Sobre tocar – Ouvir música no compositor Luiz Gonzaga e as

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Sobre tocar – Ouvir música no compositor Luiz Gonzaga e as
SOBRE TOCAR-OUVIR MÚSICA NA COMPOSITOR LUIZ GONZAGA E AS
MOTIVAÇÕES DE UMA PESQUISA NO COTIDIANO ESCOLAR
José Carlos Teixeira Júnior
Programa de Pós-Graduação em Educação
Universidade do Estado do Rio de Janeiro
Eixo: Pesquisa, Artes, Mídias e Educação
Categoria: Pôster
O presente artigo propõe discutir algumas questões que tecem uma pesquisa de
doutorado cujo principal objetivo consiste em conhecer a prática de DJ presente no
cotidiano da Escola Municipal Compositor Luiz Gonzaga (escola localizada em
Jacarepaguá, zona oeste da cidade do Rio de Janeiro). Ainda mais especificamente, o
presente trabalho propõe colocar em debate as principais motivações que estimularam
a tentar realizar este feito, quais sejam: a) ser professor de uma comunidade escolar
carioca marcada pelo estereótipo de violência e pobreza; b) estar cotidianamente em
i(n)teração com uma prática de DJ presente na escola; c) reconhecer a presença de
uma concepção de conhecimento que subalterniza esta prática musical da diáspora
negra. Discutir estas motivações consiste em uma etapa fundamental na posterior
definição das possibilidades teórico-metodológicas que assumirão como desafio
central a seguinte questão: de que forma a prática de DJ pode tensionar tanto o
estereótipo de violência e pobreza como a concepção logocêntrica de conhecimento
que pairam sobre a referida comunidade escolar carioca?
Palavras-chave: Educação. Cotidiano. DJ. Diáspora negra.
SOBRE TOCAR-OUVIR MÚSICA NA COMPOSITOR LUIZ GONZAGA E AS
MOTIVAÇÕES DE UMA PESQUISA NO COTIDIANO ESCOLAR
INTRODUÇÃO
O presente trabalho propõe discutir algumas questões que tecem minha
pesquisa de doutorado, ainda em andamento, cujo principal objetivo consiste em
conhecer a prática de DJ presente no cotidiano da Escola Municipal Compositor Luiz
Gonzaga (escola localizada em Jacarepaguá, zona oeste da cidade do Rio de
Janeiro). Ainda mais especificamente, o presente trabalho propõe colocar em debate
as principais motivações que me estimularam (e continuam me estimulando) a tentar
realizar este feito, quais sejam: a) ser professor de uma comunidade escolar carioca
marcada pelo estereótipo de violência e pobreza; b) estar cotidianamente em
i(n)teração com uma prática de DJ presente na escola; c) reconhecer a presença de
uma concepção de conhecimento que subalterniza esta prática musical da diáspora
negra. Discutir estas motivações consiste em uma etapa fundamental na posterior
definição das possibilidades teórico-metodológicas que assumirão como desafio
central a seguinte questão: de que forma a prática de DJ pode tensionar tanto o
estereótipo de violência e pobreza como a concepção logocêntrica de conhecimento
que pairam sobre a referida comunidade escolar carioca?
NA POLIFONIA E DIALOGICIDADE DO COTIDIANO ESCOLAR
Na Compositor1, local em que trabalho como professor de música desde
meados de 2008, há um professor de Matemática que praticamente todas as vezes
em que somos notificados sobre as novas orientações ou determinações de nossa
Coordenadoria Regional de Educação (CRE) ou mesmo da própria Secretaria
Municipal de Educação (SME), o que muitas vezes resulta em mais burocracias e
prazos ao já tão conturbado trabalho dos professores, ele se vira para mim e, com um
ar um tanto irônico, diz mais ou menos o seguinte:
– Zé Carlos, não se preocupe com isso. O serviço público anda: com o
servidor, sem o servidor e apesar do servidor!
Este professor sempre procura esclarecer, inclusive, que esse dito era muito
falado entre os seus colegas de profissão quando, antes de ingressar na carreira de
magistério, trabalhava como engenheiro durante o período da ditadura militar em uma
empresa privada que prestava serviços ao antigo Departamento Nacional de Estradas
e Rodagens (atual DNIT).
1
Forma como profesores, direção, alunos, funcionários e responsáveis se referem, cotidianamente, à
Escola Municipal Compositor Luiz Gonzaga.
