dissonância cognitiva

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dissonância cognitiva
dissonância cognitiva
Robert Todd Carroll
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"Não há sucesso melhor que o fracasso...." -- Bob Dylan, Love Minus
Zero
Dissonância cognitiva é uma teoria sobre a motivação humana que afirma
ser psicologicamente desconfortável manter cognições contraditórias. A
teoria prevê que a dissonância, por ser desagradável, motiva a pessoa a
substituir sua cognição, atitude ou comportamento. Foi explorada
detalhadamente pela primeira vez pelo psicólogo social Leon Festinger,
que assim a descreveu:
Dissonância e consonância são relações entre cognições, ou
seja, entre opiniões, crenças, conhecimentos sobre o
ambiente e conhecimentos sobre as próprias ações e
sentimentos. Duas opiniões, ou crenças, ou itens de
conhecimento são dissonantes entre si quando não se
encaixam um com o outro, isto é, são incompatíveis. Ou
quando, considerando-se apenas os dois itens
especificamente, um não decorrer do outro (Festinger
1956: 25).
Festinger argumenta que existem três maneiras de se lidar com a
dissonância cognitiva, não considerando-os mutuamente exclusivos.
1. Pode-se tentar substituir uma ou mais crenças, opiniões ou
comportamentos envolvidos na dissonância;
2. Pode-se tentar adquirir novas informações ou crenças que irão
aumentar a consonância existente, fazendo assim com que a
dissonância total seja reduzida;
3. Pode-se tentar esquecer ou reduzir a importância daquelas cognições
que mantêm um relacionamento dissonante (Festinger 1956: 25-26).
Por exemplo, as pessoas que fumam sabem que fumar é um mau hábito.
Algumas justificam seu comportamento olhando para o lado bom: dizem a
si mesmas que fumar ajuda-as a manter o peso e que o excesso de peso
representaria um perigo maior para a saúde do que o fumo. Outras param
de fumar. A maioria de nós é inteligente o bastante para inventar hipóteses
ad hoc ou justificativas para salvar idéias que nos são caras. O fato de
sermos levados a racionalizar por estarmos tentando reduzir ou eliminar a
dissonância cognitiva não explica por que não podemos aplicar essa
inteligência de uma forma mais competente. Pessoas diferentes lidam com
o desconforto psicológico de formas diferentes. Algumas dessas formas
são claramente mais razoáveis que outras. Portanto, por que algumas
pessoas reagem à dissonância com competência cognitiva, enquanto que
outras respondem com incompetência?
A dissonância cognitiva já foi chamada de "o melhor amigo do controlador
de mentes" (Levine 2003: 202). Assim mesmo, um exame superficial
revela que não é ela, mas sim a forma como as pessoas lidam com ela, que
seria objeto do interesse de um indivíduo que tentasse controlar os outros
quando as evidências parecessem estar contra ele.
Por exemplo, Marian Keech era a líder de uma seita OVNI nos anos 1950.
Alegava receber mensagens de extraterrestres conhecidos como Os
Guardiães através de escrita automática. Assim como os membros da seita
Heaven's Gate fizeram quarenta anos mais tarde, Keech e seus seguidores,
conhecidos como Os Buscadores da Irmandade dos Sete Raios, esperavam
ser recolhidos por discos voadores. Segundo as profecias de Keech, seu
grupo de 11 pessoas seria salvo pouco antes que a Terra fosse destruída por
um dilúvio maciço em 21 de dezembro de 1954. Quando se tornou
evidente que não haveria nenhum dilúvio e que os Guardiães não
passaríam para apanhá-los, Keech
ficou exultante. Disse ter acabado de receber uma
mensagem telepática dos Guardiães, dizendo que seu
grupo de seguidores havia espalhado tanta luz com sua
inabalável fé que Deus havia poupado o mundo do
cataclismo (Levine 2003: 206).
Mais importante é o fato de que os Buscadores não a abandonaram. A
maioria se tornou mais devota após a falha da profecia. (Apenas dois
deixaram a seita quando o mundo não acabou.) "A maioria dos discípulos
não só permaneceu como, após tomar essa decisão, estavam então ainda
mais convencidos que antes de que Keech estava certa o tempo todo.... O
fato de estarem errados os transformou em crentes fanáticos (ibid.)."
Algumas pessoas são capazes de ir longe para evitar a incompatibilidade
entre suas crenças mais caras e os fatos. Mas por que as pessoas
interpretam as mesmas evidências de formas contrárias?
