estudos urbanos

Transcrição

estudos urbanos
REVISTA BRASILEIRA DE
ESTUDOS
URBANOS
publicação da associação nacional de pós-graduação
e pesquisa em planejamento urbano e regional
E REGIONAIS
ISSN 1517-4115
REVISTA BRASILEIRA DE ESTUDOS URBANOS E REGIONAIS
Publicação semestral da ANPUR
Volume 5, número 1, maio de 2003
EDITOR RESPONSÁVEL
Marco Aurélio A. de Filgueiras Gomes (UFBA)
COMISSÃO EDITORIAL
Ana Clara Torres Ribeiro (UFRJ), Maria Flora Gonçalves (Unicamp),
Norma Lacerda (UFPE), Roberto Monte-Mór (UFMG)
CONSELHO EDITORIAL
Ana Fernandes (UFBA), Carlos Bernardo Vainer (UFRJ), Carlos Roberto M. de Andrade (USP/São Carlos),
Circe Maria da Gama Monteiro (UFPE), Clélio Campolina Diniz (UFMG), Flávio Magalhães Villaça (USP),
Frank Svensson (UnB), Frederico de Holanda (UnB), Jan Bitoun (UFPE), Lícia Valladares (IUPERJ),
Marcus André B. C. de Melo (UFPE), Marta Ferreira Santos Farah (FGV/SP), Martim Smolka (UFRJ),
Maurício Abreu (UFRJ), Milton Santos (USP) in memorian, Tania Bacelar (UFPE), Tânia Fischer (UFBA),
Wilson Cano (Unicamp), Wrana Panizzi (UFRGS)
COLABORADORES DESTE NÚMERO
Ana Cristina Fernandes (UFSCar), Eloísa Petti Pinheiro (UFBA), Élvia M. Cavalcanti Fadul (UFBA), José Antônio Fialho
Alonso (FEE), José dos Santos Cabral Filho (UFMG), José Tavares Correia de Lira (USP), Lilian Fessler Vaz (UFRJ), Lúcia
Cony Faria Cidade (UnB), Paola Berenstein Jacques (UFBA), Pedro Abramo (UFRJ), Raquel Rolnik (PUCCampinas),
Ricardo Toledo Silva (USP), Sônia Marques (UFRN), Tamara Benakouche (UFSC), Virgínia Pontual (UFPE)
PROJETO GRÁFICO
João Baptista da Costa Aguiar
CAPA, COORDENAÇÃO E EDITORAÇÃO
Ana Basaglia
REVISÃO
Fernanda Spinelli
ASSISTENTE DE ARTE
Priscylla Cabral
FOTOLITOS
Join Bureau de Editoração
IMPRESSÃO
GraphBox Caran
Indexado na Library of Congress (E.U.A.)
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais – v.5, n.1,
2003. – : Associação Nacional de Pós-Graduação e
Pesquisa em Planejamento Urbano e Regional; editor
responsável Marco Aurélio A. de Filgueiras Gomes : A Associação, 2003.
v.
Semestral.
ISSN 1517-4115
O nº 1 foi publicado em maio de 1999.
1. Estudos Urbanos e Regionais. I. ANPUR (Associação
Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Planejamento
Urbano e Regional). II. Gomes, Marco Aurélio A. de Filgueiras
711.4(05) CDU (2.Ed.)
711.405 CDD (21.Ed.)
UFBA
BC-2001-098
REVISTA BRASILEIRA DE
ESTUDOS
URBANOS
publicação da associação nacional de pós-graduação
e pesquisa em planejamento urbano e regional
E REGIONAIS
S
U
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Á
ARTIGOS
R
I
O
DE J ANEIRO
– UMA AVALIAÇÃO DAS AÇÕES DO PRODESPOLUIÇÃO DA BAÍA DE GUANABARA –
Ana Lucia Britto
GRAMA DE
9 O E STADO E A E XCEÇÃO – O U
E XCEÇÃO ? – Francisco de Oliveira
O
E STADO
DE
RESENHAS
15 FAVELAS NO M UNICÍPIO DE S ÃO PAULO – E S TIMATIVAS DE P OPULAÇÃO PARA OS ANOS DE
1991, 1996 E 2000 – Eduardo Marques, Haroldo da
Gama Torres e Camila Saraiva
31
A
81 Regiões e cidades, cidades nas regiões. O desafio
urbano-regional, de Maria Flora Gonçalves, Carlos
Antônio Brandão e Antônio Carlos Galvão – por Pedro
P. Geiger
POLÍTICA DE PRODUÇÃO HABITACIONAL
– C ONSTRUINDO
A LGUMAS Q UESTÕES – Cibele Saliba Rizek, Joana
Barros e Marta de Aguiar Bergamim
85 A cidade da informalidade: o desafio das cidades latino-americanas, de Pedro Abramo – por Ana Clara
Torres Ribeiro
47 D AS
–
– Alexandre
88 Apologia da deriva: escritos situacionistas sobre a cidade, de Paola Berenstein Jacques – por Thais de Bhanthumchinda Portela
63 IMPLANTAÇÃO DE INFRA-ESTRUTURA DE SANEAMENTO NA R EGIÃO M ETROPOLITANA DO R IO
91 De Nova Lisboa a Brasilia: L’invention d’une capitale (XIXe- XXe siècles), de Laurent Vidal – por Luís
Octávio da Silva
POR MUTIRÕES AUTOGERIDOS
ECONOMIAS DE AGLOMERAÇÃO ÀS EX -
TERNALIDADES DINÂMICAS DE CONHECIMENTO
POR UMA RELEITURA DE
S ÃO PAULO
Tinoco
ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA
EM PLANEJAMENTO URBANO E REGIONAL
–
ANPUR
GESTÃO 2001-2003
PRESIDENTE
Maria Cristina da Silva Leme (FAU/USP)
SECRETÁRIA EXECUTIVA
Suzana Pasternak (FAU/USP)
DIRETORES
Heloísa Soares de Moura Costa (UFMG)
Leila Christina Dias (UFSC)
Rainer Randolph (UFRJ)
Sarah Feldman (USP/São Carlos)
CONSELHO FISCAL
Eva Machado Barbosa Samios (UFRGS)
Paulo Castilho Lima (UnB)
Virgínia Pitta Pontual (UFPE)
GESTÃO 2003-2005
PRESIDENTE
Heloisa Soares de Moura Costa (IGC/UFMG)
SECRETÁRIO EXECUTIVO
Roberto Luis de Melo Monte-Mór (CEDEPLAR/UFMG)
SECRETÁRIA ADJUNTA
Jupira Gomes de Mendonça (NPGA/EA/UFMG)
DIRETORES
Ana Clara Torres Ribeiro (UFRJ)
Ana Fernandes (UFBA)
Brasilmar Ferreira Nunes (UnB)
CONSELHO FISCAL
Carlos Roberto Monteiro de Andrade (USP/SC)
José Antônio Fialho Alonso (FEE)
Sonia Marques (UFRN)
Apoios
EDITORIAL
Os desafios colocados ao planejamento e a imperiosa necessidade de repensarmos teorias e práticas, presentes no tema central do XX Encontro Nacional da Anpur, ocorrido em Belo Horizonte, MG, entre 26 e 30 de maio de
2003, balizaram as opções da Comissão Editorial para a organização desta edição da Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais. Através de um conjunto de textos elaboradas com rigor conceitual e metodógico e diversidade de tratamentos disciplinares, construímos um panorama que traz para os nossos
leitores questões cruciais referentes ao planejamento e à realidade urbanoregional do Brasil contemporâneo, vistas, sobretudo, através de dois casos paradigmáticos – São Paulo e Rio de Janeiro.
De uma maneira geral, todos os artigos remetem aos desdobramentos sobre
a cidade e o território – e em particular o planejamento – do avanço neoliberal,
reestruturação produtiva, globalização e redefinição do papel do Estado. Neste
sentido, o artigo de Francisco de Oliveira com que abrimos esta edição, originalmente apresentado como conferência na abertura do XX Encontro Nacional da
Anpur, baliza de forma instigante a discussão sobre as relações entre o Estado e
o urbano no Brasil de hoje, colocando centralmente em cheque o papel do planejamento diante das metamorfoses por que ele passou nas últimas décadas: da
busca da normatividade à racionalização da exceção, como define o autor.
O quadro de carências sociais e precariedade habitacional que caracteriza
as metrópoles brasileiras está presente em duas das contribuições reunidas neste número. O artigo de Eduardo Marques, Haroldo da Gama Torres e Camila Saraiva dá continuidade e aprofunda a contribuição publicada anteriormente na RBEUR, buscando rever as estimativas da população favelada em cada um
dos distritos da capital paulista entre 1991 e 2000. Ao fazê-lo, não só contribui para o debate sobre as metrópoles brasileiras, marcadas pelo aumento do
desemprego e do emprego informal e, conseqüentemente, pelo desenvolvimento de territorialidades precarizadas, mas constitui também subsídio para a
definição de políticas públicas na área da habitação. Outra contribuição desse
estudo situa-se na possibilidade de se utilizar a metodologia desenvolvida pelos autores em estudos semelhantes sobre outras cidades.
Já o artigo de Cibele Saliba Rizek, Joana Barros e Marta de Aguiar Bergamim discute mudanças recentes na política de produção habitacional por mutirão autogerido, destacando a trajetória que leva essa prática – do caráter
emancipatório que lhe era atribuído nos anos 70, a elemento importante no
campo das políticas oficiais nos anos 80 e 90 – no quadro de desresponsabilização do Estado e de desmonte das políticas públicas e dos direitos sociais.
Nesse percurso, as autoras resgatam a história das chamadas assessorias técnicas (e, por extensão, a do debate sobre o papel social da arquitetura), retomam
indagações pioneiras de Francisco de Oliveira em Crítica da razão dualista e
analisam detidamente as diversas formas que tomou a prática recente dos
mutirões, os conflitos que os atravessam e os limites que lhe são impostos.
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O artigo de Alexandre Tinoco explora uma dupla perspectiva, ao desenvolver uma reflexão teórica sobre o conceito de aglomeração no campo da
economia regional e urbana, e ao apropiar-se dela para elaborar uma releitura da Região Metropolitana de São Paulo, baseada no papel que o ambiente
metropolitano pode desempenhar no processo inovativo das empresas nela localizadas, o que leva o autor a identificar aí a existência de diferentes dinâmica industriais.
Finalmente, o artigo de Ana Lúcia Britto discute outro aspecto central na
problemática urbana brasileira atual – o da degradação ambiental –, procedendo a uma minuciosa avaliação do Programa de Despoluição da Baía da Guanabara, mostrando os problemas, em sua concepção e execução, que o impedem de atender aos objetivos a que se propunha, com destaque para aqueles
que se referem aos processos de avaliação e decisão, às tecnologias empregadas
e às relações entre capacidade dos sistemas instalados e ampliação das redes.
Na seção de Resenhas, são apresentados quatro importantes lançamentos
editoriais recentes: Regiões e cidades, cidades nas regiões; o desafio urbano-regional, organizado por Maria Flora Gonçalves, Carlos Antônio Brandão e Antônio Carlos Galvão, obra que nos fornece um rico e multifacetado panorama da
realidade urbano-regional do Brasil contemporâneo; A cidade da informalidade: o desafio das cidades latino-americanas, organizado por Pedro Abramo, a
partir de agora referência importante para a discussão da regularização fundiária e das múltiplas faces da pobreza urbana em países periféricos; Apologia da
deriva: escritos situacionistas sobre a cidade, em que sua organizadora, Paola Berenstein Jacques, nos brinda com uma coletânea de textos dos situacionistas,
importante movimento que entre os anos 50 e 60 formulou uma dura crítica
ao urbanismo funcionalista; e De Nova Lisboa à Brasília: l’invention d’une capitale; XIXè-XXè siècles, de Laurent Vidal, que em boa hora vem enriquecer a
historiografia brasileira sobre cidades novas. Estas obras foram resenhadas, respectivamente, por Pedro Pinchas Geiger, Ana Clara Torres Ribeiro, Thais de
Bhanthumchinda Portela e Luís Octávio da Silva, a quem agradecemos a valiosa contribuição.
Finalmente, gostaria de registrar a participação de recursos do CNPq e da
Finep para a produção deste número e o apoio estratégico, também sempre
fundamental, do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da
Universidade Federal da Bahia, onde a REBEUR encontra-se sediada desde maio
de 2001.
MARCO AURÉLIO A. DE FILGUEIRAS GOMES
Editor Responsável
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A RTIGOS
O ESTADO E A EXCEÇÃO
OU O ESTADO DE EXCEÇÃO?
FRANCISCO
DE
1
OLIVEIRA
Os oprimidos sabem do que se trata
Walter Benjamin.Teses sobre a História.
R E S U M O O texto discute o papel do Estado hoje no Brasil e em particular o do planejamento. Se historicamente as relações entre o Estado e o urbano pautaram-se por um esforço de normatividade da relação capital-trabalho, cabendo ao planejamento enquadrar a exceção e transformá-la em norma, transformações radicais recentes na economia e sociedade
brasileiras sugerem que a exceção parece ter enquadrado o planejamento. Às desigualdades históricas da sociedade brasileira vieram juntar-se aquelas advindas da reestruturação produtiva
e da globalização, reformatando o mercado, funcionalizando a relação Estado–capital, transformando políticas sociais em antipolíticas de funcionalização da pobreza, erigindo em norma o que antes dela se afastava, pontuando um esforço teórico que transitou da busca da normatividade para a racionalização da exceção.
PA
L AV R A S - C H AV E
sigualdade social; Brasil.
Relações Estado–urbano; planejamento urbano; de-
UMA BREVE HISTÓRIA DO TEMPO PERDIDO
Num passado que pode ser localizado no século XX – o breve, segundo Hobsbawm
– as relações entre o Estado e o urbano, o Estado e o planejamento podiam ser caracterizadas, ainda que toscamente, como o de um enorme esforço de normatividade para lograr estabelecer a relação capital–trabalho, promover as condições gerais da produção para a industrialização, utilizando, para tanto, até o limite, a coerção estatal como substituto
do mercado, e finalmente, no capítulo da relação com o planejamento, inventar uma política que metamorfoseasse o conflito de classes numa “convergência de contrários”, sem
jogo de soma zero, anti-schmittiana no sentido de eliminar a relação amigo–inimigo. A
cidade era o teatro dessas operações e todas as formas de planejamento de alguma maneira buscavam funcionalizá-la – na maior parte das vezes almejando-se ingenuamente a supressão do conflito – para uma nova divisão social do trabalho e novas relações de classe.
Numa palavra, ainda que com métodos excepcionais, tais relações tinham como norte paradigmático enquadrar a exceção e transformá-la em norma.
Seria longo, fastidioso e pretensioso resumir o intenso processo de transformações
que alterou radicalmente a economia e a sociedade brasileiras, fazendo a industrialização,
urbanizando-a totalmente, tutelando o conflito de classe, utilizando a coerção estatal como força propulsora e ordenadora tanto do aprofundamento do capitalismo quanto de
suas relações sociais de produção, o que quer dizer, em geral, planejando. Mas tais transformações e seus métodos não lograram normatizar o excepcional, enquadrando a exceção. Parafraseando uma frase de Paul Baran, dita há muito tempo, não foi o planejamento que enquadrou a exceção, mas foi a exceção que enquadrou o planejamento.
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1 Este texto foi preparado
como base para a conferência de abertura do X Encotro Nacional da ANPUR –
Associação Nacional de
Pós-Graduação e Pesquisa
em Planejamento Urbano e
Regional, Belo Horizonte,
26.5.2003.
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No fundo desse processo, jaz a enorme desigualdade que marca a sociedade brasileira. Toda a transformação ocorrida fundou outra desigualdade, qualitativamente diferente
sobretudo quando vista sob a ótica da liberdade, e quantitativamente maior se observadas
as distâncias entre os muito ricos e os muito pobres. Mas a nova diferença quantitativa
obriga os dominados a um esforço descomunal para superá-la, o que introduz uma nova
qualidade na desigualdade, que, se já não é a completa ausência de liberdade, é a quase
completa ausência de horizonte de superação. De fato, embora continuemos a ser uma
sociedade racista, na semântica social e nas relações sociais o escravismo foi superado. Mas
superar a desigualdade capitalista supõe poder superar o próprio capitalismo, o que é uma
tarefa de titãs.
Seria fácil dizer que a herança escravista foi sempre o grande obstáculo para a igualdade, com o que se estará dizendo uma meia-verdade: o Sul dos Estados Unidos foi tão
ou mais escravista que o Nordeste brasileiro – lá chegou-se até à fazenda de criação de escravos – o que sugere que Casa grande & senzala é o nosso E o vento levou. Deixo de graça essa sugestão para o novo cinema brasileiro, já que as reconstituições da Globo não
conseguem criar o clima de nostalgia de um temps perdu, que é a chave do apelo do romance e do charmoso filme. Mas o Sul norte-americano, sob a pressão hegemônica do
Norte industrializado, finalmente venceu a barreira escravista, cujo epílogo foi a brava
campanha de direitos civis da segunda metade do século XX. Nossa cordialidade, que resolveu a abolição sem sangue – de novo, os escravos sabiam o que queria dizer isso – não
foi capaz de impor ao Norte – nos adverte Evaldo Cabral de Melo que Nordeste é uma
invenção do século XX – escravista a ética do Sudeste industrializado.
A coerção estatal também foi característica de todos os capitalismos tardios, entre
os quais se sobressaem a Alemanha e a Itália. Mas os dois países “excepcionais”, justamente onde a besta nazi-fascista sentou suas patas sujas de sangue, transformaram-se em
democracias exemplares e varreram com a desigualdade, de forma que hoje comparecem
entre os mais igualitários, sob o forte impulso de crescimento do capitalismo nos Trinta
Anos Gloriosos. Conhecemos as regressões que a Itália vem experimentando, mas nada
comparável ao país semi-feudal que o neo-realismo retratou. A forma autoritária e muitas vezes ditatorial também não é argumento suficiente, embora necessário, para explicar o caso brasileiro.
Não foi ausência de crescimento capitalista o que explica a profunda desigualdade:
pelo contrário, o intenso crescimento durante um século talvez esteja, paradoxalmente,
entre suas causas mais importantes. Sob as tenazes do excepcional crescimento, combinado com a herança escravista e a poderosa coerção estatal, o estatuto da força de trabalho rebaixado para tutela estatal produziu a extorsão da plus-valia mais avantajada e uma
distribuição da renda que se iguala à dos mais pobres países da África, onde “capitalismo” é somente força de expressão. Essa compactação de tempo histórico, no século XX,
em que parece que toda a letargia do livre-cambismo do século precedente, que obstaculizou a industrialização, foi acelerada até o limite, chamou para regimes de exceção, na
longa “via passiva”. Se o nazismo durou apenas doze anos na Alemanha e o fascismo, no
máximo vinte na Itália, nossas ditaduras na segunda metade do século XX alcançaram
a invejável (?) marca de 35 anos, igualando-se a Franco e Salazar. A desigualdade brasileira mora aí.
A progressão da relação salarial foi coartada no começo dos anos oitenta do século
passado pela combinação da reestruturação produtiva com a globalização; isto forneceu
as bases para um enorme avanço da produtividade do trabalho que jogou para as calen10
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das a possibilidade e/ou necessidade da relação formal de trabalho: pelo contrário, o que
se chamou no passado de “informalidade” tornou-se a regra. Pede-se ao trabalhador formal os atributos do “informal”: flexibilidade, polivalência, iniciativa. Tais atributos encontram-se nos camelôs dos centrões de nossas cidades. Aparece aí o primeiro elemento
da exceção: o mercado de trabalho foi virado pelo avesso.
A revolução molecular-digital atuando sobre um mercado de trabalho mais flexível
que as canas do deserto de que falava São João – o das festas juninas, não o evangelista
– pavimenta a flexibilização, de modo a produzir o espantoso fenômeno de que os vendedores ambulantes de refrigerantes e cerveja nas portas dos estádios duas vezes por semana – lembram Milton Nascimento: “Brasil vazio nas tardes de domingo/isto é o país
do futebol” – tornaram-se funcionais para o capital financeiro. O formidável ataque
ideológico neoliberal formatou um consenso pelo avesso: tudo que era sólido desmancha-se no ar. Emprego estavel é privilégio, regras de previsibilidade foram traduzidas como burocracia.
A financeirização das economias e principalmente dos orçamentos públicos retira
autonomia do Estado; produz-se uma autonomização do mercado, que é o outro pilar da
exceção. Mas a contradição está em que tornado supérfluo pela autonomização, o Estado
se funcionaliza como uma máquina de arrecadação para tornar o excedente disponível para o capital. E a exceção está em que as políticas sociais não têm mais o projeto de mudar
a distribuição da renda – que foi lograda ao longo da experiência do Welfare, não tenhamos o falso pudor de não admiti-lo, como os partidos comunistas não quiseram reconhecer o papel do reformismo social-democrata – e se transformaram em antipolíticas de funcionalização da pobreza.
O que estou descrevendo é o Ornitorrinco, com maísculas, porque tornou-se o novo “modo de produção” da periferia capitalista. Capital financeiro na cabeça, informatização em todos os meios de produção e de consumo, dívida externa que representa um
adiantamento de não menos que 40% sobre o PIB e porcentagem mais alta para a dívida
interna, setor financeiro com 9% do PIB, proporção que nem os USA e o UK, principais
centros financeiros do capitalismo globalizado alcançam, altíssima informalidade que beira os 60% da PEA, pobreza na qual vegetam 70 milhões – 41% da população – abaixo da
linha dos US$ 2/per capita/dia (em 1998, segundo o PNUD) e que é concomitante e provocada pela digitalização-molecularização do capital. Isto é, mamífero com bico e patas
de pato, semi-aquático, cujas mamas são pêlos, e... que se reproduz oviparamente, modo
barroco de dizer: bota ovo.
As cidades são os lugares por excelência dessas exceções, e o conjunto delas é a administração da exceção. Trata-se de um Estado de Exceção, na medida justa da teoria
schmittiana, pois o soberano é o que decide a exceção: quem é o soberano? O mercado,
não como abstração, mas precisamente o que coloca 41% abaixo da linha da pobreza.
Pensemos: o subdesenvolvimento não era a exceção, era uma singularidade histórica, que
assinalava precisamente que ele havia sido produzido pelo capitalismo em expansão, o
qual, montando-se sobre sociedades criadas ou apropriadas para produzir o excedente que
na verdade criou o capitalismo mercantil, não poderia, jamais, reproduzir o original. Roberto Schwarz mostrou isso magnificamente em sua interpretação de Machado de Assis,
a chamada originalidade da cópia, título que FHC apropriou para responder às críticas sobre a “teoria” da dependência.
O Ornitorrinco é a exceção permanente, porque já não é singularidade: ele contém
todos os elementos do original desenvolvido, já não há espaços pré-capitalistas, já não há
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fronteiras de expansão do capital. O alto desemprego – 20% em São Paulo – não é sinal
de desocupação de fatores – obrigado, neoclássicos – por insuficiência de capital, mas, o
contrário, por excesso de capitalização. É a cópia do original que causa o desemprego e a
péssima distribuição de renda, que se agravará na medida em que o desenvolvimento é retomado, e o será, de forma intermitente, mas sem sustentabilidade.
Uma vez mais, convoco ao exame empírico: as políticas chamadas de emprego e renda são a exceção do desemprego; elas aprofundam o desemprego, ou o mantém, com o
propósito de combatê-lo! As políticas de mutirões para satisfazer a demanda por habitação são a cidade como exceção; é a desmercantilização da força de trabalho sob a forma
de trabalho virtual que prepara o enorme exército “informal” – utilizo o termo apenas
porque é do nosso jargão, para economizar, mas ele já não tem poder explicativo – para
as portas dos estádios de futebol, ou os arredores dos formosos teatros, ou as bancárias e
banqueiras ruas dos centros de nossas cidades. O Fome Zero é o marketing como política. Mesmo uma “política” contra a qual ninguém pode colocar-se, a cópia brasileira das
políticas chamadas afirmativas, de que as cotas para os negros na universidade pública –
a UERJ no Rio é a pioneira – é uma política de exceção que revela a derrota do projeto de
integração. A síntese é a dependência financeira externa do Estado, que come 9% do PIB
como serviço da dívida, equivalente a mais da metade do coeficiente de inversão. É a exceção do Estado ou o Estado como exceção.
A consequência das exceções parciais, que forçamos a barra para pensá-las ainda no
paradigma da normatividade porque nos assusta pensar na exceção totalizadora, é que o
“normal”, a norma, é puxada para baixo pelo “anormal”: esta é a síntese que faz a exceção. A enorme desigualdade obriga a pensar que se faz necessário baratear as escolas, para aumentar o número de incluídos: a consequência é planejarmos escolas pobres para pobres. A arrogância do caos do trânsito – já uma transgressão semântica porque se trata de
um problema de transporte e não de trânsito – obriga-nos a planejar zonas azuis, a exceção para os que têm automóveis, rodízio de automóveis, zoneamento que preserve os bairros ricos da contaminação com os pobres, a “revitalização” dos centros – alguém perguntou a uma conhecida urbanista, olhando do alto de um dos prédios do Anhangabaú se lá
em baixo não havia gente ou aquilo era um formigueiro – para nos livrar da deterioração
causada não pela invasão dos pobres, mas pela especulação que criou sucessivamente a
avenida Paulista, deslocou-se para a Faria Lima, transferiu-se para o eixo da Berrini, em
falando da capital de São Paulo. Mas a “revitalização” faz-se necessária, teorizou outra urbanista, porque putas, rufiões, bêbados e desempregados “privatizaram” o espaço público!
Hanah Arendt se debateu ferozmente no túmulo quando ouviu tamanha “exceção”! As
empresas se assenhoream das políticas sociais, e a exceção do mercado se impõe como critério das políticas, porque precisa-se de eficiência e produtividade nas políticas sociais, e
o resultado é maior exclusão.
O planejamento urbano, com suas regras de utilização do solo, corredores de tráfego, corredores comerciais, camelódromos, barraquinhas coloridas para disfarçar a precariedade, quais outras Catarina da Rússia, legalização de perueiros e ônibus clandestinos
forçada pela chantagem, é a cidade como exceção: ele busca se compatibilizar com as piores tendências de concentração da renda e da sociabilidade indesejável quase obrigatória
das classes que voltaram a ser chamadas de “perigosas”, como são conhecidas as que foram uma vez “laboriosas”. No Rio, cuja geografia não consegue separar ricos e pobres, há
um clamor pela policialização total da cidade, e na mistura de tiros que já não se sabe de
12
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onde provêm, as balas perdidas deixaram de ser exceção à regra: ao contrário, a exceção é
quem nunca correu esse risco.
O summa cum laudae é a criminalidade, em todas as suas formas. A mais ostensiva
é hoje a do narcotráfico: que é a exceção do mercado de trabalho, pois, como na Colômbia, Bolívia e Peru, não há como as atividades “normais” competirem com os rendimentos proporcionados pela produção e comercialização dos entorpecentes, nem pelo emprego – pode-se chamar isso de emprego? – dos pequenos “aviões” pelo narcotráfico. A foto
mais dramática dos episódios do Rio que se intensificaram às vésperas do carnaval era –
provavelmente no O Globo – de um imenso cordão de esfarrapados, cujo fashion era composto de uma miserável bermuda e um par de chinelos de dedo, cópia da famosa Havaiana, descendo o morro, aprisionados. O humorista que é hoje o melhor sociólogo-antropólogo do Brasil, Zé Simão, satirizou com soda cáustica: “O elemento procurado é
pardo, traja bermuda e sandália tipo Havaiana. Tão procurando o Brasil!” (Folha de
S.Paulo, data indeterminada). O retrato sem retoques de uma sociedade derrotada. O alto lucro é diretamente proporcional ao alto risco, isso já se sabia, e neste caso a ligação
interna-externa se dá porque o grande consumidor está nos paises desenvolvidos: é a nossa nova “dependência”.
Mas o lado menos ostensivo da criminalidade, que não aparece sob este rótulo, está
nas taxas de homicídios, a segunda causa- mortis na cidade de São Paulo, que devasta a
faixa etária masculina entre os 15 e os 24 anos. Todos sabemos que a maior parte dos crimes se dá entre conhecidos e até entre membros do grupo familiar. Como mostram algumas excelentes pesquisas antropológicas e sociológicas, é a promiscuidade por ausência de
relação mercantil que detona os conflitos, e leva aos homicídios. Essa ausência tem um
nome: desemprego.
Na tentativa de conter a avalanche, a policialização da sociedade, a segurança elevada ao valor maior, o pedido de transformar as Forças Armadas em polícia urbana, uma
guerra civil mal disfarçada. A morte da pólis é a morte da política e a negação da negação: todo espaço público deve ser privatizado, deve estar sob o olhar panóptico, porque o
perigo é o público. Até no futebol a exceção já se instalou, porque no carnaval ele já é a
regra: a recente Lei do Torcedor manda instalar câmaras em todos os estádios, para conter o vandalismo e flagrar os violentos. Não há mais política: há tecnicidades e dispositivos foucaultianos que se impõem com a lei da necessidade. Adequamos nosso discurso para reconhecer a “realidade” e em nome dela, planejar a exceção. Reconheçamos: nosso
esforço teórico transitou da busca da normatividade para a racionalização da exceção, que
nossa prática cotidiana já leva a cabo faz tempo. Porque do nosso horizonte já sumiram
as transformações. Sejamos pragmáticos, já é tempo e já estamos na idade, ora bolas, de
abandonar as utopias!
A
B S T R A C T The text looks at the role played by the State in Brazil today and in
particular the role of planning. If, historically, the relationships between the State and the
urban were based on an effort to ease the relationship between capital and labor, planning to
control the exception and to transform it into the rule, recent radical changes in the Brazilian
economy and society suggest that the exception has itself curbed planning. To the inequalities
typical of Brazilian society were added those stemming from the productive re-structure
promoted by globalization, which re-shaped the market, re-purposing the relationship between
State and capital, while turning social policies into anti-policies of poverty, transforming into
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Francisco de Oliveira é
professor titular aposentado
do Depto. de Sociologia da
FFLCH/USP e coordenadorcientífico do Centro de Estudos dos Direitos da Cidadania – CENEDIC/USP.
Artigo recebido para publicação em junho de 2003.
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the rule what beforehand was considered a deviation from it and promoting a theoretical effort
the aim of which is to rationalize the exception and turn it into the norm.
KEYWORDS
Brazil.
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Relationship State-urban; urban planning; social; inequality;
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FAVELAS NO
MUNICÍPIO DE SÃO PAULO
ESTIMATIVAS DE POPULAÇÃO PARA OS ANOS DE 1991, 1996 E 2000
EDUARDO MARQUES
HAROLDO DA GAMA TORRES
C A M I L A S A R A I VA
R
E S U M O Em muitas cidades brasileiras as favelas representam a principal alternativa habitacional para as populações de baixa renda há várias décadas, mas na cidade de São
Paulo esta solução habitacional não merecia destaque até os anos 70. A sua importância, entretanto, cresceu muito, recentemente, pela insuficiência das políticas estatais e devido à redução da presença relativa dos loteamentos clandestinos. Se a importância do problema é consensual, o seu tamanho tem sido objeto de debate. Este artigo objetiva rever as estimativas de
população favelada em São Paulo. Desenvolvemos uma nova metodologia de baixo custo, potencialmente aplicável em outros contextos urbanos. O método se baseia em sistema de informações geográficas, permitindo estimar a população ao comparar as cartografias da Prefeitura de São Paulo com os setores censitários dos Censos Demográficos (IBGE).
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bitação; espaço urbano; São Paulo.
Favelas; estimativas populacionais; políticas de ha-
As favelas se fazem presentes em muitas cidades brasileiras, mas na cidade de São
Paulo esta modalidade habitacional não merecia destaque até os anos 70. Sua importância, entretanto, cresceu muito nas últimas décadas pela insuficiência das políticas estatais,
e também devido à redução da presença dos loteamentos clandestinos, seja pela menor
oferta de terras, seja pela pauperização de uma parte expressiva da população.
Se a importância do problema é consensual, sua dimensão tem sido objeto de debate. A prefeitura de São Paulo realizou um Censo de Favelas em 1987. Esse estudo foi atualizado por procedimentos amostrais em 1993 pela Fipe/USP. Segundo este último levantamento, a população total residente em favelas teria atingido aproximadamente 19% da
população do município. Mais do que isto, a população teria crescido à espantosa taxa de
15,2% ao ano entre 1987 e 1993.
Este artigo objetiva rever as estimativas de população favelada em São Paulo. Ao
comparar as informações de 1987 e 1993 aos dados dos Censos Demográficos (IBGE) relativos aos setores censitários subnormais de 1991 e 2000, desenvolvemos uma nova metodologia de baixo custo, potencialmente aplicável em outros contextos urbanos. O método se baseia em sistema de informações geográficas e permite estimar a população ao
comparar os desenhos das favelas (da prefeitura) com aos setores censitários (IBGE). Com
essa metodologia pretendemos tirar proveito das melhores características dos dados administrativos municipais (e sua definição de favela) e, ainda, do trabalho de campo do IBGE
nos censos demográficos.
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INTRODUÇÃO
1 Certamente a questão da
periferia é também parte
deste debate. No caso do
Rio de Janeiro, cidade em
que a questão das favelas se
fez presente mais precocemente, as favelas já entraram e saíram do centro da
cena, associadas ou não à
questão periférica – ver, por
exemplo, o clássico Voltar a
pensar em favelas por causa
das periferias (Santos,
1975). No caso de São Paulo a importância das periferias sempre mereceu grande
atenção. No entanto, neste
artigo, trataremos apenas da
questão das favelas.
2 Por sua vez, Taschner
(2000) trabalha com a categoria de favelas em situação
de risco, de modo a caracterizar demográfica e ambientalmente um dramático aumento
da
população
vulnerável no município de
São Paulo.
3 A edição de 31 de março
de 1995 do Diário Oficial do
Município de São Paulo traz
uma edição especial (n. 101
– Edição Especial C), intitulada “Favelas na Cidade de
São Paulo”. Tal documento,
baseado em estudo realizado pela Fipe, traz informações relativas à população e
ao número de domicílios localizados em favelas, para o
ano de 1993.
No contexto metropolitano brasileiro, a questão da vulnerabilidade socioeconômica
tem como um de seus temas centrais a questão das favelas.1 Este tipo de aglomeração urbana, amplamente disseminada pelas metrópoles do País, concentra domicílios com elevado grau de carências socioeconômicas, tanto em termos de oferta de serviços públicos,
como relativas à infra-estrutura urbanística e à renda pessoal dos moradores. Além disso,
muitas destas áreas estão localizadas em encostas sujeitas a deslizamentos e em fundos de
vale expostos a inundações, ou seja, em zonas de risco ambiental.
Não por acaso, estimativas da população favelada ganharam um papel relevante no
debate sobre as metrópoles brasileiras, tendo sido utilizadas como indicadores da direção
e do significado das mudanças metropolitanas recentes no País. Assim, apesar do aumento da oferta de serviços públicos e da melhoria de vários indicadores sociais ocorridos no
Brasil nos anos 80 e 90, informações relativas a favelas têm sido usadas como indicadores da precarização das condições de vida nos grandes centros urbanos. No caso de São
Paulo, autores como Kowarick (2001), por exemplo, alegam que a situação social da região metropolitana se agravou sobremaneira, devido a uma combinação de aumento do
desemprego e do emprego informal, com um forte crescimento da violência e da população favelada.2
Grande parte destes argumentos é baseada nas estimativas de população e de número de domicílios localizados em favelas, realizadas por prefeituras. No caso do município
de São Paulo, tais estimativas têm por base o chamado “Censo de Favelas”, realizado em
1987, e atualizado por meio de procedimentos amostrais para 1993, em estudo realizado
pela Fipe.3 Segundo este estudo, a população total residente em favelas em 1993 atingiu
o montante de 1,9 milhão de pessoas, ou aproximadamente 19% do total da população
do município em 1991. Mais do que isso, a população teria crescido à espantosa taxa de
15,16% ao ano entre 1987 e 1993.
Diante da importância do debate e à dimensão dos números envolvidos, tentamos
discutir, em artigo anterior (Torres & Marques, 2001), as estimativas de população favelada para o município de São Paulo, utilizando diferentes fontes de dados. Naquele trabalho, além de comparar os dados do Censo de Favelas (1987 e 1993) aos dados dos Censos Demográficos de 1991, 1996 e 2000, relativos aos chamados setores censitários
subnormais, estimamos a população em tal condição habitacional por meio do uso de Sistemas de Informações Geográficas (SIG) para o ano de 1996. Para tal, utilizamos cartografia oficial das favelas paulistanas (produzida pela prefeitura), comparando-a ao desenho
de setores censitários (do IBGE), por meio do recurso de overlay, ou sobreposição de cartografias. Neste exercício, no entanto, utilizamos informações demográficas da Contagem
Populacional de 1996 e uma base cartográfica relativamente desatualizada das favelas do
município de São Paulo.
O objetivo do presente trabalho é aprofundar tal exercício de estimativa, utilizando
as informações demográficas dos Censos de 1991 e de 2000 do IBGE e uma cartografia de
favelas corrigida e atualizada, tanto para 2000, quanto recompondo a informação relativa a 1991. Esse exercício nos permitirá estimar a população favelada em cada distrito da
Capital para cada uma daquelas duas datas. Como resultado, a estimativa total de população favelada é bastante consistente com os dados censitários. Como essa estimativa é calculada para os dois pontos do intervalo intercensitário, será possível avaliar também as taxas de crescimento da população favelada em cada parte da cidade e no seu conjunto.
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A exemplo do artigo anterior, na primeira seção discutimos e comparamos os conceitos e dados envolvidos no Censo de Favelas e na população residente em setores subnormais dos censos demográficos, de forma a construir um terreno conceitualmente sólido comum. Na segunda seção, partimos para estimativas alternativas de população e
domicílios em favela por meio das técnicas de SIG em cada distrito para os dois anos censitários, apresentando de forma concomitante a metodologia utilizada. Ao final, tentamos
refletir a respeito do significado dos resultados apresentados para o debate sobre a questão metropolitana.
SETORES SUBNORMAIS E CENSO DE FAVELAS
Apesar de ser um fenômeno onipresente na cena pública brasileira, a definição do
que é favela não deixa de ser complexa, particularmente quando tratada do ponto de vista do sistema de produção de dados estatísticos. No caso do Censo Demográfico, os chamados setores censitários subnormais – utilizados muitas vezes como substitutos do conceito de favelas –, são definidos antes da realização do Censo propriamente dito, sendo
inclusive objeto de pagamento diferenciado por entrevista, devido às dificuldades operacionais de acesso a estes locais.
Como o setor censitário é uma unidade administrativa do Censo, pensada como a
área a ser percorrida por um único entrevistador, a utilização do chamado setor censitário subnormal como definição de favela pode acarretar uma série de conseqüências relevantes do ponto de vista da produção de uma estimativa de população favelada:
1 a qualidade da estimativa depende do grau de atualização da cartografia utilizada para
o planejamento do Censo. Muito provavelmente, a qualidade de tal cartografia depende da colaboração entre o IBGE e outros órgãos públicos, tais como prefeituras e secretarias de Estado, que atualizam a cartografia com fins tributários e para o planejamento de políticas públicas;
2 isto faz que a precisão da estimativa de população favelada varie entre os vários municípios, sendo mais atualizada para os municípios com cartografia de favelas mais recente. De forma similar, a qualidade de tais estimativas tende a variar bastante ao longo do tempo, dependendo do grau de atualização dos setores considerados subnormais
realizada antes de cada Censo. Por esta razão, a utilização da informação mesmo para
um determinado município em dois momentos no tempo pode gerar erros de tamanho não desprezível;
3 favelas muito pequenas tendem a não ser consideradas como setores subnormais, pois
não tem tamanho suficiente para servir como área pesquisada por um entrevistador.4
Em outras palavras, mesmo com cartografias atualizadas, a população favelada pode
ser subestimada.
