HOUSE MD: quando a morte desperta esperança

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HOUSE MD: quando a morte desperta esperança
Revista Científica da Faculdade Salesiana Maria Auxiliadora
HOUSE MD: quando a morte
desperta esperança – uma leitura
desde a teologia de Jürgen
Moltmann
RENATO FERREIRA MACHADO
Doutorando em Teologia Faculdades Est, São Leopoldo –RS
Professor de Antropologia Cultural e Antropologia Religiosa
Da Faculdade Dom Bosco – Porto Alegre - RS
Coordenador da Pastoral Universitária da Faculdade Dom Bosco
Resumo
O artigo realiza uma leitura da série televisiva House M.D., em linhas gerais, tendo
por base o ideário teológico de Jürgen Moltmann sobre morte e esperança. Destacase a relação pós-moderna com o sofrimento e a enfermidade, onde estas situações
são mascaradas por um estilo de vida consumista e voltado para as aparências.
Recorre-se aos personagens e situações da série televisiva como arquétipos
destas realidades humanas, buscando-se uma leitura teológica de atitudes,
diálogos e situações em geral de forma semiótica e desconstrutiva. Destaca-se o
pensamento teológico de Jürgen Moltmann sobre o lugar do corpo na Tradição
Cristã, bem como o sentido escatológico do sofrimento e da recuperação da saúde.
Palavras-chave:
88
: House MD, Moltmann, morte, esperança.
Visões nº.7 - p. 2 - julho / dezembro 2009
HOUSE MD: quando a morte
desperta esperança – uma leitura
desde a teologia de Jürgen
Moltmann
RENATO FERREIRA MACHADO
Doutorando em Teologia Faculdades Est, São Leopoldo –RS
Professor de Antropologia Cultural e Antropologia Religiosa
Da Faculdade Dom Bosco – Porto Alegre - RS
Coordenador da Pastoral Universitária da Faculdade Dom Bosco
Abstract
The article provides a reading of the television series House MD, generally
speaking, based on the ideas of Jürgen Moltmann theology about death and
hope. It highlights the postmodern relationship with suffering and disease,
where these situations are masked by a consumer lifestyle and returned to the
appearances. It is through the characters and situations of the television series as
archetypes of these human realities, seeking a theological reading of attitudes,
situations and dialogues in general in a semiotic and deconstructive way. We
highlight the theological thought of Jürgen Moltmann on the place the body in the
Christian Tradition, and the eschatological sense of suffering and restore health.
Keywords:
House MD, Moltmann, death, hope.
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Revista Científica da Faculdade Salesiana Maria Auxiliadora
1. INTRODUÇÃO
N
a tradição de longevas
series televisivas que
imortalizam personagens,
o Dr. Gregory House vem
trilhando um caminho que o coloca
no imaginário pós-moderno. O
personagem, interpretado pelo
ator inglês Hugh Laurie poderia
ser mais um entre tantos médicos
que
protagonizaram
dramas
hospitalares no cinema e na TV,
mas revela-se inédito em sua
personalidade e na forma como
aborda os problemas cotidianos
com os pacientes que são
colocados em suas mãos, em busca
da salvação de suas vidas. Exibida
nos Estados Unidos pela Fox desde
novembro de 2004 e, no Brasil,
pelo Universal Channel – na TV
por assinatura – e pela Rede Record
– na TV aberta – a série já está em
sua sexta temporada e vem sendo
uma das mais assistidas do mundo.
1. Dois de seus
jargões mais famosos são “Everibody
lies!”(Todo
mundo
mente!) e “People
don’t change!” (A pessoas não mudam!).
