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ARTE
CULTURA DISTRAÇÕES ANTAGONISMOS
A PONTE DE KIRCHNER: RELAÇÕES ENTRE A PAISAGEM
URBANA E A PINTURA EXPRESSIVA DO INÍCIO DO SÉC. XX
Luiz Carlos F. G. Leite
PPGA/UFES - CAPES
RESUMO: O artigo remete as transformações exercidas na representação da paisagem urbana do
início do séc. XX onde a cidade é captada pelo olhar do artista que intencionalmente a modifica e a
transforma em suas versões pessoais. Assim, serão analisadas duas pinturas do grupo alemão die
brücke (1905 - 1913), em relação às fotografias do período e local próximo em que as telas foram
pintadas, na tentativa de compreender tais modificações e o afastamento da pintura realista, em
uma nova organização simbólica.
Palavras-chave: expressionismo alemão; paisagem urbana; expressionismo abstrato; die
brücke.
ABSTRACT: The text approaches the transformations performed on the representation of the
urban landscape of the early century xx where the city is captured by the eye of the artist who
intentionally modifies and transforms it into their personal versions. thus, two paintings by the
german group die brücke (1905 - 1913), are analyzed in relation to photographs of the period and
place near where the screens were painted in an attempt to understand these changes and the
removal of realist painting in a new symbolic organization.
Key words: german expressionism; urban landscape, abstract expressionism, die brücke..
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CULTURA DISTRAÇÕES ANTAGONISMOS
Introdução
A liberdade pictórica de modificar uma paisagem foi uma característica marcante na
pintura expressionista, sobretudo pelos integrantes do grupo Alemão Die Brücke,
cores e formas são modificadas de acordo com a escolha do artista, intensificando,
destacando e distorcendo elementos da paisagem que pudesse fazer parte da pintura e omitindo outros, em um processo introspectivo e seletivo de acordo com sua
poética. O texto utiliza como recorte as pinturas expressionistas alemãs de Ernest
Ludwig Kirchner (Rhein Bridge – 1914), Karl Schmidt Rottluff (Dorf Weg – 1910),
onde a idéia da representação estaria ligada então a uma apropriação, referência
íntima que associa o artista ao lugar.
O Artista e O Lugar
O distanciamento da representação naturalista teria, na sociedade ocidental após a
antiguidade clássica, ocorrido por aspectos culturais, religiosos, manifestações espontâneas, ou derivada da inquietação de um artista utilizando a imaginação em um
processo criativo.
Tratando então do último caso, consideramos às transformações ou deformações
exercidas na “representação” da paisagem pelos expressionistas alemães, onde
este texto propõe, analisar e identificar características pictóricas, que seriam um elo
entre a representação figurativa e a abstração.
A beleza da paisagem não é uma beleza de obra de arte, embora a que se encontra
na paisagem e em um quadro possam parecer idênticas, o que a transformaria em
uma obra, seria a relação da paisagem com o homem, ter sido intencionalmente
transformada, captada ou mesmo reproduzida mecanicamente através do olhar sensível de um fotógrafo. Mas quando a imagem é modificada, o que ocorre? Quais as
motivações destes artistas?
Na tentativa de esclarecer estas questões nos remetemos às pinturas expressivas na
Europa no início do séc. XX, na Alemanha com o grupo “Die Brucke” que surgiu em
torno de 1905, sendo o oposto do impressionismo (ARGAN, 1999, p.227). O uso do
sensorial, na produção de uma pintura, poderia levar o artista a captar a paisagem,
e se dispor apenas quanto à seletividade, como a uma interferência mais incisiva, ou
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seja, no caso de uma paisagem urbana, localizar e selecionar o que seria mais relevante na escolha da representação, podendo ele valorizar ou omitir elementos que
estão em seu campo visual, Monet em seus estudos da ação da luz em diferentes
horas do dia na Catedral de Rouen, colocou em ênfase a edificação, como um quadro fechado na catedral, sua seletividade fez com que outros elementos próximos
não fossem representados.
No Expressionismo os processos de criação, os métodos do fazer a pintura, variam
de tal forma que seria talvez impossível dissociá-los da personalidade do artista,
constituindo assim a sua poética. Se compararmos dois discursos de pintores tão
próximos tanto local quanto temporalmente e também “degenerados”1 quanto foram Nolde e Kirchner:
“My goal was always to express emotion and experience with large and simple forms and
clear colors, and it is still my goal today..” Meu objetivo foi sempre expressar emoções e
experiências, com amplas formas simples e cores puras, e ainda é o meu objetivo hoje. (E.
