O Crime dos Illuminati - Fórum Anti Nova Ordem Mundial

Transcrição

O Crime dos Illuminati - Fórum Anti Nova Ordem Mundial
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César Vidal
O CRIME DOS
ILLUMINATI
Tradução
ANTÔNIO FERNANDO BORGES
Título original: Los hijos de La Luz
© Copyright 2005: Random House Mondadori, S.A., Barcelona
© Copyright 2006: César Vidal Direitos cedidos para esta edição à
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A RELUME DUMARA É UMA EMPRESA EDIOURO PUBLICAÇÕES
Revisão Maria Helena Huebra
Editoração Dilmo Milheiros
Capa Simone Villas-Boas
CIP-Brasil. Catalogaçao-na-fonte. Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.
V691f
Vidal, César, 1958-O crime dos Illuminati / César Vidal ; tradução Antônio
Fernando Borges. - Rio de Janeiro : Relume Dumará, 2006
Tradução de: Los hijos de Ia luz ISBN 85-7316-491-3
1. Romance espanhol. I. Borges, Antônio Fernando, 1954-. II. Título.
06-3160
CDD 863
CDU 821.134.2-3
Todos os direitos reservados. A reprodução não-autorizada desta publicação, por
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Para aqueles que combatem, incansáveis,
honrados e valentes, as obras ocultas das trevas
Sumário
Primeira parte
OS FILHOS DA LUZ
Segunda parte
CONSPIRAÇÃO
Terceira parte
NÊMESIS
Epílogo
A bela Lola, por Zoé Valdés
PRIMEIRA PARTE
Os filhos da luz
Um
Paris, 21 de janeiro de 1793
REALMENTE
É MUITO CURIOSA
a maneira como as impressões ficam gravadas
em nosso cérebro, para depois emergirem, de vez em quando, graças ao efeito quase
mágico da memória. De um desfile demorado, recordamos não a aparência marcial do
elegante capitão ou as palavras piedosas pronunciadas de maneira emotiva pelo capelão
ao abençoar as tropas, nem mesmo a variedade de cores dos uniformes. O que fica
retido em nossa mente, pelo contrário, é o semblante acalorado de um soldado
camponês, suarento e avermelhado, a quem o uniforme de gala atormentava como se o
estivesse submetendo a uma tortura. De um te-déum solene esquecemos a pregação
sentida do Evangelho, o grande número de fiéis e até o motivo transcendental da
cerimônia impressionante, mas no coração fica impressa a aparência sonolenta de um
sacristão barbeado com descuido ou da anciã que cochilava durante a homilia. Assim
age a memória, e a de Karl não era uma exceção entre as de outros tantos integrantes do
gênero humano. Daquela manhã, ele se lembraria de muitas coisas, mas, principalmente,
ficaria inscrita em suas lembranças a colocação assimétrica do patíbulo.
Tratando-se de uma praça e levando-se em conta a quantidade nada desprezível
de espectadores — podia-se dizer que metade de Paris estava concentrada naquele lugar
— o mais lógico teria sido instalar aquele ambiente de morte no centro, procurando a
eqüidistância, para que o maior número possível de espectadores contemplasse, talvez
até com deleite, quase sempre com curiosidade, o que iria acontecer dentro de alguns
segundos. No entanto, no fim das contas, os guardiães da revolução, os defensores da
liberdade, os impulsionadores da igualdade tinham optado por colocá-lo quase numa
esquina.
O patíbulo se erguia, assim, entre o caminho que levava aos Champs Eliseés e
um curioso... pedestal? Sim, tudo parecia indicar que aquele volume enorme e quase
amorfo tinha sido um pedestal em algum momento de um passado talvez não distante.
Se bem que, a ser assim, para que estátua exatamente ele tinha servido de plataforma?
Devia ter sido uma escultura odiada, porque a tinham arrancado quase pela raiz. Nem
mesmo o pedestal tinha se salvado da ação daquelas multidões que os dirigentes da
revolução chamavam com vigor de "cidadãos" e de "o povo". Karl achou inclusive que,
em outros tempos, o pedestal devia ter contado com um revestimento de mármore e
bronze, mas desses materiais tão nobres só restavam agora fragmentos em mau estado.
Até a pedra, que agora aparecia, riscada e triste, a descoberto, como uma mulher que
tivessem tirado da cama para lhe arrancar a roupa em seguida, tinha um aspecto
deplorável, como se alguém tivesse tido prazer em espancá-la e, no final, enfadado e
exausto, tivesse desistido da tarefa extenuante.
O cadafalso tinha sido erguido a poucos passos daquele vestígio lastimável de
um passado que, de tão próximo, quase parecia presente e que os "cidadãos" desejavam
arrancar pela raiz. Tinha sido coberto por tábuas compridas, colocadas de maneira
transversal, que serviam para esconder uma complicada estrutura que parecia
proveniente do Garde-Meuble1. Exatamente no extremo oposto ficava a escada sórdida
que terminava na parte alta do cadafalso, desprovida de corrimão.
Karl sentiu como se uma bola de metal o atingisse violenta e inesperadamente
na boca do estômago, quando contemplou um objeto de forma cilíndrica colocado sobre
o patíbulo. Estava coberto de couro e, sim, não restava dúvida, era a cesta onde a cabeça
do condenado deveria cair. Claro que não se tinha certeza de que fosse acontecer assim.
De saída, a lâmina da guilhotina não parecia muito pesada. Na verdade, era pequena e
tinha uma forma curva, quase como um daqueles gorros frígios que muitos dos
presentes usavam. Como não se via nenhum dispositivo que pudesse segurar a cabeça
do réu uma vez que tivesse sido separada do corpo, podia-se imaginar que ela saltaria
do cadafalso e talvez chegasse até a multidão. Os servidores da liberdade teriam
preparado tudo dessa maneira ou, pelo contrário, tratava-se de mais uma demonstração
de incompetência, que por ser grosseira não era menos soberba, e da qual davam
mostras com tanta freqüência? Karl não sabia e, para falar a verdade, também não tinha
nesses momentos um espírito suficientemente forte para se dispor a investigar isso.
De maneira inesperada, uma rajada de vento percorreu a praça, arrancando-o
1
Edifício-museu onde ficavam expostos objetos e jóias da família real.
daquelas reflexões. Não serviu, no entanto, para aliviar o mal-estar que tinha tomado
conta dele. Pelo contrário: arrastou até seu nariz, mais forte e vigorosa, uma mistura
repugnante e variada de cheiros. Roupa suja, suor acumulado em axilas e pés, baforadas
de álcool mal digerido... tudo aquilo o envolveu com seu fedor espesso e, por um
momento, ele pensou que não conseguiria conter a ânsia de vômito. Mas conseguiu.
Custara-lhe muito chegar até ali e não estava disposto a perder o espetáculo por culpa
do asco.
Um murmúrio, inegável mas reprimido, avisou-o de que tudo iria começar em
alguns instantes. Não se enganou. Em meio a um silêncio sepulcral, uma carroça
desgastada, puxada por cavalos, entrou na praça e se dirigiu para o cadafalso. Se não
fosse pelas pessoas que ficaram na ponta dos pés para poder observar melhor a cena, e
que se espezinharam, e que amaldiçoaram, e que blasfemaram, quase teria parecido que
não havia ninguém naquele lugar.
O carro chegou, lenta mas inexoravelmente, até o patíbulo, e Karl pôde ver que
os carrascos eram quatro. Se não fosse pelas divisas, tricolores e desproporcionalmente
grandes, que usavam nos nada modestos chapéus de três pontas, qualquer um teria dito
que pertenciam ao antigo regime. As mesmas calças, as mesmas casacas, os mesmos
penteados... bem, no fim das contas, também executavam o mesmo ofício realizado
tantas vezes ao longo dos séculos.
O réu estava acompanhado por três sacerdotes, era evidente, mas o
comportamento deles não poderia ser mais dessemelhante. Dois deles estavam vivendo,
sem qualquer sombra de dúvida, um momento extraordinariamente divertido. Karl
pestanejou para ter certeza de que o que estava vendo era real, e, claro, não teve dúvida
alguma: aqueles dois clérigos brincavam como se estivessem desfrutando de uma alegre
romaria. Engoliu a saliva. A praça transbordava de inimigos do condenado, mas
ninguém tinha se atrevido a se mostrar alegre naquelas circunstâncias. Aqueles dois
eram a exceção. Inclusive, um deles tinha começado a apontar a barriga e os quadris do
réu e a zombar de suas formas.
O terceiro, pelo contrário, demonstrava um comportamento diametralmente
oposto. Da distância em que se encontrava, Karl não podia distinguir suas feições com
clareza, mas tudo parecia indicar que era vítima de um forte retesamento que talvez
pudesse ser atribuído à tristeza. Não, aquele sacerdote não apenas não se divertia com a
cena como, de fato, ela devia estar lhe causando uma dor insuportável.
O carro parou, finalmente, no meio de um espaço amplo e vazio que rodeava o
cadafalso. Sim, amplo e vazio, mas não desprotegido. Estava rodeado por canhões e
pessoas portando as mais diferentes armas. Piques2, lanças, mosquetes...
O condenado desceu do carro. Totalmente enfeitado de branco, levava nas
mãos um livrinho que Karl tentou em vão identificar e que acabou achando que fosse
um missal, um livro de salmos ou talvez um Novo Testamento. Assim que o réu pisou
no chão, três dos carrascos, daqueles carrascos que se vestiam tentando esconder sua
origem burguesa, rodearam-no e fizeram o gesto de lhe tirar a casaca. Com uma
dignidade que quase se poderia tocar como se fosse alguma coisa sólida, o homem fez
um gesto para afastá-los e se livrou ele mesmo da peça de roupa.
Por um momento, os carrascos pareceram totalmente desconcertados. Parecia
óbvio que não estavam acostumados à semelhante demonstração de dignidade —
principalmente de aprumo — por parte de alguém a quem iriam separar a cabeça do
corpo dentro de alguns minutos. No entanto, a atitude deles durou apenas um instante.
De maneira imediata, como se impelidos por uma mola, aproximaram-se do réu e
tentaram segurá-lo pelos pulsos. Karl não pôde escutar o que o condenado respondeu,
mas captou sem dúvida a firmeza, não empertigada mas natural, com que jogou o corpo
para trás para impedir que os carrascos fizessem aquilo com ele.
— O grande filho-da-puta não se deixa amarrar... — Karl escutou uma velha
colérica a seu lado resmungar. — Se fosse por mim, não iriam colocar a corda
propriamente nas mãos.
Mas além daquela mulher — que talvez não tivesse tantos anos quanto as
infinitas rugas que sulcavam seu rosto aparentavam — ninguém disse nada. Ninguém a
não ser os carrascos, que tinham começado a se agitar como se impelidos pelo ventinho
que soprava na praça. De repente, um deles levou a mão à boca como se fosse uma
trombeta e gritou algo que Karl não chegou a entender. Dois soldados que usavam o
gorro frígio vermelho se apressaram em atender a seu chamado.
Foi então que os olhos de Karl se detiveram, de forma casual, no terceiro
sacerdote, aquele que parecia profundamente triste. Pela primeira vez reparou que,
quase com toda a certeza, não era francês. Não, ele não era. Seus traços e suas feições
indicavam alguém de origem nórdica. Poderia se tratar de um alemão, de um holandês,
inclusive de um inglês. Em todo caso, não era uma circunstância tão relevante. O
significativo era que ele tinha se inclinado respeitosamente sobre o condenado e se
dirigia a ele num tom que, pelos gestos, poderia ser qualificado de submisso, até de
suplicante. Devem ter trocado apenas duas ou três frases, mas foram suficientes para
que o réu elevasse os olhos para o céu, sussurrasse alguma coisa e estendesse as mãos.
2
Lança antiga
Fez isso justo no momento em que os soldados chegavam perto dele. Ele não
poderia garantir, mas Karl teve a impressão de que um dos carrascos amarrava o réu
com uma expressão de triunfo insolente, como se fosse a consumação de um longo
processo iniciado talvez muitos anos antes. Como se pretendessem sublinhar aquele
gesto pleno de significado, os doze tamborileiros localizados ao lado do cadafalso
começaram a tocar seus instrumentos com mais energia e vontade do que arte.
Quando o réu começou a subir a escadinha que levava até a guilhotina, Karl
percebeu que os degraus eram inclinados demais. Conteve nessa hora a respiração
desejando que o condenado não escorregasse, caísse ou tropeçasse naquela subida
sinistra para a morte. Se não aconteceu nada disso, talvez se deva ao fato de que o
terceiro sacerdote, o que não parecia francês, agarrou-o pelo braço com a intenção de
ajudá-lo. No entanto, aquela colaboração piedosa durou apenas o tempo de subida.
Quando os dois atingiram a plataforma sobre a qual a guilhotina repousava, o réu se
soltou com um gesto seguro. Depois, com passos inusitadamente firmes, cruzou o
espaço que havia entre o fim da escada e a guilhotina. Fez isso com tanta calma, com
tanta segurança, com tanta serenidade que qualquer pessoa teria dito que ele passeava
por um jardim desfrutando do bom tempo.
Achava-se a ponto de alcançar a lâmina, quando parou e olhou para os
tamborileiros. À distância em que Karl se encontrava não lhe permitiu captar a carga
exata que o condenado colocou naquela expressão, mas o certo é que as mãos deles
ficaram suspensas no ar sem permitir que as baquetas sequer roçassem a pele dos
instrumentos.
— Morro inocente de todos os crimes de que me acusam — disse o réu com
uma voz sossegada, clara e suficientemente forte para que o escutassem com clareza
mais além da praça. — Perdôo os autores de minha morte, e rogo a Deus para que o
sangue que vocês estão prestes a derramar não caia nunca sobre a França.
Nem uma palavra, nem um grito, nem um silvo, nem um assovio repercutiram
depois que o condenado pronunciou aquelas últimas frases. Por um instante pareceu que
o mundo, aquele mundo extraordinariamente convulso, tinha parado, que a terra tinha
deixado de girar, que o sol se fixara no firmamento. Então, uma mão, que parecia saída
do nada, cravou-se no antebraço daquele homem vestido de branco e o puxou para a
guilhotina. Não houve nenhuma resistência. O réu parecia reconciliado com seu destino
como poucos teriam estado. Documente, quase com mansidão, permitiu que dois dos
carrascos, que continuavam com os chapéus na cabeça, estendessem-no sob a lâmina. A
execução durou alguns instantes mas, ao contrário do que Karl tinha temido, a cabeça
não saltou até o chão, mas caiu na cesta. Talvez, pensou, a pequenez da lâmina tenha
evitado aquela profanação extra.
Um dos carrascos, alto, corpulento, com aparência brutal, aproximou-se da
cesta e, agarrando a cabeça pelos cabelos, levantou-a para que a multidão a visse.
Durante alguns momentos, deixou que o sangue jorrasse abundante do pedaço de corpo
já sem vida. No entanto, aquela exibição de força triunfal não pareceu comover os
presentes, talvez impressionados demais com o que tinha acontecido durante os minutos
anteriores. Foi então que o carrasco jogou a cabeça no cesto com um gesto depreciativo
e de uma só puxada apanhou a casaca branca que estava caída no chão do cadafalso.
Agitou-a por um instante no ar como se fosse uma bandeirola e depois a atirou com
violência sobre a multidão. Por um breve instante, a peça de roupa descreveu um vôo
curto que foi abortado por um oceano de mãos que se lançaram para dela se apoderar.
Entre rugidos e gritos, uivos e clamores, aquela brancura desapareceu
completamente no meio da massa. Como a vida daquele homem que tinha acabado de
ser guilhotinado, Luís XVI, o cidadão Capeto, um monarca de trinta e oito anos com
que se encerravam oito séculos de dinastia bourbônica na França. Nada restava daquela
dinastia que um dia tinha dominado metade da Europa. Num sentido nada metafórico,
tinha sido cortada de um golpe só.
Enquanto assim pensava, Karl observou como o terceiro sacerdote, o que não
parecia francês, o que tinha tentado consolar o rei, descia agora do cadafalso,
ultrapassava a primeira linha de soldados e se perdia no meio da multidão. Parecia
atordoado, exausto, submetido a um impacto que não podia suportar. Ninguém,
absolutamente ninguém, prestou atenção nele.
Karl enfiou a mão no bolso e tirou do colete desbotado um relógio dourado.
Eram pouco mais de dez e quinze. E então, exatamente quando afastou o olhar da esfera
branca, ele o viu. Era ele, sim, era ele. Sem nenhuma sombra de dúvida. Talvez
estivesse um pouco mais magro, embora não muito, e seus cabelos estivessem mais
ralos e grisalhos, mas era ele. E o olhava. Olhava-o com aqueles olhos inquisitivos que
pretendiam, e quase sempre conseguiam, esconder o que corria pelo fundo de seu
coração.
O coração de Karl começou a bater com mais força do que a que os
tamborileiros tinham empregado para bater nos instrumentos. Sabia que o encontraria
ali. Sempre soubera disso. Não poderia ser de outra maneira. E agora, enfim,
encontrava-o. Ali, no mesmo lugar onde acabava de desaparecer a monarquia mais
importante da Europa. Apertou os punhos, respirou e tentou abrir caminho até o lugar
onde ele se encontrava. Deu dois, três, quatro empurrões para alcançá-lo. Mas, de
repente, desapareceu. Angustiado, movimentou a cabeça para um lado e para o outro,
até que seu pescoço doeu, enquanto procurava encontrá-lo.
Empenhava-se nisso quando uma das abas da casaca ficou agarrada entre duas
matronas que conversavam animadamente, ainda que sem muito critério, sobre a
execução do Capeto. Conseguiu recuperá-la, suja e amarrotada, de um puxão, e,
seguindo um impulso instintivo, tentou lhe devolver uma elegância que talvez tivesse
perdido para sempre. Foi então, quando levantou a vista, com a desolação embargando
seu rosto, que ele o viu novamente. De maneira incrível, tinha conseguido se livrar
daquele imenso mar de corpos malcheirosos, e se colocar na outra extremidade da praça
abarrotada. Mas como ele tinha conseguido isso? Karl cravava os cotovelos, os punhos,
os antebraços em qualquer ser vivo que se interpusesse em seu caminho. Não, agora não
podia tornar a escapar. Tinha que agarrá-lo.
O fugitivo — porque ele era isso, de fato — livrou-se daquele pesado
espartilho humano entretecido com milhares de corpos quando Karl estava a quase
duzentos passos dele. Arfando, suando por todos os poros, reprimindo as maldições que
lutavam para brotar de seus lábios, contemplou desesperado como sua presa inatingível
apertava o passo e, quando chegou a uma esquina, começava a correr.
Demorou ainda alguns minutos para se livrar daquela maré, em que não eram
poucos os que já se vangloriavam de contar com um retalho da casaca branca do
Capeto. Quando conseguiu, começou a correr, embora estivesse consciente de que não
tinha rumo certo nem sabia em que direção seguir. Não poderia dizer o tempo que durou
aquela corrida, mas, por fim, o esgotamento o obrigou a encerrá-la e Karl teve que se
apoiar contra o muro gelado de uma rua desconhecida tossindo violentamente e
tentando recuperar o ritmo da respiração.
Inalou gulosamente o vento frio da manhã, como se disso dependesse sua vida,
como se num instante só pudesse conduzir aquele oxigênio indispensável até o último
lugar de seus pulmões, como se lhe fosse dado recuperar a juventude, o vigor e a alegria
gastos naquele incidente longo, o mais longo de sua existência. Um incidente que tinha
começado anos atrás, em outro lugar e em outra época.
Dois
Baviera, 1775
COMO É BONITA, DISSE A SI MESMO enquanto calculava na mão esquerda o peso
do animal. Sim, e como é gorda. E olhe que era raro neste tipo de animal. Mas a lebre...
bem, a lebre era uma delícia. Pele suave, cor deliciosa e aparência opulenta. Não deveria
ter sofrido muito. Tinha se emaranhado no laço na altura do pescoço e pelejando para se
libertar só tinha conseguido se estrangular mais rapidamente. Acontecia de vez em
quando com estes animaizinhos. Dava um pouco de pena, mas precisava comer.
Balançou a cabeça como se quisesse arrancar dela qualquer vislumbre de compaixão e,
com um gesto rápido, soltou o animal da armadilha que tinha lhe arrancado a vida, e o
jogou no embornal. Foi nesse momento que o viu.
Foi apenas um instante e — com toda a certeza — não teria percebido nada se
não tivesse sacudido o cangote justo nesse mesmo momento em que seu olhar se
entrecruzou com o que saía de uns olhinhos miúdos, redondos e pretos, incrustados no
rosto assustado e trêmulo de um filhote de coelho.
Com gesto rápido, o caçador ficou de pé de um salto e se precipitou sobre a
presa inesperada. Sem dúvida, era uma cria da lebre enorme que tinha acabado de
apanhar. Tinha que ficar com ela.
Conseguiu dar dois passos antes que o animalzinho se precavesse do perigo
que avançava em sua direção. Sem dúvida, tinha contemplado como sua mãe ficara
presa e como tinha perdido a vida no curso de um ritual que nunca tivera antes a
oportunidade de contemplar. Agora, o medo e o espanto o impediram de reagir a tempo.
No entanto, de qualquer forma conseguiu se mexer. Deu um salto instintivo à direita
para evitar aquelas manoplas que se lançaram sobre ele e depois, ainda presa do estupor,
começou a correr.
Foi uma corrida inexperiente, desajeitada e lenta. Típica de alguém que até
aquele momento não sabia o que era ter que se salvar de um agressor. Impelido mais
pelo susto do que por um medo suficiente para ativar seu instinto de autopreservação, o
filhote de lebre tratou de se esconder entre uns arbustos.
O caçador se lançou sobre os arbustos convencido de que pegaria aquele
animalzinho. Estava enganado. A sombra daquela massa se precipitando sobre ele
acabou tirando do estupor aquele infeliz filhote de lebre. Deu um novo pulinho e, agora
sim, começou a correr para se afastar daquele ser que ele não tinha visto antes mas que
parecia representar um verdadeiro perigo.
Com as orelhas transformadas em antenas que o avisavam da proximidade de
seu inimigo, o filhote de lebre descreveu uma corrida em ziguezague que não o afastou
da cilada persistente, mas pelo menos impediu que ela se transformasse numa realidade
letal. Ofegante, o caçador procurava se aproximar do animalzinho e prendê-lo entre o
vazio ameaçador que suas mãos formavam, mas, repetidas vezes, aquele ser miúdo
evitou a tenaz. Com o instinto que só a experiência proporciona, compreendeu que sua
única oportunidade de encurtar distâncias e alcançar o animalzinho era enganá-lo. Deu
uma passada com a perna direita que assustou o filhote de lebre e fez com que saltasse
para a esquerda e, justo nesse momento, precipitou-se sobre ele.
Ele lhe escapou por duas míseras polegadas, mas era óbvio que o caçador tinha
encontrado o método que lhe permitiria sair com sucesso daquela missão. Bem, era só
uma questão de repetir a jogada no momento exato em que o animalzinho estivesse
suficientemente próximo.
Não fez isso. Enquanto o filhote de lebre corria para se pôr a salvo à maior
distância possível, o caçador vislumbrou algo que distraiu sua atenção. No início, só
chegou até seu corpo uma soma de sensações fortes e absorventes. Um cheiro
penetrante de carne em decomposição, o zumbido irrequieto do que pareciam ser
centenas de moscas, os raios de sol descendo entrecortados sobre um tronco de árvore
para se atirar depois pela casca e, revolta, rutilante e avermelhada, uma cabeleira que só
podia pertencer a um ser humano.
Ele parou, inalou uma golfada de ar, passou a mão pela testa suarenta e, por
alguns instantes, procurou compreender o que significava tudo aquilo que se oferecia,
agressivo e pujante, a seus sentidos. Não conseguiu àquela distância e, tendo já relaxado
a perseguição ao filhote de lebre, deu alguns passos na direção da inesperada
descoberta.
O fedor de podridão arranhou suas fossas nasais, mas não o deteve. Espantou
com furiosos golpes de mão o bando de moscas e conseguiu distinguir uma imagem
diferente de qualquer outra que já tinha se oferecido antes a suas pupilas.
Tratava-se de um homem jovem, sem dúvida. Era até possível que não tivesse
ultrapassado a casa dos vinte anos. No entanto, agora não passava de um despojo fétido
e coberto de insetos verde-azulados. O rosto parecia destruído, esmigalhado, esvaído,
como se tivessem tentado desmanchá-lo até torná-lo irreconhecível. No entanto, o
caçador disse a si mesmo que o mais certo era que aquela terrível abrasão se devesse à
ação combinada das feras e das moscas. Quanto ao resto do corpo... As meias estavam
destruídas, mas enquanto o pé direito conservava um sapato, no esquerdo os dedos,
avermelhados e roídos, do morto sobressaíam no meio do tecido. As calças, sujas e
cobertas de lama, estavam espantosamente rasgadas na altura das virilhas, embora os
rasgões se encontrassem quase totalmente cobertos por espessas nuvens de moscas que
se movimentavam febrilmente em busca de uma presa que o caçador não sabia ao certo
qual era. Finalmente, as folhas pareciam ter ajudado a cobrir pudicamente as mãos, os
braços e o peito do defunto.
Por um instante, contemplou aquele ser humano, agora à mercê de alguns
predadores que, por serem menores, não eram mais compassivos ou menos eficazes do
que ele. Então, de forma inesperada, sem qualquer aviso prévio, sentiu um enjôo cálido
e incontrolável que subia desde o ventre. Teve, primeiro, um espasmo seco que lhe
arrancou algumas lágrimas e impregnou sua testa de suor. Titubeante, aproximou-se de
uma árvore em que se apoiou subitamente mareado. Antes que tivesse apoiado os dedos
da mão sobre o tronco, começou a vomitar, tomado por irresistíveis espasmos. Podia-se
dizer que, ao expulsar todo o conteúdo de seus espasmos, se abrisse diante dele a
possibilidade de reter a vida.
Três
Baviera, 1787
WILHELM KOCH PASSOU A MÃO pelo queixo. Sentiu então um pequeno tufo de
pêlos mal barbeados, localizado duas ou três polegadas abaixo da têmpora. Aqueles
hóspedes inesperados e, sobretudo, indesejados arrancaram dele um ricto de mal-estar
que saltitou de seus lábios. Por alguma razão que não era fácil de descobrir — as regras
familiares, a educação com os jesuítas, um motivo cósmico etc. — não podia tolerar a
desordem nem a falta de harmonia. Era uma atitude extensiva tanto ao traçado de uma
rua quanto à limpeza de suas camisas, a uma operação aritmética bem resolvida ou à
luta implacável contra o crime. Não suportava nada que parecesse dissonante, torto, feio
ou ruim. Talvez por isso poderia ter sido arquiteto, músico ou matemático. Certamente
por isso era um policial. Ele era, e dos melhores. Dificilmente se poderia encontrar, em
toda a Baviera, um outro igual.
Ao longo de vinte anos de serviço, tudo tinha corrido bem, ou seja, de maneira
ordenada. Roubos, fraudes, violações, assassinatos... raras foram as transgressões da lei
que não soubera enfrentar com sucesso. E tudo, absolutamente tudo, era devido a seu
método. Na opinião de Koch, a questão se limitava a encontrar o ponto exato em que a
harmonia que governava o cosmos era quebrada. Da mesma forma como uma tubulação
quebrada só pode ser consertada quando se descobre o lugar onde ocorre o vazamento, o
crime exigia que se detectasse a partir de quando a ordem social foi rompida. Um pai
que não se comportava de acordo com a moral, uma mãe que esquecia suas obrigações,
filhos que passavam por cima de seus deveres filiais... e com o que nos deparávamos?
Um desfalque, um adultério, ou até um assassinato. Sim, na verdade, o trabalho de Koch
consistia em algo muito parecido com os encanamentos. Justamente por isso,
incomodava-lhe que suas camisas não estivessem devidamente passadas, as botas
impecavelmente lustradas ou o rosto perfeitamente barbeado.
O que tinha agora diante dos olhos dava a sensação de ser outro vazamento
intolerável no âmago do edifício social. Tinha se deparado com ela pedindo os
processos atrasados para rever o que estava pendente. Tudo já se achava canalizado num
aqueduto de ordem que garantia, mais cedo ou mais tarde, que acabaria sendo resolvido
de maneira segura. Tudo, a não ser o processo que agora estava aberto diante de seus
olhos. Este, em resumo, de forma intolerável, não trazia número de referência, nem
menção ao agente que o tinha começado, nem data de entrada. Era uma pasta nua,
perdida no arquivo, era cujo interior jazia o que não deixava de ser uma carta como
tantas outras, escrita com tinta preta, com traços regulares, sobre um papel grosso
embora não necessariamente caro. Mas o conteúdo era uma outra questão.
Nada nos seria mais útil do que uma história da Humanidade que fosse
adequada. O despotismo roubou a liberdade. Como os fracos podem se
defender? Só através da união, mas esta no fim das contas é rara...
Até ali, a carta apenas repetia os lugares-comuns de tantos inimigos da
monarquia e da religião. Todas aquelas besteiras sobre a liberdade, o despotismo e os
fracos. Inclusive o chamamento em busca da união. No entanto, quando se chegava a
esse ponto, aquela carta dava uma guinada importante, totalmente reveladora:
Nada pode ajudar a conseguir tudo isto além das sociedades secretas...
— As sociedades secretas... — repetiu Koch num sussurro enquanto estendia a
mão direita até uma xicrinha de café que repousava sobre sua limpa e organizada
escrivaninha.
Por um instante, limitou-se a saborear aquela beberagem preta, forte e amarga.
Não suportava o café com mel ou com açúcar. Achava que adoçá-lo era uma forma de
privar o líquido de sua força, de um vigor que acabava sendo indispensável para aclarar
sua mente. Procurou com a língua qualquer resto de café que pudesse ter ficado no
interior da boca e continuou a leitura.
As escolas secretas de sabedoria são os meios que um dia libertarão os homens
de seus grilhões. Em todas as épocas, foram os arquivos da natureza e dos
direitos do homem; e graças a elas a natureza humana se erguerá desse seu
estado ruinoso.
Koch bebeu outro gole de café e, enquanto sua boca se franzia num esgar de
desprezo, disse:
— O que é que você sabe, seu pateta, sobre o estado ruinoso da natureza
humana?
Os príncipes e as nações desaparecerão da face da terra. A raça humana se
transformará então numa família, e o mundo será a morada dos Homens
racionais.
— Da face da terra... — disse Koch, que tinha se detido naqueles parágrafos e
os repetia várias vezes como se quisesse ruminá-los.
Certamente, podem ocorrer alguns distúrbios; mas, pouco a pouco, os
desiguais chegarão a ser iguais; e depois da tempestade, virá a calmaria.
Acaso as conseqüências mais lamentáveis irão permanecer justamente
quanto os motivos de discórdia tiverem desaparecido? Homens, erguei-vos!
Koch passou a mão pela parte de seu rosto em que o barbeiro não tinha
demonstrado exatamente um excesso de eficiência. Franziu os lábios com fastio, porque
determinou que não ia se deixar distrair. Não podia se permitir isso, sem dúvida. Talvez
aquele personagem fosse simplesmente um louco - nunca se podia descartar essa
hipótese —, mas a experiência lhe dizia que a falta de juízo não só não garantia a
segurança como, não poucas vezes, era seu pior inimigo.
A Moralidade é que conseguirá tudo isto; e a Moralidade é fruto da
Iluminação. Os direitos e os deveres são recíprocos. Se Otávio não tem
direito, Catão não tem nenhuma obrigação em relação a ele.
Koch pousou a xicrinha no pires, procurando fazer com que a posição ficasse
simétrica. Em seguida, pegou uma pena de ganso que repousava, branca e inflexível, na
escrivaninha polida, e a molhou com suave energia num tinteiro gordo de prata. Depois,
escreveu numa folha de papel os nomes de Otávio e Catão. Pelo que lhe constava, eram
referências ao imperador dos romanos e ao famoso censor, não se tratava de nomes
verdadeiros, mas, ao mesmo tempo, sabia que podiam ser pseudônimos de personagens
tão tangíveis quanto a poltrona em que se encontrava sentado.
A Iluminação nos mostra quais são nossos direitos, e a Moralidade a segue;
essa Moralidade nos ensina a crescer, a nos libertarmos, a amadurecer e
caminhar sem as amarras de sacerdotes e príncipes.
Koch segurou agora a carta com as duas mãos e cravou o olhar na última frase,
"...caminhar sem as amarras de sacerdotes e príncipes... caminhar sem as amarras de
sacerdotes e príncipes... caminhar sem as amarras de sacerdotes e príncipes." Quando se
quer dominar uma sociedade, é preciso aniquilar primeiro aqueles que a governam...
Respirou fundo, verificou com enfado que não restava café na xícara e
lançando mão de uma sineta que se erguia marcialmente a algumas polegadas de sua
mão esquerda tocou-a com força. Passaram-se apenas alguns instantes e na porta maciça
do aposento se ouviram algumas pancadas curtas, como se temessem incomodar.
— Entre — disse Koch com uma voz que soou fria e carregada de autoridade.
Um rapagão de barba loura e eriçada enfiou seu rosto avermelhado pela fenda aberta
entre o umbral e a porta.
— Alguma ordem, siô? — perguntou com uma voz que pretendia aparentar
uma atitude serviçal mas que pouco conseguia.
— Mais café — respondeu Koch apontando com o indicador a xícara vazia.
— Uma xícara, siô? — indagou o jovem.
— Uma jarra — respondeu Koch — e não se demore, Steiner. Tinha que
reconhecer que a advertência carecia de sentido. Na verdade, Steiner, apesar da
juventude, constituía um verdadeiro exemplo de ordem e delicadeza. Uma ordem que
lhe dava era obedecida de maneira imediata e eficiente. Com certeza, não tinha se
enganado quando permitiu sua entrada na corporação, e ao colocá-lo perto dele.
Quando Steiner fechou a porta, Koch se felicitou pela contribuição à ordem
que o agente representava. Bem que gostaria de dedicar alguns instantes à
autocomplacência, mas teria que ser mais tarde. No momento... no momento, existiam
prioridades.
Jesus de Nazaré, o Grão-Mestre de nossa ordem, apareceu numa época em que
o mundo se encontrava na mais absoluta Desordem, e entre pessoas que
durante séculos tinham gemido sob o jugo da Escravidão. Ensinou-lhes as
lições da razão. Para agir de uma forma mais eficaz, serviu-se da Religião —
das opiniões que eram correntes naquela época — e, de uma forma muito
astuta, combinou suas doutrinas secretas com a religião popular, e com os
costumes que tinha a seu alcance. Foi justamente neles que envolveu suas
lições: ensinou através de parábolas.
Parábolas... nunca lhe teria ocorrido pensar que as parábolas contivessem um
ensinamento secreto vinculado a causas políticas. Sem dúvida, tinha que reconhecer que
a carta era, além de disparatada, substanciosa.
Jesus escondeu o significado valioso e as conseqüências de suas doutrinas, mas
as revelou com cuidado a alguns poucos eleitos. Fala do reino dos justos e dos
fiéis, do Reino de seu Pai, de quem somos filhos. Limitemo-nos a tomar a
liberdade e a igualdade como os grandes objetivos de sua doutrina, e a
Moralidade como o caminho para os alcançar, e todo o Novo Testamento será
compreensível; e Jesus aparecerá como o redentor dos escravos.
Koch não era um homem especialmente religioso. Certamente, acreditava em
tudo o que a Santa Madre Igreja ensinava e guardava minuciosamente os dias santos,
mas não poderia determinar que o que o impelia a isso era a devoção ou o desejo de que
a ordem não se rompesse. Contudo, apesar de seu pouco entusiasmo, tinha suficiente
conhecimento da religião para chegar à conclusão de que aquilo que tinha acabado de
ler não passava de puro disparate. Então, pensou com ironia, católicos e protestantes
passaram dois séculos se enfrentando em terras alemãs, em metade da Europa, do outro
lado do oceano, simplesmente porque não tinham compreendido que o cristianismo se
limitava a impelir a liberdade dos escravos... Que ridículo! Que idiota poderia acreditar
em semelhante tolice? Bem, precisava concluir aquela leitura o quanto antes.
— Sim, entre — disse quando ouviu que batiam na porta. Steiner depositou um
bule de café fumegante sobre a mesa.
— Quer que eu o sirva, siô? — perguntou solícito o rapaz de rosto
avermelhado.
Koch fez um gesto com a mão indicando-lhe que deveria sair do aposento. Um
tanto surpreso, o jovem inclinou a cabeça e cochichou algumas palavras de cortesia
antes de sair.
Pousou a carta sobre a escrivaninha, impulsionou com um movimento a
poltrona para poder se afastar do móvel em que se apoiava e ficou de pé. Notou então
que estava com as articulações inchadas, cansadas, como que dormentes. Levou as duas
mãos aos rins e esticou o tórax para trás. Em outra ocasião, teria produzido um estalo na
altura das vértebras lombares, mas agora sentiu apenas um alívio agradável e rápido.
Sorriu satisfeito quando constatou que as costas respondiam devidamente. Deu alguns
passos para contornar a mesa, colocou-se diante da jarra e serviu-se de uma nova xícara
do líquido amargo. Segurou-a com as duas mãos como se sustentasse um cálice e, por
um momento, permitiu que seu olhar divagasse pela espuma do café. Finalmente,
aproximou o recipiente dos lábios e bebeu um gole longo, quente e eletrizante que o
levou a fechar os olhos para aproveitá-lo melhor.
— Bem — disse em voz baixa. — Terminemos com isto o quanto antes.
Alguns poucos eleitos receberam as doutrinas em segredo, e elas nos foram
transmitidas — embora freqüentemente quase soterradas sob o lixo da
invenção humana — pelos maçons. As três condições da sociedade humana
estão expressas pela pedra bruta, pela pedra lascada e pela pedra polida. A
pedra bruta e a pedra lascada expressam nossa condição sob o governo. É bruta
por causa da terrível desigualdade de condição, e lascada porque já não somos
uma família e além disso nos encontramos divididos por diferenças de governo,
de classe, de propriedade e de religião; mas quando nos vemos reunidos numa
família nos vemos representados pela pedra polida. G é a Graça, a Estrela
flamífera é a Tocha da Razão. Aqueles que possuem este conhecimento são
certamente Illuminati...
Illuminati ? Koch esfregou o queixo com uma expressão pensativa. Era uma
palavra latina ou italiana? Illuminati... sim, claro, respondeu com um sorriso. Os
iluminados! Só podia ser isso. Aqueles que têm a luz que não atinge a outros e que
mostra os conhecimentos secretos são iluminados! Que coisa óbvia! Tinha custado a
encontrar o significado, mas a culpa era desse pessoal. Empenhavam-se em ser tão
retumbantes, tão pedantes, tão rebuscados que acabavam obscurecendo o trivial.
Aqueles que possuem este conhecimento são certamente Illuminati — tornou a
ler. — Hiram é nosso Grão-Mestre fictício, morto pela REDENÇÃO DOS
ESCRAVOS; os Nove Mestres são os Fundadores da Ordem. A Maçonaria é a
Arte Real, na medida em que nos ensina a caminhar sem travas, e a governar a
nós mesmos.
O olhar de Koch desceu até o pé da página e deu com uma assinatura na qual,
com toda a nitidez, podia se ler Espartaco.
— Espartaco... Veja só. Nada menos do que Espartaco. Serviu outro café e o
tomou em pequenos goles enquanto cruzava o aposento com passos tranqüilos e
pausados. Estava mergulhado nas reflexões mais profundas e, quando ocorria tal
eventualidade, a rapidez com que sua mente funcionava contrastava com a lentidão que
impunha a seus gestos. Finalmente, parou, respirou fundo e murmurou:
Lebendig, Lebendig...
Quatro
França, maio de 1793
— ENFORQUEM ELES! Enforquem eles!
Quem lançava os gritos era um homem cujo rosto parecia cinzelado pelo sol do
norte da França. Avermelhado, seco, enrugado, toda a força de seu corpo endurecido
parecia se concentrar em volta de seus lábios, uns lábios fendidos que pediam morte.
— Sim, enforquem eles! — repetiu como um eco uma anciã.
— Enforcá-los? — respondeu outra voz. — A pauladas! Deviam ser mortos a
pauladas!
— Pena não termos uma... uma daquelas máquinas que eles têm em Paris —
lamentou-se um rapaz de no máximo quinze anos.
Karl deu uma olhada nos prisioneiros. Era óbvio que estavam tomados por uma
insuportável sensação de pânico. Quantos eram. Um, dois... seis. Nada menos do que
seis. E era com seis homens que o governo republicano de Paris pretendia impor seu
programa político? Com certeza, ou eles se valorizavam em excesso ou tinham uma
idéia muito pobre dos camponeses franceses. É verdade que eles impressionavam com
aquelas casacas azuis, com aquelas divisas enormes presas aos chapéus e,
principalmente, com os sabres e as pistolas, mas como lhes tinha ocorrido pisotear de
forma tão ousada os sentimentos daquelas pessoas?
— Acabem com eles! Acabem... com máquinas. A pedradas.
— Vocês têm alguma coisa a dizer — perguntou o que assumia o comando. —
Alguma decraração a fazer?
Não, não dava a impressão de que os detidos estivessem para muitas
declarações. Os cinco soldados estavam realmente apavorados — e não era para menos
— e quanto ao suboficial... era óbvio que tentava manter o ânimo, mas seu bigode
tremia de maneira incômoda. Estava, no mínimo, tão apavorado quanto seus
subordinados. Pobre infeliz!
— Dá pa saber, por exemplo — continuou o chefe improvisado — pru 'quê
vocês tinham que vir neste povoado pra queimar a igreja?
Karl teve que intuir as últimas palavras. A pergunta mal tinha chegado ao
verbo queimar quando um clamor irado, feroz, com ressonâncias de morte, preencheu o
ar espesso e quente que os envolvia.
— Sim, pru'guê?. Pru'quê? — gritavam num francês áspero, mastigado e
sombrio os habitantes do povoado.
Karl disse a si mesmo que, provavelmente, a única resposta era: por uma
mistura de defeitos humanos... soberba, orgulho, sectarismo, nevoeiro mental,
ressentimento... Tudo aquilo tinha se misturado nos corações dos soldados e, como
resultado direto, tinham decidido proclamar a liberdade universal ateando fogo na
modesta igreja do povoado. Era preciso reconhecer que não deixava de ser uma idéia
peculiar do que significava ajudar a liberdade. Para assegurá-la, acabavam com a
liberdade de culto. Era — não havia como duvidar — um dos muitos paradoxos daquela
revolução que parecia não terminar nunca. Certamente, os homens de Paris — e seus
executores de províncias — podiam emitir uma argumentação para justificar aquele ato
de destruição. Como a Igreja Católica era um instrumento de opressão, sua pulverização
— sua incineração, melhor dizendo — acabaria tendo como resultado imediato a
liberdade do gênero humano. Talvez, mas aquela liberdade conseguida a golpes de
tocha e tiros de pistola não conseguia convencer Karl. Pior: na verdade, dava-lhe uma
sensação de inquietude muito parecida com a angústia.
— Dá no mesmo. Dá no mesmo! — começou a dizer um homenzinho de uns
quarenta anos, calvo e usando um calção ridiculamente amarelo. — Se os matarmos... se
os matarmos...
— Nada de "se", Pierre — interrompeu o que tinha defendido que os
enforcassem. — Vamos matá-los. Vamos fazer com que esse pessoal de Paris receba
um castigo. Mas... o que é que eles estão pensando? Eles acham que podem vir até aqui
e nos tirar o trigo e levar nosso vinho e ainda cagar na Virgem? É isso o que eles
acham? Ah, isso não, isso não. Vamos, uma corda.
Em outras circunstâncias, Karl teria tentado argumentar com aquelas pessoas
que tinham se transformado numa massa enfurecida que gritava seus desejos de morte.
Sim, sem dúvida, teria feito isso, mas naquele povoadozinho do norte da França...
Durante meses, um pequeno grupo de advogados e jornalistas, de nobres progressistas,
de maçons, tinha empurrado a velha monarquia dos Capeto para o aniquilamento. Mas o
que tinha acontecido depois era muito diferente daquilo que a Inglaterra tinha vivido um
século antes. Não havia chegado ao poder um revolucionário piedoso como Cromwell
ou uma rainha religiosa e prudente como Ana. Não. Os novos governantes da França
estavam convencidos de que podiam mudar o país com a mesma facilidade com que um
oleiro dá a um pedaço de barro a forma que quer. Bem, talvez pudessem fazer isso em
Paris — e Karl tinha suas dúvidas — mas no campo...
— Aqui está a corda — gritou uma mulher bonita, viçosa, alta.
— Precisamos de mais — disse o homem seco com um tom de voz que
oscilava entre a reprovação pela escassez e a pressa em corrigir isso.
Demoraram apenas alguns minutos para reunir as cordas, fazer um nó
corrediço e colocá-las no pescoço dos presos. Antes que Karl conseguisse ver o que
estava acontecendo, os homens eram arrastados como se fossem cães levados pela
coleira. Levantando uma poeirada seca e amarela, saíram do povoado, enquanto
cuspiam ameaças e insultos sobre os revolucionários.
— Parem! Parem!
Karl tentou ver quem tinha dado a ordem detendo aquela massa no meio da
qual ele se movia procurando não se ver envolvido. Não conseguiu.
— Saia aí do meio, monsieur Blondel — escutou o homem seco dizer. — O
povoado vai zecutar justiça.
O povoado vai zecutar justiça... Sim, a gramática era deplorável, mas as idéias
não poderiam ser mais claras. Eles — a mulher bonita, a velha, o homem seco, os que
tinham fornecido as cordas, o rapaz que tinha desejado ter uma guilhotina... — todos
eles representavam o povoado e não iam permitir que os homens de Paris lhes
impusessem sua revolução, essa revolução que começava levando os produtos do campo
e em seguida queimava igrejas e plantava uma guilhotina na praça do lugar. À
resistência a esse plano revolucionário — libertador e cidadão, teriam dito em Paris —
eles chamavam zecutar justiça. Com certeza, nem Marat, nem Danton nem Robespierre
estariam de acordo com aquele julgamento e, certamente, teriam sérias restrições em
considerar povo aqueles que estavam dispostos a enfrentá-los.
Reiniciaram a caminhada. Karl então reparou num homem vestido de maneira
modesta, embora melhor do que o resto dos camponeses, afastado à beira da estrada.
Tinha os olhos avermelhados e o horror estampado no rosto. Devia ser o tal Blondel.
Bem que ele gostaria de sair do tumulto e lhe dizer que não se preocupasse, que tinha
feito o possível, que até tinha chegado às raias do heroísmo com seu comportamento.
Não fez isso, porque a vontade de saber onde aquilo ia dar era mais poderosa naquele
momento do que qualquer outra consideração.
— Ali... Ali!
A multidão acelerou o passo como se tivesse acabado de ouvir um ensalmo.
Karl também apertou o passo para evitar se ver envolvido. Foi assim que chegou,
suarento e sufocado, até uma esplanada. Com certeza, aquele terreno devia ser bonito
em circunstâncias normais. Era uma pradaria branda e suave que ficava muito perto de
uma pequena floresta, Sim, seguramente os aldeões deviam se reunir ali em dias de festa
para beber e se divertir. Era o lugar ideal.
— Venham! Ali mesmo!
Karl viu agora com toda a nitidez o lugar que o outro apontava. Tratava-se de
um pequeno grupo de árvores robustas, circunspectas, transpirando dignidade. Pareciam
estar esperando ali desde a aurora dos tempos para cumprirem sua missão solene e
especial, de servirem de patíbulos aos que tinham se atrevido a arrasar o que aqueles
que arrancavam seu sustento da mãe Terra consideravam mais sagrado.Quase como se
fossem um só homem, meia dúzia de lavradores atiraram as cordas até a copa das
árvores. As sogas não chegaram a tocar o chão. Antes que terminassem de cair, seis
grupos de pessoas, orquestrados como se tivessem ensaiado a execução dezenas de
vezes, apoderaram-se da ponta e começaram a puxar com todas as suas forças.
Karl observou horrorizado a maneira como os corpos dos soldados se elevavam
no ar enquanto seus rostos se congestionavam pela pressão que a soga exercia em suas
gargantas. Era duvidoso que os enforcassem. Seguramente, em vez dessa morte quase
rápida que vem determinada pela fratura da nuca, sofriam os estertores do
estrangulamento. De fato, eles se retorciam como peixes tirados da água, enquanto seus
pés se separavam do chão.
Teve a sensação de que a agonia se prolongava eternamente, mas, na verdade,
ela foi rápida. Apenas em um deles, o que parecia mais jovem, a vida pareceu resistir à
idéia de abandonar um corpo que tinha vivido pouco. A batalha estava perdida de
antemão e, além do mais, a conclusão se acelerou quando uma anciã se agarrou aos pés
do réu e puxou. Não conseguia entender a dureza daquelas mulheres que tinham
ultrapassado com folga a casa dos sessenta anos. A que poderia obedecer aquela
insensibilidade, aquela ânsia, aquela falta de piedade? Talvez não fosse possível
generalizar e cada caso acabasse sendo diferente. Para as mulheres, que tinha visto em
Paris entusiasmadas com os estragos causados pela guilhotina, talvez aquelas execuções
fossem apenas uma confirmação de que a injustiça, real ou imaginária, estava sendo
punida: aplaudiam uma espécie de eqüidade cósmica implantada sobre rios de sangue.
Para as daquele povoado, o motivo certamente era diferente: deviam estar convencidas
de que quem se atrevesse a destruir a religião, o fruto do duro trabalho cotidiano, a
família e a paz só poderia ser digno de uma morte rápida.
Contemplou por um instante os seis corpos. Sim, estavam mortos. Quanto a
isso, não havia a menor dúvida. Mesmo porque pelas pernas de suas calças, como um
testemunho sujo e humilhante, escorriam filetes de urina e excrementos.
Cinco
Baviera, 1775
STEINER
SE INCLINOU SOBRE OS
restos mortais do jovem. Custou-lhe muito
reprimir uma mistura de asco e mal-estar que tinha se agarrado a seu pescoço como se
fosse um cachecol de lã. Apesar dos anos de serviço que já tinha na polícia de
Ingolstadt, não conseguia controlar uma certa aversão por cadáveres. Descobrir ladrões,
vigiar suspeitos, estabelecer cada passo seguido para urdir uma fraude engenhosa e
mesmo redigir relatórios e instruir processos lhe pareciam tarefas toleráveis, aceitáveis,
até divertidas. No entanto, não conseguia se acostumar ao exame de um cadáver. Já
tinha se perguntado mil vezes qual era o motivo de sua aversão e nunca conseguia
elucidá-lo completamente. Por certo, havia o aspecto físico da decomposição da carne.
Por mais que o catecismo se referisse a ela ou a lembrasse pontualmente na celebração
da quarta-feira de cinzas, Steiner não conseguia se familiarizar com o fato de que um
corpo que ontem respirava, que até se mostrava viçoso e saudável, acabasse reduzido à
condição de carniça pestilenta. Sentia isso, sentia-o na alma, mas não conseguia se
acostumar.
No entanto, seu desconforto asfixiante e indesejável não se limitava ao aspecto
da decomposição de órgãos e músculos. Não, de forma alguma, quem dera fosse assim.
Na verdade, o que lhe causava mais desgosto era a inegável evidência de que a morte
significa um final realmente terrível e que não existia a certeza de que tudo não
terminasse no meio de vermes e de putrefação. Certamente, havia os ensinamentos
religiosos, e a afirmação do Credo sobre a ressurreição da carne, e até os diferentes
meios oferecidos pela Santa Madre Igreja para facilitar a sorte dos condenados ao
purgatório. Tudo aquilo ele conhecia e, é claro, acreditava.
O problema era que, quando se encontrava cara a cara com um cadáver, seus
sentidos se viam tão invadidos pelo cheiro de morte, pela visão da morte e pelo toque da
morte, que a fé numa vida duradoura era, talvez, não aniquilada, mas ofuscada como o
sol encoberto por um mar de nuvens cinzas e algodoadas. E, justamente quando chegava
a esse ponto, uma mistura de repugnância e mal-estar, de repúdio e desagrado,
apoderava-se dele, provocando-lhe suor nas mãos e angústia no peito.
De boa vontade ele teria se desligado da investigação dos homicídios, mas
semelhante graça não lhe foi concedida. Koch se sentia tão satisfeito com sua maneira
de trabalhar — uma faca de dois gumes, sem dúvida — que não apenas tinha se
transformado num ajudante privilegiado para seu trabalho de resolução, mas também,
em algumas ocasiões, insistia em que fosse encarregado de dar os primeiros passos.
Exatamente por causa disso, tinha agora que examinar aquele despojo sujo e carcomido
que um caçador infeliz tinha encontrado.
O homem tinha chegado tremendo ao posto de polícia e, num primeiro
momento, os agentes que o viram pensaram que ele tinha acabado de sofrer alguma
desgraça. E, até certo ponto, era verdade. Enquanto passava por terras que não eram
suas, tinha encontrado um cadáver. Em outras circunstâncias, o peso da lei teria caído
sobre ele, acusando-o de caçar furtivamente ou, pelo menos, de invasão de propriedade
privada. Agora, no entanto, aqueles detalhes estavam amenizados pela gravidade de um
homicídio. Bem, sucedera assim porque Koch tinha enviado Steiner para examinar o
corpo e ele tinha decidido que era uma perda de tempo atacar um pobre homem que
caçava lebres de forma ilegal, quando graças a ele se podia botar as mãos num
delinqüente de muito maior envergadura. Koch nunca teria aprovado essa maneira de
agir. "Por acaso devemos perdoar o transgressor menor porque existe outro maior?",
teria perguntado de forma retórica, para depois acrescentar indignado: "De forma
alguma, Steiner, de forma alguma." Mas ele encarava isso de outra maneira, e agia de
acordo com isso. Agradeceu ao homem, disse-lhe num aparte discreto que não deveria
dizer a ninguém o que estava fazendo naquele território de caça e, ato contínuo,
mandou-o ir descansar em casa.
Levantaram o cadáver na presença de um dos juízes mais experientes de
Ingolstadt, que pensava em se aposentar em menos de um ano, mas, no momento,
insistia em se manter na ativa.
— Coisa ruim — disse quando passou os olhos sobre o morto. —
Alimentaram-se do rapaz.
Não era nenhum exagero. A pancada que tinham lhe aplicado na cabeça e que,
quase com certeza, tinha ocasionado a sua morte não era nada do outro mundo. Tratavase do típico traumatismo que deixa claro e manifesto como é fácil obrigar um pobre
infeliz a cruzar o umbral que separa a vida da morte. Até aí, tudo estava dentro dos
limites da normalidade. O problema era quando se examinava o restante do corpo. O
pescoço, o peito e o rosto apresentavam arranhões nada desprezíveis, mas o pior era a
região que se estendia pela frente do umbigo até o início das coxas e por trás em torno
do ânus. Os animais tinham-se fartado, não havia dúvida, mas tudo parecia indicar que
alguém tinha se antecipado a eles.
— Qual a sua opinião, herr doktor3? — perguntou o juiz quando o galeno
terminou o exame do cadáver sob os olhares atentos dos presentes.
— Pobre rapaz... — murmurou de forma quase inaudível o médico. Ninguém
podia negar a justeza daquelas palavras, mas, para falar a verdade, não esclareciam
muito a situação. Pobre rapaz, sim, mas por quê?
— Poderia ser um pouco mais... explícito? — atreveu-se a dizer Steiner.
O médico respirou fundo e, sem afastar os olhos do cadáver, começou a cevar
um cachimbo de tubo longo. Era um bonito exemplar de artesanato bávaro, com um
bocal de madeira entalhada primorosamente e um fornilho alongado de porcelana.
Devia ter lhe custado bem caro, pensou Steiner.
— Bitte4, algum de vocês tem fogo? — perguntou o médico depois de ter
certeza de que o tabaco estava bem assentado no interior do cachimbo.
Foi o juiz quem atendeu à sua solicitação e, imediatamente, o ambiente se
encheu de uma fumaça azulada que desprendia um cheiro agradável de uma substância
que Steiner não conseguiu identificar, mas que ele agradeceu porque encobria, pelo
menos em parte, o fedor da morte.
— Eles o mataram de um só golpe. Isso é indubitável, mas... — interrompeu a
explicação para dar uma nova sugada no cachimbo — mas o mais terrível é que o crime
veio acompanhado de um comportamento... bem, recuso-me até a qualificá-lo. Um
pouco antes ou um pouco depois da morte, a vítima foi sodomizada.