Guardando as particularidades que envolvem a reprodutividade deste suposto
“andar do serviço público”, e não conseguindo ignorar a obrigatoriedade da cultura
negra e da música no currículo da Educação Básica (determinadas, respectivamente,
pelas leis federais 10.639/20032 e 11.769/20083), a apropriação desse dito me
possibilita uma pequena afirmação que, também no mínimo de forma provocativa, tem
se apresentado como pano de fundo para o desenrolar de minhas prórpias práticas
pedagógicas na Compositor e, consequentemente, do presente trabalho de pesquisa,
qual seja: a prática musical negra está presente na escola com professor, sem
professor e apesar do professor! Trata-se, em outras palavras, de um (des)dito cuja
polifonia e dialogicidade Bakhtin nos esclarece:
o nosso discurso da vida prática está cheio de palavras de outros. Com
algumas delas fundimos inteiramente a nossa voz, esquecendo-nos de quem
são; com outras, reforçamos as nossas próprias palavras, aceitando aquelas
como autorizadas por nós; por último, revestimos terceiras das nossas
próprias intenções, que são estranhas e hostis a elas (BAKHTIN, 2010, p.
233).
SOBRE AS PRINCIPAIS MOTIVAÇÕES DA PESQUISA
I
Este (des)dito inicialmente apresentado trança em sua ambivalência as
principais motivações de minha pesquisa de doutorado cujo objetivo principal consiste
em conhecer a prática de DJ presente no cotidiano escolar. A primeira destas
motivações compreende o fato de ser, conforme já apresentado, professor de música
de uma escola municipal da Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro desde meados de
2008, qual seja: a Escola Municipal Compositor Luiz Gonzaga.
A rede pública de ensino da Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro se
apresenta como a maior da América Latina, contando com 11 Coordenadorias
Regionais de Educação (CRE), com mais de 1.500 aparelhos educacionais (entre
escolas, creches, dentre outros), mais de 600.000 alunos matriculados e mais de
40.000 professores concursados4.
2
o
“Altera a Lei n 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação
nacional, para incluir no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática ‘História e
Cultura Afro-Brasileira’" (BRASIL, 2003).
3
o
“Altera a Lei n 9.394, de 20 de dezembro de 1996, Lei de Diretrizes e Bases da Educação, para dispor
sobre a obrigatoriedade do ensino da música na educação básica” (BRASIL, 2008).
4
Números disponíveis em http://www.rio.rj.gov.br/web/sme/educacao-em-numeros, consultado em agosto
de 2013.
A Compositor, mais especificamente, foi criada e assim nomeada pelo decreto
nº 9.994 de 19/02/1991, tendo iniciado suas atividades escolares, contudo, em março
de 1990, ano seguinte à morte de seu patrono, o chamado Rei do Baião. Ela está
localizada em Jacarepaguá (zona oeste da cidade do Rio de Janeiro), região
pertencente à 7ª Coordenadoria Regional de Educação (CRE) da Secretaria Municipal
de Educação (SME) e possui cerca de 60 professores e de 1.200 alunos dos dois
segmentos do ensino fundamental, distribuidos em dois turnos: manhã e da tarde. A
grande maioria de seus alunos reside em Cidade de Deus (mais comumente chamada
de CDD pelos seus próprios moradores), uma localidade bem vizinha à referida escola
municipal que foi campo do importante trabalho de pesquisa sobre organizações
populares de Alba Zaluar (2000) no início da década de 1980, além de ter dado nome
ao primeiro (e mais famoso) romance de Paulo Lins (1997) e ao premiado longametragem de Fernando Meireles (2003)5.
Criada na década de 1960, como parte da política habitacional do governo de
Carlos Lacerda, Cidade de Deus compreende uma localidade bastante complexa cujos
conflitos têm sido, histórica e socialmente, reduzidos aos estereótipos de criminalidade
e de pobreza (ZALUAR, 2000)6. Logo no início de sua obra, ao narrar sua chegada à
referida localidade, Zaluar nos apresenta uma ilustração da normatividade deste
estereótipo (uma ilustração, inclusive, bastante próxima de muitos professores recémchegados à escola municipal em questão):
a sensação mais forte que tive naquele momento foi a de medo. Não o medo
que qualquer ser humano sente diante do desconhecido, mas um medo
construído pela leitura diária dos jornais que apresentavam os habitantes
daquele local como definitivamente perdidos para o convívio social, como
perigosos criminosos, assassinos em potencial, traficantes de tóxicos, etc.
