É possível ser poeta hoje em dia?
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É possível ser poeta hoje em dia?
1 www.alexandrepilati.com - É POSSÍVEL SER POETA HOJE EM DIA? É POSSÍVEL SER POETA HOJE EM DIA? DEPOIMENTO NUM ENCONTRO DE POETAS – Montes Claros – MG (2005) A pergunta que gerou este encontro (XIX PSIU POÉTICO – 2005) parece estar de antemão respondida. E não é preciso ser poeta para perceber que a questão (talvez como qualquer outra bem refletida) encerra de cara duas respostas óbvias: sim & não. Sim, é possível ser poeta hoje em dia. Uma evidência disso é o autor da pergunta – um poeta. Outra evidência é o fato de que estamos em um encontro de poetas. Se isto não for um sonho, a verdade é que estamos lendo, vendo e ouvindo uns aos outros. Estamos pensando e respirando. Portanto, existimos. As mesmas evidências, todavia, parecem ter o poder de provar o contrário. Se é um poeta quem faz a pergunta, este não seria o sinal de que a ninguém mais, a não ser ao próprio poeta, interessa a questão? Nesse caso, a resposta seria não: não é possível ser poeta, pois já ninguém se importa com o seu desaparecimento, salvo a própria classe de poetas. Pretendo perseguir uma anti-meta. Se a pergunta está bem colocada, importa pouco a resposta. Não nos basta escolher por um dos problema. lados Numa da questão moeda. Isto pontiaguda seria como simplificar esta, não o tenho ilusões: tudo depende do ponto de vista. Espero mostrar que a minha é uma tentativa viável, entre tantas outras. Estamos, nós poetas, partidos entre os dois lados de um muro de concreto. Quem se lembra do Gullar de “Traduzir-se” www.alexandrepilati.com - É POSSÍVEL SER POETA HOJE EM DIA? 2 (“Uma parte de mim é todo mundo/ outra parte é ninguém, fundo sem fundo”)? É possível ser poeta hoje em dia? Sim & não. Tentei trabalhar com essa questão em minha dissertação de mestrado, enfocando a representação da condição de autor na periferia do capitalismo, pela poética de Ferreira Gullar (PILATI, 2002). Tento trabalhar com essa questão também em meus trabalhos artísticos. Para aprofundar o problema, academicamente ou artisticamente, é preciso tomar em conta uma perspectiva política. A muitos essa palavra parecerá abominável num encontro que celebra a poesia. Se a maioria da população considera o poeta um animal estranho, mais estranho ainda é aquele que quer ligar a poesia à política. A escrita poética é uma forma de exercício lingüístico ou profissional muito peculiar que um indivíduo usa para ocupar-se dentro da coletividade. O filósofo francês Jaques Ranciére (1995) diria que a escrita é uma forma de “ocupar o sensível”. É no sensível que se travam as lutas por espaço, por poder, por respeito, por dignidade. Ora, não é disso que trata a pergunta “É possível ser poeta hoje em dia?” Então, parece óbvio que, “mesmo que uns não queiram”, a poesia é uma questão política na sua própria origem. Mais do que uma necessidade intemporal do ser humano, a cultura (e dentro dela o restrito reino da poesia) é uma forma de inserir-se nas disputas políticas por espaço e credibilidade social, que variam muitíssimo, dependendo do momento histórico. Homero não tem a mesma posição na coletividade que Shakespeare, que não tem a mesma posição de Rimbaud, que não tem a mesma posição de Bilac, que não tem a mesma www.alexandrepilati.com - É POSSÍVEL SER POETA HOJE EM DIA? 3 posição de Drummond, que não tem a mesma posição de Arnaldo Antunes. E faz-se, assim, noutra tela, a versão da “Quadrilha” drummondiana, para lembrar um poeta da terra mineira. Homero, provavelmente, não se pôs esta questão; tampouco o fez Virgílio, bem como provavelmente não ocorreu aos trovadores provençais se o seu espaço social deveria ou não ser garantido. A questão sobre se é possível ser poeta trata da utilidade da poesia. É uma questão que só se pode colocar na sociedade contemporânea, quando a poesia perdeu de vez a função obviamente prática que tinha para um Sófocles, ou um Eurípedes, por exemplo. Ser ou não ser é algo que vai ganhando força fundamentalmente com Shakespeare, não nos esqueçamos, por isso ele é o nosso cânone. O poeta, como especialista da língua, é um fenômeno da modernidade e faz parte da divisão e da especialização do trabalho em geral. Não entremos, todavia, mais adiante nessa digressão histórica. Voltemos, pois, à anti-resposta que propus à questão: sim & não. Aqui seguiremos alguns pressupostos trabalhados pelo poeta e estudioso Hermenegildo Bastos no texto “Permanência da Literatura”. Afirmemos, pois, primeiramente, com