O príncipe republicano - Associação Brasileira de Ciência Política

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O príncipe republicano - Associação Brasileira de Ciência Política
O PRÍNCIPE REPUBLICANO
José Antônio Martins1
É comum encontrarmos afirmações de que o Príncipe de Maquiavel é um texto
monarquista, ou até mesmo uma obra em defesa do regime absolutista, por ter sido
escrita no início do século XVI. De fato, essa identificação da obra como um texto de
fundamentação monárquica está presente em certa medida em alguns comentadores,
como, por exemplo, em Skinner2. No limite, a fonte última desse raciocínio está na
identificação corrente do termo príncipe com o chefe de governo em um regime
monárquico.
Nos Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio, particularmente nos
dezoitos primeiros capítulos do livro I, momento no qual Maquiavel apresenta os
fundamentos da república, a dificuldade também volta quando ele se vale da imagem do
príncipe em três momentos cruciais: nos capítulos IX e X e no capítulo XVI. Isso se não
levarmos em conta as referências aos fundadores de cidade do começo do livro, que
foram também reis ou príncipes. O problema pode ser enunciado nos seguintes termos:
o que seria esse príncipe, uma figura própria do regime monárquico, no interior de um
governo republicano, se assumirmos que esses capítulos iniciais dos Discursos
perfazem um texto republicano?
Essas indagações parecem-nos suficiente para constatar que há no uso do termo
príncipe por Maquiavel ou uma ambigüidade significativa ou uma outra compreensão
do que se entende por essa figura política. Isso se tivermos em mente que tratamos de
monarquia ou principado como a forma de governo de um só, no qual o chefe de estado
ou de governo centraliza em si o poder político. Em outras palavras, consideramos aqui
uma situação monárquica de fato e não apenas nominal.
Para tentar dar conta dessas dificuldades tentaremos de um lado, explorar uma
certa compreensão do termo príncipe a partir de sua matriz ciceroniana e de outro
verificar no interior da estrutura do argumento das obras em questão, a interpretação que
mais se adequa àquilo que Maquiavel pretendia com esse uso do termo.
1
Professor de Teoria Política do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da UEM
Shinner, Quentin. As fundações do pensamento político moderno. São Paulo: Cia das letras, 2000. [cap.
5]
2
a) O princeps ciceroniano.
Ao analisar nas obras de Cícero o uso e os contextos nas quais é mobilizado o
termo princeps e, até mesmo, quem é esse princeps, Ettore Lepore3 apresenta um
conceito pertencente ao ordenamento republicano romano, mais propriamente, ao
contexto da tarda república. Sua análise tem, também, a preocupação de reconhecer se o
termo é meramente um nome diverso – talvez numa acepção mais literária – ou se ele é
um conceito, conforme o emprego nos escritos políticos. Suas constatações permitem
dizer que esse conceito de princeps se revela em seus contornos definitivos nas três
principais obras políticas ciceronianas – De officis, De Leggibus e De republica –
momento esse de maturidade intelectual do pensador romano e de seu distanciamento
dos ideais aristocráticos que marcaram os primeiros escritos4.
Concentrando suas atenções, primeiramente, às ocorrências, Lepore constata que
Cícero se vale de dois termos muito próximos: princeps e principes. Sendo o primeiro
termo usado de vários modos: princeps-rector, gubernator, moderator, tutor,
procurator, conservator etc5., acepções estas que revelam a associação do termo à uma
função política de comando ou a um cargo ou magistratura de relevo no ordenamento
republicano romano. Em todas essas ocorrências, se mostra ainda o predomínio de duas
compreensões do princeps: o primeiro em ordem cronológica e o melhor em
comparação a um grupo. Ao lado dessa dupla acepção, encontra-se uma terceira, pois se
verifica que o princeps é também aquele que toma a iniciativa da ação política, aquele
que lidera e está na vanguarda, o responsável pelo princípio da investida política. Tais
usos indicam que para Cícero o princeps é uma figura política de proa, que possui uma
virtus política destaca e, por isso, se põe à frente na ação política. Esse princeps é,
portanto, o primeiro a agir, o primeiro ou líder em uma iniciativa política.
