Apêndice A - Guilherme Maranhão • Refotografia
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Apêndice A - Guilherme Maranhão • Refotografia
Apêndice A Contribuição ao Estudo do Avanço Tecnológico, da Obsolescência e do Lixo e suas Influências no Processo Criativo na Fotografia 3 Por: Guilherme Maranhão Orientador: Kenji Ota São Paulo, 2006. 5 Este texto fala de possibilidades e de escolhas, como qualquer outro relato ou memorial. Possibilidades e escolhas que formam uma trajetória. Os caminhos seguidos foram escolhidos quase sempre pela intuição, frente a tantas outras possibilidades. É verdade que possibilidades mesmo só as financeiramente viáveis. Tivesse tido eu os recursos com os quais eu sonhei para produzir minhas imagens, dificilmente eu as teria produzido. No entanto talvez eu tivesse sido capaz de produzir as que perdi por conta dos equipamentos e materiais que usei. Ou seja, nesses caminhos o que estava em jogo quase sempre era a própria existência de uma imagem como resultado de um processo fotográfico. Às vezes funcionava, às vezes não, mas então eu dava um jeito. Me diverti muito descobrindo se e como isso ou aquilo me permitiria realizar uma fotografia. Esse ensaio serve para inspirar e propor idéias para os que daqui em diante estarão dispostos a se embrenhar nesse caminhada. Só tenho a fotografia O resto se perdeu Por isso fotografo Junto os restos Não me incomoda a tecnologia em si, me incomoda o fato dela não conseguir conviver em harmonia com as práticas individuais de cada fotógrafo. Isso fica evidente dadas as circunstâncias em que o marketing utilizado pela indústria fotográfica insere a tecnologia, como solução única, na cultura fotográfica. O resultado disso pode ser constatado pela existência de fotógrafos que medem a imagem pela câmara que foi usada para fazê-la e não pelos atributos da imagem em si, dentre eles: processamento, grão, ruído, montagem, manipulação, composição, matéria, suporte, tamanho, referente, resolução, formato, momento, dificuldade, luz, foco, profundidade de campo, bidimensionalidade, perspectiva, reprodutibilidade, degradação, acaso, intencionalidade, intervenção, gradação de tons e contraste. Espero que os produtores de imagens percebam que a indústria vende uma imagem da fotografia em alto contraste: ou funciona porque é novo ou não funciona porque é obsoleto. Na verdade há milhares de meios tons nessa imagem. Esse texto não oferece uma proposta específica de como lidar com esse problema, mas apenas de como as sobras ou subprodutos desse processo de produção de tecnologia podem e devem ser aproveitados (esse é o hardware livre). Essas sobras são instrumentos completamente capazes de produzir imagens (um computador velho, uma câmara quebrada, um filme vencido, um papel fotográfico mofado, um scanner com a lâmpada queimada). As imagens, o mais importante, produzidas com ou através dessas sobras ficam, como ficariam quaisquer outras imagens, circunscritas a conjuntos enormes e finitos de imagens, como disse Flusser. Conjuntos de imagens que cada aparelho é capaz de gerar assumindo todas as possibilidades de input (modos e maneiras de operação). Se o aparelho é uma sobra ou não, o conjunto de imagens possíveis se torna diferente, mas nunca pior ou melhor, como se a precariedade encurtasse o conjunto em um lado e o expandisse 7 em outro. Para descobrirmos os conjuntos de imagens possíveis com diferentes aparelhos devemos explorar e a exploração do aparelho é aprender a técnica. A técnica, como colocou Heidegger, na sua essência é uma forma de desencobrimento. Desencobrimento da verdade. Ao aprender a técnica, a câmara deixa de ser caixa preta. O fotógrafo desencobre o que está oculto no aparelho, sua simplicidade que nos é velada. A técnica se constitui e se cumpre na produção das imagens, mas em momento algum Heidegger ou mesmo Flusser entram no mérito de quantos megapixels são necessários para isso. A evolução das ferramentas A fotografia é uma linguagem que foi explorada desde a sua criação há mais de 160 anos e para a qual foi desenvolvido um extenso corpo de conhecimento técnico. A indústria participou dessa exploração criando tecnologia ligada à produção de ferramentas para a execução de fotografias. Não que estas inovadoras ferramentas fossem absolutamente necessárias para que as imagens continuassem sendo feitas, mas foram muito úteis, de fato. Ao longo dos anos essa pesquisa foi sendo direcionada à solução dos problemas mais comuns na realização de fotografias visando a valorização comercial da ferramenta e a padronização da qualidade técnica das imagens. Na verdade, quando o próprio Niepce decidiu buscar uma maneira de gerar uma nova matriz a partir de uma gravura impressa e orfã, ele também queria valorizar a sua ferramenta comercialmente. Na época da invenção do daguerreótipo a exposição à luz era exageradamente longa e a cada mês ou mesmo semana avanços nas pesquisas tornavam possíveis exposições cada vez mais curtas. Nos anúncios dos comerciantes da fotografia esse tempo de exposição (cada vez mais curto) figurava sempre em destaque. Assim se media o avanço da técnica. Hoje é o megapixel que mede o avanço tecnológico da fotografia. E de lá para cá a história se repetiu exaustivamente. Não é difícil se imaginar a queda de preços que cavaletes e pincéis sofreram na década de 1840. Depois disso a quantidade de processos 8 que foram inventados e sumiram em questão de cinco anos foi enorme, a fotografia estava nascendo com várias faces. Enfim surgiu o filme flexível que, de certa forma, unificou o caminho da pesquisa na fotografia. Veio a câmara de telêmetro, leia-se Leica, o filme ganhou resolução e o negativo diminuiu, depois vieram as câmaras reflex. O filme colorido de uso comum surgiu 100 anos depois do próprio surgimento da fotografia. E aos 160 anos a fotografia analógica começou a parecer menos interessante. A fotografia digital ainda não tem uma face bem definida, ainda há muita discussão entre CCD, Foveon e CMOS, mas como cavaletes e pinçéis as câmaras de filme vendem bem barato no centro da cidade e mesmo algumas digitais mais pioneiras inundam ferro-velhos. Existe um número de possibilidades crescentes: a lista de processos/técnicas difirentes e possíveis dentro da fotografia é enorme. Os custos continuam decrescentes, já que a fotografia se tornou tão popular e tão praticada. Sejam processos novos ou obsoletos. É o processo de impressão offset que fica mais acessível com a fotografia digital e o C2P (computer-to-plate, que acabou com o fotolito), é o preto-ebranco tradicional que ainda pode ser feito com materiais produzidos quase artesanalmente. Nesses anos todos as ferramentas da produzir imagens ficaram superadas e foram para o lixo: em 2005 a câmara de 2MP não é mais rentável (mas será mesmo?). E muita sucata foi produzida desde as câmaras de Niépce. Não são só os equipamentos que são perdidos, o conhecimento necessário para operá-los também vai embora. E o fotógrafo que fazia retratos em estúdio, usando filme em chapa 13x18cm, luz contínua, retocava o negativo a lápis, entregava a cópia de contato com sua logomarca gravada em relevo na parte inferior da imagem? Dele só restam algumas imagens perdidas em caixas de papelão pelas feiras de antiguidades. E essas imagens não são capazes de contar todos detalhes do que foi feito para que elas existam. Então, como produzir imagens? Primeiro, conhecendo o que está disponível materialmente. É ai que aponto para dois tipos diferentes de lixo: o lixo-objeto (o pedaço de madeira de lei que retiro da caçamba frente a uma construção para usar em uma de minhas câmaras) e a técnica-lixo (a que descubro na leitura do livro de Jacob Deschin, escrito em 1936, e que tento usar nos dias de hoje). A arqueologia do reaproveitamento é a base do meu processo de trabalho, encontro o objeto-lixo e tento descobri qual a técnica-lixo que se esconde dentro dele. Experimento. Observo cada peça e descubro qual o papel dela no sistema, imagino como posso usar aquele sistema para criar uma imagem. Gasto meu tempo nessa empreitada e o relato que acompanha esse texto pode fazer jus a isso. Esse é meu trabalho, o de garimpar, o de descobrir o que se esconde nas dobras de um fole de uma câmara antiga. Tento guardar isso que foi um dia perdido, tento manter registros de como as coisas podiam ser feitas, não repugno o Photoshop e tudo que ele representa, me jogo nessa direção também, me apaixono pela tecnologia digital e tento misturá-la em tudo que faço, mas reconheço as limitações dessas soluções, como reconheço as dos processos aos quais tento dar uma pequena sobrevida. Limitações não faltam em qualquer direção. Vejo limites, vejo possibilidades, vejo imagens, vejo processos, vejo soluções, vejo consertos a serem feitos e sobretudo vejo que outros olham para mim espantados com as possibilidades das coisas 9 decrepitas que tenho em minhas mãos. Me disponho a sentar e aprender como fazer, me disponho a olhar para essas coisas e imaginar o que elas podem fazer por mim, me disponho a buscar uma solução que se apoie nessa tecnologia obsoleta. Me disponho a ver o óbvio. Em segundo lugar, ou talvez durante todo o processo, me pergunto: mas quais são as razões ou desejos que poderiam levar um outro fotógrafo a querer se utilizar de métodos e técnicas de produção de imagem obsoletos? O que pode esse tipo de material e equipamento influenciar na sua produção que justifique essa opção? O que muita gente vê primeiro é o aspecto financeiro que pode ser um peso no momento da escolha do material ou equipamento no caso de aquisição. Um filme vencido é mais barato do que um filme dentro do prazo de validade e no nosso país às vezes essa é a única maneira de se produzir. Portanto encontrar uma razão para utilizar esse tipo de material é simples: um filme mais barato permite produzir mais com menos. Não é só isso, o aspecto financeiro tem mais significados, um filme mais barato não traz consigo tanta responsabilidade, oferece uma espécie de alívio, de tranquilidade. Oferece um convite ao risco. O filme mais barato permite “arriscar-se” a perder a foto ou todo o filme. O risco por sua vez tem propriedades muito interessantes, o risco quase sempre leva a uma descoberta. A produção de imagens não é em alto contraste (ou funciona ou não), há muitas áreas cinzas e várias maneiras de produzir imagens que fogem a noção vendida pela indústria. O risco presente nesses materiais quase sempre nos leva a maneiras de produzir imagens que ainda não conhecemos. Dai a maravilha de se arriscar com filme bem barato, por exemplo, e descobrir maneiras inusitadas de ver o mundo. Outro aspecto de reaproveitar as coisas que tenham ido parar no lixo é poder contar com a ajuda de outras pessoas. Ou porque alguém guardou um lixo para você, ou porque alguém lembrou de você e disse para outra pessoa que ia jogar um bagulho fora. Ou seja, a ação de buscar algo que sirva para 10 uma atividade artística não precisa ser uma ação isolada, outras pessoas precisam ser incluídas (tendo em mente aquelas pessoas que observam espantadas quando desmonto um scanner e depois o faço funcionar aos pedaços). Realizada em maior escala essa atitude pode ter algum efeito no sentido de evitar que os fotógrafos saiam em busca de materiais nas lojas e comprem coisas desencessárias, refreando assim a produção industrial, de uma maneira mínima que seja e portanto diminuindo a produção de lixo. O fato é que se é possível a produção de imagens com o que é encontrado no lixo, logo há um excedente de produção de materiais e equipamentos para a geração de imagens no mundo. Para que isso aconteça o produtor de imagens precisa acreditar que é possível criar imagens com material reaproveitado. Essa clareza pode partir de outro produtor de imagens. Eis que ai se insere uma função didática, de espalhar essa clareza perante a técnica. Mas que clareza exatamente é essa? Para analisar essa questão, vamos primeiro começar com um exemplo de uma informação típica do mundo fotográfico: a data de validade de um filme. O que é essa data? O fabricante de filmes fotográficos cria uma emulsão, aplica sobre uma base e testa o filme produzido, chega a várias conclusões, imprime uma data sheet e embala o filme para venda. O data sheet contem informações de como o filme se comporta, qual é sua curva característica, qual a sua sensibilidade e é isso que as pessoas compram, um filme com atributos conhecidos, testados e até certo ponto garantidos pelo fabricante. Mas o filme muda com o tempo, por isso o fabricante estipula, baseado em seus testes, qual a data limite para a garantia por ele oferecida, essa é a data de validade. Durante a vigência da validade do filme seu valor comercial é maior. Ora, o filme continua sendo filme, continua dotado de uma curva característica, por mais desconhecida 11 que ela seja e continua sensível à luz. A clareza que buscamos é exatamente a separação das questões mercadológicas das questões imagéticas, por exemplo, demostrar que a data de validade é apenas isso. Após esse prazo o filme continua sendo capaz de gerar imagens de qualidade, necessitando eventualmente um maior conhecimento por parte do fotógrafo (uma pequena modificação no revelador pode ser necessária eventualemente) como compensação pelo menor valor comercial do filme. Clareza, conhecimento, valor comercial. Pensando essa relação em termos da caixa preta de Flusser: um maior conhecimento técnico por parte do fotógrafo propicia ficar mais clara a caixa preta e menores recursos em geral são gastos com programas mais novos, complexos e completos para desencobrir as imagens desejadas. Em terceiro lugar, o fazer de fato. Não adianta catar o lixo, descobrir o que é isso ou aquilo e deixar que tudo apodreça. Tem que tentar, tem que experimentar fazer funcionar. Voltando ao exemplo do filme vencido: esse filme exige que seja feito um teste para sua utilização, mas o filme novo também, porque utilizar os tempos na tabela do fabricante significa aceitar a visualidade que o fabricante acha que se adequa ao seu trabalho fotográfico. O que siginifica então testar um filme? Expor o filme de maneiras diferentes, revelar com reveladores diferentes, fazer algumas ampliações, olhar para elas e se perguntar: o que eu quero para o meu trabalho? Na verdade, ali se escolhe não só o filme, mas todo o processo a ser utilizado e a aparência que tal processo gera, porque isso é o mais importante, porque representa a intenção do fotógrafo. Por exemplo, existem reveladores solventes e nãosolventes, conhecer as características desses dois grupos de reveladores pode ajudar na escolha dos produtos a serem testados. Um óbvio: para se utilizar uma ferramenta é necessário conhecer o efeito que ela causa e saber se ela é adequada ao efeito pretendido. O que não é óbvio é acreditar que a bula de um filme pode saber qual o efeito pretendido pelo fotógrafo nas fotos que ele fizer com aquele filme. O que não é óbvio é acreditar que a data de validade pode ajudar o fotógrafo nessa mesma empreitada, por exemplo. Isso deve ficar claro. A TV Cultura produz uma série infantil chamada Cocoricó que se passa em uma fazendo onde os personagens centrais são um menino, uma menina, 3 galinhas, um papagaio e um cavalo. Um episódio é especialmente interessante nesse momento: o Desconhecido. Lá pelas tantas, Júlio - o personagem principal da série, um menino - revela aos amigos que não gosta de abobrinha, mas a verdade é que ele nunca nem sequer provou a tal da abobrinha. Papo vai, papo vem, as galinhas conseguem convercê-lo de que a salada de abobrinha da Zazá é uma maravilha. Júlio se rende e acaba provando a salada. Júlio vê sua disposição para provar o desconhecido ser recompensada com a oportunidade de descobrir que ele adora abobrinha crua! Mais ou menos como descobrir, por exemplo, que a gente gosta mesmo é de filme subexposto. Imagino que chegar a essa conclusão não deve ser fácil. A