Posfácio do livro “Ao Vivo do Corredor da Morteâ - Sindsep-DF

Transcrição

Posfácio do livro “Ao Vivo do Corredor da Morteâ - Sindsep-DF
Posfácio do livro “AO VIVO DO CORREDOR DA MORTE”, de Mumia Abu-Jamal – Conrad Editora - 2000
O PROCESSO APÓS 19951
Edison Cardoni
Em 1991, a derrota de uma petição no Supremo Tribunal dos Estados Unidos encerrou a fase de apelos diretos por meio
dos quais Mumia tentava a revisão do seu processo. Daí em diante, os recursos teriam que contestar a condenação e a
sentença, pleiteando um novo julgamento.
Até então, Mumia havia sido representado por advogados indicados pelo Estado (defensores públicos). A partir de
1992, uma campanha nacional e internacional permitiu levantar os fundos necessários e, pela primeira vez, começa um
verdadeiro trabalho de investigação. Leonard I. Weinglass torna-se o advogado encarregado de coordenar a equipe de
defesa.
A legislação local prevê as seguintes possibilidades para a tramitação das medidas judiciais visando à realização de
um novo julgamento:
1) O primeiro passo é interpor um recurso pós-condenatório no mesmo tribunal onde ocorreu o julgamento original (Court of
Common Pleas of Philadelphia County). A decisão é tomada por apenas um juiz;
2) Em caso de insucesso, o passo seguinte é ingressar com uma apelação no Supremo Tribunal da Pensilvânia, formado por sete
juízes;
3) Se também a apelação é negada, o terceiro passo é apresentar uma petição por habeas corpus num Tribunal Federal Distrital;
essa medida inaugura a entrada do recurso na esfera federal; a petição é analisada por um juiz federal e o objetivo do habeas
corpus será revogar a condenação e a sentença, quer dizer, anular o julgamento original, em virtude das violações constitucionais
alegadas.
É nesse estágio da petição por habeas corpus que se encontra o processo hoje, dezembro de 2000.
Uma longa e dura batalha judicial vem revelando fatos que falam por si: mais que provar a inocência de um homem,
as idas e vindas do processo, nos elementos mais importantes e em cada um de seus detalhes, constituem uma verdadeira
ata de acusação contra o sistema que pretende tirar a vida de Mumia Abu-Jamal.
Tomaram conhecimento formal e oficial do processo vários níveis da justiça do estado da Pensilvânia e da hierarquia
federal, além de autoridades do Ministério da Justiça dos EUA. Eles não podem dizer que não sabem o que acontece.
Por duas vezes, em 1995 e 1999, Mumia Abu-Jamal, um homem inocente, esteve perto de ser executado. Ele só está
vivo graças à amplitude da campanha internacional que exige justiça.
1992: após dez anos, uma verdadeira investigação
Os advogados despenderam três anos de trabalho na preparação do recurso com 22 razões em favor de um novo
julgamento reunindo, entre outros, cerca de 40 documentos e 13 declarações juramentadas, além de mais de 600 páginas
de um dossiê do FBI – resultado da severa vigilância exercida durante anos sobre a militância política e a atividade
jornalística de Mumia, prova de que, há tempos, ele era vítima de perseguição governamental.
Para elaborar a estratégia da defesa, a comunicação com Mumia se efetuava por meio da “correspondência
privilegiada” que, pela lei, deveria ser inviolável. Informações e discussões altamente confidenciais foram trocadas. Ficou
definida a data de 5 de junho de 1995 para apresentação do recurso.
Estranha coincidência: no fim do expediente do dia útil imediatamente anterior à entrada do recurso, o governador
Tomas Ridge assinou uma ordem marcando a execução de Mumia para 17 de agosto de 1995. Posteriormente, descobriuse que a correspondência legal de Mumia era sistematicamente aberta pelos funcionários da prisão, copiada e transmitida
às autoridades do Estado2.
Em 5 de junho de 1995, com o acréscimo de um requerimento para suspender a execução, o recurso pós-condenatório
foi apresentado na Court of Common Pleas da Filadélfia. Pela legislação do estado da Pensilvânia, ele teria que ser
examinado pelo mesmo juiz que presidiu o julgamento original, Albert Sabo.
O juiz Sabo já atingira a idade de aposentadoria compulsória mas pôde continuar na magistratura por autorização
especial do Presidente do Supremo Tribunal da Pensilvânia. Os advogados protestaram energicamente, ingressando com
um requerimento pedindo seu impedimento. Mas, segundo a legislação, essa decisão cabe ao próprio questionado. E o juiz
Sabo considerou a si mesmo apto para analisar o recurso de Mumia.
Assim, pela segunda vez, Mumia Abu-Jamal, jornalista que denunciava a violência policial na Filadélfia, teria sua
sorte colocada nas mãos desse ex-xerife adjunto e membro por catorze anos da “Ordem Fraternal da Polícia” (FOP), a
maior organização de policiais dos EUA, defensora da pena de morte, que faz campanha pela execução de Mumia e
financia campanhas eleitorais de juízes como Albert Sabo.
Maio a setembro de 1995: enfrentando o juiz Sabo
Com a execução marcada para 17 de agosto, o juiz Sabo tentava apressar ao máximo as audiências do recurso. Em 14 de
julho, negou-se a convocar pelo menos duas dúzias de testemunhas e se recusou a suspender a execução de Mumia.
Desrespeitando normas legais, determinou o início das audiências antes mesmo da promotoria responder ao recurso e sem
conceder tempo à defesa para se preparar. Foi preciso recorrer ao Supremo Tribunal da Pensilvânia contra esse abusos
para obter um pequeno adiamento.
Enquanto isso, uma campanha internacional sem precedentes se desenvolvia, obrigando o juiz Sabo a ceder. Na
segunda-feira, 7 de agosto, apenas dez dias antes da data prevista, ele determinou a suspensão da execução. Em quinze
anos de magistratura, era a primeira vez que tomava uma atitude como essa.
Mas ele continuava o mesmo. Negou à defesa o direito de ter acesso a documentos da promotoria, aceitou quase todas
as objeções formuladas pelo promotor e recusou todas as da defesa, e não integrou ao processo o relatório do FBI.
Pressionou os advogados da defesa, chegando a aplicar uma multa de mil dólares num deles e a dar voz de prisão a outra,
que saiu algemada do tribunal.
A hipótese do promotor3 se baseava em três pontos:
1) três testemunhas oculares (às quatro da manhã, num local sem iluminação) teriam identificado Mumia como o homem que
atirou no policial;
2) dois meses depois do tiroteio, uma vigia do hospital “lembrou” ter ouvido uma “confissão” de Mumia (não registrada em
nenhum dos detalhados relatórios da polícia);
3) a presença da arma de Mumia no local (único elemento material, mas desacompanhada de laudo pericial: não foi comprovado
sequer que a arma fora disparada).