Como conseqüência geral destes elementos, na maior parte das vezes os dados de setores subnormais implicam números subestimados da população favelada. Como essa subestimação não é nem mesmo estável no tempo, o cálculo de taxas de crescimento pode
levar a valores muito baixos ou muito altos. Tal fenômeno tende a provocar clara contestação dos dados censitários por parte de gestores públicos locais e de movimentos sociais.
Em alguns casos trata-se de um mero questionamento do conceito. Em outros, isto implica formas alternativas de medir o problema por meio de fotos aéreas e de levantamentos locais.
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4 No Censo de 2000, um
entrevistador cobria, em
média, mil pessoas na Região Metropolitana de São
Paulo.
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5 Esse tipo de irregularidade, ou as “facilidades” construídas para solucionar a situação, tem sido uma das
principais fontes da corrupção miúda e disseminada
nas administrações municipais brasileiras.
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Em termos operacionais, tem-se lançado mão intensamente de levantamentos diretos e/ou amostrais, que nem sempre produzem os resultados mais adequados do ponto de
vista técnico. O tipo de levantamento mais comum, as contagens de barracos realizadas
por assistentes sociais do poder público local ou de empresas contratadas, não substituem
uma efetiva aferição da população residente uma vez que podem existir barracos de uso
comercial, barracos vazios, de uso ocasional e/ou situações de dupla declaração de residência (a questão do residente temporário). As discrepâncias comumente presentes nas informações obtidas dessa forma decorrem do fato que secretarias municipais de Habitação
não são necessariamente boas produtoras de dados, e tendem a gerar números populacionais díspares.
Entretanto, se os números produzidos diretamente pelo poder público tendem a ser
frágeis, há a possibilidade de alcançar indiretamente a dimensão fundiária partindo da definição administrativa de favela, desde que as informações administrativas sejam utilizadas criativamente. No caso específico do município de São Paulo, trabalha-se com uma
definição de favelas associada à propriedade da terra. A catalogação de uma dada área como favela é feita após a existência de um processo de ocupação, por moradores, de uma
área pública ou particular. O processo de identificação de um núcleo de favela pode se dar
de três formas. Quando a área é pública, o processo de identificação se inicia com a abertura de um processo administrativo interno à prefeitura por um agente vistor notificando a Secretaria da Habitação (Sehab) e o Departamento de Patrimônio (Patri) que vistoriou uma área pública e a encontrou ocupada. Internamente à Sehab, essas informações
são direcionadas e processadas pelo setor de planejamento da Superintendência de Habitação Popular (Habi).
Quando ocorre uma ocupação em área particular, a Administração Regional é chamada a realizar a desocupação, respondendo a processo judicial de reintegração de posse,
o que também gera um processo administrativo de notificação da Sehab e de Patri. Uma
terceira forma de identificação de novos núcleos favelados tem origem na própria burocracia técnica da Sehab que, em suas vistorias de rotina, localiza um novo núcleo e notifica o setor de planejamento da Habi. Ao longo do tempo, essas informações foram consolidadas em um banco de favelas, em papel, com os perímetros das favelas marcados em
cópias do Mapa Oficial da Cidade (MOC), assim como em tabelas, inicialmente em papel
e depois em meio eletrônico. Em todos os casos, o elemento definidor da favela é a ilegalidade na propriedade da terra, ou seja, o fato de os moradores ocuparem terra que não é
de sua propriedade.
Vale destacar que existem vários tipos de irregularidade possíveis, classificáveis em
quatro grupos: quanto à legislação edilícia; quanto ao uso do solo; quanto ao parcelamento do solo; e quanto à propriedade. Os dois primeiros tipos estão presentes em toda a cidade, inclusive nas áreas habitadas pela população de alta renda, ocorrendo, por exemplo,
quando uma edificação não respeita os recuos laterais e quando uma butique se localiza
em uma rua de uso estritamente residencial (no caso de São Paulo, uma Z1). Nenhuma
das duas impede o registro da propriedade fundiária, embora possam ser gerados conflitos com o poder público municipal que redundem em multas e dificuldades na regularização da edificação (no Registro de Imóveis ou na prefeitura com o “habite-se”) ou da atividade econômica (“alvará”).5
A terceira forma de ilegalidade diz respeito ao descumprimento da legislação sobre parcelamento do solo. Em termos concretos isso significa que o agente responsável pelo parcelamento (loteador ou incorporador) não levou até o final o processo de aprovação do par18
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celamento nos órgãos públicos responsáveis (no caso de São Paulo, o Departamento de Parcelamento do Solo – Parsolo/Sehab e as Administrações Regionais). Se o loteamento foi
produzido antes de 1979, os moradores podem ter conseguido o registro de sua propriedade no Registro de Imóveis mas, se foi posterior, não registraram seus terrenos, visto que a
legislação federal (Lei Lehman – 6766/79) passou naquele ano a considerar, como pré-requisito para o registro de propriedade, a aprovação prévia do parcelamento pelas prefeituras
municipais. Assim, quando ocorre esse tipo de irregularidade, temos um loteamento irregular que pode até mesmo ser clandestino, caso o loteador não tenha iniciado o processo de
aprovação. Nesses casos, os moradores não têm título de propriedade, mas têm como provar que pagaram por ela, sendo, para o Judiciário, os proprietários legítimos dos terrenos.
O quarto tipo de ilegalidade é o que está associado ao tema deste artigo. Quando
um conjunto de pessoas ocupa uma gleba ou terreno – para além de possíveis descumprimentos das legislações edilícias (porque as casas são construídas fora do Código de
Obras), de uso do solo (porque o parcelamento não obedece aos parâmetros da lei) –, há
um problema associado à propriedade da terra. É nesses casos que a literatura sociológica
e de políticas públicas localiza os núcleos de favelas, delimitando corretamente um fenômeno único, mas gerando sérios problemas de mensuração.
Em meio a esta complexidade metodológica e conceitual, são gerados números impressionantes, como os produzidos pelos chamados “Censos de Favelas”, realizados periodicamente pela prefeitura de São Paulo. Entre os Censos de 1987 e 1993, a população favelada teria passado de 800 mil para 1,9 milhão de habitantes, mais do que dobrando em
seis anos. Em 1993, data da última atualização do Censo de Favelas da prefeitura, a população favelada corresponderia a quase 20% da população total do município, tendo crescido à espantosa taxa de 15,2% ao ano entre 1987 e 1993 (Diário Oficial de São Paulo, 1995).
Os dados dos Censos Demográficos, porém, contam uma outra história. A chamada população residente em setores subnormais, o conceito de favelas do IBGE, nunca teria
ultrapassado 900 mil, tanto nos Censos de 1991 e de 2000, quanto na Contagem Populacional de 1996. De forma similar, apesar de apresentar trajetória crescente, os ritmos de
crescimento da população residente nestes locais seriam superiores à da população total,
embora muito mais moderados do que o diagnosticado pela prefeitura municipal. Segundo o IBGE, entre 1980 e 2000, a população em setores subnormais apresentou uma taxa
de crescimento anual de 4,5% ao ano, contra 1,0% ao ano da população total. Entre
1991 e 2000, essa taxa seria de 3,7% ao ano, contra 0,9% ao ano da população total. A
Tabela 1 resume estes resultados.
Tabela 1 – População favelada segundo os Censos Demográficos e Censos de Favelas. São
Paulo, 1980-2000
Anos
1980
1987
1991
1993
1996
2000
População – Censos Demográficos
Total
Setores subnormais
8.493.226
9.209.853*
9.646.185
9.722.856*
9.839.066
10.434.252
375.023
530.822*
647.400
686.072*
748.455
896.005
Censo de Favelas
Diferença (%)**
815.450
1.434.134*
1.901.892
-
53,6
121,5
172,2
-
* Dados interpolados geometricamente.
** Calculada como (Censo de Favelas – subnormais)*100/subnormais.
Fontes: IBGE e Prefeitura Municipal de São Paulo.
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Em suma, se existem, por um lado, muitas razões objetivas para supor que os dados
de setores subnormais impliquem uma subestimação da população favelada, fica claro,
por outro, que o Censo de Favelas – ao menos na forma como foi realizado em São Paulo, em especial em 1993 – pode implicar uma dramática sobrestimação dos dados populacionais. De fato, para aceitar uma taxa de crescimento de 15% na população favelada
entre 1987 e 1993 requer imaginar que a população não-favelada do município de São
Paulo decresceu substancialmente em termos absolutos, já que o acréscimo na população
total teria sido inferior a 100 mil habitantes entre 1991 e 1993 (Tabela 1). Embora regiões do centro expandido de São Paulo tenham perdido população efetivamente, nada se
compara ao volume do movimento populacional que teria que ocorrer para viabilizar tal
estimativa de população favelada. Por mais que seja possível argumentar que estaria existindo uma crise social entre 1987 e 1991, os números simplesmente não fecham.
Com o objetivo de testar a consistência de tais números, realizamos (Torres & Marques, 2002) uma primeira tentativa de estimar a população favelada em São Paulo. Naquele primeiro exercício, produzido com base nas informações da Contagem Populacional de 1996 e de uma versão preliminar do banco de favelas da prefeitura de São Paulo,
chegamos a números bastante distantes dos apontados pela pesquisa da Fipe.
A estimação tentou combinar as informações de mais alta qualidade de nossas duas
fontes – os dados censitários das contagens do IBGE e a delimitação das favelas produzida
pela prefeitura de São Paulo. Para a realização deste exercício foram utilizados os mapas
digitais dos setores censitários de 1996, bem como a cartografia oficial de favelas do município de São Paulo, que serviu como base para as coletas de dados do Censo de Favelas
de 1987 e de 1993. A Cartografia de Favelas foi produzida e é atualizada periodicamente pela Habi/Sehab. Recentemente um convênio de cooperação entre a Habi e o Centro
de Estudos da Metrópole (CEM) permitiu a digitalização dessa base, cujo último esforço
concentrado de atualização ocorreu em 1993. Naquele primeiro momento, portanto, utilizamos a base sem proceder a nenhuma forma de atualização. Como veremos, o presente exercício já utiliza a base atualizada para o ano de 2000 (em fotos aéreas) e vistorias de
campo realizadas em 2002.
As estimativas de população foram produzidas então por meio do uso do Sistema de
Informações Geográficas (SIG), com o qual o desenho de favelas (da prefeitura) foi comparado ao desenho de setores censitários (do IBGE) por meio do recurso de overlay, ou sobreposição de cartografias. Uma representação visual do significado deste instrumento
pode ser observada na Figura 1.
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Figura 1 – Setores censitários e favelas. São Paulo, trecho de Jardim Ângela.
Podemos observar que o desenho das favelas da prefeitura e o desenho dos setores
subnormais apresentavam diferenças muito significativas. Embora existissem favelas totalmente sobrepostas a setores subnormais, havia também favelas sobrepostas a setores normais e setores subnormais não registrados como favelas da prefeitura. Vale destacar que
este último elemento contraria o senso comum, pois para a maior parte dos analistas, o
IBGE tende sistematicamente a reduzir o universo das favelas e da população favelada, pelo caráter restritivo da sua definição de trabalho, que fixa um limite mínimo de porte para a consideração de um aglomerado como um setor subnormal.
Em outras palavras, o que a informação cartográfica mostra é que a mera afirmativa
ad hoc de que o desenho dos setores subnormais não registra favelas de menor porte (o
que é verdade) não necessariamente significa que o IBGE (ao menos no caso de São Paulo) sub-registra o número de residentes em favelas. Os Censos de Favelas da prefeitura,
que levam em conta apenas o desenho oficial das favelas, também não contaram a população em diversos trechos considerados subnormais para o IBGE. Como os contornos das
favelas eram efetivamente distintos, é possível afirmar que tanto um tipo de levantamento quanto o outro provocam sub-registro nas áreas não-coincidentes.6
De forma agregada, os resultados quantitativos da sobreposição cartográfica do mapa de favelas ao mapa de setores censitários de 1996 indicam uma área total dos setores
de 1,5 mil km2, enquanto a área de favelas é de 22,2 km2. Em outras palavras, a área das
favelas, segundo o mapa oficial utilizado para o planejamento dos Censos de Favela da
prefeitura para 1987 e 1993 correspondia a apenas 1,5% da área total do município. Nestas circunstâncias, boa parte dos setores existentes não tinha qualquer sobreposição com
favelas. Nesse grupamento, com quase 1,2 mil km2, residiam 6,8 milhões de pessoas ou
70% da população de São Paulo, em 1996. No restante do município, onde residia 30%
da população, o grau de sobreposição do setor censitário à área de favelas era obviamente variável, oscilando entre 0,1% e 100%.
Em termos agregados o grau de coincidência espacial entre os dois tipos de área é superior a 80% em menos de 20% da área total de favelas. Nos setores com tal grau de sobreposição reside menos de 2% da população total do município. Em outras palavras, a
crítica ao conceito de setor subnormal parece fazer sentido, quando comparamos a cartoR . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S , V. 5 , N . 1 – M A I O 2 0 0 3
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6 A maior parte dos estudos relativos à subenumeração na área demográfica
(como os clássicos estudos
que indicam a subenumeração de crianças com menos
de um ano) trabalham com a
perspectiva de que os levantamentos se referem a uma
mesma unidade geográfica
de análise.
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grafia de favelas utilizada para fins de planejamento urbano e políticas de habitação e a
cartografia de setores subnormais. Aceitar esta crítica não implica, no entanto, validar
qualquer estimativa de população de favelas realizada de modo alternativo.
ESTIMANDO A POPULAÇÃO FAVELADA
7 Não se trata de produzir
aqui uma estimativa determinística do tamanho populacional dos trechos de favela,
mas de especificar estimativas máximas e mínimas
da população favelada, estabelecendo uma faixa de variação em que seria mais
provável – a partir da informação demográfica disponível – encontrar o tamanho
populacional real.
8 Vale observar que a base
cartográfica utilizada por
nós é virtualmente idêntica à
usada pela Fipe, tendo sido
apenas digitalizada. Portanto, as áreas de favela são
iguais, exceto por pequenas
correções efetuadas no momento da digitalização.
9 Dados retirados dos sites
da Secretaria de Planejamento do Município de São Paulo e do Instituto Pereira Passos da prefeitura carioca.
Decidimos como estratégia analítica para a geração da estimação da população favelada a utilização das densidades dos setores com alta sobreposição cartográfica entre favela e setor subnormal (Torres & Marques, 2001). Consideramos quatro diferentes hipóteses de densidades demográficas médias para os trechos de favelas. Cada hipótese implica
um tamanho populacional diferente, com importantes conseqüências para o debate sobre
a questão.7 Discutimos em detalhe cada hipótese e seu significado em termos de estimativa populacional.
Hipótese 1. Nesta hipótese, a densidade das favelas presentes num dado grupo de setores foi considerada igual à densidade média do grupo onde ela se encontra. De modo
geral, os softwares com recursos de overlay, como o Maptitude, assumem automaticamente esta hipótese que, no entanto, tende a subestimar o número de favelados, uma vez que
estas aglomerações apresentam muitas vezes densidades claramente superiores às das áreas
que lhe são adjacentes. Nesta hipótese, o número total de favelados seria de 525 mil pessoas em 1996, inferior ao dado pelos setores subnormais do IBGE (686 mil habitantes).
Hipótese 2. Nesta hipótese, a densidade das áreas de todas as favelas foi considerada
igual à do grupo em que existe 100% de sobreposição entre os setores censitários e as favelas (36.700 habitantes por km2 ou 367 habitantes por hectare). Geramos, assim, uma
estimativa de 812 mil habitantes (8,3% do total), acima da estimativa do IBGE para 1996,
mas muito inferior à da prefeitura. Trata-se de um número aparentemente razoável, mas
existem grupamentos de setores onde a densidade populacional é mais elevada.
Hipótese 3. Nesta hipótese, a densidade de todas as áreas de favelas foi considerada
igual à do grupo em que existe entre 80% e 89,9% de sobreposição entre os setores censitários e as favelas (48.700 habitantes por km2 ou 487 habitantes por hectare). Em outras palavras, trata-se da maior densidade demográfica observada entre todos os grupos de
setores censitários já considerados. Geramos, assim, uma estimativa de 1,08 milhão de habitantes (11% do total), novamente acima da estimativa do IBGE, mas ainda muito inferior à da prefeitura, que atinge quase 20% da população municipal. A rigor, esta parece
ser a estimativa máxima permitida por exercícios deste tipo.
Hipótese 4. Nesta hipótese, tratamos de calcular qual densidade seria necessária para
atingirmos o tamanho de população favelada estimado pela prefeitura para 1993. Seria
necessária uma densidade de quase 150 mil habitantes por km2 (1.500 habitantes por hectare), três vezes superior à densidade máxima observada para os grupamentos de setores
censitários já considerados. Além disso, para esta hipótese se realizar, praticamente todos
os grupos de setores considerados anteriormente, com exceção dos dois primeiros, teriam
que ter 100% de sua população vivendo nos segmentos de favela.8 Apenas para termos
um padrão de comparação, no ano de 2000 a densidade demográfica bruta de bairros cariocas como o Leme e a Tijuca estava em torno de 170 habitantes/ha, e Copacabana tinha 360 habitantes/ha. Os distritos paulistanos de maior densidade eram a Bela Vista e
Sapopemba com 240 e 210 habitantes/ha, respectivamente.9
Em vista dos elementos apresentados, concluímos que o mais razoável seria conside22
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rar o tamanho da população das áreas das favelas oficiais da prefeitura como um número
intermediário entre as hipóteses 2 e 3, isto é, oscilando entre 0,9 e 1,1 milhão de habitantes ou entre 8% e 11% da população total do município para 1996 (Torres & Marques, 2001). Nota-se que a população subnormal do IBGE implica de fato algum subregistro em relação a esta estimativa, enquanto a população do Censo de Favelas de 1993
implica grosseiro sobre-registro. Evidentemente, tais estimativas assumem densidades médias que podem induzir a distorções importantes.
Para o exercício realizado aqui, utilizamos as informações demográficas dos Censos
de 1991 e 2000, assim como a base cartográfica de favelas da prefeitura de São Paulo.
Essa última, entretanto, foi atualizada de maneira detalhada, usando fotos aéreas de
2000 (cerca de 8.400 fotos, analisadas uma a uma) e um grande número de vistorias em
campo (superior a 800 vistorias), em um esforço conjunto entre a Habi/Sehab e o CEM.
A atualização da base indicou um intenso processo de crescimento dos perímetros de favela em certas partes da cidade, mas alguns episódios importantes de desfavelização em
outras. A Figura 2 apresenta a cartografia de favelas para uma parte específica do município, destacando as áreas objeto de crescimento dos perímetros e de surgimento de novos núcleos.10
10 O número total de favelas passou de 2.000, embora esse número não tenha
praticamente nenhuma utilidade analítica, já que é muito influenciado pela forma
como a própria população,
na construção de suas identidades, divide a favela. Assim, núcleos contíguos ou
mesmo indivisíveis em termos territoriais podem ser
cadastrados com vários nomes distintos. Além disso,
do ponto de vista do número, favelas com 30 ou com
10.000 moradores são
iguais e representam a unidade. Por esta razão, não
consideramos o número de
favelas no estudo.
Figura 2 – Favelas da prefeitura. São Paulo, trecho de Sapopemba.
A Figura 3 apresenta a superposição das duas cartografias para a mesma região da cidade apresentada na Figura 1. Como podemos ver, o ajuste entre setores censitários e perímetros de favela tende a ser melhor do que em 1991. Isso se deve em grande parte à
atualização do desenho dos setores realizada pelo IBGE para organizar o trabalho de campo do último Censo, mas também está ligada à atualização dos perímetros do banco de
dados da prefeitura.
Testamos várias formas de estimação, a exemplo do exercício anterior. Como queríamos nesse caso estimar as populações por distrito, não podíamos utilizar a mesma metodologia, visto que em alguns distritos o número de favelas é relativamente pequeno, fazendo que as estimativas de densidade populacional variem de forma substancial.11
Decidimos então trabalhar com as densidades médias e medianas dos setores subnormais
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23
11 Na verdade, alguns distritos não dispunham sequer de
um único setor subnormal.
F A V E L A S
12 O principal problema de
tal procedimento é imaginar
que – por alguma razão operacional – o Censo Demográfico sub-registre sistematicamente a população favelada,
fazendo que os dados de
densidade aqui considerados
sejam subestimados. A rigor,
não temos nenhuma razão a
priori para assumir esta hipótese, sobretudo devido à
consistência entre as estimativas de 1991 e 2000. De
qualquer modo, tal hipótese
merece maior aprofundamento.
13 As áreas das favelas apresentam-se corrigidas. A base
de setores censitários do IBGE
tem o mapa dos eixos de
ruas como base (já que cobre
todo o território municipal),
enquanto o mapa de favelas
é digitalizado sobre o mapa
de quadras. Como conseqüência, mesmo quando há
superposição completa entre
um setor e uma favela, o desenho da favela é ligeiramente menor, já que se afasta do
setor ao longo de todo o perímetro em metade da largura da rua. Assim, somamos
às áreas das favelas a parcela correspondente a estas faixas, utilizando ruas de 12
metros em média (e 6 metros
em meia rua). Aproximando a
favela a um polígono de muitos lados, o fator de correção utilizado foi igual a
2
(12m área+36) para cada
favela. Quem nos chamou a
atenção para esse problema
foi o arquiteto da prefeitura
José Carlos Lima, a quem os
autores agradecem.
14 O número de habitantes
por domicílio do conjunto do
município é de 3,6 em 2000.
15 Vale observar que se aplicássemos a taxa de crescimento obtida (2,97% ao ano
entre 1991 e 2000) ao intervalo encontrado em Torres &
Marques (2001) para o período 1996-2000, obteríamos
entre 1.010 e 1.215 mil habitantes em favela, novamente compatível e próximo do
número encontrado aqui –
apenas 47 mil habitantes distante do ponto médio do intervalo anterior (4%).
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por distrito, substituindo-as pela de distritos próximos e similares no caso de distritos onde não houvesse subnormais. Em outras palavras, tomamos como indicador dos Censos
a densidade demográfica das áreas subnormais e não a sua população. Embora relativamente simples, tal procedimento permite ao planejador gerar dados agregados de população relativamente robustos, ainda que sempre seja necessário produzir contagens diretas
quando se deseja conhecer a população para uma dada favela.12
Figura 3 – Setores censitários e favelas. São Paulo, trecho de Jardim Ângela.
Como as médias eram muito influenciadas pelos valores extremos, sendo pressionadas para cima ou para baixo nos distritos onde o número de subnormais era pequeno,
acabamos por escolher as densidades medianas como parâmetro principal para a estimativa. A Tabela 2 (em anexo) apresenta as densidades e as áreas faveladas13 por distrito e
os resultados do exercício para os anos de 1991 e 2000 por distrito, tanto para a população, quanto para o número de domicílios. Como podemos ver, o número total estimado de habitantes em favelas em 1991 e 2000 é de 0,89 e 1,16 milhões, respectivamente. Os números de domicílios foram estimados em 196 e 287 mil para as duas datas
censitárias, o que resultaria em densidades domiciliares de 4,5 e 4 habitantes por domicílio.14 Em termos relativos, a população favelada teria alcançado 11,1% da população
do município, superior à proporção de 9,1% de 1991. A área total de favelas do município teria crescido de 24,7 km2 para 30,6 km2, o que é compatível com a área da base
de 1987, – de 22,2 km2.15
A taxa de crescimento da população favelada entre 1999 e 2000 ficaria em 2,97%
ao ano, bem superior à taxa de crescimento do conjunto da população do município, que
foi de 0,87% ao ano no período, mas muito inferior à prevista pela estimativa da Fipe já
discutida. Vale registrar que a taxa de crescimento da população em setores subnormais
foi de 3,7% ao ano na década. Essa taxa mais elevada provavelmente se deve à precária
atualização da classificação dos setores subnormais para o Censo de 1991 (prévia, como
vimos na primeira seção), gerando possivelmente o segundo problema citado na primeira seção deste artigo. A diferença entre as populações dos setores subnormais e da presente estimativa reforça essa hipótese, já que caiu de 38% em 1991 para 29% em 2000.
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SIGNIFICADO DOS RESULTADOS OBSERVADOS
Esperamos que estimativas mais convergentes à realidade do fenômeno da população
favelada permitam, por um lado, a proposição de um debate mais informado em termos
analíticos e, por outro, a geração de políticas públicas apropriadas. Favelas são problemas
reais que devem ser considerados, de nosso ponto de vista, como prioridades de políticas
públicas tanto devido aos seus aspectos sociais quanto a seus extensos aspectos ambientais.
A publicação e a disseminação da pesquisa da Fipe provocaram um debate importante, mas pouco denso em termos acadêmicos, sobre o processo de favelização em São
Paulo. A questão central talvez esteja ainda no debate que veio a ser conhecido como o da
“década perdida”, no interior do qual inúmeros autores discutiram o aparente paradoxo
da melhora dos indicadores sociais nos anos 80 de forma concomitante com a dinâmica
negativa da economia brasileira. Para alguns, este aparente paradoxo seria explicado pela
ação dos movimentos sociais nos anos 70 e 80, mas para outros seria fruto, principalmente, do caráter inercial das políticas públicas de corte social e urbano (e suas agências estatais) implantadas durante o regime militar.16 Se fizermos o exercício de atualizar esse debate, a dinâmica de melhora se torna ainda mais interessante analiticamente, tendo em
conta que, ao longo da década de 1990, o mercado de trabalho e a estrutura de rendimentos do mundo do trabalho no Brasil foram ainda mais impactados que nos anos 80, enquanto os indicadores mostram que a situação social melhorou, ao menos em termos médios e nos grandes números.
Embora o assunto seja muito complexo, para os interesses analíticos específicos do
presente texto, basta destacar que alguns autores utilizaram as informações sobre o crescimento vertiginoso da população favelada em São Paulo gerados pelos números da pesquisa da Fipe para sugerir que, apesar da melhora de inúmeros indicadores sociais no
período recente, o saldo do mesmo período tem sido negativo em termos sociais, principalmente pela reestruturação do mercado de trabalho com a precarização dos vínculos trabalhistas e polarização da estrutura de ocupações e salários. Aos números do crescimento
da população favelada devemos destacar como evidência ressaltada por essa literatura as
informações disponibilizadas pela pesquisa da Fipe sobre a precarização das condições
ambientais e de ocupação vivenciada pelas favelas paulistanas no período recente.
Então o que podemos concluir a partir dos números apresentados por nossa estimativa? Em primeiro lugar, é possível afirmar que a proporção da população paulistana que
vive em favelas e seu crescimento no período recente foram muito inferiores ao que considera a literatura. Desse ponto de vista, portanto, as evidências rejeitam fortemente a
existência de uma explosão da população moradora de núcleos de favela em São Paulo.
As informações apresentadas aqui confirmam, de maneira geral, os resultados do exercício anterior sobre 1996.
Por outro lado, a população favelada de São Paulo tem crescido a taxas superiores às
da população do município, o que equivale a dizer que sua proporção se elevou na última década. Os dados de setores subnormais, embora subestimados, apontam para um importante crescimento da população favelada entre 1991 e 2000, numa taxa de 3,7% ao
ano, quatro vezes superior à média da metrópole. Nossa estimativa indica uma taxa mais
reduzida – 2,97% a.a., mas muito superior à taxa de crescimento da população total –
0,9% a.a. Esse crescimento se deu principalmente pela elevação da área total de favelas
(que cresceu 24% na década), mas também pelo aumento da densidade média das favelas (que subiu de 360 para 380 habitantes por hectare – 6% de aumento). Os dados aponR . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S , V. 5 , N . 1 – M A I O 2 0 0 3
25
16 Cf., entre outros, Faria
(1992); Silva et al. (1992);
Marques & Najar (1995);
Torres (1997).
F A V E L A S
Eduardo Marques é professor do Departamento de
Ciência Política da USP e
pesquisador do Centro de
Estudos da Metrópole (CEM/
Cebrap).
Haroldo da Gama Torres
é pesquisador do Centro de
Estudos da Metrópole (CEM/
Cebrap).
Camila Saraiva é estudante
de graduação da Faculdade
de Arquitetura e Urbanismo
da USP e bolsista da Fapesp
no Centro de Estudos da Metrópole (CEM/Cebrap).
Artigo recebido para publicação em setembro de 2002.
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tam, portanto, para um importante processo de favelização no município de São Paulo
na década de 1990. Esse processo dá alguma substância ao argumento – produzido por
diversos autores, como Kowarick (2001) – relativo ao agravamento das condições sociais
da metrópole ao longo dos últimos vinte anos, mas em um patamar muito mais baixo do
que o descrito pela literatura com base nas estimativas da Fipe.
Um outro ponto importante não pode ser avaliado no estágio atual das estimativas,
mas diz respeito à situação social nas favelas que, para a literatura já citada, teriam piorado. No atual momento das estimativas realizadas no âmbito do CEM, nada podemos afirmar sobre a dinâmica social recente das favelas e de seu moradores, mas informações pontuais ou não-sistematizadas de outros trabalhos em andamento indicam que tenha
ocorrido uma melhora dos patamares médios dos indicadores para o universo das favelas
(o que é confirmado pela queda da densidade domiciliar de 4,5 para 4), mas uma piora
sensível nas piores favelas, visível apenas com a desagregação por favela ou por região das
informações gerais. Em outro trabalho (Torres & Marques, 2001), destacamos que, observando a dinâmica social por setor censitário no município de Mauá, é possível delimitar setores ou grupos de setores que apresentam um nível de precariedade muito elevado,
que combina indicadores sociais muito precários com vários tipos de risco urbano cumulativamente. Para o conjunto das favelas, entretanto, esta hipótese deve ainda ser testada.
Um segundo campo em que a alteração dos números da população favelada causa
impacto está ligado diretamente às políticas públicas de habitação. Para o planejamento e
a elaboração de políticas, faz uma diferença muito grande enfrentar um problema que
atinge quase dois milhões de habitantes ou tentar solucionar uma questão ligada a pouco
mais de um milhão. Se considerarmos os custos médios de urbanização de favelas usualmente utilizados para planejamento desse tipo de política – de 3.500 a 4.000 dólares por
família, a urbanização de todas as favelas da cidade alcançaria, considerando os números
apresentados aqui, cerca de 1,100 milhão de dólares, algo como 3,5 bilhões de reais (ao
câmbio de janeiro de 2003). Ainda utilizando nossa estimativa, se considerarmos a proporção que tais programas utilizam como proporção da população que tem que ser removida para a instalação da infra-estrutura urbana e a solução das situações de risco (15%),
tal esforço de urbanização geraria uma demanda de 44 mil novas unidades habitacionais.
O custo da construção de tais unidades poderia alcançar cerca de 1,1 milhão de reais, se
consideramos o custo médio de 25 mil reais por unidade. O custo total da solução do problema envolveria, portanto, cerca de 4,6 bilhões de reais. Como o orçamento municipal
em São Paulo gira hoje em torno de 10 bilhões de reais, o direcionamento de 4% do orçamento resolveria o problema em torno de 12 anos.
Em termos de custo, portanto, a solução dos problemas das favelas do município é
plenamente factível. As dificuldades para solucionar o problema, para um governo que
decida enfrentar a questão, são de operacionalização de um programa capaz de executar
ao mesmo tempo a urbanização de algo como 24 mil unidades em favela e 3,7 mil unidades novas ao ano. Como a favela média teria algo como 150 habitações em São Paulo
(considerando o número de 2.000 núcleos da base da prefeitura), tal programa teria que
operar em cerca de 160 favelas ao mesmo tempo. Como a maior parte dessas apresenta
porte muito pequeno, a construção de tal estratégia é factível, mas pressupõe a construção de capacidades estatais na área, assim como da implantação de um “ritmo fordista” à
política. Esse esforço considerável não pode ser enfrentado com estruturas administrativas adaptadas e com improvisação e depende da construção de agências estatais de porte
e complexidade razoável e que sejam geridas de forma técnica, criativa e eficiente.
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Tabela 2 – Estimativas de população e domicílios em favelas para 1991 e 2000
Distrito
Água Rasa
Área
Dens.
favelada
população domicílios lação
0
Alto de Pinheiros 6.036
Dens.
Popu-
Domi-
Área
Dens.
cílios
favelada
população domicílios lação
Dens.
Popu-
Domicílios
–
–
0
0
0
–
–
0
0
0,098
0,028
594
170
5.367
0,087
0,001
466
126
Anhanguera*
25.734
0,030
0,007
783
180
92.762
0,029
0,007
2.694
667
Aricanduva
116.238
0,054
0,012
6.221
1.404
82.972
0,045
0,010
3.710
791
Artur Alvim
185.388
0,019
0,004
3.482
701
187.862
0,039
0,010
7.291
1.869
Barra Funda
83.423
0,057
0,014
4.756
1.166
0
0,049
0,011
0
0
Bela Vista*
2.363
0,107
0,027
253
63
0
–
–
0
0
Belém
7.305
0,107
0,027
781
195
14.204
0,139
0,036
1.978
513
Bom Retiro*
11.202
0,057
0,014
639
156
11.921
0,128
0,034
1.523
400
Brás*
5.352
0,107
0,027
572
143
0
0
0
Brasilândia
861.482
0,036
0,008
31.209 6.859
1.093.458 0,042
0,011
45.802 1.629
Butantã*
27.155
0,119
0,026
3.233
11.957
0,055
0,014
660
Cachoeirinha
568.744
0,053
0,012
30.068 6.587
449.438
0,062
0,015
27.745 6.909
Cambuci
0
–
–
0
0
0
–
–
0
0
Campo Belo
182.424
0,046
0,010
8.391
1.855
138.570
0,028
0,006
3.829
897
Campo Grande 108.682
0,080
0,017
8.688
1.828
117.553
0,027
0,006
3.118
722
702
169
Campo Limpo
696.149
0,032
0,007
22.336 4.834
883.503
0,040
0,010
35.608 9.076
Cangaíba
223.709
0,035
0,008
7.867
238.293
0,074
0,018
17.566 4.254
1.782
Capão Redondo 1.520.609 0,032
0,007
49.111 11.184 1.788.078 0,032
0,008
57.427 4.757
Carrão*
13.533
0,107
0,027
1.448
362
23.636
0,139
0,036
3.292
853
Casa Verde*
10.660
0,024
0,007
256
70
1.034
0,060
0,016
62
17
Cidade Ademar 642.441
0,032
0,007
20.814 4.443
1.140.814 0,039
0,010
44.651 1.871
Cidade Dutra
941.058
0,032
0,007
30.475 6.702
880.219
0,039
0,009
34.497 8.228
Cidade Líder
212.375
0,024
0,005
5.080
1.061
229.267
0,041
0,010
9.381
2.247
Cid. Tiradentes 187.822
0,011
0,003
2.159
477
257.078
0,023
0,006
5.873
1.417
Consolação
0
–
–
0
0
0
–
–
0
0
Cursino
97.293
0,062
0,014
6.077
1.355
60.933
0,037
0,009
2.269
568
E. Matarazzo
234.172
0,056
0,013
13.098 2.978
627.811
0,057
0,014
35.706 8.968
Freguesia do Ó 148.544
0,042
0,009
6.265
101.348
0,060
0,016
6.080
1.770.268 0,030
0,007
53.326 11.659 3.459.511 0,027
0,007
93.619 2.761
Grajaú
1.374
1.619
Guaianases
51.785
0,020
0,004
1.027
219
126.346
0,058
0,014
7.293
1.742
Iguatemi
129.203
0,044
0,009
5.691
1.159
141.480
0,033
0,009
4.695
1.229
50
Ipiranga
7.194
0,029
0,007
209
1.299
0,108
0,030
140
39
Itaim Bibi
138.770
0,079
0,019
10.945 2.670
23.897
0,004
0,001
86
23
Itaim Paulista
217.434
0,032
0,007
6.927
1.419
427.302
0,034
0,008
14.411 3.592
Itaquera
165.988
0,030
0,007
5.003
1.113
134.436
0,041
0,010
5.454
Jabaquara
440.847
0,038
0,007
16.781 3.168
520.744
0,046
0,012
24.186 6.225
Jaçanã
176.560
0,029
0,006
5.054
1.067
403.729
0,035
0,004
14.205 3.507
Jaguara
21.071
0,086
0,020
1.803
428
28.246
0,065
0,017
1.829
Jaguaré
301.820
0,050
0,011
15.000 3.431
192.603
0,066
0,017
12.784 3.341
Jaraguá
313.747
0,023
0,005
7.360
675.451
0,028
0,007
19.208 4.674
Jardim Ângela
970.245
0,039
0,008
37.689 8.105
2.258.166 0,033
0,008
74.424 8.395
1.530
1.369
482
Jardim Helena
233.378
0,010
0,002
2.410
555
254.982
0,025
0,007
6.324
1.688
Jardim Paulista
0
–
–
0
0
0
–
–
0
0
(continua)
R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S , V. 5 , N . 1 – M A I O 2 0 0 3
27
F A V E L A S
N O
M U N I C Í P I O
D E
S Ã O
P A U L O
Distrito
Área
Dens.
Dens.
Popu-
Domi-
Área
Dens.
Dens.
Popu-
Domi-
Jardim São Luís
José Bonifácio
Lajeado
Lapa*
Liberdade
Limão
Mandaqui
Marsilac*
Moema*
Mooca*
Morumbi
Parelheiros
Pari*
Pq. do Carmo
Pedreira
Penha
Perdizes
Perus
Pinheiros*
Pirituba
Ponte Rasa
Rap. Tavares
República
Rio Pequeno
Sacomã
Santa Cecília*
Santana
Santo Amaro*
São Domingos
São Lucas
São Mateus
São Miguel
São Rafael
Sapopemba
Saúde
Sé
Socorro
Tatuapé*
Tremembé
Tucuruvi*
Vila Andrade
Vila Curuçá
Vila Formosa
Vila Guilherme
Vila Jacuí
Vila Leopoldina
favelada
992.050
19.596
846.918
3.097
0
152.138
135.292
25.647
7.257
2.686
121.093
437.612
7.774
135.072
701.426
100.903
0
528.648
5.140
346.205
117.001
212.279
0
384.903
1.584.683
8.821
65.016
16.610
160.174
99.355
310.839
131.217
144.002
653.726
24.599
0
62.871
30.888
318.140
13.600
1.453.820
368.447
7.082
6.580
1.008.780
62.477
população
0,035
0,010
0,016
0,050
–
0,057
0,028
0,029
0,062
0,107
0,034
0,029
0,057
0,029
0,024
0,027
–
0,030
0,098
0,032
0,030
0,055
–
0,047
0,044
0,057
0,046
0,013
0,050
0,075
0,045
0,037
0,040
0,052
0,062
–
0,061
0,107
0,073
0,042
0,019
0,032
0,042
0,042
0,032
0,024
domicílios
0,008
0,002
0,004
0,011
–
0,013
0,006
0,006
0,014
0,027
0,008
0,006
0,014
0,006
0,005
0,006
–
0,007
0,028
0,007
0,006
0,012
–
0,011
0,010
0,014
0,011
0,002
0,011
0,016
0,009
0,008
0,008
0,011
0,014
–
0,016
0,027
0,014
0,009
0,005
0,007
0,008
0,009
0,007
0,005
lação
35.034
192
13.956
154
0
8.623
3.851
755
452
287
4.088
12.875
443
3.855
16.863
2.709
0
16.077
506
11.034
3.532
11.604
0
18.149
69.861
503
3.016
220
8.068
7.424
13.842
4.841
5.689
34.078
1.532
0
3.863
3.304
23.117
574
28.010
11.756
294
278
32.248
1.476
cílios
7.801
40
2.981
35
0
1.917
759
160
102
72
929
2.725
109
815
3.685
592
0
3.701
144
2.455
751
2.497
0
4.292
16.049
123
693
39
1.830
1.586
2.910
1.027
1.199
7.510
344
0
996
825
4.417
126
6.684
2.407
57
61
6.782
325
favelada
1.342.436
66.162
1.025.531
3.760
0
118.252
38.784
10.103
0
3.541
114.341
484.778
4.943
123.459
898.681
104.787
0
754.520
0
549.186
78.760
200.239
0
353.009
1.032.068
24.935
13.360
10.640
211.359
78.351
342.685
127.651
810.369
1.025.301
14.844
0
78.037
27.187
323.973
13.131
864.334
409.873
5.865
8.335
1.002.111
21.951
população
0,039
0,050
0,032
0,066
–
0,061
0,073
0,030
–
0,139
0,029
0,030
0,049
0,042
0,037
0,033
–
0,029
–
0,033
0,027
0,043
–
0,055
0,057
0,049
0,019
0,004
0,063
0,037
0,044
0,032
0,024
0,046
0,073
–
0,052
0,139
0,023
0,060
0,034
0,034
0,045
0,015
0,035
0,012
domicílios
0,010
0,012
0,007
0,017
–
0,015
0,016
0,008
–
0,036
0,006
0,008
0,011
0,010
0,009
0,009
–
0,007
–
0,008
0,007
0,011
–
0,014
0,015
0,011
0,000
0,001
0,016
0,010
0,010
0,007
0,006
0,011
0,018
–
0,014
0,036
0,006
0,016
0,009
0,008
0,010
0,004
0,009
0,003
lação
52.135
3.293
32.449
250
0
7.194
2.827
302
0
493
3.301
14.491
242
5.217
32.859
3.428
0
21.914
0
18.223
2.112
8.542
0
19.479
59.181
1.221
254
38
13.335
2.905
14.970
4.068
19.105
47.314
1.082
0
4.061
3.787
7.418
788
29.703
13.921
265
127
35.527
267
cílios
2.963
784
7.538
65
0
1.809
639
78
0
128
742
3.746
54
1.263
8.165
916
0
5.426
0
4.361
519
2.206
0
4.996
5.329
272
71
10
3.459
751
3.536
895
4.923
1.177
264
0
1.119
982
1.842
210
7.777
3.229
61
36
8.818
66
(continua)
28
R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S , V. 5 , N . 1 – M A I O 2 0 0 3
E .
