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Iniciativas culturais e possibilidades de crítica aos processos urbanos: considerações sobre o projeto Arte/Cidade em São Paulo Gabriel Girnos Elias de Souza1 1. Introdução Os anos noventa marcaram uma inserção mais ampla do Brasil na rede globalizada da economia mundial, assim como na tendência neoliberal de redução dos papéis desempenhados pelo Estado na sociedade; a cidade de São Paulo, por sua vez, foi um dos principais centros dessa mudança no país. Para a maior e mais complexa cidade da América do Sul, a década passada foi marcada tanto por administrações problemáticas e cortes institucionais quanto por grandes investimentos privados; falava-se da integração da cidade à concorrência global por investimentos financeiros entre os grandes centros urbanos de negócios e serviços (cidades mundiais, na denominação de autores como Saskia Sassen). Desde os anos 80, tal disputa teria entre suas características grandes planos de reestruturação urbana de áreas decadentes, visando constituir marcos urbanoarquitetônicos e pólos de serviços para divulgar internacionalmente o nome das cidades, atrair o turismo e empresas internacionais.2 Nessa expansão de marketing urbano, a dimensão cultural desempenharia o principal papel: seja com a valorização do patrimônio, identidade e “genius locci” de locais da cidade, seja pela proliferação de equipamentos culturais e de lazer, de grandes eventos 1 Universidade de São Paulo (USP), Escola de Engenharia de São Carlos (EESC) Programa de Pós-Graduação do Departamento de Arquitetura e Urbanismo: [email protected] • 2 Tais estratégias ocorreram em metrópoles como Londres, Paris, Barcelona e Los Angeles, entre outras. artísticos, de mega-exposições itinerantes ou de grandes museus de renome internacional. Essa lógica de propaganda, por sua vez, possuiria com freqüência um caráter socialmente excludente; certas reestruturações urbanas de áreas degradadas e recuperações de patrimônio em decadência tornavam-se operações de “higienização” social de áreas urbanas valorizáveis, afastando delas populações “menos desejáveis” para negócios (processo denominado por vários autores como gentrification). Longe de resolver as tensões sociais, operações com tais características as deslocavam e mascaravam. Assim, São Paulo (e outras grandes cidades do Brasil) assistiu nos anos noventa à emergência de vários novos equipamentos e iniciativas culturais, de ações de valorização e recuperação do áreas urbanas; mas a década também viu um sensível agravamento de problemas sociais, particularmente da criminalidade e da presença de estratos informais da população — os moradores de rua, favelados, camelôs, subempregados. Na crescente imbricação de cultura, propaganda e investimentos assinalada acima, a concepção de cultura que se disseminaria possuiria uma inclinação pluralista e pouco crítica. Classicamente encarada como instrumento civilizador, vetor de humanização e autonomização, a cultura tenderia agora muito mais ao entretenimento e ao espetáculo — lógicas privadas e de consumo — do que a uma perspectiva mais pública de crítica ou de reflexão a respeito da realidade. Diante do contexto introduzido aqui, quais seriam as possibilidades de manifestações críticas em iniciativas culturais? O quanto estas poderiam fugir às tendências de simples comercialização e de estetização da vida? A partir desta indagação, este texto se propõe a comentar um exemplo particular de empreendimento cultural: o projeto Arte/Cidade, ocorrido em São Paulo entre os anos de 1994 e 2002. Compreendendo quatro eventos até agora, o Arte/Cidade não é algo simples de se definir. Explicado por sua coordenadoria como um projeto de intervenção urbana, caracterizou-se de maneira geral pela ocupação e intervenção em espaços da cidade de São Paulo (abandonados ou apenas problemáticos) e por uma ampla participação de diferentes profissionais e variados tipos de artistas. Embora possam ser vistas dentro da categoria generalizante de “eventos culturais”, as quatro edições do Arte/Cidade também foram mais que apenas grandes exposições de arte “para sítios específicos”; em sua sucessão, poderiam ser consideradas também como propostas de discussão específicas, abordadas de maneiras e em aspectos diferenciados por uma variedade de agentes. O aspecto mais interessante para este texto, porém, é o desenvolvimento do projeto no decorrer do tempo: por um lado, foi uma realização de uma instituição governamental que se tornou trabalho de um grupo independente; por outro, iniciou-se como projeto puramente cultural, dedicado a uma discussão artística, e gradativamente voltou-se mais para um debate e reflexão sobre a cidade, o urbanismo e políticas urbanas. Este artigo foi basicamente extraído de minha pesquisa de mestrado, Percepções e intervenções na metrópole: a experiência Arte/Cidade em São Paulo (1994-2002). Devido às dimensões de um trabalho desta natureza, não é possível aprofundar a análise do rico assunto dos significados artísticos e das muitas intervenções do Arte/Cidade, assim como de seus desdobramentos conceituais. O texto concentra-se, portanto, em questões mais gerais de sua trajetória e relação com a cidade: as transformações na organização, implantação e no discurso do projeto. Em anexo seguem imagens que ilustram obras e lugares aqui apresentados. 2. Arte/Cidade na Secretaria de Estado da Cultura A Secretaria de Estado da Cultura de São Paulo possuiu um período promissor na gestão de Ricardo Othake (1992-1994); mesmo em meio ao enfraquecimento de instituições de Estado a partir do governo Collor, tal gestão foi um momento importante de abertura a novas propostas de atividade. Nesse contexto é que o filósofo Nelson Brissac Peixoto, assessor para o audiovisual3 de Othake, veio em 1993 com a proposta que se tornaria o projeto Arte/Cidade: um evento artístico e midiático, ocupando e intervindo em locações da cidade, a ser realizado em três etapas diferentes. As edições idealizadas possuíam temas distintos, ainda que amplos e relacionados; nomeadas depois como Cidade sem Janelas, a Cidade e seus Fluxos e a Cidade e suas Histórias, cada uma implicaria em diferentes situações urbanas e questões próprias. O projeto surgiu em um momento em que a cidade tornava-se foco de discussões em diferentes áreas de conhecimento4. Havia uma tônica de crítica dos ideais modernistas de urbanismo, e apareciam em São Paulo discussões sobre ruínas e decadência urbana — que aconteciam internacionalmente, dada à globalização do processo de desindustrialização e flexibilização de capital. Naquele momento, “várias iniciativas afirmavam a urgência de tratar dos problemas da cidade, e em particular do centro histórico de São Paulo, que vem 3 Segundo Agnaldo Caldas Farias em entrevista concedida ao autor em 18/11/2004, o próprio fato do secretário de cultura colocar assessores para áreas específicas era em si uma novidade na política da Secretaria. 