O trabalho da defesa havia estabelecido que:
1) na fase do inquérito policial, na própria madrugada do tiroteio e nos dias subseqüentes, inúmeras testemunhas oculares
fundamentais foram interrogadas e não incriminaram Mumia;
2) esses primeiros depoimentos à polícia convergem, de maneira harmônica e consistente, para apontar que um terceiro homem
negro – além de Mumia e do seu irmão – estava presente e fugiu correndo imediatamente depois do tiroteio. Uma testemunha
afirmou que foram dois homens que fugiram;
3) após a fase do inquérito policial, no entanto, e até se apresentarem perante o júri, essas testemunhas foram mudando seus
depoimentos originais.
A conclusão da defesa é que, entre as audiências preliminares e o julgamento, elas foram pressionadas, ameaçadas e
receberam promessas de favores da polícia para mentir no tribunal.
A defesa também havia levantado indícios de que a polícia ocultou documentos oficiais e resultados de testes
realizados durante a fase do inquérito e que constituiu violação de direitos constitucionais de Mumia ele ter sido impedido
de fazer sua própria defesa, ter sido retirado do tribunal e ter sido sentenciado à morte por opiniões defendidas doze anos
antes do julgamento.
Apesar de todos os entraves colocados pelo juiz Sabo, nas audiências do recurso pós-condenatório a defesa conseguiu
não apenas apontar essas irregularidades processuais mas também apresentar provas e indícios da inocência de Mumia.
No entanto, em 15 de setembro de 1995, apenas quatro dias depois de encerradas as audiências, o juiz Sabo indeferiu
integralmente o recurso, numa sentença em que praticamente repetiu as alegações finais da promotoria. Ele considerou o
julgamento original “isento de imperfeições”.
Em 9 de fevereiro de 1996, Mumia apelou contra essa decisão no Supremo Tribunal da Pensilvânia, dando início a
idas e vindas que durariam até outubro de 1998.
De 1996 a 1998: revelações dramáticas
Durante o exame da apelação pelo Supremo Tribunal da Pensilvânia, a defesa apresentou quatro petições requerendo
novas audiências para ouvir testemunhas e incluir novas provas no processo.
A primeira foi para o depoimento de Veronica Jones. O Supremo Tribunal da Pensilvânia concordou e devolveu o
processo para o juiz Sabo. Mas ele recusou-se a ouvi-la e até mesmo questionou a autoridade daquele tribunal para
ordenar a audiência.
A defesa reapresentou a petição ao Supremo Tribunal da Pensilvânia, adendando que o processo deveria ser
distribuído a qualquer juiz menos Sabo. O tribunal obrigou a realização da audiência mas permitiu que o caso continuasse
com o ex-xerife.
Veronica Jones
Em 1º de outubro de 1996, Veronica Jones sentou-se uma vez mais no banco das testemunhas, desta vez para falar a
verdade: ela viu dois homens fugindo do local do tiroteio imediatamente após ter ouvido disparos e ter visto o policial
caindo.
Sem hesitar, ela explicou que havia oficializado essa declaração durante o inquérito policial, ainda em dezembro de
1981, e que, em junho de 1982, pouco antes do julgamento, foi presa e acusada de roubo e porte ilegal de arma, correndo
o risco de ser condenada a muitos anos de prisão.
Contou que, na cadeia, foi procurada por dois policiais à paisana que prometeram “aliviar” sua situação caso ela
apontasse Mumia como o homem que efetuou os disparos. Do contrário, ela, então com 21 anos de idade, corria o risco de
ficar presa por pelo menos dez anos e perder a guarda de suas três filhas, então bastante pequenas.
Sem querer incriminar um inocente, mas sem chances de se livrar caso falasse a verdade, ela optou por um meiotermo: não acusou Mumia e negou ter visto outros homens fugindo do local. Esse depoimento acabou descartado pelo juiz
mas, aparentemente, a polícia ficou satisfeita pois Veronica foi colocada em liberdade condicional.
Ao ouvir esse relato, a promotoria atacou Veronica de forma vergonhosa. Numa odiosa repetição das táticas de
intimidação de 1982, ameaçou prendê-la com base em acusações existentes contra ela em outra jurisdição mas não sem
antes oferecer a costumeira alternativa: estaria livre se retirasse o depoimento. Indignada e com lágrimas nos olhos,
Veronica Jones disse que, mesmo ameaçada de prisão, não continuaria escondendo a verdade. Ela saiu do tribunal
algemada, diretamente para a cadeia.
Outras pessoas depuseram nos três dias de audiência e até mesmo as convocadas pelo promotor sustentaram a versão
de Veronica. Mas o juiz Sabo sentenciou que o testemunho dela não era uma nova evidência e que não tinha credibilidade,
deixando-o fora do processo. Foi mantido o indeferimento do recurso por um novo julgamento e o caso voltou ao
Supremo Tribunal da Pensilvânia.
Pamela Jenkins
A segunda petição, além da inclusão de provas adicionais e, mais uma vez, a substituição do juiz Sabo, requeria a
convocação de Pamela Jenkins, que também era prostituta e informante da polícia da Filadélfia e, em 1997, estava
colaborando com investigações federais contra policiais corruptos.
Em 30 de maio de 1997, o Supremo Tribunal da Pensilvânia acatou parcialmente o pedido, determinando a Sabo que
ouvisse a nova testemunha. A polícia da Filadélfia entrou em cena da forma habitual: prendeu Pamela, acusando-a de
receptação de mercadoria, porque se envolvera num crime, no passado, do qual já tinha sido excluída por ter colaborado
na recuperação de uma obra de arte roubada. Na delegacia, foi ameaçada pelo detetive Richard Ryan, um velho
conhecido.
Em 26 de junho, o tribunal do juiz Sabo se reunia para uma nova série de audiências. No início da primeira, o
advogado de defesa, Leonard Weinglass, pleiteia a convocação de testemunhas correlatas. O juiz Albert Sabo grita:
“Estamos aqui apenas para ouvir Pamela Jenkins. É tudo. Não vou ouvir nada mais, você está entendendo? Eu não quero nem
saber quem você pretende convocar. Estão todos descartados. Estou aqui somente para ouvir Pamela Jenkins.”
Sob custódia, Pamela foi chamada ao banco das testemunhas. Ela declarou ter 16 anos em dezembro de 1981 e que
havia conhecido o policial Tom Ryan alguns meses antes, quando fora presa por ele e se tornara sua amante, além de
informante paga da polícia. Mesmo sabendo que ela não estava no local do tiroteio, Tom Ryan e o investigador Richard
Ryan a levaram para a delegacia e a pressionaram para depor contra Mumia.
Pamela confirmou que Cynthia White4 (conhecida como “Lucky”) também era informante da polícia, a quem
igualmente prestava serviços como prostituta, e contou que em dezembro de 1981 Cynthia lhe confidenciara que estava
sendo pressionada para mentir contra Mumia e tinha medo de ser morta. Depois disso ela sumiu das ruas e Tom Ryan
pagou 150 dólares para que Pamela a localizasse.
