ROLANDO,Virginia - Universidade Católica de Pelotas

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ROLANDO,Virginia - Universidade Católica de Pelotas
1
Sobre o “estrangeiro” na língua materna: apresentações identitárias em sala de
aula de leitura em línguas estrangeiras próximas1
Virginia Orlando
Instituto de Lingüística,
FHCE, UdelaR,
Montevideo-Uruguay
Este trabalho apresenta uma pesquisa em que se revisaram as formas de
relacionamento entre a dimensão ativo-dialógica da compreensão, i.e., seu elemento
valorativo (BAKHTIN, [1974]-2003), e, gêneros discursivos (BAKHTIN, [1952-3]-2003) em
cursos de leitura em línguas estrangeiras próximas (francês, italiano e português) para
aprendizes adultos hispano-falantes. O cenário de pesquisa consiste em aulas de leitura,
concebidas como apóio para a leitura de bibliografia especializada, endereçadas a alunos de
uma universidade pública do Uruguai.
As disciplinas de leitura em francês, italiano e português foram revisitadas na análise
da perspectiva de uma constelação de práticas (WENGER, 1999) de letramentos (SOARES,
2006, entre outros) em línguas estrangeiras próximas e, cada uma delas, como comunidade de
prática (WENGER, 1999) de letramentos em francês, italiano ou português. A diferença
existente, do ponto de vista de gêneros discursivos, entre os textos que sustentam o trabalho
das disciplinas em francês e em italiano (textos jornalísticos exclusivamente), de uma parte, e
português (textos jornalísticos e acadêmicos), de outra, é uma característica importante dessa
constelação. No caso das aulas de leitura em português, as filiações identitárias evidenciadas
na compreensão ativa das enunciações dos aprendizes-leitores os apresentam “autorando”
(FARACO, 2006) os textos acadêmicos lidos em sala de aula desde diversos
posicionamentos, de forma dinâmica e, por momentos, conflituosa.
Palavras chave: leitura em língua materna e em língua estrangeira – gêneros discursivos –
comunidades de práticas
1. Introdução
O presente trabalho é um recorte de uma pesquisa (ORLANDO, 2012) cujo cenário
consiste em aulas de leitura, concebidas como apóio para a leitura de bibliografia
especializada, endereçadas a alunos de uma universidade pública do Uruguai. Trata-se de
cursos de leitura em línguas estrangeiras próximas (francês, italiano e português) para
aprendizes adultos hispano-falantes.
O embasamento teórico que constrói minha visão do “objeto de pesquisa” é o
dialogismo bakhtiniano. Esta linha de pensamento sobre a linguagem e o acontecer discursivo
convoca um olhar de cunho etnográfico, inserido na linha de pesquisa qualitativa, sobre esse
“objeto”.2
1
Ponencia apresentada no Simpósio “Iden(en)titatis: o lócus na différance” coordenado pelo Prof. Dr. Hilário I.
Bohn (UCPel).
2
Sobre estas questões, que não serão aprofundadas nesta ocasião, vide Orlando (2012) Capítulos 1 e 4.
2
A aproximação dialógica às atividades de leitura e escrita sustenta-se na concepção de
múltiplos letramentos (cf. BARTON, 1994, GEE, 1996, SOARES, 2006, entre outros). Segundo
esta visão tais atividades são entendidas como acontecimentos sociais e culturais em torno à
língua escrita: o indivíduo letrado é quem usa socialmente a leitura e a escrita, praticando-as
como formas de funcionamento social dentro de sua comunidade. As atividades sociais que
envolvem a escrita, dependentes da natureza e estrutura da sociedade e de projetos que diversos
grupos sociais procuram implementar, variam no tempo e no espaço, sendo impossível formular
um conceito único de letramento adequado a todas as pessoas, em todos os lugares, em qualquer
tempo, em qualquer contexto cultural ou político.
