Teoria da Argumentação Jurídica

Transcrição

Teoria da Argumentação Jurídica
UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ
FACULDADE DE DIREITO
A TEORIA DA ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA COMO PROPOSTA DE UMA
RACIONALIDADE POSSÍVEL FRENTE À POSTURA CÉTICA DO POSITIVISMO
JURÍDICO CONTEMPORÂNEO
José Renato Gaziero Cella
Dissertação apresentada no Curso de
pós-graduação em Direito do Estado,
do Setor de Ciências Jurídicas da
Universidade Federal do Paraná, como
requisito parcial à obtenção do grau
de Mestre.
Orientador: Prof. Dr. Celso Luiz
Ludwig
Curitiba
2001
A TEORIA DA ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA COMO PROPOSTA DE UMA
RACIONALIDADE POSSÍVEL FRENTE À POSTURA CÉTICA DO POSITIVISMO
JURÍDICO CONTEMPORÂNEO
por
José Renato Gaziero Cella
ORIENTADOR:___________________________________
Prof. Dr. Celso Luiz Ludwig
___________________________________
Prof. Dr. Cassiano Cordi
___________________________________
Prof. Dr. João Maurício L. Adeodato
ii
Para meus pais
JOSÉ e MARIZA
iii
SUMÁRIO
TERMO DE APROVAÇÃO..........................................ii
DEDICATÓRIA................................................iii
AGRADECIMENTOS..............................................vi
RESUMO.......................................................x
SUMMARY.....................................................xi
RESUMÉ.....................................................xii
INTRODUÇÃO..................................................01
1. A CRISE DA RAZÃO NO SÉCULO XX............................10
1.1 Razão em Crise..........................................10
1.2 Relativismo e Ceticismo.................................20
1.3. Pragmatismo e Direito..................................31
2. A FORMAÇÃO DO POSITIVISMO JURÍDICO CONTEMPORÂNEO.........50
2.1 Direito e Justiça.......................................50
2.2 Positivismo Jurídico no Século XIX......................59
2.3 Direito e Ceticismo: o Realismo Jurídico................93
2.4 Legalidade e Legitimidade: a Crítica de Habermas.......103
2.5 Legalidade e Discricionariedade: Hart X Dworkin........129
iv
3. A NOVA RETÓRICA DE CHAÏM PERELMAN COMO PRECURSORA DE UMA
TEORIA GERAL DA ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA......................151
3.1 Lógica Formal e Argumentação Jurídica..................151
3.2 Chaïm Perelman e a Nova Retórica.......................199
3.3 Teoria da Argumentação como Racionalidade Possível.....249
CONCLUSÃO..................................................258
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.................................262
v
AGRADECIMENTOS
Meu
interesse
pela
temática
da
argumentação
jurídica, que já existia desde os tempos em que cursava a
graduação,
tornava-se
jurídicos,
quando
mais
surgia
intenso
algum
sempre
que
impasse,
os
em
debates
contendores
convergiam para a cômoda, pacífica e sedutora conclusão de
que, em cada caso, o bom senso deveria ser o parâmetro para o
deslinde do impasse respectivo. Jamais me dei por satisfeito
com esse tipo de resposta, sentindo-me deveras intrigado com
essa forma de subterfúgio.
Não imaginava, porém, que esse tema pudesse ser
— e que realmente já era de longa data — objeto de pesquisas
acadêmicas na área jurídica, até que, durante o período em que
participei
do
programa
Intercampus
Brasil-Espanha
junto
à
Faculdade de Direito da Universidade de Deusto em Bilbao (País
Basco), o professor Lorenzo Goikoetxea Oleaga — que lá exerceu
minha
tutoria
—
apresentou-me
a
um
professor
de
filosofia
jurídica da Universidade de Alicante (Catalunha) que naquela
ocasião
curso
ministrava,
que
tinha
na
por
condição
objeto
a
de
professor
argumentação
convidado,
jurídica,
um
que
imediatamente passei a freqüentar.
Tratava-se
Rodriguez,
a
cuja
obra
do
recorri
vi
professor
inúmeras
Manuel
vezes
no
Atienza
decorrer
desta pesquisa e a quem agradeço efusivamente por ter sido o
responsável
por
meu
primeiro
contato
com
o
pensamento
de
autores como Robert Alexy, Neil Maccormick e Ronald Dworkin.
Obviamente também estendo minha gratidão ao professor Lorenzo.
Tempos
professor
desta
depois,
em
Universidade
conversa
Cesar
com
Antonio
o
agora
Serbena
—
companheiro desde a época em que cursamos juntos as graduações
de filosofia e direito — que na ocasião já tinha iniciado o
mestrado
em
direito,
percebendo
meu
interesse
na
área
da
argumentação jurídica, sugeriu-me que ingressasse no mestrado
e
pesquisasse
imediatamente
Cesar
sou
o
a
pensamento
tópico-retórico,
bibliografia
muito
grato,
de
que
inclusive
franqueando-me
dispunha.
pelo
Ao
auxílio
professor
prestado
na
elaboração de meu projeto para ingresso nesta pós-graduação,
agradecimento
este
que
também
deve
alcançar
o
professor
Rodrigo Rossi Horochovski, que forneceu opiniões valiosas para
a elaboração daquele projeto inicial.
Mas a pesquisa só se tornou viável graças a
conjugação de dois fatores: a bolsa de fomento a mim concedida
pelo
Programa
de
Demanda
Aperfeiçoamento
de
Pessoal
permissão
que
obtive
advocacia
Cançado
para
Filho
Social
de
Nível
da
Superior
afastamento
Advogados
membro.
vii
Coordenação
do
-
CAPES
escritório
Associados,
de
que
de
e
a
de
sou
A
sobretudo
para
bolsa
o
de
acesso
fomento
à
foi
de
bibliografia
extrema
pesquisada.
valia,
Já
a
licença concedida pelo escritório torna os meus colegas de lá
co-autores da pesquisa, eis que somente através do suprimento
de minhas tarefas, que por eles foram avocadas durante o meu
período sabático, somado ao incentivo incondicional que sempre
me
foi
conferido,
necessária
isso,
para
a
sobretudo
é
que
feitura
na
pessoa
se
fez
do
possível
trabalho.
dos
a
tranqüilidade
Sou-lhes
professores
grato
Acrísio
por
Lopes
Cançado Filho e André da Costa Ribeiro; e dos advogados Juarez
Baby Sponholz e Tania Maria Pedroso.
Agradeço
também
imensamente
aos
incansáveis
Péricles de Souza, Mariza Canário Cella e Cristiane Morais
Rizzi Cella, que me auxiliaram na digitação dos manuscritos
para o computador, o que levou dias de incessante trabalho. À
minha mulher Cristiane — além do auxílio na digitação — devo
também a paciência que teve na revisão de todas as citações,
bem como a tolerância no convívio comigo naqueles dias em que
o prazo ia se esvaindo e o meu humor não me tornava uma pessoa
de fácil convivência.
A meus fraternais amigos, professores André da
Costa Ribeiro, Cesar Antonio Serbena e Danilo Cesar Maganhoto
Doneda,
agradeço
pelo
interesse
viii
demonstrado
na
leitura
da
primeira
versão
deste
trabalho
e,
principalmente,
pelas
valiosas críticas e sugestões que me foram transmitidas.
Agradeço também a todo o corpo docente e as
funcionárias
da
pós-graduação,
a
quem
saúdo
na
pessoa
dos
Professores Doutores José Roberto Vieira e Celso Luiz Ludwig.
Ao professor Vieira — que tem acompanhado e incentivado meus
passos desde a graduação — pela vocação para o magistério que
o torna um modelo a ser seguido e a quem tenho buscado me
espelhar neste início de carreira como professor. Ao professor
Ludwig
pela
abertura
e
disponibilidade
que
sempre
o
distinguiram na tarefa de orientação desta pesquisa.
Uma palavra final de agradecimento a meus pais,
José Cella e Mariza Canário Cella, por terem sempre valorizado
meus estudos, bem como pelo fato de os terem financiado apesar
de todas as dificuldades, sem o que obviamente tudo teria sido
mais difícil. A eles dedico este trabalho.
ix
RESUMO
O presente trabalho tem como escopo demonstrar que o
desenvolvimento de uma teoria da argumentação jurídica,
formulada a partir do aprimoramento das teorias já existentes
e da ampliação de seu objeto, pode contribuir para a mitigação
da postura cética característica do positivismo jurídico
contemporâneo. Para tanto, partindo da descrição dos motivos
que levaram o pensamento cético-relativista a se impor no
século XX, buscar-se-á demonstrar a influência que essa
circunstância trouxe ao pensamento jurídico. Assim, será
abordada
a
formação
do
positivismo
jurídico,
desde
o
jusnaturalismo racionalista precursor do positivismo jurídico
típico do século XIX — formado pela inter-relação das escolas
da exegese e do conceitualismo — até a sua roupagem adquirida
no século XX, tendo como referência o pensamento de Hans
Kelsen. A partir disso far-se-á a análise de algumas críticas
importantes ao positivismo vintenário, quais sejam as críticas
efetuadas pelo realismo jurídico norte-americano, por Habermas
quanto ao problema da legitimidade e por Dworkin quanto ao
problema da discricionariedade judicial. Enfim, ver-se-á que
todas essas críticas apontam as limitações do positivismo
jurídico, insuficiências estas que devem ser extirpadas ou
atenuadas. Diante disso tentar-se-á demonstrar que a teoria da
argumentação jurídica pode contribuir neste mister. Para tanto
será trazido como referência o pensamento de Chaïm Perelman,
que na década de 1950 propunha um alargamento da noção de
razão, que não poderia ficar adstrito apenas ao pensamento
formal, buscando-se romper com a postura inaugurada por René
Descartes. Para tal propósito Perelman, em colaboração com
Lucie Tyteca, resgata a tradição retórica da antigüidade — que
foi posta no ostracismo pela modernidade — e a reformula,
denominando-a de nova retórica. Enfim, o desenvolvimento de
uma teoria da argumentação jurídica, em que se admite um
alargamento da noção de razão para além do pensamento formal —
que não é excluído, mas complementado pela razão prática —
poderá fazer frente à postura cética do positivismo jurídico
contemporâneo, bem como aprimorar os mecanismos de controle
das decisões jurídicas: legislativas e judiciais.
x
SUMMARY
The present work aims to demonstrate that the development of a
theory of juridical argument, formulated upon the improvement
of the theories already existent and from the enlargement of
its object, can contribute to the mitigation of the skeptical
posture
characteristic
of
the
contemporary
juridical
positivism. To demonstrate the above, starting from the
description of the reasons that led the skeptical-relativist
thought to impose itself in the 20th century, it will be
sought to demonstrate the influence that such circumstance
brought to the juridical thought. Thus, the formation of
juridical
positivism
will
be
approached,
from
the
rationalistic
jusnaturalism
precursory
of
the
juridical
positivism typical of the 19th century - formed by the
interrelation
between
the
schools
of
exegesis
and
conceptualism - to its shape acquired in the 20th century,
having as reference Hans Kelsen’s thoughts. Starting from
this, an analysis of some important criticism to the 20th
century positivism will be done, such critics being elaborated
based on the North American juridical realism, by Habermas
concerning the issue of legitimacy, and by Dworkin upon the
problem
of
judicial
discretion.
Finally,
it
will
be
demonstrated that all those critics point to the limitations
of
juridical
positivism,
inadequacies
that
should
be
extirpated or attenuated. Considering this, it will be sought
to demonstrate that the theory of juridical argument can
contribute to this task. The thoughts of Chaïm Perelman will
be brought as reference, having him in the decade of 1950
proposed an enlargement of the notion of reason, that could
not just be restricted to the formal thought, seeking to break
the posture inaugurated by René Descartes. For such purpose,
Perelman, in collaboration with Lucie Tyteca, rescues the
rhetorical tradition of the antiquity - that was put in
ostracism by modernity - and reformulates it, denominating it
new rhetoric. Finally, the development of a theory of
juridical argument, where an enlargement of the notion of
reason is admitted beyond the formal thought - that is not
excluded, but complemented by practical reason - could
confront the skeptical posture of contemporary juridical
positivism, as well as improve the control mechanisms of
juridical decisions: legislative and judicial.
xi
RESUMÉ
Ce travail a pour but de montrer que le développement d’une
théorie de l’argumentation juridique, formulée à partir des
théories déja existentes et du grossissement de son sujet,
peut contribuer à l’adoucissement de la posture sceptique
caractéristique du positivisme juridique contemporain. Pour
autant, à partir de la description des motifs qui ont
proportionné l’imposition de la pensée sceptique-relativiste
dans le XXème siècle, on cherchera à démontrer la influence que
cette circonstance a apportée à la pensée juridique. Ainsi, on
approchera la formation du positivisme juridique, dés le
jusnaturalisme
rationaliste
precurseur
du
positivisme
juridique – formé par l’inter-rélation des écoles de l’exégèse
et du conceptualisme – jusque son caractère acquis pendant le
XXème siécle, avec référence à la pensée de Hans Kelsen. A
partir de cela on fera l’analyse de quelques critiques
importantes au positivisme du XXème siécle, comme des critiques
faites par le réalisme juridique américain, des critiques
d’Habermas sur le problème de la légitimité et celles de
Dworkin sur le problème de la discritionnairité judiciaire.
Alors, on verra que toutes ces critiques pointent des
limitations du positivisme juridique, qui doivent être
éliminées ou attenuées. Vis-à-vis de cela, on essayera de
démontrer que la théorie de l’argumentation juridique peut
contribuer dans ce but. Pour autant, on apportera comme
référence la pensée de Chaïm Parelman, qui dans les années 50
proposait un élargissement de la notion de raison, qui ne
pourrait pas rester limitée seulement à la pensée formelle,
dans la recherche de rupture avec la posture inaugurée par
René Descartes. Pour autant, Perelman, avec la collaboration
de
Lucie
Tyteca,
retrouve
la
tradition
réthorique
de
l’antiquité – que la modernité a mise dans l’ostracisme – et
la reformule, avec la dénomination de nouvelle rethorique.
Alors, le développement d’une théorie de l’argumentation
juridique, où on admet un élargissement de la notion de raison
de la pensée formelle – qui n’est pas exclu, mais il est
accompli par la raison pratique – pourra faire face à la
posture sceptique du positivisme juridique contemporain et
perfectionner aussi des mécanismes de contrôle des décisions
juriques: législatives et judiciaires.
xii
INTRODUÇÃO
A ciência jurídica possui problemas antigos —
os quais têm sido enfrentados de diversos modos no decorrer da
história — que, de tempos em tempos, sempre ressurgem quando
alguma eventual solução antes adotada e aceita já não mais
satisfaz as necessidades humanas.
No
existentes
e
âmbito
que
jurídico
ainda
um
persiste
—
dos
o
grandes
qual
problemas
tem
ocupado
pensadores desde a antigüidade — é a questão, já clássica, da
justiça. O que é a justiça?
Essa
âmbito
de
atuação
que
já
foi
daqueles
uma
que,
no
pergunta
recorrente
decorrer
da
no
história,
fizeram do direito seu objeto de trabalho ou de estudo, com o
advento do positivismo jurídico e, principalmente, a forma por
ele assumida no século XX, deixou quase que completamente de
se fazer presente no cotidiano do foro, em que o advogado,
quando invoca o texto apropriado da lei, fica relativamente
tranqüilo porque esta constitui ponto de partida seguro para o
seu
trabalho
profissional.
Da
mesma
forma,
quando
o
juiz
prolata a sua sentença, e a apóia cuidadosamente em textos
legais, tem a certeza de estar agindo corretamente, pois apóia
sua
convicção
obrigatórios.
em
cânones
que
devem
ser
reconhecidos
como
2
O problema da justiça foi transferido para os
filósofos do direito, cabendo a estes, e não ao jurista, a
tarefa de converter aqueles pontos de partida (os cânones da
dogmática jurídica) em problemas, perguntando: por que o juiz
deve se apoiar na lei? Quais as razões lógicas e morais que
levam o juiz a não se revoltar contra a lei e a não criar
solução
sua
para
o
caso
que
está
apreciando,
uma
vez
convencido da inutilidade, da inadequação ou da injustiça da
lei
vigente?
Por
que
a
lei
obriga?
Como
obriga?
Quais
os
limites lógicos da obrigatoriedade legal?
Foi
erguida
uma
barreira
quase
que
intransponível entre os campos de atuação do filósofo e do
jurista, sendo que o trabalho deste último ficou reduzido à
interpretação e aplicação da lei, não cabendo a ele, neste
âmbito de atuação, formular-se questões de ordem moral.
Ocorre que, mais uma vez, sobretudo a partir da
década
de
1950,
o
problema
da
justiça
volta
à
tona
e
se
insinua, inclusive, no âmbito de atuação dos juristas. A busca
da solução mais justa possível para pôr termo a conflitos
sociais, sobretudo a procura de algum critério que indique os
caminhos para que isso se torne possível, volta a estar, mais
do que nunca, na ordem do dia dos juristas, implicando mesmo a
reconciliação entre filósofos e juristas, antes divorciados.
3
Com
práticas
que,
jurídicas
afinal
de
efeito,
também
contas,
a
crítica
deve
são
ser
filosófica
efetuada
aquelas
pessoas
de
nossas
pelos
juristas
que
vivenciam
diariamente os problemas do mundo jurídico. Mais que isso,
talvez
seja
imprescindível,
para
a
realização
da
crítica
filosófica sobre o direito, que aquele que critica seja também
um
membro
participante
das
práticas
jurídicas,
conforme
sustenta Ronald DWORKIN, que entende que a crítica só pode ser
validada se realizada por alguém que integra o universo objeto
de análise.
O
expressão
de
presente
Miguel
trabalho,
REALE,
cujo
tem
vivido
autor,
o
usando
direito
uma
como
experiência, terá como pano de fundo o eterno problema da
justiça, que subjaz todos os temas que serão abordados.
Para tanto, tentar-se-á percorrer o caminho que
culminou
no
positivismo
jurídico
do
século
XX,
desde
o
rompimento com o jusnaturalismo racionalista — fato que teve
lugar no século XVIII e cuja consolidação se operou no século
XIX — até os problemas enfrentados pelo positivismo jurídico
nascente
diante
das
mais
variadas
posturas
críticas
que
surgiram.
Buscar-se-á também traçar um paralelo entre a
postura cética e relativista do positivismo jurídico do século
XX e a crise por que passou e tem passado a razão neste mesmo
4
período,
crise
edifício
do
que,
perturbando
pensamento
os
ocidental
que
alicerces
teve
do
grande
origem
com
o
surgimento da filosofia na Grécia, tem posto em cheque as
possibilidades de defesa de um agir racional nas amplas áreas
do conhecimento, inclusive no âmbito jurídico.
Espera-se
que
estas
abordagens
iniciais
permitam uma compreensão da atitude normativista que culminou
em
Hans
KELSEN
e,
a
partir
dele,
no
positivismo
jurídico
atual, cujos representantes mais proeminentes — e que servirão
de guia, juntamente com KELSEN, para as análises que serão
feitas a partir deste ponto — são indubitavelmente Norberto
BOBBIO e Richard HART.
A compreensão da atual atitude positivista é
conditio
sine
qua
non
para
a
compreensão
das
críticas
contemporâneas que contra o positivismo se dirigem, críticas
estas que serão o objeto central de análise deste trabalho.
Com
efeito,
tendo
como
pano
de
fundo
as
críticas contemporâneas ao positivismo jurídico efetuadas por
Jürgen
HABERNAS,
Ronald
abertas
pelo
realismo
DWORKIN
e,
jurídico
ainda,
algumas
questões
norte-americano,
serão
apresentadas as principais aporias experimentadas pela atitude
positivista, as quais se tornaram mais incômodas em virtude da
crise sofrida pelo cientificismo após o final da 2a guerra
mundial — a partir do que a idéia de uma ciência jurídica
5
dogmática,
encastelada
em
princípios
normativos
rígidos
e
inflexíveis, não se impôs mais como verdade monolítica.
É
Chaïm
PERELMAN
neste
que,
contexto
ao
que
reconhecer
surge
os
o
pensamento
limites
que
o
de
saber
tradicional impõe aos homens, posto que uma série de problemas
não
podem
ser
resolvidos
por
aquele
tipo
de
conhecimento,
sobretudo no âmbito das ciências humanas (em que o direito
está incluído), propõe aos filósofos que, ao invés de terem
como guia a racionalidade das ciências matemáticas, passem a
se conduzir pela racionalidade argumentativa proveniente do
modelo jurídico.
A
parte
final
deste
trabalho
demonstrará
as
deficiências enfrentadas pela lógica formal quando se trata de
enfrentar questões práticas que envolvam a tomada de decisões
que
implicam
alguma
forma
de
agir
humano.
Acredita-se
que
através desta abordagem se tornarão mais claras as críticas
que
PERELMAN
dirige
à
racionalidade
moderna
e,
ainda,
clarificados também estarão os motivos pelos quais este autor
fez reviver o pensamento tópico e retórico de ARISTÓTELES que
havia
sido
relegado
ao
ostracismo,
principalmente
pelos
modernos.
Acredita-se
deficiências
da
importância
que
lógica
o
também
formal
que
a
demonstração
permitirá
desenvolvimento
de
justificar
uma
teoria
das
a
da
6
argumentação jurídica adquire na atualidade, sobretudo quanto
à contribuição que uma tal teoria pode trazer para a solução
das aporias — acima mencionadas — enfrentadas pelo positivismo
jurídico.
O
trabalho
vai
dividido
em
três
capítulos,
sendo que no primeiro deles é feita uma análise da crise por
que tem passado a razão a partir do século XX, o que implicará
uma breve visita a alguns temas da história da filosofia e a
situação do pensamento filosófico contemporâneo, em especial
quanto
ao
niilismo
característico
desta
era.
Também
neste
capítulo serão vistas algumas noções de ceticismo, relativismo
e pragmatismo, as quais, somadas ao panorama que foi traçado
acerca do pensamento contemporâneo, servirão de ponte para a
passagem ao capítulo 2, em que buscar-se-á demonstrar que o
pensamento jurídico não ficou incólume à mencionada crise da
razão.
No
capítulo
2,
portanto,
será
traçado
o
nascimento do positivismo jurídico moderno, em especial a sua
consolidação que se deu através das escolas da exegese e do
conceitualismo. Serão abordadas também as principais críticas
que ao positivismo jurídico foram dirigidas e a reação, já no
século XX, que o positivismo engendrou contra essas críticas.
Serão
abordadas,
ainda
no
capítulo
2,
as
influências que as posturas cética e relativista trouxeram ao
7
positivismo atual, bem como serão analisados os debates que o
positivismo têm mantido com HABERMAS e DWORKIN, que trazem à
discussão
questões
morais
que
até
então
os
positivistas
relutavam em admitir no interior da discussão jurídica.
A
sobretudo
a
experiência
resolução
de
jurídica,
problemas
que
compreende
práticos,
não
poderia
obviamente expurgar o problema da justiça. Mas o positivismo
assim
o
fez
porque
no
seu
entender
não
se
pode,
com
objetividade, apreciar esta questão. Mas essa conclusão cética
só
é
atingida
racionalidade:
se
a
da
se
permanecer
lógica
formal.
numa
visão
estreita
No
entanto
as
de
decisões
jurídicas vão além desses limites — e isso será demonstrado na
parte
inicial
do
capítulo
3
—
tornando-se
necessário,
portanto, um alargamento da noção daquilo que se deve entender
por razão.
Esta
necessidade
de
alargamento
da
noção
de
racionalidade foi, em grande medida, alertada por PERELMAN a
partir da segunda metade do século XX, daí a importância dada
ao seu pensamento na parte final do capítulo 3. O pensamento
de
PERELMAN,
com
efeito,
pode
ser
visto
como
um
dos
precursores das teorias da argumentação jurídica atualmente em
voga, daí porque se optou por sua análise.
Por fim, será afirmado que o desenvolvimento de
uma
teoria
da
argumentação
jurídica
é
hoje
uma
tarefa
8
essencial, pois ela poderá auxiliar sobremaneira na busca de
solução dos problemas que o positivismo jurídico não foi capaz
de resolver (e que por isso mesmo se rendeu ao ceticismo).
Além disso será aventada a hipótese de que deva ser ampliado o
objeto de análise de que tradicionalmente têm se servido as
teorias da argumentação jurídica existentes, alargando-se o
seu campo de observação.
Três
observações
de
cunho
metodológico.
No
decorrer da pesquisa nos deparamos com temas intrigantes e
que, por vezes, fizeram com que nos sentíssemos tentados a
alterar mesmo o tema que estava sendo desenvolvido. Em três
momentos isso se tornou mais agudo: quando fomos apresentados
ao realismo jurídico norte-americano, quando nos deparamos com
o pensamento de HABERMAS (que muita coisa tem em comum com o
problema
da
argumentação
jurídica)
e,
por
fim,
feito
com
quando
nos
que
nos
confrontamos com as idéias de DWORKIN.
Isso
talvez
tenha
demorássemos mais na abordagem desses assuntos, que poderiam
ter sido trabalhados com maior rapidez. Sentimo-nos até mesmo
tentados
a
cortar
muito
daquilo
que
foi
desenvolvido,
mas
optamos por manter na íntegra as abordagens efetuadas em face
de sua pertinência, em nosso entender, com o tema central do
trabalho.
9
Estivemos também tentados, por outro lado, a
deixar de reproduzir uma série de informações complementares,
temendo que a profusão de notas de rodapé que isso implica
pudesse ser vista com exagero. Optamos, no entanto, a correr
esse
risco,
pois
entendemos
que
aqueles
complementos
contribuirão muito para o enriquecimento dos temas abordados,
além
do
risco
pesquisadas
e
iminente
de
aquelas
sistematizadas,
informações,
perderem-se
apesar
para
de
sempre,
desperdício que não gostaríamos que ocorresse.
Por fim, todas as citações retiradas de obras
estrangeiras
português,
foram
sempre
pelo
com
a
autor
livremente
preocupação
vertidas
rigorosa
fielmente o teor contido nos trechos traduzidos.
de
para
o
expressar
10
1. A CRISE DA RAZÃO NO SÉCULO XX
“O
homem,
conhecer.”
por
natureza,
deseja
Aristóteles
“Deus está morto.”
Nietzsche
“O homem
coisas.”
é
a
medida
de
todas
as
Protágoras
1.1 Razão em Crise
Quando se fala em crise da razão logo vem à
tona, ao menos em meios acadêmicos, a idéia de um fenômeno que
teve lugar no século XX1, crise essa que tem sido associada
como uma característica típica — senão a mais importante — da
pós-modernidade, ainda que até hoje não haja um acordo acerca
do vem a ser essa pós-modernidade e se os tempos modernos
efetivamente chegaram ao fim.
Sem entrar nessa polêmica, a questão que ora se
coloca é a de saber o motivo pelo qual se tem dado tanta
importância aos ataques que a razão sofreu no século que acaba
de terminar e que parece que continuará sofrendo inclusive
1
“A situação filosófica contemporânea (...) tem sido marcada, desde os
finais do século XIX, pelo estigma da crise e, muito particularmente, da
crise do sujeito e da razão” (CARRILHO, Manuel Maria. Jogos de
Racionalidade, p. 9).
11
neste novo século, uma vez que desde os primórdios do pensar
filosófico a razão convive com o incômodo da dúvida cética,
dúvida essa que em determinado momento (com o racionalismo
inaugurado por DESCARTES) — paradoxalmente — tornou-se o ponto
de partida do pensamento filosófico.
Por que então somente agora, após séculos de
ataques constantes, a razão entra em crise?
A tentativa de uma resposta a essa questão pode
ser feita a partir de uma análise do próprio surgimento da
filosofia, da sua meta e de que forma essas metas foram (se é
que foram) alcançadas ao longo da história do pensamento.
Não se pretende aqui fazer uma análise rigorosa
e exaustiva do contexto de surgimento e desenvolvimento da
filosofia, mas sim partir de algumas impressões que, em nosso
entender, podem levar a uma compreensão da crise sofrida pela
razão no século XX, em especial.
Segundo
ARISTÓTELES,
a
filosofia
nasce
do
espanto causado em face dos acontecimentos do mundo, daquilo
que é imprevisível, do devir. Em um primeiro momento o homem
cria o mito para que este dê conta do caos existente, buscando
um sentido de ordem. Porém, os mitos sobrevivem de crenças que
facilmente podem ser destruídas e não possuem a radicalidade
que a filosofia, desde o início, propôs-se a buscar, ou seja,
“a
idéia
de
um
saber
que
seja
irrefutável;
e
que
seja
12
irrefutável não porque a sociedade e os indivíduos nele tenham
fé ou vivam sem dele duvidar, mas porque ele próprio é capaz
de rebater todos os seus adversários. A idéia de um saber que
não pode ser negado nem por homens nem por deuses, nem por
mudança
dos
tempos
ou
dos
costumes.
Um
saber
absoluto,
definitivo, incontroverso, necessário, indubitável.”2
Através da episteme, prevendo e antecipando o
devir
da
vida,
o
homem
liberta-se
do
terror,
tornando
previsível o que antes era imprevisível. A episteme surge como
o grande remédio contra o terror da vida.
Esta
tentativa
de
tornar
previsível
o
imprevisível vai culminar na ciência moderna e na organização
contemporânea
científico-tecnológica
da
experiência,
que
tornou-se um outro grande remédio contra o terror da vida,
mesmo não tendo a mesma pretensão da episteme, ou seja, um
conhecimento
que
dê
conta
da
totalidade,
que
possua
a
como
um
pretensão de verdade incontroversa.
Também
remédio
contra
ultramundano
e
a
o
cristianismo
infelicidade
transcendente.
e
a
Daí
apresenta-se
dor,
a
mas
um
capacidade
remédio
que
o
cristianismo tem de se comunicar com as massas que a filosofia
não possui.
2
SEVERINO, Emanuele. A filosofia antiga, p. 19.
13
Porém,
tanto
o
cristianismo
quanto
a
tecno-
ciência, ou ainda, toda a civilização ocidental, cresce no
seio da dimensão aberta, de uma vez por todas, pela filosofia
grega: a busca de um saber irrefutável que torne possível o
devir da vida, a episteme.
É justamente contra a idéia da filosofia como
episteme, que desde a antigüidade, passando pela Idade Média e
pela
modernidade,
que
vão
se
insurgir
os
pensadores
contemporâneos, dentre os quais Friedrich Wilhelm NIETZSCHE
parece ser o mais radical, razão pela qual nos deteremos nas
linhas gerais de seu pensamento.
Para
construído
proteger
pela
o
NIETZSCHE,
cultura
homem
do
e
pela
caos
e
o
gigantesco
civilização
da
edifício
ocidentais
irracionalidade
do
para
devir
(edifício este que culmina e se resume no conceito de Deus)
acabou por sobrecarregar a existência do homem, dotando-a de
um
peso
ainda
mais
insuportável
do
que
aquele
que
é
constituído pela própria ameaça do devir.
A origem, o sentido, a causa, o fundamento, a
lei,
a
realidade
formam
o
remédio
imprevisibilidade
aparência
imutável
do
terrível,
e
divina
contra
o
devir,
mas
pois
prevendo
evocados
terror
por
e
pela
episteme
provocado
vezes
pela
possuem
antecipando
o
uma
devir,
14
acabam por o anular e por anular juntamente com ele a própria
vida do homem.
O homem surge assim perante si próprio como a
mais inquietante e imprevisível das coisas, mas o remédio que
ele encontra acaba por lhe surgir como um suicídio. O remédio
destrói
querer
a
vida,
tornar-se
pois
sendo
previsível,
o
homem
acaba
imprevisibilidade,
por
libertar-se
de
ao
si
próprio através da destruição de si mesmo.
Daí a afirmação de NIETZSCHE de que foi pior o
remédio do que o mal, de onde Jean-Paul SARTRE pôde dizer que
se Deus existe, o homem não pode viver.3 Este é o pensamento
que pode ilustrar o aspecto mais característico do niilismo
contemporâneo.
O niilismo mostra que estamos aqui, no mundo,
literalmente abandonados, porém, este niilismo está voltado
para a realização do homem, para libertá-lo das correntes que
o impediam de viver, para libertá-lo de Deus.
O niilismo é justamente a recusa de resposta
aos porquês metafísicos, pois percebe que não há um fim a ser
atingido. Esta falta de resposta é que leva à desvalorização e
à perda dos valores superiores.
3
Cf. SARTRE, Jean-Paul. O existencialismo é um humanismo, p. 22 e ss.
15
Não podendo haver uma interpretação teleológica
do mundo, devemos enxergar o fim em nós mesmos, que deve ser
direcionado
à
nossa
felicidade.
Devemos
ainda
aceitar
o
trágico, ou seja, o mundo, tal qual é, sem começo e sem fim.
Segundo NIETZSCHE, todas as grandes construções
do saber tradicional acerca dos princípios, da metafísica, da
arte,
da
moral,
dos
valores
da
sociedade,
das
normas
de
conduta dos indivíduos, permitem tornar suportável a vida. São
os
instrumentos
atingir
o
fundamentais
prazer,
permitiram
também
fugindo
ao
com
à
homem
os
dor,
quais
o
homem
instrumentos
sobreviver.
Mas
tentou
estes
são
uma
que
grande
simulação, pretendem se passar por verdade, porém nada mais
são que mentiras e ilusões úteis à sobrevivência, erros vitais
disfarçados de verdade.
A busca de um fim, uma verdade que dá sentido à
existência,
já
é
o
próprio
niilismo,
por
ser
esta
tarefa
impossível de ser atingida. Por isso Deus, como criador de um
sentido, também é desmascarado. Deste modo, o erro vital, o
nada que move a cultura ocidental, é o próprio Deus.
O
super-homem
é
aquele
que
é
consciente
da
existência desses erros vitais e sabe que a verdadeira vida é
horror
e
dor
e,
nem
por
isso,
retrai-se
ou
foge
dela.
É
exatamente em nome da força e da vontade de poder que o superhomem, completamente desencantado no que diz respeito a todas
16
as ilusões, não se afasta, não foge e não se desespera perante
o devir, identificando-se totalmente com ele.
O único mundo é este que se apresenta ameaçador
e aterrorizante, em que a certeza do homem tem como conteúdo a
ameaça e a imprevisibilidade caótica e irracional das coisas.
A
grande
erro,
em
história
que
a
do
Ocidente
grande
é
mentira
a
história
culminou
em
de
um
Deus,
à
medida em que houve a pretensão de afirmá-lo como causa e
finalidade do mundo. Na origem já se encontra o fim, mas o
mundo,
tal
qual
é,
não
tem
sentido
e
nem
um
fim
a
ser
alcançado:
“
O mundo subsiste; não é nada que venha ser, nada
que perece. Ou antes: vem a ser, perece, mas nunca
começou a vir a ser e nunca cessou de perecer, —
conserva-se em ambos... Vive de si próprio: seus
excrementos são seu alimento.”4
Vale dizer que não só o pensamento filosófico
abalou
a
auto-estima
do
homem
e
a
sua
razão,
mas
também
algumas teorias científicas. Com efeito desde GALILEU, quando
se
revelou
que
não
estávamos
no
centro
do
universo
como
imaginávamos, nossa vaidade já ficara abalada. Mas isso foi
pouco
DARWIN
se
comparado
que,
às
teorias
respectivamente,
de
Sigmund
FREUD
expulsaram-nos
do
criação e do controle de nossas faculdades mentais.
4
NIETZSCHE, Friedrich. O eterno retorno, § 1066, p. 176.
e
Charles
centro
da
17
As filosofias da linguagem igualmente abalaram
o edifício das crenças do homem moderno ao demonstrarem a
arbitrariedade das mesmas a partir de análises lingüísticas.
A menção superficial dos pensamentos acima pode
ser útil para responder à questão posta no início, ou seja, de
um certo modo mostra o porquê de uma crise da razão no século
XX.
No entanto isso não quer dizer que foram esses
pensamentos que geraram a crise. Ao contrário do que se possa
imaginar, as teorias não surgem do acaso, mas em função de
circunstâncias historicamente situadas numa área geográfica: o
Ocidente.
O início do século XX foi também o início de
uma
crise
entre
as
potências
neocolonialistas,
cujas
conseqüências fizeram daquele século o “...mais assassino de
que temos registro, tanto na escala, freqüência e extensão da
guerra que o preencheu, mal cessando por um momento na década
de 1920, como também pelo volume único de catástrofes humanas
que
produziu,
desde
as
maiores
fomes
da
história
até
o
genocídio sistemático”.5
Certamente
o
pensamento
contemporâneo,
que
afirmava o colapso da razão — ao menos da razão como episteme
5
HOBSBAWM, Eric. Era dos extremos: o breve século xx: 1914-1991, p. 22.
18
—
foi
condicionado
políticos
vigentes
pelo
e
já
nascente
conseqüentes
colapso
crises
dos
sistemas
internacionais.
O
fato é que material e moralmente os grandes Impérios Europeus
chegaram ao século XX em declínio:
“
... Ao contrário do ‘longo século XIX’, que
pareceu, e na verdade foi, um período de progresso
material, intelectual e moral quase ininterrupto, quer
dizer, de melhoria nas condições de vida civilizada,
houve, a partir de 1914, uma acentuada regressão dos
padrões
então
tidos
como
normais
nos
países
desenvolvidos e nos ambientes da classe média e que
todos acreditavam piamente estivessem se espalhando para
as regiões mais atrasadas e para as camadas menos
esclarecidas da população.”6
HOBSBAWM prossegue:
“
Ainda mais óbvia que as incertezas da economia e da
política mundiais era a crise social e moral, refletindo
as transformações pós-década de 1950 na vida humana, que
também
encontraram
expressão
generalizada,
embora
confusa, nessas Décadas de Crise. Foi uma crise das
crenças e supostos sobre os quais se apoiava a sociedade
moderna desde que os Modernos ganharam sua famosa
batalha contra os Antigos, no início do século XVIII:
uma crise das teorias racionalistas e humanistas
abraçadas tanto pelo capitalismo liberal como pelo
comunismo e que tornaram possível a breve mas decisiva
aliança dos dois contra o fascismo, que as rejeitava.
(...)
Contudo, a crise moral não dizia respeito apenas
aos supostos da civilização moderna, mas também às
estruturas históricas das relações humanas que a
sociedade moderna herdara de um passado pré-industrial e
pré-capitalista e que, agora vemos, haviam possibilitado
seu funcionamento. Não era a crise de uma forma de
organizar sociedades, mas de todas as formas. Os
estranhos apelos em favor de uma ‘sociedade civil’ não
especificada, de uma ‘comunidade’, eram as vozes de
gerações perdidas e à deriva. Elas se faziam ouvir numa
era em que tais palavras, tendo perdido seus sentidos
tradicionais, se haviam tornado frases insípidas. Não
restava outra maneira de definir identidade de grupo
senão definir os que nele não estavam.
6
HOBSBAWM, E. Idem, ibidem.
19
Para o poeta T. S. Eliot, ‘é assim que o mundo
acaba — não com uma explosão, mas com uma lamúria’. O
Breve Século XX se acabou com os dois.”7
Segundo ZANNONI, a crise que se abateu sobre a
razão, por outro lado, também teve bons frutos:
“
Neste estado de coisas sobrevém (...) a angústia
que vive o primeiro quarto do século XX com a primeira
guerra mundial que, na ordem jurídica e filosófica,
implicou uma revisão profunda das verdades que a razão
havia pretendido extrair de seu próprio afã dedutivo.
Contudo, esta mesma razão era impotente para conduzir a
realidade, a história, a humanidade, pelos caminhos da
paz, da solidariedade, da justiça.
Esta angústia será frutífera para o pensamento.”8
Um dos frutos decorrentes da crise sofrida pela
razão — sobretudo em face dos acontecimentos históricos acima
narrados
—
possibilidade
foi
de
justamente
uma
o
ciência
abandono
dogmática
da
defesa
da
encastelada
em
princípios normativos rígidos e inflexíveis, que deveria se
impor como verdade.9
7
HOBSBAWM, E. Idem, p. 20-21.
ZANNONI, Eduardo A. Crisis de la razón jurídica, p. 76.
9
Bento PRADO JR. menciona a crise por que passaram as ciências dogmáticas
ao falar do neopositivismo: “Mas, nos Estados Unidos, pelo menos, que
acolheu no fim da década de 30 muitos filósofos de língua alemã inspirados
pelo Círculo de Viena, que fugiam do nazismo, instalou-se uma inegável
hegemonia do neopositivismo na epistemologia em geral, da física às
ciências sociais. Mais do que isso, a filosofia importada parecia encontrar
terreno propício, como se houvesse uma harmonia preestabelecida entre o
empirismo lógico, de um lado, e, de outro, o behaviorismo de origem norteamericana ou a prática de uma economia positiva limitada e quantificável.
Fora dos modelos matemáticos e das evidências empíricas não haveria
salvação.
Logo, todavia, o programa neopositivista começou a fazer água por
todos os cantos, e a exibir suas limitações com a crise dos dogmas da
imaculada concepção e da imaculada observação. Quine, por exemplo, acerta
seu tiro no coração, mostrando a impossibilidade de traçar uma linha nítida
entre proposições analíticas e proposições sintéticas, entre o que é
8
20
1.2 Relativismo e Ceticismo
As
tentativas
dogmáticas
de
se
fundar
conhecimentos ficaram abaladas. Os dogmáticos passaram a ser
acusados
de
absolutistas,
fundamentacionistas,
objetivistas.
Em contrapartida os céticos e seu relativismo ganham um novo
fôlego e passam a resgatar toda a sua tradição milenar.
Segundo
Osvaldo
PORCHAT
Pereira,
todas
as
tentativas até hoje de se fundar um saber racional em busca da
verdade
nada
mais
foram
que
esforços
de
combate
contra
o
ceticismo. Para tanto:
“
...a filosofia dogmática inventou a teoria do
conhecimento: elaborou a temática da verdade, distinguiu
entre o evidente e o não-evidente e formulou uma noção
de evidência, introduziu a noção de critério da
realidade e verdade e distinguiu espécies de critérios,
construiu uma concepção do ser humano enquanto sujeito
do conhecimento e procedeu ao estudo de suas faculdades,
demorou-se na análise da sensibilidade e entendimento
enquanto
fontes
privilegiadas
do
nosso
alegado
conhecimento e apreensão do real, desenvolveu uma
doutrina
da
representação
e,
particularmente,
da
representação ‘apreensiva’, analisou cuidadosamente os
procedimentos inferenciais que alegadamente nos conduzem
puramente lógico e o que é puramente empírico. Por outro lado, os filósofos
como N. R. Hanson, uma nova filosofia da ciência caminha na mesma direção,
insistindo na ‘impregnação teórica’ dos dados observacionais. Na Alemanha a
querela do positivismo opunha dialética e hermenêutica ao ‘pós-positivismo’
de Popper (já que sacrificara o famoso princípio da verificação,
substituindo-o pelo oblíquo critério da falsificabilidade, que fornece uma
idéia mais dúctil de demarcação. Nos países de língua inglesa, os filósofos
da física — recuperando a epistemologia comparada de Duhem e de Alexandre
Koyré — reintroduzem a história da ciência no coração da epistemologia e,
com ela, a idéia da multiplicidade dos paradigmas. Em todos os casos, é o
ideal da unicified science que entra em crise.
É para uma concepção mais larga da Razão e da Ciência que se voltam
então os espíritos. Ou, pelo menos, para o reconhecimento do fato
incontornável de um mínimo de pluralismo ou de perspectivismo metodológico,
que compromete a hegemonia do ideal de toda a ciência unificada no estilo
da hard science”(PRADO JR., Bento. Retórica na economia, p. 7-8). Sobre o
tema, ver ainda CARRILHO, M. M. Obra citada, p. 23 e ss.
21
da esfera da evidência comum ao domínio das realidades
não-evidentes, por meio de signos ou de demonstrações. E
construiu toda uma teoria dos signos e toda uma lógica
da demonstração.”10
Diante das novas circunstâncias históricas que
caracterizaram o século XX, as filosofias dogmáticas, antes
prestigiadas,
passaram
a
ser
vistas
com
desconfiança,
ocorrendo o inverso com o ceticismo.
Com efeito, a partir da já mencionada crise de
auto-estima
causado
que
pelas
afligiu
obras
de
a
humanidade
DARWIN,
FREUD,
em
face
do
NIETZSCHE,
impacto
bem
como
pelas filosofias da linguagem, crise que se agravou a partir
das explosões de duas bombas atômicas no Japão em 1945, a
partir do que a própria tecno-ciência perdeu a credibilidade
de que dispunha, foi o fundamentacionismo que passou a ser
visto
como
uma
tradicionalmente
pretensões
postura
era
insana
atribuído
ao
de
“...querer
tudo
empreendimento
insensato,
porque
não
podendo
senão
levar
a
uma
(predicado
ceticismo),
justificar,
as
tornar-se-ia
um
ao
sendo
que
que
completamente
regressão
este
irrealizável,
infinito.
O
exercício hiperbólico da crítica é insensato porque, na sua
ânsia de absoluto, dissocia pensamento e contexto, negligencia
as
10
exigências
da
ação
no
pensamento,
as
suas
interações
PEREIRA, Oswaldo Porchat. Ceticismo e argumentação. In: Vida Comum e
Ceticismo, p. 224. O mesmo artigo também consta em CARRILHO, M. M. (Org.).
Retórica e comunicação, p. 123-164.
22
constantes
continuidade
e
deixa,
sem
a
afinal,
qual
o
escapar
exercício
da
a
exigência
razão
se
de
tornaria
incompreensível.”11
Conforme
ciência,
antes
inabalável12,
aberto
vista
sofreu
pela
crise
‘modernismo’
(...).
mencionado
como
a
do
Os
um
acima,
campo
interferência
ideal
limites
da
a
dotado
desse
de
novo
tecno-
uma
“...novo
unified
desse
própria
science
terreno
saber
terreno
ou
do
são
bem
definidos: crítica do positivismo, mas a partir de pontos de
vista diferentes. Tais pontos são o neopragmatismo de Rorty, a
teoria
crítica
ricoeuriana
11
12
dos
na
sua
versão
instrumentos
habermasiana,
da
filosofia
a
integração
analítica,
da
GRÁCIO, Rui Alexandre. Racionalidade argumentativa, p. 44.
Sobretudo com o advento do positivismo filosófico, que se originou no
século XIX com a obra de Augusto COMTE (1782-1857), a partir do que
surgiram posteriormente outras vertentes, como por exemplo as de John
STUART MILL (1806-1873) e Herbert SPENCER (1820-1903). Aqui se torna
necessário fazer uma advertência: não se pode fazer qualquer analogia entre
o chamado positivismo jurídico e o positivismo filosófico, sob pena de se
cair em erros grosseiros. Com efeito, segundo os ensinamentos de Norberto
BOBBIO, a “expressão ‘positivismo jurídico’ não deriva daquela de
‘positivismo’ em sentido filosófico, embora no século passado tenha havido
uma certa ligação entre os dois termos, posto que alguns positivistas
jurídicos eram também positivistas em sentido filosófico: mas em suas
origens (que se encontram no início do século XIX) nada tem a ver com o
positivismo filosófico — tanto é verdade que, enquanto o primeiro surge na
Alemanha, o segundo surge na França. A expressão ‘positivismo jurídico’
deriva da locução direito positivo contraposta àquela de direito natural.