Identificado esse primeiro bloco de acepções correntes do termo princeps nos
textos ciceronianos, Lepore parte para uma outra vertente de investigação, no afã de
descobrir as fontes teóricas do termo. Tendo em vista a tradição filosófica grega, da qual
Cícero é herdeiro, e dos usos do termo, o princeps se aproxima em muito ao politikós
grego. Politikós esse que não é tanto o rei ou governante, o basileu, mas o homem que
tem sua natureza conformada pela polis, ou seja, o princeps tem as funções e as
3
Lepore, Ettore. Il princeps ciceroniano e gli ideali politici della tarda republica. Napoli: Istituto Italiano
per gli Studi Storici, 1954;
4
Lepore, op. Cit., p. 34
5
Lepore, op. Cit., p. 34-35.
incumbências políticas do politikós que deve partilhar as magistraturas na polis. Ao
princeps se associa, então, um ideal de homem político que é de um lado herdeiro da
tradição grega do politikós e, por outro, agrega as qualidades ou virtus própria do
cidadão romano.
O príncipes, diferentemente do princeps, era uma conceito de homem político
ligado aos antigos valores aristocráticos, de um contexto próprio da concórdia ordinum,
quando se buscava uma conciliação entre as ordens patrícias ou senatoriais. Quando não
mais se está colocada a questão em termos de ordenamentos aristocráticos, mas num
quadro de intensas disputas e dissensões políticas, há uma mudança nessa conceituação
de principes para um novo modelo político, o princeps. A mudança no quadro político,
de um contexto de concórdia ordinum para a preocupação com o consensus, própria
depois de 60 a.C., leva Cícero a rever o modo de conceber o seu ideal de homem
político. A distinção de príncipes e princeps, sendo o primeiro um conceito tradicional,
ligado à aristocracia e o segundo como a prefiguração de um novus hominus, um novo
político, é fruto das novas exigências políticas após 60 a.C. Avançando ainda mais, o
novo princeps é associado ao popularis, ao sapienter popularis6, ou seja, como o
cidadão dotado de prudência, tal qual se diz de Péricles7. Populares esse que, desde um
uso anterior a Cícero, era sinônimo de civis, donde constata Lepore:
O vocábulo popularis assumiu na tradição retórica e naquela mais antiga e
redescoberta, aquilo que o faz simplesmente equivalente ao civis, tendo valor
estritamente técnico, como o encontramos no âmbito filosófico, para exprimir o
complexo de valores inclusos no grego politikós8.
Segundo Lepore9, tal mudança se deve a uma percepção mais isocrática da
política romana por parte de Cícero, o que na verdade era antes uma crença para a
superação das antigas ordines aristocráticas, por regimes mais moderados ou mistos.
Ora, a concepção política aristocrática, que pressupunha uma ordem estática, mas não
dinâmica do campo político estava em cheque após o advento dos conflitos políticos.
Em face da guerra civil, Cícero passa a admitir uma dinâmica do mundo político,
aceitando o conflito como um dado, mas propondo uma contentio sapiens, que
discipline essa luta política contra a possibilidade da sedição. É sob tal ótica que se deve
ler o livro VI do De Republica, tendo em vista o dissenso político que exigem um
6
Cícero, De Republica, II, 54.
Cícero, Oratore, III, 138.
8
Lepore, op. Cit., 216.
9
Lepore, op. Cit., 230.
7
princeps moderator e prudens, ou seja, busca-se um novo homem político que
reconheça as mudanças em curso e não esteja mais preso aos modelos estáticos e
conservadores próprios da aristocracia10 .