— Desculpe?... — exclamou Steiner, que não tinha certeza de ter escutado
direito.
— Ele foi sodomizado — disse o médico, com a mesma serenidade com que
teria comentado que as nuvens anunciavam chuva.
— Está querendo dizer... — começou a dizer Steiner, que não conseguia dar
crédito às palavras do galeno.
— Estou querendo dizer que o assassino cometeu com este infeliz o pecado
pelo qual Deus destruiu as cidades ímpias de Sodoma e Gomorra. Mas não foi uma ação
3
Em alemão, no original.
4
Em alemão, no original.
voluntária. Violentaram o rapaz. O alargamento do ânus não deixa margem a dúvidas.
Desde já, espero que o tenham matado antes.
— E as feridas no púbis? — perguntou Steiner.
— Algumas podem ter sido ocasionadas por animais, mas tenho a impressão de
que já encontraram o trabalho bem adiantado. O assassino se fartou com as partes do
rapaz.
— O senhor acha que pode ter sido uma vingança por ele ter se recusado a se
entregar? — perguntou Steiner.
O doutor encolheu os ombros, deu uma nova sugada no cachimbo e lançou no
ar uma baforada de fumaça azulada. Desta vez não foi uma seqüência de gestos
prazerosos, mas um encadeamento de movimentos cansados, quase dolorosos.
— Talvez... talvez... — disse. — Em todo caso, depois de o matar, parece que
se deleitou em profanar o cadáver.
Um silêncio incômodo desceu sobre o aposento. Dava a impressão de que
nenhum dos presentes queria estar ali, de que teriam dado alguma coisa valiosa para
poderem se livrar da obrigação de examinar o cadáver. Sentiam-se surpresos diante de
uma manifestação da maldade humana que ultrapassava aquilo que estavam
acostumados a presenciar em seu papel de médico, juiz ou policial.
— O assassino deixou alguma pista? — quebrou finalmente o silêncio Steiner.
— Quer dizer, cabelos, um botão, um pedaço de roupa...
— Absolutamente nada — respondeu o médico. — Quase... quase dá a
impressão de que se preocupou em apagar qualquer pista depois de matar e sodomizar o
rapaz. Ou então era um fantasma...
— Ora, vamos! — protestou o juiz quando ouviu as últimas palavras. — Tudo
isso já é bastante complicado em si para que o senhor se dedique a brincar com as
palavras.
Um fantasma, repetiu mentalmente Steiner. Definitivamente, nada daquilo iria
agradar a herr Koch.
Seis
Baviera, 1787
MAIS
DE UMA VEZ,
mais de duas, mais de uma centena, Koch tinha se
perguntado por que Lebendig e, principalmente, a casa de Lebendig não lhe
provocavam nenhuma sensação de mal-estar. E isso apesar de que, sem nenhuma
espécie de dúvida, nunca tinha conhecido ninguém tão desorganizado quanto ele. Não,
nem antes nem depois que cruzara seu caminho ele tinha tido oportunidade de ver
alguém semelhante. Era curioso mas, para dizer a verdade, suas vidas nunca teriam se
cruzado se não fosse por aquele padre bêbado. Sim, bendito padre bêbado.
Tinha chegado numa manhã, fazia nove anos, sufocado e furioso, afirmando
que desejava recuperar alguns papéis pessoais que andavam em poder de um tal
Lebendig. Durante alguns minutos, o policial que o atendia o ouvira com enorme
interesse, quase com devoção — se fosse possível usar essa expressão de uma forma
que não soasse imprópria —, mas não tinha demorado a perceber que aquele homem
dizia apenas incoerências e que nada indicava que tivesse sido objeto de algum ato
punido pela lei. Foi nesse momento que, alegando que o caso que lhe expunha requeria
uma pessoa mais importante, tinham-no encaminhado para ele.
Koch tinha precisado apenas de dois minutos para compreender que o clérigo
em questão se sentia enormemente ofendido e que transpirava desejos de vingança por
cada poro da pele. O máximo que podia se perceber, no entanto, era que um sujeito
chamado Lebendig tinha dado dinheiro ao padre em troca de que escrevesse em alguns
papéis. Pensou imediatamente que devia se tratar de um analfabeto necessitado de um
copista. Havia-os — tanto uns quanto outros — aos montes em Ingolstadt.
— Tratava-se de alguma carta para a noiva ou a mãe? — perguntou Koch ao
ébrio sacerdote.
— Não — respondeu acalorado. — Não, não, não. Ora essa! Ele me fazia
escrever... só isso.
— Ah, sim — disse Koch respirando fundo —, mas isso, padre, se me permite
dizer, não é um crime.
O sacerdote passou os dedos pelo rosto como se quisesse arrancar alguma coisa
muito grave que tivesse ficado agarrada à sua pele.
— Calma, calma, é que... Bem, primeiro, ele me fez escrever. Nada em
especial. O que eu quisesse. E eu escrevi. Eu escrevi! Modéstia à parte, posso dizer que
desde meus tempos de seminário poucas pessoas tiveram uma letra melhor do que a
minha. E assim era. Não ficaria bem eu negar isso...
Koch concordou com a cabeça, enquanto se perguntava mentalmente quanto
tempo seria capaz de suportar aquela história.
— Então ele me manteve escrevendo um tempinho. Não muito. Um tempinho.
— Um tempinho — repetiu Koch, procurando lhe dar segurança.
— Mas depois começou a me dar bebida — continuou o padre com uma
mistura de arrependimento e raiva na voz.
— À força? — perguntou Koch, embora tivesse consciência de que a pergunta
era totalmente desnecessária.
— À força? Bem, não... não acho que se possa dizer que ele tenha me forçado.
Não, na verdade ele não fez isso mas...
— Mas... — repetiu Koch, tentando ajudar o clérigo a continuar seu relato.
— Mas olhou minha letra, sim, olhou minha letra e disse: "Estupendo,
estupendo, o que eu pensava."
— "Estupendo, estupendo, o que eu pensava" — repetiu Koch sem tirar os
olhos do clérigo.
— Isso, ele disse isso. "Estupendo, estupendo, o que eu pensava." Então me
avaliou outro tempinho e, de repente, saiu do aposento, voltou ao final de outro
tempinho e me disse: "Sinto muito, padre, mas acabam de me dizer que o telhado de sua
igreja acaba de desabar."
— Uma desgraça — pensou em voz alta Koch.
— E como, e como! O senhor poderia jurar — disse com os olhos abertos
como pratos o sacerdote. — Naquele momento, é claro, eu tentei me levantar, partir, ir
embora. O senhor me diga. Com a paróquia em ruínas, que outra coisa eu podia fazer?
Koch concordou mas não abriu a boca. Ou o padre estava louco de se internar
ou estava prestes a chegar ao cerne da questão.
— Mas quando tentei me levantar, esse... esse Lebendig pôs a mão em meu
ombro e me disse: "Padre, eu lhe suplico, escreva alguma coisa. O que for, mas escreva
alguma coisa."
— E o senhor escreveu?
— Claro... claro que sim. Não vou esconder. Escrevi. E então... aí vem o pior...
O sacerdote se apoiou na mesa, aproximou o rosto do de Koch e, ao mesmo
tempo era que lhe lançava uma baforada de álcool que o policial achou insuportável,
disse:
— Ele leu o que eu tinha escrito e disse: "O que eu imaginava." O senhor
ouviu? Ele disse: "O que eu imaginava!" Naturalmente, eu aproveitei que ele estava
lendo o papel para começar a correr até minha paróquia...
— Naturalmente — concordou Koch.
— Bem, pois cheguei à minha paróquia e o senhor sabe o que estava
acontecendo?
— Não faço a menor idéia — respondeu o policial.
— Pois nada — disse o clérigo —, nada. Nada! A igreja estava como sempre
esteve. Sem uma rachadura.
Koch se recostou no espaldar de sua cadeira quando escutou aquelas palavras.
Naturalmente, toda a história podia ser falsa, mas, se não fosse, o que ele tinha pela
frente exatamente? Uma zombaria com a religião? Não, ninguém tinha perpetrado
qualquer escárnio contra Deus, a Virgem nem contra nenhum santo. Uma fraude? Pelo
contrário. O padre em questão era quem tinha recebido o dinheiro. Era verdade que a
história do teto da paróquia era falsa, mas isso não podia ser considerado um crime. Em
outras circunstâncias, Koch teria prometido ao sacerdote ocupar-se do caso e, ato
contínuo, teria tratado de arquivá-lo, mas alguma coisa lhe dizia que o tal Lebendig era
um personagem peculiar, tão peculiar que podia interferir na ordem, impoluta e perfeita,
que caracterizava a tranqüila cidade de Ingolstadt.
— Não se preocupe, padre — disse por fim. — Dê-me o endereço desse
personagem e eu, pessoalmente, vou me ocupar de perguntar o que houve.
Um sorriso de felicidade paralisou o rosto do clérigo quando ouviu aquelas
palavras. Sem dúvida, já estava quase convencido de que ninguém o atenderia. E agora,
agora aquele policial tão atencioso, tão ponderado, tão diligente ia lhe dar atenção. Foi
embora feliz, risonho, quase entusiasmado. Tanto que resolveu comemorar isso
entrando na primeira taberna que cruzou seu caminho.
Koch não agiu imediatamente. Deixou passar uns dois dias e, finalmente, foi
até a casa do tal Lebendig. Ele morava num prédio não muito antigo de uma área quase
próspera da cidade. Com apenas algumas varas a mais, sua casa estaria numa área
invejável. De onde se encontrava, tinha apenas que andar alguns minutos para se
defrontar com algumas das pessoas mais necessitadas de Ingolstadt.
O policial alisou o queixo enquanto corria os olhos pela entrada do prédio,
depois respirou fundo e atravessou o umbral. Um cheiro de comida, não exatamente
agradável, invadiu suas narinas enquanto subia os degraus. Não se poderia dizer que a
escada estivesse suja, mas Koch teve a sensação de que aquele lugar não contava com
toda a limpeza necessária. Era como se os vizinhos não tivessem um interesse especial
em manter a dignidade, embora também não se pudesse acusá-los de sujos. Sem deixar
de olhar as paredes e os degraus, chegou até o andar onde o padre tinha dito que aquele
estranho indivíduo morava.
— Herr Lebendig? — perguntou quando abriam a porta.
— Sim, herr — respondeu a mulher cuja silhueta aparecia no umbral, ao
mesmo tempo em que acompanhava sua breve resposta com um movimento ligeiro de
cabeça.
— Gostaria de vê-lo — disse Koch num tom correto, mas que deixava claro
que não aceitaria uma negativa.
— Espere, bitte — disse a mulher enquanto fechava a porta.
Koch ouviu alguns passos no interior, suficientemente quietos para afastar a
hipótese de que alguém quisesse fugir à ação da justiça. Ao fim de alguns instantes, a
porta voltou a se abrir, confirmando seu ponto de vista.
— Entre, bitte.
A mulher foi na frente, ao longo de um corredor peculiar. Não era estreito
demais e também não estava mal iluminado, mas num de seus lados estava apoiada uma
estante comprida repleta de livros. Livros! Para que o morador daquela casa podia
querer tantos livros? E, sobretudo, como é que o padre não lhe tinha dito nada a
respeito?
A pergunta lhe pareceu ainda mais obrigatória quando ele desembocou,
seguindo a mulher, numa saleta. Em outra casa, aquele cômodo estaria ocupado por
diversos móveis. Um aparador onde expor melhor a baixela, cadeiras, talvez umas duas
mesas, e até um piano ou um cravo... No entanto, aquela saleta também estava tomada
pelos livros. Abarrotavam as estantes das paredes, mas também se remoinhavam - sim,
remoinhar-se era a palavra apropriada - pelo chão do aposento. Ao mesmo tempo em
que reprimia um calafrio, Koch pensou que aquelas montanhas formadas pelos volumes
lembravam os tufos de ervas daninhas que abarrotam um jardim malcuidado.
— Sente-se, herr — disse a mulher, mas Koch demorou alguns instantes para
localizar algum lugar em que pudesse colocar suas nádegas.
Encontrou-no numa cadeira minúscula colocada entre duas pilhas de livros
quase tão altas quanto o assento. Ocupou-a e, ao se sentar, percebeu que aquela
desordem tinha lhe provocado uma desagradável transpiração na palma das mãos. Tirou
de sua manga direita um lencinho e as secou, enquanto se perguntava que crimes uma
pessoa tão desorganizada chegaria a cometer.
— Em que posso servi-lo?
Sete
Paris, 24 de julho de 1794
KARL
LEVANTOU O OLHAR PARA O CÉU.
Ele continuava cinzento, plúmbeo,
asfixiante. Não parecia que fosse descarregar uma só gota que pudesse aliviar aquela
escuridão. Pena. Nesta Paris da Revolução, onde a sujeira, a fome e a violência se
alternavam com a lei de suspeitos e as execuções diárias, teria agradecido pela chuva.
Passou a mão pela testa para retirar o espesso suor que a cobria. Foi então que seus
olhos, fatigados e aborrecidos, detiveram-se na lareira. Tinha se transformado numa
cavidade enegrecida, suja e, talvez, obstruída. Só Deus sabia ao certo o tempo que devia
fazer desde que a tinham acendido pela última vez. Graças a Ele, era verão. Sem dúvida,
ninguém podia negar que os revolucionários estavam conseguindo a igualdade. Por
baixo, claro, mas igualdade afinal de contas, e para a imensa maioria da população. Em
toda a França.
Quarenta e oito horas depois de terem cortado a cabeça do desafortunado
Capeto, tinha-se proclamado a Convenção. Já não havia monarquia, nem mesmo
limitada por aquilo que os filósofos chamavam de Constituição. Àquela altura Karl
tinha certeza de que a ação da guilhotina não ia parar em Luís XVI. Depois seria a vez
dos familiares próximos ao rei decapitado. Seria fácil justificar mais umas tantas dúzias
de execuções alegando-se que assim se arrancava pela raiz a planta perniciosa da
monarquia, que a liberdade do povo exigia isso, que à luz da razão, e que blá-blá-blá.
Sim, ele conhecia de sobra todo aquele palavrório revolucionário. Conhecia-o inclusive
antes que saísse à luz, difundido pelos jornais e outros meios. Tinha certeza de que se
tratava apenas do primeiro passo. Porque depois viriam os aristocratas (por acaso não
eram parentes dos reis?), os antigos funcionários (por acaso não tinham servido aos
reis?), os clérigos (por acaso não tinham abençoado os reis?), os militares (por acaso
não tinham defendido os reis?), os professores (por acaso não tinham ensinado a
obediência aos reis?), os juízes (por acaso não tinham aplicado as leis dos reis?) e os...
só Deus sabia onde os revolucionários iriam parar em seu plano de criar uma nova
sociedade. Lamentavelmente, ele não tinha se enganado.
Não pôde suportar por mais de um mês a voragem revolucionária. O assalto às
igrejas, o confisco de edifícios, o saque ao comércio, os insultos aos clérigos ou
simplesmente aos que não andavam maltrapilhos pela rua... não, não podia tolerar por
mais de alguns dias nem isso nem o insuportável, pedante e vazio palavrório
revolucionário. Com frio, chuvas e vento, abandonou Paris pensando no fato de que ele
deveria estar em algum lugar, mas que com toda aquela confusão e desordem não
conseguiria localizá-lo facilmente. Sua saída da capital não teve, portanto, caráter
definitivo. Era uma retirada estratégica, fadada a um retorno assim que a situação se
desanuviasse.
A situação não se desanuviou. Pelo contrário: à medida que adentrava no
território francês, Karl foi vendo que seus piores vaticínios se cumpriam. Se em alguns
povoados os camponeses, animados pelos agentes de Paris, queimavam os registros de
propriedade, apossavam-se das terras, arrasavam as igrejas e assassinavam os patrões,
em outros esses mesmos camponeses defendiam de peitos nus as capelas, enfrentavam
com foices e forcados os fuzis dos sans-culottes, e transformavam numa guerra santa a
preservação de suas terras, suas igrejas e seus lares. Para uns, tratava-se de criar um
mundo novo; para outros, de preservar o seu universo — o que tinham erguido ao longo
de gerações com o suor de seus rostos e seus braços — e nessa luta não se concederiam
quartel. Era difícil prever quem venceria a peleja mas, com toda certeza, quando ela
terminasse os rios de sangue teriam se transformado em oceanos.
Algumas pancadas na porta arrancaram Karl de suas reflexões sombrias.
— Cidadão, cidadão... está aí?
— Sim, cidadã, o que você quer? — respondeu procurando dar a suas palavras
um tom de naturalidade.
— Abre, que eu lhe conto.
Karl se levantou do catre onde estava deitado e foi até a porta. Abriu-a com
dificuldade por causa da mistura de sujeira e ferrugem que a emperrava.
— Diga-me, cidadã — disse Karl.
A mulher não disse uma só palavra, mas deu um empurrão em Karl e, depois
de abrir caminho de uma forma tão específica quanto mal-educada, andou até a metade
do cômodo.
— É melhor eu fechar — explicou em voz baixa enquanto empurrava a porta.
O brilho que saía dos olhos miúdos da mulher disparou no íntimo de Karl um
sinal de alerta. Parecia óbvio que ela queria alguma coisa e, ou ele estava muito
enganado, ou não iria sair de graça.
— Veja, cidadão — começou a dizer enquanto um sorriso viscoso se juntava
ao brilho inquietante de suas pupilas —, eu... eu conheço alguém...
Fez uma pausa e piscou para ele o olho esquerdo. Era, sem dúvida, um sinal de
cumplicidade, mas Karl não conseguiu saber a que ele podia se referir. Por isso achou
mais sensato manter silêncio e esperar que a "cidadã" lhe dissesse de uma vez o que
queria.
—...conheço alguém que... que tem leite... leite e ovos... bem, poderia até
conseguir um frango...
Karl procurou controlar todos os músculos de seu rosto, embora, certamente, a
idéia de poder comer um ovo, e nem digamos um pedaço de frango, tinha-lhe provocado
um verdadeiro terremoto dentro do peito.
— Você é muito sortuda, cidadã — comentou com frieza.
— Ora, vamos! — disse com voz de fastio, ao mesmo tempo em que lhe dava
uma cutucada. — Com certeza você tem fome, cidadão.
Pela segunda vez desde que a mulher tinha batido na porta, Karl pressentiu o
perigo. Era uma coisa difícil de explicar, mas tão inegável quanto a exalação de um
cheiro fétido ou uma corrente de ar.
— Necessito comer como todos os cidadãos — respondeu, preservando-se
muito de dizer que tinha fome — ...cidadã.
Sim, pensou, essa era a melhor resposta que podia dar. Constava que estavam
prendendo pessoas simplesmente por se queixarem de que não havia pão. Não tinha a
menor vontade de que aquela mulherzinha, inimiga de morte da água e do sabonete,
denunciasse-o por dizer que tinha fome, em outras palavras, por propaganda contrarevolucionária.
Uma sombra de inquietação pousou sobre o rosto da mulher. Mau negócio, se
ela não esperava essa resposta. Claro que também não lhe convinha que ela chegasse à
conclusão de que ele abrigava alguma suspeita.
— Cidadã — disse Karl —, se o que você me oferece é legal, se nossa
Convenção autoriza, continue falando, porque eu sou um republicano leal e não estou
disposto a permitir nenhuma deslealdade. Nenhuma, cidadã.
A inquietação deu lugar ao pânico no rosto na mulher. Sim, não havia dúvida
de que ela tinha ficado assustada. Agora era ela que tinha medo de ser denunciada. Karl
disse para si que era um belo universo de liberdade e sabedoria aquele que os jacobinos
estavam construindo. Ninguém se atrevia a confiar em ninguém e todos desconfiavam
de todos. As palavras cidadão e cidadã, isso sim, não lhes saía da boca.
— E então, cidadã? — insistiu com firmeza Karl, que desejava livrar-se o
quanto antes daquela criatura malcheirosa.
— É... é legal, claro, cidadão — respondeu num tom trêmulo. — Posso lhe
oferecer...
Concluiu a frase aproximando seus lábios do ouvido de Karl.
— ...e por apenas...
Karl refletiu por um momento. Em situações normais, aquela oferta teria sido
considerada um verdadeiro roubo, capaz de mobilizar as massas para assassinar o
vendedor. Mas isso tinha sido na época da odiosa monarquia. Agora, era preciso
reconhecer que parecia barato demais para ser verdade.
Agarrou o pulso esquerdo da mulher e o apertou com força. Não pôde evitar
uma ânsia de compaixão. Ela não passava de um punhado de ossos fracos e finos
envoltos apenas por uma pele prematuramente envelhecida.
— Se o que você pretende é contra-revolucionário — disse, arrastando as
palavras —, se vai contra a república, não descansarei até que sua cabeça role como a
do Capeto. Entendeu bem... cidadã?
Com as feições desfiguradas, a mulher concordou.
— Quando?
— Agora... agora mesmo, se quiser... — balbuciou assustada.
— Então vamos — disse Karl.
Ajeitou a desgastada casaca enquanto desciam os degraus da suja escada de
madeira. Podia compreender que não houvesse comida, que o sabão escasseasse, que a
roupa, qualquer roupa, tivesse se transformado em artigo de luxo, mas que motivo
poderia justificar o fato de não limparem uma escada? Talvez, disse para si, a pessoa
encarregada dessa tarefa tivesse decidido que era uma demonstração de servidão que
deveria ser combatida. Bem, que magnífico, porcos mas livres. Seguramente algum
desses filósofos — intelectuais, como gostavam de chamá-los — que tanto abundavam
na França acabaria escrevendo um ensaio intitulado "A imundície como expressão da
liberdade". Não: da liberdade, não. Da liberdade cidadã.
Um cheiro desagradável de couve arrancou-o de seus pensamentos, avisando-o
de que se achavam perto da cozinha e, portanto, a alguns passos da rua. A mistura de
cheiro de sujeira, de verdura cozinhando e de suor era tão pesada que Karl sentiu um
alívio momentâneo quando se viu do lado de fora da hospedaria. Bem que gostaria,
inclusive, de parar um pouco para respirar fundo o ar da manhã, mas a mulher tinha
começado a descer a rua numa velocidade que ninguém poderia imaginar.
Floreal5... Karl se virou e observou uma mãe preocupada em evitar que seu
filho de... seis?... sete anos?... atravessasse a rua sem olhar. Floreal... um dos nomes
trazidos pela revolução. Como se chamaria aquele menino, na verdade? Jean? Pierre?
Paul? Com certeza, teria o nome de algum apóstolo, de algum personagem das
Escrituras, de algum santo medieval, ao menos. Mas esses nomes já não eram
permitidos. Indicavam falta de lealdade à república dos cidadãos. Agora tinham que se
chamar Heliotropo ou Frutidor6... ou Floreal. Não havia problema para os recémnascidos, mas aquela pobre criança... com certeza, no começo não entendia por que
tinha passado de uma coisa a outra sem aviso prévio. Por um momento, Karl não
conseguiu reprimir um sorriso. No entanto, não podia se distrair. Não enquanto
estivesse com a mulher. A pobre velha estava tão empenhada em não ser descoberta que
qualquer policial acostumado teria percebido que tinha a intenção de realizar um ato
ilegal. Pensou nesse momento em abandoná-la e pegar um caminho diametralmente
oposto, mas, por fim, disse a si mesmo que era pouco provável que houvesse muitos
agentes da ordem naquela Paris dos cidadãos. Certamente, alguém teria tentado se juntar
aos novos donos da rua, seria o natural, mas daí a conseguirem ia uma distância nada
pequena. Apertou, portanto, o passo para alcançar a mulher e disse a si mesmo que,
hoje, talvez pudesse proporcionar a seu corpo algo realmente substancioso. Se
conseguisse isso, poderia classificar o acontecimento de uma autêntica revolução.
5
Floreal: oitavo mês do calendário republicano francês, cujos dias primeiro e
último
coincidiam, respectivamente, com o 20 de abril e o 19 de maio.
6
Frutidor: décimo segundo mês do calendário republicano francês, de 18 de agosto a
16 de setembro.
Oito
Baviera, 1775-1776
STEINER
SE INCLINOU,
melancólico e meditabundo, sobre a caneca de cerveja.
Em outra ocasião, teria se preparado para dar conta rapidamente daquele líquido
dourado e espumante, mas agora seu estado de espírito dificilmente poderia ser pior.
Fazia várias semanas que vinha alternando suas tarefas cotidianas — que, para falar a
verdade, não eram poucas — com algo tão volátil e difícil de encontrar como um
suposto sodomita assassino. Aí é que estava! Como se fosse pouco complicado
descobrir alguém que tinha acabado com a vida do próximo, ainda por cima neste caso
tinha que ser um invertido. Podiam também andar atrás do rastro — se é que existia —
de um ladrão zarolho, de um estuprador de vista curta ou de um vigarista de cabelo
branco... Bem que gostaria de não estar naquela enrascada, mas era óbvio que fugir ao
cumprimento do dever — e o dever eram as ordens firmes e categóricas de herr Koch
— estava muito além de sua capacidade.
A morte e sodomização — ou a sodomização e morte — daquele jovem, que
um desavisado caçador furtivo encontrou certa manhã enquanto perseguia um filhote de
lebre, tinha se transformado numa pesada armadilha para a mente metódica e
impregnada de sentimento de justiça de seu superior. Era óbvio que, como em tantos
outros casos anteriores, o desejo que o dominava era o de recompor a ordem rompida
pelo crime. Até aí tudo era normal, mas agora a missão estava se revelando mais difícil
do que o habitual. E isso porque, tal qual o médico tinha informado, nem no cadáver
nem no local onde ele tinha sido encontrado se tinha detectado o menor vestígio
suscetível de conduzir até o assassino ou que permitisse, ao menos, estabelecer a
identidade da vítima.
Durante as semanas seguintes, Steiner tinha se dedicado a percorrer os
arredores da floresta, perguntando a todos aqueles que estiveram a seu alcance e,
certamente, a todas as pessoas que fizeram o possível para não serem interrogadas.
Velhos e crianças, religiosos e leigos, homens e mulheres, camponeses e artesãos. Tinha
interrogado a todos, mas não tinha obtido informação de ninguém. A julgar pela
investigação, não havia testemunhas oculares do crime, e o máximo que Steiner
conseguiu foi que uma velha com o rosto transformado num verdadeiro canteiro de
rugas se benzesse horrorizada ao ouvir suas perguntas.
— A senhora sabe de alguma coisa, vovó? — tinha perguntado com alguma
esperança de que, afinal, pudesse fincar o pé em algum terreno menos movediço.
— Meu filho — respondeu a mulher —, já se sabe aonde as más companhias
podem levar, e para quem fica em casa em segurança nunca acontece nada de mau...
Não houve jeito de lhe arrancar nem mais uma frase, e Steiner ficou se
perguntando durante meses se a lacônica anciã estava emitindo um juízo categórico
sobre o morto ou se o advertia para se manter à margem daquela história, ou as duas
coisas ao mesmo tempo, ou simplesmente nenhuma delas. No fim das contas, por mais
que Steiner se esforçasse, ninguém conseguiu informar quem era aquele a quem um dia
tinham arrancado a vida e submetido a uma cerimônia perversa. Ninguém tinha
presenciado nada. Ninguém tinha visto ninguém. Ninguém tinha a menor idéia de nada.
Era como se um autêntico furacão de silêncio e esquecimento tivesse soprado sobre
aquele cadáver martirizado, arrastando qualquer fiapo mínimo que pudesse ajudar no
esclarecimento do caso.
— Tudo parece indicar que não vamos conseguir nenhuma testemunha ocular
— disse Koch numa manhã de segunda-feira, logo depois de tomar um generoso gole de
café.
— E agora? — atreveu-se a perguntar Steiner. — Quer dizer, qual deve ser o
rumo da investigação...
— Não se deter e seguir em frente — respondeu seu superior com um sorriso
paternal. — Se você está voltando do campo de carroça, despenca uma tempestade e
você fica atolado no caminho, você procura chegar até a cidade do jeito que for ou fica
esperando que um arcanjo venha tirar as rodas da lama?
Steiner disse a si mesmo que, se a carroça tivesse alguma cobertura, certamente
ele ficaria quietinho ali dentro esperando que a chuva parasse, mas já conhecia seu
chefe o suficiente para imaginar a resposta que ele esperava.
— Seguiria em frente — respondeu, procurando aparentar uma segurança que
absolutamente não tinha.
— Pois é isso mesmo que vamos fazer — afirmou Koch.
Sim, Steiner concordou, mas continuar exatamente por onde? Porque, no que
lhe dizia respeito, dificilmente poderia estar se sentindo mais desorientado.
— Descartadas as testemunhas oculares — disse Koch, como se corresse em
auxílio do naufrágio interior de Steiner —, devemos nos direcionar para a localização
dos possíveis criminosos. Obviamente, tanto se se tratar de um quanto de vários, o lugar
adequado para os encontrar é em algum desses antros onde se reúnem os perpetradores
daquele pecado que levou Deus a afundar Sodoma e Gomorra numa chuva de fogo e
enxofre.
— Desculpe, herr — disse um Steiner ainda mais inquieto, depois de escutar
aquelas palavras. — Onde se pode imaginar que vou encontrar essas pessoas? Quer
dizer... desculpe minha ignorância, mas... existem bordéis para sodomitas ou... ou
podem ser encontrados de alguma outra maneira?
— Steiner, pensei que soubesse mais sobre a vida — tinha respondido Koch
um tanto incomodado, enquanto tornava a encher de café a fina xícara de porcelana.
— Sobre a vida, sim — respondeu Steiner com uma voz encharcada de
ingenuidade —, mas de homens que gostam de homens... bem, confesso que não sei
nada sobre isso. Sei que eles existem, claro. Ouvi falar disso algumas vezes... Até
conheço algumas piadas sobre esse assunto, mas a verdade é que nunca os encontrei.
Koch pousou o olhar sobre seu ajudante. Não era um olhar impregnado de
amabilidade, mas Steiner não saberia dizer se nele prevalecia a desaprovação, o
desgosto ou a simples contrariedade. Durante alguns segundos, o ajudante esperou que
seu superior explicasse o que estava pensando. Foi, infelizmente para ele, uma espera
infrutífera.
— Steiner — disse Koch por fim —, talvez você não esteja tão desorientado.
Siga por esse caminho.
Por qual caminho?, perguntou-se Steiner enquanto saía do gabinete de seu
superior e se preparava para sair às ruas de Ingolstadt à procura de uma pista que
pudesse ajudar a esclarecer um crime horrendo.
Durante os dias que se seguiram, Steiner experimentou uma verdadeira agonia.
Primeiro, socorreu-se com um pároco a quem deixou claro que não pretendia que ele
quebrasse o segredo da confissão, mas lhe agradeceria se ele o orientasse naquele tema.
O sacerdote — que, obviamente, não chegou a entendê-lo de maneira adequada —
expulsou-o de seu escritório com muita raiva, ao mesmo tempo em que lhe perguntava o
que ele estava pensando sobre seus paroquianos. Steiner não tinha imaginado nada.
Queria apenas um pouco de orientação. O passo seguinte o levou até o médico que tinha
examinado o cadáver do pobre rapaz.
— O que o senhor deseja saber exatamente, herr Steiner? — perguntou o
Galeno, olhando-o de maneira inquisitiva por cima de suas lentes redondas e reluzentes.
— Pois eu...
Não chegou a dizer mais nada.
— Sabemos muito pouco sobre a inversão sexual — disse o médico. — Sem
dúvida, é um comportamento antinatural, porque se todos o seguissem a espécie se
acabaria, mas ainda desconhecemos o que é que impele alguém a se comportar de forma
tão contrária àquilo que somos.
— Isso não me interessa muito... — atreveu-se a dizer Steiner, temeroso de que
o médico o transformasse em ouvinte solitário de uma explanação sobre a sodomia... —
na verdade, eu...
— Pessoalmente — começou a dizer o doutor sem dar a menor importância às
palavras do policial —, acho que obedece a diferentes causas. Certamente, há o
conhecimento dos prazeres da carne dessa maneira e a dificuldade para os orientar
depois de maneira natural, e podemos acrescentar a isso a falta de mulheres quando se
está na prisão ou em alto mar, o fastio de algumas pessoas já muito entregues à
depravação...
— Herr doktor — levantou a voz Steiner, disposto a se salvar da lição
professoral —, sem dúvida tudo isso é interessante... para o senhor e para outros sábios,
mas eu... bem, eu me contentaria em saber onde poderia encontrar essas pessoas dadas
a... essas práticas.
A verdade é que fazia muito frio quando a porta do embaraçado médico se
fechou às suas costas e Steiner se encontrou na rua sem saber uma vírgula a mais do que
o que conhecia ao entrar na casa.
E aquilo foi apenas o início de suas aflições. Os policiais mais veteranos
olhavam para ele com estranheza quando ouviam a pergunta, as prostitutas riam em sua
cara, uma delas inclusive disparou se ele sabia bem o que estava fazendo (e o que ela
pensava que ele estava fazendo?), e até sua própria esposa começou a se inquietar por
causa daquela dedicação a um assunto tão espinhoso.
— Gretchen — disse quase irritado —, trata-se de uma investigação como
qualquer outra.
Gretchen, que, como uma esposa perfeita, nunca o contestava, também não o
fez dessa vez, mas por sua expressão Steiner deduziu que não tinha conseguido
convencê-la. Também não quis insistir sobre o que poderia estar passando por sua
cabeça. Fazia muitos anos que estavam juntos e tinham três filhos encantadores para
agora se atreverem a azedar seu casamento simplesmente porque herr Koch tinha lhe
encomendado a missão de encontrar uma agulha — bastante esquisita, sem dúvida —
num palheiro.
Durante aqueles meses, Steiner alimentou algumas vezes a esperança de que
tudo se dissipasse como uma tempestade de verão. Talvez tudo acabasse sendo
descoberto casualmente — como acontece muitas vezes no curso de uma investigação
policial —, talvez o assassino, crivado pelo remorso, acorresse para confessar seu crime
às dependências da polícia de Ingolstadt, talvez herr Koch se esquecesse de tudo,
absorvido na resolução de violações da lei igualmente graves. Semelhante desejo foi
desmentido várias vezes. Se estavam atrás de um ladrão de gado, atrás de um
falsificador de moedas, ou atrás de um falsificador, herr Koch sempre encontrava o
momento apropriado para lhe perguntar pelo andamento de suas investigações a respeito
do misterioso assassinato da floresta. Nessas horas, Steiner sentia uma aflição imensa e
uma vergonha igualmente considerável se apoderava dele. Numa dessas ocasiões, esteve
até a ponto de começar a chorar. Conteve-se, porque pertencia à corporação da polícia...
mas não por falta de vontade.
Agora, sentado na taberna, não podia evitar de se sentir oprimido pela
infelicidade. Se não tivesse uma família para sustentar — quem sabe? — já teria
abandonado aquela ocupação sagrada a que tinha entregado tantos anos de sua vida.
Aproximou a caneca de cerveja dos lábios, tomou um gole que lhe pareceu amargo
como o fel e deu um suspiro.
— Pretende me cobrar tudo isso por uma camisa, herr Heide? - ouviu o que
dizia a mulher do taberneiro.
— Foi o que combinamos... — respondeu uma voz esganiçada que levou
Steiner a voltar o olhar até o lugar de onde ela vinha.
— Olhe, não me lembro disso, Herr Heide — respondeu a bojuda taberneira —
, mas o trabalho... ele deixa muito a desejar... olhe, olhe só o acabamento...
— O que é que tem meu acabamento? — perguntou indignado o homem de
vozinha aguda. — Frau Muller...
Mas Steiner não estava absolutamente interessado na disputa sobre a camisa ou
na forma, menos ou mais adequada, como o tal Heide poderia tê-la rematado. O que lhe
interessava era sua aparência. Tratava-se de um velhote enfeitado, de baixa estatura,
pele avermelhada — de fato, ia assumindo uma cor mais intensa à medida que a
discussão avançava — e cabelos imaculadamente brancos. Até aí tudo parecia normal,
mas a forma como mexia as mãos, o timbre vocal...
O policial esperou pacientemente que a senhora Muller encerrasse a discussão
com herr Heide. A disputa acabou quando o homem parecia a ponto de morrer de uma
congestão. Talvez o medo de que ele caísse fulminado em seu estabelecimento tenha
sido o que acabou convencendo a estalajadeira a pagar e dar o assunto por encerrado.
Depois, empinando o queixo num gesto de indignação mais ou menos sincero, o tal
Heide tinha se encaminhado para a porta e deixado o local.
Steiner, movido por aquilo que alguns chamam de instinto, mas que, com toda
a certeza, é apenas a experiência acumulada, adiantou-se até o balcão, pagou e
atravessou a soleira. Chegar até a rua e olhar para um lado e para o outro da calçada lhe
custou apenas alguns segundos. O homenzinho de voz esganiçada se movimentava
apressado a uns cinqüenta passos dele. Pois muito bem. Como se ele se incomodasse em
correr. Steiner apertou o passo e conseguiu chegar perto em uns dois minutos. Então,
fazendo um último esforço, adiantou-se a ele pela esquerda, interrompeu-lhe a
passagem e lhe disse:
— Sou agente da polícia de Ingolstadt. Herr Heide, tenha a bondade de me
acompanhar.
O homenzinho de cabelos brancos e de voz esganiçada encarou-o com a
surpresa estampada no rosto redondo e avermelhado. Abriu a boca umas duas vezes sem
conseguir articular uma única frase e, finalmente, com um fiapo de voz, perguntou num
tom situado a meio caminho entre a indignação e a surpresa:
— Eu? Por quê?
Steiner percebeu naquele mesmo momento que não tinha o menor motivo para
deter o velho. Bem, dava no mesmo. Uma vez que tinha a sensação de ter encontrado
uma pista, não estava disposto a largá-la por um detalhe desses.
— Faça o favor de me acompanhar — disse, fingindo uma autoridade e uma
convicção que praticamente não tinha naquele momento.
— Mas... mas... posso saber ao menos por quê?
Steiner engoliu em seco ao mesmo tempo em que desejava de todo coração que
o gesto não fosse percebido por aquele reticente sujeito.
— Você sabe por quê — respondeu com uma firmeza invejável o agente
Steiner.
— Eu? — quase gritou o costureiro enquanto levava as mãos ao peito num
gesto rápido e suave. — O que é que eu sei? Uma pessoa tem que ouvir cada coisa!
Saiba o senhor...
O policial não tinha a menor intenção de saber nada naquele momento. Cravou
o olhar no homem de cabelos alvos e o espetou:
— Por cometer o pecado de Sodoma e Gomorra.
Steiner teve que segurar herr Heide em seus braços para evitar que, desmaiado,
ele se estatelasse no chão.
Nove
Baviera, 1787
A voz ARRANCOU KOCH de suas reflexões. Era extremamente clara e sossegada
e, talvez por conta disso, chocou-o a figura da qual provinha. Tratava-se de um homem
de estatura mediana, um tanto carregado no peso, vestido de forma desalinhada, embora
limpo e barbeado. Poderia ter sido um comerciante, um advogado, provavelmente um
professor, mas... um sujeito dedicado a zombar de clérigos aos quais, previamente, teria
embriagado?
— O senhor é herr Lebendig? — perguntou Koch.
— Sim, sou eu.
— O senhor conhece um sacerdote... chamado List?
O rosto de Lebendig se iluminou, ao mesmo tempo em que suas sobrancelhas
se arquearam levemente. Koch teria jurado que, longe de se inquietar, ele estava
fazendo força para não deixar transparecer que a simples menção do nome era no fim
das contas divertida para ele.
— Sim, claro que conheço o padre List — respondeu Lebendig. — Esteve aqui
há alguns dias. Dei-lhe uma pequena remuneração para que colaborasse em minhas
experiências.
Uma sensação incômoda de desorientação tomou conta de Koch ao ouvir
aquelas palavras. Não se tratava apenas do fato de que Lebendig não demonstrasse o
menor sinal de inquietação, de que estava absolutamente tranqüilo, e até parecia
serenamente divertido: havia, além disso, aquela referência inquietante a algumas
experiências. A que espécie de experiências ele estaria se referindo?
— É uma pessoa agradável — prosseguiu Lebendig, enquanto retirava alguns
livros que pareciam quase suspensos no vazio e debaixo deles aparecia uma cadeira em
que conseguiu se sentar. — Com uma vida tranqüila, bem, como costuma acontecer
com a maioria dos párocos. Esta foi uma das razões por que achei que poderia ser ideal.
A propósito, a que se deve seu interesse pelo padre List? O senhor é parente dele? Um
amigo, talvez?
Koch hesitou um instante antes de responder. Sem dúvida, se dissesse que era
policial, seria mais do que provável que aquele homem tratasse de esconder a verdade...
— Sou sobrinho dele — mentiu com absoluta naturalidade.
— Sobrinho... — repetiu Lebendig. — Pois o senhor faz muito bem, cuidando
de seu tio. É uma pessoa um tanto ingênua. Se tivesse cruzado com outro que não fosse
eu, sabe-se lá o que poderia ter-lhe ocorrido.
— O senhor se referiu a algumas experiências... — disse Koch justo no
momento em que a mulher que lhe tinha aberto a porta entrava no aposento carregando
uma bandeja.
O policial ficou em silêncio enquanto observava, surpreso, como a recémchegada conseguia colocar umas xícaras e uma chaleira sobre uma mesinha coberta de
livros. Assustava-o pensar o que poderia aparecer debaixo de tantos volumes.
— Sim — respondeu Lebendig com a maior naturalidade, ao mesmo tempo em
que se inclinava sobre os recipientes. — Gostaria de um pouco de café?
— Sim, danke7.
— E como vai querer?
— Puro. Sem açúcar e sem leite.
Lebendig despejou o líquido preto numa xicrinha e a estendeu ao policial, que
a apanhou e a aproximou dos lábios. Mal tinha acabado de afastá-la da boca — estava
bem-feito aquele café, era preciso reconhecer — quando seu anfitrião começou a falar.
— Repare nessa parede — disse.
Koch dirigiu o olhar para o muro, mas não viu nada além de uma série amorfa
de montes de livros, nada diferente daquilo que já tinha visto em outros lugares daquela
casa quase insuportavelmente desorganizada.
— Está vendo essa sombra? Koch pestanejou.
— Sim — disse por fim.
— O senhor diria que ela corresponde a quê?
— É a sombra de minha mão... e da xícara...
— Exato, exato — disse Lebendig esboçando um sorriso. — Agora eu lhe
pergunto: por que o senhor consegue ver essa sombra na parede?
— Bem... — começou a dizer Koch —, imagino que a luz que entra pela janela
chega até a parede e... e quando encontra minha mão no caminho lança uma sombra.
— Sim, mais ou menos — concordou com um sorriso Lebendig. — O fato é
7
Em alemão, no original.
que a sombra se projeta sobre a parede e todos podemos vê-la.
Koch deixou escapar uma tossezinha incômoda.
— Desculpe, herr Lebendig, mas o que é que isso tem a ver com o padre List?
— Com seu... tio? Muito. Muito. Já vai ver. Da mesma forma como nossa
sombra fica projetada numa parede por efeito da luz, o que nós somos, o que pensamos,
o que escondemos, pode se projetar sobre o papel quando traçamos nossa escrita sobre
ele.
— O senhor está querendo dizer que o que escrevemos deixa a descoberto
como somos?
— Não exatamente. O que estou querendo dizer é que a maneira como
escrevemos deixa a descoberto aquilo que somos.
— Não tenho certeza de estar entendendo — reconheceu Koch.
— Sim, caro. É natural — disse com expressão compreensiva Lebendig. —
Bem, o que o senhor pensaria se eu lhe dissesse que na letra, em sua letra, posso ver
qual é seu estado de espírito, como é seu caráter, se está mentindo ou dizendo a verdade,
ou inclusive se sua saúde é boa ou a doença o corrói?
Koch ficou em silêncio por um instante. Terminou o conteúdo da xícara de café
e reprimiu o impulso de acariciar o queixo.
— O que é que tudo isso tem a ver com o padre List? — disse por fim. Um
sorriso alegre, divertido, quase infantil, iluminou o rosto redondo de Lebendig.
— Tudo. Tem tudo a ver. Espere um instante.
Lebendig se levantou da cadeira e de uma arrancada se dirigiu até uma das
portas que furavam as paredes do aposento. Demorou apenas alguns instantes para
voltar e ao fazer isso trazia nas mãos alguns papéis.
— Observe isto — disse, colocando uma das folhas sobre a mesa. — Esta é a
letra normal de List.
Koch observou os traços. Eram bem-feitos, redondos, como os de um aluno de
escola que deseja escrever da melhor forma possível seus exercícios de caligrafia.
— Agora observe a letra de List em adiantado estado de embriaguez —
comentou superpondo outro papel sobre o texto. — O senhor está vendo a diferença de
traços? São mais trêmulos, mais hesitantes, mais inseguros, ergo o efeito do álcool
transparece na maneira como escrevemos.
— Acho que estou entendendo — disse Koch entre dentes enquanto passava os
olhos de um papel ao outro. — O que eu não consigo compreender é por que o senhor
disse aquela história da paróquia...
— O senhor se refere à má notícia que lhe dei? — disse Lebendig, reprimindo
um sorriso.
Koch fez que sim com a cabeça.
— É facílimo, meu amigo — exclamou Lebendig, num tom quase triunfal. —
A tristeza, a ira e a dúvida também ficam projetadas na escrita como a sombra da xícara
na parede. De fato, o mundo desabou em cima de seu tio quando eu lhe contei a história
sobre sua paróquia. Veja, veja o senhor esta letra. Percebe como ela cai no final? É
quase como... como se ele desmoronasse esmagado pela dor.
Os olhos do policial se cravaram no papel. Sim, não restava a menor dúvida de
que o que Lebendig estava dizendo era verdade. Graças a isso que ele chamava de
experiências, podia-se ver como a letra de um homem se alterava em conseqüência do
álcool ou da dor. A verdade é que, quanto mais pensava naquilo, parecia-lhe mais
sugestivo.
— Seu tio, o padre List, prestou um grande serviço à ciência. Muito grande.
Admito que não agi corretamente mentindo para ele, mas como eu teria podido captar
os efeitos da aflição em sua letra sem lhe dar esse susto? Por outro lado, não tive a
pretensão de que colaborasse gratuitamente. Paguei a ele.
— Desculpe, herr Lebendig — disse Koch sem tirar os olhos dos papéis. —
Não sei se entendi direito, mas... o senhor disse antes que também poderia descobrir o
caráter de uma pessoa, que até poderia ver se ela está doente?
— Com certeza — respondeu Lebendig. — Com certeza. Posso lhe mostrar
alguns exemplos de escrita que...
— Poderia ler minha letra? — interrompeu-o Koch.
Lebendig não respondeu. Limitou a se levantar rapidamente e a tornar a se
perder por uma das portas que davam para a saleta. Retornou em alguns instantes com
um tinteiro, algumas penas e alguns papéis.
— Assine — disse enquanto colocava os objetos diante de Koch.
— Como?
— Assine. Escreva sua assinatura. A que o senhor faz normalmente. Koch não
teve o menor sinal de hesitação. Molhou a ponta bem cortada da pena no tinteiro e em
seguida assinou do mesmo jeito que fazia todos os dias.
— Bom, muito bom — disse Lebendig. — E agora o senhor gostaria de
escrever alguma coisa? Por exemplo, alguma coisa como "Gosto muito de meu tio, o
padre List". Sim, isso ou algo parecido.
O policial deixou no papel uma demonstração de carinho para com o sacerdote
que não era absolutamente seu parente e que, ainda por cima, àquela altura já não tinha
a menor importância para ele.
— Bem, vamos ver o que temos aqui — comentou Lebendig enquanto pegava
o papel. — Caramba, que preocupação o senhor tem com a ordem. É uma verdadeira
obsessão. Imagino que deva estar se sentindo muito mal nesta casa...
Koch engoliu em seco, ao mesmo tempo em que sentia uma pontada incômoda
no peito.
— Um apaixonado pela ordem. Puxa, e como! Dotado, além do mais, de uma
memória muito boa. Quase me atreveria a dizer que é excelente. Repare, repare na
forma como junta as letras. Um memorião. E além do mais, tem uma capacidade
excepcional para relacionar idéias.
O policial tentou esboçar um sorriso de cortesia, mas lhe saiu um trejeito
incômodo.
— Sim, intelectualmente, o senhor conta com algumas qualidades
excepcionais. Mas... mas... permita que eu lhe diga isso, não deveria ser tão exigente
consigo mesmo. Principalmente, porque não consegue colocar para fora toda a tensão
acumulada. Não, o senhor controla, reprime demais seu comportamento e, veja, veja
este traço. Não lembra a lâmina de uma faca? Está vendo? Pois bem, o senhor está
cravando essa faca em sua saúde com essa insistência permanente em ser tão exigente.
Com toda a certeza, o senhor tem dores de estômago com mais freqüência do que
desejaria.
Sem se dar conta, Koch levou a mão à barriga e fez uma leve carícia sobre sua
superfície, como se quisesse aliviar mal-estares sofridos com uma periodicidade
excessiva.
— Deve se cuidar mais — prosseguiu Lebendig. — Preste atenção no que
estou dizendo. Bem, passemos para outro ponto. Vejamos... O senhor é imensamente
discreto. Eu não diria que é mentiroso, mas sim discreto ao extremo. Quase me atreveria
a dizer que o que se passa pela sua cabeça só Deus e o senhor sabem. Mas, repare,
mesmo assim, não consegue esconder tudo. Por exemplo, o senhor não gosta do padre
List e não porque seja má pessoa. É simplesmente porque ele não é seu parente.
Koch fez um movimento brusco que tentou reprimir da melhor maneira
possível. Tudo, absolutamente tudo o que Lebendig tinha dito correspondia com
precisão matemática à realidade, mas a referência ao padre...
— Agora deixe-me verificar sua profissão... Funcionário, sem dúvida, mas...
mas que tipo de funcionário? Poderia ser juiz... mas... não, o senhor não é juiz. O senhor
é policial.
D ez
Baviera, 1776
STEINER
CHEGOU ÀS DEPENDÊNCIAS
da polícia mergulhado num estado de
espírito que, na verdade, poderia ser descrito como radiante. A sensação de que aquele
sujeito que estava agarrando pelo braço esquerdo podia ser uma verdadeira pista tinha
injetado nele uma indescritível sensação de euforia. Dava como bem empregadas as
censuras do padre, a desnecessária lição professoral do médico, as zombarias das
prostitutas. Todos os sentimentos ruins ficavam totalmente diluídos na cálida esperança
de que herr Heide fosse a porta para alcançar o mundo oculto da sodomia de Ingolstadt
e, através de seus becos escuros, pudessem botar a mão no assassino daquele pobrediabo morto na floresta. Steiner se sentia tão feliz quando subia as escadas que
conduziam até o gabinete de herr Koch que não acharia estranho encontrar no patamar
um arcanjo esperando-o para lhe outorgar a gloriosa coroa dos bem-aventurados.
Lamentavelmente para Steiner, seu superior não demorou a extinguir impiedosamente
os ardores de seu júbilo.
Assim que observou o trêmulo sodomita, Koch se convenceu de que aquele
infeliz, tremebundo e avermelhado, não tinha nada a ver com o crime. Como um sujeito
daqueles poderia ter dominado um rapaz como o morto? E não era só isso. Com toda a
certeza, aquele alfaiate de camisas, calças e calções - segundo sua própria declaração —
, também não tinha força suficiente para violentar ninguém, nem mesmo na hipótese de
que já tivesse dado o último suspiro. Depois de lhe formular meia dúzia de perguntas,
Koch acenou para seu ajudante e os dois deixaram a sala em que estavam interrogando
Heide.
— O que você acha, Steiner? — perguntou, mal escondendo seu mau humor.
— Herr Koch — começou a dizer o subalterno, com a tristeza agarrada a cada
letra de suas palavras —, a conduta moral desse homem me parece repugnante, mas o
que o senhor quer que eu diga? Se dependesse de mim, eu o colocaria em liberdade
imediatamente. Não acredito que ele saiba qualquer coisa sobre o crime, e além disso é
um velho. Sorte dele se não morrer do susto...
— Estou entendendo — limitou-se a dizer Koch, ao mesmo tempo em que se
perguntava por que seu volúvel ajudante não tinha chegado antes àquela conclusão e
evitado que ele perdesse uma fatia de seu preciosíssimo tempo. — Com certeza, você
tem toda a razão, mas no momento ele deve permanecer em meu gabinete. Quero lhe
fazer mais algumas perguntas.
Não, herr Heide não era o culpado. Não podia ser. No entanto, Koch não tinha
certeza de que, devidamente interrogado, ele não poderia lhes indicar, talvez até sem
querer, algum caminho que lhes permitisse avançar numa investigação tão encalhada
quanto uma baleia perdida numa praia.
— O senhor é quem manda — disse um desorientado Steiner, que àquela altura
já não sabia a que se ater.
Durante toda aquela noite, Koch submeteu o alfaiate a um interrogatório
rigoroso em que não houve tapas, insultos nem humilhações, mas ao longo do qual pôde
observar algumas das maiores caretas de pânico que tinha tido a oportunidade de ver
durante sua extensa carreira. Por um momento, teve a sensação de que todas as suas
características físicas — a pele avermelhada, o cabelo exageradamente branco, os olhos
redondos e um pouco saltados, mas mãos que agiam de forma praticamente
independente — só ajudavam a transformar aquele infeliz na imagem viva do pavor.
Pensando bem, era natural que não lhe faltassem razões para estar assustado. Tal qual o
via, aquele homem não ia além de furtar uma parte do tecido em algumas ocasiões ou de
tentar roubar seus clientes em alguma coisa, e inclusive disso também não se podia ter
certeza, e, sem qualquer sombra de dúvida, seu vício nefando era do conhecimento de
boa parte da população de Ingolstadt, mas... aí é que entrava o mas que o estava fazendo
passar a pior noite de sua vida. Até aquele momento, todos tinham preferido olhar para
o outro lado.
A população de Ingolstadt era rigorosamente católica e, históricamente, os
jesuítas tinham representado um papel de primeira ordem mas, com absoluta certeza,
todos ou quase todos os habitantes da cidade pensavam que não fazia sentido dificultar a
vida de uma pessoa que, no fim das contas, não incomodava ninguém. Deviam sentir
compaixão por ele e até, em certos casos, desgosto por seu comportamento moral, mas
ao mesmo tempo não era de se estranhar que não tivesse perdido um único cliente. E
isso apesar de todos, em algum momento, terem captado algum de seus olhares de
admiração e inveja dirigida para varões que ele considerava atraentes. Aquele pacto de
silêncio — que não era quebrado nem mesmo quando os paroquianos não ficavam
totalmente satisfeitos com o preço ou com a mercadoria — tinha funcionado durante
décadas, mas agora estava correndo um terrível perigo, o de ser quebrado sem
misericórdia. Heide — e com ele Koch — tinha consciência de que se soubessem, de
forma pública e não sussurrada, que ele tinha sido preso, seriam bem poucos os que se
atreveriam a lhe encomendar a camisa mais modesta. O que todos se recusavam a ver
sairia à luz e ele já não poderia viver com aquela simulação por mais tempo.
Um padre teria oferecido a Heide consolo na aflição e tentado conduzi-lo ao
arrependimento que pudesse proporcionar alívio à sua alma, mas Koch não era um
sacerdote e não tinha a menor vontade de assumir essas funções tão delicadas. Pelo
contrário: conhecedor da asfixiante fragilidade de que Heide padecia, tirou proveito
dela. Enquanto se passavam as horas que permaneceu entre o pôr-do-sol e a aurora, e as
velas se consumiam, sonolentas e amarelas, Koch foi desfiando uma seqüência de
perguntas destinadas a obter uma informação que considerava essencial para conseguir
resolver aquele caso e os outros que pudessem aparecer no futuro.
Foi assim que o medroso alfaiate confessou que, fazia já algum tempo, para
satisfazer sua luxúria — que, como Koch tinha suspeitado, via-se cada vez mais
apagada pela idade —, apelava para viagens a alguma cidade distante uns dois dias de
caminhada de Ingolstadt. Koch também tomou conhecimento de que em Ingolstadt, que
Heide soubesse, ninguém compartilhava de suas inclinações e de que não tinha
conhecimento de que algum sodomita tivesse se estabelecido na cidade nos últimos
anos. Certamente, ignorava completamente quem era aquele rapaz — Deus o guardasse
em seu convívio, disse com todo o sentimento de seu coração — que tinham matado
pouco antes ou pouco depois de o terem violentado.
