Paralelos entre os Universos Disney e Turma da Mônica

Transcrição

Paralelos entre os Universos Disney e Turma da Mônica
Monografia de Conclusão de Curso
Ideologias nos Quadrinhos Infantis:
Paralelos entre os Universos Disney e Turma da Mônica
______________________________
Marcelo Engster
Curso de Comunicação Social
Publicidade e Propaganda
Santa Maria, RS, Brasil
2008
Ideologias nos Quadrinhos Infantis:
Paralelos entre os Universos Disney e Turma da Mônica
________________________
por
Marcelo Engster
([email protected])
Monografia apresentada à Comissão de Projetos Experimentais
do Curso de Comunicação Social da Universidade Federal de Santa Maria
como requisito parcial para a obtenção do Grau de Bacharel em
Comunicação Social - Publicidade e Propaganda
Curso de Comunicação Social
Publicidade e Propaganda
Santa Maria, RS, Brasil
2008
Universidade Federal de Santa Maria
Centro de Ciências Sociais e Humanas
Curso de Comunicação Social
A Comissão Examinadora abaixo assinada, aprova a Monografia
Ideologias nos Quadrinhos Infantis:
Paralelos entre os Universos Disney e Turma da Mônica
Elaborada por
Marcelo Engster
Comissão Examinadora
_____________________________________________
Prof. Dr. Orlando Fonseca
Presidente/Orientador
_____________________________________________
Prof. Mário Lúcio Bonotto Rodrigues
_____________________________________________
Prof. João Luiz Roth
_____________________________________________
Profa. Graciela Inés Pressas Areu
(Suplente)
Santa Maria, 30 de Janeiro de 2008
AGRADECIMENTOS
Ao Papai e à Mamãe. Não por terem me posto no mundo. Muito pelo
contrário. Agradeço sim, pelos anos que me sustentaram sem pedir quase nada em
troca. Não sei por qual motivo, mas agora começaram a insistir com uma tal de
independência. Era o que me faltava. Sério, eu preciso de pelo menos mais uma
faculdade!
Ao Ariel e à Manu pela companhia. Às famílias Engster e Sorgetz que, de
uma maneira ou de outra, ajudaram na minha formação.
Também agradeço aos resistentes à filosofia do Carpem Noctem (Ana Paula,
Bruno C., Bruno K., Daniel, Frederico, Helô, Lucas, Marília, Ricardo, Richard,
Silvinha e Vinícius). Foram uma agradável companhia nos Macondos, nos DCEs,
nas insuportáveis Ballare e Absinto, nas Bodegas e nos xis do bigode. Agradeço à
Silvia e à Marilia que firmemente agüentaram esse alemão teimoso. Mas como diria
meu primo Adelton: “você até pode estar certo. Mas eu não estou errado.” À Ana
Paula por nossas discussões políticas, morais e filosóficas que nunca chegavam a
um ponto em comum, mas que sempre foram de grande valia. Aos meus patos no
Texas Hold'em. Ao Richard pelo chimarrão e pela companhia pra assistir Dexter.
Todos vocês ajudaram a repor minhas energias durante o cansaço da monografia.
Agradeço à Mariane pela ajuda com o nada simpático Word. Ao Maninho pela
colaboração na formação da minha paixão pelos gibis e pelo empréstimo de um dos
livros fundamentais para a pesquisa. Às pessoas que, de boa alma, se prestam a
escanear e compartilhar gibis pela internet, pois forneceram parte significativa do
material usado na monografia. Ao Orlando pela indicação de Para Ler o Pato
Donald, que mudou completamente os rumos da pesquisa. Por fim, a todos aqueles
que por ventura eu tenha esquecido e que ajudaram no trabalho.
RESUMO
Monografia de Conclusão de Curso
Curso de Comunicação Social- Publicidade e Propaganda
Universidade Federal de Santa Maria, RS, Brasil
Ideologias nos Quadrinhos Infantis:
Paralelos entre os Universos Disney e Turma da Mônica
Autor: Marcelo Engster
Orientador: Prof. Dr. Orlando Fonseca
Data e Local da Defesa: Santa Maria, 30 de janeiro de 2008.
Esta monografia faz uma comparação entre os quadrinhos Disney e Turma da
Mônica, procurando demonstrar suas visões de mundo Utiliza como base a obra
Para Ler o Pato Donald de Ariel Dorfman e Armand Mattelart. O primeiro capítulo
contém uma breve história das histórias em quadrinhos, a apresentação o livro base
do estudo e uma descrição do corpus a ser explorado. No segundo são abordadas
as assinaturas de roteiro e arte, a redundância presentes nesses gibis e a utilização
do desenho em estilo cartum. A presença de progenitores e o modo de tratar o
universo feminino são os temas do terceiro capítulo. No quarto, são apresentadas as
“aventuras” e os preconceitos presentes quadrinhos da Disney e da Turma da
Mônica. E, por último, são analisadas as idéias de consumo e trabalho assalariado
destes quadrinhos. Ficou evidente que o processo de criação de histórias em
quadrinhos que procuram atingir um grande número de leitores sofre influências
tanto das ideologias de quem o produz como das exigências do mercado. Os
quadrinhos Disney e Turma da Mônica, apesar de refletirem as ideologias e
vivências de seus criadores, têm como fim último o comércio, necessitando se
adaptar, em determinadas questões, às exigências do mercado.
Palavras-chave: Quadrinhos; Ideologia; Turma da Mônica; Disney
SUMÁRIO
1
INTRODUÇÃO ..................................................................................................... 7
2
ASPECTOS DO INSTRUMENTAL TEÓRICO E METODOLÓGICO ................. 10
3
4
5
6
7
2.1
Breve história dos quadrinhos ..................................................................... 10
2.2
Para Ler o Pato Donald............................................................................... 14
2.3
Estudo Exploratório ..................................................................................... 15
LINHA DE PRODUÇÃO ..................................................................................... 20
3.1
A Assinatura ................................................................................................ 20
3.2
O sistema de redundâncias ........................................................................ 23
3.3
O Cartum .................................................................................................... 25
PROGENITORES E UNIVERSO FEMININO ..................................................... 28
4.1
Papai ........................................................................................................... 28
4.2
Mamãe ........................................................................................................ 32
AS AVENTURAS E OS PRECONCEITOS ........................................................ 35
5.1
Viajando ...................................................................................................... 35
5.2
Estereotipados ............................................................................................ 36
TEMPO É DINHEIRO, E NÃO É NECESSÁRIO TRABALHAR ......................... 42
6.1
Aquilo que a tudo compra ........................................................................... 42
6.2
Sombra e água fresca ....................................................................................... 43
CONCLUSÃO .................................................................................................... 46
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .......................................................................... 50
ANEXO 1 – Assinatura Disney .................................................................................. 53
ANEXO 2 – Caramujo Canini .................................................................................... 54
ANEXO 3 – Mickey Mouse, a Walt Disney Comic, by Ub Iwerks .............................. 55
ANEXO 4 – Estilos de desenho em Disney ............................................................... 56
ANEXO 5 – Árvore Genealógica dos Patos .............................................................. 58
7
1 INTRODUÇÃO
“Talvez isso explique o êxito de Mickey nos EUA e Europa: é o chefe da tribo,
o dominante providencial, que encabeça os desfiles públicos na cidade de
Disneylândia, EUA, e que representa o próprio Disney. Em contrapartida, Donald é o
mais popular na América Latina, aparecendo como propagandista da revista, ainda
que os programas televisionados e enviados pela metrópole sejam intitulados “Hora
de Mickey” e “Clube de Mickey”. Temos a tendência a nos identificar com o
imperfeito Donald, que vive a mercê de dádivas superiores, do destino como pai,
que, com Mickey, dono deste mundo, é o espião que Disney nos enviou.” afirmam
Dorfman e Mattelart (1971, p. 120) em seu livro Para Ler o Pato Donald.
No Brasil, ocorre um fenômeno ainda mais interessante. Não são da Disney
os quadrinhos infantis mais vendidos no país. Esse posto pertence aos Estúdios
Mauricio de Sousa com sua Turma da Mônica. E isso com ampla vantagem.
Minha paixão pelos quadrinhos começou no tempo em que era guri de
chupeta e mamadeira. Iniciei pelos quadrinhos infantis, principalmente com Turma
da Mônica ou Disney. Cada vez mais velho, fui ampliando meu gosto por
quadrinhos. Passei a ler os de super-heróis, dos universos Marvel, DC, Image, entre
outros. Aos poucos tive a oportunidade de ler revistas um pouco diferenciadas das
que está acostumado, como Marvels. Passei então a procurar mais os quadrinhos
classificados como Graphic Novels ou Underground.
Com a leitura de gibis de diversos países, é possível perceber diferentes
visões da sociedade neles representadas. Retratam sua concepção de mundo, os
costumes de sua comunidade ou país. Buscar informações sobre os autores, locais
e épocas em que cada quadrinho tinha sido produzido, em muito acrescentam à
obra lida.
“Mudar hábitos, recuperar uma economia, criar imagem, promover o
consumo, vender produtos, informar o consumidor”. Para Rafael Sampaio (2003,
p.19), estas são as principais características da Publicidade. Para tanto, ela busca
retratar, representar, refletir, figurar, tematizar os costumes e as regras da
sociedade. Para atingir seus objetivos a Publicidade necessita de mensagens
visuais e/ou escritas. Nestes pontos, o estudo das histórias em quadrinhos e suas
representações,
figurativizações
e
tematizações
da
sociedade
só
tem a
8
complementar às pesquisas nestas áreas em publicidade. Na introdução do livro
Shazam!, Luis Gasca (1970) afirma “O comic popular, simples, barato, publicou-se e
se publica, se consome portanto em grandes quantidades, influi na cultura, língua e
costumes de seus inúmeros leitores, modela seus gostos e suas inclinações.”
Por se tratar de uma linguagem com imagem, os quadrinhos são de fácil
percepção, ou seja, universais. “Essa universalidade é, no entanto, uma espada de
dois gumes, pois se por um lado aproxima as mentalidades num fundo comum de
riso e bom humor, por outro lado pode espalhar e difundir as ideologias de seu país
de origem.” afirma Anselmo (1975, p. 37).
Pronto, a partir destas premissas estava decidido o tipo de assunto a ser
tratado neste Trabalho de Conclusão de Curso de Publicidade e Propaganda.
Primeiramente buscamos analisar um clássico dos quadrinhos adultos, que
geralmente possuem suas visões de mundo mais explícitas. Como corpus de estudo
tinha escolhido a obra de maior representatividade dos quadrinhos alternativos
estadunidenses, Fritz, The Cat de Robert Crumb. Porém, a partir das leituras
recomendadas mudamos de idéia. O grande culpado disso foi o livro Para Ler o Pato
Donald, de Ariel Dorfman e Armand Mattelart.
Para Ler o Pato Donald é um livro da década de setenta, escrito por dois
professores universitários Chilenos, Ariel Dorfman e Armand Mattelart. Eles abordam
a questão da representação da sociedade pelos quadrinhos Disney. Porém, o
subtítulo da obra já demonstra seu enfoque: Comunicação de Massa e Colonialismo.
“Este livro tem que ser portanto encarado como um panfleto, uma obra sectária,
política, parcial, radical, esquerdista, antiimperialista e anticolonialista em seu bom e
mau sentido” já observa Moya (1971) na introdução à edição brasileira. Não nos
interessa aqui posição política alguma, somente as observações referentes às
ideologias nos quadrinhos Disney. Ideologias essas um tanto quanto mascaradas,
até por se tratar de quadrinhos infantis.
Sabendo da importância maior dos quadrinhos da Turma da Mônica sobre os
quadrinhos Disney no Brasil, resolvemos então confrontar os dois universos. A partir
das questões levantadas no livro de Dorfman e Mattelart decidimos fazer um
paralelo entre os dois universos. Será, portanto, uma comparação entre Disney e
Turma da Mônica, procurando demonstrar as visões de mundo contidas nas histórias
em quadrinhos delas e utilizando como base a obra Para Ler o Pato Donald.
9
Como corpus a ser analisado serão utilizadas todas as publicações de um
mês das revistas em quadrinhos da Turma da Mônica. Além destas, mais duas
revistas da Disney do mesmo mês e a edição especial Mestres Disney – Renato
Canini, que traz o histórias do personagem Zé Carioca. Para essa análise também
serão utilizados livros sobre teoria dos quadrinhos, entrevistas com os artistas das
duas editoras e biografias sobre Walt Disney e Maurício de Sousa.
O primeiro capítulo será introdutório à pesquisa. Para começar, uma pequena
história das histórias em quadrinhos. Após, será apresentado o livro base do estudo,
o Para Ler o Pato Donald. Por fim, será feita uma descrição do corpus a ser
explorado.
Os outros quatro capítulos contemplarão a análise das obras. No segundo
serão abordadas questões referentes à produção dos quadrinhos. Elas são comuns
aos dois universos, portanto será um estudo quanto às práticas de realização das
histórias em quadrinhos. Serão, portanto, abordadas as assinaturas de roteiro e arte,
a redundância presentes nesses gibis e a utilização do desenho em estilo cartum.
A presença de progenitores e o modo de tratar o universo feminino serão os
temas do terceiro capítulo. No quarto, serão apresentadas as “aventuras” e os
preconceitos presentes quadrinhos da Disney e da Turma da Mônica. E, por último,
serão analisadas as idéias de consumo e trabalho assalariado destes quadrinhos.