Os Buscadores não teriam esperado pelo disco voador se achassem que ele
poderia não vir. Assim, quando ele não veio, seria de se esperar que
alguém que pensasse de forma competente teria visto isso como uma
refutação da alegação de Keech de que ele viria. No entanto, os maus
pensadores foram feitos incompetentes pela devoção a Keech. Sua crença
de que um disco voador os apanharia era baseada em fé, não em
evidências. Da mesma forma, a crença de que o fracasso da profecia não
deveria ser levado em conta contra suas crenças foi mais um ato de fé.
Com esse tipo de pensamento irracional, poderia parecer inútil apresentar
evidências para tentar convencer as pessoas de seus erros. Sua crença não é
baseada em evidências, mas na devoção a uma pessoa. Essa devoção pode
ser tão grande que mesmo o mais condenável comportamento de um
profeta pode ser racionalizado. Há muitos exemplos de pessoas tão devotas
a alguém que poderiam racionalizar ou ignorar abusos físicos e mentais
extremos de seu líder de seita (ou cônjuge, ou namorado). Se a base da
crença de uma pessoa é fé irracional, fundamentada na devoção a uma
personalidade poderosa, a única opção que essa pessoa tem ao ser
confrontada com evidências que poderiam minar sua fé seria continuar a
ser irracional, a não ser que essa fé não fosse mesmo tão grande. A questão
interessante, então, não é de dissonância cognitiva e sim de fé. O que havia
em Keech que teria levado algumas pessoas a terem fé em sua pessoa, e o
que havia nessas pessoas que as teria tornado vulneráveis a Keech? E o que
havia de diferente nos dois que abandonaram a seita?
"Pesquisas mostram que há três características relacionadas à capacidade
de persuasão: a atratividade, a honestidade e a autoridade percebida" (ibid.
31). Assim, se uma pessoa é fisicamente atraente, tendemos a gostar dela.
E quanto mais gostamos dessa pessoa, mais tendemos a confiar nela (ibid.
57). As pesquisas também mostram que "percebem-se as pessoas como
mais confiáveis quando fazem contato com os olhos e falam com
confiança, não importa o que tenham a dizer" (ibid. 33).
Segundo Robert Levine, "os estudos encontraram uma surpreendentemente
falta de traços em comum nos tipos de personalidade das pessoas que se
unem a seitas: não há um tipo único de personalidade propenso ao
culto" (ibid. 144). Esse fato surpreendeu Levine. Quando começou sua
investigação sobre as seitas, "compartilhava o estereótipo comum de que a
maioria dos adeptos era composta de desajustados psicológicos ou
fanáticos religiosos" (ibid. 81). O que descobriu, porém, foi que a maioria
dos membros de seitas era atraída pelo que parecia ser uma comunidade
amorosa. "Uma das ironias sobre as seitas é que os grupos mais
extravagantes são freqüentemente compostos pelas pessoas que mais se
importam com as outras (ibid. 83)." Levine diz que o líder de seita Jim
Jones era "um super-vendedor que exercia todas as regras da
persuasão" (ibid. 213). Possuía autoridade, honestidade aparente e
atratividade. É provável que o mesmo pudesse ser dito sobre Marian
Keech. Também parece provável que muitos dos seguidores de seitas
tenham encontrado nelas uma família substituta, ou no líder da seita uma
mãe ou pai substituto.
É importante lembrar também que, na maioria dos casos, as pessoas não
chegaram a suas crenças irracionais da noite para o dia, mas sim ao longo
de um período de tempo, com crescimento gradual do comprometimento
(ibid. cap. 7). Ninguém entraria para uma seita se o tom do convite fosse:
"Siga-me. Beba esse Kool-Aid envenenado e cometa suicídio." Mesmo
assim, nem todos na seita beberam o veneno e dois dos seguidores de
Keech abandonaram a seita quando a profecia falhou. Em que eles diferiam
dos outros? A explicação parece simples: a fé que tinham no líder era
fraca. Segundo Festinger, os dois que abandonaram Keech -- Kurt Freund e
Arthur Bergen -- já eram pouco comprometidos desde o início (Festinger
1956: 208).
Mesmo as pessoas que erroneamente acham que suas crenças são
científicas podem chegar a essas idéias gradualmente, e seu
comprometimento pode crescer até atingir o ponto da irracionalidade. O
psicólogo Ray Hyman oferece um exemplo muito interessante de
dissonância cognitiva e de como um quiroprático lidou com ela:
Há alguns anos, participei de um teste da cinesiologia
aplicada no consultório do Dr. Wallace Sampson em
Mountain View, na Califórnia. Uma equipe de
quiropráticos veio para demonstrar o procedimento.
Vários observadores médicos e os quiropráticos haviam
concordado que estes primeiramente ficariam livres para
demonstrar a cinesiologia aplicada da maneira que
quisessem. Depois disso, tentaríamos alguns testes duplocegos de suas alegações.