4 Nelson Brissac Peixoto seria um exemplo: ligado às correntes do pensamento francês (em particular, expoentes do pensamento pós-estruturalista) interessava-se já há anos pelas especificidades da metrópole e da percepção contemporâneas. sendo abandonado pelas grandes instituições financeiras e comerciais em favor de áreas mais periféricas recentemente valorizadas” (ANDREOLI e SANTOS, 2002, p.285). Articulações da sociedade civil e empresas em torno da recuperação do patrimônio urbano estavam se fortalecendo, e a Associação Viva o Centro (surgida em 1991) foi exemplo significativo da direção tomada pela discussão e atuação na cidade de São Paulo. Embora não estivesse relacionado diretamente às iniciativas de recuperação e valorização urbana, Arte/Cidade vinha em momento propício e inseria-se na mesma discussão, ainda que em outro tom. A princípio a discussão de Arte/Cidade estava puramente no campo da cultura; São Paulo em si não aparecia como assunto a ser debatido. A cidade seria um pano de fundo, um pretexto para juntar profissionais de diferentes meios (artes plásticas, arquitetura, cinema, fotografia, poesia, música) e, através uma “nebulosa conceitual” temática fazê-los interagir em conjunto com a materialidade, espacialidade e força simbólica dos lugares5. O objetivo principal do projeto seria retirar artistas dos ateliers e dos ambientes neutros e “domesticados” dos museus e galerias, assim como romper com a “relativa clausura” em que as várias linguagens se encontravam (FARIAS, 1994). O projeto retomava, de certa forma, a antiga temática de aproximação entre arte e vida, cara às vanguardas artísticas; o fazia, entretanto, despido do ânimo transgressor e anti-institucional que tal temática costumou manifestar historicamente6. A cultura e a experiência estética, afinal, ainda conservariam autonomia em relação à esfera da vida cotidiana. 2.1. Arte na cidade Os dois eventos iniciais foram realizados em 1994, respectivamente em março e setembro. O primeiro, Cidade sem Janelas, realizou-se no edifício praticamente abandonado do antigo Matadouro Municipal, no bairro da Vila Mariana (que se tornaria a sede da Cinemateca brasileira). Envolveu quinze artistas (entre eles Arnaldo Antunes, Carmela Gross, Antônio Saggesi e Arthur Omar), e teve organização e curadoria de Nelson 5 De modo a evitar um tom de simples referência à cidade, a proposta da curadoria era trabalhá-la como suporte, não como tema (FARIAS, 1994). 6 As referências para o Arte/Cidade partiam das experiências artísticas de intervenção e apropriação de espaços não-institucionais, aparecidas nos anos 60; em especial, trabalhos como os de Robert Smithson e Gordon Matta-Clark, que abordavam as ruínas da modernidade, o processo de decadência de centros urbanos que caracterizou o final do século XX. Brissac e Agnaldo Caldas Farias (na época assessor de artes plásticas da Secretaria de Estado da Cultura). Esta primeira experiência procurou um caminho mais cauteloso e realizável: lidar com um único edifício em ruínas e as questões que surgissem de seu espaço e materialidade. Circunscrita ao matadouro (a grande maioria das obras em seu interior), a exposição resultou em algo que remetia mais à arquitetura do local e a uma cidade “imaginária”, interior aos artistas, do que São Paulo propriamente dita. Por tratar-se de um espaço basicamente interno e completamente apartado do quotidiano urbano, não era tão afastado de um museu quando comparado às edições posteriores de Arte/Cidade. Mas o passo inicial foi grande, e Cidade sem Janelas talvez tenha sido o evento mais bem recebido e mais coeso em seu efeito poético geral. O ambiente fértil e opressivo, a fascinação da ruína e a opacidade dos espaços trabalhados ou superpostos às obras dos artistas criaram um conjunto esteticamente muito forte. A segunda edição de Arte/Cidade, a Cidade e seus Fluxos, foi instalada no vale do Anhangabaú — um dos locais mais emblemáticas do centro de São Paulo — em uma área em torno do Viaduto do Chá. Tendo Nelson Brissac sozinho como curador, o evento contou com vinte e um participantes (entre eles Regina Silveira, Abílio Guerra e Tadeu Knudsen), ocupando locais em três edifícios antigos (da Eletropaulo, do Banco do Brasil e o Edifício Guanabara) e no espaço público entre eles. A situação urbana era praticamente oposta à do primeiro evento, e representava um desafio muito maior: uma paisagem extremamente aberta e complexa, numa das regiões mais movimentadas da metrópole. O evento não procurou estabelecer uma visão coesa do lugar: configurou-se como pontos entre fluxos, uma “desterritorialização” (nos termos da própria curadoria) que exigia uma perambulação pela área, à procura das obras lá presentes. Embora tenha rendido alguns trabalhos excelentes — com destaque para o Detector de Ausências de Rubens Mano e o Periscópio de Guto Lacaz — o resultado geral da mostra foi mais irregular que o da anterior. Em relação à primeira edição, porém, havia aqui uma certa mudança na relação que as intervenções estabeleciam com seu local: a arte aqui se destinaria a provocar uma outra percepção do espaço urbano. O evento, então, mostraria-se uma oportunidade de catalisar uma perambulação e fruição da cidade, uma experiência de flanerie que descortinasse a imagem tão gasta do centro da cidade. Apesar de um lugar de cruzamento intenso de tráfegos (pedestres e automotivos), o Anhangabaú estava em situação de decadência e falta de investimentos. Enquanto o matadouro passava despercebido por sua completa falta de uso, o caso aqui seria de algo tão