HOUSE MD: quando a morte desperta esperança
Transcrição
HOUSE MD: quando a morte desperta esperança
Revista Científica da Faculdade Salesiana Maria Auxiliadora HOUSE MD: quando a morte desperta esperança – uma leitura desde a teologia de Jürgen Moltmann RENATO FERREIRA MACHADO Doutorando em Teologia Faculdades Est, São Leopoldo –RS Professor de Antropologia Cultural e Antropologia Religiosa Da Faculdade Dom Bosco – Porto Alegre - RS Coordenador da Pastoral Universitária da Faculdade Dom Bosco Resumo O artigo realiza uma leitura da série televisiva House M.D., em linhas gerais, tendo por base o ideário teológico de Jürgen Moltmann sobre morte e esperança. Destacase a relação pós-moderna com o sofrimento e a enfermidade, onde estas situações são mascaradas por um estilo de vida consumista e voltado para as aparências. Recorre-se aos personagens e situações da série televisiva como arquétipos destas realidades humanas, buscando-se uma leitura teológica de atitudes, diálogos e situações em geral de forma semiótica e desconstrutiva. Destaca-se o pensamento teológico de Jürgen Moltmann sobre o lugar do corpo na Tradição Cristã, bem como o sentido escatológico do sofrimento e da recuperação da saúde. Palavras-chave: 88 : House MD, Moltmann, morte, esperança. Visões nº.7 - p. 2 - julho / dezembro 2009 HOUSE MD: quando a morte desperta esperança – uma leitura desde a teologia de Jürgen Moltmann RENATO FERREIRA MACHADO Doutorando em Teologia Faculdades Est, São Leopoldo –RS Professor de Antropologia Cultural e Antropologia Religiosa Da Faculdade Dom Bosco – Porto Alegre - RS Coordenador da Pastoral Universitária da Faculdade Dom Bosco Abstract The article provides a reading of the television series House MD, generally speaking, based on the ideas of Jürgen Moltmann theology about death and hope. It highlights the postmodern relationship with suffering and disease, where these situations are masked by a consumer lifestyle and returned to the appearances. It is through the characters and situations of the television series as archetypes of these human realities, seeking a theological reading of attitudes, situations and dialogues in general in a semiotic and deconstructive way. We highlight the theological thought of Jürgen Moltmann on the place the body in the Christian Tradition, and the eschatological sense of suffering and restore health. Keywords: House MD, Moltmann, death, hope. 89 Revista Científica da Faculdade Salesiana Maria Auxiliadora 1. INTRODUÇÃO N a tradição de longevas series televisivas que imortalizam personagens, o Dr. Gregory House vem trilhando um caminho que o coloca no imaginário pós-moderno. O personagem, interpretado pelo ator inglês Hugh Laurie poderia ser mais um entre tantos médicos que protagonizaram dramas hospitalares no cinema e na TV, mas revela-se inédito em sua personalidade e na forma como aborda os problemas cotidianos com os pacientes que são colocados em suas mãos, em busca da salvação de suas vidas. Exibida nos Estados Unidos pela Fox desde novembro de 2004 e, no Brasil, pelo Universal Channel – na TV por assinatura – e pela Rede Record – na TV aberta – a série já está em sua sexta temporada e vem sendo uma das mais assistidas do mundo. 1. Dois de seus jargões mais famosos são “Everibody lies!”(Todo mundo mente!) e “People don’t change!” (A pessoas não mudam!). 90 O personagem principal, que dá nome à série, é um médico diagnologista considerado um gênio em sua área, que chefia a principal equipe de especialistas do Hospital Escola Princeton-Plainsboro. Ao contrário de outros personagens do mesmo contexto, porém, Gregory House é misantropo, antissocial e politicamente incorreto. Em sua dinâmica de trabalho, recusa-se a ter contato humano com seus pacientes e, quando isso acontece, coloca-lhes a verdade de forma nua, crua e irônica. O que pode parecer, em um primeiro momento, uma apologia à crueldade, mostrase exatamente o contrário com o desenvolvimento das tramas da série: o personagem se revela uma pessoa em conflito com o mundo e com a vida, uma vez que sofre de dores crônicas em uma de suas pernas e que, por