A compreensão da complexidade dos letramentos quando envolvidos nas práticas
educativas, como é o caso deste cenário de pesquisa, complementa-se com a noção de
“comunidades de prática” (WENGER, 1999), segundo a qual as pessoas, enquanto definimos
empreendimentos e nos engajamos conjuntamente em sua busca, interagindo uns com os
outros e, portanto, com o mundo, aprendemos. A aprendizagem é considerada parte integral
de nossas vidas como indivíduos, da vida das comunidades (que através dela refina as práticas
e assegura novas gerações de membros) e das organizações (porque permite sustentar as
diversas comunidades de prática através das quais se torna eficaz e valiosa). O conceito de
comunidades de prática permite incorporar a consideração da relação entre prática e
identidade. Sendo que o desenvolvimento de uma prática requer a formação de uma
comunidade cujos membros possam se engajar uns com outros e reconhecer-se como
participantes, a prática envolve modos de ser como pessoa. Por conseguinte, a formação de
uma comunidade de prática também é a negociação de identidades.
Neste trabalho mostrarei como se evidencia a dimensão ativo-dialógica da
compreensão, i.e., seu elemento valorativo (BAKHTIN, [1974]-2003), nas atividades de
leitura em português de textos acadêmicos frente à leitura de textos jornalísticos, e o que
acontece com tal dimensão segundo essa dualidade textual-enunciativa. Os textos pertencentes
ao âmbito genérico3 acadêmico são identificados como particularmente complexos,
particularmente “estrangeiros” ou “alheios”. Ao mesmo tempo examinarei como as
características das práticas de uma comunidade dialogam com características de identidade.
3
Por âmbito genérico entendo aqui o âmbito de determinados gêneros discursivos, isto é, de tipos relativamente
estáveis de enunciados desenvolvidos num determinado campo de utilização da língua (BAKHTIN, [1952-3]2003).
3
2. Autorar na comunidade de prática em letramentos em língua estrangeira: a
responsividade dos “recém-chegados”
Nos diversos eventos de leitura conjunta4 em sala de aula de língua portuguesa é possível
observar como se promove a recuperação do “indivíduo falante” do texto (ORLANDO, 2012).
Produz-se, gradual e conjuntamente, uma materialização ou “corporificação” da voz que enuncia
o texto. Aparece a autoria discursiva. E junto a ela, aparece o interpretador (cf. BAKHTIN,
[1970-1]-2003, p. 389-90 e [1974]-2003, p. 404-5).
Desde uma perspectiva dialógica, não se trata de um autor ideal, como também não de
um “ouvinte” ou interpretador ideal, porque este “[...] é, no fundo, um reflexo especular, uma
dublagem do autor. Ele não pode introduzir nada de seu, nada de novo na obra interpretada em
termos ideais [...]” (BAKHTIN, [1974]-2003, p. 405). Já na visão dialógica, os autores e os
“ouvintes”-interpretadores, indivíduos empíricos, participam de um jogo de co-criação. Este é o
jogo constituinte da dimensão ativo-dialógica da compreensão que completa o texto,
continuando sua criação e não simplesmente “dublando um sentido”. “O acontecimento da vida
do texto [...] sempre se desenvolve na fronteira de duas consciências, de dois sujeitos”
(BAKHTIN, [1959-61]-2003, p. 311, grifo do autor).
“Autorar, nesta perspectiva, é orientar-se na atmosfera heteroglótica; é assumir uma
posição estratégica no contexto de circulação [...] das vozes; é explorar o potencial da tensão
criativa da heteroglossia dialógica [...]” (FARACO, 2006, p. 83, grifo do autor). E, compreender
ativamente é se posicionar, estratégica e avaliativamente, desde alguma visão do mundo, desde
algum ponto de vista que, no ato da compreensão não excluem a possibilidade de mudança “[...]
e até de renúncia aos [...] pontos de vista e posições já prontos” (BAKHTIN, [1970-1]-2003, p.
378). Assim mesmo, as atividades de autorar e compreender dependerão do gênero do enunciado
que, por sua vez, é determinado pelo objeto, pelo fim e pela situação do enunciado (ibidem).
O jogo de co-criação faz parte da negociação de sentidos que acontece em toda
comunidade de prática. E traz a tona, ainda, os modos de pertencimento à comunidade, isto é, as
identidades de seus membros. Como já foi dito, uma comunidade de prática envolve também a
negociação de formas de ser da pessoa nesse contexto: prática e identidade se espelham uma na
outra (WENGER, 1999, p. 149-163). Ao mesmo tempo, as identidades de todos aqueles
indivíduos que integram uma comunidade de prática são entendidas como experiências de
filiação múltipla.5
4
Além da leitura conjunta, localizada em sala de aula, as outras duas modalidades de leitura observadas nessa
comunidade de prática são leitura preliminar fora da sala de aula e dentro da sala de aula.