M A R Q U E S ,
Distrito
Vila Maria
H .
D A
Dens.
G A M A
Área
Dens.
favelada
população domicílios lação
303.160
0,054
0,011
Popu-
T O R R E S ,
C .
S A R A I VA
Domi-
Área
Dens.
cílios
favelada
população domicílios lação
206.430
0,050
16.242 3.399
Dens.
0,012
Popu-
Domicílios
10.374 2.556
Vila Mariana
42.062
0,074
0,017
3.115
736
16.285
0,054
0,012
874
196
Vila Matilde
7.946
0,027
0,006
213
47
0
–
–
0
0
Vila Medeiros
82.194
0,026
0,006
2.169
489
89.965
0,050
0,011
4.513
1.005
Vila Prudente
81.487
0,085
0,021
6.891
1.690
81.193
0,116
0,029
9.389
2.355
Vila Sônia
319.826
0,032
0,007
10.135 2.277
422.460
0,041
0,010
17.466 4.169
Total
24.709.340 0,036
0,008
891.673 196.389 30.624.227 0,038
0,009
1.160.590 289.142
* Densidades retiradas de distritos com favelas de características semelhantes para elaboração da estimativa
para 1991 e/ou 2000.
Fontes: IBGE e Prefeitura Municipal de São Paulo.
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A B S T R A C T In several Brazilian cities, the shantytowns represent the most
important housing alternative for low income social groups, but in the city of São Paulo this
precarious solution was not very important until the decade of 1970. However, its importance
grew recently at a fast pace, due to the inefficiency of the state policies and to the relative
decline of the presence of the irregular settlements. If the relevance of the problem is a consensus
in the urban studies literature, its size has been object of an intense debate. This article aims
reviewing the estimates for the population of the shantytowns in São Paulo. We develop a low
cost methodology, of potential application in other cities. The method is based in geographic
information systems, allowing us to estimate the population through the comparison between
the administrative cartographies of the Municipality of São Paulo and the census tracts of the
census bureau (IBGE).
KEYWORDS
São Paulo.
30
Shantytowns; population estimates; housing policies; urban space;
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A POLÍTICA DE
PRODUÇÃO HABITACIONAL
POR MUTIRÕES AUTOGERIDOS
CONSTRUINDO ALGUMAS QUESTÕES
CIBELE SALIBA RIZEK
JOANA BARROS
M A RTA D E AG U I A R B E RG A M I M
R
E S U M O Este artigo busca discutir a produção de habitação social através dos chamados mutirões autogeridos, pondo em relevo a constituição e a mudança do caráter por que
passou este tipo de política, entre os anos 80 e 90. Trata-se de tematizar como – a partir de
um ideário emancipatório que apostou na autonomia dos movimentos sociais e da sociedade
civil diante de políticas sociais centralizadas no Estado, urdidas no período da ditadura militar – chega-se a uma política cujas dimensões da autonomia mudam de caráter, legitimando
ou podendo legitimar ações assentadas no uso do trabalho gratuito dos futuros usuários, que
produzem unidades habitacionais financiadas por fundos públicos alinhados com as dimensões de uma gestão das precariedades.
PA
L AV R A S
sociais.
-
C H AV E
Mutirão autogerido; política habitacional; direitos
UMA QUESTÃO E SUA HISTÓRIA
Duas discussões parecem ser importantes no quadro desta problematização dos chamados mutirões autogeridos como forma de produção de habitação social. A primeira diz
respeito às formas como, desde os anos 70, a crítica ao desenvolvimentismo mudava os
rumos da reflexão e do pensamento social no Brasil. A segunda diz respeito às formas pelas quais esta crítica, a exemplo do que ocorrera com o nacional-desenvolvimentismo e
suas variantes, repercutiria em outros campos da produção intelectual e estética, vinculando áreas diversas entre si, tais como a discussão da arquitetura, de seu lugar social, de
suas possibilidades de democratização e a compreensão dos movimentos e lutas sociais e
urbanas. Estas dimensões se cruzam, como se verá, em um conjunto de heranças que se
constituiriam, nos anos 80, no âmbito das questões e das lutas pela democratização, dos
atores e movimentos sociais, da afirmação de sua autonomia e do tema da “autogestão”.
O tema da autogestão em relação aos movimentos de moradia pressupõe, em tese, a gestão autônoma dos recursos provenientes dos fundos públicos para o financiamento da
produção habitacional, a autogestão do trabalho de produção em canteiro e a autogestão
do projeto de moradias, a ser discutido com os movimentos por habitação e futuros trabalhadores/usuários. Esta dimensão foi importante no seu contraponto às políticas do
BNH e COHAB que espalharam conjuntos habitacionais de péssima qualidade e com altos
custos, nas periferias longínquas das cidades, encarecendo o custo da infra-estrutura
R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S , V. 5 , N . 1 – M A I O 2 0 0 3
31
A
1 Pesquisa em curso sob a
coordenação da Usina –
Centro de Trabalhos para o
Ambiente Habitado do Cenedic – Centro de Estudos dos
Direitos da Cidadania da
FFLCH/USP. Marta Bergamin foi bolsista de aperfeiçoamento da pesquisa, e
Joana Barros, pesquisadora
da rede, contribuiu com seu
trabalho e sua experiência
com os mutirões, tanto na
elaboração do projeto como
no trabalho de campo. A
pesquisa foi financiada pela
Finep e pelo CNPq.
2 A idéia de uma escola de
arquitetura paulista – a “escola paulista” – tem origem na
figura de Vilanova Artigas e
de suas idéias e práticas fundadoras no âmbito da Faculdade de Arquitetura da Universidade de São Paulo.
Além do chamado “brutalismo paulista”, proposta estética de Artigas, que teve uma
importante vinculação política e que lhe valeu a cassação durante a ditadura, bem
como de todo um conjunto
de discussões no âmbito da
arquitetura moderna brasileira. Seu papel fundador nesta
vertente paulista, para além
da caracterização desta arquitetura como escola, é indiscutível. Esta arquitetura,
que aposta na técnica como
eixo de expressão, ainda que
combinada com formas artesanais de trabalho, foi questionada em seus princípios
éticos e políticos pela chamada “arquitetura nova”. Ver especialmente Buzzar (2002).
3 Trata-se da discussão que,
diante do quadro político da
ditadura militar, desfazia velhas esperanças na possibilidade do desenvolvimentismo e da
hegemonia burguesa que redundaram na eclosão da ditadura militar e no inequívoco
apoio das classes dominantes
a este regime político.
4 Cf. depoimento de Sérgio
Souza Lima, fevereiro de 2002.
5 Interessante notar que a
discussão “paulista” incorporou desde os anos 60 e 70
as dimensões do trabalho no
interior da produção da arquitetura. Esta questão é ainda
mais importante por induzir a
uma forma que pretendia discutir e problematizar a mão
do trabalhador e seus vestígios nas obras, assim como
os processos pelos quais,
ao contrário das expectativas anteriores, a construção
civil permanecia como atividade artesanal, “arcaica”,
distante da transformação
industrial e da produção em
série que estava suposta e
indicada pelas esperanças
desenvolvimentistas.
P O L Í T I C A
D E
P R O D U Ç Ã O
H A B I T A C I O N A L
urbana e contribuindo para os processos de segregação socioespacial das cidades. No processo de investigação em curso Procedimentos Inovadores de Produção de Habitação para População de Baixa Renda,1 observou-se que os sentidos produzidos por um processo
de autogestão são bastante plurais, de modo que há processos assim denominados que incluem a participação de construtoras e grandes escritórios; há processos em que a população tem menos acesso ao controle e gestão dos recursos; e há casos, considerados mais
virtuosos, em que estão presentes dimensões de autogestão em todos os momentos do
processo, como aconteceu em pelo menos dois conjuntos construídos por mutirão em
São Paulo – União da Juta e Cazuza.
No âmbito da formação das experiências e, posteriormente, das políticas de mutirão, é preciso ressaltar a construção de um repertório que se encontra na origem de um
dos atores sem os quais os mutirões estariam confinados às práticas espontâneas de ajuda
mútua na construção de habitações precárias e periféricas. Este repertório e as dimensões
emancipatórias a ele associadas estão, assim, na origem da constituição das assessorias técnicas aos movimentos por habitação.
Um conjunto de trabalhos recentes procura discutir a trajetória que constitui estes
atores, no âmbito da história da produção habitacional brasileira, e do que se pode designar – ainda que de forma problemática – de “escola paulista” e seus sucessores, parcialmente alheia ou esquecida pela historiografia oficial da arquitetura e da cultura no Brasil2 (Buzzar, 2002). Trata-se do que os próprios participantes denominaram de Arquitetura Nova,
cuja constituição passou pelos grupos de estudo onde se encontravam, entre outros, Sérgio
Ferro, Rodrigo Lefèvre, Flávio Império, por um lado, e Francisco de Oliveira, Roberto
Schwarz e outros intelectuais que fizeram parte dos grupos de discussão sobre o marxismo
e as obras de Marx ou suas releituras, para além de formas mais ou menos canônicas da sua
recepção no Brasil.3 Aí se entreteciam as críticas ao desenvolvimentismo, aos processos de
modernização, à própria face brasileira da modernização.4 Aí também tem lugar a crítica
e, ao mesmo tempo, a continuidade da discussão que vinculava arte, técnica, ética e estética, referindo-as a outras figurações do “povo” brasileiro, que comparecia no interior desta reflexão, principalmente em relação ao caráter, ao lugar e às formas do trabalho.5
Das dimensões do trabalho e do seu lugar também foi possível iniciar uma reflexão
no âmbito da produção sobre as dimensões econômicas e sociopolíticas brasileiras que,
trinta anos depois, ainda inquieta e incomoda: a produção de habitação popular por mutirão comparece em um texto já clássico – A crítica da razão dualista – em algumas de suas
indagações. Vale a pena recuperar percursos e argumentos de Francisco de Oliveira sobre a
produção de habitação, a dinâmica da urbanização e suas especificidades, lidas à luz de uma
teoria da acumulação do capital, o que permitiu problematizar não apenas as dimensões
atrasadas ou arcaicas, mas sobretudo aquelas que, modernas, se imbricavam na reprodução
mesma daquilo que, em um momento anterior, se supunha em regressão ou em extinção.
Em entrevista concedida a uma das autoras deste texto, a inserção da questão da habitação se esclarece, como caminho de duas mãos.
Eu tive a sorte, naqueles anos, de andar metido com escolas de arquitetura (...) Quando na verdade, eu fiquei conhecido de um grupo de arquitetos da FAU: Rodrigo Lefèvbre,
Sérgio Ferro... (...) Eu dei um curso lá na FAU, quando Juarez Brandão quis me levar para lá.
O curso foi basicamente sobre economia brasileira. E eu tinha conhecido Sérgio Ferro e, nesta ocasião – foi 1971 – todos descemos para Santos, onde se criou a Faculdade de Arquitetura e Urbanismo. Na verdade, foi o Bolafi que assumiu e passou para mim [a disciplina] de
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Fundamentos Econômicos da Urbanização. Aí estava Rodrigo que dava aula de projeto, estava Sérgio Ferro, enfim... Estava Maiyumi de Souza Lima, Sérgio de Souza Lima, estava o
Heck, uma turma grande (...) E eles tinham feito uma pesquisa, Sérgio Ferro e Rodrigo Lefèvbre coordenaram uma pesquisa sobre mutirões na Baixada Santista. E eles me deram um
rolo de questionários (...) Quando aquilo caiu na minha mão, eu tive um estalo de Vieira.
Estava lá. Tinha uma pesquisa de orçamento familiar, devia ser tosca do ponto de vista estatístico, eu não sei bem como eles fizeram. Mas você vê que estas coisas têm pouca importância. Aí bateu nas minhas mãos e para enorme surpresa deles todos, e minha também, a maioria [dos entrevistados] tinha casa própria. Casa própria ganhava “de lavada”, ali nos piores
lugares da Baixada Santista, nos lugares mais pobres de Santos. Evidentemente, a semântica
burguesa chama um barraco de casa própria. Pela qual, evidentemente, não pagavam nada
(...) E eles que eram apaixonados, sobretudo Rodrigo, pelo tema da construção popular e da
moradia popular e das formas, dos processos de trabalho que a classe dominada, proletária,
ainda dominava... Eles eram apaixonados por esta história, trabalho da construção, da autoconstrução... o saber popular [de uma técnica de construção], como que se transmite, como
é que ainda é preservado – por esta razão, eles tinham no questionário questões referentes a
como tinha sido feita a casa: se contratada, se comprada, se Caixa Econômica, todas as formas – e a forma mutirão apareceu e ganhava “de lavada”. Eu disse: aqui está a chave! Isso aqui
é o custo de reprodução da força de trabalho. A chave desse mostrengo tem uma peça que
está aqui; foi dada assim, de graça, e eu recebi nas mãos e isso está incluído na Crítica à razão dualista como um dos exemplos de rebaixamento do custo de reprodução.6
No texto em questão os temas habitação autoconstruída e a cidade são conformados
do modo que se segue:
As cidades são, por definição, a sede da economia industrial e de serviços. O crescimento urbano é, portanto, a contrapartida da desruralização do Produto e, neste sentido, quanto
menor a ponderação das atividades agrícolas no Produto, tanto maior a taxa da urbanização.
Portanto, em primeiro lugar, o incremento da urbanização no Brasil obedece à lei do decréscimo da participação da agricultura no Produto total. Sem embargo, apenas o crescimento da
participação da indústria ou do setor Secundário como um todo, não seria o responsável pelos altíssimos incrementos da urbanização no Brasil. Esse fato levou uma boa parcela dos sociólogos no Brasil e na América Latina a falar de uma urbanização sem industrialização e do
seu xipófago, uma urbanização com marginalização. Ora, o processo de crescimento das cidades brasileiras (...) não pode ser entendido senão dentro de um marco teórico onde as necessidades da acumulação impõem um crescimento dos serviços horizontalizado, cuja forma aparente é o caos das cidades. Aqui, uma vez mais é preciso não confundir “anarquia”com “caos”;
o “anárquico”do crescimento urbano não é “caótico” em relação às necessidades da acumulação: mesmo uma certa fração da acumulação urbana, durante o longo período de liquidação
da economia pré-anos 30, revela formas do que se poderia chamar, audazmente, de “acumulação primitiva”. Uma não insignificante porcentagem das residências das classes trabalhadoras foi construída pelos próprios proprietários, utilizando dias de folga, fins de semana e formas de cooperação como o “mutirão”. Ora, a habitação, bem resultante dessa operação se
produz por trabalho não pago, isto é, supertrabalho. Embora aparentemente esse bem não
seja desapropriado pelo setor privado da produção, ele contribui para aumentar a taxa de exploração da força de trabalho – de que os gastos com habitação são um componente importante – e para deprimir os salários reais pagos pelas empresas. Assim, uma operação que é, na
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6 Entrevista concedida a Cibele Saliba Rizek, em fevereiro de 2001.
A
7 Ver, sobre este ponto de
vista, Pedro Arantes (2000),
Ana Paula Khoury (1999) e
Miguel Buzzar (2002).
8 Para além das questões
colocadas pelo texto, é possível identificar aí um caráter de manifesto que sacrifica qualquer precisão teórica
destas questões. A mistura
entre cultura popular e erudita no quadro de uma nova
cultura de massas indica algo desta confusão bem detectada por Buzzar (2002).
9 As primeiras experiências
de produção de habitação
por mutirões oficiais datam
dos anos 80 em São Paulo,
no governo municipal de
Mario Covas. Quando o Partido dos Trabalhadores passa a governar a cidade de
São Paulo, o Funaps (Fundo
de Financiamento de Habitações) é rearticulado e passa
a abrigar várias linhas de financiamento habitacional,
que receberam o nome de
Funaps Comunitário e Funaps Vertical, constituindose em política para mutirões
autogeridos, Funaps Favelas e Funaps Cortiços (este
último o que menos pôde
avançar). Em toda negociação entre o movimento de
moradia e o poder público a
contrapartida oferecida foi o
trabalho que viabilizaria a
produção de unidades habitacionais de melhor qualidade com baixos custos, assim como a adaptação dos
projetos de arquitetura às
demandas dos moradores.
10 Algumas matrizes de reflexão sobre a prática e o saber da arquitetura, bem
como sobre suas possibilidades de democratização,
também foram fundamentais. Estas matrizes se constituíram no encontro entre
outras experiências latinoamericanas, especialmente
uruguaias (experiência que
se constituiu a partir das
cooperativas habitacionais
dos sindicatos), nas contribuições de Turner (1977),
na assimilação de novas dimensões técnicas e estéticas, que se articularam nos
chamados Laboratórios de
Habitação, em especial no
curso de Arquitetura da Belas Artes, em São Paulo.
11 Segundo os dados levan-
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aparência, uma sobrevivência de práticas de “economia natural” dentro das cidades, casa-se
admiravelmente bem com um processo de expansão capitalista, que tem uma de suas bases e
seu dinamismo na intensa exploração da força de trabalho. (Oliveira, 1972, p.31.)
Para além da dimensão que antecipa a discussão da lógica da desordem urbana, tal
como se configura no livro São Paulo 1975, crescimento e pobreza (Brandt et al. 1979), o
texto citado deu origem a uma polêmica que ainda vive e que paira como sombra sobre
o caráter virtuoso desta forma de produção da habitação social, mesmo que seja possível
supor uma alteração de seus termos.
Por um lado, as dimensões críticas em relação aos processos de modernização no Brasil se espraiavam, questionando as posições assumidas pela hegemonia do desenvolvimentismo e das teorias da modernização em suas múltiplas faces.7 Nasciam as discussões que
colocavam as formas de cooperação e o saber popular como laboratório do futuro, pensado como possibilidade de uma nova sociedade. Todo um novo modo de conceber as relações entre o trabalho físico e o intelectual, assim como de repensar as suas hierarquias no
interior do processo produtivo, toda um crítica da divisão social do trabalho, inspirada nas
concepções de Marx e, posteriormente, de Gorz, ganhavam corpo como uma espécie de
experimento emancipatório a se realizar nos processos de trabalho da construção civil.
Na produção intelectual dos arquitetos é possível encontrar os temas da autoconstrução em mutirão na chave das práticas de participação e democratização da habitação e
da cidade. O tema vai sendo assim construído em conjunto com a questão do engajamento do arquiteto e a democratização da arquitetura, com uma nova estética, diversa daquela que valorizava a indústria e a industrialização das construções como meio de democratizar a habitação, seu vínculo com a cultura popular e com um outro projeto de
construção da nação, para além da aposta nas dimensões virtuosas da hegemonia industrial, moderna e burguesa (Arantes, 2000, p.52).
Qual é o espectro de condições desta transição em que a autoconstrução como germe do futuro fazia sentido como democratização das práticas da arquitetura, como pedagogia e como autonomia em face de uma política habitacional de baixa qualidade e insuficiente, centralizada no Estado? A resposta é inequivocamente relativa às condições de
transição para o socialismo, em que novas condições de vida e de produção deveriam ser
inventadas (Arantes, 2000, p.53). Cultura rural em transição e encontro com a cultura
urbana, formação de uma nova cultura, ao mesmo tempo popular, artesanal, solidária e
científica, industrial e de massas,8 na reinvenção dos sujeitos, sociedade, espaços, natureza e cidades, tais eram os sentidos desta proposta investida de conteúdos utópicos claramente denominados como tais.
Um longo percurso acabou por transformar este ideário em política oficial, ainda no
interior da década de 1980,9 retirando-lhe porém as dimensões relativas à autogestão e às
possibilidades de emancipação futura. Ao mesmo tempo, neste mesmo período, várias experiências tiveram lugar, retomando ou mesmo ampliando esta pauta na busca da diferenciação entre os programas oficiais e os discursos e práticas emancipatórias empreendidas
pelos movimentos por habitação e suas ocupações, os laboratórios de habitação e este mix
de práticas profissionais combinadas às práticas militantes de arquitetos e estudantes de Arquitetura pelos territórios das periferias das grandes cidades, especialmente em São Paulo.10
As dimensões desta experiência, vista e vivida como inovadora, colada aos movimentos por moradia, às ocupações que ao longo dos anos 80 tiveram lugar,11 ainda estão por
ser avaliadas à luz dos processos posteriores. Mas é interessante perceber como estas di34
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mensões e práticas se imbricavam no universo dos anos 80, com suas lutas pela democratização, com a discussão dos movimentos sociais, com as questões relativas à autonomia
dos movimentos perante o Estado, com a cena de uma sociedade civil que se articulava
em processos de democratização que tiveram os sindicatos e suas lutas como momento
fundador. Também não é demais lembrar a importância e a centralidade do movimento
sindical neste processo de organização e mobilização do que cada vez mais se considerava
como o novo lugar da política: as relações sociais, as práticas cotidianas, os chãos de fábrica, as lutas pelo acesso aos transportes, por moradia, creches, saúde, os clubes de mães, os
movimentos e as lutas das mulheres, todo um conjunto de demandas que de um modo
ou de outro se combinavam com os anseios e movimentos pela democratização do País.12
No interior deste processo alguns atores se constituem como elementos de articulação, por um lado, e de politização, por outro, nos movimentos por moradia e em seus fóruns. Trata-se do processo de formação das assessorias aos movimentos que acabam por
ocupar um lugar central não apenas na produção de habitação social por mutirões autogeridos, mas também como eixo de um conjunto de transformações desta forma de produção de habitações em política ao mesmo tempo oficial e alternativa, especialmente durante o governo municipal de Luíza Erundina.13
Este tipo de produção de moradias tangenciava e se transformava em programas oficiais de habitação de múltiplas formas: por um lado, há programas federais, estaduais e
municipais; e, ao mesmo tempo, preservavam-se os resquícios de sua constituição nos
marcos de um ideário de autonomia em relação ao Estado, marcado pelas práticas dos
movimentos de moradia, que se supunham e se queriam emancipatórias. Entretanto, na
passagem dos anos 80 para os anos 90 algumas transformações acabaram por demarcar as
mudanças das cenas urbana e política, e por alterar de forma significativa seus sentidos.
Assim, é preciso notar como, ao longo das duas últimas décadas, se desvaneceram
algumas das críticas contundentes tanto à assimilação do mutirão como política oficial,
como às dimensões que a ele se associaram de modo cada vez mais integrado. Os mutirões promovidos pela CDHU na gestão Mario Covas (1994-2001), que assumiu o papel de “Pai dos Mutirões”, não conservaram os traços de autogestão que marcavam o
início deste programa. Retirou-se a possibilidade de projetos elaborados pelas assessorias técnicas, produzindo conjuntos próximos aos construídos pelo Programa Empreitada Global, também da CDHU.14 Reproduziram-se, assim, algumas características clássicas da produção da habitação, inclusive seu uso como forma de cooptação política, de
atualização das formas de clientelismo,15 de política que avaliza formas especulativas
com reservas de mercado para algumas empresas etc. Por outro lado, nos mutirões que
se mantiveram como autogeridos, até mesmo aqueles que conseguiram quebrar as propostas da CDHU, acabaram por desenvolver “programas de geração de emprego e renda”, eles também elevados à condição de política oficial através de parcerias e cooperações de todos os tipos (as formas de “cooperação internacional”, parcerias entre Estado
e ONGs, entre agências diferentes ou programas diversos que criam e/ou atendem “comunidades” de sem-teto, favelados, população de risco, mutirantes, encortiçados etc.),
o que acabou por ampliar os sentidos e o espectro “pedagógico” do mutirão, e por ocultar algumas de suas características, seja porque a produção de conflitos não é contemplada pela literatura, seja porque novas formas de justificativa deslocaram a crítica que
tinha como centro a articulação das formas de produção arcaicas e modernas, sua problematização com base no lugar do trabalho e nas formas de acumulação que fazem da
cidade seu território privilegiado.16
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tados por Pedro Arantes,
entre junho de 1981 e maio
de 1984 “ocorreram 61
ocupações envolvendo 10
mil famílias, a maior delas
na Fazenda Itupu”, em São
Paulo. Estas ocupações
ocorreram com o apoio das
pastorais que abriram espaço para ações cada vez
mais planejadas. Note-se
também que, para alguns
autores, estes arquitetos
que atuavam nos movimentos populares acabaram por
ser considerados “intelectuais orgânicos” do movimento. Arantes (2000,
p.63).
12 Ver a este respeito Eder
Sader (1990).
13 O programa habitacional
por mutirão e autogestão
municipal é herdeiro da elaboração dos movimentos e
Laboratórios de Habitação
da Belas Artes e da Unicamp. O Programa UMM da
CDHU – Companhia de Desenvolvimento Habitacional
e Urbano de responsabilidade do governo do Estado,
foi um programa habitacional de autogestão discutido
com o governo do Estado
(gestão Fleury) pela UMM
(União dos Movimentos de
Moradia) e assessorias técnicas a partir de 1991,
quando os movimentos estavam fortalecidos por dois
anos de gestão municipal
petista.
14 Através do Programa
Empreitada Global, a CDHU
contrata empreiteiras para
construção de habitação popular. Usualmente, são prédios de quatro andares sobre pilotis, com unidades
habitacionais de 42m2, totalmente construídos e geridos pelas empresas. O Programa de Mutirão viabiliza a
construção de unidades habitacionais por mutirão através de contrato firmado entre a CDHU e a associações
de moradores. Os recursos
são gerenciados por estas
associações, mas, em parte
dos conjuntos, notadamente
aqueles apelidados de "paliteiros" cujas associações
têm práticas políticas pouco
autônomas, o projeto e a
obra têm um sistema construtivo fixo, fornecido por
poucas empreiteiras, o que
engessa o orçamento da
A
obra. Além disso, o acompanhamento da obra é feito
por um escritório de arquitetura que não necessariamente tem qualquer relação
com os movimentos de habitação. À associação cabe
a responsabilidade legal pelo financiamento e o trabalho em mutirão no canteiro.
15 Em visita recente para
realização de trabalho de
campo da pesquisa mencionada em Fortaleza, um caso
especialmente chamou atenção: trata-se de um mutirão
autogerido, pelo menos em
tese, próximo ao centro de
Fortaleza, cuja principal liderança recebe uma “ajuda de
custo”, de R$ 300,00 por
mês, além de ter pagas as
prestações de seu carro zero km, por uma deputada
estadual, por sua vez, madrinha do mutirão. Essa líder comunitária é contratada pela prefeitura há 14
anos para fazer a supervisão e gerenciamento dos
problemas das associações
de “mutirantes”.
16 Pedro Arantes, por exemplo, assim como muitos outros autores vinculados organicamente à produção de
habitação por mutirão, evita
ou apenas contorna a difícil
discussão do trabalho pouco
problematizado dos mutirantes. Algumas das conseqüências deste tipo de uso
do trabalho serão discutidas
posteriormente, mas o mote
“mais autogestão, menos
mutirão” parece apontar para o reconhecimento das dimensões dilemáticas e problemáticas desta questão –
a incorporação necessária
de trabalho não-pago. Ver
Arantes (2002).
17 Algumas diferenças, é
bom enfatizar, supõem a
presença ativa não apenas
da demanda, mas dos movimentos organizados por
moradia, a mediação das
assessorias técnicas comprometidas com estes movimentos, a produção conjunta do desenho, a decisão de
contratar ou não serviços
externos, a gestão independente e transparente dos recursos públicos que financiam a obra. Apesar de
todos estes elementos é
bom ainda frisar que há um
enorme potencial de confli-
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Desaparecem assim os argumentos que, partindo das dimensões da acumulação do
capital e de suas especificidades na periferia do mundo capitalista, serviram para fazer a
crítica dos processos de modernização e de seu ideário. Como em um passe de mágica, a
“autogestão” dos recursos financeiros obtidos pelos programas oficiais e a duríssima gestão do trabalho no canteiro (gestão que, diga-se de passagem, se articula com base nos conhecimentos técnicos e de produção das assessorias, introduzindo uma hierarquização inquestionável no processo de trabalho) passa a ser vista como capaz de eliminar as formas
pelas quais produção e consumo se articulam na dinâmica da reprodução ampliada do capital e de suas formas específicas de acumulação no Brasil.
Se é preciso diferenciar os mutirões realizados pelos programas oficiais dos chamados mutirões autogeridos,17 também é necessário reconhecer os limites destes processos e
mecanismos de autogestão, tanto nas conformações do trabalho no canteiro, como na administração autônoma de recursos financeiros insuficientes para a produção das unidades
de moradia.18 Da autonomia caminha-se para uma forma consentida e vista como virtuosa de gestão da precariedade, da necessidade, da falta da casa – elemento estruturador das
possibilidades de acesso à cidade –, assim como para a produção de territórios urbanos caracterizados por uma mistura entre mutirões autogeridos e mutirões oficiais, que demarcam com clareza uma outra forma, bastante específica, de intervenção e produção do espaço urbano pelo Estado.
Também é importante notar algumas outras dimensões deste processo. A primeira
diz respeito à transformação de assessorias e escritórios de arquitetura que, nos anos 80,
nasciam vinculadas a laboratórios de habitação que se desenvolviam em faculdades de Arquitetura e Universidades, em organizações não-governamentais, seguindo a tendência de
“onguização” dos atores sociais (Dagnino, 2002). A segunda é a natureza dos vínculos entre as diferentes esferas e articulações dos movimentos de moradia e estas ONGs em um
duplo movimento que englobam, ao mesmo tempo, as atividades militantes e as parcelas
nada desprezíveis do mercado de trabalho que se forjam na produção de habitação por
mutirões autogeridos. A terceira é a natureza dos territórios urbanos produzidos por este
processo. Trata-se de perguntar se estas dimensões resultantes da precarização da vida não
acabam por constituir, nas fímbrias da cidade, onde estas práticas se viabilizam quer por
ocupação, quer pelo preço dos terrenos, territórios que se constituem pelo seu isolamento e encapsulamento, territórios em que as moradias autoconstruídas não estão integradas no tecido e nos serviços da cidade, apesar de se tornarem “patrimônios” individuais e
familiares em longas amortizações, freqüentemente incompatíveis com os parcos rendimentos de seus habitantes.19 Chama ainda a atenção o uso de recursos que se constituem
como fundos públicos nesta produção da face precária das cidades, ou ainda o uso oficial
da construção de moradias por mutirões – autogeridos ou não – como forma de produção de novas segregações socioespaciais, tal como parece acontecer quando este expediente acaba por fazer parte da política de modernização e gestão do município ou do Estado, como em Fortaleza.20
Estes processos parecem ser paradigmáticos e talvez sirvam, pelo seu sucesso, como
um bom parâmetro para a discussão das formas de organização e mobilização da “sociedade civil”, resultantes dos virtuosos impulsos por autonomia, democratização e emancipação que tiveram lugar nos anos 80. No que se transformaram? Como pensar, duas décadas depois, os esforços que tinham lugar na constituição do que denominávamos,
então, sociedade civil? Como entender o percurso deste conceito, assim como o de seus
correlatos, cidadania, espaços e esferas públicas, e seu contrário, as dimensões privatizan36
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tes que caracterizaram as formas de mando, as várias faces do controle e do poder, assim
como as relações entre sociedade civil e Estado no Brasil? Como pensar os territórios e
práticas urbanas nas dimensões de um emprego declinante, de novos modos de intervenção do Estado, de novas políticas que se vinculam a parcerias, à filantropia empresarial, à
farta emergência de ONGs, à construção de atores que – comprometidos com práticas virtuosas – acabam por se envolver nos mecanismos de administração e gestão de precariedades de todo tipo, às voltas com o Estado e com complexos programas de cooperação
internacional imbricados nos padrões de eficiência e produtividade das inversões de capital das agências mundiais? Estas parecem ser questões difíceis, talvez mesmo insolúveis a curto prazo, ainda que atualizem e recomponham o lugar da reflexão acadêmica como lugar da
crítica, de sua urgência e necessidade (Rizek, 2003).
CAZUZA E UNIÃO DA JUTA – CONFLITO E VIRTUDE
No quadro das experiências consideradas virtuosas de conjuntos construídos por
mutirões autogeridos, estas duas experiências se destacam, tanto por sua qualidade de projeto quanto pela possibilidade de construção verticalizada por mutirão, ou ainda por seu
caráter de autogerido.21
A primeira experiência – o Cazuza – localiza-se em Diadema e foi construída em
duas etapas: entre 1990 e 1992 e entre 1994 e 1998. A primeira etapa foi financiada pelo Prohap Comunitário, com recursos do FGTS/Caixa Econômica Federal; a segunda, pela Prefeitura de Diadema e pela poupança privada dos mutirantes. Hoje o conjunto conta com 280 unidades habitacionais e a associação de moradores continua organizada
ainda que com importante aglomerado de problemas relativos ao próprio estatuto da
construção por mutirões.
Uma das questões relevantes parece apontar para as dificuldades relativas ao próprio
agente financiador. O Cazuza juntamente com a Associação de São Bernardo foram os
primeiros e únicos mutirões financiados pela CEF através do Programa Prohap Comunitário. Seu financiamento foi conquistado como resultado de diversas caravanas a Brasília
promovidas pela UMM, no intuito de pressionar o governo federal a abrir linhas de crédito para habitação popular. Foi com este programa que, pela primeira vez, configurou-se
uma política pública na qual o movimento foi nomeado em um contrato público para
execução de unidades habitacionais por autogestão.
O contrato com a CEF designava como “contratado” a associação de moradores do
Cazuza, estando sob sua responsabilidade a gestão integral dos recursos a serem aplicados
na construção das unidades habitacionais, bem como a contratação de sua assessoria técnica para acompanhamento e gerenciamento dos trabalhos em canteiro e desenvolvimento dos projetos. Era atribuição da associação, prevista em contrato, dispor através de seus
sócios da mão-de-obra para a construção destas unidades – mão-de-obra não-remunerada, que trabalhava organizada em mutirão ou ajuda mútua. Neste contrato também figurava a assessoria técnica como “interveniente”, com responsabilidade técnica diante do
CREA e demais órgãos fiscalizadores da construção civil, mas cujo vínculo de trabalho ficava estabelecido única e exclusivamente com a associação, responsável também por remunerar este trabalho.
Importa salientar que, embora o programa Prohap Comunitário não tenha financiado nenhum mutirão além destas duas experiências, ele se tornou paradigmático na monR . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S , V. 5 , N . 1 – M A I O 2 0 0 3
37
tos dos moradores com os
órgãos financiadores, entre
si e com as assessorias. A
problematização dos resultados destes mutirões, para
além de todas as discordâncias entre movimentos e assessorias sobre o significado da autogestão, é
necessária como reflexão
para que se possa detectar
os múltiplos sentidos destas
práticas, assim como seus
deslizamentos recentes.
18 Em seminário recente de
desenvolvimento do projeto
relativo à pesquisa intitulada
“Procedimentos Inovadores
de Produção de Habitação
para População de Baixa
Renda”, que reunia assessorias que trabalhavam com
mutirões autogeridos em
Fortaleza, Belo Horizonte e
São Paulo, ficava clara a falta de consenso a respeito
do que cada assessoria entendia como autogestão.
Esta dimensão é extremamente relevante na mesma
medida em que é a autogestão que supostamente diferencia os mutirões produzidos pelos programas
oficiais daqueles que continuam vinculados às práticas
emancipatórias e supostamente autônomas.
19 Na citada pesquisa em
curso, pelo estudo de alguns
casos, mesmo os exemplos
mais virtuosos se caracterizam pela emergência de
conflitos importantes entre
mutirantes e órgãos financiadores, entre mutirantes entre si, entre as bases e as lideranças do movimento e
da associação. Estes conflitos, aliados ao desemprego
e a dificuldades decorrentes
de baixas rendas familiares,
têm conduzido a uma grande evasão de moradores de
conjuntos como, por exemplo, a União da Juta, em São
Paulo, ou o Mutirão 50, em
Fortaleza, considerados entre as mais bem-sucedidas
experiências de autogestão.
20 Esta informação foi obtida por depoimento de um exmembro de uma assessoria de
mutirões.
21 As duas experiências citadas foram assessoradas diretamente pela equipe da Usina –
Centro de Trabalhos para o Ambiente Habitado, em momentos diferentesde sua história.
A
22 A associação é proprietária da gleba inteira, e cada
um dos associados-moradores quando ingressa na associação e no mutirão paga
uma cota para quitar esta
despesa. O terreno inteiro
foi hipotecado como bem
para garantia do financiamento das primeiras cem
unidades no contrato com a
CEF. Sem a regularização
fundiária não é possível
suspender a hipoteca do terreno e encerrar definitivamente o contrato. Para
regularização é também necessária a quitação dos débitos com o INSS. Dentro
deste imbroglio jurídico a
associação de moradores
busca hoje regularizar a situação fundiária do conjunto
e conseqüentemente a propriedade das casas. Deste
esforço estão participando
a prefeitura, CEF, a associação e sua equipe de assessoria técnica.
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tagem de programas habitacionais autogeridos posteriores, por configurar o “tripé de parceria” entre poder público, movimento e assessoria técnica como sujeitos independentes
e “autônomos”. Além disto, a experiência de construção de prédios de apartamentos por
mutirão foi saudada como uma grande vitória dos movimentos de moradia, signo de sua
capacidade técnica e de sua potencialidade como agente credenciado na produção em escala de habitação social.