causa disso, acabou viciando-se em analgésicos. Na crise de seu sofrimento, ele reconhece o sofrimento alheio e testa seus próprios limites ao investigar os limites dos pacientes. É nesta dimensão que se dá, então, sua interação com o enfermo: ao não acreditar em palavras e aparências1 , comunica-se com o profundo da pessoa em sofrimento e ajuda-a a decidir sobre sua vida e morte. Neste ponto, revela-se um conteúdo teológico que perpassa as histórias, muitas vezes, de forma explícita. Dizendo-se ateu, House questiona qualquer tipo de crença, mas é interpelado profundamente sobre o mistério da existência em sua trajetória de vida. Tal fato é importante em uma sociedade secularizada, onde o discurso de fé se encontra banido para o âmbito íntimo pessoal e a teologia foi exilada dos discursos científicos relevantes (MOLTMANN, 2004, p.45-46): mesmo que não seja de forma intencional, a inclusão de uma reflexão teológica no massmedia sempre acaba provocando Visões nº.7 - p. 2 - julho / dezembro 2009 possibilidades de discussão de questões a ela relacionadas. Neste sentido, é preciso levar em consideração que o mundo ocidental é profundamente marcado pela Tradição Cristã, como experiência de fé, e pelo ideário Iluminista europeu, como experiência de organização sociopolítica. Por isso, as produções artísticas que circulam nos grandes meios de comunicação, de certa forma, acenam para as grandes buscas e anseios deste complexo social. Neste caso específico, a série aborda grandes problemáticas humanas – doença, sofrimento e morte – propondo encaminhamentos diferenciados para elas. É no fato de fazer uma grande crítica à cultura de superficialidade e simulacro de aparências que se tem cultivado na pós-modernidade, que House M.D. provoca teologia: no hospital da série, médicos e pacientes precisam chegar às suas questões últimas, desnudando o humano que busca sentido para a vida em meio ao sofrimento. A verdade libertadora e a esperança, porém, não são apresentadas como amenidades para o problema. Pelo contrário, na ação de Gregory House todos são levados a assumir suas contradições para buscar a salvação, inclusive ele2 . Neste contexto, fazse necessário identificar esta problematização teológica e propor seu aprofundamento, uma vez que grande parte das pessoas busca seus parâmetros de relação intra e interpessoal nestas produções artísticas e que personagens carismáticos como o Dr. House inegavelmente influenciam comportamentos e visões sobre a vida. 2. SER HUMANO, SER COMO DEUS As narrativas da Criação dos textos sagrados revelam um Deus em processo criativo, expressando um pleno-amor do qual só pode se originar a vida. Ao chamar cada criatura pelo nome, vai confirmando a bondade intrínseca de sua obra, com a qual o caos vai tomando forma e o nada começa a ser. Quando se trata do humano, porém, há outros detalhes e atributos que parecem ser exclusivos: nesta criatura do sexto dia reconhece-se a imagem e semelhança com o próprio Deus, ao mesmo tempo em que se deixa claro que este mesmo ser foi erguido do solo da terra. Homem e mulher são duplos em unidade: masculino e feminino, últimos a serem criados e primeiros a reconhecerem a criação como paraíso, criaturas com responsabilidade divina, imagem da toda criação e imagem do criador, eucarísticos e sacerdotais, vivos que sabem de sua própria morte. É nesta condição 2. Pode-se encontrar similaridade desta dinâmica em Jo 5, 5-9, onde Jesus pergunta ao paralítico se ele deseja ser curado, colocando, assim, a responsabilidade pessoal no processo de libertação. 91 Revista Científica da Faculdade Salesiana Maria Auxiliadora que se constrói, existencialmente, a liberdade humana. Ao saber-se capaz, o ser humano também toma consciência das consequências de seus atos, vivendo sempre as “dores do parto” de suas próprias criações (SUSIN, 2003, p. 129-136). 3. Control – primeira temporada, episódio 14, exibido pela primeira vez nos Estados Unidos em 15 de março do 2005 e, no Brasil, em 14 de julho de 2005. 