5
Cada pessoa, engajada em diferentes práticas em cada uma das comunidades às que pertence, amiúde se comporta
diferentemente nelas, construindo diferentes aspectos de si. Wenger (ibidem) discute tanto o conceito da identidade
como essência fixa quanto uma visão de identidade fragmentada. Prefiro ver a identidade como um espaço aberto,
4
As identidades se constroem em contextos sociais, através do tempo, seguindo diversas
trajetórias em que a tensão entre o familiar e o desconhecido vai se apresentar de formas
diferentes. Essa tensão, enquadrada em sua evolução temporal, nos permite pensar, dentre outras
possíveis, em trajetórias de entrada e em trajetórias de insiders ou membros privilegiados. As
trajetórias de entrada são percorridas pelos recém-chegados (neste caso, os aprendizes-leitores da
comunidade de práticas de letramentos em português como língua estrangeira) que se
incorporam na comunidade com a perspectiva de se tornar membros plenos da comunidade: suas
identidades estão envolvidas com sua participação futura. Todos os que participamos de
trajetórias de entrada numa nova comunidade entramos em contato com novas práticas,
aventurando-nos em territórios desconhecidos. As trajetórias dos insiders (neste caso, a
professora da turma) aludem às formas de evolução de suas identidades. Com efeito, a formação
de identidade não é um processo que finalize ou conclua: continua através de novas demandas,
novos eventos, etc. que criam ocasiões de renegociá-la. Quando agimos dentro de uma
comunidade de prática da qual somos insiders, nos sentimos em território familiar: entendemos o
que os outros fazem porque entendemos o empreendimento em que os participantes engajam-se.
Sendo que todo indivíduo leitor, enquanto co-criador de um texto, ao compreendê-lo
ativamente ou “autorá-lo” se posiciona desde algum ponto de vista, podemos avançar que a
dimensão ativo-dialógica da compreensão esteja intimamente ligada a algum posicionamento
identitário. Assumindo uma perspectiva que entrosa esta dimensão da compreensão bakhtiniana
às identidades, é possível desenvolver uma análise de acontecimentos discursivos que dê conta
da dualidade “dimensão ativo-dialógica~ posicionamento identitário”.
As práticas de letramento circulam, se criam e recriam dentro das “comunidades
discursivas”, isto é, grupos de pessoas que compartilham textos e práticas. A noção de
“comunidade interpretativa” (FISH, [1980]-2000, 14-6) permite afunilar o ponto, haja vista
sua ênfase no trabalho de interpretação, ou, em termos dialogistas, no trabalho de
compreensão ativa, co-criadora, própria da atividade de “autorar” textos. Fish (ibidem) parte
de considerar que, enquanto leitores, construímos interpretações cujos sentidos não são
produzidos individualmente, nem estão depositados no texto, prontos para serem descobertos.
Nossas interpretações trazem sentidos compartilhados socialmente, “autorizados” pelos
membros de alguma comunidade interpretativa. Isto faz com que possa se reconhecer alguma
estabilidade de interpretação entre os diferentes leitores, porque, precisamente, trata-se de
inacabado, ou dito por outras palavras, dinâmico e fluido. Nada impede que esse dinamismo incorpore também um
viés contraditório e ou conflituoso, não necessáriamente equivalente à fragmentação.
5
membros que pertencem à mesma comunidade. E faz com que possa se falar em diferentes
“formas de leitura”, como manifestações de perspectivas de diferentes comunidades.
A dualidade “dimensão ativo-dialógica (da compreensão)~posicionamento identitário”
estaria, portanto, vinculada às formas interpretativas que circulam dentro das comunidades
(interpretativas) a respeito dos gêneros discursivos: “autoramos” como o fazemos porque
contamos com “chaves” ou permissões a respeito de como compreender ativamente. Somos
educados (ou, ecoando palavras foucaultianas, “disciplinados”) para compreender ativamente de
formas diversas.