Para compreender o significado do positivismo jurídico, portanto, é
necessário esclarecer o sentido da expressão direito positivo” (BOBBIO,
Norberto. O positivismo jurídico: lições de filosofia do direito, p. 15).
Para Miguel REALE, “diz-se Direito Positivo aquele que tem, já teve, ou
está em vias de ter vigência e eficácia” (REALE, Miguel. Filosofia do
direito, p. 601), o que é confirmado por Tércio Sampaio FERRAZ JR., para
quem “Direito positivo (...) é aquele que vale em virtude de uma decisão e
que só por força de uma nova decisão pode ser revogado” (FERRAZ JR., Tercio
Sampaio. Direito, retórica e comunicação, p. 157).
23
fenomenologia e da hermenêutica, a epistemologia kuhniana, com
suas
idéias
de
revolução
científica
e
de
mudança
de
paradigma.”13
Uma vez conhecida a extensão e a força do golpe
sofrido pela razão, não é difícil concluir que não só a tecnociência foi abalada, mas também outros ramos da cultura humana
não ficaram incólumes, tais como a religião, a política, a
moral e o direito.
Vale
relativismo
efeito,
não
se
enquanto
dizer
que
restringe
já
na
a
aos
década
relevância
campi
de
do
problema
universitários.
1920
ORTEGA
Y
do
Com
GASSET
costumava dizer que esse é o problema de nosso tempo, nos dias
correntes,
em
que
os
avanços
nos
transportes
e
nas
comunicações nos fazem interagir cada vez mais com pessoas de
todo o globo, não podemos ignorar que não há consenso no mundo
senão talvez, paradoxalmente, quanto ao fato de que não há
consenso.
Para
um,
a
verdade
absoluta
é
uma;
para
outro,
outra; e para terceiros, cada vez mais numerosos, essa mesma
divergência
indica
de
forma
singela
que
não
há
verdade
absoluta.
Assim, a afirmação de que toda a verdade é
relativa,
13
mesmo
não
sendo
nem
PRADO JR., Bento. Obra citada, p. 8-9.
de
longe
consensual,
é
24
proclamada hoje por qualquer estudante de ensino médio, com ar
de quem diz uma verdade absoluta.
Ora, se tudo é relativo, não há certo ou errado
absoluto;
se
tudo
é
relativo,
não
há
verdade
absoluta.
O
“...dogmatismo não se sustenta sem argumentação conclusiva,
mas
o
ceticismo
mostrou
que
nenhuma
argumentação
é
conclusivamente verdadeira”.14 As conseqüências do relativismo
são, do ponto de vista ético, o cinismo e, do ponto de vista
gnoseológico, o ceticismo.
Ainda
argumentação
“...deveria
seus
se
auditórios
atribui
reconhecer
argumentos,
segundo
que
uma
o
PORCHAT,
força
caráter
persuadem
particulares.
O
ideal
de
o
dogmático,
persuasão
eminentemente
cuja
absoluta,
relativo
tão-somente
alguns
do
universal
consenso
de
poucos
dos
homens de razão, obtido por via de argumentos, se revela um
mito”.15
Não há possibilidade de consenso pela via da
argumentação?
Não
há
verdade?
De
fato,
a
aceitação
desses
pontos de vista leva à característica dominante da cultura
contemporânea: o cinismo e o ceticismo.
14
15
PEREIRA, O. P. Obra citada, p 226.
PEREIRA, O. P. Idem, ibidem.
25
Talvez por isso o antropólogo Ernest GELLNER
costumasse afirmar, parodiando Karl MARX16, que “um espectro
assombra o pensamento humano: o relativismo”.17
Esse espectro é justamente a tese de que não há
verdade absoluta, isto é, de que a verdade de uma proposição é
relativa às circunstâncias em que esta é formulada.
Uma
das
expressões
clássicas
do
relativismo
talvez seja a máxima de PROTÁGORAS, para quem “o homem é a
medida de todas as coisas; das coisas que são enquanto são,
das coisas que não são enquanto não são”.18
Vale
dizer
que
essa
postura
relativista
foi
sempre muito combatida na antigüidade — talvez a razão de ser
da
filosofia
platônica,
que
se
contrapunha
aos
sofistas
—
porém a disputa era acirrada, vez que os filósofos que punham
16
“Um espectro assombra a Europa: o espectro do Comunismo” (MARX, Karl,
ENGELS, Friedrich. O manifesto comunista, p. 7).
17
Com essa frase GELLNER iniciou, em 17 de maio de 1994, sua palestra
intitulada “O Relativismo versus Verdade Única”, que teve lugar no ciclo de
Palestras “O Relativismo Enquanto Visão do Mundo”, promovido pelo Banco
Nacional entre 17 e 20 de maio de 1994, na cidade de São Paulo-SP.
18
Pré-Socráticos, in Os Pensadores, p. 32. Segundo Alf ROSS, PROTÁGORAS
ensinou skepsis (σκεπσισ: percepção sensorial através da visão): “skepsis no
conhecimento e na moralidade — resumida na fórmula: ‘o ser humano é a
medida de todas as coisas.’ Porém, é imperioso lembrar que o conhecimento
em relação ao qual Protágoras era cético era aquele que até então fora a
meta dos filósofos: a percepção absoluta do imutável; e que a moral em
relação à qual era cético era a lei absoluta, a validade divina. Protágoras
se deu conta da inutilidade [e fatuidade] das tentativas dos filósofos de
conhecer a essência absoluta da existência e das coisas, e ensinou que todo
conhecimento reside na percepção de nossos sentidos e é, por conseguinte,
necessariamente relativo e individual. As coisas são tal como as vemos, mas
os seres humanos as vêem de maneiras diferentes. Mas o homem cuja mente
esteja sã as vê da mesma maneira que outros que se acham na mesma condição”
(ROSS, Alf. Direito e justiça, p. 274-275).
26
em suspenso a razão dada a impossibilidade de verdade, eram
muito
populares
PROTÁGORAS,
de
na
época.
filósofos
Há
da
inúmeros
Grécia
exemplos,
clássica
com
além
de
posturas
relativistas, tais como a de XENÓFANES, de Colofão:
“
Mas se mãos tivessem os bois, os cavalos e os leões
e pudessem com as mãos desenhar e criar obras como os
homens, os cavalos semelhantes aos cavalos, os bois
semelhantes aos bois, desenhariam as formas dos deuses e
os corpos fariam tais quais eles próprios têm.”19
Ou ainda a postura de GÓRGIAS20, que, segundo a
síntese
elaborada
por
Enrico
BERTI,
considerava
a
razão
incapaz de apreender a verdade:
“
... 1) o ser não é; 2) ainda que fosse, não seria
cognoscível; 3) ainda que fosse cognoscível, não seria
comunicável. A conseqüência dessas três teses era que o
lógos, ou seja, o discurso, não tem mais a função de
tornar possível a comunicação, transmitindo de uma
pessoa a outra o conhecimento e significando, por meio
do conhecimento, a realidade. Ele, ao contrário, se
substitui à realidade, a instaura, por assim dizer, ele
mesmo, cria-a e, em vez de comunicar pensamentos, produz
diretamente os efeitos, isto é, causa das paixões,
dominando assim completamente a pessoa.”21
Mas
nada
se
compara
ao
ceticismo
que
fora
professado por PIRRO22, cuja crítica é dirigida expressamente
19
XENÓFANES de Colofão. Fragmento 15, Os Pré-Socráticos, in: Os Pensadores,
p. 70-71.
20
Apontado por ARISTÓTELES como o descobridor da retórica.
21
BERTI, Enrico. As razões de aristóteles, p. 167.
22
Depois abraçado por SEXTUS EMPIRICUS, cujo pensamento, denominado neopirronismo, ressurgiu revigorado no século XX, inclusive no âmbito
jurídico. Vale dizer que, segundo PORCHAT, mesmo DESCARTES se utilizou do
ceticismo pirrônico: “Inaugurando um estilo de filosofar basicamente
justificacionista e fundamentacionista, que requer, como condição prévia
para a constituição do saber filosófico, uma tabula rasa de nossas certezas
comuns, em geral — e de nossas certezas sobre o mundo exterior, em
27
contra os que pretendem ter encontrado a verdade. São eles os
filósofos a quem se convencionou denominar dogmáticos, os que
pensam ter um conhecimento exato de como as coisas são por
natureza.
Os
dogmáticos
põem
como
realmente
existentes
as
coisas sobre as quais discorrem; seu discurso se pretende a
expressão verdadeira de uma realidade como tal conhecida. Esse
discurso
assume
com
freqüência
a
forma
de
um
sistema
doutrinário que compõe e articula dogmas uns com os outros e
com os fenômenos que se impõem a nossa aceitação comum.23
Contra
céticos,
dogmáticos
a
partir
—
no
essas
das
interior
tentativas
mesmas
da
dogmáticas
premissas
lógica
destes
é
que
aceitas
últimos,
os
pelos
vão
estabelecer uma série impressionante de argumentos contrários:
“
...que não existe a verdade, tal qual os dogmáticos
a conceberam, nem há algo verdadeiro; que não há
realidade evidente, que nada é evidente; que não há
critério de verdade, porque nenhuma das espécies de
critério propostas pelos dogmáticos nos provê de
conhecimento seguro; que é inconcebível e inapreensível
o sujeito humano, como o entendem os dogmáticos; que não
se pode descobrir a verdade nem julgar as coisas pela
sensibilidade ou pelo entendimento, ou pela operação
conjunta de uma e outro, isto é, por nenhuma de nossas
faculdades pretensamente cognitivas; que a representação
(phantasía) dogmática é inconcebível, inapreensível, nem
particular —, o cartesianismo reservou ao ceticismo um curioso destino.
Porque, ao utilizar instrumentalmente o ceticismo de que metodologicamente
se alimenta, ele estranhamente o preserva, embora pretendendo superá-lo. A
suspensão cética de juízo sobre o mundo exterior converteu-se em
estratégia-padrão e em preliminar metodológico ao filosofar. Com isso, o
cartesianismo deu um passo decisivo para a incorporação da mensagem cética
ao pensamento moderno, o que nos permite mesmo falar adequadamente de um
modelo cético-cartesiano estabelecido no início das Meditações” (PEREIRA,
Oswaldo Porchat. Ceticismo e mundo exterior. In Vida Comum e Ceticismo, p.
124-125).
23
Cf. PORCHAT, O. P. Obra citada, p. 213-214, em que há a sistematização do
pensamento de PIRRO a partir de SEXTUS EMPIRICUS.
28
se podem julgar por ela os objetos; que o signo, tal
como o dogmatismo o define, é inconcebível, irreal, não
existe
signo;
que
argumentos
conclusivos
são
inapreensíveis, que não se podem descobrir argumentos
verdadeiros, nem é possível descobrir um argumento que
deduza algo ádelon (não-evidente) a partir de premissas
evidentes, dada a relação mesma que conecta conclusão e
premissas; que não há realmente demonstrações e as
demonstrações são portanto irreais, são nada; que a
demonstração é, de fato, inconcebível, é algo nãoevidente...”24
Portanto, os céticos questionam:
“
...a aceitabilidade das premissas da argumentação
proposta e das premissas dessas premissas, renovadamente
exigindo justificação e fundamento, acenando portanto
com uma regressão ao infinito. Cuidará também de
prevenir
qualquer
circularidade
dissimulada
na
argumentação adversária, que eventualmente introduza nas
premissas matéria decorrente da tese a ser provada. E,
sobretudo, não permitirá que os oponentes se proponham a
deter o processo de fundamentação, assumido algo ex
hypothéseos, isto é, à maneira de um ‘princípio’ ou
axioma,
pretextando
tratar-se
de
um
enunciado
indemonstrável e que de si mesmo se impõe à nossa
apreensão, de uma verdade que por si mesma se faz
aceitar pela razão e que prescinde de fundamento outro.
Os dogmáticos, com efeito, pretendem que não somente a
demonstração,
mas
toda
a
filosofia,
procede
ex
hypothéseos.”25
Essa relatividade manifesta de todas as coisas
sempre
foi
reconhecida
pelos
céticos
como
uma
das
razões
determinantes que os induzem a suspender o juízo (a epokhé)
sobre a verdade e a realidade absoluta delas. A epokhé é,
24
25
PEREIRA, O. P. Obra citada, p. 224-225.
PEREIRA, O. P. Obra citada, p 222-223. Princípios (arkhé), na noção
aristotélica, são aquelas proposições que desempenham nos argumentos o
papel de premissas, sem que sua verdade se tenha estabelecido como
conclusão de argumentos anteriores. A validade (pelo menos como verdade) de
tais princípios é incisivamente negada pelos céticos. Adiante se verá que a
importância da retórica, para ARISTÓTELES, está justamente no seu papel de
justificar tais princípios.
29
portanto, esse “...estado de repouso do entendimento devido ao
qual nada negamos nem assertamos, impossibilitados de escolher
algo
como
verdadeiro
ou
falso,
o
equilíbrio
das
razões
contrárias incapacitando-nos para dogmatizar”.26
A partir da descrição superficial da postura
cética acima realizada, vê-se que esse tipo de pensamento não
pode ser negligenciado. Ademais, quanto ao direito, um dos
debates mais importantes do século XX é o que tem sido travado
entre o positivismo jurídico — que tem uma postura francamente
cética nas vertentes de Hans KELSEN e Herbert HART — e as
várias posturas que não admitem o ceticismo, dentre as quais
se
pode
citar
principalmente
o
as
ressurgimento
posições
de
do
Ronald
jusnaturalismo,
DWORKIN
contra
mas
o
positivismo jurídico.
Para uma melhor compreensão desse debate, serão
descritas,
no
próximo
capítulo,
as
principais
teorias
jurídicas dos últimos tempos, da escola da exegese ao realismo
jurídico
norte-americano,
do
conceitualismo
ao
positivismo
jurídico da atualidade.
É justamente em meio a essas discussões que
alguns teóricos começaram a ver na argumentação jurídica e no
papel por ela desempenhado em seu âmbito de atuação, algo que
26
PEREIRA, O. P. Obra citada, p. 228.
30
merecia maior atenção dada a sua relevância, ocasião em que a
própria argumentação foi tomada como objeto de estudo, o que
implicou tentativas — ainda em curso — de se estabelecer uma
possível teoria geral da argumentação jurídica, que será o
tema central deste trabalho.
31
1.3 Pragmatismo e Direito
Uma questão ficou em aberto no item anterior:
será
que,
do
ponto
de
vista
ético,
o
relativismo
deve
necessariamente levar ao cinismo? Aqui não se está mais nos
limites
da
teoria
do
conhecimento,
mas
no
âmbito
de
um
relativismo cultural que já se pode encontrar em MONTAIGNE,
quando
dá
suas
impressões
com
relação
às
práticas
antropofágicas dos índios do Brasil:
“
...não vejo nada de bárbaro ou selvagem no que
dizem daqueles povos; e, na verdade, cada qual considera
bárbaro o que não se pratica em sua terra. É natural,
porque só podemos julgar da verdade e da razão de ser
das coisas pelo exemplo e pela idéia dos usos e costumes
do país em que vivemos.”27
Na sua forma extrema, o relativismo cultural
significa que os diversos sistemas cognitivos e critérios para
a determinação da verdade que as diferentes culturas possuem
são
incomensuráveis.
quanto
mais
Uma
reconhece
pessoa
a
é
tanto
mais
possibilidade
relativista
de
verdades
incompatíveis com a sua: quanto mais relativiza a sua própria
verdade.
No
entanto
referida
postura
leva
a
alguns
problemas. Se é certo que o relativismo surge freqüentemente a
partir de uma atitude de tolerância, em que o relativista se
27
MONTAIGNE, Michel de. Ensaios, p. 195.
32
nega a tomar suas próprias convicções como absolutas e dá
lugar a verdades alheias, certo é também que através dessa
postura ele acaba por minar com isso a sua própria posição.28
Sendo assim, para o relativista a verdade do
absolutista valeria tanto quanto a sua. Para o absolutista, ao
contrário,
o
relativista
não
tem
verdade
alguma.
Trata-se,
portanto, de uma luta desigual. Daqui se pode tirar uma nova
questão:
será
que
as
posturas
de
tolerância
devem
necessariamente implicar fraqueza diante dos absolutistas?
Outro
problema
que
pode
surgir
da
postura
relativista é o de que, do ponto de vista da lógica formal, o
relativismo
pode
ser
tomado
como
uma
variante
do
antigo
paradoxo do mentiroso.29
É certo que, durante muito tempo, semelhantes
problemas
depois
de
ceticismo
pareciam
acadêmicos
reconhecer
ou
que
relativismo,
é
e
formais.
irrefutável
à
medida
em
Com
a
efeito,
tese
que
de
logo
que
querem
o
ser
verdadeiros, derrotam-se a si próprios30, GADAMER pergunta:
28
PLATÃO já apontava essa fraqueza na posição de PROTÁGORAS, com o célebre
argumento retorsivo que amiúde é utilizado contra os céticos: ora, se todas
as verdades são relativas, também essa verdade — a de que tudo é relativo —
é relativa.
29
Este se dá quando alguém diz por exemplo: minto sempre (tudo o que eu
digo é mentira). Se esta pessoa estiver dizendo a verdade, está mentindo; e
se estiver mentindo, está dizendo a verdade.
30
“É uma argumentação irrefutável que a tese do ceticismo ou do relativismo
pretende ser verdade e, por conseguinte, se auto-suprime” (GADAMER, HansGeorg. Verdade e método: traços fundamentais de uma hermenêutica
filosófica, p. 510).
33
“
Mas, o que se consegue com isso? O argumento da
reflexão, que alcança esse fácil triunfo, ricocheteia
contra aquele que o emprega, na medida em que torna
suspeito o valor de verdade da reflexão. O que se
alcança através dessa argumentação não é a realidade do
ceticismo ou de um relativismo capaz de dissolver
qualquer verdade, mas a pretensão de verdade do
argumentar formal em geral.”31
Portanto,
a
pretensão
de
verdade
dogmática,
tanto quanto o relativismo, saem feridos dessa disputa. No
entanto uma postura particular do relativismo tem a pretensão
de não sofrer um arranhão: o pragmatismo anglo-saxão.
Com efeito, para um dos maiores expoentes dessa
filosofia
na
atualidade,
o
neopragmático
Richard
RORTY,
a
discussão sobre uma proposição ser verdadeira ou aparente deve
ser abandonada em nome do que é mais ou menos útil, cujo
objetivo é a possibilidade de melhorias na vida em sociedade.
Sendo assim, não importa saber se a mente humana apreende ou
não a realidade, mas sim qual o propósito de uma ou outra
crença. Distinções metafísicas, nessa perspectiva, não fazem
sentido nenhum.32
O ponto de partida de RORTY é o pensamento de
John DEWEY, de quem se considera discípulo:
“
O filósofo que mais admiro, e de quem eu mais
gostaria de ser considerado discípulo, é John Dewey.
31
GADAMER, Hans-Georg. Idem, ibidem.
Posicionamento firmado por RORTY em 19 de maio de 1994, por ocasião de
sua palestra intitulada Relativismo: Encontrar e Fabricar, que teve lugar
no ciclo de Palestras O Relativismo Enquanto Visão do Mundo, promovido pelo
Banco Nacional entre 17 e 20 de maio de 1994, na cidade de São Paulo-SP.
32
34
Dewey foi um dos fundadores do pragmatismo americano, um
pensador que passou 60 anos tentando nos libertar do
jugo de Platão e de Kant. Foi muitas vezes tachado de
relativista, e o mesmo ocorre comigo, mas é claro que
nós,
pragmatistas,
jamais
nos
consideraríamos
relativistas.
Geralmente
nos
definimos
em
termos
negativos: somos antiplatônicos, ou antimetafísicos ou,
ainda,
antifundacionistas.
Do
mesmo
modo,
nossos
oponentes raramente chamam a si mesmos platônicos,
metafísicos, ou fundacionistas, mas costumam intitularse defensores do senso comum, ou da razão.
... Nós, ditos relativistas, nos recusamos, é
claro, a admitir que somos inimigos da razão...”33
DEWEY,
com
efeito,
é
um
dos
mais
notórios
representantes, ao lado de Charles S. PEIRCE e William JAMES,
da
corrente
denominada
pragmatismo
dentro
da
filosofia
contemporânea.
O
absolutismo,
pragmatismo
juntamente
quer
com
as
evitar
toda
conseqüências
a
forma
de
desastrosas
decorrentes desta postura dentro da história da humanidade.
Defende uma tolerância que vai contra todos os determinismos,
materialismos e idealismos já defendidos e sistematizados na
filosofia.
DEWEY
realidade
fantasiar
para
o
ser
situações,
sustenta
humano,
projetar
que
quanto
maior
a
mais
tendência
desejos,
enfim,
adversa
deste
a
em
realizar
idealizações.
33
RORTY, Richard. Relativismo: encontrar e fabricar. In: CICERO, Antonio,
SALOMÃO, Waly (Org.). O relativismo enquanto visão do mundo, p. 116.
35
Porém, “...tais considerações aplicam-se além
da psicologia pessoal, [pois] são verdades terminantes em um
dos traços mais marcantes da filosofia clássica: sua concepção
de
uma
Realidade
Última,
Suprema,
essencialmente
ideal
na
natureza”.34
A realidade sempre foi encarada de uma forma
negativa,
como
filosóficos
imperfeição.
desde
PLATÃO
Daí
e
surgiram
todos
ARISTÓTELES,
os
sistemas
passando
pelos
períodos Medieval e Moderno, que nos influenciam profundamente
na atualidade.
A concepção que vê na realidade uma imperfeição
deu vazão a existência do pensamento que busca a verdade, a
realidade última; estas sim dotadas de perfeição e que podem
ser atingidas através da contemplação.
Daí
séculos
atrás,
o
motivo
ser
de,
até
dominante
aproximadamente
a
mentalidade
três
da
“...superioridade do conhecimento contemplativo ao prático, o
da
especulação
teórica
pura
à
experimentação
e
a
qualquer
outro que dependa de mudanças nas coisas ou que induz mudanças
nelas”.35
34
35
DEWEY, John. A filosofia em reconstrução, p. 115.
DEWEY, J. Idem, p. 119.
36
A
filosofia
então
era
vista
como
“...o
conhecimento puro, solitário, e capaz de continuar em completa
e auto-suficiente independência”.36
Ocorre que, com o alvorecer da ciência moderna,
nasce uma nova concepção de razão e experiência, em que a
sensação deixa de ser passiva para dar lugar a uma interação
organismo/meio.
atividade
O
trabalho,
destituída
de
que
antes
qualquer
era
visto
nobreza,
como
passa
a
uma
ser
valorizado:
“
O que há algum tempo era tido como milagre, hoje é
feito com o vapor, com o carvão, com a eletricidade e o
ar, com o corpo humano. Contudo são poucas as pessoas
otimistas, a ponto de proclamarem que temos conseguido
semelhante domínio das forças que controlam o bem estar
(...) do homem.”37
As transformações decorrentes da técno-ciência
têm demonstrado que o mundo pode, enfim, ser transformado em
um
lar, sendo este um ideal (dentro desta nova concepção)
encarado
como
uma
alavanca
para
aquilo
que
nossos
desejos
planejam, modificando o mundo real. O conhecimento deixa de
preocupar-se com essências, causas, etc.; que na verdade não
solucionam
36
37
nossos
problemas.
DEWEY, J. Idem, p. 120.
DEWEY, J. Idem, p. 132.
“O
conhecimento
deixa
de
ser
37
contemplativo
para
se
tornar
prático”.38
A
experimentação
científica seria o melhor exemplo disto.
DEWEY afirma que “...o mais importante papel no
filosofar histórico [são] as concepções do ideal e do real”.39
No
pragmatismo
“...o
real
deixa
de
ser
alguma
coisa
com
existência antecipada e final para tornar-se aquilo que tem de
ser aceito como material de mudança”40, o mesmo ocorrendo com o
ideal
e
o
representar
racional.
Tais
possibilidades
concepções
acima
inteligentemente
“...passam
engendradas
a
do
mundo real que poderão ser usadas como métodos para modificar
e aperfeiçoar este mesmo mundo”.41
A filosofia passa a ter uma função ativa, ou
seja, “...a de racionalizar as possibilidades da experiência,
especialmente
as
da
coletividade
humana”.42
Quanto
a
epistemologia e a metafísica, seriam infrutíferas, inúteis,
pois nada acrescentam na vida prática ou contribuem para o
bem-estar moral e social do homem.
Para DEWEY, há um conflito entre as posturas
contemplativa e prática. A relação entre ideal e real nunca
esteve tão distante e esta relação é “o mais sério de todos os
38
39
40
41
42
DEWEY,
DEWEY,
DEWEY,
DEWEY,
DEWEY,
J.
J.
J.
J.
J.
Idem,
Idem,
Idem,
Idem,
Idem,
p. 125.
p. 130.
ibidem.
ibidem.
ibidem.
38
[problemas] da humanidade”.43 Se, por um lado, a tecnologia nos
trouxe
prática
muitas
do
benesses,
mundo
nos
por
outro,
afastou
de
a
visão
excessivamente
preocupações
extremamente
pertinentes, como, por exemplo, as questões ecológica, social,
política. O que DEWEY propõe é uma “...reconciliação entre as
ciências práticas e a apreciação estética contemplativa”.44
Também
problemas
que
em
envolvam
RORTY
há
fundamentos,
uma
recusa
em
importando
admitir
apenas
as
vantagens e desvantagens concretas trazidas pelas crenças.
Com efeito, o pragmatismo não está interessado
na
distinção
entre
verdade
e
falsidade,
pois
proclama
que
alguns juízos são melhores que a verdade, posto que funcionam
melhor. O problema sai do âmbito da verdade para entrar no
campo da opinião (dóxa), sendo que neste âmbito a escolha
entre duas ou mais opiniões — que deve ser pela melhor dentre
elas — é possível (admite-se mesmo a escolha de uma opinião
que não seja a mais verdadeira).
Por isso os neopragmáticos têm sido acusados de
irracionalistas, principalmente se o que está em questão são
valores maiores ou mesmo diferentes paradigmas científicos.45
43
DEWEY, J. Idem, p. 135.
DEWEY, J. Idem, p. 134.
45
Thomas KUHN, em especial com sua obra A Estrutura das Revoluções
Científicas, instaurou uma perspectiva inédita sobre a atividade científica
quando traçou a sua noção de paradigma. Distinguindo dois regimes nessa
atividade, que designou por ciência normal e ciência extraordinária,
44
39
Ora, uma coisa é considerar relativas opções
concernentes a preferências estéticas ou gastronômicas, o que
é aceitável. Coisa bem diferente é relativizar valores morais
ou científicos.
GELLNER,
por
exemplo,
que
admite
a
possibilidade de se chegar a uma verdade única46, sustenta que,
científica e moralmente, entre as diversas verdades uma deverá
ser a mais forte.47 GELLNER não aceita, portanto, que a todo
argumento ou opinião se possa sempre opor, à moda de PIRRO,
outro argumento ou opinião, igualmente possível. Aceitar isso
implica
o
reconhecimento
da
impossibilidade
de
qualquer
progresso científico. Para GELLNER, ao contrário:
“
...dos
velhos
sistemas
que
Descartes
e
a
epistemologia moderna puseram a pique, se não resultou
uma nova embarcação confiável e em boas condições de
navegabilidade, restos ao menos sobraram dos quais
‘alguns pedaços são melhores que outros’ e podem,
convenientemente reunidos e amarrados, compor ‘uma
jangada passável’. Nas páginas finais de seu livro (pp.
caracterizando a primeira por se reger por um paradigma que orienta toda a
atividade dos cientistas de cada comunidade disciplinar, e a segunda por
viver num estado de crise que resulta, numa dada situação, de perda de
eficiência do paradigma até então vigente, podendo por isso conduzir à
eclosão de uma revolução científica, ou seja, à instauração de um novo
paradigma. A ocorrência desta revolução tem como principal conseqüência
cavar, entre os dois paradigmas, o que KHUN designou como uma
incomensurabilidade, isto é, um estado de incompreensão ou de conflito não
só sobre os problemas que devem ser considerados como das soluções que
devem ser aceitas, situação que é agravada com o uso de conceitos com
significação diferente pelos partidários dos dois paradigmas.
46
Verdade aqui não no sentido absoluto do termo, pois GELLNER reconhece o
caráter relativo dos fundamentos, admitindo ser provavelmente impossível
que a teoria do conhecimento possa desempenhar com rigor absoluto sua
tarefa de fundamentação e legitimação do conhecimento sem incorrer na
circularidade (petição de princípio) ou no regresso ao infinito (cf.
PORCHAT, O. P. Ceticismo e saber comum. In: Vida Comum e Ceticismo, p.
114). Nesse ponto GELLNER admite o argumento cético.
47
Aqui o pensamento de GELLNER se aproxima muito ao de DWORKIN.
40
206-208) [Legitimation of Belief], Gellner enumera esses
elementos que, a seu ver, acabaram sendo destilados por
um consenso emergente de alguns séculos de reflexão
filosófica, elaborada sob o impacto da epistemologia
moderna.”48
A
peculiar
idéia
de
verdade
única
não
deve
levar, necessariamente, a uma nova espécie de etnocentrismo e
colonialismo. Segundo GELLNER são os relativismos que, sob o
manto
da
tolerância,
chegam
a
admitir
absurdos
como
a
justificação de opressões existentes em certas culturas, tais
como torturas e mutilações sistemáticas.49
48
GELLNER, Ernest. Legitimation of belief. Cambridge: Cambridge University
Press, 1974. Citado por PEREIRA, O. P. Obra citada, nota 79, p. 114.
49
O biólogo Richard DAWKINS, em recente obra para divulgação da importância
da ciência, aborda o absurdo a que o discurso tolerante e relativista pode
levar. Para tanto, cita o seguinte caso: “Uma onda em voga vê a ciência
apenas como um dentre muitos mitos culturais, nem mais verdadeiro ou válido
do que os mitos de qualquer outra cultura. Nos Estados Unidos, essa atitude
é alimentada pela culpa justificada do tratamento histórico conferido aos
americanos nativos. Mas as conseqüências podem ser risíveis, como no caso
do Homem de Kennewick.
O Homem de Kennewick é um esqueleto descoberto no estado de
Washington em 1996 que, pela datação de carbono, deve ter mais de 9 mil
anos. Os antropólogos ficaram intrigados com as sugestões anatômicas de que
talvez não estivesse relacionado com os típicos americanos nativos, podendo
representar uma outra migração anterior pelo que é agora o estreito de
Bering ou até originária da Islândia. Eles estavam se preparando para
realizar os importantíssimos testes de DNA, quando as autoridades legais se
apoderaram do esqueleto, com a intenção de entregá-lo aos representantes
das tribos indígenas locais, que propuseram enterrá-lo e proibir todo
estudo posterior. Houve naturalmente uma ampla oposição da comunidade
científica e arqueológica. Mesmo se o Homem de Kennewick fosse um tipo de
índio americano, é altamente improvável que tivesse afinidades com qualquer
tribo específica que por acaso habitasse a mesma área 9 mil anos mais
tarde.
Os americanos nativos têm uma força legal impressionante, e ‘O
Antigo’ poderia ter sido entregue às tribos, não fosse por um acontecimento
bizarro. A Assembléia do Povo de Asatro, um grupo de adoradores dos deuses
nórdicos Thor e Odin, entrou com uma ação legal independente afirmando que
o Homem de Kennewick era, na verdade, um viking. Essa seita nórdica, cujas
visões se encontram no número do verão de 1997 de The Runestone, teve
realmente a permissão de realizar um culto religioso sobre os ossos. Isso
desagradou à comunidade indígena yacama, cujo porta-voz temia que a
cerimônia viking pudesse ‘impedir o espírito do Homem de Kennewick de
41
encontrar o seu corpo’. A disputa entre os indígenas e os nórdicos poderia
ser resolvida pela comparação do DNA, e os nórdicos estavam bem desejosos
de passar pelo teste, O estudo científico dos vestígios certamente lançaria
uma luz fascinante sobre a questão de saber quando os humanos chegaram pela
primeira vez à América. Mas os líderes indígenas não admitem a simples
idéia de estudar o assunto, porque acreditam que seus antepassados existem
na América desde a criação. Como Armand Minthorn, o líder religioso da
tribo umatilla, se expressou: ‘De nossas histórias orais, sabemos que o
nosso povo é parte desta terra desde o começo dos tempos. Não acreditamos
que o nosso povo migrou de outro continente para a América, como afirmam os
cientistas’.
Talvez a melhor atitude para os arqueólogos seja declarar que
pertencem a uma religião, sendo as impressões digitais do DNA o seu totem
sacramental. Parece brincadeira, mas é tal o clima nos Estados Unidos no
final do século XX que possivelmente esse é o único recurso que iria
funcionar. Se alguém diz: ‘Olha, há evidências esmagadoras, obtidas pela
datação de carbono, pelo DNA mitocondrial e pelas análises arqueológicas da
cerâmica, de que x é o caso’, não vai chegar muito longe. Mas, se alguém
diz: ‘É uma crença fundamental e inquestionável da minha cultura de que x é
o caso’, vai imediatamente atrair a atenção de um juiz.
Vai também chamar a atenção de muitos na comunidade acadêmica, que,
no final do século XX, descobriram uma nova forma de retórica
anticientífica, às vezes chamada de ‘crítica pós-moderna’ da ciência.
(...)
Os promotores do relativismo cultural e da ‘superstição mais elevada’
tendem a despejar desprezo na busca da verdade. Isso deriva parcialmente da
convicção de que as verdades são diferentes em culturas diferentes (esse
era o argumento da história do Homem de Kennewick) e parcialmente da
incapacidade de os filósofos da ciência concordarem de algum modo sobre a
verdade. Há certamente dificuldades filosóficas genuínas. Uma verdade é
apenas uma hipótese não falsificada até o presente momento? Que status
possui a verdade no estranho e incerto mundo da teoria quântica? Algo é em
última análise verdadeiro? Por outro lado, nenhum filósofo encontra
dificuldade em usar a linguagem da verdade quando é falsamente acusado de
um crime, ou quando suspeita que sua esposa cometeu adultério. “É verdade?’
parece então uma pergunta justa, e poucos dos que a formulam nas suas vidas
privadas
ficariam
satisfeitos
em
ter
como
resposta
um
sofisma
argumentativo. Os experimentadores do pensamento quântico talvez não saibam
em que sentido é ‘verdade’ que o gato de Schrödinger está morto. Mas todo
mundo sabe o que é verdadeiro na declaração de que Jane, a gata da minha
infância, está morta. E, em muitas verdades científicas, o que afirmamos é
apenas que elas são verdadeiras nesse mesmo sentido comum. Se lhe digo que
os humanos e os chimpanzés partilham um antepassado comum, você pode
duvidar da verdade da minha afirmação e procurar (em vão) evidências de que
ela é falsa. Nós dois sabemos, no entanto, o que significaria se ela fosse
verdadeira, e o que significaria se ela fosse falsa. Está na mesma
categoria de: ‘É verdade que você esteve em Oxford na noite do crime?’, e
não na mesma categoria difícil de: ‘É verdade que um quantum tem posição?’.
Sim, há dificuldades filosóficas sobre a verdade, mas podemos ir bem longe
antes de ser preciso que delas nos ocupemos. A criação prematura de
alegados problemas filosóficos é às vezes uma cortina de fumaça para a
discórdia” (DAWKINS, Richard. Desvendando o arco-íris: ciência, ilusão e
encantamento, p 38-42).
42
Daí porque a inadmissibilidade do relativismo
moral. Segundo GELLNER:
“
Num mundo como o nosso, a injunção relativista que
nos diz ‘quando em Roma, aja como os romanos’ se
descobre vazia de conteúdo, porquanto, simplesmente não
há
‘Roma’
nem
‘Romanos’,
não
há
mais
‘cidades’
identificáveis, isto é, unidades identificáveis, em
termos dos quais a alegada relatividade possa operar.”50
Para
inaceitável,
pois
GELLNER
“...o
que
também
o
relativismo
está
em
jogo
aqui
lógico
é
não
a
é
diferença entre meras teorias rivais mas entre incomensuráveis
paradigmas
rivais
—
o
que
pode
ser
chamado
o
problema
de
Thomas KHUN. Aqui, dar nota não é inútil mas, ao contrário,
obrigatório. Inevitavelmente fazemos isso de qualquer modo. Há
progresso científico, não apenas mudanças insignificantes de
modas”.51
Seja como for, o ponto de partida relativista
do ceticismo é aceito, porém o que não se admite é uma postura
passiva proporcionada pela epokhé, vez que, do ponto de vista
da
razão
prática
proposta
por
GELLNER,
deve-se
fugir
do
utilitarismo irracionalista do neopragmatismo e buscar sempre
a melhor solução.52
50
GELLNER, E. Legitimation of belief, p 48-49, citado por PEREIRA, O. P.
Obra citada, nota 48, p. 105.
51
GELLNER, E. Sobre as opções de crença, Folha de São Paulo, 15 de maio de
1994, p. 6 – 11.
52
Melhor não no sentido pragmático, em que a melhor solução pode ser a
menos condizente com a verdade, ou seja, com critérios de racionalidade
derivados da lógica formal. Uma opção que não se compatibilize com o
43
Vale dizer que a busca da melhor solução vai
implicar,
necessariamente,
argumentação.
“A
filosofia
dogmática argumenta, ela essencialmente argumenta”53, sobretudo
para justificar as premissas de onde parte, em especial quanto
aos
seus
princípios
que
são
tidos
como
argumentações
que
ocupam o papel de premissas.54
Foi
justamente
diante
dessa
constatação
que
ARISTÓTELES acabou por reconhecer a importância da retórica —
que era muito criticada por PLATÃO — a qual, além de poder
firmar
os
princípios
através
de
argumentos
honestos,
foi
pensamento formal seria inaceitável para GELLNER e aqui o relativismo não
pode funcionar. É claro que isso é bem diferente de uma disputa entre
opções diversas, em que todas elas pudessem ser formalmente sustentáveis.
53
PEREIRA, O. P. Obra citada, p. 214.
54
Aqui o pragmatismo também pretende atuar, mas igualmente está sujeito a
críticas, conforme aduz Tércio Sampaio FERRAZ JR.: “Embora não se possa
negar, conforme é acentuado, sobretudo na literatura norte-americana sobre
administração pública, que uma decisão procura alcançar, por meio de um
arranjo de meios e compensações, um máximo de consenso e cooperação
concreta entre os atingidos por ela, parece-nos que consenso e cooperação
não constituem nem a finalidade imediata nem a condição primeira da
decisão. Decidir, nesse sentido, não é, primordialmente, estabelecer uma
repartição eqüitativa entre as chances de vitória reveladas pela
justificação das alternativas em conflito numa discussão dada, o que
pressupõe um critério exterior ao próprio discurso e que defina, a priori,
o que se entende por repartição eqüitativa. Isso, aliás, exigiria do ato
decisório um tipo de neutralidade e de distância que o tornariam não
situacional. Colocar decisão e consenso numa relação imediata significa
transformar a decisão ‘racional’ num modelo ideal, do qual nos aproximamos
mais ou menos; na medida que em toda decisão concorrem variáveis nem sempre
controláveis e previsíveis, toda decisão ‘racional’ seria sempre e apenas
parcialmente ‘racional’. Essa concepção idealista da decisão, presente na
‘teoria da otimização’ da decisão, emerge de uma situação discursiva também
ideal, em que opiniões e contra-opiniões deixam indiferençados os momentos
da concorrência e da cooperação, sendo possível, então, o aparecimento de
um critério que ordene as opiniões. Nesta situação, todos os dados
relevantes seriam conhecidos de início, todas as alternativas poderiam ser
enumeradas e avaliadas de antemão, restando apenas a escolha. Mas, tão logo
a situação se complique, tão logo as teorias da decisão cresçam em riqueza
de sentido e de relacionamento, uma ordem deste gênero perderia em nitidez”
(FERRAZ JR., Tercio Sampaio. Direito, retórica e comunicação, p. 43).
44
concebida como sendo a melhor maneira de se defender do mal
uso que dela faziam os sofistas. Daí decorrem as seguintes
conclusões do estagirita:
“
(1) A retórica é útil, porque, tendo o verdadeiro e
o justo mais força natural que os seus contrários, se os
julgamentos
não
são
proferidos
como
conviria,
é
necessariamente por sua única culpa que os litigantes
[cuja causa é justa] são derrotados. Sua ignorância
merece, portanto, censura.
(2) Ainda mais: conquanto possuíssemos a ciência
mais exata, há certos homens que não seria fácil
persuadir fazendo nosso discurso abeberar-se apenas
nessa fonte; o discurso segundo a ciência pertence ao
ensino, e é impossível empregá-lo aqui, onde as provas e
os discursos (logous) devem necessariamente passar pelas
noções comuns, como vimos em Tópicos, a respeito das
reuniões com um auditório popular.
(3) Ademais, é preciso ser capaz de persuadir dos
prós e dos contras, como no silogismo dialético. Não
para pôr os prós e os contras em prática — pois não se
deve corromper pela persuasão! —, mas para saber
claramente quais são os fatos e para, caso alguém se
valha de argumentos desonestos, estar em condições de
refutá-lo...
(4) Além disso, se é vergonhoso não poder defenderse com o próprio corpo, seria absurdo que não houvesse
vergonha em não poder defender-se com a palavra, cujo
uso é mais próprio ao homem que o do corpo.
(5) Objetar-se-á que a retórica pode causar sérios
danos pelo uso desonesto desse poder ambíguo da palavra?
Mas o mesmo se pode dizer de todos os bens, salvo da
virtude...
(6) Fica claro, pois, que, assim como a dialética,
a retórica não pertence a um gênero definido de objetos,
mas é tão universal quanto aquela. Claro também que é
útil. Claro, por fim, que sua função não é [somente]
persuadir, mas ver o que cada caso comporta de
persuasivo. O mesmo se diga de todas as outras artes,
pois tampouco cabe à medicina dar saúde, porém fazer
tudo o que for possível para curar o doente.”55
55
ARISTÓTELES. Retórica. Livro I, cap. 2, 1355 a-b, p. 7-9. Daí a utilidade
da retórica para ARISTÓTELES, assim sintetizada por Enrico BERTI: “Porém,
vamos às ‘utilidades da retórica’, ou seja, aos motivos pelos quais a
retórica é ‘útil’ (khrésimos), que são quatro. Em primeiro lugar, a
retórica é útil porque permite evitar uma coisa reprovável, isto é, perder
uma causa justa por inferioridade própria, dado que, ‘por natureza’, por si
mesmas, ‘as coisas verdadeiras e justas são mais fortes que seus
contrários’ (1355 a 21-24). É evidente a analogia entre esta utilidade e a
primeira das quatro utilidades da dialética expostas nos Tópicos I 1,
aquela relativa ao ‘exercício’ mental (pros gymnasían), que nos dá
condições de argumentar mais facilmente (101 a 28-30). Em segundo lugar, a
45
retórica é útil porque, para alguns, não basta recorrer à ‘ciência mais
exata’, que é apropriada para o ensino, na medida que é necessário usar
argumentos baseados nos lugares-comuns (diá ton Koinón). E aqui é o próprio
Aristóteles que cita a segunda utilidade da dialética ilustrada nos
Tópicos, aquela relativa às ‘discussões com a multidão’, nas quais convém
partir das opiniões que lhes são próprias, isto é, justamente ‘comuns’
(1355 a 24-29, cf. Tópicos I 1, 101 a 30-34).
Em terceiro lugar, é útil porque está em condição de persuadir de
coisas contrárias, o que serve não para que se façam ações contrárias entre
si (não se deve, com efeito, persuadir para que se façam ações ruins), mas
‘para que não se desviem de como as coisas são’ (pos ékhei), e ‘para que
tenhamos nós mesmos a possibilidade de refutar (lyein) se um outro faz um
uso injusto dos argumentos’; apenas a retórica e a dialética, com efeito —
prossegue Aristóteles —, estão em condição de argumentar os contrários,
porque são (capazes) ambas do mesmo modo, ainda que as ações que
correspondem a eles não sejam do mesmo modo, mas aquelas verdadeiras e
melhores por natureza sempre ‘mais fáceis de argumentar e mais persuasivas’
(eusyllogistótera kai pithanótera) (1355 a 29-38). Isso corresponde
perfeitamente à terceira utilidade da dialética, relativa às ‘verdadeiras
ciências’ (pros tas katá philosophían epistémas), devido ao fato de que,
‘se estivermos em condição de desenvolver uma aporia em ambas as direções
(pros amphótera diaporesai), distinguiremos mais facilmente em cada uma o
verdadeiro e o falso’ (Tópicos I 1, 100 a 34-36). Aqui, como se vê, a
retórica e a dialética não apenas ensinam, respectivamente, a persuadir e a
argumentar, mas também fazem ver àquele que as usa ‘como são as coisas’,
isto é, ‘o verdadeiro e o falso’, o que é, indubitavelmente, uma utilidade
cognitiva, ou seja, científica. Aliás, ele mesmo diz que esta é a utilidade
‘científica’ ou ‘filosófica’ (pros tas katá philosophían epistémas) da
dialética. Ainda por esse caminho, portanto, a analogia estrutural entre
retórica e dialética é estendida, por meio desta última, à filosofia.
Em quarto lugar, ela é útil porque saber usar justamente ‘tal
capacidade de fazer discursos’ (toiáute dynamis ton logon) pode ser
extremamente proveitoso, enquanto saber usá-la injustamente pode ser
extremamente danoso, o que é próprio dos bens mais úteis, como o vigor, a
saúde, a riqueza e a estratégia (apenas que a virtude não admite outro uso,
apenas o justo) (1355 a 38-b 7). Aqui a analogia com a quarta utilidade da
dialética — conduzir os princípios de todas as ciências — é mesmo evidente,
mas talvez consista no fato de que ambas, a retórica e a dialética, sabem
levar ao que é máximo, o máximo do bem e do mal a primeira, o máximo do
conhecimento, isto é, o dos princípios, a segunda. A ambigüidade da
retórica, diga-se, é típica de todas as ‘potências racionais’, que são
todas potências dos contrários, das quais fazem parte as artes e as
ciências, por exemplo a medicina, que sabe curar, mas sabe também envenenar
(cf. Metafísica IX 2), o que constitui uma analogia estrutural posterior
entre a retórica e a ciência em geral.
Enfim, a última prova de analogia entre a retórica e filosofia,
sempre mediada pela dialética, segue-se da distinção entre capacidade e
escolha. A passagem a respeito é de tal interesse que merece ser traduzida
integralmente.
Além disso — diz Aristóteles — [é claro] que é próprio desta
[capacidade] distinguir seja o persuasivo (to pithanón), seja o
persuasivo aparente (to phainómenon pithanón), como também no caso da
dialética [distinguir] seja o silogismo, seja o silogismo aparente;
com efeito, a sofística [consiste] não na capacidade (dynamis), mas
na escolha (prohaíresis), salvo aqui um será retor pela ciência e o
outro pela escolha, enquanto lá um, pela escolha, será sofista, e
46
No âmbito da razão prática, a epokhé não pode
levar à inércia, as argumentações, mesmo não tendo a pretensão
de ser sustentadas por premissas verdadeiras, devem levar a
uma ação determinada, conforme aduz Oswaldo PORCHAT Pereira:
“
Ora, na vida comum, os homens todos argumentam
sempre, em verdade o fazem a cada passo. A argumentação
subordina-se com grande freqüência às necessidades da
ação e serve aos fins práticos da vida; ela serve aos
propósitos do diálogo e comunicação entre os homens; ela
contribui para induzir o interlocutor à ação que dele
esperamos, ou para explicar-lhe nossos pontos de vista,
ou para levá-lo eventualmente a compartilhá-los.