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O personagem principal, que
dá nome à série, é um médico
diagnologista considerado um gênio
em sua área, que chefia a principal
equipe de especialistas do Hospital
Escola Princeton-Plainsboro. Ao
contrário de outros personagens do
mesmo contexto, porém, Gregory
House é misantropo, antissocial e
politicamente incorreto. Em sua
dinâmica de trabalho, recusa-se
a ter contato humano com seus
pacientes e, quando isso acontece,
coloca-lhes a verdade de forma
nua, crua e irônica. O que pode
parecer, em um primeiro momento,
uma apologia à crueldade, mostrase exatamente o contrário com o
desenvolvimento das tramas da
série: o personagem se revela uma
pessoa em conflito com o mundo
e com a vida, uma vez que sofre
de dores crônicas em uma de suas
pernas e que, por causa disso,
acabou viciando-se em analgésicos.
Na crise de seu sofrimento, ele
reconhece o sofrimento alheio
e testa seus próprios limites ao
investigar os limites dos pacientes.
É nesta dimensão que se dá, então,
sua interação com o enfermo:
ao não acreditar em palavras e
aparências1 , comunica-se com o
profundo da pessoa em sofrimento
e ajuda-a a decidir sobre sua vida
e morte. Neste ponto, revela-se um
conteúdo teológico que perpassa as
histórias, muitas vezes, de forma
explícita. Dizendo-se ateu, House
questiona qualquer tipo de crença,
mas é interpelado profundamente
sobre o mistério da existência em
sua trajetória de vida. Tal fato
é importante em uma sociedade
secularizada, onde o discurso de fé
se encontra banido para o âmbito
íntimo pessoal e a teologia foi
exilada dos discursos científicos
relevantes (MOLTMANN, 2004,
p.45-46): mesmo que não seja de
forma intencional, a inclusão de
uma reflexão teológica no massmedia sempre acaba provocando
Visões nº.7 - p. 2 - julho / dezembro 2009
possibilidades de discussão de
questões a ela relacionadas.
Neste sentido, é preciso levar
em consideração que o mundo
ocidental
é
profundamente
marcado pela Tradição Cristã,
como experiência de fé, e pelo
ideário Iluminista europeu, como
experiência
de
organização
sociopolítica.
Por
isso,
as
produções artísticas que circulam
nos grandes meios de comunicação,
de certa forma, acenam para as
grandes buscas e anseios deste
complexo social. Neste caso
específico, a série aborda grandes
problemáticas humanas – doença,
sofrimento e morte – propondo
encaminhamentos diferenciados
para elas. É no fato de fazer
uma grande crítica à cultura de
superficialidade e simulacro de
aparências que se tem cultivado na
pós-modernidade, que House M.D.
provoca teologia: no hospital da
série, médicos e pacientes precisam
chegar às suas questões últimas,
desnudando o humano que busca
sentido para a vida em meio ao
sofrimento. A verdade libertadora
e a esperança, porém, não são
apresentadas como amenidades
para o problema. Pelo contrário, na
ação de Gregory House todos são
levados a assumir suas contradições
para buscar a salvação, inclusive
ele2 . Neste contexto, fazse necessário identificar esta
problematização
teológica
e
propor
seu
aprofundamento,
uma vez que grande parte das
pessoas busca seus parâmetros
de relação intra e interpessoal
nestas produções artísticas e
que personagens carismáticos
como o Dr. House inegavelmente
influenciam
comportamentos
e
visões
sobre
a
vida.
2. SER HUMANO, SER
COMO DEUS
As narrativas da Criação dos
textos sagrados revelam um
Deus em processo criativo,
expressando um pleno-amor do
qual só pode se originar a vida.