Ao examinar diversos eventos de letramento desenvolvidos em torno a textos
jornalísticos na sala de aula de português como língua estrangeira foi possível ver de que forma
diversos aprendizes-leitores “autoram” o texto lido e, mediante sua compreensão ativo-dialógica,
expressam algum posicionamento identitário dentro da multi-filiação própia de todo indivíduo
(ORLANDO, 2012, Capítulo 7). As vozes participantes nesses eventos dão conta de
compreensão ativo-dialógica, porque leem o artigo e re-criam seu sentido, nos diversos casos, se
posicionando desde algum ponto de vista ou visão do mundo. No caso dos textos jornalísticos,
não há limites, em termos de indivíduos com multi-filiação identitária, a respeito de nossa
responsividade sobre esses textos: o livre pensamento iluminista cria a ilusão de responsividade
ilimitada. Assim, esses textos “habilitam” formas de responsividade correspondentes com
diversas filiações identitárias além da comunidade de prática de letramentos em línguas
estrangeiras próximas (mãe, mulher, etc.). Também a identidade de “recém-chegados” à
comunidade de práticas de letramentos em línguas estrangeiras próximas está presente na sala
de aula; nos dados registrados há múltiplos exemplos a respeito desta questão. Mas os
aprendizes-leitores são também “recém-chegados” à comunidade acadêmica: na seguinte
seção do trabalho examinarei esta questão.
3. Manifestações identitárias expressas através da dimensão ativo-dialógica a respeito de
textos acadêmicos
Durante a primeira parte do curso de leitura em português como língua estrangeira
apresentam-se textos jornalísticos enquanto na segunda se leem textos acadêmicos. Desta forma
procura-se conciliar a comunidade “imaginada”6 pela instituição (leitores de textos acadêmicos
em língua estrangeira) e a comunidade enfatizada pela professora (leitores de textos em língua
6
Comunidade “imaginada” (cf. ANDERSON, [1983]-2002) metaforiza aqui a visão institucional que assume a
comunidade de aprendizes dos cursos de leitura em línguas estrangeiras como um espaço homogêneo em termos
de expectativas (ler textos acadêmicos) a respeito desses cursos.
6
estrangeira). Mas essa “conciliação” de comunidades de prática não é realizada sem que no
caminho aconteçam sinais conflituosos. Os mesmos referem à dualidade “dimensão ativodialógica (da compreensão) ~ posicionamento identitário” dos aprendizes-leitores. Aos efeitos
de interpretar tais sinais em chave desta dualidade, apresento um evento acontecido no último
mês das aulas.7
Evento 1:“¡Estamos en japonés!”
1. P- (...) bem escutem. então. vamos passar ao texto seguinte. que. era fácil e vocês devem ter
2. lido. imagino..
3. ε- aah!
4. γ- este sí pero el otro no..
5. P- então.. os primeiros habitantes ((referindo-se ao título do texto que vão trabalhar))..
6. facílimo!.. ((enquanto P fala, se ouvem vozes de AA que falam entre eles))
7. γ- el primero no tuve problema
8. ε- síí!
9. P- facílimo!...
10. γ- el primero. un boleto! pero el segundo..
11. P- claro! ah! el. descobrindo línguas africanas... ((referindo-se ao título do texto que vão
12. trabalhar posteriormente)) estamos quase terminando já! ((continuam ouvindo-se vozes de AA
13. que falam entre eles))
14. α- estamos en japonés!
15. P- eh?
16. α- estás dando japonés!
17. P- estamos en japonés?
18. γ- síí.. bastante porque (---) (…)
19. ζ- claro lo que pasa es que. a mí a mí me resultó difícil.. no solamente la.. (experiencia) de lo
20. gramatical.. sino.. algunas palabras.. no entendí. entonces es como que perdí parte del hilo (--)
21. γ- aparte dee. de lo que el (texto) dice
22. P- si lo que pasa es que.. hay que ver.. que es una publicación ya. una publicación académica.
23. el boletín de la (…) ...
24. γ- aah! con. claaro!
25. P- então já é um texto mais...
26. γ- ya está (todo---)..
