HILDA FURACÃO: REALIDADE, FICÇÃO OU LENDA URBANA?

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HILDA FURACÃO: REALIDADE, FICÇÃO OU LENDA URBANA?
0
FACULDADE DE PARÁ DE MINAS
Curso de Letras
Verônica Vitória de Oliveira Silva
HILDA FURACÃO: REALIDADE, FICÇÃO OU LENDA URBANA?
Pará de Minas
2013
1
Verônica Vitória de Oliveira Silva
HILDA FURACÃO: REALIDADE, FICÇÃO OU LENDA URBANA?
Monografia apresentada à Coordenação de
Letras da Faculdade de Pará de Minas como
requisito parcial para a conclusão do curso de
Letras.
Orientador: Dra. Ana Paula Ferreira
Pará de Minas
2013
2
Verônica Vitória de Oliveira Silva
HILDA FURACÃO: REALIDADE, FICÇÃO OU LENDA URBANA?
Monografia apresentada à Coordenação de
Letras da Faculdade de Pará de Minas como
requisito parcial para a conclusão do curso de
Letras.
Orientador: Dra. Ana Paula Ferreira
Aprovada em _____ / _____ / _____
___________________________________________________________
Orientador: Dra. Ana Paula Ferreira
___________________________________________________________
Examinador: Me. Jessé Saturnino
3
Agradeço à minha orientadora pelo incentivo
e colaboração para a realização deste
trabalho.
4
Através da arte (...) distanciamo-nos e ao
mesmo tempo aproximamo-nos da realidade.
Goethe
5
RESUMO
A discussão sobre a maneira com que o romance brasileiro Hilda Furacão teve a
personagem principal transposta para o real é o conteúdo abordado pela presente
pesquisa, em que se propõe trabalhar o tema Realidade x Ficção na literatura,
estudando a relação entre literatura e a realidade e as influências exercidas uma sobre
a outra. Isso, de maneira a demonstrar como a realidade e o meio social podem ser
inspiração para a criação de uma obra fictícia e, no caso tratado, como a ficção literária
pode criar lendas e personagens que passam a habitar entre o real e o imaginário. O
romance Hilda Furacão é investigado na tentativa de revelar as técnicas utilizadas por
seu escritor, na construção da personagem e dos demais elementos constituintes da
obra, capazes de transformar a personagem, Hilda, em uma lenda urbana. É feita
análise dos elementos da narrativa e o estudo da estrutura comprova e aponta as
causas do surgimento da lenda a que o trabalho se refere. Para tal pesquisa, foi feito
um levantamento de dados bibliográficos e, além disso, foram levados em consideração
os depoimentos de pessoas que argumentam em torno da existência de Hilda, bem
como os indícios de que a obra seria extremamente ficcional. Vários, fatos, lugares e
até mesmo pessoas reais são mesclados a momentos e personagens totalmente
inventados e, por meio da pesquisa e do levantamento dos dados enumera-se uma
série de fatores criados pelo próprio autor, Roberto Drummond, na intenção de provocar
no leitor uma dúvida sobre a veracidade dos fatos, fazendo com que o leitor acredite
que a história possivelmente aconteceu.
Palavras chave: Hilda Furacão, realidade, ficção, lenda urbana, verossimilhança.
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SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO ............................................................................................................. 7
1.1
1.1.1
Objetivos ............................................................................................................ 9
Objetivo geral ................................................................................................. 9
1.1.2 Objetivos específicos ....................................................................................... 9
2 PERSPECTIVAS TEÓRICAS ..................................................................................... 10
2.1 Roberto Drummond: o jornalista a serviço da literatura ................................. 10
2.2 A realidade como matéria-prima da ficção ....................................................... 13
2.3 Aspectos estruturais do romance ..................................................................... 16
2.3.1 A força da personagem de ficção ................................................................... 17
3 HILDA FURACÃO: ATRAVESSAMENTOS ENTRE REALIDADE E FICÇÃO .......... 20
3.1 Contexto histórico .............................................................................................. 21
3.2 Análise da estrutura literária de Hilda Furacão ................................................ 23
3.2.1 Enredo............................................................................................................ 23
3.2.2 Personagens .................................................................................................. 27
3.2.3 Tempo ............................................................................................................ 37
3.2.4 Espaço ........................................................................................................... 37
3.2.5 Narrador ......................................................................................................... 39
4 CONCLUSÃO ............................................................................................................. 41
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA................................................................................... 43
ANEXO A – Depoimento de Drummond sobre a compra dos retirantes ................. 45
7
INTRODUÇÃO
A proposta desta pesquisa é trabalhar o tema Realidade x Ficção na literatura.
Pretende-se, com isso, estudar a relação entre literatura e a realidade e as influências
exercidas uma sobre a outra; como a realidade e o meio social podem ser inspiração
para a criação de uma obra fictícia e, principalmente, como a ficção literária pode criar
lendas e personagens que passam a habitar entre o real e o imaginário. É comum que,
nos romances, a realidade seja transportada para a ficção. Porém, a pesquisa
investigará como oposto também pode acontecer.
O interesse pelo tema surgiu após a leitura e análise da obra Hilda Furacão, de
Roberto Drummond, em aulas de Literatura Brasileira do curso de Letras, pelo fato de a
narrativa se passar em cenários mineiros bastante conhecidos e de acesso comum;
pela “mineiridade” dos personagens que apresentam sotaque típico e pela curiosidade
em saber se a história realmente havia acontecido.
Como obra mais conhecida do autor, o livro, já adaptado para a televisão por
meio de minissérie na emissora Rede Globo, foi alvo de inúmeros questionamentos
sobre a verdadeira existência da “deusa” da zona boêmia de Belo Horizonte e acabou
transformando Hilda Furacão em lenda, destruindo fronteiras entre o real e o imaginário.
Como narrador-personagem da história, Drummond mescla acontecimentos reais,
inclusive autobiográficos, com fatos e personagens criados por ele.
A pesquisa tenta descobrir e comentar as ferramentas que o autor utiliza e que
contribuem para esse efeito. A narrativa é permeada de personagens da vida real e se
passa na capital mineira, efervescente dos anos sessenta, com greves estudantis, além
de políticos e militares preparando o grande golpe de 1964. Sendo assim, o leitor que
viveu naquela época ou mesmo que teve conhecimento dela, consegue facilmente crer
que tudo aquilo contado no livro realmente aconteceu.
Pretende-se ainda uma comparação. Os romances, em grande parte, retratam
histórias baseadas na realidade e transportam para os livros, de forma fictícia,
acontecimentos baseados no real. No caso do livro apresentado, ocorre praticamente o
inverso. A personagem principal é transposta da ficção para a realidade e se transforma
em uma lenda, como se realmente tivesse existido. Assim, a literatura acaba
modificando a realidade. Após ler o livro, pergunta-se: seria Hilda apenas uma criação
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de Drummond? Ela teria realmente existido? Ou ainda: seria ela personagem fictício
inspirado em alguém? O próprio autor, que faleceu em 2002, em várias entrevistas, não
desmentia, mas também não confirmava a existência da personagem, fazendo questão
de aumentar ainda mais o mistério e aguçar a curiosidade do leitor.
Propõe-se, a partir disso, uma investigação a respeito da construção do
romance. Que métodos utilizados pelo autor durante a criação da personagem teriam
provocado nos leitores a sensação de existência real da protagonista? Como a maneira
misteriosa com que o autor apresenta a personagem e os fatos foi capaz de dar vida à
Hilda? De que maneira Roberto Drummond relaciona ficção e realidade, fazendo com
que a narrativa seja tão bem contada a ponto de criar dúvidas no leitor? O que fez com
que o público leitor se identificasse com a personagem?
Sendo assim, a maneira como a obra de Roberto Drummond mistura o real ao
ilusório com verossimilhança faz com que os leitores se aproximem da história como se
fizessem parte dela, tornando-se um aspecto importante a ser pesquisado. Nesse
sentido, Antônio Candido lembra que “... um traço irreal pode tornar-se verossímil,
conforme a ordenação da matéria e os valores que a norteiam, sobretudo o sistema de
convenções, adotado pelo escritor”. (CANDIDO, 1995, p. 77)
A literatura, sem dúvida, é formada por obras imaginárias criadas por alguém.
Porém, pode guardar uma profunda relação com o “real”. Uma vida pacata e tediosa
pode ser transformada em maravilhosas narrativas se o autor souber utilizar as
ferramentas adequadas. A intenção do trabalho é refletir sobre essa relação e a ação
da literatura no cotidiano das pessoas, investigando de que maneira ela pode formar
opiniões e crenças.
A pesquisa justifica-se por ser benéfica à ciência, propondo ao leitor, ou a
possíveis pesquisadores do assunto, um olhar diferenciado para a repercussão que a
literatura pode ter na realidade concreta. O estudo proposto pode ainda ser utilizado
como ferramenta para contribuir na abordagem de obras contemporâneas no ensino da
literatura.
Apresentam-se primeiro as perspectivas teóricas que serão o embasamento para
a discussão proposta. Nessa parte, serão apresentados os aspectos essenciais do
romance, uma exposição de ideias sobre como a realidade age na ficção e ainda um
9
apanhado sobre a vida do escritor Roberto Drummond e sua maneira simples e
acessível de escrever.
Posteriormente, há uma análise aprofundada da obra em questão a fim de
esclarecer e atingir os objetivos propostos. Por meio de uma reflexão detalhada sobre
as estruturas que compõem o romance, é possível apontar os meios usados pelo autor
para transpor a ficção para a realidade.
1.1 Objetivos
1.1.1 Objetivo geral

Analisar a obra Hilda Furacão e a relação intrincada e inusitada que ela
estabelece com a realidade.
1.1.2 Objetivos específicos

Estudar a obra de Roberto Drummond, especialmente o romance Hilda Furacão;

Analisar a maneira como o autor trabalha ficção e realidade em Hilda Furacão;

Investigar as técnicas que o autor utilizou na construção da personagem e que
tornaram Hilda Furacão tão “viva”;

Apontar as possíveis causas de a personagem Hilda Furacão, ter se tornado
uma lenda urbana.
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2 PERSPECTIVAS TEÓRICAS
Para a realização da pesquisa com a temática realidade x ficção em Hilda
Furacão, a fim de se responderem os questionamentos e de se alcançarem os objetivos
propostos, servirão como embasamento o teórico AMORA (1973) que, ao relacionar
forma, conteúdo e personagens, discursa sobre a estruturação da obra literária,
explicitando a relação entre arte e realidade. O teórico mostra de que maneira o real
está inserido das obras de ficção e onde os romancistas encontram suas inspirações
para criar seus textos.