exposto que não era mais enxergado, uma “invisibilidade de superfície”: o peso simbólico do Anhangabaú como que soterrado por seu cotidiano frenético e utilitário, pela percepção fragmentária de quem está em fluxo. Naquele momento específico, em que as iniciativas de “revitalização” do centro de São Paulo ganhavam força e evidência, um evento como o Arte/Cidade foi muito bem recebido. Foi visto por muitos como uma valorização simbólica e poética de São Paulo; a filósofa Olgária Matos, por exemplo, escreveu que “por um mês, a cidade foi devolvida a seus habitantes, à distância da suposta transcendência do poder e da eficácia da lei. (...) O evento reencantou a cidade depois de um longo período de despoetização”. Uma grande contribuição dos dois eventos iniciais estaria em seu processo de organização e realização: o trabalho de conseguir o uso de um espaço não institucionalizado — negociado cuidadosamente com seus proprietários — e de reunir vários artistas para trabalhar em workshops para um tipo de situação na qual nenhum tinha experiência. A experiência de você sair do atelier e lidar com espaços não-convencionais pro trabalho — não necessariamente para a exposição, mas pro trabalho — foi essencial. A gente fazia reuniões in loco. Uma coisa que eu jamais voltaria a fazer. Reunia 40 artistas, no matadouro, no centro da cidade, tardes inteiras alucinadas, divagações, brigas e tudo, e que no fundo foi uma experiência pessoal inusitada para todo mundo.7 Uma grande qualidade dos eventos foi seu caráter efetivamente experimental e aberto8, voltado não apenas para uma idéia de exposição e utilização de locais em abandono, mas principalmente para uma proposta de produção. Diante do contexto de propagandas e ações de “revitalização” urbana, a excelente recepção de a Cidade e seus Fluxos faz pensar em possíveis ligações do evento com os interesses de investimento no centro. O caráter experimental e efêmero de Arte/Cidade, porém, parece afastá-lo de um envolvimento direto: tal atividade ainda seria muito nova e incerta para fazer parte de políticas culturais ou estratégias comerciais. 3. Grupo de Intervenção Urbana e leitura da cidade O fim da gestão de Othake em 94 e as reduções institucionais dos anos seguintes impossibilitaram que a continuidade do projeto Arte/Cidade continuasse a depender de 7 Nelson Brissac em entrevista dada ao autor em 31/05/2004. 8 Agnaldo Farias falou do “direito de fracasso” que foi concedido aos organizadores. (FARIAS, 1994). uma instância estatal como a Secretaria de Estado da Cultura9. Na mesma época, também emergiam várias associações e organizações não-governamentais no Brasil e no mundo; essas articulações da sociedade civil eram encaradas por muitos com otimismo, como respostas novas e flexíveis para a diminuição crescente da presença do Estado e de suas instituições — assim como para as deficiências deste. Foi provavelmente nesse espírito que se formou em 1996 o Grupo de Intervenção Urbana, autodefinido como uma “associação cultural ligada às questões da cultura e do urbanismo”, que “cria, desenvolve e executa diferentes perfis e dimensões no âmbito das artes e da arquitetura” (in LUDEMANN, 1997, p.12). Composto inicialmente por Nelson Brissac, Giselle Beiguelman, Christine Mello, Danilo Santos de Miranda, George Ribeiro Neto, Marta Bogéa, Ricardo Othake, Ricardo Ribenboim e Regina Meyer10, o grupo destinaria-se a coordenar, organizar, negociar e captar recursos para a realização de projetos como a terceira edição de Arte/Cidade e o Brasmitte (que será retomado mais à frente no texto). A organização de Arte/Cidade ganhava autonomia e flexibilidade (forçadas, de certo modo) mas ainda dependia dos recursos de instituições e empresas. A terceira etapa de Arte/Cidade, a Cidade e suas Histórias (originalmente o evento final), revelou-se a maior e mais complexa de todas. Embora já estivesse em estudo e negociação desde 1995 (e pensada no princípio para acontecer nesse ano), só pôde ser concretizada em outubro de 1997. O evento propunha uma excursão por ruínas industriais ao longo de um trecho de cinco quilômetros do sistema ferroviário metropolitano (então em processo de sucateamento). As áreas ocupadas por intervenções seriam duas “ilhas” industriais abandonadas, cercadas pelas estradas de ferro: a área dos galpões das indústrias Matarazzo — que já fora o maior parque industrial do Brasil — no bairro da Barra Funda; e o edifício do antigo Moinho Central, no bairro do Bom Retiro. Tal qual Cidade sem Janelas, o espaço visitado nesta etapa era uma ruína desconectada da cidade; a escala assumida, porém, era realmente metropolitana, e ultrapassava qualquer possibilidade de apreensão de uma totalidade pelo olhar ou pelo passeio individual. A discussão proposta trazia para a cena a memória das estradas de ferro e do parque industrial paulistano, antes orgulho e símbolo da modernização, agora ruína esquecida, imenso cadáver incrustado nas entranhas da cidade. Ao fazer isso, deixa à mostra a entropia presente no desenvolvimento 9 Importante lembrar que as administrações municipais desses anos — de Paulo Maluf e Celso Pitta — também não concediam apoio a atividades como o Arte/Cidade. 10 Arquiteta e urbanista, Meyer era então integrante da Associação Viva o Centro. da metrópole: o abandono, a desconexão e fragmentação do espaço, a complexa sobreposição de ordens urbanas. As dimensões desta edição superavam as anteriores em número de participantes (trinta e três, com artistas como Carlos Vergara, José Spaniol e Marcelo Dantas), e especialmente em área abarcada e meios disponibilizados. Envolveu, entre outras coisas: projetos de adaptação dos edifícios para receber o público; a reforma, adaptação e pintura de vagões de trem (o “Kinotrem”, que incluía exibição de vídeos curta-metragem e com informações sobre o evento); a reforma e uso exclusivo de vias ferroviárias — com reorganização da própria circulação do sistema ferroviário metropolitano durante o trecho de intervenção; acompanhamento e veiculação televisivos sistemáticos do evento e sua montagem. Tal densidade estrutural implicou num esforço organizativo muito maior, com muitas negociações com instituições — principalmente com a. Companhia Paulista dos Transportes Metropolitanos (CPTM), a Rede Ferroviária Federal S.A. (RFFSA) e a Ferrovia Paulista S.A. (FEPASA) — e com grande diversidade de patrocinadores e realizadores — incluindo a Telecomunicações São Paulo S. A. (Telesp), a Ricci Engenharia, e principalmente o Serviço Social do Comércio (SESC). Arte/Cidade tomava feições de um evento de grande porte: a terceira etapa teria possuído um custo final de 4 milhões de dólares, em contraste com a primeira e a segunda, com gastos respectivos de 120 mil e 350 mil dólares.11 3.1. Escalas urbanas A Cidade e suas Histórias marcou uma aproximação do projeto Arte/Cidade com questões urbanísticas. O trabalho de planejamento e organização do evento (bem como do Brasmitte) acabou por aproximar Brissac de arquitetos e urbanistas; não por acaso, o terceiro Arte/Cidade tem a maior presença deles entre seus participantes (incluindo os famosos Paulo Mendes da Rocha e Ruy Othake). A dimensão das áreas abordadas e a complexidade da paisagem e da estruturação — com escolhas como a utilização do sistema ferroviário da cidade (partindo da Estação da Luz) — obrigaram a organização a tornar-se mais consciente das questões amplas envolvidas, para além da esfera artística e cultural. Nesse evento há um passo significativo: a vontade de articular uma leitura da cidade através de intervenções, inédita até então no Arte/Cidade. A etapa prévia, no Anhangabaú, propusera uma experiência do urbano, mas não uma leitura objetiva deste; a situação 11 Tais dados de custo foram veiculados pelo jornal Folha de São Paulo de 25 de dezembro de 97. desnorteante e violenta de a Cidade e suas Histórias, por outro lado, era difícil de elaborar ou estetizar. Sua distância e desconexão fizeram a coordenadoria preocupar-se em traçar pontos de referência que articulassem uma leitura possível (o que as obras de artistas não estavam conseguindo fazer). Com essa intenção foi encomendada a Intervenção em Escala Urbana, conjunto de intervenções marcando alguns elementos da paisagem do evento (passarelas ferroviárias, viadutos de carros, as torres de escada). Projetada por estudantes de arquitetura (Renata Motta, Paula Santoro e Elísio Yamada), tornou-se de certa forma símbolo do evento12. Embora possamos falar de um repertório de operações artísticas acumulado na sucessão de eventos, e apesar da aproximação à questão urbana, esta edição mostraria-se problemática no que toca às intervenções. A maioria das intervenções mostrou dificuldade em responder aos locais ocupados: A escala da mostra, a dimensão dos prédios, as marcas de seu funcionamento no passado e no presente e, acima de tudo, sua relação com a cidade circundante colocaram uma série de questões estéticas, mas também políticas, sociais e urbanas. Os sites eram realmente fortes, e o elemento cidade suplantou o elemento arte. (ANDREOLI e SANTOS, p.290) O efeito dramático dos próprios sítios de a Cidade e suas Histórias e sua situação metropolitana se impunham, chocante e ruidosamente, sobre as intervenções artísticas. De maneira geral, estas se viram subordinadas à presença monstruosa do local, não conseguindo dialogar satisfatoriamente com ele. Ainda que diversos trabalhos tenham elaborado bem as questões do local (como as de Nelson Félix e Laura Vinci), como um todo o projeto assemelhou-se a uma simples exposição de obras, na qual o principal astro foi o “museu” em si. A grande quantidade de participantes talvez tenha sido um fator negativo, tornando a exposição demasiadamente aberta e plural; problemas decorrentes, talvez, de uma “curadoria demasiadamente aberta” e da “ausência de um discurso público articulado sobre a cidade de São Paulo” (Idem, p.291). 3.2. Sucesso e espetáculo A esta altura, a ocupação artística de locais degradados da cidade não era mais uma novidade em si; na verdade, depois do sucesso de público dos primeiros Arte/Cidade e da 12 A evidência da intervenção e o fato ter sido projetada por arquitetos ainda não-formados causou polêmicas e atritos de vaidade; insinuações chegaram a ser feitas a respeito de possíveis influências do pai de Renata Motta — Sérgio Motta, na época ministro de comunicações — no assunto. imensa expectativa gerada em torno da terceira edição13, esse tipo de atividade estaria mesmo passível de integrar-se à lógica de agitação cultural e marketing urbano que então já ganhava dominância14. A própria formação de um grupo de intervenção poderia indicar uma aposta no futuro desse tipo de operação cultural; o discurso dos organizadores, entretanto, falava em princípio contra a lógica “turística”. Brissac enfatizara que "Arte/Cidade não vai fazer um trajeto nostálgico, não vai ser um túnel do tempo, uma Disneylândia de sucata. É um embate com uma situação muito tensa" (in CARVALHO, 1995.). A fala de Giselle Beiguelman também é significativa: Uma das características mais interessantes do Arte/Cidade como um todo é a prática de dialogar com espaços de indiscutível peso simbólico para a leitura da história da cidade sem ceder à tentação de sucumbir à sua reificação. Uma reificação que só concorre efetivamente para esvaziar a historicidade dos lugares, como antigas fábricas, estações de trem, mercados, que são travestidos em shoppings ou centros culturais, com perfis absolutamente distantes das práticas sociais que fundaram sua construção. As restaurações desse tipo tendem a acreditar que a cultura ocorre em um lugar diferente da esfera pragmática da vida e por isso precisam colocar entre parênteses a historicidade dos lugares de que se apropriam. (in LUDEMANN, 1997, p.93). Ainda assim há interrogações: o porte imenso de a Cidade e suas Histórias, sua presença constante na imprensa, os grandes custos e apoios privados envolvidos, a ampla participação de grandes nomes das artes e da arquitetura brasileira e, em contraste a isso, o resultado artisticamente desconexo, ainda que marcante. Tais fatores apontam para uma tendência ao espetáculo que empreendimentos desse porte acabariam por tomar — possivelmente mesmo para além da vontade de seus organizadores; afinal, vetores de uma grande “reanimação cultural” paulistana eram buscados e celebrados pela imprensa, pelos patrocinadores e até mesmo pelo público. Seja como for, o evento trouxe contribuição substancial: possibilitou discussões e leituras da situação fragmentada e assustadora da metrópole, aproximando o foco para a configuração, construção e decadência da cidade. 