A segunda etapa de construção do Cazuza foi resultado de um hibridismo de financiamento que misturava fundos de financiamento municipal e poupança particular das
180 famílias envolvidas. Esta etapa, que ficou conhecido como “os 180”, pode ser lida como uma conquista progressiva na casa, resultado das portas fechadas da negociação com
o governo federal e da decisão política de lideranças do movimento regional de não ingressar com um pedido de financiamento ao governo do Estado, para continuar pressionando a CEF a reabilitar, deste modo, o Prohap Comunitário. Sua construção foi viabilizada por pequenos contratos com a prefeitura municipal de Diadema para a execução de
partes do conjunto, incluído aí até a prática de remessa de material pela prefeitura para o
tradicional mutirão. Enfim, um contrato maior com a administração municipal viabilizou a construção das casas, finalizadas em dezembro de 1998. A contraparte da associação era constituída pelo trabalho em mutirão e poupança das famílias para “inteirar” o
que faltava dos recursos.
No Cazuza dos “100”, uma pendência com o INSS indica a invisibilidade social desta forma de trabalho cooperado – o trabalho em mutirão – bem como a dimensão conflituosa e tensa da transformação de uma prática de trabalho em ajuda mútua, considerada resquício arcaico da nossa tradição rural, em política pública que cobra o
reconhecimento desta forma de trabalho como elemento passível de enunciação social e
pública. Houve dificuldades de reconhecer o estatuto jurídico do trabalho dos mutirantes e a impossibilidade de formalização nos órgãos públicos, como o INSS, acarretaram
problemas posteriores para a regularização do conjunto. O episódio aponta para a dificuldade de reconhecimento deste trabalho em mutirão como objeto sobre o qual seja possível o arbítrio coletivo, estabelecendo regras e medidas de sua inserção nos programas de
financiamento público. Aponta também para o não-reconhecimento deste trabalho como
atividade que possa ser nomeada e contada no arbítrio da previdência e seguridade pública, como parte fundamental da produção social de habitação.
O círculo de não-reconhecimento do caráter contratual e contabilizável do trabalho
de mutirão se completa no contrato individual de financiamento que, em nenhuma cláusula, traz qualquer referência ao trabalho dos mutirantes na obra, nem mesmo no pagamento das parcelas do financiamento. Este trabalho também não pode ser transformado
inteiramente (a não ser como diminuição de custos) em compensação financeira com a
diminuição dos valores pagos pelas famílias dos mutirantes-moradores.
Ainda às voltas com pendências e controvérsias jurídicas, a diretoria da associação de
moradores está hoje empenhada em regularizar o conjunto, para transformá-lo em condomínio. Os moradores do conjunto já estão pagando IPTU regularmente mas no cálculo
da área a pagar estão computadas as áreas verdes, áreas institucionais, ruas internas e passagens de pedestres, uma vez que a gleba inteira não foi desmembrada e, portanto, as áreas
não-residenciais não foram doadas ao poder público.22 Por um lado, os moradores reconhecem que é injusto pagarem imposto por uma área que, em verdade, não é só deles,
mas de uso coletivo. Por outro, a preocupação com as possíveis ocupações das áreas livres
deixa-os receosos e em estado de alerta contra qualquer eventualidade (ocupações por ou38
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tras parcelas da população). Além disso, a manutenção da área livre ficaria prejudicada,
segundo eles, se permanecer sob responsabilidade do governo municipal.
Esta tensão permanente entre o reconhecimento de uma dimensão pública presente
e necessária na vida do conjunto e a percepção da incapacidade do poder público em responder a suas demandas legítimas, diante da invisibilidade daquele pedaço da cidade,
monta um cenário no qual as dimensões “privatistas e privatizantes” se encrustam na vida coletiva, ganhando vulto, legitimando-se como forma possível de contraposição da população às agruras cotidianas. Neste processo, ganha destaque um discurso “comunitarista”que corrói por dentro a legitimidade das representações políticas, bem como as
questões e fóruns com perspectiva de universalização de direitos e medidas públicas.
Acresce-se a esta teia de tensões o fato de Diadema estar no ABCD paulista, berço do
movimento operário organizado, da face pública da classe trabalhadora, fato que reverbera na própria composição da associação de moradores. Percebemos nestes coletivos os vestígios de trajetórias de vida marcadas pela presença de emprego industrial e de uma atividade sindical mais enraizada na prática e na história de parte significativa dos mutirantes.
As mutilações nos corpos resultantes do trabalho fabril, o “tô encostado no INPS”, as histórias de sindicatos, as greves de categoria nas conversas do almoço, que também transparecem nas falas dos mutirantes nas assembléias e reuniões revelam o enraizamento de
uma experiência de organização sindical e política que estrutura a maneira como a associação e seus membros se relacionam com os outros sujeitos em sua história de conquista da casa própria. Arriscaríamos dizer, inclusive, que estrutura a forma “mais independente” de se relacionar com os agentes de assessorias técnicas. Indício disto é a ausência
da reclamação constante de abandono da assessoria técnica com o fim da obra, queixa
muito presente em outras obras como, por exemplo, a União da Juta.
No Cazuza podemos ouvir no discurso da organização autônoma os ecos de uma experiência sindical que se combina com a presença tensa de uma outra experiência, que,
em nome do direito público à moradia, acaba por ser capturada por aspectos privatizantes que a tornam invisível. Na União da Juta, por sua vez, é possível apreender uma estranha combinação entre um discurso de reivindicação do direito à moradia, e, portanto, um
forte acento político da atuação desta associação e sua forma de expressão pública, e uma
prática de associativismo comunitário que transforma por dentro a face pública da construção de espaços coletivos, excluindo aqueles que construíram os equipamentos comunitários, os mutirantes-moradores, do acesso ao seu uso e gestão.
A União da Juta é um conjunto de 160 apartamentos financiados pelo governo do
Estado através do Programa UMM, localizado na Fazenda da Juta, zona leste de São Paulo.
À época de seu início, a Fazenda da Juta era o “fim do mundo”, terra onde ninguém do
movimento queria morar, ainda mais quando comparado com outro conjunto em negociação no mesmo período, localizado ao lado da estação Belém do metrô.23 Nesta “terra de
ninguém” que era a Juta, hoje estão localizados mutirões financiados pelo governo estadual,
conjuntos resultantes de empreitada global, os “paliteiros”, os mutirões da prefeitura, enfim, uma diversidade de experiências habitacionais que foram sendo construídas lado a lado naquele terreno vazio, sem infra-estrutura urbana nem equipamentos públicos.
A diretoria da associação de moradores da União da Juta, durante toda a construção
do conjunto, manteve uma atitude que buscava integrar aquele conjunto, ainda em formação, com o entorno. Desde a ocupação dos prédios vizinhos por um grupo de sem-teto sem ligações com a UMM, o relacionamento da União da Juta com seus vizinhos procurava integrar-se ao bairro, entendendo que era preciso construir laços entre os futuros
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23 O texto de Edson Miagusko e Joana Barros
(2000) recupera, em detalhes, a história da União da
Juta e da Fazenda da Juta.
A
24 Na Fazenda da Juta se
instalou uma rede bastante
grande de crimes, notadamente roubo e desmanche
de carros e tráfico de drogas. Muitos crimes, acertos
de conta entre traficantes e
mesmo
enfrentamentos
com a polícia, acontecem
cotidianamente. Os moradores da União da Juta, mas
não só eles, referem-se a
esta situação como algo
que está fora do seu universo de relações, quando, na
verdade, constata-se uma
permeabilidade grande entre estes "dois mundos", inclusive alguns dos moradores da União têm passagem
pela polícia e envolvimento
com crime, sobretudo com
consumo e pequeno tráfico
de drogas.
25 A expressão é de Francisco de Oliveira (1999).
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e antigos moradores. Um traço solidário também se sobressaía no apoio às lutas dos outros grupos que aí se instalavam, na contramão de uma atuação política marcada pela tentativa de constituição de uma posição hegemônica por parte deste movimento de moradia sobre outros grupos e/ou outros possíveis moradores. Talvez esta solidariedade esteja
vinculada à percepção da necessidade de se aproximar daqueles “invasores” e dos “malandros”24 que vieram com a ocupação gradativa da Juta, que figuraram nas falas dos mutirantes e das lideranças como uma ameaça constante e estrangeira, advinda dos envolvidos
com o crime, como o espectro responsabilizado pela violência e pela insegurança.
Ainda que permeável à entrada e ao convívio com os “outros”, “os de fora", a União
da Juta é quase um implante naquele imenso terreno da antiga fazenda. Graças a financiamentos de cooperação internacional, da Igreja e de convênio com o poder público municipal, a associação conseguiu viabilizar o funcionamento de alguns equipamentos comunitários. O conjunto tem hoje uma creche conveniada, uma padaria comunitária,
atende jovens em programas de formação profissional, crianças em recreação, além de
abrigar as atividades da própria associação, ainda que, hoje, em menor volume. Todas estas atividades são desenvolvidas nos edifícios construídos com mão-de-obra mutirante durante a obra do conjunto e com recursos que os moradores pagarão nos seus financiamentos individualizados. Estes edifícios, três galpões que foram ampliados posteriormente,
abrigaram durante a obra as atividades da associação, as assembléias, as reuniões de coordenação, as festas coletivas e algumas dos próprios mutirantes (batizados, casamentos).
Nos galpões também funcionavam toda a administração da associação e da obra, a cozinha comunitária nos fins de semana e a creche do mutirão.
Todas estas atividades “extras” sempre foram discutidas e negociadas com os associados da União da Juta, mas não sem tensões. Alguns dos moradores, desde a obra, reclamavam da intensa atividade comunitária desenvolvida pela associação e do “privilégio dos
de fora” em usufruir destes equipamentos que os mutirantes estavam construindo. Com
o final da obra e a mudança dos moradores para o conjunto estas tensões aumentaram,
chegando a ser espacializadas por uma grade – colocada pelos próprios mutirantes – entre a área comunitária onde se desenvolvem estas atividades e a parte residencial propriamente dita.
Na esteira da desresponsabilização do Estado e do desmanche das políticas públicas
e dos direitos sociais em curso no País ao longo dos anos 90, o discurso de autonomia popular em relação ao poder público revela tragicamente uma visão de “desnecessidade do
público”25 e, em última instância, do Estado. Este discurso é ratificado pela experiência
concreta dos trabalhadores e revela ainda a idéia segundo a qual a população poderia fazer tudo por si mesma. A teia de financiamentos internacionais e da Igreja dão sustentação e comprovação empírica ao sentimento de “desnecessidade do público”, uma “subjetividade antipública” no seio da população pobre, bem como deslegitima toda e qualquer
participação política que não a de orientação “basista e assembleísta”, desconsiderando e
descredenciando as formas de representação política. As práticas e experiências de autonomia e de solidarismo dos movimentos sociais encontram, depois de duas décadas, sua
face perversa e seu avesso. Os projetos sociais financiados pelo Estado, e programas comunitários de todos os tipos para populações em situação de risco são saudadas e premiadas (simbolicamente e também financeiramente), sem que a crítica a este processo de anulação da política encontre lugar entre os próprios sujeitos políticos (movimentos sociais,
suas assessorias, parte da Igreja comprometida com estes movimentos, partidos de esquerda e mesmo intelectuais) para sua expressão. Este conjunto de práticas diante da miséria,
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carências e necessidades da população trabalhadora se justificam e se dramatizam, mas
tem como preço a impossibilidade da emergência legítima de conflitos no interior das
próprias experiências em curso e a impossibilidade de configuração de uma cena pública
na qual a esfera das necessidades possa ser discutida como algo que diga respeito ao conjunto da sociedade e ao conjunto da esfera da política.
POLÍTICA HABITACIONAL E DEMOCRATIZAÇÃO:
ENCONTROS ENTRE SOCIEDADE CIVIL E ESTADO
As questões acima formuladas nos remetem à análise dos contextos recentes em que
se discutem as articulações, mobilizações e práticas que se encontram hoje no território
das concepções e articulações reunidas sob o conceito ou noção de sociedade civil no Brasil.26 Algumas das noções e idéias presentes nestas reflexões podem ajudar a compreender
as relações entre políticas de habitação centralizadas no Estado, as práticas que as contestaram no horizonte da autonomia e das dimensões emancipatórias, assim como seus mecanismos de absorção pelo âmbito das políticas oficiais, de um lado, e suas práticas de
construção das formas de pertencimento, de novos eixos de sociabilidade, de dimensões
que politizam a questão da habitação social, por outro. Trata-se de um feixe complexo de
processos de sentidos múltiplos, com inscrições diversas no tempo e no espaço, isto é, diversas entre os anos 70, 80 e 90; e diversas em contextos urbanos distintos, de acordo com
a composição e articulação de seus atores.
O primeiro elemento importante nesta problematização destaca um tema clássico da
reflexão brasileira, passível de ser reconhecido pelo menos desde Sérgio Buarque de Holanda. Trata-se de um conjunto de relações bastante complexas e recentemente instabilizadas, entre Estado e Sociedade Civil. Alguns autores, entre os quais Dagnino, caracterizam estas relações a partir da noção de encontro, cujo cenário se constitui desde os
processos de democratização que marcaram os anos 80. Também é nesta década que teria
tido lugar uma revitalização da sociedade civil – “com o aumento do associativismo, a
emergência de movimentos sociais organizados, a reorganização partidária” inseridos no
debate sobre a natureza e as possibilidades da democracia no Brasil – assim como pela
própria democratização do Estado, marcados pela Constituição de 1988.
Há, assim, como pressuposto, a idéia de que as tensões e antagonismos entre Estado e Sociedade Civil, característicos do período da ditadura militar, teriam cedido lugar
para “uma postura de negociação” para “uma aposta na possibilidade de uma atuação conjunta, expressa paradigmaticamente na bandeira da ‘participação da sociedade civil”. Ainda que apontando para as diversidades que perpassam campos que se constituem por e
nesta postura de negociação, tanto no âmbito do Estado como no da sociedade civil, trata-se de um pressuposto de democratização real das relações sociais e de suas dimensões de poder, que instala heterogeneidades importantes no âmbito “dos atores, interesses e posições
políticas” (Dagnino, 2002, p.13). Os anos noventa trariam a possibilidade de uma atuação conjunta entre Estado e Sociedade Civil, inédita na história brasileira, cuja avaliação
não parece tarefa de simples execução.
Ora, é possível considerar que os mutirões autogeridos são um destes momentos de
“encontro” entre os atores – mais ou menos organizados em movimentos por habitação
–, entre suas articulações e assessorias, por um lado, instituições e órgãos de financiamento público e instâncias governamentais, por outro. A produção de moradias e de territóR . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S , V. 5 , N . 1 – M A I O 2 0 0 3
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26 Uma boa amostra destes processos pode ser encontrada no livro de Evelina
Dagnino (2002), publicado
recentemente, como resultado de um trabalho conjunto que atravessa campos e
objetos de investigação diversos entre si.
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rios da cidade, baseada na autogestão de recursos escassos, ainda presos portanto na esfera da necessidade, se articularia com o processo de politização da carência e com a autonomização crescente do processo de construção “comunitária”, novas relações sociais, formas de solidariedade e de trabalho cooperativo, formas de pertinência aos movimentos e,
finalmente, novos modos de ler e de viver a cidade. Algumas questões se colocam a partir destes processos considerados virtuosos.
A primeira questão é questionar se o argumento da Crítica da Razão Dualista ainda
está de pé em todas as suas conseqüências. Um percurso por seus pressupostos, assim como por algumas de suas decorrências parece assim ser necessário, mais uma vez, no mínimo como exercício crítico. Se é verdade que a crítica empreendida por Francisco de Oliveira às formas sociológicas e econômicas de pensar e problematizar a modernização,
inspiradas no desenvolvimentismo, tem por base uma teoria da acumulação do capital em
suas especificidades nas periferias do capitalismo, também é fato que o autor estava preocupado em aproximar ou reaproximar as esferas econômicas e políticas em suas injunções.
Assim, por redesenhar o cenário brasileiro a partir das dimensões da acumulação, a questão do trabalho e de suas formas, e seus modos de combinação são centrais no interior
desta reflexão, mas também fora dela. Isto é, as dimensões do trabalho e de suas formas
de cooperação aparentemente herdadas dos modos arcaicos de produção, do trabalho tal
como de fato se constituía em suas formas arcaicas e modernas, teriam inspirado toda a
reflexão sobre o saber popular, a “desierarquização” das práticas que se conformavam com
a divisão do trabalho, a imagem do mutirão como laboratório-escola ou como laboratório do futuro.
As novas formas de legitimação destes encontros entre atores (associações de moradores e assessorias) e Estado, ainda que “autogeridos” e, nesta medida, mais autônomos
em relação às políticas e programas oficiais, ao destituir a crítica, deslocam ou nublam
tanto as injunções provenientes da dinâmica da reprodução e acumulação do capital como as dimensões do trabalho. Quais seriam seus resultados, quando suas práticas se descolam das dimensões de emancipação para a da provisão de habitação, na forma de mutirões autogeridos?
Algumas indicações bibliográficas permitem afirmar, apesar da necessidade de novas
verificações empíricas, que o trabalho de construção por mutirão, mesmo nos casos em
que se contrata trabalho externo à “comunidade”, além de supor o uso de recursos destinados pelo Estado, isto é, fundos públicos (embora em alguns casos, haja também verbas
advindas da cooperação internacional) se estrutura de modo estritamente hierárquico, dependendo dos saberes técnicos das assessorias que determinam a estrutura, o modo, o ritmo, a divisão das tarefas a serem cumpridas, nos limites da escassez, elemento determinante do uso do trabalho dos futuros moradores. Além disso, apesar de freqüentemente
estes mutirões se localizarem em territórios ocupados pelos movimentos de moradia, eles
acabam por ratificar a produção de habitações em territórios periféricos, distantes dos serviços urbanos, localizados nos limites das cidades, onde ainda é possível encontrar terrenos disponíveis. O exemplo das injunções e problemas advindos do uso do trabalho gratuito na construção de um dos conjuntos analisados parece atestar o que se pode
denominar como a “nulidade pública” desta atividade e de seus tempos, na medida da impossibilidade de seu reconhecimento formal e institucional por não ser contabilizável, impedindo qualquer cálculo para efeito de recolhimento do INSS que a ele corresponderia.
Este trabalho invisibilizado, opaco, não-contabilizado pelo ângulo de seu reconhecimento, entretanto, é parte do cálculo do Estado, que viabiliza a construção de moradias para
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a população de baixa renda, pelo uso de seu próprio tempo e de sua própria força de trabalho, calculada, por um lado, e invisível, por outro.
Ainda é possível acrescentar uma das importantes dimensões do caráter autogerido
na produção de moradias: trata-se das dimensões de controle social do uso dos fundos públicos no interior da política e dos investimentos em habitação social.27 Note-se porém
que esta dimensão não é inseparável do uso do trabalho dos mutirantes-moradores, como
atesta a idéia de reforçar a autogestão economizando, sempre que possível e na medida do
possível, o uso do trabalho gratuito.
Também não é incomum a dissolução dos laços constituídos no período de mobilização e engajamento, assim como no período da construção que se esfacelam em um conjunto importante de conflitos internos, em territórios isolados, violentos e murados, com
problemas de inadimplência em relação aos órgãos financiadores, assim como com problemas internos que chegam a impedir a continuidade da organização dos moradores para as tarefas e os espaços comuns.
Obviamente estes processos de “desmanche” dos vínculos e formas de pertinência,
bem como das práticas que teriam constituído as redes de sociabilidade que conformam
as “comunidades” são solidários com as novas formas do trabalho e do desemprego, oculto e aberto, assim como com as especificidades deste outro momento de financeirização
do capital, dos novos modos de intervenção do Estado nos territórios urbanos, de novas
formas de gestão e de controle destas populações, de novas formas de trabalho e de mercado de trabalho para as assessorias, elementos-chave para este tipo de produção, o que
redunda freqüentemente em substituição dos movimentos pelas assessorias, quando não
em roubo da fala dos movimentos e associações pelos técnicos.
Mais uma vez, apesar da presença de instâncias e formas de negociação entre setores
organizados da sociedade civil e Estado, pode-se questionar o conteúdo democratizante
destes encontros, e de seus resultados, que superam a provisão de habitação de custos reduzidos graças ao trabalho dos moradores que obtiveram parcelas de fundos públicos para
sua execução. Trata-se de perguntar ainda sobre a natureza da relação destes territórios com
a cidade, em particular com a metrópole e seu poder de diluição, dispersão. A questão é
tão mais relevante quanto mais se questionam as dimensões de urbanidade e do acesso à
cidade e à ordem urbana – em particular na cidade de São Paulo – e quanto mais se pode,
por hipótese, supor que apesar de todas as dimensões emancipatórias e autônomas que são
reafirmadas pelos movimentos de moradia e pelas assessorias, investidas do caráter de
ONGs, não se acaba por gerar outra forma de combinação entre ação do Estado e mercado
(de terrenos, de trabalho, como ação que ratifica e/ou aprofunda a estratificação socioespacial) sobre a cidade, ação cujo potencial de diluição das dimensões públicas e urbanas é
enorme e, acima de tudo, passível de legitimação e aceitação pelos atores envolvidos.
Assim, é possível que, para além das “boas práticas”, tanto os mutirões resultantes
dos programas e políticas oficiais como os mutirões autogeridos possam iluminar aspectos interessantes deste movimento que, na passagem dos anos 80 para os 90, transformaram as promessas de democratização em novas formas de fusão entre controle, gestão,
mercado e Estado. Também seria preciso perguntar sobre as dimensões virtuosas destes
instrumentos, práticas e territórios. Talvez aqui também, possam ser elaboradas algumas
de suas dimensões.
Pode-se afirmar com boa margem de certeza que a maior parte do déficit habitacional brasileiro diz respeito às camadas que têm renda familiar de zero a cinco salários
mínimos.28 Sabe-se também que, a partir de 1995 houve uma importante migração de
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27 Ver, a este respeito, Will
Robson Coelho, 2002. Neste trabalho, o autor mostra,
com base nos dados da
Fundação João Pinheiro, um
crescimento impressionante do déficit habitacional no
Sudeste, entre os anos
1990 e 2000. Este número
passou de 1.889.899 em
1991 para 2.339.954 em
2000, apesar dos vultosos
investimentos em habitação
popular, pelo menos no Estado de São Paulo. Esclareça-se que mais da metade
do déficit, como se sabe,
se concentra na faixa de
renda de zero a cinco
salários mínimos.
28 Cf. dados da Fundação
João Pinheiro, citados por
Will Robson Coelho (2002).
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recursos do FGTS para a moradia de camadas médias da população brasileira, tendência
que segue os padrões de investimento das construtoras e incorporadoras. De fato, a questão da moradia ganha dimensões inusitadas, de modo que a transformação das demandas
sociais por moradia à luz dos direitos – o direito à moradia digna – acabou ficando com
parcelas de recursos que buscaram compatibilizar a produção de moradias com as baixas
rendas de camadas importantes da população, vulnerabilizadas por situações de desemprego e trabalho temporário, ou precário, configurações cada vez mais freqüentes do mercado de trabalho, ao longo dos anos 90. A questão da moradia ganha então contornos de
uma importante demanda e de eixo central da sobrevivência pessoal e familiar nas grandes cidades. É nestas dimensões que todo um conjunto de políticas se articulou, produzindo: 1) habitação de baixa renda, que, em uma combinação bastante inusitada, capturou parcelas inteiras dos movimentos por moradia para a esfera da política estatal
combinada com novas formas de clientelismo e de favor e com poderosos mecanismos de
mercado – fundiário e das indústrias da construção civil, dos grandes conglomerados de
vendas de materiais de construção; 2) territórios da cidade, por um momento constituídos por comunidades de referência e de pertencimento, que em seguida se dissolvem em
meio às dificuldades de pagamento da amortização, às dificuldades de manutenção da
moradia e dos espaços comuns, aos conflitos entre moradores, à ausência das assessorias,
ao enfrentamento direto e individual entre os moradores e as agências de financiamento.
Mesmo assim, nesta combinação entre carências e escassez de recursos, não é possível menosprezar nem os movimentos de moradia, nem a produção de habitação social por
mutirão, ainda que seja necessário perceber e analisar criticamente suas dimensões e seus
resultados. O mote “ter uma casa é melhor do que não ter nenhuma” permite circunscrever os mutirões autogeridos na esfera das carências e das necessidades e na fugacidade das
“comunidades de pertinência”, que se constituem tanto nos movimentos reivindicatórios,
como nos processos de construção das moradias, o que acaba por justificar todas estas práticas, remetendo-as ao fato de que talvez esta fosse a única forma de provisão possível de
habitação social para as camadas de baixa renda (com renda familiar até cinco salários mínimos). Também é possível perceber em alguns casos os índices de uma experiência de politização e de organização em lideranças, ou mesmo entre setores “da base” da associação
de moradores, o que permite antever um conjunto de sentidos que não vale a pena descartar de antemão, já que, tendo como berço a construção de comunidades de referência
constituídas pela falta, permitem a construção de trajetórias que alçam à esfera da política um conjunto de militantes dos movimentos. Não sem dilemas, nem sem ambigüidades, é possível que toda uma gama de participantes de alguns partidos políticos, como o
Partido dos Trabalhadores, tenha se constituído com a criação destas “comunidades” de
referência, que acabam por se configurar em canais que conduzem da experiência imediata à politização e publicização da ação. Talvez este elemento não seja suficiente para caracterizar o “caráter virtuoso” e democratizante dos mutirões autogeridos – e, menos ainda, dos territórios que eles constituem, que se caracterizam por um caráter periférico e
precário, hábil e legitimamente administrados, lugares onde o acesso e o direito à cidade
estão garantidos pela propriedade de uma unidade habitacional em amortização.
Talvez seja ainda possível apontar a natureza destas práticas como síntese de longos
processos – a democratização da sociedade brasileira ao longo dos anos 80; as novas formas e relações entre Estado e sociedade civil, neste caso visivelmente “onguizada” pela
mediação de assessorias; o uso de recursos oriundos de fundos públicos, financiando novas formas de intervenção do Estado no tecido urbano; as práticas de produção das mo44
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radias, que passam por uma intensificação e extensão da jornada semanal ou mensal de
trabalho; a produção do trabalho no canteiro propriamente dito; os chamados programas de “geração de emprego e renda”, que freqüentemente acompanham a produção das
unidades habitacionais; a gestão autônoma da escassez de recursos, assim como os expedientes que permitem, caso a caso, que ela seja driblada; a possibilidade de democratização do desenho e do projeto; a economia de custos da produção de habitação social; o
fazer e o desfazer das “comunidades” que se ordenam em associações de moradores; todos estes elementos podem conduzir à riqueza de dimensões, de sentidos, de suas transformações, em uma “síntese negativa”, cuja crítica emudeceu, diante da urgência da sobrevivência, diante da calamidade da necessidade e diante de formas de articulação que
apontam para novos modos de administração e de controle destas populações e de seus
movimentos e articulações.
ALGUMAS CONSIDERAÇÕES
Interessa ainda buscar articular de que modo estes processos, que se plasmam nos
mutirões autogestionários, característicos dos momentos aparentemente democráticos e
supostamente virtuosos, podem estar repondo as velhas formas da sociabilidade política
brasileira, assentada no favor e na proximidade, ainda que desprovidas do caráter integrador do passado e do desejo de autonomia dos movimentos sociais, característico dos
anos 80. Trata-se de fato de um “encontro” entre sociedade civil e Estado através desta
constelação de atores em rede ou em parceria? O que sobra das comunidades que se
constituem na construção e uso destas habitações? Curiosamente, as esferas de interlocução e negociação, assim constituídas, se articulam e se conformam como sociedade civil, ou talvez como “encontros” virtuosos entre a sociedade civil e o Estado, o que permite questionar a noção mesma de sociedade civil tal como se desenha, isto é, como
lugar e como articulação democrática e horizontalizada dos vários fóruns e atores pelo
associativismo e ativismo civil.
Quando as esperanças do desenvolvimentismo chegaram ao fim, ao longo dos anos
70, as perspectivas da democratização brasileira começaram a se desenhar pela constituição de uma sociedade civil que se fundava não a partir do associativismo civil, nem de organizações não-governamentais investidas da roupagem virtuosa da capacitação técnica e
política, mas da presença surpreendente de uma novidade que tinha no movimento sindical seu principal protagonista, problematizando no centro desta cena pública as figuras
e as formas do trabalho e a presença dos trabalhadores. O que marca a discussão dos anos
90, paradoxalmente, é o desaparecimento destas formas e destas figuras do trabalho, substituídas pelo ativismo e associativismo, pelo “comunitarismo”, pelas parcerias e por todo
um conjunto de novos modos de interlocução e negociação que podem democratizar e
publicizar processos, ao mesmo tempo que conformam outras formas de controle e de
gestão, crescentemente legitimadas por seu caráter virtuoso, de administração das esferas
da necessidade que aparecem como a única alternativa, que se desenham como espaços
democráticos e democratizantes, ali mesmo onde a política (pensada como dissenso, como reinvenção de lugares e de falas, como ação que desafia as prescrições consagradas) crivada de competências técnicas e de cálculos de eficiência, pode ter deixado de existir.
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45
Cibele Saliba Rizek é professora do Departamento
de Arquitetura da EESC-USP
e pesquisadora do Cenedic/
USP.
Joana Barros é mestranda
em Sociologia na FFLCH/
USP.
Marta de Aguiar Bergamin é mestre em Sociologia
pela FFLCH/USP.
Artigo recebido para publicação em setembro de 2003.
A
P O L Í T I C A
D E
P R O D U Ç Ã O
H A B I T A C I O N A L
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A B S T R A C T This article searchs a discussion about social housing production
through the practices of the mutirões, emphasizing a process that changed the character of
social housing policies and political practices between the decades of the 80´s and 90´s. It
argues how the conceptions of autonomy and emancipation of civil society and social
movements during the period of Brazilian dictatorship government in the 70´s changed into
policies that justify practices of non-payed work in the production of houses supported by public
funds that can be seen as an administration of precariousness and misery, instead of policies of
autonomy and emancipation.
K
46
E Y W O R D S
Self-managed housing practices; housing policies; social rights.
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DAS ECONOMIAS
DE AGLOMERAÇÃO ÀS
EXTERNALIDADES DINÂMICAS
DE CONHECIMENTO
1
POR UMA RELEITURA DE SÃO PAULO
ALEXANDRE TINOCO
R
E S U M O Ao reconstituir o debate sobre especialização/diversificação setorial como
motor do desenvolvimento urbano, este artigo retraça a construção dos conceitos de externalidades dinâmicas MAR e Jacobs e os reutiliza para o estudo dos processos inovativos das empresas industriais da Região Metropolitana de São Paulo. Com isso, busca aprofundar o debate
teórico e a interpretação da realidade econômica paulistana da década de 1990, de um enfoque baseado nas estratégias dos agentes econômicos aí presentes. Para tanto, é necessário compreender as estratégias de inserção a redes de informação para o processo inovativo, com base
na construção de um portfolio setorial de fontes.
P A L A V R A S - C H A V E Economias de aglomeração; externalidades de conhecimento; inovação; especialização; diversificação.
INTRODUÇÃO
“Aglomeração”. Palavra de vários significados e de utilização comum que podemos
encontrar no uso diário de qualquer pessoa que esteja a circular pela rua. Rua essa que é
parte integrande de uma aglomeração. Aglomeração de pessoas, de capitais, de empresas, de consumidores, de fornecedores e – por que não? – de informações e de idéias. Entre os vários significados do termo, talvez o mais imediato é o de produto ou resultado
de uma ação de juntar, reunir, acumular ou amontoar. Antes de tudo, porém, o termo
significa uma ação, seja coletiva ou individual, mas sempre realizada como uma construção. Jamais uma tendência natural, uma lei universal e imutável, mas ação intencional
construtiva, que evidencia a existência de agentes. E é justamente a existência desses
agentes que nos permite uma análise das racionalidades que eles aplicam à construção de
uma aglomeração.
Neste trabalho, tentaremos definir tais racionalidades, analisando a construção do
conceito de aglomeração na teoria econômica, notadamente na economia regional e urbana, e no caso de uma aglomeração específica, a aglomeração metropolitana de São Paulo. Com isso, pretendemos nos distanciar dos usos rotineiros do termo “aglomeração”, nos
distanciar da rua, apesar de continuarmos a circular nela.
Em economia, o estudo de aglomerações toma a forma do estudo das cidades, no caso da economia urbana; das regiões, no caso da economia regional; e das chamadas aglomerações industriais (denominadas clusters por uns e distritos industriais por outros), no
caso das teorias dos sistemas produtivos locais.
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1 Agradeço enormemente
as críticas e sugestões recebidas em diversas ocasiões. Adrián Gruza Lavalle
teve papel fundamental na
construção de uma primeira
versão, e a ele agradeço especialmente; Ana Cristina
Fernandes e Haroldo Torres
contribuíram sobremaneira
com suas sugestões e críticas quando da defesa final
de paper do Programa de
Formação de Quadros Profissionais do Cebrap do biênio 1999/2000 e, por último, agradeço a Alain Rallet
e Mauro Borges Lemos pelas preciosas contribuições
à última versão deste texto,
apresentada no X Encontro
Nacional da Anpur em Belo
Horizonte, maio de 2003.
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2 Principal receptor dos novos investimentos durante o
processo de desconcentração relativa da indústria nacional.
E C O N O M I A S
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Neste trabalho, colocamo-nos o desafio de efetuar uma releitura da Região Metropolitana de São Paulo (RMSP) baseada no papel que o ambiente metropolitano pode desempenhar perante os agentes econômicos que aí se localizam. Para tanto, iremos reconstruir o debate que transformou as chamadas economias de aglomeração (a racionalidade
econômica da ação de aglomerar) em externalidades dinâmicas de conhecimento. Sejam
de origem marshaliana, economias de aglomeração, de especialização setorial, posteriormente chamadas de economias de localização; sejam de economias de urbanização do tipo Jacobs, economias provenientes da diversificação setorial metropolitana.
No entanto, a originalidade deste trabalho não se encontra na revitalização da ambigüidade desse conceito, mas sim na forma como buscaremos construir instrumentos
empíricos que nos possibilitem acessar essas teorias econômicas. Não nos serviremos dos
argumentos das famosas funções de produção. Este não é um trabalho de especificação
dos termos de uma função de produção de cunho neoclássico onde avaliaríamos a potencialidade de um ou de outro argumento. Apesar de essa avaliação ser importantíssima, não
podemos nos contentar com isso. Afinal, trabalhos desse tipo não são capazes de compreender a diversidade das estratégias de coordenação econômica que podemos encontrar
em um ambiente metropolitano. Diversidade essa que recorre a diferentes tipos de racionalidades aglomerativas para a construção ativa de uma aglomeração.
Para efetuar essa releitura, estudaremos o processo inovativo das empresas paulistas2
com o intuito de analisarmos diferenças setoriais de racionalidade de aglomeração no tocante aos processos inovativos. Sendo a inovação a principal atividade econômica da empresa, é de suma importância a forma, a racionalidade, com que os agentes econômicos
inovam. A pergunta é: os setores industriais inovam da mesma maneira? A resposta parece ser negativa. E as diferenças setoriais podem se relacionar com diferentes trajetórias regionais? É aqui que proporemos uma taxonomia bidimensional para os setores da indústria de transformação do Estado de São Paulo e mostraremos que os setores mais
concentrados e inovadores dão extrema relevância para economias de urbanização tipo Jacobs, enquanto setores menos concentrados e menos inovadores dão muita importância
para economias de aglomeração tipo marshalianas. Não é à toa que são os setores que mais
fortemente atuaram no processo de desconcentração relativa da indústria no Brasil, em
busca de outras formas de aglomeração, não necessariamente metropolitanas.
DAS DECISÕES DE LOCALIZAÇÃO
AO PROCESSO DE APRENDIZADO
ENFOQUE ESTÁTICO
O conceito de economia de aglomeração é amplamente utilizado por várias correntes
de pensamento dentro da economia regional e urbana, tanto de tradição neoclássica, como de diversas tradições heterodoxas, entre elas o pós-keynesianismo de Kaldor e vertentes neo-schumpeterianas. Em várias correntes econômicas, é um dos conceitos que justificam economicamente a existência de cidades.
Como salientado por Catin (1994), a origem do conceito não pode ser unicamente
atribuída unicamente ao trabalho primordial de Marshall. Nele, encontramos a consolidação do conceito de economias externas como forma de compatibilizar, no plano teórico,
a existência efetiva de retornos crescentes no âmbito da indústria e a necessidade de retor48
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nos constantes no âmbito da firma para a possibilidade de existência de um equilíbrio
único de mercado em concorrência perfeita.
Conforme Marshall, a atividade industrial pode, sob determinadas condições, apresentar tanto economias de escala internas à firma, o que chama de economia de escala microeconômica, como economias de escala externas às firmas, ou, economias macroeconômicas. A primeira levaria à concentração de capital, à formação de oligopólios e à
diferenciação de forças entre as firmas – em suma, a uma economia desigual na relação de
forças dos agentes econômicos. A segunda, por sua vez, levaria à concentração da atividade econômica em regiões específicas, em detrimento de outras que, por diversos motivos,
começaram com atraso a atividade industrial. É essa segunda forma de retornos crescentes que nos interessa aqui.
A segunda fonte de inspiração para a constituição do conceito de economia de aglomeração pode ser encontrada na obra de Weber (1929) sobre a localização industrial, em
que as economias referentes à localização de mão-de-obra mais barata e as economias provenientes de um determinado processo aglomerativo devem ser levadas em consideração
para determinar a localização ótima de uma firma.
No entanto, é apenas com o trabalho de Hoover (1936), de ênfase eminentemente
empírica, e, fundamentalmente, com as formalizações teóricas de Isard (1956), que a economia espacial ganha corpo teórico e o conceito de economias de aglomeração adquire densidade. Para Isard, as economias de aglomeração são definidas como, em alusão direta a
Marshal, economias de escala externas à firma que podem se apresentar como internas a
uma indústria (setor) em uma certa região, recebendo o nome de economias de localização; ou podem ser externas à firma e também externas à indústria, atuando no conjunto
das atividades de uma determinada região, e são chamadas de economias de urbanização.
Não podemos esquecer que estamos aqui em um mundo onde a maximização de
lucro é a racionalidade dominante dos agentes econômicos. O estudo da localização industrial obedece a essa racionalidade e a localização de uma empresa em uma cidade e não
em outra só pode ser explicada pelo fato de que sua atual localização é a que a empresa
entende como a que lhe pode proporcionar a maximização de seus lucros em relação a outras localizações.
Ou seja, se observamos uma aglomeração de indústrias (seja uma aglomeração tipo
distrito, seja uma aglomeração urbana), é porque a ação de se colocar com as outras empresas foi uma escolha que visava tal maximização. Como essas aglomerações são relativamente perenes, a escolha é considerada melhor em relação a outras localizações possíveis. Se a empresa tomou essa decisão é porque espera ter um lucro maior em uma
determinada localização que em outra. E é justamente esse diferencial de lucro (em relação à ação de não aglomerar) que podemos chamar de economias de aglomeração.
Mais precisamente, entendemos como economias de aglomeração todo ganho de produtividade do agente advindo de sua colocalização com outros agentes – como definido por
Polèse (1994).
Mas que tipo de agentes? Aqui, retomamos a distinção entre economias de localização e economias de urbanização. Os ganhos de produtividade externos à firma que derivam de relações (localmente situadas) com outras firmas da mesma indústria (concorrentes, fornecedores e parceiros, fundamentalmente) são as chamadas economias de
localização. São economias provenientes da especialização de certa região em determinada indústria. São os ganhos de produtividade existentes nos chamados distritos industriais,
como o próprio Marshall já apontava.
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Mas outros ganhos de produtividade são possíveis. Para a economia espacial, fatores
como concentração do mercado consumidor, indivisibilidade dos bens públicos (meio de
transporte e educação, por exemplo) e presença de atividades terciárias podem gerar ganhos de produtividade do tipo economias de urbanização.