— Esse é um pecado grave. Muito grave, herr Koch — tinha murmurado
Heide com um fio de voz recendendo a medo e dor.
Sim, era mesmo. Não restava dúvida, disse para si mesmo o policial, mas seu
dever não era trabalhar com categorias teológicas, mas com as legais. Havia pecados tão
graves quanto a inveja, a maledicência ou a soberba que não entravam no âmbito de seu
trabalho, e Deus, com certeza, julgaria um dia todo o gênero humano por suas inúmeras
faltas. Mas, no momento, o policial se conformava com que os delinqüentes
comparecessem perante o juiz, fossem condenados e cumprissem a sentença.
— Pode ir embora — disse Koch a Heide finalmente, quando a luz do
amanhecer tinha começado a tingir os móveis do aposento com um verniz de tom
cinzento metálico.
No decorrer das últimas horas, tinha-se visto mergulhado na inegável sensação
de estar desarmado e indefeso diante de um destino mais poderoso do que ele. Tinha
respondido sem resistência, sem reticências, sem procurar se proteger de um possível
perigo. Afinal de contas, os policiais sabiam o que ele era e o melhor que ele podia fazer
era não provocar sua cólera. Agora, ao escutar as palavras de Koch, durante alguns
instantes o alfaiate foi incapaz de compreender.
— Eu disse para ir embora, herr Heide — explicou Koch com um tom de voz
frio. — Agradeço a sua colaboração.
Heide piscou os olhos, estupefato. Seria possível que aquele homem tivesse lhe
agradecido? Procurou com o olhar o agente que o tinha prendido e o encontrou,
mergulhado num sono mais agitado do que reparador, num canto do aposento ainda
envolto em penumbra.
— Não me faça perder mais tempo — disse Koch enquanto pousava os olhos
num dos processos depositados sobre sua escrivaninha. — Vá-se embora de uma vez.
Como que impelido por uma mola, o homenzinho pulou de sua cadeira e se
apressou em abandonar o local depois de resmungar algumas palavras de tímida
gratidão. Talvez, pensou Koch, estivesse esperando que, a qualquer momento,
tornassem a prendê-lo. A verdade é que Koch estava muito longe de ter semelhante
intenção. Respirou fundo, apoiou as palmas das mãos sobre a mesa e tomou um leve
impulso para ficar de pé. Notou que estava com os membros dormentes e levou as mãos
fechadas à altura dos rins antes de dobrar sua espinha dorsal. Bem, no fim das contas,
talvez a noite de trabalho não tivesse sido completamente inútil, embora, no momento,
não pudesse vislumbrar um resultado imediato. Respirou fundo e cruzou a distância que
o separava do adormecido Steiner.
Observou-o por alguns instantes. A verdade é que não se poderia dizer que ele
estivesse muito sossegado. Devia estar tendo algum pesadelo, com toda a certeza. Não
fazia sentido permitir que sua aflição se prolongasse. Koch se inclinou sobre seu
subordinado e sacudiu seu ombro esquerdo.
— Hã? Hã? O que está acontecendo? — disse Steiner angustiado, mexendo os
braços como as pás de um moinho, tentando talvez espantar algum inimigo invisível.
— Lave o rosto, arrume-se e me consiga uma boa quantidade de café. — Foi
toda a resposta que Koch proporcionou a seu inquieto assistente.
— Conseguiu avançar na investigação? — perguntou-lhe Steiner algum tempo
depois, enquanto depositava sobre a mesa de Koch um bule transbordante de café.
— Temo que não — respondeu Koch depois de deixar que o aroma daquele
líquido preto e fumegante invadisse seu nariz e lhe provocasse uma agradabilíssima
sensação.
— Então terá que dá-la por encerrada... — pensou em voz alta o assistente.
Koch lhe dirigiu um olhar de reprovação. O comentário podia ter uma certa
lógica, mas, de seu ponto de vista, parecia absolutamente intolerável.
— Escute bem isso, Steiner — disse enquanto inclinava o bule para encher de
café uma xícara impolutamente branca —, e trate de não esquecer nunca mais.
O ajudante reprimiu um calafrio provocado pelo tom de voz de seu superior.
Não restava dúvida de que tinha se excedido era sua opinião.
— Neste escritório - ressaltou Koch como se cuspisse as palavras uma a uma as investigações só são arquivadas depois que o delinqüente tiver sido preso e entregue
à justiça. Pode ser que em algumas ocasiões a escassez de provas, a ausência de indícios
ou a inexistência de pistas obriguem a interromper o trabalho. A interrompê-lo, sim,
mas nunca a arquivá-lo ou a esquecê-lo.
— Estou entendendo, herr Koch — balbuciou inquieto Steiner, que temia ter
cometido uma falta imperdoável.
— É melhor que seja assim — disse Koch — e, principalmente, melhor será
não esquecer nada do que aconteceu nas últimas semanas.
— Assim será, herr Koch — assinalou um Steiner ansioso para que
perdoassem sua infração.
— Algum dia — prosseguiu o chefe de polícia, como se não tivesse ouvido seu
subordinado —, quando Deus queira, certamente, mas algum dia enfim, contaremos
com mais informações. É bem possível que elas surjam de uma forma aparentemente
casual. Poderá ser um bêbado a quem o vinho costuma soltar a língua, um amante
despeitado, um credor cansado de esperar que lhe paguem... no nosso caso, tanto faz.
Mais cedo ou mais tarde, acabará surgindo uma pista, da mesma forma como um cano
furado acaba provocando uma poça em algum lugar e através da água descobrimos o
que está errado e podemos tentar consertar. Quando isso acontecer, lembre-se bem
disso, quando isso acontecer e aparecer a primeira pista, você e eu não teremos
esquecido de nada. Lembraremos de tudo perfeitamente, juntaremos todas as
informações, veremos as coisas com clareza e, sem nenhuma sombra de dúvida,
prenderemos o criminoso.
— Sem nenhuma dúvida — balbuciou Steiner, quase convencido pelas
eloqüentes palavras de Koch.
— Certamente será sem nenhuma dúvida — insistiu o chefe de polícia. —
Poderá demorar seis meses, um ano, dois, cinco, até uma década, mas, no final, a
ordem, essa ordem que caracteriza o universo em que vivemos, será restabelecida.
— Sim, herr Koch — disse agora o subordinado, beirando o entusiasmo.
— Claro que sim, Steiner, claro que sim, e agora me traga outro bule de café.
Onze
Paris, 24 de julho de 1794
KARL OBSERVOU OS OVOS com um misto de desilusão e repugnância. Achou-os
incrivelmente pequenos, como se fossem de pomba e não de galinha. E, além do mais, a
cor... era como se estivessem doentes. Poderiam ser brancos ou morenos, mas com boa
aparência. No entanto, aquela tonalidade de pessoa prestes a morrer não lhe inspirava
nenhuma confiança. Se pelo menos pudesse cheirá-los antes de soltar um centavo.
— Mais baratos impossível, cidadã — dizia o vendedor, um sujeito que
exalava um insuportável cheiro de axilas. — Porque são graúdos, graúdos e saborosos,
saborosos.
Aquele ambulante podia repetir duas vezes cada palavra com que quisesse
impressionar, mas a situação não mudava. Aqueles ovos davam verdadeiro asco. Bem,
com toda a certeza, ninguém podia garantir que não sofreria uma intoxicação — ou algo
pior — se os engolisse. A fome era terrível, mas, pelo menos algumas vezes, parecia
mais sadia do que o envenenamento.
— Cidadão, também não é para tanto... — protestou a velha, emitindo uma
careta de repugnância.
— Como não? Como não? — disse o vendedor enquanto abria os braços em
cruz e fazia uma expressão de ódio como a que um insulto à honra de sua mulher teria
provocado. — São uma maravilha, uma maravilha.
Sim, pensou Karl, talvez naquela Paris da convenção fossem uma maravilha. E
isso porque os revolucionários tinham prometido abundância para todos — bem, mais
exatamente, despojar os que tinham para dar aos que não possuíam nada , mas, na
prática, nunca se tinha passado tanta fome na França. Onde tinham ido parar as
montanhas de manteiga, os rios de leite, os castelos de uvas e frutas que podiam ser
encontrados na capital apenas alguns meses antes? Talvez o governo revolucionário
tivesse repartido tudo, mas se fosse assim devia ter feito isso em algum lugar muito
distante. Na capital, até encontrar pão começava a ser considerado um verdadeiro
milagre.
— Cidadão, o que acha?
A pergunta da mulher o arrancou de suas reflexões.
— Bem, cidadã... eu... eu acho...
Não completou a frase. Um ruído, um ruído inconfundível, um ruído que
tinham ouvido dúzias de vezes nos meses anteriores, um ruído que tinha rompido cada
uma das noites os avisou de que o perigo, como se se tratasse de um ser material e
tangível, estava prestes a penetrar a casa.
Doze
Baviera, 1778-1787
KOCH,
POR SER MUITO RESERVADO,
nunca disse isso em público, mas desde
aquele dia em que se encontrou pela primeira vez com Lebendig soube que sua vida iria
sofrer uma reviravolta. E sofreu. Encarregou-se — não queria ter surpresas
desagradáveis — de visitar o padre List e de elogiá-lo por sua colaboração inestimável
para o avanço da ciência. O clérigo — com os olhos arregalados como pratos —
demorou um bom tempo para entender o que o policial estava lhe falando.
— Padre, acredite em mim se eu lhe disser que o próprio Eleitor8 da Baviera
lhe agradecerá por sua dedicação — concluiu Koch diante de um sacerdote que não saía
de seu assombro e que retornou à sua paróquia com passo vacilante, em parte pelo
espanto e em parte pelas generosas doses que o policial tinha lhe oferecido.
Durante os anos seguintes, Koch se encarregou, da maneira mais discreta
possível, de impedir que Lebendig fosse embora de Ingolstadt. Quando constatou que
aquela figura notável andava mal de recursos, conseguiu-lhe alguns alunos particulares
para ensinar latim e grego. Não foi uma tarefa muito fácil, por que essa ocupação tão
necessária era desempenhada pelos membros da Companhia de Jesus que, depois da
dissolução de sua ordem, tinham que ganhar a vida de alguma forma. Não unha dúvida
de que os filhos de santo Inácio eram cultos, disciplinados e até brilhantes. No entanto,
para Koch era muito mais interessante contar com a colaboração de Lebendig do que
prover sustento para os jesuítas.
Era, dizia a si mesmo para tranqüilizar sua consciência, uma questão de ordem.
Naturalmente, empreendeu uma investigação rigorosa para conhecer as
intimidades de Lebendig. E, obviamente, resolveu encarregar disso Steiner, que se
transformou em pouco menos do que a sombra daquele extravagante indivíduo. Durante
semanas, seguiu-o por todos os cantos, municiado de uma caderneta em que anotava até
8
imperador.
Nome dado a cada um dos príncipes alemães que nomeavam ou elegiam o
os detalhes mais mesquinhos. Foi um trabalho rigoroso, bem documentado e impecável.
Foi um trabalho de método e ordem policial. O que Steiner descobriu depois de jornadas
inteiras não encheu Koch de alegria, mas pelo menos deixou claro que podia confiar em
Lebendig. Tratava-se de uma pessoa extraordinariamente trabalhadora. De fato,
conseguia passar horas sem tirar o traseiro da cadeira lendo e escrevendo. Claro que
acabavam aí suas extravagâncias. Não bebia, não fumava, não freqüentava tabernas nem
prostíbulos. Nem mesmo era clara a relação que mantinha com a mulher que vivia sob o
mesmo teto que ele e que, a julgar pelas aparências, era a mãe de um menino que não
articulava uma palavra. Era sua esposa? Era sua governanta? Era sua assistente? Era sua
amante? Difícil, para não dizer impossível, determinar isso, mas pelo menos não restava
dúvida de que não vivia correndo atrás de rabo-de-saia. Isso indicava uma ordem
interior — claro, que não tinha correspondente no mundo exterior — que agradou a
Koch. Estava tudo certo. Desde então, faria parte — não de maneira oficial, é claro —
das forças que mantinham a ordem na cidade.
Examinando tudo com a distância dos anos, ninguém teria podido duvidar da
ajuda de Lebendig e sua estranha ciência para a manutenção da lei na cidade,
extraordinária por diversas razões, de Ingolstadt. Em poucos anos, os casos foram se
multiplicando de forma realmente prodigiosa. O primeiro — lembrou-se, e um sorriso
divertido se desenhou em seu rosto — foi o de um falsário. Havia uma meia dúzia de
suspeitos e Lebendig resolveu toda a confusão em meia hora. Bastou-lhe comparar as
diferentes letras com a que figurava nos documentos falsificados. O juiz era um pouco
incrédulo, a princípio. No entanto, quando Lebendig disse que "o acusado, no fim das
contas, sofreu muito ultimamente. Está convencido de que sua mulher o engana e isso o
impeliu a violar a lei" e o delinqüente começou a chorar uma Madalena, o magistrado
não teve nenhuma dúvida de que a verdade nua e, acima de tudo, grandiosa se abria
diante dele.
— Foi fácil — disse modestamente Lebendig quando o juiz o parabenizou,
oprimido pelo espanto.
E depois daquele falsificador vieram os ladrões — muitos, certamente —, e
aquele assassino de mulheres que tiveram que perseguir durante metade do ano e...
certamente, os invejosos não demoraram a aparecer. Não questionavam a habilidade —
verdadeiramente indiscutível, realmente prodigiosa, absolutamente incomparável — de
Lebendig. Não, nunca se atreveram a colocar esse ataque frontal. Resolveram recorrer a
manobras envolventes. Começaram então a ressaltar que Lebendig era um protestante
numa cidade católica. Claro que Baviera podia se permitir a presença de hereges, de
maçons, de judeus, mas por acaso era necessário lhe outorgar esse privilégio?
— Sim — disse o bispo transparecendo convicção —, durante séculos meus
antecessores tiveram um médico judeu e tudo correu muito bem. Não vejo por que a
polícia do Eleitor tenha que renunciar a um colaborador com essas qualidades
simplesmente porque ele acredita na teologia da Reforma. Seria uma estupidez tão
grande quanto perder Mozart como músico simplesmente porque é maçom ou morrer de
sede porque o único aguadeiro é um turco.
A autoridade episcopal livrou Lebendig das armadilhas dos invejosos. Mas foi
apenas durante uma temporada. Porque depois apareceram aqueles que começaram a
censurar que ele morasse com uma mulher loura, pálida e calada, e um menino que não
falava uma palavra, sem que, pelo visto, estivesse casado com a primeira ou fosse o pai
do segundo. Foi quando Koch interveio diretamente em defesa de seu imprescindível
colaborador. Numa manhã, enquanto saía das dependências da polícia acompanhado por
Steiner, apareceu em seu caminho uma criatura que, alegando as intenções mais nobres
e desinteressadas, e até as mais piedosas, começou a criticar Lebendig de maneira
virulenta.
— Com o que você se escandaliza, hein? E por quê, pode-se saber? Porque é
tão caridoso que oferece estudo a um rapaz sem cultura do qual ainda por cima não é o
pai? Porque oferece casa e comida a uma pobre infeliz que não tem onde cair morta?
Estamos chegando a este ponto? A criticar a caridade?
Mais uma vez, Lebendig se viu a salvo de uma ordem de expulsão que o teria
atirado sabe Deus em que lugar distante. Mas isso porque todas aquelas ações não
poderiam ter estado mais bem encaminhadas para a manutenção da ordem. Porque a
cidade de Ingolstadt tinha muito a agradecer a Lebendig! E ele, ele também, porque —
tinha que reconhecer, ainda que não publicamente — se não fosse Lebendig nunca o
Eleitor da Baviera em pessoa o teria condecorado. Funcionário exemplar, tinha sido
chamado, antes que as pessoas irrompessem era aplausos. Funcionário exemplar! Pois
então, era o que ele era. Percebia onde a ordem cósmica tinha sido violada e corria para
consertá-la e, exatamente nesse trabalho de restauração, Lebendig se mostrava
essencial.
O melhor, no entanto, não tinham sido as promoções, nem as honrarias, nem
mesmo os aumentos de salário. O melhor tinha sido o que tinha conseguido aprender
com Lebendig sobre os homens e as mulheres com que cruzava diariamente pelas ruas.
Realmente, o coração humano era um poço sem fundo e em seus abismos mais
profundos nem sempre a luz brilhava. Senão, que fossem dizer isso à viúva Scheider.
Frau Scheider era uma das mulheres mais abastadas de Ingolstadt. Seu marido
— que era muito mais velho do que ela — tinha morrido deixando-a sem filhos, mas lhe
proporcionando em compensação uma fortuna extraordinária ligada a algumas
manufaturas de luxo como a porcelana e o cristal. Em circunstâncias normais, a viúva
não teria demorado a encontrar um partido conveniente e até atraente. No entanto, a boa
mulher parecia estar rodeada por um halo que afastava os pretendentes, em vez de atraílos. Para os velhos que tinham querido juntar riqueza com viver com tranqüilidade seus
últimos anos, frau Scheider parecia enérgica demais, vigorosa demais, forte demais para
lhes assegurar o tão sonhado sossego. Para os jovens que estavam à procura de boa vida
mediante o expediente de encontrarem uma esposa endinheirada, frau Scheider parecia
excessivamente independente, excessivamente sólida, excessivamente... mandona? Sim,
era essa a palavra. Mandona. No fim das contas, para uns e para outros, frau Scheider
tinha defeitos que anulavam uma capacidade de atração centrada fundamentalmente no
dinheiro.
Certamente, frau Scheider poderia ter procurado um amante para acalmar seus
inegáveis ardores. Mas Ingolstadt, ah Ingolstadt!, era uma cidade construída em torno
dos jesuítas e por mais que a Companhia de Jesus tivesse sido dissolvida por ordem do
poder secular, sua marca não tinha desaparecido. Frau Scheider, e principalmente
levando-se em conta o quanto era conhecida, devia ser um exemplo de decência. Ela,
mais ainda do que as mulheres comuns, tinha que saciar o apetite sexual com os laços
sagrados do casamento e se violasse as regras teria que assumir as conseqüências. Por
exemplo: ficar sem clientes que comprassem suas porcelanas e seus cristais.
Pois bem, aquela mulher chegou um dia ao gabinete de Koch, recémpromovido, certamente, com um problema grave. Quando desempacotaram uma de suas
valises mais luxuosas no palácio de um conhecido aristocrata, mais concretamente,
quando abriram uma sopeira de refinadíssimo acabamento, encontraram um bilhete que
dizia: "Comam, idiotas, comam como porcos que são." Entre rubores e suores, a viúva
tinha pedido mil e uma desculpas a um nobre que, para falar a verdade, a duras penas
conseguia conter as gargalhadas diante do que considerava uma tolice pueril.
No entanto, apesar da benevolência do aristocrata, não se deu por satisfeita.
Certa manhã, com um vestido de luto fechado, embora decotado, tão decotado que
Steiner teve problemas para que seus olhos não saíssem das órbitas, apresentou-se no
gabinete de Koch intimando-o a descobrir o culpado daquela ação intolerável.
— A senhora suspeita de alguém? — perguntou enquanto estudava a mulher e
dizia a si mesmo que, sem dúvida, era preciso muita coragem para se casar com ela.
— Pois a verdade é que sim, herr Koch, tenho sim minhas suspeitas.
— Então, por favor...
— Veja o senhor — disse a viúva sem deixar que ele concluísse a frase. —
Quando meu marido, meu pobre Wilhelm, morreu, Deus o tenha em sua glória, bem,
quando ele morreu, deixou-me todos os seus empregados. Eu... por caridade cristã, essa
é a verdade, mantive todos eles em seus postos. E devo lhe dizer que todos têm se
comportado muito bem... bem, todos menos Sigmund.
— Sigmund — repetiu Koch, enquanto anotava o nome.
— Sim, Sigmund — disse a viúva. — É o administrador e... e um homem
detestável. Precisa ver como me olha.
Foi só ela terminar aquela frase e Steiner, como que impelido por uma mola,
direcionou os olhos para o teto.
— Desculpe — interrompeu Koch. — Como ele a olha? Por acaso se atreveu
a...?
— Não, claro que não — repeliu frau Scheider com um movimento da mão
direita. — Não estou me referindo a... isso. Trata-se de outra coisa. É como se tudo que
eu faço o incomodasse e, fique o senhor sabendo, as fábricas agora funcionam muito
melhor do que quando meu marido vivia. Pois muito melhor!
— Por que a senhora acha que Sigmund...?
— Não tenho provas — respondeu imediatamente a viúva, culpada dessa
acusação, sem deixá-lo terminar a frase. — Não as tenho, mas estou convencida de que
foi ele, e se for verdade, bem, vou colocá-lo no olho da rua imediatamente, por mais
anos que tenha trabalhado para meu defunto, que Deus o tenha.
Koch pediu a um Steiner empenhado em cravar os olhos no teto que
acompanhasse a viúva Scheider até a saída. Ainda não tinha deixado o aposento quando
já meditava sobre como devia ser desagradável viver com alguém que não o deixava
concluir uma única frase. Àquela altura, estava mais do que convencido de que
Lebendig poderia encontrar o culpado.
Não se enganou. Numa manhã, ele reuniu na fábrica todos os que sabiam ler e
escrever, sentou-os diante de folhas de papel e lhes fez um ditado breve. Depois mandou
que assinassem, dispensou-os e começou a comparar as amostras de letras com o bilhete
que tinha aparecido, desafiador e grosseiro, numa sopeira cara e elegante.
— Este é o culpado, sem dúvida — disse, ao fim de apenas um quarto de hora.
— Sigmund, claro — exclamou a viúva com um sorriso de satisfação
transbordante.
— Não... — respondeu Lebendig. — Não é Sigmund.
Koch tinha observado a maneira como os músculos faciais da viúva tinham
despencado, desenhando uma careta de dolorosa surpresa. Não se podia negar que tinha
sofrido uma enorme decepção.
— Na verdade, o autor do bilhete foi Rudolph — concluiu Lebendig, enquanto
estendia os dois bilhetes para a mulher. — Se tem que despedir alguém...
— Rudolph? — quase gritou a viúva, impedindo que Lebendig terminasse a
frase. — Mas... mas não pode ser. Não, não pode ser.
— É ele, frau Scheider, é ele — cortou-a Lebendig. — Naturalmente, se a
senhora prefere considerar tudo uma criancice...
— Exatamente, meu senhor — disse a viúva enquanto leva a mão à garganta,
sufocada —, tudo isso não passa de uma criancice. E despedir Rudolph por causa
disso...
Lebendig e Koch trocaram um olhar breve mas carregado de significado.
Parecia óbvio que a viúva teria expulsado Sigmund a pontapés, se ele fosse o culpado,
mas Rudolph...
— Frau Scheider — tentou Lebendig retomar sua explanação —, certamente, a
senhora é muito religiosa para perdoar. Comportar-se assim é realizar uma ação, diga-se
de passagem, que a aproxima de Deus, mas acho que é minha obrigação observar...
— Deixemos tudo como está — interrompeu-o a viúva. — Agradeço-lhes pela
ajuda e... e lhes suplico que aceitem uma pequena gratificação pelo tempo gasto.
Qualquer outra pessoa teria optado por se calar e cobrar, mas Lebendig não
pertencia a essa espécie de homens. Como se não tivesse escutado as últimas palavras
de frau Scheider, tentou continuar apontando o que tinha descoberto.
— Por favor, repare no R maiúsculo da assinatura desse Rudolph. A senhora
está vendo essa espécie de gancho voltado para a esquerda? Pois bem, esse traço
denuncia uma inclinação para, como direi?, para se apoderar do alheio. É uma
circunstância de importância nada desprezível. Se fosse meu empregado, eu o
despediria hoje mesmo. Faria isso antes que ele levasse tudo o que pudesse porque...
A viúva Scheider não o deixou concluir. Com um gesto decidido, firme, que
não admitia réplica, praticamente os tinha empurrado para fora do recinto da fábrica.
Um mês depois anunciou seu compromisso matrimonial cora o jovem, ainda que de
aparência duvidosa, Rudolph. Seis meses depois, a criada que a ajudava a se vestir a
encontrou no meio de um mar de sangue. Tinha sido degolada e o assassino tinha fugido
com suas jóias mais valiosas. A polícia conseguiu capturar Rudolph pouco antes que
pudesse cruzar a fronteira da Baviera. Em sua defesa, disse, soluçando e com tremores
que sacudiam seu corpo, que não tinha conseguido agüentar por mais tempo uma
mulher que não o deixava terminar uma única frase. Foi exatamente quando ouviu
aquelas palavras que Steiner, atônito, murmurou:
— E parecia tão maternal!
Uma freada brusca arrancou Koch de suas lembranças. Abriu a cortina da
carruagem e lançou uma olhada para o exterior. Tinha que reconhecer que o lugar para
onde Lebendig tinha se mudado havia alguns meses não era nada mal. Um tanto isolado,
um tanto longe, e, claro, bem desarrumado por dentro. Como sempre, no entanto, com
muito mais espaço. Bem, já tinha chegado. Agora era só uma questão de permitir que
examinasse a carta assinada por esse tal Espartaco, porque se alguém podia desenrolar
aquele novelo conspiratório esse alguém era Lebendig.
Treze
Paris, 24 de julho de 1794
LEVARAM
APENAS ALGUNS INSTANTES
para verificar que, infelizmente, não
tinham se enganado na identificação do ruído. Sim, eram as pisadas firmes, agressivas,
orgulhosas dos sans-culottes, um som que vinha sempre acompanhado do entrechocar
brusco das armas e do estalido seco dos mosquetões ao serem engatilhados.
— Mãos ao alto! — gritou aquele que, sem dúvida, estava no comando.
O comerciante, a velha e Karl obedeceram à ordem sem contestar. Não tinham
a menor vontade de que os moessem a golpes de baioneta ou disparassem contra eles.
Sabiam de sobra que os sans-culottes não titubeariam um só instante na hora de matar
alguém que, por definição, considerassem burguês, aristocrata ou inimigo do povo.
— Heliotropo — disse um dos homens —, estavam trafecando ovos.
Trafecando... Sem dúvida, era preciso reconhecer que a revolução estava influindo na
língua mais do que uma reforma educativa teria conseguido.
Heliotropo — como diabos se chamaria este vagabundo antes de decapitarem o
Capeto? — deu alguns passos na direção do pequeno monte de palha onde jaziam os
arremedos de ovos. Deu-lhes uma olhada, pegou um deles e o aproximou do nariz. Não
devia cheirar mal, porque não fez nenhuma cara de nojo. Claro que também havia a
hipótese de que, com o fedor que tudo naquele lugar exalava, seu nariz não fosse capaz
de distinguir fedentina alguma.
— Expropriados — disse com a voz enrouquecida apenas pelo efeito do álcool.
— Os ovos estão expropriados.
Sim, "expropriados" era outra das palavras introduzidas pela revolução.
Tratava-se de um belo eufemismo para o saque e o roubo, porque Karl não tinha a
menor dúvida de que aqueles ovos iriam acabar na barriga dos sans-culottes. Sim, antes
que a noite chegasse, Heliotropo e seus companheiros (como se chamariam agora?
Graco? Pluvioso, Catão...?) estariam se fartando de gemas. É bem verdade que, pelo
estado provável dos ovos, o pecado já incluiria a penitência. Era o mínimo que
mereciam.
— Quanto a vocês, andando, inimigos do povo.
Jogaram-nos na rua aos empurrões e Karl se sentiu feliz por só terem roubado
sua casaca, sem reparar no relógio que carregava escondido num dos bolsos da calça.
Não tinha a menor certeza de que não acabariam despojando-o dele, mas pelo menos
por enquanto ainda o conservava.
— Heliotropo — ouviu um dos sans-culottes dizer —, acha que vale a pena
guilhotiná-los?
Uma risada zombeteira acolheu a pergunta macabra.
— Não ria. Estou falando sério — protestou. — Estou querendo dizer que os
tribunais populares demoram muito a decidir. Além do mais, enquanto eles são julgados
é preciso lhes dar de comer e é uma comida que se tira do povo, ou seja, de você e de
mim. Há sempre um jeito de dizer que eles escaparam e...
Pela primeira vez em muitos meses, Karl, que tantas vezes tinha visto a morte
apenas a alguns passos de distância, percebeu que agora inclinava seu rosto cadavérico
sobre ele. Aquele sans-culotte não estava brincando. Estava propondo a sério que os
matassem. Achar uma desculpa depois — "tentaram fugir, cidadão"; "ofereceram
resistência, cidadão..." — seria extremamente fácil.
— Pensando bem...
— Cidadão, você estaria cometendo um erro grave — disse Karl provocando
um olhar de espanto da velha e do comerciante.
O chefe dos sans-culottes arqueou as sobrancelhas numa expressão situada a
meio caminho entre a surpresa e a ira. No entanto, Karl sabia que não podia perder
tempo. Iniciado o caminho, tinha que ir até o final. Era isso ou esperar que os
assassinassem em alguma ruela alegando justiça revolucionária.
— Não somos pessoas desleais — prosseguiu Karl enquanto se perguntava
como poderia continuar aquele discurso. — Na verdade, os senhores poderiam
encontrar poucos cidadãos mais leais do que nós em Paris. Eu mesmo não sou francês...
Os sans-culottes cravaram os olhos em Karl como se não pudessem acreditar
no que estava acontecendo.
— E você estará se perguntando, cidadão, por que estou aqui. Não é isso
mesmo?
Observou que dois dos sans-culottes, sem abrir os lábios, balançavam a cabeça
afirmativamente. Bem, já era alguma coisa.
— Pois a resposta, cidadão, é muito, muito simples — prosseguiu. — Estou
aqui porque, do que acontecer na França, desta revolução, depende a sorte do mundo
inteiro.
— Você não é francês? — perguntou com expressão de desconfiança o chefe
dos sans-culottes. — Mas você fala muito bem. Será que você não é um aristrocata?.
Aristrocata... outra das contribuições revolucionárias à demolição da língua.
Era o caso de se perguntar com o que o francês se pareceria quando a Convenção tivesse
sido imposta em todo o território nacional.
— Sou um escritor. Um intelectual — corrigiu em seguida Karl. — Sou,
principalmente, um amigo do povo.
— Um amigo do povo, hein? — repetiu Heliotropo, enquanto levava a mão a
um queixo do qual a navalha de barbear não chegara perto pelo menos nas duas últimas
semanas.
— Diziam isso de Danton... — lembrou um dos sans-culottes.
— Sim, diziam isso até que madame Guilhotina cortou a barba dele... —
deixou escapar ingenuamente um outro.
— Leve-me, cidadão, até o seu chefe — afirmou Karl fingindo uma segurança
que não possuía. — Não tenha a menor dúvida de que tanto você quanto os cidadãos
sob suas ordens serão devidamente recompensados.
Heliotropo fixou os olhos em Karl sem parar de alisar o próprio queixo. Estava
consciente de que nas últimas semanas tinham sido executadas algumas medidas
disciplinares muito severas. Talvez até demais para uma república, mas, claro, isso tinha
que ser explicado ao pessoal do tribunal popular. E se aquele fulano era, no fim das
contas, quem dizia ser... Um inteletual. Nada menos do que um inteletual. Claro que
Danton e Saint-Just também eram inteletuais e Robespierre tinha zecutado justiça em
seus pescoços. Este quem seria? Bem, e ainda que ele fosse bom — e isso ainda era um
caso a ser visto —, a velha e o comerciante não eram. Seria o caso de perdoá-los
também?
— Está bem — disse por fim o homem que talvez não soubesse que seu nome
de batismo tinha sido substituído pelo de uma flor. — À cadeia com eles.
Catorze
Baviera, 1787
— O QUE VOCÊ ESTÁ VENDO? — perguntou Koch, cansado e impaciente diante
do prolongado silêncio de Lebendig.
O interpelado estendeu a mão direita como se quisesse apaziguar a impaciência
do policial. Depois, continuou tomando notas num papel amarelado que repousava ao
lado da carta que Koch tinha entregado a ele. Devia estar vendo muitas coisas, porque
era a terceira folha que enchia desde que tinha começado a análise do manuscrito.
Nunca, nem mesmo quando teve que seguir aquele escorregadio assassino que matava
uma pessoa atrás da outra sem deixar pistas, Lebendig tinha escrito tanto. Para falar a
verdade, numa porção de oportunidades, nem mesmo tinha precisado tomar notas.
Tinha-lhe bastado uma simples olhadela.
Enquanto o suor começava a perolar sua testa, Koch sentiu uma desagradável
pontada na boca do estômago. Sim, ele já sabia que precisava ser menos exigente, mas
não se poderia dizer que Lebendig estivesse colaborando ao retardar tanto seu
diagnóstico. Ansioso por distrair a espera, encheu uma nova xícara de café preto e forte
que tinha sido servido por Emma, a silenciosa mulher loura que morava com Lebendig.
— Não convém ao senhor tomar tanto café — advertiu Lebendig sem levantar
os olhos da carta assinada por Espartaco. Apesar das horas que tinham passado juntos,
das vezes em que tinham trabalhado juntos, continuava tratando-o de senhor. — Seu
estômago o censurará.
Koch se afastou da xícara, sem conseguir reprimir uma expressão de mal-estar,
um mal-estar que se acentuou quando passeou os olho pelo aposento e observou o caos
livresco, crescente como um organismo vivo, que o invadia.
— Acho que acabei — disse Lebendig, erguendo os olhos do manuscrito.
Koch observou o rosto de seu colaborador. Parecia cansado, súbita e
excessivamente cansado. Como se tivesse acabado de concluir um percurso cansativo e
extenuante.
— E... e então? — perguntou Koch reprimindo a duras penas sua impaciência.
— Não se trata de um homem comum — começou a dizer Lebendig. — Não,
sobre ele se pode dizer qualquer coisa, menos que seja comum, embora, para ser
sincero, é bem provável que ele saiba esconder sua verdadeira estatura com alguma
habilidade. Acho que até poderíamos cruzar com ele na rua ou conversar com ele sem
perceber o tipo de personalidade que estamos enfrentando.
Koch sentiu como se dois dedos em brasa tivessem deslizado sobre seu
estômago para se fincarem ali e provocarem uma chicotada de dor.
— Seria terrível, Koch — prosseguiu —, porque ele é realmente perigoso.
Excepcionalmente perigoso, eu me arriscaria a dizer. Veja... observe a maneira como
ele assina. É óbvio que Espartaco é seu nome verdadeiro, mas mesmo assim ele projetou
sua personalidade sobre esse pseudônimo. A escolha não é casual, sem dúvida.
Espartaco foi...
—...um gladiador romano empenhado em acabar com Roma — completou a
frase Koch.
— Exatamente, mas na letra podemos ver uma pessoa fixada em outra época,
de forma doentia, patológica, perigosa. É um traço que se repete na margem esquerda.
Repare. Quase não existe. Este sujeito vive em algum lugar do passado... Quase me
atreveria a dizer que não saiu de lá.
— Imagino que você tem razão, mas a verdade é que a carta inteira está voltada
para o futuro, um futuro, diga-se de passagem, nada atraente, porque pretende que não
sobre ninguém com cabeça.
Um sorriso suave apareceu nos lábios de Lebendig. Constava-lhe que Koch não
dominava a arte de interpretar a personalidade através das linhas da escrita. No entanto,
em ocasiões como aquela, ele demonstrava que alguns conhecimentos elementares
tinham ficado grudados em alguma dobra de sua memória excepcional.
— Não existe contradição — disse Lebendig. — Na verdade, seu desejo de
aniquilar o que existe hoje provém de forma direta de sua amargura por um passado que
ele não conseguiu assimilar. Sim, o motor deste homem é, essencialmente, o
ressentimento. Ele odeia o presente e quer mudar o futuro porque assim poderá dar livre
curso ao rancor que o devora por dentro.
Koch alisou seu queixo impolutamente barbeado. Ao longo de sua experiência
profissional, tinha tido a oportunidade de se encontrar com muitos ressentidos. Eram
assim, como regra geral, os assassinos e não poucos ladrões. Certamente, havia uma
importante carga de rancor na esmagadora maioria dos adultérios — embora aqui, de
acordo com a idade, houvesse também bastante estupidez —, e não podia descartar esse
sentimento tão humano em outras violações da lei. — No entanto, nunca tinha lhe
ocorrido pensar que o ressentimento estivesse por trás do desejo de mudar, de cima
abaixo, toda uma sociedade. Claro que, agora que estava pensando nisso, parecia
elementar demais para não ter passado por sua cabeça.
— Na verdade — comentou Lebendig —, este homem é como um marido
enganado...
— Um marido enganado? — repetiu Koch surpreso.
— Sim, mas nesse caso ele está convencido de que foi a sociedade como um
todo quem o tratou de forma desrespeitosa, injusta e até cruel. Todos zombaram dele, os
reis, os religiosos, os homens comuns que não percebem seu talento, ou melhor, aquilo
que Espartaco chama de talento... Odeia a todos. E até me atreveria a dizer que aqueles
que procura são para ele não companheiros ou irmãos, mas simples colaboradores em
sua tarefa final.
— E o que pode ter causado essa amargura? — perguntou o policial.
— Hummm... é difícil saber. Afinal de contas, trata-se da opinião dele, que não
tem que corresponder necessariamente à realidade. Sem dúvida, é uma pessoa instruída,
com prática na hora de escrever, basta ver sua letra, provavelmente com formação
superior. É mais do que provável que esperasse grandes coisas da vida... Deus sabe o
quê... um cargo na corte, uma cátedra na universidade, um casamento vantajoso, uma
fortuna pessoal. Em todo caso, bem, a vida não lhe deu essas coisas, talvez com toda a
justiça do mundo, mas não lhe deu.
— E ele resolveu que a vida é injusta — concluiu Koch pensando em voz alta.
— Mais precisamente, ele resolveu que são injustos todos aqueles que não
foram capazes de perceber sua... digamos assim, genialidade. Acha-os tão injustos que a
única saída para corrigir tamanha injustiça é...
— Acabar com tudo.
Lebendig abriu os braços com as palmas das mãos para cima, num gesto que
tanto podia ser um reconhecimento da veracidade do que Koch tinha apontado quanto
uma oração. Talvez fosse as duas coisas ao mesmo tempo.
— Ele deve estar louco - disse Koch.
— Não acho — negou Lebendig balançando levemente a cabeça. — Não, não
está. Não existe nada em sua letra que indique que ele não esteja em pleno domínio da
razão. Muito pelo contrário. Sua decisão, sua convicção, sua vontade de não se render
não nascem de uma patologia mental. Ele está lúcido; o que acontece... o que acontece é
que também é um homem mau. Um perverso ressentido e vaidoso. Só isso. Certamente,
seria muita indiscrição lhe perguntar como descobriu esta carta?
— Estava num dos processos acumulados que Steiner me trouxe quando lhe
pedi — disse Koch. — Faço isso periodicamente para que não fiquem assuntos
pendentes.
— Então não há problema — comentou Lebendig. — No processo deve haver
todos os dados sobre o personagem...
— No processo não havia nem uma linha, nem um número, nem um sinal. Na
verdade, dava a impressão de que a carta tinha chegado até ali de um modo quase
mágico...
— Sim, ou de que alguém a tinha extraviado — pensou em voz alta Lebendig.
Koch ficou em silêncio por um momento. Tinha uma habilidade especial, inata
mas desenvolvida durante anos de trabalho, de esconder o que estava pensando. No
entanto, nessas horas, tal capacidade se via submetida a um desafio de dimensões
desconhecidas para ele. Se o que Lebendig tinha dito era verdade, o tal Espartaco podia
ser — podia ser, talvez não, tinha que ser — a pior ameaça contra a ordem que tinha
conhecido ao longo de sua carreira. Um sujeito impelido pelo combustível do
ressentimento podia queimar igrejas, seqüestrar inocentes, assaltar mulheres, assassinar
sacerdotes, policiais ou simples comerciantes... Uma verdadeira praga, como as
descritas na Bíblia.
— Podemos capturá-lo? — perguntou por fim.
Lebendig se livrou das lentes que cavalgavam sobre seu nariz e dirigiu o olhar
para Koch. Durante os anos de colaboração, nunca, nunca, nunca tinha formulado a ele
uma pergunta desse tipo. Tinha-se limitado a colher informações e utilizá-las, e depois,
por sua conta, tinha feito delas o melhor uso possível para prender um delinqüente. Mas
esta era a primeira vez que o policial pretendia associá-lo a uma missão de forma tão
direta: tinha empregado a primeira pessoa do plural.
— Herr Koch — começou a responder ao mesmo tempo em que esboçava um
sorriso —, se o senhor me pedir para traduzir um texto grego para o nosso alemão,
posso fazer isso; se o senhor me pedir para lhe explicar em poucas palavras um tema
espinhoso da mitologia romana, posso fazer isso; se o senhor me pedir para servir de
intérprete numa conversa com franceses, espanhóis, italianos e até ingleses, posso fazer
isso. Posso até lhe descrever, como o senhor já sabe, o semblante moral de uma pessoa
vendo apenas sua letra. Mas o que está me perguntando... não sou um policial...
Koch reprimiu uma expressão de desgosto. Era óbvio que não era essa a
resposta que gostaria de ter recebido.
—...no entanto — prosseguiu Lebendig —, se o que o senhor me pergunta, na
verdade, é se é possível capturá-lo... inclusive se o senhor poderia capturá-lo... Nesse
caso, não tenho a menor dúvida. A resposta é afirmativa.
Sem conseguir evitar, o policial, aliviado, deixou escapar uma baforada de ar.
— Não preciso lhe dizer — continuou dizendo Lebendig — que para essa
incumbência o senhor pode contar com minha ajuda.
Fez uma pausa breve, respirou fundo e acrescentou:
— Mais do que nunca.
Quinze
Paris, 24 de julho de 1794
QUANDO
A PORTA DA MASMORRA
se fechou às suas costas, Karl pensou, pela
primeira vez desde que tinha entrado na França, que sua missão tinha terminado. Não
porque — quem dera! — tivesse acabado com sucesso, mas simplesmente porque sua
vida tinha entrado no último trecho do caminho. Os sans-culottes tinham resolvido não
correr o risco de matá-lo mas, ao mesmo tempo, tinham colocado um interesse
redobrado em que fosse confinado. Praticamente antes que pudesse perceber, eles o
tinham separado da anciã e do fétido comerciante e o tinham conduzido aos empurrões
até a porta da cela. Fazia calor, muito calor, nas ruas de Paris, mas teve a sensação de
que aquilo não era nada no momento em que viu ser aberta a porta do recinto onde os
sans-culottes o atiraram.
O ar era denso como um mingau e além disso estava carregado de uma
umidade e uma fetidez que ele não se sentia capaz de agüentar. Por um momento,
pensou que desabaria no chão, mas imediatamente compreendeu que essa possibilidade
não existia. O amontoamento no cárcere era tão absoluto que seu corpo, em tal
eventualidade, não chegaria a tocar no chão. Antes que isso acontecesse, teria se
chocado com mais quatro ou cinco enclausurados que teriam impedido.
Quantas pessoas poderia haver naquele antro nascido da revolução da
fraternidade? Era impossível saber mas, com toda a certeza, o triplo ou o quádruplo do
que aquele espaço poderia suportar de forma racional. Sentiu o ar lhe faltar e se viu
tentado a abrir a boca, numa tentativa desesperada de encontrar oxigênio. Mas se
conteve. Um esforço dessa espécie poderia atirá-lo nos braços da ansiedade ou mesmo
de um ataque de pânico. Sabia o suficiente sobre as reações experimentadas por um
prisioneiro para estar convencido de que, antes de tudo, devia evitar que o medo fosse
ter com ele. Submetido àquele calor asfixiante, àquela falta de espaço, à insegurança
quanto a seu futuro, à falta de água e comida, se não conservasse a serenidade, suas
chances de enlouquecer eram mais do que certas. E se caísse nessa situação poderia
revelar informações que, com toda a certeza, iriam lhe custar a vida.
Enquanto esperava que suas pupilas se acostumassem à penumbra, tratou de
respirar de maneira pausada e lenta. Inalou um pouco mais fundo do que o habitual e
depois prendeu o ar enquanto contava até vinte. Repetiu aquela operação mais algumas
vezes. Antes que pudesse perceber, seu nariz foi perdendo a sensibilidade diante da
fetidez pesada do calabouço e, o que era mais importante, as batidas de seu coração
ganharam um ritmo normal. Foi só perceber o que tinha conseguido e a sensação de
ansiedade que tinha sentido no meio daquela nuvem de calor foi se aquietando.
Karl vagou o olhar pelo teto do aposento. Sim, a superfície era reduzida demais
para todos os que estavam amontoados no interior. Calculou que, com toda a certeza, o
lugar não tinha sido planejado para mais de uma dúzia de detentos. No entanto, naquela
ocasião era possível que estivessem reunidas nada menos de sessenta pessoas. Como
existia apenas uma pequena abertura quase na altura do teto, seria um verdadeiro
milagre que alguns deles não morressem asfixiados antes de ir à presença do tribunal
popular.
— Padre, é minha vez.
Karl virou instintivamente o olhar para o lugar de onde vinha a voz. Não
conseguiu identificar a pessoa a quem pertencia, mas percebeu que um homem de pouco
mais de quarenta anos abria caminho entre os detentos. Não era, obviamente, uma tarefa
das mais fáceis, mas a verdade é que os prisioneiros procuravam se afastar com respeito,
como se estivessem convencidos de que ele desfrutava do direito de se movimentar
naquele lugar onde qualquer deslocamento parecia uma quimera.
O homem parou, finalmente, a alguns passos de onde ele se encontrava, e Karl
pôde ver como um homem de pouco mais de quinze anos inclinava a cabeça diante dele.
— Padre... — balbuciou o rapaz subitamente angustiado. — Pequei muito...
Faz muito tempo que não me confesso, sabe?, e...
— Não se preocupe agora com isso, filho — interrompeu o homem com um
tom de voz ao mesmo tempo firme e suave.
Bem, pensou Karl, era óbvio que aquela cela servia para encarcerar as pessoas
que esperavam que enterrassem suas cabeças separadas do corpo. Pelo menos os
católicos contavam com o consolo de que houvesse um sacerdote para confortá-los nos
últimos momentos, um sacerdote que também fazia parte dos prisioneiros. Não queria
imaginar o desespero que se propagaria entre eles se o religioso fosse executado antes.
Sem dúvida, era indispensável sair dali o quanto antes. Tinha explicado ao oficial com
quem queria falar, por que o conhecia e os motivos pelos quais estaria interessado em
que saísse livre. Não tinha lhe contado tudo, naturalmente, mas sim o bastante para que
o colocassem em liberdade. Depois só Deus saberia...
Quase sem perceber, Karl acabou caindo num torpor sufocante. Não saberia
dizer se o calor o impedia de ter um sono reparador ou se, pelo contrário, afogava-o até
fazê-lo perder o entendimento. Quando recuperou os sentidos, sentiu um cotovelo
cravado na altura de seu nervo ciático. Era um ancião de pouca estatura que aproveitava
aquela parte de seu corpo para se recostar. Delicadamente, procurou mudar de posição
sem o acordar. Talvez aquele fosse seu último sono tranqüilo antes que o conduzissem
até a guilhotina. Foi um movimento suave, que mal lhe exigiu esforço, mas subitamente
Karl sentiu uma sede ansiosa que subia do ventre até a garganta, como se tivesse
acabado de participar de uma longa corrida ou concluísse um dia de excursão. Reparou
então que não parecia existir ali nenhum lugar onde beber e a ansiedade que tinha
conseguido controlar quando foi jogado na cela retornou com ímpeto renovado.
Enquanto se erguia sobre a ponta dos pés, procurou respirar calmamente. Tudo
continuava muito escuro e havia corpos demais para poder ter uma idéia do que havia
no interior daquele cômodo mas, por mais que olhasse para os lados, não conseguiu
distinguir uma fonte, um jarro, um recipiente de qualquer espécie em que houvesse
água. Ou estava muito enganado ou aquelas pessoas dependiam dos soldados para
aplacar o terrível suplício da sede. A questão era se eles passavam em determinadas
horas do dia para lhes dar água ou se era possível implorar por ela. Naquele momento,
decidiu que seria mais prudente esperar um pouco e não correr o risco de irritar os sansculottes. A questão era se eles voltariam antes que ele morresse de sede ou por falta de
ar, ou mesmo se quando voltassem seria apenas para levá-lo até o patíbulo.
Dezesseis
Baviera, 1787
OUTRA PESSOA TERIA FICADO comovida ao ouvir a entonação com que o erudito
tinha falado. Aquela disposição, aquela confiança e aquela certeza de que poderiam
esconjurar o perigo pareciam esconder um conjunto de razões que, por serem
desconhecidas, não eram menos fortes para gerar esperança. No entanto, Koch, como o
farejador que sabe que precisa capturar uma presa, já tinha concentrado seus cinco
sentidos em Espartaco, deixando de lado qualquer espécie de sentimento.
— Por onde o senhor começaria?
— Não tenho a menor dúvida — respondeu imediatamente Lebendig, como
viesse formulando para si essa pergunta desde muito tempo. — Deve-se começar a
busca pelas lojas maçônicas.
— Tem certeza, Lebendig? — disse Koch um tanto surpreso com a resposta.
— Confesso que não sei muito sobre a maçonaria, mas... mas, bem, nunca tivemos
problemas com ela em Ingolstadt. Inclusive algumas pessoas importantes são maçons.
Estou me referindo a nobres, a militares, e até alguns padres. Reúnem-se com
freqüência, mas, apesar de serem só homens, não tenho notícia de que aquilo termine
com prostitutas ou algum tipo de excesso. O senhor acredita sinceramente que em suas
reuniões eles fazem muito mais do que colocar um avental como se fossem criadas e
falar bobagens?
Lebendig jogou o corpo para trás em sua cadeira. Era um gesto que Koch
conhecia muito bem como o prólogo de alguma explicação particularmente importante.
— Herr Koch — começou a dizer Lebendig —, se não me engano, e acredito
sinceramente que não é o caso, o senhor é católico.
— O senhor está cansado de saber disso — interrompeu-o um tanto aborrecido
o policial.
— Sim, eu sei — admitiu Lebendig ao mesmo tempo em que tentava reprimir
um sorriso. — Exatamente por isso me chama a atenção a tolerância de que a maçonaria
desfruta em estados católicos como a Baviera. O senhor deve saber que, desde que o
papa Clemente XII, se bem me lembro no dia 28 de abril de 1738, proibiu a entrada de
católicos na maçonaria, seus sucessores não deixaram de pronunciar condenações
semelhantes.
Koch sentiu uma desagradável sensação na boca do estômago. Procurava se
esquecer de que Lebendig era protestante e a verdade era que conseguia isso com certa
facilidade, mas quando se permitia instruí-lo sobre aspectos relacionados à sua religião
não conseguia deixar de se sentir profundamente incomodado. Por um lado,
incomodava-o a maneira fria como ele se referia a questões dogmáticas espinhosas,
quase como se não lhe interessassem, como se estivesse se limitando a descrever o
funcionamento de uma máquina ou o processo de crescimento de uma planta. Por outro,
desagradava-lhe profundamente a sensação de que ele pudesse conhecer a teologia
católica e, no entanto, não demonstrasse o menor sinal de que estivesse disposto a
abraçá-la no futuro. Nunca tinha dito aquilo, mas quase lhe dava a impressão de que
aquele conhecimento excepcional do catolicismo só servia para ele se firmar em sua fé
reformada. E, justamente quando chegava nesse ponto, o policial experimentava uma
profunda sensação de incômodo enorme e indescritível mal-estar. Não porque Lebendig
fosse um herege — o que, sem sombra de dúvida, ele era —, nem que, por acréscimo, a
exposição continuada à luz do catolicismo não tivesse produzido efeito em sua
convicção espiritual, mas o fato de que, ainda por cima, tratava-se de uma pessoa
educada, inteligente, até mesmo brilhante, a quem só se poderia acusar do hábito de
uma desorganização crescente nascida do acúmulo incontrolável de livros e papéis.
— O senhor está me dizendo que os católicos não vivem de acordo com suas
crenças? — perguntou Koch com uma expressão azeda.
— Não tenho essa intenção — respondeu Lebendig com um sorriso suave, esse
sorriso que tornava muito difícil se indispor com ele. — Estou me referindo ao fato de
que existem numerosas condenações papais contra a maçonaria, condenações, se me
permite dizer, cheias de razão. No entanto, na hora da verdade, não serviram para muita
coisa. Não por que as lojas existam, mas porque, inclusive, para muitos elas parecem
proporcionar um toque de distinção social. Nelas existem tanoeiros, carpinteiros,
alfaiates, até pedreiros, mas também nobres e religiosos.
— Eu lhe agradeceria se me dissesse aonde quer chegar — interrompeu o
policial, cada vez mais atormentado pela dor que tinha se instalado na boca de seu
estômago.
— É muito simples, herr Koch — disse Lebendig. — Nem mesmo enfrentando
o Papa a maçonaria se dobrou. Ostenta sua veneração até em países tão católicos quanto
a Baviera e se dedica a atrair personalidades de grande importância. E não é só isso. As
pessoas acabaram acreditando que seus encontros são simples reuniões paroquiais. Mas
não são.
— Não acha que está exagerando? — interrompeu-o Koch.
— Talvez — disse Lebendig —, talvez, mas somos dois em matéria de
exagero. Eu e esse... Espartaco.
O policial ficou em silêncio. Sim, o argumento fazia sentido. Não significava
que fosse verdadeiro, mas fazia sentido. Afinal de contas, era o próprio Espartaco que,
em sua repugnante carta, apontava os maçons como a origem de suas crenças e o
veículo de suas aspirações.
— Preste atenção no que estou dizendo, herr Koch. Se quer procurar esse
homem, o caminho inevitável e imprescindível são as lojas e acredite que não estou
exagerando quando digo que essa trilha está eriçada de perigos.
O policial ficou em silêncio, enquanto levava a mão à boca do estômago num
esforço, totalmente inútil, de acalmar a dor que o atormentava. Por um momento,
perguntou a si mesmo se aquele sofrimento dilacerante não seria uma advertência
enviada por seu corpo para lhe indicar o perigo que poderia estar à sua espera. Talvez,
talvez fosse isso, mas não tinha a menor vontade de se afastar para um lado enquanto
sujeitos como aquele Espartaco planejavam o fim de todo o mundo conhecido.
— Não sei muito sobre maçonaria... — confessou Koch enquanto sentia como
as chicotadas que partiam de seu estômago se projetavam até suas costas.
— Nesse caso — disse Lebendig como se o que tinha acabado de ouvir fosse o
mais normal —, podemos começar pelos motivos que levam uma pessoa a entrar nela.
Dezessete
Paris, 26 de julho de 1794
— NÃO FOI COMO ELES estão contando...
Um silêncio, atapetado de calor sufocante e eflúvios desagradáveis, seguiu-se
às palavras pronunciadas pelo homem.
— Eu estava lá — continuou num tom de voz moribundo. — Eu estava no dia
14 de julho na Bastilha e sei o que estou dizendo.
A referência à Bastilha despertou imediatamente Karl. As histórias sobre sua
libertação — ocorrida cinco anos atrás — tinham se transformado numa referência
indispensável para a revolução que estava sacudindo a França. No dia em que os
revolucionários tinham entrado naquela prisão, não se cansavam de dizer isso, tinha
começado uma nova época, a da liberdade, da igualdade e da fraternidade.
— Na verdade, tudo começou na noite de 12 para 13 de julho. A plebe foi para
as ruas e durante todo o dia 13 não parou de cometer atrocidades. Não houve uma loja
que eles não tivessem saqueado, nem uma mulher que não tivessem molestado. Era
como se o inferno tivesse deixado livre uma legião de demônios...
O homem ficou calado por um instante. A roupa que usava estava rasgada e
extraordinariamente suja, mas Karl pôde observar que, como a de seu interlocutor, em
outra época ela tinha sido de excelente qualidade.
— Durante o dia 13, nem uma só pessoa decente saiu às ruas em Paris. Os
cidadãos dominavam as ruas. Sua força era tão grande que não tiveram muita
dificuldade em saquear o quartel da polícia, em se armar e invadir a prisão da Force.