exposição do filme é só uma etapa de um processo. O processo, em si, de obtenção da imagem depende de um sistema mais complexo composto de várias etapas. A formulação desse sistema é o que define o modo de formação da imagem mais tarde. Nesse momento ecoa em minha mente a frase que minha vó sempre me disse: “A técnica é que dá a liberdade”. Pois bem, para 12 formular um sistema de criação de imagens é preciso conhecimento técnico de alguma espécie que liberte um desejo pela criação de uma imagem. Logo complemento a frase de minha vó com: “para o que há dentro de você”. A técnica fotográfica, pressupõe uma vontade de expressão, um desejo pela realização de uma fotografia e pode ser observada como uma série de sistemas de criação de imagens, que vão da captação à impressão (sendo essas duas palavras usadas de modo figurativo). Cada sistema equivale a uma possível saída de um enorme labirinto, uma solução possível para um problema com inúmeras soluções, não só a proposta feita pela bula do filme. Escolher uma, no entanto, é bem difícil, sendo todas as opções tão sedutoras. Mas nada disso é exclusivo do lixo, ou algo semelhante, isso vale para toda a fotografia, existem várias maneiras de fazer imagens e cada uma propicia um resultado diferente que pode ser ou não adequado ao seu problema. O fato é que o lixo exige maior cuidado para com a escolhas de um sistema a ser usado. Um filme mais antigo por exemplo pode gerar negativos muito suaves, logo um papel mais contrastado ou um desejo por fotos mais cinzinhas pode ser a solução. Por enquanto vamos voltar atrás um pouco e pensar sobre as propostas de Ansel Adams quando ele escreveu sobre o que chamou de visualização (no início de seu primeiro livro da trilogia: Câmara, Negativo e Cópia). Adams era capaz de estando de pé frente a uma montanha conseguir imaginar a foto que seria possível realizar ali com as lentes, filmes e papéis de que dispunha. Na verdade ali ele tomava decisões importantes sobre o que estava prestes a fazer e que alteravam o aspecto visual da imagem mais tarde. Adams formulou vários sistemas parecidos para a construção 13 de imagens, que ele agrupou e chamou de sistema de zonas, e a principal característica do sistema da Adams era a previsibilidade que ele era capaz de obter podendo partir das leituras do fotômetro e determinar com qual tom determinado elemento da imagem apareceria na fotografia final. Adams tinha total controle dos materiais que usava e estes respondiam a seus sinais. Por exemplo, ao colocar um elemento da imagem na Zona 5, Adams dava a esse elemento a posição média da escala antes mesmo da luz atingir os sais de prata na emulsão e assim ele era capaz de visualizar a imagem. Se tivessemos que escolher entre engenheiro e bricoleur, Adams com certeza seria um engenheiro. Já Levi-Strauss colocava a arte a meio caminho entre a bricolage e a ciência ou engenharia. E, afinal de contas, não é possível realizar uma fotografia a partir de matérias-primas. A fotografia parte de estruturas existentes, do aparelho. Já o lixo pressupõe um ser, que se assemelha mais ao bricoleur, o operando. O material velho não responde tão fielmente aos sinais, não oferece mais tanto controle ao fotógrafo. O lixo convida à experimentação, à aceitação de uma imagem que já está ali para se somar à que será captada pelo fotógrafo, convida à descoberta do que pode acontecer lá no fim. O lixo não oferece a possibilidade de visualização, o lixo não oferece a certeza. O bricoleur de Levi-Strauss precisa fazer um inventário das suas possibilidades, ele é um handyman. E trabalha com o que está à mão. Seu estoque são as possibilidades que ainda restam às coisas de que dispõe. Os universos de imagens dos aparelhos que rodeiam um fotógrafo que lida com o lixo estão desfalcados, os aparelhos não estão mais completos. Um aparelho não é só a câmara fotográfica. Cada tipo de câmara depende de um conjunto de coisas para funcionar. Um sistema, o filme que serve na câmara, o laboratório que revela aquele filme, e tudo mais, até o papel para ampliar aquela fotografia. A câmara pode até ainda existir, mas e o filme específico dela? O universo de imagens que essa câmara pode oferecer a seu operador fica restrito, é necessário reprogramá-la talvez (dai a necessidade de um bricoleur com um “q” de programmeur). Feito o inventário, o estoque é conhecido. Entra em cena uma espécie de navegador que vai propor uma solução de saída do labirinto. O navegador imagina como conectar as coisas que ali jazem em seu estoque. E liga os pontos, joga dominó com os restos de aparelhos e materiais. Ele formula o sistema, mencionado acima, de criação da imagem. E talvez o que mais me instigue a trabalhar com coisas velhas e problemáticas é não conseguir visualizar o que elas podem fazer e sim imaginar sistemas onde elas possam se encaixar. E deixar que as coisas no estado em que se encontram imprimam suas características nas imagens. Cheguei a pensar em “coisas quase mortas”. Cheguei a pensar em respigados, que é o plural particípio passado do verbo respigar (apanhar aqui e ali as espigas caídas no chão após a ceifa), graças ao documentário de Agnes Varda entitulado “Les Glaneurs et la Glaneuse” - inspirado pelo quadro de Jean Millet de 1857 chamado Les Glaneurs ou As Respigadeiras – que trata de pessoas que sobrevivem catando lixo na França. As respigadeiras catam os restos da colheita, que é uma atividade prevista na lei francesa. Qualquer indivíduo pode adentrar propriedade privada para isso sendo que deve permanecer no mínimo 10 jardas atrás daqueles que colhem para o proprietário das terras, segundo Varda. A idéia de usar essa palavra acabou ficando de lado, o filme prefere focar o orgulho de quem prefere catar do lixo ao invés de pedir ajuda. Se por um lado é interessante perceber que a França reconhece a atividade dessas pessoas (há muito tempo, a unidade de medida jarda está ai para provar), por outro as respigadeiras modernas reforçam a idéia de que são excluídas da sociedade. Mas chame como quiser, são essas coisas que estão por ai, cujo dono já não tem mais interesse em seu uso e que acabam encontrando um caminho até mim para que eu as use. E assim, as imagens são produzidas: avaliando o que está disponível e tentando formular um sistema a partir disso. Clic! Daqui parto para as histórias dos diversos sistemas que formulei e visitei com meu lixo, mas antes uma Digressão rápida A palavra lixo ainda é um inconveniente nesse texto, afinal vem carregada de muitos outros significados. Pensei por vezes em chamar essas coisas que reaproveito de elementos (objetos ou idéias) adquiridos de ninguém ou do lixo de alguém. Começava a surgir uma sigla muito complicada, então ficou a palavra lixo. 14 15 Histórias Ali na Cinótica o que era um gosto pela fotografia se tornou uma paixão pela exploração dos métodos de criar imagens. Seu Carlos me atendia lá. Conheci ele quando entrei lá pela primeira vez e comprei um ampliador Krokus polonês. Nas outras vezes que voltei sempre pedia a opinião dele sobre minhas pequenas aquisições e aos poucos fui achando tranqueiras e mais tranqueiras na Cinótica: papéis uruguaios e filmes tchecos vencidos. A Cinótica me oferecia problemas e desafios e aos 17 anos de idade isso era minha diversão e como ainda é. Com medo da radioatividade A história do filme Fomapan é engraçada, em tcheco a expressão “pretoe-branco” se escreve algo como “cernobily” (com algumas acentuações que meu teclado não permite), que lembra o nome da cidade Chernobil, onde ocorreu o acidente radioativo. O fato é que na Europa ninguém queria comprar o Fomapan, todo mundo achava que ele poderia estar contaminado pela radioatividade. A Cinótica adquiriu vários quilos do filme vencido em Março de 91 e vendia os rolos de 30m por 10 Reais em 92. Lembro de comprar pelo menos 10 rolos de uma vez. Já os filmes 120 não eram tão baratos, mas valiam a pena. Eu devo ter perdido muitos filmes com problemas de exposição e colados inúmeros outros aprendendo a colocar o filme no espiral. Assim o Fomapan encontrou a sua grande utilidade, eu aprendi muito com esses primeiros 300 metros de filme 35mm. Posso garantir que era muito fácil fotografar com Fomapan, não me preocupava com nada, tentei as coisas mais absurdas e quase todas deram errado. As primeiras tentativas com revelação em D-76 não renderam bons resultados, o filme estava bem velho e o contraste ficava muito baixo para um filme ISO 100. Para usar o Fomapan F21 (o 21 se refere à sensibilidade na escala DIN, equivalente a ISO 100) era preciso expor o filme em EI 25 e revelar durante 5 minutos, a 20 graus centígrados, em Dektol diluído 1:2. Usava também o RCO-12, revelador de papéis de uma empresa nacional já líquido, que era bem prático. Depois de descobrir os segredos da sua revelação, cheguei a fazer alguns trabalhos comerciais com Fomapan, já que eu o conhecia tão bem. O índice de exposição 25 para que adotei para esse filme me levava a usar velocidades baixas do obturador, acabava deixando que coisas que se moviam borrassem nas cenas que eu fotografava. Sem muita opção comecei a experimentar com isso e fiz inúmeras imagens com carros que quase desapareciam, pessoas das quais só se viam os pés. Usei as últimas quatro bobinas desse filme em 97 em cenas noturnas. Fotografei a quermesse que acontece todo Outubro na rua Clodomiro Amazonas. Usei o tripé e exposições longas como de costume. Ali eu terminava o que seria o grande ensaio que fiz com o Fomapan: registros do movimento. Em 93 dei início a outro ensaio fotografado nesse filme, um sobre um chapéu de palha. O chapéu chegou a mim embrulhando um vaso de flores que ganhei da minha avó no meu aniversário. Achei aquilo quase um desperdício e resolvi dar uma outra vida ao chapéu. Carreguei-o para cima e para baixo, levei-o ao Rio, Niterói e o fotografei pela estrada. Pedi a um rapaz que jogava bola na praia que o vestisse, pedi que o segurassem na rua, deixei-o sob um orelhão, no meio da relva, junto a uma bolacha-do-mar. Fiz inúmeros 16 auto-retratos vestindo o chapéu. O chapéu na maioria das fotos está só, abandonado. Dessa época lembro de escutar “Wish you were here” do Plink Floyd. Sentado na varanda do escritório de meu pai na casa de Camboinhas. A tempestade passava ao largo da enseada de Itaipu. O vento balançava o mato, o verde ficava sem contraste, denso. Ouvia a música em um walkman antigo. “So you think, So you think you can tell heaven from hell... ... Do you think you can tell? ... How I wish How I wish you were here We’re just two lost souls swimming in a fish bowl Year after year...” O chapéu me levava por ai. Isso era importantíssimo. Os dias de Camboinhas foram curtos e foram poucos no final das contas. Eu tinha que aproveitar os dias inteiros, acordava com o Sol invadindo o quarto. Via ele se erguer atrás do morro que dava para Itaipuaçu. Caminhava pela enseada, recolhia isso ou aquilo que a maré trazia. Ouvia música, pegava jacaré, fotografava tudo usando o chapéu de pretexto. Em 94 recebi da minha tia-avó a câmara que havia sido de meu bisavô, uma Leica IIIa. Comecei a me entender com a máquina e fiz várias fotos. O couro que recobria a máquina caiu, ressecado e despedaçado. O som do obturador dava indícios de malfuncionamento. Não me passava pela cabeça outra coisa senão usar a câmara da família e descobrir como seriam as imagens feitas por ela com uma lente sem coating. Em 95 meu pai ficou doente. Comecei a ir frequentemente ao Rio visitá-lo, levando a Leica, com a lente escamoteável dentro da mochila. Fotografei minhas visitas à casa de minha vó, para ver meu pai doente. Isso eventualmente se tornou o trabalho chamado Casa da Vó, que virou uma exposição no Centro Cultural São Paulo, em 96. O ato de fotografar essas viagens era grande parte em função de eu de fato não entender o que acontecia. Hoje em dia essas fotos falam mais para mim do que minhas próprias lembranças daquela época. Falam também sobre o que eu já fotografava e sempre fotografaria, meu dia-a-dia. Para apresentar a exposição de 96 escrevi o seguinte: “A Casa da Vó Esse ensaio é ambientado no Rio de Janeiro e em São Paulo, foi realizado entre agosto e outubro de 1995. Todo o ensaio foi feito com uma Leica IIIa, e sua lente 50mm/2,0 Summar, há 61 anos na família e com filme FomaPan F21, vencido em março de 1991. Tudo surgiu quando passei a visitar meu pai no Rio, ele estava doente, na casa da minha vó e acabei indo lá periodicamente, de ônibus, só com a ‘pequena’ Leica. Ia tudo bem, a cura parecia possível. No entanto, em novembro sua situação piorou e ele morreu. Dedicado a ele fica esse ensaio.” 17 Seu Carlos sempre achava que tudo podia funcionar. A essa altura eu também acreditava nisso. Só não sei até hoje qual o verdadeiro nome dele. Por outro lado aprendi o óbvio: experimentar é essencial. Não é só porque o Foma vinha em uma embalagem de papel paraná vagabunda que eu deveria deixar de usá-lo. Esse filme era muito mais acessível que os outros e precisava descobrir algo para fazer com ele. Hoje percebo que é o processo básico de trabalho pelo qual passo quase todas as vezes que inicio um ensaio. Posso descrevêlo como: descobrir do que cada ferramenta é capaz. Como um mecânico de automóveis, vou enchendo uma caixa de ferramentas, mas uso cada uma para o que me convém. Tudo tem a sua utilidade, cabe a você descobrir se é pertinente às suas intenções e como. Velatura total Passeava pela feira de antiguidades da Praça Benedito Calixto em 93 quando encontrei uma pilha de três ou quatro caixas de papel Kodak bem velho. Perguntei se o vendedor havia aberto as caixas para ver o que havia dentro, fez-se silêncio. Virei as costas, mas o sujeito me pediu que levasse aquilo embora, percebendo o engano que havia cometido. De fato os papéis estavam completamente velados. Olhava para os testes no laboratório, negros. Compreendi que papel velado ou fica branco se fixado, ou preto se revelado e fixado. A única maneira de criar uma imagem diferente disso era controlar quando e como o revelador entra em contato com a superfície do papel. Acendi a luz e alcancei um pedaço de vidro retangular, molhei em revelador e apoiei (como um carimbo) sobre uma das folhas de papel já amarelada sob a luz branca. Repeti o gesto com mais umas vinte folhas deleitado com o resultado, retângulos marrons com bolhas brancas, fixei todas as folhas rapidamente. (E eu nem sabia quem era Moholy-Nagy). Recortei de outra folha as letras t, a, m e o. Assim formei a expressão “t amo” que eu devia ter lido em alguma parede de banheiro ou muro do meu bairro: eu prestava muita atenção às pixações. Revelei essas letras também e as usei como carimbo em uma última folha de papel. Com o papelão de duas caixas de leite fiz um painel de quase um metro quadrado e com tinta spray prateada dei um acabamento. Colei as folhas de papel fotográfico formando um mosáico, assinei. Meu deleite provinha da experiência de compor com objetos ao alcance das mãos. Transformar textura em imagem bidimensional. Isso tudo em um papel dito perdido. Em 2006, repeti a empreitada revelando folhas veladas com uma folha de palmeira ao invés de retângulos de vidro. Obter imagens de um papel velado produz mais espanto no olhos alheios do que de um papel apenas velho ou mofado. Quimeogramas, nomeou o professor Wladimir. Esses trabalhos nascem tão facilmente. Não há muito mais que se possa fazer com um papel nesse estado, além de tentar algo como usar o papel como se fosse um POP sob o Sol. Essa limitação do que se pode fazer reintera a condição de estrutura pre-existente desse papel, como colocou Levi-Strauss. Afinal esse papel não é matéria-prima com possibilidades infinitas. Eu poderia repetir incessantemente a expressão 39 “não há muito o que se possa fazer” durante o texto, me referindo às mais diversas coisas que apareceram no meu caminho. O fato é que fiz a única, ou uma das únicas, coisas que me apareceram na cabeça ao olhar para