Um voo na vida de um piloto expatriado São apenas 4 horas da

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Um voo na vida de um piloto expatriado São apenas 4 horas da
Um voo na vida de um piloto expatriado
São apenas 4 horas da tarde, mas quando o telefone me desperta tenho a sensação de estar sendo
acordado no meio da madrugada, afinal a diferença de fuso horário com o Brasil é de mais 12 horas.
Tinha chegado no dia anterior, vindo da terrinha, e para variar não consegui dormir direito nessa
primeira noite. Como sempre também, nesses últimos anos, levo alguns momentos para me localizar e
saber onde estou quando acordo. São inúmeras cidades e hotéis por onde tenho pernoitado ao longo da
minha vida e ultimamente tenho tido dificuldade em reconhecer precisamente, ao primeiro momento,
em que cidade eu me encontro. A voz metálica gravada no telefone é em inglês -this is your 4 PM wake
up call- o que, a princípio, não me fornece nenhuma pista.
Lembranças do meu início de carreira afloram a minha memória com recordações de colegas mais
antigos que me relatavam essas mesmas sensações após tantos anos na estrada. Reluto em reconhecer
que agora eu sou uma “velha águia”, com os mesmos comportamentos e cacoetes daqueles saudosos
colegas.
Mas como é possível ter passado tão rápido! Tudo parece ter acontecido ontem, posso ainda me ver
novinho, orgulhoso de ostentar as duas faixas de copiloto, rever pessoas e lugares, sentir odores e
sensações de cockpits outroramente frequentados com tanta nitidez que até parece um filme em alta
definição, mas o mais impressionante é que já se passaram mais de 35 anos!
Enquanto divago por mais uns poucos segundos toca o meu despertador, pois sempre utilizo um
segundo método para despertar. Hábito antigo, que já me salvou em várias oportunidades de chegar
atrasado. Não existe sensação pior do que ser acordado por outro colega da tripulação informando que
-a condução já chegou e agora só falta você.
Agora completamente despertado e também plenamente orientado, me levanto e começo os
preparativos para mais um voo. Constato que somos criaturas de hábitos, pois percebo que tenho a
mesma rotina e sequência de me arrumar nessa uma hora antes da condução e não há a necessidade
alguma de check list. Faço a barba, tomo banho, visto o uniforme e prometo a mim mesmo que vou
emagrecer para o cinto poder fechar com mais facilidade da próxima vez, mas o espelho não mente e
parece que a promessa nunca é cumprida. A mala já se encontra quase pronta faltando apenas os
últimos itens, nécessaire, pijama, pera aí, falei pijama. Será que algum tripulante ainda dorme de pijama
nos dias atuais? Eu uso camiseta e cueca bem folgada, mas não deixa a minha mulher saber disso não.
Dez minutos antes do horário da condução já estou no lobby do hotel pagando as contas. A
recepcionista me indaga gentilmente se houve algum consumo do frigobar. Informo que não, mas ela
responde que consta o consumo de uma cerveja e uma barra de chocolate. Ficamos naquele impasse,
eu dizendo que não houve consumo e ela me dizendo que houve. E eu ali, na frente dela, constrangido e
com outro hospede atrás de mim, na fila do check out, já prestando atenção ao nosso diálogo. Fico
pensando na incongruência da situação toda, uniformizado de comandante, com 4 faixas douradas
reluzentes aos punhos, lembrando que tenho a responsabilidade sobre um avião que vale 180 milhões
de dólares, 300 vidas, e estou sendo cobrado de uma despesa de 9 dólares que eu absolutamente não
fiz. Do nada surge o gerente informando que houve um erro e apresentando milhões de desculpas. Fico
pensando se realmente houve mesmo um erro ou se o gerente acha que eu omiti a despesa e engoliu o
prejuízo. Será que há hospede ou tripulante que deixa de pagar alguma despesa de frigobar no check
out? Tempos estranhos esses em que vivemos.
Pego a condução em direção ao prédio da empresa para me apresentar e fazer o briefing do voo.
Diferentemente de outras empresas o prédio de operações funciona fora da área do aeroporto, o que
fará a necessidade de se pegar uma segunda condução para nos dirigirmos ao avião. Na condução
encontro outros pilotos estrangeiros escalados para diversos voos e começo um bate papo animado
com um comandante da Nova Zelândia. Uma pena que, devido ao seu acento carregado, não consigo
entender cem por cento do que ele estava falando, apesar do meu ICAO 6 e do pleno domínio da língua,
mas são mesmo muito animados esse pessoal da Nova Zelândia e muito bons de pernoite também, se é
que vocês entendem do que é que eu estou falando.
Nossa apresentação é feita 1 hora e 45 minutos antes do voo e é realizada através de computadores a
entrada da sala de briefing. Depois disso passamos na “Jeppesen Library” onde o comandante e o
copiloto pegam seus respectivos manuais, apesar da maioria dos aviões possuírem EFBs. A empresa
tenta se adaptar ao paperless cockpit, mas já estou a mais de 6 anos por aqui e não vejo sucesso nesse
empreendimento, com enorme resistência pelos pilotos locais.
A sala de briefing é composta de mais de 20 baias e procuro aquela designada para o meu voo onde
encontro o copiloto já entretido com a papelada. O hábito local é de chamar os copilotos pelo pronome
de tratamento Mr. (mister), ou seja Mr. Fulano ou Mr. Sicrano, muito estranho e formal para nós
brasileiros. Imaginem vocês o seguinte diálogo no Brasil – “Sr. Almeida flaps 5, por favor” “Cmte, muito
prazer, o meu nome é Sr. Moraes” - definitivamente as diferenças culturais são muitas por aqui. Nosso
voo hoje é de Seoul para Los Angeles e a tripulação é composta por 2 comandantes e 1 copiloto.