Essas considerações sobre o conceito de princeps ciceroniano impedem qualquer
associação desse com um ideal político de tipo monárquico. Nos inúmeros trechos das
obras ciceronianas analisadas por Lepore, fica muito difícil, para não dizer impossível,
dizer que esse conceito faz remissão ao governo de um só, ao chefe de um corpo
político que concentra os poderes. Como diz o comentarista: “Todos os termos até aqui
usados não permitem identificar o ideal de princeps [ciceroniano] com um poder
monárquico ou de qualquer modo a um singular”11.
b) O príncipe dos Discursos.
Nos capítulos IX e X do livro I dos Discursos, Maquiavel aborda o papel que
deve desempenhar os ordenadores de reinos e repúblicas, mobilizando para isso uma
série de exemplos de governantes romanos que tiveram êxito ou fracassaram nesse
trabalho. Tema esse que já havia sido tratado em parte no capítulo II, quando da análise
da fundação das cidades. É particularmente nesses capítulos que o governante único ou
a figura do príncipe é citada várias vezes como o responsável pela fundação ou
ordenação política. Assim, antes de entrar na análise desses capítulos em questão, se faz
necessário resgatar o contexto no qual eles se inserem.
Como já demonstrado12, Maquiavel desenvolve nos primeiros dezoito capítulos
do livro dos Discursos uma arquitetônica argumentativa que parte da fundação das
cidades, passa pela descrição do motor ou cerne da vida política – o conflito político –,
pelas ordenações própria de uma república (as assembléias, as magistraturas, o poder
executivo, a religião), para ao final mostrar como ocorre a corrupção dessas ordenações
e o fim da república. O centro da reflexão maquiaveliana é, pois, apresentar os
fundamentos das repúblicas, suas estruturação, para em seguida, ou seja, tendo como
referência tais concepções, interpretar a história romana. Então, tanto o capítulo II
quanto os capítulos IX e X se inserem nesse itinerário expositivo que busca os
fundamentos da república romana.
10
Lepore, op. Cit., 251.
Lepore, op. Cit., 71
12
Martins, J. A. Os fundamentos da república e sua corrupção nos Discursos de Maquiavel. Tese de
doutorado. São Paulo: FFLCH-USP, 2007. [cap. 1]
11
Como destacam Sasso e Reale, um aspecto que chama a atenção nesses três
capítulos é a rápida passagem da forma monárquica para a forma republicana. Passagem
esta que estabelece a república como o lugar das análises que se seguiram nos demais
capítulos. Mas, de qualquer modo, o Rômulo citado no capítulo II é uma figura
monárquica que deu os fundamentos para a constituição de uma república ou de um
ordenamento político conforme o vivere libero civile. Por outro modo, caso se queira
considerar que Maquiavel tecia suas considerações levando em conta uma monarquia,
esta se encera neste momento final do capítulo II.
Ora, tendo em vista isso que foi dito no capítulo II, a mobilização de Rômulo no
capítulo IX ganha novos contornos e dificuldades. A questão central é como entender
esse governante único, esse primeiro monarca romano no meio de uma análise voltada
para o estabelecimento dos fundamentos da república. No capítulo IX, em seu início,
Rômulo é apresentado como um fundador de cidades, não se levando em conta a
dificuldade que perpassa as considerações sobre o nascimento da república romana.
Enfim, tanto no capítulo II quanto no IX, essa transição em si não é
problematizada, não é analisada a fundo. Concomitantemente a esse pouco falar ou
mesmo não falar da transição constitucional, o regime republicano se apresenta como
um telos, uma finalidade à qual Roma parecia destinada. Apesar da imprevisibilidade
sobre o que seria no futuro, Roma parece destinada a se transformar numa república,
esse é o seu telos, ou até mesmo sua razão de ser, como se ela estivesse orientada para
tanto desde seus momentos primordiais Segundo Sasso: “Como se fosse, na realidade,
o telos a constituir, além do fim e ao fim do processo, também o seu critério, a sua
origem, a sua razão de ser, o seu impulso condutor”13. Então, à débil análise da
transformação política se contrapõe à profundidade de uma necessidade teleológica de
Roma se tornar uma república. Esse viés teleológico instala-se no argumento
maquiaveliano e passa a conduzir o seu raciocínio.
