70 de la pasada
década, como se planteaba al inicio del artículo, que se produjo una pre ocupación, despertar o punto de ascenso en las cuestiones relativas a la dimensión
citada, reconsiderándola como un eje central del proceso del desarrollo y, componente importante cuando se alude al tema de la sostenibilidad.
La perspectiva sociológica en el abordaje de esta temática, se torna esencial, en tanto permite al igual que otras ciencias como la biología, la etnología y
la arqueología una reconstrucción histórica de las relaciones entre naturaleza y
sociedad. Favorece a determinar o identificar la posible multicausalidad de los
procesos no solo por factores sociales, culturales, sino económicos, ambientales,
demográficos, políticos, etcétera. “Todo ello desde un enfoque participativo, incorporando al individuo como actor del desarrollo que es, no como ser acrítico,
mediado o determinado por las condiciones ambientales y relaciones de mercado.” (Duharte, 2013, p. 10)
La intención de este escrito no versó en presentar soluciones, sino más
bien, compartir reflexiones de manera breve sobre el entorno en que vivimos. El
camino a recorrer está delante de nuestros ojos y sólo resta tener responsabilidad, disposición, conciencia y participación para el logro de una vida mejor en
armonía con la naturaleza.
La pobreza, la desigualdad social y el deterioro de la naturaleza constituyen el resultado más inmediato del modelo de desarrollo que impera y domina al
orbe. Nos encontramos frente a un escenario mundial lleno de incertidumbres
y acelerados cambios que demanda de políticas más justas y equitativas, sostenidas en valores éticos comprometidos con cambios a favor del bienestar de los
individuos y sus entornos. Carlos Delgado, reconocido investigador cubano, nos
incita a despertar de la somnolencia antropocéntrica para sentir, pensar y encontrar la salida de la crisis y es en este cambio de dirección, que puede existir la
posibilidad de una coexistencia pacífica donde realmente “entendernos a nosotros mismos como miembros y ciudadanos de una comunidad natural superior
permita disfrutar de una relación más feliz con los seres humanos y con el resto
del mundo [...]”. (Delgado, 1999, p. 424).
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(RE)THINKING THE ENVIRONMENTAL PROBLEMS IN THE CONTEMPORARY
WORLD: PRELIMINARY ANALYSIS FROM A SOCIOLOGICAL DIMENSION FOR
SUSTAINABLE DEVELOPMENT
Abstract
This article includes a proposal for reflection, from a theoretical positioning around the
environmental issues affecting the world today. Viewed from a sociological perspective,
does not obviate the importance for anything other environmental disciplines in the
social sciences subject. In this sense, has been articulated in analyzing the cultural, environmental and sustainable human development, in order to think of a form of conscious, holistic and mature change where she holds creative potential is further deployed.
Are also outlined actions in the Cuban context, and while solutions are proposed, the
purpose of the letter on encouraging versa awakening anthropocentric drowsiness to
feel, think and find the way out of the crisis and achieve the desired harmony between
individual and nature.
Keywords: environment, sustainable development, sociological perspective, cultural
dimension
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Israel de Jesus Rocha
COOPERAÇÃO E ORGANIZAÇÃO EM UM
LABORATÓRIO DE TERAPIA CELULAR: NOTAS
SOBRE UMA SOCIOLOGIA DA PRÁTICA
CIENTÍFICA
Resumo
O presente texto tem como objetivo analisar, à luz dos estudos sociais, em ciência e tecnologia (STS) a organização de um laboratório e o modo como se dá a cooperação entre
os pesquisadores associados ao mesmo. Para tanto, as evidências empíricas partem de
quatro entrevistas realizadas com os pesquisadores que desenvolvem pesquisas com
células-tronco em um laboratório de terapia celular. O laboratório possui uma configuração em que ao mesmo tempo está organizado em termos de projetos individuais
de pesquisadores associados, ele pode ser visto como uma unidade integrada graças ao
vínculo mantido por todos com o líder do laboratório e a possibilidade de cooperação
entre os cientistas do laboratório. Por fim pode-se perceber que muito da organização
do laboratório centra-se em seu líder, acentuando o seu papel articulador, bem como
a dificuldade de relações de cooperação entre os pesquisadores.
Palavras-chave: células-tronco; cooperação; organização; sociologia da ciência; antropologia da ciência.
INTRODUÇÃO
Este artigo tem um duplo movimento. De um lado, ele pretende apresentar em linhas gerais algumas perspectivas do que comumente chamamos
de estudos sociais sobre a ciência e tecnologia. Uma área de estudos que têm
ganhado espaço entre os pesquisadores brasileiros e inspirada, sobretudo, em
trabalhos como Vida de laboratório: a produção dos fatos científicos de Bruno Latour
e Steve Woolgar (1997), resultado de uma etnografia feita no Instituto Salk, na
Califórnia, envolvendo as pesquisas com hormônios. Por outro, há uma tentativa de discutir algumas questões de pesquisa proposta por aquela área. Desse
modo, o segundo movimento situa-se na descrição e análise de dados coletados
em um laboratório de imunologia e terapia celular, tentando desdobrar as tramas que ligam laboratórios, cientistas em redes sociotécnicas, numa área de
inovação das ciências naturais.
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Entre os anos de 2008 e 2009 foi desenvolvido o projeto1 que originou
dados para este artigo. Desenvolvido num laboratório de pesquisa científica,
vinculado a um centro de pesquisa em terapia celular, a questão central estava
na compreensão do modo como as trajetórias dos médicos e pesquisadores envolvidos com inovação mobilizavam uma extensa e complexa rede de sustentação da ciência. Aqui há uma tentativa de analisar alguns dados coletados do projeto, mais como uma prática do que como um corpo de enunciados que ensina
o caminho da razão. O projeto considerava as ciências, e não a Ciência2, a partir
de sua vida ordinária, nas bancadas e refeitórios, entre os percursos de distração dos pesquisadores e a seriedade dos experimentos. Não buscava, portanto,
as justificativas dadas pelos cientistas para as suas pesquisas de maneira isolada, mas o modo como eles construíam as ciências, a partir da prática cotidiana
no laboratório e além de seus muros.
Acompanhamos, durante um ano, o cotidiano dos pesquisadores de um
dos laboratórios que desenvolvia pesquisas com terapia celular para tratamento
de doença de Chagas, com visitas periódicas ao laboratório, participação nas
reuniões de comunicação de resultados, promovidas entre os próprios cientistas, participação em encontros com públicos externos ao laboratório e entrevistas semiestruturadas com os pesquisadores envolvidos nos experimentos com
células-tronco, tanto no laboratório como nas aplicações clínicas em um hospital da rede pública. Aqui, manuseamos as anotações de contexto do campo e as
entrevistas – utilizamos dados de quatro do total de nove que foram realizadas.
Buscou-se, nessas entrevistas, recuperar os caminhos percorridos pelos
pesquisadores até o momento que trabalhavam com pesquisas que envolvem
uso de células-tronco, elemento central de nosso projeto. Atentamos para as
histórias pessoais, motivações, treinamentos, diferentes experiências profissionais e relações sociais estabelecidas, as carreiras e as contingências que envolvem a produção e a prática científica no país, imprimindo uma circulação dos
pesquisadores entre muitos centros e institutos no Brasil e em outros países.
Além destas questões relacionadas com a trajetória, procuramos evidenciar as
práticas cotidianas destes pesquisadores no laboratório, a maneira como lidam
com as questões e problemas levantados por seus projetos individuais e os usos
que fazem de um espaço coletivo como o laboratório.
1
Este trabalho foi desenvolvido a partir de dados coletados durante uma pesquisa de iniciação científica na
Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFBA.
2
Ao estudar a prática científica é preciso observar uma distinção elaborada por Bruno Latour (2000) entre a
“Ciência”, com inicial maiúscula, essa que conhecemos apenas pelo modo que se apresenta nos manuais, na
televisão e nas jornadas de descobertas épicas, e as “ciências”, minúscula e plural, que destaca os aspectos
práticos e idiossincráticos da atividade ordinária de produção dos fatos.
30 /
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Neste sentido, há aqui um argumento teórico-metodológico originado na
área de sociologia da ciência e posteriormente estendido de um modo geral para
as pesquisas em ciências sociais, em que para compreender dinâmicas sociais
é preciso seguir o trabalho de feitura promovido pelos atores envolvidos com suas
práticas. (LATOUR, 2000; LATOUR; WOOLGAR, 1997; LAW, 2005) Pressuposto
esse que permeia todo artigo. A partir desses elementos, toma-se como questão
central desse artigo, os modos pelos quais os cientistas cooperam e organizam
pesquisas em um laboratório de terapia celular, considerando os elementos humanos e não-humanos que permitem tal cooperação e organização.
Portanto, começaremos pela delineação, em termos gerais, do que se
chama estudos sociais de ciência, mesmo com uma complexa heterogeneidade de perspectivas, que envolve o campo, e apontaremos caminhos que
delineiam nossa perspectiva de análise dos dados que serão apresentados na
segunda parte do artigo.
AS PRÁTICAS DE LABORATÓRIO A PARTIR DOS ESTUDOS SOCIAIS
SOBRE A CIÊNCIA E TECNOLOGIA
O leitor deve estar se perguntando as razões de um estudo sociológico sobre laboratórios de pesquisa em biologia molecular. As práticas científicas
até o final da década de 70 eram pouco destacadas nos estudos clássicos sobre
a ciência. Autores como Robert K. Merton (2013), Thomas Kuhn (2009) e Pierre
Bourdieu (1969), trataram da ciência em diversas perspectivas que transitaram
desde os aspectos normativos e os valores até a questão da produção e reprodução do poder no campo científico, passando pelos aspectos culturais que envolvem a cultura na ciência. Por mais relevantes que tenham sido as análises
propostas por essas perspectivas, elas ainda não trataram com detalhes os aspectos que envolvem a prática da ciência. Pouco discutida, a dimensão prática surgia apenas como ilustração de argumentos que envolviam questões como valores
e interesses e as normas que organizam e regem a comunidade científica.
Diferenças consideráveis nas perspectivas tornam os estudos de ciência um campo heterogêneo e aqui não analisaremos os conceitos que envolvem
cada perspectiva. Nos interessa, para este estudo, uma mudança teórico-metodológica, ocorrida em torno das pesquisas interessadas em estudar a ciência e
suas relações com a sociedade. A partir do final da década de 70 diversas propostas de pesquisa começaram a destacar o papel da prática científica para a
compreensão da ciência. Esses estudos tiveram uma considerável orientação
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antropológica em que muitos de seus propositores resolveram investigar a prática científica a partir de um local privilegiado. O laboratório.
Os estudos sociais sobre ciência e tecnologia começaram a enfatizar
que a produção da ciência é marcada por inúmeras redes que se estendem, desde a organização dos equipamentos no interior do laboratório até os inúmeros
espaços externos a ele. (LATOUR, 2000; LATOUR; WOOLGAR, 1997; LAW, 1992)
Políticas de financiamento, congressos, números de pesquisadores envolvidos,
camundongos e equipamentos passam a ser considerados como mediadores
no processo de estabilização dos fatos da ciência. No interior do laboratório, as
decisões sobre os equipamentos adequados para realização de determinados
experimentos, os testes dos artigos publicados em outros laboratórios e a maneira como as decisões sobre tal e qual procedimento, tecnologia e instrumento são tomadas, produzem certos efeitos técnicos que configuram as particularidades locais desses espaços de produção de fatos. (LATOUR, 2000; LATOUR;
WOOLGAR, 1997; LAW, 1992 KNORR-CETINA, 1983) Desde então, não só o laboratório se tornou um locus privilegiado de pesquisa, como também outros elementos tratados de maneira residual ganharam destaque nos estudos sobre a
ciência.
Diferente do ponto de vista que até então tratava a ciência apenas em
seus aspectos normativos e culturais (MERTON, 2013; KUHN, 2009), e em termos de conflitos a partir de um Campo gerador de Habitus (BOURDIEU, 1969),
produzindo análises que pouco consideraram as práticas científicas e o modo
como os fatores sociais de produção da ciência permeavam as relações entre
humanos e não humanos, os estudos produzidos a partir da virada teórico-metodológica sobre a ciência e tecnologia enfatizaram o caráter contextual e
contingente, inserido num processo de construção contínuo. (LATOUR; WOOLGAR, 1997; KNORR-CETINA, 1983) Desse modo, muitos sociólogos e filósofos
iniciaram pesquisas etnográficas com o objetivo de colocar sob o escrutínio da
área, enunciados que até então eram interpretados a partir das perspectivas
mais tradicionais.
No lastro dos resultados dos primeiros trabalhos etnográficos, Latour
(2000) sugere que o caminho seja o de estudar as ciências abertas e incertas
permeadas de fontes de controvérsias. Para isso, era necessário superar e, em
certa medida, estender algumas proposições já colocadas pelo “programa forte”
de David Bloor (2009). Segundo este autor, para compreender a ciência é preciso traçar um movimento simétrico de tratamento tanto do erro como do acerto.
Apenas este último era tratado quando se falava em ciência, atribuindo ao erro
a interferência de fatores sociais e psicológicos, e assim explicados sociologi-
32 /
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camente. Era preciso tratar ambos simetricamente e usar os fatores externos à
ciência tanto para um quanto para o outro. (LATOUR; WOOLGAR, 1997) O princípio da simetria proposto por Bloor possibilitou uma série de investigações sobre
o estatuto do erro e o papel da linguagem na ciência (GILBERT; MULKAY, 2009)
e constituiu-se como um relevante programa de pesquisa envolvendo os aspectos sociais que interferiam na produção dos fatos científicos. Lançou, assim, as
bases para pesquisas sobre a prática da ciência.
Se por um lado Bloor (2009) configurou-se como um dos pontos centrais
na virada de perspectiva sobre a ciência, é com as abordagens construtivistas
que experimentamos relatos sobre a prática, a partir de dados etnográficos, em
que tanto as explicações para os erros passaram a ser descritos pelas ciências
sociais, como também o processo de fechamento das caixas pretas e a produção
mesma dos fatos científicos. Este princípio de simetria proposto no programa
forte foi de algum modo radicalizado nas etnografias, que procuravam além de
igualar vencedores e vencidos, simetrizar natureza e sociedade nas explicações
dos fatos científicos.
Esta perspectiva construtivista da ciência pode ser apresentada nos seguintes pontos: os objetos científicos não se referem a entidades externas, dadas na natureza, nem se referem ao simples pensamento do cientista, mas são o resultado
de uma fabricação. Quatro aspectos são destacados desta concepção: a) o caráter
artifactual da realidade que os cientistas lidam; b) a especificação de propriedades
do processo de produção artifactual; c) o caráter transformacional da ciência e d)
o aspecto autorreferente das operações construtivas. (KNORR-CETINA, 1983)
As fontes de informação dos cientistas em boa parte são manipuladas,
selecionadas, alimentadas, criadas, nutridas, purificadas com o fim de serem
usadas no laboratório. Esta seleção sugere que a natureza está menos presente no ambiente do laboratório e que os modos como são feitas as observações
neste espaço, com uso de instrumentos de medida, tornam ainda mais distinta
a qualquer observação ordinária. As habilidades e a preocupação com que as
coisas funcionem de forma prevista indicam que as atividades no laboratório procuram produzir mais efeitos técnicos do que observações da natureza.
A observação também sugere uma forma de produção da própria natureza.
Segundo, os objetos científicos são antes o resultado de uma construção e o que acontece neste processo não pode ser considerado irrelevante para
o que é obtido. Além de envolver o uso de instrumentos e materiais, esse processo envolve também decisões e interpretações. Estas seleções e escolhas no curso
da ação sugerem que o objeto científico tem pouca probabilidade de ser reproduzido em circunstâncias diferentes. Desse modo, as seleções podem ser postas
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em questão e desconstruídas quando desafiadas, desde que outros laboratórios
consigam reproduzir condições análogas ao experimento original.
Outro ponto destacado é o caráter transformacional dos objetos científicos. Estas transformações comumente são caracterizadas como seleções feitas
para deslocar o subjetivo para o objetivo, o fabricado no que foi encontrado, operando um velamento dos rastros de sua produção, como Latour (2000) sugere,
o fechamento em black box. Estes argumentos, no entanto, não apontam para
um sentido ao qual se poderia considerar a fabricação como algo falso. A fabricação aponta para a dimensão contextual que envolve diversos elementos heterogêneos, desde a produção das culturas de células até a aprovação dos projetos
de pesquisa por agências de fomento que está no cerne da prática científica.
Em Ciência em ação, Latour (2000) sugere que esses passos sejam dados
de forma a tornar o que é extremamente contingente em fatos que já possuem
uma força que permite transbordar seu contexto local de produção. Podem existir como fatos da própria natureza, em nada problemáticos. Os enunciados que
marcam o primeiro momento geralmente são afirmações vagas em torno de algum experimento, de alguma observação da literatura. Neste sentido, uma série
de mediações dos inscritores3 no laboratório produzem incessantemente provas
e mais provas que tornam enunciados frágeis em fortalezas inquestionáveis.
Por fim, há de se destacar o aspecto autorreferente dessas operações
construtivas. A ciência não é algo externo, mas opera como qualquer outra
prática social. Ela se refere às suas condições de reprodução, principalmente quando os cientistas preocupam-se em estabelecer distinções entre fato e
artefato. Quando um cientista defronta-se com um artefato, este é atribuído
mais a um resultado de engano do cientista ou a algo que deu errado durante
o experimento. (KNORR-CETINA, 1983)
Neste sentido, uma das características mais relevantes desses estudos
reside no fato de revelar como as seleções contextuais e contingentes são sustentadas e atravessadas por relações que transcendem o laboratório, e são permeadas de relações que envolvem humanos e não-humanos.
A dimensão prática da ciência aqui assume contornos relevantes para
o argumento central deste artigo. Consideramos os elementos que permeiam a
prática científica a partir das considerações feitas pelos cientistas de um laboratório que realiza pesquisas, como terapia celular. As entrevistas são uma fonte
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Inscrição é um conceito que permeia as obras de Bruno Latour desde a publicação de Vida de Laboratório.
Refere-se aos numerosos registros produzidos por equipamentos no interior de um laboratório. Registros que
possibilitam uma simples afirmação trocada entre colegas no refeitório de se tornar um fato inquestionável
depois de uma cadeia de mediações que o tornam resistente a prova.
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de acesso aos dados manuseados neste artigo, bem como observações realizadas
durante as visitas ao laboratório. Essas observações ajudaram a compreender a
prática científica e diversos elementos que surgiram nas entrevistas. Elementos
estes que chamavam atenção para dados contextuais de produção do laboratório estudado.
Essa breve introdução aos estudos de ciência serve-nos para localizar os
argumentos e o modo como uma observação prática da ciência está inserida em
um conjunto de perspectivas, às vezes dispares, do que é a ciência como prática e instituição. Nos localizamos a partir dos argumentos que pautam a prática como um dado relevante para a compreensão da ciência. Isso nos aproxima
do argumento de autores como Bruno Latour (2000), Michael Callon (2007)
e John Law (1992), que formam o escopo do que conhecemos por Teoria Ator
Rede (TAR) ou Sociologia das Associações.
Para os autores da Teoria Ator Rede ou sociologia das associações a prática científica mobiliza uma série de elementos heterogêneos que produzem
redes com uma estabilidade precária. (CALLON, 2007) A precariedade relaciona-se com o esforço constante de manutenção das realidades como coisas duráveis
no tempo e espaço. Neste sentido, um fato pode se tornar fonte de controvérsia
permanente ou mesmo permanecer uma caixa preta após os inúmeros atores
provocarem mediações constantes.
Destacamos que a organização do laboratório como será descrita nas
páginas seguintes procura mostrar como este caráter contextual e prático
está presente no laboratório em estudo. Não trataremos, então, de considerar
as abordagens clássicas, mostrando apenas como o campo passa por diversos
deslocamentos até a consideração sobre a prática científica como um dado importante para a compreensão da ciência. E o laboratório (seja ele de ciências
naturais ou sociais) surge como local privilegiado para tratar da prática científica. Para isso, estaremos atentos à prática dos pesquisadores, desde o acesso ao
correio eletrônico e aos periódicos, até a seleção e preparação dos experimentos
diários, típicas atividades de rotina dos cientistas.
O LABORATÓRIO ORGANIZADO COMO PROJETOS INDIVIDUAIS
Uma das primeiras questões que nos deparamos quando iniciamos uma
pesquisa sobre a prática científica diz respeito ao modo como um laboratório
de terapia celular se organiza? Podemos falar de cooperação entre os pesquisadores? Qual o papel do chefe do laboratório na articulação ente os diversos pro-
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jetos que encontramos no laboratório? Estas e outras perguntas que procuraremos tratar nesta seção. Para isso, achamos por bem dividi-la em duas seções.
Na primeira, destacaremos a questão da organização do laboratório como projetos individuais centrados no líder do laboratório. Na segunda, discutiremos
algumas questões relativas à cooperação no laboratório, sendo este um espaço
coletivo. Para ambas utilizaremos trechos das entrevistas concedidas pelos pesquisadores e observações feitas nas sessões científicas em que os pesquisadores
trocavam informações sobre as pesquisas. Para manter o anonimato, não serão
apresentados os nomes dos pesquisadores entrevistados, apenas farei referências às falas utilizando letras que identificarão os relatos.
Praticamente em todas as entrevistas concedidas pelos pesquisadores,
existem referências ao chefe do laboratório. Esta ocorrência não parece ser
fortuita e demonstra a importância do líder para o entendimento da organização do laboratório. Os relatos dos pesquisadores sugerem que a organização
do laboratório está centrada nos projetos individuais de cada um que participa
e ocupa o espaço com seus projetos. Portanto, partiremos inicialmente de breves descrições destes trabalhos no laboratório.
O que há de comum em muitos projetos desenvolvidos no laboratório
estudado é o fato de aplicarem a terapia celular. Entretanto, outros tipos de experimentos como a fitoterapia, o uso de fármacos para as diversas metas e objetivos dos projetos também são desenvolvidos. Não é objetivo aqui detalhá-los.
Aqui trataremos da organização de duas maneiras. Primeiro, relacionado aos
projetos individuais de cada pesquisador e, em seguida, como o chefe é evidenciado como o articulador de todos estes projetos.
Os projetos dos cientistas são marcados por suas metas, atividades experimentais e tarefas nas quais procuram apresentar como seus projetos próprios.
Estes projetos agregam lado a lado com cientistas, materiais, instrumentos,
bancadas, ajuda de técnicos ou estudantes e formam pequenos ambientes no
interior do laboratório. Além destas contribuições, os pesquisadores comumente procuram contribuições em outros laboratórios com o objetivo de sustentar
o andamento de suas pesquisas. (KNORR-CETINA, 1999)
Estes pequenos arranjos podem ser vistos em termos de habilidades.
Esses são componentes fundamentais na composição de um arranjo no laboratório. A simples presença de uma técnica especializada em um equipamento
raro produz significativas diferenças nos outputs do laboratório, como muitos
pesquisadores evidenciaram. Ao chegarem ao laboratório, ou mesmo serem
convidados, estes pesquisadores trazem uma gama de técnicas e maneiras de
lidar com certos instrumentos, que podem ser desenvolvidas no laboratório.
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M: [...] a gente não sabe por que é novo o trabalho né, ninguém tinha feito
isso, mas uns cinco meses talvez, por aí, a gente não sabe que é tudo muito novo esse equipamento é único em toda América Latina, só tem aqui,
então o tratamento com ecocardiograma é um equipamento antigo, mas
pra fazer em camundongo é muito complicado porque é de humano, pra
usar em camundongo você não tem a mesma qualidade de imagem [...]
(Informação verbal)
Essa pesquisadora tinha poucos meses trabalhando no laboratório.
Chegou nele a partir de um pós-doutorado e com uma habilidade de manejo
do equipamento que poucos dominavam integralmente no laboratório. Além da
operação, um dos seus trabalhos também era treinar jovens pesquisadores em
habilidades e usos do equipamento. Para um leitor desavisado, pensar que um
pós-doc é mobilizado para operar um equipamento parece um dado irrelevante
diante da posição e titulação que esta pessoa já possui. Nas práticas de laboratório, desenvolver habilidades de operação (o que parece meramente do ambiente
técnico) configura-se como uma porta de acesso aos recursos de inúmeros laboratórios pelo país e o mundo. Foi no cenário de congresso que o líder do laboratório o convidou para integrar a equipe.
O próprio aparelho configura-se como um ator que produz mediações
em torno do laboratório. Torna o laboratório o ponto de convergência de muitas pesquisas que dependem das inscrições produzidas a partir do aparelho.
O deslocamento feito para produzir inscrições envolvendo camundongos é
o desafio colocado pelo equipamento no laboratório. A pesquisadora, além do
treinamento dos jovens pesquisadores no uso do aparelho, precisou desdobrar
uma série de elementos para estabilização daquele não-humano no laboratório.
O que parecia estabilizado em um contexto, tratamento com humanos, em outro demandou novos arranjos e adequações, sobretudo o deslocamento de pessoas qualificadas para sua operação.
Do ponto de vista do chefe do laboratório, estes pequenos arranjos podem melhorar tanto o trabalho como a projeção do laboratório. A pesquisadora acima foi uma de duas apenas que receberam o treinamento para operar
o novo ecocardiograma capaz de fazer leituras de corações de camundongos.
Esse aparelho requer certas habilidades que a pesquisadora já desenvolvia,
como demonstra no trecho seguinte:
M: [...] me deram a maior força aí eu vim pra cá porque eu tenho habilidade pra fazer ecocardiograma, que é mexer naquele equipamento de
ultrassom, Dr. R. tinha acabado de comprar um ultrassom aqui, que eu
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não conhecia [...] estou vendo agora, estou montando, estou fazendo, ai
ele falou: olha você vem continua na área de cardiologia porque aqui eles
trabalham com a doença de chagas e ainda continua mais ou menos na
sua área que é área do ultrassom, só que ao invés de fazer terapia com
genes agente faz a terapia com células-tronco [...]
Quando as habilidades não estão diretamente ligadas ao uso de um aparelho específico, podem envolver interesses em novas linhas de pesquisa.
C: [...]pra conversar com você... ela disse pode vir na mesma hora... ai eu
fui, eu amei ela foi muito receptiva, não pode vir, vem pro laboratório,
desenvolve aqui, [...] ai ele falou... vem vamos desenvolver, o que que você
quer comprar, pode montar farmacologia da dor aqui a gente tem interesse tal e ai a gente começou a comprar as coisas pra montar essa parte
lá pra fazer dor lá [...]
Neste relato, a pesquisadora demonstra o interesse que o chefe do laboratório tem em desenvolver outra área de pesquisa que ainda não está sendo desenvolvida no laboratório. Relata já no mesmo instante os equipamentos
necessários para montagem dos experimentos e a aquisição pelo laboratório.
Um dos elementos que destacam as habilidades do chefe do laboratório está
em mobilizar e prospectar futuras linhas de pesquisa e frentes de trabalho para
manter o laboratório em funcionamento. Os pesquisadores de bancada envolvidos nos experimentos diários são conectados a partir dessa referência ao
esforço do líder em articular muitos projetos e experimentos inovadores para
o laboratório. Seu esforço não é a bancada. Como o cientista empresário, descrito por John Law (2005), o chefe desse laboratório exerce o trabalho de prospecção entre agências de financiamento e espaços de socialização dos resultados,
ao mesmo tempo em que capta novos pesquisadores para os trabalhos de bancada.
Estas habilidades sugerem uma organização do laboratório em termos
de projetos individuais, no qual se tem desde pesquisadores desenvolvendo iniciação científica até pós-doutorado, que parecem estar ligados ao laboratório
pela presença do chefe. Em parte das entrevistas discutidas neste texto, os pesquisadores, ao traçarem suas trajetórias, apontam contatos, indicações e referências ao chefe do laboratório. Neste sentido, o líder articula não apenas o que
acontece no interior do laboratório, mas também as suas redes além dos muros.
São nos congressos, encontros e eventos que se reforçam contatos e conhecem
pesquisadores que desenvolvem determinadas habilidades, como no caso das
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pesquisadoras C e M. E o laboratório, diferente do que uma visão externalista da
ciência parece sugerir, agrega mais habilidades para manusear e criar experiências a partir dos arranjos locais, do que uma simples referência a titulação dos
membros pode sugerir. Ser um pós-doc também significa realizar um trabalho
de bancada, de forma a produzir resultados interessantes para laboratório.
Para Knorr-Cetina (1999), assim como em Law (1992), tornar-se um líder
de laboratório parece ser um estágio final na carreira de pesquisador. Argumenta que além do pesquisador permanecer nos seus projetos individuais ele passa
por vários estágios em sua carreira, desde o nível de estudante até o estágio de
pesquisador maduro. O último estágio parece ser o de tornar-se chefe. Muitos
pesquisadores entrevistados, mesmo que ainda não estejam cursando o doutorado, já demonstram o desejo de ter o seu próprio espaço. Este espaço é sempre descrito como o próprio laboratório, um local para desenvolver um trabalho
mais autônomo, com mais liberdade.
R: Minha expectativa provavelmente é pós-doutorado, ensino, pesquisa,
continuar em laboratório vê se monta uma estrutura que a gente possa
tá comandando [...] continuar ligado e fazendo coisas mais independentes quando a gente tem autonomia para fazer, por exemplo, nas universidades que a gente começa a dar aula, na faculdade, na Baiana, nessa,
naquela faculdade que existe possibilidade de montar uma coisa a partir
de nós, agora nós, sendo os propulsores daquela instituição, daquele ambiente tal, isso eu acho que é o crescimento normal, a ambição normal
que a gente tem, é um trabalho árduo, é óbvio que a gente vai ter a raiz
ligada à pesquisa central, ao local central que é o laboratório, mas agente
na medida do possível vai estar fazendo coisas que a gente imaginava ter
feito, ou que a gente pensa ter feito, que as vezes não podem ser feitas
porque o laboratório tem uma linha, tem um determinação [...] ter o nosso laboratório de pesquisa público trabalhando para atender a sociedade,
que são anseios nossos[...]