Diferentemente do praticado no Brasil já sai na escala publicada qual comandante será o piloto em
comando em cada trecho. Normalmente um faz a ida e o outro faz a volta e sem possibilidade de troca,
a não ser em situações bastante especiais. No Brasil, na empresa em que voava antes, o mais antigo era
sempre o master do voo ficando a exclusivo critério dele a designação de quem faria as etapas. Voar no
exterior é ao mesmo tempo diferente e ao mesmo tempo muito igual à maneira em que voávamos na
nossa terra.
Nesse trecho inicial ICN-LAX eu sou o comandante designado como PIC (Pilot in Command), assim sendo
é minha responsabilidade conduzir tanto o briefing técnico com os pilotos como o briefing final em
conjunto com a tripulação de cabine. A papelada do voo é composta por três sets de planos de voo
computadorizados, dois para cada piloto no cockpit e um que deverá ser assinado e deixado em
operações como comprovação do aceite do voo por parte do PIC dos termos apresentados pelo DOV.
Consta também a análise meteorológica, com as cartas de tempo significativo, cartas de prognóstico,
ventos em altitude, fotos de satélites, TAFs e METARs das localidades operadas, cópia do plano de voo
ATC, fueling order, carta ETOPs, e os NOTAMs. O briefing técnico dura em torno de 20 a 30 minutos e o
trabalho maior é ler todos os NOTAMs do destino, alternado, REFILE Airport, REFILE Alternate, e dos 4
ou 5 aeroportos que fazem parte dos alternados ETOPS. Às vezes é tanta informação que deve ser
filtrada de um calhamaço de papel que se leva bastante tempo para uma análise criteriosa de cada
localidade.
Logo em seguida aparece o outro comandante, nesse voo um piloto local. Fazemos as apresentações de
praxe e após a checagem individual da papelada por cada piloto o PIC faz uma revisão final em conjunto
com os outros pilotos e decide se o combustível designado pelo DOV é adequado para o voo. Fico
sempre impressionado com o trabalho dos DOVs por aqui, são extremamente atuantes e sempre
adicionam as quantidades extras certas quando se faz necessário. Raramente tive que pedir combustível
adicional, mas quando foi necessário nunca fui questionado. A política de combustível da empresa é
extremamente generosa.
Com a concordância de todos, eu, o PIC, assino o plano de voo, tornando o planejamento oficial e legal,
então ao término de tudo lemos um check list atestando formalmente o cumprimento da todas as
etapas do briefing. Há inclusive itens na qual devemos apresentar fisicamente nossos passaportes e
licenças de voo de modo a não ter surpresas desagradáveis de esquecimento de documentos
importantes durante a jornada.
Terminada essa etapa nos dirigimos para o briefing com os comissários que dura em media uns 10
minutos. Faço a apresentação dos pilotos, me identifico como brasileiro e ouço, invariavelmente, as
expressões de surpresas, “Háaa, Brazil!” “Oh, Brazil!” Fico pensando no por que desse comportamento
e concluo que a imagem que passamos é a de um país exótico, diferente e muito longe. Continuo
discorrendo sobre as condições meteorológicas, itens de segurança, rota, tempo de voo, situações de
emergência e outros itens que fazem parte do padrão da empresa.
Com tudo pronto, a tripulação, agora em conjunto, embarca na condução e segue em direção ao
aeroporto. Chegamos ao avião aproximadamente 1 hora antes da decolagem e iniciamos nossas rotinas
individuais. Verifico o livro de bordo e não deixo de me surpreender com a ausência de panes, livro
praticamente em branco, limpinho, limpinho. Muito raramente, mais muito raramente mesmo, temos
qualquer item MEL. Acho que nesse tempo todo em que estou por aqui, conto no máximo umas 3 ou 4
quatro vezes em que tive de sair com um item MEL pendente, média de menos 1 item por ano. Muita
tranquilidade com respeito à manutenção.
Pego o colete e inicio a inspeção externa que, de acordo com os padrões da empresa, é sempre feita
pelo PIC. Hoje estamos voando um B777 da versão 300ER, e com menos de seis meses após a entrega o
avião está um brinco. Sempre me surpreendo, durante as inspeções externas, com o tamanho da
máquina e me pergunto se sou eu mesmo o comandante dessa preciosidade, parecendo inimaginável
que eu tenha capacidade de conduzi-la. Nessas ocasiões, invariavelmente recordo do meu início de
carreira, fazendo essas mesmas inspeções externas no “Cessninha” 150 e tendo os mesmos
pensamentos.
Já de volta ao cockpit inicio a preparação do EFB com os dados de performance de decolagem, seleção
de cartas e da informação ATIS, fazendo em seguida o meu scan flow dos painéis e logo após verifico se
os dados inseridos no FMC, pelo copiloto, estão de acordo com o plano de voo computadorizado e a
carta de subida, SID. Raramente encontro algum erro, os copilotos locais são extremamente
padronizados e o que falta na experiência de voo é suprida em grande parte pelos conhecimentos
teóricos.
O copiloto de hoje é um ex-militar da força aérea local, piloto de caça, com 2000 horas de voo de F16.
Fico impressionado com esse back ground de piloto de caça e acho que o sujeito é um tremendo
astronauta, e tem com certeza “the right stuff”, como dizia Tom Wolfe. Eu sempre quis ter voado na
aviação de caça, mas um pequeno problema de vista me privou desse objetivo, e talvez por isso,
imagino ou idealizo que pilotos que passaram por esta experiência sejam alados. No entanto, o
comportamento dele é acanhado e pouco a vontade no avião. Diz ser oriundo do B737 e com instrução
recém-terminada no B777. Tento ser simpático e ofereço a etapa para que ele seja PF. No entanto ele
declina, informando só ter ido a LAX uma única vez. Respondo que é muito fácil a operação nesse
aeroporto e que pista é pista em qualquer lugar do mundo, mas respeito sua decisão de não querer
operar nessa etapa.