13 Muitas atividades paralelas relacionadas ao evento aconteceram, ampliando a repercussão do assunto. Em 96, houveram seminários de discussão sobre a cidade e a história da linha férrea, as discussões sobre o Brasmitte e o lançamento de um documentário em vídeo e de um livro de Brissac — ambos com o nome Paisagens Urbanas; em 97 ocorreram duas exposições sobre Arte/Cidade: no SESC Pompéia, entre 22 de maio e 15 de junho, e na Bienal Internacional de Arquitetura de São Paulo, de 9 a 30 de novembro. 14 O jornalista Celso Fioravante chegou mesmo a falar que “um dos grandes hits das artes plásticas na cidade em 97 será a intervenção urbana” (FIORAVANTE, 1996). 4. A radicalização do projeto A situação dos anos entre 1997 e 2000 trouxe uma politização do discurso de Nelson Brissac — e, conseqüentemente, do Arte/Cidade — a respeito da natureza das relações entre arte, globalização e políticas urbanas. O Grupo de Intervenção Urbana passou por alterações e crises; Brissac, figura central do projeto, rompeu com várias pessoas e adotou uma posição mais pessimista e, ao mesmo tempo, mais abrangente e política frente à situação urbana. Num contexto de transição neoliberal e sob uma administração municipal particularmente problemática (a de Celso Pitta, marcada por crises e constantes denúncias de corrupção), São Paulo recebeu muitos investimentos e reestruturações através de operações econômicas globalizadas. Ao mesmo tempo, cultura e arte consolidavam-se como grande negócio: as “revitalizações” culturais tornaram-se fórmula comum, com a multiplicação e expansão de centros de arte, cultura e lazer. A situação parecia acenar para uma hegemonia irrestrita de grandes capitais privados e lógicas de mercado e propaganda sobre as realizações culturais e sobre as transformações urbanas — hegemonia apoiada, por sua vez, pelo próprio governo. Em contrapartida, nos meios intelectuais de esquerda acirrava-se naquele momento a crítica a tais tendências, particularmente à sua dimensão freqüente de exclusão social e apropriação privada do bem público15. Acontecimentos como a mega-exposição Brasil 500 anos, empreendida no Parque do Ibirapuera por uma empresa (hoje a Brasil Connects) eram saudados pela opinião pública geral como uma possível salvação para a situação de ineficiência das instituições públicas em promover a cultura; ao mesmo tempo, eram acusados por muitos como cooptação de instituições e espaços públicos por interesses financeiros privados. Os fins dados a algumas das locações Arte/Cidade eram indicativos das inclinações de mercado do fim de século: a agência desativada do Banco do Brasil tornou-se o Centro Cultural BB; o prédio da Eletropaulo virou o Shopping Center Light; a área das indústrias Matarazzo transformou-se no Centro Empresarial Água Branca, “um megaprojeto da Ricci Engenharia”.16 O próprio Brissac fez uma revisão e questionamento do papel que as três etapas de Arte/Cidade poderiam ter dentro de uma lógica perversa de ligação entre 15 Mesmo os procedimentos relacionados ao Viva o Centro adquiriam caráter conservador e excludente. (FRÚGOLI JR., 2000, p.92) 16 À exceção do Shopping, todas essas transformações já estariam previstas antes mesmo dos eventos Arte/Cidade (PEIXOTO, 2002, p.319). reestruturações urbanas e atividades artísticas; afinal, as intervenções ficaram na aparência dos locais, não abordaram tais processos e conseqüências. A quantidade de recursos e estruturas disponibilizados para o terceiro evento, porém, não permitiam que este fosse interpretado meramente em termos de produção cultural; principalmente quando um de seus realizadores — a Ricci Engenharia — lucrara muito com o local de intervenção. O caso mais impactante dessa conjuntura provavelmente foram as articulações em torno da São Paulo Tower a partir de 1999. Parceria de um empresário com a Maharishi Global Development Fund, era uma proposta de reestruturação urbana de proporções imensas a ser implantada no bairro do Pari (na zona leste) uma área central em decadência mas dotada de infra-estrutura. SP Tower juntava especulação imobiliária e gentrification descaradas, reestruturação “cenográfica” da paisagem urbana em larga escala e um amplo apoio — moralmente questionável — por parte do poder municipal (FRÚGOLI JR., 2001). A campanha de marketing vendia a operação como solução “serviços-lazer-cultura” para a situação caótica da zona leste, bem como uma nova referência urbano-arquitetônica de uma São Paulo em globalização. Embora não tenha sido realizada, o clima de certeza de sua vinda na época certamente teve forte influência nos rumos de Arte/Cidade. Se considerarmos que existiu um processo de transformação de proposta e discurso na sucessão de edições Arte/Cidade — e que tal desdobramento também implicou em uma maior imbricação com as questões urbanas — o período entre 1997 e 2000 estabeleceu uma radicalização crítica de tal processo, cujo resultado seria o quarto evento em 2002 (não previsto na idéia original): Arte/Cidade Zona Leste. 4.1. Evento na Zona Leste O embrião do quarto Arte/Cidade foi o Brasmitte, um projeto de intervenção artística de aspiração internacional, organizado pelo Grupo de Intervenção Urbana e o Instituto Goethe. Desenvolvido entre 1996 e 1999 — paralelamente ao Arte/Cidade — o projeto envolvia os bairros do Brás, em São Paulo, e de Mitte, em Berlim, com a proposta de discutir a globalização e a degradação urbana, características das mudanças econômicas da contemporaneidade. Não se concretizou como acontecimento e intervenções, mas rendeu uma série de discussões, seminários, estudos e diálogos com artistas, arquitetos e intelectuais estrangeiros; tornou-se o primeiro contato com a área, as questões e alguns dos participantes de Arte/Cidade Zona Leste, tendo certamente contribuído para um maior envolvimento com a cidade. A princípio o Brasmitte não possuía ainda ênfase crítica aos processos urbanos — ainda estava ligado, de certa forma, a uma idéia histórica e identitária, do Brás como um dos bairros tradicionais de São Paulo. Arte/Cidade Zona Leste, por sua vez, expandiu o recorte de bairro para o de região — envolvendo os