Ao responder uma pergunta da defesa, Pamela disse que a última vez que viu Cynthia foi no início de março de 1997,
num ponto de venda de crack na Filadélfia, e que quando Cynthia a viu, saiu correndo para uma caminhonete onde
estavam Tom Ryan — que então não era mais policial — e o detetive Richard Ryan. A revelação causou surpresa no
tribunal e perplexidade na promotoria.
Apesar de o juiz ter impedido a convocação de outras testemunhas, o depoimento de Pamela Jenkins foi arrasador,
comprovando no tribunal de forma irrefutável a conduta imprópria da polícia com relação à prostituição no centro da
cidade da Filadélfia no início da década de 80.
De fato, uma investigação federal realizada naquele período havia descoberto o envolvimento da polícia em atividades
ilícitas no 6º e 9º distritos policiais. O mentor do esquema era o inspetor John De Benedetto, que levantou 350 mil dólares
em dinheiro sujo enquanto ocupava o cargo de comandante da Divisão Central de Polícia.
Essa investigação havia começado em meados de 1981 com denúncias de extorsão de mulheres no 6º distrito,
justamente no bairro onde aconteceu o tiroteio e onde Cynthia White, Veronica Jones e Pamela Jenkins se prostituíam. De
acordo com o inquérito federal, a polícia praticamente organizava a prostituição no centro da cidade. Saber que Cynthia
White era informante e eventual parceira sexual dos policiais era uma evidência fortíssima de que ela estava sob controle
da polícia muito antes de 9 de dezembro de 1981 e que, depois, ela poderia estar sendo escondida para não testemunhar
nas audiências do recurso.
Quando Pamela já tinha concluído e o juiz Sabo se preparava para encerrar a audiência, a promotoria, ciente do
impacto causado por aquele depoimento, declarou apoiar o pedido inicial da defesa e que também tinha testemunhas
adicionais para convocar.
Qual a resposta do juiz Sabo? Manteve a proibição da defesa de convocar outros testemunhos mas autorizou a
promotoria a chamar os que precisasse para desmentir Pamela Jenkins.
A “morte” de Cynthia White
A promotoria nem tentou contestar que Cynthia White era informante da polícia e que, sob pressão, fez uma identificação
mentirosa de Mumia como autor dos disparos. Em vez disso, alegou que o testemunho de Pamela Jenkins não era
confiável e tinha de ser excluído porque Cynthia Williams, “que se supunha ser, na realidade, Cynthia White”, tinha
morrido em 1992, na cidade de Camden, estado de Nova Jersey, e que Pamela tinha cometido perjúrio (falso testemunho)
ao dizer que viu Cynthia White em março de 1997.
A “prova” foi trazida pelo agente Witcher, do departamento de homicídios, convocado pela promotoria. Seu
testemunho consistia num relatório de computador, impresso pela polícia da Filadélfia, com um registro do FBI
certificando a morte de uma certa Cynthia Williams. Ele alegou que o FBI tinha um registro das impressões digitais de
Cynthia Williams que correspondiam às de Cynthia White.
A promotoria disse que a papelada do agente Witcher era um documento autenticado, inclusive com o selo do estado
de Nova Jersey. Baseando-se nisso, bradou repetidas vezes que tinha provado que Cynthia White estava morta, clamando
para o juiz Sabo registrar o “fato”.
A verdade, no entanto, não era essa. Depois da reinquirição pela defesa, o agente acabou reconhecendo que o relatório
do FBI não fora feito por meio da checagem das impressões digitais. Além disso, o exame de uma cópia do tal documento
autenticado — só entregue à defesa depois que o agente já tinha saído do banco das testemunhas — mostrou não ser ele
nada do que dizia à promotoria. Era um grosseiro ajuntamento de páginas de vários documentos, de diferentes origens,
grampeado de modo a criar a falsa impressão de que se tratava de um relatório oficial que, de fato, jamais existiu.
Além disso, o agente Witcher admitiu que a equipe da promotoria estava tentando localizar Cynthia White desde 1995
e que ele, pessoalmente, esteve envolvido nessa investigação, indício de que a polícia sabia que ela não estava morta.
Quando ficou claro que as “provas” nada provavam, o juiz Sabo decidiu reabrir os trabalhos do tribunal em 1º de
junho de 1997 para “verificar” a morte de Cynthia White. Novamente, a promotoria veio com a “comprovação das
impressões digitais” e “documentos oficiais” de Nova Jersey.
Na realidade, os próprios documentos da promotoria desmentem a morte de Cynthia White. Comparando lado a lado
as impressões digitais apresentadas, verifica-se que seis dos dez dedos têm classificações completamente diferentes,
descartando qualquer possibilidade de identificação digital entre as duas pessoas5.
Ademais, a promotoria recusou o levantamento de fotografias do arquivo da polícia de Nova Jersey e não houve
nenhuma identificação visual do corpo, que foi cremado, tornando impossível qualquer outra verificação.
As provas que desmentem a morte de Cynthia White não puderam ser registradas no processo porque prevaleceu a
vontade do juiz Sabo6, que negou todos os pedidos da defesa para convocar novas testemunhas enquanto autorizava os da
promotoria. Quando se deu por satisfeito, o juiz Sabo declarou: “No que me diz respeito ela está morta. Estou decidido.
Estamos terminados”.
Selecionando um júri para matar
A terceira petição ao Supremo Tribunal da Pensilvânia tinha o objetivo de apresentar uma fita de vídeo utilizada no
treinamento de promotores da Filadélfia sobre como agir na fase de seleção de jurados.
É uma prova cabal de violação de direitos constitucionais e de determinações judiciais superiores. São instruções
sobre como construir um “bom” júri, excluindo negros com argumentos racialmente “neutros” para driblar acusações de
discriminação. A prática foi utilizada já no julgamento de Mumia, em 1982, e continuou depois, em numerosos casos
relatados no pedido de habeas corpus.
Gravado em 1987 pelo então assistente sênior da promotoria, Jack McMahon7, a produção e utilização do vídeo foi
autorizada pelo promotor-chefe Ronald Castille, que depois viria a ser eleito juiz do próprio Supremo Tribunal da
Pensilvânia.
Vejamos algumas das orientações do assistente sênior McMahon, autorizadas pelo promotor-chefe e futuro juiz,
Ronald Castille.
“Quando o júri entra na sala, então são quarenta pessoas. Conte essas pessoas. Conte os negros e os brancos. Você vai querer
saber, em cada momento da seleção, onde você está. Quarenta entraram. Você vê vinte e cinco sobre quinze. Eu anoto na minha
folha: 25/15. E então eu sei. E então eu sei durante todo o tempo quantos estarão fora do meu processo de seleção do júri (...).”
“A jurisprudência fala que o objetivo é ter um júri (...) competente, justo e imparcial. Bem, isso é ridículo. Você não está
tentando fazer isso (...). Se você vai nessa, como alguns nobres libertários, e tenta selecionar jurados que são justos, isso é
ridículo. Você vai perder. Você vai estar fora. Vocês estão aqui para vencer (...). E o único jeito de dar o melhor de vocês é
selecionando jurados os mais injustos, mais dispostos a condenar do que qualquer pessoa na sala de julgamento.”