L. KIRCHNER, 1953 apud MIA, 2009)2
“Nenhum dos quadros livres e imaginativos que pintei nesta época teve qualquer espécie
de modelo ou de idéia claramente concebida. Era-me bastante fácil imaginar o trabalho
até o mais íntimo pormenor, e na realidade a idéia prévia era muito mais bela do que do
quadro que dela resultava: tornava-me um copista da idéia.” (EMIL NOLDE apud DUBE,
1976, p.86).
Poderíamos propor que a realidade que tratamos aqui não seria realmente sensorial,
mas sim emocional, como no discurso de Nolde. Longe de querer compor utilizando forma e movimento em uma obra de montagem como propõe Baumgart (1999,
p.343), em um Gris ou Mondriam, acendendo a espiritualidade. Mas quando observamos o processo de elaboração de uma pintura de Kirchner se trata de uma visão
da realidade manipulada, onde a sensação e emoção se juntam, o olhar do artista
começa a transgredir, o “superego” parece permitir que este observador, saia da
zona de conforto proporcionado pelo real, manipulando assim a imagem.
Kirchner trabalha com dois momentos consecutivos o primeiro, seria o conhecimen-
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to da paisagem, o que chamaremos de “apropriação”, neste o artista tem sua visão
individual, seus valores pessoais e sua seletividade, no segundo a “ação”, neste passo a poética entra em atuação, com objetivos claros ou não, diretamente deixando
o ato de pintar direcionar o resultado da obra, como vimos em Nolde, ou mesmo o
artista elaborar inúmeros estudos de vários ângulos buscando a essência do resultado, ou a sua finalização.
Para alguns artistas que trabalharam a partir da apropriação, a paisagem pode se
tornar quase uma obsessão, quando Merleau-Ponty, (2004, p. 123-135) escreve a
“Dúvida de Cézanne” nos propõe a total dependência deste artista da visão da
paisagem, ao observar seus estudos sobre Sainte-Vitoire, os inúmeros esboços em
diferentes ângulos é possível perceber a sua total dependência da natureza, não somente em relação ao seu monte, mas o lugar em si, uma assimilação total do lugar.
O resultado foram inúmeras telas e esboços. O que gerou uma associação deste
artista ao lugar “Saint-Vitoire de Cézanne”, e de forma similar “Café Terrace de Van
Gogh”, ambos em uma estética lírica, um lugar de prazer e encantamento, que teria
cativado o olhar do artista.
O homem só é levado ao desejo de conhecer, se fenômenos notáveis lhe chamam a atenção. Para que este perdure, é preciso haver um interesse mais profundo, que nos aproxime
cada vez mais dos objetos, (GOETHE, 1993, P.43).
A idéia de lirismo estaria ligada então a uma apropriação, a algo que deixa de fazer
sentido de paisagem como objeto, e passa a ter significado na relação com o homem.
Análise das imagens
Ao considerar as mudanças do fim do séc. XIX e início do séc. XX, e os novos movimentos de vanguarda europeus em um ambiente novo, de liberdade dariam autonomia ao artista para arbitrar o que seria colocado no quadro. Os primeiros expressionistas alemães utilizaram esta liberdade como coloca Pedrosa:
Os primeiros expressionistas do Die Brücke, esses Fauves da Alemanha tentaram tomar
essas liberdades com a tela, ao ver-se de posse dessa máquina formidável poder explosivo
que era a cor pura. Eram como crianças de posse de uma arma carregada, (PEDROSA,
2000, p.155).
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As cores e formas então libertas das observadas na paisagem foram exploradas e
modificadas de acordo com a escolha do artista, ou seja, uma estrada ocre e empoeirada poderia assumir um vermelho intenso, ou mesmo sua forma ou direção na
tela. Deixar que a “[...] cor se expandisse conforme as leis da explosão criadora”
(RÜDLINGER apud PEDROSA, 2000, P.155), liberados de uma pintura naturalista.