(...)
... Num mundo filosoficamente não-interpretado,
onde a ameaça da Verdade não paira sobre o horizonte, a
argumentação desempenha funções importantes e tem um
lugar privilegiado.
A
argumentação,
sob
este
prisma
fenomênico,
confessa tranqüilamente sua relatividade, que não é
estorvo para os fins não-dogmáticos que persegue. (...)
E a argumentação toda é sempre relativa a uma visão de
mundo
relativamente
comum
aos
interlocutores,
que
fornece pano de fundo e horizonte, mas a base também
outro será dialético não pela escolha, mas pela capacidade (1355 b
1521).
Isso significa que quem possui a capacidade de distinguir seja o
silogismo seja o silogismo aparente é dialético, e quem faz a escolha de
usar o silogismo aparente no lugar do autêntico não é dialético, mas
sofista; ao contrário, quem possui a capacidade de distinguir seja o
persuasivo seja o persuasivo aparente é retor, mas o é também aquele que
faz escolha de usar o persuasivo aparente no lugar do autêntico. Denominase retor, em suma, tanto o análogo do dialético como o análogo do sofista.
Com isso, a analogia entre retórica e dialética, que consiste na capacidade
de distinguir o autêntico do aparente, é confirmada, com a diferença de
que, em relação à dialética, a escolha de usar o aparente toma o nome de
sofística, enquanto em relação à retórica a mesma escolha toma o nome de
retórica. Em outras palavras, enquanto a dialética, do ponto de vista
moral, é apenas ‘boa’, a retórica pode ser tanto ‘boa’ como ‘má’.
Essa distinção entre o persuasivo autêntico e o persuasivo aparente é
perfeitamente paralela àquela entre o silogismo e o silogismo aparente
feita no início dos Tópicos, precisamente onde Aristóteles distingue do
silogismo demonstrativo, que parte de premissas verdadeiras e primeiras, e
do silogismo dialético, que parte de éndoxa, o silogismo erístico ou
sofístico, que parte de éndoxa aparentes ou é um silogismo aparente, isto
é, um silogismo que parece concluir mas na realidade não conclui, um
silogismo incorreto (100 a 25-101 4)” (BERTI, Enrico. As razões de
aristóteles, p. 173-176).
47
para a construção de seu diálogo: é sobre essa base que
um consenso relativo sobre as premissas pode ter lugar,
é contra esse pano de fundo que as divergências naturais
e inevitáveis na descrição dos fenômenos da experiência
comum são suscetíveis de uma eventual conciliação...”56
Nessa
ótica,
em
que
o
que
se
busca
é
o
consenso, a argumentação “...deixa de procurar a verdade como
condição de consenso para procurar o consenso como condição de
‘verdade’”.57
No âmbito jurídico, sem entrar nesse momento na
questão
dos
limites
externos
à
argumentação
jurídica58,
a
atitude passiva decorrente da epokhé não se sustenta59, uma vez
que o jurista não pode suspender o juízo de forma indefinida:
“
Ao expor diversas teorias referentes a um problema
jurídico qualquer, o jurista não se limita a levantar
possibilidades e, em certas circunstâncias, suspender o
juízo, mas é forçado a realizar, por vezes, uma
verdadeira decisão ou opção decisória. Isso porque sua
intenção não é apenas conhecer, mas conhecer tendo em
vista as condições de aplicabilidade da norma enquanto
modelo de comportamento obrigatório.”60
56
PEREIRA, Oswaldo Porchat. Vida comum e ceticismo, p. 239-241.
FERRAZ JR., Tercio Sampaio. Direito, retórica e comunicação, p.168.
58
Como por exemplo a existência de normas que devem ser tomadas como
premissas verdadeiras e a possibilidade do uso da força para a garantia de
aplicação, pelo poder, daquelas normas.
59
A não ser como método processual, em que se suspende provisoriamente o
juízo — não indefinidamente como pretende o ceticismo no que pertine a
questões meramente teóricas — a fim de que as partes em litígio possam
produzir suas provas perante um terceiro (o juiz) que deverá dirimir o
problema através de uma decisão. Com efeito, assim afirma Tercio Sampaio
FERRAZ JR.: “...o discurso judicial não pretende conduzir as partes,
incondicionalmente, a um consenso real, a uma harmonia sobre o Direito e o
não-Direito, mas criar condições para que as partes possam suportar a
pressão social, obrigando-as a discutir outras questões que não as
‘formais’ de Direito, especializando, assim, a sua insatisfação” (FERRAZ
JR., T. S. Obra citada, p. 84-85).
60
FERRAZ JR., T. S. Obra citada, p. 150.
57
48
Isso
se
deve,
em
grande
medida,
porque
no
direito o que se pretende é resolver problemas visando uma
certa pacificação da sociedade61, que de certa forma é obtida a
partir da idéia de segurança jurídica, a qual na maioria dos
casos é preferível em relação à verdade, resultando que “...a
finalidade
imediata
da
decisão
está
na
absorção
de
insegurança”62, muito mais que na busca da verdade.63
Posto o problema da crise enfrentada pela razão
no século XX, bem como a questão do relativismo dos céticos e
dos pragmáticos em contraposição às necessidades de escolha —
problema
que,
jurídico
—
evidentemente,
resta
saber
se
também
há
alguma
se
coloca
no
possibilidade
âmbito
de
se
utilizar a razão na tarefa de escolher, sem que para isso seja
necessário o recurso a alguma forma de fundamentacionismo, por
um lado, ou a admissão da total arbitrariedade, por outro.
Antecipando uma hipótese, talvez a formulação
de uma teoria geral da argumentação jurídica seja um grande
61
“A paz é uma condição na qual não há o uso da força. Nesse sentido da
palavra, o Direito assegura paz apenas relativa, não absoluta, na medida em
que priva os indivíduos do direito de empregar a força, mas reserva-o à
comunidade” (KELSEN, Hans. Teoria geral do direito e do estado, p. 31).
62
FERRAZ JR., T. S. Obra citada, p. 43.
63
“Essa peculiaridade, em oposição a outros meios de solução de conflitos
(sociais, políticos, religiosos etc.), revela-se na sua capacidade de
terminá-los e não apenas de solucioná-los. Vimos, porém, que decisões não
eliminam conflitos no sentido de que a questão dúbia jamais perde esse seu
caráter. Que significa, pois, a afirmação de que as normas terminam
conflitos? Isso significa, simplesmente, que a norma (a lei, a norma
consuetudinária, a decisão do juiz etc.) impede a continuação de um
conflito: ela não o termina por meio de uma solução, mas o soluciona,
pondo-lhe um fim” (FERRAZ JR., T. S. Obra citada, p. 64-65).
49
instrumento de auxílio (no âmbito jurídico, é claro) para a
resposta a esse problema. Mas antes de chegarmos a esse ponto,
passemos
a
uma
descrição
das
formuladas nos últimos tempos.
principais
teorias
jurídicas
50
2. A FORMAÇÃO DO POSITIVISMO JURÍDICO CONTEMPORÂNEO
“Não há direito natural: esse termo é
apenas uma antiga tolice bem digna do
promotor público que me deu caça
outro dia, e cujo avô enriqueceu com
uma confiscação de Luís XIV. Não há
direito senão quando há uma lei que
proíbe fazer tal coisa, sob pena de
punição. Antes da lei, só há de
natural a força do leão, ou a
necessidade da criatura que tem fome,
que tem frio, a necessidade, numa
palavra...”
Stendhal
“Se, por um lado, a visão científica
conquistou o domínio no modo de ver a
natureza, por outro nas questões
sociais,
morais
e
jurídicas
permanecemos
encalhados
num
persistente infantilismo. A filosofia
do direito natural constitui um dos
seus produtos.”
Alf Ross
2.1 Direito e Justiça
No capítulo anterior foi traçado um panorama
geral
dos
embates
travados
entre
aqueles
que
julgam
ser
possível encontrar a verdade a partir da razão e aqueles que
reconhecem na razão um caráter limitado e que, por isso mesmo,
criticam os fundamentacionistas a partir de um ponto de vista
cético.64
64
Como visto, a oposição profunda surgida desse embate, talvez uma das mais
irredutíveis da cultura ocidental, teve seu nascedouro na antigüidade, com
a oposição entre a postura do filósofo e a postura do sofista, “...em que
ao primeiro é garantido um privilegiado acesso ao reino da verdade enquanto
o segundo é remetido para o domínio, ontologicamente desvalorizado, da
utilidade” (CARRILHO, M. M. Jogos de racionalidade, p. 11).
51
Esse debate não tem sido apenas um privilégio
da
filosofia
matemáticas
e
e,
mais
recentemente,
naturais;
pois
também
das
as
ciências
questões
físicas,
jurídicas
podem ali ser inseridas. Mais que isso, pode-se afirmar que as
principais teorias jurídicas têm em sua base o modo pelo qual
cada teórico se posiciona naquela controvérsia.
Das
várias
discussões
existentes
quanto
aos
fundamentos do direito, cremos que a maior delas segue sendo a
das possibilidades ou não de se promover, através do direito,
a justiça, ou seja, a idéia do direito como instrumento (meio)
para a realização do valor65 do justo.
Mas o que é, afinal, a justiça? Também aqui
aquele debate se coloca, sendo que talvez nenhum outro tema
tenha ocupado tanto a filosofia do direito como as relações
entre o direito e a moral, ou, num sentido mais amplo, as
relações
entre
o
direito
como
é
(o
direito
positivo)
e
o
direito como deveria ser segundo os postulados da moral e da
justiça (o direito natural ou racional).66
65
Não se está aqui tratando a justiça em sentido formal, mas sim como uma
questão moral.
66
Veja-se por exemplo, a série de questões que Miguel REALE propõe acerca
do problema da justiça: “Por que o Direito obriga? Quais as razões pelas
quais nós, que nos temos em conta de seres livres, somos obrigados a nos
subordinar a leis que não foram postas por nossa inteligência e por nossa
vontade? É lícito contrariar as leis injustas? Qual o problema que se põe
para o juiz ou para o estadista, quando uma lei positiva se revela, de
maneira impressionante, contrária aos ditames do justo? Qual o fundamento
do Direito na sua universalidade? Repousa ele apenas no fundamento empírico
da força? Reduz-se o Direito ao valor utilitário do êxito? Brotará a
52
A
jurídicas,
séculos
da
o
disputa
positivismo
história
do
entre
e
o
essas
duas
jusnaturalismo,
direito
e,
apesar
concepções
cobre
de
vários
amiúde
ser
declarada cancelada, revive em cada época sob o manto de novas
fórmulas.
Com efeito, a teoria de Hans KELSEN contra o
direito natural parecia ter interrompido o velho debate para
sempre. KELSEN, através de uma bem sucedida demonstração da
impossibilidade
da
existência
de
outras
normas
jurídicas
externas à correspondente ordem legal, desloca o problema da
justiça e do direito natural para a política, ou seja, essas
questões deixariam de ser um problema jurídico.67
Para tanto, após enquadrar o direito natural
como uma “...doutrina [que] sustenta que há um ordenamento das
relações humanas diferente do Direito positivo, mais elevado e
absolutamente válido e justo, pois emana da natureza, da razão
humana ou da vontade de Deus”68, chegando mesmo a denunciar a
estrutura jurídica, inexoravelmente, dos processos técnicos de produção
econômica, ou representa algo capaz de se contrapor, muitas vezes, às
exigências cegas da técnica? Ou o Direito terá fundamento contratual?”
(REALE, Miguel. Filosofia do direito, p. 308).
67
“O positivismo jurídico, oposto a qualquer teoria do direito natural,
associado ao positivismo filosófico, negador de qualquer filosofia dos
valores, foi a ideologia democrática dominante no Ocidente até o fim da
Segunda Guerra Mundial. Elimina do direito qualquer referência à idéia de
justiça e, da filosofia, qualquer referência a valores, procurando modelar
tanto o direito como a filosofia pelas ciências, consideradas objetivas e
impessoais e das quais compete eliminar tudo o que é subjetivo, portanto
arbitrário” (PERELMAN, Chaïm. Lógica jurídica, p. 91).
68
KELSEN, Hans. Teoría geral do direito e do estado, p. 12.
53
relatividade69
platônico
a
dessa
doutrina70,
distinção
entre
KELSEN
direito
acusa
positivo
de
e
dualismo
direito
natural:
“
A doutrina do Direito natural é caracterizada por
um dualismo fundamental entre Direito positivo e Direito
natural. Acima do imperfeito Direito positivo existe um
perfeito — porque absolutamente justo — Direito natural;
e o Direito positivo é justificado apenas na medida em
que corresponda ao Direito natural. Nesse aspecto, o
dualismo entre Direito positivo e Direito natural, tão
característico da doutrina do Direito natural, lembra o
dualismo metafísico da realidade e a idéia platônica.”71
No entanto, ao contrário das leis da natureza
que são regidas pelo princípio da causalidade (o mundo do
ser), as normas jurídicas não têm seu cumprimento vinculado a
69
Norberto BOBBIO, por exemplo, define o direito natural como sendo a
doutrina que “...considera poder estabelecer o que é justo e o que é
injusto de modo universalmente válido”, questionando logo em seguida as
possibilidades dessa pretensão: “Mas, tem base esta pretensão? A julgar
pelos desacordos entre os diferentes seguidores do direito natural sobre o
que se deve considerar justo ou injusto, a julgar pelo fato de que o que
era considerado natural para alguns não o era para outros, dever-se-ia
responder que não” (BOBBIO, Norberto. Teoría general del derecho, p. 28).
70
“Declarar a propriedade como um direito natural, porque é o único que
corresponde à natureza, é uma tentativa de tornar absoluto um princípio
especial que, historicamente, em certo tempo e sob certas condições
políticas e econômicas, tornou-se Direito positivo.
... Por esse método sempre é possível sustentar e, pelo menos em
aparência, provar postulados opostos. Se os princípios do Direito natural
são apresentados para aprovar ou desaprovar uma ordem jurídica positiva, em
qualquer dos casos, sua validade repousa em julgamentos de valor que não
possuem qualquer objetividade. Uma análise crítica sempre demonstra que
eles são apenas a expressão de certos interesses de grupo ou classe. Dessa
maneira, a doutrina do Direito natural é às vezes conservadora, às vezes
reformista ou revolucionária em caráter. Ela ou justifica o Direito
positivo proclamando sua concordância com a ordem natural, racional ou
divina, uma concordância afirmada, mas não provada; ou põe em questão a
validade do Direito positivo sustentando que ele se encontra em contradição
com algum dos pressupostos absolutos. A doutrina revolucionária do Direito
natural, assim como a conservadora, preocupa-se não com a cognição do
Direito positivo, da realidade jurídica, mas com sua defesa ou ataque, com
uma tarefa política, não científica” (KELSEN, Hans. Obra citada, p. 16-17).
71
KELSEN, Hans. Obra citada, p. 17.
54
determinações fatais e necessárias, vez que estas se regem
pelo princípio da imputação (o mundo do dever-ser).72
Se houvessem normas causais (necessárias) para
determinar a conduta humana, as normas de direito positivo
seriam supérfluas:
“
Caso
se
pudesse
ter
conhecimento
da
ordem
absolutamente justa, cuja existência é postulada pela
doutrina do Direito natural, o Direito positivo seria
supérfluo, ou melhor, desprovido de sentido. Confrontada
com a existência de uma ordenação justa da sociedade,
inteligível em termos de natureza, razão ou vontade
divina, a atividade dos legisladores equivaleria a uma
tola tentativa de criar iluminação artificial em pleno
sol.”73
A separação entre direito e moral decorrente da
relatividade
desta
última
é
um
traço
característico
do
positivismo jurídico lapidado no século XX. Gustav RADBRUCH,
que
chegou
a
ser
um
dos
mais
ferrenhos
defensores
do
positivismo jurídico durante a década de 193074, dava clara
72
Mais adiante voltaremos a tratar deste assunto.
KELSEN, Hans. Obra citada, p. 18-19. KELSEN deu tanta importância ao
problema da justiça que, além de inúmeros artigos, escreveu várias obras
sobre o assunto, tais como A Ilusão da Justiça, O que é Justiça, O Problema
da Justiça (na edição italiana dessa obra há um excelente ensaio de Mário
LOSANO em que são descritas as principais críticas formuladas contra a
Teoria Pura do Direito de KELSEN), além de um estudo que foi publicado como
apêndice à 2ª edição (1960) alemã da Teoria Pura do Direito (Reine
Rechtslehre) publicado em separado, na língua portuguesa, com o título A
Justiça e o Direito Natural.
74
Depois da 2ª Guerra Mundial, diante das conseqüências funestas que a
idéia de primazia da lei sobre a moral acarretou, RADBRUCH se converte à
doutrina do direito natural, conforme salientado por Norberto BOBBIO: “Uma
formulação recente e exemplar dessa doutrina é oferecida por GUSTAV
RADBRUCH na seguinte passagem: ‘Quando uma lei nega conscientemente a
vontade de justiça, por exemplo, quando concede arbitrariamente ou rechaça
os direitos do homem, adoece de validez (...) os juristas também devem
levar em conta o valor para negar-lhe o caráter jurídico’, e em outra
parte: ‘Podem dar-se leis de conteúdo tão injusto e prejudicial que se faça
73
55
preferência ao direito em caso de conflito com a justiça,
“...pois é mais importante a existência da ordem jurídica que
a sua justiça, já que a justiça é a segunda grande missão do
direito, sendo a primeira, a segurança jurídica, a paz”.75
No entanto, a barbárie do nacional-socialismo,
feita em nome da lei, levou a um sério questionamento da tese
positivista
por
ocasião
do
restabelecimento
da
ordem
necessário negar-lhes seu caráter jurídico (...) posto que há princípios
jurídicos fundamentais que são mais fortes que qualquer normatividade
jurídica até o ponto que uma lei que os contradiga venha a carecer de
validez’; e mais ainda, ‘quando a justiça não é aplicada, quando a
igualdade, que constitui o núcleo da justiça, é conscientemente negada
pelas normas do direito positivo, a lei não somente é direito injusto mas
sim, em geral, carece de juridicidade’ (Rechtsphilosophie, 4ª ed., 1950,
págs. 336-353)” (BOBBIO, Norberto. Obra citada, p. 27-28).
75
RABDRUCH, Gustav. Introducción a la ciencia del derecho, p. 34. Vale
dizer que nesse período RADBRUCH via no relativismo a razão mesma de ser do
direito, conforme se depreende das seguintes passagens da sua obra que
talvez mais influências tenha causado nos juristas, a qual, aliás, tem
vários pontos convergentes com o pensamento de KELSEN: “O relativismo não é
um simples e puro agnosticismo, é algo mais: uma fonte fecunda de
conhecimento objetivo. Sobretudo, é o relativismo a única base possível
para a força vinculante do direito positivo. Se existir um direito natural,
uma verdade jurídica unívoca, reconhecível e comprovável, não seria
possível ver de nenhuma maneira a razão da força vinculante do direito
positivo, que apareceria em contradição com essa verdade absoluta. Deveria
então desaparecer como o erro desmascarado ante à verdade desvelada. A
força obrigatória do direito positivo somente pode fundar-se precisamente
no fato de que o direito justo não é nem reconhecível nem demonstrável.
Porque um juízo sobre a verdade ou falsidade das diferentes convicções
jurídicas é impossível; posto que, de outra parte, se se requer um direito
único para todos os sujeitos de direito, o legislador se vê desafiado à
necessidade de cortar em um golpe o nó górdio que a ciência não consegue
desatar. Posto que é impossível verificar o que é justo, deve-se
estabelecer o que deve ser jurídico. Em vez de um ato de verdade, que é
impossível, é necessário um ato de autoridade. O relativismo desemboca no
positivismo.
...a decisão do legislador não é um ato de verdade, mas sim um ato de
vontade, de autoridade. Este pode conferir a uma determinada opinião força
obrigatória, porém nunca força convincente. (...) O relativismo desemboca
no liberalismo.
(...)
O relativismo é a tolerância geral. Somente não é tolerância frente à
intolerância” (RADBRUCH, Gustav. Relativismo y derecho, p. 3-8).
56
democrática e do Estado de Direito em face da derrotada do
fascismo.76
A idéia Kelseniana de que toda a norma legal é
direito,
sem
consideração
de
seu
conteúdo77,
foi
duramente
combatida no pós-guerra, tendo sido atacada como responsável
pela legitimação da ditadura.
Essa
aquilo
76
que
a
teoria
circunstância
de
KELSEN
trouxe
tinha
novamente
posto
em
à
tona
estado
de
Com relação a essa reação contra as teses positivistas, ver a seguinte
obra de François RIGAUX, em que o autor trata dos mais variados problemas
de interpretação e aplicação das leis típicos do século XX: RIGAUX,
François. A lei dos juízes. Tradução de Edmir Missio, São Paulo: Martins
Fontes, 2000.
77
Para KELSEN a única possibilidade de se falar objetivamente em justiça
seria equiparando justiça a legalidade: “Nesse sentido, a ‘justiça’
significa legalidade”, retirando-se a partir daí a regra formal da justiça,
segundo a qual é “‘justo’ que uma regra geral seja aplicada em todos os
casos em que, de acordo com seu conteúdo, esta regra deva ser aplicada. É
‘injusto’ que ela seja aplicada em um caso, mas não em outro caso similar.
E isso parece ‘injusto’ sem levar em conta o valor da regra geral em si,
sendo a aplicação desta o ponto em questão aqui. A justiça, no sentido de
legalidade, é uma qualidade que se relaciona não com o conteúdo de uma
ordem jurídica, mas com sua aplicação” (KELSEN, Hans. Obra citada, p. 20).
Veja-se que o que se denomina igualdade na lei não significa outra coisa
senão a aplicação da lei em conformidade consigo mesma, quer dizer,
“...aplicação correta, qualquer que seja o conteúdo dessa lei. A igualdade
na lei não é, pois, igualdade, senão conformidade à norma” (ABELLÁN, Marina
Gascón. La técnica del precedente y la argumentación racional, p. 57). Essa
interpretação do pensamento de KELSEN também é dada por Celso Antônio
BANDEIRA DE MELLO: ”Com efeito, Kelsen bem demonstrou que a igualdade
perante a lei não possuiria significação peculiar alguma. O sentido
relevante do princípio isonômico está na obrigação da igualdade na própria
lei, vale dizer, entendida como limite para a lei. Por isso averbou o que
segue: ‘Colocar (o problema) da igualdade perante a lei, é colocar
simplesmente que os órgãos de aplicação do direito não têm o direito de
tomar em consideração senão as distinções feitas nas próprias leis a
aplicar, o que se reduz a afirmar simplesmente o princípio da regularidade
da aplicação do direito em geral; princípio que é imanente a toda ordem
jurídica e o princípio da legalidade da aplicação das leis, que é imanente
a todas as leis — em outros termos, o princípio de que as normas devem ser
aplicadas conforme as normas.’ (Teoria Pura do Direito, tradução francesa
da 2a edição alemã, por Ch. Einsenmann, Paris, Dalloz, 1962, p.190)”
(MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Conteúdo jurídico do princípio da
igualdade, nota 2, p. 10).
57
latência:78
as
relações
entre
moral
e
direito,
e
o
comprometimento deste com a realização da justiça.
A saída daquele estado de latência provoca uma
efervescência
no
debate
jurídico,
dando
fôlego
ao
ressurgimento de algumas formas de jusnaturalismo79, exigindo a
formulação de alguns conceitos por aqueles que se mantiveram
no
78
positivismo80,
permitindo,
enfim,
o
surgimento
de
novas
Não se pode afirmar, no entanto, que essas preocupações haviam se
extinguido durante a primeira metade do século XX. No Brasil, por exemplo,
mesmo na época de maior esplendor da teoria pura do direito, Miguel REALE
não admitia o que chamou de divórcio entre direito e justiça: ”...não, a
norma jurídica é a indicação de um caminho, porém, para percorrer um
caminho, devo partir de determinado ponto e ser guiado por certa direção: o
ponto de partida da norma é o fato, rumo a determinado valor. Desse modo,
pela primeira vez, em meu livro ‘Fundamentos do Direito’ eu comecei a
elaborar a tridimensionalidade. Direito não é só norma, como quer Kelsen,
Direito não é só fato como rezam os marxistas ou os economistas do Direito,
porque Direito não é economia. Direito não é produção econômica, mas
envolve a produção econômica e nela interfere; o Direito não é
principalmente valor, como pensam os adeptos do Direito Natural tomista,
por exemplo, porque o Direito ao mesmo tempo é norma, é fato e é valor”
(REALE, Miguel. Teoria tridimensional do direito, p. 118-119).
79
Como, por exemplo, a nova postura de RADBRUCH, anteriormente citada; ou a
retomada do pensamento patrístico segundo o qual uma lei injusta não é lei:
“non videtur esse lex quae non fuerit” — Santo AGOSTINHO I, De Libero
Arbitrio, 5; Santo TOMÁS DE AQUINO, Summa Theologica, Qual, XCX, ARTS. 2,
4, citados por HART, Herbert. O conceito de direito, nota 1, p. 12), cuja
aplicação se faz sentir, por exemplo, em algumas teorias de uso alternativo
do direito. Ainda quanto a esse renascimento do direito natural, vale
mencionar a seguinte constatação de Alf ROSS: “...não é de se surpreender
que o direito natural tenha voltado a prosperar em princípios do século XX
e que tenha, desde então, se expandido em tal medida que é comum falar-se
de um renascimento do direito natural. Os abalos tremendos da política e da
economia que caracterizam este século [século XX] têm fomentado a ânsia de
descobrir algo absoluto num mundo em dissolução e mergulhado no caos”
(ROSS, Alf. Direito e justiça, p. 296).
80
Norberto BOBBIO e Herbert HART são bons exemplos de autores que podem
aqui ser enquadrados. Veja-se, por exemplo, a seguinte passagem em que
BOBBIO admite ao intérprete a possibilidade de considerar o valor do justo,
em alguns casos, quando da aplicação da norma: “A jurisprudência, por outro
lado, enquanto coloca como objeto próprio proposições normativas já dadas
(resultado elas mesmas de um estudo empírico precedente que o jurista deve
respeitar até o limite do absurdo manifesto ou da injustiça escandalosa),
consta exclusivamente da parte crítica própria de todo sistema científico,
quer dizer, da construção de uma linguagem rigorosa com fins de plena
comunicabilidade das experiências fixadas de antemão” (BOBBIO, Norberto. El
58
propostas81
que
têm
demonstrado,
mais
do
que
nunca,
a
importância do debate filosófico na atualidade, debate este
que
não
é
e
não
pode
ser
meramente
acadêmico
no
sentido
pejorativo do termo, mas que está comprometido a encontrar
soluções
—
ou
pelo
menos
a
questionar
com
a
radicalidade
própria da filosofia os modelos jurídicos postos — para que o
direito possa se aproximar da justiça.
objeto de la jurisprudencia y la jurisprudencia como análisis del lenguaje.
In Contribuición a la Teoría del Derecho, p. 181-184).
81
Como, por exemplo, o que se tem denominado por alguns como o póspositivismo de DWORKIN; o agir comunicativo de HABERMAS; a nova retórica de
PERELMAN.
59
2.2 Positivismo Jurídico no Século XIX
No
item
anterior
foi
mencionada
a
tentativa
frustrada de separação entre direito e moral. A escolha pela
apresentação da teoria de KELSEN no início deste capítulo — ao
invés de seguir uma ordem cronológica das várias teorias que
serão mencionadas — está longe de ser casual.
A opção se deve ao fato de considerarmos a
teoria de KELSEN como sendo um marco (um ponto obrigatório de
referência)
no
pensamento
jurídico
ocidental,
para
onde
convergem tanto os jusnaturalismos quanto os positivismos que
o precederam e de onde partem as novas propostas, pois ainda
que estas lhe sejam totalmente opostas, o mesmo não pode ser,
e nem tem sido, negligenciado.
Do ponto de vista kelseniano, direito e moral
pertencem a dois sistemas normativos distintos, separação essa
que já está presente na obra de Immanuel KANT. Com efeito,
para KANT a legalidade se constitui pela simples conformidade
da ação com a legislação externa. É dentro dessa definição de
legalidade que se fundamenta o direito. Este se refere ao
mundo
dos
deveres
externos,
impostos
por
uma
legislação
jurídica, em que não se exige que a idéia interna do dever
(moral)
seja
considera
as
o
motivo
relações
determinante
externas
de
da
uma
vontade.
pessoa
O
no
direito
que
diz
respeito aos efeitos que venham a causar no mundo exterior
60
(jurídico). É o conjunto de condições nas quais a vontade de
um concorda com a de outro segundo uma lei de liberdade. Daí
extrai-se o princípio geral de direito, a saber: “Aja de tal
modo que o livre exercício do teu arbítrio possa estar em
conformidade
com
a
liberdade
de
todos
segundo
uma
lei
universal”.82 Então, toda ação que não é um obstáculo ao acordo
do arbítrio de todos com a liberdade de todos segundo uma lei
universal é considerada justa.
Assim, o direito surge como “...o conjunto das
condições através das quais o arbítrio de um pode concordar
com
o
arbítrio
de
outrem,
segundo
uma
lei
universal
de
liberdade”, em que é “...considerada justa toda a ação que por
si (...) não é um obstáculo à conformidade da liberdade do
arbítrio de todos com a liberdade de cada um segundo leis
universais”.83
A coação é uma característica inseparável do
direito, devendo eliminar a resistência e o obstáculo opostos
à liberdade de todos. Por isso a coação é necessária, pois
estabelece o acordo das liberdades segundo a lei universal.
Enquanto
indivíduo
(a
moral
é
a
moral
autônoma),
é
o
uma
coação
direito
interna
ao
encontra-se
na
legalidade exterior das ações com a força coativa da lei (o
82
KANT, Immanuel. Fundamentación de la metafísica de las costumbres, p. 72.
61
direito é heterônomo). Trata-se da regulamentação coativa das
liberdades externas a fim de assegurar a ordem social, sem
qualquer intenção moral, pois o direito deve estar separado
desta (que diz respeito aos deveres internos). O direito puro
se obtém do mundo exterior, assim como a moral pura se obtém
do foro íntimo:
“
Numa acepção puramente kantiana, a heteronomia só
pode ser determinada pela oposição à noção de autonomia,
qualidade que a vontade tem de ser lei para si mesma. A
vontade jurídica é heterônoma porque busca a lei que
deve determiná-la num outro lugar: na vontade anônima
dos costumes ou na vontade institucionalizada dos órgãos
estatais. No âmbito legal obedecemos a regras que foram
postas por outros ou pela sociedade, ou seja, não é pelo
conteúdo que o Direito se distingue da moral, mas pela
maneira de se tornar obrigatório. É pela diversidade da
legislação que une um e outro impulso à lei, que
determinamos se estamos no âmbito da legalidade ou da
moralidade.
O
Direito
como
liberdade
externa
gera
a
responsabilidade frente aos outros, que podem exigir de
nós o cumprimento das obrigações.”84
Como conseqüência dessa concepção de direito
puro teremos o positivismo jurídico, que é uma convenção de
direito fundada na força e não na consciência ética.
O
direito
pode
ser
subdividido
em
direito
natural e direito positivo (adquirido), donde o primeiro é
inato
a
cada
indivíduo
e
o
segundo
provém
da
vontade
do
legislador. Para KANT o único direito natural é a liberdade,
83
84
ZANNONI, Eduardo A. Crisis de la razón jurídica, p. 32-33.
BOITEUX, Elza Antonia Pereira Cunha. O significado perdido da função de
julgar, p. 31-32.
62
que tem seus limites até o ponto de interferir na liberdade
dos
outros
(deve-se
entender
a
liberdade
como
gênero
que
engloba a igualdade, a livre expressão das idéias, etc.).
Há no pensamento de KANT uma forte relação com
o
pensamento
de
ROUSSEAU
no
que
diz
respeito
à
teoria
do
contrato social.
O direito é entendido como o conjunto de leis
fornecido a um povo, exigida, para tanto, uma promulgação para
que se produza um estado jurídico. Essa promulgação nasce do
seguinte postulado: Tu deves sair do estado de natureza para,
juntamente
com
todos
os
outros
e
dentro
de
relações
de
coexistência necessária, entrar em um estado de direito, quer
dizer, numa justiça distributiva (com efeito erga omnes).
O homem deve sair do estado de natureza (em que
reina a violência) a fim de constituir o estado civil, ou
seja, o estado de direito em que todos os homens abdicam de
parte de suas liberdades para submeterem-se a uma imposição
exterior publicamente decretada. É nesse contexto que nasce a
sociedade
civil,
formalmente
constituída
em
um
Estado
de
Direito.
Assim como ROUSSEAU, KANT aceita a constituição
da sociedade civil como o contrato primitivo segundo o qual
todos cedem sua liberdade exterior para recobrá-la novamente
como
membros
de
uma
república.
“A
simples
consciência
das
63
vantagens que o estado acarreta estimula o ato de renúncia da
liberdade selvagem: o que se perde é logo compensado pela
aquisição da liberdade civil.”85
A
distinção
partir
tripartida
desses
do
pressupostos,
poder
elaborada
KANT
por
aceita
a
MONTESQUIEU;
porém, uma vez constituído o poder soberano em sua tríplice
forma,
este
deve
ser
irrepreensível,
irresistível
e
sem
apelação. O povo deve obedecer sempre o poder estabelecido,
não podendo julgar ou contestar sua validade qualquer que seja
a sua origem (não revogando o seu mandato e nem resistindo
ativamente).
Qualquer
mudança
na
constituição
pública,
se
necessária, deve ser realizada pelo soberano e não pelo povo.
É justamente nesse ponto que KANT se afasta do
liberalismo
político
rousseauniano,
ou
seja,
negando
a
rebelião do povo contra o soberano e condenando as revoluções
inglesa
e
soberanos,
francesa
(que
respectivamente).
processaram
Deve
e
executaram
existir
uma
seus
obediência
incondicional às leis do Estado.
A
ótica
normativa
que
afirma
que
direito
e
moral são sistemas distintos, a exemplo do pensamento kantiano
acima mencionado, permite o enquadramento das mais variadas
teorias jurídicas nas três seguintes posições: a) predomínio
85
GIANNOTTI, José Arthur. Kant e o espaço da história universal, p. 125.
64
da moral sobre o direito86; b) prevalência do direito sobre a
moral87; e c) tentativas de buscar um suporte ao direito, por
fora do próprio ordenamento jurídico, sem ter que recorrer ao
direito natural.88
A
concepção
de
PERELMAN
divide
as
várias
escolas jurídicas, enquadrando-as em períodos distintos, de
forma semelhante à divisão acima:
“
Podemos distinguir, a este respeito, três grandes
períodos, o da escola da exegese, que termina por volta
de 1880, o segundo o da escola funcional e sociológica,
que vai até 1945, e o terceiro, que, influenciado pelos
excessos do regime nacional-socialista e pelo processo
de Nuremberg, se caracteriza por uma concepção utópica
do raciocínio judiciário.”89
O ponto de vista de PERELMAN, na síntese acima,
não enquadra o pensamento que defende o predomínio da moral
sobre o direito, em que podem ser incluídas várias doutrinas
de
direito
natural.
No
entanto
cabe
situar
historicamente
algumas dessas doutrinas, já que foi justamente da ruptura com
elas e a conseqüente centralização do direito nas mãos de um
poder soberano, que faz do uso da força o seu monopólio, que
levou ao surgimento do positivismo jurídico contemporâneo.
86
Aqui podem ser inseridas as várias doutrinas de direito natural.
Aqui se enquadra o positivismo jurídico e seus desdobramentos, que
acabaram por culminar no normativismo jurídico de Hans KELSEN.
88
Aqui têm sido enquadradas teorias como as de HABERMAS, DWORKIN e
PERELMAN, se bem que o pensamento de DWORKIN pretende, em verdade, a busca
de uma moral dentro, ou seja, imanente ao sistema, aspecto que o aproxima
mais do positivismo.
89
PERELMAN, Chaïm. Lógica jurídica, p.29.
87
65
A prevalência da moral sobre o direito só é
possível
em
sociedades
que
comungam
(ou
pensam
comungar
impondo essa comunhão) de ideais comuns sobre moral e direito,
como por exemplo a ordem da Idade Média, que era unificada
pela
concepção
religiosa
cristã
da
vida.
Trata-se
aqui
da
tradição escolástica do jusnaturalismo, que tem na tradição
patrística/escolástica desde SANTO AGOSTINHO até Santo TOMÁS
DE AQUINO seus principais formuladores.
O pensamento escolástico afirmava a existência
de uma ordem natural90 que está submetida à lei eterna que
dirige todos os seus movimentos, sendo que é a razão de Deus a
criadora dessa ordem natural. Ao homem, por ser uma criatura
racional, é dado participar da lei eterna, cujo conhecimento
lhe permite formular os princípios da lei natural.91
90
Aqui não uma ordem social deduzida da razão, mas sim uma ordem natural
que a ela se impõe.
91
Alf ROSS demonstra a forma pela qual, segundo o pensamento escolástico
sobretudo de Santo Tomás de AQUINO, era possível apreender as leis
naturais: “Qual é, então, a lei que a razão seguirá a fim de guiar a
vontade para o verdadeiro bem? Em sua perfeição é a lei eterna, idêntica à
razão soberana de Deus, a sabedoria divina, que governa todos os seres
criados, que rege todos os movimentos da natureza e todas as ações. As leis
restantes extraem sua força dessa lei. Porém, a lei eterna não pode ser
captada em sua perfeição pelo ser humano. Na medida em que pode ser
apreendida pelo ser humano com o auxílio exclusivo da luz natural (razão)
chama-se direito natural. Mas isto não é o bastante para capacitar o ser
humano a alcançar seu propósito divino. E, conseqüentemente, Deus, por
revelação, concedeu ao ser humano, a título de orientação adicional, uma
participação na lei eterna: tal é a lei divina (a lei mosaica e o
Evangelho). Finalmente, há a lei humana estabelecida pelo ser humano com a
ajuda da razão e necessária para permitir a concreta aplicação daqueles
princípios básicos que estão expressos na lei divina e na lei natural”
(ROSS, A. Obra citada, p. 285).
66
Dada a concepção escolástica de que o homem tem
consciência da lei natural, direito natural é aquilo que é
justo.
É
por
isso
somente
merece
a
discerne
como
que
para
o
denominação
sendo
o
bem
jusnaturalismo
de
lei
comum.
aquilo
Assim,
as
escolástico
que
a
razão
legislações
positivas, contanto que não contrariassem as leis naturais92,
eram tidas como perfeitamente legítimas. Portanto o direito
natural não tinha pretensões de substituir o direito positivo,
mas sim de limitar, quando fosse o caso, as conseqüências
injustas de sua aplicação.
Porém,
séculos
XVII
e
XVIII,
com
o
nasce
advento
a
do
ambição
racionalismo
de
se
elaborar
nos
um
sistema de direito justo, “...uma jurisprudência universal,
inteiramente fundada em princípios racionais, independentes em
sua formulação e em sua validade do meio, tanto social quanto
cultural, que os viu nascer e daquele que deveriam reger. Um
sistema assim é que deveria ser ensinado nas Faculdades de
Direito, na esperança de que aqueles a quem caberia elaborar e
92
Assim, admite-se a existência de uma legislação positiva fruto da vontade
humana, desde que não se choque com a lei natural: lei injusta não é lei.
Esta concepção é afinada com as idéias de ARISTÓTELES, para quem a
“...justiça política é em parte natural e em parte legal; são naturais as
coisas que em todos os lugares têm a mesma força e não dependem de as
aceitarmos ou não, e é legal aquilo que a princípio pode ser determinado
indiferentemente de uma maneira ou de outra, mas depois de determinado já
não é indiferente...” (ARISTÓTELES. Ética a nicômacos, p. 103). Porém os
escolásticos já não admitiam que as leis postas pudessem ser indiferentes à
lei natural, que neste momento passa a ter a primazia.
67
promulgar as leis positivas se afastassem o menos possível do
modelo ideal que lhes era ensinado”.93
Houve,
portanto,
tentativas
de
laicizar
o
direito natural, que passava a ser concebido como um sistema
de direito puramente racional:94
“
Daí resultava a pouca importância atribuída, no
continente europeu, nas Faculdades de Direito do Antigo
Regime, ao Direito positivo, que não passava, na melhor
das hipóteses, de uma imitação imperfeita do direito
ideal e que, como a sombra do Justo, na caverna de
Platão, só podia ser uma pálida e imperfeita imitação da
idéia da própria Justiça. A idéia de que o direito
justo, da mesma forma que as leis da natureza, fosse
apenas a expressão de uma razão universal, reflexo
direto ou indireto (através da natureza criada) da razão
divina, desenvolvera-se em duas tradições opostas, ambas
de origem religiosa, a tradição racionalista e a
tradição empirista. Fossem as leis naturais e aquelas
que devem reger as relações entre os homens encontradas
a priori ou a posteriori, graças às idéias evidentes ou
graças à experiência, o papel dos homens deveria
limitar-se a descobrí-las ou registrá-las, pois toda a
93
PERELMAN, Chaïm. Lógica jurídica, p. 17.
Foi esse o ideal de GROTIUS, PUFENDORF, LEIBNIZ e CHRISTIAN WOLFF. Tal
concepção vê a possibilidade de enunciar o direito a partir de um sistema
dedutivo, sendo que em “...tal acepção diz-se que um dado ordenamento é um
sistema enquanto todas as normas jurídicas daquele ordenamento são
deriváveis de alguns princípios gerais (ditos ‘princípios gerais do
Direito’), considerados da mesma maneira que os postulados de um sistema
científico. Essa acepção muito trabalhada do termo ‘sistema’ foi referida
historicamente somente ao ordenamento do Direito natural. Uma das mais
constantes pretensões dos jusnaturalistas modernos, pertencentes à escola
racionalista, foi a de construir o Direito natural como um sistema
dedutivo. E uma vez que o exemplo clássico do sistema dedutivo era a
geometria de Euclides, a pretensão dos jusnaturalistas resolvia-se na
tentativa (verdadeiramente desesperada) de elaborar um sistema jurídico
geometrico more demonstratum. Citemos um trecho muito significativo de
Leibniz: ‘De qualquer definição podem-se tirar conseqüências seguras,
empregando as incontestáveis regras da lógica. Isso é precisamente o que se
faz construindo as ciências necessárias e demonstrativas, que não dependem
dos fatos mas unicamente da razão, como a lógica, a metafísica, a
geometria, a ciência do movimento, a Ciência do Direito, as quais não são
de modo nenhum fundadas na experiência e nos fatos, mas servem para dar a
razão dos fatos e regulá-los por antecipação: isso valeria para o Direito
ainda que não houvesse no mundo uma só lei’. ‘A Teoria do Direito faz parte
do número daquelas que não dependem de experiências, mas de definições: não
do que mostram os sentidos, mas do que demonstra a razão” (BOBBIO,
Norberto. Teoria do ordenamento jurídico, p. 77-78).
94
68
iniciativa humana neste terreno só pode levar ao erro e
à arbitrariedade. Que a principal virtude do sábio
cristão fosse a humildade, a submissão ao pensamento e à
vontade divinos, essa é uma idéia sobre a qual insistem
tanto Santo Agostinho quanto o chanceler Francis
Bacon.”95
PERELMAN
jurisprudência96
sustenta
universal
que
elaborada
contra
por
esse
várias
ideal
de
gerações
de
juristas se opuseram três teses, “...às quais estão ligados os
nomes de Hobbes, Montesquieu e Rousseau”97, a partir das quais
será desenvolvido o positivismo jurídico cuja característica é
o predomínio do direito sobre a moral. É justamente a partir
desses
pensamentos
que
vão
estar
presentes
as
idéias
contratualistas e a teoria da soberania estatal, em que o
direito positivo deve sua obrigatoriedade à imposição do poder
do Estado e não à sua concordância com um direito supostamente
anterior, no caso o direito natural.
A
doutrina
política
de
Thomas
HOBBES
não
compactua com a idéia jusnaturalista de que pode ser derivada
da razão uma jurisprudência de caráter universal, pois para
esse autor “...o direito não é a expressão da razão mas uma
manifestação da vontade do Soberano”.98
95
PERELMAN, Chaïm. Obra citada, p. 17-18.
Jurisprudência entendida aqui no seu sentido primordial, ou seja, como
ciência do direito.
97
PERELMAN, Chaïm. Obra citada, p. 18.
98
PERELMAN, Chaïm. Idem, ibidem.
96
69
Segundo BOBBIO a doutrina política de HOBBES
talvez
seja
a
teoria
mais
completa
e
conseqüente
do
positivismo jurídico.99 Para HOBBES, com efeito, não há outro
critério do justo ou do injusto senão a lei positiva, ou seja,
somente o que for ordenado pelo soberano é tido como justo,
pelo simples fato de ter sido ordenado; e só é injusto aquilo
que é proibido, só pelo fato de estar proibido.100
99
“Se quisermos encontrar uma teoria completa e conseqüente do positivismo
jurídico, devemos nos remeter à doutrina política de THOMAS HOBBES, cuja
característica fundamental, no meu entender, na verdade consiste em lhe ter
dado um golpe fatal no jusnaturalismo clássico” (BOBBIO, Norberto. Teoría
general del derecho, p. 31).
100
BOBBIO apresenta uma boa descrição dos passos que permitiram a HOBBES
chegar a uma conclusão tão radical como a acima descrita, em que inclusive
o conteúdo dos valores morais e da justiça são tidos como convencionais
(portanto contingentes) e não pré-existentes ou decorrentes da razão
(eternos e necessários), como sustentavam os jusnaturalistas: “Como chega
HOBBES a esta conclusão tão radical? HOBBES é um dedutivo e, como todos os
dedutivos, para ele o que conta é que a conclusão se desprenda
rigorosamente das premissas. (...)
Ora, o direito fundamental que assiste aos homens no estado de
natureza é o de decidir, cada um segundo seus próprios desejos e
interesses, sobre o que é justo ou injusto, o que faz com que no estado de
natureza não exista critério algum para fazer esta distinção, a não ser o
arbítrio e o poder do indivíduo. Na passagem do estado de natureza para o
estado civil, os indivíduos transferem todos os seus direitos naturais ao
soberano, inclusive o direito de decidir o que é justo ou injusto e,
portanto, desde o momento em que se constitui o estado civil, o único
critério do justo e do injusto é a vontade do soberano. Esta doutrina
hobbesiana está ligada à concepção da pura convencionalidade dos valores
morais e portanto da justiça, segundo a qual não existe o justo por
natureza, mas sim unicamente o justo de maneira convencional (também por
este
aspecto
a
doutrina
hobbesiana
é
a
antítese
da
doutrina
jusnaturalista). No estado de natureza não existe o justo nem o injusto
porque não existem convenções válidas. No estado civil o justo e o injusto
residem no acordo comum dos indivíduos de atribuírem ao soberano o poder de
decidir sobre o justo e o injusto. Portanto para HOBBES a validade de uma
norma jurídica e de sua justiça não se diferenciam, porque a justiça e a
injustiça nascem juntas com o direito positivo, ou seja, concomitantemente
com a validade. Enquanto se permanece em estado de natureza não há direito
válido, como tampouco há justiça; quando surge o Estado nasce a justiça,
mas nasce concomitantemente com o direito positivo, por isso que onde não
há direito tampouco há justiça e onde há justiça é porque há um sistema
constituído de direito positivo” (BOBBIO, Norberto. Obra citada, p. 31-32).
