Mais velozes Mais furiosos
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Mais velozes Mais furiosos
Revista dos Transportes Públicos - ANTP - Ano 32 - 2010 - 1º quadrimestre Segurança de trânsito A indústria cultural e a (in) segurança no trânsito AN P ao mesmo tempo estão cada vez mais manobráveis pelos poderes econômicos e seus aparelhos de influência e dominação. Paulo Ricardo dos Santos Meira Técnico superior em Trânsito do Detran/RS, professor do UniRitter e doutorando em Administração - Marketing - pelo PPGA/UFRGS. E-mail: [email protected] Cristiane Pizzutti dos Santos, Dra. Doutora em Administração – Marketing - pelo PPGA/ UFRGS. Professora do PPGA/UFRGS. E-mail: [email protected] Mas como a invocação de seu próprio caráter comercial [da “indústria cultural”], de sua profissão de uma verdade atenuada, há muito se tornou uma evasiva com a qual ela tenta se furtar à responsabilidade pela mentira que difunde [...] (Adorno; Horkheimer, 1944, p. 16).1 Na citação acima, de mais de 60 anos atrás, Adorno e Horkheimer (1985) seguem atualíssimos em seu olhar crítico, próprio da Escola de Frankfurt que representam. Para os autores, a “indústria cultural” denota a regressão do esclarecimento à ideologia, encontrando no cinema e no rádio sua maior expressão. Devemos, neste texto, por conseguinte, abordar o que é o “esclarecimento”. Pode-se dizer que o esclarecimento é o paralelo alemão do Iluminismo, ou ilustração, ou ainda época das luzes. Em nota na edição de 1985, o tradutor Guido Antonio de Almeida explica que “esclarecimento” é a melhor tradução para o alemão “Aufklãrung”, ou o processo pelo qual um indivíduo “vence as trevas da ignorância e do preconceito em questões de ordem prática” (1985, p. 7). É um processo pelo qual o ser humano se liberta da visão mitológica, das forças míticas da natureza. Um “desencantamento do mundo”, nas palavras de Adorno e Horkheimer (1985, p. 19). Trata-se de um aprofundamento crítico “que leva à desilusão de seu otimismo (idem, p. 8). Em A dialética do esclarecimento, Adorno e Horkheimer (1985) defendem que, no processo civilizatório, à medida em que o ser humano, pelo progresso técnico da ciência, tem maior controle sobre a natureza para seu benefício, este acaba revertendo-se no seu contrário – barbárie – em virtude da unilateralidade com que foi conduzido desde o início da humanidade (Duarte, 2002). Ao mesmo tempo em que os indivíduos são cada vez mais providos em suas necessidades de produtos, 1. Constante na edição de 1985 de Jorge Zahar [ p. 16]. 97 O animismo havia dotado a coisa de uma alma, o industrialismo coisifica as almas (Adorno; Horkheimer, 1985, p. 40), um processo não apenas de coisificação, mas igualmente de alienação (Schweppenhäuser, 2000). E qual a relação disso com a (in)segurança do trânsito? Como na época em que os pensadores alemães escreveram sua “dialética do esclarecimento”, hoje também estamos em guerra. Contudo, não é uma guerra em um distante país do Oriente Médio ou qualquer lugar que nos atinja somente pela televisão, transformada em espetáculo por uma cuidadosa edição de cenas por parte da CNN ou demais noticiários. É uma guerra cujas baionetas nos espetam já na calçada em frente à porta de nossos lares. O trânsito é a 9ª causa de mortes no planeta. São 1.300.000 vidas perdidas por ano, no mundo todo. É como se tivesse havido cinco tsunamis, ou cinco tragédias como o terremoto no Haiti, sem ser, contudo, objeto de comoção mundial pelas mortes, pois as perdas humanas no trânsito já estão banalizadas, já não são espetáculo. Seguindo a linha de Adorno e Horkheimer, poderíamos pensar que o acidente que realmente choca é o traduzido para impressionantes cenas no cinema, em que a estética da violência nos apela para o “querer ver”, e não evitar. O acidente do diaa-dia, que sai nos jornais, é por vezes uma reificação da vida humana que foi ceifada, no caso do Brasil, em 50 mil vidas interrompidas a cada ano. Os especialistas em segurança no trânsito são unânimes em afirmar que não há uma única maneira, isolada, de se conquistar o estado de segurança que merecemos e desejamos. Os pilares mais conhecidos são os chamados “3 Es”: esforço legal (legislação e fiscalização), engenharia viária (boas condições técnicas de trafegabilidade) e, um dos mais defendidos, educação para o trânsito (Meira, 2006). Pode-se aqui traçar um paralelo com os quatro fundamentos da educação constantes do chamado Relatório Jacques Delors, que resultou dos trabalhos desenvolvidos pela Comissão Internacional sobre a Educação para o século XXI, da Unesco, com a qual colaboraram educadores do mundo inteiro. Segundo Delors (1999), para uma educação integral, deve-se aprender a conhecer, aprender a fazer, aprender