bairros do Pari, Mooca e Belenzinho, além do Brás — procurando construir uma leitura estrutural desta. A aproximação às questões de compreensão e leitura da cidade aumentara desde o evento anterior, de forma que um levantamento extenso e detalhado da área foi realizado, buscando identificar pontos estrategicamente propícios para articular intervenções. A região contemplada pelo evento era central, aberta e muito movimentada; mas estaria longe de possuir espacialidade marcante ou a força simbólica de áreas como o Anhangabaú. A zona leste era caracterizada por lugares e edifícios em degradação, espaços desfigurados e desarticulados por viadutos e operações urbanas e, particularmente, pela ocupação informal desses espaços — comércio de camelôs, catadores de lixo, favelados e sem-teto — toda uma população nômade ou seminômade. A área trazia então muitas situações completamente novas para o projeto; além de tais usos irregulares da cidade, havia a forte presença de moradia (clandestina e regular) junto à área intervenção. Até então, o mais perto que Arte/Cidade estivera de habitação e de informalidade foram os resquícios da população marginal que compunha os então parcos moradores e “usuários” do edifício do Moinho em a Cidade e suas Histórias. De maneira inédita, a organização do evento levantou a gama de questões da área — extremamente contemporâneas — e propôs-se a evidenciá-las e discuti-las: pobreza e exclusão social, moradia e o trabalho informais, especulação imobiliária, desagregação do tecido urbano, descaso das autoridades e apropriação generalizada do espaço público (seja por camelôs ou por corporações). Arte/Cidade propõe uma nova modalidade de intervenção urbana: partir de toda uma região, compreendendo os processos de reestruturação urbana, os elementos arquitetônicos e as formas de ocupação existentes e as operações previstas ou em andamento. (PEIXOTO, 2002-3) Esta foi uma diferença em relação aos eventos pregressos: além da experiência da cidade e da leitura de sua configuração espacial, a escolha dos locais de intervenção teve ambição de instigar uma leitura dos processos urbanos. 4.2. Intervenções e polêmicas Em Arte/Cidade Zona Leste, o Grupo de Intervenção Urbana (formado agora apenas por Brissac, Giselle Beiguelman e o engenheiro Ary Perez), expressaria uma visão negativa dos rumos que as iniciativas culturais pareciam tomar no Brasil e no mundo no novo século. Mais do que qualquer outro Arte/Cidade, este evento tomou uma atitude de criação de polêmica e mobilização de opiniões, buscando contrapor-se ao processo global de “apropriação corporativa da arte e da cidade”. Além das intervenções, os eventos Arte/Cidade sempre incluíram palestras, vídeos, debates e publicações; em Arte/Cidade Zona Leste estas manifestações adquiriram, em geral, um tom mais controverso17. Além de cultura e arte, foram colocadas em pauta questões de urbanismo contemporâneo, incluindo especulações sobre novos instrumentais de mapeamento da metrópole e de suas dinâmicas; discussões e exposição contaram com a participação de artistas e arquitetos estrangeiros (uma novidade no Arte/Cidade), bem como de uma “estrela” internacional — o holandês Rem Koolhaas, um dos arquitetos mais famosos e influentes dos últimos anos. No todo, o evento resultante foi complexo, conflituoso e desigual, mas com as aspirações mais críticas e abrangentes de todo o projeto até então. A exposição final de Arte/Cidade Zona Leste (de março a abril de 2002) possuiu intervenções de vinte e oito participantes, das quais catorze estavam espalhadas por locais da zona leste e doze concentravam-se na torre leste das edificações abandonadas da Indústria Santista, transformadas em sede do SESC Belenzinho. A curadoria desta edição provavelmente foi a mais direcionada do projeto Arte/Cidade; sua posição indicaria também uma mudança de concepção e critério artísticos. Até a terceira edição, a arte era considerada por um prisma de percepção, experiência e representação, algo que traria uma nova relação simbólica e fenomenológica com a cidade: aqui se explicita a relação entre arte e cidade: trata-se de despertar a experiência do mundo de que toda arte é expressão. (...) Pois retornar às próprias coisas é voltar ao mundo anterior ao conhecimento, ao qual este sempre remete e com relação ao qual qualquer determinação científica é abstrata e dependente.(...) Retornar da geografia à paisagem. A função da arte é construir imagens da cidade que sejam novas, que passem a fazer parte da própria paisagem urbana. (PEIXOTO, 1996, p.13) As práticas artísticas dos Arte/Cidade precedentes poderiam ser encaradas como “ainda comprometidas com estratégias escultóricas em grande escala, percepção 17 Particularmente as duas publicações de Brissac de 2002: a “fotonovela sci-fi” as Máquinas de Guerra contra os Aparelhos de Captura (revista de tom paródico, ácido e quase panfletário) e o texto Isto aqui é um Negócio: operações de captura da arte e da cidade (que adota tom de denúncia às estratégias de comercialização da cultura e da cidade e veicula acusações diretas a instituições e pessoas). fenomenológica de objetos colocados no espaço”(PEIXOTO, 2002, p.319). Em Arte/Cidade Zona Leste, colocar a arte na cidade não teria tanto interesse por si só; a questão é tornar a arte um instrumento de leitura e de intervenção em processos, de manipulação de percepções e significados visando explicitar problemas e fomentar debates — intrometer-se, enfim, nas relações da vida “real” para além do jogo perceptivo. Os artistas estrangeiros teriam sido convidados justamente por sua experiência em criar controvérsias e trabalhar com processos. O poder da produção artística pode ser colocado a serviço da dominação ou da emancipação. Aos artistas cabe então elaborar defesas contra as estratégias de subordinação aos criadores. Máquinas que funcionem como armadilhas, fazendo o público participar do processo, detonando uma cadeia de discursos que engendre crítica. Inventar formas de ação inusitadas, operações que tenham um papel de catalisador: a opinião pública é um campo de batalha e o artista é aquele capaz de criar polêmica. Produzir intensos efeitos que rompam com as regras do jogo, muitas vezes pelo escândalo, o instrumento por excelência