70
Essas conclusões decorrem da idéia de um estado
de natureza inicial, em que todos estariam a mercê de seus
próprios
instintos,
sem
que
houvessem
leis
prescrevendo
os
direitos de cada um, o que implica dizer que todos teriam
direito a todas as coisas, decorrendo daí uma guerra de todos
contra todos. Do estado de natureza só se pode dizer que é
intolerável e que é preciso superá-lo:
“
Mas este estado de guerra de todos contra todos
torna-se, com o passar do tempo, insuportável para seres
humanos
que,
dispondo
de
forças
mais
ou
menos
equivalentes, jamais estarão seguros de que outro homem
não será capaz de matá-los ou de escravizá-los. Para
evitar os inconvenientes da guerra permanente, eles
concordam em estabelecer um pacto, no qual decidem, ao
mesmo tempo, criar um Estado e pôr suas forças reunidas
à disposição do Soberano, encarregado de manter a paz
entre os cidadãos e de protegê-los contra os ataques do
exterior. Renunciam, conseqüentemente, a solucionar suas
divergências pelas armas e aceitam conformar-se às leis
que o Soberano estabelecerá e fará respeitar com todos
os meios em seu poder.”101
Com efeito, a primeira lei da razão para HOBBES
é a que prescreve a busca pela paz (pax est quaerenda). Para
sair do estado de natureza de maneira definitiva e estável, os
homens pactuam entre si a renúncia recíproca dos direitos que
possuíam no estado de natureza e o cedem ao Soberano (pactum
sobiectionis), o que se dá através de:
“
...um pacto de cada homem com todos os homens, de
um modo que é como se cada homem dissesse a cada homem:
Cedo e transfiro meu direito de governar-me a mim mesmo
a este homem, ou a esta assembléia de homens, com a
condição de tranferires a ele teu direito, autorizando
de maneira semelhante todas as suas ações. Feito isto, à
101
PERELMAN, Chaïm. Obra citada, p. 18-19.
71
multidão assim unida numa só pessoa se chama Estado, em
latim civitas. É esta a geração daquele grande Leviatã,
ou antes (para falar em termos mais reverentes) daquele
Deus Mortal, ao qual devemos, abaixo do Deus Imortal,
nossa paz e defesa.”102
O soberano, portanto, terá à sua disposição um
poder quase absoluto sobre os súditos, o que lhe permitirá a
elaboração das normas como melhor lhe aprouver, “...desde que
não atente sem razão válida contra a vida dos súditos, pois o
medo da morte é a própria razão do pacto social constitutivo
do Estado”.103
Outro autor já mencionado acima que atacou a
idéia
de
uma
jurisprudência
universal
foi
MONTESQUIEU.104
Apesar de ser contrário a idéia de jurisprudência universal,
“...não rejeita a idéia de uma justiça objetiva”105, conforme
se
pode
verificar
da
seguinte
passagem
contida
no
Livro
Primeiro de O Espírito da Leis:
“
Dizer que não há nada de justo nem de injusto senão
o que as leis positivas ordenam ou proíbem, é dizer que
antes de ser traçado o círculo todos os seus raios não
eram iguais.”106
Para
tarefa
de
tornar
MONTESQUIEU,
positivas,
caberia
ao
promulgando-as,
as
legislador
a
relações
de
justiça que cada um não poderia deixar de perceber não fossem
102
103
104
105
HOBBES, Thomas. Leviatã, p. 144.
PERELMAN, Chaïm. Obra citada, p. 19.
Charles Louis de Serondat, Barão de Bredo e de Montesquieu.
PERELMAN, Chaïm. Obra citada, p. 20.
72
os
interesses
particulares
suscetíveis
de
confundir
tal
percepção.
Nessa perspectiva, nada seria mais danoso do
que a concentração de todos os poderes nas mãos de um só (como
sustenta HOBBES), “...pois haveria o risco de ele impor leis
que visassem essencialmente não a proclamar o que é justo, mas
a considerar como legal o que favorece seu próprio interesse,
o que lhe reforça o próprio poder”.107
Justamente
MONTESQUIEU
sustentará
para
como
evitar
ideal
tais
político
abusos
a
é
doutrina
que
da
separação dos poderes. Mas o que interessa neste momento é o
fato
de
MONTESQUIEU
não
admitir
a
idéia
de
jurisprudência
universal.108
Outro traço característico desse pensamento — e
que muita influência causou nas escolas jurídicas futuras —
diz respeito à tarefa limitada dos aplicadores das normas,
pois quanto “...mais o governo se aproxima da república, tanto
mais
106
rígida
se
torna
a
maneira
de
julgar”109,
pois
nos
MONTESQUIEU. O espírito das leis, p. 3.
PEREMAN, Chaïm. Obra citada, p. 21.
108
A inexistência de uma jurisprudência universal é constatada por
MONTESQUIEU a partir das comparações que fez entre os sistemas normativos
de vários povos, em que se revelaram imperfeições no trabalho do
legislador, que deve se adaptar às sociedades em que atua.
109
MONTESQUIEU. Obra citada, p. 57.
107
73
“...governos republicanos é da natureza da constituição que os
juízes observem literalmente a lei”110:
“
Quanto aos juízes, eles serão apenas ‘a boca que
profere as palavras da lei; seres inanimados que não
podem moderar-lhe nem a força nem o rigor’. Essa é a
condição da segurança jurídica, pois, escreve ele
[MONTESQUIEU], ‘se os tribunais não devem ser fixos, os
julgamentos devem sê-lo a tal ponto que sejam sempre
apenas um texto preciso da lei. Se fossem uma opinião
particular do juiz, viveríamos em sociedade sem saber
precisamente quais compromissos contraímos.”111
Essa forte sujeição dos juízes à literalidade
da lei é decorrência direta do princípio da separação dos
poderes,
que
impede
a
delegação
do
poder
legislativo
ao
executivo, “...que dele poderia aproveitar-se para contrariar
seus
adversários”112,
bem
como
tal
delegação
não
pode
ser
conferida ao judiciário, “...que, por ocasião dos litígios,
poderiam formular regulamentos que favorecessem, por razões
muitas vezes inconfessáveis, alguma das partes”.113
O último dos três teóricos mencionados acima —
cuja doutrina também rompe com a idéia de estabelecimento de
uma jurisprudência universal — é Jean Jacques ROUSSEAU. Suas
idéias
contidas
no
Contrato
Social
(1762),
foram
melhor
recebidas que as de HOBBES. Com efeito, embora inspirando-se
neste último autor, para quem o direito é apenas a expressão
110
111
112
113
MONTESQUIEU. Idem, ibidem.
PERELMAN, Chaïm. Obra citada, p. 21-22.
PERELMAN, Chaïm. Idem, p. 21.
PERELMAN, Chaïm. Idem, ibidem.
74
da vontade do soberano, com uma conseqüente redução da justiça
à força, ROUSSEAU assevera:
“
... A força é um poder físico; não imagino que
moralidade possa resultar de seus efeitos. Ceder à força
constitui ato de necessidade, não de vontade; quando
muito,
ato
de
prudência.
Em
que
sentido
poderá
representar um dever?
Suponhamos, por um momento, esse pretenso direito.
Afirmo que ele só redundará em inexplicável galimatias,
pois, desde que a força faz o direito, o efeito toma
lugar da causa — toda a força que sobrepujar a primeira,
sucedê-la-á nesse direito. Desde que se pode desobedecer
impunemente, torna-se legítimo fazê-lo e, visto que o
mais forte tem sempre razão, basta somente agir de modo
a ser o mais forte. Ora, que direito será esse, que
perece quando cessa a força? Se se impõe obedecer pela
força, não se tem necessidade de obedecer por dever, e,
se não se for mais forçado a obedecer, já não se estará
mais obrigado a fazê-lo.”114
Contrapondo-se
à
idéia
de
um
direito
equivalente à força, ROUSSEAU não identificou o soberano com
um monarca todo-poderoso, mas com a nação, com a sociedade
política organizada, cuja vontade geral, oposta às vontades
particulares
dos
cidadãos,
decide
do
justo
e
do
injusto,
promulga leis do Estado e designa aqueles que, em conformidade
com estas leis, executarão as vontades da nação, administrarão
o Estado e distribuirão a justiça.
Portanto,
quem
detém
o
poder
é
a
própria
sociedade civil, cujo exercício é soberano e exprime a vontade
do povo, não podendo esta ser limitada, desde que respeite uma
dupla condição: a) que não haja sociedade parcial dentro do
114
ROSSEAU, Jean-Jacques. Do contrato social, p. 59-60.
75
Estado e cada cidadão opine apenas por si próprio; e b) que
essa vontade não se reporte a interesses particulares, mas
seja movida pelo interesse geral: acordo admirável entre o
interesse e a justiça que dá às deliberações comuns um caráter
de eqüidade, que vemos desaparecer na discussão nas questões
particulares, na ausência de um interesse comum que una e
identifique
a
regra
do
juiz
com
a
da
parte115.
Com
essas
condições, a lei será a expressão da justiça.
Será
justamente
a
partir
da
combinação
das
teorias de HOBBES, MONTESQUIEU e ROUSSEAU, mencionadas acima,
que a Revolução Francesa “...chegará a identificar o direito
com
o
conjunto
das
leis,
expressão
da
soberania
nacional,
sendo reduzido ao mínimo o papel dos juízes, em virtude do
princípio da separação dos poderes. O poder de julgar será
apenas o de aplicar o texto da lei às situações particulares,
graças a uma dedução correta e sem recorrer a interpretações
que poderiam deformar a vontade do legislador”.116
Cabe dizer ainda, e isso é importante, que essa
tarefa do aplicador da lei desde então tinha que ser motivada,
as decisões tomadas deveriam ser justificadas.
115
116
Cf. ROUSSEAU, Jean-Jacques. Idem, p. 92.
PERELMAN, Chaïm. Obra citada, p. 23.
76
É nesse contexto que vai surgir a escola da
exegese, em que “...a interpretação da lei passou a ser objeto
de estudos sistemáticos de notável finura, correspondentes a
uma
atitude
analítica
perante
os
textos
segundo
certos
princípios e diretrizes...”117
Segundo Miguel REALE, portanto, sob “...o nome
‘Escola da Exegese’ entende-se aquele grande movimento que, no
transcurso do século XIX, sustentou que na lei positiva, e de
maneira
especial
no
Código
Civil,
já
se
encontra
a
possibilidade de uma solução para todos os eventuais casos ou
ocorrências da vida social. Tudo está em saber interpretar o
Direito. Dizia, por exemplo, Demolombe que a lei era tudo, de
tal
modo
extrair
que
e
a
função
desenvolver
do
o
jurista
sentido
não
consistia
pleno
dos
senão
textos,
em
para
apreender-lhes o significado, ordenar as conclusões parciais
e, afinal, atingir as grandes sistematizações.”118
Se a Declaração dos Direitos do Homem e do
Cidadão
de
1789
já
dava
importantes
indícios
de
que
as
práticas sociais do Ancien Régime enfim chegaram ao ocaso, a
grande consagração dos princípios do liberalismo se deu mesmo
com o Código Civil Francês de 1804, que a partir da segunda
117
118
REALE, Miguel. Lições preliminares de direito, p. 280.
REALE, Miguel. Idem, ibidem.
77
edição (1807) passou a ser denominado Code Napoléon, em cujo
início estava estampada a célebre sentença:
“
Existe um direito universal e imutável, fonte de
todas as leis positivas; é a razão natural que governa a
todos os homens.”119
A partir de então a atitude metodológica do
intérprete
e
aplicador
do
direito
se
limitava
ao
estabelecimento dos fatos e à sua subsunção sob os termos da
lei, no caso a lei escrita a que o direito se viu reduzido,
conforme já confirmava o decano AUBRY, em 1857, “...em um
relatório oficial sobre o espírito do ensino da Faculdade de
Direito de Paris: ‘toda a lei, tanto no espírito quanto na
letra, com uma ampla aplicação de seus princípios e o mais
completo desenvolvimento das conseqüências que dela decorrem,
porém nada mais que a lei, tal foi a divisa dos professores do
Código de Napoleão’.”120
A lei positiva será, portanto, a fonte única e
exclusiva do direito, representando mesmo o direito natural,
eterno e imutável deduzido pela razão.
O positivismo de quase todo o século XIX tentou
fazer da ciência do direito e da interpretação uma tarefa
119
“Il existe un droit universel et inmuable, source de toutes les lois
positives; il n’est que la raison naturalle en tant qu’elle gouverne tous
les hommes” (citado por ROSS, A. Obra citada, p. 287). Ver também ZANNONI,
Eduardo A. Crisis de la razón jurídica, p. 27-28.
120
PERELMAN, Chaïm. Obra citada, p. 31.
78
mecânica
de
hermenêutica
exegética,
já
que
o
código
não
deixaria nada ao arbítrio do intérprete, o qual não teria por
missão criar o direito, uma vez que todo o direito já estava
feito.
A lei era tida como a própria razão escrita, o
que tornou desnecessárias preocupações com o direito natural,
a justiça ou a moral, já que a lei já era o todo.
Mas logo começaram a surgir tensões entre a lei
escrita, por um lado, e a realidade em transformação, por
outro.121
As
grandes
transformações
que
se
deram
no
decorrer do século XIX, sobretudo nas relações entre capital e
trabalho, levaram a um desajuste entre a lei que havia sido
codificada
no
início
daquele
século
e
a
vida
com
novas
tendências. Nesse contexto:
“
... As pretensões de ‘plenitude legal’ da Escola de
Exegese
pareceram
pretensiosas.
A
todo
instante
apareciam problemas de que os legisladores do Código
Civil não haviam cogitado. Por mais que os intérpretes
forcejassem em extrair dos textos uma solução para a
vida, a vida sempre deixava um resto. Foi preciso,
então, excogitar outras formas de adequação da lei à
existência concreta.”122
121
“É preciso lembrar que, quando foi promulgado o Código de Napoleão, a
França ainda era um país agrícola por excelência, e a Inglaterra apenas
ensaiava os primeiros passos na mecanização indispensável ao capitalismo
industrial” (REALE, Miguel. Obra citada, p. 283).
122
REALE, Miguel. Obra citada, p. 283.
79
Nasce assim a denominada Escola Histórica e seu
método,
que
busca
na
consciência
jurídica
popular
a
única
verdade do direito positivo. Friedrich Carl Von SAVIGNY foi um
dos grandes teóricos dessa corrente, o qual sustentava que o
direito positivo emana do espírito geral que anima a todos os
membros de uma nação, onde cada direito é a síntese de forças,
crenças, sentimentos e atividades do seu povo: sua unidade não
é produto casual, pois responde à sua própria história.
A tese básica dessa nova corrente, que segundo
Alf
ROSS
é
caracterizada
por
uma
filosofia
da
história
romântico-conservadora, “...constitui em afirmar que o direito
não
é
criado
conscientemente
desenvolvendo-se,
expressão
popular.
do
O
sim,
de
forma
espírito
do
povo
costume,
e
não
as
por
deliberações
cega
e
da
leis,
e
racionais,
orgânica
consciência
é,
portanto,
como
uma
jurídica
a
fonte
suprema do direito”.123
Daí decorrem as propostas da Escola Histórica:
“
...a repulsa à codificação, dada a consciência
empírica
de
que
codificar
era,
inevitavelmente,
naufragar nas águas do racionalismo do Código de
Napoleão; negação do direito natural, para evitar a
submissão
ao
jusnaturalismo
racionalista
e
sua
pretendida universalidade e imutabilidade; exaltação do
direito consuetudinário, a despeito do ideal positivista
que aspirava plasmar na lei a razão escrita.”124
123
124
ROSS, A. Obra citada, p. 291.
ZANNONI, Eduardo A. Obra citada, p. 62.
80
Buscava-se, portanto, construir um sistema da
razão que se realiza na história, a partir do que IHERING (que
militara na escola histórica de SAVIGNY antes de alterar seu
posicionamento), vai fundar a “...escola conhecida como a da
jurisprudência de conceitos que reduz o direito a categorias
racionais”125, a qual, a diferença do positivismo racionalista
exegético
(submissão
conceitual
ambos
o
à
(racional)
direito
positivismo
lei
a
partir
positivo
explica
a
escrita),
é
lei,
do
um
o
constrói
direito
prius,
um
sistema
positivo.
mas
“Para
enquanto
conceitualismo
constrói
o
os
conceitos jurídicos pretensamente universais a partir dela”.126
Para o conceitualismo a ciência jurídica é dogmática, sendo
que
dogmática
integrar
o
jurídica
material
“...é
positivo
lógica
a
e
partir
tem
do
por
qual
objetivo
opera
—
o
direito positivo — em conceitos jurídicos...”127 para depois
fixar
os
princípios
gerais
(dogmas)
que
formam
as
linhas
dominantes do conjunto.
Portanto, o conceitualismo pretende formular os
conceitos jurídicos universais: a propriedade, o contrato, o
vínculo obrigacional, o direito real; que são noções que se
obtêm mediante uma reflexão lógica, e por abstração, que vão
separando
125
126
127
os
elementos
ZANNONI, E. A. Idem, p. 64.
ZANNONI, E. A. Idem, p. 65.
ZANNONI, E. A. Idem, ibidem.
particulares
dos
gerais.
Nessa
81
perspectiva,
resulta
que
os
conceitos
jurídicos
não
estão
divorciados da realidade, vez que na verdade “...a realidade
constitui uma realização da razão: todo o real é racional e
todo o racional é real, como propunha HEGEL”.128
128
Cf. ZANNONI, E. A. Idem, p. 65-66. BOBBIO enquadra o conceitualismo —
que, como visto, é fruto da escola histórica que tem em SAVIGNY um de seus
maiores expoentes — num segundo significado de sistema, diverso do dedutivo
anteriormente descrito: “Um segundo significado de sistema, que não tem
nada a ver com o que foi ilustrado, encontramo-lo na ciência do Direito
moderno, que nasce, pelo menos no Continente, da pandectista alemã, e vem
de Savigny, que é o autor, não por acaso, do célebre Sistema do Direito
romano atual. É muito freqüente entre os juristas a opinião de que a
ciência jurídica moderna nasceu da passagem da jurisprudência exegética à
jurisprudência sistemática ou, em outras palavras, que a jurisprudência se
elevou ao nível de ciência tornando-se ‘sistemática’. Parece quase se
querer dizer que a jurisprudência não merece o nome de ciência enquanto não
chega a sistema, mas que é somente arte hermenêutica, técnica, comentário a
textos legislativos. Muitos tratados de juristas são intitulados Sistema,
evidentemente para indicar que se desenvolveu ali um estudo científico. O
que significa nesta acepção ‘sistema’? Os juristas não pretendem certamente
dizer que a jurisprudência sistemática consista na dedução de todo o
Direito de alguns princípios gerais, como queria Leibniz. Aqui o termo
‘sistema’ é usado, ao contrário, para indicar um ordenamento da matéria,
realizado através do processo indutivo, isto é, partindo do conteúdo das
simples normas com a finalidade de construir conceitos sempre mais gerais,
e classificações ou divisões da matéria inteira: a conseqüência destas
operações será o ordenamento do material jurídico do mesmo modo que as
laboriosas classificações do zoólogo dão um ordenamento ao reino animal. Na
expressão ‘jurisprudência sistemática’ usa-se a palavra ‘sistema’ não no
sentido das ciências dedutivas, mas no das ciências empíricas ou naturais,
isto é, como ordenamento desde baixo, do mesmo modo com que se fala de uma
zoologia sistemática. O procedimento típico dessa forma de sistema não é a
dedução, mas a classificação. A sua finalidade não é mais a de desenvolver
analiticamente,
mediante
regras
preestabelecidas,
alguns
postulados
iniciais, mas a de reunir os dados fornecidos pela experiência, com base
nas semelhanças, para formar conceitos sempre mais gerais até alcançar
aqueles conceitos ‘generalíssimos’ que permitam unificar todo o material
dado. Teremos plena consciência do significado de sistema como ordenamento
desde baixo, próprio da jurisprudência sistemática, se levarmos em conta
que uma das maiores conquistas de que se orgulha essa jurisprudência foi a
teoria do negócio jurídico. O conceito de negócio jurídico é manifestamente
o resultado de um esforço construtivo e sistemático no sentido do sistema
empírico que ordena generalizando e classificando. Surgiu da reunião de
fenômenos vários e talvez aparentemente distantes, mas que tinham em comum
a característica de serem manifestações de vontades com conseqüências
jurídicas. O conceito mais geral elaborado pela jurisprudência sistemática
é muito provavelmente o do relacionamento jurídico: é um conceito que
permite a redução de todos os fenômenos jurídicos a um esquema único, e
favorece portanto a construção de um sistema no sentido de sistema empírico
ou indutivo. O conceito de relacionamento jurídico é o conceito sistemático
82
A escola da exegese e o conceitualismo, que
surgiram,
respectivamente,
em
momentos
sucessivos
e
que
tiveram lugar em praticamente todo o século XIX, constituem
autênticas etapas de consolidação do positivismo jurídico.129
Em ambas as correntes, é bom que se diga, “...o
intérprete
admitindo
sempre
se
interpretação
situava
no
criadora,
âmbito
à
da
margem
lei,
da
lei
não
ou
se
a
despeito dela”.130
Mas então começa a surgir uma questão: o que
ocorre, porém, quando as possibilidades de integração do texto
por excelência da ciência jurídica moderna. Mas é claro que a sua função
não é a de iniciar um processo de dedução, mas a de permitir um melhor
ordenamento da matéria” (BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico,
p. 78-79).
129
“O
positivismo,
na
primeira
etapa,
recebeu
do
jusnaturalismo
racionalista,
radicalmente
empirista,
seu
conteúdo
filosófico.
Politicamente implicou a institucionalização de uma nova ordem social que
conjugou seus princípios e que pretendeu enquadrá-los, de uma vez por
todas, na lei escrita. Daí a submissão à lei escrita que positivou os
conteúdos
racionais
dessa
nova
ordem.
O
conceitualismo
—
a
Begriffjurisprudenz, ou jurisprudência dos conceitos — é a segunda etapa
construtiva e supõe a superação do racionalismo empirista. Não deprecia a
lei, mas aspirou construir a autêntica superestrutura ideológico-jurídica
do direito moderno. Essa superestrutura condiciona a interpretação da lei e
faz do jurista um dogmático, que, conseqüentemente, apreende categorias
obtidas mediante a simplificação qualitativa da construção jurídica”
(ZANNONI, E. A. Obra citada, p. 67-68). Entendimento diverso é defendido
por Alf ROSS, para quem essa complementaridade entre escola da exegese e
conceitualismo não passa de jusnaturalismo disfarçado, já que, segundo ele,
“...a idéia de que o direito natural se converteu em coisa do passado é
errônea, a menos que restrinjamos esse conceito às teorias racionalistas
dos séculos XVII e XVIII. Se incluirmos sob o rótulo de direito natural,
como aqui fizemos, todas as teorias jurídicas metafísicas que são também
político-jurídicas, quer dizer, que suprem um critério para a retidão ou
justiça do direito, então o direito natural, ainda que com outro nome,
sobreviveu e prosperou ao longo do século XIX; dever-se-ia chamá-lo,
realmente, de direito natural disfarçado” (ROSS, A. Obra citada, p. 292).
130
REALE, M. Obra citada, p. 286.
83
legal não comportam um atendimento a contento de novos fatos
emergentes?
Surgem então correntes jurídicas menos voltadas
às normas e seus sistemas, cuja atenção principal passou a ser
dada à questão dos fatos sociais, ao problema das lacunas do
direito, enfim, à questão da efetividade das normas.131
Tais
correntes,
de
cunho
predominantemente
sociológico (escolas de livre pesquisa do direito, do direito
livre, da livre indagação do direito, como passaram a ser
denominadas),
passam
a
reduzir
a
dimensão
do
direito
aos
fatos, de forma semelhante ao que a escola da exegese fizera
com o direito em relação à lei escrita.
Para os adeptos dessas correntes, “...o juiz é
como que legislador num pequenino domínio, o domínio do caso
concreto”132, porém aqui as leis não têm mais aquele caráter
perene, pois devendo se adaptar aos novos fatos sociais que
surgem, por vezes se tornam obsoletas diante da incapacidade
de atender novas demandas.
Daí a postura de KIRCHMANN, por exemplo, ao
afirmar
131
—
com
um
duro
golpe
contra
o
positivismo
dos
O próprio IHERING, antes conceitualista, passou a ser um dos críticos
mais ferrenhos daquela postura.
132
REALE, M. Obra citada, p. 291.
84
conceitos,
que
“três
palavras
do
legislador
e
bibliotecas
inteiras se convertem em papéis inúteis”.133
Das posturas sociológicas — em que predominam
as análises fáticas na interpretação das normas — certamente é
a crítica de Karl MARX aquela que mais gerou influências no
século XX, ainda que o objeto central da análise marxiana não
tenha sido propriamente o direito.
A postura sociológica vê no direito “...muito
mais
a
expressão
de
realidades
sociais,
econômicas
e
políticas, do que como a expressão de uma vontade de dirigir e
orientar estas mesmas realidades”.134
Ainda segundo PERELMAN, a postura que reduz o
direito à sociologia, segundo a qual as regras de direito
decorrem de fenômenos naturais alheios à vontade dos homens,
traz
como
inconvenientes,
dada
a
separação
rígida
entre
direito e fato, as excessivas concessões ao arbítrio do juiz,
além do desprezo da regra formal de justiça135, e, ainda, a
recusa de toda referência a juízos de valor.136
Os sociologismos não admitem, por exemplo, que
133
“Drei berichtigende Worte des Gesetzgelbers und ganze Bibliotheken
werden zu Makulatur” (“três palavras corretoras do legislador e bibliotecas
inteiras tornam-se maculatura”), citado por FERRAZ JR., Tercio Sampaio.
Obra citada, p. 151-152.
134
PERELMAN, C. Obra citada, p. 94.
135
136
Essa regra requer um tratamento igual para situações semelhantes.
Cf. PERELMAN, C. Obra citada, p. 94.
85
a
opção
por
revestido
normatizar
de
um
este
caráter
ou
aquele
voluntário,
comportamento
pois
as
opções
está
são
determinadas de antemão por fatores sociais alheios à vontade
dos homens.
Assim,
universalizadas
no
as
processo
valorações,
de
criação
inclusive
de
normas,
aquelas
estariam
dissociadas da vida cotidiana, entendida aqui como Lebenswelt
ou mundo da vida comum, de acordo com a filosofia de HUSSERL
que, conforme aduz Miguel REALE, é assim definida:
“
Por Lebenswelt, inspirando-me em Husserl, entendo o
complexo das formas de ser, de pensar e de agir não
categorizadas
(isto
é,
não
estadeadas
em
formas
objetivas, como as das artes e das ciências) que
condiciona, como consciência histórico-transcendental, a
vida comunitária e a vigência de suas valorações, muitas
delas devidas ao refluxo ou reflexo das formas objetivas
no plano da vivência coletiva. Não se trata, note-se
bem, de um estágio larvar ou incipiente destinado a
evoluir para formas categorizadas superiores, mas sim de
uma condição existencial constante, a qual varia
incessantemente de conteúdo, mas nunca deixa de existir
como o grande envolvente social, no qual acham-se
imersos os indivíduos com suas obras e instituições.”137
Para HUSSERL, ao contrário dos sociologismos,
todo valor implica uma tomada de posição do espírito, levando
a
uma
nossa
atitude
positiva
ou
negativa
que
implicará
a
“...noção de dever (...) e a razão legitimadora do ato”.138
Essa concepção Husserliana é sintetizada por Antonio PAIM da
seguinte forma:
“
137
138
A
intencionalidade
da
consciência
REALE, Miguel. O Direito como experiência, p. XXVII.
REALE, Miguel. Filosofia do direito, p. 543.
significa
que
86
conhecer é sempre conhecer algo. Não cabe, portanto,
nenhum dualismo abstrato entre natureza e espírito, como
se fossem duas instâncias em si conclusas, quando o
estabelecimento da correlação transcendental sujeitoobjeto impede se reduza a natureza ao espírito e viceversa. Algo haverá sempre a ser convertido em objeto,
alguma coisa haverá sempre além do que recebeu doação de
sentido de parte do espírito. Nem se exaure em qualquer
experiência particular o poder constitutivo de sínteses
doadoras de sentido.”139
Para a filosofia de MARX, o ponto de vista
acima
seria
apenas
uma
construção
mental
que
se
limita
a
interpretar a realidade sem no entanto ter a capacidade de
transformá-la, ou seja, o estado de dominação persistiria sem
alterações.
Neste sentido vale aqui a apropriação do mesmo
raciocínio
utilizado
por
MARX
na
sua
undécima
crítica
a
FEUERBACH: os críticos limitaram-se a interpretar o direito de
diferentes formas, mas o que interessa mesmo é dotá-lo de
instrumentos capazes de transformar a realidade.
Enquanto para FEUERBACH basta uma modificação e
correção no interior de nossa consciência para a eliminação do
erro provocado pela alienação, em que a libertação do homem
consistiria
simplesmente
na
crítica
da
religião,
MARX
demonstra que essa atitude se limita a interpretar o mundo de
um modo diferente, o qual continuaria a subsistir tal como é
na sua efetiva realidade.
MARX
139
não
abandona
a
observação
empírica,
PAIM, Antonio. História das idéias filosóficas no brasil, p. 421-422.
ao
87
contrário, pretende exercê-la do modo mais rigoroso possível.
Daí
distingue
produtores
materiais
os
dos
da
homens
seus
vida
e
dos
meios
por
animais,
de
ser
por
subsistência
esta
social
serem
aqueles
nos
aspectos
não
isolada.
e
Verifica também que as relações de produção exprimem-se de
modo mais perceptível nas relações de propriedade.
O conjunto das relações de produção constitui a
estrutura
econômica
de
cada
uma
das
diferentes
sociedades,
sendo que a produção passa a ser considerada a essência do
homem e, exatamente por isso, a essência do homem é histórica.
A
estrutura
econômica
da
sociedade,
que
é
constituída pelas relações de produção, é a base real sobre a
qual é construída a superestrutura da consciência.140
O
homem
produz
e
transforma
os
próprios
pensamentos acerca do mundo e da história real relativamente
ao modo como, na sua atividade prática, transforma o mundo.
Daí a ideologia, que está inserida na moral, na religião, na
metafísica, na filosofia, no direito, na política e em todas
as superestruturas em geral.
O
cerne
da
questão
não
está
na
forma,
equivocada ou não, de interpretar as coisas, mas na capacidade
de transformar a realidade.
140
Para MARX, não é a consciência dos homens que determina o seu ser, mas,
pelo contrário, o seu ser social que determina a sua consciência.
88
Para
MARX,
que
pretendia
fazer
ver
que
as
concepções de mundo existentes eram determinadas pelo conjunto
das
relações
de
produção
transformadora,
pois
imaginárias
grilhões
dos
a
material,
mesma
para
a
crítica
“...não
que
o
deveria
arranca
homem
não
as
ser
flores
suporte
os
grilhões sem fantasias e consolo, mas para que se livre delas
e
possam
brotar
as
flores
vivas.
Não
podereis
superar
a
filosofia sem realizá-la”.141
A interpretação jurídica surgida a partir do
iluminismo teria contribuído para que a história do direito se
confundisse com a história da dominação e, por isso mesmo,
teria estado distante do ideal de justiça.142 Vale dizer que,
em virtude disso, as ideologias teriam sido bem sucedidas ao
incutirem na sociedade que a realização do direito implica a
realização da justiça. Assim a dominação se justifica. Neste
sentido, veja-se o que diz Marilena CHAUI:
“
A divisão social do trabalho, ao separar os homens
em proprietários e não proprietários, dá aos primeiros
poder
sobre
os
segundos.
Estes
são
explorados
economicamente e dominados politicamente. Estamos diante
de classes sociais e da dominação de uma classe por
outra. Ora, a classe que explora economicamente só
poderá manter seus privilégios se dominar politicamente
e, portanto, se dispuser de instrumentos para essa
dominação. Esses instrumentos são dois: o Estado e a
ideologia.
Através do Estado, a classe dominante monta um
aparelho de coerção e de repressão social que lhe
permite exercer o poder sobre toda a sociedade, fazendoa submeter-se às regras políticas. O grande instrumento
141
MARX, Karl. Contribuição à crítica da filosofia do direito de hegel, p.
78.
142
Aqui não se trata de justiça formal, mas material.
89
do Estado é o Direito, isto é, o estabelecimento das
leis que regulam as relações sociais em proveito dos
dominantes. Através do Direito, o Estado aparece como
legal, ou seja, como ‘Estado de direito’. O papel do
Direito ou das leis é o de fazer com que a dominação não
seja tida como uma violência, mas como legal, e por ser
legal e não violenta deve ser aceita. A lei é direito
para o dominante e dever para o dominado. Ora, se o
Estado e o Direito fossem percebidos nessa sua realidade
real, isto é, como instrumentos para o exercício
consentido da violência, evidentemente ambos não seriam
respeitados e os dominados se revoltariam. A função da
ideologia consiste em impedir essa revolta fazendo com
que o legal apareça para os homens como legítimo, isto
é, como justo e bom. Assim, a ideologia substitui a
realidade do Estado pela idéia do Estado — ou seja, a
dominação de uma classe é substituída pela idéia de
interesse geral encarnado pelo Estado. E substitui a
realidade do Direito pela idéia do Direito — ou seja, a
dominação de uma classe por meio das leis é substituída
pela representação ou idéias dessas leis como legítimas,
justas, boas e válidas para todos.”143
Com
efeito,
o
direito,
como
instrumento
de
dominação que é, tem sido posto como um ente desprendido da
realidade, sagrado, o qual deveria ser respeitado cegamente e
sem a possibilidade de mudanças.
Quando uma sociedade admite como corretas as
normas vigentes, as quais são invariavelmente mantenedoras do
estado de dominação de uns poucos sobre muitos, tem-se que o
controle
social
exercido
sobre
essa
sociedade
é
eficaz,
a
ponto de as contradições existentes serem ocultadas, de modo
bem
143
sucedido,
pela
ideologia
que
teoricamente
justifica
a
CHAUI, Marilena de Souza. O que é ideologia, p. 90-91. Posição
semelhante já era adotada pelos sofistas que, segundo noticia Alf ROSS,
entendiam que as “...leis humanas são a corporificação do poder arbitrário
dos governantes. Todo governante produz leis que lhe são proveitosas e
chama de justo aquilo que serve aos seus próprios interesses. A doutrina da
justiça imanente às leis não passa de uma capa astuciosa que encobre o
predomínio da força” (ROSS, A. Obra citada, p. 275).
90
dominação.
E,
conjunto
de
por
meios
controle
de
social
intervenção,
deve-se
quer
entender
positivos
o
quer
negativos, acionados em cada sociedade ou grupo social a fim
de induzir os próprios membros a se conformarem às normas que
a caracterizam, de impedir e desestimular os comportamentos
contrários às mencionadas normas, de restabelecer condições de
conformação,
também
em
relação
a
uma
mudança
do
sistema
normativo.
Com efeito, enquanto os homens forem incapazes
de resolver as contradições existentes na prática, tenderão a
projetá-las nas formas ideológicas de consciência, isto é, em
soluções
puramente
existência
e
o
intelectuais
caráter
que
dessas
ocultam
efetivamente
contradições.
“Não
é
a
a
consciência que determina a vida, mas a vida que determina a
consciência”144, ou melhor, não é a consciência dos homens que
determina a sua existência social, mas esta é que determina a
consciência do modo como concebem a realidade. A consciência e
o
pensar
são
produzidos
pelas
interpretações
dadas
pelo
processo histórico. Não é o pensar que determina o processo
histórico, mas este é que determina o pensar.
Os
subsistência
144
nos
homens
aspectos
são
produtores
materiais
da
dos
seus
vida,
por
MARX, Karl, ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã, p. 193.
meios
isso
de
não
91
estão isolados e interagem socialmente. Em todas as sociedades
o conjunto das relações de produção constitui a sua estrutura
econômica. As condições de subsistência são determinadas pelo
modo como o homem produz seus meios de vida que, por sua vez,
condicionam a produção intelectual.
Porém,
em
determinado
momento
histórico
os
meios de subsistência passaram a ser controlados por alguns,
sendo que os demais foram alienados do processo produtivo à
medida em que foram dissociados do produto de seu trabalho, o
qual passou a pertencer à classe dominante. Dessa contradição
surge a propriedade privada dos meios de produção, a qual é a
base da dominação de uma classe sobre outra.
No
plano
intelectual,
essa
contradição
é
ocultada pela ideologia e sustentada pelas superestruturas,
dentre
as
pensamento
quais
de
o
MARX,
direito.
em
que
Essa
se
vê
uma
breve
claramente
descrição
do
uma
de
forma
sociologismo, eis que os fatos sociais, e somente eles, é que
importam para a compreensão do fenômeno jurídico.
Enfim, ao positivismo jurídico que tentava se
consolidar no século XIX foram contrapostas críticas dos mais
diversos matizes. O efeito disso foi o de o século XX ter
recebido como herança as mais variadas teorias jurídicas, as
quais
estavam
fortemente
impregnadas
de
ingredientes
92
políticos,
religiosos
e
morais145,
fruto
da
incessante
tentativa de se atingir a justiça através do direito. Ademais
disso, o relativismo cético finalmente estava se sobrepondo ao
longo reinado das metafísicas, conforme visto no capítulo 1.
145
“...um relance de olhos sobre a ciência jurídica tradicional, tal como
se desenvolveu no decurso dos sécs. XIX e XX, mostra claramente quão longe
ela está de satisfazer à exigência da pureza. De um modo inteiramente
acrítico, a jurisprudência tem-se confundido com a psicologia e a
sociologia, com a ética e a teoria política. Esta confusão pode porventura
explicar-se pelo fato de estas ciências se referirem a objetos que
indubitavelmente têm uma estreita conexão com o Direito” (KELSEN, Hans.
Teoria pura do direito, p. 1).
93
2.3 Direito e Ceticismo: o Realismo Jurídico
A
filosofias
sobreposição
absolutistas
se
do
fez
relativismo
sentir
cético
às
sobremaneira
no
positivismo jurídico que iria se formar no século XX. Tal
circunstância,
no
entanto,
não
influenciou
somente
os
positivistas.
Com efeito, quanto ao ceticismo gnoseológico, é
importante salientar que o mesmo também foi um dos grandes
responsáveis pelo surgimento de outra escola: a do realismo
jurídico que teve lugar nos Estados Unidos da América.
Segundo
BOBBIO,
o
“...pai
intelectual
das
correntes realistas modernas é um grande jurista, por muitos
anos juiz da Suprema Corte, OLIVER WENDELL HOLMES, que foi o
primeiro, precisamente no exercício das suas funções de juiz,
a desclassificar o tradicionalismo jurídico das cortes, e a
introduzir uma interpretação evolutiva do direito, quer dizer,
mais sensível às mudanças da consciência social”.146
Em
08
de
janeiro
de
1897,
HOLMES
fez
uma
conferência, intitulada The Path of the Law, junto à Escola de
Direito da Universidade de Boston, cuja repercussão provocou
uma profunda renovação dos estudos jurídicos nos Estado Unidos
da América.
146
BOBBIO, Norberto. Teoría general del derecho, p. 36.
94
O novo enfoque acerca dos fenômenos jurídicos
proposto por HOLMES é o de adotar o ponto de vista do bad man
ao meditar sobre as conseqüências prováveis de uma determinada
conduta.
Para
o
bad
man
o
importante
é
saber
se
a
ação
programada ocasionará a reação positiva de um órgão do Estado.
A predição dessa reação é o direito:
“
No famoso artigo ‘The Path of the Law’, ele
[HOLMES] explica: ‘As pessoas querem saber sob que
circunstâncias e até que ponto correrão o risco de ir
contra o que é tão mais forte que elas mesmas, e,
portanto, torna-se um objetivo descobrir quando esse
perigo deve ser temido. O objeto de nosso estudo, então,
é previsão, a previsão da incidência da força pública
através do instrumento dos tribunais.’ Assim, a sua
definição
de
Direito,
que
é
verdadeiramente
uma
definição da ciência do Direito, é: ‘As profecias do que
os tribunais farão, de fato, e nada de mais pretensioso,
são o que quero designar como Direito.’ Em conformidade
com essa visão, ele define os conceitos de dever e
Direito do seguinte modo: ‘Os direitos e deveres
primários com os quais se ocupa a jurisprudência,
novamente, nada mais são que profecias.’ ‘Um dever
jurídico propriamente dito nada mais é que uma previsão
do que, se um homem fizer ou se abstiver de certas
coisas, ele terá de sofrer, dessa ou daquela maneira,
por meio do tribunal; e um direito jurídico pode ser
definido de modo semelhante.’ ‘O dever de manter um
contrato no Direito comum significa uma previsão de que
você terá de pagar os danos caso não o mantenha, e nada
mais’.”147
Se
o
direito
só
é
a
predição
da
provável
conduta judicial frente a um determinado curso de conduta, em
que
dados
se
apoiariam
os
advogados
para
efetuarem
predições?
147
KELSEN, Hans. Teoria geral do direito e do estado, p. 241.
suas
95
HOLMES considera que os advogados encontram as
respostas às dúvidas do futuro nos repertórios judiciais, nos
repositórios das sentenças proferidas no passado por outros
juízes. O comportamento dos juízes no passado permite predizer
qual será seu comportamento no futuro, de modo que as coleções
jurisprudenciais seriam oráculos do direito.
Mas HOLMES não pára por aí. Acredita que as
considerações
verbais
efetuadas
pelos
juízes
ao
ditar
suas
sentenças e dar razão às mesmas não correspondem habitualmente
às motivações reais, aos verdadeiros fatores que determinaram
seu
ânimo
em
uma
determinada
direção.
Tais
razões
permaneceriam ocultas.
Assim
se
inicia
a
etapa
da
jurisprudência
sociológica e o realismo jurídico norte-americano.
A partir das considerações feitas por HOLMES,
em especial quanto as razões ocultas nas decisões judiciais, o
realismo norte-americano assume, com Jerome FRANK, a sua forma
mais radical:
“
...a escola realista, cujo principal impulsionador
foi JEROME FRANK, foi bem mais adiante dos princípios
que podem ser deduzidos de HOLMES e POUND. A tese
principal da escola realista é esta: não existe direito
objetivo, no sentido de objetivamente dedutível de fatos
reais, oferecidos pelo costume, pela lei ou pelos
antecedentes judiciais; o direito é uma permanente
criação
do
juiz
no
momento
em
que
decide
uma
controvérsia. Assim se derruba o princípio tradicional
da
certeza
do
direito;
pois
qual
pode
ser
a
possibilidade
de
prever
as
conseqüências
de
um
comportamento? — e nisto consiste a certeza — se o
direito é uma permanente criação do juiz? Para FRANK,
96
com efeito, a certeza, um dos pilares dos ordenamentos
jurídicos continentais, é um mito derivado de uma
espécie de aceitação infantil frente ao princípio de
autoridade (esta tese foi sustentada em um livro escrito
em 1930, Law and Modern Mind): um mito que deve acabar
para levantar sobre suas ruínas o direito como criação
permanente e imprevisível.”148
FRANK entende que as sentenças judiciais são
desenvolvidas
retrospectivamente
a
partir
de
conclusões
previamente formuladas149; que não se pode aceitar a tese que
representa o juiz “...aplicando leis e princípios aos fatos,
isto é, tomando alguma regra ou princípio (...) como premissa
maior, empregando os fatos do caso como premissa menor e então
chegando
à
raciocínio”150;
sua
e
resolução
que,
mediante
definitivamente,
processos
as
de
puro
“decisões
estão
baseadas nos impulsos do juiz”151, o qual extrai esses impulsos
fundamentalmente
não
das
leis
e
dos
princípios
gerais
de
direito, mas sobretudo de fatores individuais que todavia são
“...mais importantes do que qualquer coisa que pudesse ser
descrita como pré-juízos políticos, econômicos, ou morais”.152
Para FRANK foi:
“
...o resultado dessas falibilidades o que induziu a
Learned Hand, o mais sábio dos nossos juízes, a afirmar,
depois de muitos anos de atuação como juiz de primeira
instância: ‘Devo dizer que se eu fosse um litigante
148
149
150
151
152
BOBBIO, N. Obra citada, p. 36.
Cf. FRANK, Jerome. Law and the modern mind, p. 109.
FRANK, J. Idem, p. 111.
FRANK, J. Idem, p. 112.
FRANK, J. Idem, p. 114.
97
temeria a um pleito além de todas as demais coisas,
salvo a enfermidade e a morte.”153
Resta abordar ainda um problema levantado pela
obra de Jerome FRANK que, apesar de sua importância, não tem
recebido a devida atenção pelos juristas.
Para
FRANK
os
problemas
de
interpretação
de
normas, de se saber quais delas são ou não válidas, de como se
resolvem eventuais incompatibilidades entre elas, enfim, os
problemas dogmáticos de que se ocupam os tribunais superiores
(que não se prendem às questões de fato) e a maioria dos
juristas, são os que na verdade menos importam.
153
FRANK, Jerome. Derecho e incertidumbre, p. 27. DWORKIN, que é um cruel
opositor do realismo jurídico, inicia sua obra Law’s Empire retomando os
dizeres de LEARNED HAND: “Learned Hand, que foi um dos melhores e mais
famosos juízes dos Estados Unidos, dizia ter mais medo de um processo
judicial que da morte ou dos impostos. Os processos criminais são os mais
temidos de todos, e também os mais fascinantes para o público. Mas os
processos civis, nos quais uma pessoa pede que outra a indenize ou ampare
por causa de algum dano causado no passado ou ameaça de dano, têm às vezes
conseqüências muito mais amplas que a maioria dos processos criminais. A
diferença entre dignidade e ruína pode depender de um simples argumento que
talvez não fosse tão poderoso aos olhos de outro juiz, ou mesmo o mesmo
juiz no dia seguinte. As pessoas freqüentemente se vêem na iminência de
ganhar ou perder muito mais em decorrência de um aceno de cabeça do juiz do
que de qualquer norma geral que provenha do legislativo.
Os processos judiciais são importantes em outro aspecto que não pode
ser avaliado em termos de dinheiro, nem mesmo de liberdade. Há,
inevitavelmente, uma dimensão moral associada a um processo judicial legal
e, portanto, um risco permanente de uma forma inequívoca de injustiça
pública. Um juiz deve decidir não simplesmente quem vai ter o quê, mas quem
agiu bem, quem cumpriu com suas responsabilidades de cidadão, e quem, de
propósito,
por
cobiça
ou
insensibilidade,
ignorou
suas
próprias
responsabilidades para com os outros, ou exagerou as responsabilidades dos
outros para consigo mesmo. Se esse julgamento for injusto, então a
comunidade terá infligido um dano moral a um de seus membros por tê-lo
estigmatizado, em certo grau ou medida, como fora-da-lei. O dano é mais
grave quando se condena um inocente por um crime, mas já é bastante
considerável quando um queixoso com uma alegação bem fundamentada não é
ouvido pelo tribunal, ou quando um réu dele sai com um estigma imerecido”
(DWORKIN, Ronald. O império do direito. p. 3-4).