CANDIDO (1995) com a temática em torno da personagem do romance,
especificando suas características, classificações, seu envolvimento no enredo, busca
explicar como surgem os personagens, o que um autor pode aproveitar de sua própria
memória de acontecimentos reais para compor seu personagem inventado,
relacionando essa criação ao foco principal do romance.
BAKHTIN (1975) esclarece sobre discurso, linguagem e teoria do romance,
mostrando como é composta sua forma, a enorme gama de possibilidades
interpretativas existentes e as muitas vozes que podem ser percebidas. Será retomado
ainda o filósofo Aristóteles e seu conceito de verossimilhança, dentre outros teóricos
que possam contribuir no estudo estrutural do romance. Será apresentado inicialmente,
o escritor e jornalista Roberto Drummond, autor da obra em questão, contando
características comuns às criações.
2.1 Roberto Drummond: o jornalista a serviço da literatura
Para discursar sobre a obra de Roberto Drummond, cabe, antes, fazer uma
explanação geral sobre o próprio autor e as características comuns a seus textos, além
de fornecer alguns dados biográficos de maior importância.
O escritor Roberto Francis Drummond, nascido em Ferros, Minas Gerais em 21
de dezembro de 1933 foi, além de talentoso romancista, jornalista, contista e cronista
esportivo. Ganhou grande visibilidade no cenário da literatura brasileira ao lançar A
morte de D.J. em Paris, obra que o fez ganhar o Prêmio Jabuti de Literatura em 1975.
Sua obra de maior notoriedade é, sem dúvida, Hilda Furacão, livro que permaneceu no
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topo das listas de mais vendidos durante mais de um ano, sendo ainda adaptado para a
TV com a minissérie homônima da emissora de televisão Rede Globo, e para o teatro
na direção de Marcelo Andrade. Produziu ao todo três livros de contos, sete romances
e duas novelas durante sua trajetória como escritor.
Para traçar o perfil literário de Drummond, usa-se o termo, criado pelo próprio,
literatura pop, que consiste em uma literatura que busca a proximidade com o simples,
o cotidiano comum principalmente à sociedade mineira. Essa linha de produção,
segundo o autor mesmo afirmava, procura narrar histórias pelo simples fato de contar.
Seria algo feito apenas pelo prazer, tanto de escrever quanto de proporcionar
empolgação no leitor. Roberto Drummond gostava de dizer que escrevia para pessoas
populares que pudessem ler em horário de folga.
Atualmente, o autor é respeitado e bastante apreciado. Contudo já foi atacado
pela crítica, por seu modo próprio de narrar uma literatura que pudesse ser apreciada
por pessoas comuns. Engana-se, quem pensa que sua escrita é algo banal e sem
conteúdo. O mineiro conseguiu criar textos repletos de situações e personagens
cotidianas, que pudessem ser apreciados por todos os tipos de pessoas sem deixar de
apresentar histórias de forma densa e profunda. Nesse sentido, Silva (2011) defende a
qualidade do escritor:
no emaranhado de tendências estéticas contemporâneas, a ficção de Roberto
Drummond destaca-se como uma das produções literárias mais consistentes,
marcada por um percurso que vai do romance contestatório ao realismo crítico
dos anos oitenta, sem dispensar abordagens relacionadas ao engajamento
político. (SILVA, 2011, p.1).
Em uma análise geral seu trabalho é carregado de referências à sociedade
consumista, algumas vezes, como forma de crítica à cultura norte-americana que dita
regras de consumo, influenciando também os brasileiros. Essa característica pode ser
observada em passagens em que fala sobre personagens de Hollywood e pelo
constante uso de marcas famosas (exemplo claro é a marca de refrigerantes Coca-cola,
que aparece como título de seu famoso livro Sangue de Coca-cola). A crítica inclusive,
denomina seus quatro primeiros trabalhos como ciclo da Coca-cola.
Drummond defendia a utopia socialista e costumava criticar a situação política do
país. Por ter vivido e publicado parte de seu trabalho no contexto da ditadura militar,
muitas vezes precisava fazer isso nas entrelinhas, entretanto o elemento histórico
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nunca deixou de estar presente. Assim, os personagens de obras diferentes
costumavam aparecer no mesmo contexto. Na publicação de Silva (2001), esse afirma
que diversos componentes dos vários romances de Drummond estabelecem relações
entre si, daí a impressão de que ao invés de várias narrativas do mesmo autor, esses
seriam uma série de capítulos da mesma história. Podendo ser observada, com isso
uma espécie de intertextualidade que Schuler (1989) denomina como uma capacidade
que um texto literário tem de remeter a outro.
Apaixonado por Belo Horizonte, o escritor ambientava suas histórias na capital
mineira explorando ruas, praças e grandes pontos da cidade pelos quais ele costumava
circular e que conhecia com propriedade como cenário para suas obras ficcionais. O
que observava em sua vivência levava para as páginas de seus romances e contos.
Essa característica foi importante para dar certo destaque à cidade no cenário nacional.
Roberto Drummond mostra em seus textos também uma grande pluralidade
linguística e discursiva, como exemplo o próprio livro do qual a presente pesquisa trata.
Nele é possível distinguir passagens do discurso jornalístico, expressões típicas dos
idealistas partidários de esquerda que lutavam contra o regime e ainda a linguagem da
personagem principal, através da qual se pode notar uma expressiva oralidade típica do
mineiro, o que será tratado com um pouco mais de profundidade em seção seguinte.
A relação intrínseca estabelecida entre a personagem fictícia e a realidade não é
privilégio de Hilda Furacão. Em toda a obra de Roberto Drummond, ele estabelece um
jogo entre história e realidade, aproximando pessoas reais de suas personagens,
utilizando-se da ficcionalização da realidade. Fatos históricos marcantes da luta
brasileira no período ditatorial, ações militares, polêmicas envolvendo partidos políticos,
futebol, tudo isso é aproveitado e misturado a fatos irreais, criando, muitas vezes, a
dúvida sobre sua veracidade.
Como jornalista, trabalhou em redações como Binômio, Alterosa e ainda no
Estado de Minas. Neste último, foi cronista esportivo por muito tempo e, assim pôde
escrever sobre sua paixão por futebol, especificamente pelo time Clube Atlético Mineiro.
Torcedor fanático, deixou dentre suas várias crônicas, Para torcer contra o vento, que é
aclamada ainda hoje por torcedores, sobretudo, ao descrever um uniforme pendurado
no varal, após ter sido lavado, no momento de uma tempestade e criar a conhecida
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frase “se houver uma camisa branca e preta no varal durante uma tempestade,
atleticano torce contra o vento”.
Em 21 de junho de 2002, dia da partida entre Brasil e Inglaterra pelas quartasde-final da Copa do Mundo, morre Roberto Drummond, vítima de problemas cardíacos.
2.2 A realidade como matéria-prima da ficção
Ao estabelecer o foco principal da pesquisa, realidade x ficção no livro de
Drummond, surge a necessidade de conceituar e relacionar estes termos no contexto
geral da Literatura. Para tal, volta-se aos escritos de Aristóteles buscando o conceito de
verossimilhança. Como será visto mais adiante, a verossimilhança trata de realidades
que não aconteceram de fato, mas que, seguindo a lógica do mundo, seriam passíveis
de acontecer. É com Aristóteles que surge essa perspectiva. Através de uma análise
profunda da produção artística de sua época, o filósofo elaborou a Arte poética focada
na maneira com que o artista fala através de sua produção. Aristóteles apresenta
inúmeros fundamentos sobre a arte e a literatura que vão desde a matéria à linguagem.
Seu trabalho é comumente citado e tem extrema importância, tanto para a literatura
quanto para as reflexões humanas. O filósofo buscou compreender a mimese como a
imitação da realidade, como se as produções artísticas fosses representações do real.
Domício Proença Filho, em A linguagem literária, conceitua ficção: “do latim
fictionem, cognato do verbo fingere, que em português deu fingir – significa invenção,
fingimento, simulação, imaginação. A narrativa de ficção se caracteriza por fazer-se de
histórias fictícias ou simuladas, nascidas da imaginação”. (FILHO, 1987, p. 45).
Ao escrever uma obra ficcional é possível “criar” personagens, lugares, mundos
diferentes, porém o autor, em grande parte das vezes, estará retirando, mesmo que
sutilmente, do “mundo real” suas inspirações. Certamente, ele não estará fazendo uma
cópia da realidade, mas serão elementos de sua convivência cotidiana e de suas
lembranças que serão costurados à medida que sua história se desenvolve. Isso
porque o escritor faz suas narrações, usando como base sua memória, podendo
utilizar, por exemplo, características, comportamentos de pessoas que conheceu para
desenvolver a personalidade de seus personagens, estando preso a um limite de
criação literária. Além disso, é necessário ao leitor encontrar aspectos que lhe sejam
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familiares para que se sinta atraído pela leitura. Ao perceber a aproximação com a
realidade, ele irá se identificar com os fatos e personagens do texto por já ter vivido
situação semelhante ou conhecido alguém que viveu.
Nesse sentido, Amora destaca que:
é a realidade que dá o conteúdo da obra literária. É da realidade que o artista
recolhe, pela intuição, a matéria para sua obra. Por isso os estetas e os críticos
modernos dizem que a obra-literária (ou toda obra de arte) é uma
suprarrealidade ou uma imagem da realidade. (AMORA, 1973, p.43).
Ao dizer que a obra literária é baseada no real, sendo, portanto, uma estrutura
imagética deste, Amora estabelece duas classificações para a realidade, sendo “tudo
que podemos intuir, ou por via dos sentidos, ou por via intuspectiva; por via dos
sentidos, se essa realidade é o mundo físico, material, que impressiona os sentidos; por
via intuspectiva, se essa realidade é a do mundo psicológico.” (AMORA, 1973, p.43).
Sendo assim, pode-se afirmar que a obra ficcional, especificamente o romance,
através da personagem, tem suas raízes firmadas na relação existente entre o ser
fictício e o ser real. Da mesma maneira com que uma pessoa real tem sua
personalidade interpretada e compreendida de diferentes modos, isso também ocorre
com a personagem, mesmo esta sendo uma forma fixa, pois de acordo com os
elementos característicos que foram usados na sua descrição, cada leitor pode inferir o
que achar mais adequado. Hilda Furacão é um exemplo disso. Para entender sua
atitude de abandonar a vida invejável que vivia e fugir para o trabalho na zona boêmia,
procuram-se razões, fazendo suposições baseadas em sua personalidade e
acontecimentos em sua vida descritos dentro da narrativa, e mesmo o autor tendo-a
apresentado de maneira fixa, cada leitor pode levantar suas próprias hipóteses. Da
mesma forma, ocorre na obra Dom Casmurro de Machado de Assis, em que as
características da personagem são capazes de proporcionar um julgamento contra ou a
favor de Capitu.