cada câmara, lente ou filme. Quanto maior o número de possibilidades mais difícil ficava o trabalho, escolher é sempre algo difícil dentro de mim. Quanto mais precária a situação do papel ou da câmara fotográfica, mais fácil é escolher o que fazer com aquilo, pois menores são as possibilidades. Marcenaria permeando a Fotografia Na mesma época do Fomapan encontrei também na Cinótica uma caixa de filmes em chapa Tmax 400 vencidos. Lançado recentemente, esse filme não lidava tão bem com a super exposição e com a revelação com outros reveladores que não o dedicado a ele pelo fabricante. Aqui no Brasil isso o tornou relativamente inútil. Logo algumas caixas foram parar nas bandejas de saldo e eu fui capaz de adquirir uma delas. Não que eu tivesse câmara de 4x5 polegadas, mas isso não era problema. O Tmax 400 foi útil nas minhas experiências com câmaras de orifício. Usando o filme em chapa de alta sensibilidade pude fazer imagens interessantes na Avenida Paulista, com uma câmara que levava um obturador mecânico. Feita com uma caixa de madeira onde minha mãe guardava parafusos, podia ser presa a um tripé. Essa câmara não existe mais, mas ainda tenho as lembraças de pedir a um rapaz de uma farmácia para usar a sombra do local para trocar de filme com meu saco preto improvisado. Experimentei com a curvatura do filme nas câmaras de orifício. Também usei o mesmo TMax 400 cortado dentro de uma câmara Zeiss para fazer um auto-retrato com a técnica do open flash. Minha primeira tentativa de construir uma câmara para filme 4x5 polegadas foi usando um porta filmes 40 de minha própria autoria, que usava tachinhas para manter o filme no lugar, mas esse sistema foi logo substituído. Já o fole da câmara foi feito a mão, cópia do fole de uma câmara menor que eu possuía. Consegui algumas lentes interessantes nas feiras de antiguidades, normalmente presas a câmaras dobráveis antigas. Logo construi câmaras um pouco mais complexas que aceitassem o porta filmes padrão para filme 4x5 polegadas. Além dessas câmaras construi também uma para papel 13x18cm, tipo caixote com uma lente 210mm e foco fixo. Com a parte posterior de uma câmara para filme 120 fiz uma câmara 6x9cm com lente 65mm. Com uma lente FluroEktar 111mm/f1.5 tentei construir algo rudimentar para criar uma tele bem clara para a minha Canon Ftd, rendeu poucas imagens. Usava as câmaras de madeira para fotografar objetos dentro de casa. Só com câmaras mais complexas e completas me aventurei com o grande formato longe das minhas ferramentas. O ampliador que tinha originado a minha primeira visita à Cinótica acabou sendo trocado por uma câmara Burke & James Grover 4x5 polegadas toda em madeira, com o lindo fole vermelho. No lugar do Krokus eu agora usava um Federal of Brooklyn 6x9 comprado na Pça Benedito Calixto debaixo de chuva. Logo em seguida um amigo me presenteou com uma sacola de supermercado com as peças de uma Burke & James Press, em metal, design muito simples, meio empenada e bem usada. O que eu tive que fazer foi montar a câmara novamente, consertar uns dois buracos enormes no fole, desamassar umas coisinhas e a câmara já estava por ai fotografando. Descobri que a lente 90mm era ideal para essa câmara, já que ela mantinha o fole comprimido, evitando assim que um pouco de luz que ainda passava pelos meus remendos velasse o filme. Na Grover eu usava as lentes mais longas, como a 300mm/4.5 Meyer, que na realidade era uma lente para filme 35mm. Comprei essa lente para usar na Pentax com rosca M42, rosca universal. Ao abrir a lente para limpar o diafragma percebi que 41 o círculo de cobertura da lente era muito maior e que toda a parte traseira poderia ser removida para a lente ser usada em outra câmara. Essa lente se tornou uma ótima opção para retratos em 4x5 polegadas. E ainda tinha a lente normal que era o conjunto de lentes da 135mm/4.5 Hektor da Leica M, retirado do anel de foco e montado também em um lensboard feito em casa. Sempre houve muito material e equipamento de grande formato disponível para mim. Imagino que o alto custo para sua utilização comercial foi o que ocasionou a grande debandada dos fotógrafos. Não consigo esquecer o dia em que levei meu caixote 13x18cm de madeira para mostrar na reunião do Projeto Foto-de-Autor, consegui risadas de uns e incentivo de outros. Não foi muito antes do dia em que o fotógrafo norteamericano Steve Hart veio visitar uma outra reunião. Esse cara estava há mais de 3 anos fotografando uma família no bairro do Brooklyn em Nova Iorque, uma família negra, de baixa renda. O trabalho era e é impressionante e estava ainda no início. Uns 10 anos depois, Steve publicou um CD-ROM pela editora Scalo, com o seu Brooklyn Family Album. Mesmo sem saber Steve plantou na minha mente uma semente de long term documentary project. Naquele momento lembro de por de lado quase tudo que eu já tinha feito, a fotografia ganhou um novo significado. Minhas fotos pediam mais significado. Voltei a perturbar o editor de fotografia do jornal que eu lia e consegui começar a fotografar lá. Para onde o jornal me levava A explosão sob a praça de alimentação do shopping em Osasco foi na véspera do dia nos Namorados em 96 - lá se vão 10 anos. Nesse dia eu fui chamado pelo jornal à tarde, já que os fotógrafos de lá estavam ocupados com o acidente e não podiam fazer as outras fotos do dia. Só dois meses depois, fui a Osasco fotografar alguns dos sobreviventes que ainda careciam de atendimente médico apropriado. Senti pena de alguns e considerei que a situação deles era injusta. Fiquei de voltar e fazer mais fotos. Quando o acidente completou seis meses eu já havia feito muitas imagens do dia-a-dia das vítimas esperando o tempo passar. Consegui uma publicação de página inteira no caderno Cidades do jornal O Estado de S. Paulo. A história em preto-e-branco, feita com filme vencido ia crescendo apenas com o meu empenho e dinheiro. Não parei por ali, continuei fotografando e fui em busca de mais pessoas com mais histórias. Quando o acidente completou um ano e pouco havia mudado na situação das vítimas, o jornal não deu tanta importância. Fui buscar a concorrência que ficou feliz em publicar a história em página dupla no caderno Cotidiano da Folha de S. Paulo. Continuei o trabalho de documentação até 1999, cheguei fotografar José em sua cidade natal Januária, às margens do Rio São Francisco, para onde voltou. Fiquei desapontado com os acordos que se firmaram e como os desamparados continuaram desamparados, mas minhas fotos mostram pouco disso. Essa injustiça e descaso me levaram lá, mas fotografei a vida que ainda existia naquelas pessoas, a felicidade da superação. De certa maneira fotografei como eles reaproveitaram suas próprias vidas. Percebi então o quanto eu era inapto para o trabalho de documentação. Enquanto eu achava que o trabalho se resumia a ir lá e fotografar aquelas pessoas, eu me enganava. Acabei criando um trabalho que fala mais da 49 beleza e da felicidade que ainda pode existir em corpos mutilados do que um documento de uma situação injusta. Comecei a dar mais importância a meus outros trabalhos. Doações: por acaso ou não Em meados de 97 eu já havia desenvolvido uma pequena rede de doações e algumas coisas bem interessantes chegavam a mim me mantendo bem ocupado em desvendar mistérios. Houve uma doação completamente inesperada nessa época. Eu fui fotografar o escritor Marcos Rey para uma revista e quando entrei em seu escritório percebi uma lente 24mm Nikon servindo de peso de papel. Aquele objeto me intrigou durante todo o tempo em que passei ali no escritório dele, até que eu perguntei qual era a razão para a lente estar ali. -”Um colega seu deixou rolar para debaixo da minha mesa há alguns anos, a empregada encontrou e colocou ali achando que era minha, tem utilidade para você?” - disse Marcos Rey. -”Sim!” Após consultar a esposa me entregou o objeto completamente recoberto do que eu imaginei ser lustra-móveis. Fiz uma limpeza profunda na lente que havia acumulado pó durante muito tempo e costurei a borracha que ficava ao redor do anel de foco, que estava rasgando. Usei a lente incessantemente até 2005. Em 98 mudei de casa e levei o laboratório. Aproveitei para mudar o jeito de fazer várias coisas e mudar a disposição do espaço de trabalho, mas a maior mudança foi causada pela organização de uma pasta que eu tinha até então. Eu juntava bulas de filmes e papéis com anotações em uma pasta laranja. Ganhei um caderno e o usei para consolidar todas as informações que eu tinha sobre tempos de revelação e fórmulas que eu usava. Esse caderno se tornou meu diário dentro do laboratório e tudo que eu fazia eu anotava ali, comentários sobre minhas experiências, tudo que eu achasse minimamente importante para o futuro do laboratório. Essa preocupação nasceu de um papo com a Mônica sobre cópias viradas em sépia que ela nunca conseguiu fazer com o mesmo tom novamente porque não lembrava das diluições dos químicos. O caderno continua comigo até os dias de hoje. 50 Primeiras descobertas sobre câmaras grandes Durante 2 anos a B&J Press e a 90mm viajaram um tanto. Fotografias de cachoeiras, rios, árvores e pessoas. Eu ainda aprendia com o que eu poderia usar o formato 4x5, a pequena profundidade de foco e as exposições longas. Me interessava entender como seria o processo de trabalho dos fotógrafos que faziam esse tipo de fotografia com esse tipo de formato. Aprendi muito sobre a importância de pequenos e inúmeros cuidados com cada imagem, num ensaio fotografado com uma câmara 4x5” cada imagem conta muito, por exemplo perder uma opção de edição por besteira na hora de fotografar era muito doloroso. Descobri como o tripé pode afundar na areia durante a foto e como o vento pode tremer a imagem. Descobri que o tripé enche de água se colocado dentro de um rio e que isso pode ser uma vantagem. O tempo foi passando e o trilho de foco da câmara foi cedendo. O diafragma da lente ficou duro, até que uma palheta se soltou e parou de responder ao controle de abertura e assim a B&J Press ficou parada. Uns meses depois enquanto eu andava por uma feira de velharias eu achei uma outra 90mm igual, com um pouco de fungo e sujeira na lente, mas o obturador funcionava. Junto vinha uma Busch Pressman. Desmontei e limpei o obturador, montei os elementos da minha lente nele, perfeito. Na verdade, depois de limpar os elementos dessa outra lente eu quase tinha duas lentes. Já o corpo da Busch estava terrível. Feito em alumínio, a oxidação fazia bolhas sob o acabamento em couro. Por outro lado era perceptível que a câmara era mais leve, completa e com uma construção melhor do que a B&J Press, isso me deixou bem entusiasmado. Percebi que havia uma possibilidade de ter uma câmara com movimentos mais interessantes e um foco mais preciso. O número de série era até engraçado: 112333. Faltavam todas as peças da parte traseira, molas e etc. O fole podia funcionar como coador. Logo descobri que um lensboard que tinha vindo com uma lente conseguida anteriormente servia para essa câmara. A Busch parecia apta a durar mais do que 51 a B&J Press. Usei MicroPore e tinta para tecido para devolver vida ao fole. Passei toda a parte traseira da B&J Press para a Busch, depois lixei a Busch todinha, tirando a oxidação e com seladora protegi a câmara para o futuro. A traseira encaixou fácil, fiz duas roscas e foi possível aparafusá-la no lugar. Reforcei a pintura preta no interior da câmara e removi tudo que não fosse necessário para o funcionamento da câmara: range finder, sports finder, alça. A câmara durou uns dois anos assim, depois começou a vazar luz. Em 2001, no Canadá encontrei uma caixa de papelão cheia de peças para a Busch. Montei o corpo que veio nessa caixa e escolhi as melhores peças das duas câmaras para montar uma câmara só. Cortei um novo despolido de acrílico mate. O mais complicado foi encontrar a chave Allen correta para os parafusos da Busch que são métricos! Fosse Busch ou B&J Press, a idéia era manter funcionando uma 4x5” bem portátil. A quantidade de filme 4x5” que eu consegui sempre foi boa e era importante poder usá-los mais facilmente em campo, dai a necessidade da portabilidade. Nesses anos todos o “kit” incluia algo como a 90mm, a 135mm e uma tele (ou 210mm ou 250mm). E tudo isso cabia em uma bolsa comum de equipamento fotográfico. Da série “espécies em extinção”: o ampliador fotográfico O grande formato já era algo em desuso, dai meu interesse por essas câmaras e filmes, mas outras experimentações, em 99, me levaram em busca de outra espécie em extinção: o ampliador fotográfico. Nessa busca recebi dois grandes presentes um Narita 9x12cm do Enio e um Durst M605 do Caio, ambos em péssimo estado. Ampliadores diferentes significavam um maior número de possibilidades de saída para meus sistemas. Da mesma maneira que eu usava filmes de formatos diferentes nas câmaras mais variadas, precisaria de ampliadores diferentes que aceitassem todos esses formatos. No Durst que o Caio me mandou faltava base, cremalheira de elevação da cabeça, portanegativo, lensboard e vários parafusos de tamanhos diversos. Nas andanças pelo centro encontrei um porta-negativo tão exausto quanto o resto do ampliador. No Gasômetro providenciei uns retalhos de compensado e fórmica branca para a base que eu teria que fazer. A internet já era útil nessa época. Pesquisei imagens do ampliador em bom estado para imaginar como ele era. Desmontei tudo até o último parafuso e tirei todo o pó ou excesso de graxa e óleo. Apliquei um pouco de Ferrox (à base de ácido fosfórico) nas peças enferrujadas. Comecei a montar o ampliador de novo, vagarosamente. Comecei pela cabeça colorida, alguns dials e cremalheiras que controlam os filtros cyan, 52 magenta e yellow estavam girando em falso, cavei sulcos nos eixos de controle com uma lima e com epóxi 24h consegui fixar essas peças nas suas posições originais. Assim os botões coloridos do lado de fora da cabeça voltaram a controlar a posição dos filtros coloridos passando pela frente do feixe de luz. Na loja de material elétrico aqui do bairro comprei uma lâmpada dicróica, dessas que vão direto na corrente alternada, um soquete, 2 metros de fio e uma tomada. Assim refiz a instalação da luz dentro da cabeça do ampliador. Dei uma boa limpeza nos guias de foco e o foco voltou a ser fácil de se conseguir com um simples toque. Faltava um parafuso que segurasse os lensboards e acabei achando um que servisse no meu próprio vidro de maionese. O mesmo aconteceu com os parafusos que seguram agora a cobertura quadradona da cabeça no lugar, com os que seguram a coluna na base e com os que permitem a troca de cabeças. Esteticamente não foi das melhores soluções, os parafusos são bem diferentes dos que a Durst coloca no seus ampliadores, mas para usar no escuro ficou ótimo! Depois de juntar vários retalhos de compensado para criar um bloco de madeira bem pesado, cobrir tudo com fórmica e ao instalar a coluna foi que eu percebi que umas buchas que mantém a cabeça alinhada horizontalmente estavam faltando. A cabeça do ampliador corre sobre essas buchas, que fazem ela deslizar pela coluna. Achei em uma caçamba de lixo uma gaveta de metal, que tinha umas buchas redondas parecidas com uma das que estavam faltando no ampliador. Uma outra bucha que faltava teve que ser feita de Massa Plástica Iberê, moldada no lugar em 15 minutos. Ainda tive que abrir um buraco na cabeça do ampliador e passar uma rosca para um parafuso que substituísse a cremalheira de elevação. Assim o pequeno Durst voltou a funcionar. Na mesma época um amigo que avisou que o Enio tinha um ampliador grande para retirar. O preço segundo o próprio Enio: “deixar um abraço”. Era um Narita, do qual eu nunca tinha ouvido falar, nem ouvi depois, 53 nem nunca achei nenhuma informação sobre ele. O nome vinha escrito com uma letra estilizada em duas plaquinhas de bronze, uma na cabeça e uma no baseboard. O formato era 9x12cm. No chão, com a cabeça erguida no ponto mais