Outra pesquisadora descreve nestes termos:
M: ...penso em dar aula, eu penso muito em entrar na universidade federal pra dá aula e ter meu próprio grupo de pesquisa, acho que isso acaba
sendo uma vontade da maioria que está fazendo pesquisa, porque orientar um aluno, formar um aluno é muito prazeroso, é uma coisa muito boa,
então quem sabe ter um, não sei se um laboratório de pesquisa, não é muita coisa talvez, mas ter a minha linha de pesquisa, ainda que aqui dentro
dessa instituição, mas eu poderia dar aula na federal, ter minha linha de
pesquisa aqui dentro, ter alguns alunos e trabalhar em colaboração aqui
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com o laboratório Dr. R. com Drª. M. com o pessoal do INCOR como agente já colabora, montar mais uma série [...]
O caminho da independência ainda é descrito por outra pesquisadora
que deseja construir seu próprio espaço:
C: [...]acho que é hoje o que tá conseguindo fazer com que eu caminhe,
mas eu tenho total convicção que o caminho da independência é o melhor
[...] então eu pensei eu preciso ter um espaço meu, eu até agora fiz pesquisas na casa dos outros, e eu preciso ter a minha casa, mesmo que seja
pequena, mesmo que seja simples, eu preciso começar aqui, então, o que
eu fiz, desde que eu cheguei aqui, comecei a abrir os editais[...]
Todos os relatos descrevem uma situação em que apenas a criação de
um espaço próprio pode realizar um pesquisador profissionalmente. Antes
de ser um líder de laboratório, um pesquisador, dentro da organização exposta aqui, parece ser apenas um elemento no arranjo do laboratório. Depois que
é feita a transição, o laboratório passa a ser o próprio arranjo. Tornar-se o chefe
do laboratório parece ser o que completa um pesquisador. (KNORR-CETINA,
1999) Ao mesmo tempo, como sugere Andrew Pickering (1995), a autonomia
pode ser descrita como uma forma de não ingressar numa lógica de big Science, mantendo-se em pequenos espaços de construção de fatos. Mesmo com as
características apontadas pelos pesquisadores no sentido de buscar um espaço
em que possam liderar, essa autonomia está ligada a habilidade de desenvolver
resultados que produzam diferença na área.
Esta mudança de um pesquisador centrado em seus projetos individuais
para um pesquisador que mobiliza não apenas objetos como também uma rede
de relações sociais fora do laboratório é evidenciado num relato do trabalho do
líder feito por um pesquisador no laboratório trabalhado:
R: Dr. R. tem se afastado de algumas coisas de docência etc. para meio que
fazer o despacho, vamos dizer, despachar as prioridades do laboratório
em termos burocráticos, em termos de angariamento de recursos e etc [...]
Este líder já não realiza o trabalho de bancada e através da sumarização, explicação e definição do trabalho do laboratório para o público externo.
Constrói e amplia redes, relações pessoais, obtendo financiamento e reconhecimento para o laboratório. (KNORR-CETINA, 1999) Seus atributos passam a
ser o de revisar o campo de pesquisa, escrever parte de artigos, organizar informações, conversar com outros pesquisadores e sustentar a rede que se estende
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laboratório afora. (LATOUR, 2005; LAW, 1992) Entretanto, o líder ainda tem de
sustentar laços com o trabalho do laboratório, pois este trabalho está sendo continuamente observado e avaliado e os interesses dos pesquisadores e do líder
precisam a todo o momento ser negociados. (KNORR-CETINA, 1999) Em muitos
arranjos, essa ligação é feita por pesquisadores intermediários, que assumem as
orientações, as mediações diretas entre a bancada e os projetos individuais com
a sumarização e divulgação fora do laboratório.
A COOPERAÇÃO NO LABORATÓRIO
Esta segunda seção tratará de aspectos relacionados à cooperação no
laboratório. Segundo Knorr-Cetina (1999), em laboratórios de biologia molecular, o que tende a unir os pesquisadores como unidades individuais, é o mesmo
que os divide, criam tensões, conflitos e resistências. A cooperação surge como
uma tentativa de retribuição de serviços prestados em diversos momentos da
carreira do pesquisador em suas trajetórias; dos produtos obtidos por certos experimentos que só são realizados em laboratórios devidamente equipados; do
uso instrumentos que requerem certas habilidades adquiridas com a trajetória
e através da troca de informações que circulam pela rede a qual o pesquisador
circula.
Ainda que haja cooperação entre os pesquisadores, como evidenciaremos nos relatos a seguir, encontramos relações conflitantes devido ao uso coletivo do espaço do laboratório. Ao mesmo tempo em que fala do uso coletivo do
espaço, a pesquisadora, mencionada abaixo, se refere às tensões frequentes que
ocorrem no laboratório por conta de uma organização com hierarquia diluída,
caso diferente do que acontece nos laboratórios industriais, em que as hierarquias se desdobram de maneira mais rígida:
RE: [...] aqui no centro e uma coisa cada um, eu tenho que lavar o que eu
sujo no laboratório, eu tenho que lavar as minhas coisas, então é totalmente diferente a forma como funciona né [...] as pessoas tão o tempo
todo muito discutindo, e um discute com outro, um discute com o orientador do outro, por que não tem muito essa hierarquia né, então lá [na
indústria] é tudo feito pra que as coisas ocorram na maior produtividade
e no menor estresse interpessoal possível [...]
Muitas questões relacionadas à cooperação dizem respeito ao uso dos
equipamentos e troca de informações entre os pesquisadores do laboratório.
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No trecho abaixo, a cooperação acontece ao nível de aprendizados sobre as técnicas utilizadas no laboratório.
M: [...] então a gente tá trabalhando juntos, R. e eu acho que é a pessoa que
mais sabe aqui dentro do laboratório, ele é o braço direito de Dr. R. e ele
sabe todas as técnicas que são utilizadas, então ele que está me treinando,
apesar dele ainda não ter o doutorado, mas o nível dele tá muito além do
título que ele ainda não pegou, por falta do prazo, de defesa de tese, é só
uma questão burocrática, mas ele sabe, e muito [...]
A cooperação pode ocorrer não apenas ao nível interno do laboratório,
mas estender as suas cooperações para outros laboratórios. Este argumento
está presente em algumas entrevistas em que a transferência de pesquisadores para outro acaba gerando uma rede de colaboração entre os laboratórios.
Frequentemente, esta cooperação acontece a partir de trocas de materiais,
quando há um impedimento da burocracia na compra dos mesmos, ou, na escrita de artigos, ou no uso de alguns equipamentos específicos:
M: [...] a colaboração assim, a gente precisa de alguma coisa, tem alguma
dúvida eles também, eles também fixam metas lá, eles querem mandar
camundongos pra gente examinar aqui, então, às vezes, a gente precisa
de alguma coisa em biologia molecular que eles tem lá, ou na hora de escrever o artigo, eu escrevo uma parte, eles escreve outra, a gente faz essas
colaborações em pesquisa [...]
Este tipo de colaboração entre laboratórios pressupõe que ambos estejam
preparados para suprir as necessidades do outro. Estes serviços comumente parecem acontecer numa lógica da troca. Isto porque a cooperação nestes laboratórios
surge da complexidade de manutenção da pesquisa e da competição, o que faz
acelerar os passos da pesquisa. (KNORR-CETINA, 1999) Muitos pesquisadores entrevistados demonstraram a necessidade de uma relativa rapidez nas publicações
dos resultados obtidos nos experimentos, pelo elevado grau de competição.
Há ainda três questões que precisamos discutir. A cooperação implica
no entendimento que os pesquisadores têm de que o produto dos seus projetos
não é individual, mesmo que o laboratório esteja organizado a partir de projetos individuais. Estes produtos são frequentemente ações coletivas no interior
do laboratório, em que nem todas as etapas de experimentos são realizadas pelo
pesquisador. O segundo ponto é que as largas unidades criadas a partir de atividades individuais tendem a tornar-se individualizadas através da figura do líder.
A função do líder, como mostra Knorr-Cetina (1999), é a de representar o laborató-
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rio. A terceira questão é que a individualização do líder é construída em parte pela
invisibilidade do suporte da pesquisa no laboratório. No laboratório estudado,
enquanto o líder realiza as atividades externas ao laboratório, outra pesquisadora
dá suporte internamente:
R: ... Sempre [quem orientou] foi Dr. R, agora ultimamente, Dr.ª M. Dr R.
como tem essa responsabilidade com um monte de coisa a mais ele não estava podendo dá tempo, sempre foi Dr. R. no papel e sempre Dr.ª M. no laboratório, que é quem fica geralmente a maior parte do tempo no laboratório...
Ocupando posição de confiança, esta pesquisadora faz a mediação entre
as rotinas nas bancadas e as rotinas de fora da bancada. Ainda movimenta-se
com frequência pelo laboratório a partir das orientações, mas já ocupa uma posição de articulação entre os diferentes inputs e outputs que configuram o trabalho no laboratório. Este aspecto a coloca numa zona de tradução entre os andamentos dos experimentos e os aspectos mais contingenciais que são vividos
fora do laboratório, sobretudo pelo líder, que reúne uma agenda considerável de
rotinas fora dos muros e dos limites do laboratório.
CONCLUINDO ORGANIZAÇÃO E COOPERAÇÃO
Procurando entender a maneira como o laboratório se organiza, em
torno de projetos individuais, e como a questão da cooperação acontece no laboratório, apresentamos alguns relatos de pesquisadores que trabalham num
laboratório em Salvador. A organização do laboratório centra-se muito nos projetos que são desenvolvidos pelos pesquisadores e não pode ser entendida se não
for considerada essa questão. Ao passo que formam unidades individuais, estes
projetos são articulados em torno da presença de um líder, através do qual as
pesquisas ganham uma dimensão de um laboratório. Quando o chefe do laboratório fala em presença de outros públicos, sua referência é sempre a uma lista de
atividades que o laboratório desenvolve. Os projetos individuais são deslocados
para uma perspectiva que os coloca em termos da força que o laboratório possui
a partir de seus resultados. (KNORR-CETINA, 1999)
O trabalho do líder parece ser o do cientista empresário descrito por Law.
Seu trabalho é o de associar um conjunto heterogêneo de elementos diversos em
seu laboratório. Estes elementos podem vir dos arranjos no interior do próprio laboratório, através da maneira como são, junto aos processos, ordenados, ganhando
uma nova forma. Podem vir também de redes exteriores diretamente associadas
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ao trabalho do líder, como no caso de pesquisadores que desenvolvem determinadas habilidades e que podem ser importantes peças no laboratório (LAW, [s.d]).
Sua face pública é destacada pelas conexões que estabelece com outros laboratórios. Obter créditos com as agências de financiamento e com diversos atores que
conformam a rede do laboratório, mantenha o público externo informado sobre
o trabalho desenvolvido no laboratório, concedendo entrevistas.
O laboratório apresenta esta organização peculiar centrada nos projetos individuais e articulada pela presença de um chefe, que ao mesmo tempo é
a face externa do laboratório e mediador de conflitos e cooperação no interior do
laboratório. Ao nível da cooperação, o laboratório estende suas relações a outros,
além da cooperação interna. Esta acontece no uso de equipamentos, treinamento e tradução, ao nível dos estudantes, de técnicas e procedimentos utilizados
no laboratório, o uso de substâncias produzidas por outro pesquisador, entre
outras. A nível externo, a troca de materiais e a cooperação na produção de artigos se dão devido as articulações que o chefe e outros pesquisadores conseguem
estabelecer com outros ambientes, seja laboratório ou indústria.
As questões colocadas aqui direcionam uma perspectiva do laboratório
a partir de suas práticas. Neste sentido, procura-se mais tratar dos aspectos que
demonstram como os arranjos espaciais e pessoais configuram uma dinâmica e
produção local, a partir do que é possível fazer com a atração de novos talentos
para a pesquisa no laboratório. Este parece sobreviver a partir da dinâmica de
produção de fatos que produzam diferenças no mundo, atendendo também aos
interesses coletivos, empresariais e também individuais. Não parece ser uma
realidade nas ciências sociais um jovem sociólogo desejar um Prêmio Nobel,
mas configura-se no horizonte de muitos pesquisadores, ainda na iniciação
científica, que trabalham em áreas de inovação como as células-tronco, nas
quais as controvérsias estão em pleno vapor e os fatos pouco estabilizados.
Referências como essas, captamos em diversos momentos que tivemos contato
indireto com os pesquisadores no campo, como em uma interação ao final de
reuniões científicas de discussão dos resultados, em que sem muita dificuldade,
comentavam entre si possíveis consequências de suas pesquisas.
COOPERATION AND ORGANIZATION IN A LABORATORY CELL THERAPY: NOTES
ON A SOCIOLOGY OF SCIENTIFIC PRACTICE.
Abstract
In this article the aims to analyze the light of the social studies of science and technology
(STS) the organization of a laboratory and how it gives the cooperation among resear-
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chers associated with it. In addiction, empirical evidence run four interviews conducted
with researchers developing research with stem cells in a laboratory cell therapy. The
laboratory has a particular structure because the same time that is organized in terms of
individual projects associated researchers, it can be seen as an integrated unit thanks to
the connection maintained by all with the leader of the laboratory and the possibility of
cooperation between laboratory scientists. Finally it can be perceived that much of the
organization of the laboratory focuses on its leader, emphasizing its coordinating role,
as well as the difficulty of cooperation relations among researchers.
Keywords: stem-cells; cooperation; organization; sociology of Science; anthropology of
Science.
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Fernando Larrea Maldonado1
CLASSES SOCIAIS NO PAPEL, CLASSES
MOBILIZADAS E LUTAS PELA CLASSIFICAÇÃO
EM PIERRE BOURDIEU: UMA DISCUSSÃO EM
DIÁLOGO COM O FAZER-SE DA CLASSE DE E. P.
THOMPSON
Resumo
O presente artigo indaga em torno à conceição das classes sociais no pensamento de
Pierre Bourdieu em estreita vinculação com as noções chaves de seu arcabouço teórico:
espaço social, campo, habitus, tipos de capital. Apresenta se a forma como Bourdieu concebe o espaço social para derivar nele recortes entre grupos de agentes que partilham
similares condições de existência, condicionamentos e propriedades, configurando
o que Bourdieu denomina de “classes no papel”. Posteriormente, se aborda a perspectiva construtivista de Bourdieu em sua conceição das “classes reais”, constituídas
através de processos simbólicos e políticos, colocando-a em diálogo com o “fazer-se”
da classe de E. P. Thompson. Finalmente, se destacam alguns claro-escuros, na visão
das classes de Bourdieu, evidenciando algumas de suas potencialidades e limites.
Palavras-chaves: teoria social, classes sociais, lutas simbólicas, representação.
Pois a classe não é nem constatada, nem decretada; assim como o fatum do
aparelho capitalista, assim como a revolução, antes de ser pensada ela é vivida a título de presença obcecante, de possibilidade, de enigma e de mito.”
(Maurice Merleau-Ponty)2
INTRODUÇÃO
Em vários de seus trabalhos, Pierre Bourdieu aborda e desenvolve a discussão sobre as classes sociais e sua definição. Em certo sentido, esta discus1
Mestre em Ciências Sociais pela Facultad Latinoamericana de Ciencias Sociales (FLACSO, Quito - Equador);
Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal da Bahia; email:
[email protected]
2
Merleau-Ponty, (1999: 598).
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são ultrapassa todo o prolífico itinerário da produção intelectual de Bourdieu,
desde seus primeiros trabalhos sobre Argélia no final dos anos 50 e início dos 60,
do século passado,3 continuando com A distinção4 que se situa no centro de sua
produção, até suas últimas pesquisas e estudos desenvolvidos na França, nos
anos 90, momento particularmente relevante para um Bourdieu engajado politicamente, que acompanha as lutas de sindicatos e movimentos sociais contra o
neoliberalismo.5 Bourdieu questiona uma compreensão meramente econômica
das classes sociais, ao mesmo tempo em que rejeita uma visão substancialista
ou essencialista em sua definição; assim, coloca a discussão dentro de seu próprio arcabouço teórico, isto é, em uma perspectiva relacional e vinculada estreitamente as noções de espaço social, campo, capital e habitus. A conceição das
classes, em Bourdieu, desenvolve-se consequentemente nessa fina e instável
faixa em que decorre sua teoria da prática, na qual busca conciliar ou superar
a antinomia entre objetivismo e subjetivismo, entre estrutura e ação. Pode-se
dizer que em sua compreensão das classes sociais põe-se em tensão todo seu
arcabouço teórico metodológico, mostrando algumas de suas potencialidades e
possibilidades para a análise concreta de distintas realidades empíricas, como
também expressando seus limites e fissuras.
O presente artigo indaga algumas das aristas e dos claro-escuros que
a perspectiva de Bourdieu, sobre as classes sociais, traz dentro de sua abordagem teórica, com seus conceitos centrais, sintetizados nas noções de espaço social, campo, habitus e tipos de capital. Após uma apresentação dos
elementos centrais da conceição bourdieusiana das classes sociais e de suas
críticas e rupturas com uma tradição marxista mais ortodoxa, desenvolve-se
a discussão sobre as perspectivas que abrem suas potencialidades e limites,
colocando-as em diálogo com a visão sustentada por E. P. Thompson, em seus
estudos históricos e suas reflexões teóricas sobre as classes sociais; este último
autor partilha com Bourdieu uma abordagem construtivista crítica, mas que
se mantém dentro de uma perspectiva marxista.
3
Entre os trabalhos de Bourdieu, nesta etapa, deve-se mencionar especialmente Trabalho e Trabalhadores na
Argélia, publicado em 1963, no qual o autor desenvolve um esboço para a descrição das classes sociais na
sociedade argelina. Ver Baranger, (2012).
4
A distinção: critica social do julgamento (BOURDIEU, 2008a), publicada em francês, em 1979, considerada uma
obra central na carreira intelectual de Bourdieu. Posteriormente, o autor publicará, em 1984, o artigo “Espaço
Social e gênese das classes”, onde apresenta uma síntese de seu posicionamento teórico em torno às classes em
forma mais acabada, incorporando todas as implicâncias já pressentes em A distinção (BARANGER, 2012).
Este artigo está publicado em português como um capítulo do livro O poder simbólico. (BOURDIEU, 2010)
5
Nesta fase, destaca-se a pesquisa coordenada por Bourdieu chamada A Miséria do Mundo, sobre o sofrimento
socialmente induzido na França contemporânea, publicada originalmente em 1993. (BOURDIEU, 2003)
Sobre esta fase de engajamento político de Bourdieu, ver Braga, (2011); também Bensaid, (2002).
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Esta discussão apoia-se, também, em uma série de reflexões e contribuições de distintos autores, sobre o pensamento de Bourdieu, entre os que se destacam aqueles que se inserem dentro do que Braga define como um “marxismo
aberto”, isto é, um tipo de marxismo que se caracteriza por: a) uma compreensão
da história como um processo “aberto” (afastando-se de uma visão teleológica);
e b) que entende que a obra de Marx representa um projeto intelectual “aberto”
a permanente atualização e fundamentalmente crítico. (BRAGA, 2011, p. 62) Estes autores têm atualizado, nos últimos anos, o diálogo entre Marx, os marxismos e as propostas teórico-metodológicas de Bourdieu, destacando espaços de
confluência e de diferenciação6.
ESPAÇO SOCIAL E A CONSTRUÇÃO DE CLASSES: AS CLASSES NO
PAPEL
Para Bourdieu, o mundo social pode ser representado desde uma perspectiva sociológica como um espaço multidimensional, construído empiricamente, sobre a base de um conjunto de fatores ou propriedades que sustentam
as diferenças observadas, em um universo social determinado. Estas propriedades são as distintas “formas de capital” que estão ativas nesse universo e que
são capazes de conferir poder ou força aos agentes que as possuem. (BOURDIEU, 2001, p. 105)7 Tomando como referência concreta a sociedade francesa
contemporânea, Bourdieu distingue quatro formas de capital como as fundamentais: o capital econômico, em suas distintas espécies; o capital cultural,
também em seus diversos tipos; e duas formas de capital adicionais fortemente
relacionadas com as duas primeiras, o capital social, baseado em conexões e pertença grupal; e o capital simbólico, que é a forma adotada por os outros tipos
de capital, uma vez percebidos e reconhecidos como legítimos (2001, p. 106).
Consequentemente, os agentes se distribuem no espaço social ocupando distintas posições segundo estes princípios de diferenciação, isto é, segundo a distribuição destas formas de capital.
Bourdieu salienta que a noção de espaço “contém em si o principio de
apreensão relacional do mundo social” pelo qual contribui para romper com a
tendência da sociologia de pensar o mundo social de maneira substancialista.
6
Nesta direção, pode-se mencionar o livro de Michael Burawoy escrito em colaboração com Karl Von Holdt,
chamado Conversations with Bourdieu: The Johannesburg Moment. (BURAWOY; VON HOLDT, 2012) Uma
versão prévia dos textos de Burawoy foi publicada no Brasil, sob a organização de Ruy Braga. (BURAWOY,
2010) Ver também (BRAGA, 2011; CORCUFF, 2009; CORCUFF, 2002; BENSAID, 2002).
7
Ver também (BOURDIEU, 2010; BOURDIEU, 2008b).
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A realidade que a ideia de espaço social designa reside na “exterioridade mutua
dos elementos que a compõem” e os agentes diretamente visíveis nesse espaço, sejam eles indivíduos ou grupos, “existem e subsistem na e pela diferença”,
ao ocupar “posições relativas em um espaço de relações que, ainda que invisível e sempre difícil de expressar empiricamente, é a realidade mais real [...] e o
princípio real dos comportamentos dos indivíduos e dos grupos”. (BOURDIEU,
2008b, p. 48-49)
Nesta direção é que Baranger (2012, p. 121) destaca que a preeminência
da noção de espaço social no pensamento de Bourdieu se afirma em um sentido ontológico (o espaço social é real), epistemológico (é possível conhecer este
espaço) e metodológico (o primeiro é construir o espaço). Consequentemente,
para Bourdieu (2008b, p 49-50), dado que todas as sociedades se apresentam
como espaços sociais, como “estruturas de diferenças”, o papel da ciência social
é, precisamente, “construir e descobrir o princípio de diferenciação, que permite reengendrar teoricamente o espaço social empiricamente observado”, isto é,
o princípio da estrutura de distribuição dos tipos de capital eficientes no universo social considerado, que variam de acordo aos lugares e momentos.
Utilizando uma variedade de métodos qualitativos e quantitativos,
é em A distinção (2008a) que Bourdieu desenvolve e põe à prova esta conceição do
espaço social em “uma pesquisa inseparavelmente teórica e empírica” referida
à sociedade francesa nos anos 70. (BOURDIEU, 2008b, p. 14) Nesta pesquisa, os
agentes são distribuídos na totalidade do espaço social em torno de três dimensões: na primeira dimensão, segundo o volume global do capital (capital econômico, capital cultural e capital social) que possuem; na segunda dimensão, em
função da estrutura do seu capital (peso relativo dos diversos tipos de capital no
volume global); e na terceira dimensão, segundo sua trajetória, isto é, sua evolução no tempo (trajetória passada e seu potencial no espaço social), do volume e
composição do seu capital. (BOURDIEU, 2008a, p. 95-161)
A partir desta distribuição dos agentes no conjunto do espaço assim
construído, é possível realizar recortes em áreas especificas deste espaço, onde
se agrupam os agentes que partilham posições próximas entre si. Estes recortes
representam, então, “classes lógicas”, ou “classes no papel”, construídas analiticamente desde uma perspectiva sociológica, nas quais os indivíduos agrupados
em uma mesma classe caracterizam-se por manter a maior semelhança possível
no maior número de aspectos. Ao partilhar condições objetivas parecidas, estes
agentes estão sujeitos aos mesmos fatores condicionantes, consequentemente
têm todas as possibilidades de ter disposições e interesses similares e de produ-
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zirem práticas, representações e tomadas de posição do mesmo tipo, isto é, de
ter os mesmos habitus. (BOURDIEU, 2001)
A noção de habitus8 é central no arcabouço teórico de Bourdieu, porque
permite a conexão entre as estruturas objetivas do espaço social as condições
concretas de existência dos indivíduos e a ação e práticas concretas dos agentes
no mundo social. Produto, ele mesmo, da interiorização das estruturas, de sua
inscrição nos corpos. O habitus é o princípio gerador e organizador das práticas
individuais e coletivas, configurando o conjunto de respostas possíveis e adequadas dos agentes, em situações muito diversas: “[...] sendo o produto de uma classe determinada de regularidades objetivas, o habitus tende a engendrar todas as
condutas ‘razoáveis’, do ‘senso comum’, que são possíveis nos limites dessas regularidades”, condutas que podem ser sancionadas positivamente porque estão objetivamente ajustadas à lógica de um campo social dado; ao mesmo tempo, tende
a “excluir ‘sem violência, sem arte, sem argumento’ todas ‘as loucuras’ (‘isso não é
para nós’)”, todas as condutas que podem ser negativamente sancionadas por ser
incompatíveis com as condições objetivas. (BOURDIEU, 2009, p. 92)
Mas ao mesmo tempo em que os habitus organizam as práticas e sua
percepção, as práticas resultantes apresentam-se como “configurações sistemáticas de propriedades”, que exprimem as diferenças objetivamente existentes e
as “distâncias” entre as classes no espaço social, e que ao serem percebidas pelos agentes dotados dos princípios de percepção e apreciação necessários para
identificá-las e interpretá-las, funcionam como estilos de vida (BOURDIEU,
2008a p. 164), constituindo assim diferenças simbólicas e signos distintivos9.
Como salienta Bourdieu: “Assim como as posições das quais são o produto, os
habitus são diferenciados, mas são também diferenciadores, distintos, distinguidos, eles são também operadores de distinções [...]”.
Os habitus são princípios geradores de práticas distintas e distintivas – o que
o operário come, e, sobretudo sua maneira de comer, o esporte que pratica e
sua maneira de praticá-lo, suas opiniões políticas e sua maneira de expressá-las diferem sistematicamente do consumo ou das atividades correspondentes do empresário industrial; mas são também esquemas classificatórios,
princípios de classificação, princípios de visão e de divisão e gostos diferentes. (BOURDIEU, 2008, p. 22)
8
Para uma compreensão mais detalhada das noções de habitus e de campo social ver Bourdieu, 2009.
9
Em A Distinção, Bourdieu analisa precisamente os gostos e os estilos de vida como “marcadores” simbólicos
privilegiados da “classe”. “O gosto classifica aquele que procede à classificação: os sujeitos sociais distinguemse pelas distinções que eles operam entre o belo e o feio, o distinto e o vulgar; por seu intermédio, exprime-se
ou traduz-se a posição desses sujeitos nas classificações objetivas”. (BOURDIEU, 2008a, p. 13)
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Bourdieu enfatiza a importância dos processos de classificação (classements) que acontecem na existência corrente, no dia a dia, e que realizam os
próprios agentes no universo social. Os habitus constituem os princípios desde
os quais se produzem permanentemente na prática estas classificações, a partir das posições ocupadas pelos agentes no espaço social (posições segundo as
quais eles são classificados e desde as quais eles classificam aos outros), como
parte das estratégias postas em jogo por eles para mantê-las ou modificá-las,
pois estas posições para Bourdieu (2008a, p. 229) são “inseparavelmente localizações estratégicas, lugares a defender e conquistar em um campo de lutas”.
Para Bourdieu (2008b), o espaço social global pode ser concebido ao mesmo tempo como um campo de forças cuja necessidade impõe-se aos agentes nele
envolvidos e como um campo de lutas, no qual os agentes se enfrentam desde
suas condições, contribuindo para a conservação ou para a transformação de sua
estrutura. Aqui, evidencia-se no pensamento de Bourdieu a conceição agonística
do mundo social,10 isto é, como produto permanente das lutas que nele operam.
Ao mesmo tempo, aqui se fecha e concilia o circuito entre estrutura e ação, ao colocar em relação no seu sistema teórico “as posições sociais (conceito relacional),
as disposições (habitus) e as tomadas de posição, as escolhas que os agentes fazem
nos domínios mais diferentes da prática”. (BOURDIEU, 2008b, p. 18)
O espaço social nas sociedades altamente diferenciadas, além de constituir ele mesmo um macro campo de forças e de lutas, está conformado, por sua
vez, de uma pluralidade de campos sociais mais específicos, os quais constituem
também “microcosmos sociais” relativamente autónomos11 (tais como o campo
artístico, o campo científico, religioso, político, jurídico, econômico, etc.), dotados de uma lógica própria e que, igualmente, funcionam como espaços de
posições sociais e estratégias dos agentes. Um campo social se caracteriza por
ser, por um lado, um sistema de forças que se impõe ao conjunto de agentes envolvidos nele, independentemente da posição que ocupem e da percepção que
tenham ou não das mesmas, mas por outro lado é, também, a arena de lutas
destinadas a modificar ou conservar o estado das relações de força e a distribuição do capital específico sobre o qual este estado se baseia. (WACQUANT,
2001) Bourdieu (2009, p. 109) utiliza a metáfora de um jogo para ilustrar esta
noção de campo social, isto é, “o espaço de jogo, as regras de jogo, o que está em
jogo”, com a diferença que no caso dos campos sociais, ao ser resultado de um
longo processo de autonomização, “não se entra no jogo mediante um ato de
10 Ver Waquant, 2001.
11 Ver Bourdieu e Wacquant, 1995: 63-78. Também Baranger, 2012. Baranger aborda em detalhe a discussão sobre
o conceito de campo social no pensamento de Bourdieu, suas implicâncias e as críticas que tem recebido.