10
2 ASPECTOS DO INSTRUMENTAL TEÓRICO E METODOLÓGICO
2.1
Breve história dos quadrinhos
Para Mcloud (1995, p. 9) quadrinhos são “Imagens pictóricas e outras
justapostas em seqüência deliberada destinadas a transmitir informações e/ou a
produzir uma resposta no espectador”. Essa definição é muito ampla e dificulta um
relatório sobre a história das histórias em quadrinhos pois a necessidade humana de
representar acontecimentos, histórias, lendas, crenças através de seqüências de
desenho já era sentida na pré-história, quando os registros eram feitos através de
pictogramas em cavernas. Esse tipo de representação foi utilizada por diversas
culturas (egípcios, europeus na Idade Média), se adaptando aos meios em que
poderiam ser registradas.
Neste capítulo usaremos a definição de Anselmo (1975, p. 38):
1
as HQ são, a um só tempo, a arte e o MCM que, usando
predominantemente personagens irreais, desenvolvem uma seqüência
dinâmica de situações, numa narrativa rítmica em que o texto, quando este
existe, tanto pode aparecer como legenda abaixo da imagem, como em
outros espaços a ele destinados ou em balões ligados por um apêndice à
pessoa que fala (ou pensa). Para atingir sua finalidade básica – a rapidez
da sua compreensão – as HQ lançam mão de símbolos, onomatopéias,
códigos especiais e elementos pictóricos que lhes garantem uma
universalidade de sentido.
Deste modo fica mais fácil achar um período em que surgem os quadrinhos.
No século XIX os jornais europeus e estadunidenses passaram a publicar
caricaturas que eram acompanhadas de textos satirizando os políticos de sua época.
Algum tempo depois esses textos foram introduzidos em balões, inaugurando assim
um dos elementos mais marcantes dos quadrinhos. Cirne (1972, p. 19) considera
que “os comics nasceram do bojo de uma rivalidade jornalística (entre William
Randolph Hearst e Joseph Pulitzer), quando a tiragem dos jornais determinava – e
determina – o aumento das polpudas verbas publicitárias. Os quadrinhos, pois,
funcionariam como uma “novidade” para atrair mais leitores.”
Em 1885 surge uma das personagens mais significativa e, por vezes,
considerada a primeira das histórias em quadrinhos Yellow Kid, de Richard Outcault.
1
Meios de Comunicação de Massa.
11
“Exatamente no dia 5 de maio de 1885, um domingo, no jornal World, de Nova
Iorque, surgiu o primeiro personagem fixo semanal, dando margem ao aparecimento
das histórias em quadrinhos e, ao mesmo tempo ao termo “jornalismo amarelo”, para
a imprensa sensacionalista, por causa do camisolão do Menino Amarelo” comenta
Moya (1996, p. 18). Publicadas no suplemento dominical do jornal, as tiras do Yellow
Kid já apresentavam balões. Como principal característica, a personagem usava um
camisolão amarelo, onde geralmente havia frases de conotação sarcástica sobre
eventos políticos da época.No Brasil, merece destaque o trabalho do italiano Ângelo
Agostini, com suas caricaturas e charges dos políticos da era de Dom Pedro II.
Na década de vinte surgem no Japão as primeiras revistas de histórias em
quadrinhos. Elas eram produzidas em larga escala, publicadas mensalmente e
continham histórias inéditas. No ocidente, as tiras passaram a ser distribuídas em
revistas na década de trinta. Segundo o editor da revista Pato Donald 70 Anos
(2004, p. 14): “Durante a década de 1930, depois da quebra da Bolsa de Nova York,
a procura por histórias em quadrinhos começou a aumentar nos Estados Unidos.
Esse gênero narrativo se tornou muito popular por ser uma forma barata de
diversão”. Surgiam, assim, as “comic books”.
Em 1924 surge Little Orphan Annie, tira de Harold Gray. Anselmo (1975, p.
51). Relata:
Gray, segundo alguns autores, teria introduzido na HQ uma nova
tendência: a HQ que reflete claramente uma ideologia política (de extrema
direita, neste caso), representada pela encarnação simbólica do capitalismo
triunfante, por Papai Warbucks, riquíssimo industrial que sempre protege a
órfã Aninha
No ano de 1929 é criado Mickey Mouse. No começo era desenhado por Ub
Iwerks e se chamava Mortimer. Foi renomeado pela Sra. Disney. Mickey surgiu em
desenhos animados e foi depois distribuído em tiras pela King Features. Ainda pela
Disney, em 1938, aparece o Pato Donald, que também começou em um desenho
animado.
A década de trinta é conhecida como a era dourada dos quadrinhos. Moya
(1977, p. 43) comenta que essa é a era “em que surgiram alguns dos mais
importantes personagens dos quadrinhos, motivo da idéia de massificação e visão
cosmopolita dos heróis e sua mitologia, suas figuras fetichistas em ícones gráficos.”
12
No Brasil surge, em 1934, aquela que viria a ser a mais importante publicação
de quadrinhos do país, com a tiragem atingindo cerca de 360 mil exemplares
semanais. Moya (1996, p. 104) relata que:
Em 1934, no dia 14 de março, uma quarta feira, o jornal carioca A
Nação trazia um encarte em tamanho tablóide, sob o título Suplemento
Infantil, com capa desenhada por J. Carlos. Durante quatorze semanas, as
pessoas compravam o exemplar, atiravam fora o exemplar principal e
ficavam, encantados, lendo o encarte. A partir da décima quarta semana,
adotando o título de Suplemento Juvenil, torna-se independente,
revolucionando a imprensa brasileira...
O ano de 1938 é um dos marcos dos quadrinhos. É nesse ano que aparece o
Super-Homem, criação de Jerry Siegel e Joe Shuster. É a partir dele que surgem os
quadrinhos de super-heróis. Moya (1996, p. 131) comenta:
A publicação dobrou de circulação, depois de alguns números. A
revista Superman Quarterly Magazine surgiu em maio de 1939. Em um ano
tinha alcançado a tiragem de 1.300.000 cópias. Tornou-se bimestral e a
circulação foi para 1.400.000 exemplares.
Em 1947 é criado o Tio Patinhas por Carl Barks, inspirado em um conto de
Charles Dickens, em uma edição especial de Natal. Moya (1996, p. 125) completa:
A primeira história em que surgiu Uncle Scrooge era uma revista de
Donald Duck intitulada Christmas on Bear Mountain. Scrooge voltou, em
março de 1952, numa revista com seu nome, depois de diversas aparições
na revista do Pato. Sua primeira história como personagem-título foi Only a
Poor Old Duck.
Na década de cinqüenta a indústria dos quadrinhos sofreu grandes perdas e
muitas editoras sumiram. O lançamento, nos Estados Unidos da América, do livro
Seduction of the Innocent (Sedução do Inocente) do psicólogo Fredric Wertham em
1954 foi o maior golpe que os quadrinhos já receberam. Segundo Christensen e
Seifert
A afirmação de que os crimes cometidos em quadrinhos eram
copiados por crianças foi a base de uma grande parte do famosos livro de
Whertam em 1954, Seduction of the Innocent. Ele apresentava casos de
delinqüência infantil nos quais cada acusado “admitia” que tinha se
inspirado nos quadrinhos.
13
Júnior (2004, p. 235) complementa “A principal alegação era de ”culpa por
associação”, isto é, muitos menores acusados ou condenados liam quadrinhos.”
Foram desastrosas as conseqüências para a indústria de quadrinhos.
Preocupados com a “má” influência dos quadrinhos sobre as crianças,
autoridades estadunidenses decretaram que as editoras de gibis deveriam criar um
conjunto de normas a serem seguidas. Foi então instituído o Comics Code Authority.
Junior (2004, p. 244) comenta que
O código castrou com rigor a criatividade dos comics americanos
nas três décadas seguintes e os jogou numa crise sem precedentes nos oito
anos após a sua criação. As vendas caíram de forma vertiginosa até o final
da década de 50. Alguns críticos chegaram a considerar os comic books
como uma forma de imprensa decadente, condenada a desaparecer.
No Brasil, em 1959 surge na Folha da Manhã tiras do cão Bidu e de seu dono
Franjinha. Seu autor era o repórter Mauricio de Sousa. Em 1963, cria Mônica,
personagem que viria a ser a principal do quadrinista. Em 1970 é lançada a revista
da Mônica, com uma tiragem inicial de 200 mil exemplares. Em 1972 é lançado o
gibi Cebolinha e mais tarde Chico Bento, Cascão e Magali.
Na década de sessenta começam a surgir, nos EUA, os quadrinhos
independentes, os chamados undergrounds. Estes eram distribuídos sem a ajuda
dos grandes estúdios e portanto sem passar pelo código de ética. Com temática
adulta, estes quadrinhos que tinham uma distribuição restrita, conseguiram um
grande sucesso. Robert Crumb foi um dos autores que ajudaram neste processo.
Seu livro Fritz, The Cat é considerado a primeira obra de quadrinhos do gênero
adulto.
Em 1978 é lançada a obra que mudou o modo como se viam os quadrinhos.
Em formato de livro, Will Eisner publica Um Contrato com Deus e outras Histórias de
cortiço. “Embora tecnicamente uma coletânea de quatro contos, Eisner chamou sua
criação de “graphic novel” (ou “romance gráfico”)” (sic) diz McCloud (2006, p. 28). E
continua:
Apesar de sua origem bizarra a expressão pegou – e o mesmo
ocorreu com a idéia. Um contrato com Deus era uma obra séria, baseada
na experiência de vida de Will, constituindo uma exploração sincera do
potencial narrativo das histórias em quadrinhos. (sic)
14
A década de 1980 trouxe novas perspectivas para os quadrinhos de superheróis. Moya (1996, anexo) comenta que:
Influenciado pelos mangá japoneses e os autores europeus, o
criador passou a dialogar de novo com o leitor, superando a crise dos
editores. E a atual geração apoiou novamente a criatividade dos escritores e
desenhistas. Inicia-se uma nova era nos comics. Tal como no cinema, o
quadrinho agora é de autor. Não do mocinho. É a consagração das miniséries.
São desta época clássicos como Cavaleiro das Trevas (Frank Miller, 1985),
Sandman (Neil Gaiman, 1985), Watchmen (Alan Moore ,1988) e V de Vingança
(Alan Moore, 1988).
Brigas entre artistas e editoras quanto aos direitos autorais, fizeram surgir
novas políticas nos contratos entre ambos. Deste cenário nasce uma nova editora.
McCloud (2006, p. 63) relata que:
No início de 1992, em meio a um boom alimentado pela
especulação gananciosa, vários dentre os criadores mais vendidos
abriram sua própria empresa e deram as costas às grandes editoras. A
empresa, a Image Comics, teve um sucesso colossal, mas desapontou os
puristas, que viam os direitos dos criadores como algo profundamente
entrelaçado com as “aspirações mais elevadas” dos quadrinhos. Os
criadores da Image, em maior parte, continuaram a produzir obras ao
estilo do grande mercado. (sic)
2.2
Para Ler o Pato Donald
A nossa pesquisa terá como base principal o livro Para Ler o Pato Donald. A
obra foi escrita no período Allende no Chile, em 1971 por Ariel Dorfman e Armand
Mattelart. O livro é uma análise de como a sociedade é representada nos quadrinhos
Disney. Sobre a importância dos gibis da Disney, os autores (1971, p. 15) comentam
que
Além da cotização da bolsa, suas criações e símbolos se
transformaram numa reserva inquestionável do acervo cultural do homem
contemporâneo: os personagens têm sido incorporados em cada lugar,
colados na paredes, acolhidos em plásticos e almofadas, e por sua vez têm
retribuído convidando os seres humanos a pertencer à grande família
universal Disney, além das fronteiras e das ideologias, aquém dos ódios e
das diferenças e dos dialetos
15
O livro, porém, é feito sobre o viés marxista. Já na introdução Dorfman e
Mattelart (1971, p. 18) deixam claras suas posições, através da ironia:
Os responsáveis do livro serão definidos como soezes e imorais
(enquanto o mundo de Walt Disney é puro), como arquicomplicados e
enredadíssimos na sofisticação e refinamento (enquanto Walt é franco,
aberto e leal), membros de uma elite envergonhada (enquanto Disney é o
mais popular de todos), como agitadores políticos (enquanto o mundo de W.
Disney é inocente e reúne harmoniosamente todos em torno de colocações
que nada têm a ver com os interesses partidários), como calculistas e
amargurados (enquanto que Walt D. é espontâneo e emotivo, faz rir e ri),
como subversivos da paz do lar e da juventude (enquanto W.D. ensina a
respeitar a autoridade superior do pai, amar seus semelhantes e proteger os
mais fracos), como antipatrióticos (porque sendo internacional, o sr. Disney
representa o melhor de nossas mais caras tradições autóctonas) e por fim,
como cultivadores da “ficção-marxista”, teoria importada de terras estranhas
por “facínoras forasteiros” renhidas com o espírito nacional (porque o tio
Walt está contra a exploração do homem e prevê a sociedade sem classes
no futuro).
A presente pesquisa não procura se posicionar politicamente perante os
quadrinhos. Porém, consideramos que o livro Para Ler o Pato Donald faz uma válida
análise sobre a representação da sociedade nos quadrinhos Disney. Serão
abordadas aqui somente questões referentes a esses aspectos.
Consideramos aqui que as representações apresentadas nos gibis são fruto
da sociedade em que foram produzidos e não de uma máquina de colonialismo e
alienação, como desejam os autores do livro. Segundo os autores “O imaginário
infantil recobre todo o cosmos-Disney com banhos de inocência, permitindo por meio
do entretenimento que se desenvolva a utopia política de uma classe” (1971, p.
130). Ao apoiarmos essa visão, estaríamos também corroborando com as teorias de
Frederic Whertam em seu Seduction of the Innocent, que procurava provar que os
quadrinhos influenciavam a delinqüência infantil e que quase acabaram com a
indústria neste setor.