alto, o ampliador chegava a ter 180cm de altura. Os problemas do Narita eram basicamente sujeira e ferrugem. A solução foi desmontar tudo, lavar a maioria das peças, aplicar seladora para evitar a oxidação e motar o ampliador de novo. O fole recebeu graxa de sapato para voltar a ter um pouco de flexibilidade. Apliquei um pouco de espuma para melhorar a vedação de luz do estágio do negativo, limpei os vidros do portanegativo. Modifiquei um lensboard para esse ampliador que tem um sistema interessante com dois parafusos para manter a lente no lugar. O ampliador era muito prático de usar graças ao sistema de contrapeso instalado na coluna: um pote cheio de chumbo corria no sentido contrário à cabeça, ligado à ela por um cabo de aço (que eu troquei por um novo). A quantidade de chumbo é variável, são pedaços de chumbo de pesca soltos dentro do pote. Assim o operador pode variar a intensidade do contrapeso de acordo com sua preferência ou com algum acessório instalado na cabeça do ampliador. Agora em 2006 o plano é transformar a coluna do Narita em uma estativa de reprodução. Com o Elwood 5x7 à disposição o Narita ficou “pequeno” e o fole dele já não está mais aguentando. Novos rumos, graças ao lixo Até o início de 99 eu só usava filme vencido para meus trabalhos mais importantes por questões financeiras. Isso estava prestes a mudar. Eu comprava filme negativo colorido na Rekodali, na Av 13 de Maio, eles vendiam o propack bem barato. A Rekodali vivia no meio do fogo cruzado, a loja era distribuidora da Kodak, mas vendia coisas da Ilford sob o balcão. Tempos difíceis. Durante 54 uma passada lá, percebi na prateleira do depósito no mezanino uma grande caixa de Supra N 50x60cm dobrada quase ao meio, não fazia sentido. Gilberto, o gerente, me disse: “as bordas estão verdes”. Não me abalei e ele me deu aquela caixa e mais duas em estado similar. Do outro lado da cidade, um novo laboratório de 1 hora havia se instalou na R. Renato Paes de Barros. Durante os primeiros meses até ofereceu serviço de cópias preto-e-branco em processo manual. O laboratório era no sotão, o calor era infernal lá dentro. Não deu certo. Passados uns meses os papéis que sobraram depois da desativação desse laboratório vieram ao meu encontro. Entre eles uma caixa de Ilford 3.24.M tamanho 18x24cm, o grau fixo 3 com acabamento mate. Com esses dois materiais nasceu o primeiro trabalho que girava em torno dos experimentos de reaproveitamento. Com o papel 18x24cm fiz cópias na primeira semana de Abril de 99. Descobri que os fungos, devido ao calor do sotão, haviam se instalado de tal maneira na gelatina do papel que suas marcas eram completamente visíveis na imagem. Se sobrepunham as formas do vestido solto de Juliana, fotografada sob a luz do interior de um bar. Juliana sentava ao meu lado na mesa do bar, o trabalho ficou Ao Lado. Essas cópias me deixaram muito entusiasmado, acho que finalmente eu havia captado as possibilidades do lixo que vinha em minha direção. Acreditei que o trabalho poderia ganhar com o uso de materiais assim, ao invés de achar que teria que lidar com as restrições impostas a mim pelos tais materiais e que isso afetaria sempre o resultado. Nesse dia eu provavelmente deixei de tentar “visualizar” meus trabalhos, como ensina Adams em sua trilogia. O procedimento se tornou a aceitação e a busca pela dificuldade. Comecei a fotografar incessantemente outros torsos de moças sentadas ao meu lado. Depois, com outros negativos fiz tentativas de usar o papel 55 colorido da Rekodali. Com pincéis e química colorida de um kit RA4 da Kodak fiz revelação seletiva no papel colorido. Induzi bastante velatura nas bordas dos papéis para esconder os tais verdes. Passei a aceitar os papéis em piores condições, não tentava esconder mais nada. Cheguei a embalar papéis em sacos plásticos com detritos orgânicos da minha cozinha para criar um mofo diferente, mas não deu certo. A partir de então experimentei bastante a frustação de não ter algumas imagens fotografadas. O filme não revelava direito, a câmara às vezes estava realmente quebrada. Perdi muita coisa tentando usar o que não custava nada para mim. Experiências rápidas Uma amiga me ensinou a usar revelador para fotolito para conseguir uma aparência interessante com papéis de tom quente, com uns Ektalures antigos. Imprimi a série dos beijos usando essa técnica, o tons resultantes eram bem marrons, com as altas luzes puxando para o rosa. Perdi várias imagens dessas pela inexperiência, os papéis de tom quente como Ektalure têm uma emulsão mais caprichada, com mais sais de prata e portanto deixam o fixador exausto mais rápido. Várias imagens ficaram manchadas por fixação insuficiente, aprendi. (Esses papéis fibra não se perderam, viraram base para impressões com processos do século XIX, onde eu aplicava a emulsão no verso do papel que tem uma encolagem muito útil). Em 2000 passei a ter um emprego fixo numa indústria e dispunha de uma impressora a laser na minha sala. Essa oportunidade se transformou na criação do livro ISPR. Eu fotografava peças automotivas de aço danificadas com uma Mavica (digital primitiva da Sony que gravava as imagens em disquete). Usando os recursos limitados do software Powerpoint para tratar as imagens, consegui contrastar algumas imagens do meu próprio serviço. Depois usava a impressora para dar saída em vinte cópias de cada imagem. 65 A tiragem limitada do livro. Fotografava o refugo industrial e para as capas usei o refugo da copiadora, com pequenas inserções. Furei e encardernei os livrinhos de maneira bem simples. Das coisas que aprendi com o Rodrigo Antes de ir para o Canadá, conversei muito com o Rodrigo sobre técnicas obsoletas. Ele criou o revelador de papéis Rodrigol (assim apelidado por mim) e outros tantos produtos químicos para fotografia. Já foi presidente do Fotocineclube Bandeirantes, ou seja, vem de um ambiente onde durante muito tempo se discutiu a técnica fotográfica. Não é a toa que ele é grande conhecedor de diversos equipamentos. Rodrigo tem informações de outra época, de outro ponto de vista, outra relação com as coisas. Quando ainda se pensava no equipamento sendo dominado pelo fotógrafo. Rodrigo faz isso. Foi ele que me ensinou, por exemplo, a fazer fotos panorâmicas com minhas câmaras de grande formato e ainda “economizar” filme. Esse m é t o d o consiste em cortar um darkslide no meio de modo a permitir que apenas metade de cada chapa seja exposta de uma vez. Me abriu as portas para esse formato novo: o “dois por cinco” ou o “dois e meio por sete”. Um dia o encontrei no vão do Masp, onde ele fotografava com os restos de uma Bender, uma lente 47mm e os tais darkslides cortados. Quando falamos de pinhole, foi ele quem me ensinou uma outra coisa: usar o ampliador para medir os tamanhos dos orifícios usados nas câmaras de latinha. Com uma folha de sulfite, uma régua plástica transparente e um lapis é muito fácil calcular o tamanho de um orifício em um ampliador. Basta posicionar a régua no porta-negativos e com a lâmpada ligada fazer dois riscos que equivalem a um milímetro. Depois troca-se a régua pelo alumínio com o furo e mais dois riscos onde se projeta o círculo no que equivale ao seu diâmetro. Com a própria régua agora se comparam as duas distâncias rabiscadas no papel e por regra de três se chega ao tamanho do orifício. Essas duas dicas subvertem a funcionalidade da ferramenta fotográfica. O ampliador é feito para ampliar e não para medir. O darkslide é feito para esconder e não para mostrar. 66 Papel em rolo Em março de 2000, quando eu viajava para o FotoFest em Houston, Texas, encontrei em uma lojinha de material fotográfico um rolo de papel velho, vencido e abandonado – 9m de Polycontrast II Rapid RC da Kodak, largura de 1m. Cinco dólares e adquiri a caixa com marcas d`água da chuva que havia inundado a loja no ano anterior. Ainda sem saber o que fazer com aquilo, mas entusiasmado com as enormes possibilidades. Muitas coisas interessantes já haviam passado por minhas mãos, mas um rolo de papel era uma coisa nova até para mim, e a idéia de criar uma imagem enorme me veio a mente. Eu usava os outros papéis que me eram dados da maneira como vinham, não cortava, nem refilava, usava cada centímetro como era originalmente. Observei isso no dia em o rolo veio parar na minha mão. Olhei para aquele rolo e pensei em continuar a fazer o mesmo de sempre. Fiz disso uma regra, me desafiando a encontrar uma saída. Meu trabalho não tinha um tamanho determinado. Me pareceu lógico, me pareceu um percurso interessante. Me pareceu besteira ter um pedaço de papel tão grande e dividí-lo em pedaços menores sem tanto impacto. Tinha uma certa urgência, minguava o meu tempo de fazer a foto no Brasil. Planejei bastante a ampliação da imagem para que acontecesse em Maio de 2000. A operação que levaria uma noite inteira. Para revelar a imagem criei uma pequena piscina com pedaços de plástico na minha sala de estar. Usei Dektol reutilizado do laboratório de um amigo e plástico do lixo do meu trabalho. A imagem em preto-e-branco mostra todos os defeitos do papel velho e as marcas criadas pela revelação irregular, fiquei cativado pelo resultado obtido, o fazer foi alucinante! A maneira como a imagem surgiu na época foi cheia de mistérios para mim. O rolo, ainda na loja onde eu o encontrei, me parecia uma raridade, uma iguaria sem comparação. Não era nada daquilo que eu estava acostumado a usar. A mente começou a buscar algo que combinasse com aquilo. Folheando negativos cheguei a pensar em fazer uma enorme ampliação de imagens da água escorrendo pela sarjeto de uma rua na Vila Madalena. Pensei em juntar imagens da sarjeta e da água, lado a lado, remetendo à própria continuidade da calçada da rua paulistana, o papel é longo, distância a ser percorrida. Trabalho. Criar uma imagem enorme de uma mera sarjeta, a a água límpida que o paulista joga fora. O fato é que a página desses negativos estava junto a outra, tomados no mesmo dia, no mesmo lugar, no mesmo tipo de filme. Idéias. A água que passa pela sarjeta, suas curvas. Ou uma parede vazia, uma escada que leva para baixo, uma luz que entra pelo lado. Optei pela parede aparentemente vazia para ampliar nesse papel, sem cortar o rolo. Auto-retratos, fotos de uma caveira e de uma escada que leva para o escuro. Hoje percebo que optei por levar a mensagem sobre o lixo e o desperdício 67 adiante através dos materiais e equipamentos e nas imagens carrego alguém, sempre, oferecendo minha visão sobre essa vida desse alguém. Nem tive tempo de olhar com calma o meu primeiro rolo de papel fotográfico, ele ficou guardado e eu fui embora. A composição das oito imagens parece uma estrutura de soneto talvez, algo como A-BBB-C-DDD, tentei repetir essa estrutura quando fiz a imagem de meu pai em papel de rolo. Acho que acabei fazendo algo como AAA-B-CCC-D. Não faz diferença. As imagens da foto dele nasceram de dois rolos de filme, um quando ele tentava consertar uma lente para mim, e um outro quando fomos ao topo de um morro fotografar uma vista panorâmica do bairro de Itaipu em Niterói. Ao chegar lá e estar longe de casa senti saudades de São Paulo. Já não era mais carioca, não gostava mais do Rio. Não morria de amores por São Paulo, mas ali me sentia seguro. A música do Ira! fez mais sentido. Nostalgia, urgência. Na verdade, urgência era a palavra de ordem nesse tempo. Ouvia Rappa, ouvia Cazuza, ouvia aquelas músicas gritadas, desesperadas. Queria encontrar um novo caminho, tinha medo de parar de trabalhar. Experimentos em cores Logo que cheguei ao Canadá comecei a fotografar com alguns filmes coloridos que eu havia levado e lá pelas tantas tinha 7 filmes para revelar: uns Velvias expostos em EI 64, uns filmes de cinema (que eu nem sabia como revelar) e um Kodak SO-279 (um filme para fazer diapositivos a partir de negativos coloridos, balanceado para tungstênio e para velocidades bem baixas) exposto em EI 12. Consegui um kit da Agfa para revelar filmes compatíveis com o C-41. É um kit desses com várias garrafinhas de químicos em partes A, B, C, etc. O kit era para fazer 500ml e segundo a embalagem só servia para 6 filmes, revelados de dois em dois com tempos progressivamente maiores. Porque não revelar os 7 filmes que tinha? Dilui o revelador e o fixador para 1500ml para poder usar o tanque de 8 espirais e fazer tudo de uma vez só. Imaginei que os filmes slides responderiam bem a química colorida bem diluída. Para compensar pela diluição excessiva aumentei o tempo em 50%. Ainda elevei a temperatura aos 38 graus centígrados pedidos na bula do revelador.Agitei o tanque de inox continuamente por 6 minutos. Mantive o banho estabilizador com 500ml. Os filmes de cinema, que já vieram rebobinados, provavelmente por subexposição ficaram bem suaves, as tentativas de fotografar com ele foram feitas em EI 200. Provavelmente EI 25 seria o mais indicado, alguns fotogramas superexpostos por 71 engano ficaram lindos. Confesso que o carvão que recobre os filmes de cinema me assustou, mas logo descobri que ele saia facilmente com a ajuda de uma esponja molhada. Os filmes positivos responderam bem à química “batizada”. E o SO-279 que é para ser usado com química C-41 veio bem vermelhão, já que eu tinha usado luz do dia para fotografar com ele. Depois dos filmes secos resolvi ampliar algumas fotos num papel Kodak Supra II vencido. E a única química de processos coloridos que eu tinha eram esses banhos usados para revelar os filmes. Experimentei um pouco de revelação seletiva usando um pincel para espalhar a química na superfície do papel. Expus as imagens num ampliador pb comum sem filtragem alguma. Os tempos variaram entre 5 e 12 segundos. Então passava o papel para uma bandeja seca e começava a espalhar a química sobre ele no escuro total. Depois de molhar o papel com revelador esperava em média uns dois minutos no escuro antes de acender por uns dois segundos a luz de segurança (âmbar, para pb) e averiguar o que havia ocorrido. Se a cópia estivesse mais escuro que a bandeja branca, imediatamente derrubava algumas gotas de bleachfix nela e espalhava com outro pincel. Se a cópia ainda não estivesse densa o suficiente apagava correndo a luz de segurança e pincelava mais vezes a cópia com o revelador usado, aguardava mais um tanto e dai então partia para o bleach-fix. Depois era lavar e secar como de costume. Bom, o kit que era para revelar 6 filmes já havia revelado 7, mais umas 8 cópias 20x25cm e umas 5 30x40cm... quando me cansei. Filmes tão velhos que hesitei O fotoclube de uma cidade onde morei no Canadá era no mínimo interessante: encontros e projeções aconteciam em uma igreja, um monte de gente, mas um papo muito careta. Competições, muitas competições. Fui convidado a participar de algumas reuniões e ver no que dava. Já na segunda conheci um cara que tinha na mala do carro uma caixa cheia de cacarecos que ele ia devolver para um outro figura que também estava lá na reunião. Acabei conhecendo esse figura e perguntei se ele não tinha nenhum filme velho naquela caixa que ele quisesse se desfazer. Não deu outra, apareceram 5 tubinhos pretos com tampa cinza da Kodak. Eram 5 rolos de Ektachrome bem antigos, com o design original dos rolos de slide. Quatro rolos de Ektachrome 160T (filme balanceado para tungstênio, EI 160) e um rolo de Ektachrome 400 (filme daylight EI 400). A época do filme ficou logo clara pela aparência da bobina, duas cores, listrada e pelo formato da ponta de filme. O filme 35mm chegou à fotografia graças à Leica e por causa do sistema de carregamento do filme dessas câmaras, o estreitamento na ponta do rolo era mais extenso. Diferente dos filmes modernos que tem uma diminuição da largura na primeira polegada 72 do rolo, para que seja encaixado no carretel que puxará o filme, os filmes anteriores ao início dos anos 80 tinham essa diminuição da largura nos primeiros 10 a 12 cm. Isso facilitava a troca de filmes na Leica e ao mesmo tempo protegia a cortina das câmaras