Adrien-Marie Legendre

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Adrien-Marie Legendre
CO 44: Adrien-Marie Legendre (1752-1833): uma biografia articulada
Maria Aparecida Roseane Ramos
Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia
[email protected]
RESUMO
Um estudo biográfico tem que estar articulado à imagem de um indivíduo como personagem de
sua época, sem correr o risco de tornar a biografia excessivamente romântica, heroica, técnica ou
anedótica. Segundo Hankins apud Taton (HANKINS apud TATON, 2000, p. 531-2, tradução nossa),
o conjunto dos elementos biográficos precisos, de manuscritos inéditos e, de correspondências
não constituem em si uma biografia satisfatória de um cientista. Ele deve ser elaborado com a
finalidade de unificar e evocar os diferentes aspectos de sua vida, de maneira a contribuir para
uma análise de sua obra, de suas relações e de sua influência na sociedade. O presente trabalho é
um dos resultados da minha tese Adrien-Marie Legendre (1752-1833) e seus trabalhos em Teoria
dos Números realizada na Universidade Federal do Rio Grande do Norte em 2007-2009 onde
analisamos todas as obras deste matemático em Teoria dos Números bem como elaboramos um
estudo histórico sobre a vida do matemático francês articulado à cronologia de quatro momentos
políticos mais importantes da sociedade francesa: o Antigo Regime (1752-1789), a Revolução
Francesa (1789-1799), o Primeiro Império de Napoleão (1803-1814) e a Restauração (1814-1833).
As fontes históricas nos revelaram que Legendre teve uma vida totalmente dedicada às ciências,
porém, nas entrelinhas, ela é recheada de ricos episódios que evocaremos no presente trabalho.
Enquanto membro da Academia de Ciências de Paris e da Sociedade Real de Londres Legendre
contribuiu com importantes trabalhos em vários ramos das ciências. O seu nome é sempre
associado a várias proposições e símbolos nos ramos da Astronomia, da Física e da Matemática
através de seus trabalhos sobre Mecânica Celeste, Funções Elípticas, Cálculo Diferencial e Integral
e Estatística. O seu livro “Elementos de Geometria” (Élements de Géométrie, 1794), ganhou o
prêmio no concurso nacional de livros didáticos e foi publicado na França e em vários países,
tornando-se um “best seller”, uma vez que os seus milhares de exemplares vendidos lhe
renderam fama e uma grande fortuna na época. Em 1792 Legendre se casou com MargueriteClaudine Couhin que era muito mais jovem do que ele. O casamento durou 40 anos e no final de
sua a vida sua esposa ainda o ajudou a superar a perda financeira na ocasião da Revolução
Francesa.
Palavras chaves: Legendre, Biografia, Sociedade Francesa.
Introdução
O presente trabalho é parte da minha tese Adrien-Marie Legendre (1752-1833) e seus
trabalhos em Teoria dos Números em que realizamos um estudo histórico da vida do matemático
francês articulado à cronologia de quatro momentos políticos mais importantes da sociedade
francesa. Adrien-Marie Legendre nasceu em 1752 em Paris e faleceu em 1833 nesta mesma
cidade. Ele é da geração de grandes matemáticos como Lagrange (1736-1813), Laplace (17491827), Monge (1746-1818) e Gauss (1777-1855)1. Cronologicamente a sua vida passou por quatro
períodos da história da França a saber, o Antigo Regime, a Revolução Francesa, o primeiro
Império de Napoleão e a Restauração. Com base em cada um desses períodos, abordaremos a sua
vida pessoal, acadêmica, política e profissional num ambiente favorável ao meio científico e da
sociedade em geral. Apresentaremos um panorama da trajetória da vida do matemático AdrienMarie Legendre (1752-1833) com fontes históricas garimpadas no Instituto de Epistemologia e
História da Matemática François Viète na realização do doutorado sanduíche na Universidade de
Nantes, norte da França, em 2009. O matemático Legendre foi o alvo de um episódio envolvendo
o seu “falso” retrato em dezembro de 2008 em certa página de discussão da Internet francesa. O
longo debate envolveu uma litografia realizada por Delpech (RAMOS, 2010, p. 62) a partir de uma
gravura provavelmente inspirada num retrato de Zéferin Belliard (RAMOS, p. 65), retrato esse
(Figura 1), que está na Enciclopédia Britânica, nos arquivos da Academia de Paris bem como está
em todas as biografias do matemático A.-M. Legendre. Tempos depois, o mistério do “falso”
retrato foi plenamente desvendado no artigo de Duren (DUREN, 2009) que por comparação de
retratos da época, constatou que o retrato se tratava de um de seus homônimos
contemporâneos, Louis Legendre (1756-1797), um político francês da Revolução Francesa. A única
imagem verídica do matemático Legendre que temos conhecimento é a que está numa aquarela
caricatura de Boilly (RAMOS, 2010, p. 67) conforme Figura 2:
1“É verdade que em torno dos trabalhos de Gauss na Alemanha, o período de 1795 – 1815 a matemática foi
marcada por uma forte escola francesa dominada pelos três grandes: Lagrange, Laplace, Monge, os quais
podemos associar Legendre rodeado de uma constelação de matemáticos de qualidade.”(Dhombres;
Dhombres, 1989, p. 357).