Ao término da preparação do cockpit por ambos os pilotos, inicio o briefing de decolagem. Por falar em
briefing, nunca vi uma empresa para gostar tanto de briefings. São muitos, longos e para diversas
situações, e também com check list próprios como follow up. O voo também é muito falado, como
estivéssemos irradiando uma partida de futebol. Cada ação no cockpit é precedida por um comentário e
um ciente por parte do outro piloto. Eu, que sou originário do conceito de “dark and quiet cockpit” levei
um certo tempo até me acostumar. Hoje já está no sangue.
O tempo de voo está estimado em 10 horas e 45 minutos, o que daria aproximadamente 3 horas e 35
minutos de trabalho para cada piloto. O segundo comandante leva a pior nessa divisão, tendo que
trabalhar por 7 horas e 10 minutos sem interrupção e além de ter o descanso partido. A combinação é
que ele venha para o cockpit após as primeiras 2 horas de voo e descanse na última 1 hora e 35 minutos.
O engraçado é que eles não decolam no jump seat, normalmente o costume da empresa é que só a duty
crew permanece na cabine. Assim sendo somos privados do safety pilot durante pousos e decolagens.
Existe sempre um assento bloqueado na primeira classe para o comandante que está no seu período de
descanso, ou ele pode também optar de ir para o bunker.
Recebemos o weight and balance via ACARS, invariavelmente cerca de 20 minutos antes do horário de
partida, e fico mais uma vez impressionado como eles fazem isto. Dificilmente um voo sai atrasado por
falha interna da empresa. Conto nos dedos de uma única mão às vezes em que saí atrasado por
problemas internos. Cinco atrasos em seis anos é realmente exemplar e não posso deixar de comparar
com a minha experiência anterior de trabalho, no qual a maioria dos voos saiam atrasados e se não
fosse pelo empenho e atuação direta do comandante em cobrar dos diversos setores as coisas
complicavam ainda mais. No momento que a porta da cabine é fechada, precisamente 35 minutos antes
do embarque, ficamos imunes a qualquer problema relacionados com despacho e passageiros.
Portas fechadas, partida dos motores e procuro lembrar que os 300ER possuem motores GE90-115LB
com a partida e parâmetros diferentes dos PW4090 utilizados nos 200ER, que normalmente voamos
com mais frequência. Cheque de after start completo, rolamento para cabeceira e em menos de 10
minutos já somos o número 1 para decolagem. Impressionante a eficiência desse aeroporto, mesmo
com mais de 30 aeronaves acionando ao mesmo tempo todo mundo decola em menos de 10 minutos.
Benditos asiáticos!
Stabilized....canta o copiloto, aperto o switch de autothrottle e os motores aceleram suavemente para
potencia de decolagem. Mantenho-me ligeiramente a esquerda da faixa central evitando o incomodo
tuc...tuc...tuc...causado pelo balizamento das luzes centrais de pista, usando suaves pressões nos pedais
do rudder. Simultaneamente, com aceleração da aeronave, sinto as batidas do meu coração
aumentarem uma oitava na adrenalina de mais uma decolagem. Passamos pela V1 e inicio a rotação ao
ouvir o copiloto cantar rotation, comando o gear up e suavemente mantenho o símbolo do avião
encaixado nas barras do flight director. Normalmente, dependendo da carga de trabalho, gosto de
pilotar manualmente até após o cruzamento do FL 100 e aceleração para velocidade normal de subida
de 310 KTS.
A subida é tranquila e tenho tempo de observar lá em baixo a cidade que me acolheu nesses últimos
seis anos. Confesso que sempre tive vontade de voar no exterior, em outra empresa, viver outra
realidade e ver como a banda tocava no lado de lá. A intenção original era tirar um licença sem
remuneração e voar por uns 2 anos, retornando para o meu cantinho após essa experiência e me
aposentar na minha empresa original. Mas nunca poderia imaginar perder o emprego e ser obrigado a
trabalhar no exterior pela extrema dificuldade de se arranjar um lugar para voar no meu próprio país.
Incrível como, razões políticas, o fato de ter muito experiência e ainda por ter voado na empresa xxxxx,
considerado por alguns como uma mancha, tenham sido os motivos alegados para as várias negativas
de emprego. Na época tinha 49 anos e mais de 20000 horas de voo (voava desde os 17) e mesmo assim
me foi negado trabalho, mas isso é assunto para outra ocasião e vamos prosseguir com o nosso voo que
ainda temos algumas horas pela frente até o nosso pouso em LAX.
Atingimos o nosso nível inicial de cruzeiro no FL 330 e constato que o 300ER não sobe tão bem quanto o
200ER. A carga de trabalho diminui sensivelmente e fazemos as primeiras anotações no plano de voo e
preparamos também o PA aos passageiros. Aqui, infelizmente, não podemos desviar do speech padrão
estabelecido pela empresa, o que o torna muito artificial e sem graça. “You have ATC” diz o copiloto
transferindo as comunicações e iniciando o PA na língua local, para em seguida ser minha vez de fazer
em inglês sem antes repetir o “you have control and ATC”. As condições em rota no momento estão
excelentes, voo sereno e uma lua bonita lá fora a iluminar o nosso caminho. Depois de um tempo em
silencio o copiloto pede licença para apresentar-se, o que pode parecer estranho, mas é costume deles
por aqui. Faz um breve relato de sua vida, diz que é casado, dois filhos pequenos, três anos de empresa,
mora em tal lugar e como tinha falado anteriormente oriundo da Força Aérea. O inglês dele é até
razoável, com alguma fluência, mas com uma pronuncia por vezes incompreensível. Fico torcendo
sinceramente para que ele faça uma boa fonia na chegada aos Estados Unidos. Indaga as perguntas de
praxe, onde moro, quantos filhos tenho, porque estou voando por aqui, quantas horas faço por mês e
que voos tenho na escala desse mês, em suma o trivial. As perguntas são sempre as mesmas com
pequenas variações de tema e depois de algum tempo já as tenho decoradas. O silencio volta a imperar
nessa noite tranquila e já nos encontramos sobrevoando o Japão. De longe posso distinguir as luzes de
Tóquio e mais a frente aparece Narita, cidadezinha charmosa, que pernoito com frequência há muitos
anos.