Teríamos, portanto, não apenas uma e sim duas racionalidades articulando a ação de
aglomerar. Uma racionalidade que busca a especialização, a concentração de empresas da
mesma indústria, como forma de busca por maximização, e outra racionalidade que, buscando o mesmo objetivo, procuraria localizações capazes de concentrar uma boa oferta de
infra-estrutura e diversidade da atividade econômica. A primeira racionalidade seria típica das aglomerações industriais tipo Terceira Itália (o renascimento dos distritos marshalianos); a segunda racionalidade, típica das aglomerações industriais metropolitanas.
Apesar de forte apelo conceitual, a utilização do arsenal de economias de aglomeração sempre foi muito complicado para a economia regional e urbana. Seja pelo fato de
que cada autor escolhe um determinado aspecto como relevante para preencher empiricamente o conceito em questão (transformando-o em uma explicação ad hoc), seja pelo
fato de que este enfoque não possui uma dimensão temporal de análise, restringindo sua
aplicabilidade a modelos de análise estática, modelos de localização industrial, em geral.
Um modelo que explica os motivos de uma empresa se localizar numa localidade ou noutra não chega a ser capaz de explicar a dinâmica subseqüente desta empresa (isso é dado
como hipótese: afinal, a escolha é sempre racional e se a empresa não estivesse localizada
no melhor lugar possível, ela mudaria.
A instrumentalização deste conceito é tão problemática que encontramos uma verdadeira desconstrução dele – ver, por exemplo, Catin (1991; 1994). No entanto, a partir
do início da década de 90, a situação começa a mudar.
ENFOQUE DINÂMICO
Pode-se dizer, com certa segurança, que a grande recuperação do conceitual das economias de aglomeração para a Economia Urbana (de inspiração ortodoxa) ocorreu a partir do trabalho de Glaeser et al. (1992), que tem como preocupação principal e declarada lançar luz (“to shed light”, 1992, p.1.134) sobre as teorias de crescimento do tipo de
Romer (1990), que se baseiam na existência de externalidades de conhecimento para
construir uma teoria de crescimento endógeno de longo prazo. Poderíamos dizer que, na
realidade, esse trabalho busca refazer a roupagem conceitual da economia urbana de forma a ser coerente com os trabalhos inspirados em Romer (1986) e Lucas (1988). Para explicar que as externalidades do crescimento endógeno possam levar à diferenciação espacial, os autores se dedicam a dar um sentido dinâmico ao conceito de economias de
aglomeração (Kallal et al., 1992). Não é mais o estudo da localização industrial que interessa. Mas sim o estudo do crescimento das cidades e das indústrias que aí se localizam.
As economias de aglomeração passam a não ser mais responsáveis apenas por atrair empresas a se localizar em uma cidade. Muito mais que isso, são responsáveis (não os únicos, obviamente) pelo dinamismo e pela capacidade de crescimento das empresas que aí
se instalaram. Elas não afetam mais apenas uma decisão locacional, mas afetam a performance de longo prazo dos agentes que tomaram aquela decisão de localização (ainda importante, no entanto). A questão é: como esse salto foi possível? A resposta tem dois atos.
Primeiro, precisamos dos fatores dinamizadores da atividade empresarial; segundo, é preciso verificar como as economias de aglomeração influem nesses fatores.
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Sem dúvida nenhuma – e sem querer, no entanto, buscar um schumpeterianismo nato em autores de filiação tão distante – podemos dizer que a inovação vem a ser o fator dinamizador da atividade econômica que irá propulsionar o crescimento das cidades. Glaeser et al. (1992) recorrem à Bairoch (1988) e Jacobs (1969) para construir o grande fato
estilizado sustentador do trabalho propondo que “a maioria das inovações ocorrem em cidades” e que "uma visão dinâmica das cidades como essa combina bem com os trabalhos recentes
de crescimento econômico” (1992, p.1.127 T.A.), estabelecendo uma relação direta evidente
entre Jacobs (1969) e sua forma de entender o desenvolvimento das cidades com as teorias
de crescimento endógeno.3 O conceito que lhes permite fazer essa ponte é justamente o
das externalidades, especialmente as externalidades de conhecimento, tão caras a Lucas
(1988) e a Romer (1986) e formalizadas inicialmente por Dasgupta & Stiglitz (1980). Não
vale aqui uma recuperação dos trabalhos de Lucas e Romer, uma vez que não avaliaremos
a adequação do trabalho desenvolvido por Glaeser et al. (1992) em relação aos seus objetivos mais diretos. O que nos interessa é estudar como esse trabalho pioneiro influenciou
o debate subseqüente sobre a dinâmica das cidades e em que ele pode nos ser útil.
No entanto, o que mais nos interessa neste texto é a forma como os autores dão consistência teórica e dinâmica à noção de economias de aglomeração. Para preencher os “microfundamentos” das externalidades de conhecimento, os autores recorrem a três arsenais
teóricos distintos.
Um primeiro arsenal, numa vertente muito próxima de sua tradição, recupera as
idéias iniciais de Marshall sobre economias de aglomeração e acrescenta os resultados teóricos do trabalho de Arrow (1962) e Romer (1986) sobre os ganhos de produtividade e
crescimento advindos de externalidades de conhecimento. A esse primeiro chamam de externalidades tipo MAR (de Marshall, Arrow e Romer, que dão, respectivamente, o senso de
economia externa, ligada ao aprendizado e como base do crescimento econômico). Para
essa primeira categoria de externalidade dinâmica, o fator gerador de spillovers numa indústria determinada é sua especialização urbana. Empresas do mesmo setor, localizadas
próximas umas das outras, seriam responsáveis pela geração de externalidades que possam
vir a ser apropriadas pelo conjunto dessas empresas. Bem ao estilo dos distritos marshallianos, em que as “idéias pairam no ar”, disponíveis para apropriação.
Um segundo arsenal se baseia em Porter (1990) e recupera, do ponto de vista do debate especialização x diversificação, os mesmos argumentos do tipo MAR. Sua grande diferença é que, contrariamente ao tipo MAR, as externalidades tipo Porter surgem em um
contexto de altíssima concorrência empresarial. Quanto mais concorrencial for o ambiente econômico, mais as externalidades tecnológicas entre firmas do mesmo setor ocorrerão.
Para a hipótese do tipo MAR, um certo grau de monopólio tem que persistir a fim de incitar a inovação. Por incrível que pareça, uma análise do tipo MAR se aproxima muito mais
da tradição schumpeteriana do que a hipótese do tipo Porter, apesar de este último ser extremamente vinculado com essa tradição. Nas próprias palavras dos autores em questão:
“A teoria MAR prevê, da mesma forma que Schumpeter (1942), que, localmente, monopólio é
melhor do que competição para o crescimento” (Glaeser et al., 1992, p.1.127 T.A.). O contrário do que acontece com a hipótese Porter, que talvez esteja pensando muito mais no
processo de difusão da inovação e não na indução propriamente dita.
O terceiro arsenal se baseia em Jacobs (1969) e podemos encontrar argumentos econômicos muito fortes em sua análise da dinâmica das cidades. Em seu riquíssimo The
Economy of the cities, Jane Jacobs apresenta uma leitura extremamente original e inovadora sobre o desenvolvimento e funcionamento das cidades. Com uma fundamentação hisR . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S , V. 5 , N . 1 – M A I O 2 0 0 3
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3 Especialmente as de Romer (1986) e Lucas (1988).
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tórica realmente incomum para economistas, aponta que o dinamismo das cidades (até
mesmo sua eficiência) estaria ligado muito mais à diversidade do trabalho que podemos
encontrar num ambiente urbano. A partir daí, Glaeser et al. (1992) constroem a hipótese de externalidades tipo Jacobs, que aponta para a diversidade urbana, geradora de fertilizações cruzadas, como fator dinamizador das externalidades de conhecimento necessárias ao processo inovador. Do ponto de vista da estrutura da concorrência, que aqui não
será tratada, a hipótese Jacobs segue na mesma direção da hipótese Porter, apontando a
necessidade de um ambiente altamente concorrencial capaz de favorecer o processo de difusão de tecnologia.
Em comum, esses três arsenais têm a propriedade de transformar o debate de localização, entre economias de localização e economias de urbanização, estático e dicotômico, como vimos anteriormente, em um debate de crescimento econômico, dinâmico, portanto, apoiado sobre uma nova dicotomia (bem mais complexa) entre externalidades
dinâmicas advindas da especialização setorial, seja MAR ou Porter, ou externalidades dinâmicas advindas da diversificação urbana, do tipo Jacobs. De acordo com Massard & Riou
(2001), essa transformação torna complexo e enriquece o debate com a introdução de três
fatores: primeiro, e mais importante, a introdução da variável tempo, visto que a análise
se faz em termos de crescimento e não mais em termos de localização; segundo, ao levar
em consideração relações não-mercantis, não reduzíveis ao mundo bidimensional neoclássico tradicional, relações essas que são fortes fontes de externalidades e, portanto, fundamentais para o crescimento localizado pois são, em geral, localmente restritas; e, por último, por incorporar as relações entre regiões como fonte de crescimento, uma vez que
podem ocorrer externalidades de conhecimento com amplidão um pouco mais larga do
que o âmbito de uma cidade. Massard & Riou (2001) apontam justamente que a chamada Nova Economia Geográfica seria uma boa forma de aprofundar essa análise.
Em resumo, para Glaeser et al. (1992), a estrutura da concorrência e as externalidades de conhecimento são fatores-chave para explicar a capacidade inovadora e, conseqüentemente, de crescimento, de uma cidade. Entre os possíveis arranjos entre estes dois
fatores, temos as três hipóteses por eles construídas (MAR, Porter e Jacobs). Para a continuidade deste artigo, como só nos interessa a discussão entre especialização e diversificação como fundamentos de racionalidades aglomerativas, determinantes da dinâmica de
uma cidade, podemos abrir mão da hipótese Porter, que, neste quesito, é altamente creditícia de Marshall. Com isso, nosso debate se reduzirá a estudar a economia de São Paulo, no que tange ao processo inovativo, a partir da chave explicativa MAR/Jacobs.
É útil explicar aqui porque consideramos o livro de Jacobs (1969) fundamental. A
autora não faz apenas um relato do que considera importante para uma cidade vencer e
conseguir desencadear um processo virtuoso de crescimento numa economia globalizada.
Na noção de cidade, ela efetivamente funda a principal tecnologia produtiva já desenvolvida pelo homem. E é ambiciosa ao fazê-lo. Se Marshall baseia a noção de eficiência produtiva numa divisão de trabalho smithiniana, em que a especialização da atividade produtiva leva ao crescimento da produtividade da empresa, Jacobs questiona a fundo essa
filiação. Ela aponta mesmo que a divisão do trabalho verdadeiramente importante é completamente outra. Ao invés da fragmentação do processo de trabalho, com especialização
das atividades humanas, seja numa empresa, seja numa indústria (como a famosa fábrica
de alfinetes), a divisão social do trabalho que realmente levaria ao desenvolvimento econômico seria o surgimento de novas atividades. Lembremos nosso bom e velho caçador
ideal, que caçava aves e mamíferos, precisando de armas e habilidades diferentes para ca52
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da atividade. Em Smith, ele se especializaria em um dos animais, naquele sobre o qual ele
teria maior destreza de caça (e no qual poderá desenvolver melhor suas qualidades ao se
ocupar apenas dele), trocaria seu excedente por outro tipo de animal e, socialmente, teríamos maior abundância. Em Jacobs teríamos um outro tipo de racionalidade. Aquele
caçador não deixaria de caçar nenhum tipo de animal. O que ele buscaria fazer é diferenciar-se dos outros caçadores; uma das formas mais eficientes seria, por exemplo, oferecer
a ave já cozida no mercado. Assim nasceria um novo tipo de trabalho e, com o tempo, ele
poderia até deixar de caçar e dedicar-se a um restaurante. Surgiria assim uma nova atividade, diversificando a economia. Temos aí um tipo de divisão social do trabalho completamente diferente do que encontramos em Marshall, apoiada numa apropriação parcial
da divisão social do trabalho como proposta por Smith. Ela dá uma racionalidade microeconômica muito forte para a atividade econômica. Não é questão aqui, nem em nenhum
outro lugar, verificar quem tem razão. Mas sim apontar que um processo de externalidade dinâmica do tipo Jacobs pressupõe um processo de divisão do trabalho muito coerente e inovador, em relação ao estabelecido por Smith e reaproveitado por Marshall. A grande originalidade de Jacobs foi a de perceber que esse tipo de externalidade só pode
acontecer em um ambiente urbano. Uma vez que a criação de novos trabalhos (como ela
os chama) só pode acontecer com a troca e o fluxo de idéias que são potencializadas pelo
contato diário face a face e pelo processo de concorrência.
Seria anacrônico tachar Jacobs de schumpeteriana. Ela teve todas as possibilidades
de reclamar essa alcunha. Mas não seria despropositado enriquecer as análises schumpeterianas sobre o urbano com base em seus resultados conceituais. Isso porque ela utiliza
noções e conceitos muito caros a essa tradição. Impressionante quando compara as cidades de Manchester e Birgmingham da perspectiva de uma discutível eficiência urbana.
Mas o conceito de eficiência que utiliza é absolutamente schumpeteriano. É a cidade que
tem a maior capacidade de diversificação, de diferenciação do trabalho nela realizado.
Acreditamos que essa autora pode muito bem ser reconhecida como base de uma economia urbana schumpeteriana (ainda a ser construída). E sua nova forma de pensar a divisão social do trabalho nos é de muita utilidade na compreensão de um certo tipo de racionalidade dos agentes que aí se aglomeram.
Uma vez evidenciada a origem do debate especialização/diversificação, faremos aqui
um breve resumo da trajetória em que ele vem se desenvolvendo, de seus primórdios até
seus mais recentes desdobramentos.
Massard & Riou (2001) apontam que o nascimento deste debate, no início da década de 1990, deve-se fundamentalmente à convergência entre os trabalhos da economia
geográfica de Krugman, entre outros, e as teorias de crescimento endógeno. Essa síntese
economia geográfica–crescimento, do estilo, por exemplo, de Martin & Ottaviano
(1999), foi capaz de introduzir uma análise dinâmica no processo de diferenciação regional que em Krugman (1991) e Krugman & Venables (1995), por exemplo, é absolutamente estático. Como bem salientam Massard & Riou (2001), já em Krugman poderíamos encontrar certa preferência pela diversidade como fator dinamizador das economias
regionais4 através de uma função utilidade do consumidor que apresentaria uma preferência pela diversidade dos produtos consumidos. As localidades com maior diversidade
atrairiam mais consumidores que, por sua vez, aumentariam o tamanho do mercado, reforçando um processo de rendimentos crescentes das empresas que aí atuam. No entanto,
esse modelo explica apenas (e por isso é estático) a distribuição de uma capacidade econômica já dada. Nada é dito quanto ao processo de acumulação de capital e de crescimento.
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53
4 O que o relativizaria para
o estudo de aglomerações
urbanas especializadas.
D A S
5 Encontramos em Krugman & Venables (1995) uma
versão mais refinada do argumento. A diversidade ativa passa a ser a diversidade
dos bens intermediários. Ao
abandonar a hipótese de
bens homogêneos, introduz
a possibilidade de diminuição de custos de transporte, se a empresa se localizar na região que apresenta
a maior diversidade de bens
intermediários. Essa diminuição de custos é fator determinante no processo de
crescimento retroalimentado e da diferenciação regional. Mas, infelizmente, ainda
estamos longe da diversificação criativa de Jacobs.
6 De Englmann & Walz
(1995); Walz (1996); Baldwin & Forslid (2000); Martin
& Ottaviano (1999); Baldwin, Martin & Ottaviano
(2001).
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Outro problema é que essa não é exatamente a diversidade que aqui está em discussão, a
diversidade proposta por Jacobs.5
Esse debate torna-se complexo e ganha interesse a partir de uma série de trabalhos6
que, segundo Massard & Riou (2001), realizam a síntese entre os trabalhos de Krugman,
da Nova Economia Geográfica, e as teorias de crescimento endógeno, ao modelar, ao
mesmo tempo, a inovação como motor de crescimento da economia; a polarização da atividade econômica e a coexistência de externalidades pecuniárias e de conhecimento (esta
última presente apenas em desejo na Nova Economia Geográfica).
Tomando como exemplo Martin & Ottaviano (1999), numa economia de dois setores – um produzindo um bem homogêneo em concorrência perfeita, outro produzindo bens diversificados, num ambiente de concorrência monopolística – advindos do processo inovativo, cuja eficiência é uma função crescente da diversidade já existente de
produtos no qual encontramos externalidades localizadas, em tal arranjo teremos o crescimento localizado e a diferenciação espacial quanto mais especializada for uma região no
setor diversificado. Ou seja, o modelo tem tal arranjo que a relação entre especialização e
diversificação deixa de ser apenas dicotômica, complicando-se enormemente. Se uma região se especializa no diverso, ela terá uma taxa de crescimento mais elevada do que uma
diversificada em termos de setores. No entanto, como salientam Massard & Riou (2001),
o fator dinamizador para os modelos desse tipo continua sendo a diversificação, mesmo
que ainda uma diversificação intersetorial, como gostaria Jacobs, e sim uma diversificação
interna a um único setor.
O QUE ESSE DEBATE PODE REPRESENTAR
DO PONTO DE VISTA EMPÍRICO PARA A RMSP?
7 Iniciado por Glaeser et al.
(1992), foi posteriormente
aperfeiçoado por Henderson, Kuncoro & Turner
(1995) e por Henderson
(1997; 1999), mas, no entanto, como apontado por
Desrochers (2001), não
chega a lidar efetivamente
com as externalidades de
conhecimento. Suas variáveis explicativas se resumem a emprego, produtividade e salários, variáveis
macroeconômicas reduzíveis a preço e quantidade.
Foi apenas com os trabalhos da Geografia da Inovação, lançados por Feldman
(1994), que o processo inovativo é estudado mais profundamente; o debate sobre
especialização/diversificação diretamente sobre
o processo inovativo pode
ser encontrado em Jaffe,
Trajtenberg & Henderson
(1993), e, para o caso francês, em Combes (2000), entre outros.
O debate empírico sobre especialização/diversificação7 tende a associar o caráter diversificado às grandes cidades, geralmente metrópoles; e o caráter de especialização, geralmente às pequenas cidades, de antiga ou recente experiência de industrialização, mas que
costumam apresentar um “perfil” mais direcionado para um tipo de atividade ou outro.
Os índices utilizados para a avaliação do grau de diversificação/especialização de
uma cidade são, em geral, muito simples e baseiam-se na comparação da participação setorial de uma cidade com a participação deste setor em nível nacional. É, portanto, um
jogo de soma zero. Haverá sempre cidades especializadas e outras não, sabendo-se que a
participação nacional é uma média ponderada das participações municipais.
O que nos interessa no próximo tópico é efetivamente levar esse debate para o núcleo da discussão sobre processos inovativos das empresas industriais de São Paulo. Iremos
avaliar a constituição de redes de informação para o processo inovativo industrial a partir
das fontes utilizadas (e suas respectivas importâncias) para obtenção de informações necessárias ao processo inovativo. Consideramos aqui que as fontes de informação para o
processo inovativo são verdadeiras proxys da estrutura das redes de informação em que os
agentes buscam se situar a fim de se apropriar das externalidades de conhecimento presentes em seu ambiente produtivo. Evidentemente, é com o estudo das estratégias dos
agentes em se situar nestas redes (que são verdadeiros vetores de spillovers tecnológicos)
que buscaremos evidenciar os tipos de racionalidades presentes e relevantes para a economia metropolitana.
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A L E X A N D R E
T I N O C O
O PORTFOLIO SETORIAL DE FONTES DE
INFORMAÇÃO PARA O PROCESSO INOVATIVO
CONSTRUÇÃO DA TIPOLOGIA8
O que buscamos aqui é diferenciar os setores industriais do Estado de São Paulo
(ESP) tendo como argumento sua maior ou menor aproximação de uma ou de outra das
racionalidades aglomerativas apresentadas anteriormente. Uma racionalidade do tipo especialização, das externalidades dinâmicas tipo MAR, e uma racionalidade de diversificação, fundada nas externalidades dinâmicas tipo Jacobs.
Evidente que, ao apontar uma racionalidade da ação de aglomerar do tipo Jacobs,
estamos apontando para setores que apresentariam fortes restrições a localizar-se fora das
regiões metropolitanas mais avançadas. De outra parte, ao apresentarmos setores que se
aproximam de uma racionalidade tipo MAR, apontamos para setores que necessitam de
aglomeração para seu desenvolvimento, mas não necessariamente de uma aglomeração
metropolitana (o que não quer dizer que, por outros motivos, eles não possam estar fortemente presentes nas regiões metropolitanas brasileiras).
Foi com esta orientação que examinamos os dados empíricos. A primeira pergunta
foi: será que as empresas industriais do Estado de São Paulo inovam? Os dados da
Pesquisa da Atividade Econômica Paulista (Paep) nos dão respostas muito contundentes
para a questão. Contundentes na intensidade e na forma como as empresas inovam.9
Ao analisarmos as 41.193 empresas industriais do ESP, para o triênio 1994-1996,
24,8% delas afirmaram ter realizado algum tipo de inovação, seja de produto, seja de processo. No entanto, quando analisamos as empresas com mais de trinta empregados (as
10.624 maiores, produtoras de 91% do valor adicionado do ESP), vemos que essa intensidade alcança 42,40%. É óbvio que essa intensidade média não é igualmente distribuída
entre os setores. Temos setores, como Fabricação de Máquinas e Equipamentos de Informática, em que 81,56 % das empresas se dizem inovadoras e, no outro extremo, a Indústria Extrativa, na qual apenas 14,99 % o são. É claro também que uma magnitude de mais
de 80% das empresas se dizendo inovadoras suscita algumas questões quanto ao que a empresa considera inovação.
O primeiro e mais óbvio caminho a seguir foi regredir os dados sobre intensidade
setorial de inovação (X) com os de concentração regional setorial na RMSP (Y). Com um
modelo linear simples, chega-se a uma equação do tipo:
Y = 0,89 X + 0,21;
R2 = 0,4064
3,51
1,77
O que nos mostra uma relação econométrica suficientemente forte para sugerir a
existência de uma relação real entre essas duas dimensões. Poderíamos dizer que, grosso
modo, a localização e a intensidade de inovação se explicam mutuamente em 40% dos casos. Outro ponto importante é a sugestão (gráfica) de existência de três padrões muito diferentes desta relação entre as duas dimensões. Observamos claramente que os setores
mais inovadores são altamente concentrados. A eles denominamos de urbano-dependentes 10. Vemos também que os menos inovadores são os menos concentrados, os urbano-indiferentes 11, e uma grande quantidade de setores que são quase tão pouco inovadores como os urbano-indiferentes e, ao mesmo tempo, quase tão concentrados como os
urbano-dependentes. A eles demos o nome de urbano-contingentes.12 Contingência essa
que detalharemos mais adiante.
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8 Resume-se aqui, brevemente, a tipologia apresentada em Tinoco (2001a;
2001b).
9 Para uma descrição detalhada das diferenças setoriais do processo inovativo
ver Quadros, Furtado & Bernardes (1999).
10 Urbano-dependentes –
cinco setores: Máquinas de
Escritório e Equipamentos
de Informática; Instrumentos de Automação; Eletrônica e Aparelhos de Comunicação; Materiais Eletrícos;
Produtos Químicos.
11 Urbano-indiferentes –
cinco setores: Alimentos e
Bebidas; Extração Mineral;
Refino de Petróleo e Álcool;
Couro e Calçados; Minerais
Não-Metálicos.
12 Urbano-contingentes –
sete setores: Papel e Celulose; Produtos Têxteis; Borracha e Plásticos; Produtos de
Metal; Vestuário e Acessórios; Metalurgia Básica e Edição; Impressão e Gravação.
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13 Importância que é atribuída pelas empresas numa
escala de zero a cinco.
14 Em grande contraste
com, por exemplo, a estrutura de fontes da indústria
francesa, onde, em média,
30,33% das empresas se
utilizam de fontes internas
(57% de seus laboratórios de
P&D) e apenas 15,33% delas
se utilizam de fontes externas não-púbicas, conforme
Boyer & Didier (1998).
15 Esse índice é uma média
ponderada entre o grau de
uso de cada tipo de fonte
para as empresas inovadoras de um determinado setor e as respectivas notas
de importância. Poderia ser
no máximo 1, se todas as
empresas inovadoras utilizassem todas as fontes daquela classificação, atribuindo-lhes a nota máxima
5. Assim, buscamos um índice que nos forneça a importância média de cada
classificação de fonte, para
que possamos comparar,
setor a setor, fontes diferentes de inovação. Isto não
poderia ser feito fonte a fonte, uma vez que, isoladamente, não têm significado
econômico. Universidade é
uma fonte importante, mas
não é determinante por si
só. O índice do conjunto das
fontes Jacobs nos fornece
um indicador de quanto, na
média, instituições como
universidades, institutos de
pesquisa, consultorias etc.
são importantes para o processo inovador, mesmo
que, internamente à média,
haja enorme variância.
Formalmente temos:
Ii = (Σj (Gj x Nj))/5J ,
Onde Ii é o índice para cada
grupo de fonte; J é a quantidade de fontes em cada
grupo; Gj é o percentual de
empresas inovadoras em
cada setor; e Nj é a nota
média de cada fonte.
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No entanto, isso nos diz muito pouco sobre o que essas empresas entendem por inovação e as diferentes estratégias de coordenação em vistas ao processo de obtenção de informação para o processo inovativo. Como vimos, esse processo se fundamenta cada vez
mais na interação de diversas fontes de informação e na constituição de competências específicas desse processo. Na realidade, o fundamento da tipologia apresentada é o estudo
do portfolio de fontes de inovação setorial para o processo inovador. Lembrando Pavitt
(1991), se cada setor tem uma trajetória tecnológica diferente, com núcleos de competência específicos, é plausível esperar que possuam balanços diferentes entre as diversas fontes de informação possível, uma vez que cada tipo de fonte pode ser associado com tipos
de competências diferentes; que tenham, na realidade, diferentes estratégias de coordenação com vistas à inovação. E as diferenças de portfolio de fontes podem ser entendidas como parte integrante dessa diferenciação de estratégias de coordenação.
Como são, portanto, as diferentes formas de inovação? Será que a tipologia aqui proposta pode ser capaz de diferenciar esses diversos comportamentos?
Os dados da Paep referem-se a treze diferentes fontes, agrupáveis em quatro grandes
tipos (cujos percentuais se referem a todos os setores da RMSP juntos):
1 Fontes internas: P&D interna; outros departamentos; e outras empresas do grupo. Com
utilização média de 29,72% das empresas com importância média de 3,04.13
2 Fontes externas públicas: universidades e institutos de pesquisa. Com utilização média
de 28,09% das empresas com importância média de 2,49.
3 Outras fontes externas: fornecedor de materiais; consultorias; clientes; competidores; fornecedores de bens de capital. Com utilização média de 37,20% das empresas com importância média de 3,08.
4 Informações gerais: conferências públicas; licenças; e feiras e exposições. Com utilização
média de 33,35% das empresas com importância média de 2,86.
A primeira constatação é a de que as fontes externas não-públicas são as mais utilizadas e as mais importantes para o geral dos setores paulistas. Essa ênfase nas fontes externas caracteriza um tipo de inovação relativamente distante daquela que imaginamos
nascer nos laboratórios de pesquisa e desenvolvimento. Caracteriza uma economia em
que as empresas muito mais adotam e difundem tecnologia do que realmente uma capacidade de induzir a novas tecnologias.14 Resultado que nos lembra que o conceito de inovação como processo de busca de diferenciação perante a concorrência está longe de poder ser reduzido ao resultado de investimentos em P&D. A estratégia de coordenação que
visa a diferenciação pode apresentar-se de diversas formas. E é justamente essa diversidade que buscamos.
Para tanto, reorganizamos as fontes de acordo com os tipos de externalidades dinâmicas com as quais elas podem ser associadas e calculamos um índice de importãncia média para cada um dos três tipos:15
• Economias de escala internas à empresa: para o processo inovativo, têm relação com os
ganhos de diversificação (que é o padrão para a economia schumpeteriana, no lugar da
produtividade da economia neoclássica) advindos de esforços preponderantemente internos: as fontes internas.
• Externalidades tipo MAR: são os ganhos de diversidade advindos das relações externas à
firma, mas internas à indústria. Advindos de um ambiente especializado. Quais sejam,
as fontes externas não-públicas, retirando-se consultorias.
• Externalidades do tipo Jacobs: são os ganhos de diversidade advindos das relações de
coordenação com agentes externos à firma e, também, externos à indústria. Advindos
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de um ambiente diversificado que inclui as fontes públicas, as consultorias e as de informações gerais.16
Ao definirmos as fontes desta forma, estamos também definindo três racionalidades
do processo dinâmico (ou da ação de aglomerar, para estudos estáticos) ligadas ao processo inovativo. No primeiro caso, se o que conta para o processo de diversificação são apenas os esforços internos, a empresa teria uma grande independência de qualquer tipo de
aglomeração (do ponto de vista do processo inovativo), seja ela urbana ou não. O que caracterizaria sua indiferença de localização metropolitana, tendo-se em vista apenas o
processo inovativo. No segundo caso, a ação de aglomerar necessária, seguindo-se a racionalidade do processo de diferenciação, será do tipo aglomerações industriais não necessariamente metropolitanas. Do tipo distritos industriais ou clusters. Isso não quer dizer que
não possam se encontrar concentradas em regiões metropolitanas, mas sim que essa relativa concentração é uma contingência de sua ação, podendo, do ponto de vista do processo inovativo, estar ou não concentradas em regiões metropolitanas como a de São Paulo. O que as atrai para regiões metropolitanas não é a diversidade dessas regiões, a razão
de ser metropolitana, mas sim o fato de que, devido ao tamanho da concentração, o diversificado também pode ser especializado do ponto de vista de uma indústria. Mas não
podemos confundir os motivos pelos quais esses setores se encontram nas metrópoles. O
terceiro tipo dos ganhos de diversificação advindos da utilização das fontes ligadas a economias de urbanização define uma racionalidade de aglomeração do tipo metropolitana.
Seriam setores que teriam suas performances estreitamente vinculadas com a razão de ser,
segundo Jacobs, de uma metrópole, sua diversificação, sua capacidade de criar novas atividades e novas formas de trabalho.
O que pudemos notar é que os setores urbano-dependentes inovam não apenas mais
que os outros tipos, mas de maneira diferente, dando mais importância relativa às fontes
externas de informação para o processo inovador ligadas a serviços urbanos, tipo universidades, institutos de pesquisa, feiras e exposições e consultorias, que o restante dos setores, indicando uma forte necessidade de localização urbana para a manutenção de seu alto grau inovador. Em média, esses setores apresentam um diferencial de importância das
fontes ligadas a externalidades Jacobs, relativamente à importância que dão para suas fontes ligadas a externalidades MAR (as principais para todos os setores), da ordem de 36%
acima dos setores urbano-contingentes e da ordem de 21% acima dos setores urbanoindiferentes. Este diferencial caracteriza um grupo de setores extremamente dependente,
para suas performances econômicas inovadoras, da proximidade tipicamente metropolitana de relações que extrapolam o simples contato comercial entre os agentes. Analisando
os diferenciais do ponto de vista das externalidades MAR, de aglomerações não necessariamente vinculadas ao aspecto metropolitano, saltam aos olhos os setores urbanocontingentes, não tão inovadores, porém concentrados, que atribuem maior importância
relativa às fontes MAR, não necessariamente de grandes metrópoles, como clientes, fornecedores e competidores, em relação à importância das fontes internas da ordem de 38%
maiores que os urbano-dependentes, e da ordem de 15% maiores que os urbano-indiferentes. Caracterizam a forte hipótese de que são setores que se concentram em regiões urbanas apenas porque o sistema produtivo brasileiro impede o desenvolvimento das demais
regiões, ou seja, como uma contingência do tipo de desenvolvimento urbano brasileiro.
Já os urbano-indiferentes se caracterizam não apenas como pouco inovadores e não concentrados, mas como os que dão maior importância relativa às fontes internas de inovação, P&D, outros departamentos e outras empresas do grupo, caracterizando um grupo
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16 Note-se que aqui a especialização se dá em toda a
cadeia produtiva de um determinado setor. Mesmo
que as informações venham
de um fornecedor de um outro setor, é uma informação
que faz parte dessa cadeia
produtiva. Diferentemente
das informações advindas,
fundamentalmente, do setor
terciário, que definem um
ambiente diversificado.
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de setores que, para o pouco que inovam, são-lhes quase suficientes seus investimentos em
P&D. Se tivessem a necessidade de serem mais inovadores, por uma maior concorrência,
por exemplo, talvez tivessem que buscar os centros urbanos para poderem adequar-se ao
padrão de adoção de tecnologias. Teriam que se aparelhar melhor na busca de novas tecnologias fora de seus domínios.
Ou seja, de acordo com essa tipologia, aqui apresentada de forma sintética, teríamos,
na RMSP, dado o elevado grau de concentração tanto dos setores urbano-dependentes e
urbano-contingentes, a coexistência de duas externalidades dinâmicas. Tanto uma racionalidade do tipo MAR, para a qual a especialização é extremamente relevante, como uma
racionalidade do tipo Jacobs, para quem a diversificação tem um papel fundamental na
atração das empresas e para o processo de crescimento. O que queremos apontar é que a
RMSP, longe de passar por um processo de “desindustrialização”, tem ainda uma forte dinâmica industrial. Mais ainda, tem várias dinâmicas industriais. Possui uma dinâmica em
que se apresenta como o local fundamental para o desenvolvimento dos setores urbanodependentes (característica que pode muito bem vir a repartir com outras regiões metropolitanas), dinâmica essa de local privilegiado para a troca de informações relativas ao
processo inovativo. Espaço fundamental para o enfrentamento da crescente concorrência
com que esses setores se defrontam. Mas também apresenta fôlego significativo para os setores urbano-contingentes (apesar de serem esses os mais atingidos pelo processo de delocalização) mais competitivos. No entanto, em relação a esse tipo de dinâmica, a ação de
se aglomerar na RMSP é apenas uma entre outras várias opções de localização. A escolha
não apenas é entre São Paulo e as outras regiões metropolitanas brasileiras. Como esses
setores na realidade não são tão dependentes da diversificação urbana, a ação de aglomerar é muito mais sensível a outros fatores e o processo de desconcentração regional se torna aí mais plausível.
IMPLICAÇÕES CONCEITUAIS E METODOLÓGICAS
PARA O ESTUDO DA METRÓPOLE
Tivemos aqui, simultaneamente, duas trajetórias. Uma empírica e outra teórica. Ao
mesmo tempo que buscávamos novos instrumentais teóricos e empíricos que nos permitissem novas abordagens da realidade econômica de São Paulo, procuramos requalificar o
conceitual das economias de aglomeração, recuperando o debate especialização/diversificação como motor do desenvolvimento das aglomerações industriais.
Do ponto de vista teórico, verificamos que o debate especialização/diversificação
tornou-se enormemente complexo nos últimos anos e que se apresenta como uma revitalização dinâmica de um arsenal estático amplamente utilizado pela economia regional e urbana. Os conceitos de externalidades dinâmicas MAR e Jacobs definem dois mecanismos de
crescimento (fundados no aprendizado industrial e na inovação) que encontram paralelo estático nas economias de localização e de urbanização para as teorias de localização industrial.
Do ponto de vista empírico, conseguimos apontar que essas duas racionalidades
econômicas se encontram na cidade de São Paulo. As duas atuam simultaneamente no
processo de aprendizado das indústrias metropolitanas. Ao mesmo tempo que conseguimos mostrar que São Paulo ainda possui dinâmicas industriais (não mais no singular)
próprias, e que a distinção MAR/Jacobs faz sentido do ponto de vista dos processos inovativos empresariais.
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Mostramos que, para todos os setores presentes na RMSP, as externalidades tipo MAR
são, em termos absolutos, as mais importantes. Se tivéssemos que responder à ingênua
pergunta sobre qual externalidade é mais importante, diríamos, sem dúvida, que são as do
tipo MAR. Os dados da Paep são convincentes. No entanto, e no sentido da complexidade
dessa dicotomia, verificamos que, para alguns setores, justamente os mais inovadores, as
externalidades Jacobs são relativamente mais importantes do que para outros setores.17
A relação entre o fato de serem mais inovadores (e concentrados) e de darem mais
importância relativa às externalidades Jacobs nos sugere que os setores que se defrontam
com processos concorrenciais mais acirrados (mais inovadores, portanto) devem recorrer
a todos os recursos disponíveis. Para inovar não lhes basta externalidades MAR. Elas são
necessárias, mas não suficientes. A condição de suficiência é dada pelas externalidades Jacobs. E uma relação de necessidade–suficiência é muito mais complexa do que uma dicotomia entre essas duas fontes de crescimento dinâmico das cidades. Poderíamos dizer que,
para os setores maduros tecnologicamente, com produtos massificados, controlados por
grandes empresas, pouco concorrenciais (no sentido schumpeteriano), a inovação MAR
(processo de inovação fundado nas externalidades dinâmicas MAR) é necessária e suficiente. No entanto, para os setores de alta tecnologia, de produção flexível e altamente concorrencial, o que dá a condição de suficiência é um processo de inovação Jacobs, porém a
inovação MAR continua necessária.
É o que mostramos em nossa tipologia. Os setores urbano-dependentes18 são na realidade setores que necessitam de inovações Jacobs para se desenvolverem. Necessitam do
caráter metropolitano da diversidade de Jacobs para suas possibilidades de crescimento.
Esses setores dificilmente serão deslocados para aglomerações industriais não-metropolitanas. No entanto, para os setores urbano-contingentes, que dão pouca importância para
inovações Jacobs, podemos esperar uma maior facilidade no sentido de um equilíbrio regional, tendo mesmo como alvo aglomerações industriais não necessariamente metropolitanas. Não é à toa que são os setores que mais diminuíram sua participação regional na
RMSP nas últimas décadas.
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17 Apesar de não serem
mais importantes do que as
externalidades MAR.
18
Responsáveis
por
25,07% do VA; 16,71% de
PO e 12,81% das UL da
RMSP (VA – valor adicionado; PO – pessoal ocupado;
UL – unidade locacional).
Alexandre Tinoco é doutorando em Sciences Economiques na Université de Paris XI ADIS, e bolsista da
Capes.
E-mail: alexandre.tinoco@
wanadoo.fr
Artigo recebido para publicação em setembro de 2003.
D A S
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A B S T R A C T Reconstructing the debate on the specialization/diversification of the
economic activity as the engine of the urban development, this article retraces the construction
of the concepts of dynamic externalities MAR and Jacobs and reuses them for the study of the
innovative processes of the industrial firms of the Metropolitan Region of São Paulo. Therefore,
it searches to deepen the following debates: one in the field of the theoretical construction and
other in the field of interpretation of economic reality of São Paulo in the decade of 1990. The
empirical instruments for such are based on the construction of an industry portfolio of sources
for the innovative process.
K E Y W O R D S Economies of agglomeration; externalities of knowledge; innovation;
specialization; diversification.
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IMPLANTAÇÃO DE
INFRA-ESTRUTURA DE
SANEAMENTO NA REGIÃO
METROPOLITANA DO
RIO DE JANEIRO
UMA AVALIAÇÃO DAS AÇÕES DO PROGRAMA
DE DESPOLUIÇÃO DA BAÍA DE GUANABARA
ANA LUCIA BRITTO
R E S U M O Este trabalho apresenta alguns resultados de pesquisa em desenvolvimento sobre a implantação e gestão das infra-estruturas e serviços de saneamento na Região Metropolitana do Rio de Janeiro (RMRJ). Nele analisamos, com base no mais importante macroprograma em desenvolvimento, o Programa de Despoluição da Baía de Guanabara (PDBG),
se ele vem contribuindo para uma ampliação do acesso aos serviços nas áreas carentes da RMRJ.