veemência: não, não é possível ser poeta hoje em dia. Isto por dois motivos: 1) não há espaço para o poeta no mundo da indústria cultural; 2) o lugar que ele ocupa na cultura institucionalizada, que se quer a todo custo diferenciar da indústria, é anódino e reduzido. Tendo isso em vista, ao que parece, nós poetas estamos órfãos de sentido. Poetamos, mas há poucos leitores. Os leitores que temos somos nós mesmos: poetas que lêem poetas; professores que impõem “essa maldita lista 4 www.alexandrepilati.com - É POSSÍVEL SER POETA HOJE EM DIA? de obras obrigatórias” aos alunos; intelectuais que gozam o consumo de um poema como uma taça de vinho ou um charuto. Sob o primeiro aspecto, poderíamos dizer que muitos poetas gostariam de que a poesia fosse consumida como qualquer outro produto da indústria cultural. Como um disco de Shakira; como a biografia de David Beckham; como o filme Dois filhos Venderíamos faríamos de Francisco. milhares camisetas de de Poesia cópias. nossos como Daríamos livros. Coca-cola. autógrafos Tiraríamos e muitas fotos com fãs histéricos. Se exagero, é para dar a ver o ridículo da situação. Incomoda-me muito que a poesia se torne mercadoria desde a sua origem na cabeça do poeta. Por isso é impossível ser poeta hoje em dia. A poesia é, talvez, a forma literária mais carregada de poesia. Parece apenas tautologia. Porém, com o tautológico também aprendemos. A poesia é, por ser linguagem altamente carregada de significado, a forma mais indócil de literatura. pasteurizar. É salutar Aquela para a que é poesia mais que difícil ela seja desinteressante à indústria cultural como um todo. Antes de ser gozo; a arte é conhecimento. A indústria pauta-se no consumo e no prazer irrefreável. A arte pauta-se na reflexão e na experiência. Se o que se deseja, ao ser poeta, é, portanto, ser bestseller, escrever para “as pessoas gostarem” digo e repito que não, não é possível ser poeta. Ao menos sem a perda de certas prerrogativas imanentes à legítima poesia, tais como a preocupação primeira com a linguagem voltada sobre si mesma. Contudo, pergunto-me: como negar a ampla e irrestrita influência das leis da indústria cultural sobre 5 www.alexandrepilati.com - É POSSÍVEL SER POETA HOJE EM DIA? a percepção artístico, que sob as pessoas têm esse prisma, é da arte? Bom produto que muito vende, aquele aquele que “todos” viram, leram, sentiram. Aquilo de que todos gostaram. Em virtude disso, creio que seria oportuna a participação da poesia na indústria cultural desde que ela assumisse, na sua forma, o mal-estar diante dessa mesma indústria. Desde supérfulas. que Dessa tentasse forma, desafiar seria viável suas ser certezas poeta: não fazendo concessões à indústria da cultura, nem renegando-a pura e simplesmente; fraturando-a por mas dentro. sim desafiando-a, Eis uma via rindo possível e dela, pouco provável. Talvez alguém possa argumentar que não se trata disso. Que ser poeta não é ocupar-se em ser um astro pop, inserido na indústria, mas, simplesmente, ser lido, ter seu nome inscrito na tradição. Afinal, este tipo de argumento brada: “quantos poetas nunca foram lidos em vida e depois a tradição consagrou?!” Não posso deixar de diagnosticar aí uma certa autopiedade, que é uma típica defesa de classe de nossos poetas. Lembremo-nos sempre de que a tradição é apenas uma questão de escolha ideológica. Não é uma bênção metafísica e intemporal que recai sobre certos textos ou autores. A tradição pode mudar, caso se mude a história. Outras coisas serão postas no lugar daquelas até então julgadas tradicionais. É natural que assim seja, pois a tradição, quem cria é quem tem poder. E o poder, basta olhar a história, ciclicamente muda de lugar. Se quiséssemos dar de ombros à indústria para mergulhar na tradição, como forma de auto-preservação, o dilema não 6 www.alexandrepilati.com - É POSSÍVEL SER POETA HOJE EM DIA? seria menos complexo. Talvez bastasse, para nós, sermos lidos ali em Ipanema; no Morumbi; na Asa Sul. Talvez nos bastasse vender algo em torno de 500 exemplares, no máximo mil, entre a classe média ou média alta boêmia, esclarecida, bem-educada e formadora da opinião que dá o tom do “bom gosto eclético e descolado”, tão em moda hoje em dia. Esperemos, nesse caso, por glória póstuma e banais bajuladores de plantão. Seria importante também sermos lidos pelos filhos dessa classe nas “melhores” escolas, ou nas escolas mediocridade médias, onde defensiva da se educa classe e se média reproduz e da a elite. Carregaríamos, assim, em