Ao chamar cada criatura pelo
nome, vai confirmando a bondade
intrínseca de sua obra, com a
qual o caos vai tomando forma e
o nada começa a ser. Quando se
trata do humano, porém, há outros
detalhes e atributos que parecem
ser exclusivos: nesta criatura do
sexto dia reconhece-se a imagem e
semelhança com o próprio Deus, ao
mesmo tempo em que se deixa claro
que este mesmo ser foi erguido do
solo da terra. Homem e mulher são
duplos em unidade: masculino e
feminino, últimos a serem criados
e primeiros a reconhecerem a
criação como paraíso, criaturas
com responsabilidade divina,
imagem da toda criação e
imagem do criador, eucarísticos
e sacerdotais, vivos que sabem de
sua própria morte. É nesta condição
2. Pode-se encontrar
similaridade
desta dinâmica em
Jo 5, 5-9, onde Jesus
pergunta ao paralítico se ele deseja ser
curado, colocando,
assim, a responsabilidade pessoal no processo de libertação.
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que se constrói, existencialmente,
a liberdade humana. Ao saber-se
capaz, o ser humano também toma
consciência das consequências de
seus atos, vivendo sempre as “dores
do parto” de suas próprias criações
(SUSIN, 2003, p. 129-136).
3. Control – primeira
temporada,
episódio 14, exibido pela
primeira vez nos Estados Unidos em 15
de março do 2005
e, no Brasil, em 14
de julho de 2005.
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Para um ser que projeta o mundo
a partir de seus sonhos e valores,
o reconhecimento de limites
sempre traz sofrimento e a morte
sempre parece injusta. O momento
em que o caos primordial parece
arrastar a existência para antes
da criação causa temor – por
saber-se inevitável – e transforma
muitas existências em fuga para
lugar nenhum (ALVES, 1988,
p. 133-134). Pensando-se por
este viés, é interessante constatar
que os episódios da série House
MD, quase que invariavelmete,
se iniciem mostrando situações
do cotidiano, sem nenhuma
referência ao que virá depois ou
mesmo ao núcleo de personagens
centrais da trama. Em seu dia-adia, as pessoas são surpreendidas
por algum quadro patológico que
as impede de continuar em sua
rotina e, de certa forma, acena
para o fim de sua existência. Não
havendo diagnóstico claro, o
enfermo é encaminhado para a
equipe de Gregory House, que fará
investigações em busca das causas
e tratamentos para a doença. Em
uma relação simbólica, ali está o
ser que vive como imagem de Deus
– consciente, capaz, imaginativo
e criador através de seu trabalho
– redescobrindo-se como “pó,
que ao pó voltará” (Gn 3, 19).
Um “ser-como-Deus”, certamente
não se conformará com sua queda.
Não podendo mais realizar aquilo
que fazia antes da enfermidade,
buscará afirmação em seu discurso
e em seus códigos de ética. Isso
fica bastante claro, por exemplo,
no episódio “Controle”3 , no qual a
presidente de uma grande empresa
é acometida por um “mal súbito”
durante uma importante reunião
de negócios. Quando começa a
sentir a estranheza da doença em
seu corpo, ela segue a reunião
normalmente, até seu limite de
tolerância à dor e ao desconforto.
Após encerrar diplomaticamente
o encontro, chama sua assistente
pelo celular, com a palavra help:
seu sofrer não pode ser público,
uma vez que sofrer não está no rol
de qualidades necessárias a uma
executiva de alta performance
quanto esta personagem. A única
a saber é sua assistente direta que,
durante a internação hospitalar e
tratamento, manterá os negócios
em dia. Diante deste quadro, o
Dr. Gregory House recusa-se a ter
contato com a paciente, exatamente
por entender que ela não conseguirá
fazer uma avaliação sincera
dela mesma, tão absorvida que
está pelas funções que assumiu.
Sua investigação se dá de forma
indireta, através daquilo que mais
lhe incomoda: a “pose” mantida
pela paciente, mesmo diante de
uma grave doença que pode lhe
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tirar a vida. Quando chega ao
diagnóstico final da enfermidade,
House tem um único e emblemático
diálogo com ela. Tendo descoberto
que todo o quadro de saúde era
conseqüência de bulimia e da
ingestão de um medicamento
que ajudava a disfarçar os sinais
do distúrbio alimentar, o que
levara a um quadro agudo de
disfunção cardíaca e à necessidade
de um transplante, o médico
comunica a situação à paciente.