2.3
Estudo Exploratório
Por se tratar de um estudo comparativo consideramos importante delimitar um
corpus a ser analisado. Foram escolhidas revistas em quadrinhos da Turma da
Mônica e algumas da Disney. O livro base desta pesquisa Para Ler o Pato Donald,
tem enfoque nas personagens Tio Patinhas e Pato Donald, portanto entendemos ser
necessário verificar exemplares atuais dos mesmos. Por fim, escolhemos ainda
16
utilizar uma edição com histórias de Zé Carioca, personagem Disney produzido para
e no Brasil.
Como especificado anteriormente o corpus a ser analisado é constituído de
revistas de todos os títulos de quadrinhos da Turma da Mônica (Mônica, Cebolinha,
Magali, Cascão, Chico Bento e Ronaldinho Gaúcho), mais Tio Patinhas e Pato
Donald da Disney, todas do mesmo mês. Além destas, foi escolhida ainda a edição
especial Mestres Disney – Renato Canini, com histórias da personagem Zé Carioca.
Foram escolhidas os gibis de Outubro de 2007, sendo as da Turma da Mônica todas
número 10 e lançadas pela Editora Panini Comics, Tio Patinhas número 507 e Pato
Donald número 2351, ambos pela Editora Abril. Mestres Disney – Renato Canini é
uma edição especial de Abril de 2005, também pela Editora Abril.
Para um melhor entendimento de alguns pontos levantados nesta pesquisa
consideramos ser relevante a descrição das revistas aqui analisadas. Portanto neste
capítulo serão apresentadas as características do corpus a ser explorado.
As revista da Turma da Mônica apresentam histórias com situações que ocorrem
quase sempre no lugar onde as personagens moram. Grande parte delas se passam
nas casas ou arredores onde elas vivem. Os personagens principais vivem todos
juntos no mesmo bairro. Chico Bento mora com seus amigos em algum lugar do
interior. A Turma do Penadinho está sempre em um cemitério, Piteco em algum
lugar não especificado da pré-história e Papa-Capim na mata. Ronaldinho Gaúcho
também mora junto com as personagens principais da Turma da Mônica, porém,
uma de suas histórias acontece em uma praia. Além destes apresentados no corpus
analisado, a Turma da Mônica ainda possui a Turma da Mata, que vive em uma
floresta, a Turma do Horácio, na era dos dinossauros e o Astronauta, no espaço.
As situações ocorridas nas histórias são as mais diversas, porém sempre
envolvendo questões referentes ao meio em que estão inseridas as personagens.
Em uma a Mônica precisa fazer com que seu cachorro Monicão não morda tudo o
que aparece voando na sua frente. Em outras: Nimbus tenta fazer um castelo de
cartas; Dona Morta é encarregada de fazer dormir os filhos da Turma do Penadinho;
o Louco aparece no aniversário do Cebolinha; Floquinho deve cuidar da Maria
Cebolinha; o porco Chovinista adota um filhote de gambá; Cascão tenta se livrar de
uma mangueira furada que espirra água; Mingau fica gripado, Magali fica vidrada em
uma pizzaria; Chico Bento briga com sua namorada Rosinha; a professora Dona
Marocas faz de tudo para que Chico Bento consiga se concentrar na prova. As
17
histórias envolvendo a personagem Ronaldinho Gaúcho giram todas em torno do
assunto futebol.
Nas revistas estudadas há a presença de adolescentes (Tina, Pipa e Rolo),
orientais (Nimbus e Do Contra), casais (Turma do Penadinho, Piteco e sua
namorada), de seres pertencentes à tradição Cristã Católica (Padre Lino, Anjinho e
São Pedro), índios (Papa-Capim e Jurema), um mudo (Humberto), um deficiente
físico (Luca) e afro-descendentes (Turma do Ronaldinho Gaúcho e Jeremias). Além
destes, a Turma da Mônica também tem como personagens um autista (André), uma
menina cega (Dorinha), outros orientais (Hiro) e afro-descendentes (Turma do
Pelezinho). Também fazem parte das histórias os pais das personagens e alguns
trabalhadores assalariados (professora, padeiro, entre outros).
Em nenhuma das revistas pertencentes à Turma da Mônica existem créditos
especificando quem escreveu os roteiros e quem desenhou cada uma das histórias.
Todas são assinadas pelo Maurício de Sousa. No editorial aparecem quais
profissionais fazem parte do grupo que produziu as revistas, porém sem especificar
quem fez o quê. O estilo dos desenhos é igual, existe um padrão extremamente
rígido entre as histórias, não é possível notar diferentes traços de desenho. Somente
nos roteiros é possível verificar algumas diferenças de estilos. Todas as
personagens possuem “vestimenta” fixa, sendo suas roupas as mesmas em todas
as histórias.
Para as revistas da Disney consideramos ser importante especificar mais as
características destas. É necessário fazer comparações com as analisadas na obra
Para Ler o Pato Donald, pois estas foram publicadas há mais de trinta anos e podem
possuir diferenças em suas temáticas. Por se tratar de poucas histórias, a descrição
aqui não se torna maçante.
A revista Tio Patinhas número quinhentos e sete começa com a história Ouro
Branco Cervino. Nela Tio Patinhas sofre de uma doença causada pela avidez por
dinheiro. Donald e seu sobrinhos decidem, então, levá-lo aos Alpes Suíços para um
tempo de repouso. Lá, Tio Patinhas descobre uma planta que nasce no topo dos
Alpes e que, se consumida por vacas leiteiras, aumentam em muito a produtividade
destas. Ele percebe nisso uma oportunidade de negócios e de ganhar dinheiro.
Patinhas, então, obriga Donald e seus sobrinhos a subirem a montanha, não
importando por quais perigos passariam para conseguir as tais plantas. Depois de
consegui-las, ele necessita instalar sua indústria para produzir leite. Para tanto faz
18
chantagens e parte para o jogo sujo para destruir quem está no caminho da fábrica.
Em dado momento Pato Donald comenta “Pra obter uma vantagem, o Tio Patinhas
faz qualquer coisa... até poluir a paisagem!” A indústria acaba não funcionando, o
leito coalha e vira um queijo gigante. Tio Patinhas não desiste e acaba ganhando
dinheiro tornando o queijo gigante numa atração turística. Mesmo praticando atos
antiéticos, Tio Patinhas acaba lucrando.
O segundo título da revista Tio Patinhas é Milionários Exploradores. Tio Patinhas
é desafiado por Patacôncio para um duelo para ver qual dos dois era o maior
explorador. Tio Patinhas escolhe, então, que a batalha deveria ser a travessia do Rio
Peligroso, rio este que Patinhas sabia conter tesouros escondidos. Durante a
travessia os dois atravessam uma série de obstáculos, caindo por fim em uma
caverna. Lá encontram uma exploradora que estava desaparecida há mais de um
ano, porém Tio Patinhas não encontra o tesouro. O pato descobre, então, um meio
de sair das cavernas, utilizando gêiseres e cobertores. Já em Patópolis, Tio Patinhas
aceita o empate no desafio com Patacôncio. Descobre-se, por fim, que Tio Patinhas,
enquanto estava na caverna, havia descoberto ouro no subsolo, através dos
gêiseres.
Em Pato Donald número dois mil trezentos e cinqüenta e um, temos o título O
Solar da Coruja. É o dia do Pato Donald pagar o aluguel de sua casa para Tio
Patinhas, porém ele não tem dinheiro algum. Tio Patinhas faz uma proposta para
que seu sobrinho pague suas dívidas. Ele deve ir até Carpáccio e expulsar um
inquilino de um Solar seu que também está há muito tempo sem pagar o aluguel.
Pato Donald confunde o Solar e acaba expulsando a pessoa errada. Quando
descobre, Tio Patinhas comenta “Desperdicei uma grana preta por nada, seu inútil!
Mas isso não fica assim!”. Pato Donald precisa, então, voltar para Carpáccio para se
esconder de seu tio.
A história seguinte é Em Função do Jabá. Pato Donald está assistindo a uma
espécie de reality show na televisão. Nele uma mulher diz que tem uma pinta na
língua que atrapalha sua carreira e que precisa ganhar o programa para ter dinheiro
para uma operação de retirada da tal pinta. Então aparece o cirurgião dela e vende
para o programa uma foto da pinta, que na verdade é uma tatuagem com o nome do
ex-namorado. Observando o valor da foto, Pato Donald decide virar um paparazzo.
Ele descobre, através de seus sobrinhos, que uma famosa banda desapareceu perto
do Pântano Negro e que ninguém tinha coragem de ir até lá atrás deles. Pato
19
Donald e os garotos decidem ir até o local. Lá, depois de algumas peripécias,
encontram a banda. Os integrantes da banda relatam que estavam fugindo da fama
e queriam um pouco de descanso. Donald diz que mesmo assim vai querer tirar
fotos, pois com elas ganharia muito dinheiro. A banda diz que topa, mas com a
condição que ele divulgue as fotos só depois de 48 horas para que eles possam
descansar mais um pouco. Donald aceita, tira as fotos e propõe a seus sobrinhos
aproveitarem também aquelas horas ali no pântano. Ao voltar para a cidade com as
fotos, o pato descobre que a banda já tinha retornado e assinado um contrato
milionário com a gravadora. Sem o dinheiro das fotos, Pato Donald acaba decidindo,
junto com seus sobrinhos, também fundar uma banda.
As duas revistas Disney apresentadas acima ainda contêm três pequenas
histórias junto com as principais. Em uma, Pato Donald vira garoto propaganda de
um colchão. Nas outras, Pato Donald briga com seus vizinhos por causa de duas
árvores e Peninha se atrapalha em uma aula de alpinismo.
Na edição especial Mestres Disney – Renato Canini são apresentadas 17
histórias da personagem Zé Carioca. Elas são uma reedição, originalmente foram
publicadas de 1971 a 1983, além de uma especial de 2005. Na maioria delas Zé
Carioca é um detetive ou ainda um super-herói (Morcego Verde). Em várias, ele
viaja pelo interior do Brasil, além de uma viagem no tempo e uma embaixo da terra.
Porém, o assunto que está mais presente nas histórias são as dívidas do Zé
Carioca.
Nas revistas Disney, as personagens possuem “vestimenta” característica,
porém não fixa. Suas roupas mudam seguidamente, mas possuem um padrão. É
possível notar a diferença de estilo nos desenhos de diferentes ilustradores. Em
todas as revistas, mesmo contendo a assinatura de Walt Disney, são apresentados
os créditos de quem fez os roteiros, os desenhos e a arte-final de cada história. A
edição Mestres Disney é toda dedicada ao roteirista e ilustrador Renato Canini. A
assinatura de Disney e Maurício de Sousa é a causa de diversos problemas com
seus roteiristas e artistas.
20
3 LINHA DE PRODUÇÃO
3.1
A Assinatura
Um desenhista consegue em média fazer vinte páginas de uma revista em
quadrinhos por mês. Geralmente, quando o gibi ou o personagem faz muito sucesso,
o artista contrata uma equipe para ajudar a vencer a demanda. Outros roteiristas e
desenhistas fazem os quadrinhos supervisionados pelo criador. Porém, muitas vezes
essas pessoas não levam créditos por seu trabalho. São os chamados “fantasmas”.
“Essas histórias em gibis (cujos royalties pertenciam à editora) eram iniciadas por
um escritor e um desenhista, em geral, para, posteriormente, se desdobrar em mil e
um desenhistas fantasmas, que mal conseguiam assinar a história” afirma Moya
(1977, p. 65). Ele aponta questões trabalhistas como uma das razões desse sistema:
“Os editores de comic books procuravam fugir à luta patrão vs. empregado que se
notava nas histórias publicadas em jornais pelos syndicates (distribuidores), cujos
criadores tinham força demais como autores.”
Os quadrinhos da Disney, por décadas, foram todos assinados por Walt
Disney, mesmo sendo produzidos em vários países. Walt mesmo, nunca se
envolveu com os quadrinhos. Ele, na verdade, não era grande desenhista. Nem
mesmo a famosa assinatura dos estúdios era dele. Eliot (1995, p. 120) afirma que
Disney fizera um de seus artistas (...) criar um logotipo para a
companhia baseado em sua assinatura, uma versão mais charmosa de sua
verdadeira assinatura. Tinha muito orgulho dela e, quando solicitado a
realmente assiná-la, sempre transformava em grande produção o que, na
2
verdade, não passava de uma bem treinada cópia de uma cópia.
Álvaro de Moya (1987) no prefácio do livro Para Ler o Pato Donald comenta
que
O resto, tal como Rubens e Salvador Dali, foi trabalho de uma
enorme legião de fantasmas (ghosts) aqui espalhada pelo mundo todo.
Legião da qual o signatário deste prefácio fez parte, em 1950, nos inícios da
Editora Abril em São Paulo, Brasil, desenhando as capas de Pato Donald e
Mickey. E assinando “Walt Disney”, impossibilitado de assinar minhas
próprias histórias em quadrinhos, até desistir para sempre do desenho.
2
O Anexo 1 contém a verdadeira assinatura de Walt Disney e a usada pelos estúdios.
21
“Walt tratava seus animadores (...) como empregados, mais que artistas.
Permaneciam em sua maioria anônimos (...)” explica Eliot (1995, p. 98). Alguns
artistas burlavam essa dinâmica. É o caso de Renato Canini. A introdução da revista
Mestres Disney n° 5 conta que “É possível ver nos cenários estabelecimentos como
“Cantina Canini”, “Loteca Canini” e outros. Mas sua marca registrada, porém, é um
pequeno caramujo escondido no canto de algum quadrinho3”.
