Revista Blecaute

Transcrição

Revista Blecaute
Ano 4 - Nº 11 -Maio de 2012
John Monteiro, estudo de fisionomia humana,
técnica aguada, 2011
Campina Grande (PB) – Ano 4 – Nº11 – Maio de 2012
ISSN: 2238-930X
www.revistablecaute.com.br
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Periodicidade: Trimestral
CAPA:
John Monteiro
Título: Capitão América
21 x 29 cm, aguada de nanquim s/ papel
Mais sobre o artista: www.flickr.com/photos/johnmonteiro
Editores:
Bruno Rafael de Albuquerque Gaudêncio
[email protected] / @BrunoGaudencio
Janailson Macêdo Luiz
[email protected] / @jan_macedo
João Matias de Oliveira Neto
[email protected] / @j_matias
Flaw Mendes (Editor Visual)
[email protected] / @flawmendes
800
R454 Blecaute: uma revista de Literatura e Artes, ano. 4, n. 11 (Maio de 2012) – Campina Grande, 2012.
67 p.: il. color.
ISSN: 2238-930X
Editores: Bruno Rafael de Albuquerque Gaudêncio, Flaudemir S. S. Mendes, Janailson Macêdo Luiz, João Matias de Oliveira Neto.
1. Literatura. 2. Literatura – Ensaios. 3. Literatura - Contos. 4. Literatura – Poemas. I. Título.
21. ed. CDD
Índice
5| Editorial
6| Conto: Viagem de volta – Miguel Sanches Neto (PR)
10| Poemas: faço versos à beira do abismo - Nydia Bonetti (SP)
17| O Santo Ofício – Oiteiro: um livro fundador - Franklin Jorge (RN)
19| Conto: A prima-dona do Estado -
Júlio César Monteiro Martins (ITA/RJ)
21| Poemas: Lenta, Sobre sementes e outros poemas – Pedro Du Bois (SC/RS)
26| Ensaio Fotográfico: Fetiche, por Wagner Pina (PB/PE)
34| Conto: Em memória de Angelina dos Santos – Wander Shirukaya (SP/PB)
37| Tiradas do Baú – Raoni Xavier (PB)
38| Poemas: Saldo incógnito, Geografia das horas e outros poemas Jean Narciso (SP/BA)
42| O Aeropago – O Morcego (II) e Crime e Cochilo Valdênio Freitas (PB)
46| Conto: Para o Senhor K – Luís Roberto Amabile (RS/SP)
48| Estante: O Xale, de Cynthia Ozick - Carolina Sieja Bertin (SP)
Rapunzel e outros poemas da infância, de Jairo Cezar - Janaílson Macêdo (PB)
51| Poemas: Trajectória, Valsinha torta e outras canções - Luis Kiari (RJ/PB)
56| Poesia Imaginada: Solidão - Flaw Mendes (PB)
57| Resenha: O Amor em segundo plano – Lucimar Mutarelli (SP)
60| Conto: O Último adeus de Regininha – Eduardo Ferreira Moura (RJ)
62| Poemas: Ideia, Ateísmo e outros poemas - Joedson Adriano (PB)
Blecaute
Uma Revista de Literatura e Artes
| Editorial
Campina Grande (PB) – Ano 4 – Nº11 – Maio de 2012
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| Conto
VIAGEM DE VOLTA
Por Miguel Sanches Neto
Tudo tinha começado com uma curiosidade. Alguns meses atrás não poderia se imaginar em Nova Iorque , cidade que nunca quisera conhecer. Fora sempre um homem rotineiro,
dedicado ao campo, ao gado de leite, que é um gado mais sedentário do que qualquer outro,
cuidando da lavoura e das atividades na cooperativa. E ali estava ele num hotel em Manhattan,
sem falar inglês, vendo a gravura convencional na parede do quarto onde fica a cabeceira da
cama. Uma paisagem impressionista, de um pintor conhecido, mas que ele não sabe quem é.
Obras de arte nunca tiveram importância para Joost De Geus, que passara seus setenta anos
(bem vividos, ele sempre achara) distante de tudo que tivesse o mínimo parentesco com as
coisas do espírito. Em Carambeí, sua cidade natal, dedicara-se a atividades práticas, novos métodos de silagem, uma variedade exótica de pasto, equipamentos agrícolas. Todo o seu envolvimento com arte, até ali, tinha sido na organização da Casa da Memória do imigrante holandês. Ajudara a buscar nas propriedades vizinhas velhos tratores, plantadeiras, instrumentos de
trabalho, e até doou coisas que pertenceram a seu pai, e tudo isso agora contava a história dos
colonos rústicos que criaram um modelo agrícola de sucesso no interior do Paraná. A Casa da
Memória tinha apenas instrumentos de trabalho, era uma história de luta pela sobrevivência,
de homens que não se dedicavam a nenhum tipo de refinamento, uma memória do trabalho,
do trabalho agrícola. Algumas famílias doaram quadros com paisagens locais – pinheiros,
casas típicas. Isso não chegava a ser arte, era ainda o mundo circundante. Quase nenhum dos
visitantes se interessava por esses quadros, todos queriam ver os implementos de 60 anos atrás
– os holandeses tinham sido os pioneiros na mecanização da lavoura e na industrialização
agrícola.
Mas Joost tinha ido a Nova Iorque para comprar um quadro. Não contara isso a nenhum
de seus conhecidos, não falara nem para as duas filhas, que moravam em casas construídas na
propriedade do pai. Desde a morte da mulher, Joost passara a ter comportamentos senis, na
avaliação das filhas e dos genros. Interessava-se muito pouco pela lavoura e pelo gado, gastando a maior parte do tempo trancado em casa, com as cortinas fechadas, mesmo durante o dia.
A depressão tinha tirado o velho agricultor de suas preocupações cotidianas. Não ia mais ao
barracão de ordenha acompanhar o trabalho dos empregados, dos brasileiros, como ele gostava
de chamá-los pejorativamente. Quando disse que iria passar uns dias em Nova Iorque , mesmo
diante do inusitado deste projeto, as filhas ficaram contentes e trataram de incentivar. Tinham
uma única preocupação: o pai vendera uma de suas propriedades mais distantes, por um valor
abaixo do que ela valia, estavam numa época ruim para se desfazer de terras. Mas antes disso,
ele dividiu o resto de seus bens, que valiam duas ou três vezes mais do que a fazenda negociada,
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deixando claro que se preparava para o chamado. As filhas apenas estranhavam que o pai tão
econômico subitamente precisasse de tanto dinheiro. Talvez tivesse uma amante e desejasse
garantir o futuro dela. Mas o pai sempre fora ocupado demais com a lavoura e o gado para ter
amante, e tudo indicava que amava mesmo a esposa, apesar da forma rude de tratá-la. E este
sofrimento todo depois da morte, o isolamento na casa e o desinteresse pela vida indicavam
que, sim, ele sentia muito a falta da mulher; e, num homem rústico como ele, isso podia ser
sintoma de um amor nunca revelado de outra forma. Talvez ele fosse apenas guardar o dinheiro para segurança pessoal, viver em paz os seus derradeiros dias.
Agora a idéia da viagem talvez explicasse tudo; ele queria viajar, aproveitar o tempo perdido na solidão da roça. Não quis uma excursão. Fez uma viagem por conta. A agência de turismo arranjou passagens, hotel, um guia. Ficaria dez dias, e agora estava ali, sentado na poltrona,
sem curiosidade para ver tevê ou olhar pela janela do quarto. Deixava apenas a luz do abajur
acesa, fixando-se nas paredes do quarto, onde a paisagem impressionista imperava, falsamente.
Sabia o que desejava ver naquela parede. Um quadro do pintor expressionista holandês Kees
van Dongen, que seria leiloado naquele dia na Sotheby’s. Para isso tinha feito sua primeira, e
provavelmente última, viagem internacional.
Tudo começara numa ida ao shopping de Ponta Grossa. A esposa já estava doente, e queria se divertir um pouco. Escolheram um filme no cinema, antes passariam por uma loja, ela
iria comprar presente para uma das netas. Era começo de noite, a mulher escolhia um relógio
e ele resolveu ir ao banheiro. No corredor, uma movimentação não muito grande, havia um coquetel, o prefeito discursava, ele se aproximou e viu dona Lily Marinho, que abria a exposição
de sua coleção particular de arte. Ele se esqueceu do banheiro, entrou no meio das pessoas e se
aproximou bastante de Lily, que ficara o tempo todo sentada ao lado do microfone. Na hora de
falar, ela se ergueu lentamente e começou a agradecer a recepção num português com sotaque
afrancesado. Joost se apaixonou na hora por dona Lily. Ela e Roberto Marinho tinham vivido
um amor maduro, e, mesmo perto dos 90 anos, depois da morte do segundo marido, ela tinha
o poder de encantar. Durante todo o tempo em que ela esteve no salão, Joost a acompanhou.
Quando ela se retirou, ele ainda ficou mais um momento, encantando-se com o retrato que
Kees van Dongen tinha feito dela em 1946. Era uma noite de festa em Paris, ela estava com
um vestido preto, decotado, mostrando a pele muito alva do pescoço e do peito, um retrato
respeitoso, mas que transpirava um ardor incontida. Kees deve ter se apaixonado por Lily, já
casada com Horácio de Carvalho, seu primeiro marido, que só consentira que o pintor fizesse
o retrato com a condição de poder comprá-lo. O pintor retratou a mulher por quem provavelmente se apaixonara, uma paixão impossível fora da arte, e foi obrigado a vendê-la para aquele
que já tinha a seu lado a mulher em carne e osso. O pintor aceitou a imposição pelo prazer
de pintar Lily, de transferir a imagem dela para uma linguagem de traços e cores e texturas.
Sessenta anos depois, aquele quadro ainda comunicava este amor impossível.
Todo amor é impossível, pensou Joost, que não tinha o hábito de pensar nessas coisas. 7
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Até ali sua vida tinha sido uma mentira. Nunca fora feliz. Não sabia para que tinha vindo ao
mundo, com certeza não era para criar gado leiteiro, plantar soja, ajudar a administrar uma
cooperativa agrícola. Talvez tenha sido para amar Lily Marinho. Amá-la a distância.
Quando chegou ao estacionamento, a família estava toda reunida em torno de seu carro.