Os argumentos mobilizados têm, pois, como objetivo a transformação de uma
monarquia, que nasce tumultuada pelo assassinato de Tito Tazio, para uma republicana
também em conflito. No quadro apresentado por Maquiavel, desde o seu nascedouro
Roma estava destinada a se transformar numa república, pois os acidentes convergiam
para esse fim. Como ele repete ao longo desses capítulos, quando se olha para o fim e
não para o ato em si, a instauração de um vivere libero esteve sempre no horizonte.
13
Sasso, Gennaro. Machiavelli e gli antichi e altri saggi, 1987, tomo. I, p. 128.
Entretanto, esta era uma motivação encontrada nos primeiros reis, ou seja, os
ordenamentos políticos iniciais tinham como força indutora a instalação de um vivere
libero, forma essa que se completará ou se realizará perfeitamente no modelo
republicano.
O que se mostrava inicialmente no capítulo II era uma reflexão sobre a fundação
por meio do legislador e suas possíveis implicações sobre a história romana. No
capítulo IX, apesar de retomar a temática da origem constitucional, a chave de leitura
não é a fundação, mas a ordenação, que, do ponto de vista da compreensão da estrutura
política romana, fornece outra luz.
Tributária dessa compreensão é a figura de Rômulo, que, no capítulo II, tendo
em vista a estrutura do argumento, se assemelhava à figura de Licurgo. Nessa tentativa
de traçar um paralelo entre as duas personalidades, Maquiavel ressaltava as carências do
rei romano em comparação ao legislador espartano. No capítulo IX, ao contrário, o que
nasce é a figura de um outro Rômulo, não mais a versão romana e imperfeita do
legislador, mas o responsável pela instalação de um processo de ordenamento
constitucional que fará de Roma uma república.
Como mostra Reale, o que seria um aparentemente retórico, ganha os contornos
de uma questão real se levarmos em conta o fato de Maquiavel ter tratado apenas dos
fundadores de cidades e não dos ordenadores14. O problema parece não estar restrito à
temática da fundação das cidades, muito menos a uma retomada do papel do legislador
nesse momento inaugural. A afirmação maquiaveliana evidencia uma sutileza
terminológica que se configura como um problema de fundo. Maquiavel fala em termos
de ordenadores e não de fundadores ou legisladores, que em um primeiro momento
poderiam ser compreendidos como sinônimos ou como possuidores de função igual na
origem das cidades. A introdução do capítulo vem aprimorar a compreensão do papel do
ordenador, que passa a se diferenciar do legislador15. O exemplo seria Rômulo que, ao
ser identificado como o ordenador de Roma, ao mesmo tempo se diferencia dos
fundadores, expostos de início.
Assim, não é meramente uma questão terminológica a distinção entre a fundação
de uma cidade pelo legislador e uma ordenação segundo os acidentes. Ao expressar que
Roma teve uma ordenação e não uma fundação, Maquiavel demarca o campo teórico no
14
Cf. Reale, Mario. Machiavelli, la poltica e il problema del tempo. Un doppio cominciamente della
storia romana? A proposito di Romolo in Discorsi I, 9. in La Cultura, XXIII, nº 1, 1985, p. 45.
15
Cf. Reale, Mario, Machiavelli, la poltica e il problema del tempo, p. 46.
qual deve ser pensada a constituição romana, que de nenhum modo pode ser equiparada
às repúblicas conformadas por um legislador.