da ação artística. Desenvolver contra-poderes, ações simbolicamente eficazes e politicamente complexas, capazes de mobilizar uma força equivalente às forças que buscam enfrentar. (PEIXOTO, 2002 – 2) Foi visível uma certa polarização no evento: em um extremo, a concentração de intervenções “internas” e mais formais no SESC Belenzinho (a maioria dos brasileiros); de outro, as intervenções comunicativas ou processuais que foram para o espaço urbano (a maioria dos estrangeiros), as quais aparentavam estar mais afinadas com o discurso da coordenadoria18. Mais do que apenas chamar atenção para os problemas sociais da área, alguns trabalhos como os de Krzysztof Wodiczko, de Vito Acconci e de Maurício Dias e Walter Riedweg19 baseavam-se numa interlocução com os setores “informais”, excluídos da sociedade e das lógicas tradicionais de atuação urbana. As intervenções eram muitas vezes agressivas, suscitando estranhamento e muitas críticas.20 Muitas coisas saíram errado no evento, o mais “mundano e falível” do conjunto Arte/Cidade (MESQUITA, 2002). Embora o evento tenha sido realizado em 2002, seus projetos estariam prontos desde 2000; devido à falta de patrocínio, Arte/Cidade Zona Leste 18 As palavras de Nelson Brissac indicavam uma vontade de atualização da prática e discussão artística e urbanística brasileira; em entrevista, Brissac falaria que convidar artistas e arquitetos estrangeiros para trabalharem junto com os brasileiros também tinha como objetivo estimular um “aggiornamento generalizado” por meio do choque entre as diferenças destes. 19 Respectivamente, um protótipo de veículos para catadores de lixo, uma estrutura arquitetônica de apoio para moradores de rua e vídeos e estampas de camelôs em uma aglomeração destes. 20 A obra de Acconci foi particularmente muito criticada pela exposição a que submeteria os sem-teto. ficou em espera durante dois anos21. Em razão das mudanças que seus sítios sofreram durante o período, certas obras tiveram de ser repensadas ou relocadas meio que às pressas, como a de Vito Acconci. Além disso, antes de 2000 o SESC não havia ocupado a torre leste onde ocorreria o evento; em 2002 já iria convertê-la em parte da unidade Belenzinho. A instituição exerceu então um relativo domínio sobre o evento, impondo medidas como limitações no acesso do edifício e a presença de monitores para visitas guiadas às obras espalhadas na cidade; isso acarretou em atrito com os organizadores22. A maioria dos outros problemas foram conseqüências de lidar com um contexto dinâmico e agressivo (como o cancelamento da proposta de Rem Koolhaas para o edifício São Vito devido ao crime organizado que dominava o prédio). De uma forma geral, a exposição foi a mais forte de Arte/Cidade; já de início teve o mérito de fazer pessoas andarem pela vitalidade ofensiva da zona leste — principalmente de trazer os costumeiros “consumidores de cultura” para uma área pela qual dificilmente passariam. Foi também a que teve a recepção mais irregular pelo público (muitos nem souberam que havia obras espalhadas pela cidade) e a que mais comprou brigas e gerou debates. Apesar de tudo, as repercussões da experiência sobre os destinos da cidade permanecem praticamente nulas. 5. Conclusão Pela opção de constituir uma leitura essencialmente macro de um objeto tão complexo, este texto acabou por se dedicar mais a propostas e discussões que à crítica dos resultados. Isso periga dar ao Arte/Cidade uma aparência mais uniforme e coerente do que a que ele talvez tenha possuído realmente: o projeto, para bem e para mal, foi marcado pela multiplicidade e descontinuidade. Por sua estrutura aberta e variável, os eventos — com seus participantes e realizadores — podem ser entendidos como uma conjunção complexa de fatores, um “corpo difuso” gravitando em torno de alguns pontos e vetores, dos quais o principal seria Nelson Brissac e suas propostas. Em vista do que foi apresentado, parece claro que houve uma mudança significativa nas concepções projeto Arte/Cidade, na qual o segundo termo do binômio ganhou cada vez mais importância e centralidade. Seria razoável concluir também que essa imbricação progressiva com os problemas urbanos assinalaria uma posição mais política, mais pública 21 Segundo entrevista dada por Brissac ao autor (já citada). 22 Idem. por parte do evento; ainda assim, questões permanecem sobre os termos e a efetividade dessa crítica. Após vários Arte/Cidade, pode-se questionar se tais realizações, em sua condição de eventos culturais, não estariam se transformando em algo mais seguro, previsível e espetacular; se algo de seu potencial crítico estaria diminuído, mesmo com a adoção de um discurso mais político e mais afastado da suposta neutralidade da “autonomia artística”. Além disso, há a questão dos interesses envolvidos na concretização dos eventos: o empreendimento ainda é dependente de patrocínios e apoios culturais — e mesmo evitando a simples demonização das empresas, não poderíamos partir do princípio de que seu apoio deve-se prioritariamente a interesses artísticos. Em defesa do projeto, pode-se argumentar que este ainda estaria longe de ser uma atividade estável — o fato de que ainda não foi possível lançar um catálogo de Arte/Cidade Zona Leste por falta de fundos é significativo a esse respeito. O que foi exposto aqui permite encará-lo como um conjunto de eventos cuja materialização dependeu essencialmente da conjunção de fatores múltiplos e contingenciais, que realmente procurou manter um caráter experimental. Não seria fruto tanto de estratégias de ocupação, mas de inserções táticas em situações dadas — tanto culturais quanto urbanas. Mesmo no momento em que o projeto se aproximou mais da lógica de um mega-evento — a terceira etapa — ele ainda estaria longe de poder catalisar por si grandes negócios ou o “destino” imobiliário dos locais ocupados, assim como dificilmente poderia ser um modelo reproduzível e seguro. Sua não-repetição é um dado importante. O fato de cada evento ser maior e diferente do anterior, claro, não é por si indicador de uma intenção crítica; pelo contrário, é algo perfeitamente compatível com a lógica produtiva de comércio e propaganda. O discurso público e as intervenções, porém, apontam intenções que fogem à simples celebração