Nem mesmo os principais personagens Disney foram criados por Walt. Moya
(1996, p. 125) explica que “Ao montar seus próprios estúdios, apareceu Mickey
Mouse, a Walt Disney cartoon, drawn by Ub Iwerks4. Esse Ub Iwerks era um
membro da equipe e o verdadeiro desenhista do famoso camundongo”. Tio
Patinhas, Irmãos Metralha, Professor Pardal, Maga Patalójika e Patópolis, entre
outros, são criações de Carl Barks. Moya (1987) é taxativo: “Disney criou, portanto,
apenas Alice5 e o coelho Osvaldo6”.
Walt Disney precisou deixar de desenhar quando seu estúdio começou a ficar
grande. Ele passou, então, a só organizar os trabalhos e supervisionar sua equipe.
Walt relata (apud Eliot, 1995, p. 63): “Então, quando Mickey surgiu, causando
grande sensação, foi preciso que eu desistisse de desenhar para poder organizar e
administrar a empresa. (...) Ele significou a minha dispensa da produção.”
A falta de créditos nos quadrinhos Disney era motivo de chacota em revistas
de humor estadunidenses. Moya (1977, p.76) relata que
Vítimas constantes dos ataques de Mad eram Walt Disney, que
sempre surgia como Walt Dizzy (Tonto), e suas milhões de assinaturas
espalhadas pelo mundo todo, em crítica ao exército internacional de ghosts
(fantasmas) que redesenhavam seus personagens
Diferenças de estilo, tanto de enredo como de desenho, são bastante
perceptíveis nas histórias em quadrinhos da Disney7. Esses diferentes estilos foram
criando fãs, que buscavam saber quem realmente estava por trás deles. O grande
responsável por esse movimento foi Malcom Willits, fã de Carl Barks, que descobriu
a identidade do artista na década de sessenta. “Suas criações obtiveram um
3
Anexo 2
Anexo 3
5
Alice é uma série de curta metragens, da década de 1920, que misturam uma atriz real com fundos de desenhos
animados.
6
Osvaldo é uma série de desenhos animados curta metragens do fim da década de 1920.
7
No Anexo 4, comparações entre desenhos de diferentes artistas Disney.
4
22
sucesso tão retumbante que os admiradores acabaram tirando-o da obscura
situação a que Disney obrigava seus auxiliares” comenta Moya (1996, p. 125). E
continua (1996, p. 126): “Finalmente, da legião de fantasmas de Disney no mundo
todo, um alcançava a notoriedade, surgindo da bruma do exército silencioso e
invisível da imensa produção dos trabalhos Disney.”
Hoje, todas as revistas Disney já vêm com os créditos devidamente incluídos.
Também são lançados álbuns e edições especiais com histórias de somente um
autor. Alguns artistas já são reconhecidos como Mestres Disney, entre eles Carl
Barks, Don Rosa, Cavazzano, Gottfredson, Romano Scarpa e no Brasil, Renato
Canini.
Maurício de Sousa ainda assina todas as histórias da Turma da Mônica. Os
nomes dos roteiristas e desenhistas do estúdio são citados na última página de cada
revista, porém sem indicação de qual história exatamente aquele artista fez.
Maurício de Sousa aparece apenas como redator. As únicas histórias totalmente
produzidas por ele são as do dinossauro Horácio. “É o único personagem que, até
hoje, só eu desenho. Todas as histórias dele são criadas e desenhadas por mim.
Mais ninguém mexe.” afirma Maurício em entrevista ao site Side Effects. O resto dos
gibis da Turma da Mônica quase não tem sua participação. Para a página Beco das
Imagens, o quadrinista comenta:
hoje tenho uma equipa, e eles trabalham tão bem que eu só preciso
de dar algumas orientações. O resto praticamente já não preciso de ver. E
se houver alguma falha, alguma coisa errada, eu vejo na versão publicada e
aviso logo o responsável. (sic)
A criação de personagens ainda fica por conta de Maurício de Sousa. Para a
página Side Effects, ele fala sobre o asunto: ”Há dois personagens na Turma da
Mônica que não são criações minhas. O Louco e o Bugu, aquele cachorrinho
amarelo que aparece nas histórias do Bidu. São do meu irmão, Márcio, da época em
que era um dos roteiristas das histórias.”
Nas histórias em quadrinhos da Turma da Mônica são perceptíveis algumas
diferenças entre os estilos de roteiros, porém os desenhos seguem um padrão bem
rígido. Em entrevista para o Universo HQ, Renato Canini afirma: “É péssimo se
"despersonalizar". Desenhar personagens dos outros é horrível. Parece que os
23
desenhistas do Mauricio de Sousa superaram essa fase. Como temos que "pagar o
leite das crianças" que morra o "EU". Help!”
Maurício de Sousa, assim como os syndicates estadunidenses, tem como
desculpa os copyrights e os direitos trabalhistas para impedir que sua equipe assine
suas revistas. Ele (2003) deixa isso bem claro em uma entrevista para a página
Universo HQ:
Eu não farei isso e posso dar uma razão muito simples: copyright.
Um artista tendo seu nome na frente de um personagem pode, mais tarde,
reclamar algum tipo de direitos sobre ele. Claro que perderá na justiça, mas
é algo que não há necessidade no meu pessoal. Assim, nas minhas revistas
isso não acontecerá.
Na mesma entrevista ele pega um gibi e mostra a ultima página tentando
amenizar o problema: “Os nomes estão todos lá. Essa questão dos créditos não é
problema, pelo menos no meu estúdio.”
Deixar cada artista assinar sua própria história não é somente uma maneira
de valorizar o trabalho dele. “É uma forma de cativar o leitor (e um marketing
barato), que passa a se identificar com determinado artista, a formar fãs-clubes e a
ter uma relação mais pessoal com as revistas e histórias.” afirma Santos (2003).
A produção de histórias em quadrinhos por equipe, e a conseqüente
assinatura ou não delas, é uma exigência para aquelas que se enquadram no
processo de cultura de massa. O mesmo acontece com o sistema de redundâncias.
3.2
O sistema de redundâncias
Sobre os quadrinhos Disney, Dorfman e Mattelart (1971, p. 107) relatam que
O protagonista de história em quadrinhos sai de sua rotina, resolve-se
na aventura ou na absurdez de sua vida cotidiana, crepita como fogos
artificiais, e retorna à placidez do repouso compensado. Assim, o momento
inicial e o momento final são o mesmo, e o movimento é evidentemente
circular. Do repouso alcançado passa a próxima revista onde, convertido no
descanso habitual do herói, abastece outra aventura mais. A trajetória da
aventura mesma é, para cúmulo, a reiteração exagerada das mesmas
características e cantilenas.
Em Obras Completas de Carl Barks n°1 (2004, pág 80), o editor da revista
explica que “Mesmo que a conclusão de uma trama indique uma reviravolta na vida
24
dos personagens, na edição seguinte, eles retomam seus hábitos normais, como se
nada estivesse acontecido.” Na mesma edição Carl Barks (2004, pág 80) explica que
Eu simplesmente construí cada história e as finalizei com uma
conclusão cômica, sem me preocupar se ela faria algum sentido. Eu nunca
pensei de devia ou não remeter o leitor ao episódio anterior. Não havia
conexão entre as histórias, eram gibis diferentes.
Todos continuam com a mesma idade. Na revista Cebolinha n° 10, Cebolinha
está fazendo aniversário de sete anos. A personagem Louco então comenta “O que
tem de especial nisso? No ano passado, você também fez sete anos! No ano
retrasado, também! E no outro! No outro... Sabe, né? Todo ano é assim!” Umberto
Eco (1970, p. 257) diz ser essa uma característica dos quadrinhos comerciais, de
massa:
No âmbito de uma estória, o Superman pratica uma dada ação
(desbarata, por exemplo, uma quadrilha de gangsters); nesse ponto, termina
a estória. No mesmo comic book, ou na semana seguinte, inicia-se uma
nova estória. Se ela retomasse o Superman no ponto em que o havia
deixado, o Superman teria dado um passo para a morte. Por outro lado,
iniciar uma estória sem mostrar que fora precedida por outra, conseguiria,
de certo modo, subtrair o Superman à lei do consumo (...).
Cirne (1972, p. 32) complementa relatando que a redundância nas histórias
em quadrinhos é
“nascida por força da engrenagem que movimenta os pilares da
indústria cultural, e da qual os quadrinhos participam. A sua estrutura
repetitiva aparece como uma exigência do consumo em larga escala. Das
possíveis 10.000 tiras dos PEANUTS nos últimos 22 anos, apenas 400 ou
500 contêm informação nova (...).
O atrativo deste esquema para o leitor também é explicado por Eco (1970, p.
268):
o leitor encontra continuamente, e ponto por ponto, o que já sabe, o
que quer saber ainda uma vez, e pelo que pagou o preço do fascículo – o
prazer da não-estória, se é que uma estória é um desenvolvimento de
eventos, que nos deve levar de um ponto de partida a um ponto de
chegada, ao qual jamais teríamos sonhado chegar. Um prazer em que a
distração consiste na recusa do desenvolvimento dos eventos, num subtrairnos à tensão passado-presente-futuro que nos retira para um instante,
amado porque recorrente.
25
Eco (1970, pág 264) denomina esse esquema de iterativo e explica seu
fascínio sobre as crianças: “o mecanismo sobre o qual repousa o gozo da iteração é
típico da infância, e são as crianças que pedem para ouvir não uma nova estória,
mas a estória que já conhecem e que lhes foi narrada várias vezes.”
O leitor de quadrinhos Disney e Turma da Mônica, portanto, já sabe qual o
tipo de história que irá encontrar nestas revistas.
3.3
O Cartum
Quando criança, na fazenda onde morava, “(...) Walt improvisava, quase
sempre desenhando com um pedaço de carvão em papel higiênico. Era tudo o que
precisava para passar uma hora livre, esboçando os mansos animais da fazenda,
que considerava seus únicos verdadeiros amigos” afirma Eliot (1995, p. 27). Os
personagens do universo Disney são todos animais com características humanas.
Carl Barks (1975, apud AS OBRAS COMPLETAS DE CARL BARKS Vol 1, 2004)
relata que
Nunca pensei [em meus personagens] como patos que viviam num
mundo de gente com cara de cachorro. Eu os imaginava como seres
humanos. Humanos que, por acaso, tinham aparência de patos (...) Os fãs
que me escreviam cartas contavam que tinham vivido situações
semelhantes àquelas pelas quais o velho Donald passou. É tudo muito
próximo da vida real.
Dorfman e Mattelart (1971, p. 41) afirmam que através do antropomorfismo8 a
natureza invade tudo, coloniza o conjunto das relações sociais
animalizando-as e pintando-as (manchando-as) de inocência. A criança
tende, de fato, a identificar-se com a brincalhona bestialidade dos animais”
E continuam: “Constitui ainda um dos pontos onde a imaginação infantil
pode desenvolver-se com maior liberdade criativa(...).
Essas características são comuns aos quadrinhos infantis. Incluindo os da
Turma da Mônica.
Cabeça achatada, rosto arredondado, olhos e orelhas grandes, nariz pequeno
e pés sem dedos9. Estas são as características mais marcantes das personagens da
Turma da Mônica. Elas são figuras humanas simplificadas, cartunizadas.
26
“Simplificar personagens e imagens pode ser uma ferramenta eficaz de
narrativa em qualquer meio de comunicação.” afirma McCloud (1996, p. 31). O
Cartum possui características que facilitam a leitura e a identificação com o que está
descrito.
Os quadrinhos infantis possuem o Cartum como uma de suas características
base. É a maneira em que as pessoas mais se identificam no desenho. “(...) quando
entra no mundo do cartum, você vê a si mesmo.” explica McCloud (1996, p. 36). E
continua: “Nós não só observamos o cartum. Nós passamos a ser ele.” É, portanto, o
Cartum, o meio mais eficaz de fazer uma história em quadrinhos infantis. Através
dele as crianças tem uma maior facilidade de identificação com as histórias. As
linhas dos desenhos cartunizados aproximam as crianças dos quadrinhos. “(...) as
curvas e linhas abertas do Tio Patinhas, de Carl Barks, passam uma sensação de
juventude e inocência” afirma McCloud (1996, p. 126).
O Cartum também facilita a imaginação dentro das histórias em quadrinhos.
Com ele é possível fazer que nas histórias aconteçam ações irreais sem que haja
necessidade de justificativa. “Ao trocar a aparência do mundo físico pela idéia da
forma, o cartum coloca-se no mundo dos conceitos” comenta McCloudd (1996, p.
41). E explica: ”Quando o cartum é utilizado na história inteira, o mundo dessa
história parece pulsar com mais vida. Objetos inanimados podem assumir
identidades separadas, de modo que se eles começarem a cantar, isso não
pareceria absurdo.”
“Outra coisa é a universalidade de imagem do cartum. Quanto mais
cartunizado é um rosto, mais pessoas ele pode descrever, dizem.” relata McCloud
(1996, p. 31). Ou seja, o Cartum também é uma forma de facilitar a venda das
histórias em quadrinhos. Quanto mais pessoas se identificarem com o produto,
maior o potencial de seu alcance mercadológico.
Através do Cartum é mais fácil transmitir uma idéia. É a forma mais simples
de repassar uma ideologia. Cartunizados, os quadrinhos infantis podem facilmente
transmitir uma ideologia, um ideal. Além de facilmente identificável, o Cartum possui
como característica de aumentar o significado do que quer ser transmitido. McCloud
(1996, p. 31) comenta que “A capacidade que o cartum tem de concentrar nossa
8
Segundo o dicionário Aurélio: “tendência para atribuir, ou a forma de pensamento que atribui formas ou
características humana a deus, deuses, ou quaisquer outros entes naturais ou sobrenaturais.”