“(...) não queira trabalhadores de áreas sociais, isso é óbvio. Eles têm inteligência, sensibilidade, toda essa tralha. Você não vai
querer isso. Professores também não, especialmente professores jovens (...). Por outro lado, eu tenho tido boa sorte com
professores de escolas públicas. Pergunte em qual escola eles lecionam. Eles podem estar fartos de lixo na sua escola. Por
exemplo, um professor branco que leciona numa escola de negros e que está saturado desses caras, talvez. Esse pode ser um que
você aceite.”
Consciente da ilegalidade do procedimento, o “treino” orienta os jovens promotores a inventar razões para excluir
jurados negros e até, se necessário, sair da sala do tribunal para disfarçadamente se assegurar da composição racial dos
candidatos a jurados.
“Se você perder a conta, se você se atrapalhar, se não estiver certo de para onde está indo (...) você sempre pode pedir um
recesso. Você pode dizer: ‘Meritíssimo, eu preciso ir ao banheiro’. Você sai e olha para ver quais vai ter de recusar.”
“Nós temos de nos precaver e a melhor maneira de evitar problemas é se proteger. E meu conselho é que quando você quer
excluir um jurado negro você o questiona longamente. E naquele pequeno papel que você tem anote alguma coisa que você pode
utilizar depois, se for necessário.”
“Vamos dizer que você vetou três negros, as primeiras três pessoas8. E então o advogado da defesa levanta uma objeção dizendo
que você está vetando negros. Bem, você não está preparado para se virar e dizer ‘Oh...’ e inventar alguma coisa sobre as razões
pelas quais fez aquilo. Então você tem de escrever no momento em que fez a exclusão e quando for questionado você diz ‘Bem,
eu tenho... Eu tenho... Bem, a mulher tem um filho com uma idade próxima à do acusado, então eu pensei que ela poderia ter
simpatia por ele’, ou então ‘Ela está desempregada e eu não quero alguém que seja desempregado’.”
Esses são “ensinamentos” diametralmente opostos à orientação da lei. Apenas para citar um exemplo da
jurisprudência: “o único interesse legítimo (que o Estado) pode ter no exercício do direito de veto de jurados é assegurar a
constituição de um júri justo e imparcial (...). O interesse do Estado em todo julgamento é garantir que os procedimentos
sejam realizados de uma maneira justa, imparcial e não discriminatória9”.
O vídeo toma o cuidado de ensinar os promotores a não recusar todos os jurados negros mas, em vez disso, incluir três
ou quatro. E ele é muito claro sobre quais negros devem ser descartados e quais aproveitados.
“Tem gente que diz que os melhores júris são inteiramente brancos. Eu não compro essa idéia, principalmente se o acusado é
branco (...). Oito brancos e quatro negros é um grande júri. Talvez nove e três (...) gente estável, conservadora.”
“Os negros das áreas de menor renda são menos propensos a condenar (...). Você não vai querer essas pessoas no seu júri (...).
Outra coisa, não selecione mulheres negras jovens.”
“Outro fator na seleção de negros: você não deve pegar os que têm realmente mais cultura. Aliás, isso ultrapassa fronteiras, serve
para todas as raças (...). Se você está lá sentado querendo pegar negros, você vai querer homens e mulheres negros mais velhos,
particularmente homens, com 70, 75 anos de idade (...). Outra coisa são os negros do sul: excelente! Eu digo a vocês, eu não
acredito que possa perder um único julgamento com negros da Carolina do Sul. Eles são respeitadores da lei e da ordem. Eles
estão do lado dos tiras. Eles são dinamite! Eles são dinamite!”
No caso de Mumia, o promotor seguiu precisamente a política que viria a ser sistematizada por McMahon. A
discriminação não aconteceu simplesmente pelo veto aos negros, mas pela maneira como ele selecionou os poucos jurados
negros que considerou aceitáveis10.
O Supremo Tribunal da Pensilvânia recusou a inclusão do vídeo como prova, negando a terceira petição11.
A FOP e o Supremo Tribunal da Pensilvânia
Em 1987, Ronald Castille era promotor-chefe e autorizou a produção e utilização desse vídeo racista para treinamento dos
promotores. Em 1996, Ronald Castille era juiz eleito do mesmo Supremo Tribunal da Pensilvânia, onde Mumia estava
dando entrada da apelação por um novo julgamento.
Estava claro que esse juiz devia ser impedido de participar do julgamento do apelo. Em relação ao vídeo, por
exemplo, ele não julgaria inconstitucional um treinamento que ele mesmo tinha promovido. Mas havia outras razões.
No período em que foi promotor, Castille havia trabalhado para derrubar os “apelos diretos” então apresentados por
Mumia, fazendo um papel fundamental contra a revisão do processo. Assinou todos os pareceres da promotoria, defendeu
ardorosamente a condenação, afirmando que o julgamento havia sido completamente justo. Além disso, o promotor
Castille só pôde se eleger juiz porque a FOP (Ordem Fraternal da Polícia) financiou sua campanha eleitoral.
Mumia requereu que Castille se declarasse impedido mas o juiz negou o pedido afirmando que iria participar da
discussão e decidir sobre o apelo de forma “imparcial e sem prejulgamento”. Há trechos em seu voto12 que soam como um
veredicto contra o sistema judiciário:
“O apelante (Mumia) finalmente argumenta que eu devo me considerar impedido porque minha campanha eleitoral (para juiz)
foi financiada, durante muitos anos, pela FOP. Esse argumento também não me convence.
Eu observo que a mesmíssima FOP que me financiou também deu dinheiro para a campanha do presidente do tribunal, o juiz
John P. Flaherty, do juiz Ralph Cappy, do juiz Russell M. Nigro e da juíza Sandra Schultz Newman. Se o financiamento da FOP
justifica o meu impedimento, então praticamente o tribunal inteiro deveria ser impedido de participar do julgamento desse
recurso.”
Essa não é uma idéia a ser desprezada.
Outubro de 1998: o recurso é negado
Em 29 de outubro de 1998, por unanimidade, o Supremo Tribunal da Pensilvânia indeferiu o recurso de Mumia por um
novo julgamento, reafirmando a sentença proferida pelo juiz Sabo em primeira instância, segundo a qual o julgamento de
1982 foi “isento de imperfeições”.
A essa altura, como resultado das investigações iniciadas em 1992, muito já havia sido revelado sobre o caso Mumia.
Indícios de irregularidades em número muito menor e de gravidade muito inferior levam os tribunais federais a revogar
cerca de 35% das sentenças de morte.
Mas no caso Mumia, o Supremo Tribunal da Pensilvânia não encontrou irregularidades... O mais alto tribunal no
estado aceitou como “isento de imperfeições” o veredicto que declarou um homem culpado baseado em testemunhos e
procedimentos como os relacionados a seguir.
1) Cynthia White, prostituta e informante da polícia, principal testemunha da acusação: não presenciou o tiroteio e foi ameaçada
até prestar um depoimento forjado. Sem nenhuma prova concludente, foi dada como morta em 1992, sendo que era mantida
escondida pela polícia pelo menos até março de 1997.