House:
Você
transplante
precisa
de
de
um
coração.
Paciente: Eu me exercito... corro...
House:
Paciente:
o
que
Você
isso
se
Não
tem
corta!
a
(...)
entendo
ver...
House: Você sofre de intensa bulimia e
se obriga a vomitar. Tinha que descobrir
uma maneira eficiente de vomitar
sem dar sinais de bulimia, o que seria
inadequado para alguém em sua posição.
Ele continua, então, dizendo que o
comitê de transplantes se reunirá
para discutir o caso dela e que ele
terá de falar sobre a bulimia e as
condições psicológicas da paciente,
o que provavelmente a excluirá
da lista de candidatos a recepção
de órgãos. House diz, então, que
pode mentir para o comitê, mas
que isso arriscaria a carreira dele.
De forma sarcástica, ele diz que
seria uma boa oportunidade para
que ele pedisse uma propina.
House: Quanto acha que vale a sua
vida? Quanto vale o meu trabalho?
Paciente: Por que veio fazer
isso comigo? O que você quer?
House: Eu quero saber o que é correto.
Paciente: Eu valho tudo isso? Você
me acha patética. Alguém que tem
um bom emprego e tudo que quer,
mas não gosta da própria aparência.
House: Pare de se esconder! Estou
perguntando se quer viver ou morrer.
Pode ao menos me responder? (...)
Quero que me diga que sua vida
é importante para você, porque
eu não sei. Porque é o que está
em jogo neste momento. Sua vida.
Ora, não é por acaso que o episódio
se intitula Controle: ao tentar manter
tudo sob controle em sua carreira,
em nome do sucesso profissional,
a personagem perdeu a noção de
valores sobre a sua própria vida.
A abordagem de Gregory House,
então, acaba desconstruindo aquilo
que dá a ela, atualmente, um
parâmetro existencial: a crença de
que tudo tem um preço e de que as
coisas só valem a pena quando dão
bons resultados. É o que House
questiona: é possível medir o valor
da vida dela, em termos financeiros?
É um “bom negócio” garantir um
transplante para alguém que pode
acabar se matando para manter as
aparências? Impotente diante da
situação, a personagem verbaliza
sua vontade de continuar vivendo.
3. PERGUNTAR POR
DEUS NO SOFRIMENTO
Perder o controle sobre o próprio
corpo coloca em cheque todos
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os projetos de futuro que se pode
ter. Pensar o futuro como projeto,
aliás, é característica intrínseca da
mística judaico-cristã: acreditase em um Deus que promete
vida e se revela no tempo,
diferenciando passado e presente
ao apontar a plenitude que virá.
Sob o signo da promessa de Deus,
a realidade é experimentada como
história. O campo de ação daquilo
que enquanto história é inserido
dentro da experiência, da lembrança
e da esperança, é produzido, torna-se
manifesto e é modelado pela promessa.
(MOLTMANN,
1971,
p.
117)
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De certa forma, se é mais humano
na medida em que se pode projetar
a vida com esperança para o porvir.
Esta herança do Povo da Aliança
e dos seguidores de Jesus vem
parar na cultura ocidental como
busca de possibilidades mediante
a força de trabalho e a exploração
de recursos naturais. Por isso, o
mundo moderno é inaugurado
exatamente quando o ser humano
se torna “independente” da Terra
e de seus ciclos, em uma clara
distorção dos valores abraâmicos
(MOLTMANN, 1999, p. 74-75): se
antes era Deus quem prometia e, por
sua Graça, colocava o ser humano
em movimento para a promissão,
agora é a própria criatura que
projeta, promete e se justifica
em busca da “realização” de sua
vida. Ora, como imago Dei este
ser é capaz de prometer e assumir
suas promessas e, de certa forma,
vai construindo sua liberdade
exatamente quando realiza aquilo
que imagina e deseja. Inserido em
uma cultura individualista, porém,
este projeto de futuro pode acabar
sendo um mero arremedo do
projeto de vida originário, presente
na ação criadora de Deus. Da
promessa, passa-se ao progresso
e do sonho de vida, passa-se ao
sonho de consumo. Neste ambiente
a corporeidade e a saúde adquirem
o status de funcionalidade, pois o
trabalho perde seu caráter criativo
para assumir o paradigma da
produtividade. Nesta criação
humana só se chega ao tempo
sabático por acidente, como
acontece à personagem supracitada.