Retomando a questão de como entender esse príncipe dos capítulos IX e X,
temos agora a constituição de uma outra imagem que não somente a do governante
único. Conforme se depreende da análise da figura de Rômulo, o governante único
desses capítulos está inserido em um contexto marcado por lutas e dissensões políticas
entre os dois grupos principais. Importa frisar: nas duas referências ao rei romano,
Maquiavel parece ignorar a passagem da monarquia para a república, e passa a tratar de
Roma num contexto republicano. Ao tratar de Roma, nesses capítulos, sempre se
considera a sua fase republicana, que na verdade esteve no meio de duas formas de
governos centralizados, a monarquia anterior à fundação republicana e o império,
posterior a essa fase. Mesmo quando se faz referência a Cesar no capítulo X, onde
Maquiavel expõe toda a sua crítica a ele, o contexto político é republicano e as críticas
se devem em grande parte por ter Cesar destruído a república.
Então, os governantes desses capítulos, tendo em vista as circunstâncias políticas
no qual estão inseridos e o papel político que devem desempenhar – o de ordenar ou
reordenar um Estado –, são eles considerados em termos de governantes executivos em
condições republicanas. Logo, não parece existir a possibilidade de qualificá-los como
típicos governantes monárquicos, que centralizam o poder político na figura do chefe de
governo. Mesmo quando considerados unicamente como reordenadores, Maquiavel
enfatiza que eles devem agir em vista do restabelecimento dos ordenamentos
republicanos. Com efeito, ao declarar que “um ordenador prudente e virtuoso não deve
deixar por herança a autoridade que tomou”16, que remeteria a importância de um
governante único, ele resalta que a herança não pode ser essa autoridade excepcional,
mas cuidar para deixar o poder na mãos de muitos. Ou seja, mesmo que haja uma
reordenação por meio de um só, o resultado deve ser a instalação de um governo de
muitos. Neste sentido, o fim de toda a ordenação visada nessas passagens dos Discursos
é um regime republicano e não a perpetuação de uma dinastia.
Essa preocupação com o vivere libero é tão importante que Maquiavel insiste
nos capítulos IX e X sobre a ameaça da instalação de um governo absoluto ou tirânico.
Nesses regimes é que se encontram o grande temor: que após a reordenação de um
Estado o poder fique nas mãos de um só homem ambiciosos que usaria mal aquilo que
16
Discursos, I, IX, linha 8.
virtuosamente foi conquistado17. O mesmo se aplica a Cesar, que não foi o reordenador
da república, mas o seu destruidor, ao contrário de Rômulo18.
Então, agora pode ser possível entender que esse príncipe dos capítulos IX e X
não é um típico monarca, mas quando muito um reordenador de um Estado com vistas à
recuperação dos ordenamentos republicanos. Ele é antes de tudo um líder, um precursor
de um processo político, muito próximo ao ideal do princeps de Cícero. Como ele
mesmo diz: “Aquele que se tornou príncipe nalguma república deve considerar que,
depois de Roma tornar-se Império, mais merecem louvores os imperadores que viveram
de acordo com as leis e como príncipes bons, do que aqueles viveram de modo
oposto”19.
Enfim, Maquiavel se vale nesses capítulos de uma figura de príncipe em
contexto republicano, que não parece se identificar de nenhum modo com a imagem
tradicional de monarca soberano que centraliza o poder político, muito menos com um
governante tirânico, que é a figura contrária desse modelo de governante.
c) O príncipe civil do Príncipe.
Passando para a outra obra em questão, O Príncipe, as dificuldades de análise
também permanecem, pois, como declarado de início, é principalmente por meio desta
obra que se disseminou a imagem de um maquiavelismo sem moralidade, quase como
um tirano que tudo destrói, como muitas vezes é caracterizada a figura de César Borgia.
Contudo, mesmo em leituras mais atentas e qualificadas20, o texto maquiaveliano figura
no rol dos manuais para auxiliar governantes únicos na conservação do seu poder, em
séculos marcados pelos movimentos de centralização política, como foi o caso das
cidades italianas dos séculos XIV e XV21. A partir do contexto histórico do
Renascimento, parece ser muito difícil não caracterizar a obra maquiaveliana como um
texto em defesa do regime monárquico ou ao menos do poder de seu chefe, o príncipe.