O autocontrole é uma necessidade básica, mas o que fazer diante da sexualidade ou
mesmo de uma excitação maior, onde a liberdade traria uma sensação de prazer, de
uma “livre atividade”, o que poderia aplacar a angustia de uma vida conturbada do
início do séc. XX. O que Pedrosa (1986, P.15) nos propõe é que o que o artista faz na
verdade, não é derivado da necessidade irreprimível de manifestar o que se passa
no seu íntimo, isto define a sua personalidade, mas o que vem antes do processo de
pintar, a vontade inerente a todos os seres vivos “a comunicação”, para o artista a
obra tem um valor emocional que só ganha corpo com a elaboração, assim a paisagem em sua tela teria uma organização simbólica nova, perceptiva ou imaginária ou
ambos, sua comunicação iria além de características formais a priori, e da sensação
causada ao expectador, o que nos remete ao campo da sensibilidade, um domínio
sensorial, forma e expressão, “[...] o que iria, além disto, no Expressionismo, seriam
atividades cerebrais sem interesse” (PEDROSA, 1986, P.15).
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Ernest Ludwig Kirchner (Rhein Bridge)
Figura 1 – Ponte Hohenzollern sobre o Reno e a Catedral de Colônia. 3
Figura 2 – Kirchner, Ponte no Reno em Colônia.4
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Status semiológico: Paisagem urbana.
Iconografia: Ponte sobre o Rio Reno.
Detalhes: Interior da ponte, pessoas caminhando, catedral ao fundo, locomotiva,
rio.
Datação: 1914.
Tipologia da imagem: Pintura, óleo sobre tela.
Dimensões: 200 x 150 cm.
Localização: Staatliche Museen zu Berlin/ Nationalgalerie, Berlin SMB.
Ao analisar esta pintura, observamos que a ponte está representada em perspectiva,
com um ponto de fuga central a uma altura superior às pessoas observadas na tela,
convergindo para a parte posterior da Catedral que se encontra ao fundo, trata-se de uma perspectiva com o observador situado talvez a uns sete ou oito metros
de altura, esta observação não seria possível em uma representação naturalista ou
“real”, artifício também utilizado na sua versão da “Alliance Platz” in Berlin. Kirchner
utilizou um “olhar” compositivo, ou seja, mudando o ponto de visão para a pintura
“obter” expressividade.
Os arcos da ponte foram aproximados gerando uma sensação de verticalidade, o
que se repete também nas pessoas que transitam pela ponte. Uma locomotiva surge
no momento ou instante temporal da cena, e se pode identificar o rio Reno na parte
inferior à direita, em cores iguais as do céu, compostos em azuis e brancos.
A cena propõe um dia de sol por volta de 1914, coincidindo com começo da primeira guerra mundial. Em primeiro plano está uma mulher de rosa, sendo observada
por dois homens à direita, caminhando com uma sombrinha, envolvida pela estrutura curva da ponte que ocupa grande parte do espaço pictórico.
Nesta pintura, várias cores foram utilizadas, em luminosidade acentuada. Esta luminosidade, como era usual no Expressionismo, era obtida com cores puras (PEDROSA, 2000, p. 155), em zonas cromáticas definidas, ou seja, evitando uma mistura e
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um esfumado que diminuiria o impacto pictórico da cena.
Na narrativa, inerente a uma pintura figurativa, Kirchner não propõe uma cena de catástrofe estilo Turner, ou mesmo de tristeza, ou uma realidade dura de Courbet, personagens caminham pela ponte e estão integrados à paisagem, onde ponte, pessoas, rio, trem e Catedral, produzem uma composição harmônica rica em elementos,
e ao mesmo tempo despojada, com pinceladas longas e incisivas. A cidade é vista
então pelo olhar de kirchner, sua motivação lírica e seletiva interagem, modificando
e transformando, propondo assim sua “versão” do lugar, “A ponte de Kirchner”.
Karl Schmidt Rottluff (Dorf Weg)
Figura 3 – Vila na Alemanha.5
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Figura 4 – Rotluff, “Dorf Weg/Caminho da Vila”6
Status semiológico: Paisagem urbana.
Iconografia: Vila Alemã do início do séc. XX.
Detalhes: Estrada ao lado de uma vila, casario, árvores e nuvens.
Datação: 1910.
Tipologia da imagem: Pintura, óleo sobre tela.
Dimensões: 87,5 x 95 cm.
Localização: Buchheim Museum der Phantasie, Bernried Niederbayern.
A tela nos mostra uma vila alemã na paleta de Rottuff, uma pequena estrada com
casarios, onde em primeiro plano à esquerda, sugere parte de uma igreja.
Esta pintura talvez seja entre as duas apresentadas, a que mais se aproxima de uma
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abstração e onde as mudanças foram mais marcantes. Nuvens cor de rosa em um
céu azul, ausência de detalhes e campos de cor bem definidos, na esquerda em direção ao centro da tela prevalecem cores quentes, e à direita cores frias, sugerindo
uma vegetação que vai de “encontro” ao céu.