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consciência, se nasce no jogo, com o jogo, e a relação de crença, de illusio,12 de
investimento é tanto mais total, incondicional, quanto ela se ignora como tal”.
Com o conjunto de elementos, descritos neste rápido percurso pelos aspectos centrais do arcabouço teórico de Bourdieu, podemos resumir seus argumentos em torno das “classes teóricas” ou “classes no papel”, derivadas de sua
concepção do espaço social. Como foi dito, as classes construídas analiticamente, baseadas no conhecimento das posições e de seu recorte no espaço social,
podem ser caracterizadas como o conjunto agregado de agentes que, pelo fato
de ocupar posições similares no espaço social (isto é na distribuição de poderes
ou tipos de capital), estão sujeitos a similares condições de existência e fatores
condicionantes e, como resultado, estão dotados de disposições similares que os
levam a desenvolver práticas e tomadas de posição semelhantes. (BOURDIEU,
2010, p. 136)
Estas “classes no papel”, para Bourdieu, têm existência teórica, mas não
devem ser confundidas com as classes reais, com as classes atuantes e mobilizadas para a luta. Mesmo que estejam bem fundamentadas e que possam proporcionar explicações mais completas da realidade social, estas “classes lógicas”
devem ser consideradas apenas como “classes prováveis” cujos componentes
podem se aproximar, mobilizar e constituir grupos, sobre a base de suas semelhanças de interesses e disposições, mas não estão realmente mobilizados.
(BOURDIEU, 2001, p. 112)
AS CLASSES MOBILIZADAS E AS LUTAS DE CLASSIFICAÇÕES:
O FAZER-SE DA CLASSE
Para Bourdieu (2001, p. 111), a tradição marxista comete a falácia teórica
de equiparar as “classes construídas” que existem somente no papel com as classes reais, motivadas pela consciência da identidade de sua condição e interesses, mas também constituídas em forma de grupos mobilizados, confundindo
assim “as coisas da lógica com a lógica das coisas”.13 Bourdieu levanta esta crítica
à concepção marxista das classes por considerar que ela conduz, seja à transposição mecânica sem mediar processo nenhum entre o grupo teórico derivado
analiticamente da estrutura e o grupo prático, seja para estabelecer a passagem
12 Bourdieu usa a noção de illusio para substituir a noção de interesse e evitar a confusão com o senso dado
a este conceito pela teoria utilitarista. Para Bourdieu a noção de “illusio” diz respeito ao fato de estar
envolvido, de ser prendido no jogo e pelo jogo. Estar interessado quer dizer aceitar que o que acontece em
um jogo social determinado tem senso, que as apostas são importantes e dignas de serem empreendidas.
(BOURDIEU; WACQUANT, 1995, p. 80)
13 Bourdieu usa esta frase de Marx com a qual ele criticava Hegel. Ver Marx, (2010).
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desde a “classe em si” definida desde um conjunto de fatores objetivos, para
a “classe para si” fundada em fatores subjetivos; passagem “celebrada como uma
verdadeira promoção ontológica” decorrente da “tomada de consciência” como
o efeito da realização da verdade objetiva sob a “direção esclarecida do partido”.
(BOURDIEU, 2010, p. 138) O alvo central desta crítica de Bourdieu concentra-se na substancialização ou teleologização da classe assim como na “misteriosa”
passagem de um momento para o outro, atribuídas a “uma tradição marxista
indeterminada”.14 (BRAGA, 2011)
Bourdieu (2001) considera que a construção de “uma classe sobre o papel”, mesmo que esteja bem fundamentada na realidade e apoiada nos princípios subjacentes das práticas em um universo social determinado, não se impõe
de forma evidente para os agentes atuantes no mundo social, nem prevalece automaticamente nas suas percepções do mesmo. As representações individuais
e coletivas que os agentes fazem do mundo social, em suas práticas cotidianas,
podem estar referidas a outros princípios de classificação ou categorias, totalmente diferentes daquelas segundo as quais são construídas as classes teóricas,
por exemplo, critérios étnicos, raciais, nacionais, religiosos ou estabelecidos
em função de divisões ocupacionais, locais ou comunais. Assim, ao equiparar
as classes construídas desde uma perspectiva analítica com os grupos reais, por
uma parte, prescinde-se do processo e trabalho político necessário para impor
um princípio de visão e divisão do mundo social, e, por outro, desconsidera-se as classificações, continuamente produzidas pelos agentes na sua existência
corrente, como parte das lutas simbólicas, para manter ou modificar sua posição objetiva no espaço social. (BOURDIEU, 2010) Como acrescenta Bourdieu:
Não se passa da classe-no-papel à classe “real” a não ser por um trabalho político de mobilização: a classe “real”, se é que ela alguma vez existiu
“realmente”, é apenas a classe realizada, isto é, mobilizada, resultado da
luta de classificações como luta propriamente simbólica (e política) para
impor uma visão do mundo social, ou, melhor, uma maneira de construí-la, na percepção e na realidade, e de construir as classes segundo as quais
ele pode ser recortado. (BOURDIEU, 2008b, p. 26)
14 Evidentemente as críticas de Bourdieu à teoria marxista referem-se a um “marxismo ‘oficial’ como, se não
o único, ao menos o mais autêntico representante da tradição marxista” (Braga, 2011: 68). Além da crítica
à substancialização da classe, nas perspectivas marxistas mais ortodoxas, Bourdieu também acrescenta
sua ruptura com o economismo, que reduz o espaço social que tem um caráter multidimensional ao campo
econômico ao definir as classes em função unicamente da posição nas relações de produção e, também,
a crítica ao objetivismo, que leva a ignorar a importância das lutas simbólicas nos distintos campos
sociais, “nas quais está em jogo a própria representação de mundo social” e a hierarquia no seio de cada
um dos campos e entre os diferentes campos” (BOURDIEU, 2010, p. 133).
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Nesta direção, Bourdieu destaca a importância das lutas de classificações na mesma definição das classes e suas fronteiras, lutas simbólicas que
constituem “uma dimensão esquecida da luta de classes”. (BOURDIEU, 2008a,
p. 447) O autor relembra que a própria existência ou inexistência de classes é
uma das mais importantes apostas na batalha política e que o processo de produção real de classes, isto é, constituídas e expressadas politicamente por órgãos de representação, por símbolos, acrônimos e demarcações, obedece a uma
lógica específica de produção simbólica (BOURDIEU, 2001), lógica por meio da
qual é possível tornarem público, fazerem existir em estado explícito, visível,
dizível e, até mesmo, oficial a constituição de grupos.15 (BOURDIEU, 2010)
Além do processo de produção simbólica das classes, Bourdieu também enfatiza o papel da representação no processo de produção política da
classe, isto é, a presença e a atuação de porta-vozes autorizados para falar em
nome da classe e para representá-la em distintos espaços públicos. Nessa direção, para este autor, uma classe (social, sexual, étnica) só existe realmente
quando há agentes autorizados para falar e atuar oficialmente em seu lugar e
em seu nome, exercendo um poder sobre aqueles que, reconhecendo neles o
poder de falar e atuar em seu nome reconhecem-se, ao mesmo tempo, como
membros dessa classe. (BOURDIEU, 2001) Estes porta-vozes, autorizados a
falar em lugar de um grupo, põem sub-repticiamente a sua existência, instituem o grupo em questão, “pela operação de magia que é inerente a todo o ato
de nomeação .”16 (BOURDIEU, 2010, p. 159)
Em suma, para Bourdieu, a existência de uma classe real, uma classe
mobilizada, só acontece quando se produz estes processos coletivos, de construção simbólica e produção política da classe que, por sua vez, implicam que ela
tenha se dotado de representantes ou porta-vozes, de um aparelho institucional
(sindicato, partido, etc.), de visões comuns do mundo social e, consequentemente, de discursos que as expressem.
Nesta linha de pensamento, ao destacar que a constituição dos grupos
ou das classes na realidade social obedece sempre a um complexo trabalho
histórico de construção, Bourdieu assume um enfoque construtivista, próxi-
15 Para Bourdieu, nas sociedades modernas as batalhas e disputas coletivas propriamente políticas, travadas
pelos agentes (quase sempre especialistas tais como os políticos) têm como último objetivo, precisamente, o
poder de nomeação possuído pelo Estado (BOURDIEU, 2001, p. 123); trata-se do poder de “nomeação oficial”,
que produz as classificações oficiais, como ato de imposição simbólica que tem a seu favor a força do coletivo,
do consenso, do senso comum ao estar operada por um mandatário do Estado. (BOURDIEU, 2010, p. 146)
16 Bourdieu chama de “mistério do ministério” este processo de “magia social” mediante a qual uma pessoa
se torna algo diferente do que ela é (um homem), para passar a representar um grupo de homens, um
coletivo ou uma entidade, dotando ao mesmo tempo de existência a esse grupo ao falar por ele, a favor
dele e no lugar dele. (BOURDIEU, 2010, p. 158)
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mo ao de Edward P. Thompson. De fato, Bourdieu sublinha que o título do
famoso trabalho de Thompson, The Making of the English Working Class,17 deveria ser tomado de forma bastante literal em relação à classe trabalhadora e ao
processo político de construção, de fabricação desta classe, como a conhecemos hoje. (BOURDIEU, 2001,p. 114)18 Corcuff (2009) destaca que a abordagem
construtivista sobre as classes sociais de Bourdieu beneficiou-se dos trabalhos
de Thompson que ele conhecia bem e da pesquisa de Boltanski (colaborador
de Bourdieu na época) sobre Les Cadres19 (engenheiros e executivos da classe
dirigente), para ampliar os elementos de sociologia construtivista dos grupos
sociais em uma perspectiva “post-marxista”, distinta à perspectiva de Thompson. Neste sentido é que uma leitura dos elementos comuns e das diferenças
entre estes dois autores é relevante.
Igual a Bourdieu, Thompson (2012) rejeitou uma posição meramente objetivista ou substancialista da classe. Em suas pesquisas e trabalhos históricos,
confrontou diretamente diversas tradições intelectuais e políticas, que concebem
a classe como uma noção estática, seja na sociologia positivista,20 seja naquelas
tendências do pensamento marxista que derivam as classes de um modelo estático de relações de produção no capitalismo, deslocando para um segundo plano
a atuação humana e o papel da classe trabalhadora, na construção da história.21
Contrariamente a estas posições, Thompson considera a classe enquanto “categoria histórica”, que se “deriva de processos sociais através do tempo”. (THOMPSON, 2012, p. 270)22 Neste sentido, sua abordagem não procede de um dualismo
teórico que opõe a estrutura à história e, pelo contrário, considera a formação das
classes como processos históricos concretos modelados pela lógica das determinações materiais. (MEIKSINS WOOD, 1983) Neste aspecto também coincide com
o posicionamento de Bourdieu na sua tentativa de sair da antinomia comum nas
ciências sociais entre o objetivismo e o subjetivismo.23
Assim, quando Thompson fala do “fazer-se” da classe, refere-se a “um
processo ativo que se deve tanto à ação humana como aos condicionamentos”
ou determinações objetivas. Na sua pesquisa histórica sobre o processo de for17 Ver Thompson, (2011).
18 Ver também Bourdieu (2008b, p. 29).
19 Refere-se ao trabalho de Boltanski chamado Les cadres. La formation d’un groupe social, París, Minuit, 1982.
20 Thompson refere-se, de forma geral, com este qualificativo àquelas tradições sociológicas que reduzem a
discussão sobre as classes a medições quantitativas, por exemplo, número de assalariados, de burocratas, etc.
21 Ver Meiksins Wood (1983). Neste trabalho, a autora discute as principais proposições relacionadas à
conceição, de Thompson, sobre a classe enquanto relação e processo, debatendo as críticas levantadas a
Thompson, por diversos pensadores dentro do marxismo.
22 Ver também Thompson, 1984.
23 Ver Bourdieu, (2001, p. 2010).
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mação da classe operária inglesa, entre 1780 e 1832, recupera concretamente
o papel dos sujeitos como fazedores da história. Enfatiza a noção de classe como
uma relação histórica que “escapa à análise” quando se tenta “imobilizá-la num
dado momento e dissecar sua estrutura” e que “precisa estar sempre encarnada
em pessoas e contextos reais”. Para Thompson (2011, p. 9-10), “a classe acontece
quando alguns homens, como resultado de experiências comuns (herdadas ou
partilhadas), sentem e articulam a identidade de seus interesses entre si, e contra outros homens cujos interesses diferem (e geralmente se opõem) dos seus”.
Como se pode observar, esta noção da classe em termos relacionais e do fazer-se da classe como um processo político, simbólico e cultural ativo, encarnado
e diretamente vinculado com os protagonistas das lutas sociais, e que consequentemente não se deriva automaticamente de uma estrutura, tem elementos
comuns com a visão da “classe mobilizada” de Bourdieu.
Embora Thompson tenha sido acusado de subjetivismo ou voluntarismo, por sua ênfase nos processos históricos concretos de formação da classe,
em lugar de derivá-la mecanicamente de uma estrutura, ele não desconhece
o peso que as determinações objetivas, concretizadas em uma dada inserção
nas relações de produção, exercem sobre as pessoas, mas sua postura focaliza-se nas formas concretas como estas relações são experimentadas e vivenciadas.
Em palavras do autor:
A classe se delineia segundo o modo como homens e mulheres vivem suas
relações de produção e segundo a experiência de suas situações determinadas, no interior do ‘conjunto de suas relações sociais’, com a cultura e as
expectativas a eles transmitidas e com base no modo pelo qual se valeram
dessas experiências em nível cultural. (THOMPSON, 2012, p. 277)
A dimensão de antagonismo também é um elemento chave na concepção da classe de Thompson. Assim, este autor sublinha “o fato de a classe no seu
sentido heurístico ser inseparável da noção de ‘luta de classes’” e considera que
foi dada uma excessiva atenção, muitas vezes de maneira anti-histórica, à “classe”, e, muito pouca, pelo contrário, à “luta de classes”. (THOMPSON, 2012, p.
274) Neste sentido, como destaca Meiksins Wood (1983), o princípio que sustenta o trabalho histórico de Thompson é o de que as classes são feitas e se formam
nos processos de luta e conflito, nos quais se identificam interesses divergentes
e se estabelecem antagonistas. Como acrescenta Thompson: “as classes surgem
porque homens e mulheres, em relações produtivas determinadas identificam
seus interesses antagônicos e passam a lutar, a pensar e a valorar em termos de
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classe: assim o processo de formação da classe é um processo de autoconfecção
embora sob condições que são ‘dadas’”. (THOMPSON, 1981, p. 121)
Em termos gerais, é possível observar alguma coincidência desta dimensão com o agonismo, presente na noção de campo social de Bourdieu, e na
sua visão das lutas de classificações como parte dos processos permanentes de
disputa simbólica, que contribuem para a definição das classes e suas fronteiras
na sociedade. Mesmo assim, é preciso ter alguma cautela, pois na concepção
bourdesiana das classes, os agentes que ocupam posições dominadas ou dominantes no interior do conjunto aberto de campos relativamente autônomos
e que lutam constantemente por melhorar ou manter sua posição, não necessariamente constituem-se em grupos antagonistas.24
Para finalizar esta parte, é importante ressaltar a centralidade que
o conceito de “experiência” tem na visão de Thompson sobre os processos concretos do “fazer-se da classe”. A “experiência” é concebida por este autor como
o “termo médio necessário entre o ser social e a consciência social: é a experiência (muitas vezes a experiência de classe) que da cor à cultura, aos valores e ao
pensamento”. (THOMPSON, 1981, p. 112) Enquanto mediação entre as determinações e relações objetivas dadas e a forma como estas relações são processadas
concretamente pelos agentes, a noção de experiência permite a transmutação
da estrutura em processo, a recuperação do substrato histórico no presente e a
reinserção dos sujeitos na história:
Os homens e mulheres também retornam como sujeitos, [...] não como
sujeitos autônomos, “indivíduos livres”, mas como pessoas que experimentam suas situações e relações produtivas determinadas como necessidades e interesses e como antagonismos, e em seguida, ‘tratam’ essa
experiência em sua consciência e sua cultura [...] das mais complexas
maneiras e em seguida (muitas vezes, mas nem sempre, a través de estruturas de classe resultantes) agem, por sua vez, sobre sua situação determinada. (THOMPSON, 1981, p. 182)
Além de algumas diferenças evidentes enquanto conceitos com um papel de mediação teórica, é possível identificar algumas similaridades entre a noção de “experiência” de Thompson e de habitus em Bourdieu, a primeira atuando
como mediação entre o ser social e a consciência social, entre as determinações
estruturais e a ação dos sujeitos na história e o segundo como mediação entre estrutura e ação, entre o campo social e as práticas concretas dos agentes.
24 Ver Bourdieu, 2010.
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Mesmo assim – e sendo os dois conceitos bastante abertos no que diz respeito
a suas propriedades e conteúdos específicos que puderem assumir em função
de distintas realidades empíricas concretas a serem analisadas – a noção de experiência de Thompson pareceria permitir uma consideração mais adequada
das contingências da história e a compreensão do papel dos sujeitos nas lutas
e transformações sociais e culturais em processos históricos de maior alcance,
enquanto que o conceito de habitus cobra força para compreender as relações de
poder em um campo determinado e as diversas práticas e estratégias postas em
jogo pelos agentes que derivam em diferenças simbólicas.
COMENTÁRIO FINAL: OS CLARO-ESCUROS NA PERSPECTIVA DAS
CLASSES DE BOURDIEU
Após este percurso em torno da conceição das classes no papel, as lutas
de classificações e as classes mobilizadas em Bourdieu, passando pelo “fazer-se da classe” de E. P. Thompson, gostaria de apontar, a modo de conclusão,
algumas das contribuições e potencialidades da conceição das classes de Bourdieu, assim como vários elementos críticos e limites para a análise de diversas
realidades empíricas.
Evidentemente, uma das contribuições mais significativas da conceição
das classes em Bourdieu é sua recusa a qualquer visão que essencialize as classes, desafiando-nos, permanentemente, a pensá-las e concebê-las em termos
relacionais, seja desde uma perspectiva analítica ou teórica, seja em termos descritivos dos processos concretos que decorrem numa realidade determinada.
Vinculada a esta visão relacional das classes sociais, sua alerta no que diz respeito a evitar e considerar como classes reais às classes resultantes das análises
que os estudiosos fazem das estruturas objetivas presentes na sociedade num
momento determinado, sem considerar os processos de produção simbólica e
de construção política dos grupos, promove desde a perspectiva de um construtivismo crítico, uma compreensão mais processual e dinâmica das práticas
sociais relativas à formação das classes.
Um segundo aspecto no qual as contribuições da conceição das classes
de Bourdieu são fundamentais refere-se ao tratamento integrado das distintas
dimensões econômicas, sociais, políticas, culturais e simbólicas, que configuram as relações de poder presentes em distintos campos sociais e que marcam
a produção de diferenças sociais. Na conceição Bourdieusiana das classes, os
elementos simbólicos não são um mero reflexo das diferenças econômicas na
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posição dos agentes, mas eles mesmos são, ao mesmo tempo, produtores e afirmadores das diferenças. A ênfase no trançado teórico de Bourdieu, nas lutas de
classificações que fazem parte das lutas simbólicas, que acontecem continuamente na sociedade, abre uma interessante trilha de pesquisa teórica e empírica
sobre os critérios de diferenciação operados pelos agentes, as linhas de classificação e divisão do mundo social e o papel de determinados marcadores simbólicos que configuram as diferenças e as relações de poder, orientando as práticas concretas dos agentes. Nesta direção, é possível compreender, por exemplo,
como se produz, em termos concretos, o entrelaçamento de critérios de diferenciação simbólica, baseados em divisões sociais, étnicas, raciais ou de gênero que
determinam formas de exclusão ou de discriminação, nas relações cotidianas de
poder decorrentes das relações de força entre distintos setores sociais. Ao mesmo tempo, também, abre outro campo de visibilidade relacionado com o papel
do Estado e das instituições nas lutas de classificação na definição de critérios
classificatórios ou na legitimação daqueles colocados por determinados grupos.
Corcuff (2009) ressalta outra contribuição da perspectiva analítica de
Bourdieu que tem sido pouco debatida. Trata-se da forma como, por meio do
conceito de habitus, se considera a singularidade individual constituída nas relações sociais (que vai além da visão do individualismo liberal), a partir da relação entre o habitus de classe e o habitus individual.25 Para Corcuff, esta relação26
entre as disposições coletivas decorrentes das experiências comuns que têm as
pessoas de uma classe como consequência de ter vivenciado condicionamentos
semelhantes (habitus de classe), e os habitus individuais, cujo princípio de diferenciação dos primeiros radica na “singularidade das trajetórias sociais”, abre
a possibilidade e o desafio de pensar ao mesmo tempo o coletivo e o singular,
isto é, o coletivo dentro do singular, onde cada pessoa exprimiria uma singularidade feita do coletivo e o habitus seria uma individuação irredutível de princípios e experiências coletivas, cuja combinação nos faz únicos. (Corcuff, 2009,
p. 22) Nesta direção, a sociologia disposicional de Bourdieu contribuiria para
uma leitura pluridimensional da individualidade.27
Na mesma linha, no que diz respeito à perspectiva dos campos sociais
desenvolvida por Bourdieu, enquanto esferas autônomas e diferenciadas da
vida social, nas quais se diversificam e tornam mais complexas as relações de
poder e dominação entre os agentes que agem neles, Corcuff (2009) conside25 Sobre a diferença entre o habitus de classe e o habitus individual, ver Bourdieu, (2009).
26 Relação que Bourdieu qualifica como de “diversidade na homogeneidade”. (BOURDIEU, 2009, p. 100)
27 Para uma discussão mais detalhada de esta perspectiva de leitura da individualidade na sociologia clássica
e contemporânea ver Corcuff, (2008).
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ra que as noções de totalidade social e de “sistema” tendem a se diluir no pensamento de Bourdieu, diante a pluralidade dos campos com sua heterogeneidade e temporalidade próprias. Isso abriria outras formas de generalizar sem
deixar de lado a pluralidade, desde uma ideia de globalidade plural mais afinada
ao procedimento empírico-teórico das ciências sociais. Como acrescenta Braga (2011) também contribuiria para pensar a pluralidade dos modos concretos
como se exerce a dominação no capitalismo.
Mesmo assim, a perspectiva dos campos autônomos em relação à caracterização das classes sociais no pensamento de Bourdieu não deixa de ter
algumas arestas problemáticas. Uma delas refere-se as escassas referências às
conexões entre os distintos campos e sub-campos, reconhecendo apenas uma
subordinação quanto a seu funcionamento e às suas transformações ao campo
de produção econômica (Bourdieu, 2010), mas sem especificar como opera esta
subordinação. Também não se estabelece com clareza a influencia recíproca que
diversos campos podem exercer sobre os habitus de agentes, que por diversas
circunstancias devem interagir ao mesmo tempo ou em sua trajetória de vida
em distintos campos.
De outro lado, no pensamento de Bourdieu, na definição da estrutura dos
distintos campos sociais que determina as posições que ocupam os agentes, tem
centralidade a distribuição dos distintos tipos de capital ou de poder. Como aponta Burawoy (2010),28 chama atenção a supressão da categoria de exploração na caracterização das relações entre as classes nas sociedades capitalistas. Junto com
esta ausência, também não se aborda os aspectos relativos à produção (processo de trabalho, divisão do trabalho, relações produtivas) inclusive na análise que
Bourdieu faz das estruturas de produção e consumo no mercado imobiliário.29
Outro elemento crítico resultante do arcabouço teórico de Bourdieu
decorre da tendência dos habitus de interiorizar e de ajustarem-se à estrutura
objetiva de relações de dominação e poder presentes nos campos, igual a tendência à naturalização e legitimação destas relações nas categorias de percepção do mundo social dos agentes, tornando os dominados em cúmplices de sua
própria dominação. Esta visão, que contribui para compreender as dimensões
simbólicas da dominação e seus mecanismos de legitimação, traz dificuldades
para explicar os processos de mudança social. Ao mesmo tempo em que deixa
pouco espaço para compreender os processos de resistência à dominação presentes nas práticas e na cultura dos dominados. Como aponta Corcuff (2009),
28 Ver também Burawoy e Von Holdt, (2011)
29 Burawoy (2010) refere-se ao trabalho de Bourdieu chamado “As estruturas sociais da economia”.
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tende a encerrar as práticas populares e as práticas dos dominados dentro do
olhar dos dominantes, por exemplo, percebendo somente carências na cultura
popular em relação à cultura legítima.
CLASSES ON PAPER, MOBILIZED CLASSES AND CLASSIFICATION STRUGLESS IN
PIERRE BOURDIEU: A DISCUSSION IN DIALOGUE WITH THE MAKING OF THE
CLASS OF E. P. THOMPSON
Abstract
This article inquires about the conception of social classes in the thought of Pierre Bourdieu, closely linked to the key notions of his theoretical framework: social space, field,
habitus, and types of capital. It shows how Bourdieu sees the social space to derive from
there cuts among groups of agents who share similar living conditions, constraints and
properties, configuring Bourdieu calls classes on paper. Subsequently discusses the
constructivist approach of Bourdieu’s conception of the real classes constituted through
different symbolic and political processes, placing it in dialogue with the making of the
class of E. P. Thompson. Finally, highlights some chiaroscuro in Bourdieu’s perspective
of classes showing some of its potential and limits.
Key words: Social theory, social classes, symbolic struggles, representation.
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Isabela S. Santana1
DELIBERAÇÃO DOS COMITÊS DE BACIAS
HIDROGRÁFICAS: quem participa, como faz
e o que decide?
Resumo
Através de reflexões teóricas e empíricas, sucintas e introdutórias, acerca do conceito de
deliberação e participação, sustentadas na teoria democrática contemporânea, objetivamos, neste artigo, estabelecer conexões entre esses conceitos e o modelo de gestão de
águas adotado no estado da Bahia. Em suma, pretendemos apresentar parte do debate
inscrito no projeto de pesquisa intitulado Condicionantes Políticos do Processo de Institucionalização da Política Estadual de Recursos Hídricos da Bahia: limites e possibilidades, dos Comitês de Bacias Hidrográficas. Assim, inicialmente, introduziremos em
linhas gerais o conceito de deliberação e em seguida o de participação, à luz da teoria
democrática, estabelecendo relação destes com questões relacionadas à gestão de águas
na Bahia. Por fim, apresentamos as nossas considerações finais.
Palavras-chave: deliberação; comitês; participação.
INTRODUÇÃO
O sabiá no sertão
Quando canta me comove
Passa três meses cantando
E sem cantar passa nove
Porque tem a obrigação
De só cantar quando chove.
(Zé Bernardinho)
Ao tratarmos neste artigo da temática “Condicionantes da Política Estadual de Recursos Hídricos: limites e possibilidades da efetividade das deliberações dos membros de Comitês de Bacias Hidrográficas” é prudente, de início,
1 Universidade Federal da Bahia – Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais. Mestranda em
Ciências Sociais – e-mail: [email protected]
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expormos a questão central da pesquisa em curso: de que forma as deliberações dos membros de Comitês de Bacias Hidrográficas são operacionalizadas
no processo de formulação e implementação da Política de Águas da Bahia?
Esta pergunta é pertinente haja vista que temos como objetivo central compreender a efetividade de uma das principais instâncias criadas legalmente e
institucionalmente para deliberar e decidir sobre a gestão de águas.
Nesse sentido, procuraremos hipoteticamente demonstrar que embora se admita, em essência, que os processos de formulação e implementação
da política supracitada são correlacionáveis, e os fundamentos da metodologia
participativa sejam lançados, as técnicas e métodos utilizados tanto no momento da sua elaboração quanto execução, ora se aproximam da realidade do órgão
executor, ora do servidor, ora de um dos segmentos dos Comitês de Bacias Hidrográficas, sendo os demais membros coadjuvantes nesse processo, impondo
limites as suas deliberações.
A última década é o marco temporal do processo de instituição e criação dos Comitês de Bacias Hidrográficas no Brasil. No entanto, pouco se sabe
sobre a efetividade da participação dessas estâncias nos processos decisórios
políticos institucionais, mesmo quando já lhes são garantidos todo um marco
legal e institucional que fundamenta sua existência e atuação. Ou seja, quem
participa, como faz, o que decide e como se dá o processo de construção do interesse coletivo no âmbito dos comitês? Questões estas relevantes para pesquisa
ora apresentada.
A Política Estadual de Recursos Hídricos e o Sistema Estadual de Gerenciamento de Recursos Hídricos – SEGREH – Lei Estadual nº 11.612 /2009 – alterada
pela Lei Estadual nº 12.377/11, da Bahia, em conformidade com a Política Nacional
de Recursos Hídricos e o Sistema Nacional de Recursos Hídricos – SINGREH, Lei
Federal nº 9433/1997, definem a água como bem natural, dotada de valor econômico, que pode ter usos múltiplos (consumo humano, produção de energia, transporte aquático, lançamento de esgotos, entre outros. Com essas diretrizes legais,
a gestão dos recursos hídricos passa a ser descentralizada, contando com a participação do poder público, usuários e comunidade.
Importa-nos saber como nos espaços públicos colegiados, a exemplo os
Comitês de Bacias Hidrográficas, a gestão deste bem natural ou econômico é
entendida e praticada. Nesses espaços colegiados, a gestão do uso e apropriação
desse bem e ou recurso constitui-se em elemento central de disputa e conflito
de interesses. A natureza e os graus de conflito variam de acordo com as especificidades de cada comitê, especialmente, no que tange as diferentes concepções
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e escolhas políticas das partes envolvidas no processo de Planejamento e Gestão
das Águas.