No esforço de dar “vida” à personagem, os autores em geral, têm buscado
personalidades complexas, pois o ser humano é um ser complexo. Ou seja, não basta
descrever uma mulher por suas características físicas e inseri-la num determinado
espaço e tempo. Para que o leitor crie a imagem desse ser, é necessário que sejam
apresentadas suas manias, seus vícios, perturbações, seus medos, para que a pessoa
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que lê se identifique. Por vezes, esse trabalho é tão perfeito que a personagem ganha
mesmo essa vida própria, Machado de Assis, criador de Capitu, a descreveu como
sendo independente, como se agisse por vontade própria, de maneira que ele mesmo
quase não a pudesse controlar, como se seu comportamento dúbio fosse capaz de
confundir ao próprio criador.
Roberto Drummond também já fez afirmação parecida a respeito de sua
personagem mais analisada, como se ela estivesse no controle e não o escritor: “Sou
um eterno refém de Hilda Furacão”, chegou a dizer em entrevista à revista Época.
(DRUMMOND, 1998)
Discutindo sobre essa questão de utilizar a realidade como ponto de referência,
Candido explica que:
é paradoxalmente esta intensa aparência de realidade que revela a intenção
ficcional ou mimética. Graças ao vigor dos detalhes, à “veracidade” de dados
insignificantes, à coerência interna, à lógica das motivações, à casualidade dos
eventos etc., tende a construir-se a verossimilhança do mundo imaginário
(CANDIDO, 1995, p. 21).
Entende-se, portanto, que através da riqueza de detalhes fornecida pelo escritor,
consegue-se imitar o que é possível na realidade. Detalhes, às vezes de pequena
importância, são realçados para maior efetividade, garantindo mais verossimilhança à
escrita. Quanto mais fatos e aspectos cotidianos, mais semelhante á realidade a obra
se torna:
tanto na representação dos caracteres como no entrecho das ações, importa
procurar sempre a verossimilhança e a necessidade; por isso, as palavras e os
atos de uma personagem de certo caráter devem justificar-se por sua
verossimilhança e necessidade, tal como nos mitos os sucessos de ação para
ação. (ARISTÓTELES, 1991, p. 264).
Deve-se entender, que algo verossímil não é algo que precise ter acontecido. Na
obra literária ficcional é impossível apontar o que separa o real do irreal, pois, como
afirma Candido (1973), esses textos – ao contrário do que ocorre com os jornalísticos,
por exemplo, que precisam passar uma notícia objetiva com o intuito de informar – não
têm nenhum compromisso com a verdade. A verossimilhança de Aristóteles refere-se
ao que poderia ter acontecido, não ao que aconteceu. Esse conceito também é
discutido por Braith (1990) que, baseada no filósofo, afirma: “não cabe à narrativa
poética reproduzir o que existe, mas compor as suas possibilidades” (BRAITH, 1990, p.
31).
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Nessa perspectiva Candido atenta que:
o termo “verdade”, quando usado com referência a obras de arte ou de ficção,
tem significado diverso. Designa com frequência qualquer coisa como a
genuinidade, sinceridade ou autenticidade (termos que em geral visam à atitude
subjetiva do autor), ou a verossimilhança, isto é, na expressão de Aristóteles,
não adequação àquilo que aconteceu, mas àquilo que poderia ter acontecido;
ou a coerência interna no que tange ao mundo imaginário das personagens e
situações miméticas; ou mesmo a visão profunda – de ordem filosófica,
psicológica ou sociológica – da realidade. (CANDIDO, 1995, p. 18).
Portanto, para que uma obra literária tenha sentido, realidade e ficção estarão
entrelaçadas. Mesmo que o autor tente fugir da realidade, não conseguirá se afastar
completamente dela, pois só é capaz de raciocinar com as informações e
conhecimentos oferecidos por ela. Segundo Amora, “a obra literária não se identifica
plenamente com a realidade, mas também dela não pode afastar-se a ponto de se
tornar inteiramente independente.” (AMORA, 1973, p.55).
2.3 Aspectos estruturais do romance
Romance pode ser caracterizado como um gênero narrativo que leva a
experiência humana da realidade para a ficção. Geralmente, é uma narrativa longa, na
qual é contada a história principal, havendo também acontecimentos paralelos.
Apresentando tempo e espaço variados, além de um número geralmente grande de
personagens.
Desde sua origem, esse gênero tem sofrido muitas mudanças, não só no que se
refere a estilo, mas, principalmente, em sua função. Inicialmente, um romance
precisava ter cunho moralizante para que tivesse credibilidade. É o que revela Candido,
ao citar Francan: “o romance só pode ser justificado quando, por meio da ficção, puder
funcionar como instrumento moral de educação do homem” (CANDIDO, 1995, p. 96).
Com o tempo, foi perdendo essa obrigação de passar ao leitor o certo e o errado, e com
isso houve maior liberdade estilística. Porém, essa mudança acabou por criar uma
espécie de preconceito em torno do gênero, já que, se não tinha uma função de ditar
regras de boa conduta, seria, supostamente, então, apenas um texto bobo e
desnecessário.
Entretanto, um romance pode ser extremamente funcional para desenvolver o
senso crítico, por exemplo. Nesse gênero, expõe-se muito da realidade social em que
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se está inserido, além de diferentes tipos de linguagem e discursos. Bakhtin discursa
sobre esse assunto:
o romance é uma diversidade social de linguagens organizadas artisticamente,
às vezes de línguas e de vozes individuais. A estratificação interna de uma
língua nacional, única em dialetos sociais, maneirismos de grupos, jargões
profissionais, linguagens de gêneros [...] enfim, toda estratificação interna de
cada língua em cada momento dado de sua existência histórica constitui
premissa indispensável do gênero romanesco. (Bakhtin, 1998, p. 74).
Com essa afirmação, considera-se, então, o romance um gênero plurilíngue e
polifônico, ou seja, com uma infinidade de vozes e ideologias. As obras de Roberto
Drummond são exemplos disso, pois podem-se ver várias vozes além da do narrador,
às vezes, com pontos de vista divergentes, inclusive. Dessa maneira, o autor abre
espaço para essa chamada rede polifônica.
A análise de características essenciais do romance, com enfoque na
personagem e no discurso do narrador, proporcionará o reconhecimento dessas várias
vozes dentro do livro a ser estudado e contribuirá para uma explanação maior que será
feita posteriormente.
2.3.1 A força da personagem de ficção
Dentre os elementos de construção do romance, dar-se-á uma importância maior
à personagem, que, é sem dúvida, o aspecto mais marcante para a impressão criada
pelo livro de Drummond. É impossível dizer que a personagem seja o principal dentro
de um romance, pois ela não existe sozinha, fora de um tempo e espaço. Porém é ela
quem executa as ações, quem vive os acontecimentos e faz com que a história se
desenvolva, para que o enredo flua. Candido afirma que é o “elemento mais atuante
mais comunicativo da arte novelística moderna [...] mas que só adquire pleno
significado no contexto.” (CANDIDO,1995, p.55).
Um dos objetivos a ser investigado ao longo do presente trabalho é a maneira
como Roberto Drummond cria sua personagem principal a ponto de criar a sensação de
existência real. Na tentativa de situar o assunto, será exposto um pouco de como o
autor desenvolve seus personagens, de onde retira suas inspirações e como esse
processo acontece.
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Na intenção de explicar de onde vêm as personagens, Braith (1990) conceitua
essas como “ente composto pelo poeta a partir de uma seleção do que a realidade lhe
oferece, cuja natureza e unidade só podem ser conseguidas a partir dos recursos
utilizados para a criação.” (BRAITH,1990, p. 31) Ou seja, ao escrever, selecionam-se
características comuns a indivíduos reais e inserem-nas às personagens criadas.
Como explicitado, um literato, ao criar suas obras, procura aproximar ao máximo
seus componentes da realidade para que o leitor encontre algo de seu, algo que se
assemelhe a ele e à sua realidade, porém, Candido abre um parêntese nessa questão:
na vida, estabelecemos uma interpretação de cada pessoa, a fim de podermos
conferir certa unidade à sua diversificação essencial, à sucessão de seus
modos-de-ser. No romance, o escritor estabelece algo mais coeso, menos
variável, que é a lógica da personagem. A nossa interpretação dos seres vivos
é mais fluida, variando de acordo com o tempo ou as condições da conduta. No
romance, podemos variar relativamente a nossa interpretação da personagem;
mas o escritor lhe deu desde logo, uma linha de coerência fixada para sempre,
delimitando a curva da sua existência e a natureza do seu modo de ser. Daí ser
ela relativamente mais lógica, mais fixa do que nós (CANDIDO, pag. 59, 1995).
Isso quer dizer que, por mais que uma personagem seja complexa, nunca irá
alcançar a complexidade do ser humano, pois suas ações e personalidade são
limitadas. Nesse sentido, Forster, citado por Candido (1995) classifica esses seres
como planos: “construídas em torno de uma única ideia e qualidade” e esféricos, que
têm “três, e não duas dimensões; [...] portanto, organizadas com maior complexidade e,
na consequência, capazes de nos surpreender” (CANDIDO, 1995, p.63).
Citando ainda Forster, Candido explica que, para se tornar atrativo, o
personagem deve se parecer ao máximo com um ser real, mas incita uma pergunta:
pode-se copiar no romance um ser vivo, e aproveitar integralmente a sua
realidade? Não, em sentido absoluto. Primeiro, porque é impossível captar a
totalidade do modo de ser duma pessoa, ou sequer conhecê-la; segundo,
porque neste caso se dispensaria a criação artística; terceiro, porque, mesmo
se fosse possível, uma cópia dessas não permitiria aquele conhecimento
específico, diferente e mais completo, que é a razão de ser, a justificativa e o
encanto da ficção. (CANDIDO, 1995, p. 65).
A partir daí, fica mais fácil uma diferenciação entre o ser real e o ser ficcional.
Ainda na perspectiva de Forster, estabelece-se de maneira bem clara essa distinção.