a conviver e aprender a ser. Ora, os condutores brasileiros têm o conhecimento técnico de como dirigir, no aspecto de perícia (conhecem os sinais, estão familiarizados com os comandos). Sabem, também, fazê-lo com habilidade, e o demonstram nos exames práticos de direção. O que, ocorre, então? O problema parece estar na terceira dimensão, a do conviver. Sabemos dirigir, mas não sabemos conviver. Voltando para Adorno e Horkheimer, a “indústria cultural” traz uma falsa identidade do universal e do particular. Uma falsa aparência de que o indivíduo e o todo se encontram reconciliados, mas na verdade um poderoso instrumento para gerar lucros e exercer controle social 98 A indústria cultural e a (in)segurança no trânsito (Duarte, 2002). Mesmo a formação psicológica sólida, propiciada pelo trágico da verdadeira arte e cultura, pelas fortes personalidades dos heróis, esvai-se na indústria cultural, em que há uma fragilização da personalidade do indivíduo, uma dimensão sadomasoquista, em que nos filmes a plateia acostuma-se a ver que os mais fortes batem nos mais fracos, de forma que os espectadores passam a ver como normais as violências que eles mesmos sofrem na vida real. “Trânsito” não são apenas veículos em movimento. Trânsito é um espaço de convivência humana e supostamente democrático, no qual nossas melhores – e piores – características são reveladas e ressaltadas. Supostamente democrático, apenas, pois é comum motoristas de carros mais luxuosos ou maiores – como utilitários esportivos – tratarem de forma agressiva motoristas de carros menores ou mais simples, em uma reprodução da violência do mais forte sobre o mais fraco vista no cotidiano midiático, como encontrado em Duarte (2002, p. 42). Além dessa guerra pública cujo palco são as vias, há outra menos aparente, cujo campo de batalha se dá na mídia: enquanto as autoridades públicas e as ONGs contam com recursos escassos para veicular suas campanhas de segurança no trânsito, a indústria automobilística conta com polpudas verbas de publicidade, cuja tônica é, via de regra, mostrar, de forma muito competente, o quão velozes podem ser os belos e pujantes automóveis a cada ano lançados (Meira, 2006). Isso não é apenas no Brasil. Um estudo patrocinado pelo Insurance Bureau of Canada buscou identificar a ocorrência e tipos de direção insegura mostrados em comerciais de carro na TV nos EUA e Canadá: 349 comerciais de TV foram revisados entre 1998 e 2002, 250 dos quais contendo uma sequência de direção maior que 3 segundos. Dos 250 comerciais, mais de 45% continham pelo menos uma sequência de direção insegura. A indústria automobilística gasta US$ 6.5 bilhões nos EUA a cada ano, e para seus comerciais serem notados estão cada vez mais visuais e orientados à ação em suas cenas. Enquanto isso, especialistas sabem que direção agressiva e velocidade são as maiores causas básicas de “acidentes”, ferimentos e mortes (Hoffmann; Cruz; Alchieri, 2003). Como coloca Duarte (2002): Vale a pena mencionar [...] O termo “fetichismo” relativo às mercadorias em geral, como se sabe foi cunhado por Marx em O capital, referindo-se ao fato de os produtos comercializados esconderem totalmente a relação social que lhes deu origem. Horkheimer e Adorno afirmam que, no âmbito da indústria cultural, os objetos estéticos estão sujeitos a uma inversão da “finalidade sem fim”, que Kant atribuíra às coisas belas do século XVIII. O “valor de uso” – essencialmente problemático nos bens culturais – é absorvido pelo valor de troca: em vez de prazer estético, o que se busca é conseguir prestígio, e não propriamente ter uma experiência do objeto (p. 45). 99 Revista dos Transportes Públicos - ANTP - Ano 32 - 2010 - 1º quadrimestre O ator Jim Cazaviel, antes de interpretar o evangelho segundo Mel Gibson, havia emprestado suas expressivas feições para um complexo personagem chamado Rennie Cray, na obra Velozes e mortais (Meira, 2004). No filme, Cray é um ex-médico atormentado pela perda da esposa, atropelada por um assassino serial cujo estilo de matar é na base do atropelamento-e-fuga. Para se vingar do assassino, Cray segue a lei do Talião, saindo em seu encalço em automóvel preparado especialmente para um desempenho ao estilo stock-car. Os dois bólidos mortais começam então a se destruir nos oitenta minutos de duração do filme, recheados por cenas de pseudo-reflexão sobre a temática de violência no trânsito, desde um grupo de aconselhamento para vítimas de acidentes até cenas detalhadas do assassino que é metade homem, metade prótese, e que fora de seu veículo anda apenas em uma cadeira de rodas mecânica, por ser ele também vítima de abalroamento. O filme, cujo título original é Highwaymen, perde uma bela oportunidade de