Ah, amigo, no momento em que fizeram isso a situação, por incrível que possa parecer,
piorou ainda mais. Abriram os calabouços, gritaram aos assassinos, aos violadores e aos
ladrões que eles estavam livres e que a causa da liberdade os chamava e... todos aqueles
delinqüentes se transformaram, num abrir e fechar de olhos, em revolucionários, no
povo, em cidadãos.
Tornou a fazer uma pausa enquanto levava a mão ao pescoço. Karl pensou que
o gesto era semelhante ao que teria feito para arrancar da garganta algum pedaço de
alimento que tivesse descido mal.
— No dia 14 pela manhã aquele exército de cidadãos assaltou os Inválidos.
Depois marchou na direção da Bastilha... A Bastilha! O símbolo da tirania! O emblema
da opressão! Ah... Você sabe quantas pessoas estavam presas na Bastilha naquela
manhã de 14 de julho?
— Não, não sei — respondeu seu interlocutor que, pela primeira vez, quebrou
o silêncio apenas arranhado por alguns murmúrios.
— Pois naquela cadeira havia apenas sete pessoas. Sete! Ouviu bem? Quatro
falsificadores, um jovem pervertido que a própria família tinha confinado e dois loucos.
Era isso a tirania de Luís XVI. Quantas vezes sete presos deve haver aqui neste
cômodo? Seis? Sete? Dez? E este é só um dos calabouços...
Karl tentou engolir saliva só para constatar que tinha a boca seca como uma
telha.
— A Bastilha estava sob o comando de um tal Launay — continuou aquele que
narrava. — Os cidadãos lhe prometeram que não lhe fariam nada se ele se rendesse.
Launay era um bom homem. Não desejava um derramamento de sangue. Não queria
disparar contra o povo, aquele povo. Abriu as portas da Bastilha. Um ajudante de
cozinheiro com experiência em cortar carne o decapitou.
— Que horror...
— Foi só o começo. Cravaram a cabeça de Launay numa lança e desfilaram
com ela pelas ruas de Paris até a noite. E isso foi só o começo. Depois mataram o
comandante, o ajudante, um tenente... Isso para começar.
— Com certeza, os presos não acharam isso tão grave... — comentou com
amarga ironia o companheiro de conversa da testemunha da tomada da Bastillha.
— Não é assim tão fácil de saber. Os quatro falsificadores desapareceram,
como é natural. O discípulo do marquês de Sade foi aclamado em várias sociedades
revolucionárias, onde explicou como a causa da liberdade estava ligada à de provocar
dor nos amantes...
— Santo Deus, não pode ser...
— Estou lhe dizendo a verdade. Em outras ocasiões, a família teria tentado que
voltassem a trancafiá-lo, mas quem pode solicitar o encarceramento de um herói
cidadão libertado pelo povo? Os que acabaram pior foram os loucos. No dia seguinte,
foi preciso tornar a recolhê-los em Charenton9.
— Pobre gente...
9
Famoso hospício francês.
— Sim, pobre gente — admitiu o narrador — mas, principalmente, pobres de
nós. Já parou para pensar onde tudo isso vai acabar?
— Eles não poderão prevalecer — respondeu com um fio de voz seu
interlocutor. — No final, serão derrotados. Tamanha maldade não pode ficar sem
castigo. Não é possível. Deus não há de permitir.
Um silêncio quase tão denso quanto o ar da masmorra caiu sobre a última
frase.
Karl procurou engolir outra vez e percebeu que sua língua parecia uma bola
inchada obstruindo o interior da boca. Meu Deus, estava com uma tremenda sede! Com
que prazer teria bebido uma jarra de água! Ou um copo, ou até alguns goles... Por acaso
pretendiam matá-los de sede? Talvez só estivessem planejando dobrá-los privando-os de
água para depois interrogá-los. Ou talvez não pudessem garantir o abastecimento da
cidade de Paris e tivessem começado com os inimigos do povo. Cada uma daquelas
possibilidades era, ao mesmo tempo, absurda e verossímil.
Fechou os olhos como se esse simples movimento pudesse isolá-lo do calor
sufocante e úmido a que estava submetido. O tempo corria. Isso era a melhor parte.
Continuava transcorrendo e se soubesse esperar, se se deixasse levar pela passagem das
horas, antes que ele percebesse alguma coisa iria acontecer. Talvez até lhe dessem de
beber. Respirou fundo, começou a contar mentalmente enquanto prendia o ar e então, da
maneira mais inesperada, veio-lhe à mente um versículo da Bíblia: "Como o cervo
brame pelas águas, assim brame por ti, ó Senhor, a minha alma."
Sem dúvida, podia compreender o comportamento do cervo. Ele também
bramiria se isso lhe pudesse ser útil para conseguir água. Quanto ao que se referia a
Deus... não, não se podia dizer que o tivesse buscado nos últimos tempos com o mesmo
ardor com que o animal percorria a floresta em busca de um regato. Nunca o tinha
abandonado, isso era verdade. Até se lembrava dele diariamente nos momentos mais
inesperados, mas fazia meses que sua busca estava concentrada em alguém muito
diferente. Tomar consciência dessa situação e experimentar uma pontada aguda de dor
foi tudo uma coisa só. De repente, Karl sentiu como se toda a sua vida desfilasse diante
dele e os acontecimentos possuíssem uma perspectiva diferente daquela com que ele os
tinha observado cotidianamente. Não, os fatos tinham uma importância — ou uma falta
dela — que não correspondia à que ele lhes tinha dado nos anos anteriores.
Sem conseguir evitar, Karl sentiu que as lágrimas se acumulavam em seus
olhos. Como tinha podido dilapidar sua existência daquela maneira? Sim, com toda a
certeza, claro que muitos não enxergariam as coisas assim, mas a ele não restava a
menor dúvida. Quantas oportunidades desperdiçadas para fazer o bem! Como se fossem
as borbulhas de um vinho espumante, subiu de seu coração uma grande quantidade de
momentos, desde sua infância até as últimas horas, em que poderia ter se comportado de
outra forma. Poderia, mas não tinha feito isso e agora... agora já não tinha condições de
fazê-lo.
Levou a mão direita ao rosto e enxugou as lágrimas. Eram abundantes,
ardentes, como se quisessem arrastar nelas toda a tristeza que o oprimia. Santo Deus, se
pudesse simplesmente voltar atrás, se lhe oferecessem uma outra chance, se contasse
com a possibilidade... Senhor, eu vos buscaria como o cervo que brame atrás das
correntes das águas.
Um feixe de luz queimou seus olhos irritados. A porta tinha acabado de ser
aberta e, por conta da dor, não tinha se dado conta disso até que o resplendor externo
tinha ferido suas pupilas.
— Você, sim, você, saia — soou a voz do sans-culotte. — Vamos, imbecil, não
podemos ficar aqui a manhã toda.
Até que sentisse a aspereza da bofetada na face e o puxão em seu braço para
arrancá-lo da masmorra, Karl não tinha se dado conta de que os guardiães da revolução
estavam se referindo a ele.
Dezoito
Baviera, 1787
— O QUE ACABA DE DIZER não me deixa muito entusiasmado.
As palavras tinham sido emitidas a uma grande distância por cima da cabeça de
seu interlocutor e àquela altura, talvez buscada intencionalmente, proporcionava-lhes
um tom de voz ainda mais carregado de convicção e solenidade. No entanto, não foi
essa a sensação que provocou na outra pessoa que estava presente no aposento. Usando
uma peruca um tanto antiquada e arrematada em roletes brancos, acabava de ouvir a
frase com uma contrariedade mal disfarçada.
— Não se trata de entusiasmo — respondeu o homem da peruca fora de moda
—, mas de convicção, de fidelidade, de entrega à causa. Essa é a questão fundamental.
Ainda está comprometido com a nossa causa... ou não?
O homem alto se mexeu incomodado em sua poltrona. Era um móvel
realmente extraordinário que, mais do que transmitir a sensação de comodidade, parecia
dar à sala um toque pouco humano. Bem que se poderia dizer que o couro do assento
não correspondia ao de um animal morto tempos antes, e sim, na verdade, ao de um ser
obscuro que protegia e escravizava ao mesmo tempo o cavalheiro sentado nela.
— Não vamos brincar com as palavras — disse erguendo as palmas das mãos
como se fossem um escudo. — É claro que estou comprometido com a causa. Com a
causa da sabedoria secreta, da gnose, do conhecimento reservado tão-somente a uns
poucos iniciados. Essa causa é a razão de minha existência, mas não vamos confundi-la
com outras questões.
— Tem razão, mein herr — admitiu o homem da peruca estendendo suas
mãos, mas num gesto que, diferente do brandido por seu companheiro, não procurava
proteção, mas alcançar a conciliação das opiniões. — A causa essencial, a causa com a
qual você e eu estamos comprometidos, a causa que dá sentido a nossas existências, é a
da sabedoria.
A voz que descia do alto não disse uma única palavra, mas, inadvertidamente,
abaixou as mãos até deixar que elas repousassem nos braços da poltrona onde estava
acomodado.
— No entanto — prosseguiu —, ainda que não reste a menor dúvida de que
esta sabedoria está reservada a alguns poucos e que você é um deles, não é menos
verdade que não se pode guardá-la de maneira egoísta.
A intenção de protesto do homem alto foi interrompida imediatamente pelo que
usava a peruca.
— Não, eu lhe imploro, permita que eu conclua. Só uns poucos possuímos a
sabedoria, muito poucos para sermos exatos. No entanto, não é lícito que apenas nós
tiremos proveito de seus enormes benefícios. Exatamente porque somos depositários
dos arcanos do universo, da luz que ilumina até quase cegar, das chaves que permitem
interpretar a História, do saber que se transmitiu imaculado desde o primeiro homem até
agora, temos que partilhar suas bênçãos com outros.
— Mas como? — indagou com uma mistura de contrariedade e impaciência o
homem alto —, como? Se soubessem... se ao menos suspeitassem do conhecimento que
custodiamos... Bem, preciso dizer? Eles nos despedaçariam! Eles nos queimariam!
— Eles nos despedaçariam e nos queimariam — respondeu o homem da
peruca, aferrando-se às palavras usadas por seu companheiro — porque são eles, os
ignorantes e os malvados, que mandam. Está nas mãos deles a nomeação de juízes, a
escolha dos professores, a promulgação das leis, o governo dos povos, mas isso pode
mudar, deve mudar, precisa mudar.
Por um momento, pareceu que as palavras ganhavam altura, flutuando pelo ar
como se fossem escritas na fumaça, e acabaram pousando numa enorme coruja
empalhada que estava pousada sobre a lareira
— Bem, bem, conheço de sobra seu... Evangelho — ecoou a voz da estranha
poltrona —, mas como pensa em transformá-lo em realidade: As massas não o seguirão
e nós... nós somos muito poucos.
— As massas não têm por que nos seguir — respondeu agora entusiasmado o
homem da peruca. — Você sabe tão bem quanto eu que elas nunca fizeram nada que
valesse a pena em milênios de História humana, embora tenham conseguido acreditar
no contrário. Será suficiente que, quando chegar o momento, deixem-se guiar por nós
para que as conduzamos até a felicidade, a essa fortuna que só pode derivar da luz.
Estou firmemente convencido de que, no fim, será muito mais fácil do que possa
parecer à primeira vista. Quanto a nós...
— Sim, nós... — repetiu com um travo de amargura o homem alto enquanto
deixava que seu olhar se detivesse sobre uma estatueta de Palas.
— Pois nós — disse sorrindo seu interlocutor — não somos tão poucos.
— Ora, vamos! — protestou levantando os braços seu interlocutor sem poder
afastar a vista da escultura grega que, por alguma razão desconhecida, parecia exercer
sobre ele uma atração quase hipnótica.
— Não, não somos, meu estimado amigo — insistiu o indivíduo da peruca. —
As lojas maçônicas se espalham por todo o continente com raras exceções, como a
Espanha. Elas existem em Portugal e na Rússia, na Áustria e na França. Certamente,
existem também em nossa amada Baviera. E você sabe tão bem quanto eu que
alcançamos todos os estados. Nelas se reúnem nobres, juízes, soldados, catedráticos,
artesãos, comerciantes... até religiosos! Você sabe muito bem disso. Agora, a única
coisa que falta é o último impulso, o último passo e tudo ficará em nossas mãos. Os reis
serão aqueles que nós decidirmos. Os soldados lutarão as guerras que nós
considerarmos oportunas. E no que diz respeito aos sacerdotes... quanto tempo acha que
eles demorarão para aceitar nossos ensinamentos, e em pregá-los dos púlpitos?
O homem alto se calou por um instante. Afastou o olhar de Palas e . apoiou o
queixo na ponta dos dedos da mão esquerda. Para falar a verdade, não podia negar a
eloqüência de seu acompanhante. Tinha que reconhecer que havia momentos em que se
sentia quase convencido, em que sua firmeza inicial se quebrava, em que se via
obrigado a perguntar a si mesmo se não estava enganado e aquele homem, pelo
contrário, estava com toda a razão. Finalmente, respirou fundo e disse:
— O que você está dizendo... bem, talvez... talvez seja como você diz mas...
mas sejamos sinceros: o que o faz pensar que todas as lojas maçônicas aceitarão sua
orientação? Por que iriam preferir o comando dos Illuminati ao do, vamos supor, grãomestre do Grande Oriente francês?
Os lábios do homem da peruca se franziram rapidamente numa expressão de
mal-estar. Estava convicto de que tinha arrastado seu interlocutor até uma situação em
que só lhe restava aceitar seu ponto de vista e agora ele vinha com aquelas perguntas.
Sem dúvida, a causa da luz o obrigava a engolir sapos demais.
— Você mesmo tem as respostas para as perguntas que acaba de me formular
— respondeu com um sorriso disparado na direção daquela cadeira que parecia quase
respirar. — Como sabe, e sabe disso de sobra, a maçonaria está construída sobre a base
da transmissão de um conhecimento oculto e milenar. Preciso lhe lembrar que essa
sabedoria desconhecida que se ensina de forma fragmentária nas lojas se encontra, no
entanto, guardada no âmago dos Illuminati ?
Não, não era preciso trazer aquilo à sua memória. Fazia anos que estava
totalmente convencido — sobravam-lhe provas irrefutáveis — de que os Illuminati
tinham acesso a essa ansiada gnose que não tinha encontrado em outras obediências
maçônicas e que, de maneira tão incansável e obstinada, tinha buscado praticamente
como a única razão de sua existência.
O homem da peruca percebeu perfeitamente como na muralha de resistência de
seu companheiro tinha acabado de se abrir uma fenda, uma fenda que precisava crescer
até que a muralha viesse a baixo por completo.
— Essa superioridade — prosseguiu —, sim, superioridade, porque é preciso
chamar as coisas por seus nomes, é, justamente, o que nos permite pedir, não, pedir não,
exigir, que as outras lojas se submetam a nós. Não se trata de soberba absurda nem
tirania intolerável. É antes o desejo legítimo de colocar as coisas em seus lugares. E no
momento em que isso acontecer, querido irmão, quando isso acontecer finalmente,
estaremos a um passo de alcançar nossos objetivos. Este oceano de injustiça que nos
rodeia vai desaparecer, vai se dissipar, vai se dissolver sob nosso governo, um governo
que conduzirá a espécie humana rumo um progresso nunca antes conhecido, rumo à paz
perpétua, e tudo isso terá nascido daqui, do coração da Europa.
O homem alto ficou em silêncio. Sua pele branca, quase translúcida, parecia,
aqui e ali, transparecer uma convulsão quase imperceptível, reflexo direto da batalha
que estava sendo travada em seu íntimo.
— A causa do progresso há de triunfar — prosseguiu o cavalheiro da peruca.
— Ela se imporá historicamente da mesma forma como todas as manhãs, chova, troveje
ou neve, o sol acaba saindo e expulsando as trevas. Mas não é menos verdade que esse
triunfo pode se adiantar ou se atrasar, vir agora para que possamos observá-lo com
nossos olhos ou demorar em sua chegada até os dias de nossos filhos.
Fez uma pausa, em que aproveitou para avaliar o homem alto. Sim, não restava
dúvida de que, naquele momento, estava prestes a ceder, se render, se entregar
completamente. Faltava apenas um último empurrão.
— Você recebeu muito dos Illuminati. Muitíssimo. Não preciso lhe lembrar
isso. Pois justamente, agora, pedimos que demonstre um pingo de gratidão para com
aqueles que tanto lhe comunicaram e ensinaram. Isso é pedir muito para um homem de
sua posição? Por acaso parece excessivo para uma pessoa com os seus recursos? Pode
dizer com o coração na mão que estamos abusando de você?
Pronunciou a última frase enquanto vencia, lentamente, a distância que havia
entre o lugar em que se encontrava e a poltrona onde o homem alto repousava. Mal
tinha chegado perto de seu interlocutor quando este, sem se levantar do assento,
abraçou-se a ele, descansou a cabeça sobre seu peito e rompeu em soluços.
Teria sido difícil determinar o que tinha provocado aquela torrente de choro.
Seria tristeza por ter faltado com o compromisso em relação aos que lhe tinham
transmitido a sabedoria oculta? Ou era antes medo de ter incorrido numa falta talvez
imperdoável? Constituía uma demonstração de prazer por retornar ao rebanho que tinha
estado a ponto de abandonar? Talvez fosse tudo aquilo ou talvez não fosse nada. No
fundo, não tinha importância. O que era realmente relevante era que aquela criatura,
absolutamente essencial para os propósitos dos Illuminati, não tinha consumado seus
planos de deserção e, pelo contrário, mantinha-se firme na fé e, sobretudo, nos
propósitos da irmandade.
Talvez devesse ter reprimido aquela manifestação de sentimentos, mas
enquanto permitia que o homem alto derramasse aquela torrente de lágrimas, o irmão
Espartaco se congratulou pelo sucesso da entrevista e deixou que seus lábios se
abrissem num sorriso prenhe de satisfação.
SEGUNDA PARTE
Conspiração
Um
Do caderno de estudos científicos do professor Lebendig
PARECE
INCONTESTÁVEL
— pude comprovar isso ao longo de décadas de
estudo — que na forma como escrevemos nossa alma está refletida, com uma precisão
ainda maior do que a de um espelho que nos devolve nossa imagem refletida.
Naturalmente, devem-se levar em conta muitos fatores que procurarei registrar pouco a
pouco neste caderno.
O primeiro deles é o tamanho. O que significa o tamanho na escrita? Muitas
coisas. Desde já, ele está relacionado com a forma como vemos as situações, como
encararmos a vida e, principalmente, a nós mesmos e aos outros.
Existem gradações, é claro, mas, substancialmente, há quatro tamanhos
paradigmáticos de letras. O grande, o muito grande, o pequeno e o muito pequeno. O
grande corresponde a pessoas que têm certa amplidão de interesses; o muito grande está
relacionado com aqueles que pensam excessivamente em si mesmos, que anseiam pela
grandeza ou que até acreditam que a possuem, caindo no pecado do orgulho; o pequeno
tem mais a ver com aqueles que possuem virtudes como a capacidade de economizar ou
a preferência por um mundo interior. Quanto ao muito pequeno... costuma ser um
péssimo sinal. Trata-se de pessoas excessivamente ensimesmadas, perdidas em
minúcias e, principalmente, tacanhas, materialistas e ruins. Devemos nos afastar delas.
Dois
Baviera, 1787
— NA
MINHA OPINIÃO,
herr Koch, a primeira questão que seria interessante
para sua investigação é ter uma idéia clara dos motivos pelos quais uma pessoa decide
entrar para uma loja maçônica.
Koch olhou à sua volta. Dois empregados discretos com aventais impolutos se
deslocavam no meio de algumas mesinhas de metal distribuindo café e chocolate.
Aparentemente, não dava a impressão de que a dupla formada por ele e por Lebendig
tivesse chamado a sua atenção. A alguns passos, um Steiner que se esforçava para
passar despercebido deixava claro que, entre suas muitas qualidades, não estava a de
permanecer incógnito. Sem dúvida, o lugar para onde Lebendig o tinha convidado não
lhe parecia especialmente discreto e, exatamente por isso, dava a incômoda sensação de
que alguém poderia ouvir aquelas informações tão importantes.
— Certamente — continuou Lebendig, que não partilhava do desconforto de
seu acompanhante —, como em tantas questões, uma coisa é a realidade e outra, bem
diferente, as explicações que as pessoas dão sobre ela. Destas, se estiver de acordo,
podemos prescindir por enquanto. No que se refere à realidade, devo reconhecer que ela
é muito variada. Já de saída, temos o caráter da maçonaria. Não podemos nos enganar a
esse respeito. Trata-se de uma sociedade secreta.
— As sociedades secretas estão proibidas por lei... — pensou Koch em voz
alta.
— Sem dúvida, mas o senhor sabe até melhor do que eu que uma proibição
legal não serve para garantir a realidade social — prosseguiu Lebendig. — Se fosse
assim, não existiriam policiais, nem juizes, nem exércitos. Bastaria proibir o roubo, o
assassinato e a falsificação de documentos.
Koch não comentou as palavras de Lebendig. O raciocínio parecia impecável
em sua simplicidade.
— A prova fundamental de que a maçonaria constitui uma sociedade secreta é
que seus membros se comprometem sob juramentos terríveis a não revelar nenhum de
seus rituais, nem os nomes de seus companheiros de loja. Em segundo lugar, deve-se
levar em conta outro aspecto de enorme importância. Estou me referindo à pretensão da
maçonaria de contar com um saber que foi transmitido ao longo dos milênios. Seria uma
sabedoria oculta, esotérica, misteriosa. Teoricamente, teria passado de uns para outros
de maneira cuidadosa e secreta. Se levarmos em conta estas duas circunstâncias — o
segredo e o ensinamento oculto —, podemos tentar responder à questão de fundo que
nos interessa. Estou me referindo, é claro, ao motivo que impeliu uma pessoa a entrar na
maçonaria, e isto varia. Beba o seu café ou ele ficará frio.
O policial deu uma olhada na xicrinha que repousava a umas duas polegadas de
sua mão direita. Era como se tivesse estado adormecida ouvindo o início da conversa.
Cobriu a distância que separava seus dedos do recipiente, segurou a asa e se pôs a
terminar o café.
— Fale o mais claro possível, herr Lebendig — disse o policial antes de
aproximar a xícara dos lábios, temendo que o erudito se perdesse numa exposição
prolixa demais.
— Farei isso, farei isso — disse esboçando um sorriso. — Agora me escute.
Vejamos, em primeiro lugar, as pessoas humildes que representam uma cota exigida
pela loja e são iniciadas apesar de não passarem da condição de sapateiros, tanoeiros ou
caldeireiros. O que leva esses homens a se iniciarem na maçonaria? É pouco provável
que, por educação ou interesse, essas pessoas andem à procura dos grandes enigmas do
saber humano. Ah, mas eles têm uma outra razão mais importante para ingressarem na
maçonaria! Em suas lojas, eles podem se aproximar de pessoas que nunca passariam por
seus estabelecimentos e, menos ainda, nunca os considerariam irmãos. Um conde, um
duque, um barão e até um príncipe pode fazer parte de sua loja, e isso lhes abre caminho
para dizerem: "No outro dia, na loja, ouvi o marquês dizer... um boato qualquer."
Pretium vanitatis10, essa é a verdade. Mas quantas coisas o ser humano não faz por
vaidade? Pode ser que eu me engane, naturalmente, mas não acredito que Espartaco
pertença a esse grupo.
— Entendo — disse Koch indignado ao observar como Steiner havia fixado os
olhos numa mosca que esvoaçava por cima de uma jarrinha de leite —, mas nem todos
são sapateiros...
— Certamente, certamente — admitiu Lebendig —, e nem todos entram para a
maçonaria para conhecer um duque, até porque muitas vezes estão cansados de esbarrar
com eles. Existe um segundo grupo que. na verdade, o que procura é que lhe
comuniquem esse saber, supostamente milenar, que existe na maçonaria. Imagino que o
10
Em latim no original.
senhor conheça Haydn...
— Refere-se ao compositor?
— Ao genial compositor — retificou suavemente o erudito. — Sim, ele
mesmo.
— Ele é maçom? — perguntou um tanto surpreso Koch. Lebendig concordou
com a cabeça.
— Puxa!... E ele, por que entrou? — perguntou enquanto observava Steiner de
esguelha, cada vez mais absorto no vôo do inseto.
— Solicitou a iniciação porque alguém tinha lhe dito que os maçons possuíam
o segredo da música das esferas celestiais que Pitágoras chegou a dominar.
— Bendito seja Deus! — deixou escapar Koch. — Mas será que isso é
verdade?
— Inclino-me a acreditar que não — respondeu Lebendig com um sorriso
zombeteiro. — Eu explico. Haydn não compôs peças melhorei depois de sua iniciação.
A mesma coisa aconteceu com Mozart.
— Mozart também é maçom? — perguntou o policial, aumentando
ligeiramente a voz.
— Sim — respondeu Lebendig bem-humorado. — O pobre infeliz achava que
talvez tivessem revelado os mistérios da música a Haydn, seu ídolo, e que ele também
poderia encontrá-los. Sua música, excelente, é claro, também não melhorou após a
iniciação. E existe um último argumento que apóia minha tese: a música
especificamente maçônica é muito ruim. Temo mesmo que, se Mozart não lhes der uma
ajudinha, os maçons vão passar à História como o movimento responsável pelas
partituras mais espantosas já escritas neste século.
— Ou seja, descartamos este grupo... — sinalizou Koch cada vez mais atônito
diante da falta de dedicação de Steiner.
— Não, não descartamos - apressou-se a dizer Lebendig -, porque a questão é
que nem todos buscam um conhecimento secreto e... musical. Para outros, a maçonaria
é um lugar onde esperam descobrir um conhecimento oculto que lhes ensine um
cristianismo diferente, ou os mistérios da magia ou inclusive a maneira de entrar em
contato com os mortos.
— Custo a acreditar — disse Koch enquanto observava consternado que sua
xícara de café estava vazia.
— O senhor se surpreenderia se soubesse que os nobres pagam para obter o
segredo da eterna juventude, ou para encontrar a pedra filosofal, ou para controlar os
chamados espíritos familiares. Nem Cagliostro nem Saint-Germain teriam conseguido
fazer fortuna sem esse tipo de pessoas.
— Ca... — tentou repetir inutilmente o policial.
— Cagliostro — disse Lebendig. — Como no caso de Saint-Germain, ele
afirma que é um aristocrata embora eu, para falar a verdade, tenha minhas dúvidas.
Tenho mais a sensação de que não passa de um farsante iniciado na maçonaria, que se
dedica a enganar incautos endinheirados. Não duvido que pretenda ter vivido vários
milhares de anos e até se dá ao luxo de dizer que aconselhou Jesus Cristo a não sair de
casa na Sexta-Feira Santa...
— É difícil de acreditar — comentou Koch, embora ninguém pudesse dizer
com exatidão se o comentário se referia às últimas palavras de Lebendig ou a Steiner,
que acabava de se dedicar a caçar a mosca, usando um guardanapo como arma.
— Sim, não é fácil de aceitar, mas é a pura verdade — reconheceu Lebendig.
— Naturalmente, pode-se imaginar o poder que está ao alcance das mãos destes
indivíduos.
— Mas a polícia... mais cedo ou mais tarde porá as mãos neles...
— Deveria ser assim — reconheceu Lebendig —, mas não é nem tão fácil nem
tão seguro. Quando a justiça entra em ação, não é raro que algum irmão maçom ajude a
driblá-la. Já ouviu falar alguma vez de um maçom italiano chamado Giacomo
Casanova?
— Não, não... — respondeu Koch tentando não olhar para Steiner, que não
conseguia capturar o inseto, mas que já tinha chamado a atenção de meia dúzia de
mesas.
— Não tem importância. O fato é que o tal Casanova é uma das figuras mais
desagradáveis que se possa imaginar. Quando não está seduzindo alguma infeliz,
imagina algum modo pouco lícito de esvaziar os bolsos do próximo. Certamente, os
juízes tentaram acabar com seus desmandos em mais de uma oportunidade, mas sempre
existe uma mão amiga que lhe permite escapar. Dessa maneira, vem burlando a lei ha
anos.
Uma sensação de mal-estar, pouco menos do que insuportável, tomou conta de
Koch.
— Parece preocupante — murmurou.
— Não parece, apenas — corrigiu Lebendig. — É, realmente. Vamos supor
que uma dessas figuras engane alguém. Quando acontece, existe uma possibilidade real
de que um policial maçom resolva não ver, um juiz maçom resolva não condenar ou um
nobre maçom resolva não aplicar a pena. Pode até haver um estalajadeira maçom que
esconda o perseguido para facilitar sua fuga. Todos eles, com certeza, podem ser
pessoas decentes e cumpridoras da lei em sua vida cotidiana, mas esse comportamento
será posto à prova se o prejudicado é um irmão maçom.
— E se essas pessoas resolvessem subverter um reino? E se, de repente,
ocorresse a elas acabar com um ministro, trocar um rei ou...?
— Não se pode negar que teriam chances de conseguir isso. A conspiração se
desenvolveria em segredo. Se algum dos maçons a descobrisse, o mais provável é que
não se atrevesse a revelá-la, e além disso contariam com um grupo secreto obrigado, por
juramentos sagrados, a obedecer ordens e colaborar.
O desconforto inicial que Koch sentia na boca do estômago se transformou
agora num alfineteiro completo que dilacerava sua barriga. Como podia ter lhe escapado
uma ameaça dessa envergadura dirigida contra a ordem? Por que ninguém o tinha
colocado a par de tudo aquilo? Os fatos eram realmente como o outro dizia ou,
simplesmente, o acúmulo de sabedoria o teria transtornado? Será que Steiner iria ficar
quieto uma maldita vez?
— Mas... — tentou encontrar um argumento para negar o que vinha escutando
com inquietação crescente — mas na maçonaria existem pessoas que não podem querer
que a ordem seja alterada. Por exemplo... ocorre-me que... que existem os nobres. E o
que me diz dos sacerdotes? Os sacerdotes vão impulsionar a revolução? Irão querer que
se acabe com os reis e com as crenças das pessoas simples? Não, Lebendig, não. Isso...
isso é impossível.
Lebendig ficou em silêncio por um momento. A experiência tinha ensinado que
a verdade, como a luz, podia tanto iluminar quanto ter o efeito de enceguecer.
Certamente, tinha-se enganado quando contou de uma só vez tantas coisas ao policial.
Uma informação convenientemente dosada o teria convencido mais do que aquele
acúmulo de informações. No entanto, tudo o que tinha escutado... Em todo caso, já não
podia voltar atrás.
— Existe de tudo, herr Koch, existe de tudo — respondeu Lebendig. — Para
muitos nobres, a maçonaria é só um caminho cômodo para se convencerem de que estão
perto do povo. Na loja podem conversar com um padeiro, com um ferreiro, com um
açougueiro. A verdade, no entanto, é que não são plebeus comuns. Antes de mais nada,
vão limpos, procuram ser educados e corretos, não incomodam... Para outros
aristocratas, as lojas constituem o instrumento ideal para estarem acima das pessoas de
sua classe. Não só porque graças a elas se imaginam próximos aos governados, mas
porque além disso se entrega a eles um conhecimento secreto que os coloca acima do
conde A ou do marquês B. E, em todo caso, por acaso a figura do nobre que conspira é
nova? Por acaso não existiu antes que a maçonaria criasse raízes?
— Os sacerdotes — disse Koch, procurando evitar que Lebendig driblasse a
resposta.
O erudito ficou em silêncio por um momento. Um protestante falando sobre
sacerdotes com um católico era uma situação que nunca se sabia como poderia terminar.
De acordo com sua experiência, não eram poucas as vezes em que os católicos
acabavam sendo muito mais severos ao se referirem a seu clero do que o que poderia
passar pela cabeça de um protestante. Não era menos verdade que, em outros casos, a
reação do católico podia ser muito hostil e até acarretar uma aberta agressividade. Bem,
de nada servia chorar pelo leite derramado. Tinham-lhe formulado uma pergunta e ele
iria respondê-la.
— Nem todos os sacerdotes são iguais — começou a dizer Lebendig. — Para
falar a verdade, nenhum deles deveria ingressar na maçonaria e as proibições papais
pesam sobre eles tanto quanto sobre qualquer católico. No entanto, não tenho a
impressão de que sejam mais obedecidas do que por outros fiéis de Roma.
Fez uma pausa para esquadrinhar o rosto de Koch, mas o policial dava a
impressão de ter se transformado numa verdadeira esfinge que escondesse no mais
profundo da alma seus sentimentos.
— O fato é que, no fim das contas, existem sacerdotes e inclusive bispos que
são iniciados em lojas maçônicas. No meu entender, as razões para dar esse passo não
obedecem a um mesmo motivo. Acho que alguns se sentem sozinhos, não se sentem à
vontade com seus paroquianos e simplesmente andam à procura de um lugar onde
possam se expandir de uma forma, aparentemente, inocente. Na loja não o oprimem
com perguntas e petições, as pessoas são amáveis com eles e sentem prazer em sua
companhia. Em outros casos... em outros casos, sinto muito dizer isso, mas... mas acho
que se trata de pessoas que perderam a fé...
Koch continuou sem reagir, mas seu aparelho digestivo tinha se transformado
numa espécie de ante-sala do inferno. Para ele, a idéia de um religioso sem fé se
aproximava, em gravidade, da de um policial dedicado ao crime ou de um militar
tomado pela covardia.
— Os motivos são os mais diversos e não vou me deter nisso agora —
prosseguiu Lebendig, enquanto passava por cima do assunto como se corresse sobre
brasas ardentes. — O problema é que alguns daqueles que perdem a fé nos
ensinamentos da Igreja Católico romana começam a procurar uma forma de acalmar
suas ânsias espirituais em outros lugares e não são poucos os que acabam derivando
para a maçonaria.
O policial passou suavemente a mão esquerda sobre a boca do estômago. A dor
tinha se tornado insuportável. Quisera Deus que, pelo menos, ela não aumentasse.
Embora, tal qual o encontro estava transcorrendo, ele quase teria se resignado se dois
sisudos paroquianos não estivessem agora ajudando Steiner a perseguir aquela
indomável mosca, em meio a uma extraordinária demonstração de ousadia e
persistência.
— De repente, eles acreditam que encontraram alguns conhecimentos
verdadeiros sobre o que Cristo ensinou, como dizia o tal Espartaco em sua carta; ou,
simplesmente, sentem-se felizes de pensar que sabem mais do que seu bispo; ou
deparam-se com uma realidade espiritual que lhes parece mais real do que a que
viveram até aquele momento.
— Mas... mas, então, como podem continuar... sei lá... celebrando a missa? —
perguntou inquieto Koch.
— Não creio que tenham muitas alternativas — respondeu Lebendig. — Em
determinada idade, não é fácil mudar de ocupação, e no caso de um sacerdote... quem o
aceitaria se ele deixasse de ser sacerdote? Por outro lado, com certeza, muitos deles
acreditam que só agora alcançaram o conhecimento da verdade. Não se trata de
abandonar o estado clerical, mas a própria fé que professaram durante décadas. Se essa
é a convicção deles — e não tenho nenhuma dúvida em determinados casos —, não me
parece nada disparatado que pensem que seu dever é difundi-la. Obviamente, nunca hão
de fazer isso no púlpito. Não, hão de recorrer a uma maneira mais sutil para expandir a
nova fé. Farão isso pouco a pouco, de forma quase imperceptível e, como acontece no
caso dos nobres, contra seus irmãos de posição social. Tendo chegado a esse ponto, e
levando-se em conta aquilo em que acreditam, como não irão contemplar com
esperança que esta sociedade desapareça e surja outra?
Koch ficou em silêncio. Não lhe parecia agradável, mas tinha que reconhecer
que havia uma lógica sólida, maciça e convincente no que tinha acabado de ouvir de
Lebendig. O problema é que, se tudo aquilo era verdade, o mundo — seu mundo —,
esse mundo que ele tanto amava e que tratava de manter em ordem e sossego havia
tantos anos, era muito mais frágil do que jamais teria podido imaginar. A qualquer
momento, poderia ser atacado por figuras como Espartaco e, quando isso acontecesse —
e quisera Deus que não ocorresse nunca —, os conspiradores seriam protegidos por uma
nuvem de amigos, e os nobres e sacerdotes advogariam a necessidade de se criar uma
nova sociedade. Respirou fundo para evitar a náusea que estava subindo de sua barriga
até a garganta.
— O senhor acredita que Espartaco é... — engoliu em seco antes de concluir a
pergunta — é um sacerdote?
Lebendig sentiu compaixão por Koch. Parecia óbvio que o policial estava
passando muito mal.
— Espartaco — disse por fim — é um perigo. O que importa se debaixo da
capa de maçom usa uma batina, uma toga ou um avental? O realmente relevante é
alguma coisa muito diferente...
Koch se esforçou para que aquelas palavras exercessem sobre ele um efeito
consolador. No fundo do ambiente, um criado rosadinho tinha esmagado a mosca com a
ajuda de um papel dobrado. As pessoas davam sinais de verdadeiro alvoroço. Bem, para
falar a verdade, nem todos. Steiner parecia que tinha acabado de voltar de um funeral.
Três
Do caderno de estudos científicos do professor Lebendig
EMBORA
O TAMANHO DA LETRA
costume ser muito revelador de certas
características, venho observando com o passar do tempo que existem casos de
aumentos desproporcionais de alguns traços da escrita. Essas circunstâncias, tomadas
isoladamente, podem nos revelar aspectos relacionados com a alma do indivíduo, que
estamos analisando, realmente interessantes.
Por exemplo, tomemos a letra s. Na escrita de uma pessoa que aumenta o s
temos que reconhecer uma desproporção entre o que acontece e a maneira como ela se
comporta. A causa pode ser mínima, mas ela reagirá com enorme veemência. Nervoso
demais e pouco controlado para alguém querer tê-lo por perto, sem dúvida. Se além
disso o s que aumenta é a letra final... Ah, pior ainda, porque nos encontraríamos diante
de alguém que ainda por cima gosta de exibir seus arrebatamentos.
No caso da letra p, ocorre algo parecido. No entanto, seu aumento
desproporcional nos mostraria uma pessoa que sente prazer em cair nesse feio vício que
se chama ostentação.
Quanto ao que se refere à letra r, descobri uma característica que tenho que
partilhar de forma urgente e iniludível com herr Koch. Quando uma pessoa traça um r
maiúsculo em lugar do minúsculo que deveria escrever, estamos diante de alguém
anormal e com uma clara tendência para a apropriação de bens alheios. É um sinal que
se repete constantemente nos delinqüentes. Dito e feito. Não poso me esquecer de
comentar isso com herr Koch.
Quatro
Baviera, 1787
— MEU NOME É...
— Eu o conheço, herr Koch. Sei quem é o senhor — corou com um sorriso. —
Quem não conhece em Ingolstadt um de nossos policias mais eficientes?
A resposta poderia ter sido que não eram poucos os que ignoravam sua
existência e que até era melhor assim. No entanto, naquele momento ao menos, Koch
preferiu esperar para ver como tudo iria se desenrolar.
— A verdade é que quando tomei conhecimento de que deseja conversar
conosco... bem — disse com um sorriso — pensei que poderia pedir uma iniciação.
Porque, digo isso com confiança, o senhor seria uma pessoa que se encaixaria
perfeitamente numa loja maçônica. Seu comportamento é irrepreensível, quer dizer, o
senhor é um homem de bons costumes, excelentes, eu me atreveria a dizer. E além do
mais, não quero ofender sua modéstia, mas poucos, muito poucos, têm feito tanto pelo
bem-estar local como o senhor, herr Koch.
O policial continuou em silêncio. Naquelas palavras introdutórias, seu
interlocutor tinha desfraldado toda uma declaração de princípios, ou seja, que os maçons
eram pessoas de ótimas características que se preocupavam com a estabilidade do reino
e que demonstravam tantas virtudes que ele, Koch em pessoa, o policial, ficaria
encantado de ser iniciado em sua sociedade. Iria ser muito difícil prosseguir um
interrogatório com aquelas premissas iniciais.
— Devo entender que todos os membros de sua... fraternidade são súditos
fiéis? — perguntou Koch com uma voz sem calor mas também sem nenhuma
hostilidade.
O maçom arqueou as sobrancelhas como se tivesse sido surpreendido por uma
pergunta que, certamente, já deviam lhe ter formulado uma infinidade de vezes.
— Mas... mas, herr Koch, com toda a certeza. Como poderia ser de outra
forma? Nós nos comprometemos a isso com um juramento sagrado.
— E, naturalmente, se não fosse assim, o senhor me informaria... — comentou
Koch, conduzindo a conversa para o ponto que lhe interessava.
— Não há nenhuma necessidade — driblou a resposta o maçom. —
Semelhantes ações são impensáveis no interior de nossas lojas.
— Certamente — disse Koch, que não tinha a menor intenção de se enredar
numa conversa inútil. — Não desejo fazê-lo perder tempo. Poderia me fornecer uma
lista dos membros de sua loja? Mera rotina.
Uma sombra caiu sobre o rosto do maçom, mas durou apenas um instante.
Imediatamente, seu sorriso amável voltou a aflorar.
— Não é possível, herr Koch, e aposto que o senhor sabe disso tão bem quanto
eu. A confidencialidade é obrigatória entre nós e, desculpe comentar, a lei nos protege.
Koch não tinha tanta certeza de que a ordem jurídica estendesse seu manto
sobre o segredo referente aos membros das lojas maçônicas. Em todo caso, o que
realmente parecia óbvio era que se quisesse obter a informação teria que seguir o canal
regulamentar, justamente o que tinha querido evitar. Sabia disso porque aquela figura
era a oitava, sim, a oitava, com quem tinha abordado a questão nas últimas semanas.
Todas, absolutamente todas, tinham-lhe respondido da mesma forma. Casualidade
demais para ser casual, sem dúvida.
— Não me ocorreria discutir sua obrigação de manter a confidencialidade —
disse Koch num esforço que sabia fracassado antes que se consumasse. — É
simplesmente uma solicitação de... vamos dizer, ajuda.
— O senhor contará sempre com nossa ajuda para o que precisar ou quiser,
mas... bem, o senhor não pode nem sequer sugerir que eu viole a lei.
— Não me ocorreria nem sugerir isso — disse o policial com um sorriso tão
falso quanto uma moeda de madeira.
Retirou-se da casa do maçom seguido por Steiner e tomado por um sentimento
de mal-estar difuso que partia de seu estômago e subia por suas costas até, de forma
traiçoeira, agarrar-se à sua garganta como se quisesse sufocá-lo. Fazia várias semanas
que estava atrás de Espartaco e não tinha avançado um único passo. Para falar a
verdade, parecia-lhe que não tinha parado de caminhar em círculos, como um burro de
carga idiota que uma mente superior conduz para onde quer.
Parou no meio da rua — o que esteve a ponto de fazer com que um Steiner
distraído se chocasse com ele —, lançou um rápido olhar pelo traçado urbano. As
árvores, o calçamento, as fachadas... cada um daqueles detalhes denotavam uma
harmonia bonita, tranqüila e sossegada. Em boa medida, eram o reflexo do que
acontecia no interior daquelas casas onde os pais ensinavam os filhos a serem homens e
mulheres de bem, onde os filhos obedeciam aos pais, onde todos trabalhavam para
garantir o presente e planejar o futuro e onde se dirigiam a Deus em busca de amparo na
hora de enfrentar aquelas angústias que não podem ser remediadas pelo ser humano.
Certamente, como acontece com um corpo sadio ou com uma vinha fértil,
ocasionalmente alguma coisa naquela ordem perfeita se rompia. Mas da mesma forma
como o médico tratava umas anginas ou o agricultor combatia o pulgão, pessoas como
ele, como o agente Koch, encarregavam-se de extirpar o mal.
Um ventinho suave começou a deslizar entre as árvores, como se procurasse
chegar até ele. Sentiu o sopro e, na hora, uma sensação estranha, de melancolia, de dor,
semelhante à que se experimenta quando se descobre que o universo da infância pode
ser venturoso, mas não real, começou a invadi-lo. Debaixo daquelas ruas, detrás
daqueles muros, por cima de agentes como ele, existia outra realidade. Era secreta,
ameaçadora, perigosa, mas, pelo menos no que dizia respeito a ele, não tinha
conseguido vê-la nem alcançá-la. Persegui-la certamente acabaria sendo tão absurdo
quanto tentar agarrar o vento que agora o envolvia.
— Se, pelo menos, Lebendig tivesse mais sorte...
— disse a si mesmo
enquanto caminhava e depois, com tom de autoridade, acrescentou: — Steiner, não
fique aí parado como se fosse um espantalho. Temos muito trabalho a fazer.
— É o melhor que a senhora tem?
A anciã deixou escapar um arquejo de cansaço. Fazia uma longe hora que
estava atendendo àquele homem e, de passagem, perdendo outros fregueses. O fato era
que parecia um cavalheiro e, sem dúvida, sabia o que estava procurando, mas a perda de
tempo, ah, a perda de tempo estava começando a ficar insuportável.
— Eh... não, não, certamente tenho alguma coisa melhor... — respondeu
enquanto via outro de seus fregueses potenciais indo embora.
— Gostaria de ver, bitte — disse Lebendig com um sorriso.
— Claro, claro... — resmungou a anciã, dando meia-volta e fundindo-se na
penumbra impenetrável do interior da loja.
Lebendig aproveitou a breve ausência da dona do estabelecimento para dar
uma rápida olhada às suas costas. Não restava nem um cliente. Tinha precisado esperar
que a mulher atendesse a duas pessoas que tinham chegado antes dele, mas depois a
tinha monopolizado de tal maneira que, no final, como desejava, tinham ficado
sozinhos.
— Aqui está — balbuciou a mulher, que vinha dos fundos da loja carregando
várias vasilhas de porcelana contra o peito.
— Pois vamos ver — respondeu Lebendig com um sorriso.
— Veja... esta... sim, esta é uma maravilha... — explicou a vendedora ao
mesmo tempo em que destampava um dos recipientes de porcelana e molhava nele a
ponta de um papel. — Percebe? Veja só que cor! Poucas pessoas são tão requintadas
para comprá-la, mas...!
Lebendig comparou a tinta com o pedaço de papel que levava numa pasta
pequena que descansava sobre o balcão. Era parecida, sem dúvida, mas... não, não era a
mesma.
— E um pouquinho mais...?
A mulher deu um suspiro e dirigiu o olhar para o teto. Definitivamente, a
manhã estava transcorrendo de uma forma bastante indesejável.
— Talvez esta — disse com um tom de voz de esgotamento, enquanto lhe
apontava outra amostra.
Por três vezes, Lebendig passou o olhar entre o papel que a vendedora lhe
mostrava e o que carregava na pastinha. Sim. Não havia a menor sombra de dúvida. Era
a mesma.
— Acho que ficarei com três tinteiros — disse com voz risonha.
A mulher abriu e fechou a boca por três vezes sem conseguir articular nenhuma
palavra. Não podia acreditar que aquela figura pudesse desaparecer de sua loja,
permitindo-lhe continuar com seus afazeres habituais de cada dia.
— Um coisa que lhe peço é que os embrulhe bem. Por nada nesse mundo
gostaria que eles quebrassem, porque baratos eles não são...
Sem sair de sua estupefação, a anciã balbuciou uma cifra.
— Ah, pois nem é tanto assim — comentou Lebendig acentuando ainda mais
seu sorriso.
— Posso enviá-los à sua casa — disse a vendedora que já estava se
recuperando e queria encerrar a transação o quanto antes.
— Vocês realizam esse serviço para todos os seus clientes? — perguntou
Lebendig sem tirar os olhos do papel manchado de tinta.
— Só se a despesa merecer... — esclareceu a mulher em tom humilde.
— Estou entendendo, mas imagino que, algumas vezes, o trajeto será longo e o
tempo também tem um custo.
— A verdade é que esta tinta... Bem, só quem a compra é o barão Von Knigge.
Tem paixão por ela. E há outras também muito bonitas, mas, veja o senhor, é desta que
ele mais gosta e, realmente, a verdade e que ele mora longe.
— Nesse caso, não serei mais um a lhe causar prejuízo nos negócios. Levarei
os tinteiros, sem precisar que os entregue em casa.
Os dedos da mulher pareceram ganhar vida própria enquanto dobravam o papel
para o embrulho que Lebendig colocou debaixo do braço e segurou com a mão esquerda
antes de deixar a loja.
— Danke sehr, meine Frau11 disse enquanto tocava mais com cortesia do que
com elegância a aba do chapéu.
Quando chegou à rua, sentiu um arzinho que bateu, impetuoso e gélido, em seu
rosto. Sorriu. Gostava do frio, talvez porque tenha sentido muito quando era um
menino, e seu roçar, em vez de lhe provocar amargura, evocava-lhe lembranças de
épocas que gostaria de acreditar que tinham sido felizes. Por outro lado, tinha que
reconhecer que tudo acontecera melhor do que esperara. Já sabia, pelo menos, que
Espartaco usava a mesma tinta que o barão Von Knigge. Seria ele próprio, um
empregado seu, um parente? Isso certamente, ele não sabia, mas — lhe dizia que, com a
ajuda de Deus, não demoraria muito a descobrir.
11
Em alemão no original.
Cinco
Do caderno de estudos científicos do professor Lebendig
A DIFERENÇA DO QUE ACONTECE com outros alfabetos — como o hebraico, por
exemplo —, é que o nosso, que é o latino, conta com letras de tamanhos diferentes.
Qualquer um, mesmo que não saiba ler nem escrever, é capaz de perceber a enorme
diferença entre um o, por exemplo, e um f. Nossa alma também permanece refletida
nesta peculiaridade. Vou tentar me explicar.
Uma letra como o f tem uma crista — a parte superior — e um pé — a parte
inferior. Uma letra como o g possui apenas pé e uma como o t só teria crista.
Acrescentemos, para assinalar de forma completa o elenco, aquelas que não têm nem
uma coisa nem outra como o mencionado o e o resto das vogais.
Qualquer observador atento perceberá também que na escrita das pessoas se
manifesta um equilíbrio de comprimento entre as cristas e os pés ou, pelo contrário, um
predomínio das cristas sobre os pés, ou vice-versa. A importância de saber interpretar
corretamente este fator é enorme. Vejamos, por exemplo, a letra f. Se, ao examiná-la,
observarmos que se alonga desproporcionalmente na crista, estaríamos diante de alguém
inclinado para o mundo do espírito, do superior, do sublime. Talvez seja um artista, um
gênio e até um santo. Mas se, pelo contrário, é o pé que é desproporcional... ah, não
resta dúvida, temos aí alguém apegado ao inferior, ao material. Poderia ser alguém que
simplesmente deseja satisfazer seu estômago, mas também uma pessoa presa aos
desejos mais baixos. Curioso. Todo o espaço que existe entre o céu e o inferno pode ser
encontrado num traço tão simples quanto o da letra f.
Seis
Baviera, 1787
LEBENDIG
CONFERIU AS CONTAS.
Conferiu meticulosamente e por duas vezes.
Sim, estava correto. Era óbvio que o rapaz avançava. Não conseguia responder à
pergunta sobre como era possível que fizesse isso sem poder se comunicar verbalmente,
mas a confiar naquelas contas não restava dúvida de que ele o compreendia, e além do
mais assimilava corretamente seus ensinamentos. Algo semelhante acontecia com o
latim. O garoto já traduzia César e Cícero com certa desenvoltura. Provavelmente,
dentro de mais alguns meses poderia iniciá-lo nos segredos de Virgílio e Horácio.
Quanto às outras matérias, quem poderia negar que ele as aprendia com grande
proveito?
Levantou os olhos do papel e presenteou o rapaz com um sorriso. Ele não
retribuiu, com sua alma escondida detrás daquela máscara de muda impassibilidade. No
entanto, Lebendig percebeu um leve rubor nas maçãs do rosto, que ele quis interpretar
como uma demonstração de satisfação de seu aluno. Quem haveria de lhe dizer que ele,
que não tinha filhos, viria a se comportar como um pai com uma criatura incapaz de
articular uma palavra, embora não de pensar e de aprender? Quem haveria de prever que
ele, que agora só ensinava ocasionalmente, iria se entregar com aquele fervor alegre
transmitindo seus conhecimentos a alguém que, se Deus não o socorresse, jamais os
repetiria aos outros? Sem dúvida, bem dizia a Bíblia que os caminhos do Senhor são
inescrutáveis.
— Já chega por hoje. Você tem direito a um descanso, mas não o aproveite
mal.
O rapaz mudo recolheu os papéis com cuidado e os guardou numa grande
pasta. Ato contínuo, guardou também a pena, o tinteiro e dois livros. Em poucos
instantes, tinha desaparecido do aposento de um modo tão silencioso quanto tinha
permanecido nele durante as duas horas anteriores.
Tinham transcorrido apenas uns poucos minutos quando a viu passar e não
conseguiu reprimir um sorriso. O gesto não tinha sido provocado por humor,
passatempo ou brincadeira. Não, aquela ruga dos lábios de Lebendig exalava
substancialmente a ternura. E esse era o sentimento especial que Emma lhe despertava.
Sua aparência física não era, em sentido exato, a de uma mulher que se pudesse
descrever como bela, mas àquela altura de sua vida fazia tempo que o erudito tinha
deixado de mostrar muito interesse por essa efêmera e ao mesmo tempo enganosa
qualidade. Na verdade, fazia muito tempo que ele buscava outras características nos
seres que pudessem estar perto dele. Contudo, também não se poderia dizer que Emma
fosse feia. Na verdade, bem que se poderia descrevê-la como estranha e profundamente
agradável. Com cabelos suavemente louros, olhos de tonalidade azul, seios pequenos e
baixa estatura, seu corpo lembrava o de uma menina, embora já fizesse muitos anos que
tinha cruzado a fronteira da maturidade. Mas, principalmente, seu jeito de caminhar, de
olhar e de se expressar transmitia um misto de bondade e calma que enchia de sensações
mais gratificantes e suaves o coração de Lebendig.
Lembrava-se, como tivesse acabado de acontecer, a forma como tinha
encontrado Emma tempos atrás. Foi durante aquele ano de peste e incêndios, de
escassez e angústia, em que as pessoas tinham botado o pé na estrada, na Alemanha,
com a intenção, única e fundamental, de sobreviver. Ele a descobriu sozinha; lembravase que estava vestida com cores claras. No começo, tinha sentido um medo reflexo
diante de uma mulher que irradiava aquela sensação de fragilidade e que se atrevia a
cruzar o país sem parentes, sem marido, sem nenhuma companhia. No entanto, irradiava
algo realmente especial que impeliu Lebendig a se aproximar e lhe oferecer ajuda. Ela
aceitou de forma natural, sem suspeitas, como se na verdade tivessem se conhecido
muitos anos antes, embora não pudessem determinar com precisão a época e as
circunstâncias em que tinham se visto pela primeira vez.
Num primeiro momento, Lebendig, que observava com desgosto os troncos
queimados das árvores e as ruínas dos povoados que iam atravessando, não achou que a
mulher e ele pudessem trilhar muitos caminhos juntos. Em poucos dias descobriu o
quanto estava enganado. De forma natural, como se tivesse sido sua esposa, como se
sempre tivesse cuidado dele, como se estivesse havia anos a seu lado, Emma começou a
cozinhar, a lavar, a colocar um pouco de ordem na vida talvez genial mas,
inegavelmente, desorganizada de Lebendig. Ela nunca lhe pediu dinheiro, nunca fez
reclamações, nunca manifestou qualquer pretensão, com exceção de uma vez em que
lhe tinha implorado que cantasse porque chamava a sua atenção a forma como ele
cantarolava a música. Surpreso, Lebendig entoara então um hino clássico, "Ein Feste
Burg"12 e, quando terminou, a mulher, com um sorriso de satisfação, dissera:
12
Nome de uma famosa cantata de J. S. Bach.
— Você canta muito bem.
Para Lebendig, a presença de Emma era semelhante à de um anjo. Generosa,
quente, calada, até distraída, mas transbordando bondade e cuidados sem pedir nada em
troca.
Alguns dias antes de chegar a seu destino, Lebendig sentiu a mordedura que o
medo de se separar dela lhe provocava. Outra pessoa que levasse menos em conta o
caráter sagrado do casamento teria pedido a Emma que o aceitasse como esposo, e
alguém que quisesse apenas garantir a satisfação de suas necessidades mais primárias
teria tentado transformá-la em sua concubina. Mas a consciência de Lebendig, educada
numa interpretação estritamente reformada da Bíblia, não lhe teria permitido manter
uma vida íntima com uma mulher com quem não estivesse ligado pelos laços divinos de
uma cerimônia religiosa. Por outro lado, sua idéia de casamento era tão pura que nunca
teria aceitado casar-se com alguém por quem realmente não estivesse apaixonado. E no
entanto...