Quanto à composição do Sistema Estadual de Gerenciamento de Recursos Hídricos – SEGREH, verifica-se que o conceito de gestão descentralizada
e participativa aparece como elemento norteador do nosso modelo de Planejamento e Gestão das Águas. Entretanto, nem sempre as funções de decisão e execução da Política Estadual de Recursos Hídricos são constituintes e constituídas
de práticas ou exercício de poder compartilhado.
Esta suposição toma como referência os entes que compõe o SEGREH:
o Conselho Estadual de Recursos Hídricos – CONERH; a Secretaria Estadual do
Meio Ambiente – SEMA; o Instituto do Meio Ambiente e Recursos Hídricos – INEMA; (Alterado pela Lei Estadual 12.377/2011); os Comitês de Bacia Hidrográfica; as
Agências de Bacia Hidrográfica (nenhuma criada na Bahia); os órgãos setoriais e/
ou sistêmicos, cujas atividades ou competências guardam relação com a gestão
ou uso dos recursos hídricos e a Companhia de Engenharia Ambiental e Recursos
Hídricos – CERB – que vão reproduzir, muitas vezes, modelos ou concepções políticas resistentes à democratização dos espaços decisórios.
Dentre os entes acima citados, os Comitês de Bacias Hidrográficas, colegiados constituídos por representantes dos governos e da sociedade civil – compreendendo segmentos dos usuários e entidades não governamentais – serão
objeto de estudo de nosso trabalho de pesquisa, que ora se inicia, no curso de
mestrado em Ciências Sociais, da Universidade Federal da Bahia.
Diante do exposto, apresentaremos neste artigo algumas reflexões teóricas, sucintas e introdutórias, sobre o conceito de deliberação e participação,
apresentadas na teoria democrática contemporânea. Por considerarmos relevantes para nosso problema de pesquisa. Desta forma, um resumo do projeto de
pesquisa2 se faz necessário, pois nos ajudará a entender a pertinência ou incoerência dessas reflexões, discorridas neste artigo.
Definimos, neste projeto, como nossa área de abrangência as Regiões
de Planejamento e Gestão das Águas (RPGA’s) da Bahia. Selecionamos quatro
Comitês de Bacias Hidrográficas (CBH’s) desse universo: do Rio Grande, do
Rio Itapicuru, do Rio Verde Jacaré e do Rio Paraguaçu. Os critérios de seleção
deram-se a partir de observações e identificação de elementos e ou condições
que os diferenciam, tais como: localização geográfica, disponibilidade hídrica
2
Projeto de pesquisa em desenvolvimento intitulado: Condicionantes Políticos do Processo de Institucionalização
da Política Estadual de Recursos Hídricos da Bahia: limites e possibilidades para incorporação das deliberações
dos Comitês de Bacias Hidrográficas.
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das regiões, campos de disputa de interesse pela água e graus de qualificação
técnica e política dos membros dos comitês.
Objetivamos, com esse trabalho investigativo, desenvolver uma reflexão
crítica sobre o caráter participativo da gestão de águas no nosso estado, na perspectiva de entender em que medida as deliberações dos membros de Comitês de
Bacias Hidrográficas influenciam o processo de formulação, discussão e execução da Política de Águas.
Importa compreender como os diferentes segmentos interessados – poder
público, usuários e entidades não governamentais, que compõem esse colegiado,
decidem como planejar e gerenciar, de forma participativa, o uso e apropriação
da água, compatibilizando os seus diversos usos: abastecimento, uso industrial,
irrigação, transporte, produção de energia, entre outros.
Para tanto, pretendemos metodologicamente fazer, além de estudos bibliográficos, análises de atos administrativos, de diferentes espécies, especialmente os de caráter normativos, consultivos e deliberativos, expressos em documentos institucionais e administrativos, como: atas, moções, deliberações, notas
técnicas, resoluções, decretos, instruções normativas, leis, comunicações internas e ofícios, praticados pelos membros que compõe três dos entes do Sistema
Estadual de Gerenciamento de Recursos Hídricos: CONERH, INEMA e CBH’s.
Analisar as metodologias utilizadas em alguns dos instrumentos considerados estratégicos pelo órgão executor da Política de Recursos Hídricos
(programas, projetos e ações) e pelas instâncias responsáveis por fazer a articulação política e institucional dos comitês (diretorias e coordenações) do
respectivo órgão, a fim de identificarmos mecanismos que potencializam ou
fragilizam a descentralização e participação da gestão de águas.
E ainda, por meio de entrevistas e grupo de discussão, com atores sociais que atuam e atuaram, no SEGREH, investigar condicionantes políticos do
processo de institucionalização da Política Estadual de Recursos Hídricos da
Bahia que impõem ou podem impor limites e possibilidades às deliberações dos
Comitês de Bacias Hidrográficas na Bahia, na perspectiva de responder a questão central da pesquisa acima mencionada.
Assim, pretendemos, ao longo de todo o texto, extrair das discussões
teóricas sobre democracia deliberativa e participativa, na atualidade, o conceito de deliberação e participação, enquanto processo decisório político institucional, por entendermos que são ferramentas analíticas, imprescindíveis, para
analisarmos essa inovação democrática da gestão de águas no Brasil: os comitês
de bacias hidrográficas.
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DELIBERAR E PARTICIPAR: LIMITES E POSSIBILIDADES DOS
MEMBROS DE COMITÊS DE BACIAS HIDROGRÁFICAS
É partindo da questão acima que vamos buscar respostas condizentes seguindo, sucintamente, a trilha conceitual da teoria democrática contemporânea,
mais especificamente, quando estabelece relação entre democracia, deliberação e
participação, na tentativa de fazer interfaces entre Gestão Pública das Águas e alguns princípios presentes nos modelos de democracia deliberativa e participativa.
Desta forma, trazer para nossa analise e avaliação sobre a efetividade da
participação dos diferentes atores que compõem essa entidade colegiada e tripartite o conceito de deliberação e participação, nos serve como alternativa viável para
entendermos o sentido de democracia que adotamos nesse modelo de gestão.
Dito de outra maneira, parece-me que hoje a questão central na disputa
em torno do sentido da democracia encontra-se justamente na definição
da natureza e da posição que podem e/ou devem ocupar a participação
e a deliberação de cidadãos e cidadãs no estado democrático de direito.
(NOBRE, 2004, p. 22)
Como perspectiva teórica, iniciaremos nossa discussão sustentada em
leituras de autores que trabalharam o conceito de deliberação, relacionado
com algumas experiências teóricas e empíricas desenvolvidas pela teoria democrática, a partir da segunda metade do século XX, lembrando sucintamente teóricos da corrente deliberativa como os pensadores Jürgen Habermas,
Joshua Cohen e James Bohman.
Tomando como referência a indicação e subsídios teóricos, de Leonardo
Avritzer (2000, p. 25-46), ao caracterizar o processo de transição da teoria democrática, entre a primeira e segunda metade do século XX, a partir da relação
estabelecida entre prática democrática e processo deliberativo, avaliamos que o
modelo de gestão descentralizada e participativa que aparece implícito e explicitamente na Política Estadual de Recursos Hídricos e no Sistema Estadual de
Gerenciamento de Recursos Hídricos – SEGREH – Lei Estadual nº 11.612 /2009
–, alterada pela Lei nº 12.377/11 da Bahia, nos serve como objeto central de estudo para se entender a concepção de democracia adotada pelo Estado e em qual
lugar deve ser discutida, formulada, efetivada e avaliada.
As questões levantadas por esse autor sobre as contradições existentes
entre o conceito decisionístico de deliberação e o conceito argumentativo de
deliberação, trazidos pelos teóricos da democracia, especialmente este último,
poderá nos servir como fundamentação teórica, no desenrolar do trabalho de
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pesquisa, para discutirmos sobre o quê, com quem, com qual centralidade e
como deliberam alguns Comitês de Bacias Hidrográficas na Bahia. E assim, entendermos de que maneira suas deliberações são incorporadas no processo de
institucionalização da Política Estadual de Recursos Hídricos da Bahia.
Haja vista que tanto a legislação federal quanto estadual lhes confere
atribuições de caráter deliberativo, consultivo e normativo, portanto, consideramos essa entidade colegiada o espaço privilegiado da democratização da Gestão Pública de Águas. O que pode ser reforçado por Leonardo Avritzer quando
afirma que: ao nosso ver, o local da democracia deliberativa devem ser os fóruns
entre o Estado e sociedade “[...] Esses fóruns seriam, no caso, brasileiro, os conselhos e o orçamento participativo”. (AVRITZER, 2000, p. 43)
Analisando as características dos arranjos deliberativos dos pensadores,
Jürgen Habermas, Joshua Cohen e James Bohman, embora estes se aproximem
do conceito argumentativo de deliberação, trazendo, assim, a discussão acerca
da democracia deliberativa, apresentam diferenças conceituais, substanciais,
sobre o termo deliberação.
Ao discutir o conceito de deliberação, Jurgen Habermas traz para analise
do político o debate argumentativo, como o fez Joshua Cohen e James Bohman.
Entretanto, o fez de forma diferente e variada ao longo de seu trabalho teórico.
Para Habermas, existe uma dimensão argumentativa no interior da relação Estado/sociedade que está além do processo de formação da vontade
geral. Tal formulação faz com que a opinião dos indivíduos nesse processo
argumentativo não possa ser reduzida à vontade da maioria, como quer
Rousseau, ou à representatividade de um só indivíduo na posição original,
como quer Rawls. É preciso que esse indivíduo expresse as suas opiniões
em um processo de debate e argumentação. (AVRITZER, 2000, p. 36- 37)
Podemos perceber em Habermas, que o conceito de deliberação aparece
vinculado à relação estabelecida entre os procedimentos institucionalizados do
sistema político (processos formais) e as interações e comunicações geradas na
esfera pública (processos informais). Em outros termos, é na relação estabelecida entre esses processos que o entendimento sobre deliberação é explicitado,
ou seja, sua definição aparece como o processo pelo qual a sociedade legitima as
decisões políticas democráticas.
Deliberação seria, portanto, uma categoria normativa onde os processos formais e informais exigem o debate e a negociação. Ou seja, a deliberação
seria o processo onde é identificada ou conhecida uma diversidade de posições
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em torno de um problema na perspectiva de respondê-lo. Nesse sentido, ao se
referir a Habermas, Lubenow (2010, p. 232) conclui:
‘Deliberação’ é uma categoria normativa que sublinha uma concepção
procedimental de legitimidade democrática, segundo Habermas. Esta
concepção normativa gera uma matriz conceitual diferente para definir
a natureza do processo democrático, sob os aspectos regulativos (ou exigências normativas) da publicidade, racionalidade e igualdade. Embora
também tenha um caráter empírico-explicativo, a ênfase da concepção
habermasiana de democracia procedimental assenta no caráter crítico-normativo. A concepção procedimental de democracia é uma concepção
formal e assenta nas exigências normativas da ampliação da participação
dos indivíduos nos processos de deliberação e decisão e no fomento de
uma cultura política democrática.
Habermas reincorpora a argumentação no mundo social a partir da
ideia de mundo social reflexivo de Popper, segundo Avritzer (2000). O autor vai
conjecturar e admitir que as formas de argumentação são próprias ao mundo
social e que cada situação pode demandar interpretações diversas, significando que divergir da maioria não significa estar errado e nem tão pouco atribuir
a limitação de informação de alguns sujeitos a não construção de consensos.
Trazendo a ideia de deliberação habermasiana para o contexto da gestão
pública das águas, mais especificamente a sua aplicabilidade no âmbito de um
dos seus principais organismos colegiados – os Comitês de Bacias Hidrográficas – é importante considerarmos a questão central de nosso projeto de pesquisa, ao qual trouxemos, inicialmente, nesse texto, uma pergunta introdutória,
sem pretensão de respondê-la, mas suscitar algumas conjecturas, ou seja, as
deliberações dos membros de Comitês de Bacias Hidrográficas interferem na
agenda de governo? Conseguem, estas deliberações, influenciar a formulação
e implementação da Política de Águas da Bahia?
Em outras palavras, pela nossa experiência3 a gestão de água estaria ligada a um processo de deliberação coletiva? Ou melhor, para sermos mais exatos, os comitês são espaços deliberativos? As opiniões dos três segmentos, que
os compõem, conseguem influenciar o processo de tomada de decisão relacionada aos usos múltiplos da água?
Através de estudos prévios, acreditamos que a participação dos principais atores interessados ou afetados por decisões políticas relacionadas à gestão
3
A autora deste estudo desenvolve atividades socioambientais na Secretaria de Meio Ambiente e no órgão
executor da Política Estadual de Recursos Hídricos da Bahia desde 2008.
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de águas – poder público, sociedade civil e usuários – conseguem de alguma forma influenciar a sua condução. Trata-se de uma suposição que requererá maiores estudos.
Vele ressaltar que nossas opiniões, neste momento, resultam de nossas
observações e apreciações feitas sobre a estrutura organizacional e as atribuições que são conferidas a essa entidade colegiada, apresentadas em alguns instrumentos legais, em particular, três resoluções do Conselho Estadual de Recursos Hídricos – CONERH (Resolução nº 52/2009, 55/2009 e 73/2010).
Ou seja, na estrutura organizacional do comitê – diretoria (presidente,
vice-presidente e secretario), secretaria executiva, grupo de trabalho, câmeras
técnicas e Plenário – podemos perceber que as deliberações dos seus membros
somente são legitimadas em assembleia geral, considerada instância máxima,
sendo assim, essa configuração política administrativa nos leva a crer que os
membros de comitês conseguem influenciar de alguma forma os rumos da gestão de águas.
E, ainda, habersianamente, se é que assim se pode falar, podemos, observando a sua composição e suas atribuições, hipoteticamente, dizer que as
preferências de seus atores não são dadas, mas construídas na interação e na
comunicação. Assim, os comitês são estruturalmente pensados para deliberar
outras hipóteses, a partir de um processo de discussão que consegue influenciar
a política de governo petista.
Pensando, em termos institucionais, talvez aos moldes habermasiano,
esse modelo, pretensamente democratizante da gestão, posto pela Política de
Águas da Bahia, onde são apresentados pressupostos, arranjos institucionais e
mecanismos de controle político, nos sirva como indicador para se pensar quem
deve efetivamente participar, como deve fazer, sem, contudo, responder sobre o
que se decide neste espaço de decisão partilhada ou espaço de deliberação.
Buscar, também, na discussão de Joshua Cohen, referente ao conceito
de deliberação, elementos relacionáveis ao modelo de gestão de águas na Bahia, no intuito de entender o caráter deliberativo dos comitês, será um caminho
aberto de possibilidades analíticas em nosso trabalho. Para Cohen, a deliberação compreende discussão e participação nas tomadas de decisões da sociedade
junto com o Estado. Diferentemente de Habermas, o conceito de deliberação
é um misto de participação e discussão.
Tomando esse debate como referência, e a partir de uma base empírica,
que será posteriormente sistematizada, arriscáramo-nos a afirmar que embora se admita, em essência, que os processo de formulação e implementação da
Política Estadual de Recursos Hídricos são correlacionáveis e os fundamentos
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da metodologia participativa sejam lançados, as técnicas e métodos utilizados,
tanto no momento da sua elaboração quanto execução, ora se aproximam da
realidade do órgão executor, ora do servidor, ora de um dos segmentos dos
Comitês de Bacias Hidrográficas, sendo os demais membros coadjuvantes.
Em outros termos, o reconhecimento de que no âmbito do comitê, enquanto entidade que decide em primeira instância, conforme previsão legal, os
processos participativos e discursivos se fazem presentes, não significa dizer
que essa participação e discussão seja substancial a ponto de fazer com que suas
deliberações interfiram positivamente ou satisfatoriamente nos desígnios do
planejamento e gestão das águas. Ou seja, um estudo mais aprofundado sobre
esta questão nos permitirá enxergar em que medida a dialogicidade, enquanto
princípio metodológico, se faz mister na sua efetivação.
Ou melhor, seguindo a lógica de explicação de Bohman, deliberação
consiste num processo dialógico. Assim, não há deliberação sem dialogicidade, isto é, as lógicas aparentemente inconciliáveis e antagônicas, que movem os
processos deliberativos e decisórios dos membros de comitês, se completam e se
associam. Para tanto, é imprescindível, para se entender melhor esse conceito,
considerar que a discussão e a participação entre os atores interessados na gestão das águas pressupõe que sejam sempre qualificados.
Isso significa dizer que, seguindo a definição de Bohman, o diálogo no
contexto desse ente colegiado deve advir de uma relação mais horizontalizada
e não vertical de um com o outro. É esse processo dialógico que permite que se
construa uma cultura política fundada no respeito e na colaboração.
Entendendo o Comitê de Bacia Hidrográfica como o lugar do conflito
de interesses e da contradição, percebemos que a relação estabelecida entre
Estado e sociedade civil, na gestão das águas, se dá de maneira desigual. A
exigência de qualificação técnica e política de seus membros dificultam, principalmente, os representantes da sociedade civil de entenderem e cumprirem seu papel enquanto partícipes da gestão de recursos hídricos no Estado,
impondo barreiras ao partilhamento efetivo do poder. Nessa direção Evelina
Dagnino (2002, p. 35) considera que:
A característica central da maior parte dos espaços estudados – seu envolvimento com políticas públicas, seja na sua formulação, discussão, deliberação ou execução – exige quase sempre o domínio de um saber técnico especializado do qual os representantes da sociedade civil, especialmente os dos setores
subalternos, em geral não dispõem. Além disso, outro tipo de qualificação se
impõe, o que diz respeito ao conhecimento sobre o funcionamento do Estado,
da máquina administrativa e dos procedimentos envolvidos.
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Nessa perspectiva, é necessário trazer para o debate o conceito de participação enveredado pela teoria democrática na atualidade, mais especificamente, para não alongarmos a discussão, dado os limites espaciais deste texto, recuperaremos aqui apenas, o conceito de participação, da inglesa Carole Pateman e
do canadense C. B. Macpherson.
Considerando as diretrizes gerais do SEGREH, ou seja, que a gestão dos
recursos hídricos deve ser descentralizada, contando com a participação do poder público, usuários e comunidade, acreditamos, assim como Carole Pateman,
que uma vez estabelecido o sistema participativo, é possível que os membros de
comitês de Bacias Hidrográficas com a sua vivência, experiência e prática, ao
longo da gestão de águas, aprendam a participar no sentido de democratizar
efetivamente a gestão.
Como resultado de sua participação na Tomada de Decisões, o indivíduo é
ensinado a distinguir entre seus próprios impulsos e desejos, aprendendo
a ser tanto um cidadão público quanto privado. [...] Uma vez estabelecido o sistema participativo (e este é um ponto de maior importância), ele
se torna autossustentável por que as qualidades exigidas de cada cidadão
para que o sistema seja bem-sucedido são aquelas que o próprio processo
de participação desenvolve e estimula: quanto mais o cidadão participa,
mais ele se torna capacitado para fazê-lo. (PATEMAN, 1992, p. 39)
Para Pateman, participação é um modo de proteger os interesses privados e públicos e, acima de tudo, é uma ação educativa, ou seja, é a inclusão de
todos nos processos decisórios capaz de permitir o desenvolvimento individual
e, por conseguinte, o coletivo. “Novamente, na teoria participativa, a ‘participação’ refere-se à participação (igual) na tomada de decisões ‘igualdade política’
refere-se à igualdade de poder na determinação das consequências das decisões”. (PATEMAN, 1992, p. 61-62)
Essa definição de participação, aplicada no contexto dos comitês, enquanto espaços deliberativos, seria o processo no qual cada membro isolado
tem igual poder de determinar o resultado final das decisões referentes aos
usos múltiplos da água. Entretanto, não podemos precisar no momento se essa
participação é escassa ou abundante, se existe igualdade política entre os seus
membros, se um dos segmentos, que os compõem, domina os demais, se ela
consegue fortalecer o sentimento de cidadania, se gera solidariedade e desenvolve nos indivíduos certas competências que aplicarão em outros setores, além
da própria política.
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Sabemos apenas reconhecer que não devemos extirpar desse universo
o conflito de interesses e a contradição, tanto sobre o entendimento que se tem
de participação, quanto a sua efetividade, mesmo quando na construção de consensos, os membros dos Comitês de Bacias Hidrográficas apresentam assimetrias sociais relevantes (de gênero, de classe, de território, de raça, entre outros)
que precisam ser enfrentadas para que, apropriadamente, entendamos quem,
como e o que se decide sobre as águas em nosso estado.
Esse reconhecimento do comitê, enquanto espaço de conflito e contradição, é extremamente importante para respondermos certas questões de forma
suficiente, porém não acabada, necessárias para comprovarmos ou negarmos
nossas hipóteses, levantadas ao longo do texto sobre a efetividade da participação dos membros de comitês no processo de execução e implementação da
Política Estadual de Recursos Hídricos, quais sejam: a relação estabelecida entre
Estado e sociedade civil se dá de maneira desigual? Quais variáveis dificultam
ou favorecem o entendimento e cumprimento do papel de cada representante
enquanto partícipes da gestão de recursos hídricos?
Essa prerrogativa nos faz refletir se essas assimetrias, relacionadas às
condições materiais, técnicas e políticas dos membros de comitês obstaculizam
a descentralização e participação da gestão de águas.
Após apresentarmos alguns possíveis desafios a serem enfrentados, discorreremos brevemente sobre o conceito de participação de C. B. Macpherson,
para analisarmos, à luz da teoria, a sua relação com o modelo de gestão de águas
na Bahia. Macpherson (1978) ao discutir, em termos de modelo, a essência da
democracia liberal em sua obra A Democracia Liberal. Origens e Evolução, identificando limites e possibilidades desse regime, nos apresenta alguns modelos de
democracia liberal: a “protetora”, a “desenvolvimentista”, a de “equilíbrio” e a
“participativa” – dentre os quais, defende e propõe um modelo de Democracia
Participativa.
Ao defender um modelo de democracia participativa, Macpherson afirma que o principal problema dos sistemas democráticos é conseguir fazer com
que a democracia seja alcançada. Para o autor, importa saber que os requisitos
necessários para que haja transformação democrática é a mudança de consciência do povo e diminuição da desigualdade social e econômica. Inferimos então,
que participação seria o meio pelo qual o povo, em condições de igualdade social
e econômica, toma decisões e partilham do poder.
Como alternativa para resolver esse impasse, preocupado com o futuro
dos sistemas de governos mais participativos, o autor nos alerta quanto à necessidade de mesclar democracia representativa com instituições participativas,
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incluindo aí os conselhos. Para tanto, como garantia de obtenção de uma democracia participativa mais simples, propõe o sistema piramidal.
[...] um sistema piramidal com democracia direta na base e democracia
por delegação em cada nível depois dessa base. Assim, começaríamos com
a democracia direta ao nível de fábrica ou vizinhança – discussão concreta face a face e decisão por consenso majoritário, e eleição de delegados
que formariam uma comissão no nível mais próximo seguinte, digamos,
um bairro urbano ou subúrbio ou redondezas [...] Assim prosseguiria até
o vértice da pirâmide, que seria um conselho nacional para assuntos de
interesse nacional, e conselhos locais para assuntos desses segmentos territoriais. (MACPHERSON, 1978, p. 110)
Ao refletirmos sobre este sistema, entendemos que a participação da população nos processos de decisão, formulação, implementação e avaliação da
gestão de águas, em todos os níveis piramidais, considerando o proposto em
Macpherson, são requisitos importantes para sua democratização. Em suma,
se conseguirmos assegurar que a democracia direta (na base) e indireta (por
delegação) sejam efetivadas, maior será a capacidade de entendimento e intervenção e menor serão as assimetrias apresentadas, em especial, as de caráter
técnico e político, dos atores sociais que compõem os comitês.
Se considerarmos os Comitês de Bacias Hidrográficas, enquanto um
nível após a base, a constituir-se como meios públicos de deliberação, criados
para promover a participação da sociedade, não podemos desconsiderar que
a democratização da gestão de águas e seu planejamento, no âmbito de cada
Bacia Hidrográfica, implicam na garantia da qualidade da participação e dos
instrumentos oferecidos em nível local.
Portanto, a implementação de políticas e instituições participativas, formais e não formais, no contexto da gestão de águas da Bahia, em particular, no
governo do Partido dos Trabalhadores, traz desafios importantes relacionados
ao modelo de democracia que temos e ao que almejamos alcançar.
Em resumo, no contexto da gestão pública das águas, mais especificamente, em um dos seus principais organismos colegiados, os Comitês de Bacias Hidrográficas, é importante considerarmos que a participação supõe uma
relação de poder entre as partes envolvidas, Estado e sociedade civil, exigindo
determinados procedimentos e comportamentos ordenados e sistematizados.
Nesses espaços públicos, o compartilhamento do poder, expressos nas suas concepções e projetos políticos, se dá de forma tensa e conflituosa. Em outras palavras, o conflito e a tensão serão maiores ou menores dependendo do quanto
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compartilham – e com que centralidade o fazem – as partes envolvidas. (DAGNINO, 2002)
Por esta razão, a garantia da efetividade das atribuições de caráter consultivo, normativo e deliberativo dos membros de CBH’s, requer tempo para
que se efetivem de fato em experiências concretas de espaços democráticos e de
socialização do poder. Muitos estudos dirigidos à análise e avaliação do funcionamento de determinados espaços públicos colegiados revelam que, apesar dos
avanços conquistados, ainda resta um longo caminho a ser percorrido para que
essas inovações institucionais superem os constrangimentos e dificuldades ainda presentes nesses espaços democráticos. A exemplo, Evelina Dagnino pontua
alguns limites e possibilidades da gestão pública compartilhada e participativa,
especialmente os relacionados à partilha do poder.
O reconhecimento dos diferentes interesses e a capacidade de negociação sem perda da autonomia, a construção do interesse público, a participação na formulação de políticas públicas que efetivamente expressem
esse interesse são algumas das dimensões que constituem essa novidade.
(DAGNINO, 2002, p. 34)
Concluímos assim que, neste momento, a entrada da sociedade civil nos
debates políticos, a respeito da gestão pública de águas e de seus respectivos
programas, traz algo de novo. Sua inserção impõe um contraponto às concepções e programas fechados aos espaços participativos, em distintas esferas e
atividades públicas, por impor limites ao aumento e fortalecimento desses atores, e a exigência de um novo modelo de se fazer políticas públicas, pautadas
na transformação, a qual é permitida a conformação de políticas públicas como
resultado da participação.
Entretanto, é importante considerar que em todo processo de criação,
execução e maturação de qualquer entidade colegiada – e os comitês não são
diferentes, o processo tende a ser lento, gradual e evolutivo. Desta forma, esperamos que este trabalho de pesquisa seja capaz de responder, diante desse cenário de atuação conjunta entre poder público, usuário e sociedade civil, nosso
problema de pesquisa.
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regulamenta o inciso XIX do art. 21 da Constituição Federal, e altera o art. 1º da Lei nº
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Vladimir Meira Nunes1
DEMOCRACIA DE REDUTO NO PARLAMENTO
BAIANO: A DOMINÂNCIA ELEITORAL NA
ASSEMBLÉIA LEGISLATIVA DA BAHIA NAS
ELEIÇÕES DE 2002, 2006 E 20102
Resumo
O artigo estuda as bases eleitorais dos deputados estaduais da Bahia, nas eleições de
2002, 2006 e 2010, a partir da dimensão vertical de suas votações. A Dominância eleitoral é aqui estudada como contribuição dos estudos da Geografia do Voto, os quais procuram classificar determinados padrões de comportamento político de parlamentares e
partidos a partir de seus redutos e estratégias eleitorais. É estudada também em diálogo
com pressupostos da teoria democrática e dos teóricos da modernização, para os quais
maiores índices de competitividade – logo, menor oligarquização – representam maior
qualidade democrática. O cálculo da Dominância foi feito de acordo com a fórmula sugerida por Carvalho (2003) e foi aplicada à votação de todos os deputados estaduais nos
três pleitos; em seguida, avaliamos se o padrão Dominante das votações é predominante
no partido governista, a partir dos reposicionamentos do PT e PFL/DEM nos três pleitos
selecionados. Os resultados sugerem que o legislativo estadual baiano não possui um
padrão oligárquico de competição, já que quase metade dos seus parlamentares possui padrão de votação Não-Dominante, ou seja, compartilham seus redutos eleitorais.
Sugere também não se poder afirmar que o padrão de votação Dominante é necessariamente governista.
Palavras-chave: Geografia do Voto; deputados estaduais; dominância eleitoral; oligarquização; qualidade democrática.
INTRODUÇÃO
O presente artigo tem como objetivo a discussão de questões que se referenciam na literatura acerca da teoria democrática, qualidade da democracia,
1
Baccharel e mestre em Ciências Sociais (Ciência Política) pela UFBA e-mail: [email protected].
2
Artigo elaborado a partir de resultado parcial da dissertação de mestrado, que contou com apoio financeiro
da Fapesb (Fundação de Amparo à Pesquisa da Bahia), através da concessão de bolsa. Foi originalmente
preparado como trabalho final da disciplina Teoria Política Contemporânea, ministrada pela Profª. Drª.
Maria Salete Amorim, do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da UFBA, em agosto de 2014.
Sofreu modificações a partir de importantes sugestões de parecerista anônimo da Revista Prelúdios, a quem
agradeço pela contribuição.
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problematizando aspectos apontados também pelos teóricos da modernização,
a partir de análise empírica sobre uma das dimensões trabalhadas nos estudos
da Geografia do Voto: a Dominância Eleitoral. Os autores das vertentes teóricas aqui utilizadas procuram avaliar o processo de consolidação da democracia
enquanto regime político vigente em diversos países, assim como, comparar
e apontar os principais aspectos de variados sistemas políticos adotados nas antigas e novas democracias existentes – estas oriundas da terceira onda democrática, de acordo com Huntington. (apud DAHL, 2001)
A abordagem à teoria da modernização representa uma ponte direta
com um campo da ciência política e dos estudos de sociologia eleitoral, que discute e analisa a Geografia do Voto, buscando relacionar desempenhos eleitorais
de partidos políticos e candidatos, a aspectos territoriais, demográficos e socioeconômicos. Este estudo tem como base empírica as eleições para Deputado
Estadual na Bahia em 2002, 2006 e 2010. A votação desses deputados é aqui investigada à luz das questões problematizadas pelas abordagens acima mencionadas.