A liberdade de arbitrar sobre as cores e formas, gerando maiores modificações e
afastamento do real, em uma tela, poderia representar a diferença entre abstração
lírica e informal. Tendo a primeira uma relação emotiva com o lugar. A segunda seria
a desfragmentação ou deformação de um lugar a ponto de tornar quase impossível
reconhecê-lo, neste processo o “informal” se revelaria.
Na pintura de Rottluff, “A vila” se torna quase uma superfície pictórica que revela
sua planaridade, materialidade e registro da pincelada, talvez nos moldes do que
seria defendido futuramente por uma análise formal de Greenberg, se afastando em
maior grau da descrição naturalista, como coloca Gooding (2002, p 9).
Rottluff entre os expressionistas do Brücke, possivelmente tenha sido o que mais se
aproximou de um “Abstrato informal”.
—·—·—·—
1 Exposição“Arte degenerada” Entartete Kunst,– Munich, Julho de 1937 em:
<http://www.ns-dokumentationszentrum-muenchen.de/spalten-bilder/entartete-kunst-ausstellung>
2 Kirchner, carta ao amigo Curt Valentin em: Minneapolis Institute of Arts <http://www.artsconnected.org/
resource/94260/a-letter-from-ernest-ludwig-kirchner-the-minneapolis-institute-of-arts-bulletin>
3 Postal do início séc. XX em:
< http://cdn3.iofferphoto.com/img/item/200/227/542/d2uQ.jpg >
4 <http://www.nyu.edu/classes/reichert/sem/city/images/kirchner_bridge.jpg>
5 Postal do início do séc. XX, ilustra uma vila similar: Postcard Cernay CPA 68 Elsaß, Dorf. Em <http://www.
akpool.co.uk/postcards/169080-postcard-cernay-cpa-68-elsass-franzoesische-granaten-dorf>
6 <http://www.buchheimmuseum.de/aktuell/2010/kunstgenuss.php>.
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REFERÊNCIAS
ARGAN, G. C. Arte Moderna. 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
BAUMGART, Fritz. Breve história da arte. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
CHIPP, H. B. Teorias da Arte Moderna. Ed. Martins Fontes, São Paulo, 1999.
DUBE, Wolf Dieter. O Expressionismo. São Paulo: Verbo, 1976.
GOETHE, Johann Wolfgang Von: 1749-1832. Zur Farbenlehre/Doutrina das cores.
1810. Tradução de Marco Giannotti. São Paulo: Nova Alexandria, 1993.
GOODING, Mel. Arte abstrata. São Paulo: Cosac Naif, 2002
MERLEU-PONTY, Maurice. O olho e o espírito. São Paulo: Cosac Nayfy, 2004.
PEDROSA, Mario. Modernidade cá e lá. São Paulo: Edusp, 2000.
PEDROSA, Mario. Mundo homem arte em crise. São Paulo: Perspectiva, 1986.
WORRINGER, Wilhelm. Abstraktion und einftjilung: ein Beitrag zur Stilpsychologie.
Munchen: R. PIPER & CO. VERLAG, 1921.
KIRCHNER, carta ao amigo Curt Valentin em: Minneapolis Institute of Arts . Disponível
em:<http://www.artsconnected.org/resource/94260/a-letter-from-ernest-
-ludwig-kirchner-the-minneapolis-institute-of-arts-bulletin>. Acesso em: 8 set. 2012.
KIRCHNER, pintura. Disponível em: <http://www.nyu.edu/classes/reichert/sem/city/
images/kirchner_bridge.jpg>. Acesso em: 10 set. 2012.
MUSEUM DER PHANTASIE. Disponível em: <http://www.buchheimmuseum.de/
aktuell/2010/kunstgenuss.php>. Acesso em: 10 set. 2012.
Postal do início do séc. XX, ilustra uma vila Alemã: Postcard Cernay CPA 68 Elsaß,
Dorf. Disponível em: <http://www.akpool.co.uk/postcards/169080-postcard-cernay-cpa-68-elsass-franzoesische-granaten-dorf>. Acesso em: 2. set. 2012.
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Luiz Carlos Fernandes Gonçalves Leite possui graduação em Artes Plásticas pela
Universidade Federal do Espírito Santo (2010). Especialização em Desenho pela Universidade Federal de Santa Catarina (1995). Mestrando em Artes na Universidade
Federal do Espírito Santo - Bolsista: Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal
de Nível Superior.
http://lattes.cnpq.br/1723569445076199