Estava pensando em tudo isso quando, no meio das trevas espessas da noite,
ouviu alguns passos que se aproximavam do local onde estavam acampados. Em
circunstâncias normais, não teria sentido mede algum, consciente de que poderiam lhe
roubar muito pouco. No entanto, naquele instante, experimentou um sentimento de
angústia quando considerou que algum mal pudesse acontecer à calada Emma, à
bondosa Emma, à terna Emma.
O que emergiu das sombras foi um menino de apenas oito ou nove anos com o
rosto sujo, os cabelos despenteados e uns olhos em que pareciam se concentrar uma
dúzia de vidas. Ele deu alguns passos até Lebendig cravando nele aquele olhar ao
mesmo tempo tão obscuro e tão transparente e, de repente, estendeu trêmulo a mão
direita e desmaiou.
A conclusão a que ele chegou foi a de que não tinha comido, talvez nem sequer
bebido, havia muitos dias. Também não demorou a constatar que o menino era incapaz
de articular uma única palavra. Apesar de tudo, pelo estado em que se encontrava, não
era difícil deduzir que, se não tivesse cruzado com Lebendig e Emma, não teria
sobrevivido mais do que algumas horas.
Quando chegaram a seu destino, a criatura dormia no fundo da carroça que os
tinha transportado durante dias. Enquanto o erudito o observava com um sorriso terno,
Emma apanhou o pequeno fardo com que Lebendig a tinha encontrado, desceu do
veículo e começou a se afas-:ar. Ele se deu conta quando ela já estava prestes a dobrar
uma curva:
— Emma! — gritou subitamente inquieto enquanto saltava da boléia. —
Emma? Aonde você vai?
A mulher se virou e, como única resposta, lançou-lhe aquele olhar Límpido e
azul, que dava tudo e não exigia nada.
— Emma... — começou a dizer, ao mesmo tempo em que procurava articular
algum pensamento que lhe permitisse convencê-la a ficar a seu lado. — Emma... eu...
eu... bem, o menino... o fato é que...
Mas Emma não o ajudou a se expressar. Continuou olhando para ele calma e
docemente sem pronunciar uma única frase.
— Veja... Preciso... sim, preciso... de uma pessoa que cuide dessa criatura...
pelo menos até que seus pais apareçam... ou algum parente...
Emma se manteve em silêncio, sem afastar nem por um instante de Lebendig
aquele olhar tão especial.
— A verdade é que não posso lhe pagar muito... Nem mesmo sei se encontrarei
aqui algum trabalho, mas... mas... bem, ficaria encantado se ficasse para trabalhar...
Sem abrir a boca, Emma começou a caminhar na direção da carroça que tinha
abandonado uns poucos minutos antes.
— Espere, espere, Emma — disse Lebendig, colocando-se à sua altura. — Não
combinamos seu salário e...
Emma parou, olhou par ele e disse com a maior naturalidade:
— Não acho que isso seja algum problema. E então acrescentou com um
sorriso:
— Além do mais, não tenho para onde ir...
Desde então tinham-se passado muitos anos e nada tinha mudado. Ou talvez
sim. Lebendig confiava muito mais na mulher agora do que jamais poderia imaginar que
confiaria. Sabia que ela não o roubaria, que não o enganaria, que não seria desleal com
ele. Para ser sincero, nunca tinham conversado sobre esses assuntos, mas assim estava
convencido. Como Emma lhe tinha dito numa ocasião em que tinham ido levar o garoto
para um médico examinar, dava a impressão de que eles se conheciam havia muitos
anos, tantos como se fossem necessárias várias vidas para poder somar todos eles.
De certa maneira, talvez Emma estivesse o mais próximo que se poderia chegar
nesta vida, não exatamente fácil, de conhecer a bondade, uma bondade que — não se
poderia duvidar — tinha uma origem celestial. Devia ser assim, porque quando se
comparava o coração de Emma ao daquele Espartaco, era impossível não encontrar
diferenças maiores. A mulher se contentava com cada dia, enquanto Espartaco...
Espartaco queria alterar o presente para dominar o futuro. Espartaco... Seria
Von Knigge? Era difícil saber, mas se um homem de uma condição tão privilegiada
como a nobreza ansiava acabar com a sociedade era porque as coisas não deviam andar
muito bem, a começar pelo coração da tal criatura.
— Herr Koch acaba de chegar.
Lebendig balançou a cabeça, como se o movimento lhe permitisse dissipar os
pensamentos que tinham ocupado sua mente durante os últimos momentos e assim ele
pudesse retornar a uma realidade que, não por ser próxima, era mais agradável.
— Faça-o entrar.
O policial entrou acalorado na saleta. Seu rosto estava avermelhado, como se
ele tivesse passado um bom tempo correndo e o suor perolasse sua testa. Ele parou no
umbral e ficou procurando com o olhar. Lebendig entendeu logo. Koch precisava se
sentar e não conseguia encontrar o lugar onde fazer isso.
— Desculpe — disse Lebendig ao mesmo tempo em que ficava de pé, afastava
uma pilha de livros e deixava aparecer uma cadeira.
Koch titubeou por alguns instantes. Definitivamente, não conseguia se
acostumar com aquela desordem que enchia tudo como se fosse uma inundação de
volumes e papéis. Era ainda mais difícil compreender como Lebendig conseguia
encontrar alguma coisa no meio daquele caos sem forma. Respirou fundo, afastou de
sua mente aqueles pensamentos que lhe traziam inquietação e se sentou.
— Herr Lebendig — disse enquanto acabava de recuperar o fôlego —, tragolhe informações muito importantes.
O sábio concordou com a cabeça ao mesmo tempo em que franzia os lábios.
Era uma maneira bem sua, que deixava Koch desconcertado, porque ele nunca sabia se
era um movimento de anuência, de zombaria, de interesse ou de cansaço.
— Sobre quem? — perguntou com um tom de voz tão calmo que quase beirava
a indiferença.
Koch tirou uma grande pasta de debaixo de sua capa e disse:
— Sobre o barão Von Knigge.
Sete
Do caderno de estudos científicos do professor Lebendig
COMO
REGRA GERAL, OS
escritos que foram submetidos à nossa reflexão
reúnem várias linhas de escrita. Para falar a verdade, acho extremamente difícil
conseguir analisar de forma correta e pertinente um indivíduo qualquer sem uma
quantidade mínima de sua letra. Mas, além das observações que os diferentes traços
mereçam de nós, não devemos nos esquecer nunca de esquadrinhar a separação
existente entre as linhas e entre as palavras.
Suponhamos que as linhas apareçam separadas por uma distância maior do que
a normal. Estaríamos diante de uma pessoa inclinada dispersão de idéias, embora
também pudesse ser alguém dotado de uma generosidade especial. Observei essas
características nos textos do assistente Steiner, o que me lembra que preciso informar
herr Koch sobre isso. Com toda a certeza, ele ficará preocupado em saber que seu
homem de confiança pode ser inteligente mas, ao mesmo tempo, é capaz de se distrair
com o canto dos pássaros. Em todo caso, ele precisa saber disso.
O que aconteceria se as linhas estivessem concentradas, com uma separação
menor do que a normal? Pois estaríamos diante de uma pessoa que concentra suas
idéias, que presta uma enorme atenção ao que faz e que até se preocuparia em fazer
economia. Herr Koch é um exemplo desse tipo de letra.
Oito
Baviera, 1787
— DE
QUE SE TRATA EXATAMENTE?
— perguntou Lebendig com um súbito
interesse.
Koch sorriu divertido e resolveu ficar alguns instantes em silêncio. O suficiente
para castigar a indiferença inicial do erudito. No entanto, Lebendig não demonstrou a
menor impaciência. Franziu levemente os olhos, mas aquela expressão poderia ser
atribuída simplesmente ao desejo de que a luz não arranhasse suas pupilas.
Decididamente, Lebendig podia chegar a ser desesperador em certas ocasiões...
— Bem — começou a dizer Koch um pouco aborrecido —, não é fácil fazer
investigações em torno de um membro da nobreza.
— Compreendo — corroborou Lebendig.
— Onde exatamente poderia procurar? — prosseguiu o policial. — Estive
dando tratos à bola e não era fácil determinar. Seu açougueiro? Seu verdureiro? Seu
sapateiro? Mas o que o açougueiro, o verdureiro ou o sapateiro poderiam me contar?
Pouca coisa de interesse. Então pensei no alfaiate...
— Por causa do avental e do resto das vestes maçônicas? — perguntou
Lebendig.
Koch concordou.
— Exatamente, exatamente. Certamente, podia ser o caso de que ele fosse
maçom e, no entanto, tivesse comprado seus aventais e outras bagatelas em outro lugar
mas...
—...mas não se perdia nada perguntando. E então?
Um leve sorriso apareceu nos lábios do policial. Finalmente ele tinha
conseguido que o erudito demonstrasse mais interesse.
— Tive sorte. O alfaiate me confirmou que tinha confeccionado para ele uma
roupa desse tipo. Segundo ele me contou, bastante luxuosa e com... — Koch enfiou a
mão na grande pasta e extraiu uma folha de papel. — ...com estes bordados —
completou.
Lebendig observou os desenhos. Sim, não se podia negar que correspondiam a
símbolos maçônicos.
— Mestre maçom — disse ao mesmo tempo em que erguia o olhar em direção
a Koch.
— A informação tem seu interesse, sem dúvida, mas...
— ...mas não nos leva muito longe. Sei disso, sei disso, herr Lebendig
Exatamente por isso dei o passo seguinte. Localizei o livreiro do barão
Lebendig não abriu a boca mas suas sobrancelhas se arquearam numa
expressão tão reveladora quanto a do cão de caça que levanta a pata dianteira e aponta o
focinho na direção da presa.
— Não havia nenhuma certeza de que suas leituras pudessem acrescentar
alguma coisa à investigação. Bem, para falar a verdade, nem mesmo podíamos estar
certos de que ele lesse, mas... repare, herr Lebendig.
Koch retirou duas folhas de papel e as aproximou dele até quase roçar em seu
queixo.
— Estes são os livros que ele comprou nos últimos anos. São livros
caros, mas o mais importante é que, se não estou enganado, e acho que não estou, tratase de obras... um tanto específicas.
Lebendig arrancou, mais do que apanhou, a lista das mãos do policial, ajeitou
as lentes e começou a examiná-la. Tinha que reconhecer que era bastante extensa. Von
Knigge era um homem muito interessado na cultura, a julgar pelo que diziam aquelas
linhas apertadas e pretas. No entanto, o que se via ali não era um mero amor pelo saber.
Não, havia muito mais, foi dizendo a si mesmo enquanto repassava os títulos uma
segunda, uma terceira e uma quarta vez. Finalmente, levantou-se de sua cadeira e se
dirigiu, sob o olhar inquieto de Koch, a um dos cômodos que desembocavam na saleta.
Retornou em alguns instantes com um tinteiro e uma pena.
— Veja — disse enquanto sublinhava o terceiro título da lista. — O
Physognomiae ac Chiromantiae Compendium. Sem dúvida, o barão deve ter muito
dinheiro porque se trata de uma obra... bem, muito difícil de se conseguir e muito cara,
sem dúvida.
— De que se trata? — perguntou intrigado Koch.
— É a obra clássica de Bartolomeo delia Rocca, aliás, Cocles — respondeu
Lebendig. — Uma parte é dedicada à fisionomia, quer dizer, à disciplina que permite
investigar o caráter das pessoas por sua aparência externa...
— E pode-se fazer isso? — perguntou subitamente interessado Koch.
— Sim, claro, mas isso não passa de mero charlatanismo. Há pessoas com
aparência angelical que são verdadeiros canalhas e indivíduos de aspecto demoníaco
que acabam se revelando anjos de bondade.
— Claro...
— No entanto — continuou Lebendig — não é isso, mas a história da
quiromancia, o que me chamou a atenção. Foi justamente por essa razão que o livro foi
proibido pela Inquisição.
— Explique-se, por favor, herr Lebendig.
— A quiromancia é uma forma de adivinhação e, como todas elas, encontra-se
proibida pela Bíblia. Como se pode imaginar, Cocles chamou a atenção dos inquisidores
e, bem... é óbvio que algumas cópias escaparam das chamas. Seja como for, quando vi o
título comecei a desconfiar de que o barão tinha interesse pelas artes ocultas, e veja o
que aparece aqui...
Koch se inclinou sobre o próximo livro sublinhado por Lebendig.
— Grimoire dupape Honorius — leu o policial com um sotaque francês
bastante aceitável. — Trata-se de um livro piedoso?
— Não — respondeu friamente Lebendig. — Não é um livro piedoso. Na
verdade, trata-se de um manual de bruxaria.
— E foi escrito por um papa? — perguntou surpreso Koch.
— Digamos melhor que ele tenha sido atribuído a um papa — respondeu
Lebendig. — Honório III tinha fama de praticar a magia e, supostamente, aqui está
compilado sua autoridade oculta, inclusive as imprecações para controlar os demônios.
Questões de autoria à parte, a verdade é que diz bastante sobre as preferências do barão.
— Controlar os demônios... — repetiu num sussurro Koch, mas Lebendig não
pareceu reparar e continuou com sua investigação.
— Aqui... quatro itens mais abaixo, está a Clavícula Salomonis.
— A chavinha de Salomão?
— Exatamente — disse Lebendig. — Fico feliz que não tenha esquecido o
latim. A Clavícula é outro livro de magia.
— Eu tinha entendido que Salomão foi um rei sábio e bom...
— E foi. Durante alguns anos foi, mas a Bíblia diz que no fim da vida permitiu
que as mulheres o arrastassem atrás de seus deuses falsos.
— E então ele resolveu se dedicar à magia?
— Para falar a verdade, não sabemos isso, mas... bem, acho que não se pode
descartar. Se ele incorreu na apostasia e prestou culto a deuses pagãos, violando assim a
lei de Deus, por que não iria também praticar a magia, desobedecendo outro
mandamento divino? Seja como for, o livro aparece com seu nome e, pela terceira vez,
diz-nos algo sobre o barão.
— Acredito — admitiu Koch.
— Depois da Clavícula Salomonis... um, dois, três... aparecem nada menos do
que sete livros que nada têm a ver com as ciências oculta Poesia, filosofia, ciência... o
normal, mas então, o que encontramos? é que está, o Livro de imprecações de frei
Diego de Céspedes.
Koch esteve a ponto de perguntar se era um tratado religioso, mas se lembrou
da referência à obra atribuída ao papa Honório e decidiu que o mais prudente era ficar
em silêncio.
— Céspedes era um monge bernardo13 do século passado — disse Lebendig.
— Era especialista em enfrentar imprecações. Pelo menos é o que se supõe.
— Que espécie de imprecações? — perguntou Koch.
— De toda espécie... O senhor sabe. Como provocar uma estiage como fazer
com que um raio caia em determinado local, como conguir que o pulgão arruine as
videiras do vizinho, como desencadear uma doença em alguém que se odeia... coisas
assim.
— Posso tomar um pouco de água — suplicou o policial que tinha começado a
sentir que sua boca estava seca após ouvir aquelas explicações.
Lebendig titubeou um instante como se não tivesse entendido direito o que seu
interlocutor tinha acabado de dizer. Depois levantou os olhos do papel e disse:
— Emma!
Demorou apenas um instante para que aquela mulher loura, branco e quase
transparente aparecesse no umbral.
— Bitte, traga um copo de água para herr Koch. — Fez uma pausa e
acrescentou: — Tenho a impressão de que não é bom para sua saúde mas gostaria de
beber um pouco de café?
— Sim, mas, primeiro, um copo de água, obrigado — respondeu o policial.
Koch esperou que Emma deixasse o aposento. Não que tivesse alguma coisa
contra a mulher, mas não partilhava da proximidade — honestíssima, pelo que sabia —
que Lebendig mantinha com ela. Se iriam continuar falando sobre o barão Von Knigge,
preferia que estivessem sozinhos.
— Continue, bitte- disse Koch assim que observou que o corpo solícito,
pequeno e rápido de Emma desaparecia pelo corredor.
13
Religioso da Ordem de Cister, criada por são Bernardo de Clairvaux (1090-1153)
— Depois deste livro — prosseguiu Lebendig — tornamos a ter uma pausa de
alguns meses. Tenho a impressão de que o barão Von Knigge andou muito ocupado.
Talvez andasse envolvido com atividades normais ou talvez, e eu não descartaria isso,
estivesse entretido com os livrinhos que comprara com antecedência. E então...
— Então...
— Então, de forma inesperada, começou a comprar como um louco. Repare. O
Traité des énergumènesde Pierre de Bérulle, o Disquisitionum magicarum de Martin
Del Rio e dois Teufelbücher.
— Teufelbücher?. Livros do Diabo? Que espécie de literatura é essa? —
perguntou o policial.
— Tratados de demonologia. Protestantes. Foram escritos por pastores que
queriam advertir suas ovelhas sobre os perigos que podiam vir do Diabo e de seus
demônios.
— Claro... — disse Koch, que ainda não tinha se acostumado com a
proximidade de um protestante.
— Quanto ao livro de Bérulle e ao Disquisitionum... bem, são verdadeiros
manuais de demonologia. Na minha opinião, Von Knigge vem seguindo um caminho
peculiar mas inegável nos últimos anos. Aceite isso como uma simples opinião, mas
acho que deveríamos trabalhar com ela até podermos confirmá-la ou descartá-la.
— Qual?
— Minha impressão é a de que o barão começou com um interesse pelas
ciências ocultas mais elementares. Queria possuir algum instrumento para adivinhar o
futuro, para descobrir o que o porvir nos apresenta. Se reparar, os primeiros livros estão
relacionados com a adivinhação. Trata-se de uma tentação bem humana e Von Knigge
sucumbiu diante dela como milhares de pessoas sucumbiram em outras épocas. Claro
que não parou aí...
— Está se referindo ao fato de que os demônios começaram a interessá-lo?
— Acredito que não imediatamente — respondeu Lebendig. — Da
adivinhação ele passou ao que se denomina, muito equivocadamente, magia branca,
quer dizer, a magia que tem, supostamente, boas intenções.
— Existe uma magia com boas intenções?
— Só nos contos de fadas, mas, por mais que haja pessoas que achem que
existe magia branca, isso não é verdade. A magia sempre, acredite em mim, sempre, é
maligna. Von Knigge passou por ela quase como um suspiro para mergulhar em seguida
na magia negra, aquela que tem uma origem explicitamente perversa.
— Sim, o salto parece não ter muita importância...
— Realmente. É isso mesmo. O barão passou do lado aparentemente bom da
magia para o abertamente maligno. Não vou dizer que ter feito isso num abrir e fechar
de olhos, mas... quase, quase. E isso não é tudo.
— Da magia passou aos demônios... — disse em voz baixa Koch.
— Realmente — concordou Lebendig —, e de que maneira: pelos manuais que
os descrevem, que permitem submetê-los aos propósitos pessoais e que ensinam como
combatê-los. Ele deve saber muito, e cor sobre os anjos caídos.
Um silêncio — interrompido apenas pela chegada de Emma com uma bandeja
— desceu, pesado e envolvente, sobre o aposento.
— Quer um pouco de açúcar no café? — perguntou Emma a Kock com aquele
tom de voz situado a meio caminho entre o som de um sininho e o gorjeio de uma ave.
O policial demorou alguns segundos para abandonar os pensamentos em que
tinha acabado de afundar como uma pedra num poço escuro.
— Não... não... — conseguiu dizer. — Não, não quero açúcar. Quero só café.
— O que é que a maçonaria tem a ver com tudo isto? — perguntou o policial
assim que a mulher tinha deixado a saleta.
Lebendig franziu os lábios e mexeu levemente a cabeça.
— Não é fácil dizer isso — começou a responder à pergunta. — É bem
provável que Von Knigge sentisse há muito tempo interesse pelo ocultismo e que tenha
chegado à conclusão de que a maçonaria lhe permitiria ter acesso aos mistérios ocultos
transmitidos em segredo há milênios. Afinal de contas, nas lojas conta-se toda essa
história de que existe um saber oculto que vem sendo transmitido desde tempos
imemoriais.
— E existe alguma verdade nisso? — perguntou interessado o policial.
— Pelo que sei, nem a mais remota. Só que os maçons inventam mentiras para
tornar sua mensagem mais atraente. Eles a relacionam com o templo de Salomão, com
os templários, com Pitágoras, com Platão... Se quiser a minha opinião...
— Quero, sim.
— Pois não passa de uma empulhação.
— Estou entendendo — disse o policial, convencido de que Lebendig não
exagerava nem um pouco —, e Von Knigge conseguiu engolir essa isca com anzol e o
próprio braço do pescador.
— Sim — respondeu Lebendig —, essa hipótese é cabível, mas também o
processo pode ter sido exatamente o inverso. Iniciou-se, primeiro, numa loja, talvez
impelido por todo esse palavrório sobre a fraternidade universal e, a partir daí, começou
a sentir um desejo crescente de saber mais e mais sobre as ciências ocultas. Em qualquer
dos casos, é preciso reconhecer que foi seguindo uma linha direta rumo ao
aprofundamento no mal e que fez isso como quem se prepara para se doutorar.
— Isso se encaixa com o que sabemos sobre Espartaco... — interveio Koch.
Lebendig tornou a franzir os lábios, numa expressão pensativa.
— Pode ser que sim, pode ser que não — disse. — Sem dúvida, Espartaco tem
uma vontade de destruição que poderíamos considerar diabólica, mas...
— Mas poderia não ser ele, pelas referências que faz ao cristianismo? —
perguntou Koch, procurando adivinhar a possível objeção de seu interlocutor.
— Não, não — respondeu Lebendig enquanto agitava a mão direita como se
quisesse espantar um inseto. — As menções ao cristianismo que aparecem na carta de
Espartaco não significam absolutamente nada. Satanás citou as Escrituras quando tentou
Cristo e houve um demônio que louvava Paulo. Não, como já disse o apóstolo, o Diabo
pode se disfarçar de anjo de luz.
Uma desagradável expressão de fastio surgiu no rosto do policial.
— Não podemos descartar a príori que Von Knigge seja Espartaco, mas, bem,
o barão me parece um pouco... um pouco teórico...
— E Espartaco é bem mais um carrasco — completou Koch.
— Sim, é o que eu acho — admitiu o erudito.
Koch bebeu de um só gole a xícara de café sem se importar que estivesse
fervendo. Sentiu o amargor do líquido preto subir da língua até as fossas nasais,
estendendo-se em seguida por sua garganta e seus ouvidos. Sentia-se irritado e bem que
se poderia dizer que estava procurando acalmar sua ira queimando a própria boca.
Apanhou o copo de água e engoliu o que restava, mais para aplacar sua ansiedade do
que para acalmar a sede.
— O senhor acha que Von Knigge pode nos levar a algum lugar? — perguntou
por fim com a língua ligeiramente dolorida.
Lebendig enlaçou as mãos como se fosse fazer uma oração e apoiou a boca nos
dedos. Durante algum tempo, ficou em silêncio, um silêncio tão reflexivo que Koch não
se atreveu a quebrá-lo.
— Sim, claro que sim — disse por fim. — É mais do que provável que Von
Knigge possa nos proporcionar alguma pista para chegar ate Espartaco.
— Se é que não é ele...
— Certo, se é que não é ele.
Koch ficou em silêncio por mais um instante e, finalmente, formulou a
pergunta obrigatória.
— Como?
— Bem... — respondeu Lebendig enquanto um sorriso iluminava seu rosto —,
o que acha de perguntarmos isso diretamente a ele?
Nove
Do caderno de estudos científicos do professor Lebendig
"PÔR OS PINGOS NOS IS." A expressão tem certa graça mas, sobretudo, do ponto
de vista desta nova ciência implica a formulação de uma grande verdade. A letra —
comprovei isso em centenas de casos — constitui um verdadeiro espelho de não poucos
aspectos da realidade. Vejamos, por exemplo, os is de herr Koch. Seus pingos aparecem
situados de forma regular. Nem muito longe nem muito perto do i, e exatamente em
cima. Não parece estranho, porque herr Koch é preciso e exato, presta atenção ao que
faz, demonstra uma excelente organização de suas idéias, cumpre com seu dever de
maneira rigorosa — moradores de Ingolstadt poderiam acertar seus relógios
simplesmente observando quando ele entra e sai de sua casa, e de seu escritório — e,
ainda por cima, possui uma capacidade de concentração realmente prodigiosa. Herr
Koch é um pingo bem posto sobre o i. Disso eu não tenho a menor dúvida.
Diferentemente de herr Koch, outras pessoas colocam os pingos de maneira
muito irregular. O grau de avanço ou a distância do pingo sobre o i são diferentes, às
vezes os suprimem... pois bem, esses indivíduos denotam imprecisão, personalidade tão
movediça quanto um cata-vento, tendência para o esquecimento, a distração, a
dispersão, falhas na hora de se concentrar e prestar atenção, e inclusive, uma
precipitação que pode acabar sendo realmente fatal em alguns casos. Quanto mais longe
— principalmente se for para executar um trabalho sério —, melhor.
D ez
Baviera, 1787
— O BARÃO ESTÁ À SUA ESPERA.
A pessoa que tinha acabado de falar era um homem alto, magro, talvez um
pouco entrado em anos, que vestia uma impoluta libré de mordomo. Apenas alguns
minutos antes, tinha observado Lebendig com uma expressão desagradável, misto de
surpresa e desdém, quando ele tinha lhe transmitido seu desejo de ver o barão Von
Knigge. Levando-se em conta que o aparato de lacaio que ele usava podia valer até dez
vezes mais do que a roupa do erudito, tal atitude talvez até fosse compreensível. No
entanto, Lebendig tinha conhecido muitas pessoas desagradáveis ao longo de sua vida
para permitir que o olhar de um criado com excessos de vaidade o afastasse de seus
propósitos. Tinha fingido não perceber aquela atitude, tinha abaixado a vista até sua
pasta e tinha tirado dela um papel dobrado.
— Entregue isto ao barão.
O mordomo cravou o olhar em Lebendig como se dessa maneira pudesse
convencê-lo a desaparecer o quanto antes da mansão. Não tinha conseguido. Lebendig
tinha sorrido e em seguida, com aquele calmo tom de voz que lhe parecia inato,
acrescentou:
— Tenho certeza de que ele ficará encantado de ler isso.
O lacaio franziu os lábios numa expressão de desagrado e permaneceu imóvel
como uma estátua. Ao que tudo indicava, estava esperando que Lebendig o
cumprimentasse e desaparecesse, mas este parecia não ter o menor interesse em se
comportar como o mordomo achava adequado.
— Entregue-lhe isso agora mesmo. Estou esperando a resposta.
Se estivesse a seu alcance, aquele criado teria soltado os cachorros em cima
dele enquanto lhe dava bengaladas. Mas não dispunha da autoridade indispensável para
adotar uma medida tão drástica. Dar um bofetão num subordinado, talvez, mas bater
num visitante por mais inconveniente que este parecesse... não, isso poderia lhe trazer
problemas com o barão. Depois de lhe atirar um olhar prenhe de desprezo, ele deu meiavolta e penetrou nas espessas sombras que se estendiam por uma dezena de passos do
local em que estavam.
Para sermos sinceros, ele não precisou esperar muito. Apenas meia hora mais
tarde, o homem retornou para lhe anunciar que Von Knigge estava à sua espera. Outra
pessoa teria aproveitado aquela situação para lançar um olhar de triunfo sobre aquele
sujeito impertinente. Certamente, Lebendig não se vangloriou de semelhante
comportamento. Tinha aprendido o suficiente da vida para evitar, como se fosse a peste,
a hipótese de humilhar alguém. Às vezes, isso parecia inevitável pela simples razão de
que havia pessoas suscetíveis e orgulhosas, mas pelo menos isso não era problema seu.
Limitou-se, portanto, a sorrir de forma leve e humilde, a inclinar cortesmente a cabeça e
a dizer:
— Eu o acompanho.
Fazia frio naquela casa. Muito frio. Até mesmo para alguém como Lebendig,
que precisava de um ambiente minimamente gélido para trabalhar à vontade, a
temperatura parecia baixa demais e, acima de tudo, obrigava-o a se perguntar o que
poderia provocar aquele fenômeno num dia ensolarado. Estava pensando em diferentes
explicações, que iam desde a proximidade de alguma corrente de ar até a espessura das
paredes, quando o lacaio que ia à sua frente parou diante de uma porta larga, alta e
polida, cujas ombreiras cederam, abrindo-se a uma luz que pareceu quase
enceguecedora.
— Herr barão... — começou a dizer o criado, mas não chegou a completar a
frase.
— Faça-o se sentar aqui, Hans — soou uma voz proveniente do outro lado das
imensas abas de uma poltrona preta como asa de corvo.
O mordomo indicou com a mão o lugar onde Lebendig deveria se sentar.
Era uma cadeira confortável, de couro marrom, localizada um pouco mais
abaixo do lugar que a voz ocupava. A voz. Ela tornou a soar friamente cortês, desta vez
dirigida ao inesperado visitante.
— Quer que lhe sirvam alguma coisa? Café? Um licor?
— Seria muito descortês acompanhá-lo no que estiver bebendo...? —
respondeu Lebendig, provocando uma nova expressão de desagrado no criado.
— Hans, sirva herr...
— Lebendig.
— Sirva herr Lebendig.
O lacaio deu alguns passos e se postou ao lado de uma mesinha machetada com
pés em forma de colunas salomônicas, situada a meia distância entre a voz e Lebendig.
Com um gesto, certamente praticado em milhares de ocasiões, fez uma reverência
diante de uma garrafa bojuda e cheia de um licor cor de âmbar, pegou-a pelo gargalo e
encheu uma taça primorosamente lavrada. Não derramou uma única gota, nem quando
fez aquele movimento nem quando depositou o recipiente sobre uma bandejinha de
prata que aproximou de Lebendig.
Ficou surpreso ao verificar a frieza do vidro. Como eles conseguiam manter a
temperatura tão baixa. Instintivamente, segurou a taça com as duas mãos num esforço
inútil de aquecer o licor. Foi então que percebeu que a lareira, uma imensa lareira de
pedra situada a apenas alguns passos, estava acesa. Não era simples rescaldo. Pelo
contrário, algumas chamas vermelhas, poderosas e insolentes estavam reduzindo a
cinzas uns troncos robustos. No entanto, apesar de tudo, não chegava até ele a menor
sensação de fraqueza proveniente daquele combate entre um fogo quase furioso e a
lenha.
— Hans, pode se retirar — voltou a dizer a voz, e o lacaio, depois de fazer uma
reverência servil, desapareceu do cômodo.
— Beba, herr Lebendig.
Aproximou a taça dos lábios e cheirou discretamente o licor. Nunca tinha sido
um bebedor e àquela hora da manhã não se sentia muito inclinado a virar uma taça de
álcool. No entanto, o aroma era realmente tentador. Cálido — a única coisa cálida
naquele aposento, certamente —, forte, encorpado. Molhou os lábios e permitiu que o
gole escorresse, lenta e suavemente, pelo interior da boca.
— É um vinho magnífico — disse a voz. — Quem me deu foi o próprio
Frederico o Grande. Em pessoa. Era um grande monarca, embora, para falar a
verdade, não tenha sido compreendido. Foi acusado de violento, de despótico, de
imoral... Não, definitivamente, não o entenderam. Na verdade, era culto, tocava flauta
melhor do que a maioria dos músicos profissionais que conheci, escrevia com muita
elegância era francês e...
— ...e era maçom — interveio Lebendig.
A boca da voz se abriu num esgar que o erudito interpretou como um sorriso.
Sem dúvida, era preciso reconhecer que se tratava de uma figura peculiar. Alto, esguio,
com uma peruca fora de moda cavalgando sobre seu crânio, com uma pele tão branca
que quase parecia transparente, todo o seu ser estava incluído naquela voz difícil de
definir, que brotava de seus lábios finos e cinzentos.
— Ele era — admitiu a voz —, e dos bons. Foi iniciado ainda bem jovem.
Quando seu pai, um protestante teimoso e rústico, atormentava-o com uma disciplina
injusta e cega. Ele já era o príncipe herdeiro, mas não queria se sentar no trono. Foi
então que conheceu a loja maçônica.
— Que o ajudou e o convenceu de que não deveria fugir mas assumir suas
obrigações reais. Pelo bem da espécie humana, certamente.
— Certamente — corroborou a voz após alguns segundos de hesitação.
— É uma pena que austríacos, franceses, ingleses, polacos e russos, só para
mencionar alguns, não pensassem o mesmo.
— Nem poderiam, herr Lebendig — afirmou a voz com uma entonação
estranhamente risonha. — Sempre que aparece um gênio, os ignorantes se agitam contra
ele. Ele se acha tão acima deles que não o compreendem e até chegam a odiá-lo.
— Esses ignorantes também estiveram prestes a derrotá-lo. Se o irmão czar
não o tivesse ajudado...
— O czar apenas cumpriu o seu dever - interrompeu-o a voz. - Ele também
tinha sido iniciado e sabia que existem causas muito mais nobres do que defender a
posse de um pedaço de terra por esta ou aquela nação. Para ajudar um irmão, é lícito
ceder duas cidades ou até uma região inteira. Quando ele resolveu abandonar seus
aliados e ajudar o grande Frederico...
— ...estava apenas ajudando a espécie humana a avançar pelo caminho do
progresso.
A voz sorriu, desta vez abertamente, igual ao jogador que percebe que as cartas
que seu adversário tem sobre a mesa acabam de lhe conceder um lucro inesperadamente
alto.
— O senhor é inteligente, herr Lebendig.
— Danke, barão. Certamente, imagino que deva achar que a queda daquele
czar não foi um preço muito alto. Seu povo, sem dúvida, não entendeu suas ações.
Inclusive as considerou uma traição...
— Ossos do ofício — comentou rapidamente a voz, ao mesmo tempo em que
estendia as mãos indicando que era uma coisa inevitável. — Às vezes, para ganhar oito
você tem que perder dois. Infelizmente, o rei Frederico morreu no ano passado.
Lebendig voltou a dirigir o olhar para a lareira. Como era possível que aquela
fogueira não proporcionasse um pingo de calor?
— De qualquer forma, imagino que não tenha vindo me ver para falarmos de
História. De onde copiou o texto que entregou a Hans?
Reprimiu um calafrio. Não tinha sido provocado pela pergunta, que, mais cedo
ou mais tarde, teria que ser formulada, mas pela atmosfera gelada. Suas articulações
tinham começado a doer e ele bebeu um gole da taça procurando aquecer o corpo. O
sabor de madeira e do álcool lhe pareceu agradável, mas a bebida não lhe infundiu o
menor calor. Perguntou a si mesmo se não teria sido melhor pedir um café quente.
— De um de meus livros — respondeu, procurando não tremer de frio.
— É mesmo? Tem outros como esse?
Lebendig concordou com a cabeça, temeroso de que a voz pudesse intimidá-lo.
— Curioso — disse o nobre enquanto desenhava com a mão direita um signo
maçônico de reconhecimento que Lebendig, praticamente enrijecido, identificou, mas
ao qual não respondeu.
— Devo lhe dizer — prosseguiu Von Knigge — que não tenho nenhum
interesse nessas fórmulas para seduzir mulheres como a que aparece no papel que o
senhor me deu. Não, a idéia de pegar o sangue de uma pomba e desenhar com ele o
corpo de uma mulher nua no corpo de uma cadela...
— Também não lhe interessa como conseguir poder sobre os demônios para
que o ajudem na tarefa da sedução — interrompeu-o Lebendig, esforçando-se para que a
voz não o intimidasse.
Von Knigge sorriu. A pergunta não parecia inquietá-lo. Pelo contrário, dava a
impressão de que ela o tinha divertido.
— Essas são palavras grandiosas, herr Lebendig — disse a voz com uma
entonação levemente risonha. — Inclusive, se me permitir, devo ressaltar que não são
isentas de perigo. A posse de livros de bruxaria, já nem vamos dizer daqueles que
ensinam como entrar em contato com anjos caídos... bem, o senhor sabe de sobra que é
proibida pela Santa Madre Igreja. Poderiam prendê-lo e condená-lo.
Lebendig observou, subitamente surpreso, que uma neblina esbranquiçada
começava a sair da lareira. Piscou para dissipar aquela impressão, mas, para sua
surpresa, não adiantou nada.
— O senhor tem razão — reconheceu o erudito —, mas tenho certeza de que
não sou o único a incorrer nesse crime.
— O fato de haver muitos ladrões não significa que algum deles não vá dar
com os costados na cadeia — respondeu a voz. — Beba. Por acaso o licor não lhe
agrada?
Lebendig sorveu um novo gole da taça que agora começava a lançar brilhos
matizados. Olhou na direção da lareira e observou como a neblina estava ficando mais
espessa e ia assumindo uma forma vagamente corpórea. Santo Deus, o que era aquilo?
— Ima... imagino que seja assim — respondeu, sentindo que a língua parecia
estar crescendo em sua boca.
— Seria muito indiscreto de minha parte lhe perguntar como encontrou o livro?
— perguntou a voz com um toque quase meloso em suas palavras.
— Es... Espartaco me deu de presente.
O rosto de Von Knigge escureceu como se uma nuvem negra tivesse passado
sobre ele.
— Espartaco, hein? O chefe dos gladiadores que se levantaram contra o
poderio de Roma?
Um calor gasoso e opressor, proveniente do umbigo, subiu pela barriga e pelo
peito de Lebendig até alcançar seu rosto como se fosse uma bofetada.
— Não... claro que não — respondeu Lebendig. — Estou me referindo a... a
seu... amigo.
A voz não emitiu som algum. Limitou-se a deixar que as sobrancelhas
arqueassem até se transformarem em alguma coisa parecida com dois acentos
circunflexos. Foi um gesto suficientemente explícito e incontrolado para que Lebendig
desconfiasse de que tinha chegado ao fim de sua jornada. Aquele homem, o barão,
conhecia Espartaco. Quanto a isso, não tinha a menor dúvida. Abriu a boca com a
intenção de encurralar Von Knigge de uma forma definitiva, mas, embora tentasse, não
conseguiu pronunciar uma única palavra. Era como se seu corpo tivesse se transformado
num bloco de gelo sulcado por um rio de fogo que embargava sua boca, impedindo-o de
continuar falando. E além disso... a neblina. Santo Deus, em que aquela massa de
sombra, fumaça e trevas tinha se transformado? Piscou uma, duas, três vezes,
procurando clarear a vista. Não conseguiu. Primeiro, foi uma pontada na altura do peito;
depois, a sensação de que seus membros tinham-se transformado em pedra gélida;
finalmente, um peso, insuportável e acelerado, que o precipitou contra o chão. Desabou
da cadeira e sentiu, enrugado e desagradável, o tecido do tapete contra sua face. Depois,
ouviu alguns passos e observou os sapatos com fivela dourada do barão. Em seguida,
um negror absoluto que precedeu em um segundo a mais escura e profunda
inconsciência.
O barão Von Knigge se aproximou do corpo desfalecido de Lebendig. Deu
uma olhada e lhe ministrou dois vigorosos pontapés num dos flancos. O erudito não
emitiu nem sequer um gemido.
— Estúpido — disse a voz, com um desprezo tão gélido quanto o ambiente do
aposento.
Onze
Do caderno de estudos científicos do professor Lebendig
NEM
TODAS AS PESSOAS
desenham sua escrita da mesma maneira. Se
observarmos o ovalado das letras — o mais fácil de ver é o da letra o, mas também são
muito evidentes em letras como o a ou na cabeça do g —, veremos que, simplificando,
os traços são predominantemente curvos ou arredondados; em outras, angulosos — algo
muito típico naqueles compatriotas que ainda recorrem à escrita gótica — e até,
ocasionalmente, podem apresentar um aspecto quadrado.
No caso de nos depararmos com uma escrita curva, poderia indicar um certo
caráter culto e expressividade, mas não é menos verdade que apareceria um predomínio
do sentimento sobre a razão e uma tendência a se adaptar que, em alguns casos, poderia
chegar a indicar preguiça.
A escrita angulosa, pelo contrário, é um sinal de dureza. A energia, o
predomínio da razão sobre o sentimento, a disciplina, a intransigência, e até o
ressentimento, são alguns dos traços derivados deste tipo de escrita. Às vezes, eu me
perguntei se não reflete um pouco o caráter germânico, porque muitos escrevem desde
criança com os traços, especialmente tendendo para o anguloso, da escrita gótica. Mas
esse é um outro assunto, o de saber se, modificando a letra, podemos também alterar
nossa alma. Preciso me dedicar a ele. Há de ser em outro momento.
Quanto à escrita quadrada, ela se distingue porque a base das letras apresenta
essa forma. Confesso que não encontrei muitos casos deste tipo de escrita. Em todas as
vezes em que tive essa oportunidade, tratava-se de pessoas de refinado gosto estético e
não era raro que fossem poetas e escritores. Também tenho que dizer, em nome da
verdade, que não poucas vezes eram pessoas atormentadas excessivamente pelo
supérfluo e pela aparência. Talvez seja um problema decorrente de se procurar encaixar
a linguagem em formas concretas. Desconheço a resposta, mas procurarei esclarecer no
futuro.
Doze
Baviera, 1787
TRATOU
DE ABRIR OS OLHOS,
mas sentiu sobre as pálpebras um peso
insuportável, como se tivessem colocado sobre elas dois enormes sacos de farinha.
Tentou abri-los de novo e, desta vez, umas fendas bem pequenas apareceram em seu
rosto por um breve instante. O aposento mal estava iluminado, mas Lebendig sentiu
como se um clarão de luz que enceguecia se chocasse violentamente contra suas pupilas
e chegasse, como um soco ministrado por um gigante, até o fundo do crânio. Deixou os
olhos se fecharem sem oferecer a menor resistência. Não tinha nenhuma força e só
conseguia sentir um acúmulo de diferentes pesos sobre cada uma das partes de seu
corpo. Os braços, as pernas, as mãos, o peito, tudo, absolutamente tudo estava oprimido,
esmagado, contido. O que tinha lhe acontecido? Tinha certeza de que não o tinham
golpeado, mas como então o tinham reduzido àquele estado? O licor! Céus, tinha sido
um grave erro aceitar uma bebida de Von Knigge. Como podia ter-se comportado de
uma forma tão estúpida? Se, em vez de um narcótico, tivesse sido algum tipo de veneno,
agora ele estaria do outro lado da linha da morte. Sim, quanto a isso ele não tinha menor
dúvida. Interrompeu suas reflexões e procurou se mexer. Pareceu-lhe impossível e, por
um momento, temeu ter perdido a mobilidade de seus membros. A possibilidade de que
tivessem quebrado seu pescoço ou sua espinha dorsal colocou um peso adicional e
angustiante sobre seu peito. Precisava verificar se aquela suspeita opressiva
correspondia ou não à realidade. Respirou fundo, reteve o ar por alguns segundos e
depois, lenta e cuidadosamente, deixou-o escapar por seus lábios entreabertos. Repetiu
aquela operação meia dúzia de vezes até que se sentiu suficientemente relaxado e, ato
contínuo, procurou se concentrar nas extremidades. Seus olhos estiveram a ponto de se
encher de lágrimas quando descobriu que podia mexer os dedos dos pés. Não que fosse
fácil, mas, no momento, parecia suficiente. Bem. Agora tinha que conseguir a mesma
coisa com as mãos. Demorou um pouco mais, mas, pouco a pouco, a sensação de
dormência que as impedia foi cedendo lugar a um leve formigamento e a uma
sensibilidade crescente. Estava prestes a tentar se levantar quando um ruído de vozes o
fez voltar a uma imobilidade absoluta.
— O que acha que devemos fazer com ele? — perguntou uma voz áspera,
marcada pelo sotaque camponês da Baviera.
— O patrão quer apenas que ele fale — respondeu alguém que lembrou a
Lebendig a pronúncia do mordomo Hans. Sim, era possível que fosse ele, mas para ter
certeza precisava ouvir um pouco mais. — Ele deseja saber por que ele veio à mansão, o
que é que ele queria, quem o mandou. Você deve arrancar até o último resquício de
informação que houver nesse corpo que nunca trabalhou.
Lebendig era um homem quieto e tranqüilo, e até naquela situação tinha sabido
conservar a calma. No entanto, não pôde evitar de se sentir ofendido ao ouvir as últimas
palavras proferidas pelo mordomo. Já era bastante escandaloso que o tivessem dopado e
que agora estivessem dispostos a interrogá-lo. Como aquele lacaio sinistro se atrevia a
dizer que ele nunca tinha trabalhado? Mas quem aquele mentecapto pensava que era?
Alguém que, com certeza, não sabia fazer outra coisa a não ser obedecer a um barão que
sentia prazer cantando louvores a um destruidor de nações como Frederico II da Prússia
e colecionando livros de magia negra.
— Entendi — disse a voz de camponês bávaro. — Até aí eu entendi. Já sei o
que nosso patrão deseja. Agora me diga até onde devo me empenhar.
— Até onde precisar — respondeu laconicamente aquela figura que Lebendig
já tinha identificado, sem nenhuma dúvida, como Hans.
— Bem, bem. Isso eu sei fazer — disse o camponês. — E... e depois? Um
silêncio desagradável e opressivo se seguiu à última pergunta.
— Livre-se dos restos — respondeu Hans. — E livre-se direito. Não há
nenhum interesse em que acabem descobrindo o cadáver, como da última vez.
— Ora, vamos, mein herr — protestou o camponês. — Ninguém tomou
conhecimento do que aconteceu com os Minirvais... Não foi tão mal...
Um barulho, que Lebendig identificou com um roçar violento de roupa, mas
que também podia ser o de um papel sendo amassado, apagou o eco da última frase.
— Ouça, idiota — disse Hans. — O patrão gosta de você e não vou discutir
com ele por sua culpa, mas para mim você não passa de um aldeão ignorante. Você não
matou aquele linguarudo, ele fugiu e esteve a ponto de contar tudo. Se, por culpa da sua
estupidez, as autoridades tivessem descoberto quem são os Minirvais, como você diz, se
simplesmente tivessem tomado conhecimento de sua existência, eu mesmo teria
arrancado as suas entranhas e as teria colocado como um laço em volta do seu pescoço.
Desta vez, não falhe. Entendeu?
— Sim... sim, claro... entendi... claro que sim...
— Está avisado — encerrou a questão Hans, com um tom severo. — E agora
vá recolher os pertences deste porco.
Lebendig escutou com nitidez os homens deixando o aposento e, ato contínuo,
o som de seus passos se perdendo. Quando deixou de percebê-los, procurou se mexer.
Foi nesse momento que ele percebeu que o tinham amarrado. Podia sentir as mãos, os
pés, as pernas, mas umas argolas que lhe pareceram metálicas mantinham seus
tornozelos e seus punhos presos contra uma prancha que, pelo tato, parecia de uma
madeira rústica e áspera. Santo Deus! Ou estava muito enganado ou tinham acabado de
o prender a uma espécie de cavalo de tortura. Com certeza pretendiam interrogá-lo!
Respirou fundo, acumulou forças e puxou os braços. As argolas de metal mostraram ser
extraordinariamente fortes. Não, não tinha a sensação de que pudesse se safar daquelas
ligaduras.
O erudito tinha lido o suficiente sobre os interrogatórios da Inquisição para
poder fazer uma idéia aproximada do que o esperava. Amarrado àquela prancha, o
camponês poderia lhe aplicar um ferro em brasa, obrigá-lo a beber água com um funil
ou retorcer seus membros até que ele confessasse. A idéia de contar uma parte da
verdade, pouco a pouco, com a intenção de convencê-lo e de esperar depois uma morte
rápida e o mais indolor possível lhe pareceu, de repente, uma aspiração de felicidade.
No entanto, era inteligente o bastante para compreender que não seria uma tarefa fácil,
que, na verdade, constituía um esforço que beirava o impossível. Uma vez que tivesse
colocado à disposição de seu torturador aquelas informações, o interrogatório não
acabaria. Em seguida, ele iria querer saber quem o tinha ajudado ("só eu, só eu,
ninguém mais"), como tinha chegado até o barão ("pela tinta, sim, a tinta"), quem era, o
que o tinha encorajado e, principalmente, o que ele sabia sobre Espartaco. Não poderia
responder satisfatoriamente a essas três últimas perguntas: primeiro, porque estava
decidido a impedir que alguém pudesse atingir Emma, o rapaz e Koch; e segundo
porque, para ser sincero, não sabia nada sobre Espartaco. Ao chegar a este ponto — não
restava dúvida —, a tortura se intensificaria e só restaria a ele confiar que Deus lhe
proporcionasse uma parada cardíaca ou uma embolia que o afastasse deste mundo antes
de revelar o que desejava guardar para sempre em seu coração. Um suor frio e um peso
doloroso sobre o peito se combinaram até dificultarem sua respiração.
— Deus bendito, ajudai-me! Eu vos suplico em nome de vosso amado filho,
nosso Senhor Jesus, o Cristo! — rezou Lebendig com os lábios entreabertos, mas sem
emitir um único som.
Estava acabando de pronunciar a última palavra quando ouviu com nitidez as
passadas do camponês, que entrava no aposento. Foi um ruído leve, quase suave, mas
para Lebendig se traduziu num efeito tão inquietante como o provocado pela chegada de
um esquadrão de cavalaria cujos integrantes disparassem suas armas contra os quatro
pontos cardeais.
— Acorde, seu filho-da-puta — gritou o camponês, ao mesmo tempo em que
lhe aplicava um soco no flanco esquerdo.
Lebendig bem que teria querido manter os olhos fechados e prolongar ao
menos por alguns instantes a aparência de que estava adormecido, mas a violência do
golpe não lhe permitiu isso. A dor, aguda e insuportável, obrigou-o a abrir uns olhos
cheios de lágrimas.
— Ah, puxa. Você já está a postos, hein? Melhor assim, melhor assim... O
homem apanhou um tamborete, arrastou-o sobre os ladrilhos até ficar próximo à barriga
de Lebendig e se sentou.
— Escute bem, amiguinho — disse, lançando sobre o erudito um bafo que
cheirava a molares cariados e álcool de má qualidade. — Mais cedo ou mais tarde você
vai acabar falando. Ninguém, absolutamente ninguém, conseguiu uma única vez ficar
calado. A única diferença entre uns e outros é que demoraram mais ou demoraram
menos em afrouxar. Meu conselho, e é o conselho da experiência, é que você fale o
mais cedo possível. Se falar, se me disser tudo o que eu quero saber, usarei isto.
O bávaro mostrou a poucos dedos de Lebendig uma corda com dois nós que
ficou balançando como se zombasse de sua desgraça.
— Você fala e eu o estrangulo. Será uma morte rápida e sem dor. Você quase
não vai notar. Mas se demorar a falar, se tentar me enganar, se me fizer perder tempo...
bem, preste atenção, prolongarei sua agonia até que você amaldiçoe dez mil vezes a
hora em que sua mãe o pariu.
— Não estou pensando em mentir — disse Lebendig ao mesmo tempo em que
notava um peso incômodo sobre a língua.
— Melhor assim, melhor assim — sorriu o torturador enquanto lhe atirava uma
nova baforada de fetidez bucal. — Porque você nem imagina, não imagina mesmo, o
quanto um homem pode demorar a morrer.
— O senhor pode começar quando quiser — murmurou Lebendig.
— Bom, assim é que eu gosto — sorriu o camponês, a quem o simples fato de
ser chamado de senhor tinha provocado uma euforia infantil. — Assim é que eu gosto.
Comporte-se bem. Vou saber agradecer. Você vai ver. Terá uma morte rápida.
Lebendig respirou fundo. Que curiosa podia ser a vida de um ser humano,
quando o que mais se desejava já não era a velhice, ou a boa sorte, ou a fortuna, ou o
amor, mas uma agonia breve.
— Vamos começar. Primeira pergunta. Por que você foi procurar o barão Von
Knigge?
Não era um bom começo, pensou Lebendig. A resposta conduzia diretamente a
Koch.
— O barão é um apreciador das ciências ocultas — respondeu. Um soco no
flanco arrancou de Lebendig um uivo de dor.
— Não banque o sábio comigo. Está me ouvindo? Fale de uma forma que eu
possa entender ou vai ser pior para você.
Lebendig procurou recuperar o fôlego ao mesmo tempo em que ansiava poder
levar a mão ao lugar onde a manopla do bávaro tinha colidido com seu corpo.
— O barão é um homem que lê muito — começou a dizer Lebendig com
dificuldade, como se o ar não conseguisse chegar até seus pulmões. — Um de seus
interesses... uma das coisas de que ele mais gosta são os livros que falam sobre como
adivinhar o futuro e como evocar os mortos... essas coisas são chamadas de ciências
ocultas.
O bávaro soltou um grunhido. Dava a impressão de que estava informado —
ou pelo menos achava que sim — sobre o que tinham acabado de lhe dizer.
— Eu também sou apreciador dessas ciências... — continuou Lebendig
enquanto sentia que a dor ia se tornando ainda mais insuportável. Não ficaria surpreso
em saber que tinha quebrado alguma costela e por isso continuar respirando lhe custava
tanto.
— Você pode adivinhar? — interrompeu-o surpreso o camponês. Alguma
coisa no íntimo de Lebendig o advertiu de que ele tinha acabado de chegar a um lugar
semelhante a um poço. Se agisse de forma correta, talvez pudesse conseguir um alívio
no meio daquela situação, mas se se enganasse... ah, se cometesse o menor erro cairia
ainda mais fundo.
— Para se adivinhar, é preciso sempre algum objeto em que o futuro se reflita
— disse Lebendig, com a sensação de que seu pulmão tinha ficado esmagado como se
fosse um odre de vinho vazio. — Alguns o vêem numa bola de cristal, outros nas mãos,
outros nas cartas...
— Sim — exclamou o bávaro ao mesmo tempo em que dava uma palmada na
própria coxa. — Isso é verdade. Uma cigana disse à minha tia Gretchen que ela teria
gêmeos e, puxa vida, ela acertou. Viu isso nas cartas. Você lê o que vai acontecer nas
cartas?
— Não... — balbuciou Lebendig pensando que se encontrava mais perto do
poço do que nunca... — mas... mas posso saber como é uma pessoa vendo sua letra.
— As pessoas têm uma letra? — perguntou surpreso o carcereiro.
— Estou querendo dizer que, vendo como uma pessoa escreve, posso...
Não terminou a frase.
— Que droga! Pensei que fosse arrancar alguma coisa disso tudo além de me
cansar e suar, mas estou vendo que não. Quer saber? Eu não sei ler nem escrever.
A decepção tomou conta de Lebendig, como se ele tivesse chegado até a beira
do poço só para descobrir que havia sobre ele uma tampa de metal presa com um
cadeado.
— E é uma pena... do jeito que a gente se aborrece aqui — lamentou-se o
camponês. — Bem, vamos continuar... Onde é que estávamos?
— Você não teria por aí alguma coisa que alguém tenha lhe escrito... —
atreveu-se a dizer Lebendig, num último esforço de retardar o início da tortura.
O bávaro levou a mão à cabeça e começou a coçá-la como se seus dedos
estivessem impulsionados por uma mistura quase mágica de indecisão e curiosidade. De
repente, um sorriso aflorou em seus lábios, ele deu um salto e se dirigiu a passos largos
até uma extremidade do cômodo. Remexeu em algo que Lebendig não pôde ver e, ao
fim de algum tempo, retornou com um papel que colocou diante dos olhos do erudito.
— Como é a pessoa que escreveu isto? — perguntou com um sorriso
semelhante ao do menino que desafia outro a urinar mais longe do que ele.
Lebendig observou o papel. Era uma folha em que havia umas vinte linhas
escritas. O suficiente.
— É um verdadeiro avarento — começou a dizer penosamente. — Fica difícil
pensar em alguém que custe mais a soltar uma moeda.
O erudito ficou em silêncio e lançou um olhar de soslaio na direção do bávaro.
O camponês estava realmente impressionado. Tanto que tinha a mandíbula inferior
caída, como se ela tivesse se soltado sem que nada a segurasse.
— Isso... isso é verdade — murmurou o camponês. — Ora se é...
— Além do mais, trata mal as pessoas — continuou Lebendig. — Muito mal.
Bem, vamos ser mais exatos. Dá patadas nos que estão abaixo dele, mas lambe as botas
de seus superiores.