Uma das filhas viera em socorro, haviam procurado o fugitivo em todo o shopping, mas ninguém o imaginara na exposição. Joost não deu explicações e nunca mais se esqueceu do retrato,
Lily em roupa de baile em Paris. Comprou as memórias dela e ficou sabendo um pouco sobre
a grande dama. Quando sua mulher morreu, não pôde deixar de pensar que agora estava livre
para viver aquele novo amor.
Tinha lido em algum lugar que o Dr. Roberto dissera que aquela Lily não era a sua. Joost
podia dizer que era a Lily dele. Não tivera coragem de abordá-la na abertura da exposição,
nem tentara um contato no Rio, uma mulher assim tão sofisticada não teria nem interesse
sociológico em conhecer um holandês rústico. Mas surgira a chance de tê-la a seu lado para o
resto da vida, uma vida que seria curta, talvez mais uns 10 anos, talvez menos. O importante
era tentar tudo de novo. Tinha vivido sete décadas na expectativa de encontrar a mulher que
lhe daria vida, pois ainda não tinha vivido, apenas durado para conhecer o amor.
Não procurava Lily nos noticiários, mas sempre se encontrava com ela em programas de
tevê, em matérias nos jornais. Lia com o coração disparado as notícias, via quase sem fôlego
suas imagens na tevê de sua casa, na Avenida dos Pioneiros, sentindo o cheiro opressor das
granjas de porco, dos currais, da fábrica de salsicha. Seu amor não combinava com aquela paisagem, seu amor queria uma noite de baile em Paris. Nova Iorque era apenas o caminho para
Paris.
Foi quando leu no jornal que Dona Lily iria leiloar seus bens – jóias, pratarias, obras de
arte e fazendas. A reportagem revelava uma pessoa forte. Para evitar as disputas de herdeiros,
ela não deixaria bens, mas dinheiro vivo. Declarou que talvez vivesse mais três anos, e isso foi
dito sem mágoa nem medo, como uma coisa boa. Viveria mais três anos, e escolhera passar
este tempo na casa do Cosme Velho, onde fora feliz com o segundo marido. Joost gostaria de
passar os anos que lhe restavam em Paris, mas não saberia viver num país distante, dentro de
uma língua que não conhecia, e a sua Paris era a de 1946. Resolveu então comprar o retrato de
Lily.
Para ele, seria mais natural comprar uma de suas fazendas, talvez alguns de seus móveis,
ou mesmo suas pratas, mas queria o mais difícil. O preço era exagerado. Lance inicial de US$
700 mil. Tinha dinheiro aplicado, mas resolveu vender uma de suas fazendas, como garantia.
Usou as mesmas palavras de Lily na entrevista que ficara gravada em sua memória: “Não preciso mais dessas coisas. Não quero me aborrecer administrando fazendas”. E Joost se desfez de
todas, distribuindo aos filhos as que não foram vendidas.
Viajou para Nova Iorque, fez os preparativos necessários para o leilão, e está agora, sem
ter nem passeado pela cidade, esperando a vinda do intérprete para que possam ir à Sotheby’s,
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com medo de que aquela mulher não se adapte aos campos de Carambeí. Quando o telefone
toca, ele sabe quem chegou. Arruma-se na frente do espelho, comprou roupas caras para a
ocasião, acerta o nó da gravata, olha uma vez ainda para a paisagem impressionista. Nada se
compara ao retrato. No pescoço de Lily há um colar, nos seus cabelos negros uma pluma, o
céu é violeta, seria a própria luz da cidade modificando a cor da noite, e ela olha para Joost do
fundo da tela, uma tela vista uma única vez, mas que em breve retornará a seu dono. Este é o
mais famoso quadro de Kees van Dongen porque ele pintou não uma modelo, mas o amor.
Quando fechou a porta para tomar o elevador até o saguão e em seguida um táxi para
se reencontrar enfim com a sua Lily, Joost sabia que estava começando uma longa viagem de
volta a Paris.*
*MIGUEL SANCHES NETO (PARANÁ). Escritor, Crítico Literário e Professor. Doutor em Literatura pela Uni-
versidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Professor da Universidade Estadual de Ponta Grossa (UFPG). É autor
de dezenas de livros, entre romances, coletâneas de crônicas, ensaios e contos. Destaque para Chove sobre Minha Infância
(Romance, Record, 2000), Herdando uma Biblioteca (Crônicas, Record, 2004) e Venho de um País Obscuro (Poemas, Record,
2005), entre outros. É um dos principais nomes da literatura brasileira contemporânea.
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| Poemas
DE NYDIA BONETTI
Ifaço versos à beira do abismo
vento a mais me leva
vento ameno me sopra histórias
vindas do precipício
mormaço me traz de volta
ao meu silêncio
sem asas
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IIvozes me chamam
cantos
segredados do centro
da terra
veios me cercam
rios
raízes me abraçam
tramas
colo de mãe
rizomas / acalantos
IIIrebelados bichos de dentro de mim
me arranham
nenhum deles sou eu
hospedeiro
animal estranho
engolidor de luas - auroras
e campos de flores
predador de sóis poentes
seres que voam
onde? os outros da minha espécie
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IVa solidão é fera
já não domesticável
resta contê-la
eu, com meus versos
a cerco
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Vdesfigurado espelho
que já não
me reflete
(e a outra revela)
recôndita figura
sem sorrir
por se ver sem existir
VIeis que se recolhe
à sua infinita pequenez
e se cala
(é tempo de ausências
e silêncios)
ostra que se lança
no mar
em busca
da casa perdida
afinal — a pérola
era mesmo só fantasia
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VIIesquecido de si, seu corpo o suporta
zumbi às avessas
é pura alma — e o poema não se faz
pois que não se sustenta
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VIIIfranzina, a menina me olha e sorri
se ela soubesse
da vida um terço
ainda assim
sorriria?
mãos tão pequenas
para contas tão ásperas
no interminável rosário dos dias
IXhá um lugar
onde as lágrimas se encontram
vindas da pedra
dos olhos dos bichos
de dentro da terra
e formam — o que chamamos
mar
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Xmas para onde foi a menina que fui?
tenho dela apenas um retrato
desbotado
um sorriso não decifrado
e os olhos longe:- que ainda não
se sabiam
míopes
*
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*NYDIA BONETTI (SÃO PAULO) - Poeta. Publica no blog Longitudes: http://nydiabonetti.blogspot.com/. Tem
trabalhos publicados na Revista Zunái, Portal Cronópios, Germina Literatura e Artes, Eutomia: Revista de Literatura e
Linguística e outros espaços literários e culturais. Deve lançar seu primeiro livro ainda este ano.
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| O Santo Ofício
OITEIRO: UM LIVRO FUNDADOR
Por Franklin Jorge
“Oiteiro” – de subtítulo “Memórias de
uma sinhá moça” -, livro publicado em 1958,
um ano antes da morte da autora [1959],
é, num certo sentido, um divisor de águas:
antes de Maria Madalena Antunes Pereira,
exceção de Nísia Floresta, nenhuma outra
mulher escrevera no Rio Grande do Norte
obra em prosa dessa magnitude e singularidade. É uma precursora.
Sem ser de fato uma estilista e ainda afetada
pelo espírito da época, Madalena Antunes,
oriunda da burguesia rural do Ceará-Mirim, produziu uma obra em seu gênero, única, sob dois aspectos: 1] inaugura entre nós uma
tradição literária que singulariza sua terra-berço, onde nasceu em 1880; e 2] faz o contraponto
literário e etnográfico do livro de Joaquim Nabuco [1849/1910]. Oiteiro, engenho de açúcar e
alambique, no extenso e verde vale primordial de sua infância, está para a nossa literatura como
Massangana para a de Pernambuco.
Em “Minha Formação” [1900], romance da sua própria vida - uma espécie de Bildungsroman -, Nabuco seria ele mesmo o herói, ao refazer, sob o concurso da memória, os anos
marcantes e inesquecíveis da sua infância. Não há, no livro de Madalena Antunes, nenhum
herói em particular, a não ser os poetas que ela cita amiudadamente e que pontuam sua obra e
representam, para a autora de “Oiteiro...”, aquele papel que lhes foi prefigurado por Shelley, de
legisladores do mundo.
Já “O Leopardo” [1958] tem o ocioso e analítico Príncipe de Salina, inspirado no avo de
Giuseppe Tomasi di Lampedusa [1896/1957], o grande proustiano italiano de Palermo. E, se
podemos admitir heróis em “Oiteiro”, estes seriam o povo humilde e serviçal que Madalena
Antunes decanta com apreciável ternura e emoção incontida, quando escreve, por exemplo,
sobre suas escravas Patica, já de “ventre livre”, grande tecedora de fábulas, uma mulher alta,
corpulenta e boa, que lhe contava estórias encantadas; e Tonha, uma menina ingênua, quase da
mesma idade da “sinhazinha”, sua companheira de inesquecíveis brincadeiras. Sobre Trajano,
Seu Cristino, o Tenente Onofre, seu avo materno e o Boca de Uruá, o último dos acendedores
de lampeões de rua, que desapareceu do Ceará-Mirim quando do advento da locomotiva e
dos trens de passageiros e cargas, para ele, uma invenção do diabo. Nunca mais lhe souberam o
paradeiro desde que a revolução industrial apresentou-se, como sempre retardatariamente, ao
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povo do Ceará-Mirim...
Lendo-a, sinto a sideração de Lampedusa, autor que Madalena Antunes certamente não
terá lido. Ambos escreveram sobre mundos desaparecidos que constituem misteriosamente a
pátria mesma da infância, compreendida com emoção e inteligência.
Cativa-nos, o livro dessa notável escritora do Ceará-Mirim, pela palavra fluente e a agilidade do pensamento que se desdobra em quadros sucessivos da sua mocidade numerosa, cheia
de vida, na casa dos seus pais; como interna em colégio de freiras no Recife que lhe fornece uma
espantosa galeria de tipos humanos, como “a Poliglota”, sobrinha de um bispo; a Tequinha; “a
Cearense”, pois como o irmão - o grande satirista Juvenal Antunes, autor de um famosíssimo
“Elogio da Preguiça” -, tem Madalena também extraordinário talento para a caricatura; como
observadora arguta da vida doméstica e cotidiana numa sociedade rural escravocrata. Como
escritora, Madalena tem uma notável acuidade psicológica que singulariza o seu relato de um
mundo perdido, reencontrado pela literatura.
Madalena embebe as páginas do seu livro com aquele “leite da ternura humana”, como
diria Shakespeare; num livro que traduz com nitidez e fluência o “romance de formação” de
uma brasileira nascida em 1880, no Engenho Oiteiro, no Vale do Ceará-Mirim, contemporânea da abolição da escravatura e da agônica monarquia. É a única “sinhá moça” a usar a
memória para a reconstituição de uma época histórica, a partir do seu microcosmo existencial.