Os quiropráticos apresentaram como seu principal
exemplo uma demonstração que acreditavam mostrar que
o corpo humano seria capaz de reagir à diferença entre a
glucose (um açúcar "ruim") e a frutose (um açúcar
"bom"). A sensibilidade diferenciada era aceita como
verdade entre os "curandeiros alternativos", embora não
houvesse nenhum respaldo científico. Fizeram com que
voluntários se deitassem de costas e levantassem um dos
braços verticalmente. Colocavam então uma gota de
glucose (diluída em água) na língua do voluntário. O
quiroprático então tentava forçar o braço levantado para
que voltasse à posição horizontal, enquanto o voluntário
tentava resistir. Em quase todos os casos, este não
conseguia resistir. Os quiropráticos afirmaram que o
corpo do voluntário reconhecia a glucose como um açúcar
"ruim". Depois que a boca do voluntário era enxaguada e
uma gota de frutose era depositada em sua língua,
conseguia resistir ao movimento para a posição horizontal
em quase todos as tentativas. O organismo teria
reconhecido a frutose como um açúcar "bom".
Após o almoço, uma enfermeira nos trouxe um grande
número de tubos de ensaio, cada qual codificado com um
número secreto, de forma que não pudéssemos saber quais
os que continham frutose e quais os que continham
glucose. Ela então saiu da sala, para que ninguém no teste
subseqüente soubesse conscientemente quais os tubos que
continham glucose ou sacarose. Os testes dos braços foram
repetidos, mas desta vez eram duplo-cegos -- nem o
voluntário, nem os quiropráticos, nem os observadores
sabiam se a solução aplicada na língua do voluntário era
glucose ou frutose. Assim como na sessão feita pela manhã,
às vezes os voluntários conseguiam resistir, e em outra
vezes não. Registramos os número de código da solução em
cada tentativa. Então, a enfermeira retornou com a chave
do código. Quando determinamos quais das tentativas
usaram glucose e quais usaram sacarose, não houve
nenhuma conexão entre a capacidade de resistir e o fato do
voluntário ter recebido o açúcar "bom" ou o "ruim".
Quando os resultados foram anunciados, o líder dos
quiropráticos se voltou para mim e disse, "Está vendo? É
por isso que nunca mais fizemos testes duplo-cegos. Nunca
funciona!" Inicialmente pensei que ele estivesse brincando.
Mas ele falava sério. Como ele "sabia" que a cinesiologia
aplicada funcionava, e o melhor método científico
mostrava que não funcionava, então -- pensava ele -- tinha
que haver algo errado com o método científico. (Hyman
1999)
O que diferencia a racionalização do quiroprático da do membro de seita é
que esta última se baseia em pura fé e devoção a um guru ou profeta,
enquanto que a primeira é baseada em evidências decorrentes da
experiência. Nenhuma dessas crenças pode ser refutada porque os crentes
não permitiram que o sejam: nada pode contar contra elas. Aqueles que
baseiam suas crenças na experiência e naquilo que assumem ser evidência
empírica ou científica (por ex., astrólogos, quiromantes, médiuns,
paranormais, defensores do design inteligente, e o quiroprático) apenas
fingem estar dispostos a testar suas crenças. Só se dão ao trabalho de se
submeterem a testes de suas idéias a fim de obter provas para apresentar a
outras pessoas. É por isso que nos referimos a suas crenças como
pseudociências. Não nos referimos às crenças de membros de seitas como
pseudocientíficas, mas como irracionalidade baseada em fé.
Veja verbetes relacionados sobre leitura a frio, reforço comunitário,
predisposição para a confirmação, navalha de Occam, ciência patológica,
efeito placebo, falácia post hoc, falácia regressiva, pensamento seletivo,
auto-ilusão, validação subjetiva, testemunhos, e wishful thinking.
leitura adicional
Festinger, Leon. A Theory of Cognitive Dissonance (Stanford University
Press 1957).
Festinger Leon. When Prophecy Fails: A Social and Psychological Study
(Harpercollins 1964). (Publicado originalmente em 1956 pela University of
Minnesota Press.)
Harmon-Jones, Eddie e Judson Mills, editores. Cognitive Dissonance:
Progress on a Pivotal Theory in Social Psychology (American
Psychological Association 1999).
Hyman, Ray. "The Mischief-Making of Ideomotor Action," em Scientific
Review of Alternative Medicine 3(2):34-43, 1999.
Levine, Robert. The Power of Persuasion - How We're Bought and Sold (John Wiley & Sons 2003).
©copyright 2003
Última atualização: 2003-10-18
Robert Todd Carroll
Índice
traduzido por
Ronaldo Cordeiro

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