Souza-Lobo e as relações de gênero e trabalho

Transcrição

Souza-Lobo e as relações de gênero e trabalho
SOUZA-LOBO E AS RELAÇÕES DE GÊNERO E TRABALHO
Autor: Marcelo Rodrigues Lemos
Orientadora: Eliane Schmaltz Ferreira
Este ensaio pretende lançar luz sobre reflexões desenvolvidas por Elisabeth SouzaLobo perante a articulação das categorias analíticas gênero e trabalho. A análise se remete a
artigos da autora e ao seu livro “A classe operária tem dois sexos: trabalho, dominação e
resistência” (1991), escrito após pesquisas realizadas na década de setenta.
Por meio de um resgate histórico, percebe-se que a elaboração do conceito de gênero
emergiu nos anos setenta influenciada por antropólogos e sociólogos embasados no momento
histórico do Movimento Feminista. Inicialmente foi necessário dar visibilidade à construção
histórica e cultural do chamado “sexo social” (gênero) em detrimento do fatalismo e do
naturalismo, os quais remetiam as representações da mulher à posições inferiores orientadas
por questões biologizantes. (HIRATA & KERGOAT, 1999).
Várias autoras colaboraram para a elaboração do conceito e o uso da categoria
analítica gênero, dentre elas Joan Scott (com a qual Souza-Lobo dialoga mais de perto),
Teresa de Lauretis, Judith Butler. Chama-se atenção, aqui, para o conceito desenvolvido por
Jane Flax. Dessa forma, sabe-se que as relações de gênero implicam em relações variadas e
simultaneamente relacionadas entre homens e mulheres frente aos diferentes aspectos da vida
social dentre eles o trabalho, pois como aponta Jane Flax (1991) “na perspectiva das relações
sociais, homens e mulheres são ambos prisioneiros do gênero, embora de modos altamente
diferenciados mas inter-relacionados.” (FLAX, 1991:229). Assim, para Flax, a inter-relação
entre homens e mulheres, sob a perspectiva de gênero, conduz a relações sociais relacionais e
articuladas entre si.
Jane Flax considera as relações de gênero como uma categoria que engloba relações
sociais, sendo, tal categoria, relacional; ou seja, formada por partes interdependentes que se
relacionam entre si. Sendo assim, seguindo a perspectiva adotada por Flax, nota-se que
pensar, por meio da articulação das categorias gênero e trabalho, as atividades desenvolvidas
por homens e mulheres perante a esfera produtiva é viável, uma vez que se adota, aqui, o
caráter relacional e estruturante das relações de gênero. Ao utilizar-se a perspectiva analítica
relacional empreendida por Flax, pretende-se visualizar o universo feminino e masculino
frente aos segmentos do trabalho, tornando a análise mais abrangente ao não se restringir o
foco interpretativo a um dos sexos.
Acerca do conceito de trabalho não há um consenso; pois ele pode determinar
atividades diferenciadas em sociedades e momentos históricos também diferentes. É por meio
do trabalho que os seres humanos satisfazem suas necessidades e também concedem forma e
sentido ao mundo concreto (MOREIRA, 1998). Em um sentido ampliado, trabalho “é o
esforço humano dotado de um propósito [que] envolve a transformação da natureza através
do dispêndio de capacidades mentais e físicas.” (OUTHWAITE & BOTTOMORE,
1996:773).
Sabe-se que a definição do trabalho implica em atividades qualificadas e nãoqualificadas, além de distinções entre trabalho direto (produtor de bens de consumo) e
indireto (produtor de bens de produção). Também é preciso frisar que no modo de produção
capitalista existem os empregadores, os quais possuem meios de produção, e os empregados,
que vendem suas forças de trabalho.
Pode-se assinalar na estrutura social diferentes tipos de trabalho, como o trabalho
escravo, o servil e o assalariado. Nesta análise, o que se destaca é o trabalho assalariado. Em
tal regime de trabalho encontra-se trabalhadores livres que se submetem voluntariamente aos
postos de ocupação, por meio de regimentos de contratos coletivos. No trabalho assalariado o
serviço é regido por normas formais, uma vez que existem direitos e deveres próprios que
asseguram as partes envolvidas. (CARVALHO, 1973). Ao abordar o trabalho articulado à
categoria gênero, o interesse é trazer à cena os sujeitos: homens e mulheres nos espaços
produtivo e reprodutivo.