de ser cortava pelo filme quando esse era carregado na máquina. Usar ou não usar esse tipo de filme? Filme colorido, provavelmente com 25 ou mais anos de existência. Será que serve para alguma coisa? Guardei um dos rolos de lembrança e joguei os outros 4 na bolsa e fui para a rua. Fotografei quase tudo com daylight apesar do balancemento dos filmes, mas fiz algumas fotos com iluminação de tungstênio também. Fiz séries de exposições com o mesmo assunto para que pelo menos uma das fotos tivesse a exposição correta. Variei velocidades, variei tipos de luz: contrastada, suave. Pensei bastante para decidir como revelar esses filmes. O processo indicado para eles pelo fabricante é o E-6, processo para filmes positivos coloridos. Eles poderiam ser revelados para gerar um negativo através do processo C-41. Acabei achando que seria uma boa tentar o processo indicado, mas decidi pedir ao laboratório que puxasse o filme, ou seja, desse um tempo de revelação adicional, o que aumenta um pouco o contraste. O resultado foi 4 filmes em branco: o véu, a velatura natural que ocorre nos filmes com o tempo foi tanta que quando houve a reversão o filme perdeu toda a densidade. A puxada que a princípio parecia ser idéia boa acabou só piorando a situação, tornando o véu mais forte, o que “cobriu” as imagens. Algumas imagens são visíveis no filme EI 400. Mas é só, ainda assim apareceram vários pontos vermelhos nesse filme e eu não sei porque. Todos os meus sonhos de cores psicodélicas viraram um monte de pontinhos vermelhos que a gente quase nem vê. Portugal Notícias Conheci um espanhol chamado Antonio no Canadá. Ele já viveu 5 anos no Piauí, deu umas voltas por ai e foi parar lá. Ele tem uma gráfica e edita o jornal Portugal Notícias para o qual eu também escrevia. A Prom-Art, empresa do Antonio, existe já há um bom tempo e já passou por boa parte da evolução do processo de impressão em off-set. Hoje em dia eles não fazem mais os filmes - fotolitos - a chapa sai direto de uma máquina que lê a imagem de uma arte final em papel. A chapa tem suporte de resina e não dura tanto quanto a de alumínio, mas para maioria dos serviços a durabilidade (número de cópias possíveis) é aceitável. Caídos em desuso, a 73 Prom-Art tinha uma pilha de caixa de filmes positivos e negativos e papéis positivos em uma prateleira na salinha da câmara de processo, filmes que o Antonio me deu. Filmes de artes gráficas têm pouca sensibilidade e esses estavam vencidos desde 91 ou 92, na sua maioria ortocromáticos e em tamanhos pouco comuns (21x28cm, 25x30cm, 30x45cm). Os descritivos nas caixas não ajudam a saber se tal filme gera um positivo ou negativo. Como com qualquer outro filme esquisito ou vencido comecei alguns testes para descobrir o que é o quê. Nesse época eu estava reampliando o meu trabalho de Osasco, um monte de negativos 35mm. Eu havia preparado química normal para ampliação (revelador de papel em diluição 1:1, stop e fix). E estava ali no laboratório pronto para começar, e resolvi testar uns filmes que o Antonio me deu. Posicionei um negativo no ampliador e comecei com a primeira caixa da pilha (as caixas estavam empilhadas de acordo com seu tamanho, a maior embaixo de todas). Um filme tamanho 8,5x11 polegadas (21x28cm aprox.), acertei o marginador, acertei a altura da cabeça do ampliador, foco, 7 segundos, abertura f/8 talvez, luz de segurança, peguei uma folha. Usei o velho e bom método da saliva para descobrir o lado da emulsão, que ficou para cima (o método da saliva é o seguinte: molhando levemente o dedão e o indicador na ponta da língua, se esfrega bem os dois dedos, um contra o outro, até ficarem quase secos novamente, com os dois dedos você segura uma ponta do filme e tentar soltar logo em seguida, prestando atenção para qual lado do filme mais adere aos dedos, o lado mais aderente tem a gelatina). Disparei. A imagem apareceu como se fosse a de uma cópia em papel fotográfico. O filme era negativo. Repeti isso com outros 6 negativos, noite a dentro. Lavei todas as folhas, fossem boas ou ruins, testes e etc. Deixei tudo secando enquanto fui descansar. No dia seguinte tentei imaginar uma saída para as imagens positivas penduradas no laboratório. Se eu tentasse uma prova de contato numa 74 folha de papel a imagem sairia negativa. Pensei em repetir o processo, fazendo contato em um outro pedaço de filme idêntico e obter um negativo, para depois contatar em papel fotográfico. Desci ao laboratório, preparei tudo como no dia anterior e comecei a fazer os contatos. O que acontece é que o filme é bem contrastado e esses negativos que eu estava criando já não tinham mais nenhum meio tom. Não achei que isso fosse visualmente interessante para esse trabalho. Decidi parar um pouco. Apaguei as luzes e fui investigar o que havia dentro de cada caixa e cada envelope vindo do Antonio: achei um tanto de papel num dos sacos pretos sem caixa. Tirei uma folha, sob a luz de segurança, pus sob um dos positivos criados no dia anterior, expus por uns 10 segundos no ampliador, meti na química. Papel positivo (!?). Contei o número de folhas: 15. Fechei o envelope, acendi a luz. Parei tudo para repensar. Era pouco papel para fazer besteira. Sentei na mesa de luz com meus 7 negativos tamanho carta (o tamanho dos negativos era o tamanho do papel carta ou letter). Na cabeça lembranças da Fátima, do que ela me escrevia, de como me incomodava, das aulas que a gente tinha tido com a Ângela Di Sessa... Fui buscar estilete, caneta, álcool, tesoura, fita adesiva e todos os positivos e negativos que tinham ficado ruins também. Tesouradas, estiletadas, riscos, arranhões, rabiscos e sabe-se lá o que mais. Juntei tudo com fita adesiva. Voltei para o laboratório, mas dessa vez misturei um pouco do revelador que eu havia trazido lá do Antonio, era um revelador para alto contraste. 75 Fazer contato num papel positivo é engraçado, você tem que lembrar que a exposição afeta a densidade inversamente e não diretamente como estamos acostumados. E que qualquer parte do papel que ficar sob as abas do marginador ficará preta. Bom, as exposições ficaram em torno dos 8 segundos em abertura f/8. Revelei os papéis por um minuto e meio num revelador que deve ser próximo ao D-8 (um revelador bem alcalino, ou seja, bem potente). Essa foi a primeira vez que retomei um trabalho que eu achava que já estava terminado. Até hoje questiono o que mudou, da primeira impressão para essa com os materiais de artes gráficas. Acho que muito se perdeu do documento e não sei se a nova forma do trabalho trouxe outro tanto de volta, mas acho que sim. O trabalho perdeu em detalhes, mas ganhou em força, contraste, vontade. A mensagem é mais visual, depende menos da legenda e isso se tornou muito importante para mim ao longo do tempo. Curioso retomar logo o trabalho, Osasco, que me tinha desmontado por completo alguns anos antes. Riscos Durante uma aula de laboratório na KOR no Canadá, achei espremido, entre a base do ampliador e a bancada, um negativo 4x5” revelado e totalmente bloqueado (preto, pretinho da silva). Joguei-o no chão e com meu sapato sujo esfreguei contra o assoalho até conseguir vários meios-tons. Esfreguei em dois sentidos diferentes. O negativo ficou lindo. Já a cópia proveniente dele tinha muitas áreas brancas e apenas os riscos pretos, não tinha tanta graça. Resolvi reproduzir o negativo em filme Kodalith. Dei origem a um filme que tinha a mesma aparência daquelas cópias não tão interessantes. Já as cópias em papel que vieram em seguida tinham a mesma cara do negativo riscado original e ficaram ótimas, impressas num papel antiquérrimo, um Polycontrast fibra vencido demais. Como os quimeogramas, esse trabalho saiu rapidamente, já que não haviam muitas outras possibilidades de usar aquele negativo preto. Alguns anos depois esse foi o trabalho do habitante secreto do Fotocineclube Leme. Mais rolos Em dezembro de 2000 apareceu um super desconto num rolo de papel colorido Ultra, compatível com o processamento RA4, com 30 metros de comprimento e 1.6m de largura. Ao mesmo tempo ganhei de um amigo um lote enorme de kits para processo direto R3000, aquele para cópias em papel a partir de cromos. Comecei a pensar e planejar a nova ampliação e logo tive a idéia de usar essa química estranha com o tal papel para RA4. Nessa mesma época ganhei também uma bobina de um filme super estranho: LPD4 Line Film da Kodak. A sensibilidade que eu encontrei para ele era de EI 1.5 sob daylight e a bula indica que o filme foi concebido para reprodução de plantas e desenhos gerando um positivo direto. Comprovei, 91 revelado em processo preto-ebranco o filme gera diapositivos monocromáticos, com bastante contraste. Acabei por encontrar um tempo de revelação desse filme com Rodinal diluído em 1+70, que dava uns meios tons adequados ao que eu pretendia visualmente. Comecei a fotografar nas estradas do Canadá, enquanto ia e vinha do trabalho. Os resultados eram bastante contrastados. A base era bem transparente como nos Technical Pans. E cada vez mais esse contraste todo e base tão transparente me faziam crer que esses slides seriam perfeitos para ampliar em papel negativo cor e fazer o cross-processing. Em um dia, sentei e escolhi algumas imagens para imaginar como ampliá-las e como processar as imensas folhas de papel. Resolvi separar alguns pedaços de 1.3 x 1.6m para ampliar as imagens uma a uma, mesmo indo contra afirmações anteriores. Deixei metade do rolo intocado, caso resolvesse fazer uma grande imagem como aquela de 9 metros. Numa noite então foi feita a operação de cortar o papel num tamanho próximo do final. Como o papel é para cópias coloridas tudo foi feito em escuro total. Na imagem de 9 metros cada fotograma aparecia com 80 x 120cm. A lente 50mm foi usada no ampliador que ficou sobre uma bancada, enquanto o papel estava no chão. Para fazer imagens de 130 x 160cm eu montei uma bancada ainda mais alta, levando o ampliador a encostar no teto. Ainda assim, com a lente 50mm a imagem continuava pequena, seria necessária uma lente mais curta que oferecesse um maior coeficiente de ampliação. A solução foi posicionar a 35mm/2 AF da Nikon, minha lente de trabalho, apoiada sobre o lensboard do ampliador. Com a menor distância focal dessa lente a imagem ficou bem maior e consegui alcançar o tamanho desejado. As lentes usadas para fotografia podem ser usadas na ampliação de fotos bem grandes. É uma espécie de atalho para quem não dispõe de uma lente específica para ampliações grandes. O ideal seria uma lente para ampliador que seja indicada para ampliações de 40-60x. Para que o papel ficasse na posição correta no chão, espalhei pelo carpete alguns pedaços de madeira, que teoricamente 92 ficariam no lugar. Isso serviria como uma espécie de marginador para posicionar o papel adequadamente: sob a lente e sob a prateleira. Note o tempo verbal das últimas duas frases. A posição do ampliador também era importante, para que a foto mantivesse a sua característica retangular: o nível da prateleira e o do porta-negativos foram checados várias vezes enquanto eram feitos os preparativos para a ampliação. A exposição do papel ficou em torno dos 30 segundos apesar do tamanho enorme da foto. Os diapositivos feitos com LPD4 têm áreas bem transparentes. Não fiz teste para descobrir a exposição correta do papel, prefiri arriscar com as 4 primeiras fotos do que ter que misturar química só para o teste... preguiça. Pela preguiça também foi cancelada toda e qualquer tentativa de corrigir ou filtrar a cor da imagem. A idéia sempre foi deixar a cor brotar por si só. Assim aconteceu. Com isso pelo menos consegui manter uma certa unidade entre as fotos, já que todos os slides tinham a mesma tonalidade puxando para o sépia. Expostas as 4 imagens e transferi o papel para outro ambiente escuro. Preparei o laboratório para a sessão de revelação. Posicionei as canaletas sobre a bancada e antes de sequer abrir as garrafas da química liguei o exaustor e vesti tanto a máscara contra gases quanto as luvas de latéx. A máscara contra gases foi escolhida entre muitas outras disponíveis aqui nas lojas de construção: das que eu encontrei era a única recomendada para uso com amônia. Quando uma quantidade enorme de papel leva muito revelador para dentro do fixador ocorre um odor insuportável da amônia devido a contaminação, dai o cuidado na escolha da máscara. As minhas canaletas eram de filme de polietileno incolor e transparente (o famoso “plástico”) numa pequena estrutura de madeira. O polietileno era preso com as mais que conhecidas tachinhas! O tamanho de cada canaleta foi medido para ser suficiente para que eu 93 pudesse desenrolar e enrolar o papel fotográfico dentro da química. A química em solução de estoque foi novamente diluída para solução de trabalho com água em torno de 60 graus centígrados: eu queria um processo bem rápido. E cada banho ficou com um volume total de 4 litros. No escuro total, com luvas, máscara e um óculos contra possíveis respingos de química, banhei as 4 folhas, uma por vez. O processo R-3 possui 4 banhos: primeiro revelador, interruptor, revelador de cor e branqueador-fixador. Depois de passado um minuto dentro do revelador de cor (terceiro banho) as luzes do laboratório podem ser acesas. Com as imagens fixadas era hora da lavagem. Aproveitei que o trabalho já estava no fim e lá fui eu e as cópias para o chuveiro! Depois que as cópias secaram estendidas sobre o carpete da casa elas foram refiladas com estilete. No claro, com toda a iluminação necessária os cortes ficaram muito melhores. Como as altas luzes da imagem ficaram muito fracas é possível que tenha ocorrido superrevelação ou mesmo superexposição do papel. Talvez a idéia de usar água a 60 graus centígrados não tenha sido a melhor de todas. Os tons verdes e azúis das fotos são os resultados da combinação d e s s e determinado papel com aquele determinado lote de química velha e todos os outros “erros” cometidos por mim naquela noite. Não há como reproduzir isso com outros materiais. As imagens eu registrei enquanto dirigia. Ali no carro, minha mente era só minha. Ali eu não precisava pensar em embalagens, nem decifrar o que outros falavam para mim nessa língua estrangeira. Nessa hora eu fotografava feliz 103 da vida, descobrindo como apareciam em filme os tons diferentes dos dias nublados com a terra coberta de neve. Muita luz, era o que eu encontrava por ali. As cores que eu criei não existiam, pelo menos naquele no país, nem no filme. As cores me foram dadas por alguém que achava que aqueles químicos eram lixo. O alto contraste me deliciou. As texturas canadenses eram intensas, mas elas se perderam com o filme de ISO tão baixo - as fotos tremeram todas. Pena! Fica a lembrança da sujeira na neve que beira a estrada, na grama durinha congelada. Rappa: “Eu sou guerreiro, vou encarar com fé em Deus e na minha batalha...” Cadeiras, objetos que visam o suporte Na cidade onde morei no Canadá, havia um comitê que dava assistência às pessoas HIV positivo da região. Esse comitê organizava anualmente um leilão para arrecadar fundos. Artistas doam obras e o resultado do leilão é revertido para o comitê. O tema proposto para os trabalhos era sempre a cadeira, simbolizando suporte. Às vezes um tema definido, como o das um lote da época em que vinha embalado na lata de metal amarelo). Depois dos negativos processados e secos comecei a cortá-los com tesoura mesmo, sem perdão, os arranhava com estilete, faca, lixa, ou qualquer outro objeto ao meu alcance, alterando a transparência, removendo prata, adicionando sujeira. Com fita adesiva comum e pedaços de poliéster transparente, sobre a mesa de luz, fui juntando os retalhos e criando outros negativos de tamanho similar ao 6x6. Os pedaços de poliéster serviam para dar uma base para o negativo, inclusive para evitar o manuseio excessivo da área da imagem e a fita adesiva adicionava uma transparência diferente ao negativo, ao mesmo tempo que guardava pelos, poeira e às