9
Os personagens da Turma do Chico Bento são exceção, todos possuem cinco dedos nos pés.
27
atenção numa idéia é parte importante de seu poder especial, tanto nos quadrinhos
como no desenho em geral.” Continua (1996, p. 30): “Quando abstraímos uma
imagem através do cartum, não estamos só eliminando os detalhes, mas se
concentrando em detalhes específicos. Ao reduzir uma imagem ao seu
“significado” essencial, um artista pode ampliar esse significado de uma forma
impossível para a arte realista.”
As ideologias e formas de percepção do mundo representadas pelos cartuns
de Disney e Turma da Mônica serão os temas abordados nos próximos capítulos
desta pesquisa.
28
4 PROGENITORES E UNIVERSO FEMININO
4.1
Papai
“A primeira coisa que salta aos olhos em qualquer destes relatos é o
desprovimento permanente de um produto essencial: os progenitores. É um universo
de tios-avós, tios, sobrinhos, primos, e também na relação macho-fêmea um eterno
noivado” comentam Dorfman e Mattelart (1971, p. 25) sobre os quadrinhos Disney.
O surgimento de novos personagens, mesmo quando parentes, se dão por
razões extra-sexuais. Se parentes, são sobrinhos, e estes, geralmente gêmeos. A
única exceção são Banzé e Lobinho, que possuem relação pai-filho. Dorfman e
Mattelart reiteram (1971, p 26): “Neste páramo de clãs familiares, de duplas de
solitários, impera a arcaica proibição da tribo de casarem entre si, onde cada qual
tem sua própria casa mas jamais um lar, onde se aboliu todo o vestígio de um
progenitor, masculino ou feminino.” “Eu não podia usar a morte ou qualquer coisa
sexualmente sugestiva” comenta Carl Barks (1972, apud AS OBRAS COMPLETAS
DE CARL BARKS Vol 3, 2004) sobre seu trabalho nos estúdios Disney.
Walt tinha uma relação complicada com seus pais. Seu pai era extremamente
violento, usando a força para ensinar disciplina. Sua mãe era um tanto ausente e
não defendia os filhos da violência do marido. A situação ficou ainda mais
complicada quando Disney tentou se alistar no exército estadunidense para
participar da Primeira Guerra Mundial. Walt precisou de sua certidão de nascimento,
porém ela não foi encontrada e era bem possível que nunca tivesse existido. Surgiu
então a suspeita de que era adotado. Essa suspeita foi alimentada por várias outras
pistas sobre sua origem que surgiram quando o FBI investigou o caso em troca de
alguns serviços de Disney.
Mesmo não participando da criação das personagens e das histórias em
quadrinhos, é reconhecida a influência de Walt Disney sobre todo o trabalho de seu
estúdio. Sua principal participação era feita nos desenhos animados. E era ali que
sua psicologia, suas emoções ficavam mais evidentes. Cada um dos primeiros cinco
longa metragens dos estúdios (Branca de Neve, Pinóquio, Bambi, Dumbo e
Fantasia) “refletia aspectos do tema maior e único de Disney: a santidade da família
29
e as trágicas conseqüências quando ela é violada” afirma Eliot (1995, p. 18). E
continua (1995, p. 19):
Nesses cinco filmes, todos os heróis de Disney começam com
grandes “defeitos” de personalidade, exteriorizadas pela perda ou ausência
da figura dos pais. A procura por essa figura transforma-se, em última
instância, na busca pela conquista da integridade espiritual.
A desconfiança de não ser filho verdadeiro de seus pais também marcou os
filmes produzidos por Walt.
“São dignos de nota a filha adotiva abandonada no bosque, em
Branca de Neve; o boneco de madeira que sonha em ser o verdadeiro filho
de Gepetto, em Pinóquio; o pequeno animal da floresta que perde a mãe e
é separado do pai, em Bambi; o aprendiz em temerosa servidão em “O
Aprendiz de Feiticeiro”, de Fantasia; e o bebê elefante separado de sua
verdadeira mãe, em Dumbo” enumera Eliot (1995, p. 216).
Uma tentativa de colocar parentescos mais próximos entre as personagens
Disney foi feita por Carl Barks. Ele procurou demonstrar toda a família Pato. O editor
(2004, pág 94) da revista Pato Donald 70 Anos relata que:
Carl Barks esboçou a primeira árvore genealógica dos patos no início da
década de 1950. Don Rosa fez algumas atualizações nela e a enviou para a
aprovação de Barks em 31 de março de 1991. Em abril do mesmo ano, a
10
terceira e definitiva versão foi idealizada por ambos.
.
Nela aparecem todos os parentes dos patos, inclusive uma, já morta (!), irmã
gêmea do Pato Donald e mãe de Huguinho, Zezinho e Luisinho. Estas personagens,
porém, não são utilizadas nas histórias Disney.
Diferente do universo Disney, em Turma da Mônica existe a presença de
progenitores. Todos as personagens principais e várias das secundárias possuem
pais. Irmãos e irmãs também aparecem nos gibis. No corpus estudado, os pais
aparecem em histórias do Chico Bento, da Turma do Penadinho, do Rolo, do
Cebolinha, da Magali e do Ronaldinho Gaúcho. Na revista do Cebolinha tem uma
história onde a irmã mais nova dele é a personagem principal. O núcleo familiar é
presença constante nos quadrinhos da Turma da Mônica. Aqui, o surgimento de
novas personagens pode se dar por razões sexuais. Podem ser criadas
personagens que são filhas ou irmãs de outros personagens.
30
Mesmo não existindo a figura do pai, nos quadrinhos Disney ocorre a
presença do poder paterno. Esta, porém é muito mais autoritária, ocorrendo na
figura do tio. “É uma relação contratual que toma a aparência de uma relação
natural, uma tirania que não assume sequer a responsabilidade de um nascimento.
Sepultou-se, inclusive, a natureza como causa de rebeldia (Não se pode dizer a um
tio: “Você foi um mau pai”)” comentam Dorfman e Mattelart (1971, p. 29).
Dentro destas relações não há atos de carinhos ou de lealdade. Não existem
gestos desinteressados. O amor é excluído deste universo. Dorfman e Mattelart
exemplificam (1971, p. 30):
As criancinhas admiram um tio distante, que descobriu ”um invento
que mata o bichinho da maçã”. Asseguram: “o mundo inteiro está grato a
ele... É famoso... e rico.” Donald responde acertadamente: “Bah! O talento,
a fama e a fortuna não são tudo na vida” – “Não? Que outra coisa resta?”
Perguntam Huguinho, Zezinho e Luisinho em uníssono. E Donald não
encontra nada a dizer senão: “Er... Hummm, Vamos ver... Quer dizer... Oh-h
Atos desinteressados, demonstrações de carinho e lealdade têm uma
presença marcante nos quadrinhos da Turma da Mônica. Essas abordagens são,
inclusive, os temas principais de algumas histórias do corpus analisado. Em Chico
Bento n° 10 temos a história “Num era pra sê ansim” (sic). Nela Chico passa a
história toda triste, pois acabara de brigar com sua namorada Rosinha. Em
determinada parte, a personagem comenta: “Gozado qui, si ocê tá no lugar mais
bunito do mundo...quando num tá ca pessoa qui ocê gosta...tudo fica cinza...tudo
fica sem cor...sem gosto...”(sic). Por fim, com ajuda da Vida e do Destino, Chico
volta com sua namorada e diz “Ah, o amor! Deixa o mundo mais colorido... deixa a
gente mais leve... i o coração im paz!”(sic). Na revista Cascão n° 10, o peixe da
Dona Morte, morre. Ela fica muito abatida, mas, por sugestão de Penadinho, acaba
por procurar o espírito de seu peixinho. Quando ela encontra o peixinho, ele diz que
irá reencarnar em outro bicho. Dona Morte, então, fala: “Tudo bem! Não importa o
bicho! Vou amá-lo como sempre amei!” Ainda nesta revista, o porquinho Chovinista
se apaixona por um filhote de gambá e o adota como seu bichinho de estimação.
Nos quadrinhos Disney existe uma separação bem clara entre superiores e
submissos. Quem está abaixo deve ser obediente e quem manda exerce repressão
física e moral, além do domínio econômico. “Ser mais velho ou mais rico ou mais
10
Anexo 5
31
belo neste mundo dá imediatamente o direito de mandar nos menos “afortunados”
comentam Dorfman e Mattelart (1971, p. 30). E continuam (1971, p. 30), afirmando
que por trás disso existe “... um mundo de permanentes privilégios e benefícios (por
isso, o clube das mulheres da Patolândia sempre realiza obras sociais). A caridade é
recebida pelo destinatário com entusiasmo: ele consome, recebe, aceita
passivamente tudo o que puder mendigar.” A subserviência nunca é contestada.
Todos aceitam seus lugares e não são capazes de se revoltar contra o que lhes é
imposto. Ninguém se queixa desta estrutura.
A falta de progenitores “(...)também se liga com a gênese dos personagens:
como não nasceram, não podem crescer. Ou seja, nunca sairão tampouco desta
instituição pela via da evolução biológica.” refletem Dorfman e Mattelart (1971, p.
31). As personagens nunca envelhecem. Elas nunca evoluem. Nos quadrinhos da
Turma da Mônica os personagens também nunca envelhecem nem evoluem. Essa
característica, porém, deve-se mais ao já explicado esquema de redundâncias do
que à presença ou não dos pais.
As personagens Disney não evoluem e não aprendem. Os sobrinhos de
Donald, porém, possuem um modo de, quando necessário, “aprender” algo novo
que lhe seja útil. É o Manual dos Escoteiros. Dorfman e Mattelart (1971, p. 34)
afirmam que ele
É o compêndio enciclopédico da sabedoria tradicional. Contém uma
resposta para todo o espaço, toda a época, toda data, todo comportamento,
toda habilidade técnica. Basta seguir as instruções deste saber enlatado
para sair de qualquer dificuldade. É o cúmulo de convenções que permite
ao menino controlar o futuro e contê-lo para que não varie diante do
passado, para que tudo seja necessariamente repetitivo.
Na revista Tio Patinhas n° 507, em um determinado momento, enquanto
escalam os Alpes, Patinhas, Donald e os sobrinhos encontram uma cabana. Um dos
sobrinhos pega o manual e diz: “De acordo com o manual, é um abrigo situado na
encosta oriental do cervino!”. Em outra parte, outro comenta: “Ufa! O manual está
inteiro! Ainda bem! Salvamos a parte mais importante!”.
As personagens da Turma da Mônica não têm nenhum manual para aprender
o que devem fazer em cada situação. Elas devem enfrentar sozinhas as situações
novas com que se deparam. Quando só a criatividade ou a inteligência não são
suficientes para vencer as dificuldades, as personagens recebem ajuda de alguém
32
que saiba lidar com a situação. Na revista Chico Bento n° 10, na história em que ele
briga com sua namorada, para superar seu drama ele conta com a ajuda do Destino
e da Vida. Em Magali n° 10, a personagem não sabe o que fazer com seu gato
Mingau que está doente. A solução foi pedir ajuda para sua mãe.
Magali como personagem principal e sua mãe como fonte de sabedoria.
Assim, já se percebe um tratamento de destaque para as personagens femininas na
Turma da Mônica.
4.2
Mamãe
O universo masculino é predominante nos quadrinhos Disney. Existe uma
preferência por personagens masculinas, em detrimento das femininas. A
personagem feminina ”(...) leva a termo com perfeição sua tarefa de humilde
servidora (subordinada ao homem) e de rainha de beleza sempre cortejada
(subordinada ao pretendente). O único poder que se lhe permite é a tradicional
sedução, que não se dá senão sob a forma de coqueteira.” explicam Dorfman e
Mattelart (1971, p. 35). Essas personagens não têm o direito de se tornarem mães.
As personagens masculinas são sempre solteiras, sendo que as femininas não se
deixam ter uma relação matrimonial. Esse estratagema também possibilita manter o
universo de tios e sobrinhos.
Existe um caso em que Walt realmente atuou para a retirada de personagem
feminina de uma obra de seus estúdios. Foi no filme Pinóquio. Esse episódio ocorreu
logo após a morte da mãe de Disney. Eliot (1995, p. 149) relata que
Walt ordenou que toda a filmagem, quase já completa, fosse
descartada a favor de um novo texto que eliminasse qualquer menção à
mulher do fabricante de bonecos Gepetto. Em vez disso, Disney deu maior
ênfase ao desejo do pequeno boneco de madeira de se tornar um filho em
carne e osso do bondoso velhinho que o havia criado.
A predominância de personagens masculinas nos quadrinhos estadunidenses
é uma característica das HQs produzidas nos anos em que surgiram os primeiros
gibis de Walt Disney. O pesquisador Barcus realizou uma observação em histórias
dominicais de março dos anos 1943, 1948, 1953 e 1958 e chegou a alguns
resultados. Anselmo (1975, p. 84) afirma que um desses resultados foi que “O
mundo das HQ dominicais norte-americanas é predominantemente um mundo
33
masculino de idade média (72% dos personagens são homens). As mulheres, que
aparecem em menor porcentagem, são bem jovens ou bem idosas”.
A Turma da Mônica demonstra sua relação com o universo feminino logo no
título. A personagem principal desse universo é uma menina, a Mônica. Além dela
existem outras que desempenham um importante papel nas histórias, como Magali,
Tina, Dona Morte e Dona Marocas. Outra diferença quanto aos quadrinhos Disney é
a existência das mães. Quase toda personagem tem mãe. E elas aparecem em
várias histórias com participações bem marcantes. Em Magali n° 10, depois que a
mãe da personagem decide o que fazer com Mingau, que estava doente, Magali
comenta: “Nossa! As mães sabem tudo!”.