Antes de iniciarmos o trecho ETOPs o copiloto solicita as condições meteorológicas dos nossos
alternados. Devido a nossa rota estamos utilizando, no voo de hoje, os aeroportos de Chitose no Japão,
Petropavlovsk na Rússia e Cold Bay e Ketchikan no Alaska. Todas as localidades encontram-se
adequadas, mas Cold Bay, como sempre, está com teto e visibilidade baixa, além do usual vento de
través próximo do limite máximo o que merece um monitoramento especial. O controle Tokyo nos
libera da escuta em VHF e passamos a nos comunicar através do CPDLC, ferramenta que veio a facilitar
sobremaneira as comunicações. Aeronaves sem CPDLC são obrigadas a transmitir suas posições
estimadas utilizando o velho HF, sujeitos as idiossincrasias da propagação das ondas de radio.
Precisamente duas horas de voo e o interfone toca, com o outro comandante informando estar pronto
para iniciar seu turno. Entra na cabine com cara de sono e poucos amigos e o copiloto inicia mais um
briefing, este referente à troca de turno, seguindo o check list padrão. Por aqui tudo é muito amarrado e
engessado. Ele senta no assento da direita e metodicamente inicia a verificação dos dados do FMC.
Ficamos em silencio por alguns minutos e pergunto se ele quer um café, agradece e diz que sim. Peço à
comissária que gentilmente nos traz, além do café, uns cookies gordurosos, mas muito saborosos.
Lembro que o meu colesterol anda meio alto, mas não consigo resistir e mando dois para dentro junto
com o café. A comissária começa a bater papo com o outro comandante, no idioma deles, e fico
completamente aparte e isolado. O que será que eles estão falando? A conversa parece animada e uma
sensação de solidão se alastra dentro de mim. É sempre assim, nas conversas mais triviais entre eles,
nas coisas simples da vida, nas brincadeiras após o término do voo, na interação entre os tripulantes e
nos pequenos simbolismos, são os momentos que eu me sinto mais solitário e extremamente saudoso
das minhas origens.
Ding...dong...soa a campainha juntamente com o símbolo de ATC na tela do EICAS. É o centro Tokyo nos
indagando, via data link, “are you able FL 350”. Respondemos que sim e ele nos autoriza a subida para o
novo nível. Seleciono o FL350 na altitude window, informo ao PM apontando para o indicador, flight
level 350 set e ele responde flight level 350 check para só então acionar a tecla do altitude selector e
iniciar a subida. Com a mudança no flight mode annunciator o PM canta Thrust Reference VNAV Speed,
logo depois one Thousand, e finalmente Speed VNAV Path ao iniciarmos a captura do nível. Muitas ações
e call outs para uma simples mudança de nível, mas padrão é padrão e seguimos a risca.
Sinto se eu não puxar conversar com o colega ao lado ele, com certeza, irá permanecer calado durante
todo o nosso tempo de trabalho. Faço algumas perguntas, puxo assunto sobre o que anda acontecendo,
mas percebo que ele não é muito de conversa. Na verdade, ele tem dificuldade de expressão na língua
inglesa, o que não é muita novidade aqui na Ásia. A maioria dos comandantes locais mais antigos tem
dificuldade de manter um nível de conversação um pouco mais diversificada e profunda, limitando-se ao
papo técnico de aviação, o que torna os voos extremamente solitários. Ele se entretém com um manual
técnico qualquer, já que leitura de jornais, revistas e livros não técnicos na cabine é considerado falta
grave e, portanto, totalmente proibidas. Assim sendo, depois de mais algumas tentativas, eu desisto de
qualquer conversação, limitando-me apenas ao mínimo necessário para o desenrolar do voo. Apesar de
tudo, o tratamento dispensado aos pilotos estrangeiros é muito bom, educado, gentil, mais muito
formal e com a dificuldade natural do idioma a vida se torna muito solitária nos voos e nos pernoites.
Vários colegas não se adaptam a essa solidão e partiram para paragens mais verdes.
Começa uma leve turbulência que com o passar do tempo torna-se moderada. Comando o aviso de
apertar sinto para on, reduzo a velocidade para Mach .82, a ideal de penetração e faço contato com o
purser avisando que vai balançar por alguns minutos. Verifico mais uma vez a carta de tempo
significativo e constato que estamos realmente passando por uma região em que a Jet Stream,
predominantemente no sentido de oeste para leste, curva-se ligeiramente para o sul e cruzando
levemente com a nossa rota, o que acarreta turbulência de céu claro. No plano de voo (navegação)
verifico também que o shear index está também elevado para as próximas posições e que devemos
transpor essa região em mais 33 minutos. Todo cuidado é pouco nessa fase, pois o B777 é notório em
querer exceder a velocidade máxima de voo quando em turbulência sendo necessário até usar o speed
brake em situações mais críticas. Presto o máximo de atenção para evitar qualquer exceedance e ser
chamado pelo piloto chefe para um compulsório tea and biscuits.
A turbulência cessou, mas o meu cansaço amentou e me pego dando cabeçada lutando contra o sono.
Tenho mais uma hora de trabalho até que o copiloto venha me render e faço de tudo para me manter
acordado. Vou a o toalete, tomo outro café, verifico a rota e cartas pela enésima vez, e quando acho
que chegou ao meu limite o copiloto aparece para troca. Mais um briefing de troca de turno e estou
finalmente livre para o meu descanso de 3 horas e 35 minutos.