(ZALUAR, 2000, p. 9-10).
Além do romance e do longa-metragem homônimos anteriormente citados e
lançados, respectivamente, nas décadas de 1990 e 2000 (os quais visibilizam
exclusivamente nas ruas, becos e vielas da CDD aqueles mesmos “bandidos” e
“práticas criminosas”, negligenciando qualquer presença de outras tantas práticas
5
Demais alunos (uma grande minoria) residem em outras localidades não tão próximas da ecola assim
(mas ainda em Jacarepaguá) como, por exemplo, Gardênia Azul, Anil e Rio das Pedras.
6
Tensionando estes estereótipos, Zaluar já nos alertava: “o revelador era a presença continuada de
conflitos entre as pessoas, da coexistência de ideias contraditórias e de diferentes tendências
apresentadas na arena das suas disputas, às vezes pela mesma pessoa. A ‘estrutura’ era a falta de
modelos claros e a tensão entre os vários oferecidos pelas práticas institucionalizadas vitoriosas e as que
permaneciam como alternativas nos bastidores dos canais de comunicação da fofoca e nas discussões
acaloradas, diretas e públicas, quer durante as reuniões fechadas da diretoria, quer no meio da praça, da
birosca ou da rua” (ZALUAR, 2000, p. 26-27).
culturais que atravessam esta mesma localidade), outro bom e atual exemplo desta
estereotipia pode ser facilmente encontrado na (tensa) relação entre uma das
principais manifestações da diáspora negra (GILROY, 2001)7 na cidade do Rio de
Janeiro, o funk carioca (cf. VIANNA, 1988; ESSINGER, 2005; MEDEIROS, 2006;
FACINA, 2011; LOPES, 2011), e a atual política de pacificação da Secretaria de
Segurança do Estado do Rio de Janeiro, estruturada, basicamente, nas chamadas
Unidades de Polícia Pacificadora (UPP)8.
Palco importante de diversas histórias e personagens do funk carioca, como
Cidinho e Doca, Bonde do Tigrão, Bonde do Vinho, Bonde Faz Gostoso, Bonde das
Panteras, Tati Quebra Barraco, Deize Tigrona, Pretos de Elite, Os Havaianos, assim
como os bailes do G.R.B.C. Coroado e do G.R.E.S. Mocidade Unidos de Jacarepaguá,
além de suas equipes de som (como Bloco Velho Digital, por exemplo) e DJs, Cidade
de Deus (a segunda localidade a receber uma UPP, no ano seguinte à instalação no
morro Dona Marta, em Botafogo, zona sul da cidade) teve, em 2009, seus bailes e
outras tantas práticas musicais do funk carioca (como escutar funk na rua ou mesmo
dentro da própria casa, conforme relatado por diversos alunos da escola e também
noticiado por alguns jornais de grande circulação9) criminalizadas pela sua UPP. Tratase de uma criminalização (que, inclusive, se repetiu em praticamente todos os
processos de implementação das demais UPPs) sempre justificada pelo argumento de
que tais práticas musicais constituiriam um importante eixo financeiro e ideológico do
chamado tráfico de drogas e, consequentemente, da própria violência e criminalidade
nestas localidades (BATISTA, 2013). Um movimento histórico de estereotipação,
inclusive, que tem sido afirmado e reafirmado, cotidianamente, por diferentes sujeitos
da referida escola municipal carioca como, por exemplo, no irritado desabafo de uma
jovem professora de Inglês ao entrar na sala dos professores logo após ter dado suas
aulas em um (certamente, bastante difícil) dia de trabalho:
7
Segundo Gilroy, “a idéia da diáspora nos encoraja a atuar rigorosamente de forma a não privilegiar o
Estado-nação moderno e sua ordem institucional em detrimento dos padões sub-nacionais e
supranacionais de poder, comunicação e conflito que eles lutaram para disciplinar, regular e governar. O
conceito de espaço é em si mesmo transformado quando ele é encarado em termos de um circuito
comunicativo que capacitou as populações dispersas a conversar, interagir e mais recentemente até
sincronizar significativos elementos de suas vidas culturais e sociais” (GILROY, 2001, p. 20 – o grifo é
meu).