Para ele, personagem e pessoa viva, vivem segundo as mesmas linhas de
sensibilidade, porém em uma proporção bem diferente.
do ponto de vista do leitor, a importância está na possibilidade de ser ele muito
mais conhecido cabalmente, pois enquanto só conhecemos o nosso próximo do
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exterior, o romancista nos leva para dentro da personagem, “porque o seu
criador e narrador são a mesma pessoa.” (CANDIDO, 1995, p. 64).
Sendo assim, pode-se afirmar que, em um romance, será a perícia do autor em
encaixar as referências que tem da realidade e apresentar as características possíveis
que regem uma personagem, que vai agir para que o leitor queira compreendê-la a
cada página e sinta-se preso à trama criada. Ao pesquisar teorias sobre as
personagens, é encontrado um material muito vasto podendo ser observadas diferentes
análises e classificações. Philipe Hamon, por exemplo, citado por Braith, classifica-as
na perspectiva semiológica, ou seja, como um signo inserido em um sistema de signos.
Sendo assim, define três tipos de personagem:
personagens “referenciais” remetem a um sentido pleno e fixo, comumente
chamadas de personagens históricas. Essa espécie de personagem está
imobilizada por uma cultura, e sua apreensão e reconhecimento dependem do
grau de participação do leitor nessa cultura.
Personagens “embrayeurs”: aquelas que funcionam como elemento de conexão
e que só ganham sentido na relação com outros elementos da narrativa, do
discurso, pois não remetem a nenhum signo exterior.
Personagens “anáforas”: só podem ser apreendidas completamente na rede de
relações formada pelo tecido da obra. (BRAITH, 1990, p.45).
Já Mauriac, também presente nas citações de Candido, limita as personagens de
acordo com características comuns e propõe uma classificação baseada no grau de
afastamento em relação à realidade:
1. Disfarce leve do romancista, ocorrem nos romances memorialistas, autor
assemelha-se a adolescentes que querem exprimir-se.
2. Cópia fiel de pessoas reais, que não constituem propriamente citações, mas
reproduções.
3. Inventadas, a partir de um trabalho especial sobre a realidade. [...] a
realidade é apenas um dado inicial. (CANDIDO, 1995, p.68).
Tais classificações e conceitos que se referem à personagem de ficção serão de
extrema importância para análise e discussão sobre o tema proposto.
20
3 HILDA FURACÃO: ATRAVESSAMENTOS ENTRE REALIDADE E FICÇÃO
O tema discutido envolve a relação entre romance de ficção e realidade. Sendo
assim, houve, durante o desenvolvimento do presente estudo, uma profunda pesquisa
relacionada à estruturação do romance e seus principais elementos. Com a função de
estudar e refletir sobre assunto proposto, objetivando a criação de conhecimentos que
proporcionarão o avanço da ciência em seus aspectos crítico-analíticos, foi realizada
uma pesquisa de natureza básica que, de acordo com Gil, “reúne estudos com o
propósito de preencher uma lacuna no conhecimento”. (GIL, 2010, p.26)
A opção metodológica foi pela pesquisa qualitativa que, segundo Flick, consiste
na
escolha adequada de métodos e teorias convenientes; no reconhecimento e na
análise de diferentes perspectivas; na reflexão dos pesquisadores a respeito de
suas pesquisas como parte do processo de produção do conhecimento; e na
variedade de abordagens e métodos. (FLICK, p. 23, 2009).
A escolha justifica-se por se tratar de um tema que envolve literatura e cotidiano,
não podendo, assim, ser reduzida a gráficos ou variáveis, isso porque o campo de
estudo envolve pessoas e acontecimentos de sua memória “não são situações artificiais
criadas em laboratório, mas sim práticas e interações dos sujeitos na vida cotidiana”
(FLICK, p. 24, 2009).
Do ponto de vista dos objetivos, foi feita uma pesquisa exploratória para que
houvesse maior familiaridade com o problema e a construção de hipóteses ou torná-las
mais explícitas; sendo, de acordo com Gil, bastante flexível por levar em conta vários
fatores relacionados ao fenômeno estudado. Para isso, houve um levantamento
bibliográfico. (GIL, 2010, p.26)
A pesquisa bibliográfica consistiu no estudo de material relacionado a:
estruturação do romance, composição da personagem e a problemática realidade x
ficção. Esse material proveio de livros, dissertações, análises, revistas, mídias digitais e
material pesquisado pela internet.
21
3.1 Contexto histórico
O pano de fundo em para o romance é a Belo Horizonte do final dos anos 50 e
início dos anos 60, período este de muitas tensões e transformações políticas, sociais e
econômicas. A narrativa tem como foco principal a história de amor entre Hilda e
Malthus, porém, fundamentada nos fatos históricos da sociedade brasileira do período
que envolve o final do governo de Juscelino Kubitscheck até a deposição de João
Goulart pelos militares no golpe de 64.
No Brasil, a partir dos anos 50, iniciou-se uma mudança da população do campo
para a cidade. Dessa forma, as regiões urbanas começaram a sobressair e os partidos
políticos tradicionalistas com raízes no coronelismo começaram a perder força com
relação à corrida eleitoral.
O populista Getúlio Vargas, após ser pressionado pelas forças armadas
intencionadas em tomar o poder, acabou cometendo suicídio e, com isso, é colocado
como candidato à presidência nacional o general Juarez Távora. Este porém, é
derrotado e vê assumir o poder o ex-governador de Minas, Juscelino Kubitscheck e o
vice Jânio Quadros.
Juscelino teve um governo bem sucedido em certos pontos, facilitou o
investimento de empresas multinacionais, promoveu um avanço na indústria e a criação
de estradas. Essas mudanças, porém, se deram com um endividamento do Estado e
um aumento considerável no preço de vida do brasileiro devido à inflação. A
conspiração continua,
as forças armadas tentavam evitar o fracionalismo e apresentar uma face
unificada perante o país, surgindo como um núcleo de eficácia e probabilidade
frente a um governo que, apesar do dinamismo de Kubitscheck, era acusado de
corrupto e economicamente inepto, permitindo uma inflação até então inédita na
história do Brasil. Tal conjuntura permite que o candidato da UDN, o ex-prefeito
e ex-governador de São Paulo, Jânio Quadros, com a bandeira da recuperação
econômica e da austeridade, em uma campanha simbolizada por uma
vassoura, seja eleito presidente da República em 1961” (LINHARES, 1990, p.
356).
Jânio Quadros assumiu o cargo em janeiro de 1961, entretanto, não permaneceu
nem um ano no poder. Assumiria, então, o vice-presidente João Goulart. Este,
entretanto, causava certo receio nos militares, pois o vice era suspeito de manter
relações com comunistas. O cenário internacional, com ares de Guerra Fria e a
22
ascensão do Comunismo em Cuba afetavam diretamente a política nacional brasileira.
Os movimentos comunistas eram vistos como ameaças tanto aos norte-americanos
quanto aos conservadores brasileiros, pois uma posse dos partidários de esquerda
poderia colocar em risco seus bens.
A censura aos meios de comunicação, a prisão de comunistas e perseguições
aos que se diziam de esquerda, comuns no período de Vargas, voltavam a ser
recorrentes.
os militares praticamente assumiram o poder e impuseram a censura aos meios
de comunicação, prenderam centenas de líderes sindicais e estudantis,
ocuparam centros universitários e ameaçaram o funcionamento do Congresso.
Em Minas, o Binômio e outros jornais tiveram suas edições apreendidas. Os
militares deixaram claro que não aceiravam a posse de Goulart (RABÊLO,
1997, p.39).
Jango pode assumir, porém na tentativa de reduzir seus poderes e sua
influência, foi implantado o parlamentarismo, este malsucedido, fazendo com que o
presidencialismo retornasse através de votação popular. Insatisfeitos com o governo de
Jango, vários setores da sociedade se manifestaram e instalou-se o caos.
Na data de 30 de março, deslocaram-se para o Rio de Janeiro tropas militares
mineiras, com o argumento de salvar o Brasil do comunismo foi instalado o regime
ditatorial em primeiro de abril de 1964 e os militares passaram a tomar conta da política
brasileira com perseguições, prisões e morte daqueles que eram considerados
subversivos.
Foi esse o momento escolhido por Drummond para basear sua obra. O autor faz
em seu texto citações a inúmeros episódios políticos, como a conturbada troca de
governo, os movimentos tanto da elite quanto dos populares e comunistas, as
perseguições, censuras e brigas pelo poder que culminaram no golpe militar.
No período de 50 para 60, a palavra de ordem era Revolução, esta iniciada nos
EUA por pessoas que lutavam para quebrar a rigidez de uma sociedade formal e
tradicionalista. Por se mostrar radical e ir de encontro à sociedade moralista e ter
comportamento considerado subversivo, assim como o próprio Drummond que se
autoproclamava comunista convicto, Hilda Furacão é a representação física do termo
revolução. Viveu e pregou a mudança, a liberdade de expressão, de viver e de agir da
23
maneira que bem lhe conviesse sem ter a necessidade de prestar contas com relação a
isso.
A observação do contexto histórico é de extrema importância para a
compreensão e o envolvimento do leitor com a obra em questão. Talvez seja esse o
ponto principal na contribuição para que a obra ficcional de Drummond apresentasse
tanta verossimilhança a ponto de ser julgada como real.
3.2 Análise da estrutura literária de Hilda Furacão
Para entrelaçar realidade e ficção em Hilda Furacão, Roberto Drummond usou
alguns artifícios que podem ser percebidos com uma análise estrutural da obra.
Personagem, tempo, espaço, contexto histórico são como peças que, ao se unirem
durante a narrativa, passam essa impressão de que a história realmente aconteceu.
Parte-se da concepção de Braith ao afirmar que o texto
é o único dado concreto capaz de fornecer os elementos utilizados pelo escritor
para dar consistência à sua criação e estimular as reações do leitor. Nesse
sentido, é possível detectar numa narrativa as formas encontradas pelo escritor
para dar forma, para caracterizar as personagens, sejam elas encaradas como
pura construção linguístico-literária ou espelho do ser humano. (BRAITH,1990,
p. 52).
3.2.1 Enredo
Para Edwin Muir, o termo enredo é definido e “aplicável universalmente. Pode
ser empregado no mais amplo sentido popular. Designa para todo mundo, não apenas
para o crítico, a cadeia em uma estória e o princípio que a entretece em conjunto."
(MUIR, 1928, p. 07).