92 Para um ser que projeta o mundo a partir de seus sonhos e valores, o reconhecimento de limites sempre traz sofrimento e a morte sempre parece injusta. O momento em que o caos primordial parece arrastar a existência para antes da criação causa temor – por saber-se inevitável – e transforma muitas existências em fuga para lugar nenhum (ALVES, 1988, p. 133-134). Pensando-se por este viés, é interessante constatar que os episódios da série House MD, quase que invariavelmete, se iniciem mostrando situações do cotidiano, sem nenhuma referência ao que virá depois ou mesmo ao núcleo de personagens centrais da trama. Em seu dia-adia, as pessoas são surpreendidas por algum quadro patológico que as impede de continuar em sua rotina e, de certa forma, acena para o fim de sua existência. Não havendo diagnóstico claro, o enfermo é encaminhado para a equipe de Gregory House, que fará investigações em busca das causas e tratamentos para a doença. Em uma relação simbólica, ali está o ser que vive como imagem de Deus – consciente, capaz, imaginativo e criador através de seu trabalho – redescobrindo-se como “pó, que ao pó voltará” (Gn 3, 19). Um “ser-como-Deus”, certamente não se conformará com sua queda. Não podendo mais realizar aquilo que fazia antes da enfermidade, buscará afirmação em seu discurso e em seus códigos de ética. Isso fica bastante claro, por exemplo, no episódio “Controle”3 , no qual a presidente de uma grande empresa é acometida por um “mal súbito” durante uma importante reunião de negócios. Quando começa a sentir a estranheza da doença em seu corpo, ela segue a reunião normalmente, até seu limite de tolerância à dor e ao desconforto. Após encerrar diplomaticamente o encontro, chama sua assistente pelo celular, com a palavra help: seu sofrer não pode ser público, uma vez que sofrer não está no rol de qualidades necessárias a uma executiva de alta performance quanto esta personagem. A única a saber é sua assistente direta que, durante a internação hospitalar e tratamento, manterá os negócios em dia. Diante deste quadro, o Dr. Gregory House recusa-se a ter contato com a paciente, exatamente por entender que ela não conseguirá fazer uma avaliação sincera dela mesma, tão absorvida que está pelas funções que assumiu. Sua investigação se dá de forma indireta, através daquilo que mais lhe incomoda: a “pose” mantida pela paciente, mesmo diante de uma grave doença que pode lhe Visões nº.7 - p. 2 - julho / dezembro 2009 tirar a vida. Quando chega ao diagnóstico final da enfermidade, House tem um único e emblemático diálogo com ela. Tendo descoberto que todo o quadro de saúde era conseqüência de bulimia e da ingestão de um medicamento que ajudava a disfarçar os sinais do distúrbio alimentar, o que levara a um quadro agudo de disfunção cardíaca e à necessidade de um transplante, o médico comunica a situação à paciente. House: Você transplante precisa de de um coração. Paciente: Eu me exercito... corro... House: Paciente: o que Você isso se Não tem corta! a (...) entendo ver... House: Você sofre de intensa bulimia e se obriga a vomitar. Tinha que descobrir uma maneira eficiente de vomitar sem dar sinais de bulimia, o que seria inadequado para alguém em sua posição. Ele continua, então, dizendo que o comitê de transplantes se reunirá para discutir o caso dela e que ele terá de falar sobre a bulimia e as condições psicológicas da paciente, o que provavelmente a excluirá da lista de candidatos a recepção de órgãos. House diz, então, que pode mentir para o comitê, mas que isso arriscaria a carreira dele. De forma sarcástica, ele diz que seria uma boa oportunidade para que ele pedisse uma propina. House: Quanto acha que vale a sua vida? Quanto vale o meu trabalho? Paciente: Por que veio fazer isso comigo? O que você quer? House: Eu quero saber o que é correto. Paciente: Eu valho tudo isso? Você me acha patética. Alguém que tem um bom emprego e tudo que quer, mas não gosta da própria aparência. House: Pare de se esconder! Estou perguntando se quer viver ou morrer. Pode ao menos me responder? (...) Quero que me diga que sua vida é importante para você, porque eu não sei. Porque é o que está em jogo neste momento. Sua vida. Ora, não é por acaso que o episódio