Escolho ficar no assento da primeira classe, pois o bunker estava com a temperatura muito elevada,
aliás, quem voou na Ásia sabe que a temperatura padrão do asiático é de 25 graus o que provoca
reclamação generalizada dos pilotos estrangeiros. É aquela briga eterna, eles aumentando e nós
diminuindo o controle de temperatura. Não consigo acreditar mais ao estalar-me para dormir naquele
assento maravilhoso da primeira classe o sono desaparece como que por encanto. Fico revirando no
assento e um caleidoscópio de assuntos me veem a cabeça. Penso nos meus familiares queridos, nos
meus amigos, nos colegas que não conseguiram empregos no Brasil e nem tão pouco se reposicionaram
no exterior com forçosas e precoces aposentadorias. De tanta gente boa que conheci e que hoje não
cruza mais o meu caminho, mas que deixou saudosas memórias. De voos memoráveis, da
camaradagem, dos meus instrutores que muito me ensinaram. Dos inúmeros tripulantes (Cmtes, Copilotos, F/Es e Comissários) e dos colegas de terra também que tive o privilégio de conviver e aprender
com cada um deles. Fico ali como que em transe quando sinto alguém me balançando. Abro os olhos
sem vontade e vejo a comissária me alertando...Capt 5 minutes for crew change...Inacreditável! Parece
que dormi apenas 5 minutinhos e continuo exausto.
Levanto-me a contra gosto, vou ao toalete, lavo o rosto e peço um café bem quente. Parcialmente
restabelecido retorno ao cockpit, noto que já amanheceu, e aviso que estou pronto para mais um
briefing de troca de turno. O cmte informa então que o aviso de atar cintos está desligado, que estamos
consumindo combustível dos tanques principais, pois o central já secou, que o piloto automático está
engatado nos modos LNAV e VNAV e mantendo o novo nível de FL 370. Diz que estamos logados CPDLC
com São Francisco e repassa as frequências de HF que usamos como back up ao CPDLC e com o
respectivo cheque SECAL efetuado. Estamos 6 minutos ahead of schedule e economizando 2300 lbs de
combustível e informa também que passamos a refile position, 43N140W, com um adicional de 2800 lbs.
Em suma, tudo na mais perfeita normalidade. Alguém já disse que voar é 99% por cento de tempo de
tédio intercalado por alguns segundos de puro terror. Enquanto me ajusto no assento da esquerda o
colega se despede com um “see you on the ground captain”, e retorna a primeira classe para o final de
seu descanso e mais uma vez ficamos sem safety pilot em uma fase crítica do voo.
Faltam cerca de 1 hora e 30 minutos para o pouso e levo alguns minutos até estar completamente
focado na operação de novo. Repasso o controle do avião para o copiloto e inicio a preparação para o
pouso, inicialmente solicitando as condições de Los Angeles e para isso utilizando o datalink para
receber o digital ATIS. Apesar das condições de tempo estar excelente, aliás, como usualmente em Los
Angeles, não deixo também de solicitar o METAR e TAF do alternado (outro velho hábito), hoje
utilizando o aeroporto de Ontario. Com a meteorologia checada começo a setagem de FMC para a
chegada. A STAR é a velha SADDE6 arrival, por incrível que possa parecer, minha velha conhecida desde
o tempo que era copiloto de B707 nos anos 80 em vidas passadas. As pistas em uso são a 24R e a 25L,
mas como estamos vindo pelo setor norte é pule de dez que será a 24R.
Pego o calhamaço de NOTAMs e repasso mais uma vez os que estão em vigor e que possam impactar na
nossa aproximação e pouso. LAX está continuamente em obras e verifico que uma crane localizada
próximo da cabeceira da 24R aumenta o nosso DA em mais 60 pés. Algumas taxiways também
encontram-se unserviceable o que vai fazer que a nossa rota de taxi seja diferente da que normalmente
empregamos. Finalmente comento que o rumo do missed approach procedure muda de 249 graus para
251 graus.
Com tudo pronto, checado e rechecado, inicio o último briefing (ufa!) desse voo. Reviso com o copiloto
as condições meteorológicas do destino e alternado, comprimento de pista disponível e quanto vamos
precisar na condição de pista seca, flaps 30, autobrake 3 e peso de pouso de 497000 lbs. Reviso também
a STAR e o ILS para a RWY 24R e se estão corretamente inseridas no FMC. Checamos a rota do missed
approach, fixo de espera, orbita e quanto tempo de espera teremos antes de decidirmos prosseguir para
o alternado. Repasso o procedimento de go around – Toga, Flaps 20, positive climb gear up, 400 ft
LNAV climbing to 2000 ft. Por fim verificamos a rota provável de taxi após o pouso. Termino o briefing
sempre adicionando um adendo meu, pessoal, “Mr fulano, english is not my mother tongue, if I say
something that you don’t understand, please SPEAK UP! Also, if I do anything outside of the company
procedures, or anything that you feel uncomfortable, please SPEAK UP! I’d like us to fly as team”.
O copiloto me olha meio desconfiado, talvez até mesmo desconfortável. Na cultura asiática a figura da
autoridade é muito enraizada. Sênior, superior hierárquico, pai, comandante, etc, sempre tem razão e,
por conseguinte não podem passar vergonha ou serem desmerecidos. Culturalmente o que é conhecido
por “to lose face”. O fato de eu mencionar que gostaria de voar como se fosse um time, ou seja,
subentendido que “se eu fizer alguma coisa errada eu espero (não, eu definitivamente aguardo) a sua
intervenção”, demonstra que sou uma pessoa falível, o que no entender deles por aqui não conjuga
muito bem com a figura do comandante. Apesar de compreender perfeitamente esse conceito cultural e
entender também que não estou aqui para mudar nada, não deixo, nesse caso específico, de deixar o
conceito de CRM plenamente estabelecido, apesar dos melindres locais. Lembro então, que em um dos
meus primeiros voos na nova empresa, estava caminhando com o copiloto nos dirigindo para o avião e
notava que ele ficava constantemente atrás de mim, apesar da minha diminuição de marcha para que
ele ficasse ao meu lado. Tenho o hábito também de deixar as pessoas que estão comigo entrarem
primeiro em escadas rolantes, elevadores e recintos e notava que ele ficava diferente, desconcertado
mesmo, quando eu, gentilmente, lhe cedia à passagem. Estava achando meio estranho, sem entender o
porquê desse comportamento quando ele me para e vem com a seguinte pérola; “Captain please, don’t
make me walk beside or in front of you, here the Captain always walks ahead of the crew”. Voar por aqui
é uma aprendizagem constante do comportamento humano e das diferenças culturais.