vezes até alguma bolhas. Tentei sempre usar o Neopan e manter a revelação consistente para que os negativos, quando juntos numa montagem, possuissem uma densidade semelhante, com a intenção de manter a exposição da cópia o mais simples possível. Ainda assim foram necessárias algumas máscaras de papel para queimar e proteger aqui ou ali. De cada negativo criado foram feitas duas cópias – a edição limitada visava ajudar ainda mais com o resultado do leilão - e depois os negativos eram desmontados e algumas de suas partes às vezes usadas em outros negativos criados mais tarde. As cópias foram feitas em papel Ektalure superfície H, revelado em revelador D-8 super diluído. Tentei reproduzir a técnica do lithprint com o D-8. Superexpus o papel no ampliador e depois revelei por meia hora. Algumas cópias passaram por um banho rebaixador e foi só. O efeito ficou semelhante, mas depois modifiquei o revelador que eu usei para a série. Em 2004 voltei a ampliar essa série, em tamanho menor, criando várias PAs para oferecer de presente a alguns amigos. Achei um bilhete escrito para a menina do 203 em fevereiro de 2005, de onde extraio a seguinte passagem que se refere a uma imagem dessa série: “para mim ela é lixo de todas as formas. As cadeiras ficavam ali abandonadas nesse galpão, cobertas de poeira, sem ninguém sentar nelas. Eu até levei umas para casa e elas me acompanham até hoje. (...) e acho que no fundo fiz isso porque na hora, as cadeiras não eram tão importante para mim. Ingenuidade minha. E sorte, eu diria. Eu fico maravilhado com esse tipo de possibilidade: reconstituir a vida em um monte de coisas quase mortas.” cadeiras, facilita a experimentação com novos materiais. Um tema simples como esse permitiu uma dedicação maior às descobertas com materiais de artes gráficas. Logo me propus a doar uma imagem e comecei a fotografar várias cadeiras abandonadas pelos galpões da fábrica onde trabalhava. E foi pensando nas coisas que o Eustáquio faz que consegui introduzir no meu dia-a-dia os materiais de artes gráficas que foram aparecendo, quer dizer, o trabalho dele me mostrou uma maneira de usar esse tipo de material dentro do laboratório. Criei negativos 35mm em filme preto-e-branco Neopan 400 vencido desde 1995, revelado em D-76 (só usei D-76 porque esse era de 104 Fiquei tranquilo mesmo quando anos mais tarde, batendo um papo com o Eustáquio, descobri que ele também vai guardando pedacinhos e sujeiras de prata para preencher alguns cantos aqui e ali na imagem montada. Se eu era um louco, não estava só. 105 Outros rolos A imagem de março de 2000, com 9 metros inaugurou uma série: Plural. A Plural II nasceu da reciclagem em primeira instância. 2002 foi o ano da reciclagem e no Canadá há muito lixo cheio de possibilidades. Mais importante era o conceito de ciclo da vida que se formava dentro de mim ao ver meu filho Pedro crescer. Tudo isso se juntou em uma imagem gigante. Um rolo de Fujitrans com 1.27m de largura e 30.5m de comprimento havia sido doado a mim por um amigo de uma loja de fotografia. Fujitrans é um material de display, a emulsão é semelhante à de um papel colorido, mas a base é translúcida e tem aparência leitosa que se presta ao backlight. Fujitrans como todo material colorido precisa de escuro total no laboratório. A embalagem era antiga e nem data de validade tinha. Eu queria criar um negativo comprido o suficiente para ser ampliado naquele material, inspirado pelas idéias assimiladas na série das cadeiras, ao invés de ampliar várias imagens de maneira independente. Comecei a juntar numa caixa as páginas de negativos que continham as imagens que eu queria usar: fotos de uma máquina que moe madeira. Juntei também uns originais polaroid que eu queria reproduzir para usar. Lá pelas tantas entrei no laboratório com a finalidade de copiar todos os negativos em filme direto (positivo) para com essas cópias fazer a montagem, ao invés de arriscar todo esse material original. Essa foi uma preocupação que não tive com os negativos das cadeiras, não sei explicar bem porque. Copiei então todos os negativos com filme positivo, um Duplicating da Anitec em tamanho 24x30cm. Usei revelador de papel Multigrade para revelar essa material e fiz todas as cópias por contato, exatamente como se estivesse fazendo um contato dos negativos em papel fotográfico. Os negativos copiados ganharam algum contraste e passaram a estar sobre um filme com uma base bem mais transparente: isso ajuda muito nas fotos grandes, é mais luz que passa pelo filme como um todo e reduz o tempo de exposição. Alguns slides que estavam no meio do que deveria ser reproduzido foram copiados num outro filme, só que negativo. Os originais polaroid foram reproduzidos em Technical Pan, revelado em D-76 para acompanhar o contraste mais alto dos outros negativos. Cortei uma tira de filme de polyester com 71cm de comprimento e 10cm de largura. Risquei duas linhas de um extremo ao outro, com 3cm de distância uma da outra. Segundo meus cálculos esta deveria ser a área do negativo – imaginando as dimensões do Fujitrans, a lente que eu usaria para a ampliação e distância necessária entre o ampliador e o Fujitrans. Na verdade, nessa altura eu já tinha vários esquemas e desenhos de como faria a sessão de ampliação dessa imagem inteira. Pensava em usar minha 35mm Nikkor-PC no lugar da lente do ampliador e portanto tinha calculado que a tal lente precisaria ficar a 1.48m de altura do chão: assim os 3cm de largura do negativo se tornariam 1.27m e os 71cm nos tais 30.5m. Cálculos, cálculos, eles me davam uma idéía do que ainda teria pra frente de preocupação. 123 Meu maior medo era a frustação de perder um papel desses. Cada passo era imaginado de olhos fechados e anotado. A imagem, sua construção em negativo, isso era mais tranquilo de superar no claro. Ver a imagem final seria tão diferente de olhar para o contato de 78cm, o que eu poderia fazer? Eu não sabia o que seria uma imagem daquele tamanho. Com a tesoura separei os pedaços de negativo que me interessavam nas folhas de filme 24x30cm. Com estilete criei alguns arranhões, suavizei os cantos e fui montando a minha história. Após os primeiros 50cm cheguei a fazer um contato em papel fotográfico comum, olhei o resultado, deixei passar um mês e depois continuei até terminar. No meu diário de laboratório reli o que tinha escrito durante as outras ampliações gigantes e lembrei de várias coisas que precisariam estar prontas antes do apagar das luzes. Acho que foi logo cedo que aprendi que uma vez que se começa algo como isso, no escuro total, não tem como parar. Imaginava empilhar duas mesas e sobre elas o ampliador pendurado na lateral. Tinha de ser capaz de fazer caber a lente 35mm dentro do fole do ampliador, já que não haveria encaixe possível da maneira habitual. Tinha que criar um sistema para desenrolar o papel na quantidade certa para cada uma das 15 exposições previstas. Queria deixar alguns centímetros de Fujitrans virgem na ponta do final, para assinar a cópia com um contato do negativo inteiro. Revelar a cópia ainda era algo muito distante, no fim da sessão de ampliação a idéia era enrolar tudo e recolher a bagunça, dai mais um mês de planejamento antes de pensar em químicas. Uma coisa que me pareceu muito importante era começar a ampliação de trás para frente. Na imagem Plural I as últimas duas fotos estão meio truncadas, mas isso não havia sido planejado. Dessa vez começando de trás para frente, as fotos que terminam a história teriam seu espaço garantido, dai o punch da imagem, enquanto o início fica a critério do comprimento do papel e deixa de haver problema em cortar um pedaço do negativo. Toda a sessão de ampliação ficou esquematizada para acontecer durante a noite. Não só a quantidade de luz que possivelmente entraria na sala do apartamento – onde havia mais espaço – era menor, quanto o movimento da casa e a possibilidade de interrupções diminuiam. As janelas foram fechadas com cortinas opacas e o corredor que dá para os quartos também. Chegado o dia de expor o Fujitrans os preparativos começaram logo no início da tarde. Tirei alguns móveis da sala e os escondi pelo resto da casa. Posicionei a mesa com espaço para o rolo de material fotográfico à sua frente e sobre essa mesa uma outra menor. Usei fitas de nylon com fivelas para segurar uma mesa na outra. Sobre a mesa superior com a ajuda de sargentos fixei uma grande tábua que se projetava sobre o espaço na frente da mesa e sobre a tábua o ampliador com a coluna virada para trás. Vários livros funcionaram 124 de contra-peso sobre a tábua. Quando a lente atingiu os 1.48m, a imagem que era projetada tinha os exatos 1.27m de largura. A lente 35mm Nikkor-PC usada nesse dia - que normalmente é usada em câmara fotográfica para fotos com controle de perspectiva - tinha uma grande vantagem que era uma área de cobertura da imagem maior do que o negativo 35mm (24x36mm) e a área que eu pretendi ampliar por etapa era de 30x45mm. Inseri a lente dentro do fole de plástico do ampliador Meopta 6x6, já deixando o diafragma em abertura f/8. Durante a noite com as luzes já apagadas, comecei a projetar a imagem do negativo sobre o carpete da sala para decidir qual seria o tempo de exposição necessário. Nunca havia usado nada semelhante a esse material fotossensível, mas de qualquer maneira decidi que usaria 5 segundos para boa parte da foto e em algumas áreas 10 segundos. A escolha do tempo foi completamente intuitiva, mas baseada em algumas anotações também: eu acreditava que o branco seria essencial nessa imagem e como o material era translúcido imaginava que o backlight poderia ficar esquisito com uma imagem muito escura, por isso talvez um tempo aparentemente tão curto, O tempo curto na ampliação também se explica pela revelação muito longa devido a todo o trabalho de desenrolar o papel inteiro até que ele fique todo molhado. Abri a caixa do material e desenrolei o suficiente para a primeira exposição. Usei as duas partes da própria caixa do papel para segurar as duas pontas, evitando assim que ele enrolasse de novo. Expus o fim da imagem primeiro, já deixando aquela pontinha para o contato no final. Após a primeira exposição enrolei a ponta de volta para perto da parte maior do rolo, voltei a cobrir com as duas metades da caixa e com um pano preto. Liguei o ampliador e movi o negativo observando o que já havia sido ampliado até posicioná-lo para o próximo fragmento, desliguei o ampliador. Carreguei o rolo maior e a ponta enrolada para o outro lado da sala, e de lá desenrolei o material sob o ampliador. Uma parte virgem, sendo que a ponta já exposta ficou sob uma das metades da tal caixa. E dai em diante continuei repetindo o mesmo procedimento (o esquema ao lado é um pouco elucidativo). Acho que o mais complicado dessa parte toda foi encontrar a posição correta para o negativo dentro do ampliador, para que as imagens estivessem próximas de ter uma continuidade, ou seja, não ficassem tão separadas ou sobrepostas. Tive que tomar cuidado também com a coordenação do movimento do papel e do negativo para que a imagem aparecesse na sequência certa. Como já tinha imaginado o rolo de 30m de Fujitrans era bem pesado para ficar levando 125 de lá para cá noite adentro. Durante todo o processo que ocorreu nesse dia, cada vez mais eu me perguntava como seria a revelação. Isso era uma preocupação cada vez menos distante. Terminei todas as ampliações e voltei o rolo para o fim da imagem (onde eu havia começado) e lá fiz o tal contato do negativo. Embrulhei o rolo no plástico preto onde ele veio, reposicionei as pontas de isopor e mandei tudo para dentro da caixa comprida e bege da Fuji. Nessa altura dentro da minha cabeça havia uma discussão enorme. Por falta de experiência, eu não sabia porque a falta de uniformidade nas minhas fotos grandes anteriores: ausência de pre-wet (molhar todo o papel antes de iniciar a revelação) ou pouca química em tanques de formatos irregulares. Tentei encontrar um laboratório na cidade que possuisse uma pia de aço inox que eu pudesse transformar em tanque de revelação, mas depois de várias tentativas não foi adiante essa idéia, ou seja, me restava só a banheira da minha casa, que apesar do fundo irregular pelo menos tinha o comprimento necessário para o papel entrar de lado: 1.3 metros. Se não podia tentar um tanque de revelação mais convencional, estava pelo menos certo de fazer um pre-wet do rolo inteiro antes de iniciar a revelação. Isso devia pelo menos remover um tanto daquele pigmento azul que vem nos materiais de ampliação colorida e que eu não queria definitivamente preso a minha cópia gigante. Comecei a juntar química colorida: revelador RA-4 em quantidade suficiente para fazer 7.6 litros de reforço, tinha umas garrafas de química soltas numa caixa (eram partes As ou Bs de reveladores coloridos ou para XP2 da Ilford, pelos rótulos ali havia bastante álcali, carbonato de potássio, eu usaria para deixar o processo mais rápido), 5 litros de concentrado de reforço para branqueador, umas garrafas de fixador para E-6 (tiossulfato de amônia), umas outras da marca Beseler de fixador RA-4 (tiossulfato de amônia também). Separei também luvas de latex e a minha imbatível máscara contra gases. Tomei notas de todas as idéias, lembranças, tudo. Lia e relia o que havia escrito sobre a revelação da foto de 9m, imaginava o que seria diferente agora que revelaria um material colorido. Meses se passaram. Em um dia fechei as janelas da casa, portas, havia o mínimo de luz chegando à porta do banheiro, mesmo assim vedei com panos pretos e o que mais me apareceu na mão. Dentro do banheiro havia a caixa contendo o rolo a ser revelado, minha máscara, óculos de segurança, panos, pedaços de plástico (filme de polietileno), lanterna (se tudo mais falhar), química, balde, graduados, etc. Misturei a química do revelador no balde já na temperatura certa: bem quente. Tirei o rolo da caixa e o deitei na banheira, abri o chuveiro e comecei a desenrolar e reenrolar o Fujitrans debaixo d’água. O rolo inteiro levou alguns minutos – e já foi exaustivo comigo debruçado dentro da banheira, de joelhos no chão do banheiro. 