se intitula Controle: ao tentar manter tudo sob controle em sua carreira, em nome do sucesso profissional, a personagem perdeu a noção de valores sobre a sua própria vida. A abordagem de Gregory House, então, acaba desconstruindo aquilo que dá a ela, atualmente, um parâmetro existencial: a crença de que tudo tem um preço e de que as coisas só valem a pena quando dão bons resultados. É o que House questiona: é possível medir o valor da vida dela, em termos financeiros? É um “bom negócio” garantir um transplante para alguém que pode acabar se matando para manter as aparências? Impotente diante da situação, a personagem verbaliza sua vontade de continuar vivendo. 3. PERGUNTAR POR DEUS NO SOFRIMENTO Perder o controle sobre o próprio corpo coloca em cheque todos 93 Revista Científica da Faculdade Salesiana Maria Auxiliadora os projetos de futuro que se pode ter. Pensar o futuro como projeto, aliás, é característica intrínseca da mística judaico-cristã: acreditase em um Deus que promete vida e se revela no tempo, diferenciando passado e presente ao apontar a plenitude que virá. Sob o signo da promessa de Deus, a realidade é experimentada como história. O campo de ação daquilo que enquanto história é inserido dentro da experiência, da lembrança e da esperança, é produzido, torna-se manifesto e é modelado pela promessa. (MOLTMANN, 1971, p. 117) 94 De certa forma, se é mais humano na medida em que se pode projetar a vida com esperança para o porvir. Esta herança do Povo da Aliança e dos seguidores de Jesus vem parar na cultura ocidental como busca de possibilidades mediante a força de trabalho e a exploração de recursos naturais. Por isso, o mundo moderno é inaugurado exatamente quando o ser humano se torna “independente” da Terra e de seus ciclos, em uma clara distorção dos valores abraâmicos (MOLTMANN, 1999, p. 74-75): se antes era Deus quem prometia e, por sua Graça, colocava o ser humano em movimento para a promissão, agora é a própria criatura que projeta, promete e se justifica em busca da “realização” de sua vida. Ora, como imago Dei este ser é capaz de prometer e assumir suas promessas e, de certa forma, vai construindo sua liberdade exatamente quando realiza aquilo que imagina e deseja. Inserido em uma cultura individualista, porém, este projeto de futuro pode acabar sendo um mero arremedo do projeto de vida originário, presente na ação criadora de Deus. Da promessa, passa-se ao progresso e do sonho de vida, passa-se ao sonho de consumo. Neste ambiente a corporeidade e a saúde adquirem o status de funcionalidade, pois o trabalho perde seu caráter criativo para assumir o paradigma da produtividade. Nesta criação humana só se chega ao tempo sabático por acidente, como acontece à personagem supracitada. Tem-se, assim, um ser segregado às trevas de suas impossibilidades, procurando mostrar a luz de suas próprias conquistas ao preço de, muitas vezes, sacrificar aquilo que tem de mais importante. Tem-se, aqui, a abertura para a dimensão soteriológica da economia divina. Esta dimensão aparece nas narrativas sinóticas no destaque à manifestação do poder curativo de Jesus Cristo: mais do que um simples “conserto de saúde” operado pelo Filho de Deus, é uma reinserção da criatura humana no “concerto da criação”, uma vez que a enfermidade aparece nos Evangelhos como uma “desafinação” com a própria essência humana, que é ser imagem de Deus. Por isso, homem e mulher, sob o olhar do Messias, encontramse enfermos e não pecadores e, ao experimentar a presença de Jesus, é a própria presença do Visões nº.7 - p. 2 - julho / dezembro 2009 Reino de Deus e sua Justiça que experimentam, de forma totalizante e totalizadora. Em um mundo de “autoconsumação” e sem expectativas de transformação, estas ações curativas de Cristo parecem coisas irreais e fora de contexto; à luz da promessa de vida glorificada de Deus, porém, elas são mera conseqüência da presença dEle em meio à sua própria criação. Ao expulsar a possibilidade do caótico na vida, o Verbo Encarnado possibilita que se volte a sonhar e projetar o futuro na confiança de um Deus-Amor atento e alentador de