2
Figura 1: O falso retrato de A.-M. Legendre
Figura 2: Caricatura de A.-M. Legendre por Boilly
Fonte: DUREN (2009)
Fonte: RAMOS (2010)
No entanto, o retrato de Louis Legendre (Figura 1) ainda hoje é considerado como sendo do
matemático Legendre a exemplo de uma recente dissertação de mestrado do PROFMAT 2 sobre
funções elípticas de Jacobi do ano de 2013.
Legendre e o antigo regime (1752-1789)
No Antigo Regime, organização social que prevaleceu na França do século XV ao século
XVIII, a população foi dividida em três ordens hierárquicas distintas: o clero, a nobreza e o terceiro
estado. Essa última classe era muito heterogênea e 95% dela era constituída pela população que
vivia no campo e na cidade, enquanto que a nobreza formava um corpo sem unidade, com
reacionários e liberais, grandes senhores e barões. Tal situação fez surgir uma nova classe
denominada burguesia, oriunda da população do terceiro estado que procurava imitar a vida dos
nobres. Ilustres escritores e cientistas dos séculos XVII e XVIII, dentre eles Molière (1622-1673), La
Fontaine (1621-1695), D´Alembert (1717-1783), Voltaire (1694-1778), Diderot (1713-1784) se
posicionaram contra a sociedade de ordens através do teatro de comédia, de contos filosóficos,
2
Programa de Mestrado Profissional em Matemática em Rede Nacional.
3
das fábulas, de obras científicas e históricas que contribuíram para o desenvolvimento do espírito
humano. Foi no século XVIII que o pensamento crítico atingiu o seu auge, no fim do reinado de
Louis XIV. Os filósofos das Luzes criticavam a desigualdade jurídica e social onde se destacava
Rousseau que defendia que o indivíduo e não a sociedade que era o centro de sua reflexão. Foi
nesse contexto que Adrien-Marie Legendre nasceu no dia 18 de setembro de 1752 em Paris em
uma família, que embora não pertencesse à nobreza era considerada uma família de posses.