8
Segundo a Secretaria de Segurança do Estado do Rio de Janeiro, “a Unidade de Polícia Pacificadora é
um novo modelo de Segurança Pública e de policiamento que promove a aproximação entre a população
e a polícia, aliada ao fortalecimento de políticas sociais nas comunidades. Ao recuperar territórios
ocupados há décadas por traficantes e, recentemente, por milicianos, as UPPs levam a paz às
comunidades” (disponível em www.upprj.com, acessado em janeiro de 2013). Para uma crítica a esta
política de segurança, contudo, ver Batista (2012).
9
Ver, por exemplo, “Chegada de postos policiais pacificadores pôs fim a bailes funk em comunidades do
Rio” (disponível em http://noticias.r7.com/cidades/noticias/chegada-de-postos-policiais-pacificadoresposfim-a-bailes-funk-em-comunidades-do-rio-20100317.html) e “Polícia vai proibir bailes funk em locais de
maior violência no Rio” (disponível em http://g1.globo.com/Noticias/Rio/0,,MUL1227775-5606,00POLICIA+VAI+PROIBIR+BAILES+FUNK+EM+LOCAIS+DE+MAIOR+VIOLENCIA+NO+RIO.html), ambos
acessados em janeiro de 2013.
– Vocês sabem o filme Cidade de Deus? Então, nós damos aula para os netos
deles!
II
A segunda destas motivações consiste no fato de que tocar-ouvir música se
apresenta como uma prática realizada cotidianamente nesta escola municipal carioca.
E vale reforçar mais uma vez: com, sem e apesar do professor! Trata-se, assim, da
i(n)teração10 cotidiana com um tocar-ouvir música mediado ora pelos aparelhos
celulares dos próprios alunos no pátio interno da escola durante os vinte minutos de
recreio (uma prática realizada neste cronotopos – e em muitos outros, certamente –
desde antes mesmo de chegar à referida escola como professor de música), ora por
um Virtual DJ11 instalado em um netbook da escola conectado, por um lado, a um
aparelho celular via cabo USB e, por outro lado, a uma caixa amplificadora por um
cabo P2-RCA neste mesmo cronotopo escolar (mais especificamente na equipe de
som criada pelos alunos na própria escola no decorrer da pesquisa e apelidada pelos
alunos de Gonzagão Digital12).
Em outras palavras, trata-se de uma prática musical cotidiana, histórica e
socialmente realizável, em primeiro lugar, pelo desenvolvimento daquilo que Benjamin
chamou, na década de 1930, de “técnicas de reprodução” (BENJAMIN, 1983, p. 4).
Desenvolvimento, este, que não apenas intensificou de forma bastante significativa o
trânsito ou exílio de determinadas produções culturais em um contexto de
“proletarização crescente do homem contemporâneo” e de “importância cada vez
maior das massas” (idem, idem, p. 27), como também tornou estes mesmos recursos
técnicos de reprodução em formas originais de arte. Conforme nos orienta Benjamin,
com o advento do século XX, as técnicas de reprodução atingiram tal nível
que, em decorrência, ficaram em condições não apenas de se dedicar a
todas as obras de arte do passado e de modificar de modo bem profundo os
seus meios de influência, mas de elas próprias se imporem, como formas
originais de arte (BENJAMIN, 1983, p. 6)
10
Sem maiores ambições etimológicas, a relação de i(n)teração aqui proposta refire-se à complexa
polifonia e dialogicidade (interação) presente em um movimento de repetição que é sempre diferente
(iteração).
11
Software de discotecagem muito utilizado por DJs com versão gratuita para download na internet.
12
O termo Gonzagão já era uma referência bastante forte no cotidiano da própria escola ao campeonato
de futebol entre as turmas do segundo segmento. Já o termo Digital consiste em uma marca das equipes
de som locais como, por exemplo, Bloco Velho Digital, uma das principais equipes da CDD.
Em segundo lugar, pelos usos cotidianos (CERTEAU, 1994)13 que a diáspora
negra realizou (e continua, ainda hoje, a realizar) do desenvolvimento destas mesmas
técnicas de reprodução (cf. GILROY, 2001; LES BACK, 1996, 2000). Na esteira de
Gilroy, por exemplo, Les Back (2000) já havia argumentado que, paradoxalmente à
exploração das práticas musicias da diáspora negra como “música de entretenimento”
(ADORNO, 1983, p. 166),
a reprodução mecânica da música através de gravação também permite que
a música negra viaje de maneiras que antes eram impensáveis. Os sons da
música negra circularam dentro da diáspora Africana e em conexões ativadas
entre os povos dispersos através de lugar e de tempo (...). Além disso, a
música negra entrou e foi abraçada e praticada em novos mundos (LES
BACK, 2000, p. 129).