da cidade e da cultura. Além de apenas uma variação de locais e participantes, então, ocorreu uma alteração de questões contempladas que está bem além de meras renovações temáticas do circuito cultural. A mudança de foco do Arte/Cidade poderia ser esquematizada assim: a primeira edição teria a cidade como elemento de trabalho da arte; a segunda, a arte como presença que acarreta uma experiência da cidade; a terceira edição teria a arte como intervenção que provoca uma leitura da cidade; e a última, a arte como agenciamento de relações e instrumento comunicativo de crítica à cidade23. O projeto gradativamente tornou-se menos estético e expressivo e mais prático e propositivo; a questão não seria mais de “elaborar estratégias para confrontar o espaço institucional e o consumo de arte” mas sim de “encontrar um caminho para a arte lidar com a vida na era da globalização” (ANDREOLI e SANTOS, p.285). Nesse caminho, o projeto se aproximaria efetivamente de uma concepção mais pública e ativa de arte que, na generalização da cultura-consumo, representaria algo muito positivo. Contudo, é importante não confundir aqui os argumentos com os acontecimentos: pouco da discussão teórica e prática sobre a cidade de Arte/Cidade Zona Leste se consolidou realmente. Além disso ainda há a questão do alcance de público: apesar da grande abertura de todos os eventos, superando o elitismo social que costumeiramente cerca a arte, é necessário perguntar-se o quanto é possível que a crítica seja absorvida quando o próprio público em geral espera pouco mais do que espetáculo e consumo. Houve certamente uma cota de espetáculo em torno das edições de Arte/Cidade, até mesmo porque o sucesso de público e de mídia é uma condição da própria efetivação de um empreendimento desta magnitude. O sucesso é que conquista investimentos, patrocínios e negociações: diante desse fato, é pertinente questionar a condição do Arte/Cidade para criticar o envolvimento entre arte e empresas, como fez no quarto evento, se ele mesmo depende de investimentos empresariais. O sucesso e o espetáculo, porém, também são portas para a visibilidade pública de uma crítica. Uma oportunidade de choque, polêmica e reflexão ocorrera verdadeiramente — uma conquista notável numa cena dominada por utilitarismo, alienação e insensibilidade em relação à realidade urbana cotidiana. Mesmo tendo de enfrentar dificuldades e de ser mundana, irregular e falível, a crítica é passível de ser construída no meio cultural; mais ainda, é necessária. Bibliografia ANDREOLI, Elisabetta, e SANTOS, Laymert Garcia dos. “Arte pública, cidade privada”. In PEIXOTO, Nelson Brissac (org). Intervenções Urbanas: Arte/Cidade. São Paulo: Editora SENAC São Paulo, 2002. ARANTES, Otília. Urbanismo em Fim de Linha. São Paulo: EDUSP, 1998. 23 Me limitei apenas ao fator diferencial das etapas, mas todos estas possuíram trabalhos artísticos mais ou menos enquadráveis nos conceitos das precedentes. CARVALHO, Mario César. “O futuro do passado”. Folha de S. Paulo, São Paulo, 29 de outubro de 1995. FARIAS, Agnaldo. “Arte/Cidade”. In SECSP - Secretaria de Estado da Cultura de São Paulo. Arte/Cidade: Cidade sem Janelas (catálogo). São Paulo: Editora Marca D’Água, 1994. FIORAVANTE, Celso. “Cidade terá intervenções”. Folha de São Paulo, São Paulo, 31 de dezembro de 1996. FOSTER, Hal. Recodificação: arte, espetáculo, política cultural. São Paulo: Casa Editorial Paulista, 1996. FRÚGOLI JR., Heitor. Centralidade em São Paulo: trajetórias, conflitos e negociações na metrópole. São Paulo: Cortez/EDUSP, 2000. Grupo de Intervenção Urbana. Arte/Cidade: a Cidade e suas Histórias (catálogo). São Paulo: Editora Marca D’Água, 1997. LUDEMANN, Marina (editora). Brasmitte: Intervenções Urbanas São Paulo – Berlim. São Paulo: Goethe Institut/SESC, 1997. MATOS, Olgária Chain. “Contemplações Invisíveis à Procura do Lugar”. In SECSP. Arte/Cidade: a Cidade e seus Fluxos (catálogo). São Paulo: Editora Marca D’Água, 1994. MESQUITA, Tiago. “Mais mundana e falível”. Reportagem, nº 32, maio de 2002. PEIXOTO, Nelson Brissac (org). Intervenções Urbanas: Arte/Cidade. São Paulo: Editora SENAC São Paulo, 2002. _________. Paisagens Urbanas. São Paulo: Editora SENAC, 1996. _________. Arte/Cidade: as Máquinas de Guerra contra os Aparelhos de Captura. São Paulo: Gráfica Garilli, 2002 - 2. _________. Como Intervir em Grande Escala? In pucsp.artecidade.com.br. 2002 -3 _________. Isto aqui é um Negócio: operações de captura da arte e da cidade. s/ed., 2002. SECSP - Secretaria de Estado da Cultura de São Paulo. Arte/Cidade: Cidade sem Janelas (catálogo). São Paulo: Editora Marca D’Água, 1994. _________. Arte/Cidade: a Cidade e seus Fluxos (catálogo). São Paulo: Editora Marca D’Água, 1994. Imagens 1. Cidade sem Janelas Figura 1 Edifício do matadouro central Fonte: SECSP, 1994 Figura 3 Lambe-lambe, de Arnaldo Antunes (fundo); intervenção de Anne Marie Sumner (frente). Fonte: PEIXOTO, 1996 Figura 2 Inferno, de Arthur Omar. Fonte: SECSP, 1994 Figura 4 Intervenção de José Resende. Fonte: PEIXOTO, 2002 2. A Cidade e seus Fluxos Figura 5 Seqüência de imagens do Anhangabaú. Fonte: www.pucsp.artecidade.com.br Figura 6 Periscópio, de Guto Lacaz. Fonte: PEIXOTO, 2002. Figura 7 Viaduto do Chá (Vale do Anhangabaú) Detector de ausências visível. Fonte: PEIXOTO, 1996. Figura 8 Detector de ausências, de Rubens Mano. Fonte: SECSP, 1994. 3. A Cidade e suas Histórias Figura 10 Intervenção de José Spaniol Fonte: PEIXOTO, 2002. Figura 9 Área das Indústrias Matarazzo (a Intervenção em Escala Urbana sobre as passarelas e o viaduto está visível). Fonte: Grupo de Intervenção Urbana, 1997. Figura 11 Área do Moinho Central (a Intervenção em Escala Urbana sobre as torres de escada está visível) Fonte: Grupo de Intervenção Urbana, 1997. Figuras 12 e 13 Intervenções de Nelson e Félix e Laura Vinci (interior do moinho) Fonte: Fonte: PEIXOTO, 2002. 4. Arte/Cidade Zona Leste Figura 14 Imagem do Brás (com o Edifício São Vito). Fonte: Fonte: LUDEMANN, 1997. Figuras 15 e 16 Favela e camelôs na zona leste Fonte: www.pucsp.artecidade.com.br Figuras 17 e 18 Intervenções de Angelo Venosa e de Avery Preesman (locadas no SESC Belenzinho). Figuras 19 e 20 Trabalhos de Maurício Dias com Walter Riedweg e de Krzysztof Wodiczko (locados na cidade)