Legendre estudou no Colégio Mazarin, antigo Colégio das Quatro Nações, uma das escolas mais
avançadas do século XVII. Nessa escola ele se interessou por literatura antiga e por livros de
científicos, especialmente os de Matemática, cujo talento precoce o possibilitou aos 18 anos
defender sua tese em Matemática e em Física concluindo seus estudos no Colégio Mazarin. Em
1774, aos 22 anos, publicou um tratado de mecânica com Joseph-François Marie3, seu professor
de Matemática e de Física do Colégio Mazarin. Um ano depois Legendre se tornou professor da
Escola Militar de Paris onde ficou até 1780. No século XVIII a Europa no era governada pelos
déspotas esclarecidos, a exemplo de Frédéric II, o Grande de Berlim, Pierre o Grande, Catherine a
Grande de São-Petersburgo, Louis XV e Louis XVI em Paris. Tais monarcas foram, respectivamente,
os mecenas de Gauss, Euler (1707-1783) e Lagrange que sustentavam os acadêmicos em prol do
desenvolvimento intelectual no século das Luzes e da capacidade militar e industrial de seus
reinos. Além disso, a ciência do século XVIII era praticamente universal, herdeira e continuação
direta do magnífico desenvolvimento do pensamento científico da Europa ocidental da
Renascença. Neste contexto, o meio científico francês era movido pela fértil criação dos
acadêmicos das províncias e sobretudo da Academia de Paris, cujos concursos anuais eram
disputados pelos maiores cientistas da Europa. Em 1782 Legendre recebeu o prêmio da Academia
de Ciências de Berlim pelo trabalho sobre trajetórias de projéteis em ambientes resistentes
(Trajectoires des projectiles dans les milieux résistants) e não tendo nenhum outro meio para
sobreviver, o prêmio o ajudou a se dedicar exclusivamente às suas pesquisas. Neste mesmo ano,
ele demonstra com originalidade que a forma elipsoidal era a única forma conveniente a uma
massa fluida e homogênea no movimento de rotação (Figure des planètes, 1782). Aos 31 anos,
Legendre se tornou membro assistente em 30 de março de 1783 quando substitui Laplace que era
membro efetivo da classe de Mecânica, durante a reorganização da Academia de Ciências de Paris
3
Joseph-Marie foi misteriosamente assassinado na Revolução Francesa. (RAMOS, p. 22)
4
como Academia Real de Ciências no primeiro império de Napoleão. Em 1785 ele publicou na
Academia de Paris alguns estudos sobre a Análise Indeterminada (Recherches d'analyse
indeterminée) que foi o primeiro de vários trabalhos em Teoria dos Números, composto por
quatro artigos, contendo em particular, o célebre teorema de reciprocidade quadrática4. Em 23 de
abril desse mesmo ano, Legendre, juntamente com os astrônomos Jean Cassini (1748-1845) e
Pierre Méchain (1744-1804) foi designado pela Academia para realizar as medidas geodésicas de
Greenwich à Paris em 1787. Na época Legendre utilizou métodos analíticos para a determinação
do arco do meridiano de Greenwich à Paris por meio de triângulos esféricos bem como os que
religavam a costa da Inglaterra à Greenwich. Em virtude desse trabalho, em abril de 1789,
Legendre foi eleito membro da Sociedade Real de Londres. Influenciados pela excepcional física
newtoniana e pelo cálculo leibziano do século XVII os franceses, Maupertuis (1698-1759), Clairaut
(1713-1765), D'Alembert, Lacroix (1765-1843), Laplace, Legendre, Monge, juntamente com os
estrangeiros Euler, Lagrange e Gauss, que eram membros da Academia de Ciências de Paris
constituíram a vanguarda de brilhantes matemáticos do século XVIII, época favorável à difusão do
conhecimento matemático preparando o cenário para o desenvolvimento de novas teorias no
século XIX. Por muitos anos, Legendre publicou importantes resultados tanto na Matemática
quanto na Física, nos diversos trabalhos da Academia de Paris: em 1786 ele criou os polinômios
que levam o seu nome, os polinômios ortogonais Pn de grau n, definidos no intervalo [-1, 1], onde
Pn (1) = 1. Tais polinômios foram frutos de seus trabalhos em teoria do potencial relacionada às
funções harmônicas de Laplace. Nesse período, Legendre foi um dos primeiros a lançar os
fundamentos da teoria de funções elípticas que posteriormente foi aperfeiçoada por Abel (18021829) e Jacobi (1804-1851). Ainda no ano de 1786, desenvolveu estudos do Cálculo Variacional,
onde forneceu um critério para distinguir os máximos dos mínimos. Sua demonstração que não