Suas memórias transcendem a geografia do vale uberoso, documentam e perenizam fatos e
costumes então vigentes.
Como Lampedusa, Madalena não teve nenhuma pressa de escrever em livro suas lembranças da mocidade, e o faz após esmerilhar e escandir cada fato e sentença; cada pormenor
de vida que a empolga; cada protagonista ou figurante desse pequeno mundo erigido pela
memória. Lampedusa conta-nos a história da transição da aristocracia para o populismo; Madalena, para uma época que redimensionou o país. Madalena e Lampedusa viveram muito e
escreveram pouco. Porém o fizeram, na maturidade, numa comunicação intensa e lúcida.
Madalena não conheceu o mítico fausto das jóias, das sedas, dos carros de luxo que percorriam as ruas e estradas do Ceará-Mirim que viram seus avós. Nem os que brilharam no
Segundo Império, com elevados cargos e política elevada.
(Fragmento do livro “Leituras Potiguares” v. 2-3 [inédito])*
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*FRANKLIN JORGE (RIO GRANDE DO NORTE). Escritor e jornalista. Publicou: Ficções, Fricções, Africções (Mares
do Sul, 1998), O Spleen de Natal (Editora da UFRN, 2001), entre outros. Vencedor do Prêmio Luis Câmara Cascudo em
1998.
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| Conto
A PRIMA-DONA DO ESTADO
Por Julio Cesar Monteiro Martins
A grande praça defronte ao Palácio da Justiça estava lotada de camelôs, operários em
trânsito, militantes políticos que distribuiam panfletos e bandos de crianças de rua. Era uma
tarde de mormaço, e eu acabara de enfrentar uma fila de duas horas numa agência bancária
para descontar um cheque de pequeno valor, com o qual eu pretendia atravessar a semana.
Comprei um cachorro-quente numa barraquinha da praça e, enquanto comia, observava o
fluxo contínuo de desespero, ladroagem, sexualidade e revolta. Um pandemônio de sustos previsíveis e traumas coletivos.
Uma mulher negra e miúda, de corpo bem torneado, mas vestida como uma mendiga,
subiu num banco da praça e começou a tirar a roupa. Respondendo aos assobios dos pivetes,
ela gritava, num tom propositalmente vulgar, quase teatral, que “tinha o direito de vender o
que era dela”, enquanto a sua calcinha de elástico frouxo caía sozinha na altura dos joelhos.
Ela rebolava e passava a mão entre as coxas, entre os pelos, rindo e cantando uma canção que
eu jamais escutara antes, que dizia: “é com isto aqui que eu vou colar no grandão”. A cena me
despertou nojo, horror, e uma incontrolável excitação sexual, que fazia tremer as minhas pernas
e as minhas mãos. Fiquei preocupado que alguém percebesse o meu tesão pela figura sórdida e
pensei em me afastar dalí quando notei que as mãos dos outros homens à minha volta também
tremiam pelas mesmas razões.
Logo em seguida um grande tumulto tomou conta da praça. A multidão estava sendo
rasgada por uma tropa de elite do Exército de Ocupação, com o Coronel Maddox à frente, de
pé num carro de combate, com o uniforme de camuflagem, o rosto lambuzado de negro e o
capacete ornado por farrapos que imitavam galhos e folhas. A tropa abria passagem para um
cortejo fúnebre. Alguma autoridade nomeada pelos invasores havia sido assassinada por uma
bomba da resistência organizada. O Estado, ferido, investia contra as massas, e nos ordenava
que sentássemos no chão com as mãos na cabeça, sob a mira das metralhadoras. Enquanto
isso, o Estado desfilava pela avenida nos seus melhores paramentos, afirmando de público a sua
solidez e a sua vitalidade diante do povo submetido, como uma escola-de-samba às avessas.
O Cardeal vinha logo atrás das tropas, com um séquito de bispos com as suas mitras.
Eram seguidos pelos comandantes das três Forças Armadas, indicados pelo Coronel Maddox,
com seus uniformes verde, branco e azul cobertos de medalhas e galões. Atrás deles, uma fila
de limusines pretas com os vidros escuros guardavam os políticos e os empresários. A Polícia
Militar, usando carros com alto-falantes, gritava ameaçadoramente para a massa, com promessas de vingança do tipo: “nós vamos esmagar todos os implicados no atentado, um por um, até
o último, para restabelecer a paz e a ordem no País”.
Todos queriam abandonar aquela praça e sumir dalí, mas quem tentasse se levantar seria imediatamente fuzilado. Os carros de combate distribuiram-se em pontos estratégicos e
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o Coronel Maddox esperava que alguém lhe desse um pretexto para justificar um massacre
exemplar. Ninguém poderia prever quanto tempo demoraria aquela demonstração do aparato
do Estado. Eu estava exausto, e as costas me doíam muito naquela posição. Foi quando ouví
atrás de mim a voz da mulher negra e virei a cabeça. Ela ainda estava de pé no banco, com a
calcinha arriada, passando a mão nos pentelhos e cantando: “é com isto aqui que eu colar no
grandão”. Ela era a única pessoa de pé em toda a multidão, e rebolava sensualmente como se
nada estivesse acontecendo. “Vai ser fuzilada agora”, pensei. Mas os soldados apenas a observavam, e nem ao menos ordenaram que descesse do banco ou que parasse de cantar.
O caixão da autoridade vitimada passou sobre um carro-de-combate, coberto pela bandeira nacional e pela bandeira do país invasor. O Coronel Maddox perfilou-se em continência
e todos os outros militares o imitaram. A negra apertava os seios, como que para tirar leite,
rebolava e apontava para os soldados estrangeiros quando cantava o trecho que dizia: “eu vou
colar no grandão”. Alguns soldados riam e zombavam dos colegas de tropa, como que insinuando “é a você que ela vai agarrar depois”.
Aos poucos percebi que o Estado não apenas tolerava a exibição da mulher louca, mas na
verdade nos oferecia aquele espetáculo como um complemento à exibição ostensiva de força
das instituições. Ela era a nossa porta-voz, a nossa única voz. Ela nos representava, e era nela
que nós deveríamos nos mirar para compreender o que havíamos nos tornado. O Coronel
Maddox já a havia percebido, e ria também. Os policiais locais apenas sorriam constrangidos.
Eu virei a cabeça para trás novamente, e a mulher estava de quatro, passando os dedos entre as
nádegas, cantando cada vez mais alto o seu refrão. Eu me controlei para não chorar de raiva.
Ninguém alí poderia fazê-la calar-se. Ela estava sendo sagrada a nossa rainha. A rainha daqueles homens sentados, imobilizados. Ela estava sendo coroada pelo nosso silêncio e pelas risadas
dos estrangeiros.
A noite descia sobre a praça. O cortejo parecia interminável. O Coronel Maddox saltou
do carro e caminhou entre a multidão inerte, passando em revista os vencidos, batendo com
um rebenque de couro na calça do uniforme. Ele andava em direção à mulher, que continuava a sua dança pornográfica e demente. Os bispos a olhavam com reprovação, mas ninguém
ousaria manifestar-se. O Coronel parou diante dela, rindo, e entregou-lhe o seu rebenque. Ela
passou o rebenque por entre as coxas e o esfregou nos pelos pubianos para frente e para trás,
excitadíssima, enquanto repetia: “é com isto aqui que eu vou colar no grandão”. O Coronel
Maddox deu uma gargalhada e bateu palmas, gritando: “Bravo! Bravo!” E toda a tropa repetiu
o seu gesto. Eles nos olhavam como que tentando adivinhar quem seria o próximo a subir no
banco. Eu fiquei vermelho de ódio e de vergonha. Mas não poderia prever então que com o
tempo a resistência seria completamente aniquilada e que todos nós subiríamos naquele banco
e cantaríamos mais ou menos a mesma música.*
20
*JULIO CESAR MONTEIRO MARTINS (ITÁLIA/RIO DE JANEIRO) – Escritor. Publicou dezenas de livros,
entre coletâneas de contos e romances, no Brasil e na Itália, país onde reside há vários anos, destaque para A Oeste de Nada
(Contos, Civilização Brasileira, 1981), Madrelingua (Romance, Editora Besa, 2005) e L’Amore Scritto (Ficção, Editora
Besa, 2007).
Blecaute
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| Poemas
DE PEDRO DU BOIS
LENTA
A isolada
lenta
lerda nuvem navega
águas rasas
atraca em cais concretado
ao amor da tarde:
o oceano depositado
ao presente aterrado
na preponderância
da velocidade.
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SOBRE SEMENTES
Sobre a semente ressecada
dizem da esterilidade
a desgraça da finalização
em solidão e silêncio
o grito áspero da espera
futuramente isolada
(a semente resseca a terra
onde depositada).
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POEMAS
Reconstruo o poema
na diversidade formal.
Reformo palavras
reparo arestas
reconforto.
Poemas trafegam sensibilidades
em distâncias abstraídas ao absurdo.
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AÇÕES
Repilo (ações) a música heróica
do século antepassado (história).
Meu cérebro sustenta notas
disciplinadas em movimentos
(estudos) acordados em sentimentos.
O guerreiro ressurgente invade
o homem sentado na platéia
escurecida (tormento) em lamentos.
O ideal atravessado (arremesso,
arremedo) ao tempo desproporcional:
ignoro o conhecimento
estruturado no gesto
descompassado do maestro
(estranhado).
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SONS
Observo o estado primário
do animal secundado
em deuses terceirizados.
Desvelo o milagre
em cartas escondidas nas margens
encompridadas dos escritos.
Desnudo na música o elogio
no som interiorizado ao escrúpulo
de se saber eternizado.
*
Atônito, olho o futuro
atravessado ao vento: tenho
no som o ruído aprisionado.