27. P- duro. né?
(…)
Aula de leitura em português, 21/6/06
Este intercâmbio faz parte do início da leitura do texto “Primeiros habitantes”. 8 Os
comentários de P o avaliam como um “texto fácil” (linha 1), inclusive, “facílimo” (linha 6),
valoração com a que γ manifesta sua concordância (linhas 4, 7 e 10), recorrendo à expressão
“ser un boleto”, i.e. “muito fácil”, do espanhol coloquial rio-platense. A contribuição de γ
7
Este faz parte de um conjunto de sete eventos analisados em Orlando (2012).
Em: Azanha e Valadão. Senhores destas terras: os povos indígenas no Brasil: da colônia aos nossos dias. SP:
Atual, 1991.
8
7
(linha 10), por sua vez, introduz uma comparação entre “Primeiros habitantes” e
“Descobrindo línguas africanas”9, texto marcado como próxima leitura: “el primero. um
boleto! pero el segundo..”. P lembra à turma que estão chegando ao final do semestre (linha
12, “estamos quase terminando”), o que pareceria explicar a dificuldade maior desse outro
texto. E é então que a voz de outra aluna acrescenta: “estamos en japonês!” (linha 14). As
aulas, a seu ver, já não são de português, mas de japonês. Se a professora não parece
compreender inicialmente o comentário (linhas 15 e 17), outros AA recuperam a contribuição
de α, acrescentando que percebem dificuldades não só de ordem gramatical, mas também
léxica (“algunas palabras.. no entendí. entonces es como que perdí parte del hilo” em turno
17) e temática (“lo que el texto dice” linha 21). P busca explicar que o que acontece é que
esta é uma publicação acadêmica (linha 22) e, portanto, o texto é “mais duro” (linhas 25 e
27).
As relexificações sobre os textos acadêmicos (isto é, os significados expressos pelas
palavras ditas por diferentes AA para referir-se a esses textos) podem ser entendidas como
formas da dimensão ativo-dialógica a respeito dos textos. De muita força expressiva é a
sugerida na enunciação de α, quando exclama: “estamos em japonês!”. Mediante este
comentário, metaforiza-se muito mais que “o texto x me parece mais complexo que o texto
y”. Para um hispano-falante, “estar em japonês” envolve o distante, o diferente, aquilo que
sugere maior complexidade ao procurar chaves para decifrar. Nesse momento do curso, o
expressado por α a situa “lost in translation”.10
“Estar em japonês”, se sentindo “lost in translation”, metaforiza várias questões
percebidas pelos aprendizes-leitores.
1. Uma “mudança de fase” ou incremento da complexidade das tarefas em termos de
comunidade de usuários de uma língua estrangeira.11
2. A apresentação identitária de recém-chegados à comunidade de prática acadêmica.
Esta questão é duplamente complicada porque as turmas de alunos das disciplinas de leitura
em línguas estrangeiras da instituição integram alunos cuja trajetória dentro da comunidade de
prática é muito recente e, ao mesmo tempo, é diversa. Isto é, do ponto de vista disciplinar, os
9
Em: Atas da Associação Brasileira de Lingüística. SP: USP, 1993, p. 333-9.
Isto é, perdida no meio de um lugar incomprensível, como acontece com Bob (Bill Murray) e Charlotte
(Scarlett Johansson) no filme homônimo. Embora esteja me referindo aqui a uma única voz, vale notar que,
assim como em outras ocasiões as vozes de AA polemizam entre elas e são capazes de mostrar visões
divergentes, nesta oportunidade não há nenhuma voz que contradiga o falado por α no evento apresentado.
10
11
Sobre esta questão, não aprofundada neste trabalho, vide Orlando (2012).
8
integrantes de uma mesma turma podem pertencer, ou melhor, estar em processo de
incorporação, a diferentes comunidades acadêmicas.
3. A percepção de requerimentos específicos, “rigorosamente monitorados”, para ler
como insider de uma disciplina acadêmica.
Para aprofundar sobre os pontos 2 e 3 apresento um segundo evento, que acontece
enquanto a turma está trabalhando com o texto “Descobrindo línguas africanas”.
Evento 2: “No entendimos nada!”
β- sabés que pasó algo peor. no es que NO hayamos leído el texto..
δ- es que no entendimos nada! ((fala isso rindo e vários riem))
ρ- lo leímos ayer..