— Que me enforquem... — exclamou o bávaro enquanto dava uma palmada.
— É isso mesmo, é isso mesmo. Pela glória de minha santa mãe. É a pura verdade.
— E além do mais... além do mais, gosta dos jovenzinhos — acrescentou
Lebendig.
— Das jovenzinhas, você quer dizer — corrigiu surpreso o carcereiro.
— Não, quero dizer os jovenzinhos. Este homem, porque é um homem e já de
certa idade, na verdade gosta mesmo é dos rapazes.
O camponês arrancou o papel das mãos de Lebendig e deu um salto para trás,
derrubando o tamborete. Sobre as feições de seu rosto, estava estampado o maior dos
horrores. Como se tivesse acabado de contemplar as garras de um animal terrível e
fabuloso disposto a se atirar sobre ele.
— Então foi ele... — balbuciou enquanto cravava os olhos no papel como se ali
pudesse ver fatos que muito poucos conheciam. — Ninguém sabia quem tinha podido
fazer aquilo com o Rudi. Ninguém. E foi ele...
— Solte-me agora mesmo — disse Lebendig com uma entonação de
autoridade na voz suficiente para pôr em posição de sentido um regimento de
granadeiros.
O camponês afastou os olhos do papel e os dirigiu, tomado de um profundo
assombro, ao erudito.
— Você me ouviu — continuou falando Lebendig como se em vez de estar
estendido no cavalo de tortura estivesse montado num corcel. Tire-me estas amarras
imediatamente. Faça isso e não lhe acontecerá nada. Porque se você se recusar... se você
se recusar, ai de você.
O interpelado abriu e fechou a boca várias vezes como se fosse um peixe que,
arrancado de seu meio natural, procurasse desesperadamente sobreviver. Quem era
aquele homem estendido diante dele? Seria possível que tivesse poder suficiente para
lhe fazer mal até preso à prancha? Enquanto procurava responder àquelas perguntas, um
tremor incontrolável, como se sofresse de epilepsia, começou a sacudir suas pernas. Não
durou muito. De repente, sentiu uma dor aguda no cocuruto e tudo ficou envolto nas
mais negras trevas.
Treze
Do caderno de estudos científicos do professor Lebendig
SE
TIVESSE QUE ESCOLHER
um aspecto desta nova ciência que com tanto
esforço estou delimitando, certamente eu ficaria com a assinatura. Com o passar do
tempo, cheguei a me convencer de que uma parte muito importante do que podemos
descobrir sobre o caráter de uma pessoa já fica exposto quando imprime seu nome ao pé
de uma carta, de um documento ou de um recibo. Não se trata unicamente dos traços
que aparecem nessas duas ou três palavras — traços que, com um pouco de sorte,
poderíamos encontrar também no restante de sua escrita. Não. A assinatura nos dá
muito mais. E tudo deriva da forma como ela se diferencia da letra comum, ou como se
inclina ou se situa no papel.
Uma assinatura colocada muito à esquerda em relação ao texto escrito nos
mostraria uma pessoa que tem medo, que foge, que se fecha dentro de si mesma. Se o
deslocamento para a esquerda é mais moderado, estamos diante de alguém inibido,
tímido que, muito provavelmente, torna-se às vezes presa da nostalgia do passado.
Se formos agora para o outro lado do papel e virmos a assinatura muito à
direita, estaremos diante de uma pessoa apaixonada, mas com uma paixão que poderia
ceder à cegueira e à agressividade. Na direita, pelo contrário, seria um bom sinal. Isso
nos falaria de uma pessoa decidida e com iniciativa, com segurança em si mesmo, com
disposição para os dias vindouros.
Em geral, como acontecerá no dia do Juízo tal qual Mateus narra no capítulo
25 de seu Evangelho, estar à direita é sempre melhor sinal do que estar situado à
esquerda.
Finalmente, uma assinatura colocada no centro — e isso agradaria a Aristóteles
— mostra-nos uma pessoa reflexiva, em quem a razão predomina sobre o sentimento.
Catorze
Baviera, 1787
KOCH
FECHOU A PORTA
depois de entrar. Sua expressão era séria, rigorosa,
profissional, mas Lebendig o conhecia o suficiente para saber que ele estava satisfeito.
— Ele confessou — disse reprimindo um sorriso de alegria que lutava para
saltar em seus lábios.
— Imagino que o relato deve ter sido interessante... — comentou Lebendig,
dando a deixa para que Koch pudesse lhe contar o que tinha conseguido averiguar.
O policial se sentou, serviu-se de uma xícara de café, bebeu um gole e expeliu
o ar pelo nariz, num gesto de cansaço e de dever cumprido.
— Chama-se StefanWeiss — começou a dizer Koch depois de limpar os lábios
com um guardanapo bordado. — Há muito tempo, trabalhava como ferreiro nas terras
do barão Von Knigge. Ao que parece, é o ofício da família desde muitas gerações. Há
alguns anos, durante uma briga numa taberna, ele se indispôs com um rapaz de sua
idade. É o que já se sabe... excesso de bebida, excesso de luxúria...
— Falta de ordem — disse Lebendig, que intuía a forma como Koch
qualificaria o episódio.
— Sim, exatamente, falta de ordem — prosseguiu Koch sem captar a ironia de
seu colaborador. — O fato é que resolveu se vingar. Esperou o infeliz na floresta e o
golpeou com um martelo na cabeça. Morte instantânea.
— E ninguém soube de nada? — perguntou Lebendig espantado.
— O primeiro a saber foi o barão. Stefan foi procurá-lo com lágrimas nos olhos
para lhe contar o que tinha acontecido e implorar sua ajuda. Parece que no início queria
apenas que o aconselhasse sobre como se entregar à justiça nas melhores condições.
Mas o fato é que Von Knigge lhe garantiu que ele poderia sair muito bem de toda
aquela dificuldade.
— Não se deu início a uma investigação policial? — indagou Lebendig.
— Claro que sim. Assim que soubemos da morte — disse Koch num tom
zangado. — O corpo foi encontrado por um grupo de camponesas e imediatamente
pusemos mãos à obra.
— E então?
— O médico que examinou o cadáver garantiu que a morte tinha sido
acidental. Supostamente, o rapaz tinha tropeçado com tanto azar que tinha batido com a
cabeça contra uma raiz que sobressaía e tinha fraturado o crânio.
— Claro..." Suponho que Stefan tenha ficado muito agradecido ao barão.
— O senhor supõe corretamente. A partir desse mesmo instante, o barão não
parou de lhe cobrar o favor. Tinha o ferreiro em suas mãos, alguma dúvida?
— E o utilizava como torturador?
— Sempre que podia — admitiu Koch. — Se ele não está enganado em suas
lembranças, nos últimos cinco anos esse imbecil tirou a vida de pelo menos meia dúzia
de infelizes.
— Não, nada mal — disse Lebendig enquanto passava a mão direita pelos
lábios. — Deve ter feito isso muito bem para que ninguém ficasse sabendo...
— Eram sempre pessoas que estavam de passagem. Alguma moça que aparecia
na época da ceifa, um jornaleiro...
— E como fazia para sumir com os cadáveres?
— Ele os enterrava perto do local onde o encontramos. Enviei Steiner com
alguns agentes providos de pás para verificar esta parte da confissão. É provável que
nem se lembre com exatidão das pessoas que tirou deste vale de lágrimas.
— Quando... quando conversamos — disse Lebendig engolindo em seco — ele
fez referência a um tal... Rudi, isso, Rudi.
— Foi ajudante dele durante uma temporada — respondeu o policial. — Ele o
tinha acolhido e estava lhe ensinando o ofício. Não parece que o ajudasse a perpetrar os
assassinatos, mas um dia... apareceu morto. Morto e violentado, para sermos mais
exatos. Stefan não teve nada a ver com o crime. Muito pelo contrário. Disseram-lhe que
tinha sido um forasteiro, que procurariam encontrar o culpado... Por certo, ele insiste em
que o senhor lhe disse, disse não, adivinhou que o assassino tinha sido Hans, o
mordomo do barão.
— Absolutamente — esclareceu Lebendig. — Eu me limitei a indicar que o
homem que tinha escrito um bilhete que ele me mostrou sentia certa... digamos,
predileção pelos rapazinhos.
— Estou entendendo — concordou o policial. — E da leitura desse texto o
senhor deduziu que este homem podia tirar a vida de alguém?
— Em circunstâncias normais, certamente não — respondeu Lebendig —, mas
se ele se viu rejeitado, se chegaram a insultá-lo, se alguém zombou dele... não posso
garantir que fosse o culpado, que isso fique claro, mas, sem dúvida, é o suspeito ideal.
— Eu tinha pensado alguma coisa parecida — reforçou Koch. — O mais
seguro é que Hans tenha se aproximado do rapaz e se insinuado, e até tenha procurá-lo
tocar nele, mas o jovem não só o rechaçou como além do mais riu dele. Provavelmente,
insultou-o, desprezou-o e o episódio acabou em homicídio. É surpreendente o número
de mortes que têm origem com algumas palavras de desdém. Essa parte nós
esclareceremos também, certamente.
— Stefan sabia alguma coisa sobre Espartaco?
— Não, nem uma palavra — respondeu o policial —, mas é realmente verdade
que o mordomo insistiu em que ele devia verificar o que o senhor sabia. Não se enganou
em suas deduções. Espartaco tem alguma relação com Von Knigge embora, pelo menos
no momento, desconheçamos que relação é essa.
— Bem, herr Koch — disse Lebendig com um sorriso —, só posso lhe dar os
parabéns.
O policial balançou a cabeça, embargado de satisfação. Sim, a verdade é que
ele estava transbordante.
— Também tenho de lhe agradecer — continuou o erudito. — O senhor
chegou justo antes que Stefan decidisse se iria deslocar meus ossos ou me soltar,
embora eu tivesse medo de que teria optado pelo primeiro. Como soube que eu estava
ali?
— Eu não sabia — começou a dizer Koch —, mas tinha a certeza de que, se eu
tivesse oferecido proteção, o senhor a teria recusado de imediato.
Lebendig se limitou a respirar pelo nariz quando ouviu as últimas palavras do
policial.
— Achei prudente colocar um agente perto de sua casa. Alguém que o senhor
não conhecesse como Steiner, que é um rapaz competente, mas às vezes se distrai.
Naturalmente, fiz isso sem lhe dizer nada. Quando o senhor se dirigiu à mansão de Von
Knigge, meu homem o seguiu. Estava sozinho, de forma que teve que deixá-lo assim
que o senhor chegou à casa do barão. Ali conseguimos perdê-lo de vista, mas, graças a
Deus, retornamos antes que Stefan o tirasse de lá.
— E como sabia que Stefan estava me tirando dali?
— Eu não sabia, na verdade, mas a carruagem... Decidi que o mais prudente
era segui-lo. Não foi fácil, mas conseguimos.
— Em algum momento me perderam de vista?
— Certamente que não — respondeu Koch com um timbre de orgulho na voz.
— E então por que demoraram tanto a entrar? Se aquele animal não tivesse um
pouco de curiosidade, vocês poderiam ter me encontrado com um braço transformado
em mingau...
— Um de nossos agentes esteve a ponto de torcer um tornozelo — respondeu
um tanto irritado o policial. — Custou-lhe muito retornar ao caminho, mas ele
conseguiu. Fez isso cumprindo com seu dever e, graças a isso, o senhor salvou a vida.
— Sem dúvida. O senhor deve me dizer quem é esse homem. Gostaria de
trocar uma palavra com ele.
— Está se recuperando em casa e demorará alguns dias a voltar ao trabalho,
mas, em todo caso, ele se limitou a cumprir seu dever.
Lebendig não quis insistir. Estava realmente agradecido a Deus, a Koch e à
polícia de Ingolstadt, e a última coisa que desejaria naquela hora era dar a impressão de
que era um ingrato. Por outro lado, havia questões mais importantes a serem
esclarecidas.
— O que sabe sobre Von Knigge?
Koch sorriu e em seu rosto se desenhou a satisfação que ilumina as feições do
colegial a quem perguntam a única matéria que ele sabe.
— Passei uma notificação ao juiz ao mesmo tempo em que enviava meus
melhores homens à mansão de Von Knigge. Quando o magistrado chegar, encontrará
todas as provas expostas e classificadas. De uma tacada, teremos solucionado meia
dúzia de crimes e estaremos a um passo de prender esse Espartaco. Esclareceremos até
por que o médico afirmou que a primeira vítima de Stefan tinha morrido
acidentalmente. Tudo, absolutamente tudo, ficará resolvido. Tudo, absolutamente tudo,
voltará a ficar em ordem. Posso lhe dar a minha palavra, herr Lebendig.
O erudito se limitou a acariciar o próprio queixo e a se perguntar, mais uma
vez, como estariam Emma e o rapaz. De repente, uma sombra lhe cobriu a fronte como
se o sol tivesse sido encoberto por uma nuvem.
— Herr Koch - disse. — Um grupo chamado Minervis lhe diz alguma coisa?
Quinze
Do caderno de estudos científicos do professor Lebendig
A
ESCRITA
É
UM MEIO
de comunicação e, de fato, foi inventada com essa
finalidade. No entanto, todos tivemos oportunidade de nos deparar com tipos de letras
que parecem desenhados mais para esconder do que para se expressar. São
simplesmente ilegíveis.
Após anos examinando a questão, estou convencido de que nessa legibilidade
maior, menor ou inexistente, muita coisa se reflete. Uma letra legível indica uma pessoa
que tem clareza de intenções, que se mostra como ela é, que não pretende se esconder.
Tenho observado também que costuma ser alguém que assume suas responsabilidades e
inclusive que sente certa satisfação consigo mesmo. Herr Koch é um exemplo
paradigmático dessa legibilidade. Um pouco solene, é verdade, mas legibilidade no fim
das contas.
No caso de Steiner, cujos escritos ultimamente tenho examinado com
freqüência, essa legibilidade aparece empanada às vezes pela rapidez com que ele
escreve. Às vezes ele cai na ilegibilidade, mas não de forma intencional. Simplesmente,
precisa fazer anotações depressa demais ou enquanto está andando ao lado de herr
Koch. Quieto e sentado numa escrivaninha, demonstra uma legibilidade semelhante à de
seu superior.
Um caso totalmente diferente é o da ilegibilidade intencional. Essa
circunstância só pode ser interpretada em termos altamente negativos. À ocultação de
intenções — uma coisa que, como regra geral, não se pode julgar positivamente —, vem
se somar à recusa em assumir responsabilidades e até um sentimento de inferioridade.
Como em tantas outras realidades da vida, a clareza é um bom sinal e sua falta uma
desgraça.
Dezesseis
Baviera, 1788
— O
CASO DAQUELE POBRE RAPAZ...
morto e... e violentado... foi horrível.
Posso lhe garantir. Foi espantoso.
Lebendig contemplou o agente Steiner com um misto de simpatia e de ternura.
Certamente, esses eram os sentimentos despertados quando observava aquele
homenzarrão, que tanto podia demonstrar uma notável perspicácia quanto uma
simplicidade quase inquietante.
— Seu superior está encantado... — disse o erudito antecipando uma resposta
que já conhecia.
— Ah, sim. O senhor não imagina até que ponto. A verdade é que ele sempre
defendeu a idéia de que, mais cedo ou mais tarde, acaba-se descobrindo tudo. Podem se
passar meses, até anos, mas no final tudo se esclarece. Uma mentira que vem à luz, uma
testemunha que acaba falando e...
— ...e a ordem se restabelece.
— Exatamente — sorriu Steiner. — É exatamente a mesma cosia que ele disse,
que a ordem se restabelece.
Um breve silêncio caiu sobre os dois assim que o agente concluiu a última
frase. De repente, de maneira inesperada, uma ruga profunda, vermelha e poderosa
dividiu sua testa numa mudança repentina de expressão. Lebendig pensou que uma
reflexão especialmente profunda tinha acabado de abrir caminho na mente, até então
animada e alegre, de Steiner.
— Herr Lebendig, o senhor tem certeza de que existe uma vida após a morte?
Lebendig reprimiu a duras penas a surpresa que a pergunta do policial tinha
acabado de lhe provocar. Para falar a verdade, o que tinha acabado de ouvir era a última
coisa sobre a qual teria pensado que poderia conversar com aquele rapagão
aparentemente tão despreocupado.
— Para falar a verdade, sim — respondeu enquanto tentava discernir o motivo
daquelas palavras.
— Então, o senhor acha que nem tudo se acaba com a morte? — continuou
perguntando Steiner, com uma candura que mergulhou Lebendig ainda mais na surpresa
inicial. Ficou em silêncio durante alguns segundos, respirou fundo e, finalmente, disse:
— Não gostaria que interpretasse o que vou lhe dizer como soberba ou
pedantismo. Não é nada disso, mas a verdade é que estou convencido de que, depois
desta vida, existe outra.
O rosto de Steiner adotou uma expressão melancólica. Sem dúvida, não parecia
que aquelas palavras tivessem dissipado a angústia profunda que sentia naquela hora.
— A verdade é que o senhor me dá inveja, herr Lebendig — disse o policial
com a voz forrada de dor, uma dor profunda e indefinida. — Não me entenda mal. Eu
acredito um pouco... ou quero acreditar, ou me ensinaram a acreditar, mas... mas quando
vejo um cadáver... bem, não tenho intenção de enganar o senhor, quando chego a esse
ponto, as dúvidas tomam conta de mim. Veja, eu observo como aquela mulher que
poderia dar à luz virou apenas um despojo, ou como aquele rapaz que ia dançar e que
ceifava como um gigante passou a ser carniça, que foi o que aconteceu com aquele
infeliz que foi violentado e assassinado, e em momentos como esses... vou lhe
confessar, custo muito a acreditar que, no final, não fiquemos todos reduzidos a isso, a
um montinho de ossos e de cinzas.
Lebendig observou Steiner. Aquele rapaz lhe era simpático. Provavelmente,
não era tão inteligente quanto Koch teria desejado, mas não havia dúvida de que era um
bom homem. Procurava cumprir seu trabalho meticulosamente — embora nem sempre
conseguisse isso — e, até onde sabia, comportava-se como um excelente pai de família.
No entanto, no fim das contas, como qualquer criatura que não tivesse se deixado
embrutecer pelas necessidades mais peremptórias da vida, queria ter a certeza de que a
tumba não era o fim de tudo. Com certeza, era assim desde aquele dia de mau agouro
em que o Criador tinha expulsado Adão e Eva do Éden, e o casal tinha se perguntado,
tomado pela angústia, se seu retorno ao pó da terra não representaria o final absoluto.
— Já se consultou sobre esta questão com seu pároco? — disse Lebendig
quebrando o silêncio.
Steiner alisou o queixo nervoso quando ouviu a pergunta.
— Bem, herr Lebendig... não sei o que lhe dizer... a verdade é que não... e não
vou enganá-lo. O senhor me inspira mais confiança...
— Mas você não ignora o fato de que eu sou protestante... - começou a dizer o
erudito.
— Não, é claro que não ignoro, mas, exatamente por isso, não vai me colocar
problemas... Quero dizer, com o senhor posso comentar que tenho dúvidas sem que me
veja mal... porque... bem, o senhor não vai ter uma opinião ruim a meu respeito por
causa disso, não é mesmo?
Lebendig conteve a tentação de deixar escapar uma gargalhada. Pelo visto, sua
posição de herege impedia que pudesse repreender um católico por sua falta de fé. O
argumento, apesar de sua absoluta falta de consistência, podia parecer sólido. Em todo
caso, era imperioso tranqüilizar o agente.
— Não, Steiner. Você sabe que tenho uma ótima opinião a seu respeito e não
vou mudá-la porque as dúvidas sobre o além o assaltam — respondeu Lebendig com um
sorriso de indulgência.
— Que bom... — disse Steiner mais animado ao verificar que suas intuições se
confirmavam. - Sei que o senhor é um homem honrado... e um sábio! Então falo com o
senhor, o senhor me escuta, eu o escuto. Isso não resolve nada, mas também não vai me
criar complicações. Agora, se eu falar com um pároco... quem sabe? Pode ser que seja
um homem compreensivo mas... mas nem todos são assim. Talvez ele me leve a mal e
as pessoas falam...
— E você é um policial, claro. Compreendo perfeitamente.
Um sorriso de alívio se desenhou, luminoso e franco, no rosto de Steiner.
Embora não tivesse certeza de que suas aflições seriam dissipadas pela conversa, não
restava dúvida de que, pelo menos no momento, ele se sentia mais aliviado delas.
— Bem, Steiner — aventurou-se Lebendig. — Para falar a verdade, não estou
certo de que minha experiência possa lhe servir para alguma coisa, mas... eu realmente
acredito que nem tudo termina no sepulcro. Acredito nisso porque Jesus ressuscitou e
demonstrou que tinha vencido a morte e, principalmente, porque prometeu que os que
acreditarem nele teriam um destino semelhante.
— Como sabe tudo isso, herr Lebendig? Quer dizer, de onde extrai essa
certeza que tem de que tudo isso aconteceu — perguntou, interessado, Steiner.
— Da Bíblia — respondeu Lebendig, impregnado de uma serenidade segura e
calma. — A Bíblia diz isso, e a Bíblia é a palavra de Deus.
— O senhor lê a Bíblia? — perguntou com a voz levemente trêmula Steiner.
— Sim, eu a leio todos os dias.
— Nós, católicos, não temos permissão para lê-la — disse o policial um tanto
entristecido. — Os padres podem fazer isso, claro, e em latim, mas...
— Se me prometer ser discreto, posso lhe emprestar uma Bíblia.
— Eu lhe agradeço, herr Lebendig, mas meu latim...
— Em alemão.
— Em alemão? — disse Steiner com entusiasmo. — Puxa! Isso realmente...
Por alguns momentos, o policial abriu e fechou os olhos e a boca, sentindo-se
completamente desconcertado com aquela oferta que nunca tinha imaginado. Na
verdade, dava a impressão de estar tão atarantado que começou a mexer os dedos da
mão esquerda como se quisesse pegar no ar alguma coisa indefinida. No final,
pigarreou, voltou a assumir uma posição normal e, olhando fixamente para Lebendig,
disse:
— Jura, o senhor me emprestaria?
Lebendig se levantou e percorreu a pequena distância que separava o lugar em
que estavam sentados e sua escrivaninha. Tirou então uma pequena chave do bolso do
colete e abriu uma das gavetas. Em apenas alguns instantes, estava de novo ao lado de
Steiner e lhe estendia um pequeno volume de cor preta.
— É o Novo Testamento — explicou Lebendig. — Conta a vida de Jesus e
seus apóstolos e também contém as cartas que eles escreveram para ajudar as primeiras
igrejas.
Steiner estendeu os dedos até o livro com um misto de assombro e curiosidade.
Nunca tinha tido nas mãos um Novo Testamento e agora experimentava uma excitação
desconhecida. Acariciou a capa, abriu o livro e leu:
— "Livro da genealogia de Jesus Cristo, filho de Davi, filho de Abraão. Abraão
engendrou Isaac, Isaac engendrou Jacó e Jacó a Judá e seus irmãos. Judá engendrou de
Tamar a Fares e Sara, Fares a Esrom..."
O policial ficou em silêncio e ergueu na direção de Lebendig um olhar
carregado de triste assombro.
— Tenho medo de não entender este livro... — comentou com uma melancolia
que impregnava cada uma de suas palavras.
— Permita-me, Steiner — disse Lebendig enquanto pegava o Novo
Testamento e começava a virar suas páginas. — Sim, aqui está. Leia a partir desta linha,
por favor.
Hesitante, o policial começou a ler o texto assinalado pelo erudito. Lia em voz
baixa, mas a maneira como seus olhos e sua fronte começaram a se iluminar de forma
quase imediata revelou que ele podia ser tudo, menos indiferente ao conteúdo daqueles
versículos. De repente, de seus lábios saíram, claras e firmes, as frases do Evangelho:
— "Maria, quando chegou aonde Jesus estava, ao vê-lo, prostrou-se a seus pés
e lhe disse: 'Senhor, se tivesses estado aqui, meu irmão não teria morrido.' Então Jesus
ao vê-la chorando e ao observar como os judeus que a acompanhavam também
choravam, abalado em seu espírito, comoveu-se e disse: 'Onde vocês o colocaram?'
Disseram-lhe: 'Senhor, venha e veja.' Então os judeus disseram: 'Olhe como ele o
amava.' E alguns deles disseram: 'Ele, que abriu os olhos de um cego, não podia ter feito
também com que Lázaro não morresse?'"
Steiner ficou em silêncio, mas manteve os olhos cravados no livro. Depois
respirou fundo, engoliu em seco e continuou.
— 'Ele, que abriu os olhos de um cego, não podia ter feito também com que
Lázaro não morresse?' "Jesus, profundamente comovido de novo, chegou ao sepulcro.
Era uma cova e tinha uma pedra em cima. Jesus disse: 'Tirem a pedra.' Marta, a irmã
daquele que tinha morrido, disse-lhe: 'Senhor, já está cheirando mal, porque faz quatro
dias que morreu.' Jesus lhe disse: 'Eu não lhe tinha dito que se você acreditar verá a
glória de Deus?' Então tiraram a pedra do lugar onde tinham colocado o morto. E Jesus,
erguendo os olhos, disse: 'Pai, eu lhe dou graças por me haver escutado. Eu sei que você
sempre me escuta. Mas disse isso por causa da multidão que está aqui ao redor, para que
acreditem que você me enviou.' E, após dizer isto, clamou em alta voz: 'Lázaro, venha
para fora!' E aquele que tinha morrido saiu, com as mãos e os pés amarrados com
ataduras, e com rosto envolto por um sudário. Jesus lhes disse: 'Desamarrem-no e o
deixem ir'."
Steiner ergueu uns olhos nos quais, inegavelmente, o assombro de alguns
instantes atrás tinha cedido lugar às lágrimas. Sem dúvida, era indiscutível que a leitura
tinha-lhe causado uma profunda impressão.
— Leve o livro. Pode me devolver quando quiser — insistiu Lebendig.
— Sim, vou levá-lo — respondeu, agradecido, Steiner. — Muito obrigado,
herr Lebendig.
Trocaram mais algumas frases, mas o erudito compreendeu que o agente
desejava ir embora e se perguntou se, no fim das contas, a visita não tinha sido motivada
pelo desejo de partilhar com ele aquela inquietação. Ao fim de alguns minutos, os dois
se levantaram de suas cadeiras para se dirigirem até a porta. Quando se achavam a
alguns passos do umbral, o policial parou e lhe disse:
— Não quero importuná-lo mais, herr Lebendig, mas... bem, perdoe a minha
indiscrição, como... como o senhor consegue que as dúvidas não o vençam?
O erudito interrompeu sua caminhada até a porta e se virou para Steiner.
Naquela hora, sentia uma ternura semelhante à que Emma e o rapaz lhe inspiravam.
— Veja bem — começou a dizer —, há alguns anos viajei à Inglaterra. Como
você sabe, trata-se de uma ilha e é preciso fazer a travessia num barco. Quando estava
quase chegando, contaram-me que em alguns povoados da costa tinham-se formado
bandos de malfeitores que, quando ocorria um naufrágio, dirigiam-se apressadamente
até a costa para se apossarem dos bens que o mar lançava nas praias. Eram pessoas de
tão poucos escrúpulos que faziam seu trabalho de rapina até quando isso significava
assassinar os poucos sobreviventes do desastre.
— Tremendos canalhas!
— Sem dúvida, eles eram — admitiu Lebendig. — Bem, o fato é que em uma
dessas tristes ocasiões, um dos náufragos, que sabia do perigo de cair nas mãos dos
integrantes desses bandos, conseguiu se afastar da praia e alcançar a nado um rochedo
situado no meio das ondas. Ficou esperando ali, encharcado até os ossos e debaixo de
uma chuva insuportável, até que aparecesse algum barco do rei que o salvasse não
apenas do tempo mas também daqueles ladrões costeiros.
— E conseguiu? — perguntou, interessado, Steiner.
— Pois a verdade é que sim. Rangeu os dentes durante algumas horas que
devem ter parecido intermináveis, mas, finalmente, depois de alguns dias a marinha real
o recolheu. Já tinha trocado de roupa e estava tomando um tônico reconstituinte, quando
um dos oficiais do navio lhe perguntou se no meio da tempestade não tinha tremido.
— Não devia ser um oficial muito inteligente... — permitiu-se dizer Steiner.
— Disso eu não sei — prosseguiu Lebendig —, mas isso não tem importância.
O interessante foi a resposta do náufrago.
— E o que a resposta teve de especial? — interrogou um tanto surpreso o
policial.
— O náufrago olhou para o oficial e disse: "Eu tremi, sim, mas a rocha em que
eu descansava não tremeu." Em outras palavras, ele sinalizou que, certamente, tinha
sentido medo e frio, e talvez tivesse se aproximado dos umbrais do desespero, mas
aquela rocha o tinha mantido a salvo de qualquer eventualidade porque era muito mais
forte, muito mais sólida e muito mais poderosa do que ele.
Steiner piscou os olhos, perplexo, mas Lebendig continuou.
— Veja, meu caríssimo amigo, comigo acontece a mesma coisa que com esse
náufrago. Às vezes, posso ter medo, insegurança, talvez até dúvidas. Sim, não se
surpreenda nem se escandalize, de vez em quando eu também não sei muito bem por
onde ir nem o que fazer, mas, ainda que eu trema, se me permite a expressão, a rocha
sobre a qual eu descanso não treme.
— E a que o senhor se refere? — perguntou o policial prendendo a respiração.
— A rocha sobre a qual eu descanso é Jesus, o Filho de Deus — respondeu
Lebendig. — E eu sei que posso contar com ele da mesma forma como Marta contou,
quando seu irmão Lázaro morreu.
Steiner o encarou com uns olhos inusitadamente abertos, como se através de
suas pupilas pudesse absorver melhor o que estava escutando.
— Nunca se apóie nos homens para enfrentar suas aflições, Steiner — disse
Lebendig. — Certamente, um amigo pode nos ajudar num momento ruim e é um
verdadeiro dom do céu, mas, no fim das contas, nós homens somos falíveis, nós nos
enganamos, temos fraquezas. Cristo... Cristo é uma rocha que não se mexe, que não
treme, que lhe oferece, se você procura e realmente deseja, o apoio mais completo e
absoluto.
O erudito fez uma pausa e observou como o policial tinha colocado as duas
mãos sobre o Novo Testamento, que agora ele apertava contra seu peito como se fosse
um tesouro de cuja custódia ele estava incumbido a qualquer preço.
— Continue a ler o livro do ponto onde parou, pelo Evangelho de João —
continuou Lebendig — e, de agora em diante, toda vez que achar que não consegue
seguir em frente, quando a dúvida o assaltar, quando não souber para onde ir, recorra a
Jesus. Fale com ele como falaria comigo, como falaria com sua mulher ou com algum
de seus filhos. Faça isso e descobrirá que, diferentemente do que normalmente acontece
com os homens, Jesus não lhe faltará nunca. Posso dizer isso porque, além daquilo que a
Bíblia ensina, é minha própria experiência.
Lebendig abriu a porta e estendeu a mão ao policial para se despedir. No
entanto, Steiner não a apertou. Pelo contrário, substituiu o gesto por um abraço,
caloroso, forte, sentido.
— Muito obrigado, herr Lebendig — disse quando se separaram. — Não pode
imaginar o bem que me fez. Estou... estou muito feliz... e muito agradecido. Garanto-lhe
que não me esquecerei nunca... o senhor pode contar comigo para o que quiser.
— Que Deus o abençoe, Steiner — murmurou o erudito antes de fechar a porta.
Dezessete
Do caderno de estudos científicos do professor Lebendig
A LETRA COM QUE SE DESENHA a assinatura tem uma importância essencial. Em
linhas gerais, estes traços nos permitem saber com quem estamos nos deparando. Se a
letra pode ser lida com facilidade, com nitidez, com rapidez, estamos diante de uma
pessoa que não mente. Talvez em alguma ocasião isolada ela possa faltar com a
verdade, mas, em termos gerais, de sua boca não há de brotar uma única mentira. Sua
vida acaba se mostrando tão transparente quanto seus traços.
À medida que essa letra vai se tornando mais ilegível, temos que reconhecer
que a pessoa em questão, se não falta com a verdade, pelo menos a esconde. O fato é
que pude observar que isso é quase o usual em profissões em que a discrição é muito
importante. Isso explica, por exemplo, por que a assinatura de um juiz, um médico ou
um policial raramente seja legível. No entanto, em casos normais, se não se consegue
ler a assinatura é porque também não se pode confiar na veracidade da pessoa em
questão.
Venho observando também que, às vezes, existem assinaturas em que uma
parte do nome pode ser lida com nitidez, enquanto outra parte é impossível de se
decifrar. Em tais casos, é indispensável observar qual parte da assinatura é a legível. Se
se trata do nome de batismo, em oposição ao sobrenome, estaríamos diante de uma
pessoa que é transparente em suas relações pessoais, mas que, nas profissionais e
trabalhistas, opta por uma discrição que pode inclusive incorrer na falsidade. O exemplo
oposto é mais raro, mas — tenho que confessar — já me deparei com ele em diversas
ocasiões. É o caso — lembro-me bem — de um comerciante de comprovada honradez
que, apesar disso, estava implicado numa história horrível de adultério. Em termos
trabalhistas, portanto, mostrava-se muito mais sincero, com toda a certeza, do que em
casa com sua mulher.
Seja como for, o importante é lembrar a regra geral. Uma pessoa cuja letra se
mostre clara e legível na assinatura não costuma mentir; de uma pessoa cuja letra é
difícil ou impossível de ler na assinatura, deveríamos nos resguardar com enorme
prudência.
Dezoito
Baviera, 1788
— TEM
CERTEZA,
STEINER? — perguntou Koch, com um tom de voz
acentuadamente frio.
— Ja, herr Koch.
— Bem, pode se retirar.
O agente de polícia ficou em posição de sentido e deu meia-volta com o
mesmo jeito marcial de um sargento de cavalaria. Atravessou o espaço entre a mesa de
seu superior e a porta, abriu-a e saiu fechando-a depois de passar.
Koch escutou atentamente até constatar que não era possível ouvir o menor
sussurro e então, com os lábios apertados e as pálpebras franzidas, descarregou um soco
sobre a mesa. Foi uma pancada seca que fez o tinteiro tremer, provocou um movimento
seco na xícara de café e fez a colherinha saltar como se fosse um gafanhoto. Sentia uma
raiva que queimava suas entranhas e que teria gostado de aplacar jogando todos os
processos do gabinete pelo chão, rasgando com um estilete os dois retratos pendurados
na parede ou, principalmente, ateando fogo à sede do tribunal onde o juiz Zwack
trabalhava.
Zwack! Quem era o juiz Zwack? Sim, já sabia que era uma figura baixinha,
que esticava desagradavelmente a letra j, que tinha um cabelo ralo e grisalho, que tinha
subido com uma enorme rapidez na carreira judicial, mas, afora isso, de onde tinha
saído aquele indivíduo?
Levantou-se da escrivaninha e caminhou até a janela dando socos na palma da
mão. Correu de um só golpe a cortina pesada e olhou para o exterior. Um sol suave de
tonalidades palidamente amarelas acariciava os telhados de Ingolstadt. Aparentemente,
tudo estava tranqüilo, calmo, sereno, em ordem. Mas Koch estava dolorosamente
consciente de que era uma simples miragem. Naquela cidade, tão piedosa, tão católica,
tão livre de ameaças como a que os jesuítas expulsos algum tempo atrás supostamente
representavam, havia pelo menos um aristocrata entregue à prática das ciências ocultas
que não tinha hesitado em dar proteção a um homicida a fim de que ele pudesse ajudá-lo
a cometer novos crimes; um médico disposto a falsificar uma autópsia para ocultar um
assassinato e agora, conforme tinha acabado de saber, um juiz, o juiz Zwack, encantado
em abafar um assunto de imensa, extraordinária e, até aquele momento, incomparável
gravidade.
Afastou-se da janela e tornou a se sentar. Depois aproximou a cadeira da mesa,
juntou as mãos e apoiou nelas o queixo. Por mais voltas que desse, não via maneira
sensata de analisar o que tinha acontecido nas últimas semanas. Como Lebendig tinha
lhe dito, a primeira coisa que tinha acontecido tinha sido a chegada de seus agentes sob
as ordens de Steiner até a mansão do barão Von Knigge. Tinham irrompido no local
com a mesma intrepidez e entusiasmo dos ginetes de um regimento de cavalaria lançado
contra as fileiras inimigas. Prenderam Hans, que, surpreso, não parava de alertar sobre a
gravíssima responsabilidade que estavam incorrendo com aquele comportamento. No
entanto, Koch tinha treinado tão conscienciosamente seus homens — e, muito
especialmente, a Steiner — que eles não titubearam na hora de entrar na biblioteca e nas
demais dependências do barão e realizar uma investigação profunda. Quase ao mesmo
tempo, um segundo grupo de agentes começou a cavar nos locais onde Stefan tinha
indicado que encontrariam os cadáveres. Não lhes tinha informado errado.
Antes que o dia terminasse, uma carroça carregada de livros proibidos saiu da
mansão de Von Knigge rumo às dependência policiais e Steiner lhe tinha entregue um
relatório escrito que — tinha que reconhecer — era muito bem detalhado. Quanto aos
cadáveres, precisaram de dois dias para encontrá-los, desenterrá-los e submetê-los ao
exame de alguns médicos. Tudo isso, somado aos testemunhos de Lebendig e Steiner,
tinha levado Koch a um estado próximo da euforia. Na sua opinião — e era uma opinião
formada por décadas de experiência —, havia provas de sobra para processar — e
condenar — Von Knigge por seqüestro, posse de livros proibidos e assassinato. A
sentença teria que ser, por amor à justiça, severa, e ainda por cima abria a possibilidade
para que ele acabasse confessando quem era aquele tal Espartaco que, àquela altura com
toda a certeza, ele conhecia, e que planos tão sinistros tinha concebido contra todo o
bem e a decência que se pudesse imaginar.
Convencido a esse ponto, Koch viveu durante alguns dias imerso numa nuvem
de felicidade, a ponto de se permitir brincar com Steiner em alguns momentos. Isso
porque à boa sorte da ordem restabelecida vinha se somar a esperança esplendorosa de
que muito em breve ele se veria a salvo de uma terrível ameaça. Mas a boa sorte, como
advertem os ditados repetidos e duradouros da sabedoria popular, durou muito pouco.
Na verdade, desmoronou como se fosse um castelo de cartas que fossem se soltando
uma atrás da outra até virarem uma massa disforme caída no chão. Primeiro, foi o
testemunho de Hans, que garantiu que o barão Von Knigge não poderia ter recebido
Lebendig pela simples razão que estava havia duas semanas fora de suas terras, sem
esquecer que o criado, ainda por cima, era suspeito de assassinato. Mas o testemunho
acabou sendo confirmado por um marquês que, supostamente, tinha hospedado Von
Knigge durante esse período, absurdo que além disso acabou corroborado por uma
longa dúzia de aristocratas que, também supostamente, tinham caçado, bebido,
celebrado e cavalgado a seu lado.
Como não podia deixar de ser, Koch tinha insistido nos testemunhos de
Lebendig e Stefan, mas o juiz Zwack os tinha rechaçado de saída. Segundo ele, era
óbvio que Lebendig se encontrava sob o efeito de alguma droga que produzia
alucinações, e quanto ao ferreiro... bem, havia vários testemunhos que apontavam que
ele não estava em seu juízo normal. Na verdade, era um pobre mentecapto que Von
Knigge, num exemplo de caridade cristã, tinha recolhido. O infeliz não sabia o que
dizia. Para prevenir males maiores, o juiz Zwack tinha ordenado que o confinassem
num manicômio e o submetessem imediatamente a um tratamento estrito. Quando,
finalmente, Koch tinha enviado Steiner para tirá-lo daquele antro, Stefan já era um
pobre idiota incapaz de articular duas palavras seguidas que fizessem sentido. A essa
altura, Koch tentou se apegar às abundantes provas materiais. Sem dúvida, não
faltavam. Livros proibidos, cadáveres e sala de torturas.
Como se estivesse lutando contra um pugilista mais experiente, o policial foi
recebendo um golpe atrás do outro. Primeiro, foi o médico, que garantiu que aqueles
cadáveres eram antigos demais para pertencer a vítimas posteriores à Guerra dos Trinta
Anos14. O local onde eles tinham sido encontrados só poderia ser um cemitério
particular onde os indigentes tinham achado o repouso à espera da ressurreição da carne.
— Provas de homicídios? Pelo amor de Deus! Que disparate o senhor está
dizendo, herrKochl — tinha exclamado o médico diante de sua pergunta.
Também a prancha de tortura, as correntes e outras delícias acabaram sendo
relacionadas com a História passada e não com o presente próximo.
— Um museu. Um autêntico museu, herr Koch. É pouco usual, mas nem por
isso menos edificante. Assim se combateu a heresia em Ingolstadt durante muito tempo.
E funcionou. A não ser seu amigo Lebendig, já não restam hereges — disse-lhe de uma
forma que lhe pareceu displicente e maliciosa.
Ele se aferrou então aos tratados de demonologia, aos manuais de bruxaria, aos
14
Conflito de origem religiosa ocorrido na Alemanha de 1618 a 1648.
grímóríos15 e aos outros textos de feitiçaria. E então veio o golpe de misericórdia.
— Sim, são livros proibidos. Proibidos com toda a justiça do mundo porque
seu conteúdo é maligno, mas, o senhor Koch sabe, esse tipo de literatura perversa e
iníqua pode ser lida com a devida permissão eclesiástica, por motivos justificados. Os
motivos existem, e a permissão também.
Efetivamente, a autorização existia. Tinha sido assinada por um cardeal e, pelo
visto, não contente com isso, tinha anexado uma carta de recomendação elogiando o
barão Von Knigge e sua extraordinária erudição.
— Conversei com o juiz Zwack — tinha lhe dito seu superior — e não vou lhe
esconder que ele está indignado, muito indignado. Ele acha que o que o senhor fez não
tem qualificação. Armou um verdadeiro escândalo sobre um pedestal de fumaça, sobre
alguns alicerces de papel, sobre nada. Assassinatos, bruxaria, conspiração... Nada sobre
nada. Tudo isso só existiu em sua imaginação. Ele chegou inclusive a insinuar comigo
se o senhor não precisaria ser examinado por algum médico com experiência em
pessoas que perderam o juízo...
Koch tinha ficado em silêncio enquanto sentia um acesso de cólera que brotava
de seu peito até acabar se enroscando em suas orelhas. Não devia nem conseguia dizer
uma única palavra, mas, pela primeira vez em sua vida de agente da ordem, tinha
pensado que a autoridade a que estava subordinado era um verdadeiro idiota.
E agora, para cúmulo de tudo, o agente Steiner tinha acabado de lhe dizer que o
juiz tinha ordenado a devolução de todos aqueles malditos livros de feitiçaria ao barão e
tinha deixado claro que esperava que fossem acompanhados por um pedido de
desculpas, escrito e formal, de Koch. Era óbvio que, não satisfeitos em tê-lo vencido,
ainda queriam humilhá-lo. Porque Koch não tinha ficado convencido com os rebuscados
argumentos esgrimidos pelo juiz. Sua absoluta certeza não tinha titubeado nem por um
instante. Tinha experiência suficiente para saber distinguir o sólido do frágil, o firme do
duvidoso, o verdadeiro do falso, e não tinha menor a dúvida de que tinha estado perto de
prestar um grande serviço à justiça e de que tinha sido impedido exatamente por uma
pessoa que, supostamente, a administrava.
Respirou fundo e disse a si mesmo que aquela era a primeira vez na vida em
que duvidava da honradez de um magistrado. Certamente, tinha ouvido aqui e ali
algumas historinhas sobre juízes corruptos, mas nunca, nunca, nunca elas tinham
correspondido à realidade. O que ele tinha vivido nas últimas semanas era, sem
15
Compilações de magias e bruxarias.
qualquer sombra de dúvida, algo pior. Médicos, juízes, nobres, criados, até religiosos
não tinham o menor problema em falsear a verdade, em manipular a realidade e em
mentir. Mas em que o mundo que ele pensava conhecer estava se transformando e,
sobretudo, que espécie de forças eram aquelas que conseguiam corromper esse mundo
até atingir suas instituições mais essenciais e suas camadas mais sagradas?
Uma pancadinha leve na porta arrancou Koch de suas iradas reflexões.
— Sim, entre — disse num tom áspero. — Herr Koch.
— O que está acontecendo, Braun?
— Más notícias, herr Koch.
— Pois conte logo de uma vez, homem de Deus! — gritou Koch enquanto
dava um tapa furibundo na mesa.
— Veja só... veja só, herr Koch... o agente Steiner se suicidou.
Dezenove
Do caderno de estudos científicos do professor Lebendig
A
INCLINAÇÃO
É
UM FATOR
que não se deve desprezar na hora de analisar a
letra. Uma letra que se inclina tanto para a direita que quase parece que vai desmaiar
sobre o papel indica um grau de paixão tão veemente que não seria estranho que
derivasse em falta de reflexão, perda de controle e agressividade. Encontrei muitas
vezes esta inclinação em pessoas ciumentas — como uma viúva que se casou com um
homem mais novo do que ela e que acabou tragicamente — e naquelas cuja maturidade
nos afetos brilha pela ausência.
Se a inclinação da letra é para a direita, mas de maneira muito mais moderada,
a interpretação só pode ser positiva. Trata-se de uma pessoa generosa, cordial, afetuosa
e de sentimentos poderosos. O agente Steiner se aproxima dessa forma de inclinação. É
indiscutível no caso de minha boa Emma que, tanto nisto quanto em outras coisas,
constitui um verdadeiro exemplo.
Herr Koch escreve com uma inclinação ereta, praticamente vertical. Sem
dúvida, poucos poderiam discutir que sua razão se impõe sobre o sentimento, que ele
controla os impulsos, que se reprime, que inclusive pode incorrer numa certa frieza.
A orientação para a esquerda - como costuma ser usual entre os seres humanos
— não é positiva. Quando aparece de forma leve, estamos diante de uma pessoa
frustrada em seus afetos, medrosa, com tendência para esconder, mas, quando a
encontramos de maneira acentuada, estamos diante da imagem do ressentimento, da
covardia e do egocentrismo. Deve-se desconfiar dessas pessoas que se inclinam para a
esquerda quando escrevem e quanto mais se inclinarem, mais prudentes devemos nos
mostrar com elas.
Vinte
Baviera, 1788
— O SENHOR TEM CERTEZA de que isto foi a última coisa que ele escreveu? —
perguntou Lebendig levantando os olhos do papel.
— Sem sombra de dúvida — respondeu Koch.
— E escreveu isso duas horas antes que encontrassem seu cadáver pendurado
de uma viga?
— Um pouco mais, um pouco menos — disse o policial. — Sei lá... talvez
tenha sido uma hora e meia ou três horas, mas a diferença foi mínima.
Lebendig ficou em silêncio e voltou a cravar os olhos no texto que tinha à sua
frente. Era um relatório redigido com esmero, embora sem exceder às regras, pesadas,
convencionais e não particularmente criativas dessa espécie de escritos. Provinha de um
homem tranqüilo, meticuloso, talvez não muito inteligente mas sem dúvida dedicado a
seu trabalho com uma devoção quase religiosa. E, sem dúvida, de forma alguma
inclinado para o suicídio.
— Observe estas linhas - comentou Lebendig enquanto passava por baixo delas
a ponta de uma pena. — Como o senhor as descreveria?
— São... eretas. Sim, eretas. Talvez um pouco inclinadas para cima.
— Exatamente — concordou Lebendig. — Essa descrição é correta. A escrita
do pobre Steiner era a de um homem que não sofria da menor melancolia, que inclusive
se sentia animado.
— Não a de um suicida... — Koch, ansioso para afastar qualquer hipótese de
erro.
Lebendig virou o relatório, alisou a folha contra a mesa e molhou a pena no
tinteiro.
— Veja — disse ao mesmo tempo em que desenhava um risco sobre o papel.
— Esta é uma linha reta. Indica um estado de espírito normal.
— Estou vendo.
— Já esta seria indício de um estado de espírito eufórico, alegre, animado —
mostrou enquanto deixava a pena descrever sobre o papel uma linha ligeiramente
empinada para cima.
— Certo.
— Agora repare nestas linhas... — comentou Lebendig enquanto deixava
aparecer mais dois riscos sobre o papel. — A primeira corresponderia a uma pessoa
triste, afetada por uma notícia ruim, aflita. Repare na segunda. A inclinação é muito
maior. Corresponderia a alguém que sofre de uma melancolia extrema, que se encontra
a um passo de atentar contra a própria vida. Percebe a diferença?
— Sim — respondeu Lebendig. — Ela salta aos olhos.
— Compare com este relatório — disse Lebendig colocando lado a lado o texto
escrito por Steiner e o papel que tinha acabado de riscar. — O senhor diria que a
inclinação é a mesma?
— Não, nem aproximada — comentou o policial.
— É exatamente a mesma coisa que eu penso — concluiu Lebendig enquanto
se lembrava do dia em que tinha emprestado ao policial morto um Novo Testamento em
alemão.
Koch levou a mão ao queixo e o acariciou suavemente. Não, Steiner, não tinha
se suicidado. E se não tinha sido ele quem tinha posto fim à sua vida, era óbvio que
outros deviam ter feito isso. Não havia uma terceira alternativa.
— Tem alguma idéia de quem possa ter sido o assassino? — perguntou
Lebendig, fazendo eco aos pensamentos de Koch.
O policial balançou a cabeça pesaroso.
— Se eu soubesse, logo o juiz Zwack se encarregaria de que não fosse parar na
cadeia... — balbuciou com amargura.
Lebendig ficou calado. Era óbvio que Koch respirava pela ferida e que o ar que
saía dele era muito amargo. Era melhor mudar de assunto.
— Já tinha escutado antes a expressão Minirvais?
— Não... e se tivesse escutado, que diferença faria? Só Stefan e Hans sabiam
do que se tratava. Stefan é, de acordo com os médicos, um louco de camisa-de-força e
Hans... Hans é um filho de uma cadela que há anos violentou e assassinou um rapaz mas
que, graças ao barão Von Knigge e às ações de outro filho de uma cadela com toga de
juiz, passeia pelas ruas tão livre quanto um pássaro pela floresta.
— Veja só, Koch — interrompeu-o Lebendig, que não se encontrava em ótima
disposição para escutar as queixas amarguradas do policial —, os Minirvais não
existem...
— Puxa vida, homem! — exclamou Koch enquanto aplicava na própria coxa
uma palmada cheia de raiva. — Pois tínhamos que começar por aí! Se soubéssemos
disso, se tivéssemos consciência de que Hans e Stefan só diziam asneiras, não teríamos
feito o que fizemos. E nos teríamos poupado de uma porção de coisas. E Steiner, o
pobre, fiel e obediente Steiner, continuaria vivo e não estaria apodrecendo numa fossa,
depois de deixar uma viúva e três crianças...
Lebendig ficou em silêncio por um momento enquanto o policial percorria o
aposento com passadas largas, mexendo os braços como se fossem pás de moinho e se
irritando cada vez mais, à medida que ia falando.
—...e agora... agora o senhor me sai com essa de que os Minirvais não existem.
Pois muito bem. Muito bem. Que não existam. No fim das contas, o que se perde com
isso?
— Por que não se senta e me escuta? — acabou dizendo Lebendig. Koch
parou, como se um raio caído das alturas celestiais o tivesse pregado no chão. Conhecia
Lebendig havia alguns anos e nunca tinha se dirigido a ele naquele tom, ao mesmo
tempo de autoridade e censura.
— Tenho que lhe dizer uma coisa muito importante — começou a se explicar
com um tom de voz mais calmo —, e acho que se continuar se movimentando sem parar
e protestando dessa forma não vou conseguir fazer isso.
O policial continuou olhando para ele, mas não se afastou uma polegada do
local onde tinha parado.
— Os Minirvais não existem — tornou a dizer Lebendig ao mesmo tempo em
que erguia a mão para cortar pela raiz um protesto de Koch —, mas, eu lhe imploro,
deixe-me terminar, existem os Minervais16.
— Ah, pelo amor de Deus! — exclamou Koch sacudindo as mãos com tanta
força que elas poderiam ter se desprendido dos punhos.
— Demorei alguns dias a perceber que o nome me soava familiar e mais alguns
para compreender que era fruto da pronúncia ruim. Quando cheguei a isso... bem, a
partir desse momento, tudo ficou mais fácil.
— E daí?
— Trata-se de um grau de iniciação...
— Outra vez a maçonaria? — perguntou o policial, com um tom de voz metade
desesperado e metade lastimoso.
— Temo que sim, mas... mas, eu lhe imploro, Koch, deixe-me acabar. O
16
Grau especial de iniciação na Maçonaria.
policial ergueu a mão direita num gesto que pretendia garantir que saberia manter
silêncio.
— Nem todas as lojas maçônicas dispõem desse grau de iniciação. Para falar a
verdade, em Ingolstadt só existe uma loja que o tem. E não é nada estranho, porque se
trata de uma inovação. De uma curiosa inovação. A de alguém que, desconfio, acha que
conta com a possibilidade de unir, como os Minervais da Antigüidade, o poder da
sabedoria oculta com a dominação política.
Koch não abriu a boca, mas no fundo de seus olhos apareceu um brilho
estranho, o brilho típico do cão de caça que, instintivamente, sente-se próximo da presa
cobiçada.
— Em outras palavras — concluiu Lebendig —, os Minervais perseguem os
mesmos objetivos que Espartaco e Von Knigge.
— Qual é a loja deles?
— A Theodore — respondeu Lebendig.
— Quando eles se reúnem? — perguntou Koch enquanto seu coração ia se
acelerando.
— Às quartas e sábados.
— Ou seja, hoje... — pensou em voz alta Koch.
— Espere — disse Lebendig, que tinha acabado de observar uma expressão
inquietante no rosto do policial —, espere... Seu superior...
— Meu superior acredita nas explicações do juiz Zwack ou, pelo menos, finge
que sim — respondeu Koch enquanto tirava uma pequena chave do colete e a introduzia
na fechadura de uma gavetinha. Girou a chave, ouviu um leve estalido e segurou no
puxador.
— Compreendo como está se sentindo, Koch, mas acho que...
— ...que deveria ser prudente — completou a frase o policial, enquanto retirava
do móvel uma caixa de mogno. — Não tenha dúvida de que vou ser. Desta vez irei sem
avisar a ninguém.
Lebendig observou como a caixa se abria e deixava à vista duas pistolas e um
depósito metálico para a pólvora.
— Fique aqui enquanto eu vou fazer uma visita aos Miner... seja lá como se
chamem — disse o policial enquanto verificava que as pistolas estavam carregadas,
para, ato contínuo, prendê-las na cintura.
— Não tenho a menor intenção de permitir que vá sozinho — disse Lebendig,
levantando-se de um salto. — Eu o acompanharei.
— Nem pense nisso. O senhor não é um policial.
— Não... — respondeu o erudito enquanto via como Koch se aproximava da
porta. — Não sou. Mas sou uma coisa mais importante. Tenha o senhor se dado conta
ou não disso. Sou seu amigo.
Koch parou justo quando já tinha lhe dado as costas e tinha acabado de colocar
a mão sobre a maçaneta da porta. Lentamente, virou a cabeça e cravou os olhos em
Lebendig. Os músculos de seu rosto pareciam petrificados, mas o fogo que suas pupilas
lançavam deixava claro que seu interior era cenário de uma tensão sem precedentes.
— Este bem, Lebendig, está bem — disse enquanto empurrava a maçaneta e a
porta se abria. — Venha comigo e não percamos mais tempo.
Vinte e um
Do caderno de estudos científicos do professor Lebendig
A
VELOCIDADE TAMBÉM TEM
sua importância na hora de decifrar o caráter de
uma pessoa através de sua escrita. A esse respeito, realizei testes de relógio em punho.
Uma escrita lenta corresponderia a alguém que escreve menos de cem letras por minuto;
a pausada poderia atingir até cento e trinta letras no mesmo espaço de tempo; a normal
se estenderia a cento e sessenta e a rápida poderia beirar as duzentas. Como é fácil
imaginar, o que se reflete é bem diferente em cada um dos casos.
A escrita lenta pode derivar, certamente, do pouco hábito de escrever, de
alguma doença ou inclusive de alguma lesão, mas numa pessoa habituada e em
condições normais de saúde estaríamos diante de um caso de introversão, de uma
reflexão quase excessiva e até de obsessões das quais será melhor se livrar.