A narrativa inicia-se com o próprio Roberto Drummond rememorando fatos de
sua juventude, quando ainda vivia em sua cidade natal, Santana dos Ferros. O autor,
narrador-personagem, relata a sua vida e a de seus grandes amigos Aramel e Malthus,
como era a convivência deles na infância e a maneira com que os três migraram para a
capital mineira, a fim de estudar e realizarem seus sonhos.
O narrador escreve diretamente para o leitor e, principalmente, às suas tias
Çãozinha e Ciana, duas solteironas que permaneceram na cidade de Santana e que
24
trocam correspondências com Roberto durante a narrativa. Esse “diálogo” com o leitor é
percebido em várias passagens em que é aconselhado que se pulem algumas páginas,
ou mesmo que se vá direto para o fim da história evitando delongas: “Eu poderia
aconselhar a Tia Çãozinha e aos leitores igualmente curiosos e apressados: pulem as
páginas e vejam as tentações que o bom e ainda santo Frei Malthus ainda vai sofrer”.
(DRUMMOND, 1991, p.31)
Após relatar fatos de sua infância e o início de sua profissão como jornalista no
jornal Folha de Minas, em Belo Horizonte, é que o narrador insere, com a briga pela
cidade das Camélias, Hilda Furacão. A sociedade conservadora e os movimentos
religiosos lutavam para que a Zona Boêmia da cidade fosse tirada do centro da capital
e que fosse construída na periferia, é claro, a Cidade das Camélias, lugar para onde
seriam transferidos os hotéis, pensões, as prostitutas e os bares que faziam a alegria
dos homens na Guaicurus. É nesse contexto que Hilda é apresentada ao leitor, como a
mais famosa e, pode-se dizer, mais forte do lugar, é ela quem enfeitiça os homens no
Maravilhoso Hotel e tem sobre as outras prostitutas um domínio, uma liderança.
Além do domínio sobre suas colegas de “profissão”, Hilda exerce imenso poder
sobre a própria sociedade local. Conhecida de todos, tem grande influência sobre
vários políticos, por estes terem frequentado o templo de Hilda no quarto 304 do
Maravilhoso Hotel e, como todos os outros, terem sido contaminados pelo “Mal de
Hilda”.
A beleza de Hilda Furacão promove certa inversão de poder, por fazer com que
os governantes, militares e todos que tinham influência no meio político mudassem
suas decisões por um simples pedido seu. Mas, por trás dessa imagem que se formou
sobre Hilda existe alguém enigmático cercado por um grande mistério.
Hilda Gualtieri Müller, verdadeiro nome da personagem, foi uma garota de família
tradicional de classe média alta, já nessa época enlouquecia os rapazes que
frequentavam o Minas Tênis Clube como a Garota do maiô dourado. Mas abandonou a
promessa de um futuro brilhante e de várias propostas de casamento, para tornar-se
uma prostituta e ir para a zona boêmia. Este é um dos principais questionamentos da
história, por que a personagem teria tomado essa decisão? Várias hipóteses são
levantadas e é isso também que Roberto Drummond deverá descobrir, pois é
25
encarregado de entrevistar a musa e escrever sobre o “Mistério da Garota do Maiô
Dourado”.
Para cumprir a missão, o jornalista torna-se amigo de Hilda Furacão e pede que
ela lhe revele o que aconteceu. Esta revela estar pagando uma penitência dada por
uma cartomante a qual certa vez lhe disse que para encontrar seu verdadeiro amor
teria que sofrer “mais do que a Gata Borralheira”. Mas, essa explicação somente não
convence e Roberto insiste em algo mais. Hilda, então, faz uma promessa ao amigo,
ela lhe revelaria tudo no dia primeiro de abril de 1954.
Paralelamente à da personagem principal, existem várias histórias e conflitos
relacionados a outros personagens. Aramel sonhava em se tornar galã de Hollywood e
foi com esse intuito que mudou-se para BH, porém, o máximo que conseguira foi se
transformar Don Juan de aluguel de um famoso empresário, que mais tarde é revelado
como sendo Antônio Luciano. Ele só não contava que se apaixonaria por uma delas,
Gabriela M., e é aí que se inicia seu conflito, pois Aramel passa a namorar a jovem e se
recusa a obedecer ao patrão. O empresário, contudo, deseja a bela Gabriela M. e
passa, então, a perseguir os dois. Só resta procurar a ajuda do amigo Drummond que
acaba acolhendo-os.
Malthus, o Santo, desde pequeno fora motivado a se tornar um padre e levou a
sério os ensinamentos, pretendendo um dia tornar-se santo. Já no início do livro o autor
relata que desde a infância o amigo se negava a seguir os colegas em fatos que
considerasse pecaminosos. Ele dessa forma entrou para a ordem dos dominicanos e
passa a ser chamado por Frei Malthus, um religioso que vivia para a Igreja e condenava
ferrenhamente a existência da zona boêmia, acreditando ainda que Hilda Furacão
pudesse ser uma encarnação do demônio por agir contra a moral e os bons costumes.
Sendo assim, se tornou um militante engajado na busca pela criação da Cidade das
Camélias, e é a partir daí que passa a protagonizar ao lado de Hilda Furacão o grande
conflito do romance.
Esse conflito se inicia quando os dois personagens se encontram pela primeira
vez numa das cenas mais comentadas e talvez a mais famosa do romance pela
repercussão que acabou tendo ao ser interpretada na minissérie homônima na Rede
Globo. “A noite do exorcismo”, como nomeia Drummond, marca o momento em que
26
uma multidão liderada por Frei Malthus marcha em direção à rua Guaicurus para uma
tentativa de exorcizar Hilda Furacão, o demônio encarnado que estaria destruindo
casamentos e provocando até mesmo o suicídio de quem era desprezado por ela. O
que ninguém esperava é que o frei, assim como todos os outros homens, não estava
imune ao “Mal de Hilda” e, ao vê-la pela primeira vez, ficou maravilhado com sua
aparência quase que angelical, muito diferente do que ele esperava.
Após uma discussão em que Hilda faz ao frei vários questionamentos sobre o
que ele estaria fazendo pelos outros em nome de Deus, inicia-se uma grande
tempestade que dissipa a multidão, e no meio da confusão, Hilda acaba por perder seu
sapato. À maneira de cinderela, Hilda tem a esperança de que quem o encontrou seria
o verdadeiro amor se sua vida, como havia anteriormente previsto a cartomante ao
dizer:
Hilda para você encontrar o amor de sua vida, você vai ter que sofrer mais,
muito mais do que a Gata Borralheira, porque sua madrasta vai ser a vida, e
uma noite você vai perder um pé do sapato que você mais ama, e quem
encontrá-lo, Hilda, vai ser o seu príncipe encantado, o único que vai poder tirála da vida que você estará levando. (DRUMMOND, 1991, pag. 135).
O que ela não esperava era que a profecia se cumpriria justamente com o aflito
Frei Malthus, este que, por sua vez, guarda o sapato e começa a pensar nas palavras
de Hilda. O religioso fica cada dia mais apaixonado pela “Deusa da Zona Boêmia”, mas
se condena por isso, e tenta afastar o pecado através da autoflagelação, o que é inútil.
Em busca do seu grande amor, Hilda lança uma campanha para encontrar o sapato
perdido, ficando conhecida nos jornais como a “Cinderela de baixo meretrício” e após
descobrir quem o teria encontrado ela também se apaixona por ele e chega a declararse. Frei Malthus, porém, reluta muito até decidir, se abandona o celibato para ficar com
a amada. Assim, eles ficam separados até o fim da história, tendo como única
testemunha o próprio narrador.
Em meio a inúmeros conflitos políticos é que termina a história dos três amigos
que saíram de Santana dor Ferros em busca de seus sonhos. Aramel, após conseguir
fugir com Gabriela, é abandonado pela moça que ambicionava uma vida melhor e que
acaba engravidando de Antônio Luciano. Sentindo-se traído, Aramel recebe
empréstimo de Hilda Furacão através de Frei Malthus e embarca para a tão sonhada
Hollywood, onde não faz muito sucesso como ator e acaba se transformando num
27
gângster. Roberto casa-se com a bela B. e enfrenta ainda muitos obstáculos chegando
a ser preso. Mas o fim mais trágico e decepcionante para o leitor foi sem dúvida o de
Frei Malthus.
Depois de muito pensar, o frei resolve largar a batina para se entregar à Hilda.
Esta, por sua vez, daria adeus à Zona Boêmia em primeiro de abril de 1964. Ficou
combinado que eles se encontrariam nesse dia às cinco da tarde na sede do Minas
Tênis Clube. O padre saiu do Convento dos Dominicanos às quatro e quinze para o
encontro de Hilda. Entretanto, por ser suspeito de envolvimento com comunistas e
cometer atos subversivos, ele acaba preso no caminho por oficiais armados do exército.
Um dia antes do combinado pelo casal, iniciava-se um golpe militar para depor o
presidente Jânio Quadros, isso causou imensa confusão. Hilda chegou a esperar o frei,
mas, após muito tempo, acabou indo embora, pensara que ele havia desistido, não
sabendo o que de fato aconteceu.
O sonho de Hilda e Malthus é barrado pelo golpe militar, ela refugia-se em uma
fazenda no Mato Grosso e, depois, foge para Buenos Aires, sem cumprir a promessa
de contar ao narrador sua verdadeira razão para ter ido para a Zona boêmia. Tempos
depois os dois se encontram e Roberto Drummond diz a ela que precisaria da
informação para dar um final à história. Ela sugere que ele apenas diga ao leitor que
talvez nunca tenha existido:
por que você não diz aos leitores que, tal como contou no seu romance, eu,
Hilda Furacão nunca existi e sou apenas um primeiro de abril que você quis
passar nos leitores. (DRUMMOND, 1991, pag. 298).
Hilda Furacão representa na história alguém que vai contra o que a sociedade,
ela exprime uma liberdade, uma capacidade de lutar em favor daquilo em que se
acredita, mas não tem um final feliz. Pode-se talvez inferir, então, que retomando o
contexto histórico do país, o escritor tente alertar o leitor, para que sonhos e
idealizações no Brasil nada mais são que utopias ou piadas de um primeiro de abril.
3.2.2 Personagens
Na perspectiva do já citado Forster, lembrado por Candido:
28
a personagem deve dar a impressão de que vive, de que é como um ser vivo.
Para tanto, deve lembrar um ser vivo, isto é, manter certas relações com a
realidade do mundo, participando de um universo de ação e de sensibilidade
que se possa equiparar ao que conhecemos na vida. (CANDIDO,1995, pag.
65).