nossa poesia, uma marca indelével da mesma mediocridade que guia tais leitores. Para atendermos a esse preceito, seria necessário que fizéssemos uma poesia capaz de atender aos anseios daquilo que se costuma chamar “humanismo liberal”, que, na verdade, é a substância ideológica que dá estrutura à formação da atual tradição literária e que reconta a história conforme a sua conveniência. Dizem aqueles que o professam: a literatura deve acrescentar “alguma coisa” a quem lê. Sendo que “aquela coisa” é sempre “algo positivo”. E o que se chama “algo positivo”, quase sempre, é elemento fundamental de confirmação do poder. É bom lembrar que, se há transformação pela leitura literária, ela se dá, na atual conjuntura, apenas em termos individuais e não em termos coletivos. Aqui a literatura se parece muito com a conta poupança que alguns de nós possuímos. Acumula-se muito, mas em benefício próprio. Sendo mais culto sou melhor e diferencio-me mais fortemente da “turba ignorante”. Para atendermos a esses preceitos, teríamos de fazer uma poesia que fosse o reino do belo, onde toda fé e toda www.alexandrepilati.com - É POSSÍVEL SER POETA HOJE EM DIA? 7 confiança numa poética atemporal se revelasse confirmação da instituição poética tradicional. Teríamos que fazer uma poesia que fosse um legítimo documento de cultura anódina, como tanto a desejam nossa elite e nossas classes emergentes, que vieram ao mundo para gozar o bom da vida. Todo documento de cultura é um documento de barbárie, irá sempre nos ensinar Walter Benjamim (1994). O que criou Auschwitz não foi um povo primitivo, nem a selvageria animal que cada um de nós carrega. O que criou Auschwitz foi o mundo desenvolvido, altamente o mundo racionalizado, administrado culturalmente segundo os preceitos mais inaturais do homem. O “humanismo liberal”, quando se trata de melhores, mundo cultura, que, seja crê piamente individualmente, melhor. A alta que ela formará concorrerão cultura para (música, homens que o poesia e filosofia) também estava em Auschwitz. Não é necessariamente a cultura que faz um mundo melhor. Um mundo melhor faz uma cultura melhor. Não é a poesia que melhora as pessoas. Pessoas melhores fazem melhor poesia, lêem melhor a poesia e o mundo. E pessoas melhores só podem existir quando, por exemplo, a cidadania for extensiva a toda a população; quando tivermos mais pessoas alfabetizadas; quando desenvolvermos uma política autônoma em termos econômicos e ideológicos. A poesia é apenas uma pequenina parte do mundo. Ela não o muda totalmente nem para bem nem para mal. O mundo é que muda a cultura (e tantas vezes para mal!). Fosse o caso de participarmos do reino da instituição, portanto, não deveríamos fazê-lo por confirmação de suas certezas. Deveríamos fazê-lo por questionamento. Esse é o 8 www.alexandrepilati.com - É POSSÍVEL SER POETA HOJE EM DIA? caminho que escolhi. Em meu poema problematizo minha posição de escritor, meus comprometimentos com o poder, com a indústria cultural, com a instituição, com a escola. Procuro assumir concernentes à na estrutura condição de de meu poeta. texto Quem as sabe fissuras não seja exatamente para responder à pergunta sobre a possibilidade de ser poeta que eu faça poesia? Acredito que, da profunda negatividade, o sim pode surgir e ser capaz de iluminar as contradições fecundas do real, como diria o filósofo frankfurtiano Theodor Adorno. Para lembrar João Cabral, o poema é “belo como um sim / numa sala negativa”. Não me preocupa muito, sinceramente, se alguma grande editora se interessará pelo meu trabalho, para vendê-lo a quilo, nas grandes redes de livraria do país. Interessa-me pouco, também, ver minha poesia apenas na boca da classe alta esclarecida e intelectualizada. Meus poemas vão sendo cos(z)idos alheios a isso. Para dizer que “sim, é possível ser poeta”, importa-me, ademais de tudo isso, perguntar por um novo tipo de público, inquirir sobre outras possibilidades de alcance político da cultura. A mim interessa e inquieta muito: Por que a poesia não é lida nas favelas? Por que pode um operário se interessar por meus poemas? Em que medida um sem-terra veria o mundo através de literatura leriam as meu negra, linhas poema? ou Por que feminina? tortas por se De onde deseja que me forma vou tanto os uma loucos desenhando poeticamente? Por que a poesia não é usada amplamente para alfabetizar adultos nas periferias do país? Por que o poeta não doa seus livros às escolas de periferia? Porque os www.alexandrepilati.com - É POSSÍVEL SER POETA HOJE EM