* PEDRO DU BOIS (SANTA CATARINA/ RIO GRANDE DO SUL). Poeta e Contista. Vencedor do 4º Prêmio Literário Livraria Asabeça, Poesia, com o livro Os Objetos e as Coisas. Tem publicado pela Corpos Editora, Portugal, A Criação
Estética, entre outros. Blog: http://pedrodubois.blogspot.com
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| Ensaio Fotográfico: “Fetiche”
Fetiche
Por Wagner Pina *
Fetiche! Que imagens podem surgir a partir desta palavra? Os
‘limites’ que nossa mente alcançaria em lampejos turvos, rápidos, nítidos ou não... seriam muitos. Esse universo foi o desafio que o fotógrafo
Wagner Pina se propôs a despir com o ensaio intitulado: “Fetiche!”. Ao
abordar essa questão, ele nos revela e nos priva. Se por um lado toca-se
no assunto, mostra em imagens, que passam longe do pornográfico tão
explorado, e desvela a poesia viril do erotismo, por outro lado nos priva
ao mostrar ‘pouco’, ou, só o suficiente para excitar a imaginação, e essa se
encarrega de ‘despausar’ a cena retratada. Como um aguçador de beleza,
Pina nos propõe nuances de momentos íntimos; fragmentos de cenas
‘privadas’; excitação do “proibido”; e mais, provocações levemente coloridas em um universo quase onírico.
As fotografias selecionadas para essa mostra concentram diversos fetiches, mas é apenas uma parte da coleção completa. A pedido da
Blecaute, o fotógrafo separou alguns trechos de poemas eróticos para
ilustrar as imagens. Boa leitura... boa apreciação... solte a imaginação e
deleite-se!
Flaw Mendes
Artista plástico e editor visual da revista
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“Se pois guardar devemos castidade,
Para que nos deu Deus porras leiteiras,
Senão para foder com liberdade?”
Bocage – Sonetos
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“O orgasmo chega finalmente quando ele fixa o olhar
nas nuvens esbranquiçadas e incertas, e é voluptuoso até a dor,
ou melhor, é uma queimação que se torna volúpia.”
Alberto Moravia – A Mulher da Capa Preta
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“Um inefável quebrando afrouxou-lhe a energia
e destendia-lhe os músculos com
uma embriaguez de flores traiçoeiras”
Aluísio Azevedo – O Cortiço
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“A volúpia, as palavras e a respiração
serão os instrumentos
com que fabricarás sua ilusão.
Impede-me o pudor de prosseguir”
Ovídio - Arte de Amar
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“Caralho sem tensão é fruta chocha,
sem gosto nem cherume,
linguiça com bolor, banana podre,
é lampião sem lume
teta que não dá leite,
balão sem gás, candeia sem azeite”
Bernardo Guimarães – O Elixir do Pajé
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“Eu tinha de saber como olhar para ela,
como tocá-la, como sentir o peso dos seus seios,
como passar a mão pelas suas nádegas.”
Henry Miller – O mundo do Sexo
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“Enfim, com a tenra textura da passagem cedendo diante de tamanho rasgo e dilaceramento, ele estava dentro de mim”
John Cleland – Memórias de uma Mulher de Prazer
*
** WAGNER PINA (PERNAMBUCO/PARAÍBA). Formado em Letras e Jornalismo ambos pela UEPB, trabalha como
fotógrafo de moda, publicidade e still. Suas fotografias já foram publicadas na Folha de São de Paulo, Jornal Nacional, na
Revista eletrônica Woof Magazine, no site de Moda Homotography etc. Mais informações: www.wagnerpina.com
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| Conto
EM MEMÓRIA DE ANGELINA DOS SANTOS
Por Wander Shirukaya
de tanto morrer antes
foice veloz no pescoço
de vez
Vamberto Spinelli Júnior, “.para sui e cida”.
O homem esperava ansioso do lado de fora do banheiro. Volto, já, não demoro, meu
amor. Como um cavalheiro aguardava, abrindo um champanhe. Angelina se olhava no espelho, observava com atenção. Os sapatinhos de cristal, caríssimos; as meias finas delineando as
pernas grossas e tenras, marcas preciosas de seus vinte e dois anos; o vestido branco cravejado
de pequenos pontinhos cintilantes, o colar mergulhado no busto com uma discreta esmeralda
em seu centro; as luvas tão alvas quanto o vestido, trêmulas por causa das mãos; o rosto com
maquiagem impecável, leve sombra azulada adornando os olhos cor de mar, que brilhavam
mais que a tiara de brilhantes à testa, como querendo se lavar, lavar-se na pequena gota de
lágrima que escorria, indo parar perdida entre as rosas do buquê. Parabéns, Angelina.
Por sinal, o banheiro parecia ter sido criado para coadunar-se à beleza de Angelina. Muito espaçoso, mas bem sabia ela que, por maior que fosse este, não conteria seus sentimentos
querendo explodir. Retocava a maquiagem com o dedo mínimo. Lágrima chata. O som de
piano percorre o banheiro, vem de fora. Ele pusera música clássica para a ocasião. Ploc! Esse
estalo deve ser outro champanhe sendo aberto... Ela sorriu ao ouvir-lhe a voz. Já está pronta,
meu anjo? Calma, meu amor! Estou indo, disse ela sorrindo para si ao espelho, atenta para a
beleza, atenta para as pérolas, atenta para seu belo sorriso.
Belo?
A parábola formada pelo belo sorriso esvaneceu-se aos poucos, sobrou uma linha reta
e sem muita expressão. As duas mãos forçaram o buquê. Ai! Sentiu um espinho lhe fisgar o
dedo, tal qual um sinal. Olhou-se ainda mais pelo espelho. Que é que eu estou fazendo aqui?
Deu alguns passos para trás, quase tropeçou em sua grinalda. Querida! Aconteceu alguma
coisa? Eu... já estou indo, meu amor! Deparando-se com o fato de não poder mais se esconder,
pensou em atirar o buquê no vaso; acabou apenas por colocá-lo próximo à banheira, com delicadeza. Abriu a porta, arqueando antes os cantos dos lábios para cima.
Seu homem admirou-se ao ver a bela vindo do corredor em direção ao quarto. Os olhos
dela pareciam buscar algo mais distante, atravessando tudo, cortando as caprichadas cortinas
de seda azulada que tremulavam leves com o pouco vento que vinha da janela entreaberta. Mal
viam os quadros de muito bom gosto na parede, os tapetes felpudos que a conduziam para a
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Blecaute
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cama que mais parecia uma intensa reunião de plumas formando um perfeito ninho de amor,
em que se encontrava o homem de posse de duas taças de champanhe. Seus ouvidos não buscavam as melodias que retalhavam o quarto, insinuantes e sedutoras por excelência. Ela não
estava ali, tanto que parou pelo caminho. O coração pulsando no seio. Tinha mesmo que ser
assim?
Angelina pensava e repensava em seu mundo aquilo tudo, a emoção, o sentimento, o luxo.
Eu não mereço tudo isso, meu Deus. Mais uma vez a lágrima foge, como quem diz para que
fugisse. O que estou fazendo da minha vida? E respirava fundo e expirava e pensava e não sabia
que ordem seguia para estas ações que se costuravam no tremer dos pés, no coração que não
queria, na razão que a retalhava fria e severa na promessa de um final feliz. Por um final feliz,
é, eu tenho que fazer isso. Os pensamentos de Angelina enfim a conduziram ao seu homem,
senhor bem apanhado, elegante, um primor, cavalheiro por excelência. Isso tudo é alegria, é?
A lágrima que viu não conseguia responder, mais um meigo sorriso se seguiu na tentativa. Um
gole da bebida, a mão envolvendo a cintura, o beijo quente na nuca. Vem, meu amor... Tenho
que fazer isso. Por ele, meu filho, apenas.
O sorriso de Angelina se portava em idas e vindas, de acordo com o olhar do homem
que tirava o smoking. Agarrava forte sua cintura, deslizava a mão por suas pernas. O sussurro
era encoberto pelo som do piano; para ela mais parecia o sussurro um grito. Ele se sentia mais
forte ao perceber o gemer. Angelina puxou as luvas, cravou as unhas no corpo dele, apertava
forte. Vem, meu amor! As taças delicadamente postas no criado-mudo que não falava, mas
se deleitava com tamanha beleza na cena. A cena arde, o vestido ferve, os lábios tremem. Ela
chama, nem se agüenta em pé, ele atende rompendo-lhe o vestido.
O seio à mostra, o corpo arrepiado do frio do beijo, do frio da janela querendo conter o
fervor. Ele a penetrou, um cavalheiro até nisto, seguiu-se o gemido de Angelina, um dos mais
carregados de lágrima que já se ouvira. Ao fim do ato, ambos nus entre os lençóis com bordados de anjo, Angelina deitada com a cabeça no ombro dele, ainda ofegante. Meu, Deus, o que
estou fazendo aqui? E os pensamentos de Angelina vertiam lágrimas mornas que chamaram
a atenção. Por que o choro? Nada, meu amor! Estou feliz! Relaxe. O sorriso sem sal ia e voltava durante a conversa. Ele já pegava no sono quando percebeu o corte da música, ela de pé,
desligando. Vou ao banheiro, já volto. E no banheiro se olhou novamente ao espelho, não se
reconhecia, seminua, os olhos borrados do azul da maquiagem, das lágrimas, do suor. Uma lágrima correu novamente, implorando para ser morta. Me mate, Angelina, me mate, me mate!
— Aaaah!
O grito ecoou forte na noite, dentro e fora do imenso banheiro, o sangue nas mãos, obra
do golpe direto no espelho, os cacos de vidro escorrendo como lágrimas. Ele empurra a porta
que estava entreaberta, ela chorando sentada no vaso. Por ele, meu Deus, por ele. Esses pensamentos a fizeram engolir o choro, sorrir novamente para seu homem. Desculpa, meu amor!
Vem cá.
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Blecaute
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O homem a chamou de volta para cama, pegou as calças para se vestir. Você não está
bem. Não gostou? Ela mais muda, sorrindo ainda sem graça, enrolando uma tira de pano na
mão. Kelly, você sabe que isso não estava previsto, não sabe? Angelina fez que sim, enquanto
punha a saia e uma blusa. Não se preocupe, tá? Gostei tanto de você que não vou descontar os
estragos. Ele abriu a carteira, ela recolheu o valor em sua bolsa. Quer que te deixe em algum
lugar? Me deixa na Avenida de Todos os Santos, perto da ponte. Por favor, desculpa, senhor.
Tudo bem, meu anjo.
*
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* WANDER SHIRUKAYA (SÃO PAULO / PARAÍBA) – Escritor. Publicou: Balelas (Contos, Mutuus, 2011). Mestrando em Letras na Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Membro do Núcleo Literário Caixa Baixa.