Após a conceituação das categorias, apresenta-se a biografia da autora que está no
cerne do debate implementado neste estudo. Elisabeth de Souza-Lobo Garcia costumava
assinar seus textos simplesmente como Elisabeth Souza-Lobo. Nasceu em 1943, em Porto
Alegre no Rio Grande do Sul. Formou-se em Letras ainda no sul, morou no Chile e na França,
onde obteve seu título de doutora na Universidade de Paris VIII no ano de 1979. No Brasil,
foi filiada ao Partido dos Trabalhadores vinculando militância política e exercício acadêmico.
Ao longo de sua carreira como docente, lecionou em Piracicaba na UNIMEP, na UNESP de
Marília, na USP, e no Programa de Pós-Graduação em História Social do Trabalho da
UNICAMP. Foi pioneira nos estudos de gênero e trabalho na academia brasileira ao
desenvolver, na década de setenta, estudos empíricos com trabalhadores e trabalhadoras em
fábricas automotivas. Souza-Lobo faleceu em 15 de março de 1991, vítima de um acidente de
carro em João Pessoa na Paraíba, onde realizaria palestras e daria seqüência às suas pesquisas
sobre relações de gênero nos movimentos sociais no campo.
Em seu artigo intitulado “O Trabalho como Linguagem: o Gênero do Trabalho”
(1992), Souza-Lobo analisa o trabalho feminino de acordo com problemáticas que emergiram
na Sociologia e na História Social brasileiras, enumerando as abordagens dos estudos sobre as
trabalhadoras frente aos seguintes temas: 1. da modernidade à divisão sexual do trabalho; 2. a
divisão sexual do trabalho voltada para a qualificação, as carreiras e as subjetividades dos (as)
trabalhadores (as); 3. os estudos de gênero na Sociologia Brasileira. “Cada uma dessas três
vertentes implica em questões e enfoques próprios ou articulados uns dos outros.” (SOUZALOBO, 1992:252).
Após tal anúncio, a autora levanta a questão: “o gênero será mesmo uma categoria de
trabalho na Sociologia do Trabalho?” (op.cit.:253), fazendo referência ao artigo escrito por
Joan Scott (1990) “O gênero como categoria útil de análise histórica”.
Segundo Souza-Lobo no final da década de setenta e meados da de oitenta, iniciava-se
na produção analítica da Sociologia brasileira, um debate acerca do trabalho feminino.
Contudo, a variável “sexo” ainda não ocupava (ocupa) posição de centro na Sociologia do
Trabalho, pois, no Brasil, o foco dessas pesquisas desenvolvidas até os anos oitenta se deteve
primordialmente nos estudos referentes à fábrica e seus postos de trabalho, bem como ao
sindicalismo coorporativo. Mas para a autora, a composição sexuada tanto da indústria,
quanto da estrutura da classe operária, necessitava de problematização teórica.
A discussão da invisibilidade das operárias passou por abordagens diferenciadas, mas
inicialmente acreditava-se que a visibilidade do trabalho feminino viria com a proliferação
dos estudos referentes às trabalhadoras. A elaboração de significações para a subordinação
das mulheres, mesmo na esfera do trabalho, excluiu a perspectiva de uma dinâmica causal
com gênese em certa estrutura fatalmente determinante, para se aproximar da idéia de que este
processo de invisibilidade das operárias é fruto de uma construção social e histórica observada
em práticas culturais e institucionais (SOUZA-LOBO, 1986).
Aqui, pois, convém que se associe a ponderação anteriormente apresentada com a
reflexão que a própria autora levanta ao se referir a uma real utilização da categoria analítica
gênero como útil para os estudos da Sociologia do Trabalho. Ora, se Souza-Lobo admite
abandonar as amarras deterministas, que tendem ver como fatalismo a subordinação feminina
e valendo-se da premissa de que tal subordinação advém de um transcurso construído
historicamente, deve-se concluir a utilização da categoria gênero neste debate. O gênero é
entendido seguindo Scott, como uma construção histórica diretamente relacionada com
relações de poder que estabelecem disparidades hierárquicas entre os sexos. (JOAN SCOTT,
1990).
Sabe-se que a elaboração do conceito de classe se deu perante uma concepção
masculina do operário, ignorando o sexo dos trabalhadores e colocando as operárias como
grupo à parte sem interesse e afastado dos problemas da classe.