A análise da Geografia do Voto, trabalhada neste texto, leva em consideração uma das dimensões das bases eleitorais na Bahia, espécie de distritos
informais característicos da eleição dos nossos parlamentares. Essa dimensão
passou a ser explicitada a partir da inovação metodológica estabelecida no trabalho de Ames (2003), que visava dar conta não apenas da distribuição territorial das votações dos deputados, como também da competitividade de determinado reduto, visualizando o patamar de “controle” de um parlamentar sobre um
município específico.
Essa inovação proporcionada pelo estudo de Barry Ames (2003) seguiu
a tradição dos estudos da geografia eleitoral, que, até ali, davam maior peso à
análise da distribuição territorial dessas votações – se dispersa ou concentrada
em determinados municípios ou regiões. A dimensão horizontal foi visualizada
inicialmente por Fleischer (1976), sobre a base territorial dos deputados de Minas Gerais. Neste estudo, o autor encontrou considerável número de deputados
com votação concentrada em determinadas regiões – “fato que, posteriormente,
se viu interpretado, pela literatura sobre o tema, como indício da possível existência de um ‘sistema distrital de fato’ operando no interior de nosso sistema
proporcional”. (CARVALHO, 2009, p. 371)
Carvalho (2009) também nos aponta outros trabalhos que encontraram
resultados em consonância com o fenômeno observado por Fleischer (1976), seguindo enfoques metodológicos diversos. Autores como Indjaian, e Dias (apud
CARVALHO, 2003) estudaram as bases dos deputados de São Paulo, Paraná e
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Rio de Janeiro e encontraram elevado número de deputados com base territorial
de suas votações concentradas.
Esses estudos terminaram provocando uma importante discussão acerca da operacionalização do sistema eleitoral brasileiro, já que, elegendo representantes com bases eleitorais delimitadas territorialmente, estariam “deformando” o princípio normativo orientador da ideia da proporcionalidade, o qual
deveria, em tese, favorecer a eleição de deputados de votação dispersa, teoricamente não paroquial. De toda sorte, a literatura da geografia eleitoral da época
estabelecia claro juízo acerca das caracterizações dessas diferentes bases eleitorais típicas dos deputados: se um reduto se apresentava como majoritariamente
concentrado, seus representantes teriam comportamento tipicamente paroquial; se a votação fosse de tipo disperso, o parlamentar teria comportamento
mais universalista. Essa interpretação adviria da ideia de que o
[...] representante eleito com os votos, esforços e recursos de pessoas de
uma área geográfica específica naturalmente atribui importância especial a
suas visões e demandas, tanto por um senso de obrigação como de autointeresse. (CAIN; FAREJOHN; FIORINA, apud CARVALHO, 2009, p. 372-373)
A diferença na interpretação sobre essas questões tem relação com a
discussão acerca da localização das bases eleitorais destes parlamentares. Conforme nos aponta o próprio Carvalho (2003, 2009), há nítida distinção de comportamento entre parlamentares com votação concentrada em grandes cidades
– capitais e municípios mais desenvolvidos –, e deputados com votação concentrada em pequenos municípios – diferença demonstrada justamente quando
se correlaciona essa dimensão com a dominância destes deputados sobre essas
bases. Nas capitais, dada a grande dimensão da base eleitoral, os parlamentares seriam desestimulados a atraírem políticas de cunho distributivista, já que
a delimitação dessas bases é mais difusa, dificultando a reivindicação de crédito por estas iniciativas. Por conta disso, os representantes com votação de
tipo concentrada, mas em bases de grande dimensão, teriam comportamento
mais universalista, assumindo posições relacionadas a determinados temas.
Estariam ancorados no chamado “voto de opinião”.
É essa discussão que será relacionada com a perspectiva teórica apontada. A segmentação territorial da votação dos parlamentares obedece a determinadas estratégias eleitorais adotadas por eles. A perspectiva dos teóricos da
modernização é de melhores condições para a manutenção e aprofundamento
do regime democrático à medida que uma dada sociedade apresenta maiores
níveis de desenvolvimento socioeconômico. Autores da teoria democrática,
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como Dahl (1997), defendem que é possível a existência de condições mínimas
à manutenção de uma democracia mesmo em sociedades de menor desenvolvimento, a partir da percepção do patamar de competitividade de determinado contexto social. Sendo elevada a competitividade, melhor a qualidade dessa
democracia e menor a oligarquização do regime. Quanto maior o indicador de
dominância eleitoral na votação dos parlamentares, mais oligárquico é o reduto
e o processo eleitoral. Por outro lado, sustenta-se também que menores índices
de desenvolvimento social proporcionam maior concentração dos recursos de
poder, com isso, representa maior possibilidade de a votação do parlamentar
ser de tipo dominante – menor a competitividade do reduto, portanto, mais oligárquico.
O trabalho aqui exposto se divide em duas partes: na primeira, referencia-se a discussão teórica, abordando aspectos da teoria democrática e qualidade da democracia, relacionando à literatura da geografia do voto. Nesta seção,
apontam-se os pressupostos que embasam parcela da análise empírica, a que se
refere ao comportamento político dos municípios da Bahia que caracterizam
a votação dos parlamentares em dominante e não-dominante. A partir dessa
questão, discutiremos outra dimensão empírica, que relacionará o posicionamento dos partidos frente aos governos à característica de suas bases eleitorais
nos três pleitos selecionados. Estas questões trabalhadas no plano empírico serão o conteúdo da segunda parte, com seus resultados e desdobramentos.
TEORIA DEMOCRÁTICA E GEOGRAFIA DO VOTO
O filósofo político italiano Noberto Bobbio, em seu livro O Futuro da Democracia (BOBBIO, 1997), utiliza o termo “permuta” para qualificar como clientelista o voto de maior incidência na democracia contemporânea, em detrimento
do fortalecimento do “voto de opinião”. Isso seria consequência de uma promessa não cumprida da democracia: a de educar o cidadão para o exercício da
prática democrática. (BOBBIO, 1997, p. 31) Permuta tem significado relacionado
com negociação, troca, barganha. O que equivaleria, seguindo seu raciocínio, a
uma prática “paroquial”, a qual precisaria, normativamente, ser superada.
A adjetivação “clientelista” para um padrão de comportamento político
também leva em consideração outras questões relevantes. Parte do suposto da
existência de trocas assimétricas, onde a relação “patrão-cliente” é a estabelecida. Isso seria permitido pela desigualdade de recursos econômicos e sociais, tendo como desdobramento a má distribuição dos recursos de poder na sociedade.
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Esse fenômeno estaria na raiz de alguns dos principais dilemas de democracias
mais recentes, convivendo com índices, de desenvolvimento socioeconômico,
relativamente baixos, que afetariam a efetividade de suas políticas e governos.
A contramão dessa tendência seria o que defendem os teóricos da modernização, para os quais a evolução e modernização das sociedades trariam
em seu bojo um processo de ampliação e aperfeiçoamento do regime democrático. Se uma determinada sociedade tende a melhorar seus indicadores sociais,
ampliando o acesso a bens econômicos a uma maior parcela da população, ela
criaria as condições para uma melhor qualidade da democracia.
O pressuposto dos teóricos da modernização parte do pioneiro estudo
de Lipset (1960), em que se correlacionou níveis de democracia a indicadores de
desenvolvimento econômico, sustentando a hipótese de que “quanto mais próspera uma nação, maior as chances de sustentar a democracia”. (LIPSET, apud
CARVALHO, 2009, p. 69) Maior desenvolvimento econômico, portanto, seria capaz de possibilitar maior estabilidade e a manutenção do regime democrático.
Dentre os autores que referenciam esse artigo, Robert Dahl é um dos
principais teóricos. Sua vasta obra é grande referência nos estudos da teoria democrática, sendo marcada pelo diálogo, em fases distintas de sua vida, com três
correntes da ciência política: os teóricos da modernização, a teoria da escolha
racional e a perspectiva da cultura política. (ABU-EL-HAJ, 2008)
Seu contato com a teoria da modernização tinha uma dupla problemática, uma completamente oposta, outra no sentido de problematizar e aperfeiçoar
a consideração de um determinado argumento. No primeiro caso, o clássico estudo de Dahl (1997), Poliarquia, procura romper com as interpretações vigentes
até então, influenciadas pelos teóricos da modernização, para os quais a transição para regimes democráticos estaria relacionada ao patamar de desenvolvimento histórico de determinadas sociedades. Assim, principalmente a partir
de Dahl (1997), a política passa a adquirir autonomia e condição explicativa para
determinados fenômenos sociais, assim como para as transições de regimes.
(LIMONGI, apud DAHL, 1997) A intervenção de atores e suas escolhas institucionais também precisam ser consideradas na explicação de determinados regimes políticos, onde transições podem ocorrer a partir dessa interferência.
No segundo caso, esse contato estaria vinculado à consideração de
determinados condicionamentos explicativos advindos da estrutura social.
Diferentemente dos teóricos da modernização, Dahl (1997) descarta os condicionantes históricos e se concentra nas características da estrutura social
que afetam diretamente o mundo da política, procurando estudar os efeitos
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da concentração e controle dos recursos de poder socioeconômicos sobre o
processo democrático. (LIMONGI, apud DAHL, 1997)
Em todo caso, o principal elemento a se considerar tem relação com a
ideia da competitividade. Para Dahl (2012), a inclusão política era uma consequência do confronto entre situação e oposição. A modernidade se acharia
relacionada de maneira próxima à democracia, já que um de seus principais
desdobramentos está na dispersão dos recursos políticos entre todos os atores
sociais. Para ele, uma “sociedade pluralista moderna” conteria traços de modernidade, como “altos níveis de riqueza, consumo, renda e educação, grande diversidade ocupacional, população urbana expressiva, uma diminuição notória
na população agrícola e a importância relativa da produção econômica”. (DAHL,
2012, p. 251) Com esse processo de modernização, os dois vetores de progresso
da Poliarquia se viabilizam: permite o desenvolvimento de um sistema político
competitivo, num primeiro momento, e inclusivo, numa etapa final.
Essa ideia da competitividade, presente no argumento de Dahl (1997),
dialoga favoravelmente com outra questão levantada por Bobbio (1997), dentre as
promessas não cumpridas da democracia: a derrota do poder oligárquico. Para
o autor italiano, retomando argumentos de autores da Teoria das Elites, apesar
de os regimes democráticos de governo não eliminarem jamais as oligarquias no
poder, não negando a existência de elites, a defesa é “a presença de muitas elites
em concorrência entre si para a conquista do voto popular”. (BOBBIO, 1997, p. 27)
Dentre as questões que dão substrato aos estudos da geografia do voto,
algumas estão presentes, e em diálogo, com afirmações contidas nos estudos anteriores. A primeira que se apresenta é a ideia do comportamento paroquial no
regime democrático. Bobbio (1997) afirma que esse comportamento teria relação
com a não-educação para a prática democrática por parte dos cidadãos, uma das
promessas não cumpridas da democracia. Na geografia eleitoral, esse tipo de
comportamento político estaria relacionado com uma localização territorial de
determinadas bases eleitorais, que exerceriam influencia sobre mandatos parlamentares. Essas bases seriam suscetíveis a uma prática política menos “qualificada”, justamente por não ter acesso a determinados serviços públicos essenciais,
ou os teriam de forma muito aquém das necessidades. Níveis de escolaridade, de
renda e acesso a serviços de saúde, seriam muito baixos, tornando essas populações dependentes de políticas de cunho distributivista de benefícios concentrados, as quais não seguiriam um padrão universalista de atendimento.
Os parlamentares vinculados a esse perfil de reduto eleitoral possuem,
geralmente, uma votação de tipo dominante, justamente pelo papel que cumprem de intermediador privilegiado destas políticas, muitas vezes pela relação
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que manteriam com o governo. Essas localidades, portanto, teriam baixo patamar de competitividade, estando, também, aquém do padrão necessário a uma
maior qualidade democrática.
A possibilidade de avaliar o patamar de dominância de determinado
parlamentar sobre um reduto passou a ser feita de maneira mais cuidadosa a
partir da contribuição de Ames (2003), quando outra dimensão da análise da
geografia eleitoral, para além apenas da distribuição territorial da votação em
concentrada ou dispersa, passou a ser observada. Alguns parlamentares podem
ter votação de tipo concentrada, porém, não estarem ancorados nas grandes
cidades e regiões metropolitanas. Portanto, seus redutos podem também incentivá-los a uma prática política de tipo paroquial. Assim, de acordo com esse
entendimento, que ficou conhecido na Ciência Política como Conexão Eleitoral,
haveriam determinados tipos de redutos que norteariam o comportamento de
determinados parlamentares: deputados com votação de tipo não-dominante,
geralmente ancorada em distritos de grande dimensão, são desincentivados a
reivindicarem crédito pela alocação de alguns benefícios – políticas – por conta
da baixa visibilidade que teriam. Sendo assim, estariam mais propensos a dar
prioridade à tomada de posição com relação a grandes temas – seriam, portanto, parlamentares com base eleitoral vinculada ao chamado “voto de opinião”,
com comportamento mais universalista. Por outro lado, deputados com votação
dominante, possuem base eleitoral geralmente de média e pequena dimensão,
buscando com isso alocar recursos e projetos aos distritos que compõem sua
base eleitoral, tendo em vista atender às demandas destas localidades. Estes seriam parlamentares com comportamento mais particularista, paroquial, estimulando práticas políticas de ordem clientelista.
É preciso, no entanto, problematizar melhor o argumento relacionado
com os estudos da conexão eleitoral. De acordo com Amorim Neto e Santos
(2003) e Ricci (2003), determinadas considerações de autores que interpretam
a realidade brasileira a partir de pressupostos do distributivismo, apontando
como prioritária a meta da reeleição por parte dos parlamentares – a exemplo da lógica prevalecente nos Estados Unidos –, seriam incoerentes em termos teóricos e marcados por baixo teor analítico. Para Ricci (2003), políticas
distributivistas nem sempre atendem a uma lógica paroquial, já que podem
produzir benefícios concentrados ou difusos. O fato de o sistema eleitoral
proporcional de lista aberta adotado no Brasil estar combinado com distritos de elevada magnitude, com população numerosa, incentivam os políticos
a produzirem “legislação de cunho difuso [...]. Daí estar equivocada a literatura que trata da predominância de atividade paroquial (do tipo pork barrel)
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no Congresso brasileiro”. (RICCI, 2003, p. 724) Portanto, predominaria dentre
as políticas distributivistas produzidas pelos parlamentares na Câmara dos
Deputados, as que possuem benefícios difusos, não a de benefícios concentrados, mais identificados com a lógica paroquial.
Analisaremos a dimensão geográfica de dominância da votação dos Deputados Estaduais da Bahia para observar até que ponto é possível identificar
determinados deslocamentos de suas bases eleitorais, assim como, das características das relações destes deputados com as bases em contextos diferenciados
de posicionamento partidário, frente às esferas do poder político. Portanto, se
afirmamos que determinado parlamentar domina um reduto eleitoral específico, entende-se que este reduto apresenta baixa competitividade eleitoral, logo,
o referido parlamentar seria um intermediador “privilegiado” (principal representante) daquela localidade. Portanto, nesse artigo não aprofundaremos a análise no sentido de direcionar o olhar também à arena parlamentar, com foco
na produção legislativa dos parlamentares. Apenas discutiremos determinados
pressupostos apontados por esses estudos, buscando identificar as características das bases eleitorais dos parlamentares do Legislativo estadual baiano.
Sendo assim, uma das questões que a próxima seção buscará dar conta
se refere a esta correlação entre situação frente aos governos/dominância eleitoral. O primeiro pressuposto é o de que partidos que vieram de uma trajetória
de oposição aos governos possuem um padrão típico de votação Não-Dominante, justamente por possuírem maior vinculação a bases eleitorais de grande
dimensão e maior competitividade; passando para a condição de partidos no
governo, é possível afirmar que seus parlamentares também alteraram seus padrões da Geografia do Voto? Por outro lado, partidos com trajetória governista
mais relevante, com padrão de votação Dominante, ao passar para a condição de
oposição, passam a um padrão Não-Dominante? Resumindo: pode-se afirmar
que o voto de tipo Dominante é governista?
Essa dimensão da Geografia do Voto possibilita verificar o alcance vertical da votação dos parlamentares, identificando em que medida um determinado deputado domina um reduto específico; com isso, demonstra, também,
o grau de competitividade desse mesmo reduto ao qual o parlamentar está vinculado. Adotaremos nesse estudo que o partido de oposição possui presença
eleitoral vinculada a grandes cidades, nas quais não conseguem atingir uma
dominância eleitoral. Essas cidades, por serem as mais urbanizadas, possuem
melhores indicadores de desenvolvimento socioeconômico. Estando relacionadas a uma maior competitividade eleitoral, portanto, possuem “maior” qualidade democrática. O inverso seria o desempenho eleitoral do partido no governo
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estar mais vinculado a redutos de pequena e média dimensão – municípios com
baixos indicadores de desenvolvimento social, mais distantes da capital e população reduzida. Esses municípios, dadas essas características, sugerem menor
competitividade eleitoral, nos quais o parlamentar estabelece uma dominância.
Sendo a realidade de parcela significativa do distrito eleitoral – o Estado da Bahia –, marcado por baixos índices de desenvolvimento socioeconômico, a indicar
uma menor presença de parlamentares com votação de tipo Dominante, pode
significar aumento do patamar de competitividade, mantendo o diálogo com
pressupostos da teoria democrática: em Dahl (1997), com a ideia da prevalência da política, em detrimento dos condicionantes históricos e sociais, ou seja:
haveria elevado nível de competitividade – competição plural – não somente
nas grandes cidades. Por conta disso, não se pode generalizar a predominância
de um conflito com umas das promessas da democracia apontadas por Bobbio
(1997), ou seja, a competição não se daria somente em moldes oligarquizados.
ANÁLISE DOS PADRÕES DE DOMINÂNCIA DAS VOTAÇÕES DOS
DEPUTADOS ESTADUAIS DA BAHIA NAS ELEIÇÕES DE 2002, 2006 E
2010
Para dar conta da análise da Geografia do Voto dos deputados estaduais
da Bahia é preciso verificar a variável Dominância desse fenômeno, que nos
possibilitará identificar em que medida um parlamentar domina eleitoralmente
determinado reduto – demonstrando o grau de competitividade desse mesmo
reduto ao qual o parlamentar está vinculado.
A operacionalização do conceito de Dominância, sua classificação, seguiu as orientações de Carvalho (2003), através da fórmula:
Onde vi= número de votos recebidos pelo deputado estadual da cidade
i; pi= número total de votos válidos para deputado estadual na cidade i; V= total
de votos recebidos pelo deputado estadual no estado inteiro, e n=15 municípios.
Registra-se que o índice de dominância utilizado segue Carvalho (2003) e faz
o recorte de 15 cidades nas quais o deputado obteve o maior percentual de votos,
já que entre essas, em média, o deputado faz mais de 75% de sua votação entre
os três pleitos selecionados.
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A estipulação das faixas de dominância leva em consideração o desvio
padrão com relação à média de dominância da Legislatura para a divisão das
quatro faixas classificatórias de penetração vertical: Sem Dominância, Baixa
Dominância, Média Dominância e Alta Dominância. Nisso, uma ponderação
diz respeito à classificação adotada após a aplicação da fórmula, já que o índice
de dominância é variável contínua. Em seguida, porém, convertem-se estas faixas numa variável dicotômica: dominância/não dominância.
Para exemplificar o procedimento de operacionalização do conceito de Dominância, apresenta-se a eleição de 2002, na qual, primeiramente,
calculou-se a média aritmética dos valores do Índice de Dominância obtidos
através da fórmula citada anteriormente. Essa média é calculada através da
soma dos valores dos Índices de Dominância dividida por 63, que é o total de
casos (parlamentares da legislatura). Em seguida, fazemos o cálculo de desvio
padrão através da fórmula seguinte:
Onde S= Desvio Padrão; Xi= valor do Índice de Dominância; = média
aritmética dos valores do Índice de Dominância da legislatura e n= o universo
de 63 deputados estaduais eleitos. Dessa forma, obtivemos que a média aritmética do Índice de Dominância da eleição de 2002 foi 0,164; já o Desvio Padrão
ficou em 0,101. As faixas de dominância, portanto, foram: parlamentares Sem
Dominância (SD): aqueles que tiveram o Índice de Dominância menor ou igual
a 0,063; deputados com Baixa Dominância (BD): tiveram o Índice de Dominância maior que 0,063 e menor ou igual a 0,164, que foi o valor da média aritmética;
parlamentares com Média Dominância (MD): tiveram o Índice de Dominância
maior que 0,164 e menor ou igual a 0,265; e representantes com Alta Dominância (AD): tiveram o Índice de Dominância maior que 0,265.
Trazendo a operacionalização do conceito de Dominância para as três
eleições selecionadas, e estabelecendo também a identificação das faixas de penetração vertical da votação dos deputados, temos a distribuição a seguir:
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Tabela 1 – Classificação dos parlamentares de acordo com os quatro padrões de Dominância dos votos, nas eleições de 2002, 2006 e 2010
SD
%
BD
%
MD
%
AD
%
TOTAL %TOTAL
2002
16
25,40%
13
20,64%
24
38,09%
10
15,87%
63
100%
2006
12
19,05%
22
34,92%
17
26,98%
12
19,05%
63
100%
2010
11
17,46%
22
34,92%
20
31,75%
10
15,87%
63
100%
SD: Sem Dominância; BD: Baixa Dominância; MD: Média Dominância; AD: Alta Dominância.
Fonte: Elaboração própria a partir de dados coletados no site do TSE.
De acordo com a tabela, o único padrão de votação dos parlamentares em
que a variação apenas aumenta no período selecionado é o de Baixa Dominância,
que sai de um patamar de 20,64% dos deputados, e atinge a marca de 34,92% dos
parlamentares eleitos em 2006 e 2010. A única variável que apresenta queda em sua
representação nos dois pleitos seguintes ao de 2002 é a Sem Dominância, que no
primeiro pleito atinge 25,40% dos deputados, caindo 6,35% em 2006; e mais 1,59%
em 2010, alcançando o patamar de 17,46% dos parlamentares eleitos neste último
processo eleitoral.
O padrão de Alta Dominância é o que obteve menor variação no período, e
também é o de menor presença entre os parlamentares eleitos: apenas 10 Deputados
Estaduais eleitos em 2002 tiveram votação desse perfil, com uma pequena ampliação
para 12 deputados em 2006, e retornando para a mesma marca de 10 deputados em
2010. O de Média Dominância variou um pouco mais que o anterior, sendo o padrão
de maior presença no pleito de 2002, com 38,09% dos parlamentares, caindo para o patamar de 26,98%, e crescendo a representação para 31,75% dos parlamentares em 2010.
Convertendo as quatro faixas de penetração eleitoral, em uma variável
dicotômica, ou seja, Dominantes/Não-Dominantes, temos o quadro a seguir:
Tabela 2 – Classificação dos parlamentares na variável dicotômica Dominante/Não
Dominante de suas votações, nas eleições de 2002, 2006 e 2010.
Dep. Vot. Dominante
%D
Dep. Vot.
Não Dom.
2002
34
53,97%
29
46,03%
63
2006
29
46,03%
34
53,97%
63
2010
30
47,62%
33
52,38%
63
% ND
Total
D: Dominante; ND: Não-Dominante.
Fonte: elaboração própria a partir de dados coletados no site do TSE.
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Na tabela, é possível observar certo equilíbrio entre os dois padrões, com
leve predominância, em dois dos pleitos, do tipo Não-Dominante. Por si só, esse
dado já corrobora com os achados de Carvalho (2003), no qual, contrapondo-se
à defesa de Ames (2003), apresenta que cerca de metade dos parlamentares da
Câmara dos Deputados possuíam padrão de votação de tipo dominante, sugerindo que, seguindo o critério adotado por Ames (2003), somente 50% dos parlamentares do país seriam estimulados a adotarem um comportamento “paroquial”, de reivindicar benesses para suas bases geográficas, dado o perfil dessas
bases eleitorais. O Legislativo da Bahia, portanto, apresenta uma distribuição de
seus parlamentares em termos de Geografia do voto equivalente à distribuição
dos deputados federais do país.
Estabelecendo um diálogo com a perspectiva de Bobbio (1997), pode-se
notar que a predominância de um patamar de competitividade equilibrado entre
os dois conjuntos de padrões de Dominância faz supor que, em parcela significativa das bases eleitorais representadas em pelo menos metade dos deputados
da Assembléia baiana, não predomina um padrão oligárquico de competição/
comportamento político. Esse achado também dialoga com a discussão de Dahl
(1997), em certo sentido, contornando o argumento dos teóricos da modernização, na medida em que não somente em contextos de maior desenvolvimento
socioeconômico predomina uma competição mais plural, ou seja, não se pode
generalizar um padrão de votação dominante no conjunto dos parlamentares
eleitos. Não é possível, porém, identificar uma tendência à ampliação ou à redução da competitividade nos distritos baianos, na medida em que chama a
atenção, ao se observar o quadro dois, que o efeito do pleito de 2006 operou
uma ampliação do padrão de votação não-dominante, no entanto, esse efeito
foi atenuado com o pleito de 2010, mesmo não alterando a predominância desse padrão. Com a análise da subseção a seguir, observaremos que esse efeito
atenuante possui relação com o reposicionamento em relação aos dois planos
de governo, por parte dos dois partidos selecionados, onde o PT, em 2010, acumularia sob sua influencia direta duas instâncias de poder. Esse achado sugere
uma continuidade desse estudo em estabelecer correlação dessas distribuições
territoriais das votações com indicadores socioeconômicos, para qualificar
melhor a caracterização dessas bases eleitorais.
Na subseção a seguir, analisaremos a manifestação dos padrões de dominância eleitoral nas votações das bancadas do Partido dos Trabalhadores (PT)
e do Partido da Frente Liberal (PFL) – posteriormente Democratas (DEM3) –,
3
O Partido da Frente Liberal (PFL) se reorganizou no ano de 2007 dando origem ao Democratas (DEM).
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Prelúdios, Salvador, v. 4, n.4, p. 79-97 set./mar. 2015
ambos à frente do governo do estado em situações distintas nos três pleitos analisados.
A DOMINÂNCIA ELEITORAL DAS BANCADAS DO PT E DO PFL/DEM
Nesta subseção, damos continuidade à análise da manifestação da dimensão vertical da Geografia do Voto, a partir da observação da dominância das
bancadas dos partidos, nos três pleitos selecionados. Dessa forma, serão identificados se esses padrões sofreram modificações na medida em que os partidos
se reposicionavam frente às esferas de governo, a partir da avaliação do desempenho das duas siglas mais relevantes no período: o PFL/DEM e o PT – as únicas
que estiveram na primeira e segunda colocação nas três eleições.
O pressuposto adotado é o de que o PT, que em 2002 estava na condição
de oposição no plano estadual e federal, tem sua votação vinculada ao padrão
Não Dominante. Conforme vimos, esse padrão está associado a uma presença
maior em grandes centros urbanos, ou bases eleitorais de grande dimensão, nas
quais é praticamente impossível um parlamentar exercer dominância eleitoral.
Já o PFL, que estava na condição de situação nos dois planos em 2002, tinha sua
votação no padrão Dominante. Nos pleitos posteriores – 2006 e 2010 – com os
reposicionamentos frente às esferas de governo, verificaremos se os padrões de
votação também se alteraram.
Nas eleições de 2002 o governador eleito era do PFL, partido que vinha
de uma presença no governo desde o início dos anos 1990, estando também na
condição de situação no Plano Federal. A principal coligação de oposição era
liderada pelo PT, que vinha se afirmando como principal partido de oposição na
Bahia desde o pleito anterior, de 1998; nos pleitos posteriores seria o principal
partido à frente do Governo do Estado. Neste ano, porém, uma situação nova se
apresenta: a coligação liderada pelo PT a nível nacional vence as eleições à Presidência da República, fazendo com que o partido estivesse no pleito seguinte
na condição de oposição estadual e situação nacional; o inverso se aplicando ao
caso do PFL.
Em 2006, o PT lidera a coligação vitoriosa nas urnas para o governo da
Bahia e também reelege Lula no plano nacional. A principal coligação derrotada em 2006 era liderada pelo PFL – partido que seria deslocado do governo do
estado pela primeira vez, desde a eleição de 1990. Portanto, na eleição de 2010,
o PT participaria do processo como situação nos dois planos e o PFL (agora como
Prelúdios, Salvador, v. 4, n.4, p. 79-97 set./mar. 2015 /
91
DEM) na dupla oposição ao governo petista – invertendo os papéis com relação
ao pleito de 2002.
Nessa análise, utilizaremos a classificação de dominância de maneira
agregada, ou seja: Sem Dominância + Dominância fraca (Baixa) são identificados como Não Dominante (ND); Média Dominância + Alta Dominância são
identificados como Dominante (D).
Tabela 3 – Classificação da votação das bancadas do PFL/DEM e PT em Dominante/
Não Dominante, nas eleições de 2002, 2006 e 2010.
2002
2006
2010
D ND
D ND
D ND
PFL/DEM
15
1
13
3
4
1
PT
2
8
0
10
4
9
Fonte: Elaboração própria de acordo com dados do TSE.
Analisando os dados da tabela, pode-se verificar a significativa presença
de parlamentares com padrão de votação de tipo Dominante vinculados ao partido governista, nas eleições de 2002 – apenas um dos deputados possui votação
de padrão Não Dominante. Apenas dois parlamentares do Partido dos Trabalhadores dominam seus redutos eleitorais. A grande maioria, portanto, possui
votação de tipo Não Dominante. O corte, partido de oposição/votação Não-Dominante, partido governista/votação Dominante, fica evidente neste pleito.