Nossa análise mostra que o desenvolvimento do programa tem sido extremamente lento e que,
apesar do volume importante de recursos aplicados por agentes financiadores externos, o PDBG
ainda não logrou seus objetivos de ampliar o acesso e melhorar significativamente a qualidade desses serviços em áreas carentes da região.
P A L A V R A S - C H A V E Saneamento ambiental; meioambiente; Região Metropolitana do Rio de Janeiro; Baía de Guanabara; infra-estrutura urbana; gestão urbana;
serviços urbanos.
INTRODUÇÃO
Iniciado em 1994 e financiado pelo Banco Mundial e pelo JIBIC (Japan Bank for International Cooperation), o Programa de Despoluição da Baía de Guanabara tem por objetivos gerais recuperar os ecossistemas presentes no entorno da Baía de Guanabara e resgatar gradativamente a qualidade das águas da Baía e dos rios que nela deságuam, através
da construção de sistemas de saneamento adequados em municípios situados no entorno
da Baía. Nossa análise procura demonstrara que o PDBG não tem alcançado os objetivos
propostos. Buscaremos discutir neste artigo o processo de implementação do programa e
verificar os impasses gerados, avaliando por que, apesar do volume importante de recursos investidos, resultados limitados têm sido obtidos no que concerne à ampliação do
acesso aos serviços de saneamento nas áreas carentes da RMRJ e à melhoria da qualidade
do ambiente urbano da região.
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HISTÓRICO E CARACTERÍSTICAS DO PROGRAMA
O Programa de Despoluição da Baía de Guanabara (PDBG) apresentou-se inicialmente como o maior conjunto de obras de saneamento dos últimos vinte anos no Estado do Rio de Janeiro, tendo por objetivos gerais recuperar os ecossistemas ainda presentes no entorno da Baía de Guanabara e resgatar gradativamente a qualidade das águas e
dos rios que nela deságuam, através da construção de sistemas de saneamento adequados.
A recuperação dos ecossistemas e da qualidade das águas são resultados a serem esperados
a muito longo prazo, pois o objetivo real do programa é a construção de um cinturão de
saneamento no entorno da Baía.
A proposta original do projeto era tratar, até 1999, 47% do esgoto despejado diariamente na Baía de Guanabara, pois quando iniciado o projeto apenas 15% do esgoto produzido no entorno da Baía recebia tratamento. Na cidade do Rio de Janeiro, os bairros
do Centro e da Zona Norte são responsáveis pela produção de um quarto de todo o esgoto que polui a Baía. O resto provém dos municípios da Baixada Fluminense e das regiões de São Gonçalo e Niterói.
O programa prevê a implantação de 1.248 quilômetros de rede de esgoto. A estimativa é de que, após a conclusão do projeto, 239 toneladas de carga orgânica deixarão de
ser despejadas na Baía de Guanabara todos os dias. O despejo de 211 toneladas de esgoto ainda sem solução com as obras programadas deve entrar em uma nova etapa do PDBG
a ser negociada com os agentes financiadores.
Mesmo não havendo uma recuperação total da qualidade das águas da Baía de Guanabara, as obras previstas no PDBG são fundamentais, pois possibilitarão melhorar a qualidade de vida em partes da Região Metropolitana do Rio de Janeiro, onde a situação dos
serviços de saneamento e a qualidade ambiental ainda são precárias, como na região da Baixada Fluminense, e no município de São Gonçalo. Cumpridas as metas anunciadas no programa, haverá um aumento significativo das taxas de cobertura e da qualidade dos serviços
de abastecimento de água, esgotamento sanitário e coleta de resíduos sólidos nestas áreas.
O PDBG deveria inserir-se em uma linha de continuidade na política de saneamento
para a Região Metropolitana, pois muitas das ações previstas nesse programa deveriam vir
a complementar ações realizadas pelo programa Reconstrução Rio, desenvolvido entre
1990 e 1996 e financiado pelo Banco Mundial, que incluía entre suas ações obras voltadas para os esgotamento sanitário na região da Baixada Fluminense. Além disso, estas ações
viriam a ser complementadas por outras de caráter local, desenvolvidas dentro do Programa Baixada Viva, programa voltado para a urbanização de bairros localizados em municípios da Baixada, formulado durante o governo Marcelo Alencar (1995-1998), e que teve
continuidade nos governos Antony Garotinho (1999 até abril 2002) e Benedita da Silva.
Quando começamos a analisar os objetivos do PDBG, verificamos que o processo de
degradação das águas da Baía de Guanabara vem ocorrendo desde os primórdios da ocupação da região. Segundo Elmo Amador, a capacidade de autodepuração das águas da
Baía de Guanabara é ultrapassada no período do Brasil Império, nas últimas décadas do
século XIX, quando a população da bacia contribuinte ultrapassa quinhentos mil habitantes (Amador, 1992, p.227). No início do século XX, obras de drenagem, dragagens, retificações e canalizações dos rios localizados na região da Baixada Fluminense – iniciadas
pela Comissão de Estudos e Saneamento da Baixada, e continuadas por diversas comissões e empresas de saneamento, transformadas posteriormente na década de 1930 no Departamento Nacional de Obras e Saneamento (DNOS), tiveram como conseqüência a des64
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truição de ecossistemas fluviais e um forte assoreamento da Baía. Com o advento da aviação comercial a partir de 1925, aterros de grandes proporções foram realizados para a
construção dos aeroportos de Manguinhos (1928-1930), Santos Dumont (1934), Galeão
(1949), e Internacional do Rio de Janeiro (1977). Os aterros roubaram, em seu conjunto,
cerca de 13 km2 da superfície da Baía, destruíram importantes ecossistemas periféricos
e alteraram significativamente o padrão de circulação e sedimentação. A chamada região
do “fundo da Baía” foi particularmente afetada pelos aterros do Galeão e Internacional do
Rio de Janeiro.
A década de 1950, quando se acentua o processo de desenvolvimento urbano-industrial da Região Metropolitana do Rio de Janeiro, é considerada marco no processo de poluição e degradação da Baía. Os aterros que acompanharam a abertura da avenida Brasil,
conjugados à expansão das indústrias poluidoras, principalmente químicas, farmacêuticas
e de refinaria, e ainda ao espetacular crescimento populacional e expansão urbana levaram
a uma mudança radical na qualidade das águas, flora, fauna e balneabilidade das praias e
ao declínio da pesca. Os efluentes industriais, cada vez em maior escala, passaram a contaminar as águas com óleo, metais pesados, substâncias tóxicas e carga orgânica. A expansão
urbana e populacional, sem o acompanhamento de serviços adequados de esgotamento sanitário, passou a responder, por sua vez, pela poluição por esgoto doméstico não-tratado,
que gradualmente foi tornando as praias do interior da Baía impróprias para o banho.
Esta degradação vem sendo objeto de preocupação governamental há muitos anos.
Projetos ditos de recuperação da Baía de Guanabara são bastante antigos. Excetuando ações
pontuais, o primeiro projeto objetivo mais abrangente foi formulado na década de 60 pela
antiga Sursan, durante o Governo Carlos Lacerda (…) O que seria a intervenção na poluição da Baía de Guanabara resultou no que foi denominado Cais de Saneamento, um conjunto de aterros que subtraiu vastas áreas da Baía ao longo da Av. Brasil, incluindo as praias
de Maria Angu e Ramos e extensos manguezais. Estes aterros seriam utilizados por vários
quartéis, indústrias e o Mercado São Sebastião. Esta concepção sanitarista de recuperação da
Baía, com seu sepultamento por aterros, não era nova e teria prosseguimento nos projetos
que seriam posteriormente formulados. (Amador & Lima, 1998, p.10.)
Nos anos 70 a questão da poluição e da ocupação das margens da Baía continua sendo objeto de preocupação dos poderes públicos. O Projeto Rio, programa do governo federal lançado em 1979 para a urbanização do conjunto de favelas que hoje compreende
o Complexo da Maré, situado no entorno da Baía, retirou as palafitas construídas sobre
o espelho d'água, mas promoveu a construção de novos aterros. Além destes aterros terem
eliminado extensas superfícies e modificado drasticamente o estuário do rio Meriti, seus
reflexos não demorariam a ser sentidos, com o aumento do assoreamento na região dos
estaleiros do Caju e do cais do Porto, na piora do quadro ambiental da região e no agravamento das cheias na bacia dos rios Faria Timbó e na avenida Brasil.
Juntamente com o Projeto Rio foi formulado pelo então Ministério do Interior um
programa para despoluição da Baía, que envolvia a construção de estações de tratamento
de esgoto dotadas de tratamento secundário, a dragagem e a correção de assoreamentos
em focos localizados e a desativação de aterros sanitários na orla da Baía. No entanto estas ações não foram realizadas.
Na mesma época a Fundação Estadual de Engenharia do Meio Ambiente (Feema),
criada em 1975, desenvolveu uma série de levantamentos e estudos para definir um plano
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de despoluição da Baía. Em 1987 foi elaborado o Programa para Despoluição Gradual do
Ecossistema da Baía de Guanabara, que passou a constituir, já na ocasião, uma prioridade da administração estadual.
Esta prioridade, no entanto, não se concretizou em ações que conseguissem uma efetiva melhora das condições das águas. Ao contrário, como mostram diferentes estudos
analisados nessa pesquisa, a qualidade das águas foi piorando progressivamente. Na Baía
de Guanabara, desde 1975 o declínio da qualidade das águas tem sido substancial e generalizado, como mostra a tabela 1.
1 Parâmetros: DBO, demanda bioquímica por oxigênio,
estima os níveis de oxigênio
que são consumidos na oxidação biológica da matéria
orgânica de um sistema
aquático; quanto maior a
DBO, maior será o teor de
matéria orgânica nos corpos d’água.
Tabela 1– Processo de deterioração da Baía de Guanabara 1975/19921
Elementos
DBO (mg/l)
Clorofila (µg/l)
Coliforne total (MPN/100)
Período
1975
secas
2,5
1992
4
chuvas
2,3
6,3
secas
3,7
38,7
chuvas
4,8
40,8
chuvas
788
3.000
Fonte: Sosp, 1997.
2 Os níveis médios referentes ao rio Sarapuí são: DBO:
26/mg/l; OD: 0,7/mg/l; e
colifornes fecais: 17.500/
MPN/100ml.
No lado oeste da Baía, o mais afetado pela poluição, a água está morta, quase sem
transparência, com baixos níveis de oxigênio, superfície oleosa, e altos níveis de plâncton.
Isto porque tanto esta área como o conjunto da Baía recebem um volume importante de
dejetos industriais e esgotos domésticos.
Dos rios que deságuam na Baía os que contribuem com maior carga poluidora estão localizados na sub-bacia oeste, que compreende parte do município do Rio de Janeiro e parte dos municípios de Nilópolis, São João de Meriti e Duque de Caxias. Nesta bacia os rios Canal do Mangue, Canal do Cunha, Canal da Penha, Irajá e São João de Meriti
estão fortemente poluídos pelos esgotos domésticos. Na extensão da Baía próxima a Bacia Oeste os segmentos mais críticos em termos de poluição encontram-se entre o continente e a Ilha do Governador e a Ilha do Fundão. Nestes locais encontram-se os mais altos níveis de concentração de carga orgânica. O nível de transparência das águas é
bastante baixo, e a superfície das águas, poluída por óleo e lixo.
Logo a seguir, no que concerne ao lançamento de carga poluidora, estão os rios da
sub-bacia Noroeste, que compreende os municípios de Nilópolis, São João de Meriti, Belford Roxo, Duque de Caxias. Nesta sub-bacia os rios com maior carga poluidora são o
Sarapuí e o Iguaçu, que se unem pouco antes desaguar. Entre os dois, o Sarapuí é o mais
poluído2. O rio Iguaçu, apesar de bastante poluído devido ao grande volume de óleo e
outros poluentes lançados principalmente por indústrias (refinarias), apresenta condições
de qualidade da água um pouco melhores, porque tem maior fluxo e melhor capacidade
de diluição da carga poluidora que recebe.
Os rios da sub-bacia leste, que abrange os municípios de São Gonçalo e Niterói, estão em terceiro lugar em termos de contribuição de carga poluidora para a Baía. Os principais são os rios Alcântara, Bomba e Canal do Canto do Rio, alguns deles com níveis de
poluição bastante próximos aos da sub-bacia nordeste.
Os únicos rios da bacia da Baía de Guanabara que ainda apresentam condições de
qualidade da água mais aceitáveis são os localizados na sub-bacia nordeste, que compreende os municípios de Guapimirim, Itaboraí, e parte dos municípios de São Gonçalo e Niterói. Considerando o conjunto da Baía, a tendência mais preocupante tem sido o rápido crescimento dos níveis de algas, e sua contribuição cada vez maior para a carga global
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de poluição orgânica, ameaçando a qualidade da água e os recursos ecológicos e de pesca
no lado nordeste, na foz dos rios Guapimirim e Caceribu.
A questão da poluição da Baía volta à ordem do dia no início dos anos 90.
Em outubro de 1990 a Superintendência de Captação de Recursos da cidade do Rio de Janeiro, preocupada com a preparação da Eco-92, reuniu um conjunto de projetos de obras e
de atividades relacionados com a precariedade urbana do Rio de Janeiro e com os impactos
ambientais resultantes dessa precariedade. A superintendência era, na ocasião, o órgão coordenador, no âmbito da prefeitura, do Programa Reconstrução – Rio, programa financiado
pelo Banco Mundial para a recuperação após as violentas enchentes ocorridas em fevereiro
de 1988. Naquele início de década, via-se aquele conjunto de obras e serviços como uma
conseqüência e desdobramento ambiental do precedente programa do Banco Mundial. A cidade não tinha recursos próprios e o próprio país vivia os resultados de uma década que para a América Latina ficou conhecida como a década perdida. Assim, o novo conjunto de obras
e serviços preparatórios para a Eco-92 só poderia ser executado se obtivesse financiamento
internacional. E só poderia obter financiamento se aceitasse os condicionamentos dos organismos internacionais. Ao serem contatados, os técnicos do BID no Brasil, que estudavam
projetos de saneamento básico para o país e para o estado do Rio de Janeiro, viram no conjunto de obras e atividades apresentados pela superintendência uma possibilidade de interação entre meio ambiente e desenvolvimento. (Sanchez, 2000, p.5.)
Segundo Manuel Sanches, o Banco, sob o efeito das pressões dos ambientalistas internacionais, necessitava um projeto que criasse empregos e melhorasse o ambiente, dentro da linha de desenvolvimento e ecologia que era tema e título da conferência a ser realizada em 1992.
No final de 1990, Leonel Brizola é eleito para o governo do Estado do Rio de Janeiro. Isto permitiu uma identidade de políticas governamentais entre o Estado e o município, cujo prefeito era Marcelo Alencar, então do Partido Democrático Trabalhista (PDT),
mesmo partido que Brizola. Estava assim montado o acordo político para viabilizar a negociação do programa com o Banco. A proximidade da ECO 92 mobilizou o governo estadual, que criou a Comissão de Gerenciamento de Projetos Especiais para a Bacia da Baía
de Guanabara, substituída em dezembro de 1991 pelo Grupo Executivo da Despoluição
da Baía de Guanabara (Gedeg). Foi mobilizado também o governo federal que, em agosto de 1991, se comprometeria com o programa através de decisão da Comissão Interministerial de Financiamentos Externos (Cofiex).
O governo do estado, apresentou ao BID, em Washington, a primeira proposta do programa,
no valor de 4 bilhões de dólares, divididos em quatro etapas e com uma previsão de realização
em 15 anos. A análise do BID restringiu-se à primeira etapa desta concepção global, eliminando os componentes de resíduos industriais e reflorestamento e englobando-os no que foi designado como projetos ambientais complementares. As questões sanitária e urbana foram privilegiadas ficando o programa limitado a cinco componentes: saneamento, limpeza urbana,
macrodrenagem, mapeamento digital e coleta fiscal, e programas ambientais complementares.
A impossibilidade do estado entrar com uma contrapartida alta imediatamente fez com que
parte dela fosse transferida ao município do Rio de Janeiro, que afinal realizou contratos separados com o BID. Outra parte da contrapartida exigida pelos órgãos multilaterais foi transferida a Cedae, que arrecada diretamente as taxas de água e esgoto a serem usadas como pagamento e que teria a maior parte do financiamento. A garantia maior contudo continuava
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sendo, como o fora no passado, o aval da União. A partir da impossibilidade do governo estadual participar com uma maior contrapartida, o BID resolveu diminuir os seus riscos incluindo o governo japonês, através da OECF (The Overseas Economic Cooperation Fund) do Japão, e posteriormente do JBIC (Japan Bank for International Cooperation), na negociação, e
o governo do estado resolveu transferir parte de seu desembolso para os últimos anos do programa, concentrando-o no contrato das obras com recursos japoneses. (Sanches, 2000, p.8.)
Durante a Conferência Mundial das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente, no Rio de
Janeiro, em junho de 1992, o governo do Estado, o BID e o OECF anunciaram o compromisso de despoluir a Baía da Guanabara, através do Programa de Despoluição da Baía de Guanabara (PDBG).
CARACTERÍSTICAS DO PROGRAMA
Em termos de recursos o PDBG mobilizou inicialmente 793 milhões de dólares, sendo este valor posteriormente corrigido para 860,5 milhões de dólares. A distribuição dos
recursos por fonte de financiamento é a seguinte: US$ 236,7 milhões do JBIC; US$ 350
milhões do BID; e US$ 273,80 milhões do Governo do Estado do Rio de Janeiro/Cedae.
A distribuição dos recursos mobilizados pelo programa por fonte de financiamento encontra-se na tabela 2.
Tabela 2 – Tipo de custos por fonte de recursos (US$ milhões) – custos iniciais em abril
de 1994
Tipo/Fonte
BID
Engenharia/
Custos
Administração Diretos
Op. Crédito
Op. Especiais
JBIC
Estado
Total
Custos
Concorrentes
Juros e
Imprevistos
Total
300,0
220,9
8,3
70,8
10,3
35,0
4,0
0,7
50,0
13,5
169,7
53,5
236,7
Governo
8,5
128,8
1,9
10,2
149,3
Cedae
22,0
30,8
5,8
65,9
124,5
48,2
568,5
20,0
155,7
860,5
Fonte: Grupo Executivo para a Despoluição da Guanabara – 1996.
O PDBG trabalha com uma concepção ampla de saneamento, que podemos considerar
próxima de uma perspectiva de saneamento ambiental, englobando diferentes componentes: esgotamento sanitário e tratamento de efluentes, abastecimento de água, resíduos sólidos, macrodrenagem, controle da poluição industrial e educação ambiental. Ele envolve, no
planejamento e na execução das ações, diferentes organismos de governo: a Cedae, responsável pelos componentes esgotamento sanitário e abastecimento de água; a Serla, responsável pela macrodrenagem; a Sosp, pelo componente resíduos sólidos; a Feema, pelos programas ambientais complementares. Salientamos, todavia, que a elaboração do programa se
fez sem participação dos municípios, e que não está explicitada no escopo do projeto o formato da participação municipal na gestão e execução do projeto.
O centro do programa é o esgotamento sanitário, componente que concentra a
maior parte dos investimentos (51,2%), em relação ao qual estão previstas ações que viriam a criar o cordão sanitário no entorno da Baía de Guanabara, através das seguintes
obras: construção de cinco novas estações de tratamento de esgotos (Sarapuí, Pavuna,
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Alegria, Paquetá, e São Gonçalo); reforma e ampliação das estações de tratamento da Penha, da Ilha do Governador e de Icaraí; ampliação da rede de coleta e das ligações domiciliares (1.200/km de rede e 139.000 ligações domiciliares), notadamente nos municípios
da Baixada e São Gonçalo, onde os sistemas de esgotamento eram, até o início do programa, praticamente inexistentes3. Estavam também previstas obras para a implantação de
sistemas de esgotamento em 27 favelas situadas no entorno da Baía. No município do Rio
de Janeiro as intervenções em favelas passaram a articular-se com as ações do Programa
Favela Bairro, desenvolvido pela prefeitura.
No que diz respeito à dimensão técnica, isto é às escolhas relativas à concepção, à
construção, à manutenção, dos sistemas verificamos que o PDBG não introduz grandes
inovações. O componente esgotamento sanitário trabalha essencialmente com sistemas
tradicionais, propondo estações de tratamento primárias de grande porte. A concepção
original do programa previa a construção de estações de tratamento de nível secundário,
de maior eficiência com relação à remoção de carga orgânica, mas que implicam maiores
custos de implantação e manutenção. No entanto, foi priorizada a aplicação dos recursos
financeiros disponíveis na construção de uma extensão maior de rede de coleta, o que traria um benefício mais imediato a um número maior de população. Os projetos executivos das estações de tratamento foram elaborados considerando a possibilidade do tratamento secundário, que poderá ser alcançado em uma segunda fase do programa.
Concluída a primeira fase do programa, chegaríamos a uma redução pela metade
dos quase 20.000 l/s de esgotos lançados nas águas da Baía. Cabe ressaltar que o programa, quando concluído, não vai efetivamente despoluir a Baía de Guanabara, mas reduzir
a carga de poluentes lançados. Não estão previstas para nesta primeira fase ações específicas para limpeza do espelho d'água.
Ainda no componente saneamento, o PDBG visa também equilibrar a oferta e a demanda de água na Baixada Fluminense e em São Gonçalo, através da construção de reservatórios e novas linhas de distribuição, e da adoção de mecanismos para o controle de
gastos e perdas de água, entre os quais destaca-se a hidrometração. Este componente envolve 37% dos recursos mobilizados pelo programa. Nestas áreas, notadamente na Baixada, o sistema funciona de forma precária pois não existe uma separação física entre adução e distribuição, o que significa a ausência de reservatórios e de uma setorização do
sistema de distribuição. Uma série de usuários capta água diretamente das linhas de adução, sendo estas ligações, em grande parte, clandestinas. Isto provoca falta de água ou distribuição irregular em diversos pontos, e ainda ocasiona pressão excessiva em outros. Essa situação conduz ao aumento de vazamentos que provocam danos às tubulações e
grande desperdício. As sucessivas ampliações da produção e da adução de águas não chegaram a gerar um volume suficiente para abastecer a região da Baixada Fluminense. Ressaltamos ainda que tanto na região da Baixada como em São Gonçalo estas ampliações
foram feitas sem a construção de reservatórios e sem a definição de suas áreas de influência, levando a um sistema com alto grau de incertezas, que funciona precariamente, baseado em permanentes manobras de água. Cabe lembrar que a questão da setorização do
abastecimento de água na Baixada já havia sido prevista no governo Moreira Franco
(1987-1990), quando foi formulado o Plano de Setorização de Abastecimento de Água
da Baixada Fluminense, que no entanto só foi implantado parcialmente.
No campo dos resíduos sólidos, componente que deveria ser desenvolvido pela Sosp,
o programa previa a melhoria da qualidade dos serviços prestados pelos municípios, através de apoio institucional às prefeituras e do fornecimento de equipamentos visando a
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3 Sobre os sistemas existentes, ver Britto & Cardoso, 2000.
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melhoria dos serviços de coleta, e a recuperação de aterros existentes, com o controle e
tratamento de chorume produzido no aterro de Gramacho no município de Duque de
Caxias, na Baixada Fluminense, que recebe grande parte do lixo coletado na RMRJ. O chorume é um dos fatores de poluição da Baía de Guanabara.
Estava também prevista a construção de três complexos de destinação final de resíduos, cada qual dotado de uma usina de reciclagem e compostagem, um aterro sanitário
e um incinerador de lixo hospitalar em São Gonçalo, Niterói e Magé. Essas obras viriam
a complementar ações do programa Reconstrução Rio, que previa a construção de três
complexos de destinação final. Estes deveriam se localizar em Nova Iguaçu (Vila de Cava), em Queimados (Santo Expedito) e em Belford Roxo (Nova Aurora).
No que concerne ao apoio institucional às prefeituras, as ações desenvolvidas visavam: a modernização do sistema de coleta de lixo atual, com ênfase na terceirização dos
serviços nas áreas urbanizadas, onde o acesso com caminhões coletores e compactadores
é possível; a orientação das prefeituras para que se capacitassem a fim de implantar sistemas alternativos de coleta em áreas onde as vias de acesso são precárias; o treinamento de
equipes locais de gerenciamento e operação de sistemas de coleta e também das usinas e
aterros sanitários; o apoio às equipes técnicas das prefeituras no detalhamento da política
tarifária a ser implantada, visando compatibilizar custos reais dos serviços implantados e
capacidade de pagamento da população.
O PDBG inclui ainda, no componente resíduos sólidos, o Programa de Promoção Social
dos Catadores de Lixo em Niterói e São Gonçalo, que tem por objetivos integrar formalmente os catadores no mercado de trabalho, aproveitando-os na operação de usinas e aterros.
Ao final do programa esperava-se alcançar um percentual de 90% do volume de resíduo produzido adequadamente recolhido; dar solução à destinação final do lixo coletado e equacionar a questão dos resíduos hospitalares.
O PDBG inclui ainda o componente drenagem, de responsabilidade da Serla, que
mobiliza 2,14% dos recursos, com obras de canalização e retificação de cursos de água na
bacia do rio Acari, que complementam as ações desenvolvidas pelo Projeto Reconstrução
Rio. O programa prevê ainda a implantação de uma rede hidrometereológica, instalação
de uma Central de Informações conectada a trinta estações de medição e transmissão automática de dados climatológicos localizadas em pontos estratégicos da bacia da Baía de
Guanabara. Com isso será possível manter informados os órgãos competentes a respeito
das variações dos níveis de precipitação pluviométria, dos níveis dos rios e dos canais, possibilitando a previsão de riscos de enchentes.
Por último, o programa propunha ações nas áreas de arrecadação tributária, controle e monitoramento da qualidade ambiental da bacia hidrográfica, mapeamento digital,
educação ambiental, e apoio institucional.
Os componentes mapeamento digital e apoio institucional, de responsabilidade da
Fundação Cide, compreendem a implantação de um Sistema de Informações Geo-referenciadas em prefeituras de 12 municípios localizados na bacia hidrográfica da Baía de
Guanabara, o que permitiria às prefeituras um conhecimento mais detalhado do território, possibilitando um aumento da arrecadação tributária referente a IPTU, ISS e tarifas de
serviços públicos, e também um melhor planejamento urbano-ambiental, através de um
maior controle e conhecimento do uso dos solo.
Os programas ambientais complementares envolvem reforço institucional do Sistema Ambiental para tornar mais eficiente o controle da poluição ambiental e o monitoramento da qualidade ambiental da área de abrangência da bacia da Baía de Guanabara,
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sob responsabilidade da Feema. Neste componente o aspecto central é o controle da poluição industrial.
No que concerne aos dejetos industriais, verificamos que existem na região da Bacia
hidrográfica 14.304 mil empresas industriais, sendo os tipos predominantes as indústrias
alimentícias, químicas e metalúrgicas. Do total de indústrias, seis mil são poluidoras, sendo responsáveis pelo lançamento de 64 t/dia de carga orgânica além de óleos e metais pesados. Entre as industrias poluidoras destacam-se 455 empresas, responsáveis por 90% da
poluição industrial. Destas 455 empresas, cinqüenta estão assim distribuídas: 18 no município do Rio de Janeiro; 13 em Duque de Caxias; sete em São Gonçalo; quatro em Niterói ; três em Nova Iguaçu; duas em Magé; uma em Itaboraí; uma em Nilópolis; uma
em São João de Meriti, e são responsáveis por 60% da carga poluente.
Estima-se que 7 t/dia de óleo são lançadas na Baía pela refinarias de petróleo, pelos terminais marítimos, portos comerciais, postos de serviços de combustíveis estaleiros e outras
fontes. A maior responsável pela poluição por óleo é a Reduc, refinaria de Duque de Caxias.
O PDBG incluía ainda o desenvolvimento de um programa de educação ambiental,
o desenvolvimento de um Plano Diretor de Recursos Hídricos da Bacia da Baía de Guanabara, e a implantação de Unidades de Conservação da Natureza (Parque Serra da Tiririca e Estação Ecológica de Paraíso).
ANÁLISE DO DESENVOLVIMENTO DO PROGRAMA
GOVERNO BRIZOLA (1991-1994)
O PDBG tem a peculiaridade de estar atravessando quatro governos estaduais consecutivos. Até o final do governo Brizola o projeto encontrava-se em fase de licitação da primeira etapa. Na realidade, o programa já começou com uma polêmica sobre o processo
de licitação que resultou na demissão, em abril de 1993, do presidente do Grupo Executivo de Despoluição da Baía de Guanabara, pelo governador Leonel Brizola. Este afirmou
ter sido exonerado por não aceitar a dispensa de licitação na escolha da empresa consultora e gerenciadora do projeto. Entretanto, a licitação exigida pelo BID foi feita.
As idas e vindas do processo de licitação fizeram que, até o final do governo Brizola, nenhuma obra tivesse começado.
GOVERNO MARCELO ALENCAR (1995-1998)
Em março de 1995 Marcelo Alencar assume o governo do Estado. Iniciam-se as primeiras obras, mas em ritmo extremamente lento. De fato até hoje algumas obras que pelo cronograma já deveriam estar concluídas nem haviam sido iniciadas. Em dezembro de
1995 o BID passa a cobrar do governo do Estado uma multa por ele não ter usado toda a
verba disponível. Já em 1996, um ano depois do início das obras, o governo do Estado
tinha pouco a comemorar. O atraso no andamento das obras do PDBG custou caro ao Estado, na medida em que era obrigado a pagar um percentual sobre a quantia emprestada
e não utilizada. A soma chegou a R$ 2,8 milhões ao BID. Diante das pressões do BID, o
governo do Estado decide acelerar as obras.
No final do governo (dezembro de 1998) haviam sido aplicados no PDBG cerca de
US$ 400 milhões dos recursos previstos.
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CONTRATO BID
O contrato com o BID, assinado em novembro de 1993 e liberado a partir de 1994, se
desenvolveu quase que completamente entre 1995 e 1998, cobrindo todos os componentes,
as obras relativas ao abastecimento de água e parte do tratamento de esgotos.
No que tange o abastecimento de água, estavam previstas para serem realizadas na
primeira fase as subadutoras, a rede tronco e os reservatórios, visando a setorização e a regularização da oferta de água na Baixada Fluminense dentro dos sistemas de abastecimento denominados Lote XV, Retiro Feliz, Palmira, Parque 25 de Agosto, Coelho da Rocha e
Édem. Até outubro de 1998 haviam sido instalados 220.282 m de rede e oito mil das
trinta mil ligações domiciliares previstas (26,6%). As obras de construção dos reservatórios foram dadas como concluídas no final de 1998. No entanto, devido a problemas no
sistema de adução para a Baixada, os reservatórios permanecem vazios e as redes instaladas não levam efetivamente água à população. Este problema é crucial pois, sem a solução da questão da reservação, não se resolve o problema da descontinuidade do abastecimento. Hoje o abastecimento da região se faz através de manobras no sistema, o que
implica que determinadas áreas nunca têm um abastecimento contínuo. A solução passa
necessariamente por uma ampliação do sistema de adução para Baixada.
Também estavam previstas obras em favelas da Ilha do Governador, localizadas na
Baia de Guanabara, e obras na Zona Sul do Rio de Janeiro, na região às margens da Baía.
No final do governo Marcelo Alencar as obras ainda não haviam sido concluídas.
No que concerne a melhoria dos sistemas de abastecimento em São Gonçalo, foram
instaladas redes, mas os reservatórios não foram concluídos, impossibilitando o acesso dos
moradores a uma melhoria dos serviços.
No campo dos resíduos sólidos, na Baixada Fluminense, estavam previstas obras de
reforma e adequação de duas estações de transferência de lixo localizadas em Nilópolis e
São João de Meriti e a construção de postos de apoio a coleta de lixo (nove em Duque de
Caxias, seis em São João de Meriti). Até outubro de 1998, apenas uma parte das obras
ainda não havia sido concluída. A questão da destinação final dos resíduos, no entanto
não foi resolvida pois as usinas de Queimados, Belfort Roxo, e Nova Iguaçu, projetadas
pelo Programa Reconstrução Rio, para onde deveria ser levado o lixo coletado encontravam-se desativadas. É importante notar que a operação das usinas cabe aos municípios,
que consideram o custo operacional muito alto. De fato cada tonelada de lixo tratado custa quatro vezes mais que o despejo feito em aterro sanitário.
As usinas previstas para os municípios de Niterói, São Gonçalo e Magé, a serem construídas com recursos do PDBG, ainda encontravam-se em fase inicial de obras. Vale ressaltar
que a operação destas usinas, quando concluídas, também deverá ficar a cargo dos municípios.
Ainda com relação ao contrato com o BID, estavam previstas obras para implantação
de sistemas de esgotamento em Niterói (Icaraí) e São Gonçalo, nas favelas e nas Ilhas do
Governador e Paquetá. Com relação ao esgotamento foram feitos investimentos em ampliação da capacidade de estações de tratamento da Ilha do Governador (de 200 para 525
l/s) e de Icaraí, que operava em sobrecarga. Esta última que faz tratamento secundário de
esgoto e está ligada a um emissário submarino teve sua capacidade de tratamento ampliada de 700 l/s para 1.000 l/s.
No que concerne ao município de São Gonçalo, as obras para implantação de sistema de esgotamento encontravam-se em andamento, mas com o cronograma atrasado. Verificamos que em São Gonçalo foi iniciada a implantação de rede de esgotamento. Foi
construída uma nova estação de tratamento em Paquetá. Hoje no entanto a ilha encon72
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tra-se cortada por valas negras e o esgoto transborda nos bueiros por falhas no funcionamento do sistema.
As obras relativas à implantação de sistemas de esgotamento nas favelas da Ilha do
Governador e de Niterói encontravam-se em andamento.
Durante o governo Marcelo Alencar foram feitas ampliações no escopo do programa, aproveitando sobras nos recursos do BID, graças a preços menores obtidos nas licitações e a diferenças de câmbio. Esta ampliação concerne à reformulação do sistema de coleta e destinação final de esgotos do Centro do Rio, envolvendo os bairros do Centro,
Catete, Glória e Santa Tereza, cujos efluentes eram lançados in natura na praia junto a
Marina da Glória. O projeto prevê instalação de uma rede coletora que leve os esgotos
destes bairros para o interceptor oceânico de Ipanema.
O contrato com o BID envolvia ainda outros componentes. No componente drenagem foram iniciadas obras na Bacia do Rio Acari. Não foram porém concluídas todas as
obras previstas.
O mapeamento digital foi concluído, com o levantamento aerofotogramétrico, a
elaboração de cartas digitais, a distribuição do material e de equipamento de informática
às prefeituras dos municípios situados na área da bacia da Baía de Guanabara, e o treinamento de técnicos das prefeituras para trabalhar com os programas fornecidos. Este componente deveria tornar os municípios capazes de operar um sistema de mapeamento informatizado com informações sobre a cobertura de serviços nos municípios da Baía de
Guanabara, o que viria a subsidiar ações das prefeituras referentes a desenvolvimento urbano municipal. No entanto segundo avaliação da direção do Cide, órgão estadual que
coordenou o desenvolvimento deste componente do programa, está havendo um desperdício do investimento pela maior parte das prefeituras, que não estão utilizando os equipamentos fornecidos, que permanecem ociosos. Também foi relatado que os técnicos treinados para operar os equipamentos foram deslocados para outras funções.
CONTRATO OECF E CONTRAPARTIDA DE OBRAS DO GOVERNO DO ESTADO
O outro contrato, com o JBIC, assinado em 1994, e iniciado em 1995, incluía apenas a construção dos sistemas de tratamento de esgotos (estação, interceptores, troncos e
elevatória) de Alegria, no município do Rio de Janeiro, Sarapuí e Pavuna-Meriti, ambos
na Baixada Fluminense, e a ampliação do sistema da Penha, no Rio de Janeiro. Este contrato encontrava-se ainda em desenvolvimento no final de 1998. Dentro do cronograma
de desembolso previsto para a primeira fase do PDBG, as redes de coleta e transporte do
esgoto seriam realizadas com recursos do governo do Estado.
Examinando a situação da Baixada verificamos que na bacia do Sarapuí, deveriam ser
construídos 303 km de redes e troncos coletores de esgoto, 12 linhas de recalque, seis elevatórias e uma estação de tratamento, com capacidade para vazão de 1m3/s. Na bacia do
Pavuna, onde não existe sistema organizado de esgotamento sanitário, deveriam ser construídos 403 km de redes e troncos coletores de esgoto, 12 linhas de recalque, dez elevatórias e uma estação de tratamento, com capacidade para vazão de 1m3/s. A análise das ações
realizadas nos mostra que, até o final de 1998, no final do governo Marcelo Alencar, as duas
estações de tratamento a serem construídas (Pavuna e Sarapuí) não haviam sido sequer licitadas. No que concerne às obras a serem realizadas com recursos do governo do Estado,
verificamos que não foi implantado pelo Programa um só metro de rede de esgotamento.
No Rio de Janeiro, a estação de tratamento de Alegria chegou a ser inaugurada, mas
as obras não estavam realmente concluídas. A estação não podia operar, pois a construção
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do sistema de coleta e transporte (tronco/rede) que levaria o esgoto para a estação de
tratamento, e que deveria ser feita com a contrapartida do governo do Estado, não foi realizada. De fato, e é importante salientar, durante o governo Marcelo Alencar não foi aplicado nenhum centavo de recursos do governo do Estado no programa.
É importante ainda fazer uma breve análise da participação da sociedade civil nas
discussões e no desenvolvimento do programa, avaliando como se deu no governo Marcelo Alencar o controle social. Observamos que nos documentos de base, em que é apresentada a estrutura do programa, não há nenhuma referência a instrumentos participativos. Tentando romper com a estrutura centralizadora que norteava o programa, entidades
ambientalistas fizeram pressão na Assembléia Legislativa do Estado e, em 1995, foi aprovada a lei estadual que prevê a instalação do Fórum de Acompanhamento do PDBG
(Fadeg), cujo objetivo era garantir a transparência do programa. O Fórum teria a participação de 15 prefeitos, empresários, ecologistas, ONGs, governos estadual e federal. Este
Fórum, no entanto, nunca chegou a funcionar, pois a lei não chegou a ser regulamentada pelo governo estadual. No que concerne às ONGs, verificamos que algumas entidades,
como Os Verdes, a Fase e o Baía Viva buscaram acompanhar o desenvolvimento do programa, mas relataram dificuldades para obter informações do governo estadual. As mesmas dificuldades foram enfrentadas por entidades do movimento popular organizado, como o Comitê Político de Saneamento da Baixada Fluminense, que congrega federações
de associações de moradores da região.
De fato não existiram ao longo do desenvolvimento do programa canais permanentes de interlocução com a sociedade. As informações eram divulgadas ou pela grande imprensa ou em eventos esporádicos promovidos pela coordenação do programa.
Por conta dos gastos considerados exorbitantes, e da baixa efetividade do programa,
em abril de 1998, a deputada estadual Miriam Reid (PDT) pediu a instalação de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para acompanhar o andamento dos trabalhos do
programa, que no entanto não chegou a se constituir.
Em fins de 1998, quando estava terminando o governo Marcelo Alencar foi feita a
primeira proposta de adiamento do término das obras, que ficou marcado para dezembro
de 1999. Em 1999 com o início do governo Garotinho, ocorreram mudanças na gestão
no programa e as obras sofreram paralisações. Depois de marchas e contramarchas, diante da ameaça de cancelamento do programa por inadimplências do governo anterior que
impediam que o Ministério Público desse o aval para o governo do Estado solicitar a prorrogação do contrato com o BID, as obras relativas às estações de tratamento com financiamento do OECF, e as ações com financiamento do BID foram retomadas.