Ding...dong...mais uma mensagem de São Francisco, via datalink, agora para “Contact Oakland center
on 134.75”. O copiloto aceita a mensagem, insere a frequência no painel de VHF o que causa com que a
cor dos dígitos, na mensagem, mudem de branco para verde, mostrando a correta inserção da
frequência. Após descartar a mensagem ele respira um pouco mais profundamente, toma coragem e
modula...,“Oakland center, good afternoon this is flight 061 at flight level 370”, para minha surpresa
num bom inglês. Oakland responde com a costumeira irreverência, falta de pausa entre as palavras,
impaciência e rapidez, características da fonia americana...
“Flight61heavysquawk3457andhowsyourride”
Pelas suas feições, noto que ele não entendeu muito bem, mas aguardo um pouco mais, esperando a
sua próxima reação.
“Oakland center…say again…please”, e Oakland responde…
“F-l-i-g-h-t-6-1-I-say-again-squawk-3-4-5-7-and-how’s-your-ride-this-afternoon-sir”. A transmissão é de
uma tonalidade muito impaciente, mas exageradamente pausada e com certeza nos dando uma gozada.
Ele coloca o novo código no transponder, mas me olha com um olhar de súplica com as sobrancelhas
arqueadas, sugando o ar entre os dentes e fazendo um sinal característico com as mãos de que não
tinha entendido o resto da mensagem. Eu dou a cola dizendo que ele quer saber como está o nosso voo
com referencia à turbulência. “Reporta que está smooth” e ele prontamente faz o read back.
Começo a avistar terra, e depois de mais alguns minutos podemos distinguir claramente a baia de São
Francisco, com a imponente e majestosa Golden Gate Bridge, no nosso través esquerdo. O tempo está
belíssimo, um CAVU de perder de vista, aliás, muito comum na Califórnia. Com isso, completo mais uma
travessia oceânica, ou lagoão, como nós aviadores chamamos no Brasil e não deixo de me impressionar
com todas as tecnologias utilizada nos dias de hoje, que fazem essas travessias muito seguras e
tranquilas, muito embora ainda cansativas. Penso no personagem Don Roman, do livro “The High and
the Mighty”, que li quando criança e escrito por Ernest K. Gann, pilotando o magnífico DC4 por esse
mesmo Oceano Pacifico nos anos 50 e fico desejando ter nascido em outra época. Falando em Ernest
Gann não posso deixar de lembrar de outros grandes escritores da aviação como, Saint-Exupéry, Richard
Bach, Len Morgan, Walter J. Boyne, Fredrick Forsythe e tantos outros que li na infância e influenciaram
definitivamente minha paixão pelo voo.
A companhia nos contata informando o nosso gate, o de número 104, localizado na parte sul do
aeroporto. A fonia começa a ficar mais densa e coloco o headset, de modo a não perder qualquer
chamada. Oakland nos transfere para o centro de Los Angeles e fazemos mais um update da última
informação ATIS. As condições permanecem as mesmas e 40 minutos antes do pouso estamos prontos
para fazer o PA aos passageiros. A mesma rotina se repete, com a troca de comando e comunicações
entre o PF e o PM.
As milhas para o TOD começam a diminuir e começo a entrar no modo de atenção total. A mensagem
reset cruise altitude aparece no scratch pad do FMC e peço ao copiloto que solicite a descida.
“LA center flight 061 request descent”
“Flight 61 descend and maintain FL240, clear to Los Angeles via the SADDE6 arrival, Rwy 24R”
“Leaving FL370 for FL240, SADDE6 arrival, Rwy 24R, Flight61”
Insiro o FL240 na altitude window, aponto para a mesma e repito FL240 set, o copiloto responde FL240
check e quando a milhagem para o TOD atinge zero nosso avião inicia suavemente a descida para o nível
liberado. O copiloto canta a mudança no flight mode annuciations, “Thrust Reference” para mais tarde
acrescentar “Hold”, quando as manetes atingem a posição idle. Cruzando o FL340 o centro solicita no
mais puro acento californiano...
“Flight 61 gimmeagoodratethrough FL290, Ihavetrafficcrossingyourlevel”
Meu parceiro ao lado esboça a mesma expressão facial de dúvida e ansiedade anteriormente
demonstradas. Não entendeu nada da solicitação do centro. Entendo e compreendo a sua situação, e
acho até que os americanos são notórios em empregar expressões não aplicadas em outras partes do
mundo e nos manuais oficiais de radiotelefonia. O problema é a maldita da experiência, não tem
mistério algum, mas tem que vir algumas vezes ao mesmo aeroporto para descobrir as regionalidades
da fonia e nuances de cada lugar.
Passo a cola informando que o centro nos pede para que aumentemos a razão de descida até cruzar o
nível FL290, devido a tráfego. Uso parcialmente o speed brake para aumentarmos a razão de descida e
cumprir com a solicitação do centro. Ao cruzarmos o FL260 fico na expectativa que ele se antecipe e
peça autorização para o further descent, de modo a evitarmos um nivelamento prematuro e
consequente aumento de consumo, mas ele permanece impassível, tenso e preocupado em entender a
próxima instrução. Solicitação essa que um copiloto mais voado faria sem pestanejar e sem indução do
comandante. Peço gentilmente que ele solicite ao centro a continuação da nossa descida, mas a
frequência está muito congestionada e ele tem dificuldade em entrar com a solicitação.