O posicionamento nas esferas de governo possibilita, em tese, que o partido
disponha de acesso a determinados recursos de poder, com interlocução política privilegiada.
Na eleição de 2006, a predominância do padrão Dominante permanece
vinculada aos deputados do PFL, desta vez, porém, esse partido não participaria
do processo eleitoral como situação nos dois planos. Com a vitória do PT na eleição presidencial em 2002, o PFL em 2006 era governista somente no plano estadual (2003-2007). Mantém o mesmo número de parlamentares eleitos, apesar de
contar com dois parlamentares a mais com padrão de votação Não Dominante.
Em que pese ter participado do processo eleitoral, no campo governista, em nível federal, o PT mantinha a condição oposicionista no plano estadual.
O desdobramento dessa conjuntura foi a manutenção do padrão de votação Não
Dominante como predominante, dessa vez, sem nenhum parlamentar dominando seu reduto eleitoral, assim como, também, não ampliando sua represen-
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tação nessa esfera – demonstrando que a condição de governo no Plano Federal
não exerceu influência significativa sobre as bases eleitorais do PT no Legislativo estadual.
Essa observação é ainda mais relevante quando se confronta esses dados com o resultado eleitoral para Governo do Estado – em que o PT, de forma
surpreendente, vence o grupo governista já no primeiro turno – e com o mapeamento das bases eleitorais que dão a vitória ao PT no plano majoritário estadual
e Federal. De acordo com Nicolau & Peixoto (2007), os principais redutos eleitorais do PT, na eleição presidencial de 2006, são vinculados a pequenas cidades,
de baixo desenvolvimento, positivamente correlacionadas com o direcionamento de recursos dos programas sociais do Governo Federal. O mesmo é afirmado por Borges (2010) com relação às bases do PT para o Governo do Estado, no
mesmo pleito, onde os municípios atingidos pelo Programa Bolsa Família, do
Governo Federal, são os de melhor desempenho do partido.
Já no pleito de 2010 podem ser observadas algumas mudanças. Nesta
eleição o Partido dos Trabalhadores foi reconduzido ao Poder Executivo estadual e Federal, e tem sua bancada ampliada para treze (13) representantes.
É expressivo o impacto desse pleito sobre o número de deputados com padrão
de votação Dominante do partido: eram dois em 2002, nenhum em 2006, passando para quatro parlamentares em 2010 com esse padrão de votação. Em que
pese essa presença do padrão Dominante sobre a bancada do PT neste pleito,
a maioria dos seus representantes continuaram com bases eleitorais de padrão
Não Dominante: nove parlamentares, um a mais que 2002 e um a menos que
2006. A predominância do padrão de votação desse partido nos três pleitos eleitorais, portanto, é do tipo Não Dominante.
É significativo também o caso do – agora – DEM (antigo PFL): atuando
enquanto partido da oposição nos dois planos, reduz drasticamente sua representação, saindo de dezesseis (16) parlamentares eleitos em 2006 para somente
cinco (5), em 2010. Dentre estes, quatro com votação de tipo Dominante – não
alterando, portanto, o padrão predominante de sua votação, mesmo após o reposicionamento frente aos governos.
Confrontando os dados do PT e do PFL/DEM no período, temos um
cenário que não invalida a pressuposição de uma mudança de tendência para
o caso do PT – já que ampliou o número de parlamentares com votação de tipo
Dominante –, porém não corrobora com a ideia de que, migrando da condição de governo para oposição, teria o padrão de votação predominante de suas
bases eleitorais alterado. O PT permanece com predominância do padrão Não
Dominante de sua votação, podendo indicar, com isso, duas situações: por um
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lado, ainda permanece com suas bases relacionadas a cidades mais desenvolvidas e de maior dimensão; por outro lado, dada a expressiva redução da bancada
do PFL/DEM, a votação do PT pode ter se expandido sobre essas bases eleitorais,
indicando um cenário de ampliação da competitividade em redutos de pequena ou média dimensão – corroborando com um cenário já apontado na seção
anterior, condizente com situações sugeridas pela teoria democrática: no caso
de Dahl (1997), indícios de algumas condições para a existência de uma poliarquia, em termos de competitividade, mesmo em contextos de menor desenvolvimento; no caso de Bobbio (1997), não conflitando com uma das promessas da
democracia, na medida em que não se pode admitir a predominância de uma
competição oligarquizada. O PFL/DEM, apesar de passar para a condição de
oposição nos dois planos, não alterou o perfil de seus redutos eleitorais, mesmo
tendo diminuído sua representação: o partido permanece com predominância
de votação Dominante, ou seja, com votação em municípios e regiões de menor
desenvolvimento.
É preciso considerar que possíveis mudanças mais substanciais sobre
as bases eleitorais desses dois partidos podem ser sinalizadas em futuros pleitos, pois apenas um cenário de competição eleitoral com reposicionamento nos
dois planos foi aqui verificado. Ou seja: maior concentração de poder sob controle de um partido – no caso o PT em 2010 – proporcionou alguma mudança
sobre suas bases eleitorais; insuficientes para alterar a predominância desses
padrões. Mais um cenário de competição eleitoral com os mesmos posicionamentos frente aos governos observados em 2010 pode sugerir uma maior aproximação das bases eleitorais desses partidos. Portanto, somente com os dados
analisados nesse artigo, não se pode sustentar a ideia de que o voto governista
é necessariamente dominante, como verificado no pleito de 2002.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Neste artigo, procuramos estudar as bases eleitorais dos deputados estaduais da Bahia, nas eleições de 2002, 2006 e 2010, a partir da dimensão vertical de suas votações. A Dominância eleitoral é aqui estudada como importante
contribuição dos estudos da Geografia do Voto, os quais procuram classificar
determinados perfis e padrões de comportamento político de parlamentares
e partidos, a partir de seus redutos e estratégias eleitorais.
Confrontando com questões de natureza teórica, presentes em estudos
da teoria democrática, a análise sobre a segmentação geográfica das votações
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pode contribuir na compreensão acerca da qualidade da democracia, na medida
em que aponta o nível de competitividade, assim como de oligarquização dos
redutos eleitorais. Assim, o plano empírico aqui abordado apresenta a predominância de um patamar de competitividade equilibrado entre os dois conjuntos
de padrões de dominância eleitoral: pouco menos da metade dos deputados estaduais da Bahia dominam seus redutos eleitorais; pouco mais da metade não
dominam eleitoralmente seus redutos. Isso, em diálogo com a perspectiva de
Bobbio (1997), sugere que em parcela significativa das bases eleitorais da Bahia representadas em pelo menos metade dos deputados da Assembléia baiana,
não predomina um padrão oligárquico de competição/comportamento político.
Considerando o perfil socioeconômico da maior parte dos municípios baianos,
de baixo desenvolvimento, sustenta-se a percepção, apontada por Dahl (1997),
de que é possível a existência de condições mínimas à poliarquia, mesmo nesses
contextos sociais, a partir de um patamar de competição pluralista – refutando
considerações reivindicadas pelos teóricos da modernização.
Quando se analisa a distribuição das votações, a partir dos dois principais partidos políticos do período, outra observação pode ser acrescentada:
mesmo alterando seus posicionamentos em relação aos governos, esses partidos não alteraram a predominância dos seus padrões de votação nos três pleitos
selecionados. Apesar disso, entre 2006 e 2010, a bancada do PT se ampliou, na
medida em que se reduziu drasticamente a bancada do PFL/DEM. Portanto, em
parcela dos redutos eleitorais da Bahia, para o caso da disputa ao Legislativo
estadual, amplia-se o patamar de competitividade, já que é menor o número de
parlamentares do principal partido governista Dominando esses redutos, assim
como esse partido pode ter crescido sobre as bases eleitorais do principal partido oposicionista – que obteve as maiores perdas nesse pleito.
Somente desenvolvendo esse estudo em outras dimensões, com maior
aporte de dados, será possível aprofundar determinadas considerações. Uma
delas, inclusive, se refere à identificação de possíveis mudanças mais substanciais sobre as bases eleitorais desses dois partidos, já que, nesse artigo, apenas
um cenário de competição eleitoral com reposicionamento nos dois planos foi
observado. Maior concentração de poder sob controle de um partido – o PT em
2010 – proporcionou mudanças sobre suas bases eleitorais, mesmo insuficientes para alterar a predominância de seus padrões de votação. O que significa
dizer que mais um cenário de competição eleitoral com essas características
de alinhamento em relação aos governos pode sugerir maiores impactos sobre os perfis geográficos e socioeconômicos dessas bases. Correlacionar essas votações a indicadores sociais também possibilitará perceber melhor as
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características dessas bases, no decorrer desse período, se confirmam uma
maior proximidade, ou mantém os perfis eleitorais de maior penetração em
zonas urbanas e mais desenvolvidas, no caso do PT, e menor presença nessas
regiões no caso do PFL/DEM.
LOCALIST DEMOCRACY OF THE PARLIAMENT OF BAHIA:
THE ELECTORAL DOMINANCE IN THE LEGISLATIVE ASSEMBLY OF BAHIA IN
2002, 2006 AND 2010 ELECTIONS
Abstract
The paper studies the constituencies of the state deputies of Bahia in 2002, 2006 and
2010 elections, from the vertical dimension of their votes. The electoral dominance is
studied as a contribution of the Vote Geography Studies, which attempts to classify certain patterns of parties and parliamentarians political behavior from their strongholds
basis and electoral strategies. The electoral dominance is studied also as dialogue among
assumptions of the democratic theory and the modernization theorists, for which the
higher levels of competitiveness represent a better democratic quality. The calculation
of the electoral Dominance was done according to the formula suggested by Carvalho
(2003) and was applied to the vote of all state legislators in three elections; then, it was
evaluated whether the dominant pattern of voting is prevalent in the ruling party, from
the repositioning of PT and PFL / DEM in three selected claims. The results suggest that
the state legislature of Bahia does not have an oligarchical pattern of competition, since
almost half of its parliamentarians’ vote has a non-dominant standard, in other words,
they share their constituencies. It also suggests that it is not possible to say that the
standard of Dominant vote is necessarily ruling.
Keywords: Vote Geography; state deputies; Electoral Dominance; oligarchical pattern;
democratic quality.
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Rodrigo Oliveira Lessa1
A LUTA POR MORADIA URBANA E OS TRAÇOS DA
REPRESENTAÇÃO DOCUMENTÁRIA NO FILME
SONHO REAL (2005)
RESUMO
O presente artigo busca compreender as representações sociais no cinema documentário, a partir dos elementos estéticos determinantes para a expressão e o levantamento
de questões que envolvem o cotidiano da cidade, no filme Sonho Real: uma história de
luta por moradia (2005). Dentre estas questões, encontram-se o déficit habitacional estatal, a disputa coletiva de espaços urbanos para a construção de habitações populares,
o exercício oculto da força policial em áreas suburbanas e a divulgação jornalística marcadamente ideológica de fatos envolvendo o uso da violência policial. Tais questões dizem respeito ao conflito social que envolveu a ocupação de uma propriedade privada,
em maio de 2001, na cidade de Goiânia, articulada pelo movimento dos sem-teto. Um
gênero de conflito social comum nas cidades brasileiras. A análise pôde destacar três
aspectos que repercutiram decisivamente no perfil de sua maneira de representar o
conflito e oferecer um novo olhar sobre fenômenos de embate social no cinema documentário: a) valorização autoral de padrões interpessoais de evidência e argumentação
que determinam seu compromisso com a objetividade no documentário, b) a captação
da tomada cinematográfica que recorta e registra a circunstância de mundo – onde sobressai a luta por moradia – no seu transcorrer e c) a construção de uma representação
que expressa o conflito social sob a perspectiva política de segmentos sociais oprimidos
pelas forças policiais no mundo urbano, neste caso, os sem-teto.
Palavras-chave: cinema documentário, representações, conflitos sociais, moradia, cidades.
INTRODUÇÃO
As circunstâncias que envolvem a insurgência de conflitos sociais, resultantes da luta por moradia nas grandes cidades do Brasil, estão geralmente num
âmbito de atenção ou divulgação pública bastante aquém da sua relevância, seja
enquanto fato social ou acontecimento de interesse público. Ao prevalecer em
áreas suburbanas com pouca assistência governamental e cobertura deficiente
1
Doutorando em Ciências Sociais pela Universidade Federal da Bahia. E-mail: [email protected].
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/ 99
por parte dos meios de comunicação, estas situações de embate político e luta
coletiva permanecem relacionadas ao exercício de uma espécie mais ampla de
repressão social, pouco combatida e normalmente legitimada por uma sociedade que desconhece suas características.
O filme documentário, Sonho Real, traz para o meio cinematográfico um
ponto de vista até então pouco referenciado, no que diz respeito a informações
sobre este tipo de luta popular e coletiva. Ao registrar a vida cotidiana dos acampados do sítio Sonho Real – propriedade situada na cidade de Goiânia e destinada à construção de condomínios de alto padrão –, os autores do filme irão buscar
entre os recursos estéticos do cinema e, em particular, do filme documentário,
a possibilidade de realizar uma contraposição narrativa às outras versões sobre
os acontecimentos. Deste modo, esta obra revelará não só uma face desconhecida sobre o contexto que envolve este tipo de conflito social, mas também algumas das condições fundamentais da representação social do filme documentário que traduzem a inclinação deste gênero do cinema para uma revelação mais
direta de questões pertinentes à realidade objetiva e ao cotidiano das cidades
brasileiras.
O FILME SONHO REAL E A QUESTÃO DA MORADIA POPULAR NO
BRASIL
A história de luta por moradia, retratada em Sonho Real, começou com
a ocupação espontânea de uma propriedade privada, no Parque Oeste Industrial da cidade de Goiânia, por parte de pouco mais de 20 famílias pobres, em
maio de 2004. O parque compreende uma área suburbana e afastada do centro,
Zona Oeste da cidade, onde tradicionalmente encontrava-se um comércio ativo
e pequenas indústrias. De acordo com relatos dos moradores da localidade, esta
área ficou abandonada durante mais de 40 anos, servindo de ponto para desova
de corpos por parte de criminosos e onde ocorriam estupros.
A resposta jurídica à ocupação foi imediata e a justiça local impetrou
um mandado de reintegração de posse em favor do proprietário. No entanto, a
execução foi prorrogada durante meses, até que no auge do processo eleitoral
para a prefeitura de Goiânia, ocorreu uma série de negociações entre moradores da ocupação e políticos da região – dentre eles os eminentes aspirantes à
prefeitura e o próprio governador do estado – o que trouxe esperança para os
habitantes do sítio Sonho Real. Os candidatos eram então Pedro Wilson, do
PT, prefeito da cidade na época, candidato à reeleição; Iris Rezende do PMDB,
100 /
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que já havia sido governador do estado e prefeito da cidade; e por último
Sandes Júnior, do PP, radialista e deputado federalapoiado pelo governador
do Estado, Marconi Perillo, do PSDB.
Figura 1 – Encarte de sonho real (2005)
Fonte: Coletivo de Mídia Independente de Goiânia ([20--])
Encarregando-se das atividades de seu governo, o próprio Marconi Perillo veio a se reunir com as lideranças da ocupação. Entre promessas e garantias, o governador afirmou para os sem-teto que eles poderiam ficar na área
e que a desapropriação caberia apenas ao prefeito, mas que certamente ocorreria em razão do proprietário ter um débito de cerca de 2 milhões de reais de
Imposto Predial Urbano, com a prefeitura. Por último, garantiu que a polícia
militar de maneira alguma agiria para retirá-los da propriedade. A esperança
de moradia cresceu entre os sem-teto da cidade de Goiânia em razão do andamento das negociações, de modo que até à intensificação do conflito já viviam
lá mais de três mil famílias à espera de um lote, com boa parte já tendo iniciado
a construção de casas e comprado, a prazo, artigos para o lar.
Embora um novo mandado de reintegração de posse fosse expedido em
setembro de 2004, a sua execução foi adiada, em função de uma rodada de negociações envolvendo o governo do Estado. Neste período, já se anunciava o propósito de políticos aliados ao governador de pressionarem as autoridades para a retirada das famílias da propriedade, sob a alegação de que a área não era apropriada
para moradias populares. Os advogados do proprietário integravam o coro contra
os manifestantes, afirmando que o valor do terreno chegava à casa dos 38 milhões
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de reais, por estar próxima de condomínios de luxo. Esta informação confirmou
as suspeitas dos moradores acerca da ociosidade programada da área, durante 40
anos, para efeito de especulação imobiliária, gerando forte indignação, tendo em
vista a dívida suntuosa de IPTU contraída junto à prefeitura.
Fruto de problemas estruturais da organização socioeconômica e geográfica da sociedade brasileira, o déficit de moradia nas capitais nacionais
é um problema comum em áreas devolutas e, principalmente, suburbanas das
cidades brasileiras. O que aponta não só para um quadro de desemprego generalizado da população pobre, que não tem condições de financiar a sua própria moradia, mas também para a ausência de uma política pública efetiva de
construção de moradias e planejamento urbano em seu favor. O último projeto
com tal perfil implantado no Brasil até então, nos remete ao período inicial da
ditadura quando, por volta de 1964, o governo federal criou o Sistema Financeiro de Habitação (SFH), que através do Banco Nacional de Habitação (BNH)
investiu na construção e financiamento de moradias para a população de baixa renda, embora também não tenha contemplado as camadas mais pobres e
necessitadas. A partir de 1968, o BNH, já com aporte maior de capital, implementou projetos restritos em localidades específicas, sem grande impacto para
diminuição do déficit habitacional histórico, sendo extinto pouco tempo depois.
Suas atribuições foram todas passadas para a Caixa Econômica Federal, o que
deu um fim ao último projeto público real de habitação popular. A partir daí, a
iniciativa do Estado se limitaria à realização de concessões para construção de
moradias em áreas públicas devolutas ou desapropriadas por meio de luta social
e reivindicação popular.
O principal motivo das cidades tornarem-se superpopulosas são os altos
índices migratórios e no caso do Brasil este fenômeno acentuou-se a partir da
segunda metade do séc. XX. Neste intervalo, é notória a inversão demográfica
de ocupação do território brasileiro: o país, antes rural, passa a ser predominantemente urbano, com sobrecarga de população que exige planejamento urbano
envolvendo saneamento básico, saúde, educação, transporte, habitação e outros
recursos, comumente requisitados numa cidade de grande ou médio porte.
Em Viramundo (1965), documentário de Geraldo Sarno, que apresenta
o cotidiano de agricultores nordestinos que chegam à cidade de São Paulo no
chamado “Trem do Norte”, estão indicadas circunstâncias fundamentais para
a compreensão da migração em massa: falta de terra para o provimento da subsistência e desemprego nas áreas rurais, o que faz de centros urbanos, como
a cidade de São Paulo (mostrada no filme), uma esperança de sobrevivência.
Problema diretamente relacionado ao passado agrário recente de patrimonialis-
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mo e monocultura no Brasil, onde a posse de terras permaneceu historicamente
nas mãos de uma minoria de latifundiários. Uma conjuntura que se perpetuou
por meio de herdeiros diretos de senhores de terras que barganharam as terras
públicas devolutas a partir da Lei de Terras, em 1850, via a sua ocupação pela
grilagem, exercício direto da violência contra agricultores mais pobres ou, por
último, negociação com pequenos proprietários em razão de garantias ilusórias
de vida na cidade como assalariados.
Até o fim do séc. XX e início do séc. XXI, a terra não só seria um bem escasso para os pequenos proprietários, mas também insuficiente para empregar
montantes populacionais crescentes em uma agricultura cada vez mais mecanizada, com cultivo direto da monocultura e dedicada à produção de artigos de
exportação. Quadro bastante comum em áreas de plantio de soja, no sul e no
centro-oeste do país, ou por último no sul da Bahia e norte do Espírito Santo,
onde se mantém em pleno funcionamento uma filial da Aracruz Celulose, indústria que produz papel a partir do eucalipto e já atingiu gravemente os meios
de subsistência de tribos indígenas e grupos quilombolas da região.
Tal como no caso do proprietário do sítio Sonho Real e das áreas do
Parque Oeste Industrial de Goiânia, dedicadas a receber o comércio, pequenas indústrias e condomínios de alto padrão são os grandes empreendimentos
operacionalizados por uma política social de privilégio às atividades do capital investidor que se sobrepõem aos desejos populares de habitação, moradia
e provimento da subsistência. Eventos históricos, conhecidos como a luta das
Ligas Camponesas, na década de 60 no Nordeste – também registradas no documentário Cabra Marcado Para Morrer (1984), de Eduardo Coutinho –, a política
do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra) de combate ao latifúndio, a partir dos anos 1980, ou a ocupação do sítio Sonho Real, que apresenta
uma nova força popular de luta das camadas proletárias da sociedade – a dos
sem-teto –, expressam nos conflitos contra corporações e interesses particulares de grandes proprietários uma contradição material inerente ao modo de
produção capitalista, que por sua vez também tem alcançado as grandes cidades
na forma de lutas sociais. Em um ou em outro caso, a apropriação privada dos
meios de produção e de subsistência gera conflitos diretos entre os que detêm
e negociam os meios de produção e aqueles que estão a lutar para conquistar os
seus meios de sobrevivência.
Em meio a estes conflitos, dois tipos de desdobramentos têm sido renitentes: o uso da violência clandestina ou policial contra a população pobre participante de organizações sociais que enfrentam os grupos dominantes e o Estado e, em segundo, a cobertura incompleta ou mesmo tendenciosa dos meios de
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comunicação sobre os conflitos e o uso de força física pela polícia. Com a ocupação do sítio Sonho Real não foi diferente. Duas operações policiais executadas
pela polícia militar do estado de Goiânia são acompanhadas pelas imagens do
filme, a Operação Inquietação e a Operação Triunfo, retratando o uso desproporcional da violência contra os acampados. Ao mesmo tempo, no próprio filme, consta a cobertura televisiva da imprensa, que traz informações destoantes
dos fatos apresentados pelas imagens do documentário.
As contradições no modo de produção nas cidades evidenciam-se no
documentário pela oposição entre os interesses materiais de proprietários de
meios de produção e os trabalhadores no momento em que estes são atingidos
pelo desemprego, tornando-se parte do exército industrial de reserva, que atua
para a diminuição do valor social da força de trabalho e, ao fim das contas, impossibilita economicamente um montante significativo de trabalhadores de adquirirem a sua própria moradia. Os trabalhadores da ocupação, ao tempo em
que assumem a condição de cidadãos impossibilitados de ocupar um espaço
onde possam exercer, mesmo a partir da providência pessoal, seu direito social
à habitação, são surpreendidos por um novo impedimento: o de construir suas
casas em razão de um mercado de especulação mobiliária, que opera a disponibilização de residências para camadas financeiramente privilegiadas.
Não obstante, aqueles que lamentam a existência de uma superpopulação nas cidades e creditam unicamente à concentração de pessoas nos centros
urbanos os problemas conjunturais – aliando-se inclusive ao discurso segundo
o qual os sem-terra, representam na verdade habitantes das cidades sem emprego – ignoram que a presença do capital no campo também faz parte da realidade brasileira. “O nosso campesinato é constituído com a expansão capitalista,
como produto das contradições desta expansão. (MARTINS, 1981, p. 16).”
Na ausência de ações efetivas do Estado para resolver o déficit habitacional no Brasil, acredita-se ainda ser suficiente a elaboração de projetos para
garantir o direito à moradia e construção de habitações, quando hipoteticamente se manteria a convivência pacífica de interesses antagônicos nas cidades.
No entanto, as ciências sociais mostram que os chamados direitos sociais para
uma vida digna da população pobre estão constantemente em conflito com os
direitos civis das camadas mais abastadas. “Pois os direitos sociais dos trabalhadores [...], colidem com os interesses materiais imediatos dos patrões ou
seus direitos civis de montarem seus empreendimentos em liberdade, sem a
intervenção do Estado.” (ZALUAR, 1994, p. 224)
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A OCUPAÇÃO SE CONVERTE EM ACONTECIMENTO PÚBLICO
O sítio Sonho Real, como já foi dito, localiza-se numa região afastada
do centro da cidade de Goiânia, na Zona Oeste, onde prevalece a instalação de
indústrias, onde havia um comércio e se iniciava a construção de condomínios
de luxo. Região ainda por ser valorizada sob o ponto de vista do mercado imobiliário, o espaço ocupado e habitado pelos sem-teto não configura uma zona
central da cidade, por onde circula a maioria da população e para qual converge
a atenção dos meios de comunicação.
Tempos após a expedição do segundo mandado de reintegração de posse em favor do proprietário, os jornais mais acompanhados da cidade, “O Popular” e o “Diário da Manhã”, passaram a cobrir os acontecimentos que culminaram na intensificação do embate entre a justiça local e os proprietários contra
o movimento de ocupação, quando já havia uma pressão para a desocupação da
propriedade e a intervenção policial a ser mobilizada pelo governo do estado.
Deste período do mês de setembro até o fim do ano, o movimento já
havia conseguido o apoio de parlamentares e do “Movimento Terra, Trabalho e
Liberdade”, que se prontificavam a dar suporte à luta no sítio Sonho Real. Também se uniram temporariamente ao movimento, estudantes e ativistas que se
articulavam para ir ao Fórum Social Mundial, e o chamado Coletivo de Mídia
Independente (CMI) de Goiânia, organização que assina a produção do documentário.
O tipo de representação do movimento dos sem-teto, na ocupação que
este coletivo viria a fazer, reconhece influência do que estava sendo exibido
na imprensa local de Goiânia, que segundo eles deturpava e ocultava detalhes
importantes daquela luta. Um filme documentário toma forma, neste sentido, como a possibilidade de uma representação da realidade do cotidiano dos
acampados, que viesse a mostrar a história sob o ponto de vista dos sem-teto,
daqueles que, até então, estavam geograficamente deslocados do centro e sem
possibilidades efetivas de intervir pela intercomunicação, no tipo de cobertura
que estava sendo realizada pelos jornais locais.
Apesar de toda a demora que tivemos para estabelecer um contato direto com os ocupantes, a aceitação ao CMI foi grande e construída rapidamente. Cansados de serem difamados pela grande imprensa da cidade,
os moradores ficaram surpresos ao saber que havia um meio de comunicação disposto a ouvi-los e mostrar o outro lado, o lado de dentro, o que
pudemos constatar convivendo cerca de 3 semanas dentro da ocupação foi
algo bastante diverso do que era publicado pela grande mídia. Ali viviam
em sua maioria esmagadora famílias pobres, em pequenos barracões onde
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moravam várias pessoas. Todos procuravam fugir da ditadura do aluguel,
que tanto oprime os trabalhadores de nosso país e fazem a fortuna de
proprietários e imobiliárias. Lá vimos também pessoas de bem, muito diferente do perfil criminoso apresentado pelos jornais e TVs locais. Lá viviam
trabalhadores típicos deste Brasil injusto, explorados, com poucos recursos
e em busca do sonho da casa própria. (COLETIVO DE MÍDIA, [20--])
Toma forma, com esta iniciativa, um conjunto de filmagens que iria
acompanhar o cotidiano dos sem-teto, configurando, a partir das imagens captadas, e de uma contextualização factual e sociopolítica sobre toda a conjuntura
que envolveu a ocupação, uma refiguração alternativa dos eventos. As possibilidades estéticas de representação da realidade do filme documentário servem, portanto, como instrumento socialmente empenhado numa versão dupla
e combinada do conflito social de luta pela moradia. De um lado, levantando
traços de uma realidade pertinente a uma grande cidade. De outro, produzindo,
através do cinema e dos recursos que a criatividade e a imaginação permitem,
uma obra criativa que se apresente como fruto da inspiração e da identificação
íntima do artista com seu objeto, ou seja, uma obra de arte dotada de originalidade2.
Nesta medida, sendo o filme documentário este instrumento ou expressão artística, utilizado pelos agentes do Coletivo de Mídia Independente
de Goiânia para produzir um olhar sobre o conflito social, que envolve a luta
por moradia nesta capital brasileira, podemos afirmar que o modo pelo qual a
refiguração da arte se apresenta no filme Sonho Real como um meio de conhecimento para compreender as contradições e conflitos da vida social na cidade
está relacionado aos elementos fundamentais que agem enquanto condições
sociais para a representação social do documentário. Afinal, imaginário, ideologia, ideias, técnicas artísticas, conhecimentos de um modo geral ou mesmo
contextos socioeconômicos exercem influência a partir do rol de circunstâncias
em que os realizadores do filme empreenderam o projeto.
Dentre as particularidades desta representação, surgem com destaque
em Sonho Real alguns recursos de interlocução muito comuns no pensamento
cotidiano (ou senso comum), no meio audiovisual (cinema, jornalismo, etc.), no
campo do cinema documentário em particular e, de algum modo, alguns que
são comuns mesmo ao meio científico. Quais são eles: primeiramente, a técni-
2
“Se assim deve ser, na verdade, a objetividade de um artista, conclui-se que a representação é o produto
da sua inspiração, pois, como sujeito, ele identifica-se com o objeto, e é da sua alma, da sua fantasia, da sua
vida interior, em suma, que extrai os elementos para a sua encarnação numa obra de arte (HEGEL, 1983,
p. 179).”
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ca de valorização autoral de padrões interpessoais de evidência e argumentação, que determinam o compromisso do realizador com a relação de objetividade acompanhada da contraposição realizada dentro do filme à cobertura da
imprensa sobre os fatos – um traço presente nas narrativas não-ficcionais no
campo do cinema documentário, mas que é forte também no meio científico.