continha muito rigor foi corrigida somente em 1836 por Jacobi. (RAMOS, 2010, p. 21-25)
4
Utilizando a simbologia de Legendre, a proposição possui o seguinte enunciado: “Dados dados dois
 n  m
n
  =   , e se eles forem da forma 4x + 3,   = −
m  n 
m
m 1 n 1

m
n
m
m
  . Ambas as fórmulas satisfazem o caso geral   = (1) 2 2    , onde as expressões   ,
n
m
n
n
n 1
m 1
n
  , são, respectivamente, o resto da divisão de m 2 por n e o resto de da divisão de n 2 por m esses
m
números primos ímpares m e n, sempre teremos
restos são, respectivamente, +1 ou −1. (RAMOS, 2010, p. 53)
5
Legendre e a Revolução Francesa (1789-1799)
No século XVIII enquanto que a sociedade feudal francesa estava em decadência, nas
grandes cidades como Paris, Marselha, Lyon, engenheiros, armadores de barcos estabeleciam
entre si uma sólida rede de interesses com visas ao poder econômico. A Revolução francesa
surgiu em virtude da resistência das classes nobres que não queriam abrir mão de privilégios e a
incapacidade da monarquia para reconduzir os acontecimentos sócio-políticos. Do ponto de vista
institucional, o novo poder proclamou como direito fundamental a igualdade de todos os
cidadãos invertendo radicalmente o elitismo que perdurou no Antigo Regime. Esse período fez
parte de uma etapa muito importante no desenvolvimento social, político e educacional do povo
francês, com repercussão não só na Europa mas no resto do mundo. Enquanto alguns
matemáticos se engajaram no poder político vigente, como Monge que foi ministro da marinha
em 1792, posteriormente fundou a Escola Politécnica no governo de Napoleão e foi membro do
Instituto Nacional, Carnot (1753-1823) que foi deputado em 1793 e membro do Comitê de Saúde
Pública e Condorcet (1743-1794) que, perseguido pela revolução que tanto apoiara, se
envenenou dois dias após sua prisão em 1794. No entanto, a vida de Legendre era totalmente
alheia aos acontecimentos da queda da Bastilha. Ele não teve papel político algum durante a
Revolução, se contentando em ocupar postos públicos como Conselheiro em universidades,
professor da escola Normal e examinador da Escola Politécnica. Em junho de 1789 a Academia de
Ciências de Paris instituiu uma comissão formada por cientistas como o químico Lavoisier (17431794), o matemático Laplace, o físico Brisson (1723-1806) para o estabelecimento de um sistema
métrico único de pesos e medidas para toda a França que gerou uma mobilização política dos
acadêmicos junto à Assembleia Nacional. Em 1790 o ministro Taylerand propõe à Constituinte a
criação de comissões formadas pelos membros da Academia de Paris e da Sociedade Real de
Londres. Um documento foi elaborado pelos acadêmicos franceses Borda (1733-1799), Lagrange,
Laplace, Monge e Condorcet em 19 de março de 1791 para a determinação de uma unidade
padrão de medida. Após profundas discussões, em 1790, o nome metro, do grego metron
(medida), sugerido pelo matemático Auguste Leblond (1760-1811), foi o escolhido como a décima
milionésima parte do quarto do meridiano calculado segundo a medida do arco entre
Dunquerque e Barcelona. Somente em 1795 Legendre fez parte da comissão que realizaria os
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últimos cálculos para o estabelecimento do sistema métrico único e permaneceu nessa comissão
até 1805. Três anos antes Legendre se casou com Marguerite-Claudine Couhin, muito mais jovem
do que ele, que foi sua esposa por 40 anos e que no final de sua a vida o ajudou a superar a perda
financeira durante a Revolução Francesa, quando equilibrou as finanças do casal, conforme carta
de Legendre a Jacobi de 30 de junho de 1832: “Casei-me numa idade avançada e depois de uma
revolução sanguinária que destruiu minha fortuna, a minha esposa me ajudou a restaurar
progressivamente os meus negócios.” (LEGENDRE apud JACOBI, 1998, p. 460, tradução nossa).
Com a supressão da Academia de Paris em 1793, a divulgação de saberes científicos na França era
realizada por trocas de cartas entre os cientistas ou na publicação em outros meios. Em 1794 foi
publicada a primeira edição do famoso livro de geometria (Éléments de géométrie) de Legendre,
obra que recebeu o prêmio especial no concurso de livros didáticos para o ensino elementar
francês cujo conteúdo foi escrito com simplicidade com o uso do método axiomático e analítico.