98
Com efeito, FRANK pouco se preocupou com as
questões normativas vinculadas com as suas interpretações, ou
com a criação de novas normas quando assim exigia a novidade
do caso ou a inexistência de adequados critérios normativos
anteriores. Estas matérias, segundo ele, só ocupam uma parte
mínima
da
atividade
judicial.
Concentram
a
atenção
dos
tribunais superiores, dedicados a decidir questões de direito,
quer dizer, a dirimir as disputas dos advogados acerca do
alcance
das
normas
em
relação
a
um
caso
concreto.
Mas
a
verdade é que os litígios, em sua grande maioria, não surgem
porque as partes não estão de acordo quanto ao significado das
normas. Eles têm sua origem em divergências acerca dos fatos:
“
Habitualmente, ambas as partes concedem que, se
ocorrido o fato ‘A’, deve ser aplicada a norma ‘alfa’,
que imputa como devida a conseqüência ‘beta’. Elas não
estão de acordo é no que se refere ao acontecimento do
fato ‘A’. Uma parte o afirma. A outra o nega. A sorte do
litígio gira, portanto, ao redor da prova do fato
discutido. Se se acreditar naquilo que pretende o autor,
resultará a aplicação da norma ‘alfa’ e ele terá direito
a perceber a prestação ‘beta’. Em caso contrário, é o
demandado que se verá beneficiado, pois se declarará
improcedente a pretensão dos autos. Como se vê, não
estava em jogo a aplicabilidade ou o alcance da norma
‘alfa’. Estava em questão, ao contrário, a realidade do
fato ‘A’, de cuja prova dependia a aplicabilidade da
norma ‘alfa’.”154
Daí a preocupação de FRANK com as questões de
prova. Dedicando-se ao exame dos meios judiciais de prova dos
fatos, teve particularmente em conta as modalidades dos juízos
154
FRANK, Jerome. Derecho e incertidumbre, p. 12.
99
cíveis e criminais nos Estados Unidos. A instituição do júri
impôs
um
caráter
oral
à
sustentação
e
recepção
da
prova.
Assim, os peritos são testemunhas, especialmente qualificadas,
que depõem ante o juiz e o júri. Os documentos e demais peças
probatórias, como coisas e peças materiais, devem ser exibidos
em audiência para que sejam vistas, e ainda ouvidas, conforme
o caso, tanto pelo juiz quanto pelos integrantes do júri. O
juiz e os membros do júri vêm a ser, por sua vez, testemunhas
do que acontece em audiência. Decidirão sobre os fatos em
função da atenção que prestam aos diversos testemunhos e às
exibições de objetos na sala de audiências do tribunal, e à
credibilidade
que
atribuem
aos
diversos
meios
probatórios
utilizados pelas partes.
Na prova dos fatos, pois, estaríamos ante a uma
dupla série de testemunhos: os trazidos pelas partes e os
testemunhos
jurados.
dos
Esta
testemunhos,
dupla
série
quer
dizer,
testemunhal,
os
segundo
juízes
FRANK,
e
os
está
longe de garantir objetividade e previsibilidade na fixação
dos fatos do caso.
Essa falta de objetividade, para FRANK, é a
origem de grande parte dos erros judiciais:
“
Quando, faz uns vinte anos, um promotor disse,
muito seguro, que os homens inocentes nunca eram
condenados como criminosos, Borchard replicou, em 1932,
com a publicação de seu grande livro Convicting the
Innocent, em que revelou que muitos homens foram ao
cárcere por delitos que não haviam cometido, devido ao
fato de que os tribunais de primeira instância [trial
100
courts] haviam incorrido em erros na apreciação dos
fatos. Como tais erros se devem a defeitos judiciais na
determinação dos fatos — defeitos presentes tanto em
litígios civis quanto penais — resulta que os homens não
só
perdem
sua
liberdade
como
também
amiúde
sua
propriedade, seus bens, seu trabalho ou sua reputação
por causa de sentenças fundadas em presunção judicial de
fatos que nunca tenham ocorrido realmente. Há aqui um
problema moral de primeira magnitude.
O problema existe por essas razões: a decisão de um
pleito, sabe-se, requer a subsunção de uma norma
jurídica aos fatos do caso. Na maioria dos juízos os
litigantes disputam somente sobre fatos como, por
exemplo, se em certo dia Gross fez uma promessa a
Gentle, ou se Tit golpeou a Tat. Como, no momento de se
produzirem as provas, estes são fatos passados, o
tribunal de primeira instância — um juiz (em um caso sem
júri) ou um júri — não pode observá-los. Tudo o que o
juiz e o júri podem fazer é formar uma convicção sobre
esses casos passados. Essa crença se forma depois de
ouvidas as declarações das testemunhas que haviam
observado
(ou
pretendem
ter
observado)
esses
acontecimentos. Na maioria dos pleitos, as testemunhas
declaram em audiência pública e suas declarações são
discrepantes. Os fatos, para os fins da sentença, não
são necessariamente os fatos reais. Eles são, no melhor
dos casos, as convicções do juiz de primeira instância
ou do júri sobre esses fatos reais passados. Para os
fins práticos da sentença de um tribunal não importa
quais foram os fatos reais. O que importa é esta crença.
Ela é, em síntese, uma conjetura fundada em uma crença —
outra conjetura — sobre o maior grau de fé que merecem
uns testemunhos em relação a outros.
Não há segurança alguma de que essa crença do juiz
ou do júri — que, repetimos, é tudo o quanto
judicialmente constitui os fatos do caso — seja igual ou
sequer se aproxime dos acontecimentos reais passados,
devido ao seguinte: 1) o testemunho é notoriamente
falível: as testemunhas mentem às vezes e, ainda, as
testemunhas honestas erram com freqüência, a) ao
observar
os
acontecimentos,
b)
ao
recordar
suas
observações e c) ao transmitir estas lembranças na sala
do júri; 2) os juízes e os júris são falíveis ao
determinar
(conjeturando)
qual
(se
alguma)
das
testemunhas discrepantes relatou fielmente os fatos
reais. Estas falibilidades causam os dramáticos erros
descritos por Borchard, e também os que abordamos sobre
os pleitos civis.”155
155
FRANK, J. Idem, p. 25-27.
101
A
partir
de
tais
considerações
FRANK
invoca
sete grandes razões em virtude das quais a comprovação dos
fatos
é
problemática:
a)
as
testemunhas
não
raciocinam
uniformemente ante os fatos passados objeto de seu testemunho;
b)
habitualmente
as
testemunhas
dão
ao
tribunal
versões
contraditórias sobre esses acontecimentos; c) os fatos de um
caso são declarados tais pelos juízes de primeira instância ou
pelo júri, em função da credibilidade que concedem a alguns
testemunhos e que negam a outros; d) há pouca uniformidade na
formação dessas crenças de juízes ou júris; e) essas crenças
determinam a sorte da maioria dos litigantes porque: quando se
apela das decisões, os tribunais superiores aceitam usualmente
as
crenças
dos
tribunais
de
primeira
instância;
f)
essas
crenças são, amiúde, as crenças dos juízes e dos júris, pois
as convicções reais permanecem ocultas sob a intuição integral
e indiferenciada dos diversos testemunhos produzidos ante os
juízes e os júris; e g) por último, as sentenças não enunciam
explicitamente
em
seu
corpo,
ou
seja,
a
ninguém
é
dado
conhecer, as crenças, reais ou aparentes, que determinaram a
decisão.
Isso
coloca
o
tribunal
na
completa
tarefa
de
adivinhar as razões pelas quais os juízes e os júris deram
credibilidade a alguns testemunhos e a negaram a outros. Disso
decorre
sua
renúncia
em
revisar
os
fatos
declarados
pelo
tribunal inferior, limitando-se a efetuar um exame do direito
102
aplicável aos fatos do caso, declarados tais pelo juízo de
primeiro grau.
Daí FRANK conclui que o juízo verdadeiramente
importante é o dos fatos, o juízo de primeira instância e não
o de direito, o tribunal de segunda instância.
Apesar da insistência de FRANK na necessidade
de que a teoria do direito considere não só o que ocorre nos
tribunais de apelação, mas principalmente o que acontece nos
juízos de primeira instância, posto que são estes últimos que
vão
determinar
os
fatos
do
caso
mediante
a
recepção
e
valoração das provas produzidas, esse problema, que não parece
ter nada de trivial, não tem sido objeto de preocupação dos
pensadores
do
direito,
incluídos
aí
os
representantes
do
positivismo jurídico atual, tais como KELSEN, BOBBIO e HART; o
pensamento
de
DWORKIN156;
a
nova
retórica
de
PERELMAN
que
receberá uma análise especial no decorrer deste trabalho; o
próprio HABERMAS; enfim, pode-se dizer que essa é uma questão
que, apesar de ter sido levantada, permanece em aberto no
âmbito do pensamento jurídico.
156
Que inclusive é um dos maiores críticos do realismo.
103
2.4 Legalidade e Legitimidade: a Crítica de Habermas
Voltando ao positivismo jurídico, que chega ao
século XX quase que desfigurado, coube a KELSEN a tarefa de
purificar o objeto da ciência do direito de tudo aquilo que a
ela fosse considerado estranho, pois uma “...das tarefas mais
importantes de uma teoria geral do Direito é determinar a
realidade específica do seu objeto”.157
Daí por que os seus esforços para a separação
de direito e moral já referida no início deste capítulo. O
positivismo de Hans KELSEN, segundo PERELMAN:
“
...apresenta
o
direito
como
um
sistema
hierarquizado de normas, que difere de um sistema
puramente formal pelo fato de a norma inferior não ser
deduzida da norma superior mediante transformações
puramente formais, como na lógica ou nas matemáticas,
mas mediante a determinação das condições segundo as
quais poderá ser autorizada a criação de normas
inferiores, dependendo a eficácia do sistema da adesão
pressuposta a uma norma fundamental, a Grundnorm, que
será a Constituição original.
Contrariamente a um sistema formal, que é puramente
estático, o direito será concebido como um sistema
dinâmico, a norma superior que determina o quadro em que
aquele a quem é conferida a autoridade de exercer um
poder legal, legislativo, executivo ou judiciário pode
escolher livremente uma linha de conduta, desde que não
saia dos limites fixados pela norma superior”.158
Quanto a este aspecto, em que se tem a norma
fundamental como “...o fundamento de validade e o princípio
unificador das normas de um ordenamento”159 atuando num sistema
157
158
159
KELSEN, Hans. Teoria geral do direito e do estado, prefácio, p. XXIX.
PERELMAN, Chaïm. Lógica jurídica, p. 91-92.
BOBBIO, N. Teoria do ordenamento jurídico. p. 62.
104
dinâmico,
as
provenientes
normas
de
uma
serão
consideradas
autoridade
válidas
competente
desde
(indicada
que
pelo
próprio ordenamento) e que retirem seu fundamento de validade
de uma norma superior, obedecendo aos procedimentos (também
indicados
pelo
sistema).
A
validade
das
normas,
portanto,
independe do seu conteúdo, fato esse que, após a 2ª Guerra
Mundial, trouxe novamente à tona a questão da legitimidade160
do poder fundante de um ordenamento, que volta a ser também um
problema jurídico.
O
ceticismo
(relativismo)
não
trouxe
conseqüências apenas à referida corrente do realismo jurídico,
pois também a teoria de KELSEN sofreu suas influências. Assim,
além do relativismo moral que gerou as já descritas críticas
dirigidas
ao
direito
natural,
o
ceticismo
influenciou
na
aceitação da tese que admite, quando há a possibilidade de
interpretações
160
divergentes
de
uma
mesma
norma,
o
uso
da
Por legitimidade adotamos a mesma noção concebida por Maria Celeste dos
SANTOS, que aduz: “Na linguagem jurídica usual, as palavras legalidade e
legitimidade não têm um significado claramente definido e diferenciado;
fala-se indiscriminadamente de legalidade e de legitimidade para assinalar
a conformidade de determinadas atividades do Estado com as normas vigentes
do ordenamento jurídico. Para evitar equívocos usamos a expressão
legitimidade para indicar, em termos gerais, o critério de justificação do
poder, o ‘título’ em virtude do qual este dita seus comandos e exige a
obediência por parte daqueles a quem se dirige e que, por sua vez, se
consideram ‘obrigados’ por ele.
Nesse sentido, a legitimidade se transforma em questão de legitimação
e pressupõe a legalidade, isto é, a existência de um ordenamento jurídico e
de um poder que dita comandos de conformidade com suas próprias
disposições. A legitimidade, portanto, justifica a legalidade, posto que
confere ao poder o carisma de autoridade: é um signo que se acresce à
denominação, a força que o Estado exerce em ‘nome da lei’” (SANTOS, Maria
Celeste Cordeiro Leite. Poder jurídico e violência simbólica, p. 111-112).
105
discricionariedade para a escolha do modo pelo qual a norma
deve ser aplicada. Com efeito, estando:
“
...qualificado para agir legalmente, e na medida em
que se conforma às regras prescritas, o legislador, o
administrador público ou o juiz têm liberdade de ação, o
legislador tem liberdade para votar qualquer lei que não
seja contrária às normas superiores, o juiz, encarregado
de dizer o direito nos casos particulares, tem liberdade
de
escolher
como
melhor
lhe
pareça
entre
as
interpretações admissíveis de um dado texto.
A teoria pura do direito, tal como Kelsen a
elaborou, deveria, para permanecer científica, eliminar
de seu campo de investigação qualquer referência a
juízos de valor, a idéia da justiça, ao direito natural,
e a tudo o que concerne à moral, à política ou à
ideologia. A ciência do direito se preocupará com
condições de legalidade, de validade dos atos jurídicos,
com sua conformidade às normas que os autoriza. Kelsen
reconhecia, sem dúvida, que o juiz não é um mero
autômato, na medida em que as leis que aplica,
permitindo
diversas
interpretações,
dão-lhe
certa
latitude, mas a escolha entre essas interpretações
depende, não da ciência do direito nem do conhecimento,
mas de uma vontade livre e arbitrária, que uma pesquisa
científica, que se quer objetiva e alheia a qualquer
juízo de valor, não pode guiar de modo algum.”161
Os
dois
problemas
do
positivismo
jurídico
postos acima (que não se restringem à teoria de KELSEN, mas
também englobam à de BOBBIO e, principalmente, à de HART): o
da
legitimidade
em
relação
à
legalidade;
e
o
da
discricionariedade em relação à legalidade, têm gerado os mais
interessantes,
e
quiçá
mais
importantes,
debates
jusfilosóficos da atualidade.162
161
PERELMAN, C. Obra citada, p. 92-93.
Chega-se então a um terceiro momento, qual seja a tentativa de superação
do ponto de vista positivista em que o direito prevalece sobre a moral.
Pretende-se encontrar um fundamento (moral) ao direito sem recorrer, no
entanto, ao direito natural.
162
106
Quanto
ao
problema
da
legitimidade,
vamos
trazer algumas posições de HABERMAS; e quanto à questão da
discricionariedade,
vamos
mencionar
o
debate
que
tem
sido
liderado por DWORKIN a esse respeito.163
Passemos,
portanto,
à
análise
da
crítica
de
HABERMAS ao conceito positivista de legalidade, com ênfase no
problema da legitimidade do direito positivo moderno.164
Para tanto, serão confrontados ao pensamento de
HABERMAS os pensamentos de Max WEBER e de KELSEN. A escolha
não é, de forma alguma, aleatória. WEBER construiu um conceito
positivista de legitimidade que permeia todas as discussões
sobre o tema até os dias de hoje. Com efeito, é com base nele
que Hans KELSEN examina a legitimidade na sua teoria pura do
direito. HABERMAS, a seu turno, buscando reafirmar as conexões
entre
direito,
daqueles
moral
e
política,
pensamentos,
à
medida
em
representa
que
busca
o
contraponto
abrir
a
cela
163
Não se pretende aqui aprofundar esses temas, esgotando-os, mas tãosomente situá-los no contexto contemporâneo de discussão. O panorama, ainda
que superficial, dessas análises que agora serão efetuadas, somado aos
dados histórico-filosóficos trazidos até aqui, são essenciais para a
compreensão dos problemas jurídicos da atualidade, inclusive no que se
refere ao papel que uma teoria da argumentação jurídica possa exercer nesse
contexto, conforme será debatido no próximo capítulo.
164
A análise terá como guia a comunicação que foi apresentada em 04 de
setembro de 1995 por Caio Mário da Silva PEREIRA NETO; intitulada “Alguns
Apontamentos sobre a Crítica de Habermas ao Conceito Positivista de
Legitimidade”, que foi seguida de intensos debates na seção reservada aos
estudantes pelo V Congresso Brasileiro de Filosofia, presidido por Miguel
REALE entre os dias 03 e 08 de setembro de 1995 na Faculdade de Direito do
Largo São Francisco (Universidade de São Paulo - USP). A comunicação acima
referida foi posteriormente publicada nos anais do Congresso, cf. A
Filosofia, Hoje: Anais do V Congresso Brasileiro de Filosofia, p. 677-692.
107
hermética em que WEBER e KELSEN haviam trancado o sistema
jurídico
ao
se
utilizarem
de
um
conceito
positivista
de
legitimidade.
Sendo
assim,
a
análise
estará
centrada
nos
seguintes pontos: a) no conceito de legitimidade que Max WEBER
desenvolve na sua tipologia da dominação legítima e de sua
aplicação no que diz respeito à dominação legal-racional; b)
na utilização dada por KELSEN àquele conceito; e c) por fim,
na crítica central que HABERMAS desenvolve, ainda acerca do
conceito de legitimidade, na sua teoria da ação comunicativa.
Em sua obra Economia e Sociedade165, Max WEBER
se utiliza do conceito de legitimidade para diferenciar os
tipos puros de dominação. Para tanto, WEBER parte da premissa
de que, em função da classe de legitimidade em que se funda
uma determinada dominação, as suas características básicas,
como
o
seu
quadro
administrativo
e
o
seu
próprio
modo
de
exercício, alteram-se. Vê-se então que a legitimidade é tomada
como um critério chave para diferenciar os tipos puros de
dominação.
Entendendo por dominação a “...probabilidade de
obediência
165
166
a
um
determinado
mandato”166,
WEBER
chega
ao
WEBER, Max. Economia y sociedad. 2. ed. Traduzido por José Medina
Echavarría et alii, México: Fondo de Cultura Econômica, 11.
Reimpressão, 1997.
WEBER, M. Economia y sociedad, p. 171.
108
seguinte
conceito
de
legitimidade:
[de
“probabilidade
uma
dominação] ser tratada praticamente como tal e mantida em uma
importante”.167
proporção
Portanto,
é
pela
crença
na
sua
legitimidade que uma dominação se mantém independentemente do
motivo específico e subjetivo de cada um dos dominados para
obedecer
aos
mandatos
que
lhes
são
impostos,
é
na
crença
genérica em sua legitimidade que repousa a estabilidade de uma
dominação.
WEBER,
ao
desenvolver
a
sua
tipologia,
identifica três possíveis fundamentos para a legitimidade da
dominação
política:
a)
fundamento
racional
que
descansa
na
crença na legalidade; b) fundamento tradicional que repousa na
crença na tradição; e c) fundamento carismático que se baseia
na crença em qualidades especiais de uma pessoa.
O fundamento racional identificado por WEBER é
de especial importância, pois é nele que, para o autor, reside
a
estabilidade
da
dominação
legal
característica
de
nosso
tempo. Seria a crença na legalidade que levaria à submissão
dos dominados a esta forma de dominação caracterizada pela
positivação
do
direito
e
predominantemente burocrático.
167
WEBER, M. Idem, ibidem.
por
um
quadro
administrativo
109
Com efeito, a idéia básica da dominação legalracional é a de que “...qualquer direito pode ser criado e
modificado mediante um estatuto sancionado corretamente quanto
à forma”.168
Vê-se aqui que WEBER, ao fundar a legitimidade
da dominação legal na crença na legalidade e, portanto, na
possibilidade de criação e modificação do direito, está nos
remetendo a um novo problema: o que é legal? Ora, esta questão
de reconhecimento do que seja ou não legal se torna a chave
para a legitimidade de fundamento racional.
Com
legitimidade
do
isso
direito
WEBER
desloca
positivo
para
o
a
problema
da
questão
do
procedimento pelo qual o direito é produzido e modificado. É o
procedimento
formal
concreto
que
vai
permitir
uma
identificação do que é ou não legal e, por sua vez, é a crença
naquilo identificado como legal que residirá a legitimidade
desse tipo de dominação. Portanto, em última análise, a pedra
fundamental da legitimidade do edifício jurídico moderno, no
pensamento weberiano, passa a ser a crença em um determinado
procedimento que permita a identificação do direito.
Cabe observar que a construção descrita acima
traz a legitimidade para o interior da legalidade. Ora, à
168
WEBER, M., Idem, p. 174.
110
medida em que o direito se auto-legitima por um procedimento
jurídico
formal
próprio,
dispensa
qualquer
fundamentação
externa a ele próprio. É exatamente essa construção que vai
permitir
a
subjacente
afirmação
à
toda
da
autonomia
discussão
do
direito,
jusfilosófica
desde
que
está
HOBBES,
se
quisermos tomar algum autor como referencial. De fato, é essa
autonomia
que
é
muitas
vezes
invocada
para
diferenciar
o
direito moderno do direito antigo e é ela também que pode ser
apontada como uma das diferenças primordiais entre a dominação
legal-racional
e
tradicional
carismática,
e
os
outros
dois
ambas
tipos
de
dependentes
dominação,
de
fatores
externos ao direito: a tradição e o carisma, respectivamente.
Justamente essa transformação do problema da
legitimidade em um problema de procedimento e a conseqüente
absorção da legitimidade pela legalidade é que vão dar a base
teórica para que Hans KELSEN dê uma roupagem mais acabada à
teoria weberiana. Vejamos como isso ocorre.
KELSEN procura, com a teoria pura do direito,
desenvolver
ideologia
uma
teoria
política
e
jurídica
de
todos
“...purificada
de
toda
os
de
ciência
elementos
a
111
natural”169
e
elevar
a
jurisprudência
a
uma
“...genuína
ciência, de uma ciência do espírito”.170
Nesta
sua
busca
de
uma
ciência
pura,
circunscreve o seu objeto de estudo, qual seja o direito,
isolando-o de quaisquer influências externas. O direito que
Hans KELSEN analisa é então um direito completamente separado
da moral e da política e, portanto, clama por uma autonomia
absoluta.
Assim o conceito de legitimidade construído por
WEBER
é
facilmente
absorvido
pela
teoria
pura
do
direito,
conferindo autonomia ao seu objeto de estudo (o direito) e
possibilitando a explicação e justificação do seu dinamismo. A
teoria
positivista
de
KELSEN
leva
ao
extremo
a
proposta
weberiana, acabando por demostrar algumas distorções.
KELSEN define o princípio da legitimidade como
o “...princípio de que a norma de uma ordem jurídica é válida
até a sua validade terminar por um modo determinado através
desta
mesma
ordem
jurídica,
ou
até
ser
substituída
pela
validade de uma outra norma desta ordem jurídica...”171
Assim,
vê-se
novamente
que
o
problema
da
legitimidade de um ordenamento jurídico se coloca na questão
169
170
171
KELSEN, Hans. Teoria pura do direito, prefácio à 1 ed., p. XI.
KELSEN, H. Idem, ibidem.
KELSEN, H. Obra citada, p. 233.
112
do
procedimento.
procedimento
Mais
ainda,
encontra-se
na
definição
claramente
no
de
KELSEN
interior
da
o
ordem
jurídica, pois ele deve necessariamente ser determinando por
ela própria. Observa-se que a legitimidade fica equiparada à
legalidade:
procedimento
tudo
que
é
determinado
legal,
pela
isto
ordem
é,
que
cumpre
jurídica,
é
o
também
legítimo.
KELSEN percebe, contudo, que esse conceito de
legitimidade só se aplica em uma ordem jurídica estável172, o
que o leva a examinar a situação limite de uma revolução, em
que o poder instituído é subjugado e substituído pelo poder
revolucionário,
podendo
este
modificar
a
observa
o
constituição,
ou
mesmo substituí-la.
Nesta
situação,
autor,
a
norma
fundamental, que serve de fundamento de validade para todas as
outras
é
substituída
por
uma
nova,
modificando
portanto
o
fundamento de validade de toda a ordem jurídica. Se a nova
constituição
modifica
o
procedimento
pelo
qual
se
dá
a
produção de normas válidas, surge então a questão das normas
que haviam sido produzidas sob a égide da antiga constituição,
172
Deve-se observar aqui uma inversão do problema inicial que WEBER se
propunha a resolver ao definir a legitimidade como a probabilidade de
conservação de um determinado tipo de dominação. Com o deslocamento do
problema para a questão do procedimento, KELSEN acaba sendo levado a
afirmar que o seu conceito de legitimidade só se aplica a uma ordem
jurídica estável. Vê-se assim que o conceito weberiano começa a enfrentar
problemas.
113
mas
continuam
nessas
sendo
revoluções,
válidas,
grande
pois,
parte
do
como
acontece
edifício
em
geral
jurídico
fica
intacto.
A resposta a essa pergunta é dada da seguinte
forma: há apenas uma mudança no fundamento de validade, as
normas
antigas
continuam
com
o
mesmo
conteúdo
mas
sob
um
fundamento de validade novo, a nova constituição.
Ao
normas
constatar
produzidas
fundamentos
extinção
de
de
sob
validade
normas
pelo
a
possibilidade
procedimentos
distintos)
modo
e
de
coexistirem
diferentes
a
(sob
possibilidade
determinado
por
uma
de
ordem
jurídica diversa da que havia instituído as mesmas normas,
torna-se
impossível
sustentar
que
a
legitimidade
está
exclusivamente ligada ao procedimento.
KELSEN
introduzir
um
elemento
acaba
novo,
então
se
vendo
limitativo
do
obrigado
princípio
a
da
legitimidade acima descrito: a efetividade do governo. Daí a
afirmação de que “...o governo efetivo, que, com base numa
Constituição eficaz, estabelece normas gerais e individuais
eficazes, é o governo legítimo do Estado”.173
173
KELSEN, H. Obra citada, p. 234. Este é um dos pontos da teoria de KELSEN
que sofreram as críticas mais contundentes, as quais foram denominadas por
LOSANO como críticas imanentes (cf. LOSANO, Mario G. In prefácio à edição
italiana de KELSEN, Hans. O problema da justiça, p. VII-XXXIII).
114
A dominação legítima, nesta concepção, passa
então a ser aquela efetiva e, conseqüentemente, o procedimento
só vai exercer o seu papel legitimador da ordem jurídica a
partir do momento em que estiver fundado em um poder efetivo
(legítimo e eficaz).
O
Kelseniana
do
que
se
pode
de
legitimidade
conceito
constatar
é
da
uma
construção
inversão
do
problema proposto por WEBER. Este propunha uma tipologia da
dominação
classes
que
de
utilizava
como
legitimidade,
critério
sendo
básico
esta
a
as
diferentes
probabilidade
de
manutenção de um determinado tipo de dominação.
No caso da dominação legal, o fundamento da
legitimidade
é
apontado
como
sendo
de
ordem
racional
e
identificado como a crença na legalidade. Para que exista essa
crença
é
necessário,
por
sua
vez,
um
procedimento
que
identifique o que é e o que não é legal. A partir de então o
problema
do
que
é
legítimo
é
deslocado
para
a
questão
do
procedimento que permite fazer esta identificação.
KELSEN parte dessa noção para poder afirmar a
legitimidade de um sistema jurídico autônomo. Contudo, quando
leva este raciocínio a uma situação limite (uma revolução), o
procedimento não serve mais como fator de legitimação.
Neste
passa
a
ser
a
exato
efetividade
momento
do
o
poder
fator
de
fundante
legitimação
e
é
desta
115
efetividade
que
decorre
a
legitimidade
do
novo
poder
e
a
posterior restauração da legalidade174. É importante notar que
a legitimidade, no sentido procedimental formal que lhe dá
WEBER,
deixa
de
ser
o
fator
gerador
de
estabilidade
da
dominação para ser uma conseqüência dessa estabilidade que, em
última instância, é fruto da efetividade do poder político.
Com essa distorção o conceito de legitimidade
concebido
demais
por
WEBER
estreito
para
e
reafirmado
compreender
por
o
KELSEN
torna-se
por
fenômeno
jurídico
que
caracteriza a modernidade.
É preciso buscar um conceito mais largo que
seja capaz de realizar essa tarefa. É exatamente isso que
busca
HABERMAS,
conforme
se
depreende
da
sua
crítica
ao
conceito weberiano, cujos contornos podem ser localizados na
Teoria da Ação Comunicativa.175
HABERMAS, em sua Teoria da Ação Comunicativa,
faz uma análise do pensamento weberiano, abordando a obra de
WEBER como um todo e tendo como fio condutor a teoria da
174
Tercio Sampaio FERRAZ JR. assume, na sua teoria pragmática da validade,
uma mudança do padrão de validade descrevendo uma oscilação entre o padrãolegalidade e o padrão-efetividade: “... O padrão-efetividade está em uso no
momento em que aparece uma nova norma-origem. Daí para a frente, volta o
padrão-legalidade” (FERRAZ JR., Tercio Sampaio. Introdução ao estudo do
direito: técnica, decisão, dominação, p. 192). Esta mudança de padrão é
análoga à questão levantada por KELSEN, acima mencionada. Contudo, KELSEN
não admite uma mudança de padrão, apenas uma limitação do princípio de
legitimidade.
175
HABERMAS, Jürgen. Teoría de la acción comunicativa. Madrid: Taurus,
1987.
116
racionalização
dedicado
ao
social.
Mais
pensamento
de
que
Max
uma
WEBER
análise,
é
um
o
capítulo
diálogo
em
que
HABERMAS identifica no seu interlocutor certas deficiências e
incongruências. Dentro desse diálogo HABERMAS faz uma crítica
veemente
ao
conceito
de
legitimidade
que
WEBER
atribui
à
dominação legal.
Este conceito que, conforme abordado acima, é
fundamental para a crença na legalidade, acaba dando origem à
concepção
mediante
de
o
que
a
legitimação
procedimento.
do
HABERMAS
direito
aponta
um
moderno
se
paradoxo
dá
nessa
concepção: “A fé na legalidade só pode criar legitimidade se
se
supõe
de
antemão
a
legitimidade
da
ordem
jurídica
que
determina o que é legal”.176
Ao
apontar
esta
contradição,
HABERMAS
está
questionando a legitimidade do próprio procedimento, pois a
“...fé na legalidade de um procedimento não pode engendrar
legitimidade per se, isto é, pela simples virtude da correção
procedimental do próprio ordenamento positivo”.177
Ora,
assentar
a
legitimidade
do
direito
no
procedimento não resolve o problema, apenas desloca-o para o
próprio
176
177
procedimento.
Persiste
HABERMAS, J. Obra citada, p. 343.
HABERMAS, J. Idem, p. 344.
então
a
indagação
do
que
117
confere a legitimidade ao procedimento legitimador178. Eis aí a
questão com que se depara HABERMAS ao pretender analisar a
questão da legitimidade do direito moderno.
Tentando identificar o que leva WEBER a cometer
este equívoco, HABERMAS só encontra uma possibilidade: WEBER
apela para uma tradicionalização secundária do procedimento,
desconsiderando os pressupostos racionais materializados nas
instituições.
Apesar
de
ter
consciência
de
que
existam
fundamentos racionais na instituição do procedimento, WEBER
põe esses fundamentos em suspensão, acreditando que, uma vez
existente o procedimento, as pessoas não mais se preocupam com
o
seu
fundamento
racional
e
ele
se
transforma
então
numa
espécie de tradição.
Para
HABERMAS,
mesmo
nestes
casos
em
que
o
procedimento sofre um efeito de tradicionalização, o que dá o
caráter
legítimo
a
uma
decisão
legal
é
a
confiança
nos
fundamentos racionais subjacentes ao ordenamento jurídico como
um todo. Assim, permanece a questão da fundamentação racional
que,
para
o
teórico
da
ação
comunicativa,
permeia
todo
o
direito moderno.
178
Na realidade este é o problema enfrentado por KELSEN na situação limite
exposta acima. Numa revolução, o que se coloca em cheque é o próprio
procedimento. A questão aí é a mesma: o que legitima o procedimento? Ou, se
se formular de outra forma: qual procedimento pode ser considerado
legítimo? KELSEN não responde a esta pergunta. Ao invés disso ele introduz
o princípio da efetividade como limitante do princípio da legitimidade.
Assim, o problema continua sem resposta.
118
É
justamente
repensando
a
questão
da
fundamentação racional que HABERMAS vai tentar construir um
novo conceito de legitimidade. Um conceito mais largo, capaz
de compreender a totalidade do fenômeno, deixando de lado os
vícios
e
segundo
preconceitos
ele,
a
positivistas
que
interpretações
acabaram
equivocadas
levando,
que
os
justificassem.
HABERMAS esboça o seu conceito de legitimidade,
ainda que de forma inacabada, num trabalho intitulado ¿Como es
Posible la Legitimidad por Via de la Legalidad?179, em que
defende
a
tese
de
que
o
direito
moderno
não
se
encontra
desconectado da moral e da política. Ao revés, é na relação
com a moral, limitada pela sua relação com a política, que
reside a legitimidade do direito positivo característico da
nossa sociedade.
Para
construir
esse
complexo
de
relações,
HABERMAS parte de uma análise do direito pré-moderno, em que
identifica a coexistência de um direito sacro com um direito
profano. O direito sacro é o fator que legitima as decisões.
Portanto, o príncipe só pode agir dentro do âmbito em que está
legitimado
pelo
direito
sacro.
Este,
por
sua
vez,
era
incondicionado e baseado na crença em imagens religiosas do
179
HABERMAS, Jürgen. ¿Como es posible
legalidad? In: Revista Doxa nº 5, 1988.
la
legitimidad
por
via
de
la
119
mundo, as quais dominavam as estruturas de consciência prémodernas.
Esta
coexistência
do
direito
profano
com
o
direito sagrado demostra uma tensão interna ao direito: aquela
entre
o
seu
caráter
instrumental
e
o
seu
caráter
não
instrumental. O caráter instrumental do direito dizia respeito
ao direito profano, burocrático e utilizado como meio para
atingir objetivos políticos. Já o caráter não instrumental era
encontrado na incondicionalidade do direito sacro, pressuposto
na regulação judicial dos conflitos pelo direito burocrático.
Contudo, no momento em que ocorre o fenômeno da
positivação
do
direito,
as
imagens
religiosas
do
mundo
já
estão reduzidas a convicções de ordem subjetiva. Isso faz com
que o direito sacro não mais sirva como suporte de um direito
profano,
cada
vez
mais
complexo
e,
a
partir
de
então,
em
constante mutação. O direito fica desprovido daquele caráter
de
incondicionalidade
que
conferia
legitimidade
ao
poder
político responsável por instituí-lo.
Nesta situação, para que o direito não fique
reduzido
à
imposição
de
mandatos
de
um
soberano
(redução
defendida por todos os seguidores de HOBBES), o que levaria a
sua absorção pela política e a conseqüente decomposição do
próprio
conceito
de
política,
cumpre
buscar
um
outro
fundamento de legitimidade que seja capaz de assegurar aquele
120
momento de incondicionalidade antes existente. Essa é a busca
que HABERMAS se propõe a fazer. Só assim o direito pode manter
o
caráter
de
obrigação
que
antes
lhe
era
conferido
pela
autoridade do direito sacro.
HABERMAS começa a sua busca de um fundamento
para o direito moderno observando que, só no momento em que
surge uma moral convencional (em que as normas jurídicas são
prévias, independentes da situação e vinculantes para todos),
torna-se possível o surgimento de um poder político organizado
por
meio
de
um
direito
coercitivo.
Isso
porque,
sustenta
HABERMAS, só no momento em que o poder de fato recebe uma
autoridade normativa conferida por uma norma jurídica e que
tenha este caráter moral e convencional (e é neste momento que
passa
a
ser
legítimo)
pode
impor
politicamente
normas
jurídicas.
Essa constatação leva HABERMAS a concluir que o
fundamento do direito moderno só pode estar na sua relação com
a
moral:
inclusive
“...aquele
no
direito
momento
moderno
de
incondicionalidade
constitui
um
contrapeso
que
à
instrumentalização política do meio que é o direito, deve-se
ao entrelaçamento da política e do direito com a moral”.180 Não
se
180
trata
aqui
de
uma
HABERMAS, J. Idem, p. 25.
moral
tradicional,
fundada
em
uma
121
interpretação mítica do mundo, mas de uma moral convencional,
autônoma, que apresenta uma racionalidade própria.
Nesse
sentido,
o
direito
natural
racional,
superado no século XIX devido à tamanha complexidade que a
sociedade
moderna
construir
este
atingiu,
foi
a
entrelaçamento
primeira
entre
tentativa
uma
moral
de
pós-
tradicional181 e o direito, ligando este a princípios daquela e
colocando-o
sobre
procedimental
procedimento
(o
o
pano
contrato
hipotético
de
fundo
social
que
de
uma
nada
justifica
racionalidade
mais
é
moralmente
que
o
um
poder
exercido através do direito positivo).
Aí reside a chave do conceito de legitimidade
habermasiano
na
racionalidade
prático-moral:
“Esta
princípios
procedimentos
e
exige
que
procedimental
de
distingamos
entre
justificatórios,
uma
razão
normas
e
procedimentos
conforme os quais possamos examinar se as normas, à luz dos
princípios
válidos,
podem
contar
com
o
assentimento
de
todos”.182
181
O que HABERMAS considera como moral pós-tradicional é a moral autônoma,
regida por um critério de racionalidade próprio e fruto do desencantamento
das imagens do mundo descrito na teoria da racionalização social de WEBER.
Segundo este autor a evolução das imagens religiosas do mundo leva à
autonomização de três esferas de racionalidade regidas por critérios
independentes: a esfera cognitivo-instrumental, a esfera prático-moral e a
esfera estético-expressiva. Sobre isso ver a análise que HABERMAS faz
acerca do pensamento de WEBER na teoria da ação comunicativa.
182
HABERMAS, J. Obra citada, p. 29.
122
Esta razão prática tem como núcleo a idéia de
imparcialidade. Desta forma, a legitimidade do direito só pode
ser
obtida
por
meio
de
procedimentos
que
assegurem
a
imparcialidade dos juízos (no caso da aplicação das normas) e
da
vontade
(no
caso
da
sua
produção)
por
via
de
uma
argumentação que justifique e fundamente as normas.183 Esses
procedimentos devem ser institucionalizados dentro do direito
positivo, permitindo que este comporte discursos morais.
Cabe nesse ponto a seguinte questão: supondo a
aplicação dessa justiça procedimental para que haja a produção
de normas segundo o critério da imparcialidade, por que então
estas
normas
precisam
ser
institucionalizadas
na
forma
de
normas jurídicas? Não bastaria que elas fossem apenas normas
morais? HABERMAS responde a esta pergunta com a afirmação de
que a moral pós-tradicional possui um déficit motivacional, ou
seja, a moral autônoma carece daquela conexão com a eticidade
concreta característica da moral tradicional.
Assim, os agentes de uma dada sociedade podem
identificar racionalmente (sempre segundo uma razão prática)
as normas que seguem o procedimento, mas estas não têm aquela
183
Cf. HABERMAS, J. Idem, p. 39, em que são abordadas as teorias da justiça
de John RAWLS, de KOHLBER e de K. O. APEL — denominadas teorias
procedimentais da justiça — as quais, ao tratarem o tema da elaboração do
procedimento como fundamento de imparcialidade das normas, representam,
segundo HABERMAS, propostas sérias que permitem analisar questões práticas
de um ponto de vista moral.
123
força motivacional de outrora que os impelia a realizar na
prática
os
exigíveis
possam
seus
somente
esperar
juízos
à
que
morais.
medida
todos
em
os
As
que
normas
aqueles
outros
passam
que
também
as
ajam
a
ser
cumpram
na
sua
conformidade.
Aí reside a necessidade da institucionalização
jurídica. Para garantir a aplicação geral e num prazo fixo das
normas relativas a problemas funcionais importantes, resolução
de conflitos e matérias de maior importância social, faz-se
necessária a positivação desta norma por um poder político
capaz de assegurá-la coercitivamente. Só por essa via pode-se
evitar os problemas de insegurança gerados num complexo de
normas puramente morais. Neste sentido, o direito complementa
a moral, corrigindo a sua debilidade motivacional por meio da
coerção.
Exigindo um poder político que o institua, o
direito mostra a sua outra face: o seu caráter instrumental. O
poder político se utiliza de normas jurídicas, justificadas e
fundamentadas por meio de um discurso que mescla argumentos
morais
isso,
e
políticos,
HABERMAS
para
afirma
política e a moral”.184
184
HABERMAS, J. Idem, p. 42.
que
atingir
“...o
objetivos
direito
se
políticos.
situa
Por
entre
a
124
Como
já
ficou
esboçado,
mais
que
uma
mera
complementação da moral com o direito, HABERMAS defende um
entrelaçamento entre os dois. Este se verifica pela observação
de
que
existe
uma
abertura
do
direito
positivo
para
argumentações morais que o justifique e fundamente. Há aí a
migração
de
uma
moral
puramente
procedimental
(despida
de
conteúdo normativo) para o interior do direito.
Nesse
limitam
por
meio
de
contexto,
ambos
procedimentos
(direito
mútuos.
e
Os
moral)
se
procedimentos
jurídicos deixam um certo espaço para que seja realizado o
discurso
moral
(efetuado
à
luz
de
princípios
válidos
que
justificam e fundamentam as normas), fundamental para a sua
legitimação. Contudo, este espaço é modelado pela política.
São as lutas políticas que determinam quanto deste espaço é
ocupado
por
imperativos
um
discurso
funcionais
que
moral
e
põem
em
quanto
é
suspenso
ocupado
os
por
princípios
morais. Enfim, a relação legitimadora entre direito e moral é
regulada
pela
política,
que,
por
sua
vez,
acaba
também
dependendo dessa relação, pois é dela que o poder político
extrai a sua legitimidade.
Com
essa
intrincada
relação
entre
moral,
direito e política, HABERMAS chega à “...idéia de um Estado de
Direito, com divisão de poderes, que extrai sua legitimidade
de
uma
racionalidade
que
garanta
a
imparcialidade
dos
125
procedimentos legislativos e judiciais”.185 Esta idéia funciona
como
um
standard
constitucional,
crítico
já
que
que
ela
permite
“...não
avaliar
se
a
limita
a
realidade
se
opor
abstratamente (em um impotente dever-ser) a uma realidade que
tampouco
lhe
corresponda.
Antes
de
tudo
a
racionalidade
procedimental (...) constitui (...) a única dimensão que resta
em que se pode assegurar ao direito positivo um momento de
incondicionalidade
e
uma
estrutura
imune
de
ataques
contingentes.”186
Ao encarar o direito como um sistema aberto a
questões
procedimentais
de
cunho
moral
e
influenciado
profundamente pela política, HABERMAS traz para o centro da
problemática jurídica questões que os juristas positivistas
acreditavam não ser da sua alçada. E ainda vai além, recoloca
questões que os positivistas pensavam ter resolvido. HABERMAS
traz à tona, portanto: a questão da justiça, a questão da
democracia e a questão da autonomia do direito.
A
questão
da
justiça,
desde
o
advento
do
positivismo jurídico, foi relegada à filosofia moral, mas com
HABERMAS é trazida para o seio da questão da legitimidade. É
por meio de uma justiça procedimental de caráter moral, com o
seu núcleo fundado na idéia de imparcialidade, que HABERMAS
185
186
HABERMAS, J. Idem, p. 37.
HABERMAS, J. Idem, ibidem.
126
acredita
ser
possível
garantir
ao
direito
moderno
a
sua
autoridade e, conseqüentemente, o seu caráter de obrigação.
Assim
sendo,
o
jurista
moderno,
ao
estar
envolvido com a aplicação e produção de normas deverá, sob
pena de tornar o direito suscetível a ataques contingentes,
estar sempre preocupado com a realização deste procedimento de
tomada
imparcial
de
decisões
coletivas.
Tendo
em
vista
as
dificuldades, num primeiro plano, de conceber teoricamente um
procedimento que assegure essa imparcialidade nas sociedades
complexas atuais e, num segundo plano, de aplicá-lo nessas
mesmas sociedades, está aí um grande desafio para o jurista de
hoje: estar sempre questionando o procedimento racional pelo
qual se dá a fundamentação e justificação das normas. Este
procedimento permanece sempre aberto a uma crítica racional
por meio do discurso e, portanto, ele está continuamente sendo
reconstruído pelos participantes do discurso.
Aqui se apresenta uma segunda questão para a
qual HABERMAS chama a atenção: quem são os participantes do
discurso? Essa é a questão da democracia. Quando o teórico da
ação comunicativa coloca numa moral procedimental o fundamento
da
legitimidade
participação,
procedimento,
de
moderna,
alguma
daqueles
que
exige
forma
serão
a
conseqüentemente
ser
atingidos
definida
pelas
a
pelo
normas
criadas ou aplicadas. Mas não há critérios prévios, de modo
127
que só com a participação de todos no discurso poderá ser
garantida a imparcialidade que a razão prática exige.187
Sob esse enfoque cabe então a seguinte questão:
até que ponto o procedimento democrático moderno, fundado em
pilares como a regra da maioria e a representação política,
consegue cumprir o pressuposto de legitimidade apresentado por
WEBER?
Isso
indivíduos
em
faz
uma
repensar
a
democracia.
forma
Como
de
participação
garantir
essa
dos
formação
discursiva da vontade coletiva?
Estas duas primeiras questões representam bem
uma
gama
de
problemas
muito
complexos
que
surgem
ao
se
estabelecer uma conexão entre direito, política e moral. Além
disso, elas recolocam o problema da autonomia do direito em
outros termos. Se não se pode mais caracterizar o direito como
um sistema fechado, fica abalado o conceito de autonomia do
sistema jurídico defendido pelos positivistas, que estipula
uma independência do direito a qualquer fator que lhe for
externo. Onde está então a autonomia do direito? Ou deixaria
ele de ser autônomo?
187
“A fundamentação do sistema de direitos (direitos fundamentais e
direitos positivos), com o auxílio do princípio do discurso, pode ser
esclarecida a partir do princípio da democracia, forma que assume a
intersubjetividade argumentativa, no discurso de legitimação de direitos,
assim expresso: ‘D: são válidas as normas de ação às quais todos os
possíveis atingidos poderiam dar o seu assentimento, na qualidade de
participantes
de
discursos
racionais”
(LUDWIG,
Celso
Luiz.
Razão
comunicativa e direito em habermas, p. 10-11, grifos no original).