Uma escrita pausada costuma ser sinal de pessoa moderada, talvez um tanto
lenta, talvez pouco ágil para perceber e assimilar, mas, muitas vezes, de qualidade
inegável em seus resultados.
A velocidade normal costuma corresponder a uma pessoa que equilibra a
qualidade e a quantidade do trabalho, e que tem uma capacidade de assimilação no
mínimo mediana.
Já a escrita rápida eu a encontrei em pessoas com uma capacidade e uma
compreensão notáveis. É o caso de herr Koch e, em menor escala, de Steiner. No
entanto, às vezes pode implicar um perigo - o de não aprofundar devidamente aquilo
que está diante de seus olhos.
Vinte e dois
Baviera, 1788
O
METAL SE CHOCOU
contra o rosto do homenzarrão com a força que a raiva
acumulada proporciona. Com certeza, o diligente guardião teria preferido se manter em
seu posto, mas o impacto o impulsionou, como se fosse um coice de mula, para o
interior do corredor e, quando seus pés se atrapalharam com o inoportuno pé de um
móvel, ele desabou no chão todo o seu tamanho. Tentou se levantar enquanto sentia que
a boca ia se enchendo de sangue que começava a cair sobre sua garganta e seu peito.
Não conseguiu. Um pontapé enérgico dirigido contra seus testículos arrancou dele um
uivo de dor salpicado de vermelho e branco. Instintivamente, levou as mãos à virilha,
mas não conseguiu seu objetivo. Uma coronhada desferida sobre sua cabeça o
mergulhou num poço de escuridão.
— Vamos. Este não incomodará por algum tempo.
Lebendig seguiu Koch pelo corredor. Era um longo corredor atapetado, em
cujas paredes estavam pendurados muitos quadros onde apareciam, entre outros
motivos, a letra G, compassos, esquadros, fios de prumo e edifícios com colunas
salomônicas. Desembocaram num vestíbulo redondo, onde em uma das paredes havia
chapéus, casacos e capotes pendurados. Koch se virou para Lebendig com o dedo
indicador sobre os lábios.
Em meio ao mais absoluto silêncio, não tiveram dificuldades em perceber um
som ligeiro em algum canto à sua esquerda. Em passos lentos, Koch se encaminhou
para o local de onde vinha o ruído. Lebendig percebeu logo que se tratava de um canto
coral. Não conseguia compreender o que a letra dizia, mas a música lhe pareceu
bastante ruim.
Para dizer a verdade, e com exceção de A flauta mágica de Mozart, a
maçonaria não tinha sido capaz de inspirar uma única peça musical medianamente
aceitável, ao contrário do cristianismo e do mundo clássico. Devia haver alguma razão
para isso.
Pararam bem em frente ao local de onde se continuava ouvindo aquela música
péssima. Koch observou a porta. Era composta de uma única banda, feita em carvalho
lavrado e parecia bem sólida. Tinha uma aldraba, mas nada podia garantir que não
estivesse fechada por dentro. Nesse caso, no momento em que a girasse, os congregados
saberiam que alguém estava chegando, alguém, podia-se supor, que não era esperado.
Ergueu o olhar até o ponto onde estavam as dobradiças. Era provável que cedessem com
um bom empurrão. Era provável, sim, mas não queria correr o risco de deslocar um
ombro justo naquela hora. Percorreu com o olhar os dois lados do corredor. Sim, lá
estava. Distinguiu-o discreto em sua elegância altiva. Era um candelabro de pé, que
tinha uma altura pouco menor do que a de um homem. Devia ser muito antigo e muito
valioso. Bem, que fosse tudo em nome da lei e da ordem. Deu alguns passos até ficar
em frente ao castiçal, deu-lhe uma última olhada e o segurou com as duas mãos. Era
bem pesado. Tanto melhor.
— Afaste-se, Lebendig — sussurrou enquanto se aproximava da porta como se
carregasse uma lança.
O erudito se recolheu o suficiente para que Koch pudesse tomar impulso. O
policial cravou os olhos na porta, respirou fundo e se atirou contra ela como se fosse um
garboso cavaleiro que pretendesse derrubar com um aríete o portão da fortaleza onde
sua dama estivesse seqüestrada.
A pancada foi seca, áspera e eficaz. Primeiro, foi o som do metal batendo
contra a madeira; depois, o das dobradiças rangendo por causa do impacto e, finalmente,
o da porta se chocando contra a parede e se abrindo tentadora.
— Ninguém se mexa! — disse Koch enquanto soltava o candelabro de pé e
sacava uma pistola da cintura. — Se alguém der um passo, eu queimo.
Lebendig seguiu o policial até o interior do aposento. Nele, uns vinte homens
bem vestidos, com avental e diversos pingentes cravavam os olhos neles com uma
variedade de olhares que iam da surpresa ao medo, passando pela cólera e pelo
assombro. De repente, um dos congregados levou a mão à boca e sussurrou alguma
coisa para o que estava à sua direita. Koch não conseguiu captar o que ele dizia, mas
observou que o murmúrio corria pelo aposento como se fosse um rastilho de pólvora.
— Herr Koch, saia imediatamente daqui. O senhor não tem nenhum direito...
Não concluiu a frase. O policial se aproximou do maçom e bateu em sua boca
com o cano da pistola.
— Cale-se, Zwack — disse Koch. — E não me deixe nervoso porque o gatilho
desta pistola é muito sensível.
Lebendig observou como o sujeito limpava o sangue que saía de suas gengivas
e lançava um olhar de ódio para o policial. Foi a única coisa que fez, porque não voltou
a abrir a boca.
— Bem, bem... além do juiz Zwack, vamos ver quem temos por aqui... — disse
Koch enquanto olhava os rostos dos presentes ao mesmo tempo em que percorria o
aposento. — Nossa, que surpresa, o médico que acha que os mortos dos últimos anos
têm a idade de Júlio César... e aquele... não pode ser...
Koch deu uns dois passos largos e parou diante de um homem de aparência
obesa que olhava para o chão. Por um instante hesitou entre lhe dar um tiro na testa ou
esbofeteá-lo. Rechaçou, finalmente, as duas hipóteses e se limitou a lhe levantar o rosto
com o cano da pistola.
— O senhor cardeal veio por curiosidade, porque tem que assinar alguma
autorização para que os leigos possam ler livros de bruxaria ou porque é um membro da
loja?
Era uma pergunta retórica cuja resposta o policial não esperou.
— Herr Koch — ecoou uma voz tranqüila, com aquela entonação especial que
os mercadores ambulantes sabem imprimir a seu negócio. — O senhor é um magnífico
policial. Ninguém discutiria isso, mas... mas como vou dizer? Desta vez o senhor se
excedeu. É claro. O excesso de trabalho traz essas conseqüências. Por que não vai
embora pelo mesmo caminho por onde veio?
O maçom fez uma pausa e esgrimiu um sorriso untuoso.
— Tenho certeza de que quando o senhor sair por aquela porta que deixou em
tão lamentável condição, nem eu nem nenhum destes cavalheiros nos lembraremos de
nada do que aconteceu.
Koch franziu o olhar, passou a língua pelo interior da bochecha esquerda e se
encaminhou para o homem que tinha acabado de formular uma oferta de esquecimento.
— Herr Koch — sussurrou Lebendig, com medo de que seu amigo
arrebentasse a terceira boca do dia.
O policial parou quando se encontrava a cinco passos do maçom. Sem tirar os
olhos dele nem um só instante, respirou fundo procurando no interior de sua cabeça
algum argumento de peso que o convencesse de que não precisava quebrar em quatro a
cabeça daquele idiota. Acabou encontrando.
— Bem, não podemos perder tempo — disse enquanto voltava a se colocar,
dando alguns passos largos, ao lado do juiz Zwack. — Vou contar até cinco. Se quando
eu terminar os senhores não tiverem me entregado os arquivos, vou fazer voar a tampa
dos miolos deste miserável.
O fato de que, com uma rapidez notável, engatilhasse a pistola e colocasse o
cano na têmpora do magistrado convenceu imediatamente os congregados de que o
policial não estava exagerando nem um pouco. Lebendig também entendeu assim:
— Bitte, obedeçam a herrKoch. Ele está muito nervoso e... bem, ninguém
deseja que aconteça nada desagradável...
Lebendig não pretendia isso, mas a última palavra soou com um tom
verdadeiramente lúgubre. Foi como um pássaro preto que riscasse o céu levando entre
as asas os piores auspícios.
— Naquele cômodo... — disse cora voz trêmula um homem de cabelos
esmeradamente brancos que estendia as mãos em atitude suplicante.
Lebendig ficou surpreso ao observar o rosto do delator. Tinha um perfil
romano que se inclinava quase em forma de bico, para se deter, formando um ângulo
reto, um dedo acima do lábio superior. Seus dedos, no entanto, pareciam antes os de
alguém afetado por alguma doença nas articulações que os retorcia sem os quebrar. Em
outras circunstâncias, estava convencido de que aquele homem teria conseguido parecer
altivo, soberbo, talvez até cruel, mas agora... agora era apenas um sujeito amedrontado
que temia que Koch deixasse escapar um tiro que pudesse atingi-lo.
— Dê uma olhada — disse Koch, tirando Lebendig de suas reflexões.
— A porta está trancada — informou o erudito quando verificou que a aldraba
descia sem nenhum resultado.
— Aaaaaaaaaah! — gritou o maçom com quem a pistola de Koch colidiu.
Lebendig não tinha podido ver o golpe, mas observou com clareza como o juiz caía de
joelhos com as mãos encharcadas no sangue que brotava abundante de seu nariz.
— Dê-lhe a chave! Dê-lhe a chave! — suplicaram dois dos presentes com o
espanto estampado em tons violetas em seus rostos.
Koch se encaminhou até outro dos maçons, mas não chegou a empregar o
método heterodoxo, mas eficaz, de que estava se orgulhando nos últimos minutos. O
juiz Zwack, que pressionava a ferida com lencinho de renda já impraticável, levou a
mão livre ao pescoço, arrancou uma correntinha e murmurou com voz lamurienta:
— Aqui está.
— Lebendig! — ordenou o policial.
A chave correspondia, de fato, à fechadura. Entrou nela com facilidade e foi
preciso apenas girá-la para que a porta se abrisse.
— Louvado seja Deus! — exclamou Lebendig ao colocar os olhos no interior
do aposento.
— O que houve? — perguntou Koch sem tirar os olhos um só instante dos
congregados.
— Isto é uma verdadeira biblioteca — respondeu Lebendig já de dentro da
sala.
— Não temos tempo para ler — cortou secamente o policial. — Localize o
livro de integrantes da loja.
Um silêncio espesso e tenso desceu sobre o ambiente, roçado apenas pelos
ruídos provenientes do cômodo onde os arquivos estavam guardados.
— Já encontrou? — perguntou Lebendig em tom de impaciência.
— Não — respondeu Lebendig —, mas não se preocupe. Se estiver aqui, eu o
encontrarei.
O erudito não estava exagerando. Com a rapidez que só as pessoas
acostumadas a procurar livros em estantes desenvolvem, os olhos de Lebendig
deslizaram pelos volumes com uma velocidade que teria causado vertigem a um
amador. Naquela hora ele não era um bibliófilo, mas um investigador contagiado pela
doença de que Koch padecia havia décadas. Estava tão absorto em sua incumbência que
não hesitou em jogar no chão tudo aquilo que se interpusesse em seu caminho para
encontrar o livro de registro dos integrantes da loja. Uma medalha militar, um
primoroso entrelaçamento de um compasso e um esquadro, um chifre de caça e mais
uma meia dúzia de objetos pitorescos foram desalojados sem contemplação pelas mãos
de um homem que queria saber, como sempre, mas de uma outra maneira.
Quase não o percebeu, embutido como estava, entre um exemplar das
Constituições de Anderson17 encadernadas em couro fino e um incunábulo18 de dois
diálogos de Platão. Na verdade, se ele não lhe escapou foi porque, vencido por sua
trajetória de anos, não conseguiu resistir à tentação de contemplar o frontispício daquele
texto filosófico que nada tinha a ver com a maçonaria, mas que os maçons não tinham
hesitado em usurpar. E então, como se quisesse abandonar seu estreito confinamento, o
livrinho, uma encadernação, sem graça, em vermelho, veio grudado à capa do
incunábulo.
Lebendig separou os dois volumes e naquele instante reparou imediatamente
nas características pouco comuns do menor. Nem uma palavra na lombada, nem uma
única inscrição na capa. Percebendo imediatamente o que tinha em mãos, abriu o livro
17
Livro atribuído ao pastor protestante James Anderson (1640-1746) e considerado
um dos textos fundamentais da Maçonaria.
18
Edições feitas desde a invenção da imprensa até princípios do século XV.
pela metade.
— Franz Rinnlingen, Catão... Arthur Wilram, Graco... Robert Hochster,
Aníbal... — repetiu em voz baixa.
— Encontrou-o — soou a voz de Koch do outro lado do umbral.
— Sim, já estou com ele... — respondeu Lebendig sem parar de ler. — Estou
indo.
Ele deve ter demorado apenas alguns segundos em retornar à loja, mas a Koch
pareceu uma eternidade, insuportavelmente longa, intoleravelmente dilatada como os
sofrimentos dos condenados no Averno19.
— Quem é Adam Weishaupt? — gritou Lebendig, enquanto saía do aposento
com o livro preso entre as duas mãos.
Um silêncio espesso se espalhou pela loja. Koch olhou para um lado e para o
outro a tempo de perceber alguns olhares prenhes de inquietação. Em outra ocasião, em
outra época, teria agido de outra forma, mas agora não tinha tempo nem vontade para se
comportar como de hábito.
— Sinto muito, Zwack — mentiu, enquanto apertava o cano da pistola contra a
têmpora do juiz.
— Não precisamos chegar a esses extremos — ecoou uma voz à sua esquerda.
Koch e Lebendig olharam, como que movidos por uma mola, para a pessoa que
tinha acabado de falar. Era um homem de meia-idade, e aparência bem cuidada, com
uma peruca moderna que terminava pouco antes de chegar às orelhas e umas lentes
polidas e redondas que cavalgavam sobre seu nariz.
— É absurdo que vocês continuem incomodando estas pessoas. Eu sou Adam
Weishaupt e não tenho nada a esconder — parou um momento, molhou os lábios com a
ponta da língua e acrescentou: — Absolutamente nada.
Lebendig
manteve
o
olhar
fixado
naquele
homem,
aparentemente
insignificante, mas cuja alma tivera oportunidade de ver refletida no papel com mais
nitidez do que a proporcionada por um espelho quando devolve a imagem de um objeto.
Sim, conhecia-o fazia muito tempo, embora só agora pudesse juntar um rosto às
informações que possuía sobre ele.
— Koch — disse enquanto emergia de suas reflexões —, esse homem, Adam
Weishaupt, é Espartaco.
19
Nome mitológico do Inferno.
Vinte e três
Do caderno de estudos científicos do professor Lebendig
O PENSAMENTO — A VIDA MESMO — constitui um vínculo contínuo de idéias e
situações. Compramos leite na loja porque sabemos que precisamos comer e além do
mais sabemos que, se não comermos, morreremos. Parece lógico, portanto, que o
vínculo da escrita também nos diga muitas coisas. Uma pessoa que liga muito as letras,
que quase não levanta a pena do papel — a não ser para tornar a molhá-la no tinteiro —
é alguém que se vincula com facilidade aos outros, mas que pode demonstrar
preocupantes traços de irreflexão, já que não pára para pensar.
No outro extremo, está a escrita cujas letras aparecem separadas ou quase
separadas porque ocasionalmente duas letras estão juntas. Trata-se, em regra, de pessoas
com liberdade de critérios, mas também muito isoladas e com uma perigosa tendência
para ter a cabeça cheia de minhocas. Desconfio que sua intuição não raras vezes os leva
à indolência. De fato, observei este traço em não poucos poetas.
Um caso muito diferente é o de herr Koch, que apresenta alguns grupos de
letras unidas mas também letras soltas, que mistura a escrita desligada com a ligada. Em
casos assim, estamos diante do casamento perfeito. Trata-se de uma escrita que participa
tanto da reflexão quanto da comunicação, tanto da intuição quanto dos instrumentos de
análise que a lógica proporciona, tanto da vida interior quanto do mundo exterior.
Vinte e quatro
Baviera, 1788
— O ELEITOR IRÁ RECEBÊ-LOS LOGO — disse o mordomo de libré.
Lebendig não conseguiu evitar um calafrio. De repente, ao ouvir as palavras
pronunciadas pelo lacaio, tinha-se lembrado de sua chegada à casa de Von Knigge, a
entrevista inverossímil com o barão, a neblina fantasmagórica que saía de um fogo
gélido como o gelo, a usada prancha de tortura e o funcionário experiente que tinha
acabado se transformando num pobre imbecil acorrentado à parede numa casa de
loucos. Só quando sentiu que Koch ficava de pé, abandonou seus pensamentos e se
apressou a imitá-lo.
Seguiram o empregado ao longo de uma sucessão de aposentos iluminados
onde um sol palidamente amarelo parecia empenhado em brincar com os móveis,
espelhos e lâmpadas. Lebendig disse para si que, apesar do caráter germânico do dono
da casa, muito poucos daqueles objetos tinham origem alemã. Itália, França, Suíça, até
Espanha, eram lugares de onde tinha vindo — sabe-se lá como — aquele acúmulo, sem
dúvida excessivo, de relógios, esculturas, bronzes, tapetes e cristais. No fundo, não era
tão estranho. O Eleitor da Baviera sempre tinha sido uma figura cosmopolita. Tão
cosmopolita quanto devia ser alguém encarregado pela Bula de Ouro20 de participar da
eleição do titular de um império que pretendia acolher em seu seio a herança de Roma e
a do cristianismo surgido a partir de Constantino. Isso já fazia muitos séculos,
certamente, mas para os membros de uma aristocracia sempre acaba sendo difícil
esquecer um passado glorioso em maior ou menor medida para mergulhar na realidade
atual.
20
Lei promulgada em 1356 pelo imperador alemão Carlos IV.
— Herr Koch, chefe de polícia de Ingolstadt — anunciou o mordomo — e herr
Lebendig, sábio e erudito.
Lebendig reprimiu um sorriso quando ouviu a descrição que aquele criado
tinha lhe atribuído. Nunca lhe teria ocorrido pensar que era um erudito e muito menos
um sábio, mas — tinha que reconhecer — as pessoas costumavam fazer idéias um tanto
extravagantes dos outros, principalmente quando eram diferentes.
O Eleitor ergueu os olhos da primorosa escrivaninha em que estava sentado.
Abriu um sorriso agradável, acolhedor; pousou uma pena de brancura impecável sobre
uma bandejinha adornada com desenhos graciosos, fechou um tinteiro de prata e vidro e
se pôs de pé.
— Meus caros amigos — disse enquanto contornava a mesa e se dirigia de
mãos estendidas até os recém-chegados. — Meus caros, leais e tão admirados amigos.
O mordomo se inclinou e começou a caminhar para trás procurando não dar as
costa a seu amo. Koch e Lebendig fizeram uma reverência.
— Nada de cerimônias — protestou cordialmente o Eleitor. — Nada de
cerimônias. Este não é um ato oficial. Esta é uma reunião de um modesto servidor do
povo com dois de seus melhores colaboradores. Bitte, bitte, sentem-se.
Os dois homens se acomodaram num canapé de seda branca e azul, bordado a
ouro. Não era um móvel muito espaçoso, mas o conforto que transmitiu às suas nádegas
era realmente invejável.
— Gostariam de fumar? — perguntou o Eleitor, que tinha se sentado numa
poltrona forrada com o mesmo tecido do móvel em que Koch e Lebendig estavam.
Enquanto formulava a pergunta, o Eleitor apanhou uma caixinha de madeira de
mogno marchetada e a abriu. Em seu interior, descansavam alguns charutos de tamanho
considerável.
— Eu os mando trazer da América espanhola — disse sem abandonar seu
sorriso cálido. — Às vezes, acho que esses espanhóis nunca chegam a ter consciência
do que têm de bom. Seus vinhos, seu tabaco, seu açúcar, sua porcelana... a até, como
estamos entre homens, suas mulheres. Tudo excelente, mas... ah, parece que têm certa
incapacidade para serem felizes. Talvez seja o excesso de sol.
Koch observou a caixa. Não podia negar que a disposição dos charutos era
exemplar, realmente primorosa.
— Estes charutos são provenientes de um tabaco cultivado em Cuba, mas
cortado e elaborado em Sevilha.
Lebendig estendeu a mão, pegou um dos charutos, girou-o entre o indicador e o
polegar e disse:
— Realmente excelente.
— Danke, danke, sehr — disse satisfeito o Eleitor. — Pelo que estou vendo, o
senhor é um autêntico connoisseur.
Lebendig não respondeu ao elogio, enquanto Koch se perguntava como nunca
tinha visto o erudito fumar e até contava com vários relatórios que Steiner tinha
elaborado afirmando taxativamente que ele não consumia nenhum tipo de tabaco. Será
que seu ajudante tinha se enganado na hora de vigiá-lo? Talvez... talvez porque só se
entregasse àquele vício sujo e malcheiroso quando o material consumido fosse da
qualidade daquele que o Eleitor estava lhes oferecendo, ou talvez simplesmente porque
não se atrevia a recusar a oferta.
— Danke, eu não fumo — disse Koch enquanto observava, profundamente
surpreso, como Lebendig cortava o charuto, aplicava-lhe uma pequena chama que o
Eleitor acabava de lhe oferecer e, depois de aspirá-lo com deleite, lançava no ar uma
espiral de fumaça azulada.
— Preferiria um chocolate, um café, talvez um chá? — perguntou solícito o
Eleitor. — Eu vou tomar café.
— Sim, danke, vou tomar café — respondeu o policial.
— Magnífico — exclamou em tom jovial o Eleitor, ao mesmo tempo em que
estendia a mão até uma sineta, que repousava reluzente sobre a mesinha, e a tocava.
Como se estivessem esperando a ordem, dois lacaios abriram a porta dupla e
entraram no aposento carregando uma bandeja com um serviço de café completo e outra
com alguns doces. Em absoluto silêncio, depositaram sobre a mesinha os conteúdos
tentadores e se retiraram sigilosamente e sem voltar as costas.
— Bem — disse o Eleitor assim que seus convidados provaram o café. —
Chegou o momento de lhes explicar o motivo de ter-lhes pedido que viessem ao palácio.
Koch se sentiu um tanto incomodado quando ouviu a palavra "pedido". Teria
sido mais apropriado, mais correto e mais adequado empregar o termo "ordenado" ou
até "requerido", mas "pedido"... "pedido" lhe parecia excessivo e, por sua própria
natureza, ele desconfiava dos excessos.
— Trata-se de um pedido — disse o Eleitor insistindo em sua solicitude —
mais do que justificado. O serviço que os senhores prestaram ao Estado da Baviera foi...
como poderia dizer?, incomparável. Sim, incomparável. Nosso amado Estado estava na
mira de uma grave conspiração. Era grave não só porque pretendia acabar com a ordem
social, mas principalmente porque partia de alguns princípios... dissolutos, sim,
completamente dissolutos. Não porque eles desejassem aniquilar com a nobreza e a
monarquia, o que já é bastante grave, mas porque tinham a intenção de destruir as raízes
sagradas da ordem e depois espalhar a desgraça em outros reinos. Sinceramente, não sei
se o ser humano se deparou com uma soma de maldades como esta nos últimos anos.
Fez uma pausa, deu uma tragada no charuto, expeliu de forma lenta e prazerosa
a fumaça e levou a xicrinha de café aos lábios.
— Certamente, um trabalho dessa natureza merece uma recompensa...
Os dois convidados tentaram protestar, mas o Eleitor estendeu a mão direita
num gesto destinado a lhes impor silêncio.
— Já sei. Já sei de sobra. Não realizaram esse trabalho ambicionando qualquer
prêmio. Sei que os senhores são súditos realmente exemplares, mas... bem, eu seria um
ingrato se não lhes desse alguma paga. E insisto nisso. Com o serviço que prestaram à
Baviera, qualquer coisa que lhes entregar há de me parecer pouco.
— Herr Eleitor — começou a dizer Koch —, nossa maior...
— Não, não — voltou a interrompê-lo o nobre. — A decisão está tomada. O
senhor, herr Koch, passará a ser o chefe de minha guarda florestal. Terá que esperar até
a Páscoa, mas quero perto de mim um homem de tanto valor. Quanto a herr Lebendig...
Aí a questão é mais difícil. Se fosse católico, eu me encarregaria pessoalmente de que
lhe dessem uma cátedra em nossa universidade. Ganharíamos um sábio do qual, digo
isso sinceramente, estamos tão precisados. Mas, por motivos que nos escapam e nos
quais não quero respeitosamente me intrometer, herr Lebendig é protestante. Resolvi
por isso redigir algumas cartas de recomendação dirigidas a diferentes soberanos
alemães de sua mesma fé na certeza de que encontrarão um lugar digno de seus méritos
em algum de seus reinos. A divisão do cristianismo provocou um dano enorme ao longo
da História. Não estou pretendendo comparar esses desastres com meu destino, mas,
com toda a dor de meu coração, vai me custar muito perder um erudito de sua
envergadura. Deus, em Sua infinita sabedoria, saberá por quê.
O Eleitor se calou. Voltou a sugar o charuto, expeliu a fumaça azulada e se
deleitou com um novo gole de café. Dificilmente seria possível negar que seu rosto
rosado era uma expressão encarnada da satisfação. Esse era justamente um sentimento
que brilhava por sua ausência nas faces dos dois visitantes. Embora por razões
diferentes, nem Koch nem Lebendig tinham naquele momento o menor interesse em
receber honrarias, e principalmente, não as queriam se elas fossem se traduzir, de forma
imediata, em seu afastamento de Ingolstadt. Por mais palavras, sorrisos e movimentos
das mãos a que o Eleitor recorresse, por mais charutos, xícaras de café ou doces que
lhes pudesse oferecer, os dois tinham chegado, sem trocar uma única frase, à mesma
conclusão. Koch iria se ver arrancado das ruas para, em troca de uma boa renda, isso
sim, dedicar-se a vigiar para que nenhuma pessoa furtiva caçasse os veados ou os
faisões do Eleitor. Quanto a Lebendig, teria que partir para o exílio, um exílio talvez
bem remunerado e ligado a uma boa posição, mas exílio no fim das contas. A
recompensa por ter desarticulado uma conspiração que o Eleitor tinha classificado como
extremamente perigosa era, trocando em miúdos, tirá-los de circulação.
— Herr Eleitor — começou a dizer Koch em tom cortês, mas inegavelmente
frio —, nós nos sentimos aflitos com sua generosidade.
— Vamos, não é nada, não é nada, meu querido herr Koch.
— E nos sentimos tão aflitos — continuou o policial, disposto a que ninguém o
interrompesse — que nos permitiríamos, bem eu me permito a ousadia de lhe
perguntar... de lhe implorar que nos diga o que vai acontecer com os culpados pela
conspiração.
Pela primeira vez desde o início da conversa, o sorriso desapareceu do rosto do
Eleitor. No entanto, foi um gesto passageiro, rápido, quase imperceptível. Tanto que
Lebendig não soube direito se aquilo tinha acontecido de fato ou se ele tinha sofrido
uma enganadora ilusão de ótica.
- Os crimes cometidos são de uma gravidade enorme - começou a dizer o
Eleitor, num tom de severidade calma e convicta. - De enorme importância. Tanto que,
não vou esconder, as penas serão proporcionais à maneira como a lei foi violada.
— Por acaso seria muito indiscreto se pudéssemos saber quais? - perguntou
Koch, enquanto Lebendig tinha uma incômoda sensação de peso no peito ao ouvir
aquilo.
— Não, não, certamente, herr Koch — respondeu o Eleitor, cujo sorriso
continuava bamboleando jovial nuns lábios finos e pálidos. — Os senhores sabem
perfeitamente que as faltas cometidas são de uma gravidade sem par. Os castigos não
poderiam ser diferentes.
— Não nos resta a menor sombra de dúvida - disse Koch assim que o Eleitor
terminou de falar. — lustamente por isso nós lhe agradeceríamos, se fosse possível, se
nos informasse a esse respeito. É um favor que me atrevo, falo por mim certamente, a
lhe suplicar.
O Eleitor deu uma nova tragada no charuto e agora expeliu um círculo de
fumaça que subiu, sólido e compacto, pela atmosfera do cômodo.
— O principal responsável por tudo isto — começou a dizer — é o professor
Weishaupt. Até agora ele ocupava uma cátedra de direito na universidade, a mesma
universidade que em seu tempo a Companhia de Jesus dirigiu. Certamente, essa situação
não pode se prolongar. É completamente intolerável que alguém dedicado a destruir
nossa sociedade possa continuar formando mentes juvenis e as desviando para abismos
pervertidos. Essa situação acabou. Weishaupt perdeu a cátedra. E não foi só isso. Além
disso, será conduzido até a fronteira da Baviera e exilado. Sei que o castigo é severo,
mas será cumprido sem contemplações.
Lebendig aproveitou que estava levando o charuto até a boca para olhar para
Koch de relance. O rosto do policial tinha se transformado numa esfinge dura, pétrea e
fria.
— Desconfio que o juiz Zwack também será objeto de um castigo severíssimo
— disse Koch num tom de voz neutro.
— Zwack é um homem de notório prestígio — começou a dizer o Eleitor. —
Durante anos prestou à Baviera serviços de enorme relevância mas... não preciso
explicar isso ao senhor, herr Koch, a lei é a mesma para todos e a obediência anterior
não desculpa a violação de hoje. Posso lhe dizer, confiando que estamos entre
cavalheiros, que a sanção teria sido maior se o senhor não tivesse... se excedido quando
entraram na loja Theodore. Um homem com a boca machucada sempre inspira piedade.
Apesar de tudo, posso lhe garantir que a pena há de ser severa. Ele não será suspenso de
seu trabalho por menos de seis meses. Pior: eu não me espantaria, inclusive, se a
suspensão chegar a um ano.
— E o que acontecerá com o barão Von Knigge? — perguntou Koch
gelidamente.
— Pobre barão! — disse o Eleitor depois de beber todo o café da xicrinha. —
Von Knigge sempre foi um pouco... cabeça oca. Bom homem, amante da Baviera, mas
um pouco esquisito. Desde jovem cismou com essa superstição idiota das ciências
ocultas. Deus sabe lá o dinheiro que deve ter gasto em livros desse teor e os desgostos
que deve ter dado à família. O fato é que conheceu Weishaupt porque os dois
freqüentavam a mesma loja maçônica. Parece que, num primeiro momento, Von Knigge
achou que Weishaupt poderia ajudá-lo a aprofundar seus conhecimentos de ocultismo.
Quando descobriu que não era bem assim, manteve certa distância. Já faz bastante
tempo que deixou suas terras para viajar para fora da Baviera e, certamente, demorará a
voltar. A inconsciência, como o senhor bem sabe, não é uma virtude, mas também não
pode ser punida quando não reverte em prejuízo para alguém, e o pobre barão não fez
mal a ninguém.
— Estou entendendo — disse Koch —, estou entendendo... perfeitamente.
Quanto aos Minervais...
— Quanto aos Minervais — interrompeu o Eleitor —, acontece a mesma coisa
que com o barão. Eu mesmo os interroguei ontem. São uns pobres de espírito. Nada
mais do que pobres de espírito. Têm a cabeça cheia das minhocas típicas da maçonaria.
Que a fraternidade universal isso, que o conhecimento secreto aquilo, que esta tolice e
aquela outra... Tudo isso é indiscutível, é verdade, mas, no fundo, inofensivo. Depois da
repreensão que receberam ontem, não tornarão a se meter em confusões. Mais ainda,
herr Koch, eu não me espantaria se viesse a saber que vários deles acabarão deixando a
loja maçônica como o gato escaldado que foge da água fria.
Um silêncio denso como a névoa que no inverno emana da orla de um rio
caudaloso se espalhou pela sala. Ainda que ninguém fosse dizer isso, tanto Koch quanto
Lebendig sabiam que tinham chegado ao final da audiência. Só lhes restava se levantar,
agradecer e se preparar para adentrar num futuro que desconfiavam ser ingrato.
— Há uma última questão que gostaria de comentar com vocês -disse
inesperadamente o Eleitor. — É um assunto delicado, mas devo lhes dizer que o tomei
como uma questão realmente pessoal. Estou me referindo, como talvez já imaginem, à
sua entrada na loja Theodore. Graças a esse fato, acabou-se com a conjuração de
Espartaco, mas, nem preciso lhes explicar, os estragos causados durante o episódio não
foram pequenos e os membros da loja, pessoas decentes e respeitadores da lei, entraram
com um processo civil contra os senhores.
Lebendig voltou a olhar de soslaio para Koch. Os olhos do policial tinham sido
reduzidos a duas rugas quase fechadas que lhe davam uma aparência quase oriental.
— Em resumo — prosseguiu o Eleitor —, resolvi estender sobre os senhores,
permitam-me a expressão, meu manto protetor. Justiça seja feita, não poderia fazer
menos do que isso por duas pessoas tão dedicadas ao bem-estar da Baviera. Dei ordem a
meus advogados que entrassem em contato com os representantes legais da loja e, devo
lhes dizer com satisfação, conseguiram fazer um acordo com eles. Estão dispostos a
aceitar que os senhores paguem pelos danos de forma parcelada. Não os incomodarão. E
agora...
Koch e Lebendig se levantaram ao mesmo tempo em que o anfitrião.
— Não é o usual — disse o Eleitor —, mas acho que deveríamos nos despedir
com um aperto de mão.
Koch titubeou por um instante enquanto o Eleitor lhe estendia a mão direita.
Por um momento, Lebendig prendeu a respiração com medo de que ele a recusasse. Não
foi o que aconteceu. Sem tirar um minuto os olhos do rosto do Eleitor, o policial apertou
sua mão. Lebendig fez o mesmo.
— E agora, meus caros amigos, vão com Deus — disse sorrindo o Eleitor, ao
mesmo tempo em que tocava a sineta.
Caminhando para trás, com lentidão e procurando não tropeçar em nenhum
móvel, Koch e Lebendig chegaram até a porta, que dois criados de libré abriram às suas
costas. Ainda olhavam para a frente quando a folha dupla de madeira os separou para
sempre do Eleitor da Baviera.
Vinte e cinco
Baviera, 1788
INTRODUZIU O FIO DO ESTILETE no fio estreito que se estendia entre a folha da
porta e o umbral. Depois foi descendo o instrumento lenta e cuidadosamente até que sua
ponta encontrou a fechadura. Bem, agora era mais uma questão de destreza do que de
força. Pressionou de forma suave e lenta, com a segurança que a prática proporciona.
Um leve estalo anunciou de forma quase silenciosa que tinha acabado de alcançar seu
propósito. Apoiou as pontas dos dedos na porta e empurrou com cuidado. Ela cedeu sem
fazer barulho. Felizmente, as dobradiças estavam lubrificadas. Bom. Colocou agora as
duas mãos sobre o gume da porta e a deslocou pouco a pouco até que ela se abriu o
suficiente para permitir que ele entrasse.
Um cheiro estranho, misto de incenso, chá rançoso e alguma coisa indefinida
que não conseguiu identificar feriu suas narinas. Não lhe pareceu agradável, mas
também tinha que admitir que, ao longo da vida, já tinha cheirado coisas piores. Piscou
algumas vezes à espera de que seus olhos se acostumassem com a penumbra. Foi uma
questão de instantes. Bem rápido, conseguiu distinguir os contornos dos objetos e,
principalmente, das portas. Instintivamente, levou a mão até o cabo da pistola,
acariciou-o levemente e se dirigiu para o primeiro aposento.
Não estava trancada a chave e ele conseguiu abri-la sem nenhuma dificuldade.
Era uma simples e modesta despensa. Franziu os lábios decepcionado e deixou o
cômodo. Tinha acabado de entrar no quarto aposento quando um clarão, primeiro
azulado, depois vermelho-escuro, ofuscou sua vista. Era uma chama que, mal
iluminando a concha de uma mão, pousou por fim sobre uma vela para se transformar
numa luz clara e amarelada que se espalhou pelo ambiente.
— Estava à sua espera, herr Koch.
O policial levou a mão à pistola que carregava na cintura.
— Não faça isso — disse o homem que tinha acabado de acender a luz.
— Estou com uma arma apontada para o senhor e não teria o menor problema
em disparar se achar conveniente. Com dois dedos, dois dedos apenas, tire a arma do
cinturão. Não faça besteiras. Ao menor movimento suspeito, eu dispararei.
Koch aproximou o polegar e o indicador do cabo da arma. Puxou-a e a tirou da
cintura.
— Perfeito. Agora, sem fazer nenhuma besteira, deixe a pistola sobre a mesa.
Bom. Isso, isso. E agora, com a ponta dos dedos, empurre-a na minha direção. Com
cuidado. Lembre-se de que estou apontando uma arma para o senhor.
O policial obedeceu e a pistola chegou, deslizando sobre a superfície da mesa,
até o homem que apontava a arma para Koch.
— Imagino que o senhor saiba que acaba de cometer um crime de invasão de
domicílio...
Koch ficou em silêncio.
— Em qualquer outra pessoa, semelhante infração da lei seria imperdoável,
mas no futuro chefe da guarda florestal do Eleitor da Baviera... bem, é quase obsceno.
O policial apertou os lábios. Que o homem que o estava ameaçando soubesse
do destino que a autoridade máxima da Baviera tinha-lhe reservado não o surpreendia.
Na verdade, confirmava suas piores suspeitas.
— O senhor pode muito bem me denunciar à polícia, Weishaupt — disse
Koch, num tom seco.
— Não, não... — respondeu Espartaco com a voz carregada de ironia.
— A polícia de Ingolstadt não me inspira muita confiança. Às vezes entram
nos locais mais respeitáveis e começam a distribuir tabefes sem mais nem menos. Como
verdadeiros bárbaros. E isso sem falar nas vezes em que conduzem à presença do juiz
pessoas contra as quais não existem provas.
— O senhor sabe perfeitamente que esse não é o seu caso — disse Koch. —
Von Knigge, Zwack, Hans, o senhor mesmo, estão implicados em ações repugnantes,
inclusive estupro e morte de um infeliz e no assassinato de Steiner.
— Repugnantes? Não, não acho que essa seja a palavra exata. No máximo,
pode-se dizer que foram erros lamentáveis. Pessoalmente, acho que nunca deveriam ter
sido cometidos, mas não se pode fazer uma omelete sem quebrar os ovos. Nossas metas,
nossos objetivos, nossos propósitos são tão nobres que não ficam empanados, nem
mesmo ofuscados, por ações conjunturais.
Koch apertou os punhos até que suas unhas ficaram brancas. Que Weishaupt
classificasse de ação conjuntural a morte de Steiner tinha exacerbado a fúria que tinha
se apoderado dele, de maneira irresistível, durante o encontro com o Eleitor. Antes de
deixar o palácio, já tinha resolvido ir à procura de Espartaco, custasse o que custasse.
— Weishaupt — disse Koch fingindo uma segurança que não tinha —, você
jogou e perdeu.
— O senhor acha? — perguntou brincalhão o antigo catedrático. — Por que
está tão certo disso?
O policial olhou para a mesa. A meio caminho entre o candelabro e o lugar
onde estava parado, havia um tinteiro. Se pelo menos conseguisse chegar até ele...
— Sabe disso tão bem quanto eu — começou a dizer Koch. — Não, melhor,
muito melhor do que eu. Seus Illuminati não assumiram o governo da Baviera como
pretendiam. É bem provável que ainda tenham simpatizantes em Ingolstadt e, sem
dúvida, seu castigo foi brando demais, mas... mas esta vaza foi nossa. Você mesmo terá
que ir embora daqui. Eu fico e posso lhe garantir que estou muito longe de achar que
este assunto esteja encerrado.
Weishaupt abriu os lábios numa careta larga que pretendia ser um sorriso.
— Está enganado quando diz que não está encerrado, Koch — disse. — Para o
senhor, está.
O policial compreendeu naquele momento que Adam Weishaupt, Espartaco, o
criador dos Illuminati, iria disparar contra ele. Apoiou as mãos sobre a mesa e tentou
impulsionar-se com a força suficiente para alcançar o tinteiro e atirá-lo contra
Weishaupt. Só conseguiu aumentar em alguns dedos sua estatura. Não pôde ir mais
além. Primeiro, viu o clarão da pistola de Espartaco; imediatamente, sentiu como se um
coice de fogo o tivesse atingido na barriga; ato contínuo, viu-se impelido
irresistivelmente para trás e caiu de bruços. Depois veio a escuridão, uma escuridão
profunda e completamente isenta de sensibilidade.
— Policial estúpido — disse Weishaupt enquanto se levantava da cadeira. —
Poderia ter sido um dos nossos ou, pelo menos, manter-se à margem, mas tinha que
meter o focinho onde não era chamado.
Venceu a distância que separava a mesa do corpo que jazia inerte no chão.
Uma mancha da cor carmesim crescia, como se fosse de óleo, sobre o colete do policial.
— Assunto encerrado — resmungou com desprezo.
Estava se encaminhando até a porta quando ouviu alguns passos. Eram
discretos, sem nenhuma sombra de dúvida, mas não tão silenciosos que não pudessem
ser percebidos. Aborrecido, examinou a pistola que ainda fumegava em sua mão. Não
tinha tempo para recarregá-la, mas a arma do policial poderia servir. Retrocedeu alguns
passos com rapidez, agarrou a arma que Koch tinha deixado sobre a mesa e apagou a
vela com um sopro. Dificilmente, poderia ter agido de maneira mais oportuna. Na porta,
perfeitamente visível apesar da escuridão, tinha acabado de se recortar o perfil de um
homem que segurava uma pistola na mão direita.
TERCEIRA PARTE
Nêmesis
Um
Paris, 26 de julho de 1794
KARL
SENTIU
UMA
DOR
FORTE
na cabeça quando a luz do sol,
desagradavelmente brilhante, bateu em seus olhos. Instintivamente, levou a mão ao
rosto e procurou se proteger. Não foi possível. O sans-culotte puxou-o pela manga suja
e tornou a deixar seu rosto exposto aos raios impiedosos.
— Ponha-lhe os grilhões — disse um dos sans-culottes que o haviam tirado da
cela. — Se ele escapar, nós é que vamos pagar o pato.
A partir do momento em que ouviu o estalido sobre seus pulsos, perdeu a
esperança de poder proteger os olhos daquela luz ardente. Num esforço desesperado
para não ficar cego e evitar a dor, abaixou a cabeça. No entanto, a única coisa que
conseguiu foi que suas pálpebras se enchessem de lágrimas, umas lágrimas abundantes
e cálidas, que transbordaram e desceram pelas suas faces.
— Vamos. Não demore, seu porco — resmungou um dos sans-culottes ao
mesmo tempo em que puxava a corrente que prendia Karl. — Estamos com pressa.
Depois de atravessar um corredor estreito e subir uns dois lances de escada,
ainda meio às cegas, Karl cruzou o umbral do prédio onde o tinham confinado e saiu em
uma rua que lhe pareceu insuportavelmente barulhenta. Sem poder levantar a vista do
chão, para assim proteger seus olhos, procurou contornar os obstáculos que, rápidos e
perigosos como ratazanas, cruzavam em seu caminho. Nunca tinha gostado de Paris.
Seus habitantes sempre tinham-lhe parecido altivos, distantes, mal-educados e, quanto a
suas ruas, achava-as frias, impessoais, cinzentas e fedorentas. E, como se não bastasse,
Karl sempre tinha visto os intelectuais como um bando pedante e pretensioso de cínicos
sem moral.
Voltaire tinha enriquecido com o tráfico de escravos; Rousseau vivia às custas
das pobres viúvas idosas de quem arrancava dinheiro; D'Alembert não escondia o
desprezo que sentia pelos povos africanos, para os quais, na sua opinião, a escravidão
era um benefício... Tinham-lhe provocado sempre um profundo desagrado, mas, era
justo admitir, jamais tinha imaginado até que ponto suas idéias, típicas de uma elite
ambiciosa, acomodada e desejosa de substituir os clérigos na orientação da espécie
humana, poderiam acabar desencadeando aqueles efeitos. Embora, para falar a verdade,
quem tinha desencadeado o quê?
Desviou-se como pôde de uma enorme ratazana cinza que tinha acabado de sair
de um esgoto, provocando a gritaria de alguns parisienses famélicos. Com toda a
certeza, se o roedor não corresse muito, aquela noite seria a comida de vários estômagos
esfomeados. Porque a verdade era que nunca tinha assistido a tanta fome, tanta sujeira e
tanta miséria na capital da França como as trazidas pela vitória da revolução.
Não conseguiria dizer por quanto tempo foi obrigado a se locomover por
aquelas vielas sujas, malcheirosas e desagradáveis, mas quando, finalmente, pararam
diante de um prédio de grandes dimensões, seus olhos já tinham se acostumado à luz do
sol.
— Este é aquele que vocês estavam esperando — disse o sans-culotte a uma
das sentinelas. — Aqui estão os documentos.
O guarda deu uma olhada num escrito que mal conseguia decifrar. Dele se
poderia afirmar que era um revolucionário convicto, que não demonstrava qualquer
piedade pelos aristocratas e que tinha dado provas em mais de uma ocasião de sua
capacidade para eliminar, com as mãos se fosse preciso, qualquer inimigo do povo.
Pedir-lhe, ainda por cima, que soubesse ler e escrever era, sem dúvida, um exagero.
Depois ele virou o papel, fingiu decifrá-lo e em seguida, com um gesto displicente,
afirmou:
— Podem passar.
Um empurrão na altura da omoplata esquerda foi a tradução, no corpo de Karl,
da autorização que o sans-culotte tinha acabado de dar.
A passos largos, percorreram a distância entre a entrada espaçosa e uma escada
destrambelhada, de dimensões notáveis. Depois, como se conhecessem perfeitamente o
lugar, os sans-culottes começaram a subida aproveitando para estimular Karl com uma
coronhada no flanco e alguns socos na altura dos rins. Com a graça de Deus, pararam
quando chegaram ao primeiro andar. Àquela altura, Karl estava completamente exausto
e as pancadas não o estavam propriamente ajudando a recuperar as forças drenadas pela
falta de comida e de sono.
— Ele está esperando vocês há um bom tempo, cidadãos — disse-lhes um
tenente que cruzava o patamar da escada com grandes passadas ao mesmo tempo em
que fumava um cachimbo comprido. — E já sabem que ele não gosta de perder tempo.
Não havia o menor tom de censura naquelas palavras, mas os sans-culottes não
puderam evitar que um calafrio percorresse sua espinha dorsal.
— Venha, não vamos mais perder tempo — continuou o oficial enquanto se
encaminhava para uma grande porta e batia de maneira firme mas respeitosa.
Decidido, o oficial abriu a porta, avançou uns dois passos e disse:
— Cidadão, aqui está o prisioneiro.
Karl não pôde entender a resposta. Talvez tivesse se limitado a um simples
gesto, a uma careta habitual, a um aceno.
— Entre — disse então o tenente cravando os olhos em Karl. — Depressa.
Aquela sala tinha conhecido, sem dúvida, dias melhores. Continuava sendo
ampla e espaçosa, mas nelas os vestígios da revolução abundavam. No piso de madeira,
sem dúvida esplêndido em outros tempos, tinham acendido pelo menos uma fogueira de
dimensões nada modestas, as paredes denunciavam os vazios deixados por quadros que
tinham sido roubados ou destruídos, o revestimento das paredes estava descolado em
vários pontos e também era fácil perceber manchas de gordura, de vinho e de mãos,
como se uma varíola de imundície tivesse se propagado pela superfície antes rutilante
daquele aposento.
De costas para os recém-chegados, colado a uma janela não inteiramente
limpa, um homem de estatura mediana observava a rua. Sua casaca azul, adotada pelos
oficiais revolucionários, tinha um bom corte, quase se podia dizer que era de confecção
aristocrática. Não teria sido justo dizer a mesma coisa em relação às calças riscadas que
saíam dela e acabavam enfiadas numas botas de montaria reluzentes, que levaram Karl a
se perguntar quem poderia lustrá-las sem apelar para um empregado. Não usava peruca.
Pelo contrário, acompanhando a moda que ia se impondo em toda a França
revolucionária, seus cabelos eram longos e estavam presos por um laço amarrado à
altura da nuca. Como se estivesse particularmente absorto no que estava acontecendo na
rua, ele não se virou quando os passos dos sans-culottes anunciaram sua chegada.
— Podem se retirar — disse sem se virar.
— Cidadão... — atreveu-se a balbuciar o chefe dos sans-culottes —, não quer
que a gente fique para vigiar o prisioneiro?
— Não. Vão embora e não se esqueçam de fechar a porta.
Só quando o chiado de umas dobradiças mal lubrificadas e a batida da porta
contra o umbral indicaram que ela estava fechada, o oficial girou sobre os calcanhares e
se virou para Karl.
Bastava observar as duas pistolas que estavam presas por uma faixa vermelha à
sua cintura para perceber que a ordem dada aos sans-culottes para que deixassem o
aposento não era nenhuma imprudência. Com uma daquelas armas, ele poderia enviar
Karl para o outro mundo em questão de instantes.
— Foi difícil me encontrar? — perguntou num tom frio ao mesmo tempo em
que se sentava. — Ah, desculpe meus modos revolucionários. Sente-se, por favor.
Karl se aproximou de uma cadeira sólida, embora um pouco bamba, e largou o
corpo sobre ela. Estava realmente exausto e a sensação de conforto que aquela cadeira
transmitiu a suas nádegas e suas costas o levou a pensar que poderia dormir a qualquer
momento.
— Vejo que está cansado. Quer tomar um copo d'água?
— Não foi difícil encontrar você — disse de repente Karl, respondendo à
primeira pergunta de seu interrogador —, e, cíaro, agradeceria muito um pouco de água.
O oficial deu meia dúzia de passos até parar diante de dois copos e uma jarra.
Com cuidado, virou o líquido num dos recipientes. Depois, tornou a se aproximar da
mesa diante da qual Karl estava sentado para depositar o copo a uns dois palmos do
prisioneiro.
Um verdadeiro oceano de sensações se abriu na boca de Karl quando provou a
água. Primeiro, foi como se sentisse dissolver toda a sede salina que tinha ressecado sua
boca, acompanhado por uma experiência tão gratificante de uma estranha sensação de
alívio e frescor. Depois, o sabor lhe pareceu estranho e suavemente doce, como se fosse
um néctar nunca saboreado antes. Finalmente, de uma forma completamente
inexplicável, percebeu que uma cadeia tão gratificante de prazeres rompia a barreira da
boca e, descendo pelo peito, espalhava-se pelos braços até as pontas dos dedos e pelas
pernas até os joelhos.
Um sorriso de potência e domínio se desenhou no rosto do oficial, que tornou a
encher o copo de Karl. Encheu-o ainda duas vezes antes de se sentar em frente ao
prisioneiro.
— Como soube que eu estava em Paris — perguntou enquanto tirava as
pistolas da cintura e as colocava na mesa ao alcance das mãos.
Karl umedeceu os lábios com a ponta da língua, uma língua que tinha perdido
as terríveis características dos últimos dias e que, embora inchada, voltava a salivar
normalmente.
— Tive a certeza quando condenaram Luís XVI à morte — respondeu.
— Ora, puxa vida — disse o oficial com um sorriso de satisfação mal
disfarçado. — Então chegou à conclusão de que a revolução tinha estourado na França
por minha culpa?
O silêncio de Karl poderia ser interpretado como uma resposta afirmativa.
— Há alguma verdade nisso. Não vou negar, mas... como posso dizer? A
França já estava madura quando eu cheguei. Certamente, a aristocracia, os burgueses e
os professores eram nossos fazia muitas décadas, mas o fato é que até o clero já estava
acreditando em nossas idéias. Faz quase vinte anos a loja maçônica da Perfeita
Inteligência em Lieja já tinha entre seus membros o bispo, a maioria da cúpula da
catedral e boa parte dos padres da cidade. Não era uma exceção. Há quatro anos, o bispo
de Autun tinha se transformado num dos postos mais importantes de uma loja maçônica
desta cidade, e o abade Siéyes, que escreveu aquele livreto tão sugestivo sobre o
Terceiro Estado... bem, ele é membro da loja Filaletes de Paris. Se até Voltaire foi
iniciado na fraternidade por um bispo! Não, meu caro amigo, minha participação na
empreitada da revolução foi relevante, não vou negar por falsa modéstia, mas foi muito
menor do que você possa imaginar.
Karl ficou calado. Àquela altura, sabia o suficiente para se atrever a negar uma
única das informações apontadas por seu interlocutor.
— O avanço da revolução, da nossa revolução, é absolutamente incontrolável.
Eu sei disso e você, queira ou não, também sabe. Certamente, como em todos os
processos humanos que conduzem ao progresso, às vezes podem ocorrer retrocessos,
obstáculos, demoras, mas, não vamos nos enganar, se retrocedemos meia dúzia de
passos é apenas para ganhar fôlego e avançar de um salto outros cinqüenta. Você
deveria estar consciente disso.
— Não sinto que na Baviera tenham avançado muito nestes anos... Os olhos do
oficial se franziram como se ele tivesse recebido o impacto de um soco no fígado e
quisesse fingir que não tinha doído.
— Foi uma pena que eles tivessem nos descoberto — disse com uma voz que
pretendia se mostrar tranqüila. — Isso eu não vou negar. Tudo caminhava
perfeitamente. No entanto, como você pode ver por estas ruas, no fim das contas, o
resultado foi ainda melhor. Da França, de Paris, espalharemos a chama da revolução
pelo mundo inteiro. No fundo, por mais incômodo que possa parecer, a verdade é que
vocês tiveram um enorme trabalho e, como se pode ver, foi apenas um contratempo
facilmente superável. Foi um acidente que pode ser reparado.
— Você tem certeza do que está dizendo, Weishaupt? — perguntou o
prisioneiro com uma voz que ecoou inusitadamente firme.
— Claro, herr Lebendig, claro — respondeu com um sorriso o irmão
Espartaco.
Dois
Baviera, 1788 - Paris, 1794
— POR FAVOR, não faça isso.
Lebendig girou sobre si mesmo, tomado por um espanto profundo. Estava
havia anos com Emma e aquela era a primeira vez que a mulher lhe fazia um pedido
com o qual ele não concordava. Como se aquelas palavras tivessem acionado uma mola
escondida entre as dobras de sua memória, uma cascata de sentimentos começou a
brotar do coração pesaroso de Karl Lebendig. Apareceram então os primeiros dias em
que Emma o acompanhou através de uma Alemanha destruída, o momento em que
resolveu ficar com o rapaz, os primeiros — e difíceis — dias em Ingolstadt, ou aquelas
vezes em que, de forma humilde, tinha-lhe pedido que cantasse, despertando sua mais
absoluta surpresa. Mas a tudo isso foram se somando sensações às quais ele não
conseguia sobrepor uma imagem. A satisfação de um dia de trabalho concluído, a
alegria suave de vê-la costurando em silêncio, a forma diligente como corrigia os
exercícios do rapaz, a simplicidade solícita com que punha a mesa, a paciência
silenciosa com que tinha suportado sua enorme, crescente e asfixiante desorganização.
Não tinha reparado até aquele momento, mas, de repente, como se fosse uma revelação
mística, compreendeu que não lamentava nem um só dia que tinha vivido com ela e que,
se neste mundo existia isso que alguns chamam de felicidade, devia ser exatamente o
que ele tinha sentido, sem ter consciência disso, ao lado de Emma.
— Desconfio que não haja outro jeito — respondeu por fim Lebendig.
— Mas... mas... Karl, você vai acabar como seu amigo Koch, com um tiro na
barriga.
A lembrança da imagem do policial estendido inerte sobre uma poça de sangue
provocou uma careta de dor no rosto de Karl. Estava convencido de que, por mais
coisas que pudesse ver nos anos vindouros, poucas lhe causariam tanto horror quanto
ver seu amigo transformado em alvo da pistola de Weishaupt.
— Você quer que eu confie na polícia? — perguntou retoricamente, enquanto
guardava outra camisa numa bolsa de couro e pano.
— Não — respondeu suavemente Emma. — Sei que você não confia nela. E,
certamente, você tem razão, mas precisa admitir a derrota. Castigaram esse tal de
Weishaupt da mesma forma como premiaram você.