Blecaute
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| Tiradas do Baú
*
Por Raoni Xavier
* RAONI XAVIER (PARAÍBA) Ilustrador, quadrinista e contista. Seus blogs: www.pipadepirata.blogspot.com, www.
cuscuzzumbi.blogspot.com e www.raonixavier.carbonmade.com
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| Poemas
DE JEAN NARCISO
SALDO INCÓGNITO
Basta-nos o decréscimo de dias
de um saldo incógnito
para que passar metade
de uma vida
pensando noutra vida
alimentando-se como um glutão na confeitaria
da palavra
conclamo botar o sobrenatural nas forças dos braços
ir avante
ciente de que não estamos distante
da magnitude da flor e do cacto
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GEOGRAFIA DAS HORAS
Tudo que está fora da epiderme
é estrangeiro
as necessidades são diluídas
na piscina presente e futura
piscina erguida dia a dia
na geografia das horas
as céleres placas tectônicas deslocam o centro
de nossos pés no universo
mexendo em nosso familiar pavimento
tornando alpes,
num piscar de olhos,
em relevos
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Blecaute
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CORPO VIVIDO
O corpo vive na epiderme construída com a aridez das horas
Já passaram muitas horas
estou quase vinte anos mais idoso
do que o infante que mordia tímido as palavras
para não tirar o esmalte materno dos dentes
Nada permanece em mim
que pode ser revisto e retomado
a pele das horas está anciã
as antigas meninas do jardim da infância
doravante gargalham erupção que vem debaixo
e faz espumar os seus belos e carnudos lábios.
Nada absolutamente nada
retorna inteiro ao corpo
a sobra das horas vividas
é espólio
guardada para ser saqueada
a qualquer instante na memória
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SONS SURDOS
Amortecer o silêncio
com peso de música
dó ré mi fá só lá si
unidas em roda
sopram sonoridades
na boca apática
*
o silêncio
contrito ávido austero
assiste o engate imprevisto
do corpo ao jardim promíscuo
folhas de ipê amarelo retumbam
em cima de pretéritos dias
cerrados numa caixa adulta
* JEAN NARCISO BISPO MOURA (SÃO PAULO/BAHIA) – Poeta. Publicou: “A lupa e sensibilidade” (2002), “75
ossos para um esqueleto poético” (2005), “Excursão incógnita” (2008) e “Memórias secas de um aqualouco e outros poemas” (2011).
Tem participação em antologia latino-americana e na The Other Voices International Project, onde mantém diálogo com
importantes vozes da poesia brasileira contemporânea.
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| O Aeropago
Por Valdênio Freitas
O morcego (II)
A Consciência Humana é este morcego!
Por mais que a gente faça, à noite, ele entra
Imperceptivelmente em nosso quarto!
- Augusto dos Anjos
O sono dos assassinos é um descanso intrigante. Como alguém consegue dormir depois
de matar alguém? Pra invocar esse tipo de sono não deve haver frivolidades tais quais contar
carneirinhos. Aqui, os pobres animaizinhos são sacrificados em abatedouros imaginários, peles
retiradas, sangue e miolos.
CRIME E COCHILO
As horas de sono desapareceram na vida de Rodion. Trabalhava no setor administrativo
de uma empresa que fabricava lindos colchões e travesseiros, mas o cansaço que a falta de sono
proporcionava desaguava nas reclamações diárias do seu Chefe Meio Careca quanto à falta
de concentração, erros nas tabelas de gastos e a aparência desgastada pelas olheiras. Já no fim
do expediente houve uma reunião para definir as novas estratégias de marketing junto a uma
palestra motivacional para os funcionários, seguida de um plano de propaganda que destacasse
que o “o travesseiro é o melhor companheiro para se pensar na vida antes de dormir”.
Indo pra casa, Rodion pensava em como iria dormir. Lembrava que metade da sua família - sob influência de sua mãe- tomava barbitúricos como se fossem jujubas. Sempre quando
ligava para o filho que estava morando há pouco tempo sozinho, a mãe passava horas no telefone listando remédios e seus nomes esquisitos. Essa obsessão materna por pílulas para dormir
atormentava a Rodion. Imaginava que a marcação negra na embalagem destes remédios não
era por acaso: os comprimidos eram lutadores de artes marciais de faixa preta que derrubavam
impiedosamente quem os enfrentava. Definitivamente, ele não era adepto de tomar remédios.
Pela manhã, Rodion vai à empresa com muita dor de cabeça e um cansaço que não sabia
como saciar. Dessa forma, houve um festival de erros: entregou as tabelas do mês passado à
contabilidade em vez das mais atualizadas; esqueceu de tirar cópia de um documento importante para enviar a um dos principais clientes; derramou café na mesa e esqueceu de falar o
slogan da empresa quando atendeu o telefone. Como um caçador que vigia sua presa antes de
atacar, o Chefe Meio Careca observava tudo aquilo até que, ao fim do expediente, Rodion foi
chamado à sala da gerência.
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Blecaute
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Rodion odiava o chefe do seu departamento a ponto de pedir para que quando fossemos
contar a sua história destacássemos a calvície que o superior da empresa tentava esconder. Era
uma luta diária de tentar fazer um penteado que pudesse esconder a faixa branca que atravessava os cabelos. Um conjunto de finos fios negros colocados de lado mostrava uma cômica e
inútil resistência capilar ao seu destino final.
Naquele dia, o Chefe Meio Careca encurralou Rodion: falou de metas na empresa a
cumprir, que pagar funcionários era gasto. Em pouco tempo, conseguiu falar o par de palavras
“custo-benefício” várias vezes! Finalizado os insultos de tipo empresarial, começaram a intromissão e ofensas pessoais. O Chefe Meio Careca reclamava que Rodion deveria esquecer
sua ex-esposa pra viver normalmente sua vida, e que até “pagaria” alguma mulheres desde que
usasse os colchões da empresa com elas. Soltou um riso tuberculoso e, em seguida, chamou os
outros funcionários da empresa e fez um belíssimo discurso sobre “acolchoar as amizades”. E
abraçou Rodion.
“O travesseiro é o melhor companheiro pra se pensar na vida antes de dormir”
Os funcionários repetiram em coro a frase. Além de notar mais uma vez o quanto ridículo era esse slogan, Rodion percebeu que aquilo era, na verdade, um aviso de quase demissão,
um ultimato para que começasse a ter um bom rendimento na empresa.
Quando chegou a noite estava angustiado, pois não sabia como iria suportar mais horas
de insônia. Quanto mais pensava na falta de dormir, dormir se tornava mais difícil. Assistiu
os jornais noturnos da TV (que naquele dia estavam recheados de violência e assassinatos na
cidade) e depois foi pra cama. Lá ora fechava os olhos, ora ficava olhando pra o teto do quarto
e começava a ver, lentamente, as horas da madrugada passando.
Lembrou de algumas passagens de um livro de auto-ajuda que tinha comprado há pouco
tempo. Na verdade, tinha comprado o exemplar, por achar que a leitura seria tão monótona
que o sono viria fácil. Apesar de não conseguir dormir após ler o livro, Rodion recordou de alguns capítulos que falavam de insônia e mostravam depoimentos de pessoas que conseguiram
curar a falta de sono: dentre vários clichês, a maior parte falavam de homens que dormiam
após fechar os olhos e projetar sua mente numa praia deserta, ou mulheres que repousavam
pensando em um campo de flores
Mesmo que parecesse ridículo tal método contra a insônia, Rodion decidiu tentar. Fechou os olhos e deixou a imaginação “à deriva” para criar enredos e invocar o sono. Tentou projetar sua mente em praias, florestas, mas se sentia bloqueado. Não conseguiu manter sequência
imaginária suficiente pra dormir, pois sempre ecoavam as cobranças do chefe e obrigações da
empresa. Pensou no que tinha de fazer no dia seguinte: corrigir os próprios erros nas tabelas,
fiscalizar um carregamento de travesseiros, conferir os números dos fornecedores de penas de
ganso. Imaginou entrando na empresa, ligando os computadores e começando a fazer os ser43
Blecaute
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viços.
Contudo, lembrando de uma das principais notícias do telejornal da noite, Rodion começou a imaginar uma curiosa situação: caso portasse uma pequena faca nas mãos, ele entrava
na sala do Chefe Meio Careca e educadamente abria a porta, e em seguida o atingia na cabeça
exatamente no centro, apressando o serviço que a calvície já estava, gradativamente, fazendo. Talvez um único e firme golpe terminaria o serviço. Uma sensação inexplicável de paz e
tranquilidade invadiu a consciência de Rodion, e ele rapidamente caiu em sono profundo nos
macios travesseiros de ganso da empresa em que trabalhava:
“O travesseiro é o melhor companheiro pra se pensar na morte antes de dormir”
No outro dia, tudo ao redor de Rodion fluía suavemente. Uma noite de sono como há
tempos não tinha! Sabendo como fazer dormir, bastava apenas treinar e melhorar este seu
método sonífero e homicida.
E assim Rodion foi acumulando completas horas de sono e muitos assassinatos imaginários. Não satisfeito em matar apenas o Chefe Meio Careca , Rodion inventava situações de
morte para outras pessoas que não gostava: imaginou a si mesmo empurrando alguns colegas
de trabalho pela varanda do prédio da empresa; cortando a garganta daquela estagiária que há
pouco tinha começado e já queria dar ordens na empresa; golpes de porrete na cabeça do subchefe que era quase tão intragável como o Meio Careca.
Nos dias em que não havia ninguém específico para matar, Rodion buscava aleatoriamente nas memórias do dia alguma informação aleatória para criar suas cenas. Não sobrava
ninguém: o porteiro do prédio em que morava era espancado, uma faca no peito de um homem desconhecido que esbarrou na calçada chegando até mesmo a um envenenamento para
as crianças do vizinho que ficavam com seus brinquedos barulhentos até tarde da noite. O
agradável para Rodion em criar estas situações de morte era a posição de controle total que
detinha: não eram sonhos, mas enredos imaginários e conscientes e sangrentos. Era uma realidade virtual em que Rodion era um assassino onipotente!
Um certo dia, já encerrando o expediente, Rodion recebeu uma ligação no celular de sua
mãe. Há tempos que não falava com sua genitora. Aliás, desde que voltara a dormir regularmente sua ligação com ela havia diminuído bastante. Parecia que o assunto da insônia era o
último cordão umbilical de Rodion à sua mãe, quando esta vinha com todas aquelas perguntas
típicas dos cuidados maternos e principalmente a indicação de remédios para dormir. Como
Rodion não era mais insone, sentia como se não tivesse mais nada a falar com sua mãe e, por
isso, a conversa foi curta, disse que estava bem e que conseguiu voltar a dormir regularmente.