126 Tinha construído um suporte para que o Fujitrans ficasse mais reto no fundo da banheira, mas não funcionou e logo não usei. Escoei a água do prewet e voltei a tampar o fundo da banheira. Virei o balde com o revelador dentro da banheira! Novamente reenrolei todo o Fujitrans. E foi então que percebi a primeira coisa que me faltava: algo que protegesse as minhas mãos, porque eu segurava o rolo pelas pontas e ali os cantos do filme são bem afiados e cortavam a palma da minha mão! O importante era não parar no meio da revelação. Depois de todo o Fujitrans exposto à química deixei passar mais um minuto e tanto e abri o chuveiro e destampei o ralo da banheira. Tornei a reenrolar todo o material para que a água retirasse o máximo dos resíduos do revelador. Não era viável enrolar e desenrolar o Fujitrans para garanti que a revelação fosse uniforme em todo o rolo, logo não me preocupei. Durante a parte de planejamento eu havia calculado que a área que eu conseguiria revelar com a quantidade de química disponível era menor do que a área do rolo. Eu contava com o fato da química ficar presa dentro do rolo, assim apenas a química presa fica exausta e o resto da banheira permaneceria útil até o fim da revelação. De certa maneira isso servia também para evitar super-revelação que poderia acabar com os brancos da imagem final. Não realizei outra imagem nas mesmas condições para fazer a comparação, mas consegui uma uniformidade muito boa na densidade da imagem de 38.7 metros quadrados, acredito que em função do pre-wet e desse método de processamento que conta com a exaustão apenas da química que fica presa dentro do rolo. Depois da foto lavada voltei a tampar o ralo da banheira, enchê-la de água e comecei também a despejar os concentrados de fixador. Resolvi não usar o bleach (branqueador) porque apesar da imagem ter boa densidade sob luz refletida, fiquei com medo da imagem aparecer muito clara com backlight. Achei melhor então deixar a prata metálica depositada sobre o material bloqueando um pouco mais a luz, apesar de perder a possibilidade de ter cores mais vivas. Em um ato de loucura eu até poderia tentar branquear a imagem mais tarde. Nessa altura abri uma fresta da porta deixando alguma luz entrar para poder ver melhor o que eu fazia. Reenrolei o rolo duas vezes, dando um tempo de fixação bem longo, até o banho ficar verde (sinal de esgotamento do fixador). Comecei a drenar o fixador e encher a banheira com água limpa para lavar a cópia. Com as minhas notas sobre a secagem do rolo de 9 metros lembrei que pude deixá-lo de pé e enrolado como um caracol sem se tocar, da noite para o dia, para que secasse. Logo que tirei o Fujitrans da banheira percebi que ele era 127 muito maior, mais pesado e mais mole! Coloquei um pedaço de polietileno sobre o carpete da sala e ali deitei o rolo enxarcado. Enquanto não desenrolasse o filme ele não secaria. Começando às 3 da tarde puxei a ponta do rolo, passei-a por sobre uma mesa e a deixei pendurada do outro lado na frente de um ventilador. Sequei o rolo metro a metro e terminei às 11 da noite. Usei um secador de cabelo para os lugares mais molhados. Acho que tive sorte, de não haver um descolamento da emulsão, porque essa secagem tão demorada não estava nos planos. Trinta metros de fotografia é muita coisa. Por isso essa imagem só foi aberta por completa uma única vez, no MAM de São Paulo, em 2005. No chão, em um dia em que o museu estava fechado ao público. Depois nunca mais vi a imagem toda aberta. Já pensei diversas vezes em cortá-la em duas, até três. Ou diminuí-la. Quem sabe isso a faria mais fácil de ser exibida por ai. Os pedaços iam perder o sentido do todo. Não que o sentido do todo seja uma coisa assim muito planejada e inatingível. É o todo. E um pedaço seria um pedaço. Essa talvez seja a imagem da série com a qual eu mantenho a maior distância. Primeiro porque de todas é a que vi menos. Na verdade, pude contemplar todas elas bem pouco. E as poucas vezes que pude vê-las, foi muito rápido. Adoraria ter uma em uma parede aqui. Olhar para ela, descobri-la. Mas essa uminha é a mais complicada, seu peso é enorme, poliéster pesa mais que o papel. A Massa plástica sempre útil A experiência com a Massa Plástica Iberê durante a reforma do ampliador Durst foi muito interessante. Também naquela época, a minha Nikon 6006s teve um problema durante uma viagem de trabalho. O gancho que fechava a tampa traseira se quebrou, velando um filme, e o rapaz que a consertou também usou massa plástica. Esse polímero é muito útil. Em dois mil e tanto, a Fátima comprou uma câmara de 4x5 polegadas, eu pensei em dar de presente uma das minhas 90mm. A câmara dela era uma Cambo e o recuo da câmara não era curto o suficiente. O recuo é a posição onde a lente fica mais próxima do filme e para essa lente deveria ser menos do que os tais 90mm. Logo a câmara não possibilitava usar a lente com um lensboard comum (plano), seria necessário um lensboard com recuo (recessed). O lensboard com recuo posiciona a lente para dentro da câmara, ao invés de ser uma chapa plana como o lensboard comum, ele tem uma chapa 128 que se prende à câmara e um corpo cônico ou semelhante que se projeta para dentro do fole. Como fazer um para a câmara da Faró? Madeira seria complicado demais. Nada cola em polietileno, além dele mesmo, sob a ação do calor. E eu tinha muito polietileno disponível. Logo eu poderia fazer um molde para o lensboard. Pensei em usar a massa plástica. No Canadá acabei descobrindo que a massa plástica só vende como massa de funileiro, já que eles não usam mármore no banheiro tanto assim. Para o molde usei polietileno para a base e uma chapa de acrílico de 4mm para as barreiras e um bloco chanfrado de polietileno para o corpo recuado da placa. Cortei as peças na serra de bancada e montei. Para deixar um buraco redondo para a lente, aparafusei um tubinho desses de filme no meio do molde, coincidentemente o diâmetro da boca do tubo casava com o diâmetro da rosca que prende a lente ai lensboard. Apliquei a massa com a ajuda de um palito de sorvete, tentei espalhar bem a massa para criar uma espessura razoável em todo o corpo do lensboard. Sequei rápido com o auxílio de um secador de cabelo. Com cuidado 129 retirei a peça do molde. Acertei de primeira! Depois misturei mais massa e fiz uns retoques em alguns pontos onde a massa ficou muito fina, só para ter certeza. Depois pintei de preto. Depois fiz lensboards para a minha B&J Grover. Montei o mesmo molde, mas ao invés de um bloco de polietileno chanfrado usei um pote de margarina redondo no meio do molde. Funcionou da mesma maneira, mas no lensboard ficou gravado um alerta quanto o uso do pote de margarina em fornos de microondas que vinha no fundo daquela embalagem. Divertido. Na rua, na fila, no frio A Alt Camera faliu e, em um sábado tranquilo e gélido, a fila dos interessados pelo saldo de fechamento dava a volta no quarteirão, eu era o segundo da fila e só entravam dez pessoas por vez. Nada tinha preço, valia a negociação com os vendedores ali na hora. Achei uma câmara de 8x10 polegadas de madeira em estado deplorável dentro de uma caixa, negociei por 40 dólares canadenses, uma pechincha. Levei também uma processadora de inox cheia de cestas e outras coisinhas. Pesquisei e descobri que a câmara era uma Agfa-Ansco Commercial, mas para ser capaz de identificá-la foi preciso muita paciência para descolar os inúmeros pedaços de fórmica preta que recobriam a corpo de madeira. Os cantos haviam sido arrematados com perfil de alumínio, muitos parafusos tinham sido usados para manter tudo isso no lugar, deixando vários furos na madeira do corpo. A câmara havia sido preparada para trabalho em um estúdio de retrato, imagino, ao invés de usar chapas de 8x10”, tinha uma traseira redutora para 4x5” que era capaz de girar oferecendo possibilidade de composição vertical e horizontal rapidamente. Só o vidro despolido que estava montado nessa traseira da câmara superava o valor pago em todo a compra daquela manhã, era um despolido da Sinar. Dentro do fole, escondido atrás do lensboard havia um obturador Packard dos grandes (operado a ar) cuja mangueira passava pelo fole e saia pela lateral da traseira. O fole, por sinal, estava novo. Assim que tive uma chance comecei a descolar a fórmica da madeira, percebi que o mecanismo do shift frontal estava rachado, toda a frente estava abalada. Percebi também que uma peça importante estava faltando, parte do mecanismo que mantia a câmara aberta, em posição de uso. Enfim, não faltavam desafios. Boa parte do tempo que gastei com a câmara foi mesmo retirando os restos de cola depois de retirar a fórmica e fechar os furos. Usei um pouco de cera para devolver vida à madeira e comecei a pensar como solucionar os 130 dois problemas principais. Com dois blocos de madeira - que infelizmente não eram de uma cor apropriada mas eram os que estavam disponíveis - reforcei a frente da câmara e isso bastou para que pudesse extender todo o fole sem que a frente se torcesse para trás tirando a imagem de foco. Cortei os blocos em uma forma apropriada para encaixar no canto entre as peças soltas e colei o bloco no lugar. Em seguida coloquei uns parafusos para garantir a firmeza dessa montagem. Para o mecanismo de shift usei cola para juntar os pedaços da madeira que haviam se quebrado e com dois sargentos deixei secar sob pressão. Para manter a câmara aberta pensei em várias saídas, mas quase todas dependiam de metais pré-moldados de formas que não seriam de fácil obtenção. Resolvi que a cabeça do tripé faria essa função, já que teria que providenciar uma cabeça para essa câmara de qualquer forma. Consegui numa sucata um suporte para computador touchscreen que nada mais era que uma enorme dobradiça. Prendi uma barra de polietileno nesse suporte e fiz dois furos possibilitando que dois parafusos se prendessem às duas pontas da câmara. Com a câmara presa assim ela ficaria aberta e firme para a usar. A câmara funcionava na teoria. Não havia lente, não havia traseira para filme de 8x10 polegadas. É verdade que a era digital facilitou a busca pelas lentes e logo eu havia conseguido algumas que serviam para cobrir esse formato de filme, 2 reaproveitadas do mundo das artes gráficas (uma 209mm Raptar Copy e uma 500mm Ektanon) e uma 264mm Cooke softfocus que me havia sido dada por um fotógrafo canadense que se desfez do seu estúdio e laboratório. Cortei compensado para os lensboards (dessa vez sem massa plástica) e comecei a montar as lentes. Descartei o lensboard que veio com a câmara porque este tinha muitos furos. Para traseira cheguei a fazer algumas buscas por sites de leilões, mas acessórios para esse tipo de câmara são muito raros e nada achei. Juntei alguns pedaços de madeira e comecei a cortar. Achei alguns retalhos de acrílico fosco em uma caçamba nos fundos de uma loja de plásticos, o tamanho dos retalhos não era suficiente, um amigo me emprestou uma cola e juntei dois retalhos para conseguir fazer o despolido da traseira. Achei molas em uma loja de sucata. Consegui construir uma traseira que aceitasse o porta-filmes padrão para o formato 8x10”. A câmara funcionou. 131 De volta no Brasil levei essa câmara e seus acessórios em três mochilas para Paranapiacaba em uma dia bem quente. Montei a trapizonga no meio da rua principal em frente a estação de trem e convidei pessoas para posarem para mim. Usei filme ortocromático de alto contraste com índice de exposição 0.5 (zero ponto cinco), vencido em 1995. Esse filme me foi dado por um casal de fotógrafos canadenses que também tinham uma pequena gráfica. O filme estava velho e muito mal cuidado. O fato é que a base ficava muito cinza quando revelado normalmente, o contraste não existia, se perdia. Era muito filme e dava dó de jogar fora. Tentei vários approaches para salvar ele e conseguir algum tipo de imagem com contraste. Um dia revelei em dois banhos diferentes - o primeiro banho com revelador Kodalith até os primeiros pretos e depois um revelador tipo Dektol bem diluído para dar alguns cinzas. Isso resolveu a situação por completo e o filme ficou “usável” e bem diferente. O contraste ficou surreal, alguns brancos completamente bloqueados e cinzas escuros no resto da foto com muitos detalhes, pretos carregados. O tempo de exposição em Paranapiacaba ficou em 6 segundos e as pessoas se divertiram tentando ficar imóveis esse tempo todo. Sobre esse ensaio escrevi: “Para resolver um problema técnico pedi às pessoas que se encostassem em uma parede. Nas primeiras imagens usei uma parede que dividia a foto em duas.” Minha versão da Lomo Action As câmaras da marca Lomo sempre foram famosas por sua péssima qualidade. Fabricadas em algum país da antiga União Soviética, elas invadiram o mundo com seus preços muito baixos. Lá pelas tantas, a Lomo introduziu no mercado um modelo bem diferente (não fosse pela qualidade persistentemente ruim) que dispunha de 4 lentes para fotos sequenciais. As quatros imagens ocupavam o mesmo espaço de uma imagem normal em um filme 35mm e portanto os laboratórios revelavam o filme normalmente dando origem a cópias 10x15cm com quatro fotos lado a lado. Apesar da câmara continuar quase descartável, a Lomo Action foi e é uma febre mundo afora. Eu sempre achei a câmara interessante, mas nunca tive a oportunidade de encontrar uma à venda. Foi para o aniversário de um ano do meu filho que eu encomendei monóculos de meio quadro, encomendei um cento. Esses monóculos são típicos no Brasil e em alguns pontos turísiticos ainda é possível encontrar comerciantes da fotografia que façam esse tipo de serviço em alguns minutos para o 143 viajante. Eu queria fazer fotos do meu filho para a família e acabei usando 72 monóculos. Os outros 28 ficaram a disposição das minhas idéias. É necessário lembrar que os monóculos vêm desmontados: um saco com os cones (nesse caso cor de vinho) com suas lentes e um outro saco com os fundos difusores de plástico branco. Dispus os cones na mesa e pensando na Lomo Action logo vislumbrei uma enorme câmara com várias lentes justapostas, cada monóculo um pequeno fotograma ladeado por outros tantos. Me acalmei e decidi fazer uma câmara menor, com 16 monóculos, mas que usasse o filme de 4x5 polegadas, mais fácil de processar e ampliar. Puxei a pistola de cola quente e comecei a colar a estrutura dos 16 monóculos, 4 por 4. Usei papelão do lixo seco para fazer o corpo da câmara e emprestei a traseira da Burke & James Press que ainda me acompanhava. Dobrei papelão na frente da câmara e com uma folha de papel cartão, com uma janela cortada, fiz um obturador de puxar. Fotografei no estacionamento do supermercado. Um lugar tão frequentado por mim durante os anos no Canadá. Usei um Tri-X vencido em 1981, revelei e havia 16 imagens em cada chapa, impressionante. Fiquei espantado da câmara funcionar, assim, sem dar trabalho. Na época juntei esse trabalho a um outro com a câmara pinhole de 4x5 polegadas e também à série em que eu transformava as casas de amigos em câmaras obscuras e fotografava a luz projetada pelos orifícios. Isso tudo virou um trabalho maior entitulado “Exploração Lunar”, traçando um paralelo com esse tais anos no Canadá. Sobre esse trabalho consegui escrever um pouco do que eu sentia na época a respeito das experiências e reaproveitamentos que fazia: “What draws me to art is dealing with losses. People go away, pass away or move away. Methods and processes get forgotten because they age and become less profitable. Materials become part of a city’s garbage because some label says they have expired. I need to fight this, with art. Recycling is a concept that carries all this within, this fight for life. No end, no beginning, all we need is energy to use up the resources that already exist, thus turning them into a more friendly product, one that may be brought back into this system later again.” Hoje percebo que minhas idéias quanto ao que eu fazia estavam muito presas à idéia de consumo e lucro. Já as associações com a exploração lunar eram interessantes. As imagens pareciam realmente coisas produzidas pela NASA. Cada um dos 16 quadros das imagens com a câmara de monóculos parecia uma cena daquelas de tv transmitida por rádio da Lua. Já o trabalho com a câmara pinhole de 4x5 polegadas era um registro do dia-a-dia, das viagens pelo Canadá. Além de usar filme vencido, Velvia e EPP fornecidos por um amigo que trabalhava em um estúdio de uma agência de propaganda, eu abusava das duplas ou múltiplas exposições, usando a mesma chapa para registrar mais de uma imagem. Sempre acreditei que a técnica da câmara de orifício se prestava a criar imagens com um clima etéreo e as duplas exposições faziam isso ficar ainda mais evidente para mim. Reaproveitava o filme que estava sendo reaproveitado e as imagens traziam fantasmas. Depois imprimi em acetato uma série de riscos em forma de cruz, como os encontrados nas imagens da Lua feitas com a Hasselblad lunar - graças à chapa Reseau que era instalada nessas câmaras - e sobrepus o acetato às transparências coloridas quando fiz os internegativos para ampliação. Por último, o trabalho de registrar o interior das casas tinha cores e composições bem esquisitos. Comparei aquilo às imagens que os astronautas fizeram da Aurora Borealis e Australis do espaço. Eu reconhecia um planeta diferente e até trouxe algumas pedras de lá. Rolos mais estreitos e compridos A KOR era uma galeria cooperativa no Canadá, o espaço era bem cheio de recursos e eu cheguei a oferecer alguns cursos lá com sucesso. A KOR tinha recebido da prefeitura dois prédios meio abandonados no centro da cidade e reformado apenas um, onde era a sede. O outro prédio funcionava como depósito de algumas doações e em meados de 2003 teve que ser esvaziado porque a prefeitura o queria de volta. A