P- bueno. acá tienen una especie de guía..((ela ri))
β- (---) comprensión lectora
Aula de leitura em português, 26/6/06
Neste caso β, δ e ρ explicam, em contribuições sucessivas entretecendo uma única
explicação, que o que aconteceu com elas foi “pior” do que não ler (já que elas sim leram
previamente): “não entenderam nada”. Essa micro-narrativa entretecida entre as três vozes
comporta risos, acompanhados por P que, por sua vez lhes explica que, mediante as
perguntas, contam com uma guia de leitura. Como acontece em outros eventos não
incorporados nesta ocasião, a brincadeira das AA, pode ser entendida como manifestação da
dimensão ativo-dialógica de sua compreensão. A forma em que AA carregam
axiologicamente os recursos da comunidade de usuários da língua, as apresentam, em termos
de posicionamento identitário, como “recém-chegados” à comunidade de práticas em
letramentos em línguas estrangeiras.
Mas, essa faceta da dualidade “dimensão ativo-dialógica~posicionamento identitário”
não é a única que comparece aqui. Apontei antes que, dada a inclusão de textos do âmbito
acadêmico na disciplina de leitura em português, dar-se-ia uma conciliação em termos da
comunidade de prática de leitores de textos acadêmicos em língua estrangeira e a comunidade
de leitores de textos em língua estrangeira.
As brincadeiras seriam formas paródicas, duplicadas, que “faltam o respeito” a uma
realidade contraditória (BAKHTIN, [1940]-1998, p. 377-8). No caso do Evento 2, a realidade
desrespeitada é a do âmbito acadêmico: quando β, δ e ρ brincam a respeito de “ler e não
entender nada”, o fazem, precisamente, desde outro posicionamento identitário: o de leitores
de textos acadêmicos em língua estrangeira.
9
Em linhas gerais, os eventos de letramento entrosados por textos acadêmicos se
desenvolvem em modos análogos aos eventos de letramento entrosados por artigos
jornalísticos, mesmo se poderíamos esperar situações diversas em função do expresso pelos
protagonistas de diversos eventos analisados. Por exemplo, poderíamos imaginar que AA
ficariam “silenciados”, uma vez que pareceria haver dificuldades a respeito de outras
dimensões da compreensão (em particular, a compreensão do significado dos textosenunciados em seu contexto “disciplinar”). A leitura conjunta em sala de aula de textos
acadêmicos não se modifica em termos da dinâmica interativa caracterizadora da leitura
conjunta de textos jornalísticos e também não se modificam os posicionamentos identitários
(cf. ORLANDO, 2012). Este seria o ponto mais interessante da questão. As participações dos
aprendizes-leitores durante a leitura conjunta de textos acadêmicos não são construídas desde
o lugar do “conhecimento experto” numa temática determinada, mas desde o lugar de
aprendiz de língua estrangeira, ou desde posicionamentos mais “multi-afiliados” (por
exemplo, o lugar de mãe e o lugar de aprendiz de português).
Porém, quando β, δ e ρ brincam a respeito de “ler e não entender nada” (Evento 2), o
fazem, precisamente, desde o posicionamento identitário de leitores de textos acadêmicos em
língua estrangeira. Como já foi assinalado esta questão é duplamente complicada porque as
turmas de alunos das disciplinas de leitura em línguas estrangeiras da instituição integram
alunos cuja trajetória dentro da comunidade de prática é muito recente e, ao mesmo tempo, é
diversa. Isto é, do ponto de vista disciplinar, os integrantes de uma mesma turma podem
pertencer, ou melhor, estar em processo de incorporação, a diferentes comunidades
acadêmicas.
Quando fiz referência à brincadeira de AA (“limos e não entendemos nada”), aludi à
concepção bakhtiniana das formas paródicas como um “desrespeito” à realidade contraditória.
Como explica Faraco (2006, p. 78-9), tal concepção do riso é uma manifestação da
“consciência descentrada”, isto é, uma consciência que ri dos discursos como forma de deixar
claro sua unilateralidade e seus limites. “A consciência socioideológica passa a percebê-los
como apenas uns entre muitos e em suas relações tensas e contraditórias. O riso destrói,
assim, as grossas paredes que aprisionaram a consciência no seu próprio discurso [...]”
(ibidem). Essa brincadeira convoca, “desrespeitando-o”, o discurso acadêmico e, por sua vez,
outra questão: as comunidades interpretativas científico-acadêmicas.