Grande parte das mães das personagens principais são donas de casa. Esse
fato poderia demonstrar uma visão machista e de reforço aos poderes existentes
dentro da sociedade. Porém existe uma característica marcante nas histórias da
Turma da Mônica que vão contra esses argumentos. É a excessiva força da Mônica.
Através dela, a personagem exerce um poder sobre os meninos. Todos estão
sujeitos a suas vontades. Inverte-se aqui a relação de poder predominante na
sociedade brasileira. Em uma entrevista para o Bate Papo Uol (2007), Maurício de
Sousa foi questionado, pelo internauta Personal Trainer, sobre a força da Mônica e
respondeu:
Personal Trainer, você já tentou levar a melhor contra uma mulher?
Nunca, você não vai ganhar. Pode ser o mais bombado e forte. Além de que
eu tenho uma filha chamada Mônica que não leva desaforo para casa e
tinha tudo aquilo mesmo. Admiro as mulheres com personalidade forte
porque carregam os homens nos ombros, no colo e no coração.(sic).
As primeiras histórias da Turma da Mônica não tinham personagens
femininas. Maurício de Sousa (1996) relata que “Daí alguém da redação da Folha
me lembrou de um detalhe que eu estava deixando passar despercebido: Cadê os
personagens femininos nos seus quadrinhos? Cadê as mulheres?”. E explica:
cheguei a uma conclusão "técnica": eu estava escrevendo até então
sobre situações e emoções que eu conhecia bem, como homem. Punha nas
historinhas as minhas lembranças de infância (não tão remotas naqueles
tempos), minhas brincadeiras, opiniões, temores e alegrias.
Continua: “Mas como nunca tinha sido mulher, ficava meio sem condições de
falar pela boca de um personagem feminino.” Maurício conta que achou a solução
34
em casa, observando suas duas filhas: “Dei-me conta de que já podia criar
personagens femininos com conhecimento de causa. Aquelas duas crianças, já
mulheres numa série de atitudes e emoções, estavam me ensinando tudo o que me
faltava.”
Esta declaração de Maurício de Sousa pode, em parte, explicar a razão do
pouco aproveitamento de personagens femininas no universo Disney. Praticamente
todos os artistas da editora são homens. Esta é uma característica dos quadrinhos
estadunidenses que somente há pouco tempo vem se modificando.”Na medida em
que constituíram um “clube do bolinha” nos EUA, os quadrinhos abriram mão da
metade de seu poder potencial (e de seu público potencial) numa única facada”
afirma McCloud (2006, p. 100).
Desta maneira já é possível perceber, entre os quadrinhos Disney e da Turma
da Mônica, diferentes maneiras de lidar com o mundo a sua volta. Mundo este bem
explorado pelas personagens Disney.
35
5 AS AVENTURAS E OS PRECONCEITOS
5.1
Viajando
Além de serem antropomorfizados, os personagens Disney também procuram
retornar à natureza. Mesmo vivendo em locais urbanos, em várias histórias eles
procuram viajar para o campo, para ilhas, mar, desertos, montanhas entre outros. “É
certo que uma boa proporção de historietas transcorre na cidade ou em habitações
fechadas: estas, porém, enfatizam o caráter catastrófico e absurdo da vida urbana”
comentam Dorfman e Mattelart (1971, p. 42). E continuam: “A urbe está, na
realidade, concebida como um inferno, onde especificamente o homem perde o
controle de sua própria situação. O personagem se enreda nos objetos, episódio
após o outro.”
Para fugirem do caos urbano, as personagens Disney viajam para outros
países, continentes ou até mesmo outros planetas. No corpus analisado, essas
viagens acontecem para a Suíça, “Carpáccio” e para um tal “Rio Peligroso” que, ao
que tudo indica, se encontra em alguma floresta tropical.
Em Tio Patinhas n° 507 e Pato Donald n° 2351, pouco menos da metade das
histórias acontecem na cidade ou em locais fechados. Em uma delas, Pato Donald
se desentende com seus vizinhos por causa de duas árvores que fazem sombras
em demasiado. As outras duas ocorrem em locais fechados, sendo a primeira em
uma casa e a outra em um estúdio de filmagem. Já nos quadrinhos do Zé Carioca,
suas aventuras são na maioria dentro da cidade onde ele mora. Ele, porém,
necessita sair do seu espaço em algumas delas, principalmente quando vai visitar
seus primos distantes.
Praticamente todas as histórias dos quadrinhos da Turma da Mônica, do
corpus analisado, acontecem no espaço urbano. Geralmente em locais pertos das
residências das personagens. Chico Bento na roça, Piteco em algum lugar da préhistória, Papa Capim na mata e Anjinho no céu não estão na cidade, porém suas
histórias se passam perto ou nos locais em que eles moram. Somente uma aventura
não acontece nestas condições. Nela, Ronaldinho Gaúcho vai para a praia.
Os quadrinhos da Turma da Mônica procuram escapar ao máximo de
referências ao exato local em que suas histórias passam. Cenários, roupas e objetos
36
têm o mínimo de identificação com seu país de origem. Desta maneira, as histórias
procuram ser universais. Elas podem estar acontecendo em quase qualquer país
que tenha alguma semelhança com os elementos representados nelas. Essa
característica contribui para que as histórias sejam facilmente assimiladas e lidas por
mais pessoas, expandindo assim o alcance comercial da Turma da Mônica. Maurício
de Sousa (apud Cirne, 1971 p. 62) explica que o surgimento destas características
também foi por questões comerciais:
Em alguns lugares onde eu não me identificava, o pessoal dizia que
só aceitava estória americana. Foi um dos motivos por que nossas primeiras
estórias não eram tipicamente brasileiras. Eram assim meio universais. Não
havia nelas ambiente brasileiro, não havia detalhes que as identificassem
como uma produção brasileira. O pessoal estava dirigindo material
americano há 30 anos, acostumado de tal forma, que não aceitava material
diferente.
Essas adversidades fizeram, segundo Cirne (1971, p. 62), a Turma da Mônica
“mais universal do que brasileiro – ou mais universal do que latino-americano.”
A universalidade também é buscada no tipo de aventuras que as
personagens vivem. São histórias “simples”, quase todas possíveis de acontecer
com qualquer criança. Maurício de Sousa em entrevista para o UOL (2007), explica
que seus roteiros são inspirados em sua infância: “Está tudo no Chico Bento,
quando ele pega a vara, vai catar minhoca, vai para a beira do rio, era o que eu
fazia. Quando a maré estava cheia, eu sentava numa bacia grande e ía remando
com a mão até o lugar que teria peixe.”
Maurício de Sousa procura ser universal também ao tentar estereotipar o
menos possível suas personagens. O mesmo não ocorre com os quadrinhos Disney.
5.2
Estereotipados
Estressados com o ambiente urbano, as personagens Disney procuram fugir
para outros lugares. Porém, as características dos locais e dos habitantes são
sempre bem peculiares. Dorfman e Mattelart fazem um guia de como devem ser os
lugares que essas personagens devem visitar. Os habitantes locais são ou
primitivos, bárbaros ou muito mais evoluídos, mas que correm risco de extinção.
Nenhum deles, porém, tem contato com tecnologias.
As moradias são todas
exóticas ou folclóricas. Alguns não têm cidade, no máximo cabanas e os que
37
possuem, ou elas estão em ruínas ou inservíveis. Existem habitantes de todas as
cores, menos a branca. Eles ou são gigantes ou pigmeus e se vestem em trapos ou
como seus antepassados. Não existem fêmeas nesses locais, somente homens.
No já citado estudo realizado por Barcus (cap. 3.2), o pesquisador também
coletou dados sobre como eram retratados os países estrangeiros nos quadrinhos
estadunidenses no período dos primeiros gibis de Disney. Anselmo (1975, p. 83)
relata que Barcus chegou ao seguinte resultado: “Os países estrangeiros (...) são
mostrados como regiões agrícolas em 80,9% dos casos.”
Quanto às qualidades morais destes nativos, Dorfman e Mattelart (1971, p.
47) comentam:
São como crianças. Afáveis, despreocupadas, ingênuas, alegres,
confiantes, felizes. Têm ataques de raiva quando são contrariados. É muito
fácil, porém, aplacá-los e até mesmo enganá-los. O turista cauteloso levará
algumas quinquilharias e seguramente poderá trazer mais de uma jóia
nativa.
Eles são muito receptivos com os estrangeiros e facilmente enganáveis. São
desinteressados e generosos, portanto é fácil retirar suas riquezas, que para eles de
nada servem.
Esses seres primitivos cantam e dançam para se divertir e qualquer artefato
levado pelos turistas é usado como brinquedo. Todos eles falam fluentemente a
língua que as personagens Disney usam. Sua economia é de subsistência. Vivem
em uma democracia-monarquia. “Todos são iguais, menos o rei, que é mais igual
que os demais” completam Dorfman e Mattelart (1971, p. 47).
Os selvagens representariam assim as verdadeiras crianças de Disney. As
crianças urbanas, personagens principais desse universo, são inteligentes e astutas.
Por vezes elas se impõe perante os adultos. Adultos esses quase sempre trapalhões
ou com poucas capacidades intelectuais. Dorfman e Mattelart (1971, p. 51) afirmam
que
Assim, ao pequeno leitor se abrem duas alternativas, dois projetos
de infância por que modelar seu comportamento: pode escolher imitar os
sobrinhos e outros pequenos e astutos, escolher as artimanhas, e portanto
vencer adultamente, ganhar a competência, sair primeiro, obter
recompensas, escalar; ou bem pode seguir o pequeno selvagem-bom, que
jamais se mexe nem ganha nada.
38
Os países visitados pelas personagens Disney, em suas aventuras, não são
apresentados por seus verdadeiros nomes, mas sim por alguma denominação que
faça referência a estes países. Dorfman e Mattelart (1971, p.. 53) comentam que
Não importa que o nome seja outro, porque reconhecemos e
fixamos o país de acordo com esta tipicidade grotesca. A mudança do
nome, petrificando o embrião arquétipo, aproveitando todos os preconceitos
superficiais e estereótipos acerca do país, permite Disneylandizá-los sem
travas.
Desta forma, cria-se um meio de ridicularizar outros países, de recriar em
quadrinhos os preconceitos existentes. Isso se dá principalmente com países
subdesenvolvidos, numa relação entre colonizador e colonizado.
Em muitas histórias, as personagens Disney vão para outros países em busca
de ouro ou especiarias e para conseguir estes materiais, levam quinquilharias para a
troca. Dorfman e Mattelart (1971, p. 55) complementam:
Isto traduz as relações de truques que os primeiros conquistadores
e colonizadores (na África, Ásia, América e Oceania) tiveram com os
indígenas: troca-se o inútil produto da superioridade (européia ou norteamericana) e leva-se o ouro (as espécies, o marfim, o chá etc).
Estes objetos inúteis, que, no entanto, contêm tecnologias, são vistos como
magia pelos nativos, que não conseguem entender seu funcionamento. Desta forma,
tornam-se valiosos objetos para aqueles.
As personagens Disney também encontram alguma dificuldade para levar as
matérias primas destes países subdesenvolvidos para os desenvolvidos. Muitas
vezes a solução encontrada para a exploração do tesouro é a entrada de uma
companhia estrangeira que se encarrega do trabalho e paga uma comissão aos
nativos. Os moradores dos países explorados, porém, não podem manufaturar suas
matérias-primas, pois não têm conhecimento suficiente. Em outras histórias, Donald
e seus companheiros chegam a retirar o poder dos governantes que não se ajustam
aos negócios do Tio Patinhas em suas terras.
“Todos esses exemplos têm em comum alimentar-se de estereótipos
internacionais.” comentam Dorfman e Mattelart (1971, p. 63). E continuam: “Disney
não descobriu essa caricatura, mas explora-a ao máximo, englobando todos esses
lugares-comuns sociais, enraizados nas visões do mundo das classes dominantes
39
nacionais e internacionais, dentro de um sistema que afiança sua coerência.” E
mais:
A única maneira de um mexicano conhecer o Peru é através do
preconceito, que implica ao mesmo tempo que o Peru não pode ser outra
coisa, que não pode deixar esta situação prototípica, o aprisionamento em
seu próprio exotismo. Desta maneira o mexicano está se autoconhecendo,
autoconsumindo, rindo de si mesmo.
Em Tio Patinhas n° 507 as personagens viajam para a Suíça. As cidades e as
moradias são folclóricas e, excetuando um trem, os meios de transporte funcionam
por força animal ou humana. Tio Patinhas resolve construir uma fábrica nos Alpes,
porém ela demora a ser erguida e ele então comenta “os construtores da minha
fábrica parecem ter adotado o “ritmo suíço”.” Também aparece um personagem
japonês, e o pato “pensa”: “Vou fazer uma proposta! Japoneses adoram negociar!”.
A visão de mundo das personagens Disney parece ser compartilhada por
alguns dos artistas que produzem suas histórias. Em 1940, Walt Disney e alguns
membros de sua equipe ganharam uma viagem para a América Latina. Essa viagem
foi patrocinada pelo governo dos Estados Unidos e tinha como intenções fazer a
política da boa vizinhança, produzir dois desenhos animados com personagens
latinas e afastar Walt dos problemas que ele vinha enfrentando com as greves em
grande parte de seus estúdios. Eliot (1996, p. 191) relata que no Brasil:
O trabalho transcorreu sem transtornos até que alguém de sua equipe
referiu-se a um dos animadores brasileiros como um “nativo”. O incidente
aborreceu os colaboradores locais e quase determinou a suspensão da
filmagem de Você já foi à Bahia?, até que Walt pessoalmente pediu
desculpas à parte ofendida.