KOR ofereceu todos os materiais e equipamentos que estavam naquele prédio aos professores e lá fui eu 144 145 retirar um pouco das coisas que haviam sido abandonadas anos atrás. A maior parte das coisas que recebi nessa doação eram materiais de artes gráficas (mais uma vez) e dentre eles vários rolos de um material chamado Photo Type Setting Paper. Esse material é um papel fotográfico com base fibra de gramatura muito baixa. O contraste é elevado e nesse caso o véu de base também era. Ao todo recebi 17 rolos de 45 metros cada, com largura de 20cm. Em testes preliminares percebi que a luz de segurança OC causava velatura no papel e passei a usá-lo no escuro absoluto. O primeiro uso que dei para esse material foi a produção de algumas cópias em escala menor das imagens da série Plural que já existiam. Logo surgiu a idéia de dobrar a imagem depois de pronta, como um livro chinês, graças à gramatura do papel isso era fácil. Então algumas imagens passaram a ter outra maneira de serem vistas, página por página. Quando voltei a São Paulo, em 2003, usei o laboratório do Senac para ampliar imagens da série Plural nesse papel, escolhia sempre um canto escuro do laboratório e apagava algumas luzes de segurança ao meu redor, isso costumava funcionar bem. Para secar o papel utilizava uma “técnica” interessante: pendurava o papel nos suportes das lâmpadas do laboratório, sob a saída de ar dos dutos de refrigeração. Até mesmo os mais tímidos saiam dos seus cuidados e vinham conversar, indagar sobre o que eram aquelas coisas compridas penduradas em um local onde quase sempre tudo era retangular e secava apoiado na tela de nylon. Essa possibilidade sempre foi muito atraente (papo) e me ajudava a tentar mostrar como as coisas podem ser diferentes ou renovadas. Às vezes me faltava um argumento, me parecia que as pessoas com quem eu conversava insistiam em acreditar que eu tinha sido agraciado com um papel sensacional e raro. Não era verdade. No cerrado A ONG Artesanato Solidário me convidou para ir ao cerrado mineiro registrar o trabalho de donas de casa que plantavam, fiavam e teciam algodão no fundo de quintal. Na volta fiquei aliviado ao ver o catálogo impresso. Usei negativos 146 coloridos vencidos em todo o trabalho. O filme revelou normalmente. Fiquei feliz ao saber que as vendas estouraram. Foi o último grande trabalho antes de vender a Hasselblad. Uma pena. Foi substituída por uma Yashica TLR, cuja grande vantagem sobre a outra era aceitar o filme 220 além do 120, ainda mais depois de ir a Unai fotografar as fiandeiras, só sobrava 220 vencido no meu armário. Rumo ao programa (de fato) No Canadá, com leituras de textos no site do professor Davidhazy, fiquei interessado nas possibilidades de reciclar itens da crescente massa de sucata cibernética disponível. Cheguei a recolher do lixo PCs, máquinas copiadoras, cabos diversos, até uma Kodak DC50, uma das primeiras câmaras digitais voltadas para o mercado amador. Fiz várias coisas funcionarem, mas nada muito interessante. Davidhazy falava na possibilidade de transformar um scanner em uma câmara digital de CCD linear e sentado um dia em uma calçada no Planalto Paulista vi passar um carroceiro com três scanners tirados do lixo. Negociei um deles e desmontei aquilo tudo, inspecionei as diferentes peças e tentei imaginar suas funções. As peças mais importantes (suspeitava eu baseados nas minhas leituras) ficaram em um canto meses até que um dia persegui o driver na internet e consegui instalar os restos do scanner em um PC rodando Windows 98. O experimento funcionou maravilhosamente, consegui gerar imagens exatamente como o texto previa. Registrei movimento ao meu redor graças ao sistema do scanner que estava ali desmontado. Lentamente aquilo virou um projeto de iniciação científica e foi evoluindo na minha mente. Em 2005 achei que havia concluido a pesquisa chegando a uma nova versão da câmara que operava inteiramente à bateria, 147 com diafragma na lente, aceitando filtros de rosca 52mm, com conexão USB e compatível com o sistema Mac OsX. Com esse aparelho fiz uma matéria sobre o movimento da cidade para a revista SuperInteressante, registrei várias cenas inusitadas de como as coisas se movem com diferentes velocidades. Em 2006 com a ajuda dos alunos de uma oficina ministrada no SESC construi uma câmara que chegou à marca de 201 megapixels de resolução e isso apontou um novo rumo para continuar a pesquisa. Admito que - fora os auto-retratos que fiz em 2004 durante uma época terrível e que foram expostos em 2005 - ainda não vejo esse processo como algo que me instigue a fotografar, acredito que ainda me prendo à fotografia que ocorre em um momento apenas. Nesses auto-retratos, série entitulada Meu Corpo, a passagem do tempo tinha um significado para mim e eu deixei o tempo transcorrer ingenuamente para realizar as imagens. Dei continuidade à pesquisa e construi mais e mais câmaras porque o processo em si chama a atenção das pessoas e eu acredito que isso seja muito interessante. Estava feliz que havia encontrado um processo que realmente abria espaço para a função didática descrita no início desse texto. Em várias oficinas que fiz, creio que tenha sido possível fazer com que as pessoas tenham perdido o seu pudor com os aparelhos e isso me trouxe uma satisfação muito grande. Toquei em vários desses ponto quando justifiquei meu trabalho de iniciação científica e reproduzo o texto aqui: “Não tão familiar para a maioria dos fotógrafos, a fotografia através de fenda é um técnica muito interessante e que possibilita a produção de imagens visualmente muito diferentes das produzidas com equipamento analógico ou digital comum. Além, é claro, das características temporais que diferenciam tais imagens de quaisquer outras. Quando Lászlo MoholyNagy disse que o iletrado do futuro seria aquele que não soubesse fotografar, de certa maneira ele já corroborava o que o pessimista Vilém Flusser diria sobre sua caixa preta tempos depois. Flusser nos desafia a entender como funciona, ou seja iluminar, o interior da caixa preta da fotografia, a câmara fotográfica. A proposta desse texto é abandonar 161 o cuidado excessivo com os aparelhos de fotografia digital e descobrir o que realmente acontece dentro deles. Para Flusser a diferença entre um mero funcionário (que apenas faz a câmara fotográfica funcionar) e um fotógrafo é quão clara está a caixa preta para ele. Ao desmontar um scanner e construir uma câmara digital de fenda podemos sentir que estamos entrando fundo no programa que governa a câmara fotográfica digital, estamos subvertendo toda a utilização que o fabricante desse aparelho planejou para ele. Além de estarmos descobrindo uma nova técnica, não tão nova assim e expandindo a nossa capacidade comunicativa através da fotografia.” Dois assuntos me chamaram mais atenção durante os estudos que levaram aos desenvolvimentos com as câmaras-scanner: o infravermelho e o software Macromedia Flash. A idéia de fotografar mais seriamente com infravermelho me levou a ir atrás de uma Kodak DCS profissional para que eu pudesse fotografar sem o hot mirror. O hot mirror é o filtro que protege o CCD do infravermelho. Em 2006 achei uma DCS 420 a venda por 20 reais numa feira de antiguidades no Rio de Janeiro, com o manual de instruções. Depois de uma pequena reforma física e um novo adaptador para uma bateria externa instalado, a câmara funcionou normalmente. Ainda faltou coragem para enfiar uma lâmina sob o hot mirror e mandá-lo pelo espaço fotográfico, isso possibilitaria imagens em infravermelho absoluto. Das 23 salvaguardas presentes no manual de instruções da DCS420 rompi com 15, quase dois terços, em breve terei a coragem para retirar o filtro. O digital é muito sedutor e eu me entreguei por completo. Já experimentei até agora cinco câmaras digitais do século passado, com os CCDs mais primitivos. Cada CCD um jeito de fotografar, cores reproduzidas de uma maneira única. Tem câmaras que dão ótimas fotos em preto-e-branco. Me deixei seduzir pela música eletrônica também. Por sua artificialidade tão próxima da fotografia digital. Câmaras digitais emulam câmaras reais. Softwares emulam sintetizadores que fingiam ser instrumentos há décadas atrás. Fui descobrir qual é a música que nasce digital, pensando em conhecer 171 um pouco do que será a fotografia que nascerá dentro do computador, longe do objeto representado. Criei músicas que não têm letra sonhando com o dia em que a fotografia não será indiciária. Ouvi de Dave Brubeck músicas que também não tem letra, mas que brincam com o tempo. Descobri o Tiefschwarz. Uma dupla de alemães que também reaproveitam o que outras pessoas já cantaram, letras. Voltei às fotografias sem câmara (como os quimeogramas) e imprimi os autoretratos feitos em filme 50x60cm com a câmara de tambor de papelão, tanto em cianótipo como em papel p&b comum. Retomei as câmaras de scanner e manipulando as imagens feitas para a matéria da Superinteressante cheguei ao início de um novo trabalho, Pluracidades. Ainda planejo fotografar mais na Galeria do Rock, nas passarelas do Metrô na Zona Leste e outro locais onde pessoas e veículos transitam quase ordenadamente. Ficou claro que a computação já tinha um enorme papel em meus processos. Comecei a pesquisar sobre os diferentes modelos obsoletos dos computadores da Apple e em meados de 2006 já dispunha de algumas dessas máquinas conseguidas através de doações de amigos e conhecidos, todos PowerPCs. Um desses vinha de um fotógrafo e trouxe consigo um HD com duas cópias de Photoshop, mais raridades. Com esse pequeno arsenal e alguns scanners e outros artefatos da última década do século passado tentei estruturar uma pequena estação gráfica. Os scanners eram um Sharp para transparências até A4 e um Polaroid para negativos e cromos 35mm. Na tentativas de instalar esse ou aquele programa, me tornei um expert em reinstalar sistemas operacionais e clonar HDs. Paro aqui. Amanhã outras imagens, mais histórias, quem sabe um outro Macinstosh Performa para consertar. A coleta de lixo continua, o texto é 172 interrompido bruscamente. Para fazer um pequeno balanço, acho que tive liberdade suficiente para buscar ferramentas e criar imagens: isso é o mais importante e fica aparente no tamanho das imagens que criei ou nas distorções das cenas que escaneei. Já sobre o conteúdo das imagens: acho que consegui deixar muita coisa para trás, dentro delas. Bibliografia Comentada ADAMS, A. The Camera, The Negative e The Print. Little, Brown, 1980. – A trilogia de Ansel Adams é uma referência importante no âmbito da técnica fotográfica, ele era o “crica” no laboratório e isso se reflete no cuidado e nos procedimentos inventivos que ele desenvolveu. Por mais que alguém possa descordar da sua visão da fotografia, esses três livros servem como base para qualquer trabalho no laboratório fotográfico. BARRY, M. Pinhole Astrophotography. Disponível em <http://users.erols. com/njastro/barry/pages/pinhole.htm> CCD Technology: Technical Overview. Disponível em http://www.kodak. com/global/en/service/professional/tib/tib4131.jhtml - esse documento da Kodak conta um pouco da história do CCD e descreve superficialmente seu funcionamento. CROMAN, R. Correcting for Unreliable Pixels in a CCD Array. Disponível em http://www.rcastro.com/resources/UnreliablePixels.htm - o artigo em si é bem denso, mas é importante a explicação mais a fundo sobre a natureza do CCD e dos problemas de produção aos quais ele se sujeita. DAVIDHAZY, A. Basics of Slit Photography. Disponível em http://www.rit. edu/~andpph/ DAVIDHAZY, A. Better Improvised Digital Camera. Disponível em http://www. rit.edu/~andpph/ - Esse texto é a continuação do que está relacionado logo abaixo e aqui eu tive meu primeiro contato com as idéias que me ajudaram a construir as câmaras-scanner. O texto do prof. Davidhazy é muito didático, bem escrito e claro, além de conter humor típico norte-americano. DAVIDHAZY, A. Demonstration Quality Digital Camera. Disponível em http:// www.rit.edu/~andpph/ DAVIDHAZY, A. Streak, Strip and Scanning Photographic Systems - an overview of historical andcurrent technologies (manuscrito 1978). Disponível em http://www.rit.edu/~andpph/ DUBOIS, P. O Ato Fotográfico. São Paulo: Papirus Editora, 2003. FLUSSER, V. A Filosofia da Caixa Preta. São Paulo: HUCITEC, 1985. – Flusser se aventurou em terreno bem perigoso: o que é a fotografia? Suas idéias e propostas são muito benvindas nesse aspecto, já que o processo de reaproveitamento das coisas é um tanto quanto metalinguístico. Uma falha e pena que o livro não cite referências nem disponha de uma bibliografia. FLUSSER, V. Writings. University of Minnesotta Press, 2002. GAICH, A, SEHOVIC, A, WERTH, P e GRUBER, M.On The Positioning of a Linear CCD Sensor for 3D Object Reconstruction. Disponível em http:// www.icg.tu-graz.ac.at - Esse link e o um outro são relativos a utilização de CCDs lineares para reconhecimento do espaço e das formas, software e matemática transformam uma única dimensão em três. HEIDEGGER, M. Ensaios e Conferências. Petrópolis: Editora Vozes, 2002. - Em especial o ensaio entitulado “A Questão da Técnica”. HOWELL-KOEHLER, N. The Creative Camera. Worchester: Danes Publishing, 173 1989. – Foi a primeira publicação onde encontrei o nome do inventor da câmara de photofinish, Lorenzo Del Riccio, mesmo que escrito incorretamente (Lodenzo). Infrared-Sensitive Modification for Color QuickCam camera. Disponível em http://sunflower.bio.indiana.edu/~rhangart/quickcaminfo/quickcammod. html - esse artigo é bem simples, mas serve para esclarecer alguns pontos sobre a capacidade do CCD de enxergar o infravermelho. KRAUSS, R. O Fotográfico. Editorial Gustavo Gili, 2002. Lászlo Moholy-Nagy. PHOTOPOCHE, Editions Nathan, 1998. Les Glaneurs et La Glaneuse. Direção Agnes Varda. Paris: 1999. 1 VHS (47 min), son.,cor. Legendado em inglês. – Esse documentário de Agnes Varda, filmado por ela mesmo com uma mini DV trata sobre pessoas que sobrevivem do lixo na França. Inspirador. MARANHÃO, G. Durst por R$85,50. Disponível em http://www.geocities. com/coisasdavida/ MARANHÃO, G. Foto Montagens. Disponível em http://www.geocities.com/ coisasdavida/ MARANHÃO, G. Fotografia Digital de Fenda: A Construção de Uma Câmara de CCD Linear. Bolsa IC Senac, 2004. - Uma pena que esse e outros tantos trabalhos de IC realizados entre 1999 e o primeiro semestre de 2004 ainda não tenham chegado à biblioteca da Scipião. MARANHÃO, G. Positivo, Negativo, Linha, Meio Tom, Que Confusão. Disponível em http://www.geocities.com/coisasdavida/ MARANHÃO, G. Sobre o Tempo. Disponível em http://www.geocities.com/ coisasdavida/ MARANHÃO, G. Ultra em Tamanho Ultra Gigante. Disponível em http:// www.geocities.com/coisasdavida/ McCULLOUGH, P. Comet Hyakutake Movie with a Pinhole Camera. Disponível em <http://www.astro.uiuc.edu/~pmcc/comet/pinhole.html> MEEHAN, J. Panoramic Photography. New York: AMPHOTO, 1990. – O autor menciona as câmaras de fenda para utilização em fotos panorâmicas, mas não vai muito além disso. OMC Technical Brief - Linear CCD 3-D Sensor. Disponível em <http://www. optical-metrologycentre.com> OTIS, O. Overhead Finish Camera Slated Next Year in LOS ANGELES TIMES, 25 Julho de1939, p. A9. – Esse recorte de jornal foi conseguido graças a ajuda de um colega pesquisador da Universidade Boise Estate, Prof. Alan Virta. PHOTOGRAPHY as a tool. New York: TIME LIFE Books, 1973. ROSENBLUM, N. A worls history of photography. 3ed. New York: AbbeVillePress, 1997. SARAMAGO, J. O Conto da Ilha Desconhecida. Companhia das Letras, 1998. SWATCH.COM. Disponível em http://www.swatch.com/ - O site da Swatch, que é o timekeeper oficial dos jogos olímpicos, tem uma série de imagens feitas com câmaras de fenda, merece uma visita. THOMAS, A. Beauty of Another Order: Photography in Science. London: Yale University Press, 1997. – Esse livro retoma uma série de técnicas perdidas com o avanço tecnológico, é denso, nesse aspecto. 174