discussão da violência no trânsito, para cair em um duelo na linha do Encurralado de Spielberg, mas inverossímil e exagerado. A obra, em determinado momento, até cita textualmente as estatísticas de acidentalidade do trânsito nos Estados Unidos, e nisso tem seu mérito, mas é o tipo de autocrítica superficial que o sistema faz, como lembram Adorno e Horkheimer (1985), pois o que ocorre é um desserviço à segurança pública que o filme pretende criticar, uma vez que a estética da violência demonstrada na película leva os espectadores a reproduzirem, nas ruas, a velocidade, manobras perigosas e a miríade de infrações que o próprio pretenso “mocinho” do filme comete o tempo todo. Ora, um protagonista é sempre uma proposição de valor ao espectador. É alguém a ser imitado, invejado, espelhado. Se sua postura é inapropriada, o filme pode ser socialmente perigoso. Por sua vez, outra produção da indústria cultural, de maior repercussão, retoma o fetichismo ao automóvel e à velocidade: Velozes e furiosos, que teve oportunamente duas continuações (Meira, 2003). As novas tribos motorizadas são influência direta desse blockbuster norte-americano (filme de grande sucesso comercial). Na obra do diretor John Singleton, atores cativantes como Paul Walker, Vin Diesel e Eva Mendes são ases do street racing, ou seja, rachas organizados clandestinamente nas vias públicas e em estado de alerta permanente contra as autoridades de trânsito, e via de regra equipados com motores propulsionados por “noz”. São modelos como Toyota Supra, Nissan Skyline, Honda S2000, Mazda RX7, entre outros da mesma estirpe, que disputam entre si o título de mais veloz ou, em última instância, mais “macho”. Pois quando a vida imita a arte dá-se conta de que na vida real não há dublês, guard-rail ou efeitos de computação gráfica, e então pode ser tarde demais. Na Califórnia, EUA, por exemplo, um homem morreu e outros dois ficaram gravemente feridos, depois de um Nissan, viajando a 150 km/h, ter atingido outro carro, dirigido por um idoso que morreu 100 A indústria cultural e a (in)segurança no trânsito instantaneamente. A polícia local divulgou que os ocupantes do Nissan haviam acabado de assistir a Mais velozes e mais furiosos, e as autoridades policiais locais passaram a patrulhar as saídas de sessões de cinema na tentativa de prevenir esse tipo de ocorrência. A indústria cultural é capaz de suportar, e mesmo veicular, críticas ao sistema, desde que superficiais e externas, sem um poder real de reflexão (Adorno; Horkheimer, 1985; Duarte, 2002), e segue se (re)produzindo. Enquanto antes a ideologia tinha o discurso, para sua difusão, têm-se agora poderosas imagens com som e movimento, em uma reprodução em si do mundo real, ou melhor, fragmentos desse mundo real. Tradicionalmente, a tríade da difusão cultural sempre foi a família, escola e igreja, mas esta vem cada vez mais perdendo espaço para a mídia. Mudanças culturais são eventualmente inexoráveis, e não quer se fazer aqui apologia à censura, mas a própria indústria cinematográfica poderia ter uma maior responsabilidade com relação ao seu poder de influência. Temos assistido a uma campanha antitabagista desmistificando o uso do merchandising de cigarros no cinema e TV, e os maços de cigarro vêm com uma mensagem de advertência. Entretanto, o trânsito mata mais que o cigarro e, mesmo assim, a única mensagem de advertência no Mais velozes e mais furiosos para que as cenas e personagens não sejam imitados é cerca de quatro linhas, em letras pequenas junto aos créditos do filme, e ainda por cima não traduzidos com legendas como o resto da película. Como expressado na Dialética do esclarecimento, uma pseudocrítica que em nada abalará a pujante indústria cultural e seu cada vez mais fervoroso – e apático – público. Referências bibliográficas ADORNO, Theodor W.; HORKHEIMER, Max. Dialética do esclarecimento: fragmentos filosóficos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985. DELORS, Jacques. Os quatro pilares para a educação. Relatório para a Unesco da Comissão Internacional sobre Educação para o Século XXI. In: Educação: Um tesouro a descobrir. São Paulo: Unesco, MEC, Cortez Editora, 1999, p. 89-102. DUARTE, Rodrigo. Adorno / Horkheimer & A dialética do esclarecimento. Coleção Filosofia Passo-a-Passo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002. HOFFMANN, Maria Helena; CRUZ, Roberto M.; ALCHIERI, João Carlos (org.). Comportamento humano no trânsito. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2003. MEIRA, Paulo. R. S. Esta ímpia e injusta guerra. Economia social: Terceiro setor e você. Porto Alegre/RS, p. 5 - 5, 01 mar. 2006. MEIRA, Paulo R. S. Da tela ao asfalto. 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