A Turma da Mônica praticamente não viaja. Suas aventuras se passam perto
do ambiente onde moram. Quando viajam, não o fazem para outros locais muito
diferentes daqueles em que eles vivem. Isto, porém, não impede que exista um ou
outro estereótipo nas personagens de Maurício de Sousa. Perguntado, sobre se
tentava não reproduzir estereótipos o quadrinista falou para a página Multirio:
“Tentamos. Embora na comunicação, na montagem de um roteiro, às vezes, algum
tipo de comportamento, algum lugar comum seja necessário para se contar bem
uma história. Naturalmente, com um desfecho positivo.” Os três casos encontrados
no corpus analisado são Chico Bento, Ronaldinho Gaúcho e Papa-Capim.
40
Chico Bento é o caso mais explicito. A começar por seu linguajar. “Deve di tê
arguma coisa im qui eu seja mior qui os outro” (sic) diz a personagem na história “O
Melhor de Todos”. Grande parte das personagens de seu gibi também falam
parecido. “É farta di inducação sê isganado!”(sic) comenta o pai de Chico, “Comê
ligero, sem mastigá, faiz mar pra saúde!”(sic) diz sua mãe. Essa questão já foi alvo
de controvérsias. Maurício de Sousa, demonstrando sua visão sobre as pessoas que
vivem em zonas rurais, em entrevista para a página Banda Desenhada (2007),
explica que “a polêmica foi durante a ditadura e queriam proibir, forçar o uso do
Português culto. E é ridículo porque há 25 milhões de pessoas que falam daquela
forma no Brasil.”
Os estereótipos em Chico Bento, porém, não ficam somente na linguagem. A
vestimenta das personagens é bem peculiar. O uso do chapéu de palha é quase
obrigatório entre os meninos. De resto, as personagens parecem estar sempre
vestidas para alguma festa de São João. Não há acesso a tecnologias. A mãe de
Chico Bento faz comida em um fogão a lenha enquanto que ele toma banho em um
barril.
Em Ronaldinho, os estereótipos se concentram no modo de falar, porém são
bem menos usuais. “Como tu faz isso?”(sic) e “Mas, bah! Passou Perto” são alguns
dos poucos exemplos e estão todos ligados ao modo do povo gaúcho falar. Já o
índio Papa-Capim tem como característica forte, a vestimenta. Ele veste apenas um
pedaço de pano, enquanto que Jurema usa somente penas. Papa ainda anda
sempre com um arco em mãos. Não há diálogos nas histórias do indiozinho no
corpus analisado.
A Maurício de Sousa Editora é uma empresa que procura passar uma
imagem de politicamente correta. Em entrevista para a página Multirio, Maurício
comenta:
Alguns temas são tratados de forma velada, às vezes, na forma de
fábulas, para que a revista não se torne pesada, carregada de cores fortes
de realismo. Esta não é a proposta de nossas revistas. Mas não podemos
deixar de falar, nem que seja de maneira indireta, dos preconceitos (...).
Para tanto cria personagens tentando incluir o máximo possível os diferentes
tipos de pessoas que existem. Exemplos disso são Luca, que necessita cadeira de
rodas, Dorinha, cega, e Humberto, mudo. Ainda para o site Multirio, Maurício falou
41
sobre esses personagens: “Justamente por entender que se pode educar por meio
das histórias em quadrinhos, resolvi criar personagens portadores de deficiência
para exercitar a inclusão no meio dos nossos personagens.” E continua: “Eles serão
abordados e tratados como qualquer outro personagem. Não queremos estigmatizálos.”
Ainda quanto a estereótipo, o que parece ficar mais marcado nos quadrinhos
Disney é o do capitalista. O da sociedade burguesa.
42
6 TEMPO É DINHEIRO, E NÃO É NECESSÁRIO TRABALHAR
6.1
Aquilo que a tudo compra
Existe, nas personagens Disney, uma fixação pelo ouro. E este ouro compra
tudo. Dorfman e Mattelart (1971, p. 80) afirmam que
O dinheiro é o fim último a que tendem os personagens porque
concentra em si todas as qualidades do mundo. Para começar, que é óbvio,
sua capacidade de aquisição de tudo. Estão incluídos neste tudo a
segurança, o amparo, o repouso (as férias e o lazer), a possibilidade de
viajar, o prestígio, o carinho dos demais, o poder autoritário de mando, o
direito de satisfazer-se com uma mulher e o entretenimento (em vista de
que a vida é tão aborrecida). A única maneira de alcançar estas coisas é
através do ouro, que passa então a simbolizar todas as bondades do
universo, porque são adquiríveis.
Nas revistas Tio Patinhas n° 507 e Pato Donald n° 2351, mais da metade das
histórias tem como motivação o ouro, o dinheiro. Tio Patinhas é, obviamente, o
exemplo mais forte desta gana pela conquista financeira. Mesmo já tendo
acumulado muito dinheiro, ele tem como única motivação de vida conseguir mais e
mais ouro. Na história O Ouro Branco de Cervino o pato fica doente. O médico,
então, explica que a enfermidade “é uma crise de avidez por dinheiro! Doença muito
comum entre os milionários! Aparece quando há excessiva avidez!”
Tio Patinhas praticamente não tem limites para sua voracidade pela riqueza.
Na mesma história em que fica doente, ele, Pato Donald e os sobrinhos viajam para
a Suíça. Lá, Tio Patinhas descobre que pode ganhar dinheiro construindo uma
fábrica para fazer queijo. Ele precisa comprar um terreno, porém o único local
possível já está vendido para a construção de um hotel. Tio Patinhas, então, precisa
se contentar com um terreno de difícil acesso. Ele, porém, não se satisfaz em ter
perdido o melhor terreno e faz com que toda a tubulação de sua fábrica tenha que
passar por dentro do hotel. Pato Donald comenta: “Devia se envergonhar, Tio
Patinhas! Existem outros meios e o senhor sabe disso!”. Patinhas responde: “Você
não entende nada de negócios, Donald! É muito sentimental! Siga meu exemplo!”
(sic). Ao ver o resultado das artimanhas do seu tio, Donald diz: “Para obter uma
vantagem, o Tio Patinhas faz qualquer coisa... até poluir a paisagem!”
43
As histórias da Turma da Mônica praticamente não fazem referências ao
dinheiro. E quando o fazem é somente pela por necessidade de adquirir algum bem
importante para o desenvolvimento da narrativa. No corpus analisado em somente
uma história é citado o dinheiro. Em O Filho do Rolo, a personagem compra alguns
gibis para presentear uma criança e “pensa”: “Ai, lá se foram os meus trocados de
fim de semana!”. Não há, portanto, uma dependência do dinheiro.
As personagens da Turma da Mônica têm outros objetivos, outros fins que
desejam alcançar, em suas histórias. Ronaldinho Gaúcho está sempre procurando
jogar futebol tranqüilamente ou tentando quebrar seu recorde de embaixadinhas.
Cascão quer achar alguém para poder brincar ou somente escapar de qualquer gota
de água. Cebolinha faz de tudo para fugir do Louco ou do Dudu. Floquinho precisa
cuidar de Maria Cebolinha. Chico Bento quer reconquistar o amor de Rosinha. Dona
Marrocas move quase toda a comunidade para fazer com que Chico Bento consiga
realizar uma boa prova. Magali precisa cuidar de seu gato doente. Dona Morte é
chamada para cuidar das crianças do Penadinho. Mônica tem que cuidar para que
seu cão não morda tudo o que aparece voando.
Além dos exemplos do corpus, existem ainda os objetivos mais clássicos das
personagens da Turma da Mônica. São os fins característicos de cada personagem.
Cebolinha quer conquistar o posto de dono da rua que pertence à Mônica. Essa
precisa se livrar das investidas do Cebolinha. Cascão foge da água. Magali quer
comer o máximo que puder. Chico Bento e suas investidas contra a goiabeira de
Nhô Lau. Todos eles podem ser alcançados dentro do espaço em que vivem as
personagens. Já o fim clássico das personagens Disney, a fixação pelo dinheiro e
pelo ouro, é, novamente, garantida pelo retorno à natureza.
6.2
Sombra e água fresca
As relíquias encontradas por Tio Patinhas e seus comparsas em outras terras,
nunca são produzidas pelos nativos, mas sim, sempre por antepassados distantes
destes. “Nunca há, em todo caso, uma referência – e como poderia havê-la, já que
ocorreu em tempos remotos – à elaboração, ainda que artesanal, desses objetos.”
observam Dorfman e Mattelart (1971, p. 74). O processo produtivo é podado dos
quadrinhos Disney.
44
A extração das riquezas da terra também é facilitada. Dorfman e Mattelart
(1971, p. 75) comentam: “A natureza já se encarregou de elaborar o material para
que o ser humano o recolha, como uma etapa primitiva, sem necessidade de
instrumentos de qualquer espécie.”
A grande produtora de riquezas é a natureza. “Em Patolândia ou fora, é
sempre o natural o elemento mediador entre o homem e a riqueza” relatam Dorfman
e Mattelart (1971, p. 77). E continuam:
Ninguém trabalha para produzir no mundo de Disney. Todos
compram, todos vendem, todos consomem, mas nenhum destes produtos
custou, ao aparecer, esforço algum. A grande força de trabalho é a
natureza, que produz objetos humanos e sociais como si fossem naturais.
O trabalho, quando representado no universo Disney, é causa de frustrações.
Pato Donald é a personagem que mais sofre procurando seu ganha-pão. “Donald
tenta se firmar em toda sorte de carreira profissional – de carteiro a fazedor de
chuva, de descascador de batatas a gerente de hotel” comenta o editor da revista
Obras Completas de Carl Barks vol. 1 (2004, p. 146). E continua:
O personagem, retrato do perdedor numa comunidade em que o
objetivo maior é o bolso cheio de dólares, busca a ascensão e a aceitação
sociais por meio do trabalho. (...) E, quando parece ter finalmente alcançado
o sucesso, descobre que fracassou de forma retumbante.
Mesmo sendo frustrado em todas as tentativas, cada vez que procura algum
emprego, Donald encontra. No universo Disney, sempre há emprego para quem
procura. “Para Carl Barks, o desemprego passa longe da economia patopolense. Há
vagas em profusão na cidade fundada por Cronélius Patus e só não trabalha quem
não quer – ou não precisa” relata o editor da revista Obras Completas de Carl Barks
vol. 3 (2004, p. 124).
Os quadrinhos da Turma da Mônica possuem uma relação mais realista com
o trabalho e a produção de bens. Não é um assunto recorrente, porém não faltam
referencias a ele. Todos os pais das personagens infantis trabalham para sustentar o
lar. É através do esforço que se consegue o dinheiro para suprir as necessidades.
No gibi Cascão n° 10, o personagem Zecão abre seu próprio negócio. Ele vira um
puxador de riquixá, tradicionais táxis da China.
45
A revista que possui uma ligação mais forte com o trabalho é Chico Bento. É
comum aparecerem personagens no batente. O exemplo mais freqüente é o de
alguém utilizando uma enxada. Revistas mais antigas traziam Chico Bento
trabalhando. Essa situação, possivelmente por questões da adoção do politicamente
correto, parece ter sido excluída das novas histórias.
46
7 CONCLUSÃO
Coupérie (1970, apud Anselmo, 1975, p. 87) afirma que
a relação das histórias em quadrinhos com a realidade é bem
complexa. No todo, a história em quadrinhos é verdadeiramente uma
testemunha do seu tempo e tudo pode ser encontrado nela, mas os graus
de transposição são muito desiguais. O que importa é “compreender que a
história em quadrinhos não é um fenômeno gratuito, completamente isolado
de toda a tradição. Pelo contrário. Na medida em que é uma arte chamada
“popular”, ela pode receber muito mais tradições e influencias que as artes
“oficiais”, que estão mais ou menos esclarecidas ou fechadas em si
mesmas.
Tanto os quadrinhos Disney quanto os da Turma da Mônica parecem
representar o tipo de ideologia das sociedades onde seus criadores e produtores se
encontram. Maurício de Sousa afirma, em quase todas suas entrevistas, que suas
personagens e histórias são inspiradas em pessoas e fatos de sua vida. Grande
parte de suas personagens foi criada com características de parentes, amigos e
conhecidos seus. Sousa relata que quando escreve roteiros, deixa transparecer
muito do que ele pensa. Em entrevista para o site Universo HQ, ele (2003) relata
que: “O Horácio, o Bidu e o Jotalhão possuem muito da minha alma, da minha
filosofia de vida e das minhas idéias. Neles exponho todas as minhas
preocupações.”
O universo Disney, por sua vez, possui questões mais complicadas. É
perceptível a influência de Walt na obra da empresa. Seus problemas de
relacionamento com seus pais afetaram quase todos os filmes e personagens que
ele teve influência. Eliot (1996, p. 172) afirma que “ficava cada vez mais claro a um
crescente número de críticos que a insistência de Disney de criar em seus filmes um
mundo perfeito para as crianças refletia, segundo suspeitavam, nada mais que sua
própria infância tenebrosa.” Os porém são sua ausência, em conseqüência de sua
morte, e a criação dos quadrinhos que é feita em separado em diversos países.
Artistas Disney, em entrevistas, demonstram ter desconhecimento de várias
histórias produzidas por seus colegas em outros países. Alguns personagens,
criados para “viverem” fora dos Estados Unidos, sofrem preconceitos de alguns
artistas. Don Rosa (2003) sobre o Zé Carioca de Renato Canini, em entrevista para
o Universo HQ, afirma que
47
a idéia que tenho feito nos últimos 40 anos é que ele é um
desempregado, sempre curtindo a vida. (...)Mas o que me dizem é que ele é
um vagabundo, um vagabundo adorável. Assim, não consigo formar uma
opinião. Por isso, tive de criar uma versão própria do Zé Carioca que todos
os americanos conhecem, o do desenho de 1945. (...)Quero que vejam,
também, que ele é apenas diferente do que já conhecem, com certeza uma
"pessoa" de boa índole.11
As histórias do Zé Carioca feitas por Canini são um bom exemplo das
diferenças que existem entre os diversos artistas da Disney. Ele abrasileirou a
personagem. Tirou dele as roupas de países frios e o vestiu com trajes mais leves.