Por um instante, um breve instante, Karl parou. Mas foi apenas um mero
segundo de fraqueza provocada mais pela dor do que pela ausência de forças. Fechou os
olhos, respirou fundo e continuou a preparar a bagagem.
— Você está cansado de saber de que eu preciso de muito pouco. O rapaz
também. Vamos embora o quanto antes. Se você quiser, podemos aproveitar as cartas
que o funcionário do Eleitor lhe entregou, e se não quiser, tanto faz. Começaremos de
novo. Como das outras vezes. Mas prefiro me transformar em lavadeira, não poder
trocar de roupa e até passar fome a que lhe aconteça alguma coisa.
A mulher fez uma pausa, engoliu em seco e continuou:
— Sei que não tenho a menor importância, mas... mas o que será do rapaz?
Você é a única pessoa que pode lhe ensinar alguma coisa. O que será agora de sua
educação?
Um estalido seco anunciou que Lebendig tinha fechado a bolsa de viagem.
Com os olhos transbordantes de tristeza, ele se virou para Emma. Sem tirar os olhos
dela, enfiou a mão no bolso do casaco e retirou um saquinho de couro.
— Isto é tudo o que eu tenho — começou a dizer com a voz embargada pela
emoção. — Sei que não é muito, mas... não há mais. Amanhã virá um livreiro avaliar a
biblioteca. Aceite o que lhe derem. Eles lhe roubarão, mas, sinceramente, não acho que
temos qualquer alternativa. Fique com tudo, pegue o rapaz e saiam daqui. Não tenho a
menor dúvida de que a seu lado não lhe faltará nada.
Emma colou seu corpo ao de Karl, repousou a cabeça sobre seu peito e
começou a chorar. Foi um choro suave, prenhe de tristeza, doloroso, no qual se
misturavam a perda do único tesouro material que Lebendig possuía e a inquietação
angustiante pelo que poderia lhe acontecer. No entanto, apesar da profundidade de sua
aflição, em suas lágrimas não havia um só átomo de raiva, de ressentimento ou de ódio.
— Eu lhe imploro, Karl - disse com um fio de voz que mal se podia ouvir. —
Fique conosco. Vamos juntos embora de Ingolstadt.
— É impossível — respondeu Lebendig, afastando-a dele e pegando a mala de
viagem. — Agora tenho que ir.
— Mas... mas se você voltar... — começou a dizer num tom de voz que
deixava claro sua quase absoluta falta de fé na volta de Lebendig —...Se você voltar...
como nos encontrará? Como vai saber do lugar em que teremos ido parar?
— Se eu voltar... se eu fizer isso... — começou a dizer Lebendig — eu me
encontrarei com você e com o rapaz. Não tenha a menor dúvida disso.
Lebendig deixou o aposento. No corredor, com os lábios apertados e os olhos
exageradamente abertos, o rapaz estava apoiado contra a parede. O erudito o abraçou
por um instante. Depois, sem olhar para trás, abandonou a casa onde tinha sonhado
permanecer até o dia de sua morte, cercado de livros e papéis, e ao lado de uma mulher
que não sabia se amava, mas que — disso não tinha a menor dúvida — teria dado a vida
por ele.
Durante os anos seguintes, Karl Lebendig foi seguindo Adam Weishaupt
através de meia Europa. Quando o conspirador saiu de Ingolstadt — com uma pensão
de oitocentos florins que o Eleitor lhe tinha outorgado —, deu a impressão de que a
terra o tinha engolido. Durante meses, Lebendig, cansado e vencido pela nostalgia,
perguntou a si mesmo várias vezes se não estava enganado perseguindo Espartaco. No
entanto, sempre respondia a si mesmo que não, que era isso o que deveria fazer, que
essa era sua obrigação com seu pobre amigo Koch, aquele em quem Weishaupt tinha
descarregado um tiro de pistola na barriga, um pouco antes de escapar de suas mãos
fugindo por uma janela. E, quando chegava a esse ponto, dizia a si mesmo que se
tivesse chegado àquela casa apenas um minuto antes nem Espartaco teria fugido nem,
principalmente, Koch teria se transformado em trágico defunto.
O acaso, ou melhor, a Providência, veio em seu auxílio, justamente numa das
noites em que a distância de casa e a lembrança de Emma e do rapaz se tornavam mais
insuportáveis. Uma dupla de estudantes, naquele momento especialmente interessada
em consumir uma travessa gigantesca de salsichas, comentou que um mestre
extraordinário chamado Adam Weishaupt estava dando aulas em Regensburg, perto da
fronteira com a Suíça.
Chegou a Regensburg dois dias depois, apenas dois dias depois que Weishaupt
tinha deixado a cidade com destino desconhecido. Lebendig não sabia, mas Espartaco
estava prestes a se pôr a serviço do duque de Saxônia-Gotha. No momento de
investigar, mais uma vez, era tarde demais.
Quando os jornais trouxeram a notícia sobre a tomada da Bastilha — tomada
cuja verdadeira natureza tinha conhecido na prisão alguns dias antes —, Lebendig
experimentou uma sensação estranha. Não tinha nenhum motivo importante, mas
alguma coisa em seu interior o preveniu, como a varinha indica ao adivinho a
proximidade da água, de que Espartaco não devia estar longe. Quando soube que
Mirabeau e Lafayette, que Danton e Marat eram maçons, a levíssima intuição se
transformou numa firme suspeita. Passou a ser uma convicção que beirava o absoluto
quando soube que Luís XVI tinha sido condenado a morrer na guilhotina, um
instrumento, certamente, inventado por outro maçom. Sim, poder executar um rei, o rei
mais importante da Europa, era uma vitória de tal categoria que Espartaco não perderia
a oportunidade de presenciar.
Karl Lebendig não tinha se enganado nem um pouco. Exatamente naquela
praça repleta de curiosos e entusiastas ele tinha encontrado, pela primeira vez em anos,
Adam Weishaupt, aliás Espartaco. Tinha-o perseguido, mas apenas para perdê-lo no
meio da multidão e então se perguntava o que teria podido fazer com um homem
daquela categoria caso, improvável talvez, tivesse conseguido agarrá-lo. Durante alguns
meses, tentou localizá-lo, mas apenas para tomar conhecimento de que tinha saído para
propagar o novo Evangelho pelas províncias. Lebendig não tinha nenhuma sombra de
dúvida de que, com toda a certeza, Espartaco tinha ido para onde pudesse desenvolver
seu trabalho com maior eficiência. Foi essa convicção o que impulsionou Lebendig a
percorrer as áreas do país onde a resistência às novas idéias pudesse ser maior.
Durante meses, esperou encontrar Weishaupt em algum comitê revolucionário
de províncias onde fosse decidido confiscar uma igreja para utilizá-la como quartel, ou
se adotasse um plano de ensino que impregnasse as mentes infantis com as novas idéias,
ou onde simplesmente se anunciasse a esperança num mundo novo que,
necessariamente, deveria se alicerçar no sangue dos invejados. Esteve por duas vezes
prestes a alcançá-lo e nas duas vezes ele desapareceu antes que pudesse chegar até ele.
Na última, soube, no entanto, que tinha voltado a Paris. O Terror tinha começado e, de
maneira compreensível, Weishaupt queria estar perto das molas do poder.
Por fim, da forma mais inesperada, tinha chegado até ele, logo depois de sua
inesperada prisão. Tinha-lhe bastado dizer que era um agente a serviço de Espartaco e,
graças a Deus, aquele homem — que continuava se apegando a seu apelido, como um
avarento a suas posses, sem trocá-lo ou alterá-lo através dos anos — tinha ordenado que
ele comparecesse à sua presença. Agora, estavam sentados frente a frente naquele salão
que tinha conhecido, sem sombra de dúvida, dias melhores.
Três
Paris, 26 de julho de 1794
—A
VERDADE
É
QUE VOCÊ,
Lebendig, nunca nos compreendeu — começou a
dizer Adam Weishaupt. — Com seu amigo Koch aconteceu algo parecido. Era um
homem eficiente, sem dúvida, mas sua inteligência não ia tão longe quanto ele pensava
e, no final, os fatos... como eu poderia dizer? Os fatos o ultrapassaram.
A menção ao policial provocou uma onda de dor em Karl. Já tinham se passado
vários anos, mas ele não conseguia afastar de sua mente, nem de seu coração, aquele
corpo caído no meio de uma poça de sangue.
— Por que acha que os fatos não ultrapassarão agora vocês? — perguntou
Lebendig contendo a raiva que tinha se apoderado dele quando escutou a forma como
Espartaco se referia a Koch.
— Pela simples razão de que não está acontecendo nada que não tenhamos
previsto — respondeu Weishaupt num tom de voz quase jovial.
— Desde o começo, estava claro para nós que nosso dever era unificar o
esforço das lojas maçônicas para conquistar o poder. Parece mentira a quantidade de
idiotas que pode acabar passando pela cerimônia de iniciação sem que ninguém impeça
isso! Sei que até de um tolo se pode extrair algo de útil, mas também não é o caso de ir
reunindo ambiciosos e idiotas. Uma vez atingida a unificação, tínhamos apenas que
lançar nossa mensagem de mudança através das diferentes lojas para que ela corresse,
da mesma forma como o sangue corre através das veias. Nobres e plebeus, artesãos e
mestres, médicos e padres receberam a mensagem de liberdade, de igualdade e de
fraternidade. Mas, como você há de compreender, para se construir um novo mundo,
um mundo iluminado que avança sem medo pelo caminho do progresso, é preciso
destruir antes aquele que existe. Soldados, mestres, juízes, reis, bispos, universidades,
igrejas... tudo, tudo precisa mudar e se adaptar à nossa visão... ou então desaparecer.
Porque, como você sabe, ou pelo menos desconfia, para se construir uma nova
sociedade é necessário se apoderar de sua alma, e para se conseguir isso é preciso
desarraigar primeiro todas as crenças, começando certamente pelas espirituais.
— Eu tinha entendido que você era cristão... — disse Lebendig, num tom
tingido de amarga ironia.
— Está dizendo isso por causa das cartas? Meu caro Karl, para acabar com o
cristianismo, a primeira coisa que você tem que fazer é anunciar que está pregando as
palavras de Cristo. De um outro Cristo, é claro, mas de Cristo no fim das contas. Com
um Cristo mais... terreno, mais apegado à realidade, mais preocupado com os problemas
políticos, não temos nenhum problema. Podemos conviver perfeitamente com um Cristo
revolucionário ou filósofo; com um professor de moral que inste as massas a se amarem
sem detalhar em que consiste tal mandamento; com um Cristo que trate dos corpos, mas
não das almas. Os redentores... não precisamos deles.
— Corrija-me se eu estiver errado, Espartaco — disse Lebendig —, mas não é
exatamente isso o que o Diabo ofereceu ao Senhor? Transformar as pedras em pão para
se apoderar do coração das massas, entregar-lhes os reinos da terra se aceitasse seus
métodos...
— Diabo significa "o trapaceiro" em grego. Não deixa de ser um nome
calunioso — cortou Weishaupt repentinamente irritado. — Mas, para responder à sua
pergunta, isso é o que os Evangelhos dizem... mas quem pode saber o que existe de
verdade em escritos tão antigos? Quem? Tu, por acaso, Lebendig?
Lebendig não ficou incomodado com a mudança do você pelo tu que Espartaco
tinha acabado de fazer. Pelo contrário, teve a sensação de que havia tocado alguma área
sensível de seu ser mais escondido.
— Você deveria ser o primeiro a saber que o homem não vive só de pão, que
tem necessidades espirituais, que não se conformará exclusivamente com palavras
vazias sobre cidadania, paz ou harmonia universal. Goste você ou não, Weishaupt,
somos pedaços de barro que sabem que podem se transformar em algo mais e que para
isso necessitam da ajuda de Deus.
— Não me venha com algaravias — cortou Espartaco num tom áspero. — Esse
é um ensinamento típico de escravos. Aqueles que possuem a luz sabem que ele não
corresponde à realidade. Como ele soube, o primeiro iluminado, o que foi expulso dos
céus. — Weishaupt respirou fundo, fez uma pausa e acrescentou. — Se continuar nesse
caminho, de uma hora para outra vai começar a me falar sobre a redenção que Cristo
conquistou para a Humanidade morrendo em lugar dela na cruz.
— É esse Cristo que você não pode suportar, Weishaupt — disse Lebendig
que, de repente, tinha começado a se sentir forte. — Exatamente o verdadeiro Cristo, o
redentor, o que amou a espécie humana até o ponto de se oferecer por ela. Lamento lhe
dar aquilo que, com certeza, você vai achar uma má notícia, mas estou convicto de que
vocês não conseguirão apagá-lo da face da terra. Não têm a menor chance, por mais
sangue que essa guilhotina que inventaram derrame.
— O que é que você sabe, idiota? — gritou Weishaupt enquanto se levantava
de um salto. — Acha que essas pessoas que gritam, clamam e pedem a cabeça dos
aristocratas sabem o que querem? Claro que não. Simplesmente acham que querem
aquilo que nós lhes dissemos que querem. Sempre foi assim e sempre será. No passado
obedeceram a outros que possuíam a luz, agora, convencidos de que são livres, estarão
submetidos a nós.
Karl cravou o olhar em Espartaco, embora tenha ficado em silêncio. Parecia
inegável que o revolucionário estava tomado de uma cólera que ardia em seu íntimo
como se fosse um fogo devorador que tinha sido atiçado porque ele tinha ousado
contradizê-lo.
— Lebendig, és tão idiota quanto outros que conheci — prosseguiu Weishaupt.
— Como os jesuítas da universidade, que nunca tomaram conhecimento de quem eu era
e do que eu era capaz de conseguir. Como tantos membros da maçonaria que vão em
busca de divertimento como se aquilo fosse um clube de caça. Como muitos dos que
escrevem sobre o avanço da espécie humana. Ignorantes! Uma sociedade é como um
campo de cultivo. Só é preciso se preocupar com os ensinamentos que as crianças
recebem, com as pessoas que administram a justiça, com alguns policiais, e pouca coisa
mais... Com essas sementes na mão, o que há de crescer em poucos anos será muito
diferente. Arrancamos a erva daninha do cristianismo e semeamos a filosofia do
progresso; arrancamos as ervas ruins da ordem e semeamos a promessa de um futuro
melhor; arrancamos essa instituição opressora que se chama família e semeamos nossa
doutrina nos corações de algumas crianças que serão educadas única e exclusivamente
pelo Estado; arrancamos os púlpitos e queimamos as Bíblias, e semeamos nossos jornais
e panfletos. É assim que se muda o coração de uma sociedade, e quando o coração já
não é o mesmo basta dar uma pancada no móvel corroído para que ele venha abaixo.
Weishaupt tinha começado a agitar os braços e a elevar a voz, como se aquela
veemência pudesse proporcionar mais solidez a suas idéias.
— E é tudo isso que você quer opor ao Galileu, o crucificado? Há! Calou-se
por um instante, mas Lebendig tinha certeza de que seu silêncio não seria definitivo. Em
todo caso, ele estava decidido a impedi-lo. Se conseguisse simplesmente se aproximar
dele, se o afastasse o suficiente da mesa para não poder pegar suas pistolas...
— Seria um absurdo comparar - começou a dizer Lebendig num tom de voz tão
calmo que ele mesmo ficou surpreso. - Ele não teve problema em morrer para salvar os
outros, vocês estão assassinando os outros aos milhares para salvarem a si mesmos. Ele
era Deus feito homem e vocês são homens empenhados em brincar de Deus. Ele
ressuscitou e vocês seguirão o caminho de toda carne.
— Mas... mas que baboseiras você está dizendo? — gritou Espartaco enquanto
seus olhos chamejavam. — Mas pode se saber o que é que você pensou? O que está
pretendendo? Dar sermões? A mim? A mim, que iniciei dúzias de homens nos mistérios
mais elevados da loja? A mim, que vi príncipes suplicarem para que lhes transmitisse os
segredos profundos do conhecimento? A mim, que estou mudando a História?
Karl receou ter ido longe demais. Weishaupt estava tão encolerizado que a
idéia de que ele pudesse matá-lo ali mesmo lhe pareceu totalmente plausível. Sem
dúvida, não precisaria se justificar perante ninguém. Bastaria dizer que tinha eliminado
um inimigo do povo quando ele estava pretendendo escapar ou quando tinha tentado
agredi-lo.
O soco ecoou sobre a mesa apenas um segundo antes que Espartaco a rodeasse
e se encaminhasse até ele. Uma bofetada lhe virou o rosto para a direita, provocando-lhe
uma dor aguda no pescoço.
— Escute isto, seu filho-da-puta. Estivemos prestes a conseguir isso na
Alemanha. Prestes. Se isso não aconteceu foi por causa daquele intrometido do Koch e
por sua ajuda idiota. Mas... mas como somos mais fortes, mais sábios e mais numerosos
do que você e todos os Koch do mundo, não demoramos a nos recuperar. E nos
recuperamos na França... Antes que pudessem perceber, já tínhamos decapitado o
Capeto. Já se deu conta? O próprio Luís XVI! E agora... agora o futuro nos espera, um
futuro que será nosso. Mas não faz sentido continuarmos conversando. O que vamos
fazer com você? Matar seria fácil, mas um tanto vulgar. Deixá-lo ir embora... a verdade
é que você não pode fazer mal algum, sinto muito pelo seu orgulho, mas... quem sabe?
O melhor... o melhor será enfiá-lo num manicômio...
Lebendig tentou calcular a distância a que podia estar das pistolas. Se apenas
conseguisse empurrar Espartaco e enviá-lo para a outra extremidade do aposento...
Talvez então... sim, talvez nesse caso pudesse se atirar sobre a mesa e se apoderar de
uma arma.
Quatro
Paris, 26 de julho de 1794
—E
A
FRANÇA —
PROSSEGUIU
Espartaco enfurecido — é apenas o começo.
Daqui passaremos para os países germânicos, para a Itália, onde poderemos atiçar o
ódio que o povo sente pelos Estados Pontifícios, para a Espanha e até a Rússia.
Retrocedeu alguns passos sem deixar de encarar Lebendig. Não, não poderia
deixar escapar assim a chance de se salvar daquela loucura em que a França tinha se
transformado.
— Durante séculos invejaram sua arte decadente, sua música ruim, suas
construções exageradas — continuou Weishaupt, prestes a tornar a rodear a mesa e se
sentar perto das armas. — Agora, com a mesma ignorância adorarão sua revolução,
nossa revolução, e, fazendo isso, seguirão a causa da liberdade, da modernidade, do
progresso...
— Oh, pelo amor de Deus! Não seja hipócrita, Weishaupt! — interrompeu-o
inesperadamente Karl. — A qual liberdade você está se referindo? A qual progresso?
Acha que eu sou um imbecil? Vocês só pretendem lhes tirar a liberdade, privá-los de
sua História, trocar sua existência por outra controlada por pessoas como você. Na
verdade, a única coisa que querem é submetê-los à pior das tiranias, aquela que é secreta
e se disfarça de liberdade...
— Não! — berrou Espartaco, ofendido com as palavras de Lebendig. —
Tirania, não! Tirania é a dos padres e dos reis. Nós... nós estamos iluminando os
homens para que vivam de outra maneira.
— Vamos, Weishaupt! — exclamou com menosprezo Karl, numa nova
tentativa de que Espartaco se aproximasse. — Você sabe de sobra de que se eles
soubessem o que vocês pretendem não os seguiriam. Por isso vocês os enganam com
palavras vazias, por isso escondem quais são os seus propósitos. É disso que vocês se
valem, da ignorância das pessoas. Poderiam mandar pelos ares uma igreja com duzentas
pessoas em seu interior e depois afirmar que a culpa é de outros. No fim das contas,
todas as suas palavras ocas se reduzem à capacidade de assassinar impunemente os
inocentes.
— Co... como se atreve? — disse um enfurecido Espartaco que tornou a se
aproximar de Lebendig. — Sim, é verdade que eles não sabem e, por isso, infelizmente,
nunca poderão nos agradecer, mas... mas os estamos conduzindo para o progresso. Para
o progresso. Está entendendo? Para o progre...!
Não completou a frase. A cabeça de Karl, impulsionada contra ele como se
tivesse sido acionada por uma mola, chocou-se contra seu peito, arrancando dele um
gemido de dor. Cambaleou e deu uns dois passos para trás, mas não caiu. Lebendig
estava fraco demais depois de ter passado pela masmorra da revolução, e Weishaupt era
muito mais forte do que poderia parecer à primeira vista.
— Seu filho-da... — começou a dizer Espartaco, mas não terminou. Com
espanto, viu como Lebendig mergulhava sobre a mesa com a intenção de se apoderar de
uma das pistolas.
A mão de Karl não chegou a tocar a arma. Estava a ponto de tocá-la quando
uma pancada aplicada sobre sua espinha dorsal fez com que lançasse um uivo de dor.
Depois, uma mão de ferro se agarrou a seu ombro e o obrigou a se virar. O que veio em
seguida foi uma série de murros dirigidos a seu estômago, seu peito e seu rosto.
Instintivamente, levantou as mãos procurando se proteger. No entanto, os grilhões, que
prendiam seus punhos, não lhe permitiam manobrar como teria desejado. Teve então
que se conformar em apresentar as palmas das mãos como um pálido rebatedor que mal
conseguia deter a fúria desatada de Espartaco.
— Vou... vou te matar... — gritava Weishaupt num esforço inútil para acertar
um golpe definitivo em Lebendig, mas o homem que o tinha perseguido através de meia
Europa não estava disposto a se entregar. De repente, sua mão esquerda conseguiu se
fechar sobre o pulso de Espartaco. Foi um movimento inesperado, imprevisto que, por
um instante, paralisou o surpreso revolucionário e permitiu a Lebendig empurrá-lo para
trás com todas as suas forças.
Ofegando, Karl girou sobre sua cintura e esticou a mão até a pistola. Seus
dedos roçaram o cabo da arma e, com um movimento ágil impulsionado pelo desespero,
puxaram-no. Mas não conseguiu aproximar o dedo indicador do gatilho. Uma mão
transformada em garra caiu sobre a sua disposta a impedir aquele movimento. Karl
procurou usar o cotovelo contra seu atacante, mas percebeu imediatamente que esse
movimento do braço só conseguiria esticar os grilhões e afastá-lo da pistola. Não lhe
restou outro remédio, portanto, a não ser se esforçar para chegar até ela, a não ser esticar
os dedos até uma meta vital que parecia inatingível, a não ser prolongar seus membros
como se fossem feitos de um material diferente de seus pobres ossos, músculos e
tendões. Foi quando foi puxado violentamente pela mão e jogado para trás, vendo-se
obrigado a soltar um grito.
Espartaco tinha agarrado a corrente dos grilhões e a tinha puxado com tanta
força que esteve prestes a deslocar o pulso direito de Karl. Este tinha cedido, batendo
contra a escrivaninha. Então, Weishaupt, com um movimento rápido, sem deixar de
segurar a corrente, passou o braço em volta do pescoço de Lebendig e o afastou da
mesa.
Karl tentou resistir, mas a pressão que o revolucionário exercia sobre sua
garganta o impedia de respirar e, privando-o de ar, incutia-lhe uma insuportável
sensação de fraqueza. Sentiu que estava se asfixiando, que suas pernas se
transformavam em dois pedaços moles de algodão, que a vida estava lhe escapando.
Então, a pressão que Espartaco exercia sobre seu pescoço diminuiu. Foi apenas um
segundo, antes que um novo puxão nos grilhões o obrigasse a descrever um semicírculo
que o afastou da mesa. Bocejou procurando respirar. Não conseguiu. O soco que foi de
encontro a seu nariz o impulsionou vários passos para trás; o soco no estômago o forçou
a dobrar-se arrancando o último filete de ar que restava em seu corpo, e o que o atingiu
na mandíbula atirou-o ao chão.
Levantou a cabeça com olhos lacrimejantes, o sangue escorrendo pelo seu
rosto. Piscou para clarear a visão e viu Espartaco que, enfurecido, empunhava as duas
pistolas. Pela fenda dos lábios saía um sorriso cruel e Lebendig compreendeu que ele
não hesitaria em apertar o gatilho. Sentiu naquele momento que um calor insuportável,
semelhante ao de um forno de padaria, concentrava-se em suas orelhas. Bem que
gostaria de pensar em alguma coisa que lhe permitisse evitar a morte e sair bem daquela
situação crítica, mas sua mente parecia encortiçada, paralisada, oprimida pela certeza do
que estava se aproximando dele. Fechou os olhos e, de uma forma quase instintiva,
típica de quem tinha vivido anos acreditando em sua presença, encomendou sua alma ao
Redentor. Um estrondo — semelhante ao de uma mobília sendo esmagada — fez com
que abrisse os olhos. A alguns passos dele, observou o rosto estupefato de Espartaco,
que voltava os olhos na direção da porta. Ou melhor, do que tinha sobrado dela. Estava
meio solta, como um galho de árvore quase arrancado pelo vendaval. A seu lado, meia
dúzia de sans-culottes apontava suas baionetas para Weishaupt. Desejando dar alguma
solenidade, um oficial saiu do grupo, avançou alguns passos até o fundador dos
Illuminati e disse:
— Cidadão Espartaco, o tirano Robespierre caiu. O regime do Terror chegou
ao fim. O povo ordenou sua prisão.
— O quê... o quê...? — balbuciou Weishaupt. Não chegou a dizer nem mais
uma palavra antes que dois sans-culottes o tirassem a coronhadas do aposento.
Cinco
Baviera, 2 de agosto de 1794
— ENTÃO LEVARAM Espartaco preso...
— Sim — respondeu Lebendig num tom tranqüilo. — Imagino que seja uma
coisa normal nas revoluções, embora Weishaupt... enquanto estive na França, vi dúzias
de prisões. Alguns, quando eram presos, manifestavam o medo pelo que estaria à sua
espera. Outros tinham a aparência cansada de quem assiste ao cumprimento de um
destino que se deve considerar inexorável. Lembro-me inclusive de alguns casos em que
pareciam aliviados, com o se, ao serem presos, se vissem livres da angústia de se
esconder e fugir. Mas Espartaco... Espartaco era a imagem viva do espanto. Apenas
alguns minutos antes ele tinha estado me explicando seus planos para conquistar o
mundo, apenas alguns minutos antes tinha me derrubado no chão... e de repente, paft, da
forma mais inesperada, passou de carcereiro a prisioneiro.
— E como o senhor conseguiu sair dali?
— Não é tão estranho numa revolução — respondeu Lebendig. — Afinal de
contas, na França eles vivem abrindo e fechando as portas das prisões há anos. Primeiro,
eles as abriram para soltar criminosos e malfeitores que os dirigentes da revolução
resolveram considerar aliados em sua luta pela libertação do povo. Deixaram as prisões
vazias, literalmente vazias, claro que não por muito tempo. Num piscar de olhos, eles as
abarrotaram com sacerdotes, nobres, comerciantes ou simples trabalhadores que não se
entusiasmavam com a guilhotina ou que tinham sido denunciados por um vizinho.
Segundo eles, todos esses não eram o povo. Não, eram inimigos do povo. E a essa
loucura se somava a dos partidos... Os girondinos passaram de carcereiros a
encarcerados pouco antes que Robespierre instaurasse o Terror e começasse a
guilhotinar seus próprios companheiros da Montanha21. Enquanto governava, chegou a
propor a deportação para as ilhas de todos os suspeitos. Não daqueles que se opusessem
à revolução, não. Dos suspeitos de poderem vir a fazer isso! Nem os tiranos gregos, nem
21
Facção radical da Revolução Francesa, liderada por Robespierre, Danton e Marat.
os déspotas dos assírios ou dos persas chegaram a tanto. Certamente, Luís XVI não fez
isso. Em uma semana, os defensores da liberdade executaram mais pessoas do que o
pobre Capeto ao longo de todos os anos de seu reinado. Lebendig fez uma pausa e
respirou fundo.
— Estou fugindo do assunto — disse em tom humilde. — Sem dúvida, estou
ficando velho. Bem, como estava dizendo, quando Robespierre foi derrubado, os
mesmos sans-cullotes que o tinham aclamado como pai da pátria, que o tinham
aplaudido como o patrono da liberdade, percorreram as prisões e abriram as celas,
colocando as pessoas na rua.
— Foi o que aconteceu com o senhor?
— Nem cheguei a voltar para a cela — sorriu Karl. — Enquanto retiravam
Espartaco do recinto, o oficial dos sans-culottes se aproximou de mim com gesto
cerimonioso e me disse: "Cidadão, a causa da liberdade venceu. Pode ir embora."
— Alegro-me pelo senhor. Mas o que eles fizeram não deixa de ser uma
estupidez. Imagine se tivesse sido um delinqüente, um ladrão, um saqueador...
— Melhor ainda — disse Lebendig ironicamente. — Então teria sido,
objetivamente, um esteio da causa revolucionária.
Um silêncio pesado, apenas pespontado pelo canto distante de um rouxinol,
desceu sobre o jardinzinho onde Karl Lebendig estava sentado com seu acompanhante.
— Realmente é tão ruim?
O rosto de Lebendig se entristeceu enquanto ele respirava fundo.
— Para lhe ser sincero — começou a responder —, é muito pior do que eu
possa lhe contar. Nunca vi tanto derramamento de sangue, tanta demagogia, tanta
mentira, tanta manipulação... E eu já vi coisas horríveis, como o senhor sabe.
— O senhor acha que tudo vai acabar, agora que Robespierre caiu?
— Não tenho fé suficiente para acreditar nisso — respondeu Lebendig. —
Houve assassinos antes de Robespierre e baseados em seus mesmos princípios, não me
surpreenderia se outros iguais ou piores o sucedessem.
— Bem... não se pode dizer que o senhor tem uma visão muito otimista do
futuro...
— Prefere que eu minta? — perguntou com tristeza na voz Karl Lebendig.
— Certamente que não, é claro, mas gostaria que a realidade fosse diferente.
— A realidade é o que é — disse Lebendig —, e eu não vejo nenhum motivo
para achar que a revolução tenha terminado na França, nem para esperar que ela não
procure se estender a outras nações causando os mesmos estragos.
Um novo silêncio, dessa vez mais pesado, desceu sobre o jardinzinho onde
estavam. Até o rouxinol, talvez percebendo uma mudança de temperatura, tinha parado
de emitir seus gorjeios.
— Como tem seguido a proibição de tomar café? — perguntou por fim
Lebendig.
— Com paciência. Passei quase dois anos sem poder me mexer e depois outros
dois com uma sensação insuportável de fraqueza. Não tomar café, no fim das contas,
não é um preço alto demais por ter sobrevivido a um tiro no estômago.
Não, não era, pensou Lebendig, enquanto observava seu amigo Koch. Estava
mais magro, mais pálido, com uma aparência de quem tinha acabado de vomitar, mas
não havia a menor dúvida de que conservava toda a vitalidade, toda a agudeza que o
tinha transformado no policial mais eficiente, mais perspicaz e mais paciente de
Ingolstadt.
— E esse trabalho de guarda florestal?
— Oh, magnífico! Realmente sensacional — ironizou o policial. — Não sei
como pude viver tantos anos sem me dedicar a perseguir invasores e a soltar patas de
cervos de armadilhas ilegais. Sinceramente, não sei se meu pobre estômago conseguirá
agüentar tantas emoções...
Lebendig sorriu com ternura. Tinha consciência de como seu amigo devia estar
se sentindo mal, mas, ao mesmo tempo, não podia deixar de pensar que talvez aquele
emprego estivesse ajudando o bom desempenho de sua convalescença muito mais do
que ele estava disposto a reconhecer.
— Certamente o senhor respira um ar mais saudável do que o que enchia as
prisões de Paris... — comentou Lebendig e imediatamente se deu conta de seu erro.
— Nunca deveria ter ido sozinho — disse Koch. — Deveria ter me esperado.
Nós dois juntos o teríamos localizado antes. Com toda a certeza. E na praça onde
decapitaram Luís XVI... Não, ele não nos teria escorrido entre os dedos.
— Veja, Koch — começou a dizer Lebendig. — Eu rezei. Rezei muito para
que o senhor sobrevivesse àquele tiro de pistola, mas Deus nem sempre costuma me
contar quais são Suas intenções. Se o senhor tivesse morrido... se não tivesse
sobrevivido e Espartaco tivesse escapado...
— Não iria se perdoar nunca — admitiu Koch. — Estou entendendo. Sim,
estou entendendo. Bem, talvez eu tivesse feito a mesma coisa, mas... que diabos,
Lebendig, eu teria gostado tanto de ir com o senhor...
— Sabe alguma coisa sobre ela?
Koch estava esperando a pergunta desde o momento em que Lebendig tinha
chegado à sua casa. Quando a ouviu agora, reprimiu um sorriso.
— Ela o espera, Karl. Não deixou de o esperar nem um só instante. Pensou que
se fosse embora talvez o senhor não a pudesse encontrar em outro lugar e optou por
ficar em Ingolstadt. Foi uma decisão corajosa e arriscada... Mas foi acertada.
Lebendig se calou por um instante. O coração tinha começado a bater com
mais força do que a desejada e ele não queria deixar transparecer a agitação que tinha
tomado conta dele.
— Durante os seis primeiros meses, quando os médicos não davam um tostão
pela minha vida, ela veio me ver quase todos os dias — continuou falando Koch. — Eu
não conseguia comer nada naquela época, mas... mas ela me trazia sopas, caldos...
coisas muito suaves que não me faziam mal. E depois... depois me trouxe frutas e
pastéis...
— É uma mulher muito boa — pensou Lebendig em voz alta. — Uma das
pessoas mais bondosas que já conheci.
— Sim ela é sim — continuou o policial. — Algumas vezes trazia o rapaz.
Qualquer pessoa teria achado que era filho dela. Certamente sei que ele não é, mas...
bem, ela se comportava com ele como se o tivesse dado à luz. Ele parece atento a tudo
isso. Não diz uma palavra, mas parece sagaz. Claro que porque o senhor o educou...
— Obrigado.
— Lebendig — começou a dizer Koch. — O senhor é um bom homem. Não.
Não, o senhor é muito mais do que isso. O senhor é um amigo leal, um sábio, alguém
realmente extraordinário..., mas, tal como ocorre comigo, não sabe o que vai acontecer.
Não importa. Descanse. Vá procurar essa mulher. Case-se com ela. Sim, case-se com
ela. Acho... acho que ela está muito apaixonada pelo senhor e ainda pode lhe dar filhos.
Bem, e se não lhe der, vocês já têm esse homenzarrão que, sei lá... mas eu não me
espantaria se, quando menos se esperar, ele começar a falar.
— E se...
— Num outro dia falaremos sobre essas coisas — interrompeu Koch. — Eu
tenho uma vida completa desde o momento em que o senhor me retirou do meio
daquela poça de sangue. E o senhor... bem, esse Deus no qual acredita com tanta
firmeza lhe concederá uma vida, mesmo que seja apenas para agüentar e ajudar este
pobre guarda florestal que tem a honra de ser seu amigo.
Lebendig quis abrir a boca, dizer a Koch que também o admirava, repetir os
elogios mais inflamados que lhe passassem pela mente e pelo coração, mas o policial
não lhe permitiu. Ergueu a mão num gesto calmo e disse:
— Temos tempo de sobra. Você vai ver. Agora vá procurá-la.
Karl se levantou, cobriu a distância que o separava do policial e lhe estendeu a
mão, que Koch apertou com força. Ambos sabiam que podiam contar um com o outro
sem nem precisar dizer isso, e aquela confiança lhes infundia uma força que ia muito
além das seqüelas das prisões revolucionárias ou de um disparo na boca do estômago.
— Karl! — gritou Koch quando Lebendig estava prestes a chegar ao portão de
saída.
O erudito se virou surpreso.
— Karl. É um conselho de amigo. Agora que é provável que se case com
Emma, poderia tentar ser menos desorganizado?
Epílogo
Malta, 1798
OBSERVOU
O HOMEM QUE,
com o ombro, o braço e a perna despidos, tinha
acabado de concluir o ritual de iniciação. Pálido, magro — quase se poderia dizer
esquálido — com cabelos compridos e olhos negros e penetrantes, mal conseguia
esconder sua emoção. Não deixava de lhe chamar a atenção como uma cerimônia tão
suntuosa - sim, por mais simbolismo que tivesse era suntuosa — emocionava alguns
irmãos.
O rapaz parecia vivaz. Silencioso, reservado, até taciturno, mas esperto.
Certamente, tirariam dele um excelente proveito. Não se poderia saber quanto no
momento, mas, com certeza, seria magnífico. Durante a revolução, tinha dado sinais de
um talento nada comum e, principalmente, de um espírito resoluto e decidido. Na hora
da verdade, essa qualidade era superior à inteligência. Um gênio indeciso podia ser
derrotado com relativa facilidade por um indivíduo audaz.
A falta de decisão tinha colocado Robespierre a perder. O grande imbecil,
justamente no auge do terror, tinha se assustado e chegado a fazer contato com os
inimigos da revolução. Pelo visto, o sangue o assustava. Ah! Deveria ter sentido muito
medo quando se permitiu entabular negociação com a monarquia e inclusive se ofereceu
como regente de um menino Capeto. Tinha tido tudo ao alcance da mão e, no momento
decisivo, tinha se deixado arrastar pelas dúvidas, pelos escrúpulos, pela tentação de se
restringir ao que parecia possível. Idiota! E o pior eram as pessoas — pessoas
excepcionais, aguerridas, com a cabeça no lugar - que ele tinha arrastado em sua queda.
Respirou fundo com a intenção de dissipar uma incômoda nuvem de ansiedade
que tinha descido, repentinamente, sobre seu peito. A lentidão de Robespierre e a
estupidez dos que tinham tentado corrigi-la poderia ter-lhe custado a vida. Um
movimento em falso, um passo mal dado e poderia ter acabado no cadafalso. Só de
lembrar o quanto tinha estado perto da morte, ele começava a suar. Bem, o importante é
que tudo já tinha passado. Mais do que isso. Na verdade, tudo continuava, prosseguia,
progredia... e seguia de acordo com o plano preestabelecido.
Que papel poderia ter no plano aquele rapaz que tinha acabado de ser iniciado?
Bem, isso dependeria do que ele desse de si. Não lhe daria nada de graça, mas sem
dúvida o apoiaria se ele merecesse. Além do mais, um homem tão jovem deveria ter,
por razões naturais, uma vida inteira pela frente.
Observou a forma como os diferentes irmãos se adiantavam para abraçar o
recém-iniciado. Eles o apertavam entre seus braços, estendiam-lhe a mão, sussurravam
algumas palavras de estima em seu ouvido. Era o normal. Ele não poderia fazer menos
do que isso.
— Sou o irmão Espartaco — disse apertando contra seu peito o iniciado —,
Adam Weishaupt para as pessoas de fora.
O homem de olhos profundos e cabelos compridos lhe dirigiu um olhar a meio
caminho entre a gratidão e a surpresa.
— Meu nome é Bonaparte... — informou o recém-iniciado. — Napoleão
Bonaparte.
Adam Weishaupt sorriu com ar paternal. Enchia-o de satisfação ver como o
sangue novo vinha se somar à causa do progresso, do avanço da Humanidade, da
iluminação. Aquela era a prova mais consistente, mais evidente e mais indiscutível de
que, apesar de ligeiros contratempos, a História se deslocava, segura e indubitável, na
direção que eles, os Illuminati, tinham determinado.
— Tenho certeza, irmão — disse quase com prazer Espartaco —, de que um
grande futuro o aguarda.
...o próprio Satanás se disfarça de anjo de luz. De maneira que não é nada
demais que seus agentes se disfarcem por sua vez de agentes da justiça.
Segunda carta do apóstolo Paulo
aos Coríntios, 11:14-15
A bela Lola
por Zoé Valdés
ENFIOU UM CORDÃO DE COURO entre as páginas do livro que estava lendo para
marcar a página em que tinha parado. Olhou à sua frente, o mar de Torrevieja, a praia
salgada onde tempos antes tinham fundeado tantos barcos provenientes de sua cidade
natal, Havana. Ali o mar não era azul-esverdeado nem prateado ao entardecer como à
beira do Malecón; o mar de Torrevieja é um mar densamente azul, pensou, de um azul
como que saído de uma pequena pintura européia do século XIX.
Examinou a imagem da capa do romance que estava lendo, A mulher justa, do
húngaro Sandor Márai. Um bonito retrato da atriz Amira Casar anunciava o tema do
romance: os amores perdidos ou nunca encontrados porque não foram necessários.
Sandor Márai se suicidou um dia antes da queda do muro de Berlim, Lola não sabia se
era uma forma poética ou desatinada de desaparecer, talvez um pouco antes do tempo
exato em que a liberdade se definia. Sua definição também durou muito pouco.
Lola tinha começado a leitura ao chegar à beira da praia, de manhã bem cedo,
quando não havia ninguém; gostava de se deitar sozinha à beira do mar. Não levantou
os olhos das páginas até que o sol começou a bicar sua pele, com uma ardência
arrebatadora. Ergueu as pupilas: o sol resplandecia bem no centro do céu e o
caleidoscópio a cegou.
Àquela hora estava rodeada por famílias de banhistas. As risadas das crianças a
deixaram melancólica: era jovem, fazia pouco tempo que também ela ria com a mesma
inocência. Levava outro livro para alternar; tirou da bolsa o Diário de José Marti22.
Observou indiferente as poucas pessoas que também liam à sua volta: os que não
seguravam entre as mãos Harry Potter se agarravam a O código Da Vinci. Sentiu-se um
"objeto anacrônico". O mundo se divide, ironizou para si mesma, entre os que lêem O
22
José Marti (1853-1895): escritor e político cubano, considerado mártir da
independência de Cuba e símbolo da unidade hispano-americana.
código Da Vincie os que labutam com cada aventura de Harry Potter. Untou a pele de
bronzeador, a região das axilas ardia, mas não pôde impedir de ficar tranqüila e retomar
a reflexão: o mundo tinha se transformado naquilo, pensou, numa cópia ruim de si
mesmo. As pessoas não viviam, as pessoas "mundeavam". Viver não tinha importância,
o que importava era figurar neste planeta, em um ou outro bando. Porque os dois bandos
existiam, sem dúvida, e ambos não paravam de tagarelar sobre invenções
incompreensíveis, pura demagogia. Disse a si mesma que se inscrever em qualquer dos
dois bandos era insuportavelmente traiçoeiro, o que lhe coube tinha sido pior: nascer
numa ilha pobre e contestadora. Quis interromper o pensamento, com medo de se tornar
ainda mais indiferente, quer dizer, cínica.
No fim das contas, ela estava agora naquela praia; fazia dez anos que sabia
apenas viver o momento, e nada mais, sem projetos posteriores, sem futuro. Chegou a
Torrevieja e ali ficou, à espera. A única coisa que lhe dava alguma ilusão era esperar: no
inverno trabalhava como professora de canto e além disso se preparava, ela também,
para cantar habaneras, no verão participava como espectadora do concurso quando não
trabalhava à noite como garçonete num restaurante para fechar as contas do mês. Pelas
manhãs, dava aulas, menos às quartas-feiras e fins de semana, quando se instalava nas
dunas salitrosas para ler e cochilar. Mal comia, perdeu o apetite nas semanas em que foi
contratada no restaurante; constatar o desperdício de alimentos lhe dava ânsia, náuseas,
vomitava só de pensar que em seu país as pessoas não podiam sequer sonhar em provar
as sobras que outros deixavam intactas no prato.
Tinha chegado até ali acompanhando seu marido, um pedreiro que não era
pedreiro: era pianista antes que ela o conhecesse, mas tinha se visto na obrigação de se
meter na construção civil para poder ganhar a vida. Começou a desconfiar que ele a
enganava quando o homem começou a vestir terno e se perfumar antes de ir para a obra:
— Que novidade é essa de se perfumar para ir colocar tijolos? — perguntou
sem se alterar.
— Tento causar uma boa impressão — respondeu ele.
Num belo dia, resolveu ir vê-lo na obra. Fazia meses que já não trabalhava lá,
confirmou o mestre de obras. Naquela tarde não preparou o jantar: ligou para seu celular
e lhe pediu para ir jantar no restaurante onde ele costumava tomar café, o daqueles
conhecidos cubanos... Ele aceitou titubeante, porque ela nunca lhe pedia para convidá-la
para jantar. Lola, só de observar o gesto da garçonete, desconfiou que a amante poderia
ser ela. No entanto, preferiu deixar o ciúme de lado e esclarecer a dúvida que mais a
atormentava desde que tinha retornado de cabeça baixa sob um sol que lhe lembrava
com insistência excessiva aquela ilha:
— Quis lhe fazer uma surpresa e quem teve a surpresa fui eu...
— Já estou sabendo, você esteve lá; Luís me telefonou em seguida para me
contar que você tinha estado lá me procurando... Consegui dar aulas de piano, não
queria lhe adiantar nada até que o assunto fosse mais sério... Não me olhe desse jeito,
Lola, por favor.
— Não estou olhando de nenhum jeito. Não entendo por que não me falou com
sinceridade.
— Não sei.
Houve um longo silêncio. A frase curta e o longo silêncio convenceram Lola
de que tudo tinha acabado entre eles, mas ela o amava, e precisava se agarrar à sua idéia
altruísta do amor, acreditar que o amor cura, apaga qualquer desavença e devolve a
esperança de que é possível salvar a humanidade do ódio. Sentia um medo enorme só de
pensar que ele a abandonaria; sentia-se invadida por uma inquietação que estragava seu
estômago, uma tristeza amarga e daninha. Tinha medo de afundar na má vontade, como
os outros, como o resto.
— Lembro-me tanto dos cheiros, dos barulhos de Cuba, então fico tão triste...
— ocorreu-lhe murmurar.
Depois jantaram em silêncio. E o silêncio se estendeu, instalado em todos os
espaços, semeado neles, até o dia em que abriu a porta e o achou muito nervoso, diante
do computador, que tinha acabado de ligar.
— Você acabou de chegar? — ela tratou de conferir, e confirmar a si mesma. Pelo visto sim, claro, você chegou agora mesmo.
— Você também.
— Claro. "Claro, a censura como bumerangue", resmungou Lola. Foi para o
quarto; só teve tempo de colocar as chaves na pequena escrivaninha. Ouviu soar o
alarme anti-roubo instalado pelo marido.
Ele abriu a porta, tornou a fechá-la. Então Lola sentiu um perfume estranho,
diferente e doce, que emanava do banheiro até a saída do apartamento. Alguém tinha se
escondido ali, e conseguiu escapar no instante em que ela tinha entrado no quarto. Não
disse esta boca é minha, e durante semanas e meses ficou com a incerteza corroendo
suas entranhas. Em alguns momentos dizia a si mesma que não podia continuar assim,
na insegurança permanente, no rancor que já começava a tomar o lugar da dúvida. Na
noite do ocorrido fingiu não ter percebido nada; só se despiu no escuro, no quarto dos
dois, deitou-se, chorou baixinho, com os olhos fixos nas sombras. Ele dormiu no sofá da
sala.
No dia seguinte enfiou o Diário de José Marti na bolsa; desde então, não se
separava daquele livro. Não conseguia explicar, mas encontrou na velha edição uma
espécie de amuleto que a reconfortava sempre que a solidão emparedava seus
sentimentos, ou seja, na maioria das vezes, quando tinha preferido se calar, ficar na
expectativa. Então folheava suas páginas, recitava uma frase em ladainha, como numa
espécie de oração que lhe dava energia:
9 de abril: Lola, joiongo23, chorando na sacada. Embarcamos.
Ela se chamava Lola, tinha nascido em 9 de abril de 1985. José Marti tinha
escrito aquelas palavras em 1895. Gostava das combinações de números, mais do que
dos jogos de palavras.
Àquela altura, na praia, percebeu que tinha perdido todos os seus amigos, que
não tinha ninguém; dois anos de casamento tinham sido suficientes para exterminar seus
relacionamentos. Não via mais ninguém além do marido. Ele, pelo contrário, cada vez
conhecia mais pessoas, cada vez se integrava mais na cidade, e ela se afastava, se
isolava, refugiando-se nele, guardava cada uma de suas palavras para conversar com
ele. As horas iam passando, e ela só abria a boca para cumprimentar, para cantar com
seus alunos e anotar os pedidos dos fregueses no restaurante.
Reparou que um grupo que integrava um dos coros participantes do Concurso
de habaneras se instalou perto dela, na praia. A diretora entregou as pautas e eles
entoaram a melodia:
Em Cuba,
a ilha bonita do ardente sol,
sob seu céu azul,
adorável triguenha,
de todas as flores
você é a rainha.
Em seu coração
guarda o fogo sagrado
e a alegria que foi
dada pelo céu claro.
E em seus olhares
23
Jolongo: espécie de mochila rústica, típica do Caribe.
Deus misturou
a noite de seus olhos
e os raios de sol.
As vozes a fizeram evocar as viagens, na infância, com sua avó aos povoados
de Casablanca e Regia, do outro lado da baía. A igreja da virgem negra, a de Regia,
estava deserta; de repente, o coro de anjos, as crianças do catecismo, entoou cânticos
religiosos mas compassados disfarçadamente pelos tradicionais ritmos cubanos. Não se
escutava a habanera em Havana, nem em nenhum lugar de Cuba. A habanera pertencia
a Torrevieja, o gênero é de quem o cultiva, afirmou com seus botões.
A palma
que na floresta balança suave
e teu sonho embalou...
Por mais que quisesse, não conseguia ficar fria diante das palavras que
acompanhavam a melodia; aqueles versos a tocavam bem fundo, e por mais que durante
muitos dias seu espírito se endurecesse devido ao sofrimento, este tipo de encontro, o
encontro com seu país, conseguia fragilizá-la, extenuá-la. Recostou-se numas pedras, e
ali colocou todo o seu passado sobre a toalha imaginária; embaralhou as cartas da
memória e via o rosto de sua mãe aconselhando-a a não se casar com aquele homem,
principalmente com ele:
— Um homem que faz as coisas que ele fez no dia em que sua primeira mulher
deu à luz, lembra? Foi almoçar com uma antiga namorada. Não acredito que vá ser
melhor com você — sublinhou sua mãe. — De qualquer forma, os homens não amam
como nós mulheres amamos, não se esqueça; não gostam das situações amorosas com a
mesma profundidade com que nós gostamos. E sobre este, minha filha, o que você quer
que eu lhe diga? Salta aos olhos, ele tem malícia demais.
...um beijo da brisa
ao cair da tarde
te acordou.
Doce é a cana,
mas tua voz é bem mais,
porque espanta o
amargor do coração.
E ao te contemplar
suspira meu alaúde
bendizendo-te, beleza sem par,
porque Cuba és tu.
Mas Lola não deu atenção à sua mãe, nem a ninguém. Os amigos da família, os
vizinhos, as pessoas que gostavam dela, animavam-na a esperar, a não se casar tão
jovem, a não ir embora com ele. Ela estava apaixonada, acreditava nele, e
inevitavelmente, quando uma mulher se apaixona e acredita no homem que ama, na
maioria das vezes comete não só a estupidez de se casar, mas além disso a tolice de se
afastar do lar materno e cortar com os amigos. Lola se afastou, escapou para longe
demais; de fato, dez anos se passaram sem que tivesse conseguido retornar a seu país,
nem sequer pôde juntar o dinheiro necessário, uma soma expressiva, para convidar sua
mãe. Agora, entre a vergonha e a vontade de vê-la, o pudor falava mais alto.
Pestanejou, porque um garotinho molhado passou correndo a seu lado e a
salpicou de água do mar; resolveu dar o último mergulho, recolher suas coisas e voltar
para casa. Sempre que dizia essa frase, "voltar para casa", pensava no pequeno
apartamento alugado de Torrevieja que dividia com o marido. "Voltar para casa" em
outros tempos teria provocado nela a maior alegria do mundo, principalmente quando
significava realmente voltar para sua casa, para seu país.
Cubanos:
Ecoa do céu uma voz
para nos dar coragem
na luta terrível
que o sábio patriota
com glória empreendeu.
Martí, teu nome
venerado será
quando a história
não possa te mostrar.
As vozes foram se afastando às suas costas. Lola caminhou durante quase todo
o resto do dia, faltou a seus compromissos, não apareceu nas aulas, não pensou nem
mesmo no restaurante, olhava para frente e sorria, caminhou até chegar em casa,
inclusive passou direto, ensimesmada em seus pensamentos, teve que retornar e fez isso
decidida, não se sentia cansada. Não pegou o elevador, subiu as escadas correndo.
Como sempre, viu-se sozinha no apartamento, mas nem sequer reparou nisso. Bebeu um
copo de leite, tomou uma ducha. Abriu o armário, dobrou algumas roupas e guardou um
maço de fotografias num bolso externo da maleta, apanhou o passaporte espanhol numa
gaveta e o enfiou no bolso interno da bolsa de mão. Hesitou antes de ir embora,
escreveria uma carta para ele, um pequeno bilhete, ou nada? Nada. Bateu a porta.
Pediu ao motorista de táxi que a levasse ao aeroporto de Alicante. Ali comprou
uma passagem para Madri; em Barajas gastou todas as suas economias em outra
passagem para a China. Algum dia regressaria a Torrevieja, era o lugar mais tranqüilo
que tinha conhecido na vida, e tinha certeza de que no futuro teria saudade, de forma
benéfica, da verdadeira terra das habaneras, não como sentia saudades de Havana, sua
cidade, mas com grande paixão.
Bem que teria gostado de fugir de barco, imitar os antigos marinheiros, afastarse e contemplar como o horizonte ia ficando pequeno. Preferia as ondas às nuvens.
No avião ela abriu o livro:
9 de abril: Lola, jolongo, chorando na sacada. Embarcamos.
Nesse dia estava fazendo vinte e um anos. Seu marido tinha saído muito cedo,
como sempre, bem vestido, perfumado; desapareceu de casa sem um beijo, era a
primeira vez que esquecia de lhe dar os parabéns no aniversário. Engoliu em seco, os
olhos úmidos de lágrimas. A saliva e as lágrimas continham o gosto salgado das
reverberantes dunas de Torrevieja.
Paris, setembro de 2005
Orelha do livro:
Uma conspiração para unir sabedoria oculta com dominação política. Uma trama
envolvendo uma sociedade secreta disposta a tudo para conquistar o poder. Baviera, final
do século XVIII, o metódico e obstinado inspetor Kohn se une ao erudito grafólogo Karl
Lebendig. Uma parceria improvável, mas com ótimos frutos para a justiça local, sendo
colocada à prova quando uma carta de um maçom auto-intitulado Espartaco chega às mãos
de Kohn, provocando a retomada das investigações de um antigo assassinato ainda sem
solução.
Na busca da verdadeira identidade de Espartaco, os dois amigos esbarrarão nos
ILLUMINATI e em um plano para destruir a ordem existente. E construir um mundo
inteiramente novo, com liberdade, igualdade, fraternidade. A qualquer preço.
Kohn e Lebendig logo descobrem que não podem confiar em ninguém. Mais:
desvendam uma rede de intrigas controlando a aristocracia, a burguesia, os professores e
até mesmo o clero francês. Um plano sinistro diretamente ligado às raízes da Revolução
Francesa e à idéia de Espartaco de espalhar seu lema pelo mundo, unindo todas as lojas
maçônicas.
Sobre o autor:
Do reino de terror de Robespierre até Napoleão Bonaparte, César Vidal constrói
uma história de suspense, emocionante, tensa e surpreendente sobre o papel da maçonaria
nas revoluções liberais dos últimos séculos.
CÉSAR VIDAL nasceu em Madri, em 1958. Formado em Direito e doutorado em
História, Filosofia e Teologia, é integrante da American Society of Oriental Research e do
Oriental Institute de Chicago. Ganhador de diversos prêmios literários, é autor de Os
maçons, Maimônides - 0 médico de Sefarad e 0 testamento de Pedro, todos publicados pela Relume
Dumará. Atualmente, trabalha como diretor do programa de rádio La linterna e colabora
com as publicações Libertad Digital, La Razón, Antena 3 e Muy Interesante.
Este livro foi digitalizado e distribuído GRATUITAMENTE pela equipe Digital Source
com a intenção de facilitar o acesso ao conhecimento a quem não pode pagar e
também proporcionar aos Deficientes Visuais a oportunidade de conhecerem novas
obras.
Se quiser outros títulos nos procure
http://groups.google.com/group/Viciados_em_Livros ,
será um prazer recebê-lo em nosso grupo.
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