suas criaturas (MOLTMANN, 2007, p. 83-85). Esta é uma realidade custosa para o personagem principal da série, o Dr. Gregory House, que teve um músculo extirpado da perna em consequência de um diagnóstico médico errado. Com as dores constantes amenizadas pela ingestão compulsiva de analgésicos, ele acaba obcecado por acertar sempre seus diagnósticos, mesmo que, para isso, tenha que se opor a toda lógica da medicina que exerce, ou, melhor dizendo, encontrar outras lógicas e possibilidades. Um dos fios condutores da série, aliás, é o visível incômodo que sua enfermidade lhe causa e sua esperança de fazer sua perna voltar ao normal. Descrente de qualquer coisa que não possa ser comprovada, ele acaba tornando sua existência uma expressão do conflito com Deus que acontece no livro de Jó. A ira de Deus me ataca e me dilacera, range os dentes contra mim e crava em mim os seus olhos hostis. Abrem contra mim a boca e me esbofeteiam com suas afrontas, todos em massa contra mim. Deus me entrega como presa aos perversos, e me entrega na mão dos injustos. Eu vivia tranqüilo, e ele me esmagou. Agarrou-me pela nuca e me triturou, fazendo de mim o seu alvo. Com seus arqueiros ele me rodeou, me atravessou os rins sem piedade, e derramou por terra o meu fel. Abriu minha carne com mil brechas, e como guerreiro me assaltou. (Jó 16, 9-14) Assim como Jó, a existência de House parece se tornar um constante perguntar pela justiça: em suas atitudes, meticulosidade e aspereza, por vezes transparece o grito de um injustiçado, que não compreende porque o mal se abateu sobre sua vida (MOLTMANN, 2007, p. 74-75). Sua atitude, porém, não é de resignação à sua situação, mas de esforço para deter este mesmo mal na vida de outros. Neste ponto parece se encontrar uma grande riqueza teológica: quando House expressa seu ceticismo e seu ateísmo, a favor de uma visão clara e lógica da realidade, ele acaba colocando em cheque aquilo que está institucionalizado em nossa cultura quanto à fé e à esperança. Isto fica explícito, por exemplo, quando ele conversa com uma paciente sua que acredita estar sendo testada por Deus em sua doença. Ele lhe diz: “Você pode ter a fé quer quiser em espíritos, em vida após a morte, no paraíso e no inferno, mas se tratando desse mundo, não seja idiota. Porque você pode me dizer que 95 Revista Científica da Faculdade Salesiana Maria Auxiliadora deposita sua fé em Deus para viver bem o seu dia, mas quando chega a hora de atravessar a rua, eu sei que você olha para os dois lados.”4 Esta “não-ingenuidade” no ato de crer vai ao encontro do pensamento de Moltmann (2004, p. 27) quando se refere à fé como “incredulidade superada”, ao invés de “protoconfiança ingênua” . 4. A MORTE MUDA TUDO 4. Damned if you Do – primeira temporada, episódio 5, exibido pela primeira vez nos Estados Unidos em 14 de dezembro de 2004 e, no Brasil, em 12 de maio de 2005. 5. Family – terceira temporada, episódio 21, exibido pela primeira vez nos Estados Unidos em 01 de maio de 2007 e, no Brasil, em 02 de agosto de 2007. 96 Muitas são as vezes em que Gregory House se refere à morte como “única doença que não pode ser curada”. Ao mesmo tempo, porém, as narrativas da série mostram um “morrer em processo”, no qual vidas vão sendo mudadas a partir da sinalização de fragilidades existenciais manifestadas no corpo. No contexto em que é produzida, esta série parece mexer com o grande ponto fraco da civilização ocidental pós-industrial, que é o de exilar a morte para um âmbito desintegrado da vida e, por isso mesmo, criar uma cultura de medo e terror referente a ela. O cultivo de uma vida vazia pode levar a uma morte vazia, na qual se fica ante a desesperadora situação de tornar tudo o que foi vivido em esquecimento e perceber-se que nada fez sentido. Esta questão se traduz na situação retratada no episódio Familia5 , no qual um menino, que faria uma doação de medula para seu irmão – que sofre de leucemia – acaba adoecendo e ficando também à beira da morte. Não havendo mais tempo hábil para reverter o quadro dos dois, é o irmão leucêmico que acaba tendo que salvar a vida do outro com o