Naquela noite, assistiu TV e depois foi para a cama. Como já era ritual, se deitou, respirou
fundo e começou o processo imaginário de escolha de quem iria assassinar naquele dia para
conseguir dormir. Seus pensamentos o levaram a uma sensação de horror e nojo de si mesmo,
Rodion tinha imaginado matando sua própria mãe! Tentava escapar daquela cena buscando
outras pessoas para matar, mas sua mente retornava ao seguinte quadro: na antiga casa em
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que moravam quando o pai era vivo, sua mãe de costas na mesa cozinha separando os seus
remédios para dormir e Rodion, com um pequeno punhal, cravava-o nos seus ombros e depois
na garganta.
E dessa forma a insônia voltou! A criação dessa cena de matrícídio atormentou Rodion
durante todo o dia. Mas a preocupação mais vital era como iria dormir aquela noite, já que
a pesada culpa pela ideia do assassinato da mãe tomava de assalto a onipotência que Rodion
pensava ter do seu método sonífero e homicida.
Deitado na cama, Rodion tentava escapar daquela fotografia da senhora caída ao chão
apunhalada pelo filho. Até que no desespero pensou que a única solução era criar situações de
uma morte em que não havia imaginado ainda: a sua! Com a mesma engenhosidade que criava
as mortes para os outros, Rodion imagina as possibilidades suicidas que iam desde se jogar na
grande ponte da cidade ou do prédio da empresa; enforcamento ou um tiro na boca dentro da
sala do Chefe Meio Careca. Ou até mesmo um bizarro afogamento em penas de ganso no armazém da fábrica de travesseiros! E assim ia recobrando aos poucos a sensação de sono. Mas
não sem antes recorrer a um ou dois comprimidos daqueles que sua mãe havia lhe indicado.
*
*VALDÊNIO FREITAS (PARAÍBA)- Cronista. Blog: http://www.oaeropago.blogspot.com
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| Conto
PARA O SENHOR K.
Por Luís Roberto Amabile
O senhor K. seria um sonhador, mas, como sonhava apenas pesadelos, era mais um pesadelador. Podia fazer, o senhor K., esse uso do idioma, agregando palavras, porque o falava
de um modo alternativo, sobretudo incomum. Na verdade, não era o seu idioma, e não o era
duplamente. O senhor K. pertencia a um outro país, a um outro povo, e apenas por falta de
opção, e por coerção, praticava aquele idioma.
***
Pesadelava com organizações que tolhiam a liberdade das pessoas. “A pouca liberdade
de que as pessoas gozam”, murmurava durante o dia, na repartição, ao recordar suas estranhas
fábulas noturnas.
Também pesadelava com máquinas assombrosas. Uma delas dava tanto trabalho de explicar como era que ele até fez um desenho. O desenho era para si mesmo, já que ninguém
além dele estaria interessado na explicação da máquina. Pelo menos era isso que pensava enquanto carimbava papéis.
Seu trabalho era esse: carimbar papéis na repartição. Mas essa não era a sua carreira. Sua
carreira era outra e, assim como seus pesadelos, ele não a revelava para quase ninguém. Ninguém da repartição sabia. Tampouco sua família. Principalmente não diria à família.
A máquina assombrosa que imaginou bordava palavras nas pessoas, perfurando as pessoas até
as pessoas morrerem. Isso tinha a ver com sua carreira secreta. Não o ato de matar, isso não
tinha nada a ver, nem a pessoas, das quais o senhor K fazia questão de manter certa distância.
Mas palavras, palavras que davam vazão aos pesadelos.
Às vezes, bichos o visitavam no meio da noite. Como aquele povo de ratos, e um dos
ratos que se destacava dos outros por cantar. No fim, nem sabia se era mesmo um canto; o
importante é que ajudava a manter a ordem social.
E com insetos. Acontecia de pesadelar com insetos.
***
O senhor K. encontrava-se no banheiro num dia de frio intenso. Fazia suas necessidades,
e entre elas estava ficar longo tempo a pensar sem ser incomodado, e que lugar melhor do que
o banheiro?
Pensava em sua carreira e na namorada. Não gostava muito da segunda, achava que ela atrapalhava a primeira. Foi quando viu uma barata, e ficou observando a barata, detalhadamente,
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as patas, a crosta, os olhos, os olhos da barata. Naquela noite, o senhor K. demorou a fechar os
seus próprios olhos. E enfim dormindo, pesadelou com um inseto parecido à barata, e no qual
ele, o senhor K., tinha se transformado.
Quando acordou, o inseto ainda estava lá.
*
* LUÍS ROBERTO AMABILE (RIO GRANDE DO SUL/ SÃO PAULO). Escritor. Mestrando em Teoria da Literatura / Escrita Criativa pela Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP). Em 2011, foi um dos vencedores da Temporada
de Originais da Editora Grua Livros. O prêmio é a publicação da obra – no seu caso, um livro de contos, a ser lançado em
meados deste ano.
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| Estante
POR CAROLINA SIEJA
OZICK, Cynthia. O Xale, (tradução de Sonia Moreira). Companhia das Letras, 2006.
“Stella fria, fria, a frieza do inverno. Como elas andaram pelas
estradas, juntas, Rosa com Magda encolhida entre seus se ios feridos, Magda embrulhada no xale”. Assim começa a narrativa da
escritora norte-americana Cynthia Ozick intitulada O xale (The
Shawl: a story and novella, no seu original), de 1990, que retrata
partes fragmentadas de dois momentos na vida da personagem
principal Rosa: quando está em um campo de concentração; e o
segundo trinta anos mais tarde, quando se encontra morando em
Miami.
A história é curta, porém, envolvente: com o objetivo de salvar a filha Magda, Rosa
procura escondê-la em suas vestes enquanto marcham a caminho do campo de concentração.
Mesmo sem leite e com frio, a criança sobrevive por meio de um xale, que a acompanha diariamente, passando a servir de casa, bicho de estimação, ninho, além de fonte de alimento, já que
Magda o suga insistentemente, por três dias e três noites. Entretanto, um dia o xale desaparece
e os fatos consequentes deixarão marcas profundas, tanto em Rosa, quanto na imaginação do
leitor.
Considerada como sendo uma narrativa curta (tendo em vista que é composta por dois
contos), O xale tem a difícil missão de representar literariamente, não apenas o genocídio judaico, mas também o sujeito que se encontra destituído de qualquer condição humana. A obra
se mostra extremamente interessante na medida em que convida o leitor a se deparar com uma
personagem que interpreta tudo como se fosse um grande absurdo surreal – menos o xale, que
sempre a acompanha.
Em meios a tantos best-sellers sobre o assunto, que mal dão conta de abarcar os aspectos históricos, quanto mais as complexidades humanas que envolvem o ocorrido durante a
Segunda Guerra Mundial, O xale se mantém como uma grande narrativa que equilibra respeitosamente mito e realidade, ao mesmo tempo em que convida o leitor a entrar no universo
silencioso e agonizante do Holocausto. *
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* CAROLINA SIEJA BERTIN (SÃO PAULO) – Escritora. Mestranda em Estudos Linguísticos e Literários em Inglês
pela Universidade de São Paulo.
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| Estante
POR JANAILSON MACÊDO
CEZAR, Jairo. Rapunzel e outros poemas da infância. Ilustrações de Tônio. João Pessoa: Forma Editorial,
2012.
Anda menina,
vem sem cuidado,
livro fechado
não manda recado.
( Jairo Cezar - É hora de ler
In: Rapunzel e outros poemas da infância)
“É hora de ler”. Essa parece ser a frase que sintetiza o estatuto atual da leitura em nossa
sociedade − ao menos a nível de expectativas. Atualmente, uma parcela dos educadores, agentes midiáticos, militantes culturais e gestores públicos vêm chamando a atenção para o papel
da leitura na formação de cidadãos criativos e com senso crítico apurado, sobretudo quando
incentivados a manter uma relação de proximidade com a leitura desde o início da infância.
Essa perspectiva é também defendida pelo poeta Jairo Cezar, autor de “Rapunzel e outros
poemas da infância” (Forma editorial, 2012), seja por meio de ações como educador e ativista
cultural, seja no interior de sua própria casa, durante o educar cotidiano de sua filha Beatriz, a
quem o referido livro é dedicado. No entanto, “Rapunzel...” não é uma obra que visa “apenas”
incentivar o hábito da leitura junto ao público infantil − objetivo que em si já poderia ser visto
como de grande valor, mas que não seria bem-sucedido se a obra não contasse também com
uma qualidade estética apurada (alusiva, nesse caso, ao conjunto poemas/ilustrações).
O livro traz (re)leituras poéticas de histórias como “Pinóquio”, “Rapunzel”, “Os três
porquinhos”,“O Pequeno Príncipe”, “A Bela e a Fera”, “Peter Pan”... e de episódios vividos
por outros seres, que por vezes adquirem um significado mágico no universo infantil, como as
joaninhas, girafas e as borboletas.
Conta ainda com belas ilustrações que ambientam as poesias ou permitem aos leitores −
na segunda parte da obra – divertir-se enquanto colorem imagens vinculadas aos poemas que
acabaram de ler.
É desses livros que permitem, aos nossos pequenos, ter “em mãos” um objeto que possibilite que suas mentes sejam regadas, ainda mais, com a fantasia, dando-lhes mais um momento,
entre uma e outra descoberta diária, de inserção do maravilhoso em seu cotidiano.
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“Rapunzel...” é, além disso, do tipo de obra que um pai compra para presentear o filho,
mas acaba, ele mesmo, parado, a folhear as páginas, ver e rever as ilustrações ou rememorar as
obras a que teve contato em sua própria infância...
Em síntese, com seu “Rapunzel...”, Jairo Cezar estreia na literatura infantil mostrando
que o gênero – e, em especial como ele o produz− não se constitui como uma literatura menor.
Estreia trazendo muitas expectativas para os seus leitores e tentando mostrar, em consonância
com o atual contexto sócio-cultural vivido por nosso país, que não!, “livro fechado não manda
recado”.
*
50
*JANAILSON MACÊDO LUIZ (PARAÍBA). Historiador, escritor e editor. Autor de “Microf(r)icções” (Multifoco, 2012,
no prelo) e “Luz para sua gente e para sua terra: notas sobre a História da UEPB” (EDUEPB, 2010). Co-editor da Revista
Blecaute e Mestrando do PPGH/UFCG.