128
A proposta de HABERMAS é a de que a autonomia
do direito está justamente no seu entrelaçamento com a moral e
a política. É essa relação entre os três campos que confere ao
direito a possibilidade de ser autônomo. É ela que impede que
o
fenômeno
jurídico
se
dissolva
ou
em
puras
considerações
morais, ou em pura imposição política. Por isso, diz HABERMAS,
“...autônomo é um sistema jurídico, só à medida em que os
procedimentos
institucionalizados
para
a
legislação
e
a
administração da justiça garantam uma formação imparcial da
vontade e do juízo e por essa via permitam que se introduza,
tanto
no
direito
quanto
na
moral,
uma
racionalidade
instrumental de tipo ético. Não pode haver direito autônomo
sem democracia realizada”.188
Com essas considerações acerca do pensamento de
HABERMAS sobre o fenômeno da legitimidade, vê-se pois que o
problema da moral está longe de ser algo que não mereça a
preocupação dos juristas, como pretende — ou pretendia — o
positivismo jurídico.
188
HABERMAS, J. Obra citada. p. 45.
129
2.5 Legalidade e Discricionariedade: Hart X Dworkin
Cabe agora fixar o olhar sobre o outro problema
mencionado
anteriormente:
o
da
discricionariedade
do
intérprete. Para tanto será analisado o debate travado entre
HART e DWORKIN, que talvez seja a melhor forma de situar o
problema.
A consolidação do positivismo jurídico que teve
lugar no século XIX mediante a junção dos métodos da exegese e
do conceitualismo dava ao intérprete — em especial ao juiz —
uma tarefa neutra em relação à lei.
Com
efeito,
a
atitude
do
intérprete
seria
apenas a de subsumir fatos às normas, como num silogismo189, o
que
tornava
mecânica
(ou
lógico-mecânica)
a
função
do
aplicador das normas.
Cedo
surgiram
os
problemas
daquela
ambição
racionalista — pois a teoria não acompanhava as novas demandas
impostas por uma realidade social em constante mutação — e
também
cedo
surgiram
racional-legalista
do
teorias
que
se
contrapunham
positivismo
de
então,
que
ao
ideal
entrou
em
crise.
189
Em que a lei funcionaria como premissa maior, o fato ficaria na posição
da premissa menor e a inevitável conclusão seria a norma a ser aplicada ao
caso particular.
130
Das várias correntes jurídicas surgidas desde
então,
ainda
que
opostas
entre
si
—
como
por
exemplo
as
escolas sociológicas e o normativismo — num ponto ao menos,
segundo ALEXY, estão de acordo:
“
...um dos poucos pontos em que existe acordo na
discussão metodológica-jurídica contemporânea é o de que
a decisão jurídica (...) exprimível em um enunciado
normativo singular não se segue logicamente, em muitos
casos, das formulações das normas que deve pressupor
como vigentes.”190
Desse
ponto
comum
surgiram
duas
grandes
tendências teóricas que vão se desenvolver no século XX: a)
uma primeira, aparentemente mais fiel à tradição positivista
que,
tendo
verificado
as
possibilidades
da
lógica
no
raciocínio jurídico, chega à conclusão de que, naqueles casos
em que a lógica não fosse apta para fundamentar uma decisão
jurídica,
o
intérprete
discricionariedade,
estaria
tornando-se
autorizado
então
um
a
se
sujeito
valer
de
político
criador de direito; e b) uma segunda, pelo contrário, tentando
evitar aquela conclusão — que afinal de contas atingia os
alicerces do Estado liberal forjado pelo iluminismo — tentou
construir uma nova lógica que pudesse compensar o déficit de
racionalidade que caracterizava a argumentação jurídica, ou
seja, um método jurídico alternativo que conduzisse o processo
190
ALEXY, Robert. Teoría de la argumentación jurídica: la teoría
discurso racional como teoría de la fundamentación jurídica, p. 23.
del
131
de decisão quando o direito escrito e a lógica se mostrassem
insuficientes
ou
conduzissem
de
qualquer
modo
a
resultados
insatisfatórios.
Na primeira das tendências acima referida podem
ser enquadrados KELSEN, BOBBIO e HART; e é justamente a tese
cética
que
admite
a
discricionariedade
do
intérprete
em
algumas situações que se tornou o principal objeto de crítica
no
pensamento
de
DWORKIN,
conforme
se
verá
ainda
neste
capítulo.
Na segunda das tendências em questão enquadramse
VIEHWEG
e
PERELMAN
que,
respectivamente,
trouxeram
ao
debate contemporâneo, a partir da segunda metade do século XX,
a
possibilidade
de
se
utilizar,
como
forma
de
raciocínio
jurídico, as velhas formulações de ARISTÓTELES sobre a tópica
e
a
retórica,
capítulo
temas
subseqüente,
esses
que
através
serão
da
objeto
de
descrição
do
análise
do
pensamento
específico de PERELMAN.191
191
Cada uma dessas duas tendências, à primeira vista contraditórias e que
de fato entraram várias vezes em aberta polêmica, certamente ofereceram
perspectivas originais e valiosas. Assim, o positivismo de KELSEN, BOBBIO
ou HART talvez tenha sido um dos grandes responsáveis pelo estímulo a uma
análise mais rigorosa da linguagem jurídica e do alcance da lógica no
direito, mas, sobretudo, permitiu o desenvolvimento de uma redefinição das
atribuições do juiz e de seus modelos de conduta, vez que se o intérprete
já não era mais hermeticamente circunscrito às disposições literais da lei
— como queria MONTESQUIEU — mas sim um ativo criador de direito, tornaramse prementes reflexões quanto à sua legitimidade e quanto às melhores
formas de fiscalização dessa atividade de criação judicial (o debate
iniciado por DWORKIN, como veremos, tem sido um bom exemplo disso). De
outro lado, os expoentes da tópica, da hermenêutica ou da retórica
132
A
separação
radical
entre
direito
e
moral
promovida pelo positivismo jurídico é rechaçada por DWORKIN,
que procura restabelecer essa relação a partir de uma teoria
que vê nos princípios192 jurídicos um status lógico distinto
daquele que se refere às regras. Quanto a estas, ou se aplicam
no todo ou não se aplicam, enquanto os princípios fornecem
razões para que se tomem decisões em um determinado sentido,
mas seus enunciados, ao contrário das regras — não determinam
as condições de sua aplicação:
“
A diferença entre regras e princípios não é
simplesmente uma diferença de grau, mas sim de tipo
qualitativo ou conceitual. As regras são normas que
exigem um cumprimento pleno e, nessa medida, podem
somente ser cumpridas ou descumpridas. Se uma regra é
válida, então é obrigatório fazer precisamente o que
ordena, nem mais nem menos. As regras contêm por isso
determinações
no
campo
do
possível
fática
e
juridicamente. A forma característica de aplicação das
regras é, por isso, a subsunção. Os princípios, no
entanto, são normas que ordenam que se realize algo na
maior medida possível, em relação às possibilidades
jurídicas e fáticas. Os princípios são, por conseguinte,
permitiram o rompimento daquilo que para KELSEN, a teor do que costuma
dizer VERNENGO em suas conferências e obras, era uma caixa preta (Cf.
VERNENGO, Roberto José. Curso de teoría general del derecho; e, ainda, La
interpretación literal de la ley, entre outros escritos), ou seja, os
complexos processos que conduzem desde a norma (também os fatos) até à
decisão judicial; em suma, a busca de regras e técnicas de argumentação
para guiar o raciocínio jurídico é em boa medida tributária dessa segunda
tendência de pensamento.
192
A discussão acerca dos princípios jurídicos toma fôlego, na teoria do
direito dos últimos anos, a partir de um famoso artigo de Ronald DWORKIN
publicado em 1967 com o título “É o Direito um Sistema de Regras?” (que foi
incorporado ao capítulo 2 da obra Taking Rights Seriously). A pretensão
fundamental de dito artigo era a de impugnar o que o próprio DWORKIN
denominava “...a versão mais poderosa do positivismo jurídico, isto é, a
teoria do Direito de H. L. A. Hart. Entre os defeitos capitais de dita
teoria estaria, segundo Dworkin, sua incapacidade para dar conta da
presença no Direito de normas distintas das regras — isto é, de princípios
— o que privaria também a construção de Hart da possibilidade de
compreender aspectos essenciais do raciocínio judicial nos denominados
casos difíceis” (RODRIGUEZ, Manuel Atienza, MANERO, Juan Ruiz. Las piezas
del derecho: teoría de los enunciados jurídicos, p. 1).
133
mandatos de otimização que se caracterizam porque podem
ser cumpridos em diversos graus.”193
Os princípios, que são normas a ser avaliadas
em
cada
caso
conteúdos,
particular,
fazendo
são
medidos
“...referência
à
a
partir
justiça
e
à
dos
seus
eqüidade
(fairness)”194, sendo que com isso se procura demonstrar que a
moral
não
pode
ser
negligenciada.195
Daí
decorre
uma
das
193
RODRIGUEZ. Manuel Atienza. Las razones del derecho: teorías de la
argumentación jurídica, p. 204. Esta obra, que será muitas vezes citada no
decorrer deste trabalho, foi recentemente traduzida para o português (cf.
ATIENZA, Manuel. As razões do direito: teorias da argumentação jurídica.
Tradução de Maria Cristina Guimarães Cupertino, São Paulo: Landy, 2000). É
a partir dessa distinção entre norma-regra/norma-princípio que, por
exemplo,
Robert
ALEXY
vai
elaborar
a
noção
de
ponderação
como
característica da aplicação de princípios, critério que mais tarde será
utilizado na formulação de sua célebre teoria dos direitos fundamentais
(cf. ALEXY, Robert. Teoría de los derechos fundamentales. Traduzido por
Ernesto Garzón Valdés, Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1.
Reimpressão, 1997). Quanto a esse tópico, vê-se ainda que: “Para ALEXY, os
princípios são obrigações de otimização, enquanto as regras têm um caráter
de obrigação definitiva. Assim, para os princípios a ponderação é a forma
característica da aplicação do direito, ao passo que, para as normas, é
aplicada a subsunção” (MAGALHÃES, Juliana Neuenschwander. O uso criativo
dos paradoxos do direito: a aplicação dos princípios gerais do direito pela
corte de justiça européia, p. 102).
194
CALSAMIGLIA, A. Ensayo sobre dworkin. In: DWORKIN, Ronald. Los derechos
en serio, prólogo, p. 9.
195
Com efeito, será o conteúdo material do princípio — seu peso específico
— que determinará como e de que forma deverá o mesmo ser aplicado em um
caso concreto. Veja-se o que diz DWORKIN acerca da distinção entre regras e
princípios e a forma de se aplicar estes últimos: “... Ambos os conjuntos
de pautas [standards] apontam a determinadas decisões sobre a obrigação
jurídica em circunstâncias determinadas, mas uns e outros diferem no
caráter da orientação que fornecem. As regras são aplicadas sob a forma do
tudo ou nada. Se ocorrem os fatos que estipula uma regra, então ou a regra
é válida, em cujo caso a resposta que fornece deve ser aceita, ou então ela
não é, em cujo caso não contribui em nada à decisão.
(...)
Mas não é desta maneira que operam os princípios (...) Nem sequer
aqueles que mais se parecem com as regras estabelecem conseqüências
jurídicas que decorrem automaticamente quando as condições previstas
estiverem satisfeitas.
(...)
Os princípios têm uma dimensão que as regras não têm: a dimensão de
peso ou importância. Quando há uma tensão entre princípios (...) aquele que
134
principais debilidades do positivismo, pois a distinção entre
direito e moral não é tão clara; e se os positivistas caíram
nesse equívoco é porque seu âmbito de análise é estritamente
normativo, pois não leva em consideração a distinção entre
regras e princípios196 acima aduzida:
“
Esta imagem do direito, como sendo parcialmente
indeterminado ou incompleto, e a do juiz, enquanto
preenche as lacunas através do exercício de um poder
discricionário limitadamente criador de direito, são
rejeitadas por Dworkin, com fundamento em que se trata
de uma concepção enganadora, não só do direito, como
também do raciocínio judicial. Ele pretende, com efeito,
que o que é incompleto não é o direito, mas antes a
imagem
dele
aceite
pelo
positivista,
e
que
a
circunstância, de isto assim ser emergirá da sua própria
concepção ‘interpretativa’ do direito, enquanto inclui,
além do direito estabelecido explícito, identificado por
referência às suas fontes sociais, princípios jurídicos
implícitos, que são aqueles princípios que melhor se
ajustam
ao
direito
explícito
ou
com
ele
mantêm
coerência, e também conferem a melhor justificação moral
dele. Neste ponto de vista interpretativo, o direito
nunca é incompleto ou indeterminado, e, por isso, o juiz
nunca tem oportunidade de sair do direito e de exercer
um poder de criação do direito, para proferir uma
decisão.
É, por isso, para esses princípios implícitos, com
as suas dimensões morais, que os tribunais se deviam
voltar nesses ‘casos difíceis’, em que as fontes sociais
do direito não conseguem determinar a decisão sobre
certo ponto de direito.”197
deve resolver o conflito deve ter em conta o peso relativo de cada um.
(...)
As regras não têm essa dimensão” (DWORKIN, Ronald. Los derechos en
serio, p. 75-78).
196
Na terminologia adotada aqui regras e princípios são espécies que estão
contidas no gênero norma: “A teoria da metodologia jurídica tradicional
distinguia entre normas e princípios (Norm-Prinzip, Principles-rules, Norm
und
Grundsatz).
Abandonar-se-á
aqui
essa
distinção
para,
em
sua
substituição, se sugerir: (1) as regras e princípios são duas espécies de
normas; (2) a distinção entre regras e princípios é uma distinção entre
duas espécies de normas” (CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional e
teoria da constituição, p. 1.034).
197
HART, Herbert L.A. O conceito de direito, p. 335-336.
135
Com
perspectiva
positivista
normas-regra
casos,
acaso
a
é
que
aceitarem
levassem
informam
efeito,
as
que
levará
a
também
normas
DWORKIN
se
os
pensa
situa
apenas
positivistas,
discricionariedade
em
que
consideração
jurídicas
no
em
do
reduzida
âmbito
das
determinados
intérprete.
os
concretas
a
princípios
(regras),
Se
que
seria
possível que a sua literalidade fosse desatendida pelo juiz
quando em desconformidade com algum princípio que se revelasse
relevante
no
respectivo
caso
concreto.
Não
haveria
discricionariedade e nem criação de Direito ex post facto.
Segundo
HART
é
exatamente
no
que
tange
à
discricionariedade ou não do intérprete que reside o maior
conflito entre ele e DWORKIN:
“
O conflito direto mais agudo entre a teoria
jurídica deste livro e a teoria de Dworkin é suscitado
pela minha afirmação de que, em qualquer sistema
jurídico, haverá sempre certos casos juridicamente não
regulados em que, relativamente a determinado ponto,
nenhuma decisão em qualquer dos sentidos é ditada pelo
direito e, nessa conformidade, o direito apresenta-se
como parcialmente indeterminado ou incompleto. Se, em
tais casos, o juiz tiver de proferir uma decisão, em vez
de, como Bentham chegou a advogar em tempos, se declarar
privado de jurisdição, ou remeter os pontos não
regulados pelo direito existente para a decisão do órgão
legislativo,
então
deve
exercer
o
seu
poder
discricionário e criar direito para o caso, em vez de
aplicar meramente o direito estabelecido pré-existente.
Assim, em tais casos juridicamente não previstos ou não
regulados, o juiz cria direito novo e aplica o direito
estabelecido que não só confere, mas também restringe,
os seus poderes de criação do direito.”198
198
HART, H. L. A. Idem, p. 335.
136
O
judiciais
teria
uso
lugar
da
discricionariedade
sobretudo
nos
nas
decisões
denominados
casos
difíceis199, isto é, aqueles casos em que há incertezas, seja
porque
existem
várias
normas
que
determinariam
sentenças
distintas — no caso de normas contraditórias (incompatíveis) —
seja
porque
não
existe
nenhuma
norma
exatamente
aplicável.
Neste sentido, segundo Vera KARAM Chueiri:
“
O positivismo de HART cria artifícios – em face da
sua estreita concepção do direito – dentre os quais
destaca-se a idéia da discricionariedade. Sua ocorrência
diz respeito à imprecisão que determinadas regras
apresentam, de forma que as mesmas não são suficientes à
descrição
dos
fatos,
ou
ainda,
diz
respeito
à
inexistência de regras próprias a esta descrição. Essa
textura aberta da regra permite entenda-se o sistema
como aberto, apesar da sua autoregulamentação. Há, aqui,
199
Vale dizer que HART admite mesmo que a interpretação de todas as regras,
dada a textura aberta característica das mesmas, demandam um certo grau de
discricionariedade; e que nos casos mais importantes o seu uso é
inevitável: “... Não restam dúvidas de que os tribunais proferem os seus
julgamentos de forma a dar a impressão de que as suas decisões são a
conseqüência necessária de regras predeterminadas cujo sentido é fixo e
claro. Em casos muitos simples, tal pode ser assim; mas na larga maioria
dos casos que preocupam os tribunais, nem as leis, nem os precedentes em
que as regras estão alegadamente contidas admitem apenas um resultado. Nos
casos mais importantes, há sempre uma escolha. O juiz tem de escolher entre
sentidos alternativos a dar às palavras de uma lei ou entre interpretações
conflitantes do que um precedente ‘significa’. É só a tradição de que os
juízes ‘descobrem’ o direito e não o ‘fazem’ que esconde isto e apresenta
as suas decisões como se fossem deduções feitas com toda a facilidade de
regras claras preexistentes, sem intromissão da escolha do juiz. As regras
jurídicas podem ter um núcleo central de sentido indiscutível, e em alguns
casos pode parecer difícil imaginar que surja uma discussão acerca do
sentido de uma regra. A previsão do art. 9o da Lei dos Testamentos de 1837,
que estabelece que deve haver duas testemunhas em cada testamento, pode
razoavelmente parecer que não dará origem a problemas de interpretação.
Contudo, todas as regras têm uma penumbra de incerteza em que o juiz tem de
escolher entre alternativas. Mesmo o sentido da previsão aparentemente
inocente da Lei dos Testamentos de que o testador deve assinar o testamento
pode revelar-se duvidosa em certas circunstâncias. E se o testador usou um
pseudônimo? Ou se alguém pegou na mão dele para fazer a assinatura? Ou se
ele escreveu apenas as suas iniciais? Ou se ele pôs o seu nome completo,
correto e sem auxílio, mas no princípio da primeira página, em vez de no
fim da última? Poderiam ser todos estes casos considerados como ‘assinar’,
no sentido da regra jurídica?” (HART, Herbert L. A. O Conceito de Direito,
p. 16-17).
137
duas questões insurgentes: a primeira, relativamente às
lacunas existentes no direito e à inexistência de uma
resposta (certa) a pretensão de um direito. A segunda,
relativamente ao poder discricionário do juiz de criar o
direito.”200
Para
o
positivismo
de
HART,
portanto,
nas
ocasiões em que não exista uma norma exatamente aplicável o
juiz deve decidir com discricionariedade pois, considerando
que o direito não pode oferecer respostas a todos os casos que
aparecem,
solução
não
se
correta.
pode
falar
DWORKIN,
na
ao
existência
contrário,
prévia
de
sustentará
uma
que
os
casos difíceis têm sim uma resposta correta.
E
é
na
tentativa
de
demonstrar
essa
possibilidade que estará centrada toda a sua obra até então
existente.
Uma
princípios
e
vez
o
ciente
papel
da
que
diferença
estas
duas
entre
classes
regras
de
e
norma
desempenham, o intérprete (para essa função DWORKIN propõe um
modelo
de
perspectiva
juiz
de
ideal:
Hércules)
interpretação
deverá
do
encontrar
objeto
a
melhor
analisado
dadas
determinadas circunstâncias201, sendo que a cada caso novo os
princípios invocados poderão receber diferentes medidas.
Para
DWORKIN
a
atitude
interpretativa
de
Hércules — que conduz a uma busca incessante de critérios
200
CHUEIRI, Vera Karam. Filosofia do direito e modernidade: dworkin e a
possibilidade de um discurso instituinte de direitos, p. 93.
201
Não se trata aqui, portanto, de descobrir os motivos e intenções do
autor (do legislador).
138
decisórios — deve se desenvolver em três etapas202, cuja base
teórica é retirada sobretudo, conforme aduz ATIENZA, a partir
do pensamento de GADAMER:
“
...
A
primeira,
que
Dworkin
denomina
préinterpretativa, consiste na identificação dessa prática
e tem basicamente, mas não exclusivamente, caráter
descritivo. A segunda — a fase interpretativa — centrase no estabelecimento de um valor a esta prática:
consiste, pois, em apresentar uma justificação geral dos
princípios que se ajustem à prática em questão de
maneira que seja uma interpretação e não uma invenção. E
a terceira é a fase pós-interpretativa ou reformadora,
na qual se trata de modificar ou reformular a prática
para que satisfaça melhor seu sentido, isto é, para que
se ajuste melhor à justificação geral estabelecida na
etapa anterior.”203
Vale
dizer
que
a
análise
e
avaliação
dos
princípios se dará através de uma argumentação racional em que
critérios
argumentos
morais
de
também
repúdio
atuarão,
à
tese
da
assim
como
são
morais
discricionariedade,
os
cuja
admissão resultaria em conseqüências inaceitáveis e odiosas.
Com efeito, a sua admissão levaria à subversão do princípio da
tripartição dos poderes204; na aplicação de lei com efeitos
202
Essas etapas estão descritas no capítulo II da obra Law’s Empire
(DWORKIN, Ronald. O império do direito. Tradução de Jefferson Luiz Camargo,
São Paulo: Martins Fontes, 1999) e, mais detalhadamente, na Parte Dois da
obra A Matter of Principle (DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio.
Tradução de Luís Carlos Borges, São Paulo: Martins Fontes, 2000).
203
RODRIGUEZ, Manuel Atienza. Derecho y argumentación, p. 121.
204
“O modelo de Dworkin evita vários problemas importantes: o primeiro, que
o juiz não se constitua em legislador, o que significa que o poder
judiciário tem como função garantir direitos pré-estabelecidos.
Em segundo lugar: a tese de Dworkin é compatível com o postulado da
separação dos poderes, posto que o juiz está subordinado à lei e ao
direito. O poder judiciário é ‘nulo’ — como afirmava Montesquieu — porque
sua função é garantir direitos.
Em terceiro lugar: o modelo da resposta correta rechaça a teoria do
silogismo, mas aceita seu princípio político básico: o juiz não tem e nem
139
retroativos205; e no reconhecimento, ao menos em alguns casos
(logo
os
mais
importantes),
da
incapacidade
da
razão
(o
positivismo aqui é acusado de irracionalismo).206
A partir dessas críticas se seguiu um grande
debate entre DWORKIN e HART que, por sua vez, estendeu-se à
comunidade jurídica internacional, sendo este também um dos
debates mais em voga na atualidade.
Limitemo-nos a apresentar as objeções feitas
por HART contra as principais críticas que lhe foram dirigidas
por DWORKIN.207
pode ter poder político. A função do juiz é garantir os direitos
individuais e não indicar objetivos sociais. A função judicial é distinta
da legislativa e da executiva.
Em quarto lugar: nos casos difíceis os juízes não baseiam suas
decisões em objetivos sociais ou diretrizes políticas. Os casos difíceis se
resolvem com base em princípios que fundamentam direitos.” (CALSAMIGLIA, A.
Ensayo sobre dworkin. In: DWORKIN, Ronald. Los Derechos en Serio, prólogo,
p. 21).
205
Já que o direito novo criado pelo juiz estaria sendo aplicado a fatos
pretéritos.
206
“O positivismo jurídico, conforme já foi mencionado, parte do
pressuposto de que pode haver uma zona de imprecisão no direito,
relativamente à vagueza que uma determinada regra positiva apresenta e por
isso deve o juiz lançar mão da sua discricionariedade, resolvendo acerca
dos direitos das partes como bem lhe aprouver” (CHUEIRI, Vera Karam. Obra
citada, p. 94). Quanto à defesa de uma postura irracionalista nas ocasiões
em que surgem essas zonas de imprecisão, de penumbra, enfim, os chamados
casos limítrofes em que geralmente estão contidos os casos difíceis que
justificariam o uso da discricionariedade pelos juízes, DWORKIN faz
surpreendentes acusações dirigidas ao positivismo: “Além do mais, a tese do
caso limítrofe é pior que um insulto (...) ...se trata de uma piada
grotesca” (DWORKIN, Ronald. O império do direito, p. 50-54).
207
Essas objeções foram publicadas em forma de pós-escrito na 2ª edição da
obra The Concept of Law”, constante da edição portuguesa de 1994 (HART,
Herbert L. A. O conceito de direito. 2. ed. Tradução de A. Ribeiro Mendes,
Lisboa: Fundação Calouste Gubenkian, 1994).
140
Para DWORKIN, como visto, a discrição judicial
que tem lugar na interpretação de casos difíceis, em que o
juiz atuaria como quase-legislador, é insustentável. Veja-se
que DWORKIN usa o termo discrição em seu sentido mais forte,
ou seja, entendendo que nos casos difíceis o juiz teria total
liberdade para criar direito. HART repudia essa interpretação,
vez que nunca advogou, segundo ele, essa tal liberdade sem
freios. Deixemos HART falar:
“
É importante que os poderes de criação que eu
atribuo
aos
juízes,
para
resolverem
os
casos
parcialmente deixados por regular pelo direito, sejam
diferentes dos de um órgão legislativo: não só os
poderes do juiz são objeto de muitos constrangimentos
que estreitam a sua escolha, de que um órgão legislativo
pode estar consideravelmente liberto, mas, uma vez que
os poderes do juiz são exercidos apenas para ele se
libertar de casos concretos que urge resolver, ele não
pode usá-los para introduzir reformas de larga escala ou
novos
códigos.
Por
isso,
os
seus
poderes
são
intersticiais,
e
também
estão
sujeitos
a
muitos
constrangimentos substantivos. Apesar disso, haverá
pontos em que o direito existente não consegue ditar
qualquer decisão que seja correta e, para decidir os
casos em que tal ocorra, o juiz deve exercer os seus
poderes de criação do direito. Mas não deve fazer isso
de forma arbitrária: isto é, ele deve sempre ter certas
razões gerais para justificar a sua decisão e deve agir
como um legislador consciencioso agiria, decidindo de
acordo com as suas próprias crenças e valores. Mas se
ele satisfizer estas condições, tem o direito de
observar padrões e razões para a decisão, que não são
ditadas pelo direito e podem diferir dos seguidos por
outros
juízes
confrontados
com
casos
difíceis
semelhantes.”208
208
HART, Herbert L. A. Obra citada, p. 336.
141
Portanto, frente aos casos difíceis os juízes
não gozam, definitivamente, de discrição em sentido forte, nem
suas
decisões
podem
ser
arbitrárias,
pois
deverão
sempre
justificar suas razões e observar certos padrões dogmáticos,
bem
como
prática,
estar
alinhados
tais
como
os
com
postulados
princípios
de
de
racionalidade
universalidade,
consistência, coerência e aceitabilidade das conseqüências.209
Ademais,
outro
aspecto
que
parece
ter
sido
omitido pela crítica de DWORKIN é o fato de que, em muitos
casos, os juízes fazem uso da analogia:210
“
Uma consideração principal ajuda a explicar a
resistência à pretensão de que os juízes, por vezes, não
só criam, como aplicam direito, elucida também os
principais aspectos que distinguem a criação do direito
judicial da criação pelo órgão legislativo. Trata-se da
importância caracteristicamente ligada pelos tribunais,
quando decidem casos não regulados, ao procedimento por
analogia, de forma a assegurarem que o novo direito que
criam, embora seja direito novo, está em conformidade
com os princípios ou razões subjacentes, reconhecidos
como tendo já uma base no direito existente.”211
209
Manuel ATIENZA assim descreve alguns desses princípios de racionalidade
prática: “...o princípio de universalidade ou de justiça formal que
estabelece que os casos iguais devem ser tratados da mesma maneira; o
princípio de consistência, segundo o qual as decisões devem se basear em
premissas normativas e fáticas que não entrem em contradição com normas
validamente estabelecidas ou com a informação fática disponível; e o
princípio de coerência, segundo o qual as normas devem poder ser subsumidas
sob princípios gerais ou valores que resultem aceitáveis, no sentido de que
configurem uma forma de vida satisfatória (coerência normativa), enquanto
os fatos não comprovados mediante prova direta devem resultar compatíveis
com os demais fatos tidos como provados, e devem poder ser explicados em
conformidade com os princípios e leis que regem o mundo fenomênico
(coerência narrativa)” (RODRIGUEZ, Manuel Atienza. Tras la justicia: una
introducción al derecho y al razonamiento jurídico, p. 137).
210
Parece que neste ponto até mesmo aquela idéia de que as regras ou se
aplicam totalmente ou não se aplicam, fica comprometida, vez que o juízo
por analogia é um caso típico de utilização/invocação da norma geral
inclusiva, conforme aduz BOBBIO em seus ensinamentos (ver BOBBIO, Norberto.
Teoria do ordenamento jurídico, capítulo 4).
211
HART, H. L. A. Obra citada, p. 337.
142
Tentando demonstrar que talvez o positivismo
jurídico não seja — e talvez nunca tenha sido — incompatível
com a teoria de DWORKIN — e que as críticas formuladas por
este último são até mesmo despropositadas — HART afirma que a
atitude
interpretativa
propugnada
por
aquele
autor
nunca
deixou de ser observada pelos positivistas:
“
...
É
verdade
que,
quando
certas
leis
ou
precedentes concretos se revelam indeterminados, ou
quando o direito explícito é omisso, os juízes não
repudiam os seus livros de direito e desatam a legislar,
sem
a
subseqüente
orientação
do
direito.
Muito
freqüentemente, ao decidirem tais casos, os juízes citam
qualquer princípio geral, ou qualquer objetivo ou
propósito geral, que se pode considerar que determinada
área relevante do direito exemplifica ou preconiza, e
que aponta para determinada resposta ao caso difícil que
urge resolver. Isto, na verdade, constitui o próprio
núcleo da ‘interpretação construtiva’ que assume uma
afeição tão proeminente na teoria do julgamento de
Dworkin.”212
Porém HART, que não admite que em todos os
casos se possa chegar com certeza a uma decisão correta (ou
afirmar qual das decisões possíveis é a mais correta), mantém
sua posição de que, nestes casos, o juiz é e pode ser criador
de direito:
“
... Mas embora este último processo, seguramente, o
retarde, a verdade é que não elimina o momento de
criação judicial de direito, uma vez que, em qualquer
caso difícil, podem apresentar-se diferentes princípios
que apóiam analogias concorrentes, e um juiz terá
freqüentemente de escolher entre eles, confiando, como
um legislador consciencioso, no seu sentido sobre aquilo
que é melhor, e não em qualquer ordem de prioridades já
212
HART, H. L. A. Obra citada, p. 337-338.
143
estabelecida e prescrita pelo direito relativamente a
ele, juiz. Só se, para tais casos, houvesse sempre de se
encontrar no direito existente um determinado conjunto
de princípios de ordem superior atribuindo ponderações
ou prioridades relativas a tais princípios concorrentes
de ordem inferior, é que o momento de criação judicial
de
direito
não
seria
meramente
diferido,
mas
eliminado.”213
Ora, há a possibilidade de que dois princípios
contraditórios se revelem de igual envergadura na apreciação
de uma caso concreto, o que demandará uma opção. Tal opção,
apesar do dever de justificação, implicará discricionariedade,
pois não existe um critério seguro que possa medir o peso dos
princípios em cada caso.
A existência de um critério tal só poderia ser
viável
se
supuséssemos
a
crença
em
uma
homogeneidade
de
princípios e valores (tanto sociais quanto jurídicos). Mas a
defesa
de
um
objetivismo
moral,
segundo
ABELLÁN,
parece
inaceitável, vez que:
“
...todos os sistemas jurídicos contemporâneos, sem
exceção, são o resultado de uma produção normativa muito
dilatada no tempo, são fruto não de uma, mas de muitas
políticas
jurídicas
contrastantes
entre
si;
tendo
incorporado,
por
isso,
uma
grande
quantidade
de
princípios e regras incompatíveis. É sustentável que
uma, e só uma, doutrina política (que se supõe
internamente coerente), seja idônea para justificar todo
princípio e toda regra do sistema?”214
213
HART, H. L. A. Obra citada, p. 338.
ABELLÁN, Marina Gascón. La técnica del precedente y la argumentación
racional, p. 25.
214
144
Dada a heterogeneidade dos valores, poder-se-ia
mesmo
imaginar
a
existência
de
dois
juízes
Hércules,
igualmente racionais e que certamente chegariam à conclusão —
diante de certas decisões não convergentes tomadas por eles em
algumas
situações
—
de
que
“...muitos
casos
podiam
ser
decididos num sentido ou noutro”.215
Quanto à acusação de que o ato criativo do juiz
implica
efeitos
retroativos
à
norma,
também
parece
desarrazoada:
“
Dworkin formula uma outra acusação de que a criação
judicial do direito é injusta e condena-a como uma forma
de legislação retroativa ou de criação de direito ex
post facto, a qual é, com certeza, considerada, de forma
geral, como injusta. Mas a razão para considerar injusta
a criação de direito reside em que desaponta as
expectativas justificadas dos que, ao agirem, confiaram
no princípio de que as conseqüências jurídicas dos seus
atos seriam determinadas pelo estado conhecido do
direito estabelecido, ao tempo dos seus atos. Esta
objeção, todavia, mesmo que valha contra uma alteração
retroativa do direito por um tribunal, ou contra um
afastamento do direito estabelecido, parece bastante
irrelevante nos casos difíceis, uma vez que se trata de
casos que o direito deixou regulados de forma incompleta
e em que não há um estado conhecido do direito,
claramente estabelecido, que justifique expectativas.”216
Ademais,
princípios
aplicação
não
de
supõe
uma
a
norma
a
resolução
criação
de
de
um
retroativa,
um
conflito
novo
direito
pois
simplesmente de uma eleição entre direitos.
215
216
HART, H. L. A. Obra citada, p. 337.
HART, H. L. A. Idem, p. 339.
aqui
se
entre
nem
a
trata
145
Quanto à crítica de que a discricionariedade do
juiz
subverte
os
princípios
democráticos
originários
de
“...uma longa tradição européia e uma doutrina de divisão de
poderes que dramatizam a distinção entre o Legislador e o Juiz
e insistem em que o Juiz deve aparecer, em qualquer caso, como
sendo aquilo que é, quando o direito existente é claro, ou
seja, um mero ‘porta-voz’ do direito, que ele não cria ou
molda”217, HART a rebate com uma mescla entre os denominados
argumento pelo sacrifício218 e argumento pragmático:219
“
As outras críticas de Dworkin à minha concepção de
poder discricionário judicial condenam esta última, não
por ser descritivamente falsa, mas por dar apoio a uma
forma de criação de direito que é antidemocrática e
injusta. Os juízes não são, em regra, eleitos e, numa
democracia, segundo se alega, só os representantes
eleitos do povo deveriam ter poderes de criação do
direito. Existem muitas respostas a esta crítica. Que
aos juízes devem ser confiados poderes de criação do
217
HART, H. L. A. Idem, p. 337.
Sobre o argumento pelo sacrifício, afirma PERELMAN: “Um dos argumentos
de comparação utilizados com mais freqüência é o que alega o sacrifício a
que se está disposto a sujeitar-se para obter certo resultado.
(...)
Na argumentação pelo sacrifício, este deve medir o valor atribuído
àquilo por que se faz o sacrifício” (PERELMAN, Chaïm, OLBRECHTS-TYTECA,
Lucie. Tratado da argumentação: a nova retórica, p. 281-282).
219
Ainda segundo os autores do Tratado: “Denominamos argumento pragmático
aquele que permite apreciar um ato ou um acontecimento consoante suas
conseqüências favoráveis ou desfavoráveis. (...)
Para os utilitaristas, como Bentham, não há outra forma satisfatória
de argumentar:
Que é dar uma boa razão em matéria de lei? É alegar bens ou
males que essa lei tende a produzir... Que é dar uma falsa razão? É
alegar, pró ou contra uma lei, qualquer outra coisa que não seus
efeitos, seja em bem, seja em mal.
O argumento pragmático parece desenvolver-se sem grande dificuldade,
pois a transferência para a causa, do valor das conseqüências, ocorre mesmo
sem ser pretendido. Entretanto, quem é acusado de ter cometido uma má ação
pode esforçar-se por romper o vínculo causal e por lançar a culpabilidade
em outra pessoa ou nas circunstâncias. Se conseguir inocentar-se terá, por
esse próprio fato, transferido o juízo desfavorável para o que parecerá,
nesse momento, a causa da ação” (PERELMAN, C., OLBRECHTS-TYTECA, L. Obra
citada, p. 303).
218
146
direito para resolver litígios que o direito não
consegue regular, pode ser encarado como o preço
necessário
que
se
tem
de
pagar
para
evitar
o
inconveniente de métodos alternativos de regulamentação
desses litígios, tal como o reenvio da questão ao órgão
legislativo, e o preço pode parecer baixo se os juízes
forem limitados no exercício destes poderes e não
puderem modelar códigos ou amplas reformas, mas apenas
regras para resolver as questões específicas suscitadas
por casos concretos. Em segundo lugar, a delegação de
poderes legislativos limitados ao Executivo constitui um
traço familiar das democracias modernas e tal delegação
ao Poder Judiciário não parece constituir uma ameaça
mais séria à democracia. Em ambas as formas de
delegação, um órgão legislativo eleito terá normalmente
um controle residual e poderá revogar ou alterar
quaisquer leis autorizadas que considere inaceitáveis. É
verdade que quando, como nos E.U.A., os poderes do órgão
legislativo são limitados por uma constituição escrita e
os tribunais dispõem de amplos poderes de fiscalização
da constitucionalidade das leis, um órgão legislativo
democraticamente eleito pode encontrar-se na situação de
não poder modificar um ato de legislação judicial.
Então, o controle democrático em última instância só
pode ser assegurado através do dispositivo complexo da
revisão constitucional. Isso é o preço que tem de pagarse pela consagração de limites jurídicos ao poder
político.”220
220
HART, Herbert L. A. Obra citada, p. 338-339. Como o próprio PERELMAN
diz, “...em geral, o argumento pragmático só pode desenvolver-se a partir
do acordo sobre o valor das conseqüências” (PERELMAN, C., OLBRECHTS-TYTECA,
L. Obra citada, p. 304). No caso específico de que se trata acima, dada a
constatação, que já vem de longe, de que “...as tentativas da Escola da
Exegese na França e da Jurisprudência conceitual na Alemanha para manter a
idolatria da lei não obtiveram êxito [vez que] o pensamento formal,
manifestado por cláusulas gerais e métodos silogísticos, foi insuficiente
para vincular o juiz à lei, no sentido estreito formulado pelos teóricos”
(BOITEUX, Elza Antônia Pereira Cunha. O significado perdido da função de
julgar, p. 23), muitos estudos têm sido realizados, com grande aceitação,
propugnando pela revisão da noção ortodoxa do princípio da legalidade, como
demonstra Clèmerson Merlin CLÈVE ao afirmar que “...a missão dos juristas,
hoje, é de adaptar a idéia de Montesquieu à realidade constitucional de
nosso tempo. Nesse sentido, cumpre aparelhar o Executivo, sim, para que ele
possa, afinal, responder às crescentes e exigentes demandas sociais. Mas
cumpre, por outro lado, aprimorar os mecanismos de controle de sua ação,
para o fim de torná-los (os tais mecanismos) mais seguros e eficazes”
(CLÈVE, Clèmerson Merlin. Atividade legislativa do poder executivo no
estado contemporâneo e na constituição de 1988, p. 42). Há fortes razões
que indicam, portanto, que a argumentação de HART acima transcrita tem
consistência e que, por isso mesmo, não pode ser negligenciada.
147
De todas as considerações feitas até aqui sobre
o
pensamento
de
justificações
DWORKIN,
nos
uma
casos
coisa
difíceis
não
têm
se
pode
negar:
sempre
um
as
forte
componente moral; e que talvez por isso DWORKIN esteja certo
ao dizer que o divórcio entre direito e moral não seja mesmo
tão claro como sustentam os positivistas. Seja como for, sob a
ótica interna221 ao sistema — e fora dos casos difíceis — não
há razões para que o positivismo jurídico abandone a tese da
separação entre direito e moral, pois os princípios jurídicos
não precisam coincidir necessariamente com enunciados morais
ou políticos. A moral certamente entrará em cena quando o
problema
em
questão
envolva
a
opção
entre
dois
ou
mais
princípios jurídicos.
Mas ao menos sob outro aspecto — que não nos
casos difíceis — razões morais, ainda que implicitamente, são
aplicadas pelo juiz. Para HART o ponto de vista interno é
suficiente para dar conta das normas, mas aqui o autor só
presta
atenção
ao
aspecto
cognoscitivo
e
não
ao
aspecto
volitivo, conforme aduz ATIENZA:
221
Aproveitando a noção de HART quanto ao ponto de vista do observador:
“... À primeira destas formas de expressão chamaremos uma afirmação
interna, porque manifesta o ponto de vista interno e é naturalmente usada
por quem, aceitando a regra de reconhecimento e sem declarar o fato de que
é aceite, aplica a regra, ao reconhecer uma qualquer regra concreta do
sistema como válida. À segunda forma de expressão chamaremos afirmação
externa, porque é a linguagem natural de um observador externo ao sistema
que, sem aceitar ele próprio a regra de reconhecimento desse sistema,
enuncia o fato de que outros a aceitam” (HART, Herbert L.A. Obra citada, p.
114).
148
“
... O componente cognoscitivo do ponto de vista
interno consiste em valorar e compreender a conduta em
termos de standards que devem ser usados pelo agente
como guia de sua conduta. Mas, também, existe um
componente volitivo que consiste no fato de o agente, em
algum grau, e por razões que a ele parecem boas, admitir
um compromisso de se submeter a um modelo de conduta
dado como um standard para ele, para outra pessoa ou
para ambos. Este último aspecto é de grande importância
na relação de aceitação da regra de conhecimento que,
efetivamente, leva consigo um compromisso consciente com
os princípios políticos subjacentes ao ordenamento
jurídico. Para os juízes, definitivamente, a aceitação
da regra de reconhecimento e da obrigação de aplicar o
Direito válido se baseia em razões desse segundo tipo
[volitivas], que não podem ser outra coisa senão razões
morais.”222
Portanto, o simples fato de o intérprete tomar
uma norma do sistema, após submetê-la ao teste do seu pedigree
ou de sua origem frente à regra de reconhecimento223, aceitar a
sua
autoridade
e
aplicá-la,
já
representa
em
si
mesmo
a
interferência de uma regra moral, conforme aduz L. S. SOUZA:
“
A primeira regra do jogo dogmático é a aceitação
acrítica do ordenamento vigente. Mas qual seria o
pressuposto teórico desta aceitação? Sem dúvida, a
crença num princípio de autoridade. Isto nos conduz a
222
RODRIGUEZ, Manuel Atienza. Las razones del derecho: teorías de la
argumentación jurídica, p. 154.
223
As doutrinas positivistas mais desenvolvidas utilizam como critério de
identificação do sistema jurídico uma norma chave. Tal é o caso da norma
fundamental de KELSEN ou a regra de reconhecimento de HART. A regra de
reconhecimento de HART consiste em uma prática social que estabelece que as
normas que satisfazem certa condição são válidas. Cada sistema normativo
tem sua própria regra de reconhecimento e seu conteúdo varia e é uma
questão empírica. Há sistemas normativos que reconhecem como fonte do
direito um livro sagrado, ou a lei, ou os costumes, ou várias fontes ao
mesmo tempo. A regra de reconhecimento é o critério utilizado por HART para
identificar um sistema jurídico e fundamentar a validade de todas as regras
dela derivadas. O teste de pedigree consiste exatamente em verificar se uma
regra existe, se ela é válida perante a regra de reconhecimento, pois,
repita-se, é dela que todas as regras devem retirar seu fundamento de
validade.
Ainda
sobre
o
teste
de
pedigree,
segundo
DWORKIN
as
normas/princípio não estariam sujeitas a este exame, já que elas não se
sujeitariam ao tudo ou nada e nem poderiam ser identificadas por sua
origem, mas sim por seu conteúdo ou força argumentativa.
149
uma
segunda
regra,
da
qual
advém
importantes
conseqüências, qual seja, a crença na racionalidade do
legislador. Em nome desta premissa, o estudioso do
direito abandona uma posição de simples descrição do
ordenamento, a fim de justificar o ponto de partida
dogmático.”224
Neste ponto chega-se ao problema, já explanado
anteriormente, da legitimidade.
Em suas críticas ao positivismo, DWORKIN tem o
mérito de recolocar o problema da moral — ou de desvelar o que
se tentou ocultar — em dois momentos importantes da aplicação
da norma: a) com sua teoria que distingue as normas entre
regras e princípios, pode-se perceber mais claramente que, nos
casos
difíceis,
princípios
em
jurídicos
que
geralmente
aceitos
no
estarão
sistema,
a
em
conflito
justificação
da
escolha implicará, ainda que não isoladamente, a invocação de
critérios morais (justiça, eqüidade, etc); e b) a aceitação
(numa
perspectiva
volitiva)
da
regra
de
reconhecimento,
do
ponto de vista interno ao sistema, também implica questões
morais, que neste ponto estão diretamente ligadas ao problema
da legitimidade.
A exceção da insistência de DWORKIN de que se
pode chegar sempre a uma solução correta em todos os casos225,
224
SOUZA, Luiz Sérgio Fernandes de. O papel da ideologia no preenchimento
das lacunas no direito, p. 56.
225
O que ensejou o surgimento de alguns autores que interpretaram a sua
obra como uma nova versão do jusnaturalismo (cf. CALSAMIGLIA, A. Ensayo
sobre dworkin. In: DWORKIN, Ronald. Los derechos en serio, prólogo, p. 11).
150
a sua teoria em nenhum outro aspecto é incompatível com o
positivismo
jurídico.
Considerando
os
seus
Talvez
se
preciosos
dê
exatamente
estudos
sobre
o
contrário.
o
tema
da
interpretação e suas etapas; a sua elaboração do critério que
distingue
as
normas
entre
regras
e
princípios;
e
o
seu
reconhecimento de que as questões de integridade e coerência
(o que implica a submissão ao sistema normativo reconhecido)
devem ter um peso decisivo226 arriscamos mesmo a dizer que a
teoria
de
DWORKIN
seja
um
aperfeiçoamento
do
próprio
positivismo jurídico que, paradoxalmente, ele próprio tentou
fulminar.
Com DWORKIN o positivismo ressurge das cinzas
que ele (DWORKIN) mesmo ajudara a produzir; tal qual Fênix o
positivismo reaparece mais vivo do que nunca, revigorado por
um refinamento sem precedentes, tributário da obra de DWORKIN.
226
“Significa alguma coisa afirmar que os juízes devem aplicar a lei, ao
invés de ignorá-la, que o cidadão deve obedecer à lei, a não ser em casos
muito raros, e que os funcionários públicos são regidos por suas normas.
Parece estúpido negar tudo isso simplesmente porque às vezes divergimos
sobre o verdadeiro conteúdo do direito” (DWORKIN, Ronald. O império do
direito, p. 54). Ver, ainda, os capítulos VI e VII da mesma obra. Enfim,
como diz Vera KARAM: “Dworkin é um moderno; sua desobediência sempre
civil!” (CHUEIRI, Vera Karam. Obra citada, p. 65).