DIA? 9 cursos de magistério não estimulam a leitura de poesia? Por que o mundo do marketing transformou a poesia em propaganda? Sei que alguns me vão entender mal. Não se trata de fazer poesia para as massas. Não se trata de usar a linguagem “delas”. Não se trata de simplificar as coisas. Trata-se de achar uma outra alternativa sistêmica, menos tediosa e mais desafiadora para a justificativa de ser poeta. Trata-se de achar uma outra maneira de ocupar o espaço destinado ao poeta. Trata-se de tentar uma inserção outra na sociedade: mais dinâmica, mais provocadora, sem tantos rapapés. Acredito que alguém pode aprender muito na periferia, lendo, por exemplo, A divina comédia, ou o Cão Sem Plumas. Não apenas sob o aspecto do ideal “humanista liberal”, ou do gozo e do prazer com as palavras. Com mais acesso à literatura, um operário, pode, por exemplo, verificar como a literatura também é comprometida com a divisão do mundo em classes, e que, também, por outro lado, ela é um bem que pertence a ele, reles operário, muito embora seja produzida e legitimada por instâncias de elite. A poesia é um bem emancipador que está nas mãos de poucos, pois dá a ver o que os discursos cotidianos escondem sob a ideologia. Ser poeta não é sutileza. Ser poeta é resistência. E não se resiste sem paixão, sem ideais, sem luta. Há muito que só beleza não põe a mesa do poeta. É preciso algo mais. Nas sociedades primitivas não se era apenas poeta. Um lenhador poderia fazer música; um sapateiro poderia ser contador de histórias. Homero não era só poeta. Era um educador; um sacerdote. Haveria apenas vantagens na www.alexandrepilati.com - É POSSÍVEL SER POETA HOJE EM DIA? 10 especialização pura e simples do poeta? Não sei. Quem sabe haja demasiado pragmatismo na afirmação de que ser poeta é uma coisa como outra qualquer. Uma coisa como ser deputado federal, como ser lavadeira, como ser cantor, professor ou frentista. E isso não é um drama, mas uma condição profissional. Fazer drama com isso é infantilizar a posição do poeta. Há no mundo dramas muito maiores do que não ser lido. Um frentista só vai se perguntar se ainda é possível ser frentista quando a sociedade em que ele vive não precisar mais de combustível ou as máquinas fizerem, sozinhas, o trabalho de abastecimento dos automóveis. Ao que parece, a despeito de todo avanço tecnológico, não há computadores capazes de produzir autonomamente poesia num raio de 200 anos. Não há, por outro lado, notícia de que a sociedade humana construirá, tão cedo, homens incapazes de sonhar com a capacidade (humana, demasiado humana) de nomear o mundo que os cerca e de interrogá-lo. Isso é ser poeta: nomear as coisas, interrogando-as. Não há nada de mágico nisso. É um ofício que pendores se aprende inatos, tão e que é triviais facilitado como a por propensão certos para cálculos que possui um engenheiro. Creio não ter respondido à questão. Minha fala, entretanto, não pode ser acusada de propaganda enganosa. Disse, no início, que importa sempre mais a pergunta que a resposta. Portanto, contento-me com o que fiz até aqui. Àqueles que querem ser poetas, fica a frase de Dante: Lasciate ogni speranza Voi ch'entrate. Abandonem a esperança vã que a sociedade da fama ou do requinte alimentam. Não sintam pena de si mesmos. Ser poeta é, ao mesmo tempo, muito mais e muito menos do que vender livros ou ser admirado pela sua www.alexandrepilati.com - É POSSÍVEL SER POETA HOJE EM DIA? 11 sensibilidade e sua inteligência. Ser poeta é uma ocupação trivial do espaço humano. Espaço político, onde é preciso reconhecer e testar todas as impossibilidades do possível. Isso o trabalho miúdo com a linguagem, típico do exercício poético, trabalho ensina. No trabalho auto-reflexivo?), profundamente diante de suas poético o (ou homem potências em se e qualquer reconhece limitações. O resto, como diria Rimbaud, é [só] literatura. Referências Bibliográficas: ADORNO, Theodor. Teoria estética. Lisboa: Martins Fontes, 1988. BASTOS, Hermenegildo. Disponível “Permanência da literatura”. em: http://www.odialetico.hpg.ig.com.br/permanencia.rtf. Acesso em: 17 out. 2005. BENJAMIN, W. Experiência e Pobreza/ Sobre o conceito de História. In: Magia e Técnica, arte e Política: ensaios sobre literatura e história da cultura – Obras Escolhidas Volume I. Trad. Paulo Sérgio Rouanet – 7. ed. – São Paulo: Brasiliense, 1994. EAGLETON, Terry. A ideologia da estética. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1993. RANCIÈRE, J. Políticas da Escrita. Rio de Janeiro: Editora 34. 1995