A forma como Roberto Drummond entrelaça pessoas reais e figuras históricas
brasileiras a personagens fictícios é crucial para causar no leitor o dilema entre o que é
real e o que é ficcional na obra. Analisar-se-ão, então, os principais personagens para
esclarecer essa questão.
A construção dos personagens, assim como os demais elementos da narrativa, é
pensada de modo a fazer com que o real e o ficcional se encontrem. No intuito de criar
a dúvida a respeito da verdade ou não dos acontecimentos, Drummond abusa da
criatividade, a começar pelos nomes dos personagens, característica que também torna
o texto verossímil. Vários personagens secundários têm seus sobrenomes abreviados,
supostamente com o intuito de preservar a identidade de possíveis pessoas reais, como
é o caso de Gabriela M. e da Bela B., como se, não omitindo os sobrenomes, pudesse
se prejudicar a pessoas que, futuramente, pudessem ser reconhecidas.
Constata-se, então, que, se o autor tivesse escrito de outra maneira, não haveria
dúvidas de que se trata de uma obra de pura ficção, porém, a maneira como ele insere,
na trama ficcional, várias referências reais faz com que Hilda transponha o ficcional e
passe a “habitar” o real.
Roberto Drummond
O escritor Roberto Drummond aparece na obra como um dos principais
personagens. Pode-se dizer que esse personagem seria o alter ego do autor que, em
literatura, representa uma espécie de identidade através da qual o escritor se revela, de
maneira indireta, ao leitor. Contudo, o Drummond do texto é muito mais que um “outro
eu”, ele é o próprio autor, que narra sua vida com elementos autobiográficos e que
podem ser comprovados historicamente.
Drummond conta as dificuldades que enfrentou para ficar com a namorada por
ela ser filha de um fazendeiro de família tradicional e ele um comunista declarado, em
plena democracia de Juscelino Kubitscheck. Outro fato autobiográfico importante é sua
29
saída do Folha de Minas e ingresso no semanário Binômio, um tabloide extremamente
humorístico que, ao contrário da maior parte dos meios de comunicação da época, fazia
denúncias claras ao governo e inclusive a Antônio Luciano que mandava e
desmandava na cidade. A redação do Binômio passa a ser palco para muitas
passagens do livro.
A viúva do escritor, em entrevista para alunos do Ensino Médio do Colégio
Santo Antônio (BH-MG) em 2004, chegou a comentar o assunto: “Ele usou uma parte
de ficção, uma parte de realidade com a parte histórica. A revolução, o golpe militar, as
perseguições, houve aquilo tudo mesmo”. E quanto ao namoro dos dois, que é
retratado na narrativa garantiu que realmente tiveram dificuldades: “Era um namoro que
o meu pai não queria, meu pai era um fazendeiro de interior, então tinha uma rixa
política, meu pai de um partido, o Roberto de outro”. (CSA, 2004).
Quando saiu de Santana dos Ferros acompanhado por seus dois amigos,
Malthus e Aramel, Roberto era um sonhador que queria se tornar um escritor e que
lutava por ideais políticos controversos para a época. Ao ir para Belo Horizonte, mentiu
para o pai dizendo que estudaria para médico, mas nem pensava em seguir esse
caminho.
Várias vezes ao longo do texto, o autor se desvia do foco central para narrar
outros fatos relacionados a ele próprio, em que exprime uma experiência
autobiográfica. Assim, aparecem fatos históricos reais da história brasileira daquele
período bastante conturbado e de acontecimentos engraçados ocorridos em Santana
dos Ferros contados através de suas tias.
Os fatos narrados na obra a respeito de sua vivência pessoal são, em sua
maioria, representações biográficas reais da vida do autor com algumas pinceladas de
ficção, afinal, a partir do momento em que se conta uma história, fatalmente é
impossível não recorrer a elementos ficcionais, mesmo que a história tenha realmente
ocorrido, como afirmado por Amora que considera o mundo real como o que dá
“conteúdo à obra literária”. (AMORA, 1973, p. 43).
A caminhada profissional de Drummond e sua passagem com muitos percalços
pelas redações do Folha de Minas, do Binômio e do Alterosa é, acima de verossímil,
cheia de veracidade. Muitos fatos narrados podem ser comprovados nas próprias
30
páginas das antigas edições dos jornais. Drummond é um rapaz que luta por seus
ideais e embarca na proposta de fazer denúncias políticas para mudar a realidade
social da época. O episódio da compra dos retirantes1, por exemplo, explicitado no livro
como um importante passo na carreira do jornalista, foi realmente uma reportagem de
peso que proporcionou a Roberto o recebimento de prêmios, inclusive, internacional.
Jovem de classe média, Roberto Drummond batalha por uma vida melhor para
ele e a família, em especial sua jovem esposa, Ana Beatriz Drummond, representada
na obra como a Bela B. Tem uma amizade íntima com os companheiros Aramel e
Malthus, ouvindo e aconselhando-os em momentos de impasse. Com relação a estes,
porém, não existe a comprovação de sua existência, apenas especulações. Diz-se, por
exemplo, que Frei Malthus seria uma espécie de representação de Frei Betto, amigo de
Drummond, “O frei é inspirado no Frei Betto, ele existiu realmente”, disse Ana Beatriz
na entrevista.
Drummond ficou encarregado de investigar a personagem principal, Hilda
Furacão (fato ficcional), e. assim, começa a se encontrar com ela no Maravilhoso Hotel,
numa relação estritamente profissional, limitando-se à sua função jornalística e, mais
tarde, amigos.
Ao longo da história, o autor faz diversas mudanças no foco da narrativa, e, com
isso, em alguns momentos, tem-se a impressão de que a personagem principal seja
não Hilda, mas sim o próprio Drummond. Por isso, este personagem pode ser
classificado como um co-protagonista.
Hilda Furacão
Hilda Gaultier age de maneira revolucionária e vai contra tudo que se esperava
de uma moça da alta sociedade. Provoca escândalo por abandonar seu mundo luxuoso
de família tradicional para tornar-se Hilda Furacão. Isso provocou choque e até mesmo
1
O episódio dos retirantes, citado na obra, foi uma reportagem arriscada em que o jornalista Roberto
Drummond denunciou o comércio de pessoas e, para comprovar a matéria, fez a compra de um casal de
retirantes, recebendo, inclusive, um recibo. Depoimento real desse fato se encontra em anexo ao final
desse trabalho.
31
repulsa por parte das pessoas que a cercavam. Numa sociedade embasada na moral e
nos bons costumes, sua atitude foi altamente condenável.
Hilda se mostra, em certos aspectos, uma incógnita para o leitor, pois, ao mesmo
tempo em que é uma mulher forte e de coragem que encarou a sociedade e
perseguições por agir contra o sistema, ela é também uma mulher sensível, que
acredita no que diz uma vidente e espera pelo amor verdadeiro. A protagonista é
apresentada de forma complexa e capaz de agir de maneira surpreendente, como no
trecho em que o discurso inesperado de uma prostituta consegue colocar em xeque a
vivência de um santo e provar a ele que ela sim conhecia o verdadeiro significado da
miséria e a realidade dos pobres, por conviver diariamente com aqueles que ficam à
margem da sociedade. Por apresentar várias dimensões e ter essa capacidade de
trazer à tona o inesperado, é possível então, classifica-la como uma personagem
esférica, segundo a perspectiva de Candido.
A existência real de Hilda é bastante questionada. Pessoas que viveram em Belo
Horizonte garantem que ela não é um ser fictício. O próprio Roberto Drummond não
confirmava se a Cinderela de baixo meretrício seria total criação de sua mente ou só a
descrição de alguém com quem ele realmente conviveu.
Durante a já citada pesquisa feita pelos alunos do Colégio Santo Antônio, foi
produzido um pequeno documentário em que pessoas comuns afirmam ter conhecido
Hilda e contam detalhes sobre ela. Entrevistado nas dependências do Café Nice,
também citado no livro, Francisco Salles Filho dá seu depoimento sobre a Deusa da
zona boêmia e como era difícil conseguir uma noite com ela:
por volta de 1961 eu vim para a capital e, por não ter muitas opções de prazer
em Belo Horizonte frequentávamos muito a zona boêmia. [...] Hilda Furacão
tinha um apartamento com antessala e, através do olho mágico, ela recebia as
pessoas, mas não gostava de receber os rapazes mais novos, ela selecionava
as pessoas para frequentarem o seu apartamento. Eu mesmo pelejei para
entrar lá, mas não consegui (CSA, 2004).
Roberto Fonseca, morador de Belo Horizonte e entrevistado na movimentada
Praça Sete de Setembro, foi categórico:
a Hilda Realmente existiu! Ela era uma mulher muito bonita e muito educada,
não tinha estudo, mas tinha muito preparo para tratar as pessoas, para
conversar, enfim, para cativar as pessoas. Então, quando eu a conheci, eu a
admirava pela sua beleza, inteligência, sua maneira de vestir, porque, apesar
de ser uma mulher de vida, era uma mulher que se vestia de uma maneira
muito decente. (CSA, 2004).
32
Quando da exibição da minissérie, a equipe de reportagem da revista Época em
1998, foi em busca do paradeiro de Hilda, e também encontrou testemunhas de sua
existência, como o empresário Gil César Moreira de Abreu que falou sobre a beleza da
moça: “„Recordo perfeitamente que tinha seios muito bonitos", diz, com a autoridade de
quem foi admitido várias vezes no quarto da prostituta.
nem todos tinham esse privilégio. Para tanto, era necessária muita paciência. O
candidato precisava enviar vários recados e esperar horas por uma chance. A
moça mostrava a origem refinada na conversa educada e nas roupas
elegantes. „Lembro que ela era a única a usar penhoar e também possuía uma
2
eletrola‟. (PAIVA, 1998).
O entrevistado Augusto Rocha confirmou também ter conhecido a moça, porém,
demostrou opinião um pouco diferente a seu respeito
conheci muito a Hilda, ela morava na rua Guaicurus, não era nem bonita nem
feia, era baixinha, tinha um sorriso muito bonito, mas não era uma mulher
excepcional não. [...] o Roberto Drummond foi muito inteligente, se ele contasse
a verdadeira história da Hilda Furacão, ele não ia vender nem um livro. (CSA,
2004).
Coloca-se em questão a pergunta: poderia então Hilda ser uma personagem
inspirada em alguma mulher, porém modificada para melhor atração do leitor? O próprio
autor já havia dito que conheceu várias mulheres que acreditavam ter sido sua
inspiração, e que seu interesse era realmente causar a ambiguidade, como afirmou
naquela que seria sua última entrevista:
eu queria que todo mundo acreditasse em tudo, como se fosse verdade, que é
o propósito de todo escritor. O jornalista não tem isso porque ele quer a certeza
do que está contado. Eu quero a dúvida. Eu quero a ambiguidade, aquela coisa
que é e que não é. (DRUMMOND, 2002).