151
3. A NOVA RETÓRICA DE CHAÏM PERELMAN COMO PRECURSORA DE UMA
TEORIA GERAL DA ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA
“Por
isso
poderá
ser
vantajoso
dissimular algumas de nossas armas.
Pois o adversário as reclama com
insistência e amiúde faz com que
delas dependa o desfecho da causa,
crendo que não as temos; reclamando
nossas provas, confere-lhes autoridade.”
Quintiliano
“A conciliação do irreconciliável, a
mescla das antíteses, a síntese das
oposições, eis os grandes problemas
do direito.”
Benjamin N. Cardozo
“A filosofia constitui o domínio, não
da verdade, mas da tolerância. Nada
há
mais
intolerante
do
que
a
verdade.”
Perelman
3.1 Lógica Formal e Argumentação Jurídica
A análise histórico-crítica contida nos dois
primeiros capítulos deste trabalho poderá eventualmente ser
acusada de não ter acrescido muito — ou quase nada — àquilo
que se conhece e que até mesmo já se tornou senso comum em
Teoria Geral do Direito.
152
Mas ao menos dois motivos, em nosso entender,
justificam a presença de ambos nessa empreitada: o primeiro,
de caráter formal, é que o tema a ser tratado neste capítulo
estará
melhor
situado
seu
evitando-se
assim
infindáveis
contextualizações
eventuais
a
e
acusações
ponto
proliferação
de
e,
petitio
de
de
o
partida
notas
que
de
seria
principii;
o
justificado,
rodapé
mais
para
grave,
segundo,
de
caráter material, e que para nós é mais importante, é o fato
de que, ao menos, uma premissa pode ser estabelecida: o velho
tema das relações entre a moral e o direito permanece estando
no fundo de todo grande debate sobre a teoria do direito.
Isso
não
significa
dizer,
contudo,
que
o
positivismo jurídico, na sua forma atual, saiu derrotado de
seus esforços de estabelecer a divisão do direito e da moral,
que se tenha que retroceder, voltando ao realismo jurídico, a
alguma postura sociológica ou econômica (os sociologismos),e
até mesmo, o que seria pior, a alguma forma de jusnaturalismo.
Na verdade, ainda que a metodologia jurídica
não possa se valer de elementos externos ao sistema (inclusive
morais) para fundar decisões, permanecendo aqui a divisão, não
se pode negar que a admissão mesma da autoridade de um sistema
153
normativo já implica uma valoração moral, que neste aspecto é
imanente ao próprio sistema.227
Também na valoração dos princípios jurídicos
que servirão de apoio a uma decisão — e aqui isso é evidente —
não se pode negar o forte componente moral subjacente. Até
mesmo
nos
problemas
jurídicos
mais
banais,
em
que
não
há
dúvidas quanto aos fatos e nem quanto à qualificação da norma
aplicável,
mínimo,
não
estará
moral.
Para
ausente
Karl
algum
LARENZ
critério,
“...a
ainda
isso
subjaz
que
a
constatação de que na apreciação jurídica — v.g., considerar
determinado
sempre
e
comportamento
como
‘negligente’
valorações”228,
permanentemente
—
se
pois
insinuam
“...nenhum
procedimento dedutivo logicamente correto garante resultados
intrinsecamente
adequados,
quando
na
cadeia
dedutiva
se
introduzem premissas assentes em valorações”.229
A
racionalidade
dedução
prática,
judicial
se
informal,
já
dá
no
que
âmbito
“...o
de
uma
discurso
jurídico é um ‘caso particular do discurso prático geral’”.230
227
Não se afirma, contudo, um retorno daquelas teorias partidárias de que
as obrigações jurídicas devem necessariamente se conformar com a moral,
como, por exemplo, a teoria do mínimo ético descrita por REALE, “...a
‘teoria do mínimo ético’ pode ser reproduzida através da imagem de dois
círculos concêntricos, sendo o círculo maior o da Moral, e o círculo menor
o do Direito. Haveria, portanto, um campo de ação comum a ambos, sendo o
Direito envolvido pela Moral. Poderíamos dizer, de acordo com essa imagem,
que ‘tudo o que é jurídico é moral, mas nem tudo o que é moral é jurídico’”
(REALE, Miguel. Lições preliminares de direito, p. 42).
228
LARENZ, Karl. Metodologia da ciência do direito, p. 2.
229
LARENZ, K. Idem, ibidem.
230
LARENZ, K. Idem, p. 212-213.
154
Indo
adiante,
também
faz
numa
parte
comparação
do
discurso
entre
discurso
prático
geral
moral
—
e
—
que
discurso
jurídico, alguns já inferem que “...o raciocínio moral não é
um caso empobrecido do raciocínio jurídico, posto que este
último [o raciocínio jurídico] é ‘um caso especial, altamente
institucionalizado e formalizado, de raciocínio moral’”.231
Diga-se desde de logo que o raciocínio jurídico
não é só governado pela razão prática geral, já que sofre
limitações internas:
“
...‘pois que a argumentação jurídica tem lugar sob
uma série de condições limitativas’. Estas condições
seriam: ‘a vinculação à lei, a consideração que se exige
pelos precedentes, a chancela da dogmática resultante da
ciência jurídica institucionalmente cultivada’, bem
como,
excetuando
o
discurso
juscientífico,
‘as
restrições decorrentes das regras dos códigos de
processo’. E sendo assim, também é mais restrita a
pretensão de justeza que suscitam as asserções jurídicas
face às do ‘discurso prático geral’. ‘Não se pretende
dizer, de modo puro e simples, que o enunciado normativo
que se afirma, que se propõe ou que se expressa num ato
de julgar é racional, mas que só pode ser racionalmente
fundamentado nos quadros da ordem jurídica vigente’.”232
As limitações internas da racionalidade prática
jurídica
não
racionalidade
com
a
se
restringem
jurídica,
otimização
dos
ainda
apenas
que
a
isso,
naturalmente
procedimentos
destinados
já
que
a
comprometida
à
resolução
231
RODRIGUEZ, Manuel Atienza. Las razones del derecho: teorías de la
argumentación jurídica, p. 157. Tal pensamento, que é inspirado em
HABERMAS, tem sido adotado por ALEXY e MACCORMICK em suas respectivas
teorias da argumentação jurídica.
232
LARENZ, K. Obra citada. p. 213.
155
prática dos conflitos sociais, não deixa de se valer do uso da
força.
Com efeito, “...o Direito não é só razão, ou
argumentação:
é
também
institucionalizada,
burocracia
em
doses
e,
sobretudo,
variáveis,
violência
porém
nunca
desprezíveis”.233
Além do mais, “...a racionalidade jurídica —
inclusive a do direito do estado democrático — não é só uma
racionalidade em si mesma limitada — posto que o Direito não
pode
deixar
condicionado,
de
fazer
desde
uso
fora,
da
força
pelos
—
mas
pressupostos
também
está
econômicos,
culturais, políticos, ideológicos, etc. que tornam possível
esse tipo de Direito”.234
Não se pretende afirmar, no entanto, que essas
limitações
—
externas
ou
internas
—
escapam
totalmente
à
crítica, que os modelos jurídicos existentes não possam se
questionados no âmbito de uma discussão racional, em que os
próprios fins perseguidos e a utilização de determinados meios
sejam colocados em cheque (pelos participantes do discurso).
233
234
RODRIGUEZ, M. A. Derecho y argumentación, p. 15.
RODRIGUEZ, M. A. Idem, p. 16-17.
156
Mas
que
âmbito
é
este
em
que
se
opera
uma
discussão racional, ou melhor, em que sentido se pode falar em
racionalidade jurídica e qual o seu alcance?235
Uma
prescindir,
jurídicas
antes
resposta
de
existentes,
tudo,
da
a
de
forma
essa
uma
como
pergunta
análise
têm
sido
não
das
pode
práticas
efetivamente
solucionados seus problemas, enfim, quais os modelos básicos
do pensar jurídico na atualidade. A análise estará centrada,
portanto, no positivismo jurídico atual e os problemas que tem
enfrentado.
A prática jurídica consiste, fundamentalmente,
em
argumentar.
O
trabalho
dos
órgãos
jurisdicionais
e,
em
geral, dos aplicadores do direito, como o dos doutrinadores,
consiste
principalmente
resolução
de
casos,
em
sejam
produzir
eles
argumentos
concretos
para
a
(individuais)
ou
genéricos, reais ou fictícios:
“
...
Argumentar
constitui,
definitivamente,
a
atividade central dos juristas e se pode dizer inclusive
que há muito poucas profissões — se é que há alguma — em
235
Não se pode olvidar da já abordada crise por que tem passado a razão no
século XX, cujos reflexos, evidentemente, estão se fazendo sentir também no
âmbito jurídico. Com efeito, a admissão por si só da pergunta acima como
algo que se deva levar a sério já é um forte indício da existência de uma
crise. São vários os autores que tomam essa crise como ponto de partida em
seus trabalhos. Por exemplo LARENZ, que já no início de uma de suas
principais obras admite: “Fala-se de ‘perdas de certeza no pensamento
jurídico’, considera-se a opção metódica como arbitrária, propende-se a
aceitar como satisfatórias não já as soluções reconhecidamente adequadas
mas apenas ‘plausíveis’ ou ‘suscetíveis de consenso’, ou remetem-se os
juristas para as ciências sociais como as únicas donde poderiam esperar
conhecimentos relevantes” (LARENZ, Karl. Obra citada, p. 1-2).
157
que a argumentação tenha um papel mais importante que no
Direito.”236
Em princípio, podem ser apontadas três áreas
distintas em que se efetuam argumentações jurídicas: a) na
produção
de
normas
jurídicas;
b)
na
aplicação
das
normas
jurídicas; e c) na dogmática jurídica.237
O campo da argumentação na produção das normas
jurídicas
pode
ser
subdividido
em
dois
momentos:
as
argumentações que têm lugar numa fase pré-legislativa e as que
são
produzidas
numa
fase
propriamente
legislativa.
As
primeiras delas se efetuam como conseqüência do surgimento de
um problema social cuja solução — no todo ou em parte — possa
ser a adoção de uma medida legislativa.
Por exemplo, frente ao problema das drogas ou
da responsabilidade política se pode reagir, respectivamente,
endurecendo as penas para os narcotraficantes (ou, o que dá no
mesmo,
exigindo-se
que
eles
cumpram
integralmente
suas
condenações) e introduzindo novos tipos penais, como ocorrido
recentemente
236
com
a
introdução
de
sanções
criminais
àqueles
RODRIGUEZ, M. A. Tras la justicia: una introducción al derecho y al
razonamiento jurídico, p. 120.
237
Segundo ATIENZA, “... A dogmática é, desde logo, uma atividade complexa,
cabendo distinguir essencialmente estas três funções: 1) desenvolver
critérios para a produção do Direito nas diversas instâncias em que isso se
fizer necessário; 2) desenvolver critérios para a aplicação do Direito; 3)
ordenar e sistematizar um setor do ordenamento jurídico” (RODRIGUEZ, Manuel
Atienza. Las razones del derecho: teorías de la argumentación jurídica, p.
20-21).
158
administradores
públicos
que,
nos
temos
da
lei,
são
considerados irresponsáveis.238
Essas propostas de solução não são, contudo,
indiscutíveis: a melhor forma de combater o tráfico de drogas
poderia consistir em liberar o comércio das denominadas drogas
brandas.
Exigir
narcotraficantes
o
cumprimento
pode
gerar
íntegro
das
penas
inconstitucionalidade
para
frente
ao
princípio da igualdade, ou mesmo atentar contra a finalidade
de
ressocialização
que
deve
guiar
a
execução
das
penas
mediante, por exemplo, a adoção do regime de progressividade.
E
a
melhor
forma
irresponsabilidade
—
a
mais
administrativa
eficaz
—
poderia
de
combater
não
ser
a
a
criminalização, mas uma introdução de melhores mecanismos de
controle.
Seja como for, o que se quer mostrar é que
quaisquer das soluções que foram contrapostas são plausíveis e
que,
portanto,
são
perfeitamente
sustentáveis
através
de
argumentações. O que não seria admissível, pelo contrário, é
que uma decisão fosse tomada sem razão.
238
Ver Lei Federal nº 10.028, de 19.out.2000, em que se demonstra o esforço
que tem sido feito atualmente no Brasil para o estabelecimento de uma
legislação que atribui maior responsabilidade aos administradores no que
tange à fixação de despesas públicas, que não podem exceder as receitas,
sob pena de prisão.
159
Veja-se como Miguel REALE descreve os processos
de discussão que podem se dar na fase pré-legislativa:
“
É evidente que (...) o ponto de vista de um
comunista não coincide com o de um liberal clássico, ou
de um socialista, mas, no nível das composições fáticas,
podem comunistas, socialistas ou democratas cristãos
convir numa solução de compromisso, dando força de
modelo jurídico a uma dentre as várias soluções
normativas logicamente viáveis. Escolhida, aliás, uma
linha mestra comum, não faltarão divergências de outra
ordem, consubstanciadas em substitutivos ao projeto de
lei, por motivos formais, ou representadas por emendas,
subemendas,
etc.,
espelhando-se
nessa
gama
de
proposições parlamentares a multiplicidade de variantes
de uma estrutura jurídica in fieri. É só o ato
decisório, final, por conseguinte, que põe termo ao
flutuar das tensões fático-axiológicas, permitindo que a
norma de direito se aperfeiçoe como modelo vigente.”239
A partir do momento em que se decide qual a
norma que deverá ser produzida (aqui os argumentos têm mais um
caráter moral e político que propriamente jurídico), entra-se
na fase legislativa, ocasião em que questões de tipo técnicojurídico entram em primeiro plano. Aqui não será suficiente a
justificação, por si só, da necessidade de se regular uma
matéria de uma determinada forma, vez que se deve saber se a
autoridade
respectiva
tem
competência
para
regular
aquele
conteúdo, se o conteúdo é compatível com a ordem jurídica,
enfim, deve-se submeter a norma que se pretende estabelecer a
um teste prévio de pedigree.
239
REALE, Miguel. O direito como experiência, p. 195.
160
O segundo campo em que se efetuam argumentos
jurídicos é o da aplicação de normas jurídicas na resolução de
casos,
seja
através
da
atividade
dos
juízes
em
sentido
estrito, seja por órgãos administrativos no mais amplo sentido
da expressão, seja por particulares.
Aqui podem surgir argumentações em relação a
problemas decorrentes por um lado, de fatos; e por outro, de
direito (sua interpretação).
Finalmente
argumentos
produzidos
há
neste
o
campo
âmbito
da
não
dogmática,
chegam
a
cujos
ser
muito
diferentes daqueles produzidos pelos órgãos aplicadores, uma
vez que aqui a tarefa é a de fornecer àqueles órgãos critérios
(argumentos)
jurídica
que
visam
consistente
na
facilitar
a
aplicação
tomada
de
uma
uma
norma
a
de
decisão
um
caso
concreto:
“
... A diferença que, não obstante, existe entre
ambos os processos de argumentação podia sintetizar-se
assim: enquanto os órgãos aplicadores têm que resolver
casos concretos, (...) o dogmático do Direito se ocupa
de casos abstratos.”240
O direito, portanto, faz parte de um âmbito
muito
certos
240
complexo
problemas
de
decisões
práticos.241
vinculadas
Na
base
com
dessas
a
resolução
decisões
de
podem
RODRIGUEZ, M. A. Obra citada, p. 21.
Não se deve confundir decisão com argumentação, pois os raciocínios, os
argumentos, não são as decisões, mas sim as razões que as sustentam.
241
161
geralmente ser encontrados dois tipos de razões: explicativas
e justificativas:
“
As razões explicativas se identificam com os
motivos. Elas estão constituídas por estados mentais que
são antecedentes causais de certas ações. O caso central
de razão explicativa ou motivo é dado por uma combinação
de crenças e desejos. (...)
As razões justificativas ou objetivas não servem
para entender o porquê se realizou uma ação ou
eventualmente para predizer a execução de uma ação, mas
sim para valorá-la, para determinar se foi boa ou má a
partir de distintos pontos de vista.”242
Razões explicativas, portanto, são aquelas que
tentam
dar
conta
dos
motivos
pelos
quais
uma
decisão
foi
tomada, qual foi sua causa, para quê, qual era a finalidade
perseguida,
psicológicos,
cuja
resposta
contexto
pode
social,
ser
procurada
circunstâncias
em
motivos
ideológicas,
entre outros. Já as razões justificativas estão relacionadas à
aceitabilidade ou correção da decisão:
242
NINO, Carlos Santiago. La validez del derecho, p. 126. Segundo Manuel
ATIENZA a distinção entre argumentos explicativos e justificativos tem sua
origem na filosofia da ciência, onde primeiramente se fez uma diferenciação
entre “...o contexto de descobrimento e o contexto de justificação das
teorias científicas. Assim, por um lado, está a atividade consistente em
descobrir ou enunciar uma teoria e que, segundo a opinião generalizada, não
é suscetível de uma análise de tipo lógico; a única coisa que cabe aqui é
mostrar como se gera e se desenvolve o conhecimento científico, o que
constitui uma tarefa que compete ao sociólogo e ao historiador da ciência.
Porém, por outro lado, está o procedimento que consiste em justificar e
validar a teoria, isto é, confrontá-la com os fatos a fim de demonstrar a
sua validade; esta última tarefa requer uma análise de tipo lógico (ainda
que não só lógico) e está regida pelas regras do método científico (que
portanto não são de aplicação no contexto de descobrimento). A distinção
pode ser transportada também ao campo da argumentação em geral, e ao da
argumentação jurídica em particular. (...) Assim, uma coisa é o
procedimento mediante o qual se estabelece uma determinada premissa ou
conclusão, e outra coisa é o procedimento consistente em justificar dita
premissa ou conclusão” (RODRIGUEZ, Manuel Atienza. Obra citada, p. 22).
162
“
Saliente-se que, em geral, os órgãos jurisdicionais
não têm que explicar os motivos pelos quais decidiram
dessa ou daquela forma, devendo apenas justificar suas
decisões. (...) Dizer que o juiz tomou sua decisão
devido a fortes crenças religiosas ou por razões
políticas e ideológicas significa enunciar uma razão
explicativa, ao passo que dizer que o juiz se baseou em
determinada
interpretação
de
um
dispositivo
legal
significa enunciar uma razão justificativa.”243
A
tarefa
de
enunciar
razões
justificativas
implica a de estabelecer como alguém deve se comportar, tem
uma
função
eminentemente
raciocínio
justificativo
prescritiva.
está
Nesse
contido
na
aspecto
o
racionalidade
prática, que é aquela que não se limita a uma tarefa meramente
descritiva
(como
inferir
que
limita
a
a
a
das
argumentação
deduções
principalmente
ciências
um
uso
nas
naturais),
decisões
meramente
prático
da
donde
jurídicas
se
pode
não
se
formais,
mas
abrange
razão,
conforme
atesta
PERELMAN:
“
...admitir a possibilidade de uma justificação
racional significa admitir ao mesmo tempo um uso prático
da razão, não limitando esta à faculdade de discernir
relações necessárias, nem sequer relações referentes ao
verdadeiro ou ao falso. Isso porque toda justificação
racional supõe que raciocinar não é somente demonstrar e
calcular, é também deliberar, criar e refutar, é
apresentar razões pró e contra, é, numa palavra,
argumentar. A idéia de justificação racional e, de fato,
inseparável da idéia de argumentação racional.”244
243
SERBENA, Cesar Antonio, CELLA, José Renato Gaziero. A lógica deôntica
paraconsistente e os problemas jurídicos complexos, p. 123.
244
PERELMAN, Chaïm. Ética e direito, p. 344. Ver também PERELMAN, C. Idem,
p. 186.
163
Segundo
PERELMAN,
a
“
...argumentação
é
uma
ação que tende sempre a modificar um estado de coisas préexistente”245 e que, por isso mesmo, toda a argumentação não é
concebível senão em função da ação que prepara ou determina,
sendo impossível considerá-la como um exercício inteiramente
desligado
de
toda
a
preocupação
prática246,
da
mesma
forma
“...o problema da justificação só surge na área prática quando
se trata de decisão, de ação, de escolha, fora da experiência,
que suprime toda possibilidade de decisão e de escolha”.247
Considerando, além do mais, que “...o objeto da justificação é
de ordem prática: justifica-se um ato, um comportamento, uma
disposição a agir, uma pretensão, uma escolha, uma decisão”248,
há que referir que “...apenas a argumentação (...) permite
compreender nossas decisões.”249
Foi
dito
que
as
decisões
proferidas
pelos
órgãos jurisdicionais (em sentido amplo) só precisam conter
razões justificativas. Mas isso não quer dizer, contudo, que
uma análise do discurso jurídico deva excluir do seu campo de
observação o contexto de descobrimento, uma vez que também a
245
PERELMAN, Chaïm, OLBRECHTS-TYTECA, Lucie. Tratado da argumentação: a
nova retórica, p. 61.
246
Cf. PERELMAN, C., OLBRECHTS-TYTECA, L. Idem, p. 60 e 66.
247
PERELMAN, C. Ética e direito, p. 186-187.
248
PERELMAN, C. Idem, p. 185.
249
PERELMAN, C., OLBRECHTS-TYTECA, L. Tratado da argumentação: a nova
retórica, p. 53.
164
partir
de
razões
explicativas
se
pode
adotar
uma
atitude
prescritiva:
“
A distinção entre contexto de descobrimento e
contexto de justificação não coincide com a distinção
entre discurso descritivo e prescritivo, posto que tanto
em relação a um quanto ao outro contexto se pode adotar
uma atitude descritiva ou prescritiva. Por exemplo,
pode-se decidir quais são os motivos que levaram o juiz
a ditar uma resolução no sentido indicado (o que
significaria explicar sua conduta), porém também se pode
prescrever
ou
recomendar
determinadas
mudanças
processuais para evitar que as ideologias dos juízes (ou
dos júris) tenham um peso excessivo nas decisões a tomar
(por exemplo, fazendo que tenham mais relevância outros
elementos que moldam parte da decisão, ou propondo
ampliar as causas de recusa de juízes ou júris). E, por
outro lado, pode-se descrever como de fato o juiz em
questão fundamentou a sua decisão (se baseou-se no
argumento de que — de acordo com a Constituição — o
valor da vida humana deve prevalecer sobre o valor da
liberdade pessoal); ou se pode prescrever ou sugerir — o
que exige por sua vez uma justificação — como o juiz
deveria
ter
fundamentado
sua
decisão
(a
sua
fundamentação
deveria
ter
se
baseado
noutra
interpretação da Constituição que subordina o valor da
vida humana ao valor da liberdade pessoal).”250
Trata-se, portanto, de analisar não unicamente
como
se
justificam
de
fato
as
decisões
jurídicas
(caráter
descritivo), mas também de como elas deveriam ser justificadas
(caráter
prescritivo).
Resta
saber
se
é
possível
sempre
justificar racionalmente uma decisão jurídica, retornando à
pergunta formulada no início deste capítulo.
250
RODRIGUEZ, M. A. Las razones del derecho: teorías de la argumentación
jurídica, p. 23.
165
Contra
essa
possibilidade
metodológico251
determinismo
se
quanto
opõem
o
tanto
o
decisionismo
metodológico.252
O
determinismo
metodológico
não
se
sustenta
mais no contexto do direito moderno, em que as decisões devem
ser motivadas. Além do mais, conforme se pode inferir dos
resultados
trazidos
pelo
debate
entre
HART
e
DWORKIN,
justificar uma decisão, em um caso difícil, significa algo
mais
do
extrair
que
uma
efetuar
uma
conclusão
a
operação
partir
de
dedutiva
consistente
premissas
normativas
em
e
fáticas.
Quanto ao decisionismo metodológico, nele pode
ser enquadrado o realismo norte-americano descrito no capítulo
anterior, em especial o pensamento de Jerome FRANK, para quem:
“
O juiz não parte de alguma regra ou princípio como
sua premissa maior, toma logo os fatos do caso como
premissa menor e chega a sua resolução mediante um puro
processo de raciocínio. O juiz — ou o júri — toma suas
decisões
de
forma
irracional
—
ou,
pelo
menos,
arracional — e posteriormente as submetem a um processo
de racionalização. A decisão, portanto, não se baseia na
lógica, mas nos impulsos do juiz que estão determinados
por fatores políticos, econômicos, sociais e, sobretudo,
por sua própria idiossincrasia.”253
251
Para essa postura as decisões jurídicas não necessitam ser justificadas
porque procedem de uma autoridade legítima e/ou são o resultado de simples
aplicações de normas gerais.
252
Segundo essa postura as decisões jurídicas não podem ser justificadas
porque são puros atos de vontade.
253
FRANK, Jerome. Law and the modern mind, p. 23.
166
O pensamento realista, ao banalizar o contexto
da
justificação,
precisamente,
comete
em
haver
um
grande
erro,
“...confundido
que
o
consiste,
contexto
de
descobrimento e o contexto de justificação. É muito possível
que, de fato, as decisões se tomem precisamente como eles [os
críticos] sugerem, isto é, que o processo mental do juiz vá da
conclusão às premissas e não ao revés, e inclusive cabe pensar
que a decisão (ao menos em alguns casos) é, sobretudo, fruto
de
juízos
prévios;
mas
isso
não
anula
a
necessidade
de
justificar a decisão, nem tampouco converte essa tarefa em
algo impossível”.254
Este mesmo entendimento é confirmado por Chaïm
PERELMAN,
para
quem,
processos
mentais
não
mesmo
que
dedutivos
as
que,
decisões
decorram
posteriormente,
de
são
reduzidos à forma de dedução, a justificação sempre se fará
presente:
“
... Acontece, muito amiúde aliás, não sendo isso
necessariamente deplorável, que mesmo um magistrado
conhecedor do direito formule seu julgamento em dois
tempos, sendo as conclusões a princípio inspiradas pelo
que lhe parece ser mais conforme a seu senso de
eqüidade,
vindo
a
motivação
técnica
apenas
como
acréscimo. Há que se concluir, nesse caso, que a decisão
foi tomada sem nenhuma deliberação prévia? De modo
algum, pois os prós e os contras poderiam ter sido
pesados com o maior cuidado, mas fora de considerações
de técnica jurídica.
(...)
...o valor retórico de um enunciado não poderia ser
anulado pelo fato de que se trataria de uma argumentação
254
SERBENA, C. A., CELLA, J. R. G. Obra citada, nota 7, p. 132.
167
que se julga construída a posteriori,
decisão íntima estava tomada...”255
O
nível
mais
básico
de
depois
justificação
que
de
a
uma
decisão é o da racionalidade lógico-formal, a qual se predica,
essencialmente, neste âmbito, de proposições (enunciados), ou
melhor, da passagem de alguma proposição a outra, isto é,
através da inferência.
O que interessa aqui é a correção formal dos
argumentos.256
correção?
Para
Mas
como
responder
se
a
pode
esta
verificar
questão,
esse
tipo
partiremos
de
de
um
exemplo retirado do gênero literário policial257 e que é assim
narrada por Manuel ATIENZA (trata-se do conto A Carta Roubada,
de Edgard Allan POE):
“
Auguste Dupin (...) recebe um dia a visita do
comissário de polícia de Paris que lhe consulta sobre o
seguinte problema. Um documento da maior importância
havia sido roubado nos palácios reais. Sabe-se que o
autor do roubo é o ministro D., que usa a carta como um
instrumento de chantagem contra uma dama da realeza. O
ministro deve ter a carta escondida em algum lugar de
sua casa, porém o comissário de polícia, apesar de ter
efetuado
uma
minuciosa
e
sistemática
busca,
não
conseguiu encontrá-la. Dupin consegue encontrar a carta
255
PERELMAN, C., OLBRECHTS-TYTECA, L. Tratado da argumentação: a nova
retórica, p. 48-49.
256
Mesmo sob o ponto de vista psicológico do realismo jurídico, em que o
juiz parte primeiro da conclusão e só então, mediante um mecanismo de
racionalização a posteriori, formula as premissas, não fica prejudicada a
questão de a inferência estar ou não justificada logicamente, já que a
justificação lógica, que é de caráter puramente formal, deve estar presente
em qualquer decisão.
257
Há outras obras ilustradas com numerosos exemplos de argumentos
dedutivos, a exemplo de WESTON, em especial a análise que é feita, passo a
passo, das “deduções”, encontradas na obra de Sir Arthur Conan DOYLE,
protagonizadas por Sherlock Holmes (Cf. WESTON, Anthony. La claves de la
argumentación, p. 92-96).
168
através de um processo de raciocínio que, grosso modo, é
o seguinte: Se a carta estivesse ao alcance dos
trabalhos de busca, os agentes a teriam descoberto, e
como a carta deve estar no domicílio do ministro, isso
quer dizer que a polícia agiu mal na busca. Dupin sabe
que o ministro é uma pessoa audaz e inteligente e que
ademais possui não somente uma inteligência matemática,
como também — se se pode chamar assim — uma inteligência
poética. O ministro pôde prever, portanto, que a sua
casa seria revistada pela polícia e que os homens do
comissário buscariam em todos aqueles lugares em que se
poderia supor que alguém pudesse deixar um objeto que se
deseja ocultar. Dupin infere daí que o ministro teve que
deixar a carta em um lugar muito visível mas,
precisamente por isso, inesperado. Com efeito, Dupin
encontra a carta em um porta-cartões fixado em uma fita
azul sobre a chaminé, amarrotada e manchada (como se
tratasse de algo sem importância) e exibindo um tipo de
letra e um selo de características opostas às da cata
roubada (...) Dupin explica assim o fracasso do
comissário: a causa remota de seu fracasso é a suposição
de que o ministro é um imbecil porque obteve fama de
poeta. Todos os imbecis são poetas; assim entende o
prefeito e, por isso, incorre em uma non distributiu
medii ao inferir que todos os poetas são imbecis.”258
De acordo com essa narrativa, vê-se pois que o
erro do comissário consistiu em ter inferido da proposição
todos
os
imbecis
são
poetas,
a
conclusão
de
que
todos
os
poetas são imbecis.
Do relato se pode verificar que o comissário
efetuou um argumento logicamente válido, mas partindo de uma
premissa falsa:
Todos os poetas são imbecis.
O ministro é um poeta.
Logo, o ministro é um imbecil.
258
RODRIGUEZ, M. A. Las razones del derecho: teorías de la argumentación
jurídica, p. 26-27.
169
Vertendo o silogismo para a forma simbólica:
∆x
Px → Qx
Pa
¯¯¯¯¯¯¯¯¯¯¯¯¯¯
Qa
O
argumento
em
questão
é
logicamente
válido
porque a conclusão se infere necessariamente das premissas.259
Num silogismo a conclusão já é incluída nas
premissas,
pois
a
passagem
destas
àquela
é
necessária,
ou
seja, não é possível que as premissas sejam verdadeiras e não
o seja a conclusão.
Portanto, no exemplo acima temos um argumento
válido logicamente, mas com uma premissa falsa. Prosseguindo a
análise a partir da narrativa de ATIENZA sobre a obra de POE,
imaginemos um caso quase que oposto ao do primeiro exemplo,
mas
que
parte
de
premissas
verdadeiras
(em
relação,
evidentemente, à narrativa), só que se vale de um argumento
logicamente inválido:
Todos os imbecis são poetas.
O ministro é um poeta.
259
Olivier REBOUL traz alguns exemplos nos quais o silogismo é valido, mas
em que a conclusão resulta absurda em face da falsidade das premissas:
“’Tudo o que é raro é caro; ora, um bom cavalo barato é raro; logo, um bom
cavalo barato é caro.’ [Trata-se de] um verdadeiro silogismo, perfeitamente
válido. Donde vem então o absurdo de conclusão? Do fato de que as premissas
são falsas, e de que o raciocínio prova isso pelo absurdo. Prova que o que
é raro nem sempre é caro; ou ainda que um bom cavalo barato nem sempre é
raro (em caso de má venda, por exemplo). Em suma, não há sofisma no sentido
estrito, mas um erro que consiste em transformar o provável em certo”
(REBOUL, Olivier. Introdução à retórica, p. 100).
170
Logo, o ministro é um imbecil.260
Em notação simbólica:
∆x
Px → Qx
Qa
¯¯¯¯¯¯¯¯¯¯¯¯¯¯
Pa
No caso, a classe dos imbecis está contida na
classe dos poetas, mas disso não decorre que, necessariamente,
sendo o ministro um poeta, tenha que estar também contido na
classe dos imbecis. Ele poderia muito bem ser um poeta que não
é imbecil. Assim, no exemplo as premissas são verdadeiras, mas
a conclusão é falsa.
Os
dois
exemplos
acima,
conforme
dito,
são
quase opostos. Não são totalmente opostos porque em ambos a
conclusão, que é a mesma, é falsa. No próximo exemplo, tanto
as premissas quanto a conclusão são verdadeiras, só que no
entanto não se trata de um argumento logicamente válido:
Todos os imbecis são poetas.
O ministro é um poeta.
Logo, o ministro não é um imbecil.
260
Este silogismo pode ser enquadrado na falácia denominada afirmação do
conseqüente, que pode ser ilustrada com o seguinte exemplo trazido por
WESTON: Afirmar o conseqüente. Uma falácia dedutiva da forma: Se p então q;
q; logo, p. Por exemplo: Se as ruas estão geladas, o correio se demora; o
correio se demora; logo, as ruas estão geladas. Ambas as premissas podem
ser verdadeiras, e a conclusão ser todavia falsa. Ainda que o correio
chegue tarde quando as ruas estão geladas, pode chegar tarde também por
outras razões” (WESTON, Anthony. Obra citada, p. 128).
171
Em notação simbólica:
∆x
Px → Qx
Qa
¯¯¯¯¯¯¯¯¯¯¯¯¯¯
—Pa
No caso, a classe dos imbecis, tal qual no
exemplo anterior, está contida na classe dos poetas, mas disso
não decorre que, necessariamente, o ministro seja um poeta que
não é imbecil. Ele poderia muito bem ser um poeta enquadrado
na
categoria
dos
imbecis,
resultado
que
invalidaria
a
conclusão do caso acima.
Vejamos agora um exemplo de argumento válido
logicamente e cujas premissas são verdadeiras (e, portanto,
também sua conclusão):
Os ministros que são poetas não são imbecis.
O ministro é um poeta.
Logo, o ministro não é um imbecil.
Em linguagem simbólica:
∆x
Px ∧ Qx
→ —Rx
Pa ∧ Qa
¯¯¯¯¯¯¯¯¯¯¯¯¯¯¯¯¯¯¯
—Ra
172
Neste caso, qualquer possível representação das
premissas conteria também a conclusão.
Esta primeira abordagem acerca do raciocínio
lógico-dedutivo
já
permite
a
verificação
de
que,
quando
passamos para o campo das argumentações, muitas insatisfações
podem
surgir.
Após
definir
o
que
vem
a
ser
um
argumento
lógico, ATIENZA faz algumas considerações:
“
... Temos uma implicação ou uma inferência lógica
ou uma argumentação válida (dedutivamente), quando a
conclusão necessariamente é verdadeira se as premissas
são verdadeiras. A lógica, a lógica dedutiva, pode se
apresentar em forma axiomática ou como um sistema de
regras de inferência, mas esta segunda forma de
apresentação é a que melhor se ajusta à maneira natural
de raciocinar. Isso é assim porque enquanto no modo
axiomático de deduzir se parte de enunciados formalmente
verdadeiros (tautologias) e se chega, ao término da
dedução, a enunciados também formalmente verdadeiros, no
modo natural de fazer inferências dedutivas se pode
partir — e isso é o mais freqüente — de enunciados
indeterminados em seu valor de verdade ou inclusive
declaradamente falsos e se chegar a enunciados que podem
ser verdadeiros ou falsos. A única coisa que determina
uma regra de inferência é que se as premissas são
verdadeiras, então necessariamente a conclusão também
será verdadeira.”261
A
lógica
dedutiva
só
fornece
critérios
de
correção formais, mas passa ao largo das questões materiais ou
de
conteúdo
que,
naturalmente,
são
relevantes
quando
se
argumenta em contextos que não sejam os das ciências formais
(lógica e matemática).
261
RODRIGUEZ, M. A. Obra citada, p. 31.
173
A incapacidade que a lógica formal possui de
fornecer
critérios
que
determinem
a
correção
material
dos
argumentos pode levar a algumas situações peculiares: a partir
de premissas falsas se pode argumentar corretamente do ponto
de vista lógico e, por outro lado, é possível que um argumento
seja incorreto do ponto de vista lógico, ainda que a conclusão
e as premissas sejam verdadeiras ou altamente plausíveis.
Em alguns casos, portanto, a lógica surge como
um instrumento necessário mas insuficiente para o controle dos
argumentos.262 Há casos, no entanto, em que é possível que a
lógica
(a
lógica
dedutiva)
não
permita
sequer
o
estabelecimento de requisitos necessários em relação ao que
deve ser um bom argumento.
Todas
essas
observações
fazem
ver
que
o
problema da correção ou não dos argumentos implica o problema
de como distinguir os argumentos corretos dos incorretos, os
válidos dos inválidos.
Quanto
questão
mais
manifestamente
à
importante
inválidos
validade
é
a
de
de
ou
não
dos
distinguir
outros
que,
argumentos,
os
a
argumentos
embora
pareçam
válidos, não o são: as falácias.
262
“...um bom argumento deve sê-lo tanto do ponto de vista formal quanto do
material” (RODRIGUEZ, M. A., Obra citada, p. 32).
174
Com
efeito,
os
argumentos
que
são
manifestamente inválidos não geram maiores problemas, posto
que
não
podem
levar
a
confusões.
Já
quanto
às
falácias
o
raciocínio lógico apresenta deficiências. Com efeito, pode-se
encontrar
dois
formais.
Estas
tipos
de
últimas
falácias:
podem,
as
ainda,
formais263
ser
e
as
subdivididas
não
em
falácias de atinência e de ambigüidade.
Nas falácias de atinência as premissas carecem
de
referibilidade
em
relação
às
suas
conclusões,
sendo
portanto incapazes de estabelecer sua verdade. Aqui podem ser
enquadradas
as
falácias
que
se
baseiam
em
argumentos
ad
ignorantiam264, em argumentos ad personam265, ou com a petição
de princípio.266
263
Em que estaria enquadrada a afirmação do conseqüente, anteriormente
exemplificada.
264
“Ad ignorantiam (apelar à ignorância). Argüir que uma afirmação é
verdadeira somente porque não foi demonstrado que é falsa. Um exemplo
clássico é constituído pela seguinte declaração do Senador Joseph McCarty
quando interrogado da prova que sustentava sua acusação de que certa pessoa
era comunista: ‘Não tenho muita informação sobre isto, exceto a declaração
geral da Comissão de que nada existe para refutar suas conexões
comunistas’” (WESTON, Anthony. Obra citada, p. 127).
265
A lógica clássica denomina esses argumentos como sendo ad hominem,
consistentes em atacar a pessoa do orador ao invés de atacar suas
qualificações. Optou-se por usar o temo ad persona para evitar confusões
com o pensamento de PERELMAN, para quem as “...possibilidades de
argumentação dependem do que cada qual está disposto a conceder, dos
valores que reconhece, dos fatos sobre os quais expressa seu acordo; por
isso, toda argumentação é uma argumentação ad hominem ou ex concessis.
(...)
Não se deve confundir o argumento ad hominem com o argumento ad
personam, ou seja, com um ataque contra a pessoa do adversário, que visa,
essencialmente, a desqualificá-lo. A confusão pode estabelecer-se porque as
duas espécies de argumentação costumam interagir. Aquele cuja tese foi
refutada graças a uma argumentação ad hominem vê seu prestígio diminuído,
mas não esqueçamos que esta é uma conseqüência de qualquer refutação, seja
qual for a técnica utilizada: ‘um erro fatual’ (...) ‘lança um homem sábio
175
Já
as
falácias
de
ambigüidade
surgem
em
raciocínios cuja formulação contém palavras ambíguas, cujos
significados são alterados de maneira mais ou menos sutil no
curso da argumentação.267
Vale
dizer
que
a
lógica
formal
só
fornece
critérios para desmascarar as denominadas falácias formais.
Outro aspecto que gera insatisfação é o de que
a
definição
proposições
de
argumento
que
se
válido
submetem
ao
dedutivamente
critério
de
se
refere
verdade
a
e
falsidade.
Ocorre que, sob um determinado ponto de vista
não faz sentido argüir a verdade ou falsidade de uma norma,
seja ela jurídica ou moral. KELSEN, por exemplo, afirma que a
inferência silogística não se aplica às normas:
“
O pressuposto fundamental dos princípios da Lógica
tradicional aplicados à verdade de enunciados é que
no ridículo’” (PERELMAN, C., OLBRECHTS-TYTECA, L. Tratado da Argumentação:
a nova retórica, p. 125-126).
266
A petitio principii consiste no fato de se postular o que se quer
provar, “...supõe que o interlocutor já aderiu a uma tese que o orador
justamente se esforça por fazê-lo admitir” (PERELMAN, C., OLBRECHTS-TYTECA,
L. Obra citada, p. 127), como por exemplo quando se afirma que Deus existe
porque é isso que diz a bíblia; sendo a bíblia verdadeira exatamente pelo
fato de ter sido escrita por Deus: “a bíblia é verdade porque Deus a
escreveu; a bíblia diz que Deus existe; logo, Deus existe” (WESTON,
Anthony. Obra citada, p. 132).
267
Veja-se o exemplo dado por Anthony WESTON: “A: Todo estudo é uma
tortura; B: Mas e estudar para argumentar? Tu gostas tanto!; A: Bem, isso
não é realmente estudar. Aqui ‘estudar’ é a palavra equívoca. A resposta de
A à objeção de B altera de fato o significado de estudar para o de estudar
que é uma tortura. Desse modo, a primeira afirmação de A permanece
verdadeira, mas só ao custo de torná-la trivial” (WESTON, A. Obra citada,
p. 132).
176
existem enunciados verdadeiros e falsos, quer dizer: há
enunciados que têm a qualidade de ser verdadeiros ou
falsos.
Enunciados que são verdadeiros ou falsos são o
sentido de atos de pensamento. Normas são, porém, o
sentido de atos da vontade dirigidos à conduta de outrem
e, como tais, nem são verdadeiras nem falsas e, por
conseguinte, não subordinadas aos princípios da Lógica
tradicional, contanto que estes sejam relacionados com
verdade ou falsidade.
A
expressão
lingüística
de
uma
norma
é
um
imperativo ou uma proposição de dever-ser; e se a
aplicabilidade dos princípios lógicos de não-contradição
e da conclusão é adotada para normas, então isto, via de
regra, acontece com relação a proposições de dever-ser.
Diz-se, porventura: entre ambas as proposições de deverser: ’um médico deve dizer a verdade a seu paciente, à
pergunta deste se sua doença, que o médico considera
incurável, é incurável’, e ‘o médico não deve dizer a
verdade a seu paciente, à pergunta deste se sua doença,
que o médico considera incurável, é curável’, existe uma
contradição lógica. E da proposição: ‘Todas as pessoas
devem cumprir sua promessa feita a uma outra pessoa’
segue-se logicamente a proposição: ‘o homem Meier deve
cumprir a promessa feita à senhora Schulze de com ela
casar’. Mas, não se toma em consideração que estas
proposições de dever-ser 1) são normas válidas de uma
Moral positiva, ou seja, de um Direito positivo ou 2)
são enunciados sobre a validade de tais normas, ou se em
geral são proposições de dever-ser, nas quais o deverser é o sentido de um ato de vontade dirigido à conduta
de
outrem,
ou
proposições
de
dever-ser
que
são
enunciados sobre um tal sentido de atos de vontade. Quer
dizer, opera-se 3) com proposições de dever-ser, as
quais nem são uma nem são outra.
(...)
Se se acredita poder aplicar os princípios lógicos
de não-contradição e da conclusão a normas, embora estas
nem sejam verdadeiras nem falsas, então não pode haver a
relação com a verdade que serve de base a essa
aplicação; tem de haver a relação com uma outra
qualidade da norma. Precisa haver normas que tenham esta
específica qualidade, e normas que não tenham esta
qualidade. E esta qualidade das normas precisaria ser
análoga à verdade dos enunciados.
Os princípios da Lógica do Enunciado, a saber: o
princípio de não-contradição e a regra da conclusão
dizem respeito a relações entre enunciados. O problema
de uma Lógica das Normas é, portanto, o problema da
aplicação de princípios (os quais são análogos aos
princípios da Lógica do Enunciado) à relação entre
normas. Assim como na hipótese de uma contradição lógica
entre dois enunciados somente um pode ser verdadeiro, e
o outro tem de ser falso, então precisaria haver uma
relação entre duas normas, na qual, se uma tem qualidade
análoga à verdade, a outra não pode ter esta qualidade.
Assim como da verdade de um enunciado pode ser
logicamente resultada a verdade de um outro enunciado,
177
então da qualidade de uma norma análoga à verdade teria
de resultar esta qualidade de uma outra norma.
Nas
diferentes
tentativas
para
provar
a
aplicabilidade de princípios lógicos a normas — como
anteriormente mostrado — foram seguidos dois caminhos
para colocar em analogia com a verdade do enunciado: um
é a validade da norma; o outro o cumprimento da norma.
Com relação ao que diz respeito ao primeiro
caminho, já foi aqui afirmado que não existe uma
analogia entre verdade de um enunciado e validade de uma
norma, porque validade ou não-validade de uma norma não
é qualidade de uma norma, assim como verdade ou
falsidade é qualidade de um enunciado. A validade de uma
norma é sua específica existência ideal, e uma norma
não-válida, uma norma nula, é uma norma não existente;
enquanto um enunciado falso é um enunciado existente.”268
Neste
sentido
a
lógica
não
se
aplica
às
relações entre normas, pois as suas regras (da lógica) se
aplicam
ao
pensamento,
silogismo
mas
não
teórico
ao
que
silogismo
se
baseia
prático
em
ou
um
ato
de
normativo
(o
silogismo em que ao menos uma das premissas e a conclusão são
normas) que se baseia em um ato de vontade (em uma norma).269
A idéia de que a inferência lógico-dedutiva não
se aplica às normas pode levar a resultados estranhos. Vejase, por exemplo, o seguinte silogismo (que pode ser retirado
de
um
dos
exemplos
trazidos
por
KELSEN
no
texto
acima
transcrito):
Deves manter suas promessas.
Esta é uma de suas promessas.
Logo, deve manter esta promessa.
268
KELSEN, Hans. Teoria geral das normas, p. 263-266.
Segundo KELSEN: “A palavra ‘norma’ procede do latim: norma,
alemã tomou o caráter de uma palavra de origem estrangeira — se
em caráter exclusivo, todavia primacial. Com o termo se
mandamento, uma prescrição, uma ordem” (KELSEN, H. Obra citada,
269
e na língua
bem que não
designa um
p. 1).
178
Dizer que esta inferência carece de validade
lógica efetivamente não é algo de fácil assimilação, pois na
vida cotidiana geralmente atribuímos às inferências práticas a
mesma validade que teriam as inferência teóricas.