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| Poemas
DE LUIS KIARI
Trajectória
Que o mar nos abrace em seu peito imenso
que esse encontro seja suave
como é suave saber sua...
...existência...
Nascemos rio...
... morremos mar.
Todo rio nasce...
e começa a andar
não com o mesmo fluxo
não com o mesmo curso
...todo rio é um...
...mas o mesmo mar.
E quem quiser atravessar em poesia
prepare os braços e o fôlego
Pois além de profundo
um rio poético
é inquieto
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Valsinha torta *
Dar a mão é gesto nobre, e saber
É dar afago a si, e não se afogar
Rodopio aqui dentro, virou passo repetido
Valsa torta,um pra lá, um pra cá
O segredo é lacre de não romper
Sentir com os olhos é adivinhar
Delicadamente e com detalhes
O avesso da valsa que sou
Dar um salto e ver além do que vê
É descobrir-se vivo, e ficar sem ar
Abrir portas e janelas, fechaduras e tramelas
Dar a volta, e volta e meia se achar
Há quem diga que o limite é céu
Que o infinito não cabe no ter
Dedicadamente e com vontade
Descobre-se assim, em um fim de tarde
Infinito, somos eu e você
Clique para ouvir
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* Música com letra de Mandy Kawa e Luis Kiari
Blecaute
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O tempo e o vento *
Voltas e voltas com o tempo
Num passo sereno
Girando em um carrossel
Valsando soltas
Em gostas de orvalho
Caindo aos pés
Traçando linhas e laços
Cobrindo o espaço
Com fios de um carretel
Tecem as linhas
A teia dourada
Em cachos de mel
Brincam nos ares
Põem tudo ao chão
Rodopiam té o céu, e vão
Numa dança
Breve
Leve
Sempre
Nesse passo
Tudo se vai
As horas levam as folhas
A pipa o anel
A tesoura, a pedra e o papel
De vento em vento
Os anos acenam
E a gente cresceu
* Música com letra e melodia de Luis Kiari, integra o trabalho de músicas infantis ainda inédito.
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Dentro de mim *
Os seus olhos, tem a cor dos meus sonhos
A estrela mais bela, que se vê da janela
Do meu coração
Não, se avexe não
Fique dentro de mim, viu?
More sempre por lá, sim?
Que depois de você
Ninguém mais vai morar
Dentro de mim
Você é em mim, um pedaço que não sou eu
Mas você é mais eu, que qualquer pedaço de mim
Os seus olhos, tem ardor e um ligeiro cansaço
Que me causa embaraço que me pega nos braços
Me tira o chão
Não, não finja não
Sabe que estou aqui, sim!
Que não sou sem você, não!
E se eu sou você
Juro não me perder
Pra mais ninguém
Clique para ouvir
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* Música com letra e melodia de Luis Kiari.
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Ao seu passo
Há sonhos que parecem ser eternos
Que não urgem para serem vividos
Ainda que os olhos brilhem
Vislumbrando o dia.
O cheiro do novo refaz graça, quando te vejo
E a raça do meu peito
Se curva as curvas do teu tempo sinuoso.
Não se deixa apenas os olhos sonharem o gosto
Quando se quer e se sabe
Tão pouco
Os lábios nos levarem ao pecado
De não vivermos o que nos cabe.
*
Clique para ouvir
* LUIS KIARI (PARAÍBA/RIO DE JANEIRO). É músico e compositor. Formado em Produção Fonográfia. Participa
de vários projetos musicais no Rio de Janeiro, entre eles VARANDISTAS e o SOLO EM COMPANHIA. Atualmente
encontra-se em estúdio gravando seu primeiro CD. Publica regularmente no blog: www.luiskiari.blogspot.com
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| Poesia Imaginada
*
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* FLAW MENDES (Paraíba) – Ilustrador e Artista plástico. Formado em Letras pela Universidade Estadual da Paraíba
(UEPB). Blog: www.flawmendes.blogspot.com
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| Resenha
O AMOR EM SEGUNDO PLANO
Por Lucimar Mutarelli
Anotações durante a leitura de Anna Kariênina
Liev Tolstói
Cosac Naify – 2009
Eu sempre tive medo de ler Tolstói.
Ficava assustada com as resenhas e comentários e, claro, a quantidade de páginas. Fiquei feliz
quando percebi que Anna Kariênina era uma novela. Uma história de amor com começo, meio
e fim. Por causa do falatório em torno da obra sempre imaginei que o romance seria somente
um cenário e que ele defenderia no mesmo somente as questões politicas e/ou sociais.
As caçadas são massadas, descrições extremamente detalhadas, poderiam ter sido puladas, poupadas, mesmo assim, é uma fuga do assunto? Pra que tanta linguiça, não pode levar direto ao ponto, falar diretamente da fonte? Ritmo narrativo. Elementos chatos necessários para
valorizar cenas glamorosas, envolventes e entusiastas. É preciso trabalhar a semana inteira para
valorizar o fim de semana. Tempo seco que valoriza a tempestade. Quando veem os furacões
estamos desatentos, despreparados. Golpe exato.
Minha leitura foi lenta. Há um esnobismo que me afasta, assusta. Ao mesmo tempo a
ambiguidade me atrai, me isola dos outros. Fascinação. É uma pena ser tão discreto nos encontros amorosos. Releio em busca de detalhes. Será que ficaram nas entrelinhas?
07 meses para desvendar as oito partes em que o livro foi dividido.
É uma leitura boa para o frio, é para estar embaixo do edredon.
O calor me distrai, enerva e faz cair minha pressão.
Pensei que teria que pular partes (como já havia feito na leitura exaustiva de Moby Dick
e Os miseráveis). Me interessa a construção da figura humana. Estava levando a leitura muito
a serio, tentando ler até as entrelinhas quando meu marido, que me presenteou com o livro,
disse: “encare como uma novela”
Adoro novela e são poucos os elementos imprescindíveis para me prender: um segredo
bem guardado durante anos, traição e outros dramas familiares.
E essa mulher do século 19? Poderia acontecer hoje. É atemporal. Sigo familiar com as
dúvidas, fraquezas e incertezas. É possível o perdão a traição? A pessoa, não o gênero, realmente perdoa?
Uma mulher que viaja sozinha. Pioneira. Acredito fielmente que não se trata somente da
infidelidade feminina e sim em todas as direções, especialmente, a si mesma.
Efeito contraditório:
Stiva – aquele que trai a esposa com a governanta é admirado por sua “incontestável ho57
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nestidade”!!! Um homem de negócios x um garoto quando repreendido pela esposa.
O rubor de Lievin como um tímido. Vida física e psicológica muito mais interessante.
É o verdadeiro protagonista? Idealista e fiel a Kitty, voltamos a página 2, quando surgem suas
incertezas. Todos os personagens são bem definidos até a página 2, movidos por incertezas.
Nosso herói também é tentado pela desgraça. Será que alguma personalidade pode resistir a
um romance inteiro. Há um padrão nos comportamentos? Todos decepcionam? A máscara
sempre cai ou alguns passam ilesos?
Homens com um passado x Kitty: pura e inocente. Doença e fragilidade, quando adoece
por amor. Libertação dos padrões. Meledicência nas rodas sociais. “Aquilo que não nos mata”
“as mulheres são a hélice em torno da qual tudo gira”.
Vronski – compleição robusta, belo e bondoso, sereno e firme, simples e elegante, triunfante e modesto, sorriso franco e simples. O desbancamento do homem perfeito. Exímio ate a
página 2. No segundo encontro “pareceu estranho e ruim a Anna”. Move minha curiosidade.
Leio me debatendo. Tipo de literatura que alimenta tais encontros românticos; eletricidade da
pele. É disso que trata a “literatura feminina”? “Quem lê tanta notícia?”
Me interessa o modo do escritor conduzir minha empatia por Vronski e reduzir Aleksei a
um mero coadjuvante. Entediante, inseguro e fraco; forte somente no campo profissional. É o
primeiro a saber. Coragem extemporânea. Ousadia máxima: Ela sonha que OS DOIS são seu
marido!!! Não é um romance sobre o amor mas da sua impossibilidade, sempre... habilidade
fervorosa para descrever a mesma cena sob dois (ou mais) pontos de vista. Maestria. É o que
faz de qualquer obra um clássico.
Tive que resistir para não lançar no google o nome dos personagens e descobrir as caras
que o cinema lhes deu. Preguiça gigantesca para fantasiar, elaborar mentalmente a feição de
cada um deles. É possível apaixonar-se em um dia? Transbordo nas perguntas.
Me divirto com a descrição das rendas e babados. Será que tinha uma mãozinha de sua
esposa? Confundo autor e personagem. Ainda está no ar uma propaganda de TV em que o homem seleciona notícias numa tela virtual e a mulher prefere comprar sapatos? Novos tempos.
Há ainda uma outra em que o suposto marido aparece sentado no sofá, vê TV degustando sua
bebidinha e a mulher aparece ao fundo, na pia. Tolstói se alegraria ou se conformaria? Contra
o casamento. Moderníssimo!!! E a descrição da cena do decote (com Lievin) hilarismos...nego
a distinção de gêneros: todos sentem de forma superficial e/ou intensa.
Homens que conversam sobre economia, política e assuntos “sérios” enquanto as mulheres tratam questões caseiras, a vida dos filhos, bailes e roupas. Mesmo assim seleciono o grupo
feminino. Senão pararia de pular as páginas. Ocupação com reformas de vestidos. São vulgares
e/ou autênticas. Ordinárias? “Costuram camisolinhas” e “tricotam fraldas”, enquanto tecem o
futuro de seus homens. Ousadas no questionamento da maternidade. Contemporâneas. São
minhas vizinhas. Pequenas sentenças que denunciam o caráter do personagem: “...Anna, por
meio de perguntas soube conduzi-lo para o assunto que mais o alegrava – o seu próprio suces58
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so.”
A beleza feminina, detalhes das roupas, personalidades misteriosas e encantadoras. Estereótipos. “Este é o propósito da educação: fazer de tudo um prazer.” A mãe de Vronski teve
muitos casos extraconjugais. Escândalo assumido.
“Nunca vi nem verei fascínio em criatura decaídas, e mulheres como a francesa maquiada na recepção do restaurante, com seus cachinhos, para mim são repteis, e todas as decaídas
são assim”. Após adaptações sou capaz de ouvir essa fala no início do século 21. O estereótipo
sempre foi esse?