Hilda se tornou uma lenda, sua verdadeira existência nunca foi comprovada. O
fato é que o autor conseguiu que o leitor se envolvesse de tal forma que pudesse
acreditar nela, mesmo o próprio tendo insinuado sua total ficcionalidade "Fui dar uma
palestra sobre a Hilda numa escola e as crianças choraram quando eu disse que
determinada personagem não existia. Passei a confirmar tudo". (DRUMMOND, 1998)
Além do cenário belo-horizontino, das inserções históricas, a obra traz outro
importante fator capaz de aproximar Hilda Furacão da realidade social do mineiro: a
oralidade. A personagem se manifesta com uma linguagem simples e sotaque típico,
2
Trecho retirado de reportagem da revista Época escrita pela jornalista Anabela Paiva.
33
como mostrado pelo próprio narrador em: “tinha um jeito mineiro de falar “uai”, “ocê”,
“cê”; gostava da expressão lero” (DRUMMOND, 1991, p. 48). E exemplificado no trecho
-Cês gostam de geografia?
-More or less – respondeu Demétrio Barbosa.
-Uai, do you speak English? – e riu, olhando para mim:
-E ocê, gosta de geografia? (DRUMMOND, 1991, p. 49).
Essa naturalidade no modo de falar torna a personagem, de certa forma, mais
próxima, mais aberta ao receptor do texto.
Ao fim do livro, Hilda muda-se para Buenos Aires e nunca mais se tem notícias
dela. A lenda que se ouve em BH é que ela teria se casado com um jogador de futebol,
se mudado para a Argentina, e hoje viveria uma vida amarga, ou ainda que estaria se
preparando para um retorno triunfal. O entrevistado Augusto Rocha é um dos que
acredita nisso “depois que o Roberto Drummond escreveu o livro, ela ficou famosa,
casou-se com um jogador famoso do Atlético, chamado Paulo Valentim e foi para
Buenos Aires”. (CSA, 2004).
Muitas são as tramas que se desenrolam ao longo da narrativa, porém, todas
rumam para um mesmo trágico fim: o golpe militar de 1964. Sendo este, mais um dado
importante de ser ressaltado na presente análise. O romancista estabelece uma
ambiguidade no que refere à data do golpe, primeiro de abril de 1964, na tradição
popular o dia da mentira, dentro do contexto histórico a data em que se inicia a Ditadura
Militar. Seria nessa data que Hilda abandonaria a zona boêmia para viver com seu
amado, porém a crise política barrou seu sonho. Pode-se inferir, portanto, que Roberto
Drummond talvez faz uma crítica social ao período, como se a Ditadura militar tivesse
destruído o sonho de todos os brasileiros.
O dia da mentira, sendo o dia em que a história ganha o fim trágico e ainda a
data de nascimento da própria Hilda, contribui, e muito, para fomentar a dúvida do
leitor. Ao fim da história, a personagem principal sugere que o autor ao escrever a
narrativa conte que ela não passou de um primeiro de abril, e isso funciona para o
público alvo como um indício de que a história não é real.
34
Frei Malthus
Malthus foi prometido à Igreja por sua mãe e, desde criança, tinha a pretensão
de tornar-se um santo. Ele resistiu bravamente a várias tentações durante a vida,
porém, não esperava que seria mais uma vítima de Hilda Furacão. Ele apaixonou-se
por ela e, mais do que a beleza da heroína, admirava sua convicção em relação aos
pobres do mundo. Assim sendo passa a pensar melhor na razão de sua vida religiosa
e, principalmente, começa a perceber que Deus não estava apenas com as pessoas da
elite, mas também com aqueles que ele combatia e considerava errados. A partir daí,
resolveu investir no seu amor verdadeiro, mas o fim dessa história não é feliz.
Quanto à real existência de Frei Malthus, existem hipóteses e contradições. O
autor teria afirmado que sua inspiração seria o famoso Frei Betto, hoje escritor e que
tem em sua história fatos semelhantes ao do personagem, o principal deles é o fato de
também ter sido preso na época do golpe militar. Ana Beatriz Drummond foi uma das
pessoas que confirmou a relação entre o religioso e o personagem, “O frei realmente
existiu, e foi inspirado no Frei Betto”. (CSA, 2004).
O frade dominicano Carlos Alberto Libânio Christo, o Frei Betto, é autor de mais
de cinquenta livros, estudou jornalismo, antropologia, filosofia e teologia. Ganhou em
1982 o Jabuti, principal prêmio literário do Brasil, concedido pela Câmara Brasileira do
Livro, foi líder sindicalista e de outros movimentos populares, na política foi Assessor
Especial do Presidente da República e coordenador de Mobilização Social do Programa
Fome Zero.
Mineiro, de Belo Horizonte, ele confirma a amizade com Drummond, porém, se
mostrou surpreso ao saber de Frei Malthus, fato descrito na revista Isto é Gente "Sou
amigo do Roberto. Éramos vizinhos e dialogávamos muito quando ele escreveu Hilda.
Ele disse: 'Haverá um frade inspirado em você'", conta. "Depois saiu com essa de que
eu era o Malthus e só nós sabíamos onde estava Hilda. O que mais me abismou foi a
imprensa acreditar que ela era real." (CHRISTO, 2000)
Em outra ocasião, não descartou a hipótese de ter sido tomado talvez como
referência na obra:
nada tenho a ver com Frei Malthus de Hilda Furacão, como também não tenho
a ver com o padre Nando de Quarup, de Antonio Callado, ou frei Nabor de
35
Guerreiros dos Campo, seu belo romance. Talvez eu tenha sido apenas uma
referência na inspiração desses autores. (CHRISTO, 2001).
Mais uma vez, real e ficcional se entrelaçam de maneira extremamente
intrínseca.
Aramel
Amigo de infância do narrador, Aramel sempre teve o sonho de se tornar um
grande astro de Hollywood, e assim vai para a capital com os amigos para tentar se
realizar. Ele, porém, por falta de oportunidade e, percebe-se com o tempo que também
por falta de talento, acaba fazendo uso de sua beleza para ganhar dinheiro de outra
forma.
É através de Aramel que Drummond insere no romance (e aproveita para fazer
séria crítica) o milionário bancário Antônio Luciano, pessoa real que exercia enorme
poder sobre a sociedade mineira da época. Na ficção, Aramel tinha a função de
conquistar belas moças virgens e levá-las para o Hotel Financial para o patrão e, como
pagamento, tinha casa, roupas, automóveis e certos luxos. Se o rapaz existiu não se
sabe, porém, a respeito do empresário, sempre se cultivou a fama. O próprio Binômio
cita, em algumas reportagens, denúncias sobre as falcatruas do empresário e seu
relacionamento com as moças, muitas vezes, de maneira irônica e chega a ser
perseguido pelo que publica, “O sr. Antônio Luciano está disposto a deixar todos os
seus negócios. Vai fechar os cinemas, o hotel, o banco, para montar em cada cidade de
Minas uma fábrica de cal virgem.” (RABELO, 1997 p. 27).
O personagem Aramel tem função secundária na obra, e pode-se dizer que
representa o “American dream”, o sonho de muitos brasileiros em ir atrás do sucesso
nos Estados Unidos. Assim como no real, o desejo de uma vida melhor para Aramel
mostra-se uma utopia e sua frustração é grande.
Após a desilusão com Gabriela M. e o empréstimo de Hilda, ele consegue ir para
a América do Norte e, com a ajuda de sua beleza consegue participar de filmes
fracassados, depois chega a trabalhar como motorista e até em uma funerária. Sua
desilusão acaba por criar “Pretty Boy”, um gângster assassino de bandidos, ficando
mundialmente famoso.
36
Cintura fina e Maria Tomba Homem
Além de políticos e figuras ilustres como Antônio Luciano, que o autor traz da
realidade para habitarem sua obra, outros personagens tão lendários quanto Hilda se
apresentam no contexto.
O travesti Cintura Fina e Maria Tomba Homem, no livro, moravam à rua
Guaicurus que dividem o ponto de prostituição com Hilda Furacão entre outras
mulheres. Os dois personagens são caracterizados como pessoas extremamente
agressivas e que, constantemente, entravam em conflito com as autoridades policiais, e
até mesmo um com o outro. Entretanto, são bastante fiéis à Hilda, obedecem-na sem
pestanejar e sempre a defendem, como no caso do exorcismo em que as beatas
pretendiam linchar a meretriz. Prova dessa união é que, durante as confusões de
Cintura Fina com Tomba Homem, sempre era Hilda a chamada para apartar.
Os dois são personagens secundárias e muito pequeno é o foco destinado a
elas, todavia, só a sua presença já contribui consubstancialmente para a construção da
verossimilhança. Isso porque a existência real dos dois é garantido por muitos
moradores de Belo Horizonte, até mais do que a própria protagonista, pois nem todos
os alvos de entrevistas confirmam lembrar-se de Hilda, mas a maioria fala sobre os dois
personagens. O travesti Cintura Fina realmente existiu, e, após o livro, tornou-se uma
figura lendária, já quanto a Tomba Homem, sua existência não é comprovada.
Os três já citados Francisco Salles, Roberto Fonseca e Augusto Rocha,
entrevistados durante o trabalho dos alunos do Santo Antônio, atestaram que os
personagens não são lenda. Roberto descreve o travesti
o Cintura Fina era um sujeito bravo, se tocasse no assunto da feminilidade dele,
se imitasse o seu jeito de andar, a maneira de ele falar ou falasse alguma
besteira a respeito ele brigava. E era muito forte, com o corpo muito atlético. Eu
como morei próximo à zona boêmia vi ele várias vezes brigar, não só com um,
mas com cinco homens de uma rádio patrulha. Eu o via cortar o próprio braço
com gillete como forma de mostrar poder, de mostrar resistência, força,
coragem. (CSA, 2004).
O entrevistado Francisco Salles teria sido, inclusive, perseguido por ele, e
também cita Tomba Homem:
eu conheci o Cintura fina, ele queria muito sair comigo. Numa bela madrugada
ele de tanta insistência e eu não querendo, mandou dois pivetes para me darem
37
uma gravata e roubar tudo o que eu tinha, a partir daí eu fui à polícia e
começamos a persegui-lo. Eu conheci além dele a Maria Tomba Homem que
era perigosíssima lá na zona boêmia”. O terceiro entrevistado, Augusto Rocha
ainda faz uma brincadeira com relação às brigas das prostitutas “Se a radio
patrulha saía vinte vezes, dezenove era para a rua Guaicurus”. (CSA, 2004).