2) Robert Chobert, taxista, em 1982 mudou o depoimento entre o inquérito e o julgamento13 e tinha todas as razões para mentir,
ao contrário do que o promotor sustentou veementemente perante o júri: além de estar em liberdade condicional, ele já tinha sido
condenado duas vezes por dirigir embriagado e, naquela madrugada, quando interrogado pela polícia, estava trabalhando sem
carteira de habilitação. Tudo foi devidamente ocultado da defesa e do júri. Depois do julgamento, Robert continuou a obter
licença da prefeitura para trabalhar como taxista, apesar de estar com a carteira de habilitação suspensa.
3) Dessie Hightower, testemunha que não se deixou intimidar, relatou ter visto um homem de cabelo dreadlock fugindo do local
logo após os tiros. Ele também foi pressionado para mudar o depoimento durante um interrogatório que durou mais de seis
horas. Como parte da pressão, ele, que não tinha ficha policial, ao contrário das longas fichas das testemunhas da acusação, foi o
único a ser submetido a um teste no “detector de mentiras”. Declarou ter passado no teste mas essa informação jamais foi
transmitida à defesa ou ao júri. Nas audiências do recurso, quando tudo veio à tona, em detalhes, a promotoria, apoiada pelo juiz
Sabo, continuou negando o acesso da defesa ao resultado do teste.
4) William Singletary, dono de um posto de gasolina próximo ao local onde ocorreu o tiroteio, veterano condecorado da guerra
do Vietnã, com amigos na polícia. Afirmou ter visto o incidente e comparecido à delegacia ainda na madrugada, onde declarou
explicitamente que o atirador não era Mumia. Disse também que o homem que atirou tinha saído do carro parado pelo policial
Daniel Falkner, e mais, que Cynthia White chegou ao local depois do tiroteio e perguntou a ele o que tinha acontecido. Na
delegacia, o depoimento de Singletary foi rasgado pelo detetive Green e, durante cinco horas, ele foi pressionado e ameaçado até
assinar outro depoimento, falso, declarando que não viu quem atirou. Em 1982, essas informações foram ocultadas da defesa e
do júri e Singletary não foi chamado a depor. Ele só veio a testemunhar nas audiências do recurso, mas o juiz Sabo considerou
suas declarações “confusas” e “indignas de crédito” e elas foram descartadas, apesar da própria polícia confirmar que ele
presenciara o tiroteio.
5) Arnold Howard e indícios materiais do homem que fugiu. No bolso do policial morto foi encontrada uma licença para dirigir
em nome de Arnold Howard. Ele foi preso na manhã seguinte ao crime e alegou que tinha passado o documento a Kenneth
Freeman, amigo e sócio do irmão de Mumia. As mãos de Arnold foram examinadas para determinar se ele tinha disparado uma
arma de fogo e o resultado foi negativo14. O próprio Kenneth Freeman também foi detido, liberado e, dois meses depois,
novamente preso. Cotejando o depoimento de Howard com o de Singletary, a conclusão é que Kenneth Freeman foi o homem
que Singletary viu saindo do carro, atirando contra o policial e fugindo em seguida15. Todos esses fatos — revelados por Howard
nas audiências do recurso — foram ilegalmente omitidos pela polícia. Tão grave quanto essa omissão foi a declaração do
responsável pelo inquérito policial, perante o júri de 1982, de que a polícia não considerava a hipótese de um terceiro homem no
local dos tiros. O juiz Sabo sentenciou que o testemunho de Arnold Howard era “não confiável”, ignorando que sua detenção, o
teste em suas mãos, suas declarações à polícia e uma prova material — o documento no bolso do policial — ficaram encobertos
por treze anos.
6) Gary Wakshul, policial que acompanhou Mumia no hospital16 e que não testemunhou em 1982 porque o promotor disse que
ele estava em férias. Nas audiências do recurso, a defesa o convocou para provar que nunca houve uma “confissão” de Mumia,
que ela fora fabricada. Embora capaz de fornecer detalhes abundantes e precisos sobre outros fatos daquela noite, o depoimento
de Wakshul sobre a “confissão” é repleto de contradições e lacunas. Num esforço desesperado para ajudar o promotor, ele disse
que demorou 64 dias para “lembrar” da confissão e que, na época, não a citou em seu relatório nem nos depoimentos que prestou
aos investigadores, porque “não tinha dado essa importância” ao fato17! Wakshul também explicou que, em 1982, durante o
julgamento, estava em casa, a poucas quadras do tribunal. Em férias sim, mas esperando para ser chamado a depor caso o
promotor julgasse conveniente. O juiz Sabo considerou que “não há indícios de que Wakshul fabricou a confissão”.
7) Deborah Kordanky, branca, sem passagem pela polícia, estava num hotel em frente ao local do tiroteio. Foi ela quem o
advogado de Mumia tentou convencer pelo telefone a depor no julgamento em 1982, sem sucesso. Nas audiências do recurso,
Deborah testemunhou e confirmou que, ao ouvir o tiroteio, olhou pela janela e viu um homem fugir correndo e,
espontaneamente, desceu do hotel onde estava para avisar os policiais, num esforço por ajudar. Em 1982, a promotoria tinha
manobrado para dificultar e retardar o acesso da defesa ao endereço e ao telefone de Deborah.
8) O revólver calibre 38 de Mumia, única evidência material da acusação. A polícia não apresentou nenhum laudo ou relatório
pericial, nem mesmo do teste mais elementar (se havia cheiro de pólvora na arma) que comprovasse se a arma foi disparada
naquela madrugada. O médico-legista relatou que a bala que matou o policial era calibre 44, fato não informado ao júri. Essa
bala desapareceu.
O Supremo Tribunal da Pensilvânia também julgou “isentos de imperfeições” os fatos relacionados a seguir:
1) O juiz considerou “não confiáveis” testemunhas que, ao revelar a verdade, estão se expondo a duras retaliações e arriscando a
própria liberdade, como no caso gritante de Veronica Jones e Pamela Jenkins nas audiências do recurso.
2) A polícia e a promotoria intimidaram, pressionaram, perseguiram e ofereceram favores a testemunhas, prática que nem
precisaria ter sido demonstrada pela defesa porque foi exercida repetidamente, sem o menor constrangimento, durante as
audiências do recurso18.
3) O promotor usou o direito de veto para excluir do júri pelo menos dez candidatos negros qualificados.
4) O juiz Sabo impediu Mumia de fazer sua própria defesa e mandou retirá-lo da sala do tribunal em 1982. Impediu a produção
de provas em favor de Mumia, multou Leonard Weinglass em mil dólares e mandou prender a assistente da defesa porque
pediam a convocação de testemunhas.
5) A direção da prisão violou e enviou ao governador cópia da correspondência legal de Mumia.
6) O promotor utilizou opiniões de Mumia, de quando este tinha dezesseis anos de idade, para convencer o júri a sentenciá-lo à
morte, mesmo existindo um caso idêntico que foi considerado inconstitucional e cuja sentença de morte foi revogada.