Contudo, é preciso tomar cuidado para não reduzir a subordinação social das mulheres
à sua “simples” subordinação econômica. Souza-Lobo cita que as pesquisas anteriormente
desenvolvidas no Brasil (final dos anos sessenta e início dos setenta) utilizavam referências
dicotômicas como tradicionalismo-modernização, subdesenvolvimento-desenvolvimento e
apontavam para os seguintes quadros: a subordinação feminina, característica das sociedades
de cunho tradicional, cessaria com a modernização e desenvolvimento das forças produtivas.
Ou o oposto, ou seja, a modernização e o desenvolvimento capitalista intensificariam a
submissão feminina na sociedade classista, bem como o afastamento do mercado de trabalho
industrial.
Assim, Souza-Lobo argumenta que observou-se, de fato, ao longo das décadas de
cinqüenta, sessenta e setenta, uma ligeira elevação da força de trabalho feminina industrial,
mas tal inserção veio marcada pela insegurança, baixas qualificações e salários, subjugadas a
taxas elevadas de exploração.
No final da década de setenta os estudos desenvolvidos pelas Ciências Sociais no
Brasil, mostravam que alterações ocasionadas durante o Regime Militar nas relações sociais e
econômicas, como a deterioração real dos salários, a migração crescente do Norte e Nordeste
especialmente para o Sudeste, a industrialização crescente, estariam no cerne do crescimento
do trabalho feminino e também infantil.
As pesquisas destacaram, ainda, a segregação ocupacional com a formação de guetos
típicos das ocupações femininas perante o mercado de trabalho brasileiro. Sabe-se que alguns
estudiosos brasileiros, e Souza-Lobo elenca o nome de Helena Hirata como norte central,
passaram a problematizar na Sociologia do Trabalho a questão da diferenciação entre
trabalhadores e trabalhadoras sob a temática da divisão sexual do trabalho, a qual aponta
historicamente para modelos diversos na representação de postos de trabalho femininos e
masculinos. Assim, os estudos
permitiram relacionar divisão sexual do trabalho e dinâmica do mercado de trabalho,
concluindo que as operárias não são simplesmente substituídas por operários, nem
ao contrário. A divisão sexual do trabalho tende a preservar o equilíbrio entre
emprego feminino e masculino, conforme a dinâmica de emprego dos distintos
setores empregadores de mão-de-obra feminina ou masculina. (SOUZA-LOBO,
1992:258).
Nessa mesma perspectiva, Cristina Bruschini e Maria Rosa Lombardi (2001) em
“Instruídas e trabalhadeiras: trabalho feminino no final do século XX”, também destacam
que as atividades exercidas por homens e mulheres frente ao mercado de trabalho brasileiro
estão subdivididas em setores de atividades econômicas. Assim, após a inserção feminina no
mercado de trabalho, as trabalhadoras brasileiras encontram maiores opções de emprego na
prestação de serviços, agropecuária, mas em elevado índice no setor social, o qual envolve
serviços comunitários e sociais além do ensino e serviços médicos. Já os homens exercem
atividades em maior número no setor da indústria.
Souza-Lobo destaca a importância da problematização acerca da divisão sexual do
trabalho, mas deixa claro a necessidade de se avaliar também as qualificações, trajetórias
ocupacionais e formas de gestão industrial como mecanismos históricos influenciadores na
inserção de homens e mulheres em seus postos de trabalho. Em outros termos, a divisão
sexual do trabalho pressupõe a existência de pólos ocupacionais sexuados, contudo, existem
fatores para além de tal divisão, como os citados acima, que interferem no processo de
moldagem dos próprios elementos que definem a vinculação sexuada aos segmentos
produtivos.
Na parte final do ensaio “O Trabalho como Linguagem: o Gênero do Trabalho”
(1992), encontra-se reflexões mais específicas sobre o uso da categoria gênero na Sociologia
do Trabalho; Souza-Lobo ressalta que “as relações entre homens e mulheres são vividas e
pensadas enquanto relações entre o que é definido como masculino e feminino: os gêneros”
(SOUZA-LOBO, 1992:260). Segundo ela, utilizar a categoria analítica gênero permite a
construção de certa relação social-simbólica, sem que isso estabeleça um mecanismo de
determinação estrutural ou biológico, uma vez que o conceito de gênero implica em
significações culturais.