Nele encontramos uma demonstração da irracionalidade de , de
2
e a conjectura de que o
primeiro número era transcendente. Na época, o livro foi recorde de venda, com mais de cem mil
exemplares vendidos, o que assegurou uma fortuna para o seu autor. O livro foi traduzido para o
árabe e adotado nas escolas do Egito. No início do século XX ele se tornou uma referência no
ensino superior de geometria nos Estados Unidos. Em 1795, o trabalho de Legendre sobre
funções elípticas (Mémoire sur les transcendantes elliptiques) foi lido na Academia de Ciências de
Paris, e somente nesse ano que ele conseguiu publicá-lo com seus próprios meios, fora do circuito
acadêmico. Em outubro deste ano o Instituto Nacional de Ciências e de Artes foi criado no
governo revolucionário francês e vários acadêmicos foram convidados para assumirem cadeiras
como professores nessa instituição. Nessa época Legendre não ocupou nenhuma delas e somente
foi convidado depois de reivindicações de seus colegas. O Instituto era composto por dez seções
diferentes, cada uma com seis lugares, e assim Legendre foi eleito membro residente da primeira
classe da seção de matemática em 13 dezembro de 1795. Em 1798 ele publica a sua primeira
edição de Ensaio sobre a Teoria dos Números (Essai sur la théorie des nombres) que na época foi
considerado como o primeiro tratado da aritmética analítica superior, pela compilação de
variados assuntos frutos de suas pesquisas e de outros matemáticos, como Euler e Lagrange.
(RAMOS, 2010, p. 25-35)
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Legendre e o primeiro Império Napoleônico (1803-1814)
A dissolução da Academia de Ciências de Paris em 1793 resultou na implantação das
Escolas Normais e Centrais que definiram o ensino elementar de matemática, ciências físicas e
naturais e as Escolas Militares e Escolas Politécnicas, que definiram o ensino superior para o
estabelecimento de instituições científicas, militares e técnicas. O planejamento do ensino francês
durante o período revolucionário proporcionou à população um ensino mais moderno com um
corpo docente qualificado, constituído pelos acadêmicos mais importantes da época, como
Laplace, Lagrange, Monge com visas à formação de um grande número de cientistas e de técnicos
com amplo acesso às descobertas mais recentes A chegada do Império de Napoleão, que
inspirado pela Revolução, centralizou o ensino na engenharia militar. Graças a sua grande
organização, a Escola Politécnica se tornou uma centro educativo de maior prestígio de modo a
permitir o avanço da matemática intimamente ligada à prosperidade do Estado para a resolução
de problemas balísticos e hidráulicos. Assim com os cientistas a serviço do Estado, Paris reunia os
melhores especialistas da matemática pura de toda a Europa. Em geral quem possuía uma
formação científica, particularmente em matemática, pertencia ao Instituto Nacional que foi
reorganizado por Napoleão em 1803 cujo estatuto continha instruções precisas do governo que
foi decisiva para o desenvolvimento do ensino de matemática. Durante a reorganização do
Instituto, Legendre ocupou um lugar na seção de geometria e foi eleito vice-presidente da classe
pelo período de 1804-1805, e presidente de 1805 a 1806. No período revolucionário, a nova
função de ensino exercida pelos acadêmicos estimulou a confecção de livros textos bem como a
divulgação no Jornal da Escola Politécnica de conferências, de estudos dos professores e alunos.
Nesse contexto, no duplo papel de autor e expert no processo de publicação, Legendre produziu
importantes trabalhos nas áreas de matemática, mecânica, estatística e análise. Citemos alguns
mais importantes: seus métodos para determinar órbitas celestes de 1805 (Nouvelles méthodes
pour la détermination des orbites des comètes)5 é uma obra no qual ele utiliza fundamentos da
estatística e sistema de equações do primeiro grau para criar uma régua de cálculos na
determinação de pequenas medidas de trajetórias de cometas, por meio de um método
denominado por ele de mínimos quadrados. Posteriormente dois suplementos foram publicados
5
Os Nouvelles méthodes aparece no livro Trente ouvrages de Mathématiques qui ont changé le monde de
Samueli; Boudenot (2006) como uma das 30 obras mais importantes do meio matemático.