Assinalei antes que a dualidade “dimensão ativo-dialógica (da compreensão)
~posicionamento identitário” estaria vinculada às formas interpretativas que circulam dentro das
comunidades (interpretativas) a respeito dos gêneros discursivos. No caso dos textos
10
jornalísticos, os textos seriam “autorados” em múltiplas formas pelos diversos indivíduos multiafiliados identitariamente: a dimensão ativo-dialógica da compreensão aparece, nestes casos,
“liberada” de limites porque a respeito desses textos, o acento social constrói uma
permissividade a respeito da entonação expressiva individual (cf. BAKHTIN, [1929]-2006). Já,
no caso de textos científico-acadêmicos circulando dentro de determinados gêneros discursivos,
a permissividade é outra: a “comunidade interpretativa científico-acadêmica” educa seus
membros, em termos de dimensão ativo-dialógica, de forma bem diversa.
As convenções dos gêneros discursivos acadêmicos são sutis e complexas: elas
respondem a molduras epistemológicas que são, com frequência, específicas para cada
disciplina. Assim, os enunciados produzidos dentro desses gêneros divergem, não só em termos
de conteúdo temático, mas também de construção composicional e “estilo” segundo as áreas de
conhecimento (cf. HYLAND, 2004, p. 145-6 e HYLAND, 1999). A apropriação das “palavras
alheias” (BAKHTIN, [1952-3]-2003) do âmbito acadêmico falado e escrito é um processo
complexo para os alunos universitários uruguaios, que se incorporam ao âmbito acadêmico
hispano-falante. Só muito recentemente, dentro da instituição universitária em que se
desenvolveu a pesquisa, está problematizando-se o assunto da produção acadêmica e
procurando-se formas de “socialização acadêmica” para os recém-chegados as comunidades de
prática acadêmicas dessa faculdade.
Assim, a impressão de estar lost in translation, no caso dos aprendizes-leitores da
disciplina de leitura em português como língua estrangeira, vai além do caráter de “palavras
alheias” da nova língua (isto é, o português), convocando o caráter de “palavras alheias” dos
discursos acadêmicos na “própria” língua, isto é, espanhol. E a expressão “estar em japonês”
é uma forma de responsividade também a respeito das chaves de interpretação da escrita
“científica” e, consequentemente, de sua leitura, cujas chaves interpretativas foram
construídas pela “comunidade científica” através dos séculos.12
Todo enunciado está “endereçado” ou “direcionado” a alguém: por exemplo, uma
coletividade diferenciada de especialistas de algum campo especial de conhecimento
Através da história, estas chaves iniciam sua viagem de construção a partir das grandes mudanças que
acontecem no pensamento europeu moderno sobre religião e ciência (OLSON, 1998, pág. 167-203). Tratava-se
de “por o mundo em papel” (OLSON, 1998, 200) e, para fazer isso, precisava reformular-se a linguagem de
forma tal de convertê-la num instrumento claro de representação não distorcida da natureza (ZAGORIN, 1999,
p. 176-7). Esta preocupação sobre o efeito que a linguagem podia ter na elaboração do discurso produzido para
criar e difundir o conhecimento científico acompanha o debate intelectual da Europa Moderna. E continua ao
longo do século XIX, em que o projeto positivista sonha com ser uma “cópia” da natureza, sendo o discurso
científico seu “quadro” ou retrato fiel (cf. FOUCAULT, [1966]-1985, p. 290). Não busco sugerir uma
continuidade ingênua das formas de pensamento de ambas as épocas: trata-se de recuperar, sim, alguns
elementos mínimos que vão tecendo um fio continuo através de elaborações conceituais que deveriam ser
analisadas detalhadamente.
12
11
(BAKHTIN, [1952-3], 2003, p. 301), como é o caso dos textos científico-acadêmicos. Além
da sofisticação das múltiplas diferenciações dos campos científicos do mundo ocidental
contemporâneo e de seus diferentes valores no “mercado simbólico do conhecimento” (cf.