Tem-se, assim, um ser segregado
às trevas de suas impossibilidades,
procurando mostrar a luz de suas
próprias conquistas ao preço de,
muitas vezes, sacrificar aquilo que
tem de mais importante. Tem-se,
aqui, a abertura para a dimensão
soteriológica da economia divina.
Esta dimensão aparece nas
narrativas sinóticas no destaque
à manifestação do poder curativo
de Jesus Cristo: mais do que
um simples “conserto de saúde”
operado pelo Filho de Deus,
é uma reinserção da criatura
humana no “concerto da criação”,
uma vez que a enfermidade
aparece nos Evangelhos como
uma “desafinação” com a própria
essência humana, que é ser imagem
de Deus. Por isso, homem e mulher,
sob o olhar do Messias, encontramse enfermos e não pecadores e,
ao experimentar a presença de
Jesus, é a própria presença do
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Reino de Deus e sua Justiça que
experimentam, de forma totalizante
e totalizadora. Em um mundo
de “autoconsumação” e sem
expectativas de transformação,
estas ações curativas de Cristo
parecem coisas irreais e fora de
contexto; à luz da promessa de
vida glorificada de Deus, porém,
elas são mera conseqüência da
presença dEle em meio à sua
própria criação. Ao expulsar a
possibilidade do caótico na vida, o
Verbo Encarnado possibilita que se
volte a sonhar e projetar o futuro
na confiança de um Deus-Amor
atento e alentador de suas criaturas
(MOLTMANN, 2007, p. 83-85).
Esta é uma realidade custosa
para o personagem principal da
série, o Dr. Gregory House, que
teve um músculo extirpado da
perna em consequência de um
diagnóstico médico errado. Com
as dores constantes amenizadas
pela ingestão compulsiva de
analgésicos, ele acaba obcecado por
acertar sempre seus diagnósticos,
mesmo que, para isso, tenha
que se opor a toda lógica da
medicina que exerce, ou, melhor
dizendo, encontrar outras lógicas
e possibilidades. Um dos fios
condutores da série, aliás, é o visível
incômodo que sua enfermidade
lhe causa e sua esperança de
fazer sua perna voltar ao normal.
Descrente de qualquer coisa que
não possa ser comprovada, ele
acaba tornando sua existência
uma expressão do conflito com
Deus que acontece no livro de Jó.
A ira de Deus me ataca e me dilacera,
range os dentes contra mim e crava em
mim os seus olhos hostis. Abrem contra
mim a boca e me esbofeteiam com
suas afrontas, todos em massa contra
mim. Deus me entrega como presa aos
perversos, e me entrega na mão dos
injustos. Eu vivia tranqüilo, e ele me
esmagou. Agarrou-me pela nuca e me
triturou, fazendo de mim o seu alvo.