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em 1810 e 1820, embora Gauss de forma independente já tinha obtido o mesmo resultado em
1795, que foi publicado em 1809 e o mesmo ocorreu com Laplace em 1812. Dando continuidade
aos estudos sobre Teoria dos Números, Legendre publica uma segunda edição de Essai sur la
Théorie des nombres em 1808 onde Legendre demonstra o grande Teorema de Fermat para n = 5
bem como escreve dois suplementos em 1816 e 1825. Em 1809 dando sequência às pesquisas
sobre integrais eulerianas presentes em seu Mémoire sur les transcendantes elliptiques de 1793,
ele publica um trabalho sobre integrais definidas (Recherches sur diverses sortes d'intégrales
définies). Em 1810 são publicados três trabalhos: o primeiro é um dos três volumes sobre o
cálculo integral (Exercices de calcul integral), o segundo aborda o método que é usado em
estatística o método dos mínimos quadrados (Méthode des moindres carrés pour trouver le milieu
le plus probable entre les résultas de différents observations) e por último, desenvolve estudos
sobre atração de elipsoides homogêneos (Mémoire sur les attractions des ellipsoïdes homogènes).
Embora não tenha seguido uma carreira política, sua vida acadêmica foi complementada por
cargos públicos: em 1808 Legendre foi nomeado Conselheiro Titular da recém criada Universidade
Imperial e membro do Conselho de instrução pública, bem como membro da Legião de Honra
enquanto que nesse mesmo ano os acadêmicos Lagrange, Laplace e Monge, agraciados pelo
Império se tornaram condes e Fourier barão em 1810. Após a morte de Lagrange em 1813,
Legendre ocupou o lugar vago no Bureau de Longitudes, onde permaneceu até a sua morte em
1833. (RAMOS, 2010, p. 35-39)
Legendre e a Restauração (1814-1830)
A Restauração foi o período da história francesa que vai da queda do primeiro Império
napoleônico em 6 de abril de 1814 à segunda Revolução de 1830. Nesse período o número de
publicações diminuiu e, pouco a pouco Legendre retoma as suas pesquisas, e às obras
anteriormente citadas durante o regime imperial podemos acrescentar os Exercices de Calcul
Intégral com três volumes cujo primeiro volume de 1811 introduziu os fundamentos das
propriedades de integrais elípticas, o segundo de 1817, contém estudos profundos sobre as
funções gama aplicados à mecânica da rotação da terra e o terceiro de 1819 contém as tabelas
com valores numéricos de integrais elípticas. Em 1816, 1823 et 1825, ele publica,
9
respectivamente, o primeiro suplemento de Essai sur la théorie des nombres, uma demonstração
do Teorema de Fermat (Mémoire Recherches sur quelques objets d'analyse indéterminée et
particulièrement sur le théorème de Fermat), o segundo suplemento de Essai sur la théorie des
nombre. Em 1825 seu tratado sobre funções elípticas e integrais (Traité des fonctions elliptiques et
des intégrales eulériennes) lança as bases para estudos aperfeiçoados duas décadas depois por
Jacobi e Abel. Em março de 1832, a apenas alguns meses de sua morte, ele publica um terceiro e
último suplemento que contém três trabalhos com pesquisas realizadas por Abel e Jacobi. Por
muitos anos o postulado das paralelas atraiu a atenção de um grande número de matemáticos e
Legendre tentou demonstrá-lo, segundo ele, no desejo de aperfeiçoar seus Eléments de
Géométrie de 1794. Em 1829 ele realizou esse feito, ao apresentar uma demonstração em parte
analítica, em parte sintética estabelecendo uma relação entre o quinto postulado e a igualdade da
soma dos ângulos internos de triângulos a um ângulo reto, em seu célebre Mémoire Réflexions sur
différentes manières de démontrer la théorie des parallèles ou le théorème sur la somme des trois
angles du triangle publicado pelo Instituto em 1833. Em 1830 ele publica seu penúltimo trabalho