O recurso foi indeferido integralmente em todos e em cada um dos seus pontos, por decisão unânime. Não foi um
“erro jurídico” do Supremo Tribunal da Pensilvânia, mas uma decisão política, adotada para forçar a execução de Mumia
e aterrorizar a classe trabalhadora e a juventude.
Fora dos tribunais: censura, repressão... mobilização!
“Eles não querem apenas minha morte, eles querem meu silêncio.”
Mumia Abu-Jamal
O cerco implacável não ocorria apenas nos tribunais e na prisão. Assim que surgiu a primeira edição de Ao Vivo do
Corredor da Morte, em 1995, a FOP iniciou uma campanha para proibi-lo. Parlamentares estaduais e federais da
Pensilvânia pediram o confisco das receitas provenientes da venda do livro, fornecendo assim uma excelente explicação
do que querem dizer com “liberdade” e “livre iniciativa”.
Mumia foi proibido de receber visitas e de atender telefonemas, como punição pela ousadia de ter escrito e publicado
o livro. São práticas que, em outros países, o governo dos Estados Unidos costuma condenar como “violações de direitos
humanos”.
Recorrendo das restrições, Mumia conseguiu uma sentença judicial estabelecendo que o estado da Pensilvânia o
discriminou ao impedi-lo de conceder entrevistas à imprensa. O estado da Pensilvânia não demorou a tomar providências:
instituiu uma nova regra proibindo a imprensa de entrevistar ou fotografar qualquer prisioneiro das penitenciárias
estaduais.
Em 1997, um programa chamado Democracia Agora, da emissora Pacific Radio, divulgou uma série de gravações
com Mumia; na Filadélfia, elas seriam retransmitidas pela WRTI, a emissora da Universidade de Temple. A FOP
protestou novamente e a retransmissão foi cancelada no dia previsto para ir ao ar.
Em 7 de maio de 1998, a KGO-TV, filiada da rede ABC na área da Baía de São Francisco, transmitiu um programa de
doze minutos atacando o movimento internacional contra a execução de Mumia, com informações falsas e incorretas
praticamente em todas as questões abordadas.
Em janeiro de 1999, várias bandas de música, entre elas o conhecido grupo Rage Against the Machine, de Los
Angeles, alugaram um ginásio em Nova Jersey e organizaram um show de arrecadação de fundos para Abu-Jamal. O
governador Christy Whitman lamentou publicamente que nada pudesse fazer, por meios legais, para impedir a atividade e
convocou a população a não comparecer. O show — um dos muitos já realizados — foi um sucesso extraordinário.
Depois disso, um congresso da FOP realizado no Alabama votou uma resolução de boicote a toda “pessoa, produto ou
empresa” que expressasse solidariedade à luta por um novo julgamento de Mumia. O movimento de apoio a Mumia nos
EUA denunciava: “Pela primeira vez na história dos Estados Unidos, um grupo armado, autorizado a investigar, prender
e, se necessário, atirar contra cidadãos, organizou-se para ameaçar pessoas, produtos e empresas associadas a uma causa
política à qual eles se opõem. Será que isso é o exercício da liberdade de expresssão por pessoas autorizadas a usar seus
revólveres, ou será um passo na via da supressão da oposição?”
Entre os boicotados estão o ator Paul Newman, os cineastas Spike Lee e Oliver Stone, os escritores Norman Mailer e
Joyce Carol Oates, e a modelo Naomi Campbell. A resolução da FOP foi transmitida a todos os postos policiais e de
bombeiros dos EUA. Seus porta-vozes avisaram que boicotariam ativamente (quer dizer, mobilizariam policiais para
impedir) apresentações do cantor Sting e também do Rage Against the Machine.
Um boletim pró-Mumia19 alerta: “Essa situação lembra a ação das tropas da SS alemã nas décadas de 30 e 40. Os
policiais são investidos de autoridade governamental, em posição de poder sobre a população. Esse boicote é uma forma
direta de intimidação e censura das artes. Salvar Mumia é derrotar essa brutalidade!”
De 1999 a 2000: nos tribunais federais... e nas ruas
O indeferimento do recurso pelo Supremo Tribunal da Pensilvânia, em 29 de outubro de 1998, praticamente esgotou as
possibilidades jurídicas no âmbito estadual. Mumia ainda tentou requerer na mesma instância a oportunidade de
apresentar uma nova argumentação, mas isso foi negado em 25 de novembro de 1998.
Em 22 de abril de 1999, Mumia ingressava com um “mandado de revisão” no Supremo Tribunal dos EUA. É um
pedido para uma análise preliminar, antes do processo seguir a via normal dos recursos na esfera federal. O Supremo pode
aceitá-lo se considerar que estão em jogo questões legais relevantes.
No caso de Mumia, a revisão deveria examinar se constituiu violação de direitos constitucionais o fato de ele ter sido
retirado da sala do tribunal durante partes importantes do julgamento e impedido de fazer sua própria defesa, e de uma
jurada — negra e jovem — ter sido substituída numa reunião entre o juiz, a promotoria e a defesa na qual Mumia não
estava presente.
O pedido foi negado pelo Supremo Tribunal dos EUA em 4 de outubro de 1999.
Imediatamente, em 13 de outubro seguinte, o governador Tom Ridge assinou outra ordem de execução, marcando-a
para o dia 2 de dezembro de 1999.
Em 15 de outubro de 1999, a petição por habeas corpus — primeiro recurso federal regular por um novo julgamento
— foi apresentada num tribunal federal distrital da Pensilvânia (United States District Court for the Eastern District of
Pennsylvania).
A petição traz uma lista de 29 violações de direitos constitucionais de Mumia, cuidadosamente comprovada por fatos,
depoimentos, indícios e apoiada em sólida jurisprudência.
O processo foi distribuído para o juiz William Yohn. Em 25 de outubro de 1999, dez dias depois, ele suspendeu a
ordem de execução, situação que permanece até hoje.
A petição por habeas corpus de Mumia vai enfrentar dificuldades que passaram a existir a partir de 1996, já na
administração do presidente democrata Bill Clinton, quando foi votada uma lei federal (a Anti-Terrorism and Effective
Death Penalty Act) obrigando os tribunais federais a considerar como verdadeiro tudo que um tribunal estadual assim
considerou, sem fazer nenhum exame independente dos fatos. Significa que todas as novas provas materiais e testemunhos
apresentados para reivindicar um novo julgamento para Mumia correm o risco de simplesmente não serem levados em
conta porque o juiz Sabo e o Supremo Tribunal da Pensilvânia os descartaram ou consideraram “não confiáveis”.
Essa legislação é parte da onda “federalista”, um nome disfarçado da doutrina do “states rights” (direitos dos estados),
promovida pelos estados racistas do sul desde a guerra da secessão. A doutrina do “states rights” se opõe à revisão pelo
governo federal de medidas adotadas nos estados mesmo quando injustiças extremas são cometidas.