sacrificio da sua. O diálogo de House com o jovem enfermo, na tentativa de convencêlo a fazer o sacrifício por seu irmão mostra bem este sentido: “Não vai adiantar. Você está morrendo. Nada vai mudar isso. A medicação só ameniza as coisas. Quatorze anos no planeta, a maior parte do tempo sofrendo. Morrer antes de aprender a dirigir, antes de tirar o sutiã de uma garota, antes de beber uma cerveja... Acredite, você perdeu muita coisa. Coisas muito boas. Deve ser difícil acreditar em Deus ou justiça, ou num bem maior. Mas sua vida não precisa ser em vão. Você pode salvar seu irmão.” A grande questão que parece surgir aqui é esta: quando, afinal, a vida vale a pena? Ou, ainda: quando é que não se vive em vão? Estes questionamentos podem se traduzir na pergunta feita pelo doutor da lei a Jesus, em Lc 10, 25: O que devo fazer para herdar a vida eterna? A resposta vem em forma de novas perguntas (Lc 10, 26) e de uma história onde se revela quem é o “próximo”, a quem se deve um amor tão grande e verdadeiro quanto a si mesmo (Lc 10, 29-37): aquele que usa de misericórdia para com o outro. Esta é a provocação que House faz ao paciente: sua vida parece não ter Visões nº.7 - p. 2 - julho / dezembro 2009 valido a pena, mas ela terá todo o seu valor revelado no seu sacrifício para que a vida do outro valha. Sem dúvida, uma lição bastante difícil de ser aprendida em um contexto consumista, imediatista e moralista como o nosso. Uma outra dimensão que se depreende neste exemplo é o de assumir-se como próximo do outro com todas as incoerências e limitações que se possa ter, ao invés de procurar alguém que “precise de nossa ajuda”. Provavelmente, aí esteja o diferencial da atitude de Gregory House: ele sabe que o quem tem a oferecer é sua sagacidade e competência em medicina e que isso independe dele ser “politicamente correto” ou não. Quando se trata de lidar com a proximidade da morte, não há mais tempo ou espaço para convenções, pois muitas destas mesmas convenções servem apenas como um medicamento que ameniza a dor mas não cura a doença. A vida humana é biológica tal como outra vida que a si mesmo se reproduz. A humanidade desta vida consiste no facto de que ela é recebida, afirmada e que ela é, enquanto tal, uma vida interessada. A força para ser pessoa reside na total afirmação e no amor sem reservas a esta frágil e mortal vida. (MOLTMANN, 2007, p. 87) Esta vida biológica, que a série mostra como vida em relação e em busca de sentido, é pergunta que espera resposta e totalidade em busca de unidade. Cultivando uma solidão desértica, o ser humano pós- moderno se desespera diante da dor, do fracasso, da doença e da morte exatamente por depositar suas esperanças em sua autosuficiência. Parece ser urgente uma educação para a realidade humana: uma aprendizagem do alterocentrismo e da centralidade dos próprios limites, para, a partir daí, tornarse próximo do outro e tratar de suas feridas, mesmo quando as proprias feridas continuam doendo. 5. REFERÊNCIAS Videografia HOUSE MD. Fox / Universal Studios. Criador: David Shore. Produção: Katie Jacobs, David Shore, Paul Attanasio, Bryan Singer, Russel Friend, Garrett Lerner e Thomas L. Moran – Fox. Elenco: Hugh Laurie, Lisa Edelstein, Robert Sean Leonard, Jennifer Morrison, Jesse Spencer, Omar Epps, Peter Jacobson, Kal Penn, Olivia Wilde. Bibliografia ALVES, Rubem. O Enigma da Religião. Campinas: Papirus, 1988. MOLTMANN, Jürgen. 97 Revista Científica da Faculdade Salesiana Maria Auxiliadora Experiências de Reflexão Teológica – Caminhos e Formas da Teologia Cristã. São Leopoldo: UNISINOS, 2004. MOLTMANN, Jürgen. No fim, o início - breve tratado sobre a esperança. São Paulo: Loyola, 2007. MOLTMANN, Jürgen. O Espírito da Vida. Petrópolis: Vozes, 1999. MOLTMANN, Jürgen. O que é a Vida Humana? Antropologia e desenvolvimento biomédico. Humanística e Teologia. Porto, tomo XXVIII, fascículo 1 / 2, p. 67-87, dez. 2007. MOLTMANN, Jürgen. Teologia da Esperança – Estudo sobre os fundamentos e as conseqüências de uma Escatologia Cristã. São Paulo: Herder, 1971. SUSIN, Luiz Carlos. A Criação de Deus. São Paulo: Paulinas, 2003. 98