O último pedido de prorrogação data de outubro de 2000 e prevê que a primeira fase do programa deveria terminar entre 2000 e 2002, sendo sucedida de uma segunda fase que constituiria o PDBG II. Observa-se uma diferença de praticamente três anos, com
relação ao cronograma inicialmente previsto
GOVERNO ANTONY GAROTINHO (1999-2002)
CONTRATO BID
Garotinho retomou as obras de instalação de rede e ligações domiciliares de água,
ações viabilizadas através dos recursos do BID. No entanto os reservatórios permaneceram
vazios. A presidência da Cedae divulgou que o problema de falta de água nos reservatórios só seria solucionado através da construção de uma nova adutora para a Baixada Flu74
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minense. A Baixada Fluminense deveria receber sete mil litros de água por segundo. No
entanto, segundo técnicos da Cedae, dos sete mil litros que saem do Sistema Guandu, somente dois mil chegam de fato à região – devido aos vazamentos e às ligações clandestinas. A Cedae assumiu a realização da obra da nova adutora, que deverá ligar diretamente
os municípios da Baixada ao Sistema Guandu, com cerca de 20 km de extensão. Esta
obra, fundamental para que o projeto de melhoria do sistema de abastecimento de água
proposto pelo PDBG venha a funcionar, só foi equacionada em 2001, o que revela um desconhecimento dos agentes envolvidos na formulação dos programas de saneamento da
real situação dos sistemas existentes.
Um outro problema relativo à formulação do programa veio à tona no governo Garotinho. Concluídas as redes e a estação de tratamento de esgotos de São Gonçalo, observou-se que o volume de esgoto que chegava à estação para ser tratado era muito menor
do que o previsto, e que o problema de lançamentos de esgotos nos canais da região continuava. Foi verificado então que as ligações domiciliares dos esgotos à rede de coleta não
haviam sido realizadas. Os planejadores e executores haviam previsto que estas ligações
deveriam ser feitas pelos moradores. No entanto, a população da região, em sua maioria
composta por famílias pobres, não estava disposta nem tinha recursos pra arcar com os
custos das ligações (aproximadamente 120 reais em 2001). A solução dada pelo governo
do Estado foi que a Cedae faria as ligações e seria cobrado um real por mês nas contas de
água, até perfazer o custo total da ligação. A mesma solução será aplicada nos municípios
da Baixada.
Também foram identificados problemas na ETE de Icaraí, em Niterói, pois, concluída
a obra, verificou-se que esta estação lança o esgoto praticamente in natura na Baía, já que o
único processo pelo qual os efluentes passam não chega a ser tratamento primário completo.
CONTRATO OECF E CONTRAPARTIDA DE OBRAS DO GOVERNO DO ESTADO
Durante o governo Garotinho foram realizadas e concluídas as obras das estações de
tratamento de esgotos da Penha e dos Sistemas Sarapuí e Pavuna, na Baixada Fluminense.
As obras das redes de coleta e troncos que deveriam ser feitas com recursos da contrapartida do governo do Estado foram iniciadas, sendo mobilizados recursos do Fundo Estadual de Conservação Ambiental (Fecam)4. No entanto, o ritmo de andamento das obras foi
muito lento. O relatório do programa de novembro de 2001 indica que no Sistema Sarapuí apenas 16% das redes previstas haviam sido instaladas; no Sistema Pavuna este percentual era de 6,8%. Continuamos, portanto, diante de uma situação paradoxal, em que as
estações de tratamento não têm esgotos para tratar. A estação de tratamento de esgotos da
Alegria também foi concluída, mas o percentual de rede e tronco implantados é de 23%.
CONCLUSÕES
Nossa análise do desenvolvimento do Programa de Despoluição da Baía de Guanabara nos mostra que, diante do atraso nas obras e da ausência dos investimentos previstos pelo governo do Estado no programa, chegamos ao final de 2001 e concluímos que o
PDBG teve uma efetividade muito baixa, sobretudo se considerarmos o volume de recursos investidos pelos agentes financiadores externos.
Identificamos ainda problemas na concepção e execução do programa, entre os
quais, destacamos:
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4 O Fecam conseguiu arrecadar recursos das multas
pagas pela Petrobras pelos
sucessivos acidentes de
derramamento de óleo na
Baía de Guanabara.
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• a ausência de uma avaliação mais aprofundada dos sistemas existentes, o que implicou
a construção de reservatórios e sistemas de distribuição de água na Baixada sem se verificar se o Sistema Guandu e as linhas de adução existentes seriam capazes de abastecer estes reservatórios;
• a ausência de uma avaliação da capacidade das prefeituras de assumir as infra-estruturas e
equipamentos construídos/fornecidos, o que implicou problemas de operação das usinas
de lixo, e o não-aproveitamento dos resultados do componente mapeamento digital;
• a ausência de uma real avaliação da capacidade financeira do governo do Estado de arcar com a contrapartida requerida, pois a falta de recursos financeiros foi a justificativa
alegada pelos diferentes governos para não realizar as obras que lhes cabiam;
• ausência de canais de interlocução com a sociedade que permitissem que o programa,
na sua concepção e na sua execução, fosse discutido com entidades da sociedade civil,
como associações de moradores dos bairros beneficiados, ONGs ambientalistas, universidades, entidades do setor de saneamento etc.;
• falhas na concepção técnica de infra-estruturas projetadas, sobretudo no que concerne
às estações de tratamento de esgotos.
Ana Lucia Britto é professora do Prourb/UFRJ e pesquisadora do Observatório
de Políticas Urbanas e Gestão Municipal.
E-mail: anabritto@rionet.
com.br
Artigo recebido para publicação em setembro de 2003.
Todos estes problemas, somados ao atraso nas obras e a falta de investimentos relativos a contrapartida do governo estadual, fizeram que, em áreas de extrema carência de
serviços de saneamento como a Baixada Fluminense, o PDBG ainda não tenha logrado seus
objetivos de ampliar o acesso e melhorar significativamente a qualidade desses serviços.
Além disso, o objetivo de recuperar ecossistemas e melhorar a qualidade das águas da Baía
de Guanabara ainda está muito longe de ser alcançado.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
AMADOR, E. da S. ‘‘Baía de Guanabara: um balanço histórico’’. In: ABREU, M. Natureza e sociedade no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Prefeitura Municipal, 1992.
AMADOR, E. da S.; LIMA, S. R. Considerações e propostas dos movimentos ambientalistas
Baía Viva e Os Verdes para a Fase II do Programa de Despoluição da Baía de Guanabara. Rio de Janeiro: s.n., 1998.
BRITTO, A. L.; CARDOSO, A. L. “Sustentabilidade e justiça ambiental na Região Metropolitana do Rio de Janeiro”. Trabalho apresentado no SEMINÁRIO INTERNACIONAL “LAS REGIONES METROPOLITANAS DEL MERCOSUR Y
MÉXICO: ENTRE LA COMPETITIVIDAD Y LA COMPLEMNETARIEDAD”.
2000. Buenos Aires, Argentina, entre 28 de novembro e 1 de dezembro de 2000.
GOVERNO DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO. Secretaria de Estado de Obras e
Serviços Públicos. Documento de base para a formulação da fase II do Programa de
Despoluição da Baía de Guanabara. Rio de Janeiro, Adeg/Cedae, dez. de 1997.
SANCHES, M. ‘‘Elites globais e cidadãos locais: quem ganha com a despoluição da Baía
de Guanabara?’’ Trabalho apresentado no XXII CONGRESSO INTERNACIONAL DA LASA – LATIN AMERICAN STUDIES ASSOCIATION. 2000.
A B S T R A C T This paper presents some results of a research that we are developing
about the public polices concerning the extension of public services of water supply and sewage
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for urban dwellers in the Rio de Janeiro’s metropolitan area. We will analyze this subject
focusing on the most important program for the improvement of these services, which has been
developed in the last years, The Guanabara Bay Pollution Abatement Program. Our study
discusses whether this program has contributed or not to the improvement of urban dwellers to
access water supply and sewage services, and it shows that the program’s development is being
very slow and that, in despite of the important amount of financial investments made by
multilateral agencies, The Guanabara Bay Pollution Abatement Program has not achieved
many of its goals.
K E Y W O R D S
Sanitation; environment; Rio de Janeiro’s metropolitan area;
Guanabara Bay; public polices; public services; urban administration.
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77
R ESENHAS
REGIÕES E CIDADES,
CIDADES NAS REGIÕES. O
DESAFIO URBANO-REGIONAL
Maria Flora Gonçalves, Carlos Antônio Brandão e
Antônio Carlos Galvão (Orgs.)
São Paulo: Anpur/Editora da Unesp, 2003.
Pedro P. Geiger (UFRJ)
Anpur e Editora da Unesp estão lançando importantíssima e volumosa obra, tratando do urbano e do
regional no Brasil. Ela reproduz um longo seminário
multidisciplinar que reuniu dezenas de grandes pesquisadores brasileiros. Dividido em sessões, ao longo dos
anos de 2000 e 2001, o seminário se desenrolou em diferentes cidades brasileiras das cinco macrorregiões.
Durante este período, diz Flora Gonçalves, os participantes tomaram conhecimento dos primeiros resultados do Censo de 2000 e foram incorporando-os aos
trabalhos. Acompanhavam também as manifestações
da opinião pública, anunciadoras das mudanças eleitorais de 2002.
O livro contém detalhadas descrições do “território usado” brasileiro. Recorda a história do planejamento no País, especialmente a partir de 1988, nas diversas esferas de poder e escalas geográficas. O leitor
encontrará também matéria teórica sobre espaço geográfico, regionalização e sobre a qualificação de espaços
públicos. Fará passeios guiados por paisagens urbanas,
como em Betim ou São Paulo, por praias catarinenses
e nordestinas, e por outras paragens. Regra geral, os artigos enveredam pela apreciação política da gestão e do
planejamento que foi ou que deva ser aplicada. Por tudo isso, e principalmente pela qualidade da obra, o leitor será tentado a cobri-la por inteiro.
Obra deste porte alarga o debate sobre temas polêmicos e conduz a novos questionamentos. O espaço
reservado para este comentário, porém, não permite
maiores alongamentos. Apenas alguns tópicos serão
debatidos. A omissão na citação de nomes de autores
não contém qualquer conotação valorativa.
Composição social e cultural. Regra geral, o trato
da composição da população segue uma prática comum, que se restringe a classificá-la segundo categorias
de renda ou de setor de atividade. Comportamentos e
relações inter e intraclasses, que influem diretamente
na vida regional e urbana, pouco aparecem. Os exce-
lentes trabalhos de Itamar de Carvalho e de Jairo Amaral Filho são uma exceção. O último centra suas observações sobre as mudanças promovidas pela ascensão
dos “jovens empresários”, que deslocaram do poder as
tradicionais “oligarquias dos coronéis” do Ceará. Já o
trabalho de Itamar sobre a Sudene é muito rico, e o seria ainda mais, caso incluísse o espectro dos atores sociais, seus comportamentos culturais e políticos e sua
influência nas atividades da Superintendência.
A questão cultural é aflorada, por exemplo, pelo
saudoso prefeito Celso Daniel, ao atribuir a dificuldade de mobilizar recursos para a Agência de Desenvolvimento Econômico do consórcio municipal do Grande ABC, em parte, à inexistência, no setor privado, “de
uma propensão tão grande quanto a existente em outros países, como os da Europa, a fazer mobilização de
recursos em torno de interesses coletivos”. Bertha K.
Becker, tratando de mudanças na Amazônia, se refere
“aos grandes conflitos transformados em demandas organizadas por grupos sociais diversos, garimpeiros, indígenas, pequenos produtores e outros”. Antônio Flávio Pierucci faz um belo discurso teórico sobre
“conflitos de interesse” versus “conflitos de valor”. Note-se que esta diferença explica a ausência de guerra armada entre Estados no interior do espaço da globalização, enquanto posturas radicais ocorrem nos espaços
do fundamentalismo. Temas assim, trabalhados nas cidades “fragmentadas” brasileiras, certamente trarão valiosas contribuições. Ricardo Toledo Silva apresenta interessantes observações sobre diferenças culturais
históricas entre o Brasil e os Estados Unidos e os seus
rebatimentos sobre o funcionamento dos sistemas de
regulação. Outras referências à questão cultural podem
ser encontradas, como nas passagens ligeiras pela influência da migração estrangeira no Sul, em Pedro
Bandeira. Contudo, na atualidade, o tema da formação econômica social, de suas características culturais,
de suas relações com a estrutura da produção, com o
fortalecimento das identidades estaduais, exige muito
mais, em termos de abordagens específicas.
Relações interestaduais. Wilson Cano, “como
bom paulista”, se declara a favor do ICMS ser cobrado
nos Estados da produção (e se cala sobre a exceção
aplicada aos fluxos elétricos e do petróleo). É verdade,
o setor produtivo urbano industrial paga altos tributos ao governo federal que pode redistribui-los em favor das regiões mais pobres. No entanto, caso ocorra
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R
mudança fiscal que, democraticamente, como nos
países desenvolvidos, faça recair o imposto, não tanto
sobre quem produz, mas sobre quem consome, a indústria e a economia paulista não seriam mais beneficiadas? O ICMS cobrado nos Estados do consumo não
seria então a sua compensação?
Se, de um lado, tendo em conta a dimensão continental do Brasil, a tese da concentração de recursos
fiscais em escala estadual é posta em dúvida, por outro,
é difícil aceitar a tese de Heloísa Soares Costa de favorecer, a priori, os investimentos em localidades de IDH
mais baixo, ignorando as possíveis filtragens no espaço
(“trickling down”).
Questão merecedora de lembrança diz respeito à
falta de estatísticas de “comércio interestadual por vias
internas”, e que eram produzidas no passado.
Tecnologia. Luciano Coutinho menciona a importância da questão, mas, o papel das instituições de
pesquisa no desenvolvimento, por exemplo, ou o tema
dos “meios técnicos”, de que tratava Milton Santos,
são pouco abordados na obra. O nome popular de
“brejo”, na Paraíba, é uma herança de quando a sociedade atuava em “meio natural”. O termo “Alta Sorocabana”, uma região de São Paulo, evoca a fase “técnica”,
quando a ferrovia dava suporte ao avanço da “frente
pioneira”. Qual a percepção popular de uma região
formada na fase “científica/informacional” ou da globalização? “Costa do Sol” seria um exemplo? E os “eixos”, são passíveis de ser internalizados e ter seus nomes popularizados? Na cidade, o espaço em
transformação na Paulicéia, descrito por Ana Fani A.
Carlos, poderá ganhar uma designação própria? Que a
questão tecnológica foi tratada abaixo do desejável é
notado nos capítulos sobre o Centro-Oeste, nos quais
a Embrapa foi contemplada com, talvez, cinco linhas.
Seria desejável, também, mais trabalho comparativo entre as proposições políticas enunciadas nos planos e as realizações efetivas. Trabalhos de avaliação dos
programas de gestão e planejamento, como o faz, em
certa medida, Rosa Moura, ao contrastar o Programa
de Desenvolvimento de Empresas (Prodec), de Santa
Catarina, e o Fundo de Operações de Empresas (Fundoprem), do Rio Grande do Sul.
Problema de “afinidades eletivas”. A utilização da
expressão “agricultura itinerante”, atribuída a Celso
Furtado no artigo de Wilson Cano, aponta para o problema de transferência de termos de uma ciência para
82
E
S
E
N
H
A
outra. Em Geografia Agrária, o termo se relaciona ao
sistema de “rotação de terras” – que, aplicado em terras pobres, acaba em desertificação –, e não deve ser
confundido com o avanço de uma “fronteira agrícola”,
ou “frente pioneira”, que ocasionava o deslocamento
para terras distantes da chamada “agricultura cabocla”,
esta totalmente de subsistência.
A distribuição geográfica da economia agrária é
mais complexa do que a apresentada pelo autor, contendo aspectos que podem ser referidos à teoria de
von Thünen. Grandes propriedades produtoras de cereais, as mais modernas em mecanização, se localizam
no interior distante, enquanto atividades hortigranjeiras, leiteiras e frutíferas podem ser encontradas mais
próximas dos grandes centros urbanos. O mercado urbano brasileiro se encontra bem abastecido em gêneros alimentícios, o que torna pertinente a análise da
participação dos diversos tipos de empresa agrícola
neste mercado.
Entre perigos do mercado e privilégios do patrimonialismo. Boa parte dos trabalhos, redigida em tom polêmico, critica o governo federal por ter abdicado, nas
últimas décadas, de suas responsabilidades de planejamento sistemático urbano/regional e propugna seu restabelecimento. Em geral, associa-se a idéia ao retorno
do Estado a uma participação gerencial maior na economia. O chamado “Programa dos Eixos” do governo
Fernando Henrique é desclassificado, devido a sua
configuração espacial e por estar voltado aos interesses
do capital. Já os autores que descrevem, e de certa forma sustentam, o Programa dos Eixos Nacionais de Integração e Desenvolvimento evitam manter um debate polêmico.
De qualquer forma, o cuidado de se evitar a reificação da região “fechada” pode ser entendido no excelente artigo de Lia Osório, que diferencia sistemas de
fluxos e sistemas de lugares e suas configurações espaciais. A autora associa estes sistemas, respectivamente,
a espaços de produção, mais “abertos”, e a espaços de
reprodução social, mais “fechados”, que se encontram,
porém, em perpétuas interações.
Regiões se interpenetram (do mesmo que espaços
urbanos e rurais) com zonas de transição em suas periferias. O estabelecimento de limites formais para as regiões resulta de atos institucionais. Além disso, sobre
um mesmo território, é possível reconhecer diferentes
regionalizações setoriais – regiões econômicas, regiões
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culturais, regiões políticas etc. –, e que não são exatamente conformes. Resulta que um planejamento multissetorial, aplicado a um único desenho regional,
compósito, pode se tornar inadequado. O tema já vem
sendo bastante debatido no Brasil, quanto à gestão metropolitana. É majoritária, hoje, a idéia de sistemas de
gestão e recortes espaciais próprios para cada serviço,
ou grupo de serviços. Modelo clássico é o agenciamento Port Authority da região metropolitana de Nova
York, que administra sistema de transportes compreendendo o metrô, o sistema de ônibus intra-urbanos, os
portos e os aeroportos.
A região pode ser internalizada e percebida “de
dentro”, ou pode representar, apenas, um recorte feito
“de fora”, mesmo quando desprovida de população
(por exemplo, a divisão da Antártica entre países concessionários). Quanto maior o desenvolvimento social,
maior a “organização reflexiva”, na expressão de Anthony Giddens, e maior será a indução para a região
assumir representação e ser vista “de dentro”. A redução do significado da macrorregião como unidade de
planejamento e a ampliação do papel gestor de Estados
e municípios, tese reconhecida praticamente em todos
os artigos, é exemplo deste processo. Ele é devido à urbanização brasileira, acompanhada por um maior desenvolvimento social.
Observe-se que a divisão regional oficial do Brasil, produzida pelo IBGE nos anos 40, era getulista, não
ajustava as regiões aos limites estaduais (exceção para as
macrorregiões e zonas fisiográficas). Durante os governos militares, porém, quando se atendeu tanto à perspectiva dos fluxos, criando-se as “regiões polarizadas”,
como à dos lugares, criando-se as “regiões homogêneas”, os dois sistemas foram ajustados aos limites estaduais e municipais. Já os “eixos” do Avança Brasil,
que, na verdade, compõem nove espaços “abertos”, cobrindo todo o território, não apresentam tais ajustes,
provavelmente considerados irrelevantes.
É curioso, também, observar que a geografia
brasileira mostra a prevalência de uma configuração
de extensos eixos, sobre os quais se localizam as principais cidades. O desenho decorreria de um empenho
histórico, desde a Colônia, em assegurar o domínio
do vasto território nacional. Exemplifica-se com as linhas Rio, Petrópolis, Três Rios, Juiz de Fora, Belo
Horizonte; ou Rio, Governador Valadares, Vitória da
Conquista, Feira de Santana, Salvador etc., sem men-
cionar o “macroeixo” do vale do Paraíba do Sul. Poucos são os espaços sociais em forma de bacia, expressão de um conteúdo mais desenvolvido, do qual o Estado de São Paulo ou a região nordeste de Santa
Catarina se aproximam.
Quanto a recortes regionais para o planejamento, aparentemente, a conclusão seria de que não se pode estabelecer previamente uma diretriz única. Considerando-se a representação das linhas de tensão
territorial que os recortes devem expressar, cada caso
deve ser julgado de forma particular. Alerta-se para o
risco de inoculação de ideologia (no sentido forte, segundo Leandro Konder) excessiva na questão. Não se
duvida da necessidade de embutir estratégias espaciais
no planejamento setorial federal e de articulá-las com
as esferas estaduais e municipais. No entanto, a indispensabilidade de se trabalhar com regiões “fechadas”
continua aberta.
A objetividade no restabelecimento de um planejamento federal urbano/regional paralelo ao planejamento setorial não foi suficientemente esclarecida. No
passado, quando a Universidade brasileira ainda não
alcançava a sua dimensão atual, a atividade federal, em
grande parte, compreendia a pesquisa espacial, que
oferecia suporte à gestão setorial. Voltava-se, também,
para a incorporação de grandes espaços geográficos,
quando a “fronteira” ocupava fatia maior da economia.
Era um planejamento “ofensivo” que incluía a criação
de novos setores sociais e de atividades.
Em 1940, a população urbana era de apenas
32%. A política getulista foi antes “fazer” a cidade do
que “para” a cidade (no Rio e em São Paulo a Light
cuidava disso). CLT, subsídios ao transporte urbano,
criação de instituições classistas, às quais eram destinados conjuntos habitacionais, estimulavam a migração rural/urbana e continham objetivos políticos inspirados nos regimes fascistas europeus – formar
massas de sustentação política do regime com a classe
trabalhadora e a classe média que se ampliavam (inclusive com as “maria candelária”). No governo Juscelino, a proposição do “tripé” e da construção de Brasília revelam a perspectiva da incorporação de espaços.
A própria criação da Sudene continha a idéia básica de
transferência de camponeses nordestinos para o MeioNorte e Amazônia. No governo militar é que se institucionaliza um sistema específico de órgãos de
planejamento urbano e regional, apoiado no desen-
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volvimento da chamada “ciência regional”. Cresce,
então, o significado da atividade modernizadora para
a acumulação capitalista, para a formação da burguesia nacional, para a difusão espacial do capitalismo e
para o controle social centralizado.
A história acima, porém, se fez com incrível aceleração do crescimento populacional. Em sessenta
anos, a população passou de 40 para 170 milhões e a
taxa de urbanização superou os 80%. Estabeleceu-se,
sim, importante setor privado de indústrias de bens
duráveis e não-duráveis de consumo, mas aquela condição contribuiu para a manutenção da profunda desigualdade social e das características de estamentos na
sociedade brasileira. Na condução desta história, o Estado praticou diversas formas de “confisco” e foi aumentando a carga tributária, sobre setores produtivos e
população, hoje entre as maiores do mundo. (Porém as
“estatais” não contribuíam para o imposto de renda e
diversas eram deficitárias.)
O fato é que, ao mesmo tempo que ampliava o
mercado nacional, o Estado foi perdendo o controle
maior, se enredou em dívidas e escândalos, e foi perdendo capacidade gerencial. Neste quadro, a “fronteira” perdera peso como saída para a crise. Aliás, os espaços vazios passaram a ser mais objeto de proteção
ambiental. O sistema rodoviário se deteriorou. Uma
crise generalizada acabou se instalando com altas taxas
de desemprego. A capacidade de arrancar impostos se
encontra no limite. Entre 1992 e 2002, a renda do governo passou de 12% para 19% do PIB; a do capital se
manteve, de 44% para 45%; enquanto a dos salários
caiu de 44% para 36%. Tentando aliviar o setor automobilístico, com 170 mil veículos acumulados, cujos
preços embutem até 40% de tributos, o governo estuda baixar os impostos agregados.
Nesta posição “defensiva” do momento, certamente, não se trata de um simples retorno do Estado a
um quadro passado. A questão é muito mais complexa.
Um ângulo de síntese, de Flávio Villaça, encerra
elegantemente a obra, reafirmando a valorização da espacialidade no pensamento contemporâneo.
Contudo, suas idéias quanto à diferença entre cidades, regiões metropolitanas e aglomerações urbanas
são questionáveis. Cidades são tão abstratas quanto regiões metropolitanas, e os problemas de delimitação
são semelhantes. Edificações, pavimentações, arborização são objetos materializados, mas, em si, a cidade é
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uma proposição abstrata, embora concreta. A cidade
compreende atividades não-materiais e a quantidade
de componentes que lhes dão suporte influi em seu desenvolvimento. Pode-se imaginar a Barra da Tijuca, no
Rio de Janeiro, se expandindo sem telefone? Ou a cidade não se prover de salas de convenção para ganhar
maior centralidade?
No século XIX e primeira metade do século XX, o
materialismo histórico e as “determinações históricas”
magnificaram a temporalidade na análise social, enquanto a rejeição da “determinação geográfica” reduzia
o prestígio da Geografia. Na modernidade mais recente, ou pós-modernidade, reconstruções filosóficas (por
exemplo, a substituição do estruturalismo pelo neo-estruturalismo) reconduzem a importância de atores sociais e agenciamentos e relativizam as determinações.
Filósofos estóicos têm sido evocados, por exemplo, por
Gilles Deleuze, para a reintrodução do conceito de “semicausas” nos processos sociais. (Aliás, também a Física quântica tem alterado a idéia da determinação, uma
das explicações recentes apelando para a teoria dos
“mundos múltiplos”.) Estes desenvolvimentos não retiraram a importância da temporalidade nos entes, objetos e corpos, materiais ou abstratos. Todavia, trouxeram também a percepção de que a compreensão mais
profunda das “coisas” necessita, igualmente, o conhecimento de suas espacialidades. Neste sentido é que a
Geografia, ciência da sintaxe do espaço geográfico,
passou a atrair um novo interesse no campo multidisciplinar da ciência social.
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A CIDADE DA
INFORMALIDADE:
O DESAFIO DAS CIDADES
LATINO-AMERICANAS
Pedro Abramo (Org.)
Rio de Janeiro: Livraria Sette Letras/Faperj/
Lincoln Institute, 2003.
Ana Clara Torres Ribeiro (UFRJ)
A coletânea A cidade da informalidades, organizada por Pedro Abramo, aparece num momento particularmente relevante. Existem, atualmente, novas perspectivas para a superação de mecanismos de natureza
econômica e político-institucional responsáveis pela reprodução das faces mais cruéis da urbanização. Estas
perspectivas decorrem da aprovação do Estatuto da Cidade e da criação do Ministério das Cidades. A coletânea contribui ao tratamento enriquecido de um dos
temas centrais da atuação deste Ministério, a regularização fundiária, e para a apropriação social da legislação
relativa aos direitos urbanos. Nas palavras de Edésio
Fernandes: “a aprovação do importante Estatuto da Cidade consolidou a ordem constitucional quanto ao
controle jurídico do desenvolvimento urbano, visando
reorientar a ação do Poder Público, do mercado imobiliário e da sociedade (…) Sua efetiva materialização em
leis e políticas públicas, porém, dependerá fundamentalmente da ampla mobilização da sociedade brasileira,
dentro e fora do aparato estatal” (p.166-7).
Por outro lado, o fato de a coletânea incluir textos de especialistas latino-americanos estimula a reflexão de fenômenos comuns aos países periféricos, tanto
relacionados à história da urbanização quanto às formas de enfrentamento das carências sociais, sejam estas concebidas por cada sociedade/governo ou difundidas por agências multilaterais de desenvolvimento.
Nesta direção, o livro apresenta uma tensa tessitura de
informações e análises, em que a regularização emerge
de mobilizações sociais, mas também como solução
precária para as necessidades sociais ou, ainda, como
estratégia acionada por diferentes atores políticos.
Rompe-se, desta maneira, com interpretações da realidade urbana latino-americana que apresentam a regularização como estímulo seguro aos investimentos em
habitação ou como “direito”, desacompanhado de projetos para o alcance da justiça social.
A coletânea também indica, através de novos processos, a retomada da temática da oposição formal-informal, de longa presença no pensamento latino-americano dedicado ao urbano. Impossível seria, neste
sentido, esquecer estudos que, já nos anos 60, demonstraram os limites político-analíticos desta categoria e,
simultaneamente, a relevância dos processos por ela indicados, bastando citar, aqui, os nomes de Aníbal Quijano, José Nun, Paul Singer e Francisco de Oliveira.
Grandes esforços teóricos e de análise histórica apoiaram estes estudos e neles tiveram origem. A valorização
desta tradição, em diálogo com a coletânea, poderá estimular a reflexão dos rumos tomados pela modernização latino-americana e, especialmente, pelo desenvolvimento urbano. Esta reflexão é indispensável num
momento em que a adesão às pautas modernas, como
permite ver o artigo de Pedro Abramo sobre as trajetórias familiares de favelados, demonstra a falência (ainda que relativa) de estratégias associadas à educação e à
preparação para o trabalho.
Na atualização do pensamento crítico, será indispensável a análise dos vínculos entre o agravamento
das condições urbanas de vida e características do capitalismo periférico, tão bem sugerida pelo estudo transescalar realizado por Susana Pastenack para o caso
brasileiro. Será igualmente indispensável o conhecimento aprofundado da experiência urbana popular,
como demonstra o artigo de Jane Souto de Oliveira,
Denise Britz do Nascimento Silva, José Matias de Lima e Doriam Luis Borges de Melo. Nos anos 90, o
diagnóstico da exclusão substituiu o da marginalidade
socioespacial. Também neste período, a regularização
fundiária adquiriu por vezes, como indicam Emilio
Duhau e Maria Cristina Cravino, a anódina fisionomia de uma política pública que mal esconde o desinteresse dos governantes pela proposição de políticas habitacionais abrangentes e pelo controle do, sem
exagero retórico, capitalismo selvagem. Como nomear
de outra forma uma experiência urbana na qual, como
afirma Martim Smolka, “muitos pagam muito pelo
pouco que recebem, em contraste aos poucos que recebem muito pelo pouco que entregam” (p.123)?
Neste contexto, existe a possibilidade de que a regularização fundiária alimente-se, como alerta Maria
Cristina Cravino, dos discursos e práticas de uma conservadora ideologia comunitária, que esconde conflitos, despolitiza reivindicações e estimula táticas popu-
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lares subalternizantes. Há ainda a possibilidade, segundo Martim Smolka, que a regularização seja acionada
por governos indispostos para o enfrentamento amplo
e conseqüente da questão social. Em oposição a estas
tendências, a coletânea A cidade da informalidade indica que a regularização fundiária e urbanística pode ser
conduzida pela análise crítica das formas sociais dominantes (jurídicas e espaciais) e pela valorização da conquista diária da cidade. Deste último ângulo, trata-se
de resistências e vitórias parciais que configuram a denominada, por Emilio Duhau, urbanização popular,
conceito que reconhece a natureza coletiva da experiência da irregularidade.
Nesta experiência, segundo dados citados por
Martim Smolka, encontra-se envolvida, por vezes,
mais da metade da população urbana, em precárias
condições ambientais, reconhecidas por Alex Kenya
Abiko e Fernando Cavallieri. Como denominar esta
real estruturação popular da experiência urbana? Será
suficiente indicar o seu afastamento da forma dominante, como propõem as noções de informalidade e irregularidade? Estas noções não estimulariam o cômodo esquecimento das múltiplas vivências populares da
cidade, que incluem fatos tão distintos quanto favelas
(antigas e novas, com diferentes dimensões), loteamentos clandestinos, ocupações de prédios, assentamentos
populares e cortiços, além da experiência extrema da
moradia na rua? Como reconhecer os processos econômicos e político-institucionais que unificam as formas
urbanas populares, sem pieguismo e ocultamento da
dominação e da espoliação? Como apreender, como
propõe Pedro Abramo, a complexidade dos elos existentes entre a dinâmica interna das favelas, a dinâmica
interfavelas e, ainda, com o entorno imediato de cada
assentamento?
Na coletânea, são identificáveis algumas respostas
a estas perguntas na crítica de diretrizes para a política
urbana que apenas reconhecem benefícios na regularização; na denúncia da omissão dos governos no delineamento de políticas habitacionais abrangentes; na
crítica, como propõe Cláudia Pilla Damasio, a propostas que não incorporem a experiência urbana das classes populares. Estas respostas são indicativas da urgência com que precisam ser desenvolvidas análises
estruturais da urbanização latino-americana, orientadas por compromissos com: a ruptura do círculo vicioso que une desigualdade, pobreza e ilegalidade urbana;
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a democratização do acesso à terra; a garantia universal
de condições básicas de vida urbana e o fortalecimento dos sujeitos populares, o que pressupõe muito mais
do que a participação usualmente estimulada (e, até
mesmo, exigida) nas políticas urbanas. Afinal, como
também afirma Edésio Fernandes: “é essencial que se
reconheça que em casos como o do Brasil, nos quais a
ilegalidade deixou de ser exceção e passou a ser a regra,
o fenômeno é estrutural e estruturante dos processos
de produção da cidade” (p.139).
Os artigos reunidos na coletânea resistem a propostas de regularização que a apresentam como uma
inovadora panacéia para o drama social vivido nas metrópoles da América Latina, desconhecendo, como diz
Cláudia Pilla Damasio, os seus vínculos com a indispensável humanização da experiência urbana. Com estes artigos, fica claro que a regularização é um conceito
em disputa, que inclui o confronto entre concepções
de política urbana. Por outro lado, verifica-se não ser
aceitável a regularização como um fim em si mesma, já
que os processos indicados por esta noção não geram
resultados plenamente previsíveis e controláveis. Além
disto, a coletânea permite afirmar que a desregulamentação e/ou a regulamentação simplista e simplificadora, ao gosto das diretrizes neoliberais, não constituem
uma saída. De fato, tanto uma regularização resumida
à legalização como o simples ajuste estratégico de normas “ao que existe” redundam, por estranhas sinonímias, na indesejável valorização da norma instituída
frente a dinâmica da própria sociedade, como se a lei
ditasse, por si só, comportamentos coletivos, garantindo a legitimidade aos governantes.
Desta ótica, deixa-se de compreender o marco jurídico como construção política que garante direitos
de cidadania, o que estreita a democracia e o espaço
público. Porém, como desconhecer que a legalização
pode colaborar na redução da violência, retendo a ação
de grileiros e os despejos? O núcleo da problemática
da regularização é a propriedade, este fundamento da
(des)ordem urbana e real sustentáculo da versão dominante do Estado de Direito. Enfrentar este núcleo é
também dispor de uma oportunidade para refletir/rever a experiência urbana e, ainda, a organização político-jurídica das relações Sociedade–Estado. O aproveitamento desta oportunidade poderá reaproximar o
que décadas de neoliberalismo afastou, isto é, políticas
urbanas socialmente justas e projetos dirigidos à inte-
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gração social, implementados nos diferentes níveis de
governo.
Não há dúvida de que os países periféricos encontram-se em mais uma encruzilhada. Nesta, os caminhos estão marcados por estratégias para a economia e
por percepções de democracia. As políticas de regularização estão posicionadas nos termos desta encruzilhada, o que pode ser reconhecido, por exemplo, através
de uma comparação entre o artigo de Julio Calderón
Cockburn, dedicado à experiência peruana, e os textos
de Emilio Duhau e Maria Cristina Cravina. A reflexão
crítica dos erros cometidos em políticas de regularização colabora para que sejam superados o clientelismo
existente em práticas de legalização e as formas especulativas de enfrentamento da pobreza, como a que agora busca associar, desconhecendo a cultura popular, o
acesso à propriedade individual à ação dos bancos privados e ao crédito.
No âmbito dos direitos urbanos, desconhecer
culturas – como exposto por Julio Calderón Cockburn
no que concerne aos registros de propriedade e, por
Edésio Fernandes, com relação aos instrumentos jurídicos – significa impedir a formação de sujeitos sociais.
Significa, ainda, conceber falsos projetos, que dispersam investimentos e anulam a face extremamente ativa da experiência popular, demonstrada no dinamismo
do mercado informal de terras e moradias. Tal desconhecimento, como indica o texto de Julio Calderón
Cockburn, é impeditivo da territorialização de direitos
e da emergência de novas territorialidades, efetivamente democráticas. O mercado abstrato renega o mercado concreto, da mesma maneira que normas jurídicas
abstratas rejeitam práticas sociais. Estes espelhos desfocados, presentes em políticas públicas estimuladas por
agentes desterritorializados, estimulam uma cegueira
ainda mais profunda.
Esta cegueira impede o aprendizado com a experiência das classes populares urbanas dos países periféricos, que constroem cidades e desvendam recursos em
ambientes marcados por carência e exclusão. Por que
regularizar, apenas, os seus resultados materiais imediatos? Por que não reconhecer propostas latentes (e ainda subordinadas) na urbanização popular, inclusive no
que concerne à renovação do direito e do urbanismo?
Institucionalizar a carência ou reproduzir a estratégia
de indutos e anistia é realmente muito pouco… Reconhecer a potência do “outro” é também admiti-lo na
sua capacidade de propor novos universais e, assim, o
que afinal é legítimo. As práticas solidárias observadas
em favelas constituem elementos morais a serem refletidos no desenho de políticas urbanas, diante do estímulo ao individualismo. De fato, receitas e receituários
ou, noutros termos, práticas curativas, no mínimo, não
bastam. Os obstáculos existentes à regularização, analisados por Rosana Denaldi e Solange Gonçalves Dias,
confirmam esta insuficiência. Também dizem dos limites da regularização, a sua indispensável associação
com um plano muito mais abrangente de mudanças
institucionais e administrativas.
Há necessidade de uma nova sistematização (e
apropriação) dos recursos concentrados nas metrópoles latino-americanas que transforme a própria idéia de
regularização e apóie a territorialização de instrumentos jurídicos e urbanísticos. Para tal, é indispensável o
diálogo interdisciplinar, valorizador da percepção de
direitos originada na experiência popular e das estratégias intergeracionais de sobrevivência e mobilidade social, tratadas nos artigos de Julio Calderón Cockburn
e Pedro Abramo. Nestes artigos, surge a indicação de
que a experiência da pobreza – dos homens lentos de
Milton Santos – resiste aos formuladores das políticas
públicas, quando orientados por uma racionalidade
que desconhece o tecido urbano. Este desconhecimento, aliás, explica o fracasso de intervenções calcadas numa participação popular, que, simplesmente, não
acontece. Trata-se de afastamentos Sociedade–Estado
que marcaram a urbanização periférica, com enormes
custos sociais, redundando, como esclarece o artigo de
Alex Kenia Abiko, em obstáculos financeiros para a administração pública.
Há, realmente, esperança de que a radicalização
da democracia integre a urbanização popular à estruturação dominante da cidade? A coletânea demonstra, claramente, que a dicotomia formal–informal
precisará ser superada, como afirma Fernando Cavallieri ao indicar a sua simbiose orgânica, da mesma
forma que deverá ser superado o recurso a técnicas estatísticas que desconhecem a dinâmica da pobreza.
Existe a necessidade de (re)conhecimento profundo
dos lugares e de sua intensa vitalidade, indicada no
texto de Pedro Abramo e no artigo de Jane Souto de
Oliveira, Denise Britz do Nascimento Silva, José Matias de Lima e Dorian Luis Borges de Melo. Deste
(re)conhecimento dependerá a esperada renovação da
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política e a multiplicação das formas de vida aceitas e
valorizadas, além da superação de barreiras – envolvendo concepções do direito e do urbanismo – até
hoje preservadas entre economia e sociedade. Esta superação, exigida pelo conteúdo da coletânea, representa enorme desafio para as disciplinas inscritas no
campo do planejamento territorial.