“A esposa envelhece enquanto você está repleto de vida. Num piscar de olhos, você se
dá conta de que não pode mais amar sua esposa com amor, por mais que a estime.” Crítica
e ou uma verdade do autor? Tenho medo de discernir. Anna não poderia se sentir inferior a
Vronski.
Quando Anna aprece: vivacidade contida, voltar a cabeça para olhar de novo o cavalheiro, olhos brilhantes, sorriso imperceptível, passos ligeiros e decididos, graça e desenvoltura.
Pistas falsas. A morte do homem na estação no momento em Anna e Vronsky se conhecem.
Tragédia anunciada. Emocionante o trecho em que a falsa protagonista se compara a um personagem literário. Superioridade intelectual ou total descontentamento com sua vida regrada
e previsível? Deveríamos ter um teaser para evitar tantos constrangimentos.
A primeira parte de mim ama e sofre junto com Anna, a outra parte vibra com sua derrocada. Preciosos venenos asquerosos e moralistas. Casamentos arranjados, conveniências. Um
homem que não servisse para marido seria o mais desejado nas fantasias. Proibidas, porém
ocultas. A mãe de Kitty que tentando influenciar a escolha da filha. Serpentes. Mesmo assim
a elas cabe a caridade. Anseios femininos comparados aos masculinos. Total ausência de gêneros. Contratempos.
Elogio a tudo que é humano: desejo, inveja, cobiça, humilhação, desprezo, as dúvidas
diante da ciência, da religião. Dúvidas sobre tudo que é humano.
Cinismo hilariante: “...só é possível dedicar-me ao amor quando isso não me faz chegar
atrasado ao jogo de cartas...”
Imperdível!!!
Ter assuntos de reserva para a falta de assunto. Amanhã mesmo compro o meu caderninho.
*
* LUCIMAR MUTARELLI (SÃO PAULO) - Escritora. Publicou: Impessoal (Ficção, Editacuja, 2009). Seus poemas
foram publicados na coletanea da Off-Flip em 2010. Recentemente lançou seu novo livro: Entre o trem e a plataforma, pela
editora Prumo, de São Paulo.
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| Conto
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O ÚLTIMO ADEUS DE REGININHA
Por Eduardo Ferreira Moura
Nunca transei drogas. A Mariazinha dizia que é porque eu já sou doido careta, imagina
drogado. A verdade é que nunca bateu. Fumar só me dá dor de cabeça, nenhuma viagenzinha.
Por isso não fumo. Nada contra quem fuma, cheira, ingere, passa no cabelo, enfia no cu... Cada
um na sua, cada um no seu.
Acontece que a Regininha fuma. Tudo bem, nada contra, como eu disse. É até mais
saudável do que cheirar ou enfiar no cu. Sendo que ela usa muito pouco, uma vez por semana,
se tanto. É nosso brinquedinho sexual. Ela fuma um e depois viaja na nossa transa. Mas nem
sempre, porque senão eu me sinto um lixo. Sinto que ela não me curte tanto quanto curte a
droga. Então é necessário transar careta às vezes, para manter o moral.
Quando ela acende os dela, sempre me pergunta:
- Não quer?
Não quero. Não adianta, continuo (continuaria) sem achar graça do que não tem graça.
Mas fico meio feliz com isso. Só que tem uma coisa que eu não disse. Eu amo a Regininha,
tanto que nem a chamo de Regininha. Só chamo a Regininha de Regina, porque é assim que
eu chamaria a mãe dos meus filhos. Mesmo que ela se chamasse Márcia, ou Andréia, só a chamaria de Regina, porque é assim que eu chamaria a mãe dos meus filhos.
Ela não é daqui, porque gente legal nunca é daqui. Ela é de algum lugar escroto, mas que
a gente acha legal porque ela é de lá. Só que ela está aqui, o que é muito bom.
- Mas eu tenho que ir lá pegar umas coisas.
Ela disse. Fiquei tenso, então. Eu amo a Regininha, acho que a Regininha me ama. Não
curto ela viajando para lugares que não são aqui. Mas não havia jeito, segundo ela.
- Eu volto. Eu não vim?
Grande merda. A gente foi vivendo assim, até que chegou o dia de ir embora. Preparei
uma surpresa. Surpresa ilícita, porque surpresa boa é surpresa ilícita. Enrolei um baseado no
capricho, generoso na quantidade e na qualidade da planta. Sei enrolar baseado porque namorei a Jussara, que fumava que nem um jamaicano. Ela me ensinou a enrolar quando a maquininha quebrou. ( Jussara tinha uma porra de uma maquininha de enrolar baseado, dá para
acreditar?).
Então Regininha chegou. Veio para uma transa de despedida, por mais que dissesse que
não era uma despedida, era apenas um final de semana afastado e tal... Mostrei a ela o baseado
imperial que eu havia preparado e os olhinhos dela brilharam:
- Hoje você vai fumar comigo?
- Não. Hoje é careta. Você também não vai fumar, para se lembrar de cada detalhe. Enrolei esse pra fumar contigo, mas só na volta.
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Blecaute
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Coloquei o baseadão em uma caixinha e a fechei. Regininha ficou louquinha. Nem havia
ido e já estava ansiosa para voltar e fumar o baseado-rei comigo. Então a gente transou uma
transa muito louca, louquinha como a Regininha. Melhor, inclusive, do que as transas que a
gente transava drogado. Porque eu não fumo, mas tenho que admitir que fumada a Regininha
transa melhor.
A gente começou na cama e rolou para o chão. E rolou para debaixo da cama. E ficamos naquele frenético sobe e desce, dando com as costas no estrado e fazendo um barulho da
porra. Suando como porcos apaixonados e bufando como bezerros famintos. Mordendo que
nem jacaré com fome e beijando que nem tamanduá na formiga. Altos bichos. Até a extinção.
Ficamos caídos no carpete, por cima de uma poça de suor e sabe-se lá mais o que. Regininha
levantou, tentou andar e caiu no chão. Perninhas finas e bambas. Dormimos assim, caídos no
carpete. Dissemos nosso último adeus em sonho.
Não sei quantas horas depois a gente acordou para uma ducha. Roupas.
- Tchau.
Ela disse na porta. Insisti:
- Você volta?
Eu amo a Regininha.
- Claro que volto, seu bobo.
- Na volta, já sabe.
Juntei o polegar e aquele outro dedo que a gente usa bastante e os levei a boca, fazendo
mímica de fumar. Ela riu, beijou meus dedos e minha boca. Fechei a porta atrás de sua silhueta
perfeita. Espiei pelo olho mágico, como de costume. Ela acenava com a mão e mandava infinitos beijos, até entrar no elevador.
Então mofamos. Eu no sofá, ele na caixinha. Maconha e amor, se não guardar na geladeira, dá mofo.
*
*EDUARDO FERREIRA MOURA (RIO DE JANEIRO) – Romancista e Contista. Publicou: Esposa Perfeita (Romance, Editora Multifoco, 2011). Ainda este ano sai o seu segundo livro. Blog pessoal: http://lifeonmarx.blogspot.com/
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| Poemas
DE JOEDSON ADRIANO
IDEIA
eis que a ideia surge na visão sem olhos
e é uma linha límpido clarão
em frente a vista e em minhas mãos
pra brancura sem vida do papel de molho
a folha aguarda a adequação
tentativas forçam a retentiva e falho
quebro a cabeça e metáforas malho
mas a riqueza esbarra na burra proteção
eu humildemente simplifico de lobo
a camelo e ela entra no estreito
caminho do cordeiro após tanto rogo
teço à vontade do esquerdo peito
porém sob as leis dos atemporais lobos
e a razão de todo o lado direito
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ATEÍSMO
esclareço aos espíritas de missa ou mesa
que o meu ateísmo não possui mistérios
é só não levar nenhum deus a sério
e ser sempre sozinho se caçador ou presa
simples como tudo termina em cemitério
é achar de graça pois não tenho certeza
que é de matéria toda a natureza
até o melhor desta meu espírito etéreo
e só há um dogma em virtude de ser
apenas um fio das milhares de cordas
do meu egoísmo a lei é meu querer
negar a cada deus sobre as coisas todas
porque todas as coisas estão pois só meu eu é
abaixo de mim senão tudo se foda
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YES TO BE
por que diferenciar o ser e o estar
se este não fosse como existiria
porém aquele esse sendo em tudo estria
mais sábio à questão espasma um esgar
dentro em mim contra o estado que mais dia
menos dia no eixo-estro estalará
de novo em gotas nadas ao eterno mar
pra retornante uma de mil cosmogonias
contudo eu teimoso de encontro a mim mesmo
que é outro respondo que sou sim de repente
por pensar demasiado e ao siso sinto um sismo
a me tentar meio out meio in consciente
estando eu driblo a língua com malabarismos
a desejar meu sido no porvir como ente
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JOÃO DIÓGENES
nasceste animal como qualquer outro
mas como eu faço pra que não te tomem
e te tornes um varão pois o que é um homem
quando não é só esse frágil corpo
como um qualquer com sede e fome
nasceste e calado nem andas feito potro
nem olhas meu exemplo nem ouves meu sopro
pra que ao menos de todo não te domem
nascer não é novo e parco motivo
pra que eu te ame mas te amarei já
a instruir que respirar não é estar vivo
estás em minhas mãos a tremer e a chorar
e eu nem sorrio por ser o teu divo
estou em tuas mãos a temer quem serás
*
* JOEDSON ADRIANO (PARAÍBA) – Poeta. Publicou: Ode aos Deuses (Poesia, Edição do autor, 2009) e Ode aos Homens (Poesia, Edição do Autor, 2010). Membro do Núcleo Literário Caixa Baixa.
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devem enviá-las para o e-mail:
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Word (2003 ou superior) e se enquadrar nas seguintes categorias:
Poemas (devem ser enviados entre quatro e cinco poemas, com até cinco
páginas no total);
Conto (poderá ser enviado apenas um conto, sugerimos no máximo oito
páginas);
Ensaio (poderá ser enviado um ensaio sobre temas ligados à literatura e/
ou demais artes, incluindo cinema, música, artes visuais e artes cênicas,
sugerimos o máximo de oito páginas);
Dicas de Leitura (poderão ser enviadas três dicas de leitura, com até uma
página, acrescida de uma imagem da capa do livro sugerido em boa resolução).
Observação
Todos os textos devem ser acrescidos de um pequeno perfil dos colaboradores, contando com as seguintes informações: nome, local de nascimento,
local onde reside atualmente, livro(s) publicado(s), blog(s) e/ou site(s) que
edita, entre outros.
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