em Teoria dos Números, a terceira edição de Essai sur la théorie des nombres, com um novo
título, Théorie des nombres, obra composta de dois grandes volumes contendo seis partes e dois
apêndices: os suplementos publicados em 1816 e 1823 contendo variados assuntos de Teoria dos
Números e da Análise Indeterminada. Essa obra foi reeditada na Alemanha em 1885 e na França
em 1900 e 1955. Destacamos que Legendre criou algumas terminologias em suas obras em Teoria
dos Números : o termo teoria dos números em substituição á aritmética superior; a notação M(A)
para os múltiplos de A. Um outro exemplo, é a criação dos símbolos N
c 1
2
N
 para resíduo
c
e 
N
 é conhecida como o símbolo de Legendre, nas edições de
c
quadrático de c em que a notação 
Ensaio sobre a Teoria dos Números de 1798, 1808 e 1830. Em 1816 juntamente com Poisson foi
nomeado examinador de candidatos à Escola Politécnica. Por ter se recusado a apoiar um
candidato do governo à direção do Instituto Nacional em 1824 lhe retiraram o seu direito à
pensão como membro do Instituto. Mesmo estando com a saúde frágil, de acordo com o jornal
Globe de 28 de maio e 25 de junho de 1830, Legendre ainda participou de comissões internas da
Academia de Paris. Entretanto sua vida foi totalmente dedicada às ciências pela qual trabalhou
com paixão e regularidade até que aos 81 anos e quatro meses, depois de uma dolorosa doença,
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Legendre falece em Auteil, Paris no dia 10 de janeiro de 1833, sem deixar herdeiros. Os três de
seus últimos trabalhos, Note sur les nouvelles propriétés des fonctions elliptiques découvertes par
M. Jacobi (Astronomische Nachrichtien, 1828), Mémoire sur la détermination des fonctions Y et Z
qui satisfont à l'équation 4(xn – 1) = (x – 1)(Y2  nZ2), n étant un nombre premier 4i  1 (Académie
des sciences de Paris, 1832), Réflexions sur différents manières de démontrer la théorie des
parallèles ou le théorème sur la somme des trois angles du triangle (Académie des Sciences de
Paris, 1833) somente foram publicados devido aos esforços de sua esposa Marguerite (falecida
em 1856), que pessoalmente se empenhou para a publicação dos trabalhos. (RAMOS, 2010, p. 3942)
Referências Bibliográficas
DHOMBRES, Nicole; DHOMBRES, Jean. Naissance d'un nouveau pouvoir:sciences et savants en
France: 1793 – 1824. Paris: Editions Payot, 1989.
DUREN, Peter. Changing Faces: The Mistaken Portrait of Legendre, Notices of the AMS Volume 56,
Number 11, December 2009, p. 1440-1443.
JACOBI, C. G. J. Correspondance mathématique entre Legendre et Jacobi. p 390- 461, Berlin: ed.
C. W. Borchard, Journal fûr die reine und angerwandte Mathematik, Bud. p. 205-279, Leipzig: B.
G. Stuttgart, 1998.
RAMOS, Maria Aparecida Roseane, Adrien-Marie Legendre (1752-1833) e seus trabalhos em
Teoria dos Números, (Tese de Doutorado), Programa de Pós-Graduação em Educação,
Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal: UFRN, 2010. Disponível em:
<http://bdtd.bczm.ufrn.br/tedesimplificado/tde_busca/arquivo.php?codArquivo=4000.
SAMUELI, J-J.; BOUDENOT, J-C. Trente ouvrages de Mathématiques qui ont changé le monde.
Paris: Ellipses Edition Markerting S.A., 2006.
SIMÃO, Cleonice S., Uma Introdução ao Estudo das Funções Elípticas de Jacobi, (Dissertação de
Mestrado), Universidade Estadual de Maringá Centro de Ciências Exatas Departamento de
Matemática Programa de Mestrado Profissional em Matemática em Rede Nacional – Profmat,
Maringá, 2013. Disponível em: bit.profmat-sbm.org.br/xmlui/handle/123456789/337. Acesso em
14 nov. 2014.
TATON, R. Etudes d'histoire des sciences. Tome 47, Belgium: Brepolis Publishers, 2000, p. 57 –
68; 272 – 304; 404 – 535.
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