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APOLOGIA DA DERIVA:
ESCRITOS SITUACIONISTAS
SOBRE A CIDADE
Paola Berenstein Jacques (Org.)
Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2003.
Thais de Bhanthumchinda Portela (UFRJ)
O supra-sumo do espetáculo é o planejamento da felicidade.
Raoul Vaneigem, 1961
No período entre guerras, o campo da arquitetura e do urbanismo presenciou o fortalecimento do discurso poético – na busca de soluções dos problemas sociais – e pragmático – no uso da racionalidade técnica
para a reconstrução das cidades arrasadas pela guerra –
propostos nos primeiros CIAMs (Congressos Internacionais de Arquitetura Moderna). Já no pós-guerra, em
1947, no retorno dos Congressos, a cada encontro passou a dominar a figura de Le Corbusier, com o discurso do funcionalismo separatista apresentado na Carta
de Atenas (1933) e encaminhado por princípios racionais cartesianos.
Em um contexto de grande destruição que gerava a necessidade de rápida reconstrução dos espaços urbanos e de grandes investimentos na habitação, aliado
ao fortalecimento de uma produção industrial de modelo fordista – produção estandardizada, uso de carros,
trabalho na fábrica com horários para a produção e para o descanso bem determinados etc. – fizeram que os
princípios da Carta de Atenas para o funcionamento da
cidade – trabalhar, circular, habitar e recrear – fossem
utilizados em larga escala por todo continente europeu, sendo depois transformado em um grande modelo de construção de cidades em diversos países com
pretensão a se “modernizar/desenvolver”.
Este modernizar as cidades mundo afora seguindo a cartilha do funcionalismo racionalista cartesiano
virou cânone, tanto na Academia quanto nos escritórios de projetos, marca do que viria a ser considerado a
boa arquitetura e o urbanismo de qualidade. Além disso, na medida em que acontecia a modernização das cidades o Urbanismo fortalecia-se como disciplina, ganhando espaços nos poderes públicos e privados para
projetar e planejar as cidades. Aliás, cidade que se prestasse, que fosse desenvolvida, era sinônimo de cidade
bem planejada.
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Assim caminhava a história e, quando o mundo
deu por si, descobriu que o movimento moderno havia se transmutado em modernismos (ismos, exacerbação de um movimento), havia matado as esquinas, o
encontro, a história, a poesia... De “a grande solução”
dos problemas urbanos, o movimento moderno passou
para a categoria de “vilão”. Decretada sua morte, o
mundo viu surgir uma nova safra de intelectuais, críticos ao movimento, entrando então em um mundo
pós-moderno, contemporâneo, marcado pela preocupação com a história, com a política, o social e a economia local etc.
Certo? Não. Isso não passa de um senso comum,
ditado por uma leitura que privilegia um determinado pensamento que, com o passar do tempo, tornouse hegemônico no campo da história do urbanismo.
Talvez pelo fato de que os cânones da arquitetura e do
urbanismo modernos ajudaram, e muito, o fortalecimento do campo disciplinar do urbanismo e do planejamento urbano.
Mas, o fato é que a crítica ao movimento moderno surgiu no mesmo momento histórico que o pensamento modernista. Isto é mostrado através da história
e da vida de um grupo de intelectuais franceses que se
denominavam Situacionistas. “Gravíssimo sinal de decomposição ideológica atual é ver a teoria funcionalista da arquitetura fundamentar-se nos conceitos mais
reacionários da sociedade e da moral. Significa que, as
contribuições parciais passageiramente válidas da primeira Bauhaus ou da escola de Le Corbusier, acrescenta-se em surdina uma noção atrasadíssima da vida e de
seu enquadramento” (Guy Debord, 1957, p.50); e
também por um outro grupo inserido no próprio movimento moderno e participante ativo dos CIAMs, o
Team X. E é isso que o livro organizado por Berenstein
vem apresentar.
Nele, encontram-se coletados e organizados diversos textos produzidos pelo grupo dos Situacionistas.
Mas afinal, quem são eles? Inspiração para grupos do
movimento antiglobalização contemporâneo, como os
grupo Black Blocks (aqueles tocadores de tambor que se
vestem de preto e animam todos os encontros de protesto antiglobalização), do Reclaim the Streets (invasores
de espaços públicos como ruas, praças etc. que, através
de festas e manifestações perfomáticas, reclamam o espaço público como direito dos pedestres e cidadãos), entre
outros. A Internacional Situacionista foi fundada a par-
tir da fusão dos grupos do Mibi (Movimento Internacional por uma Bauhaus Imaginista), do IL (Internacional Letrista) e da Associação Psicogeográfica de Londres
(nome e associação inventados, durante este encontro de
fundação, por Ralph Rumney),1 em 28 de julho de
1957, em um bar nos arredores de Cosio d’Arroscia.
Pelo lugar de fundação do movimento pode-se
tomar por entendido a informalidade e, por conseguinte, a vontade da não-institucionalização do grupo,
o que não significava falta de rígidos princípios e conceitos. Por sinal, estes vão ser um dos principais motivos dos rachas constantes entre os Situacionistas, capitaneado principalmente por um de seus fundadores e
principal intelectual, Guy Debord.
Jovens agitadores, decididos a mudar o sistema
através de uma revolução cultural, a International Situacionista produziu uma crítica ao urbanismo funcionalista racional, bebendo de diferentes fontes: da produção sobre a vida cotidiana de Henri Lefevbre,
passando pelo grupo Cobra (constituído em 1948, em
um café no Quai St. Michel, por um grupo que reclamava da superficialidade do debate do Centro Internacional para a Documentação da Arte de Vanguarda em
Paris)2 ao S e B (Socialisme ou barbarie, publicação de
militantes rompidos com o trotskismo que conduziu a
um questionamento do marxismo, cujo principal teórico era Cornelius Castoriadis)3.
Deste caldo surgiu a revolução proposta pelos Situacionistas: arte, política e filosofia voltadas para a
descoberta de possibilidades de uso do ambiente urbano, induzindo a participação transformadora do cotidiano alienado e passivo da Sociedade do Espetáculo –
principal teoria de Debord –, e propõe, então, o uso do
urbanismo unitário: “emprego do conjunto das artes e
técnicas, como meios de ação que convergem para uma
composição integral do ambiente” (p.54).
O urbanismo unitário é dinâmico, isto é, tem estreita ligação com estilos de comportamento. O elemento mais reduzido do urbanismo unitário não é a
casa, mas o complexo arquitetônico – reunião de todos
os fatores que condicionam uma ambiência, ou uma
série de ambiências contrastantes, na escala da situação
construída. O desenvolvimento espacial deve levar em
1 HOME, Stuart, Assalto à cultura: utopia subversão guerrilha na (anti)arte
do século XX. São Paulo: Conrad Editora do Brasil, 1999, p.52.
2 Idem, ibidem, p.23.
3 Idem, ibidem, p.68.
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conta as realidades afetivas que a cidade experimental
vai determinar.
Nos textos coletados por Berenstein estão descritas as principais atividades propostas pelo grupo:
• psicogeografia: “estudo das leis exatas e dos efeitos
precisos do meio geográfico, planejado conscientemente ou não, que agem diretamente sobre o comportamento afetivo dos indivíduos” (p.39);
• construção de situações: “construção de situações, isto é, a construção concreta de ambiências momentâneas da vida, e sua transformação em uma qualidade
passional superior. Devemos elaborar uma intervenção ordenada sobre os fatores complexos dos dois
grandes componentes que interagem continuamente: o cenário material da vida; e os comportamentos
que ele provoca e que o alteram” (p.54);
• deriva: um dos recursos mais sólidos da psicogeografia. “A deriva é um modo de comportamento experimental numa sociedade urbana. Além de modo de
ação é um meio de conhecimento, especialmente no
que se refere à psicogeografia e à teoria do urbanismo unitário. Os outros meios, como a leitura de fotos aéreas e mapas, o estudo da estatística, de gráficos ou de resultados de pesquisas sociológicas, são
teóricos e não possuem este lado ativo e direto que
pertence à deriva experimental” (p.80).
Com estas e outras propostas, os Situacionistas
criaram atividades para combater o que, segundo eles,
seria a pior característica do mundo do espetáculo: a
alienação advinda de uma participação da sociedade
como público espectador do mundo, sociedade como
platéia e não como palco.
Este pensar com paixão, pode ser lido de diferentes maneiras neste livro. A primeira é a linear. Como
os textos estão organizados por ordem cronológica, e
a Apresentação de Berenstein contextualiza a Internacional Situacionista no tempo e espaço, obtém-se um
panorama de uma época que não é muito apresentada
na história da arquitetura e do urbanismo. É através
da apresentação que o leitor poderá entender as relações entre os Situacionistas e o Team X, e também entre outros grupos e intelectuais da época, como Henri Lefèvbre.
Outra maneira. Esqueça a Apresentação e concentre-se nos textos situacionistas, absorvendo o máximo dos conceitos apresentados pelos diferentes autores: o desvio, deriva, espetáculo, psicogeografia etc.,
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voltando o pensamento para a produção da crítica feita às cidades nas últimas décadas. Parece que grande
parte da crítica contemporânea já estava pronta lá
atrás, só que de maneira muito mais radical. Depois
disso, volte a apresentação, sem esquecer de ler as notas e se verá que é isso mesmo.
A última possibilidade que apresento é a de fazer
deste livro um jogo, e com ele produzir uma deriva
própria para cada leitor. Como cada frase contém em
si própria uma força propulsora à reflexão e ao conhecimento, abra o livro aleatoriamente e deixe reverberar
pelo corpo as palavras lidas. O leitor “sentirá” que existem vários níveis a que estes textos remetem e que,
com eles, poderá criar uma situação que lhe permitirá
vislumbrar uma crítica à sociedade de consumo, um
discurso manifesto apaixonado da vida urbana e, também um espaço de fruição que é mesmo da ordem do
artístico, como se cada conceito fosse uma obra de arte mexendo com delicados tecidos sensoriais. É a participação em um encontro entre uma leitura do marxismo e da psicanálise. Depois aconselho a voltar para
a apresentação e para uma leitura linear, para melhor
compreensão do contexto apresentado.
Enfim, pode-se supor que este tema não tenha
nada de acadêmico no que diz respeito aos estudos urbanos e regionais. Entretanto, a revisão da história do
urbanismo do ponto de vista de quem o critica em favor de uma vida urbana participante só pode enriquecer a própria história e saber do campo.
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DE NOVA LISBOA À BRASILIA:
L’INVENTION D’UNE CAPITALE
(XIXE- XXE SIÈCLES)
Laurent Vidal
Paris: Institut des Hautes Études de l’Amérique
Latine, 2002. (Coleção Travaux & Mémoires de
l’IHEAL, n.72).
Luís Octávio da Silva (Universidade São Judas Tadeu)
Pouco após o aniversário de quarenta anos de sua
inauguração, a cidade de Brasília tem sua historiografia enriquecida pela publicação de uma obra de fôlego,
construída com rigor acadêmico, perpectiva crítica e,
sobretudo, engenharia criativa. Laurent Vidal é maître
de conférences da Universidade de La Rochelle e pesquisador do Espace Nouveaux Mondes. É especialista em
história urbana do Brasil e das Américas. Dirigiu a
obra Histoire de l’Amérique Latine (da série Historiens
et géographes, 2000-2001, n.371 e 374) e co-dirigiu,
com Émile d’Orgeix, Les villes françaises du Nouveau
Monde (Somogy, 1999). O livro em questão é uma retomada da tese de doutoramento intitulada Un projet
de ville: Brasília et la formation du Brésil moderne,
1808-1960, defendida na Universidade de Paris III,
em 1995, e orientada pelo professor Guy Martinière
(da Universidade de La Rochelle). Posteriormente, o
autor foi professor convidado da Universidade Federal
de Goiás, no período de agosto-setembro de 2000,
ocasião em que desenvolveu algumas perspectivas partes que, segundo ele, tornaram o livro significativamente diferente da tese de doutoramento.
A obra nos propõe um mergulho que procura
desvendar as razões sociais que levam ao ato de projetar, de imaginar e de desenhar cidades. “Para que serve
uma cidade quando ela não existe? Ou pelo menos não
ainda?” Brasília é o caso em questão. A justificativa
central é a de que a grande maioria dos estudos que se
debruçam sobre o projeto de cidades, o faz analisando
de uma maneira muito restrita sua forma física. Nessa
categoria, Vidal cita, como exemplos, Pierre Lavedan,
Leonardo Benevolo, John Reps, ou ainda Manfredo
Tafuri. Essa opção metodológica, segundo crítica de
Jean-Claude Perrot, endossada por Vidal, se prestaria a
todo tipo de amplificações, bastando para isso a incorporação do encadeamento cronológico de técnicas ou
estéticas para que as pesquisas assumam um caráter
histórico. Vidal propõe uma inversão desse procedimento: “como um projeto político e social toma forma
de uma cidade?”.
Dessa perspectiva, Vidal argumenta que o próprio conceito de projeto pressupõe uma problemática
a ser resolvida. Numa nota de rodapé, reproduzindo a
reflexão de Jean-Pierre Boutinet, o autor nos faz ver
que etimologicamente, o termo “projeto” advém do
particípio passado do verbo projectum (projicere) que,
em latim, significa “jogar adiante”. Não existia, nessa
língua, termo equivalente ao atual sentido da palavra
“projeto”. Da mesma forma, do grego antigo, os termos balle in e proballein, significando respectivamente “jogar” e “jogar adiante”, são a origem da atual palavra “problema”. “Projeto” e “problema”, nessas duas
diferentes línguas-mãe, têm o mesmo significado. Essa proximidade etimológica nos faz ver que não existe
projeto sem problema e nem colocação de um problema que já não apresente uma certa intenção de resolução. Segundo Vidal, cada projeto de cidade remete a
um contexto de referência devidamente problematizado. Ele usa como instrumento de análise a própria
idéia de cidade que se diferencia do projeto físico. Enquanto o segundo se dá no âmbito da técnica e do desenho, o primeiro pertence à dimensão da filosofia, da
literatura e da própria religiosidade. Desde a Idade
Média há uma progressiva ênfase do componente projeto em detrimento do ideal, isto é, da dimensão extraurbana. O trabalho desenvolvido por Vidal procura,
então, estabelecer vínculos entre as formas físicas e
discursivas (os projetos urbanísticos, arquiteturais, argumentos e debates) com a dimensão simbólica e política. Em que um projeto de cidade traz subjacente
um projeto de sociedade, de construção identitária?
Essa é a questão central que Vidal procura responder.
Todas as cidades são, em algum momento de suas histórias, objeto de projeto, parcial ou total. As cidades
novas, entretanto, se prestam particularmente bem a
esse tipo de abordagem. A própria tomada de decisão
de construir uma cidade nova evidencia ambições, posições e opções: localização, partido arquitetônico-urbanístico, conflitos entre o corpo técnico e o político,
bem como elementos mais do âmbito da antropologia, da filosofia, da semântica e da simbologia, por
exemplo, os atos de fundação, a construção da história e da própria memória da cidade fundada. A escolha do caso de Brasília deu-se, também, pelas limita-
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ções na maior parte da historiografia existente, constituída principalmente por obras apologéticas e despojadas de metodologia científica.
Esta obra de Vidal é de leitura fácil. Escrita em
forma de ensaio, ela não é especialmente rica em termos iconográficos (algumas das reproduções deixam a
desejar), mas apresenta as ilustrações essenciais. Com
exceção do último, cada um dos capítulos tem como
objeto um determinado período da história do País
durante o qual emergiu a idéia de construção de uma
nova capital. O argumento central do autor é de que
essa idéia é sempre resgatada nos momentos de ruptura histórica e/ou de crise institucional. Comum a todas
essas ocasiões existe o fato de que a idéia de fundação
de uma nova capital funciona como um elemento
aglutinador de um projeto identitário. Os capítulos seguem a ordem cronológica. Não se trata de um continuum, mas simplesmente de períodos “críticos”. Numa
primeira parte, o autor procede a uma apresentação da
conjuntura. A idéia da nova capital é, então, introduzida e contextualizada. Grupos de interesse e principais
fatores em jogo são apresentados de forma crítica e
com grande acuidade analítica. O projeto urbanístico
só é discutido quando pertinente. Tudo isso tendo
sempre como objetivo principal o estabelecimento de
relações entre cada um desses elementos e as idéias de
cidade e de sociedade que lhe são subjacentes.
Justamente por se tratar de uma obra cujo público-alvo não é o brasileiro, todos os elementos históricos significativos e relevantes para a compreensão do
contexto são devidamente apresentados. Isso é feito de
forma sucinta, mas não simplista ou simplificadora. O
que é um trunfo, pois além do argumento central, o livro possibilita ao leitor uma visão bastante crítica das
principais passagens da história do Brasil.
O primeiro período abordado (primeiro capítulo)
é o da chegada da família real portuguesa, em 1808, e
o conseqüente debate sobre qual cidade deveria abrigar
a sede, não mais da colônia, mas de todo o império ultramarino português. Como forma de introduzir o leitor nos antecedentes dessa discussão, Vidal apresenta
sucintamente o papel do Brasil no modelo colonial
português: seu caráter extrovertido e de orientação
marcadamente mercantil eram um condicionante determinante para que a capital da colônia tivesse sempre
sido litorânea. A chegada da corte, entretanto, alterava
esse quadro. Não se tratava mais de uma capital sim92
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plesmente administrativa, mas sim de uma capital política para sediar um Estado. Apesar das pressões exercidas pelas elites soteropolitanas, os interesses ingleses,
influentes aliados históricos dos portugueses, preferiam que a capital continuasse a ser o Rio de Janeiro,
mais próxima da Argentina e do Uruguai, para onde os
planos ingleses se voltavam. No contexto dessa discussão colocava-se, também, como alternativa, a fundação
de uma nova capital. Essa idéia foi fruto, de um lado,
de uma inquietação quanto à capacidade de o Rio de
Janeiro desempenhar apropriadamente essa função, e,
por outro lado, desenvolvia-se a necessidade de um novo modelo de apropriação territorial que desse sustentação a um projeto de integração nacional e de povoamento e que culmina com a idéia de que somente uma
capital solidamente implantada no interior do País seria capaz de dar sustentação a esse empreendimento.
Esse projeto vinha também ao encontro de dois dos
principais mitos fundadores do país: o do Lago Dourado, onde se encontrariam as cabeceiras das principais
bacias hidrográficas do território brasileiro, e um outro
que evocava a existência de um certo “paraíso terrestre”
idealizado no interior do País. Percebem-se aqui, de
forma clara, os elementos que compõem a análise de
Vidal: a idéia de uma capital interiorizada responde a
preocupações estratégicas, geopolíticas, mas também a
aspirações atávicas do âmbito do imaginário. O autor,
entretanto, bastante centrado na análise do ideário,
deixa o leitor sem elementos mais concretos que lhe
possibilitem compreender por que todas essas idéias
não chegaram a se materializar. Ele também incorre em
equívocos já de longa data discutidos e esclarecidos,
como, por exemplo, a afirmação de que os portugueses, nos primeiros anos de colonização, não teriam atribuído especial significação à criação de cidades novas
(p.49), ou ainda, que os portugueses pouco se teriam
importado com a dimensão simbólica do seu urbanismo colonial (p.25).
O segundo capítulo tem como objeto o período
da Independência. Também aí, a idéia de uma nova capital emerge como símbolo dessa ruptura institucional
e do projeto de modernização da nação que acompanhou essa nova conjuntura. Nesse caso, o projeto político e a idéia de capital tiveram seu espelho num
projeto urbanístico. Os dois primeiros foram protagonizados por José Bonifácio, que deu nome ao projeto
de transformação (o chamado “projeto Bonifácio”). Já
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o projeto urbanístico da nova capital coube a Menezes
Palmiro. Desde o momento que antecedeu o ato de independência, a representação brasileira no parlamento
português já levantava a idéia da construção de uma
nova capital, necessariamente no interior. Durante o
processo de independência e de consolidação da nação,
recorrentemente essa idéia veio à pauta com o objetivo
estratégico de proteção da sede do País contra eventuais incursões estrangeiras e também como forma de
povoar o território. Existe aí um aspecto, mencionado,
mas não devidamente enfatizado por Vidal, exceto na
“Conclusão”. Diz respeito a um paradoxo territorial e
demográfico da jovem nação brasileira. Com o Tratado de Tordesilhas, a divisão legal dos domínios coloniais da América do Sul deu ao Brasil um território
muitas vezes menor do que aquele efetivamente ocupado. A saga territorial brasileira foi, não só de defesa de
um litoral extensíssimo, mas também do avanço e consolidação das fronteiras a oeste. A distribuição demográfica, por outro lado, concentrou-se ao longo da costa, isto é no extremo leste. O Tratado de Madrid e de
San Ildefonso (1750 e 1777) deram legalidade à ocupação que já havia de fato. Entretanto, o vastíssimo
território, de certa forma, surrupiado e não povoado
sempre suscitou, no inconsciente coletivo da nação,
fantasmas e inquietude. Consideramos esse contexto
histórico fundamental para entender a recorrência das
postulações de interiorização da capital. Isso talvez merecesse uma ênfase maior da parte de Vidal, sempre tão
interessado nas aspirações e psicologia coletivas.
O autor apresenta, com maestria, os fatores em
questão e os blocos de interesses em jogo que resultaram na consolidação do Rio de Janeiro como capital,
em detrimento da fundação de uma cidade nova no interior do País. Diferentemente dos outros países da
América do Sul, o Brasil independente tornou-se um
império, chefiado pelo próprio filho do monarca português. A opção geopolítica de confirmação da capital
colonial como capital do novo império era reveladora
do continuísmo de uma política de privilégios dos interesses da oligarquia rural em detrimento do projeto
modernizador. O revés do projeto iluminista de José
Bonifácio postergou a implantação de um regime de liberdades individuais, de igualdade de direitos civis e
políticos, de abolição da escravatura, de laicização das
instituições, bem como da implantação de uma nova
capital que integrava o conjunto de aspirações do “pro-
jeto Bonifácio”. A europeização estilística do Rio de Janeiro, principalmente protagonizada pelo arquiteto
francês Grandjean de Montigny, por outro lado, procurava garantir uma imagem de linhagem européia.
O projeto urbanístico da nova capital, desenvolvido por Menezes Palmiro, é então analisado em detalhes. De forma bastante original, Vidal relaciona a forma urbana e os modelos arquiteturais propostos com o
projeto social e político que lhe era subjacente. Diferentemente da sinuosidade e arquitetura barroca das
cidades coloniais brasileiras, a cidade de Pedrália (em
homenagem a D. Pedro I) era proposta em grelha ortogonal e arquitetura neoclássica. Também em contraste com a cidade colonial, onde a rua era desvalorizada
e a arquitetura institucional não era objeto de destaque, em Pedrália, os espaços públicos tornar-se-iam espaços de prestígio, valorizados por jardins e conjuntos
arquiteturais de impacto.
Apesar de uma boa dose de continuidade durante a consolidação imperial, a idéia de uma nova capital
adquiriu contornos significativamente diferentes daqueles existentes no período da Independência. Foi um
época durante a qual as contradições, tão características desse país, já se apresentavam de forma bastante
evidente. Se, por um lado, pode ser identificada uma
busca de identidade nacional, por outro, a tentativa de
definição dessa nacionalidade não se baseava exatamente numa oposição à antiga metrópole, muito pelo
contrário. O projeto político hegemônico se via em
continuidade à ação civilizatória portuguesa. Ao mesmo tempo que se difunde uma perspectiva romântica
de idealização da “terra-mãe”, da questão regional, do
sertanismo e da figura do índio, as elites identificam a
nação como de filiação indubitavelmente européia. É
nesse contexto contraditório que é relançada a idéia de
uma nova capital. Também aqui ela deveria ser interiorizada, mais próxima da “alma do país”. O principal
promotor dessa idéia foi, dessa vez, um historiador
erudito, Francisco Adolfo de Varnhagen, visconde de
Porto Seguro. A capital por ele proposta chamar-se-ia
“Imperatória”. Ela faria parte de um sistema mais amplo de subdivisão territorial em unidades geográficas
de dimensões mais proporcionadas do que aquelas ora
existentes. A localização de Imperatória deveria, então,
atender a um requisito de certa eqüidistância entre
as unidades. Esse projeto territorial incluía ainda o estabelecimento de colônias agrícolas e de uma rede de
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comunicações entre as regiões, de forma a garantir
uma independência externa, principalmente no tocante ao abastecimento alimentar. Vidal insiste no fato de que esses projetos identitários teriam ocorrido
sempre em momentos de ruptura. A proposição de
transferência da capital foi apresentada em 1849. Segundo o autor, os anos de 1840 foram marcados por
mudanças significativas no conceito de Brasil moderno e no de que seria uma ação modernizadora do Estado imperial brasileiro.
Mas o projeto político de Varnhagen diferia muito do projeto libertário de Bonifácio. Além da matriz
fisiocrata, o projeto do visconde era eminentemente
elitista. Ele também tinha como referência matricial a
teoria climática de Montesquieu e instrumentalizava-a
com objetivos precisos: a nova capital deveria se localizar em clima ameno, a pelo menos 3.000 pés de altitude, que melhor conviria “à nossa raça”, isto é, aos descendentes europeus. Segundo essa visão, seria
justamente o elemento europeu, engenhoso e industrioso, o agente de modernização do País. Muito dessa
ideologia foi efetivamente posta em prática, durante o
período imperial, através da política governamental de
fomento à imigração branca, basicamente na região
Sul. Em comparação com o projeto de Pedrália, Imperatória se presta menos às análises morfológicas. Vidal
teve como obstáculo, nesse caso, o fato de as proposições de Varnhagem terem sido apenas esboçadas.
A partir do período republicano, iniciado em
1889, a questão da transferência da capital adquiriu
contornos bem mais conseqüentes. O projeto entrou
efetivamente na agenda nacional através de dispositivos institucionais e da constituição de comissões técnicas para a definição da localização da nova cidade. Já
no primeiro anteprojeto da constituição republicana, a
questão da transferência estava explicitamente colocada. Na análise de Vidal, essas duas vertentes, pelas
quais as aspirações de transferência da capital tomavam
corpo (a jurídica e a técnico-científica), teriam sido
uma conseqüência das duas principais lógicas que pautaram o debate político no início do período republicano. De um lado, com uma abordagem mais jurídica,
comparecia o republicanismo liberal, porta-voz dos interesses da oligarquia agrária, conservadora e elitista.
De outro, uma abordagem mais técnica provinha do
republicanismo positivista, porta-voz das classes médias urbanas e do corpo de oficiais militares, partidá94
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rios de uma visão cientificista e autoritária. Uma comissão científica chegou a desenvolver trabalhos de
campo que resultaram na demarcação do que ficou conhecido como o “retângulo de Cruls”, nome do engenheiro que dirigiu a comissão de exploração. A delimitação “de Luís Cruls”, de forma aproximada, coincide
com a indicação anteriormente feita por Varnhagen.
Vidal procede, então, a uma análise bastante esclarecedora e muito bem problematizada e documentada dos
interesses políticos que balizaram o desenrolar dos fatos: a clivagem Executivo/Legislativo; os interesses regionais versus as tendências centralizadoras; as limitações orçamentárias; e a histórica rivalidade entre
paulistas e mineiros. Mas o cerne explicativo dos acontecimentos é aquele mesmo que perpassa o conjunto
da obra: a função aglutinadora da idéia de uma nova
capital resgatada sempre em momentos críticos da história do Brasil. Uma vez a República estabilizada, o
dispositivo constitucional que estabelecia a transferência da capital foi deixado de lado.
Ainda durante o período da Primeira República,
a prática urbanística brasileira, bem como a própria
discussão sobre a transferência da capital foram marcadas pela fundação de uma cidade nova para sediar o
estado de Minas Gerais e pela a reforma da cidade do
Rio de Janeiro. Esses dois eventos são também objeto
da análise de Vidal. Nos derradeiros meses do período
em questão (1930) foi publicado, como um encarte
de um jornal editado no Rio de Janeiro, uma detalhada proposta de futura capital federal. Ela chamar-seia “Brasília” e teve como autor Theodoro Figueira de
Almeida. O projeto, bastante detalhado, tomava forma de uma alegoria pedagógica da história brasileira.
A cidade fora concebida, conforme explicação do próprio autor, em forma de “um grande cérebro (sic)”, alternando grelhas ortogonais de diferentes dimensões
entremeadas por praças e algumas diagonais. Cada
pedaço da cidade corresponderia a uma determinada
passagem histórica. Os nomes das ruas, avenidas e
praças corresponderiam a personagens e eventos geograficamente relacionados na planta da cidade. Se,
por um lado, o ineditismo da documentação enriquece a obra de Vidal, por outro, sua análise fica bastante desarticulada em relação ao resto do livro. A descrição e o caráter peculiar do projeto envolvem o leitor,
mas o deixam sem referências claras sobre que razões
teriam levado Vidal a incluí-lo dessa forma em sua
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obra. O nome “Brasília” não era exatamente uma inovação. Não foi por nós aqui mencionado, mas ele já
havia sido anteriormente aventado. Não fica clara que
tipo de vinculação tinha Teodoro com grupos técnicos ou de interesses ora existentes. Tampouco se o
projeto em questão suscitou algum debate ou se teve
alguma repercussão.
O regime político implantado a partir de 1930
significou o acesso ao poder da burguesia industrial e
das classes médias urbanas. Uma nova divisão político-territorial entra na agenda do novo regime e com
ela, uma vez mais, o projeto político de implantação
de uma nova capital, se bem que esta última com bem
pouca ênfase. Os anos que se seguiram foram marcados por uma nova concepção de modernização do
país. A noção abstrata e idealizada de “progresso” foi
substituída por uma consciência do caráter dual da
nação, chegando-se mesmo à formulação da idéia da
existência de dois Brasis, um moderno e outro atrasado. A urbanização e a vida urbana passaram a ser lidas
como fatores de modernização, tomando assim o lugar da ideologia ruralista da Primeira República. O
papel do Estado seria de integração dos dois Brasis,
daí o resgate da idéia de uma “marcha em direção ao
Oeste”. A primeira transposição em termos de planejamento urbano dessa nova ideologia teria sido, segundo Vidal, a fundação de uma nova capital para o
Estado de Goiás, Goiânia, uma aplicação do modelo
da cidade jardim, mas com uma tipicidade brasileira.
O autor aponta uma diferença muito grande entre a
nova capital e Belo Horizonte, criada algumas décadas
antes. Fazendo uma ponte entre as ideologias hegemônicas nos dois diferentes momentos históricos, Vidal
associa Belo Horizonte a um projeto que pretendia
conduzir a sociedade com mão de ferro em direção ao
progresso (p.171), enquanto Goiânia seria portadora
de um projeto mais humanístico. Apesar do tom eloqüente, a interpretação destoa da clareza de raciocínio
e do rigor documental e de argumentos que, no geral,
a obra possui.
Vidal, de maneira não explícita, comunga com
uma visão bastante recorrente e consensual da historiografia urbanística brasileira que interpreta o projeto de
Goiânia como um preâmbulo para Brasília. Logo após
a passagem sobre Goiânia, o autor envereda sobre os
principais marcos da constituição do modernismo brasileiro, assim como pela nova geração de debates, co-
missões técnicas e parlamentares com vistas a uma nova capital, já em reta final para a materialização de Brasília. Ele ressalta, em relação à questão da localização,
o conflito entre a escolha de um centro geográfico ou
um centro demográfico. Em relação a outras questões,
ele destaca os conflitos entre os parâmetros técnicos e
os identitários, entre a visão autoritária e a liberal. Uma
passagem especialmente interessante é a que trata do
convite e “desconvite” a Le Corbusier para ser o autor
do projeto da nova capital.
Um capítulo inteiro é dedicado ao período de
gestão presidencial de Juscelino Kubitschek durante o
qual a decisão política foi efetivada e Brasília finalmente construída. Diferentemente das outras partes do livro que em proporção significativa tratam de passagens
relativamente pouco exploradas da historiografia urbana brasileira, o capítulo específico sobre Brasília apresentava o desafio da originalidade. Vidal saiu-se bem.
Após o já tradicional preâmbulo de análise e interpretação de conjuntura, o autor discute o concurso e os
principais projetos selecionados. Dos 26 trabalhos
apresentados foram traços em comum: a inspiração racionalista; a organização da cidade em quatro setores
funcionais definidos pela Carta de Atenas; a ruptura
com a rua tradicional; a prioridade aos espaços livres,
às edificações isoladas e à regularidade geométrica.
Emergiu, entretanto, uma clivagem de ordem política
e filosófica: alguns arquitetos recorreram à monumentalidade como marca de uma capital; outros preferiram
a discrição como forma de enaltecimento do regime
democrático em oposição aos autoritários e à tradição
absolutista. Vidal procura investigar em que o projeto
de Lúcio Costa respondia às exigências sociais, econômicas, culturais e políticas então colocadas. São também objeto de análise a produção arquitetural de Oscar Niemeyer e paisagística de Burle Marx.
Mas a principal marca desta obra de Laurent Vidal fica mesmo no último capítulo. Nessa passagem o
autor procede a uma interpretação eminentemente semiótica e simbólica dos ritos que envolveram o nascimento da nova capital. Fazendo referência à cosmogonia e religiosidade que envolviam a fundação das
cidades antigas, e em grande parte inspirado pela obra
de Joseph Rykwert (The idea of a town), ele desvenda
em detalhes todo o protocolo adotado para os atos de
fundação (ritualmente celebrada através de uma missa
em 3 de maio de 1957), de inauguração (21 de abril de
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1960) e de historicização da nova capital, por meio de
toda uma política de comunicação e de implantação de
monumentos comemorativos referentes à própria saga
da cidade que se estava fundando. O autor é aí brilhante e eloqüente. O capítulo é extremamente criativo,
quase épico, sem cair na pieguice ou ufanismo.
A principal crítica que poderia ser feita a essa
obra, além daquelas já adiantadas ao longo deste texto,
é o fato de que, de forma geral, falta a Vidal uma hierarquização da importância das passagens comentadas.
Como todo e qualquer discurso ou evento se presta à
análise e interpretação, especialmente o leitor menos
familiarizado com o panorama brasileiro corre o risco
de não perceber que fatos que recebem a mesma atenção e dedicação por parte do autor possuam importância e repercussão tão diferenciadas. De forma geral, os
poucos deslizes anteriormente apontados concentramse sobretudo nos capítulos quatro e cinco, que são justamente dois dos três acrescentados à pesquisa doutoral. Isso talvez explique uns breves lapsos no rigor
documental e de argumentação que caracterizam esse
trabalho. Esses aspectos, entretanto, constituem apenas um detalhe. Como balanço geral, sem sombra de
dúvida, pode-se afirmar que, definitivamente, trata-se
de uma obra que constitui um marco não só para Brasília, mas para a própria historiografia urbana, pela
operacionalização metodológica empreendida e por se
apresentar como um exemplo das potencialidades das
abordagens multidisciplinares.
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REVISTA BRASILEIRA DE
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publicação da associação nacional de pós-graduação
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exerce, instituição em que trabalha e e-mail, além de telefone e endereço para correspondência. Os originais não
serão devolvidos.
Os títulos do artigo, capítulos e subcapítulos deverão ser ordenados da seguinte maneira:
Título 1: Arial, tamanho 14, normal, negrito.
Título 2: Arial, tamanho 12, normal, negrito.
Título 3: Arial, tamanho 11, itálico, negrito.
As referências bibliográficas deverão ser colocadas no final do artigo, de acordo com os exemplos abaixo:
GODARD, O. “Environnement, modes de coordination et systèmes de légitimité: analyse de la catégorie de patrimoine naturel”. Revue Economique, Paris, n.2, p.215-42, mars 1990.
BENEVOLO, L. História da arquitetura moderna. São Paulo: Perspectiva, 1981.
Se houver até três autores, todos devem ser citados; se mais de três, devem ser citados os coordenadores, organizadores ou editores da obra, por exemplo: SOUZA, J. C. (Ed.). A experiência. São Paulo: Vozes, 1979; ou ainda,
a expressão “et al” (SOUZA, P. S. et al.). Quando houver citações de mesmo autor com a mesma data, a primeira
data deve vir acompanhada da letra “a”, a segunda da letra “b”, e assim por diante. Ex.: 1999a, 1999b, etc. Quando não houver a informação, use as siglas “s.n.”, “s.l.” e “s.d.” para, respectivamente, sine nomine (sem editora), sine
loco (sem o local de edição) e sine data (sem referência de data), por exemplo: SILVA, S. H. A casa. s.l.: s.n., s.d. No
mais, as referências bibliográficas devem seguir as normas estabelecidas pela Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT). Para citações dentro do texto, será utilizado o sistema autor-data. Ex.: (Harvey, 1983, p.15) A indicação de capítulo e/ou volume é opcional. Linhas sublinhadas e palavras em negrito deverão ser evitadas. As citações de terceiros deverão vir entre aspas. Notas e comentários deverão ser reduzidos tanto quanto possível. Quando
indispensáveis, deverão vir em pé de página, em fonte Arial, tamanho 9.
Os editores se reservam o direito de não publicar artigos que, mesmo selecionados, não estejam rigorosamente de acordo com estas instruções.
Os trabalhos deverão ser encaminhados para:
Marco Aurélio A. de Filgueiras Gomes
Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo – PPG/AU
Faculdade de Arquitetura – Universidade Federal da Bahia
Rua Caetano Moura, n.º 121 (Federação)
40210-350 Salvador BA
Tel.: (71) 247-3803 Fax: (71) 247-3511
E-mail: [email protected]
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Pedidos podem ser feitos à Secretaria Executiva da ANPUR, enviando a ficha abaixo
e um cheque nominal em favor da Associação Nacional de Pós-Graduação
e Pesquisa em Planejamento Urbano e Regional.
ANPUR – SECRETARIA EXECUTIVA
(Gestão 05/2003 - 05/2005)
Prédio do IGC – sala 217
Av. Antônio Carlos, 6627
Campus Universitário – Pampulha
31270-901 Belo Horizonte, MG Brasil
Tel.: (31) 3499-5404
E-mail: [email protected]
Homepage: www.anpur.org.br <http://www.anpur.org.br>
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Nome: __________________________________________________________________________________
Rua: _______________________________________________________ nº:________ Comp.: _________
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Instituição e função: ________________________________________________________________________
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Assinatura _________________________________________
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Ilha do Fundão – Prédio da Reitoria, sala 533
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Prédio da Reitoria – Campus A. C. Simões
BR 104, km 97,6 – Tabuleiro do Martins
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05439-000 São Paulo, SP
Tel.: (11) 3864 7477
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FAU/USP
• Rua do Lago, 876, Cidade Universitária
05508-900 São Paulo, SP
Tel.: (11) 3091 4648
SEADE
• Fundação Sistema Estadual de Análise de Dados
Av. Cásper Líbero, 464, Centro
01033-000 São Paulo, SP
Tel.: (11) 3224 17662
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FUPAM
• Faculdade de Arquitetura e Urbanismo / USP
Rua do Lago, 876
05508-900 São Paulo, SP
Tel.: (11) 3091 4566
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UFBA
• Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo / UFBA
Rua Caetano Moura, 121, Federação
40210-350 Salvador, BA
Tel.: (71) 247 3803, ramal 220
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• Largo Ibam, 1, Humaitá
22271-070 Rio de Janeiro, RJ
Tel.: (21) 2536 9835
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• Mestrado em Desenvolvimento Urbano / UFPE
Caixa Postal 7809, Cidade Universitária
50732-970 Recife, PE
Tel.: (81) 3271.8311
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Tel.: (11) 3399 3856
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