Em segundo, o registro da circunstância de mundo que envolveu a intervenção
violenta da polícia no acampamento, no seu transcorrer, ou seja, no momento
exato em que elas estavam ocorrendo. A técnica de registrar audiovisualmente os eventos ,no exato momento em que eles ocorrem, é extremamente recorrente no filme documentário – e que é também valorizada no meio jornalístico.
Por último, a possibilidade de inclusão de uma externalização criativa e íntima
de traços do pensamento cotidiano no argumento narrativo do filme documentário – procedimento comum à arte, de um modo geral, e que também faz tradicionalmente parte da forma estética do filme documentário.
Segundo Georg Lukács (1965), a noção de refiguração ou representação
da realidade aponta para a existência de três tipos de reflexo possíveis de serem
destacados, a partir do exercício da racionalidade humana em contato com a
realidade objetiva. Inicialmente, sua noção de “reflexo” leva a uma incorrência
direta da experiência material sobre a mente, algo precipitado tendo em vista a potencialidade bastante limitada desta mesma racionalidade na apreensão de tudo que está materialmente disposto no mundo e do próprio papel da
subjetividade para a apreensão e a externalização deste “reflexo”. No entanto,
o modo pelo qual esta racionalidade se manifesta sob três formas características, através da refiguração da “arte”, da “ciência” e do “pensamento cotidiano”,
nos permite indentificar na representação do filme documentário elementos
que correspondem aos três tipos de manifestação da racionalidade ou do pensamento humano, em contato com a realidade objetiva, presentes também no
filme Sonho Real. A característica mais importante desta discussão sobre a representação tradicionalmente encontrada na arte, na ciência e no pensamento
cotidiano, é a de que os três tipos de refiguração originam-se e convergem para
uma mesma realidade, em detrimento de idiossincrasias: a “realidade objetiva”.
Ou seja: os três tipos de reflexo tem origem em uma mesma realidade e são
capazes de levantar, cada um com suas potencialidades e limitações, traços da
realidade objetiva.
A partir do momento em que destacamos os três tipos de refiguração da
vida cotidiana na representação do filme documentário que se coloca, ao mesmo
tempo, como meio de comunicação para veiculação de informações sobre o mundo histórico não-ficcional – onde todos nós somos atores sociais, de fato –, como
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obra de arte e como externalização de um “bom senso” ou pensamento cotidiano,
podemos identificar em Sonho Real como cada um destes elementos foi articulado
em função dos traços da realidade que este foi capaz de levantar.
Um primeiro aspecto citado pertinente à conduta estética de Sonho Real
e à utilização de elementos pertinentes à representação social do documentário
é o comprometimento para com padrões interpessoais de evidência e argumentação, o que por sua vez determina e sobreleva o quesito de compromisso com
a objetividade no filme documentário. Neste sentido, o filme documentário, ou
de não-ficção, distingue-se da ficção por apontar para situações que ocorrem no
mundo histórico, diferentemente de um “mundo de fantasia”, hipotético, criado
a partir da imaginação do autor, e também por valer-se de padrões reconhecidos
de evidência, argumentação, interpretação, seleção de informações, etc., na vinculação de dados sobre a realidade. O que nos remete, de modo sucinto, a uma
relação de objetividade entre autor e espectador, elemento tradicionalmente reconhecido à representação da realidade executada pela ciência. (CARROL, 1996).
Este é, portanto, o elemento fundamental de um tipo de refiguração da vida
cotidiana presente no filme.
Sonho Real, nesta direção, começa com planos que apresentam um suposto acampamento com pessoas, casas e artigos do cotidiano, bem como fotos
de reuniões coletivas do mesmo ambiente que de imediato são referenciados
pela placa que traz o endereço exato de localização deste acampamento: “Rua
Cambara, QD. 02, LT.24 – Sítio Sonho Real”. (SONHO REAL, 2005) Mais adiante, assembléias são apresentadas por tomadas que trazem entrevistas de uma
personalidade local num telão – onde parece ocorrer uma reunião de acampados – e depois no registro direto de uma coletiva de imprensa, evento que reúne
pessoas ligadas ao meio político ou burocrático do Estado de Goiás. Ainda nesta
sequência, é identificado, por meio de legenda, um líder do movimento ligado
ao conselho Pró-moradia do Sonho Real: o senhor Américo Rodrigues. Este aparece em sua explanação na coletiva, situando em sua fala a data da ocupação,
maio de 2004, fornecendo ainda informações precisas sobre o número de acampados do sítio Sonho Real.
Há, neste sentido, uma intenção assertiva declarada logo no início do
filme da qual o autor se vale para traduzir aquelas informações alí vinculadas,
como parte de uma realidade que diz respeito a um lugar e a um período em
particular, a uma situação do mundo histórico, levando a uma postura também
assertiva do público para tomá-las como reais3. E isso se estabelece na medida
3
Este laço ou relação comunicativa faz parte do conceito de não-ficção, em Noel Carrol: “Ou, em termos
mais sucintos, um filme é de asserção pressuposta se e apenas se envolve uma intenção de sentido por
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em que o autor seleciona imagens ou tomadas capazes de trazer esta referência situacional ou, de modo mais direto, por texto em off – que tem um efeito
próximo ao da voz off. É, portanto, o caso da imagem com o texto que sucede a
entrevista do participante do conselho na imagem: “Algumas histórias Reais...”,
acompanhada por outro plano que traz uma placa de rua com o endereço da
ocupação: “Parque Oeste Industrial – Rua do Tear – CEP. 74375-710”. (SONHO
REAL, 2005) Assim, delineiam-se a partir destas primeiras e de outras opções
estéticas uma estruturação narrativa documental que reafirma este direcionamento no filme, esclarecendo de imediato qual postura deverá ser assumida
pelo espectador para o seu pleno entendimento.
O mais interessante, contudo, é o fato deste compromisso com a execução de um filme documentário e com padrões de evidência e argumentação em
Sonho Real – inicialmente indexada pela referência espacial e histórica da situação retratada – ser, não só uma opção estética que aproxima o filme de um gênero do cinema em particular, mas e, sobretudo, um instrumento de contraposição
a outras representações anteriormente efetuadas. Seus realizadores, antes de
começar o filme, já haviam se colocado em posição de enfrentamento político
à cobertura supostamente tendenciosa da imprensa televisiva e escrita, e neste sentido mostraram-se dispostos a utlizar-se de todos os recursos presentes
na representação documentária para realizar este contraponto. Com bastante
consciência dos autores, o filme passa a apresentar situações no andamento da
montagem onde os fatos apresentados pelo filme se contrapõem às promessas
de autoridades políticas, declarações de pessoas ligadas à polícia ou à cobertura efetuada pela imprensa local. O que por sua vez termina por dar uma noção
bastante clara das limitações da cobertura midiática, principalmente no que diz
respeito à imprensa televisiva, a qual se aproximaria mais do filme do por também se valer da imagem em movimento para conquistar a atenção do espectador.
A segunda sequência do filme vai sendo apresentada, após a exibição
da placa, como o momento de acompanhar o cotidiano do acampamento e das
pessoas que vivem naquele espaço. Entre crianças que brincam, moradores que
falam da esperança da conquista do espaço e grupos de entrevistados que conversam com os cinegrafistas, chama a atenção a declaração de uma mulher, pela
forma segura e direta com que presta seu depoimento e firma sua reivindicação:
parte do cineasta que fornece a base para a compreensão de sentidos pelo público, assim como uma
intenção assertiva por parte do cineasta que serve como base para adoção de uma postura assertiva pelo
público.” (CARROL, 2005. p. 91).
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A imprensa humilha agente, demais, eles falam que só tem vagabundo...
Aqui não tem marginal, nós não somos marginais, nós não somos vagabundos, aqui todo mundo tem filho, todo mundo perdeu seu serviço pra
conseguir um terreno pra gente. Agora eles vêm falar que nós somos um
bando de arruaceiros, um bando de vagabundos, isso não! Eu acho que
a imprensa devia respeitar agente. (SONHO REAL, 2005)
A entrevista já coloca de início um elemento importante para a contraposição: os próprios sem-teto, com todas as dificuldades e limitações, acompanham a representação da imprensa e discordam profundamente do papel que
assumem na voz dos jornalistas. O espectador, com isso, é levado a entrar na
problemática da cobertura do evento pelos jornais, ou pelo menos assimilar a
questão como o ponto de vista de um dos sem-teto.
A tomada com a declarante cede espaço, com o decorrer do filme, para
uma assembléia onde os manifestantes relembram as palavras do governador
de que a desapropriação estava garantida e não haveria uso da força policial
para retirá-los de lá. As declarações fazem menção às palavras proferidas pelo
governador nas reuniões de negociação, mostradas num telão no início do filme
e apresentadas agora pelo áudio que traz a voz deste e uma imagem onde sua
fala encontra-se legendada por texto em off: “‘O que eu tenho que fazer nessa
hora, aqui, agora, é garantir que eu não vou mandar a polícia. Se for algum policial lá, algum comandante lá, vai ser demitido. Eu não aceito, vai ser demitido’
– Governador Marconi Perillo.” (SONHO REAL, 2005) Após a exibição de uma
gravação com o trecho que contém esta afirmação, proferida pelo próprio governador em reunião com os sem-teto, o filme traz estrondos de bombas e imagens fortes da segunda, e mais violenta, operação da polícia militar para retirar
os manifestantes. Ou seja, as palavras do governador não foram cumpridas e
o filme faz questão de mostrar isso.
A primeira operação apresentada é a “Operação Inquietação”, executada pela polícia militar do estado de Goiânia durante dez dias do mês de novembro, segundo consta no filme. À noite, policiais chegam ao acampamento e
passam a alvejar o espaço com bombas de gás lacrimogêneo e de efeito moral,
além de fogos de artifício especiais, tiros com bolas de borracha e até mesmo
armas de fogo, atingindo um morador no braço, como mostram as imagens.
A operação tem por objetivo amedrontar e gerar sentimentos de medo e angústia nos moradores, que por outro lado insistem em unir-se para enfrentar as
bombas, mesmos desarmados ou munidos de estilingues.
Findada as imagens com a operação, o filme mostra a partir da filmagem
de uma televisão comum a cobertura feita pela imprensa, ao mesmo tempo em
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que se revoltam com as informações veiculadas: “Primeiro a energia [do acampamento] foi cortada e em seguida começou a ‘troca de tiros’. Surgiram também
clarões causados por bombas lançadas ‘dos dois lados’.” (SONHO REAL, 2005)
A cobertura se contrapõe com bastante clareza às imagens do filme, que trazem
a polícia numa ofensiva constante e os sem-teto sem porte de qualquer instrumento ameaçador, além do registro das cápsulas das bombas usadas pela polícia
e os projéteis de balas de fogo que foram utilizados contra os manifestantes.
Um último momento fundamental da contraposição de representação
no documentário se dá com as imagens da operação mostrada para desmentir
as palavras do governador, a “Operação Triunfo” (de 16 de fevereiro de 2005),
executada pela polícia militar após a “Operação Inquietação” para a retirada dos
moradores da localidade por meio da força. Primeiramente, a sequência traz,
de forma quase que imediatamente sucedida, declarações do Tenente Cel. Antônio, da polícia militar, afirmando dentre outras coisas que a imprensa seria
autorizada a fazer a cobertura da operação. No entanto, logo em seguida, o texto
em off dá a informação de que esta cobertura havia sido negada pela polícia no
momento da operação, mostrando o espaço afastado que foi reservado para os
jornalistas, além da informação ,também no texto em off, de que dois voluntários do CMI tiveram seu equipamento de filmagem roubado pela polícia e ainda
haviam sido espancados pelos mesmos. A sequência é concluída com as palavras
do secretário de segurança da cidade de Goiânia, o senhor Jônatas Silva, em coletiva, afirmando sobre esta operação que “O batalhão de choque não estava armado, porque o batalhão de choque usou cacetete.” (SONHO REAL, 2005). Cena
que é contraposta com a da entrada da polícia de choque armada com pistolas
automáticas durante a Operação Triunfo no acampamento.
Com algumas das passagens utilizadas pelos autores para realizar uma
contraposição de representações, podemos perceber o modo pelo qual a relação
de objetividade do documentário e o compromisso com critérios de evidência,
argumentação, seleção, interpretação, etc., são utilizados como ferramenta
fundamental para conceder ao filme, enquanto uma obra de arte, a possibilidade de levantar questões e acontecimentos importantes envolvendo o cotidiano
de conflitos da cidade de Goiânia. A qualidade suburbana da localização do sítio
Sonho Real, afastada do centro da cidade, onde prevalece um pequeno centro
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Figura 2 – Imagem do filme Sonho Real (2005)4
Fonte: Coletivo de Mídia Independente de Goiânia.
industrial e há movimentação afastada do centro da cidade, onde prevalece um
pequeno centro industrial e há movimentação menos intensa de pessoas, contribui para uma publicidade menos adequada ao decorrer dos acontecimentos.
Se para a imprensa seria possível esta cobertura, os cineastas mostram que as
imagens da imprensa, retratadas no filme, não se aproximaram o suficiente do
espaço e das pessoas para levantar informações importantes.
Algo que, por outro lado, diz respeito a uma questão bastante comum às grandes capitais brasileiras, tendo em vista que a grande imprensa
elabora representações dos conflitos sociais de modo bastante conservador.
A tendência se configura pelo efeito de direcionamento ideológico firmado a partir da influência dos grandes financiadores das redes de televisão, que participam
com a vinculação de propagandas. Afinal, são justamente as grandes empresas,
indústrias e corporações de mobilização do capital, as partes mais interessadas
em denunciar as mobilizações sociais que pleiteiam a conquistas de direitos sociais como motins populares, pois entram em conflito com os direitos civis dos
grandes proprietários. A representação fílmica dos conflitos sociais originários
das contradições de interesses de classe, do modo de produção capitalista na cidade, também está sujeita à ocultação de informações que demonstram os abusos
e a violência impetrada pelos grandes proprietários. Algo inerente não apenas à
vida do campo, onde esta violência é ainda mais facilmente acobertada sem que
a maioria da população tome notícia, restando às estatísticas que apresentam os
4 Imagem do filme Sonho Real (2005) na oportunidade em que a polícia se preparava para entrar no
acampamento através da Operação Triunfo.
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números de camponeses mortos em chacinas – quase sempre em função de disputas de terra – o papel de fazer circular os dados com pouca comoção pública.
A CAPTAÇÃO DA TOMADA CINEMATOGRÁFICA QUE REGISTRA A
CIRCUNSTÂNCIA DE MUNDO NO SEU TRANSCORRER
Outro elemento igualmente importante para a representação do conflito
social dos sem-teto na cidade de Goiânia, e que está contemplado no filme Sonho
Real, é a captação da circunstância de mundo que envolve a questão da luta por
moradia no seu transcorrer. A partir deste elemento em particular, podemos observar que uma opção ou mesmo circunstância de realização do documentário
presente na conduta estética de seus realizadores é fundamental para uma captação bastante rica dos eventos reais envolvendo a luta social dos moradores da
ocupação, principalmente no que diz respeito ao exercício da violência policial.
Ele deriva de uma forma particular de produzir a imagem documental para alcançar o que Fernão Ramos (2005) denomina a “cicatriz da tomada”,
“imagem intensa paradigmática” ou captação de uma imagem extraordinária.
O conceito procura definir uma busca comum da tradição documental para atribuir um máximo de evidência à tomada cinematográfica no seu embate com
a circunstância de mundo histórica, circunstância esta que é o foco central do
gênero cinema documentário.
Se analisarmos a conduta estética dedicada ao filme Sonho Real, veremos
que a sua composição resgata recursos de diversas tradições documentárias,
mas duas delas se apresentam com mais evidência.
Em primeiro lugar, o filme está permeado por textos em off, o que indica o fato do seu autor se preocupar em direcionar a interpretação do espectador para as imagens que circundam a montagem, e, através deste e de outros elementos, apresentar uma tese ou argumento sobre a questão levantada.
Algo que os aproxima da forma clássica de produzir um documentário, historicamente encontrada em diretores como Robert Flaherty, no caso do texto em off,
ou Humberto Mauro na questão de haver uma tese, idéia ou valor a ser transmitido por meio do filme.
No entanto, a aproximação mais forte da narrativa, principalmente no
que diz respeito à captação da tomada no seu transcorrer, é com as tradições
pertinentes ao cinema direto e ao cinema verdade, o primeiro emblematicamente referenciado no filme Primárias (1960), de Robert Drew, e o segundo na
obra Crônicas de um verão (1961), de Jean Rouch e Edgar Morin.
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No segundo estilo prevalece uma resolução da polêmica lançada contra
o modelo clássico, quando a posição extremamente ativa do autor e passiva do
público foi criticada para, logo em seguida, ser contestada também uma suposta
intenção de fazer um filme onde a sua representação não acompanhasse uma tendência valorativa ou interpretativa das imagens ou questões abordadas por parte
dos autores. O Cinema Verdade, protagonizado pela figura de Rouch, como última versão desta polêmcia, trará a posibilidade de admitir a intervenção da subjetividade do cineasta no filme e de seu ponto de vista particular ao tempo em que
procura desvendar uma verdade dos acontecimentos pelo documentário, mas já
como uma “verdade do filme”, e não como uma verdade no sentido usual do cinema documentário até ali. A partir daí, o cineasta se preocupará em demonstrar
ao espectador a sua participação nos planos de imagem, aparecendo muitas das
vezes como mais um personagem da história que está interpretando os fatos e
interferindo na busca das informações juntamente com os outros atores sociais,
protagonistas ou coadjuvantes do eixo de interesse central da obra.
Embora em Sonho Real não deixe de haver uma posição firmada, uma
tese declarada e conclusiva sobre os acontecimentos, a participação dos cineastas como personagens da história é um dado bastante referenciado. Logo
no início, quando a segunda sequência do filme traz as filmagens do acampamento em sua vida ordinária, habitual, o cinegrafista conversa com os personagens, com grau relativo de intimidade, e mesmo não aparecendo na câmera,
ele expressa, sem ressentimentos, a sua inserção entre os sem-teto. Em uma
das primeiras cenas, uma senhora diz ao câmera, sorrindo: “‘Tá’ filmando é,
João?” (SONHO REAL, 2005) Em outras entrevistas, os autores do filme fazem
perguntas aos sem-teto, que por sua vez vão respondendo numa conversa de
tom bastante informal. Esta participação surge em outros momentos, como
na já citada abordagem policial contra os voluntários da CMI que registravam
a onda de violência no acampamento.
O desdobramento mais importante desta conduta estética conjugada,
todavia, destaca-se na forma pela qual foram registradas as operações da polícia. Neste momento, podemos observar, integrados, o comportamento participativo do Cinema Verdade com a possibilidade de registrar circunstâncias decisivas do conflito no seu transcorrer, possibilidade esta que recebeu destaque
pela estética do Cinema Direto, a partir da realização de filmagens com mais
liberdade – em função da câmera se tornar ainda mais leve – e com som direto –
que permitiu pela primeira vez a gravação simultânea do áudio de campo.
Tanto na “Operação Inquietação” quanto na “Operação Triunfo” os cinegrafistas estavam presentes no acampamento, do lado de dentro, passando
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pela mesma situação de medo e angústia dos moradores do local, o que de
imediato dá maior dramaticidade às imagens. Na primeira operação, à noite, a escuridão contrasta com as explosões que estouram no microfone da câmera com enorme força, produzindo um audio que reage à força das bombas
de efeito moral, produzidas justamente para gerar esta intimidação auditiva.
Também as imagens, pelo próprio efeito do conflito, são constantemente balançadas, tremidas e agitadas em razão das bombas que são arremeçadas na
direção do próprio cinegrafista, assumindo quase que espontaneamente uma
função rítmica, muito utilizada no cinema para projetar uma participação
subjetiva do espectador em ocasiões de tensão ou surpresa, definida por Marcel Martin (1990), como a “expressão subjetiva do ponto de vista de um personagem em movimento”. Por último, em lapsos de extrema coragem durante a
“Operação Triunfo” – a mais violenta, com 2 mortos –, o cinegrafista se expõe
como alvo para os policiais armados, visando conseguir imagens fortes da entrada da polícia no acampamento, escondendo-se, momentos depois, junto
aos manifestantes numa casa, onde por sua vez chora uma criança que sofre
com os efeitos angustiantes do gás lacrimogêneo.
Segundo Fernão Ramos (2005), a tradição documentária indica através
dos recursos utilizados na produção de filmes reconhecidamente relacionados
ao gênero algumas particularidades que o distinguem da tradição ficcional. A
primeira delas envolve a própria formação da “tomada”, que pode ser entendida
inicialmente como a circunstância de mundo a partir da qual a imagem-câmera
é constituída para o espectador pelo sujeito-da-câmera (sujeito que sustenta a
câmera). Na maioria das imagens documentárias, predomina uma “homogeneidade espacial” entre o campo da imagem e a circunstância de mundo que a circunda, enquanto, na ficção, é marcante a “heterogeneidade espacial” nesta relação, que pode ser exemplificada pelo uso do cenário nos filmes ficcionais. Ou
seja: no primeiro caso o sujeito-da-câmera participa da circunstância de mundo
que está no campo da imagem, enquanto no segundo, não.
Esta predominância da homogeneidade, no caso do documentário, influi diretamente na importância da captação de uma circunstância de mundo
no seu transcorrer para o gênero documentário: “Na tradição documentária,
o peso da circunstância de mundo em seu transcorrer, que cerca a circunstância
da tomada (ou melhor resumindo, o peso da circunstancia da tomada), tem uma
dimensão infinitivamente maior do que no cinema de ficção.” (RAMOS, 2005, p.
161). E apenas numa condição de homogeneidade espacial do sujeito da câmera com a circunstância de mundo, como acontece no documentário, é que este
peso poderia se fazer significativo na apreensão do espectador.
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Inserida neste contexto de homogeneidade espacial, a intensidade da
imagem-câmera é propriamente o momento em que este sujeito que sustenta a câmera, o sujeito-da-câmera, encontra-se presente numa circunstância
de tomada extraordinária, incomum. E é a esta intensidade que corresponde
à “cicatriz da tomada” na imagem. A captação da circunstância de mundo histórica – pertinente à dimensão da realidade objetiva – do uso da força policial,
neste sentido, é revelada com grande ênfase pelo resultado estético do filme.
O cinegrafista e os outros membros da equipe, como fica claro, são personagens
daqueles acontecimentos, e estão sujeitos aos mesmos perigos dos sem-teto,
o que por sua vez é transmitido para imagem-câmera e atinge o espectador, que
termina por se projetar subjetivamente na mesma circunstância. Ao aproveitar
a oportunidade de registrar os eventos e o caráter portátil da câmera, os autores
de Sonho Real passam da situação de atores da história para a de observadores
privilegiados, fato que é materializado numa sucessão de imagens que não só
projetam emoção ao filme, mas, sobretudo, reforçam a relação de objetividade no documentário e reafirmam, a partir de evidências claras, a contraposição
estabelecida contra as informações, até então, veiculadas pela cobertura da imprensa sobre os sem-teto e a sua militância de conquista do direito à moradia.
Para os habitantes de Goiânia, do resto do Brasil ou para a própria imprensa
local, as imagens retratadas no filme são únicas, extraordinárias sob o ponto de
vista do modo como foram realizadas, e ainda pelo fato de não haver, até então,
outras representações com a mesma inserção pragmática.
As imagens de Sonho Real atuam com este efeito representativo e contrapositivo, pois apresentam uma especificidade evidente que se destaca frente ao
perfil retórico da imagem de um programa jornalístico televisivo. A princípio,
embora só no primeiro caso tenha existido um acompanhamento dos acontecimentos em tempo real, tanto a imagem no seu transcorrer, quanto à imagem, que
tradicionalmente é realizada pela imprensa de televisão – quando o repórter irá
se colocar fisicamente no local do acontecimento para falar sobre um fato que no
mais das vezes já se esgotou – se colocam numa condição passível de convencimento do espectador. “Quando cortamos para o repórter ele invariavelmente está
no primeiro plano do quadro enquanto o plano de fundo serve para documentar,
ou provar, sua localização [...]. Nesse caso, a presença física tem uma função retórica.” (NICHOLS, 2005, p.85). No entanto, logo percebemos também o quanto
o plano da imagem televisiva pode servir para o convencimento sobre qualquer
texto proferido pelo repórter, bastando que não destoe muito dos objetos que aparecem no próprio plano. A tomada cinematográfica do documentário que capta
a circunstância de mundo no seu transcorrer, por outro lado, traz na imagem
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o evento sobre o qual se posiciona crítica ou ideologicamente, fazendo da própria
evidência um argumento e uma interpretação dos acontecimentos. A representação de Sonho Real em contraposição à cobertura televisa, por isso, encontra na
circunstância da tomada um aspecto insubstituível.
Como último tipo de refiguração da realidade presente no filme documentário Sonho Real, podemos destacar de modo sucinto e direto, o fato de abarcar, na sua narrativa e argumento, uma face do pensamento cotidiano, ou do
“bom senso”, tendo em vista que se trata de uma posição sociopolítica tomada
a partir de uma vivência e de uma externalização da opinião construída a partir
dela. Neste sentido, o filme se coloca contra a demagogia dos políticos, que fizeram promessas aos sem-teto e não cumpriram; contra a justiça, que decretou o
despejo contra os moradores do acampamento que já haviam investido em suas
moradias; contra o ato violento da polícia militar que efetivou a ação; contra os
próprios proprietários do sítio Sonho Real e, por último, contra a imprensa, que
teria ocultado o massacre resultante das operações policiais. Embora pareça,
inicialmente, ser um elemento que compromete a informação e a representação
da realidade no documentário, a defesa retórica da uma posição política de uma
categoria desfavorecida também quanto à participação nos espaços públicos de
discussão e vinculação de informações constitui, na verdade, uma fissura importante no sistema ideológico de divulgação pública de acontecimentos, envolvendo o cotidiano da cidade.
A subjetividade, mesmo na ciência, não é motivadora direta da impossibilidade de se manter a relação de objetividade entre comunicador e receptor de
informações ou conhecimento. Pelo contrário, para a dialética materialista, por
exemplo, a subjetividade é um dos caminhos para que o indivíduo se aprofunde
na configuração das relações sociais, pois ela é condicionada pela base econômica da sociedade, a intraestrutura, e pela suprerestrutura de conhecimentos
e instituições sociais que se ergue sobre ela para dar fôlego ao desenvolvimento
das forças produtivas. A intimidade reflexiva tem, portanto, uma face coletiva,
a qual pode vir a ser externalizada pelo indivíduo de diversas maneiras, sendo
a arte a forma de conhecimento que por excelência dá total espaço para que ela
se apresente e revele os termos do embate do sujeito com o mundo social e material que o circunda.
No caso de Sonho Real, o documentário como expressão artística à disposição do Coletivo de Mídia Independente de Goiânia, constituiu um meio
pelo qual a arte pode servir a um grupo desprivilegiado economicamente –
os sem-teto – como forma de divulgar idéias e acontecimentos que fizeram
parte de uma passagem importante de suas vidas, um momento de ruptura
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com práticas cotidianas, gerando a possibilidade de ocupar um espaço comunicativo mínimo, mas já eficiente, na conquista do apoio de outros setores da
sociedade, em função de uma causa ignorada pelas instâncias e instituições
majoritárias no seu gerenciamento ideológico, político e econômico. Pôde,
neste sentido, ser o caminho de uma sensibilização dos membros da equipe
com a condição dos sem-teto, expressando no seu resultado um exercício de
aprofundamento da consciência de classe, a partir da problematização das
zcontradições entre capital e trabalho suscitadas pela questão da moradia
numa grande capital brasileira.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os diferentes tipos de refiguração da realidade objetiva, possíveis de
serem encontrados num filme documentário, se apresentam necessariamente
de forma articulada, ou mesmo dissolvida. Num ou noutro elemento específico
pertinente à representação social do filme Sonho Real como um todo, podemos
observar a atuação de elementos distintos que nos remetem consequentemente
a outras formas de refiguração aparentemente relacionadas a momentos diferentes da narrativa fílmica. Se, a este respeito, a relação de objetividade se colocou como um elemento central foi, justamente, porque a partir dela os autores
perceberam a possibilidade de realizar um filme que trabalhasse a questão da
contraposição de representações e tocasse de forma mais direta o espectador,
remetendo-o ainda à mesma sensação de indignação frente ao tipo de cobertura
realizada pela imprensa. Do mesmo modo, o efeito das imagens que registram
a circunstância da invasão policial no acampamento decorre também de um envolvimento estético pertinente ao desenvolvimento de toda a narrativa, seja pela
garantia da evidência proporcionada pela relação de objetividade ou por meio
da identificação do espectador com o pensamento cotidiano assumido pelos autores e integrado à narrativa.
Esta apresentação articulada chama a atenção para o fato de que elementos pertinentes aos três tipos de refiguração – ciência, arte e pensamento
cotidiano – tem origem no contato dos indivíduos com a realidade objetiva e,
consequentemente, no exercício racional de refletir sobre ela, podendo ser encontrados em alguns de seus elementos fundamentais na representação social
do filme documentário. O que, por sua vez, nos remete diretamente à consideração de que os três tipos operam de forma integrada neste gênero, atuando
como meios válidos para viabilizar reflexões sobre a realidade da vida cotidiana
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e denunciar as contradições de classe que emergem nas lutas sociais do mundo
contemporâneo. Por último, o exercício de levantar traços desta realidade objetiva ao âmbito da reflexão humana possibilita ao pensamento cotidiano, como
o âmbito de refiguração socialmente compartilhado, um avanço no processo de
superação e compreensão da vida material, dando à razão uma forma mais desenvolvida na sua apresentação cotidiana.