Apesar das dificuldades introduzidas pela nova lei, o juiz federal ainda pode entender que uma audiência foi
conduzida de forma imprópria e determinar, mais uma vez, o retorno do processo ao tribunal estadual. Ele pode, ainda,
aceitar pedidos para a realização de audiências no próprio tribunal federal, nos quais seja permitido à defesa apresentar
provas que foram descartadas nas instâncias anteriores.
Se o juiz William Yohn negar essas possibilidades, todo o recurso na esfera federal vai ser baseado exclusivamente
nos autos do processo instruído sob a condução do juiz Sabo.
Porque “o sistema judiciário não é obrigado a fazer justiça a não ser que nós recusemos a injustiça”, os trabalhadores e
a juventude não cessavam de levar às ruas o movimento em defesa de Mumia. Em 24 de abril de 1999, ocorreram
manifestações em diversos países, com marchas, passeatas e envio de delegações às embaixadas dos Estados Unidos. Na
costa oeste do país, os portuários realizaram greve por um novo julgamento para Mumia.
Em 15 de outubro, em Paris, num ato público com cerca de 10 mil pessoas, foi constituído o Comitê Internacional
“Salvar a Vida de Mumia Abu-Jamal” e lançada uma campanha política internacional de massas dirigida ao presidente
Bill Clinton, reivindicando a aplicação da Constituição dos Estados Unidos, que permite ao governo federal investigar
casos de violação de direitos constitucionais cometidos nos estados. Seu instrumento é a Carta Aberta a Bill Clinton, que
logo iria recolher mais de 1,5 milhões de assinaturas em setenta países.
Em 12 de janeiro de 2000, com base nessa campanha, uma delegação internacional de sindicalistas, parlamentares e
militantes da Espanha, Grã-Bretanha, Alemanha, França, Martinica e Estados Unidos esteve em Washington para exigir
uma intervenção federal em favor de Mumia Abu-Jamal. Foi recebida no Departamento de Justiça dos EUA por
assessores da secretária Janet Reno, que reconheceram que o governo federal tem poderes para intervir no caso e se
comprometeram a dar uma resposta a cada um dos documentos que lhes foi entregue.
Dois dias depois, em 14 de janeiro de 2000, o juiz federal Yohn realizou audiências, tanto com a defesa quanto com a
promotoria, para “clarificar a programação dos procedimentos legais, tendo em vista que o parecer de 8 de dezembro do
apelante (Mumia) indicava sua intenção de apresentar requerimentos adicionais”20. Na ocasião, ele anunciou que, para
tomar a decisão de realizar ou não audiências com testemunhas, ele iria aceitar qualquer documento ou depoimento oral
que questionasse a forma pela qual os fatos foram apresentados no processo de 1982.
Em 20 de fevereiro de 2000, em Nova York, realizou-se uma conferência nacional de emergência, convocada pelos
grupos e comitês que desenvolvem a campanha nos EUA, em particular a International Concerned Family and Friends of
Mumia. A conferência convocou para 13 de maio desse ano uma Jornada Internacional para Salvar a Vida de Mumia AbuJamal.
Em 12 de maio 2000, na cidade operária de Oakland – vizinha a São Francisco – sindicalistas de todo o país
constituem o Labor for Mumia (Movimento Operário por Mumia). Esse comitê impulsionou numerosas resoluções do
movimento operário em defesa de Mumia, tal como do Congresso do Sindicato de Serviços (SEIU), do Sindicato de
Trabalhadores dos Correios e do Congresso da AFL-CIO da Califórnia – representando 1,8 milhões de sindicalizados.
Em 13 de maio de 2000, a Jornada Internacional para Salvar a Vida de Mumia Abu-Jamal aconteceu nos quatro cantos
do mundo, do Paquistão à África do Sul, da França a São Francisco, do Brasil à Martinica, passando pelo Togo. Dezenas,
centenas de manifestações e atos públicos nas embaixadas norte-americanas.
Em 22 de junho de 2000, na prisão de Huntsville, no Texas, Shaka Sankofa (Gary Graham), um negro norteamericano, também condenado à morte quando jovem, dezoito anos antes, nas mesmas condições injustas que Mumia, foi
executado por ordem do governador e candidato republicano Bush, sob o silêncio cúmplice de Al Gore, candidato
democrata.
Entre julho e agosto, uma odiosa campanha se desenvolveu na imprensa dos Estados Unidos e da França, a partir de
um artigo da revista Time intitulado “Good cause, wrong guy” (literalmente, “Uma causa justa, um cara culpado”), sob o
ângulo: a pena de morte é condenável mas Mumia é culpado.
Entre março e junho de 2000, o juiz William Yohn recebeu, em favor de Mumia, quatro Amici Curiæ Legal Briefs,
um instrumento legal pelo qual entidades ou pessoas que têm um interesse legítimo num caso podem apresentar suas
considerações. É muito comum nos processos envolvendo direitos civis, como é o de Mumia. Um dos Amici Curiæ foi
apresentado por 22 deputados do Parlamento Britânico21.
Em 7 de agosto de 2000, o juiz Yohn rejeitou a inclusão no processo dos Amici Curiæ, declarando-os
“desnecessários” e “inúteis”, acrescentando que sabia que Abu-Jamal estava sendo apoiado por uma ampla campanha
internacional.
Em 13 de agosto, em Los Angeles, na véspera da convenção do Partido Democrata, mais de 3.500 pessoas vão às ruas
por Mumia. Em 3 de outubro, em Boston, por ocasião de um debate entre Bush e Al Gore, ocorre nova manifestação, de
mais de 2.500 pessoas, exigindo um novo julgamento.
Em 16 de outubro de 2000, Chuck D, do grupo de rap Public Enemy, visita Mumia na prisão.
Em 7 de novembro de 2000, ocorrem as eleições presidenciais nos EUA, e em janeiro de 2001 se encerra o mandato
de Clinton.
No dia 9 de dezembro de 2000 completam-se dezenove anos desde a madrugada em que o policial Daniel Falkner foi
morto e Mumia Abu-Jamal foi baleado, algemado, espancado, preso e injustamente acusado de assassinato.
A petição por habeas corpus, que exige um novo e justo julgamento, ainda se encontra num tribunal distrital federal da
Pensilvânia, nas mãos de um juiz federal. Se ela for negada, vai a um tribunal federal de apelação. Se também aí o recurso
não for vitorioso, o último e final estágio é o Supremo Tribunal dos EUA.
Muitos outros recursos já trilharam um caminho semelhante. Alguns traziam nomes que ficaram gravados na história.
“A classe trabalhadora, especificamente os trabalhadores negros militantes, tem sido alvo principal dos patrões. Os mártires do
Haymarket foram vítimas da repressão ao movimento pela jornada de oito horas, enquanto Joe Hill era executado no auge da
febre da guerra imperialista em 1915. Sacco e Vanzetti foram acusados injustamente e executados por um crime que não
cometeram, nos anos 20, como parte da campanha anticomunista e antiimigrantes. Julius e Ethel Rosemberg foram vítimas da
caça às bruxas macarthista após a Segunda Guerra, que visava a esquerda e os sindicatos operários. Nos anos 80, Mumia AbuJamal foi vítima de um endurecimento racista contra a militância negra, no fim da humilhante derrota dos Estados Unidos na
guerra do Vietnã22.”