Atingimos o FL240 sem o clearance de continuar a descida e acompanho as manetes acelerarem para
manter a nossa velocidade de 290 kts. Finalmente ele consegue passar a nossa solicitação e o centro nos
instrui a mudar a frequência para o controle do sul da Califórnia.
“Flight61 call now SoCal on 124.5”
“SoCal good afternoon, flight61 maintaining FL240 and we have information Bravo”
“Flight 61 cross SIMON at and maintain 12 thousand, altimeter 29.98, runway 24R”
“SIMON at and maintain 12 thousand, Flight 61”
Continuamos a nossa descida para 12 mil pés e após cruzarmos o FL190 insiro o ajuste de 29.98 no PFD
e também no altímetro standby, aguardando o copiloto fazer o callout...“transition altitude, altimeters
reset 29.98 inches” para responder “29.98 inches, altimeters reset”
Estamos próximos a posição SIMON e já podemos observar a costa norte de Los Angeles e a interessante
cidade de Malibu, com Santa Monica mais a frente. O controle interrompe o nosso sightseeing e nos
instrui...
“Flight 61, after Santa Monica fly heading 070, descend and maintain 7 thousand, vectors for the final
approach RWY 24R”
O copiloto fornece o readback correto e eu reajusto a velocidade para cruzar 10000 pés com 250 kts,
continuando nossa descida para 7000 pés. Umas 5 milhas de Santa Monica reduzo para 220 kts, já com
uma visão privilegiada da área do aeroporto na posição 1 para 2 horas e mais a frente, a direita, posso
distinguir também Marina del Ray, Manhattan Beach, Hermosa Beach, Redondo Beach e com a vista
alcançando até Palos Verdes. Cidade linda essa tal de Los Angeles!
Bloqueamos Santa Monica VOR a 7000 pés com 220 kts, quando saio do modo de LNAV para HDG SEL
ajustando a proa para 070 graus, de acordo com as instruções do controle. Em seguida somos instruídos
para 4000 pés e, a partir de então passo a utilizar o FLT LVL CHG para a descida. Nessa posição
normalmente estamos um pouco alto e utilizo o speed brake, pois sei que o controle normalmente
encurta a aproximação o que pode nos deixar fora do perfil de descida. Dito e feito logo em seguida vêm
à instrução para descermos para 2600 ft, o que sinaliza que uma aproximação curta será autorizada...
“Flight 61, descend and maintain 2 thousand 600 ft”
“2 thousand 600 ft, Flight 61”
Mais a frente somos instruídos para mantermos 180 kts…
“Flight 61 reduce speed to 180 kts”
“180 kts, Flight 61”
Solicito flaps 1 e reduzo para 190 kts e antes que o autothrottle adicione potencia peço flaps 5 e reduzo
para 180 kts. Estamos na perna do vento radar, posição em que normalmente, quando o workload está
baixo e em boas condições de tempo, desacoplo o piloto automático e passo para pilotagem manual.
Aperto o botão de desacoplamento juntamente com o callout de “manual flight” e o copiloto responde
“manual flight”. A sensação da pilotagem manual é uma sensação de enorme prazer, mas que tenho
grande dificuldade em definí-la por escrito ou verbalmente. É como se vestíssemos a máquina e
passássemos a ser um prolongamento dela, com aquela infinidade de fios, eletrônicos, cabos e hastes
obedecendo ao nosso comando e sentido cada vibração como se fosse a pulsação do meu coração.
Parece que nos transportamos para outra dimensão e uma sensação extremamente prazerosa de
“accomplishment” paira sobre mim. Gostaria imensamente de possuir o dom das palavras para poder
explicar para um leigo, com precisão, essa sensação de liberdade, mas sempre falho em apresentá-la na
sua plenitude. Porém, tenho certeza que, para os aviadores, não há necessidade alguma de definição, é
intrínseca.
“Flight 61 right turn heading 160”
“Heading 160, Flight 61”, responde o copiloto.
Faço a curva para proa 160 e agora estamos na perna base radar, e apesar do sol, vejo com clareza o
aeroporto e identifico também a pista 24R na nossa posição 2 horas. Aviso ao meu parceiro que tenho a
pista à vista e peço que reporte ao controle.
“Fight 61 has the airport in sight”
“Flight 61 you’ve traffic position 2 o’clock, a regional jet, follow that traffic, maintain visual separation
and clear for the visual approach RWY 24R. You have addition traffic 1 o’clock but going to the parallel
on the south side. Maintain 180 kts until JETSA and call the tower on 133.95”
“Clear for the visual RWY 24R and we have the traffic in sight, Flight61”, responde o copiloto.
Pronto, agora é com a gente. Os controladores americanos adoram quando reportamos visual com o
aeroporto, pois ao sermos liberados para a aproximação visual cessa a responsabilidade deles com
relação a nossa separação com outros tráfegos e também da necessidade de vetoração. A
responsabilidade de separação com o tráfego apontado bem como a navegação da aeronave para o
aeroporto passa a ser de nossa inteira responsabilidade. Alguns pilotos, por isso mesmo, relutam em
reportar que estão avistando o aeroporto, de modo a não terem essa responsabilidade adicional, mas
eu, por outro lado, quando tenho o aeroporto plenamente identificado, gosto da liberdade e eficiência
proporcionada pela aproximação visual. Apesar disso, por padrão da empresa, vamos continuar a usar
os sinais do ILS para nos ajudar no pouso. É o que, nós aviadores, chamamos de aproximação por
“visumentro”, ou seja uma mistura de visual com instrumento, mas nada se compara mesmo a uma
aproximação puramente visual, sem ajuda dos sinais eletrônicos do ILS e do flight director. Saudades do
meu tempo de jovem comandante de B727 fazendo aproximações visuais pelo o Nordeste do Brasil
Confirmo a identificação do ILS, checo se os indicadores de localizer e glide slope estão visíveis, para só
então armar o approach mode do piloto automático, fazendo o call out de approach mode armed para o
copiloto, que responde “localizer and glide slope armed”. Quando a barra do localizer começa a moverse o copiloto canta “localizer alive” e eu giro suavemente para seguí-la e interceptar o curso do
localizador, para logo em seguida já termos também a interceptação do glide slope com os mesmos call
outs. Peço então que chame a torre e informe a nossa posição...