Com seus arqueiros ele me rodeou,
me atravessou os rins sem piedade,
e derramou por terra o meu fel. Abriu
minha carne com mil brechas, e como
guerreiro me assaltou. (Jó 16, 9-14)
Assim como Jó, a existência
de House parece se tornar um
constante perguntar pela justiça:
em suas atitudes, meticulosidade
e aspereza, por vezes transparece
o grito de um injustiçado, que não
compreende porque o mal se abateu
sobre sua vida (MOLTMANN,
2007, p. 74-75). Sua atitude,
porém, não é de resignação à sua
situação, mas de esforço para
deter este mesmo mal na vida de
outros. Neste ponto parece se
encontrar uma grande riqueza
teológica: quando House expressa
seu ceticismo e seu ateísmo, a
favor de uma visão clara e lógica
da realidade, ele acaba colocando
em cheque aquilo que está
institucionalizado em nossa cultura
quanto à fé e à esperança. Isto fica
explícito, por exemplo, quando ele
conversa com uma paciente sua
que acredita estar sendo testada por
Deus em sua doença. Ele lhe diz:
“Você pode ter a fé quer quiser em
espíritos, em vida após a morte,
no paraíso e no inferno, mas se
tratando desse mundo, não seja
idiota. Porque você pode me dizer que
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deposita sua fé em Deus para viver
bem o seu dia, mas quando chega
a hora de atravessar a rua, eu sei
que você olha para os dois lados.”4
Esta
“não-ingenuidade”
no
ato de crer vai ao encontro do
pensamento de Moltmann (2004,
p. 27) quando se refere à fé como
“incredulidade superada”, ao invés
de “protoconfiança ingênua” .
4. A MORTE MUDA TUDO
4. Damned if you Do
– primeira temporada, episódio 5, exibido pela primeira vez
nos Estados Unidos
em 14 de dezembro de
2004 e, no Brasil, em
12 de maio de 2005.
5. Family – terceira
temporada,
episódio 21, exibido pela
primeira vez nos
Estados Unidos em
01 de maio de 2007
e, no Brasil, em 02
de agosto de 2007.
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Muitas são as vezes em que Gregory
House se refere à morte como
“única doença que não pode ser
curada”. Ao mesmo tempo, porém,
as narrativas da série mostram um
“morrer em processo”, no qual
vidas vão sendo mudadas a partir
da sinalização de fragilidades
existenciais manifestadas no corpo.
No contexto em que é produzida,
esta série parece mexer com o
grande ponto fraco da civilização
ocidental pós-industrial, que é o
de exilar a morte para um âmbito
desintegrado da vida e, por isso
mesmo, criar uma cultura de medo
e terror referente a ela. O cultivo
de uma vida vazia pode levar a
uma morte vazia, na qual se fica
ante a desesperadora situação de
tornar tudo o que foi vivido em
esquecimento e perceber-se que
nada fez sentido. Esta questão se
traduz na situação retratada no
episódio Familia5 , no qual um
menino, que faria uma doação de
medula para seu irmão – que sofre
de leucemia – acaba adoecendo
e ficando também à beira da
morte. Não havendo mais tempo
hábil para reverter o quadro dos
dois, é o irmão leucêmico que
acaba tendo que salvar a vida do
outro com o sacrificio da sua. O
diálogo de House com o jovem
enfermo, na tentativa de convencêlo a fazer o sacrifício por seu
irmão mostra bem este sentido:
“Não vai adiantar. Você está morrendo.
Nada vai mudar isso. A medicação
só ameniza as coisas. Quatorze anos
no planeta, a maior parte do tempo
sofrendo. Morrer antes de aprender
a dirigir, antes de tirar o sutiã de uma
garota, antes de beber uma cerveja...
Acredite, você perdeu muita coisa.
Coisas muito boas. Deve ser difícil
acreditar em Deus ou justiça, ou num
bem maior. Mas sua vida não precisa ser
em vão. Você pode salvar seu irmão.”
A grande questão que parece
surgir aqui é esta: quando, afinal,
a vida vale a pena? Ou, ainda:
quando é que não se vive em vão?