E um bom exemplo destes usos cotidianos que a diáspora negra realiza destas
técnicas de reprodução está justamente na prática de DJ. Dos pioneiros sound
systems jamaicanos da década de 1950 (LES BACK, 1996) às mais diferentes e atuais
equipes de som da cidade do Rio de Janeiro (e, ainda mais especificamente, da
Cidade de Deus), este tocar-ouvir música mediado pelas técnicas de reprodução tem
se afirmado como um “processo de subjetivação” (BHABHA, 2013) bastante
significativo deste amplo e complexo circuito comunicativo afrodiaspórico (cf. VIANNA,
1988; LES BACK, 1996, 2000; ASSEF, 2005; ESSINGER, 2005), possibilitando,
inclusive, “sincronizar significativos elementos de suas vidas culturais e sociais”
(GILROY, 2001, p. 20). Isso, principalmente, com a dispersão da chamada tecnologia
digital (como a que está presente no cotidiano da escola municipal carioca em
questão, conforme descrito anteriormente), onde, conforme nos atenta Essinger,
com um computador mediamente equipado, qualquer um podia se
transformar em produtor – era só ter um programa como o Sound
Forge, para cortar e modificar os trechos musicais que seriam
usados, e um outro como o Acid, para colá-los e, de peça em peça,
fazer uma música. Que, uma vez pronta, podia ser rapidamente
copiada num CD. Com o mesmo computador [ou um celular, incluiria
eu], qualquer um também se transformaria em DJ – em alguns bailes
de 2004, o mouse e o teclado já eram usados para disparar as
músicas de sucesso que iriam estufar as caixas de som. O resultado
13
“A uma produção racionalizada, expansionista além de centralizada, barulhenta e espetacular,
corresponde outra produção, qualificada de consumo: esta é astuciosa, é dispersa, mas ao mesmo tempo
ela se insinua ubiquamente, silenciosa e quase invisível, pois não se faz notar com produtos próprios mas
nas maneiras de empregar os produtos impostos por uma ordem dominante” (CERTEAU, 1994, p. 39).
é que as possibilidades musicais do funk passaram a ser infinitas,
sem limites (ESSINGER, 2005, p. 269 – o grifo é meu).
Em outras palavras, enfim, o que proponho destacar nesta motivação
(seguindo esteira do que sugeriu o próprio Essinger ao afirmar que “as possibilidades
musicais do funk passaram a ser infinitas, sem limites”) consiste justamente na
possibilidade de que a prática de DJ (enquanto um tocar-ouvir afrodiaspórico mediado
pelas técnicas de reprodução musical) não está, de forma alguma, apenas restrita aos
seus limites profissionais – forma como tradicionalmente tem sido abordado (cf.
ASSEF, 2006) –, mas também (e este é o ponto, ou melhor, nó de maior interesse e
complexidade na presente pesquisa) dispersa nas mais diferentes esferas sociais
(como no cotidiano da escola municipal carioca em questão, neste caso específico),
tensionando e reinventando suas próprias possibilidades musicais.
III
A terceira (e última) destas motivações consiste no movimento de
subalternização desta prática de DJ presente no cotidiano da escola municipal carioca
em
questão por
parte de uma
concepção logocêntrica de conhecimento.
Primeiramente, por tratar a referida prática musical (o tocar-ouvir música pediado
pelas técnicas de reprodução digital) como uma ausência, conforme, por exemplo, a
justificativa do Projeto de Lei municipal 145/2013 do vereador Reimont. Segundo o
referido Projeto de Lei, “a aprovação da Lei 11.769/2008 veio atender ao anseio dos
educadores, músicos, artistas, estudantes, professores e cidadãos em geral que
durante muitos anos presenciaram a ausência da música nas escolas” (REIMONT,
2013, p. 2 – o grifo é meu).
Em segundo lugar, por estereotipar o uso de aparelhos celulares no cotidiano
escolar a “um transtorno à ministração de aulas” ou a um “desrespeito à autoridade do
professor e a paciência dos alunos que querem aprender, pois, a utilização de tais
equipamentos, causa a desconcentração e inibe a memorização dos demais alunos”
(TEIXEIRA, 2007, p. 2). Trata-se dos argumentos de outro Projeto de Lei municipal,
1.107/2007, que justificou a promulgação da atual lei 4.734/2008 que determina a
proibição de aparelhos celulares e similares (como ipod, mp3, games e demais
aparelhos eletrônicos) nas salas de aula do município do Rio de Janeiro (RIO DE
JANEIRO, 2008).