“Los Angeles tower, Flight 61 on the visual for 24R, about 8 miles out”
“Flight 61 you’re number 2 behind a regional jet, wind 280 degrees 10 kts, clear to land RWY 24R”,
responde a torre.
“Clear to land, RWY 24R, Flight 61”, é o read back do copiloto.
Esse é outro aspecto que ajuda a agilizar as operações aqui fora, que são as liberações para pouso com
várias aeronaves na final ao mesmo tempo. Às vezes somos autorizados para o pouso sendo o número
2, 3 e às vezes até mesmo 4, na sequencia de aproximação final, o que agiliza sobremaneira as
operações. Mantenho 180 kts até a posição JETSA, que é o nosso fixo de aproximação final, quando
então inicio a redução para aproximação final, procurando manter uma separação de aproximadamente
de 3 milhas com o tráfego a frente durante toda a aproximação e utilizando para isso o seu alvo no
TCAS.
“Gear down, flaps 20”, solicito ao copiloto, ao mesmo tempo em que armo a alavanca do speed brake.
Ele responde, “gear down, speed check, flaps 20”. Reduzo ainda mais a velocidade e com o trem baixado
e travado e os flaps na posição 20 comando o flap final de pouso. “Flaps 30” para ouvir o “speed check,
flaps 30”.
Com o avião configurado peço o landing checklist. Check feito e tudo conferido, o trabalho agora entra
na fase do silêncio dos últimos 1000 pés. Trabalho não, pois essa é a fase mais prazerosa, levar essa bela
garça de 225 toneladas no seu retorno a terra firme. Hoje as condições estão perfeitas, final da tarde,
vento alinhado e sem turbulência e sou brindado com um pouso macio na marca dos mil. Com aquela
sensação de um bom trabalho realizado, livro na high speed taxiway, antes do final da pista e
aguardamos para o cruzamento da pista 24L. A torre nos libera o cruzamento e após nos instrui para
contatar o solo.
“Flight 61, clear to cross 24L, call ground on point 65 after crossing”
Antes mesmo de contatarmos o solo ele entra com…
“Flight 61, where’s your gate”
“Gate 104”, responde o copiloto.
“Taxi via bridge route and Charlie, point 75 on the other side”
O copiloto faz o read back preciso e fico contente, pois apesar do nervosismo e alguns tropeços ele fez
uma boa fonia. Nada como ver um profissional dar o melhor de si para realizar um bom trabalho e nisso
somos todos iguais em qualquer parte do mundo.
Ao passar para a frequência do solo do setor sul ele nos instrui...
“Flight 61 taxi via Charlie and give way to a Brasilia (existe uma enormidade deles aqui em LAX) crossing
on taxiway Tango and taxi to the gate”
O copiloto fornece o read back correto, mas me indaga…
“Captain what’s a Brasilia? Eles por aqui não têm a mínima cultura aeronáutica, desconhecem coisas
básicas, e eu pacientemente e também com muito orgulho explico que é um bimotor regional fabricado
pela EMBRAER, e ele em seguida...“What’s E-M-B-R-A-E-R?”“. Eu rio por dentro, mas simplesmente
desisto de dar mais explicações e fico me perguntando como um sujeito que é aviador profissional não
conhece a terceira maior fabricante de avião do mundo. E volto a recordar da resposta que a grande
maioria dos copilotos locais me fornecem quando indago o porquê deles terem escolhido a aviação
como profissão. Invariavelmente eles respondem que acham um bom emprego, que não sabiam o que
fazer profissionalmente quando souberam que a empresa estava contratando piloto, e outras respostas
que não vale nem a pena lembrar. Raramente encontro um piloto local que realmente adore a aviação,
que tenha tido o sonho de ser aviador e que realmente goste de avião e tudo relacionado com ela.
Tenho a impressão, não, tenho a certeza, que se fosse oferecido a eles um trabalho de escritório, das 9
da manhã até às 5 da tarde, mas que pagasse mais do que eles ganham por aqui atualmente, todos
aceitariam de bom grado a troca. Háaa...a tal da diferença cultural, fazer o que?
Vou taxiando lentamente para o gate e começo a refletir sobre minha vida de piloto expatriado. Penso
nas coisas boas que tem por aqui, como uma boa remuneração que proporciona uma condição de vida
melhor para minha família e educação para os meus filhos, de voar numa excelente empresa com uma
manutenção primorosa e com suporte total, da oportunidade de ser um cidadão do mundo com
pernoites em variadas cidades, mas penso também na vida solitária que levamos por aqui, da falta de
camaradagem, das saudades dos pernoites com os amigos, da sensação de não “pertencimento” (será
que existe essa palavra?), do rigor operacional e da cultura do punishment o que torna o voo sempre
mais tenso.
Enfim, com certeza não é um trabalho que agrade ou mesmo sirva para todos, mas eu por enquanto vou
levando, até o momento de decidir ir embora e retornar ao meu país com todos os seus problemas, mas
onde tenho minhas raízes. No entanto, tenho a certeza absoluta também, que posso ser muito feliz
voando um Bandeirante ou até mesmo um Seneca, transportando malotes na madrugada pelo interior
do Brasil, pois a aviação está no sangue.
Marcus Prata

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