Todavia, já faz algum tempo, alguns interpretes vêem debatendo sobre as ligação
e diferenças teóricas que envolvem particularmente os Discursos e O Príncipe22. Um
17
Discursos, I, IX, linha 8-10.
Discursos, I, X, linha 30.
19
Discursos, I, X, linha 16.
20
Cf. Skinner, Q. As fundações do pensamento político moderno. São Paulo: Cia da Letras, 1996.
21
Cf. Skinner, op. cit., cap. 1-2.
22
Chabod, Federico. Scritti su Machiavelli, 1964, [cap. I-VI]; Lefort, Claude. Le travail de l´ouvre
Machiavel, 1972, [parte IV]; Sasso. Niccolo Machiavelli, storia del suo pensiero politico, 1980, [cap.
18
problema recorrente nesta discussão é saber até que ponto alguma parte do Príncipe é
tributária, ou ao menos vinculada, à reflexão republicana dos Discursos. O centro da
dificuldade, tendo em vista essas considerações da importância da forma republicana no
pensamento político de Maquiavel, parece se encontrar na primeira parte do Príncipe,
particularmente, nos capítulos VIII e IX, quando o filósofo passa a dissertar sobre o
principado civil.
Assim como nas repúblicas, nos principados também se encontram os conflitos
dos humores, que é o motor da vida política. Sob tal aspecto, república e principados se
equivalem, pois em ambos, ou melhor, em qualquer cidade, como declara Maquiavel, as
lutas e dissensões políticas se fazem presentes como o aspecto fundamental que instaura
os ordenamentos políticos. Então, sob o viés da vida política, da dinâmica política que
há em toda cidade, encontraríamos uma primeira ordem de problemas para caracterizar
esse principado civil como um regime político monárquico clássico, pois o poder não
estaria centralizado no seu maior mandatário, o príncipe.
Além desse dado, uma outra referência vem complicar ainda mais a
compreensão do real papel político desse príncipe novo num principado civil. No início
do capítulo VIII, Maquiavel, diz:
Mas porque há ainda dois modos de se passar de homem privado a príncipe, o
que não se pode atribuir de todo à fortuna ou à virtù, não me parece que deva
deixá-las de lado, ainda que sobre uma delas se possa discorrer mais
amplamente em se tratando de repúblicas.23
O contexto todo merece análise, pois não se trata de um príncipe herdeiro de um
reino, nem de um príncipe nomeado por um monarca ou soberano, mas de um homem
comum, um cidadão que se torna príncipe24.
O problema parece se concentrar na parte final do primeiro período, quando diz
que ainda que sobre uma delas se possa discorrer mais amplamente em se tratando de
repúblicas. Novamente a dificuldade é recolocada, visto que se ressalta a figura de um
príncipe em condições republicanas. Outra constatação, conseqüência imediata do que
se segue no texto, está em saber se esse principado civil, aquele caracterizado pelas
V]. Sasso, Gennaro. Machivalli e gli antichi e altri saggi , tomo II, 1987. [cap. VII - “Principato civile
e tirannide”, p. 354ss].
23
Príncipe, VIII, linhas 1-2.
Convém destacar as dificuldades envolvidas na tradução do termo privato. Das opções possíveis –
privado, homem privado, cidadão – talvez esse último fosse o mais adequado e expressaria melhor o
significado do termo. Contudo, essa designação se perde quando leva-se em conta que Maquiavel não
trata de repúblicas, mas de principados, nos quais existem súditos e não cidadão. Entendemos ainda que a
tradução por homem privado seja a que melhor expresse as significações desejadas pelo filósofo.