Estes questionamentos podem
se traduzir na pergunta feita pelo
doutor da lei a Jesus, em Lc 10,
25: O que devo fazer para herdar
a vida eterna? A resposta vem em
forma de novas perguntas (Lc
10, 26) e de uma história onde
se revela quem é o “próximo”, a
quem se deve um amor tão grande
e verdadeiro quanto a si mesmo
(Lc 10, 29-37): aquele que usa de
misericórdia para com o outro.
Esta é a provocação que House faz
ao paciente: sua vida parece não ter
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valido a pena, mas ela terá todo o
seu valor revelado no seu sacrifício
para que a vida do outro valha.
Sem dúvida, uma lição bastante
difícil de ser aprendida em um
contexto consumista, imediatista
e moralista como o nosso.
Uma outra dimensão que se
depreende neste exemplo é o de
assumir-se como próximo do
outro com todas as incoerências e
limitações que se possa ter, ao invés
de procurar alguém que “precise
de nossa ajuda”. Provavelmente,
aí esteja o diferencial da atitude
de Gregory House: ele sabe que
o quem tem a oferecer é sua
sagacidade e competência em
medicina e que isso independe
dele ser “politicamente correto” ou
não. Quando se trata de lidar com a
proximidade da morte, não há mais
tempo ou espaço para convenções,
pois muitas destas mesmas
convenções servem apenas como
um medicamento que ameniza
a dor mas não cura a doença.
A vida humana é biológica tal como
outra vida que a si mesmo se reproduz.
A humanidade desta vida consiste no
facto de que ela é recebida, afirmada
e que ela é, enquanto tal, uma vida
interessada. A força para ser pessoa
reside na total afirmação e no amor
sem reservas a esta frágil e mortal
vida. (MOLTMANN, 2007, p. 87)
Esta vida biológica, que a série
mostra como vida em relação e em
busca de sentido, é pergunta que
espera resposta e totalidade em
busca de unidade. Cultivando uma
solidão desértica, o ser humano pós-
moderno se desespera diante da dor,
do fracasso, da doença e da morte
exatamente por depositar suas
esperanças em sua autosuficiência.
Parece ser urgente uma educação
para a realidade humana: uma
aprendizagem do alterocentrismo
e da centralidade dos próprios
limites, para, a partir daí, tornarse próximo do outro e tratar de
suas feridas, mesmo quando as
proprias feridas continuam doendo.
5. REFERÊNCIAS
Videografia
HOUSE MD. Fox / Universal
Studios. Criador: David Shore.
Produção: Katie Jacobs, David
Shore, Paul Attanasio, Bryan
Singer, Russel Friend, Garrett
Lerner e Thomas L. Moran
– Fox. Elenco: Hugh Laurie,
Lisa Edelstein, Robert Sean
Leonard,
Jennifer
Morrison,
Jesse Spencer, Omar Epps, Peter
Jacobson, Kal Penn, Olivia Wilde.
Bibliografia
ALVES, Rubem. O Enigma da
Religião. Campinas: Papirus, 1988.
MOLTMANN,
Jürgen.
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Revista Científica da Faculdade Salesiana Maria Auxiliadora
Experiências
de
Reflexão
Teológica
–
Caminhos
e
Formas da Teologia Cristã. São
Leopoldo: UNISINOS, 2004.
MOLTMANN, Jürgen. No fim,
o início - breve tratado sobre a
esperança. São Paulo: Loyola, 2007.
MOLTMANN, Jürgen. O Espírito
da Vida. Petrópolis: Vozes, 1999.
MOLTMANN, Jürgen. O que é
a Vida Humana? Antropologia
e desenvolvimento biomédico.
Humanística
e
Teologia.
Porto, tomo XXVIII, fascículo
1 / 2, p. 67-87, dez. 2007.
MOLTMANN, Jürgen. Teologia
da Esperança – Estudo sobre os
fundamentos e as conseqüências
de uma Escatologia Cristã.
São
Paulo:
Herder,
1971.
SUSIN, Luiz Carlos. A Criação de
Deus. São Paulo: Paulinas, 2003.
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