Também ambientou melhor Zé Carioca dentro da favela em que morava.
Todas essas representações da sociedade são, porém, basicamente
estratégias para atingir o público alvo das histórias em quadrinhos de Disney e
Turma da Mônica. A estratégia de produzir as histórias Disney em diversos países é
meramente uma forma de se aproximar com seu público. Walt era um artista de
pouco prestígio, porém seu senso de organização e do processo produtivo de seus
filmes era reconhecido. Sobre ele, Arthur Babbitt (apud Eliot, 1996, p. 120), um dos
mais importantes artistas de Disney, comenta:
A verdade era que ele não tinha nenhum conhecimento da arte de
desenhar, de música, de literatura; não sabia nada, realmente, mas era um
grande organizador. Com freqüência, não sabia o que procurava, mas era
capaz de identificar qualquer coisa errada em uma obra.
Maurício de Sousa deixa claro em suas entrevistas a influência da questão
comercial em suas histórias. Ele procura adaptar elas para o que o seu público
exige. Mesmo a questão do politicamente correto parece se resumir apenas àquilo
que seu leitor necessita. Em entrevista para o site BOL, Sousa (2007) confirma que
O Cebolinha pintava muros, hoje não dá mais. O Nhô Lau dava tiros
de sal, também não pode mais. Assim como soltar balão. Então há uma
alteração, uma mudança. Eu estou relançando os meus primeiros
quadrinhos e lá existem estas passagens "proibidas". Mas continua lá
porque é um trabalho quase jornalístico. Sempre digo para o nosso pessoal,
tenho uma grande equipe hoje, que a Turma da Mônica não deve levantar
uma bandeira e sim pegar a que está passando na hora. Não devemos
mudar os hábitos e sim ir fazendo como caminha a humanidade.
Em entrevistas, Maurício parece ter orgulho de demonstrar suas conquistas
de mercado e suas estratégias para tanto. Até a criação de algumas personagens
11
O Anexo 4 apresenta uma comparação entre o estilo de Don Rosa e o de Canini no desenho de Zé Carioca.
48
tem razões comerciais. Sobre Ronaldinho Gaúcho, ele comenta, para o site Side
Effects, que
é o personagem universal, hoje. Já serão lançadas revistas com o
Ronaldinho na Espanha e na Itália. Nos países em que estamos presentes
com a turma da Mônica, irá se ganhar o reforço do Ronaldinho. Nos novos
mercados, ele abrirá caminho para o resto da turma.
Maurício de Sousa é reconhecido por seu trabalho para criar um grande
estúdio e aplicar no Brasil as técnicas de produção dos grandes estúdios de HQs.
Para Cirne (1971, p. 78) a Turma da Mônica é importante para os quadrinhos
nacionais por sua
riqueza informacional proporcionada por seus modelos criativos,
bem como a sua luta por uma lógica de consumo (a partir dos elementos
condicionalizantes da estória importada, e procurando superá-los através de
uma criticidade ainda pouco definida) e pela profissionalização do
desenhista nacional (...).
Fica evidente que o processo de criação de histórias em quadrinhos que
procuram atingir um grande número de leitores sofre influências tanto das ideologias
de quem o produz como das exigências do mercado. Os quadrinhos Disney e Turma
da Mônica, apesar de refletirem as ideologias e vivências de seus criadores, tem
como fim último o comércio, necessitando se adaptar, em determinadas questões,
às exigências do mercado.
Achamos importante ainda salientar as dificuldades na pesquisa com histórias
em quadrinhos. Grande parte do material publicado no Brasil é dos anos 1970.
Houve um grande hiato de publicações e depois da metade da década de 1990
começaram a surgir novas obras. Quase todas as pesquisas publicadas sobre
quadrinhos se referem aos produzidos no ocidente. Muitas das questões levantadas
quanto aos problemas de narrativa e comercialização dos gibis já foram superadas
há muitos anos pelos HQs japoneses. Mesmo assim, praticamente não existem
obras sobre essas histórias em quadrinhos.
Outro problema encontrado são as traduções realizadas nos quadrinhos
Disney. Dorfman e Mattelart realizaram sua obra Para Ler o Pato Donald em cima de
gibis traduzidos. No blog Pensadores Brasileiros, existe uma crítica ao livro12, porém
12
http://pensadoresbrasileiros.blogspot.com/2007/10/para-ler-o-pato-donald-uma-das-obras.html
49
ela se baseia em comparações entre as histórias demonstradas na obra chilena e as
mesmas publicadas no Brasil. Muitos dos gibis enviados para fora dos Estados
Unidos eram apenas os desenhos em preto e branco. Cabia às editoras locais,
inventar alguma história baseada nos desenhos. E mesmo as HQs que vinham com
o texto não são uma segurança de que passem exatamente o que havia escrito no
original. Junior (2004, p. 63) relata que, quando o dramaturgo Nelson Rodrigues era
tradutor de histórias em quadrinhos para O Globo Juvenil: “o inglês, no entanto,
ainda era uma língua desconhecida para ele, que “traduzia” os balões por conta
própria, muitas vezes inventando histórias a partir do que os desenhos lhe
sugeriam.”
Por fim, gostaríamos de registrar que nossa pesquisa foi realizada seguindo
os assuntos propostos por Dorfman e Mattelart e que, durante o estudo, surgiram
outros tópicos que poderão ser abordados em futuras pesquisas. Entre eles a
predominância do ponto de exclamação nos textos das histórias da Disney e da
Turma da Mônica, a metalinguagem usada nesses gibis e o narcisismo de Walt e
Maurício de Sousa. O último assunto fica evidente ao sabermos que o conglomerado
Walt Disney começou com a associação de dois irmãos, que criaram a Disney
Brothers. Por insistência de Walt, a empresa mudou o nome para o atual. Já na
Turma da Mônica é freqüente a aparição de Maurício de Sousa nas histórias em
quadrinhos. Em entrevista para o site Universo HQ, ele desconversa comentando
que “nunca fui eu que quis isso. Foram sempre idéias dos artistas, que fui deixando
rolar e se tornaram uma vertente, na minha opinião, bastante engraçada.”
50
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ANSELMO, Zilda Augusta. Histórias em Quadrinhos. Petrópolis, Vozes, 1975.
CANINI, Renato. [Entrevista disponibilizada em 2001, a Internet]. Disponível em:
<http://www.universohq.com/quadrinhos/entrevista_cannini.cfm>. Acesso em: 25
nov. 2007.
CASCÃO. São Paulo: Panini/Mauricio de Sousa, n. 10, outubro 2007.
CEBOLINHA. São Paulo: Panini/Mauricio de Sousa, n. 10, outubro 2007.
CHICO BENTO. São Paulo: Panini/Mauricio de Sousa, n. 10, outubro 2007.
CHRISTENSEN, William e SEIFERT, Mark. Anos Terríveis. Wizard, Rio de Janeiro,
7 fev. 1997, pág. 38-43
CIRNE, Moacy. A Linguagem dos Quadrinhos: O Universo Estrutural de Ziraldo
e Maurício de Sousa. Petrópolis, Vozes, 1971.
CIRNE, Moacy. Para Ler os Quadrinhos: da narrativa cinematográfica à
narrativa quadrinizada. Petrópolis, Vozes, 1972.
DORFMAN, Ariel e MATTELART, Armand. Para Ler o Pato Donald: Comunicação
de Massa e Colonialismo. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1980.
ECO, Umberto. Apocalípticos e integrados. 2 ed. São Paulo: Perspectiva, 1971
ELIOT, Marc. Walt Disney: o príncipe sombrio de Hollywood. São Paulo: Marco
Zero, 1995.
FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Aurélio Século XXI: o dicionário da
língua portuguesa. 3 edição. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,1999.
FILHO, Luiz Aristeu dos Santos. Observando relógios moles que sonham à meia
noite: propostas para a observação das variações nos conteúdos ideológicos
das histórias em quadrinhos de super-heróis. Santa Maria, 2001. Monografia
(graduação em Ciências Sociais) – Universidade Federal de Santa Maria, Centro de
Ciências Sociais e Humanas.
JUNIOR, Gonçalo. A Guerra dos Gibis. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.
51
MAGALI. São Paulo: Panini/Mauricio de Sousa, n. 10, outubro 2007.
MCCLOUD, Scott. Desvendando os quadrinhos. São Paulo: Makron Books, 1995.
MCCLOUD, Scott. Reinventando os quadrinhos. São Paulo: Makron Books, 2006.
MESTRES DISNEY. As divertidas histórias de Renato Canini. São Paulo: Abril
n.5, 2005
MÔNICA. São Paulo: Panini/Mauricio de Sousa, n. 10, outubro 2007.
MOYA, Álvaro de. História da História em Quadrinhos. São Paulo: Brasiliense,
1996.
MOYA, Álvaro de. Shazam!. São Paulo: Perspectiva, 1977.
O MELHOR DA DISNEY – AS OBRAS COMPLETAS DE CARL BARKS. São Paulo:
Abril, v. 1, abril 2004.
O MELHOR DA DISNEY – AS OBRAS COMPLETAS DE CARL BARKS. São Paulo:
Maio, v. 3, abril 2004.
ABBQ
PATO DONALD. São Paulo: Abril, n. 2351, outubro 2007.
PATO DONALD 70 ANOS. São Paulo: Abril, outubro 2004.
PERSONAGENS. Portal da Turma da Mônica. Disponível em :
<http://www.monica.com.br/personag/welcome.htm>. Acesso em: 27 nov. 2007.
QUADRINHOS. Wikipedia. Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Quadrinhos>.
Acesso em: 24 jun. 2007.
RONALDINHO GAÚCHO. São Paulo: Panini/Mauricio de Sousa, n. 10, outubro
2007.
ROSA, Don. [Entrevista disponibilizada em 2003, a Internet]. Disponível em:
<http://www.universohq.com.br/quadrinhos/2004/entrevista_don_rosa.cfm>. Acesso
em: 6 dez. 2007.
SAMPAIO, Rafael. Propaganda da A a Z. Rio de Janeiro: Campus, 2003.
SANTOS, Roberto Elísio dos. Quadrinhos Disney no Brasil. In: Núcleo de
Pesquisas em Histórias em Quadrinhos. São Paulo: USP, 2003. Disponível em
<http://www.eca.usp.br/agaque/nucleousp/materias_roberto_quadrinhosdisneybrasil.
asp>. Acesso em: 23 nov. 2007
SOUSA, Mauricio de. A Turma da Mônica não tinha mulheres. Portal da Turma da
Mônica, 22 abril 1996. Disponível em:
52
<http://www.monica.com.br/mauricio/cronicas/cron006.htm>. Acesso em: 29 nov.
2007.
SOUSA, Mauricio de. [Entrevista disponibilizada em 7 de novembro de 2007, a
Internet]. Disponível em:
<http://noticias.bol.uol.com.br/entretenimento/2007/11/07/ult4326u461.jhtm>. Acesso
em: 15 nov. 2007.
SOUSA, Mauricio de. [Entrevista, a Internet]. Disponível em:
<http://bellatryx.blogs.ie/mauricio-de-souza/>. Acesso em: 25 nov. 2007.
SOUSA, Mauricio de. [Entrevista disponibilizada em 8 de novembro de 2007, a
Internet]. Disponível em: <http://criancas.uol.com.br/novidades/ult2314u853.jhtm>.
Acesso em: 25 nov. 2007.
SOUSA, Mauricio de. [Entrevista disponibilizada em 20 de fevereiro de 2007, a
Internet]. Disponível em:
<http://www.bdesenhada.com/modules/smartsection/item.php?itemid=41>. Acesso
em: 27 nov. 2007.
SOUSA, Mauricio de. [Entrevista, a Internet]. Disponível em:
<http://www.multirio.rj.gov.br/riomidia/por_entrevista_home_topo.asp?id_entrevista=
7>. Acesso em: 4 dez. 2007.
SOUSA, Mauricio de. [Entrevista disponibilizada em 19 de outubro de 2003, a
Internet]. Disponível em:
<http://www.universohq.com/quadrinhos/2003/entrevista_mauricio_sousa.cfm>.
Acesso em: 5 dez. 2007.
SOUSA, Mauricio de. [Entrevista 2003, a Internet]. Disponível em:
<http://becodasimagens.blogspot.com/2003/10/entrevista-com-maurcio-desousa.html>. Acesso em: 4 dez. 2007.
TIO PATINHAS. São Paulo: Abril, n. 507, outubro 2007.
TURMA DA MÔNICA. Wikipedia. Disponível em:
<http://pt.wikipedia.org/wiki/Turma_da_M%C3%B4nica>. Acesso em: 31 out. 2007.
53
ANEXO 1 – Assinatura Disney
Assinatura dos Estúdios Disney:
Assinatura real de Walt Disney
Fonte: Walt Disney: o príncipe sombrio de Hollywood, de Marc Eliot.
54
ANEXO 2 – Caramujo Canini
55
ANEXO 3 – Mickey Mouse, a Walt Disney Comic, by Ub Iwerks
56
ANEXO 4 – Estilos de desenho em Disney
Pato Donald:
Al Taliaferro
Stefano Intini
Carl Barks
57
Zé Carioca:
Canini
Don Rosa
58
ANEXO 5 – Árvore Genealógica dos Patos

Documentos relacionados