Maria Tomba Homem e Cintura Fina podem ser pessoas reais e, mesmo que
com outro nome, também pode ter existido uma “Hilda Furacão” que inspirou Roberto
Drummond a criar a prostituta. Como afirmado por Candido, é impossível aproveitar
integralmente a realidade, e representar de maneira totalmente fiel uma pessoa real,
pois cada ser humano tem inúmeras características que fogem do alcance do escritor.
Entretanto é possível utilizar traços da realidade, e trazer à tona figuras reais dentro da
obra de ficção.
3.2.3 Tempo
Como se trata de uma narrativa de cunho memorialista, o autor desenvolve a
história num tempo cronológico com interferências do psicológico, isso porque todas as
situações citadas já teriam, supostamente, acontecido em tempo passado e ele, no
presente as relembra. Além disso, é feito o uso de muitos flashbacks, como quando se
faz menção aos momentos de sua infância em Santana dos Ferros.
Contudo, se for analisado o desenrolar da história, será possível perceber que os
acontecimentos seguem uma ordem cronológica durante a maior parte do tempo. De
acordo com Filho
o tempo cronológico, isto é, o tempo convencional das horas, dos dias, dos
meses, das estações e dos anos é a medida exterior da duração. Admite
padrões fixos de medida, vinculados ao movimento de rotação translação da
Terra. É um tempo objetivo, que se opõe à subjetividade do tempo psicológico,
interior e relativo, situado no âmbito da experiência individual, que avalia a partir
de padrões variáveis. (FILHO, 1987, p. 51).
A cronologia da obra pode ser comprovada ainda se observadas as inúmeras
vezes em que o autor cita datas importantes e passagens de tempo dentro de uma
linha cronológica.
3.2.4 Espaço
Vários locais na capital mineira servem como cenário para o desenrolar da
história. Podem ser destacados, no entanto, a praça Sete de Setembro, a zona boêmia,
38
localizada na rua Guaicurus (em especial, o Maravilhoso Hotel) e a redação do jornal
Binômio, em que o narrador-personagem trabalha e assim passa a maior parte do seu
tempo.
Ao fazer com que a história se passe no centro da capital mineira, o autor
aumenta ainda mais, na perspectiva do leitor, a possibilidade de existência da narrativa.
Ao invés de criar um ambiente fictício, Drummond situa o enredo num espaço real e
cotidiano, tornando o livro mais verossímil, pois, tendo acontecido ou não, o uso desse
espaço só reafirma as palavras de Aristóteles, já que o verossímil é algo que tem a
possibilidade de acontecer.
O jornal Binômio, palco de grande parte do texto, foi o responsável por uma
visibilidade maior do Roberto Drummond escritor, o que permaneceu no Drummond
personagem. Um acontecimento importante de ser ressaltado foi a compra de
nordestinos, que o narrador conta com subjetividade e que realmente aconteceu. Foi
um furo de reportagem que, de maneira arriscada e polêmica, fez uma denúncia ao
comércio de pessoas, trazendo prestígio ao jornalista e ao jornal. O que pode ser
comprovado nas páginas do próprio tabloide:
a rota iniciava em alguns estados do Nordeste, e dias depois atingia o norte de
Minas, onde funcionava o vergonhoso mercado de seres humanos. [...] Esse
absurdo tráfico foi revelado pelos repórteres Roberto Drummond e Antônio
Cocenza, em março de 1959, despertados por uma denúncia feita pelo
deputado Teófilo Pires na Assembleia Legislativa. Sensacional furo de
reportagem, com grande repercussão nacional e internacional. (RABÊLO, 1997,
p. 68).
O Maravilhoso Hotel é cenário constante na obra. É onde Hilda recebe os
coronéis, políticos e homens embriagados por sua beleza. O Hotel é real e ainda existe,
porém, ao visitar o local, a certeza de muitos sobre a existência de Hilda Furacão e da
trama apresentada é derrubada. Isso porque, de acordo com o livro, a personagem
recebia seus “visitantes” no quarto 304, situado no terceiro andar do Maravilhoso Hotel,
mas, esse andar nunca existiu, o prédio possui apenas dois.
Se o local não existiu, como foi feita uma descrição tão perfeita do lugar e dos
momentos vividos ali? Levanta-se, então, a hipótese de que o terceiro andar do
Maravilhoso Hotel represente o andar do sonho, do imaginário, e conclui-se que Hilda
realmente existiu, mas não no real e sim no plano imaginário tanto do autor quando do
leitor.
39
3.2.5 Narrador
O livro é narrado em primeira pessoa, sendo que o narrador rememora
acontecimentos de sua própria vida, transformando Hilda Furacão em um trabalho
autobiográfico. Braith descreve narrador como
instância narrativa que vai conduzindo o leitor por um mundo que parece estar
se criando à sua frente. [...]. Assim como não há cinema sem câmera, não há
narrativa sem narrador. [...]. De acordo com a postura desse narrador, ele
funcionará como um ponto de vista capaz de caracterizar as personagens.
(BRAITH, 1990, p. 53).
O narrador, ao expor sua história, busca atender ao narratário, que seria o
público a quem deseja atingir. Em Hilda Furacão, o narratário representa-se, além do
leitor, pelas tias Ciana e Çãozinha a quem o narrador envia correspondências, com
quem dialoga e, inclusive, aconselha a respeito da leitura. Pode-se perceber isso
quando convida as tias e o leitor a pular páginas, ou ainda quando deixa uma página
em branco para que possam ser feitas anotações especulativas sobre as razões de
Hilda.
Roberto Drummond, o narrador-personagem, é fundamental para que a
curiosidade do leitor seja aguçada desde as primeiras páginas. Abre-se a possibilidade
de uma relação entre ele e os demais personagens, como as tias que são personagens
secundários e, muitas vezes, servem apenas para desviar a atenção dos principais, o
que aumenta o suspense. E é esse suspense que faz com que o leitor não abandone a
leitura.
A presença desse narrador em primeira pessoa, funcionando como alguém que
circula por entre os demais personagens e agindo como uma testemunha do que teria
acontecido, contribui para um caráter mais verossímil da obra. Por ser também um
personagem, o narrador não consegue ter uma visão tão profunda dos demais
personagens como um narrador onisciente, capaz de saber o que todos pensam.
Todavia, esse fator se mostra mais favorável ainda à relação com a realidade, pois ele,
sendo capaz de contar apenas o lado externo de cada personagem e, fazendo
suposições a esse respeito, causa a impressão de que não são papéis inventados.
O narrador em primeira pessoa proporciona uma perspectiva unilateral, capaz de
comprometer a visão do leitor. Isso porque ele apresenta uma única ótica a respeito dos
40
fatos, todas as vezes em que os personagens aparecem é por meio do narrador, que
pode contar os acontecimentos à maneira que achar mais favorável, já que nenhum
outro personagem tem voz ativa diretamente representada. Não se sabe ao certo se os
fatos narrados aconteceram realmente da maneira com que diz o narrador-personagem,
pois este leva em consideração o seu ponto de vista, a sua concepção de mundo para
avaliar a pessoas e suas ações.
O fato de o narrador ser em primeira pessoa não configuraria que este é uma
pessoa real, porém, além de inserir características autobiográficas, o autor dá ao
narrador seu próprio nome, fazendo, mais uma vez, com que o real penetre no ficcional.
41
4 CONCLUSÃO
Ao fim da pesquisa, foi confirmada a hipótese inicial de que Roberto Drummond
usou artifícios de escrita da estrutura literária do romance Hilda Furacão na tentativa de
fazer com que o leitor realmente acreditasse na existência da protagonista, o que
obteve sucesso. A personagem principal, após o romance, tornou-se uma lenda urbana
viva até os dias atuais, havendo várias pessoas que afirmam categoricamente terem
conhecido e convivido com ela. Após análise de entrevistas e coleta de dados a
respeito da obra, conclui-se que, para entrelaçar realidade e ficção, o autor buscou,
entre suas estratégias, construir o texto que favorecesse a incerteza. Ao se mostrar
como o próprio narrador-personagem, inserir pessoas reais, políticos ilustres na obra e
ainda unir um contexto real da ditadura militar a elementos ficcionais que instigam a
curiosidade do leitor, proporciona certa verdade ao livro.
Percebeu-se ainda que a construção dos personagens ficcionais de Hilda
Furacão teve como base a realidade. Dados biográficos do próprio escritor se
apresentaram e transformaram a obra de ficção em algo de, certa forma, memorialista.
Comprova-se, portanto, a afirmação levantada no início da pesquisa, que diz que
a influência do real no ficcional pode ser invertida.
Como comprovação de que Hilda se transportou da ficção para o real, várias
pessoas depõem, afirmando a real existência da personagem. Do outro lado,
apresenta-se o próprio autor garantindo que, certamente, alguém pode ter lhe
influenciado em partes. Porém Hilda nunca existiu no mundo real.
Em suma, enumeram-se como responsáveis pela transposição de Hilda Furacão
do ficcional para o real: a ambientação da obra em um cenário nacional conturbado pré
golpe militar, o que provoca certa nostalgia e aproximação do leitor que viveu ou
conhece o período; o uso de pessoas reais e de destaque nacional para simular uma
narração histórica; a presença de muitos aspectos autobiográficos do próprio escritor, a
participação do autor como narrador que testemunha os fatos e sua proximidade com a
personagem principal.
Vale salientar que, mesmo a proposta da pesquisa não sendo a investigação da
real existência de Hilda Furacão, foi possível, ao final do trabalho, concluir que Hilda
não só existiu como ainda existe, contudo, no plano imaginário. Isso porque uma
42
criação literária tem seu embasamento no real e apresentará traços de realidade.
Contudo, mesmo que seja um romance que aborda o real, a partir do momento em que
a narrativa é colocada escrita como literatura, as pessoas se transformam em
personagens inevitavelmente.
A lenda da cinderela de baixo meretrício continua a ser contada, assim como
tantas outras e, mesmo tendo sua história verdadeira contestada, não deixará de
"existir". Mesmo que se consiga atestar através de provas concretas que Hilda foi
totalmente inventada, é mais atraente aos olhos do leitor acreditar na sua existência
misteriosa.
43
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44
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ANEXO A – Depoimento de Drummond sobre a compra dos retirantes