THE STRUGGLE FOR URBAN HOUSING AND THE ELEMENTS OF DOCUMENTARY
REPRESENTATION IN THE FILM SONHO REAL (2005)
Abstract
This article seeks to understand the social representations in documentary
filmmaking from the determinants for expression and raising issues
involving the life of the city in the aesthetic elements of Sonho Real: uma
história de luta por moradia (2005). Among these issues are the state housing
deficit, the collective struggle of urban spaces for the construction of
affordable housing, the hidden exercise of the police force in suburban
areas and markedly ideological journalistic disclosure of facts involving
the use of police violence. Such issues relate to social conflict which
involved the occupation of private property in May 2001 in the city of
Goiânia, articulated by the movement of the homeless. A common genre
of social conflict in Brazil’s cities. The analysis could highlight three
aspects that resonated decisively on its way to represent the conflict and
offer a fresh look at phenomena of social struggle in the documentary
film profile: a) appreciation of interpersonal standards of evidence and
argument to determine their commitment to objectivity in the documentary,
b) capture film making that cut and records the fact that world - where
stands the struggle for housing - in its elapse, and c) the construction of a
representation that expresses the social conflict in the political perspective
of oppressed social groups by the forces police in the urban world, in this
case, the homeless.
Keywords: documentary filmmaking, representations, social conflicts,
housing, cities.
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Referências
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1984. 1 videocassete, (119 min.). son. col., VHS.
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conceitual. In: RAMOS, F. (Org.). Teoria contemporânea do cinema.São Paulo: Ed.
Senac, 2005. p. 159-226.
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1996.
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Prelúdios, Salvador, v. 4, n.4, p. 99-121 set./mar. 2015
Mariana Bittencourt de Souza1
MEXE O BALAIO: UM OLHAR SOBRE O PAGODE
BAIANO
RESUMO
O presente artigo surge como resultado de um projeto monográfico. Diante do vasto campo de pesquisa foi possível inferir sobre aspectos do cotidiano, ao que toca as perspectivas
de corpo, sexualidade, raça e gênero. Campos estes tão explorados nas Ciências Sociais.
Vale ressaltar o caráter simbólico e valorativo que o pagode enquanto produto do social
traz para a realidade brasileira e baiana. Tomar o pagode enquanto manifestação genuinamente baiana e soteropolitana é coloca-lo diante de um ethos no qual se transportam
valores, costumes, hábitos e crenças que constroem comportamentos novos e solidifica
outros tantos presentes em nossa cultura. Por fim, deve-se notar que o “universo pagodeiro” constitui-se de uma complexidade de temas enriquecedores para os cientistas sociais,
pesquisadores de cultura e profissionais ligadas à temática da corporeidade.
Palavras-chave: Pagode baiano; Corpo; Sexualidade; Ciências Sociais; Cultura.
O BALAIO
Percorrer as ladeiras e ruas na cidade de Salvador é entrar em contato
com um imenso balaio de costumes e hábitos que configuram a realidade cultural e social de uma capital, onde os vendedores de café com seus carrinhos tocam
o ritmo da Bahia! As mulheres travam uma corrida para arrumar seus cabelos,
pintar as unhas, customizar suas roupas e correr para arranjar um transporte
que as leve para mais uma das edições dos “megafest’s” na cidade.
Os homens, por sua vez, equipam seus carros com o que para eles é
o mais sofisticado sistema de som e outros tantos acessórios para ouvir em alto
volume seu ritmo favorito. Nas festas de rua, é possível se contagiar pela multidão de desconhecidos que em poucos minutos dançam de forma espontânea
a mesma coreografia, e de repente estão a cantar um refrão que não se sabe
quem é seu interprete, muito menos seu compositor.
1
Licenciada em Ciências Sociais pela Universidade Federal da Bahia. Especialista em Gestão Educacional
Integrada pela Faculdade Afonso Claudio. Especialista em Arte em Educação pelo Centro de Estudos
Avançados em Pós Graduação e Pesquisa; email: [email protected]
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Nos vemos incorporando novas gírias às nossas conversas; pode-se ainda, se deparar com uma multidão de jovens garotas alucinadas com o novo ícone do momento: “e ele é um negão, todo lindo!” ( como me disse certa vez uma
jovem que continuou a me dizer “que faria loucuras só pra ficar perto dele”);
até em um ambiente cheio de pompas e protocolos, que é o poder legislativo da
cidade, nos deparamos com Leo Kret, vereadora da cidade, oriunda do pagode ,
famosa por ser um travesti e hábil dançarina desse ritmo.
Nos ônibus coletivo logo somos tomados pelo espanto de ver uma turma
de adolescentes voltando do colégio tocando pagode no fundo do “buzú,” onde
estão compartilhando , criando e recriando novas canções. As academias lotam,
nos meses que antecedem o verão e o carnaval, para o ensino do suingue baiano;
as denúncias sociais do cotidiano violento tomam o lugar dos refrãos jocosos;
outros ritmos contemporâneos são chamados à parceria; o jazz se funde com
o popular e cria-se a Orquestra Sinfônica de Pagode;
Em plena festividade carnavalesca cantor se exalta quando vê o racismo se manifestar de forma tão latente; os meninos passam a se preocupar com
o corte de seus cabelos, a linhas que seus músculos irão delinear, depilam seus
corpos e sobrancelhas, etc. Assim, a qualquer transeunte é possível perceber que
o pagode marca a vida cotidiana na cidade de Salvador, fazendo parte do dia
a dia dos que consomem, produzem, reproduzem e até dos que se acham indiferentes a esse ritmo musical.
Em pleno avançar das políticas socioeconômicas do país e a presença
da classe média brasileira podendo se deparar com uma situação social, na qual
os padrões de consumo e renda se alteram, rumo ao desenvolvimento desejado,
pelos grandes capitalistas, encontra-se, o pagode do sul da Bahia, versificando
a ostentação e a luxúria, que de pecado capital transforma-se em estilo de vida
e comportamento da juventude.
PARA ALÉM DO RITMO
Diante desse quadro, é possível encontrar a razão, ou as várias, para que
um ator no social torne o pagode para além de ritmo estético. Antes que o tornem o repertorio da construção de um papel assumido em suas vidas cotidianas, demonstrando a força expressiva e simpática que nasce da transmutação,
do encontro e do desencontro de identidades e territórios na capital da Bahia.
Para tanto, a proposta aqui apresentada é a de investigar a juventude na cidade de Salvador que se apresenta como construtora de um cenário sociocultural,
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onde parece predominar uma conduta específica, constituída de uma determinada forma de representação e de identidade no âmbito social e a construção de uma performatividade, do ponto de vista estético e cultural, na vivência
do pagode baiano.
Para uma melhor compreensão do universo social que está sendo investigado na pesquisa, se faz necessário entender como está sendo empregado
o uso de alguns conceitos centrais. Assim, o esclarecimento da problemática vai
ser conduzido por uma bibliografia sobre a produção musical baiana, explorando as origens do gênero musical em evidência, até as transformações históricas
e sociais pela qual passou, além dos reflexos dessa transitoriedade na agencia
e na construção de sujeitos que se enquadram enquanto publico consumidor
desse contexto de produção musical e social na cidade de Salvador e, consequentemente, a observação e a exploração direta dos bailes, reuniões em praças,
espaços de diversão dos mais variados que movimenta esse publico.
Posto que a performance assumida pelo ator constitui em uma serie
de adaptações a heranças corporais, de modos de percepção e das tendências
de ação vinculadas a essas heranças, às logicas de produção e o consumo de informação.( RODRIGUES, 2006)
O que interessa nesse projeto de pesquisa é encontrar, através dos próprios atores, quais as motivações, as maneiras, os comportamentos que fazem
com que esses indivíduos assumam uma representação diante de outros, que
fazem com que o pagode baiano não seja apenas um estilo musical nas suas
vidas. Entendendo que estamos nos referindo ao pagode:
[...] que vicejou na mídia baiana a partir do final dos anos 80, e é sucessor próximo do samba-de-roda, por sua vez herdeira da chula, inclusive
em formas que se aproximam do partido-alto. Tem forte apelo sensual,
colocando no centro quase sempre o jovem negro baiano, corpulento
e conquistador. Consolidou-se na radio e na televisão a partir do grupo
Gerasamba [...] Todos os seus ídolos são jovens negros atléticos [...] que
se consagram mediante desenvoltura em conjugar os desempenhos como
vocalista, dançarino e símbolo sexual. (MOURA, 2010, p. 7)
Diante da referência acima, podemos identificar que esse ritmo se apresenta como herdeiro de quadros estéticos anteriores que encontramos em ambientes bem diversificados da realidade, em tempos atuais. Desta maneira, visualizamos a pertinência da analise da transitoriedade estética e cultural desse
gênero musical que se apresenta no balaio das relações sociais, desde a periferia
aos bairros nobres da cidade de Salvador na Bahia.
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Como também, é importante salientar o universo de signos que alimentam o imaginário simbólico da população em torno desse ritmo musical. Verificando com isso as visões que se tem em torno do pagode em tempos atuais. Será
mesmo que sua origem está na chula do recôncavo? Essa imagem relacionada
à população negra masculina pode ser reificada?
Assim, interessa-nos saber como as pagodeiras e os pagodeiros, que
consomem esse ritmo musical, constroem e vêm construindo um repertório de
signos e símbolos, a exemplo, observa-se que há uma maneira específica de se
vestir (shorts jeans tipo biquíni, tops de malha nas meninas; blusas de gola v,
short estilo surfista nos meninos), onde encontramos o uso de determinadas
marcas de roupa e sapatos (mulheres de salto alto, calça jeans com etiqueta de
griffs, como ELLUS; tênis de marcas como NIKE).
Há uma preferência por marcas e cores de carros (majoritariamente de
modelos como Celta, Gol, de cores vermelhas e brancas, todos com vidros fumê);
há uma forma específica de agir no momento da paquera (forma mais sensualizada de representação perante o outro) etc.,
Portanto, creio que entender como esse universo se constrói é de relevância no estudo das transformações socioculturais, operadas na capital baiana. Para resolver as questões, o estudo irá observar a juventude (com uma faixa
etária entre 18 e 25 anos) que consome a música e os signos sociais dela surgidos
e que se reúnem em praças públicas na cidade de salvador (como por exemplo
o bairro do Tororó) para trocarem experiências das mais diversas possíveis, no
processo de aquisição do pagode. A escolha da juventude se dá por existir nela
uma expressão mais significativa do consumo deste estilo musical. Não significando dizer que outro estudo não possa vir a ser feito envolvendo sujeitos em
outra faixa etária.
Dentro desse horizonte, deve-se buscar qual a origem do pagode no ambiente urbano. A maioria das pesquisas oferecem o pagode baiano como sendo
oriundo de ritmos como a chula do Recôncavo, sendo esta uma manifestação da
cultura de território mais ruralizado. Em contrapartida, encontramos na capital baiana um ritmo musical pouco citado nas pesquisas acadêmicas, mas que
tem um espaço de grande importância na ressignificação da identidade negra
na cidade de Salvador: o samba junino, que por ser urbano, está mais próximo
da origem do pagode baiano reconhecido por nós, a partir da década de 1990.
Inclusive a semelhança está marcada pelo caráter jocoso que impregna e marca
as letras do pagode baiano.
Julgo a relação entre samba junino e pagode baiano importante, por
apresentar aspectos territoriais e de construção estética que nos fazem com-
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preender a realidade vivida pela sociedade baiana. Essa relação demonstra
a importância dos bairros na construção da representação dos indivíduos nesse
contexto. A reunião nas praças para festejar, paquerar, fazer música, criando
novos signos, novas linguagens, novas danças é de fundamental importância no entendimento da performance do ator social nesse contexto. A malícia
é marca dos grupos de pagode baiano, traço este presente desde os primeiros
gêneros populares urbanos. “Espetacularizando as tradições baianas”. (NASCIMENTO, 2008) Nos anos 1980, inicia-se a construção de um quadro social onde
o mercado avança na busca de ampliação dos seus consumidores e esses gêneros musicais mais populares ganham mais força diante dos avanços de consumo e avanços tecnológicos.
É interessante notar que por mais próximo que o pagode esteja do universo de outros ritmos genuinamente negros, ele se reconfigura, se (re)territorializa, e se encaixa no universo branco e de novas classes sociais que antes
o rejeitavam/discriminavam. Caso muito parecido com o que nos lembra Goli
Guerreiro com os blocos carnavalescos na cidade de Salvador. Pode-se dizer que
chegam até a polarizar a cidade em territórios de brancos e de negros, transformando-a em um verdadeiro “quadro em preto e branco”. Cabe então observar
o papel que o processo midiático tomou na configuração do mundo urbano contemporâneo, na forma lúdica e de entretenimento, na cidade de Salvador, e de
como essa imagem da festa e da alegria são criadas ou fortalecidas nos turistas.
“Carnavalizar seu cotidiano” passou a ser o fundamento construtor de espaços
de lazer que tem na música seu principal catalizador.
CONSTRUINDO IDENTIDADES
Diante desse complexo leque cultural que é a sociedade soteropolitana,
o presente trabalho propõe investigar a relação existente entre masculinidade,
corpo e dança no pagode baiano. Tendo em vista, inclusive, as discussões atuais
que as ciências sociais possibilitam no que toca os referenciais de sexualidade.
Assim, a pergunta de partida é como uma performatividade do que é ser
masculino se forma e se fomenta no pagode baiano? Propondo-se, portanto, em
entender como as identidades sexuais e de gênero se fundam e se fomentam em
torno do horizonte social do pagode baiano.
É possível notar o uso do corpo através da dança, como uma forma de
comunicação. Dando origem a uma identidade de masculino, que é importante
destacar, com isso uma identidade de gênero e de sexualidade. Como se pode
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perceber o desvio ao pensar numa perspectiva heteronormativa de masculino.
Existe empoderamento diante das identidades sexuais e de gênero em uma sociedade patriarcal?
Recorrendo às possibilidades dadas pelo campo de pesquisa, pode-se
encontrar o exemplo de uma manifestação que se apresenta de modo ímpar
no presente contexto: o samba do papelão. Este é um evento que ocorria no
bairro do Garcia, durante muitos anos, aos domingos. A marca do pagode está
impressa no bairro onde vários outros eventos congêneres formam aquele calendário festivo semanal.
Aos domingos, o samba do papelão lota as ruas do Garcia em busca da
diversão e colocar em praça pública, esferas de uma relação permeadas por uma
performance extremamente sexualizada. O público é constituído principalmente de homens que naquele espaço dançam, se comunicam, paqueram, e executam seus instrumentos e canções. Entretanto, o que vem chamar a atenção é a
presença peculiar de uma figura. Eleita a Rainha do Samba do Papelão tem-se:
Riana – um menino travestido de mulher.
Diante de Riana, se constrói uma relação distinta. Riana, naqueles espaços, predominantemente masculino e patriarcal, a figura transposta em gênero
feminino é tida, para aquele universo, como um símbolo de sexualidade e de
desejo masculino. Tem-se um travesti como sendo a rainha do pagode. Esse é o
desvio que eu considero relevante para travar uma discussão contundente.
Compreender como esse corpo transfigurado em outro gênero é capitalizado no contexto do pagode? Pode-se pensar em autonomia, emancipação,
empoderamento numa dimensão tão marginalizada? Como o masculino se
constrói, reconstrói e se destrói nestes espaços? A relação de raça é relevante
nesse contexto? A relação sexo e corpo é um par de importante papel nessa realidade social? A ideia de feminino construída está a serviço de quem?
O IMAGINÁRIO SOCIAL
A pertinência que tem o tema na realidade soteropolitana através do pagode, e por existirem no imaginário (inclusive acadêmico) vários estereótipos
e estigmas sobre aqueles que consomem essa forma artística. Observamos que
os consumidores desse ritmo são tratados como alienados, machistas e pobres.
As mulheres são vistas como “piriguetes”, pelo comportamento que assumem
diante da sua sexualidade. Portanto, a importância desse estudo está em inves-
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tigar a construção da performance da juventude no pagode e a derrubada de
alguns preconceitos para com os consumidores desse gênero musical.
As encenações, gestos e manifestações dos mais diferentes tipos que pipocam na cidade, para quem consome e incorpora o papel social do pagodeiro,
fazem com que essa pesquisa se difira das demais. Por apresentar-se em uma
conjuntura onde o pagode se apresenta como fenômeno de massa, de uma década nova da musica baiana, que foi marcada por outras influencias musicais
em outros momentos, como o samba reggae e o axé music. O lugar ocupado pelo
pagode ultrapassa o estilo. Assim, o pagode “não é um gênero ou estilo musical
[...] é um repertório formado em torno da ideia de um padrão de sociabilidade
baiana, exitoso, prazeroso e feliz, fortemente ancorado nos eixos da familiaridade, religiosidade e sensualidade”. (MOURA, 2010, p. 6).
A problematização, apresentada através deste projeto, dá margem para
a elaboração de pesquisas com outros focos de análise presentes até o momento,
ligadas ao empoderamento LGBTT, como é expresso no caso Leo Kret. É importante a investigação de modalidades rítmicas e estéticas que se mostram transitando por territórios em definição na época contemporânea, como o mercado
de bens simbólicos, não somente o cultural projeta esse ritmo em suas diversas
facetas e a relação do uso de psicotrópicos entre os adeptos desse estilo musical.
Enfim, uma profundidade de questões poderiam ser admitidas para a elaboração de questões posteriores, podendo ser temática de diversos trabalhos, porém,
a delimitação ao que diz respeito a performance, representação e identidade é
o marco central da análise ao qual esse projeto tenta se validar.
Esse projeto se justifica, portanto, pela relevância de apresentar um
tema oriundo do cotidiano da realidade de centros urbanos que carregam consigo um imenso balaio de manifestações e condutas culturais, que permitem, ao
observador atento, novas análises sobre a transformação desse espaço urbano.
Apesar da produção acadêmica sobre o tema da música baiana ser explorado
em estudo desde a década de 1990 (GODI, 1997; GOLI, 1997; NOGUEIRA, 2008;
CASTRO, 2009), o pagode ainda é uma temática que concentra poucos estudos.
(LIMA, 2002; CASTRO, 2006; NASCIMENTO, 2008; RODRIGUES,2008)
Este tema é ainda uma abordagem pouco explorada nas ciências sociais,
havendo uma série de discussões pertencentes ao senso comum ordinário e acadêmico, onde se estabelece vários tipos de questionamentos e afirmações relativas a vários aspectos como: sexualidade, gênero, drogas, etc., porém, a produção
ainda requer uma maior demanda para responder a estas questões. Interessante ao leitor é neste momento se permitir a uma travessia para a exploração do
universo dos costumes, dos signos e das manifestações de rua, que o pagode
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baiano origina. E o que deve ser explorado aqui é o pagode sendo abordado através da ótica da identidade, tomando os atores como os principais reveladores
dessa realidade.
MASCULINIDADE, CORPO E DANÇA
Entender como masculinidade, corpo e dança no pagode baiano estão relacionados, partirá de uma perspectiva que tem o referencial teórico onde sujeito,
identidade, agência e identificação são categorias analíticas de suma importância.
Desta forma, observar como os homens que consomem o ritmo e vivenciam o pagode formam, portanto, identidades sociais, que são efeitos da forma
como o conhecimento é organizado e que tal produção social de identidades é
“naturalizada” nos saberes dominantes. A sexualidade normalizada por meio
da delimitação de suas formas mais aceitáveis e perversas (MISKOLCI, 2009)
constroem gêneros específicos na realidade cultural baiana. Entende-se por gênero, neste trabalho, o olhar que homens e mulheres depositam em torno de si
próprios, definindo, portanto, condutas de corpo e de sexualidade.
Desta forma, é possível o entendimento que o corpo colocado em questão se encontra para além da relação biológica, mas se coloca em evidência por
uma relação de ordem antropológica. Assim, o corpo é modelado ao longo da
historia, e o que se deseja é uma compreensão da autonomia do corpo, como
também o entendimento de percepções e práticas sexuais. O corpo é pertencente ao individuo, e aqui se trata do pagodeiro, onde a modernidade chega a
este, de forma disciplinadora, com uma cultura corporal, sob uma ética puritana
aliada ao consumo de massa, permeando o horizonte cultural contemporâneo.
Assim, o homem redescobre o seu corpo e a sua sexualidade nas três últimas décadas. Mas observamos, que ao longo da historia, as transformações do
sentido de corpo. A exemplo da concepção platônica de corpo nos deparamos
com a dualidade corpo e mente, “ dualismos psicofísico”, a dupla realidade da
consciência separada do corpo. Onde o corpo é também ocasião de corrupção
e decadência moral, e se a alma superior não souber controlar as paixões e os
desejos, seremos incapazes de comportamento moral adequado.
No ascetismo medieval, o corpo passa a ser sinal de pecado e degradação.
Com o cristianismo, o termo ascetismo passa a significar o controle dos desejos
pela renúncia dos prazeres do corpo, o que podia ser feito pela mortificação, por
meio de jejum, abstinência e flagelos. Por exemplo, chicoteando o próprio corpo.
Ao examinar a relação corpo-alma, Agostinho afirma que eles constituem uma unidade, embora a alma seja imortal e o corpo, a sua dimensão ter-
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rena e mortal. Pelo livre arbítrio e auxiliado pela graça divina, o ser humano
consegue evitar o mal, porque a alma pode governar o corpo.
No Renascimento e na Idade Moderna presencia- se a dessacralização
do corpo. Passa a ser objeto das ciências, e a filosofia cartesiana servirá como
contribuição para uma abordagem do corpo, em uma concepção nova. Assume-se o corpo como uma pura exterioridade, uma substância extensa, material.
Embora ainda se mantenha o dualismo platônico, apresenta a diferença de se
tratar de um corpo-objeto, associado à ideia mecanicista do ser humano-máquina. Submetido ás leis naturais.
A fenomenologia traz consigo uma noção de corpo que considero inovadora e permitirá uma divagação mais profunda na pesquisa a que me proponho.
A superação da dicotomia corpo-mente é trazida à tona pela ideia de intencionalidade, por descobrirmos nesse polo relações de reciprocidade. Se o corpo
não é coisa nem obstáculo, mas integra a totalidade do ser humano, meu corpo
não é alguma coisa que eu tenho: eu sou meu corpo. Ao estabelecer o contato com
outra pessoa, me revelo pelos gestos, atitudes, mímicas, olhar. Enfim, pelas manifestações corporais. O corpo é o primeiro momento da experiência humana.
Para mim, a visão trazida pela fenomenologia, de observar o corpo enquanto um meio de interação social, onde uma formação da existência do corpo se dá pela relação com o outro e dos significados que são construídos, é de
fundamental importância no estudo da dança no pagode baiano e em toda a
construção de sexualidade, masculinidade, e, por fim, do corpo e dos seus significados dentro desse grupo social.
Há uma integração corpo/consciência. A sexualidade também não deve
ser vista como atividade puramente biológica, separada da pessoa integral. Na
verdade, sempre houve a tendência em considerar o sexo separado da totalidade da existência, o que é ilustrado pelas posições opostas do puritanismo e do
libertinismo. A sexualidade humana é, na verdade, erotismo, e, sob esse aspecto,
constitui parte integrante do ser total, e não apenas o resultado exclusivo do
funcionamento glandular. É expressão do ser que deseja, escolhe, ama, e que se
comunica com o mundo e com o outro, numa linguagem mais humana, à medida que consegue se expressar de maneira pessoal e única.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
É perfeitamente possível investigar de que maneira as instâncias de poder atuam sobre ele para criar formas de agir e de pensar. Ou seja, vamos exami-
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nar como a imposição de comportamentos passa pela domesticação do corpo. A
obra de Foucault é um bom exemplo de como há um rigor na normalização dos
gestos e dos padrões de comportamento. O resultado desse processo é a interiorização do olhar de quem vigia.
A corpolatria é uma nova forma de se interpretar o corpo. O esforço de
liberação das amarras do corpo redunda em sua idolatria, mudança radical que
não passa por sua recuperação equilibrada e pelo amadurecimento do sujeito.
Segundo Gilles Lipovetsky, o narcisismo realiza a missão de normalização do
corpo: o interesse febril que temos pelo corpo não é de modo nenhum espontâneo e livre, obedece a imperativos sociais, como a linha, a forma, o orgasmo,
etc. A normalização pós moderna apresenta-se sempre como o único meio de
o indivíduo ser realmente ele próprio, jovem, esbelto, dinâmico.
Pode-se concluir dizendo que “meu corpo sou eu mesmo me expressando”. O meu corpo nunca nos é dado como mera anatomia nem como objeto
de culto: é a expressão de valores sexuais, amorosos, estéticos, éticos, ligados
bem de perto às características da civilização a qual pertencemos. Convém saber
discernir em que medida essas características nos cerceiam e quanto podemos
subvertê-las, segundo princípios a serviço da liberdade e da melhor coexistência
humana. (ARANHA, 2009, p. 33)
Percebemos, portanto, através do pagode, como o corpo masculino é redimensionado, onde a plasticidade forma uma identidade, posto que, o ser humano
é construído ao longo da existência. Onde o corpo se apresenta como consumo
pertinente ao seu momento histórico e à sua posição social. O que dá ao corpo,
nesse contexto, um caráter provisório, acompanhando o desenvolvimento desta
manifestação cultural, que é a dança do pagode baiano. Esta, traz à luz do dia comportamentos já existentes, que eram vividos com estigmas, proibidos, ocultos.
Os indivíduos imitam atos, comportamentos e corpos que obtiveram
êxito e que tem prestigio em sua cultura. É o corpo que deve ser exibido, moldado, manipulado, trabalhando, costurado, enfeitado, escolhido, construído,
produzido, imitado. É o corpo que entra e sai da moda, desse jeito no pagode:
é um corpo popular e manifesta na diversidade da cultura brasileira, nos
regionalismos, nas varias expressões que nos envolvem, e como não poderia ser diferente, na gestualidade marcada por regras, valores, moralidade
e sentido ético-estético. (LARA, 2004, p. 61)
O corpo inscreve suas marcas observáveis, e, em todas as atividades humanas tomam forma e despertam a suas simbologias. Quando pensamos no
“tabu do corpo”, as normatizações sociais, destacando formas de enquadrá-los
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em diferentes culturas, através de sistemas de classificação –, as regras são entendidas como uma espécie de código que exercem um poder social. No caso
do pagode, há uma quebra com essa regra, a vida ética do individuo é posta em
cheque, como podemos lembrar o caso da “professorinha”.
Resta, enfim, saber se os pagodeiros se apresentam enquanto um desvio
ou um padrão, no bojo dessa discussão que une sexualidade e cultura baiana.
Desconstruindo e reconstruindo olhares, diante dos conhecimentos ofertados
pelo campo de pesquisa que se abre diante das práticas sociais, onde a sexualização dos corpos, dos desejos e dos atos é um dispositivo de poder, onde encontramos a regulação e controle. E os olhares que são orientados diante do pagode
se dão justamente nesse sentido de regular os atores sociais e de controlá-los,
fazendo-nos crer que ainda somos os vitorianos. (FOCAULT, 1979)
Além disso, a baianidade, no contexto do pagode, pode ser entendida
como “explicação da construção de práticas e comportamentos humanos espetaculares organizados. Através de experimentos sociais pode chegar a conclusões de que o espaço geográfico e social contribui para a determinação da comunicação sensorial entre seus membros”. (MATRIZES ESTÉTICAS..., [201-?])
2
Sendo assim, o comportamento que se realiza em torno do pagode é ilustrativo
da afirmação acima. Permitindo que a cidade de Salvador se configure num entreposto de tradições, novas tecnologias e economia de mercado. Uma verdadeira encruzilhada de artes, ofícios, etnias, religiões, línguas e ideias. Desta forma,
a baianidade seria uma forma claramente mestiça de associação entre novas
tecnologias, tradição e comércio, onde encontramos o pagode enquanto produto desse processo cultural.
Por fim, resta observar e testificar que novas formas de vivenciar lazer, para a juventude negro-mestiça em Salvador, se constroem e reconstroem
a cada dia. Não só as opções em termo de música tem aumentado como a oferta de símbolos ligados a essa música é mais ampla. Havendo uma recriação
de identidade, recriação de sociabilidade, como também, a popularização de
tradições dentro da modernidade (universo do samba junino /neopagode) e a
presença do lúdico no ambiente do pagode. Além disso, há a legitimação de diversos paradigmas que as Ciências Sociais tentam quebrar ou superar, como
é o caso do machismo presente e reificado nas letras e nas atitudes de alguns
grupos baianos, fato que não pode se deixar escapar aos olhos do bom observador.
2
MATRIZES ESTÉTICAS: o espetáculo da baianidade. [S. l.: s. n.]. [201-?]. Disponível em: http> teatro.ufba.
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Toda essa série de “capital subcultural” é o que representa esse ritmo
enquanto uma maneira de vida e de identidade comportamental. Dando vazão
a um deslocamento entre o local e o global, onde os símbolos e mercadorias associadas à cultura juvenil globalizada hipnotizam as multidões pesquisadas.
Há algo de efêmero, duradouro e tradicional. Destaca-se, portanto, a relevância
que tem o pagode nas análises da sociedade baiana, as reflexões sobre identidade (baianidade), as interpretações simbólicas do social, as tarefas políticas
(étnica e de gênero).
THE BALAIO MOVES: A LOOK ON BAIANO PAGODE
ABSTRACT
This article is the result of a monographic project. Given the vast field of research was
possible to infer about aspects of daily life to respect the perspectives of the body, sexuality, race and gender. Exploited in fields such as social sciences. Please note the symbolic and evaluative character that the pagoda as a product of social brings Brazilian and
Bahian reality. Take the pagoda while genuinely Bahia and Salvador ‘and puts it on the
manifestation of an ethos in which carries the values​​, customs, habits and beliefs that
build new behaviors and solidifies many others present in our culture. Finally, it should
be noted that the “universe pagodeiro” consists of a complexity of enriching themes for
social professionals linked to the theme of corporeality scientists, researchers and culture.
Keywords: Bahia Pagoda; Body; Sexuality; Social Sciences; Culture.
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