24
qualidades de um homem privado que ascende ao poder, pode ser compreendido como
um certo tipo de república. Tal problema, que é o part pri da discussão entre Sasso e
Reale, ganha importância se levarmos em conta que Maquiavel encerra o capítulo XVIII
do livro I dos Discursos, mostrando a necessidade de um governante que tenha um
poder quase régio, para recuperar a cidade corrompida e que o ambiente político do
capítulo IX do Príncipe se dá num contexto de corrupção dos ordenamentos da cidade.
Essas semelhanças permitem, com efeito, aproximar esse governante com poderes quase
régio dos Discursos ao homem privado que ascende ao principado civil, donde não ser
de todo impossível pensar no capítulo IX do príncipe como a solução da corrupção
republicana25.
Em resumo, temos uma série de elementos para problematizar essa vinculação
entre a figura do príncipe apresentada no texto com a imagem de um governante
tipicamente monárquico, a saber: a valorização da fragmentação do poder em oposição
à centralização do poder, que tem como conseqüência argumentativa, a declaração de
existências dos conflitos políticos em toda e qualquer cidade; a constatação de que se
pode considerar um príncipe num contexto político republicano; e, por fim, a dúvida se
o principado civil é um certo tipo de republica corrompida que busca sua reordenação.
Voltando as atenções agora apenas a este cidadão ou homem privado que se
torna príncipe e retomando aquilo que foi apresentado sobre o princeps ciceroniano,
algumas semelhanças se sobressaem. Este homem privado que se torna príncipe é,
primeiramente, um cidadão entre cidadãos, ou seja, é um politikos numa comunidade
política. Ou ainda, é um popularis, que por suas qualidades políticas, por sua virtù,
assume o comando ou a liderança da ação política, com vista a reordenar as instituições
da cidade.
Um outro aspecto, não menos relevante, que assim como o princeps nasce num
contexto de crise das instituições republicanas romanas com vista a recuperação do
vivere libero, do mesmo modo o homem privado que se torna príncipe novo nasce num
contexto marcado pela luta política, pelo conflito político entre opostos, que estavam
ameaçados, já na iminência da instalação de um regime de exceção. Quadro esse, muito
próximo do contexto republicano do De República.
Por esses dois aspectos já é possível perceber as proximidades entre a noção de
homem privado que se torna príncipe e o princeps de ciceroniano, o que permitiria por
25
Cf. Martins, J.A. op. cit. [Considerações finais, p. 175ss].
um lado afirmar que há esse príncipe novo pode ser concebido como um governante
republicano e, por outro e por oposição, que esse príncipe não é um típico monarca.
Ora, talvez não hajam ainda argumentos suficiente para a formulação uma
posição definitiva, que permitiria dizer com todas a letras que o príncipe é uma figura
republicana no interior destes textos maquiaveliano. Todavia, os aspectos apresentados
permitem sim pensar que ao menos no que tange à figura do príncipe num principado
civil, ele não deve ser entendido como um governante único que centraliza o poder em
si, mas que é alguém que deve conduzir o processo político que busque, no caso dos
objetivos lançados no início da obra, a conservação do poder. Mas atenção, não é de um
poder que encontra nele sua completude, de uma força política centralizada neste
governante único, cuja lembrança do governo turco sempre vem na memória. O objetivo
é a conservação de um poder que se funda numa dinâmica política de grupos que
possuem também força política. Portanto, o príncipe civil não pode ser um tirano e nem
um monarca centralizador, mas um hábil político que lidera do processo político que há
em toda e qualquer cidade. Deve ser ele um princeps, aquele que está na vanguarda,
mas é igual aos demais em termos políticos, tendo se destacado por suas qualidades
cívicas, por sua virtù, que o levou ao posto de comando.
Enfim, a contradição que abriu nossa exposição apresenta-se um pouco mais
clara, pois, por vezes, nas duas principais obras políticas maquiavelianas, O Príncipe e
os Discursos, o príncipe pode ser visto como um dos atores políticos em contextos
republicanos, segundo uma tradição política que remonta a Cícero.