É possível arrancar Mumia Abu-Jamal das mãos daqueles que querem assassiná-lo legalmente. A tarefa é de todos e
de qualquer um que rejeite a barbárie.
Façamos nossa a divisa do movimento operário dos Estados Unidos:
“An injury to one is an injury to all23!”
Edison Cardoni
Dezembro de 2000
Notas
1. Este relato complementar, escrito para o Fórum em Defesa da Vida de Mumia Abu-Jamal, Brasília, Distrito Federal, é uma compilação feita a
partir de recursos judiciais apresentados nos tribunais pela equipe de advogados de Mumia (o recurso pós-condenatório ingressado em 5 de junho
de 1995 na Court of Common Pleas of Philadelphia County, e a petição por habeas corpus de 15 de outubro de 1999 requerida à United States
District Court for the Eastern District of Pennsylvania); análises elaboradas pelo jornalista e escritor Clark Kissinger; textos do advogado de
Mumia, Leonard Weinglass (disponíveis no site da Refuse & Resist — www.refuseandresist.com — e da International Concerned Family &
Friends of Mumia Abu-Jamal — www.mumia.org); textos do Labor for Mumia (associação do movimento operário que apóia Mumia); e boletins
do Comitê Internacional “Salvar a Vida de Mumia Abu-Jamal”.
2. Mumia ajuizou ação federal contra a administração da prisão. Em 4 de dezembro de 1996, a United States District Court for the Western District
of Pennsylvania sentenciou que a interceptação da correspondência legal de Mumia constituiu violação dos seus direitos previstos na sexta e na
décima quarta emendas à Constituição dos EUA.
3. Vide o Pósfacio de Leonard I. Weinglass, “O processo de Mumia Abu-Jamal”.
4. Cynthia depôs no julgamento de 1982 e foi a principal testemunha do promotor, única a afirmar que viu uma arma na mão de Mumia. Várias
outras testemunhas disseram ter visto Cynthia num local de onde ela não poderia enxergar o que ocorreu. Ela vinha sendo procurada tanto pela
defesa quanto pela promotoria desde as primeiras audiências do recurso, em 1995.
5. Digitais de Cynthia White: PM 11 12 CO 16 DO 08 13 PI 18.
Digitais de Cynthia Williams: PM 13 12 17 16 PO 183 13 CI 20.
6. Nessa questão crucial, o juiz Sabo impediu a defesa de apresentar os seguintes testemunhos:
a) Donald Burton: investigador particular contratado pela defesa que entrevistou inúmeras pessoas que identificaram Cynthia White por
fotografias afirmando que, em 1997, ela estava viva e ainda freqüentava os bairros do norte da Filadélfia.
b) Christopher Milton: outro investigador da defesa que comprovou que o número do cartão de seguridade social atribuído à pessoa
falecida em Nova Jersey é de uma mulher chamada Migdalia Cruz, nascida em Porto Rico em 1957, que não é Cynthia White e que
continuava viva.
c) Charles Grant: um promotor que fazia parte da equipe de acusação no julgamento do recurso de Mumia na primeira instância, em
1995, e que confirmou ter pedido pessoalmente para guardas da prisão e outros funcionários de Massachusetts e outros estados para que
ajudassem a localizar Cynthia White naquela época, confirmando que a polícia tinha conhecimento de que ela estava viva.
7. A fita veio ao conhecimento público em abril de 1997, quando Jack McMahon disputava uma eleição com o promotor titular do distrito, Lynne
Abraham.
8. Tanto a defesa quanto a promotoria podem exercer o direito de vetar jurados.
9. J.E.B. versus Alabama, 1994.
10. O promotor do caso Mumia selecionou um júri de 8 ou 9 brancos, mais 3 ou 4 negros “estáveis, velhos e conservadores”. Os jurados negros
aceitáveis foram:
a) Jennie Dawley: trabalhador braçal aposentado, morador da região sudoeste da Filadélfia havia vinte anos; religioso.
b) James Burgess (vetado pela defesa): cerca de cinqüenta anos, morador do norte da Filadélfia havia trinta anos.
c) Savannah Davis: analista financeiro do governo federal; cresceu na Carolina do Sul, empregado do governo havia 29 anos e com dois
filhos também funcionários públicos.
d) Basil Malone: cresceu nas Ilhas Virgens (litoral da Flórida), onde trabalhou na instalação de linhas telefônicas; mudara-se para a
Filadélfia dez anos antes do julgamento; seus filhos tinham, na época, 21 e 16 anos.
11. Em 1º de agosto de 1998, uma quarta petição ainda tentava garantir a apresentação de provas de que a sentença de morte devia ser cancelada,
tendo em vista as disparidades raciais e geográficas na sua aplicação e que o promotor utilizou vetos baseados em critérios raciais para selecionar o
júri.
12. “Opinion in support of denial of appellant’s motion for recusal”, de 29 de outubro de 1998.
13. Vide texto citado de Leonard Weinglass.
14. Esse exame elementar não foi realizado nas mãos de Mumia (ou não foi tornado público).
15. Kenneth Freeman apareceu morto em circunstâncias misteriosas na noite de 13 de maio de 1985, horas depois de a polícia ter bombardeado a
sede do MOVE na Filadélfia.
16. Vide texto citado de Leonard I. Weinglass.
17. Na verdade, a “confissão” foi fabricada em retaliação, por Mumia ter registrado queixa contra o espancamento que ele sofreu na madrugada
em que foi baleado e preso; por isso ela apareceu somente dois meses depois.
18. As ameaças da polícia impediram também que William Cook, o irmão de Mumia, testemunhasse em 1982, por medo de ser incriminado e
preso em retaliação; na fase do recurso, o tribunal recusou-se a lhe assegurar proteção legal e, aconselhado por seu advogado, ele novamente
desapareceu.
19. Do Comitê Internacional “Salvar a Vida de Mumia Abu-Jamal”.
20. Juiz Yohn, “Amici Petitions Denied — Memorandum and Order”, de 7 de agosto de 2000.
21. Os quatro Amici Curiæ são: 24 de março de 2000, pela seção da Filadélfia da American Civil Liberties Union e da National Association for the
Advancement of Colored People; 3 de abril de 2000, pelo Center for Human Rights and Constitucional Law, Internacional Association of
Democratic Lawyers, National Conference of Black Lawyers, National Lawyers Guild, Prisoners Self Help Legal Clinic e Southern Poverty Law
Center; 23 de junho de 2000, por 22 membros do Parlamento Britânico; 28 de junho de 2000, pela Chicana/Chicano Studies Foundation.
22. De um documento do Acordo Internacional dos Trabalhadores (AcIT), que impulsionou a jornada de 24 de abril de 1999.
23. “O ataque a um é um ataque a todos!”