BOURDIEU, 1988, xi-xxvi e 1-35), questões que não serão aqui aprofundadas, é importante
fazer notar que “Para o indivíduo não iniciado [...] escrever ciência é se engajar numa
empresa impessoal, empírica e cumulativa, cujas normas são rigorosamente monitoradas pelas
disciplinas” (HYLAND, 2004, p. 163).13 E para os próprios insiders, sua escrita está permeada
pela importância de apelar a leitores dentro dos limites de um discurso disciplinar,
projetando assim um “etos” de insider como forma de exibir credibilidade e adesão (cf.
HYLAND, op.cit., p. 170).
De acordo com a dimensão ativo-dialógica manifestada na brincadeira (Evento 2) e na
expressão “estar em japonês” (Evento 1), os aprendizes-leitores parecem se posicionar mais
perto da visão dos “não iniciados” da comunidade científico acadêmica. Porém, “mais perto”
não é equivalente a “coincidente”. Dado que eles estão matriculados em alguma área
disciplinar da Faculdade, já tiveram contato prévio, embora limitado a quatro semestres no
máximo, com as disciplinas específicas de cada campo acadêmico. Isto é, estão percorrendo a
trajetória de entrada à comunidade de prática acadêmica. Enquanto o fazem, vão entrando em
contato com as normas “rigorosamente monitoradas”, não só para escrever, mas também para
ler como insider da disciplina (por exemplo, nas instâncias de avaliação das diversas
disciplinas, ou mediante a realização das diversas atividades propostas dentro de sala de aula a
respeito desses saberes específicos).
A sala de aula de leitura em português como língua estrangeira “apaga” durante parte
do semestre os requerimentos da comunidade interpretativa científico acadêmica, enquanto os
textos lidos são textos jornalísticos. Mas, uma vez que os textos pertencem ao âmbito
genérico acadêmico, esses requerimentos aparecem.
4. Considerações finais
Em função do âmbito genérico ao qual pertencem os textos com os que o leitor entra
em contato, podemos diferenciar “modos de letramento centrífugos” e “modos de letramento
centrípetos”. Os centrífugos são formas de leitura da comunidade interpretativa capazes de
habilitar maior negociação de sentidos e, ao mesmo tempo, maior abertura ou
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No original: “To the outsider then, to write science is to engage in an impersonal, empirical and cumulative
enterprise whose methodological standards are rigorously monitored by the disciplines”.
12
“imprevisibilidade” das formas da dimensão ativo-dialógica da compreensão. Os centrípetos
são formas de leitura da comunidade interpretativa tendentes a maior reificação de sentidos,
assim como a menor abertura ou “previsibilidade” das formas da dimensão ativo-dialógica da
compreensão.
Street (1993, apud BARTON, 1994, p. 39) aponta a distinção entre letramentos
dominantes –originados nas instituições dominantes da sociedade- e letramentos vernaculares,
que têm suas raízes na vida cotidiana. Essa distinção vincula-se ao reconhecimento da
circulação de Discursos Primários (construídos nos processos de socialização da infância) e
Discursos Secundários (construídos por instituições sociais tais como escolas, lugares de
trabalho, etc.) nas comunidades discursivas (cf. GEE, 1996). O entrosamento destes Discursos
ao longo da vida de um indivíduo constrói a heteroglossia própria da linguagem (BAKHTIN,
[1934-5]-1998) e se evidenciaria, também, em manifestações heteroglóssicas da dimensão
ativo-dialógica, entrosando os modos de letramento centrípeto e centrífugo. As expressões
dessa dimensão a respeito dos textos acadêmicos deixam ver, em minha opinião, traços do
entrosamento de ambos os modos de letramento, no caso dos aprendizes-leitores dentro da
comunidade de prática de letramentos em português como língua estrangeira.
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13
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14
APÊNDICE
Normas empregadas para a transcrição da interação verbal
P
Professora
A
Voz de um aluno não identificado
AA
Vozes de vários alunos não identificados
μ, ι, ε, ψ,
ψ1
…
Vozes de diferentes alunos da turma
identificadas na gravação
(())
Comentário do analista
(...)
Trecho omitido pelo analista
.
Micro pausa
..
Pausa média
...
Pausa longa
?
Entonação interrogativa do enunciado
!
Entonação exclamativa do enunciado
MUY
lindo
O uso de maiúsculas indica ênfase
Noo
Prolongamento vocálico
[
Turno superposto

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