A autora sugere uma Sociologia preocupada com a análise das várias dimensões das
relações de trabalho, dentre elas aquela que se preocupa com a multiplicidade de sujeitos
envolvidos no processo produtivo, com a individualidade, a subjetividade e a identidade dos
(as) trabalhadores (as).
Percebe-se, com isso, que Souza-Lobo (1991) não sugere que a utilização da categoria
gênero nas interpretações acerca da esfera do trabalho querem apenas negar a indiferenciação
de classe ou o caráter sexuado das relações sociais, pois a autora revela que o uso do gênero
permite também abordagens relativas às práticas coletivas.
A simpatia com o pensamento de Joan Scott, aponta a preocupação de Souza-Lobo
com o sexo dos atores, uma vez que as relações de trabalho, enquanto relações sociais,
carregam consigo relações de poder entre os sexos. Durante a análise dos textos indicados,
percebe-se com facilidade a utilização do conceito de gênero marcado pela influência de Joan
Scott, na medida em que Souza-Lobo destaca em vários momentos de seus estudos a
necessidade de se abandonar estruturas conceituais deterministas e se valer da perspectiva de
gênero enquanto construção social, histórica e cultural que implica em relações de poder entre
homens e mulheres.
A articulação gênero e trabalho é feita neste ensaio de modo a questionar a
empregabilidade do gênero em estudos da Sociologia do Trabalho. A idéia defendida ao longo
do texto é a de que mesmo de modo ainda incipiente, o gênero, enquanto categoria analítica,
já estava sendo utilizado em alguns estudos sobre o trabalho desde a década de setenta, com
ênfase nas abordagens sobre o trabalho feminino na fábrica e divisão sexual do trabalho.
Acredita-se que todas essas análises colaboram para o processo que busca dar visibilidade ao
trabalho das mulheres (SOUZA-LOBO et alia, 1986), bem como para o rompimento do
caráter assexuado das relações sociais. Com isso, o maior desafio é produzir uma reflexão
sobre o trabalho de mulheres e homens e sobre a posição que ocupam no processo produtivo
livre de noções e idéias simplistas pré-estabelecidas, desafio que Souza-Lobo procurou
enfrentar com o uso da categoria gênero nos estudos de Sociologia do Trabalho.
REFERÊNCIAS
BRUSCHINI, Cristina e LOMBARDI, Marisa Rosa. “Instruídas e trabalhadeiras: trabalho feminino no final do
século XX”. In: Cadernos Pagu, IFCH/UNICAMP, n.17/18: Desafios da equidade. 2001/02, pp. 156-196.
CARVALHO, Irene Mello. Introdução aos estudos sociais. 9.ed. Fundação Getulio Vargas. Rio de Janeiro.
1973.
FLAX, Jane. (1987). “Pós-modernismo e as relações de gênero na teoria feminista.” In: BUARQUE DE
HOLLANDA, Heloísa (Org.). Pós-modernismo e política. Rio de Janeiro: Rocco, 1991. p.217-250.
MOREIRA, Eliana Monteiro. A regência do afetivo: laços familiares e reprodutivos. In: ABRAMO, Laís e
ABREU, Alice Rangel de Paiva (Orgs.). Gênero e trabalho na sociologia latino-americana. São Paulo; Rio de
Janeiro: ALAST, 1998.
SCOTT, Joan. (1988) Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação e Realidade, v.16, n.2, p.5-22,
jul./dez. 1990.
SOUZA-LOBO, Elisabeth. A classe operária tem dois sexos. Trabalho, dominação e resistência. São Paulo:
Brasiliense, 1991.
______. “O Trabalho como Linguagem: o Gênero do Trabalho”. In: COSTA, Albertina de Oliveira e
BRUSCHINI, Cristina (orgs). Uma questão de gênero. Rio de Janeiro: Rosa dos tempos; São Paulo: Fundação
Carlos Chagas, 1992.
______; HUMPHREY, John; GITAHY, Leda; MOYSÉS, Rosa. “A “prática invisível” das operárias.” In:
KARTCHEVSKY, Andrée et alia. O sexo do trabalho. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986.
OUTHWAITE, William & BOTTOMORE, Tom. Dicionário do pensamento social do século XX. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar, 1996.