Em terceiro lugar, por estereotipar também muito das músicas que são tocadas
nestes mesmos aparelhos (quase sempre os chamados funks proibidão, putaria e
montagem) aos chamados tráfico de dorgas, pornografia e alienação. Creio ser
importante ressaltar que sob esta concepção de conhecimento, estes funks são
reduzidos a categorias classificatórias centradas, basicamente, em uma leitura
bastante imediata de seu conteúdo literário: o primeiro, circunscrevendo os funks que
narram supostas relações do chamado tráfico de drogas; o segundo, circunscrevendo
os funks que narram supostas relações com a chamada pornografia; o terceiro,
circunscrevendo os funks esvaziados deste mesmo conteúdo literário, compostos
simplesmente pela reprodução (supostamente passiva) de fragmentos de sons e
músicas preexistentes. Ainda sob esta concepção de conhecimento, o funk menos
subalternizado seria aquele mais comumente chamado funk-consciente, ou seja, funk
cujo conteúdo literário denuncia determinadas relações de desigualdade e exploração
social (LOPES, 2011).
Em outras palavras, trata-se de um centramento que exclui as complexas e
imbricadas relações que atravessam e mediatizam suas produções e consumos.
Conforme já apontado, enquanto um dos principais fios que tecem o circuito
comunicativo da diáspora negra, a prática de DJ (enquanto um tocar-ouvir música
mediado pelas técnicas de reprodução) posiciona a chamada cultura negra não
apenas circunscrita à dicotomia de seus limites essencialistas ou antiessencialistas,
mas também (e principalmente) como atividade prática (GILROY, 2001)14. Neste
sentido, enfim, o referido processo de subalternização realizado pela concepção
logocêntrica de conhecimento à prática de DJ no referido cotidiano escolar desvela um
caráter racializado, onde, ainda segundo Gilroy,
a textualidade se torna um meio de esvaziar o problema da ação humana, um
meio de especificar a morte (por fragmentação) do sujeito e, na mesma
manobra, entronizar o crítico literário como senhor do domínio da
comunicação humana (GILROY, 2001, p. 166).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Conforme apresentado inicialmente, o presente artigo teve como objetivo
principal discutir as principais motivações de minha pesquisa de doutorado (ainda em
andamento). E diante das motivações brevemente apresentadas nas páginas
anteriores, duas questões me parecem relevantes nesta discussão final. Em primeiro
14
Ainda segundo Gilroy “a música e seus rituais podem ser utilizados para criar um modelo pelo qual a
identidade não pode ser entendida nem como uma essência fixa nem como uma construção vaga e
extremamente contingente a ser reinventada pela vontade e pelo capricho de estetas, simbolistas e
apreciadores de jogos de linguagem. A identidade negra não é meramente uma categoria social e política
a ser utilizada ou abandonada de acordo com a medida na qual a retórica que a apóia e legitima é
persuasiva ou institucionalmente poderosa. Seja o que for que os construcionistas radicais possam dizer,
ela é vivida como um sentido experiencial coerente (embora nem sempre estável) do eu [self]. Embora
muitas vezes sentida como natural e espontânea, ela permanece o resultado da atividade prática:
linguagem, gestos, significações corporais, desejos” (GILROY, 2001, p. 209 – o grufo é meu).
lugar (apesar de não ter sido o objetivo principal deste trabalho), a complexificação
das leis federais 10.639/2003 e 11.769/2008, cujas respectivas obrigatoriedades não
devem estar centradas, exclusivamente, em um conteúdo curricular pré-determinado,
mas também (e principalmente, no meu entendimento) nas mais diferentes práticas
cotidianas presentes na educação escolar. Em segundo lugar, a emersão de uma
pergunta que me parece central para a continuidade da referida pesquisa (sobretudo
quanto ao desenvolvimento dos aspectos teórico-metodológicos), qual seja: de que
forma a prática de DJ (enquanto um dos processos de subjetivação que tecem o
complexo circuito comunicativo da diáspora negra presente no cotidiano da Escola
Municipal Compositor Luiz Gonzaga: com, sem e apesar do professor!) pode tensionar
tanto o estereótipo de violência e pobreza como a concepção logocêntrica de
conhecimento que pairam sobre a comunidade escolar em questão? Eis, enfim, os
próximos desafios da pesquisa.
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