Com efeito, se a partir do exemplo acima, A
aceita como moralmente obrigatória a regra de que se devem
manter
as
promessas
(todas
as
promessas
e
em
qualquer
circunstância) e aceita como verdadeiro o fato de que prometeu
a B que iria levá-lo ao cinema na tarde de domingo, e no
entanto sustenta também que, apesar disso, não considera que
deva levar a B ao cinema no dia prometido, estaríamos forçados
a concluir que seu comportamento seria tão irracional quanto o
de quem considera como enunciados verdadeiros o seguinte: os
ministros que são poetas não são imbecis; X é um ministro que
é poeta; mas que no entanto não está disposto a aceitar que X
não
é
imbecil.
Naturalmente,
é
possível
que
estas
duas
situações (inclusive a segunda) se dêem de fato, mas isso não
parece
ter
gramática,
nenhuma
é
uma
relação
disciplina
com
a
lógica
prescritiva:
não
que,
diz
como
na
como
os
homens pensam ou raciocinam de fato, mas sim como deveriam
fazê-lo.270
270
Vale dizer que desde ARISTÓTELES até RUSSEL e o primeiro WITTGENSTEIN, a
lógica tinha um sentido eminentemente prescritivo, o que deixou de ser
regra a partir do desenvolvimento do infindável número de sistemas lógicos
ou diversas lógicas existentes atualmente.
179
De fato, os enunciados prescritivos referem-se
ao
âmbito
do
dever-ser;
não
tendo,
portanto,
nenhum
compromisso com a realidade. É precisamente neste aspecto em
que se diferenciam o princípio da causalidade (em que pode
atuar
a
lógica
dedutiva)
e
o
princípio
da
imputação
(causalidade jurídica) de que fala KELSEN em suas obras:
“
... A lei da natureza estabelece que, se A é, B é
(ou será). A regra de Direito diz: se A é, B deve ser. A
regra de Direito é uma norma (no sentido descritivo do
termo). O significado da conexão estabelecida pela lei
da natureza entre dois elementos é o ‘é’, ao passo que o
significado da conexão estabelecida entre dois elementos
pela regra do Direito é o ‘deve ser’. O princípio
segundo o qual a ciência natural descreve seus objetos é
o da causalidade; o princípio segundo o qual a ciência
jurídica descreve seu objetivo é o da imputação.
... A regra normativa ‘se alguém roubar, deve ser
punido’ permanece válida mesmo se, num dado caso, um
ladrão não for punido.(...) Como a norma não é um
enunciado de realidade, nenhum enunciado de um fato real
pode estar em contradição com a norma.”271
No entanto, os autores que sustentam a tese de
que a lógica não se aplica às normas não levam em conta que
há, na verdade, dois aspectos em torno dessa questão.
Por um lado está a questão de se a relação que
as
normas
válidas
(aquelas
que
passaram
pelo
teste
de
pedigree) guardam entre si são de tipo lógico. É claro que
neste
ponto
possível
que
têm
razão
hajam,
aqueles
num
autores,
sistema,
pois
normas
obviamente
contraditórias
(incompatíveis) entre si:
271
é
KELSEN, Hans Teoria geral do direito e do estado, p. 64-65.
180
“
... Diz-se que um ordenamento jurídico constitui um
sistema
porque
não
podem
coexistir
nele
normas
incompatíveis. Aqui, ‘sistema’ equivale à validade do
princípio que exclui a incompatibilidade das normas. Se
num ordenamento vêm a existir normas incompatíveis, uma
das duas ou ambas devem ser eliminadas. Se isso é
verdade, quer dizer que as normas de um ordenamento têm
um certo relacionamento entre si, e esse relacionamento
é o relacionamento de compatibilidade, que implica a
exclusão da incompatibilidade. Note-se porém que dizer
que as normas devam ser compatíveis não quer dizer que
se encaixem umas nas outras, isto é, que constituam um
sistema dedutivo perfeito. Nesse terceiro sentido de
sistema, o sistema jurídico não é um sentido dedutivo,
como no primeiro sentido: é um sistema num sentido menos
incisivo, se se quiser, num sentido negativo, isto é,
uma ordem que exclui a incompatibilidade das suas partes
simples. Duas proposições como: ‘O quadro negro é negro’
e ‘O café é amargo’ são compatíveis, mas não se encaixam
uma na outra. Portanto, não é exato falar, como se faz
freqüentemente, de coerência do ordenamento jurídico, no
seu conjunto; pode-se falar de exigência de coerência
somente entre suas partes simples. Num sistema dedutivo,
se aparecer uma contradição, todo o sistema ruirá. Num
sistema jurídico, a admissão do princípio que exclui a
incompatibilidade tem por conseqüência, em caso de
incompatibilidade de duas normas, não mais a queda de
todo o sistema, mas somente de uma das duas normas ou no
máximo das duas.”272
Com
normas
efeito,
incompatíveis
entre
ainda
si
que
podem
não
seja
coexistir
desejável,
num
mesmo
sistema normativo sem que isso implique o colapso do sistema.
Assim, tanto a norma que afirma que se devam cumprir todas as
promessas quanto a norma que diz que não há porque cumprir a
promessa efetuada a B são absorvíveis no sistema.
Portanto, no que tange à relação entre normas,
não há dúvidas de que a lógica formal não se aplica.
272
BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico, p. 80.
181
Mas existe ainda uma outra questão: é possível
inferir validamente uma norma de outra? A resposta a esta
pergunta independe da anterior e aqui a resposta pode ser
afirmativa, desde que se faça uma pequena correção na noção do
que vem a ser um argumento dedutivo válido.273
Ora, o problema em que nos deparamos residia na
definição
de
argumento
dedutivo
antes
adotada,
a
qual
se
chocava com a opinião generalizada — ainda que não unânime —
de
que
as
normas
jurídicas
não
podem
ser
submetidas
a
fazer
uma
correção
no
critérios de verdade ou falsidade.
Sendo
assim,
cabe
conceito de argumento dedutivo, que poderá ser enunciado pela
forma
que
lógica
ou
segue:
uma
teremos
uma
argumentação
implicação
válida
ou
uma
(dedutivamente)
inferência
quando
a
conclusão necessariamente é verdadeira274 se as premissas são
verdadeiras.275
Mas ainda com esta nova definição os problemas
não são todos resolvidos. Já foi mencionado que a lógica está
limitada ao seu caráter formal.276 Há ainda um outro aspecto, o
273
Que, segundo a definição exposta acima, seriam os argumentos referentes
a proposições (premissas e conclusões) que podem ser verdadeiras ou falsas.
274
Se se quiser correta, justa, válida, etc.
275
Se se quiser corretas, justas, válidas, etc.
276
Não dá conta, por exemplo, das falácias materiais; e pode haver um
raciocínio logicamente válido, ainda que suas premissas sejam falsas.
182
qual está vinculado ao caráter dedutivo da lógica277, ou seja,
o caráter de necessidade inerente à passagem das premissas à
conclusão.
Voltando
ao
exemplo
do
documento
roubado,
poderíamos sintetizar assim os argumentos que permitiram ao
Sr. Dupin solucionar o mistério:
O ministro é um homem audaz e inteligente.
O ministro sabia que sua casa seria revistada.
O ministro sabia que a polícia daria busca em todos os
lugares em que a carta pudesse ter sido ocultada.
Logo, o ministro deve ter deixado a carta em um lugar
tão visível que, precisamente por isso, a mesma passou
despercebida aos homens do comissário.
Ora,
argumento
dedutivo,
conclusão
não
é
este
já
último
que
a
necessária,
não
é,
passagem
mas
obviamente,
das
tão-somente
premissas
provável
um
à
ou
plausível.
Podia ser que o ministro deixasse, por exemplo,
a carta com um de seus amigos ou, ainda, que ela tivesse sido
mesmo bem escondida a ponto de a polícia não ter a capacidade
de encontrá-la, e por aí afora. A este tipo de argumentos, em
que
a
passagem
necessariamente,
277
das
são
premissas
à
comumente
conclusão
não
denominados
se
produz
argumentos
A dedução não é uma característica necessária da lógica, pois além dela
existem ainda as lógicas indutivas, que têm a mesma importância que as
lógicas dedutivas.
183
indutivos e não dedutivos. Porém, neste caso específico não se
está diante da passagem do particular para o geral, mas sim de
uma indução em que se dá a passagem de um particular a outro.
Nem por isso o argumento deixa de ser bom, pois há muitas
ocasiões em que surge a necessidade de argumentar (inclusive
na esfera do direito), sem que no entanto se possa recorrer a
argumentos de tipo dedutivo.
Imagine-se
o
seguinte
exemplo:278
A
e
B
são
acusados pela prática de tráfico de entorpecentes, tipificado
no artigo x do Código Penal, tendo sido condenados à pena de
oito
anos
de
reclusão.
Vejamos
os
fatos:
A
droga
que
foi
localizada pela polícia estava escondida no colchão de uma
cama de casal. A e B (um homem e uma mulher, respectivamente),
estavam presentes na casa por ocasião da diligência de busca
que fora efetuada pela polícia. Os indiciados A e B sustentam
que, embora vivam juntos na mesma residência, só têm entre si
uma relação de amizade e, além do mais, utilizam-se de quartos
distintos, de modo que B não tinha conhecimento da existência
da droga que fora encontrada. Como conseqüência, o advogado de
defesa pede a absolvição da mulher. A sentença, no entanto,
durante a sua fundamentação, considera como fato provado que A
278
O exemplo é colhido, ainda que não de forma literal, da sentença número
477/89 proferida pela Audiência Provincial de Alicante (Catalunha,
Espanha), citada por RODRIGUEZ, M. A. Las razones del derecho: teorías de
la argumentación jurídica, p. 37-42.
184
e B compartilhavam do mesmo quarto e que, em conseqüência, B
tinha conhecimento e participara sim da atividade de tráfico
de drogas que estava sendo imputada a ambos. A justificativa
da
sentença
é
esta:
os
acusados
(A
e
B)
compartilhavam
o
quarto referido, como demonstra — e apesar das alegações em
contrário dos acusados durante o inquérito, em que alegaram
que
não
passavam
de
simples
amigos
—
o
testemunho
dos
policiais que efetuaram a busca, os quais declararam que havia
uma única cama desfeita (diga-se que a busca teve lugar às
seis horas da manhã) e em cujo quarto estavam todos os objetos
pessoais dos acusados; além do que, quando A estava sob regime
de prisão preventiva, em um escrito dirigido ao promotor e
juntado aos autos, referia-se a B como sendo sua mulher. O
caso pode ser assim esquematizado:
Só havia uma cama desfeita na casa.
Eram seis horas da manhã quando ocorreu a busca.
Toda a roupa e objetos pessoais de A e B estavam no
mesmo quarto em que se encontrava a cama.
Meses depois A se refere a B como minha mulher.
Logo, na época em que se efetuou a busca, A e
mantinham relações íntimas (e, em conseqüência,
conhecia a existência da droga).
B
B
Da mesma forma que no argumento do Sr. Dupin, o
argumento acima não tem caráter dedutivo, pois a passagem das
premissas à conclusão não é necessária, ainda que altamente
provável. Se se aceita a verdade das premissas, então há uma
forte razão para aceitar também a conclusão, apesar de não se
185
poder afirmá-la com certeza absoluta: teoricamente, é possível
que B tivesse acabado de chegar em cada às seis horas da
manhã, que seus objetos pessoais estivessem no quarto de A
porque se preparava para limpar seus armários e que, somente
após a detenção de ambos é que sua amizade se transformara
numa relação mais íntima.
Certamente,
o
argumento
guarda
uma
grande
semelhança com aquele efetuado por Dupin. Mas não são de todo
semelhantes, se pensarmos no seguinte: É certo que tanto Dupin
quanto o juiz da sentença se guiam, em sua argumentação, a
partir do que se pode denominar como regras de experiência (as
quais têm um papel semelhante às regras de inferência dos
argumentos dedutivos). No entanto, os magistrados não podem se
servir,
para
estes
casos,
unicamente
das
regras
de
experiência, pois eles estão também vinculadas (à diferença do
detetive
Dupin)
pelas
regras
processuais
de
valoração
da
prova. Por exemplo, um juiz pode estar pessoalmente convencido
de que também B conhecia a existência da droga (da mesma forma
que Dupin estava convencido de onde deveria estar a carta
roubada)
e,
no
entanto,
não
considerar
isto
como
um
fato
provado, pois o princípio de presunção de inocência (tal e
qual ele o interpreta) exige que a certeza sobre os fatos seja
absoluta,
não
se
admitindo
que
sejam
apenas
altamente
prováveis. E mesmo que hajam razões para não interpretar assim
186
o princípio de presunção de inocência (pois, em outro caso,
seriam realmente muito poucos os atos delituosos que pudessem
ser considerado provados), o que interessa aqui é mostrar uma
peculiaridade
do
raciocínio
jurídico,
que
é
o
seu
caráter
altamente institucionalizado.
Se
agora
quiséssemos
demonstrar
esquematicamente o tipo de raciocínio utilizado na sentença
acima exemplificada, poderíamos propor a seguinte formulação:
Aqueles que realizarem atos de tráfico de drogas deverão
ser punidos, de acordo com a lei penal, com a pena de
reclusão
A e B efetuaram este tipo de ação.
Logo, A e B devem ser punidos com a pena de reclusão.
Em linguagem simbólica:
∆x
Px ∧ Qx
→ ORx
Pa ∧ Qa ∧ Pb ∧ Qb
¯¯¯¯¯¯¯¯¯¯¯¯¯¯¯¯¯¯¯
Ora ∧ ORb
Pode-se simplificá-la ainda:
∆x
Px → OQx
Pa
¯¯¯¯¯¯¯¯¯¯¯¯¯
OQa
A
este
tipo
de
esquema
lógico
se
denomina
usualmente de silogismo judicial ou silogismo jurídico. Ele
serve
como
esquema,
práticos ou normativos.
também,
para
os
chamados
silogismos
187
A primeira premissa enuncia uma norma geral e
abstrata em que uma hipótese de fato (x é uma variável de
indivíduo e P uma letra predicativa) aparece como condição
para
uma
conseqüência
conseqüência
(R)
deve
jurídica;
em
o
geral
símbolo
(pode
O
indica
tratar-se
que
de
a
uma
obrigação, de uma proibição ou de uma permissão) se seguir
quando se realiza a hipótese de fato, ainda que seja possível
que na realidade isso não se dê.
A segunda premissa representa a situação em que
se produziu um determinado fato (a é um indivíduo concreto
donde se predica a propriedade P), que se subsume à hipótese
da norma. E a conclusão estabelece que a a se deve aplicar a
conseqüência jurídica prevista pela norma.
O
esquema
em
questão
traz
alguns
inconvenientes. O primeiro deles é que há hipóteses (como no
exemplo acima) em que a conclusão do silogismo não representa
a conclusão ou a parte dispositiva da sentença, mas sim uma
etapa prévia para que se chegue à decisão.
Na
sentença
do
caso
hipotético
tomado
como
exemplo, a parte dispositiva não estabelece simplesmente que A
e
B
devem
ser
condenados
à
pena
de
reclusão,
mas
também
especifica a pena concreta: oito anos de reclusão. Assim, o
argumento anterior pode ser completado com o seguinte:
188
A e B devem ser condenados à pena de reclusão.
Na
prática
de
referido
delito,
circunstâncias
modificativas
da
criminal.
não
ocorreram
responsabilidade
Quando não concorrem circunstâncias modificativas da
responsabilidade criminal, os tribunais impõem (em
conformidade com a lei) a pena em grau mínimo ou médio,
dada a gravidade do fato e a personalidade do
delinqüente.
Logo, A e B devem ser condenados à pena de oito anos de
reclusão (que seria o mínimo da pena permitido por lei).
Este tipo de raciocínio não é dedutivo, pois a
passagem das premissas à conclusão não tem caráter necessário
(o tribunal poderia ter imposto uma pena de até doze anos, por
exemplo,
sem
infringir
a
lei,
isto
é,
sem
contradizer
as
premissas; no caso de a pena máxima para este tipo de crime
ser de doze anos).279
Poderia
dedutivo
(todo
se
argumento
considerar,
indutivo
pode
entretanto,
se
converter
como
em
279
Trata-se portanto de uma racionalidade prática — que afinal se dá tanto
nas decisões judiciais quanto naqueles casos em que se discute a
implantação de uma lei, entre outros — conforme aduz PERELMAN: “Se
procurarmos um exemplo patente de raciocínio prático, nós o encontraremos
na sentença ou no aresto de um tribunal, que indica, além do decisório (o
dispositivo), os motivos que justificam o dispositivo adotado pelo juiz, os
considerandos, que indicam as razões pelas quais o julgado não é ilegal nem
arbitrário, devendo também descartar as objeções apresentadas contra esta
ou aquela premissa do raciocínio... Outro exemplo de raciocínio prático é
fornecido por um projeto de lei precedido de um preâmbulo, pois este não
fornece as premissas a partir das quais ele teria sido inferido, mas sim as
razões que militam em favor de sua adoção.
Vê-se que o raciocínio prático pode redundar, quer numa decisão
referente a uma única situação concreta (o caso do juiz), quer numa decisão
de princípio, que regulamenta grande número de situações (caso do
legislador)” (PERELMAN, C. Ética e direito, p. 279).
189
dedutivo se invocar as premissas adequadas) se se tomar como
incorporada, na argumentação anterior, a seguinte premissa:
A escassa gravidade do fato e a personalidade não
especialmente
perigosa
do
delinqüente
impõem
a
necessidade de aplicação da pena mínima permitida por
lei.
Esta última premissa não enuncia mais uma norma
do direito vigente, não supõe tampouco a constatação de que se
tenha produzido um determinado fato, mas sim que o fundamento
da
mesma
gravidade
é
do
na
verdade
fato
e
derivado
de
personalidade
juízos
do
de
valor,
delinqüente
pois
não
são
termos que se referem a fatos objetivos ou verificáveis de
alguma maneira. No estabelecimento desta premissa poder-se-ia
dizer que o arbítrio do juiz tem um papel fundamental.
Isso
demonstra
que
o
silogismo
judicial
não
permite a reconstrução satisfatória da argumentação jurídica,
pois a) as premissas de que se parte — como neste caso — podem
necessitar,
argumentação
280
por
sua
jurídica
vez,
de
parte
justificação;
normalmente
de
e
b)
porque
entimemas.280
a
Um
Segundo ARISTÓTELES, há duas estruturas argumentativas: o exemplo, que
vai do particular ao geral, do fato à regra, sendo, portanto uma indução; e
o entimema, que vai do geral ao particular, sendo portanto uma dedução. Os
entimemas são silogismos que partem, no entanto, de opiniões geralmente
aceitas, os éndoxa: “O raciocínio é uma ‘demonstração’ quando as premissas
das quais parte são verdadeiras e primeiras, ou quando o conhecimento que
delas temos provém originariamente de premissas primeiras e verdadeiras: e,
por outro lado, o raciocínio é ‘dialético’ quando parte de opiniões
geralmente aceitas (éndoxa). São ‘verdadeiras’ e ‘primeiras’ aquelas coisas
nas quais acreditamos (pistin) em virtude de nenhuma outra coisa que não
190
argumento
entimemático
pode
ser
posto
sempre
em
forma
dedutiva, mas isso supõe a introdução de novas premissas às
explicitamente formuladas, o que significa reconstruir, não
reproduzir, um processo argumentativo.
Outro aspecto a ser considerado é que, enquanto
a conclusão do silogismo judicial se dá pela expressão de um
enunciado normativo que estabelece, por exemplo, que A e B
seja elas próprias; pois, no tocante aos primeiros princípios da ciência, é
descabido buscar mais além o porquê e as razões dos mesmos; cada um dos
primeiros princípios deve impor a convicção da sua verdade em si mesmo e
por si mesmo. São, por outro lado, opiniões ‘geralmente aceitas’ (éndoxa)
aquelas que todo mundo admite (ta dokoúnta), ou a maioria das pessoas, ou
os filósofos — em outras palavras: todos, ou a maioria, ou os mais notáveis
e eminentes (éndoxoi)” (ARISTÓTELES. Tópicos, citado por BERTI, Enrico. As
razões de aristóteles, p. 24). Vejam-se ainda os seguintes exemplos
trazidos por REBOUL: “... As premissas prováveis dos entimemas são: ou
verossimilhanças (eikota), como por exemplo que um filho ama o pai, ou
indícios seguros, como por exemplo que uma mulher que aleita teve um filho,
ou indícios simples, como por exemplo que a presença de cinza indica que
houve fogo” (REBOUL, Olivier. Obra citada, p. 49). Vale dizer, a esse
respeito, que não é em todos os casos de entimemas, na filosofia de
ARISTÓTELES, que das premissas seguem necessariamente a conclusão, conforme
salientado por BERTI: “Entre as premissas dos entimemas há, pois, algumas,
poucas na verdade, das quais a conclusão se segue necessariamente, e
outras, a maior parte, das quais a conclusão se segue apenas geralmente. As
primeiras são os ‘signos’ (seméia), as segundas são os ‘prováveis’
(eikóta); mas, a rigor, a conclusão não se segue de todos os signos, mas
apenas de alguns, que tomam o nome de ‘provas’ (tekméria): por exemplo, o
fato de que alguém tenha febre é um signo do qual se segue necessariamente
que está doente, ou o fato de que uma mulher tenha leite é um signo do qual
se segue necessariamente que ela deu à luz. Ao contrário, os signos dos
quais a conclusão não se segue necessariamente não têm um nome particular,
mas dividem-se naqueles que vão do particular ao universal (por exemplo, o
fato de que Sócrates era sábio e também justo é um signo do qual não se
segue necessariamente que todos os sábios são justos). As provas são
irrefutáveis (ályta), enquanto os outros signos são refutáveis (lytá),
inclusive no caso de a conclusão que se extrai delas ser verdadeira”
(BERTI, Enrico. Obra citada, p. 182). Enfim, segundo WARAT, “o pensamento
argumentativo organiza-se a partir de entimemas e, portanto, não permite o
controle lógico das evidências que postula. Para os aristotélicos, o
entimema é um silogismo fundamentado a partir da verossimilhança, ou seja,
uma afirmação das verdades desenvolvida à margem das demonstrações lógicas
e apoiada unicamente ao nível do pensamento popular, das crenças
socialmente estereotipadas” (WARAT, Luis Alberto. O direito e sua
linguagem, p. 87).
191
devem ser condenados, a parte dispositiva da sentença não só
chega
a
essa
conclusão,
mas
daí
passa
à
ação,
condenando
efetivamente A e B.
Esta distinção entre o enunciado normativo e o
enunciado performático (o ato lingüístico da condenação em que
consiste propriamente a decisão), implica a passagem do plano
do discurso para o plano da ação, ou seja, é dado um salto que
extrapola a competência da lógica.
Passemos
argumentação
jurídica.
estabelecimento
da
agora
a
Conforme
premissa
menor
outras
características
da
visto
anteriormente,
o
do
silogismo
judicial,
a
premissa fática, pode ser o resultado de um raciocínio de tipo
não
dedutivo.
O
mesmo
pode
ocorrer
em
relação
ao
estabelecimento da premissa maior, a premissa normativa. Um
bom exemplo disto é a utilização do raciocínio por analogia,
cuja utilização pode ser retratada a partir do caso concreto
que será narrado na seqüência.
Em
Supremo
281
Tribunal
um
Acórdão
Federal
-
de
STF,
21
de
junho
entendeu
que
de
o
2000281,
o
princípio
No Recurso Extraordinário - RE 251.445-GO, julgado em 21.jun.2000,
relatado pelo Ministro Celso de Mello, publicado no Diário de Justiça da
União de 3.ago.2000, o Supremo Tribunal Federal - STF proferiu acórdão com
a seguinte ementa: “PROVA ILÍCITA. MATERIAL FOTOGRÁFICO QUE COMPROVARIA A
PRÁTICA DELITUOSA (LEI Nº 8.069/90, ART. 241). FOTOS QUE FORAM FURTADAS DO
CONSULTÓRIO PROFISSIONAL DO RÉU E QUE, ENTREGUES À POLÍCIA PELO AUTOR DO
FURTO,
FORAM
UTILIZADAS
CONTRA
O
ACUSADO,
PARA
INCRIMINÁ-LO.
INADMISSIBILIDADE (CF, ART. 5º, LVI).”
192
constitucional
de
inviolabilidade
de
domicílio
se
estende
também ao consultório profissional de cirurgião-dentista.
O
consultório
de
um
profissional
liberal
é
inviolável da mesma forma que o é a residência de uma pessoa
física. Em conseqüência, o acusado foi absolvido do crime a
ele
imputado
sob
o
fundamento
de
que
as
provas
obtidas
ilicitamente não poderiam ter sido utilizadas para incriminálo.
No caso em questão, as provas que incriminavam
o dentista haviam sido obtidas a partir do arrombamento de um
cofre situado no interior de seu consultório, violando assim o
preceito
constitucional
que
garante
a
inviolabilidade
do
domicílio, pois, segundo o STF, “para os fins da proteção
constitucional
a
que
se
refere
o
art.
5 o,
XI,
da
Carta
Política, o conceito normativo de ‘casa’ revela-se abrangente
e,
por
estender-se
a
qualquer
compartimento
privado
onde
alguém exerce profissão ou atividade (CP, art. 150, § 4o, III),
compreende
dentistas”.
os
consultórios
Vejamos
a
profissionais
esquema
do
dos
argumento
cirurgiõespor
analogia
contido no Acórdão:
A residência de uma pessoa física é inviolável.
O consultório profissional de um cirurgião-dentista (ou
estabelecimentos de profissionais liberais) é semelhante
à residência de uma pessoa física.
Logo, o consultório
dentista é inviolável.
profissional
de
um
cirurgião-
193
Em linguagem simbólica:
∆x Px → OQx
∆x Rx → P’x
¯¯¯¯¯¯¯¯¯¯¯¯¯
∆x Rx → OQx
A
conclusão
não
se
segue
dedutivamente
das
premissas (P’= semelhante a P), mas o argumento pode se fazer
dedutivo se se introduz uma nova premissa que estabeleça que
tanto a residência de uma pessoa física quanto os locais a ela
semelhantes são invioláveis (∆x Px ∨ P’x → OQx), isto é, dá-se
um passo no sentido de generalizar ou de estender uma norma
legalmente estabelecida a casos não expressamente previstos.282
Outro dos argumentos que se utiliza com certa
freqüência para estabelecer a premissa normativa — nos casos
em que não se pode partir simplesmente das normas legalmente
fixadas — é a redução ao absurdo.
Este
dedutiva,
mas
a
argumento
redução
ao
tem,
em
absurdo,
princípio,
tal
qual
é
uma
forma
comumente
utilizada pelos juristas, vai além de uma simples dedução, por
duas razões: em primeiro lugar porque, com freqüência, deve-se
entender que determinadas premissas estão implícitas (e sem
282
Outro exemplo de raciocínio por analogia, com a correspondente análise
lógico-simbólica, pode ser encontrado em RODRIGUEZ, Atienza. Obra citada,
p. 43-44.
194
elas não teríamos a forma dedutiva do argumento)283; e, em
segundo
lugar,
porque
a
noção
de
absurdo
utilizada
pelos
juristas não coincide exatamente com a de contradição lógica,
mas sim com a idéia de conseqüência inaceitável.
Pois bem, nas páginas antecedentes foram vistos
alguns exemplos de raciocínios jurídicos que trazem consigo
esquemas de justificação (argumentos dedutivos e indutivos,
silogismo judicial, raciocínio por analogia, etc.), além de
ter
sido
analisado
como
se
dá
uma
inferência
lógica
num
silogismo prático, ou seja, como se justifica dedutivamente a
passagem que vai de uma premissa normativa e uma premissa
fática a uma conclusão normativa (com a correção do conceito
formal de argumento dedutivo).
Todos esses esquemas mostram como o nível de
racionalidade lógico-formal, que é o mais básico no âmbito da
argumentação
contexto
de
racionalidade
pois
uma
(conforme
aplicação
devem
sentença
dito
do
direito.
convergir
não
anteriormente),
todas
estará
A
esse
as
é
nível
decisões
justificada
—
operado
no
básico
de
judiciais,
posto
que
irracional — se não tiver uma forma dedutiva.
283
Para provar p; assume-se ~p (ou seja, que p é falso, sendo essa a
premissa que estaria implícita); daí se deriva uma implicação q; demonstrase então que q é falso (contraditório, estúpido, absurdo); e se conclui: p.
Segundo WESTON: “Os argumentos mediante reductio (...) estabelecem, pois,
suas conclusões mostrando que a negação da conclusão conduz ao absurdo. Não
se pode fazer outra coisa senão aceitar a conclusão, sugere o argumento”
(WESTON, A. Obra citada, p. 90).
195
Nos casos rotineiros, considerados fáceis284, o
trabalho
argumentativo
do
juiz
se
reduz
a
efetuar
uma
inferência de tipo dedutivo.285 Porém há também casos difíceis,
cuja solução não depende só da justificação de tipo dedutivo,
que nestes casos se revela insuficiente.
Ora, quem tiver a pretensão de se valer apenas
da lógica dedutiva para raciocinar juridicamente, ou que veja
nela
o
único
mecanismo
de
controle
racional,
ficará
vulnerável, pelo menos, aos seguintes problemas:286 a lógica
dedutiva a) não diz nada sobre como devem ser estabelecidas as
premissas, isto é, parte-se delas como algo já dado; b) também
não diz nada sobre o modo através do qual se deve passar das
premissas à conclusão, sendo que se limita unicamente a dar
critérios que digam se uma determinada passagem está ou não
autorizada287; c) é duvidoso — ou ao menos, muitas vezes se
duvidou288 — que haja uma inferência normativa, isto é, uma
284
Recordemos o debate entre HART e DWORKIN, em que há a distinção entre
casos fáceis e difíceis, sendo que sobre estes últimos é que as
preocupações deveriam se voltar: há aí discricionariedade do juiz ou é
sempre possível chegar a uma solução correta?
285
Não que nestes casos a tarefa seja simples, pois na realidade podem
ocorrer mais complicações que o esquema sugere. Segundo ALEXY: “...
Enquanto no silogismo a passagem das premissas à conclusão é necessária, o
mesmo não ocorre quando se trata de passar de um argumento a uma decisão.
Esta passagem não pode ser de modo algum necessária, pois, se o fosse, não
nos encontraríamos de modo algum frente a uma decisão, que supõe sempre a
possibilidade de decidir de outra maneira ou de não tomar nenhuma decisão”
(ALEXY, Robert. Teoría del discurso y derechos humanos, p. 26).
286
Na verdade os limites não estão na lógica, mas no uso que se quer fazer
dela (ou nos objetivos ou alcance que se espera que ela atinja).
287
Portanto, sem valor heurístico, senão de prova, de modo que não opera no
contexto do descobrimento, limitando-se ao de justificação.
288
Segundo KELSEN: “Na literatura jurídica, de vez em quando defende-se a
196
inferência em que ao menos uma das premissas e a conclusão
sejam normas, como ocorre com o silogismo judicial (ou, em
geral,
com
critérios
o
silogismo
formais
de
prático-normativo);
correção:
um
juiz
d)
que
só
fornece
utilize
como
premissas, por um lado, uma norma manifestamente inválida e,
por outro, um relato de fatos que contradiz frontalmente a
realidade,
permite
não
estaria
considerar
atentando
como
válidos
contra
os
a
lógica;
argumentos
e)
fundados
não
em
hipóteses em que a passagem das premissas à conclusão não
tenha caráter necessário, ainda que seja altamente plausível;
f) não dá conta de uma das formas mais típicas de argumentar
em
direito
(e
fora
dele
também):
a
analogia289;
e
g)
não
determina, na melhor das hipóteses, a decisão enquanto tal290,
mas tão somente o enunciado normativo que é a conclusão do
opinião de que a Lógica usada na Ciência do Direito — especialmente para as
normas jurídicas — não é a Lógica Formal Geral, mas uma desta diferente,
especificamente uma Lógica ‘Jurídica’. A opinião é contestada. O logicista
polonês, Kalinowski, recusa-a decididamente. O filósofo belga, Ch. Perelman
intervém, resoluto, em favor dela. Para a existência de uma lógica
especificamente jurídica argumenta-se, sobretudo, com a chamada conclusão
analógica, usada por juristas, e o por eles repetidamente empregado
argumentum a maiore ad minus.
(...)
...não se pode falar, especificamente, de uma Lógica ‘Jurídica’. É a
Lógica Geral que tem aplicação tanto às proposições descritivas da Ciência
do Direito — até onde a Lógica Geral é aqui aplicável — quanto às
prescribentes normas do Direito. (...) ‘Lógica Jurídica, como eu a entendo,
é Lógica Formal empregada no raciocínio jurídico. — Não constitui um ramo
especial, mas é uma das aplicações especiais da Lógica Formal” (KELSEN,
Hans. Teoria geral das normas, p. 344 e 349).
289
Cf. o uso da lógica formal nos raciocínios por analogia em ALCHOURRON,
Carlos E., BULYGIN, Eugenio. Análisis lógico y derecho. Madrid: Centro de
Estudios Constitucionales, 1991.
290
Por exemplo, condeno x a uma pena y.
197
silogismo judicial:291 a hipótese de um enunciado em que se
infere que “devo condenar x a uma pena y, mas não o condeno”,
não traduz nenhuma contradição lógica, mas somente pragmática
(performática).
Essas
passaram
despercebidas
limitações
por
do
Karl
método
ENGISH,
dedutivo
que
no
não
entanto
reconhece, citando Ülrich KLUG, a sua importância necessária e
insubstituível:
“
... Relativamente a este silogismo vale aquilo que
KLUG diz com inteira razão da tarefa da lógica formal
relativamente ao conhecimento jurídico: que ela tem ‘uma
importância necessária e, portanto, insubstituível, no
entanto
não
tem
ao
mesmo
tempo
uma
importância
bastante’. Em particular deve insistente e expressamente
acentuar-se que a ‘trivial’ dedução a partir da premissa
maior e da premissa menor não diz absolutamente nada
sobre a dificuldade e a sutileza da elaboração daquelas
mesmas premissas.”292
Conhecidas,
portanto,
as
insuficiências
da
justificação de tipo dedutivo, conclui-se que “...nos casos
difíceis
o
estabelecimento
da
premissa
normativa
e/ou
da
premissa fática implica uma questão problemática, fazendo-se
necessários argumentos adicionais em favor das premissas que
se pretenda utilizar, argumentos estes que provavelmente não
serão
puramente
dedutivos”.293
A
fim
de
diferenciar
as
justificações de primeiro tipo (inferências dedutivas) destas
291
292
293
Por exemplo, devo condenar x a uma pena y.
ENGISH, Karl. Introdução ao pensamento jurídico, p. 383.
SERBENA, C. A., CELLA, J. R. G. Obra citada, p. 124.
198
últimas (que necessitam de razões adicionais que vão além da
lógica em sentido estrito), Jerzy WRÓBLEWSKI as separou em
justificação interna e justificação externa, respectivamente.
Segundo WRÓBLEWSKI:
“
A
justificação
em
forma
silogística
é
uma
justificação interna porque nela a fortaleza das
premissas não é submetida à prova. O papel da
justificação externa é, naturalmente, enorme, mas este
não pode se realizar com instrumentos lógico-formais. O
papel da lógica informal ou da argumentação não está
limitado
ao
uso
da
justificação
silogística.
Ao
contrário,
esta
justificação
poderá
servir
como
argumento a favor do papel decisivo das valorações e das
eleições na determinação das premissas da decisão
judicial.”294
A
relacionada
a
justificação
questões
corretamente
inferida
premissas
dadas
fixadas
já
as
suas
ou
como
das
interna,
a
premissas
aceitas.
premissas,
de
pode
se
portanto,
uma
(parte,
Nenhuma
decisão
portanto,
decisão,
prescindir
está
depois
desse
tipo
foi
de
de
de
justificação), e a justificação externa diz respeito à correta
adoção das premissas (a justificação de seu estabelecimento ou
de sua escolha).
294
WRÓBLEWSKI, Jerzy. Il sillogismo giuridico e la razionalità della
decisione giudiziale, citado por COMANDUCCI, Paolo Comanducci. Razonamiento
jurídico: elementos para um modelo, nota 21, p. 84.
199
3.2 Chaïm Perelman e a Nova Retórica
Volta-se agora àqueles questionamentos postos
no início deste capítulo: em que sentido se pode falar em
racionalidade jurídica e qual o seu alcance?
Para a análise de tais questões usaremos como
pano de fundo o pensamento de Chaïm PERELMAN, a partir do qual
esperamos revelar a importância que representa a teoria da
argumentação jurídica para o auxílio na resolução de problemas
que continuam a deixar perplexos todos aqueles que ainda vêem
no direito um bom instrumento para o aprimoramento de nossas
relações sociais.
Considerando aquelas duas perguntas iniciais,
pode-se ainda delas derivar os seguintes questionamentos: o
que
significa
argumentar
juridicamente?
Até
que
ponto
a
argumentação jurídica se diferencia da argumentação ética, da
argumentação política ou, inclusive, das argumentações que têm
lugar
na
vida
justificam
critério
cotidiana
e
racionalmente
de
correção
até
as
dos
mesmo
na
ciência?
Como
decisões
jurídicas?
Qual
argumentos
jurídicos?
O
é
se
o
direito
fornece uma única resposta correta para cada caso? Quais são,
definitivamente, as razões do direito: não a razão de ser do
direito,
mas
sim
as
razões
jurídicas
justificação para uma determinada decisão?
que
servem
de
200
Levando-se
em
conta
que
as
teorias
da
argumentação jurídica têm fixado suas preocupações na forma
pela qual os casos difíceis podem ser justificados, o que não
significa dizer que seu objeto deva ficar restrito a estes
casos.
As
reflexões
serão
iniciadas
a
partir
da
indagação de se é mesmo possível a justificação externa de
decisões
jurídicas,
ou
seja,
se
a
tarefa
de
escolha
das
premissas — ou mesmo o seu estabelecimento (criação) — que
orientarão aquelas decisões pode ou não ser submetida a algum
critério de racionalidade, o que permitiria enfim o controle
dos processos decisórios e, por conseqüência, a exclusão das
arbitrariedades
ainda
existentes.
Façamos,
então,
uma
modernidade
foi,
delimitação do problema.
A
durante
muito
argumentativa,
tradição
tempo,
que
no
o
racionalista
modelo
domínio
da
dominante
lógico
tem
da
a
atividade
pretensão
de
estabelecer a verdade a partir de seus operadores, que têm
natureza dedutiva e cujo critério de avaliação é fornecido
pela validade formal.
Essa tradição se fez sentir também no âmbito
jurídico, até porque, como visto, a racionalidade lógica é o
nível mais básico do pensar jurídico: nenhuma decisão jurídica
pode relevar da justificação interna.
201
No
entanto,
as
limitações
inerentes
à
racionalidade formal — que já se fizeram sentir desde a origem
do
positivismo
difíceis
em
jurídico
que
a
moderno295
justificação
—
mostram
interna,
por
que
si
há
só,
casos
não
é
suficiente, fazendo-se necessária a justificação externa que
escapa do rigor lógico-formal.
O positivismo jurídico atual, que não conseguiu
ainda se desvencilhar por completo do peso da tradição, diante
dos casos difíceis assume a impossibilidade lógica e remete a
tarefa da decisão para a discricionariedade do intérprete. Por
isso o positivismo tem sido acusado de irracionalista, sendo
precisamente
neste
ponto
que
se
desenrola
um
dos
maiores
debates jusfilosóficos da atualidade.
Parece, no entanto, que o problema todo reside
na
circunstância
de
se
ter
sobrevalorizado
o
raciocínio
formal, de se ter pedido mais do que ele pode oferecer.
Com
efeito,
as
várias
limitações
da
lógica
dedutiva que foram apontadas acima não constituem, por si só,
nenhum defeito. O problema não é da lógica, mas do ideal — que
295
O que provocou, como visto, o surgimento de uma série de posturas
críticas em relação ao positivismo.
202
perpassa o pensamento ocidental — que faz dela o centro de
toda a racionalidade.296
Nessas condições, qualquer teoria que estivesse
comprometida com o resgate da razão — ou, se se preferir, com
a defesa da possibilidade do uso da razão — para além dos
limites estreitos da lógica, o primeiro passo deveria ser, de
um certo modo, o rompimento com a tradição.
Não
tentativas
de
acompanhadas
é
de
recuperação
de
uma
surpreender,
do
crítica
domínio
do
portanto,
que
argumentativo
pensamento
que
as
viessem
levou
ao
pedestal o raciocínio lógico-formal. Foi isso que ocorreu, na
década
de
1950,
quando
despontou
o
pensamento
original
de
Chaïm PERELMAN, que ao mesmo tempo em que era recuperada a
tradição tópica e retórica da antigüidade, declarava o seu
rompimento
com
a
tradição
racionalista
moderna
que,
desde
DESCARTES, conduziu precisamente à entronização da lógica e à
uniformização
da
argumentação.
Destarte,
no
início
do
Tratado297, PERELMAN afirma que:
296
GALILEU afirmava, por exemplo, que “...não existe caminho do meio [meio
termo] entre a verdade e o falso, assim nas demonstrações necessárias ou
aceitamos conclusões indubitáveis ou silogiza-se sem desculpa, sem ter a
possibilidade, mesmo limitadamente, com distinções distorcendo as palavras
ou com outros recursos, sustentar-se em pé, mas é necessário, com palavras
breves, e na primeira vez, permanecer César ou nada” (GALILEU. O ensaiador,
p. 73). Ver nota de rodapé número 286, supra.
297
La nouvelle rhetorique. Traite de L’argumentation, escrito em
colaboração com Lucie OLBRECHTS-TYTECA, cuja primeira edição foi publicada
em 1958.
203
“
... A própria natureza da deliberação e da
argumentação se opõe à necessidade e à evidência, pois
não se delibera quando a solução é necessária e não se
argumenta contra a evidência. O campo da argumentação é
o do verossímil, do plausível, do provável, na medida em
que este último escapa às certezas do cálculo.”298
Ao
delimitar
o
campo
da
argumentação
ao
verossímil, ao plausível e ao provável, é para um fenômeno
particular
que
se
está
a
apontar,
sendo
que
daí
PERELMAN
identificará o essencial da teoria da argumentação: a adesão.
Assim,
“...o
objeto
dessa
teoria
é
o
estudo
das
técnicas
discursivas que permitem provocar ou aumentar a adesão dos
espíritos às teses que se lhes apresentam ao assentimento”.299
É por isso que esta teoria se caracteriza como
uma nova retórica.300 Ao incidir sobre o fenômeno da adesão a
sua atenção recai não sobre o valor formal dos argumentos mas
sobre as suas características operatórias e sobre o espaço da
sua
recepção,
isto
é,
sobre
os
esquemas
argumentativos
utilizados e o auditório visado numa dada argumentação, uma
298
PERELMAN, C., OLBRECHTS-TYTECA, L. Tratado da argumentação: a nova
retórica, p. 1. Entra-se no domínio daquilo que, já para ARISTÓTELES, era
tido como o âmbito da racionalidade prática, onde “...deliberar e calcular
são a mesma coisa, mas ninguém delibera sobre coisas invariáveis [que não
podem ser diferentemente]” (ARISTÓTELES, Ética a nicômacos, p. 114). Ver
também BERTI, Enrico. Obra citada, p. 143-145.
299
PERELMAN, C., OLBRECHTS-TYTECA, L. Tratado da argumentação: a nova
retórica, p. 4.
300
“... Com efeito, a área cujo estudo teórico queríamos fazer reviver é a
das provas que Aristóteles chamava dialéticas e que, por causa do sentido
específico
que
é
associado
à
palavra
‘dialética’
no
pensamento
contemporâneo, preferimos qualificar de retóricas” (PERELMAN, C. Retóricas,
p. 268).
204
vez
que
“...é
em
função
de
um
auditório
é
conferida
que
qualquer
argumentação se desenvolve”.301
Em
PERELMAN
uma
primazia
às
questões da razão prática e ao raciocínio prático302 — que
implica valores — o que o conduz à elaboração de uma teoria da
argumentação que, conforme visto, somente será possível pela
crítica e abandono da noção de evidência como marca distintiva
da razão, culminando numa proposta de alargamento da própria
noção da razão, conforme aduz GRÁCIO:
“
...
Nasce
então
a
teoria
da
argumentação,
empreendida para fazer estourar a tradicional conexão do
racional e do necessário, do não-necessário e do
irracional, e encaminhar-se para uma concepção alargada
da
razão,
integrando
a
argumentação
ao
lado
da
demonstração. A razão não serve apenas para descobrir a
verdade e o erro, mas também para justificar e
argumentar,
para
organizar
o
jogo
movente
das
preferências:
não
apenas
para
decretar
e
para
constranger, mas, também, para operar e para generalizar
inversões de hierarquias, para ordenar estruturas que,
longe de pretenderem ser eternas e absolutas, são
solidárias de todo o sistema das significações práticas
existentes.”303
301
PERELMAN, C., OLBRECHTS-TYTECA, L. Obra citada, p. 6.
PERELMAN define o raciocínio prático como sendo aquele “...que justifica
uma decisão. Falaremos de raciocínio prático toda vez que a decisão depende
de quem a toma, sem que ela decorra de premissas consoantes a regras de
inferência incontestes, independentemente da intervenção de qualquer
vontade humana.
(...)
“... O raciocínio prático, em contrapartida, por recorrer a técnicas
da argumentação (...) implica um poder de decisão (...), a liberdade de
quem julga. Sua meta é mostrar, conforme o caso, que a decisão não é
arbitrária, ilegal, imoral ou inoportuna, mas é motivada pelas razões
indicadas” (PERELMAN, C. Ética e direito, p. 278 e 280).
302
303
GRÁCIO, Rui Alexandre. Racionalidade argumentativa, p. 33-34.
205
A teoria da argumentação de PERELMAN, segundo
MENDONÇA, “...coloca em xeque todo um paradigma de estudo das
ciências humanas e sociais, fundado em uma lógica matemática
de fundo demonstrativo”304, constituindo, segundo José Américo
Motta PESSANHA, “...uma das mais importantes contribuições, em
nosso
século,
à
revisão
do
conceito
de
Razão,
incidindo
particularmente sobre a questão da cientificidade no campo das
ciências humanas ou sociais”.305
Com efeito, conceber a racionalidade a partir
das exigências da ação faz com que a razão seja vista não mais
sob
uma
ótica
de
contemplação
da
verdade,
mas
da
justificação306 das nossas convicções e opiniões:
“
Apenas a existência de uma argumentação, que não
seja nem coerciva nem arbitrária, confere um sentido à
liberdade humana, condição de exercício de uma escolha
racional. Se a liberdade fosse apenas adesão necessária
a uma ordem natural previamente dada, excluiria qualquer
304
MENDONÇA, Paulo Roberto Soares. A argumentação nas decisões judiciais,
p. 86.
305
PESSANHA, José Américo Motta. A teoria da argumentação ou nova retórica,
p. 221.
306
Segundo Tércio Sampaio FERRAZ JR., “... É nessa situação que o discurso
se dá como discussão fundamentante, onde aparece a finalidade do
entendimento e, eventualmente, da persuasão e convencimento, o que
significa que nem todo discurso implica uma justificação argumentada
efetivamente realizada, significando, porém, que uma tal justificação pode
sempre ser exigida, desde que aquele que fala pretenda aparecer com
autoridade, e aquele que ouve a ponha em dúvida. Nesses termos, todo
discurso, toda ação lingüística envolve uma regra fundamental, que
denominamos dever de prova. Esse dever, que se manifesta na reflexividade
da discussão, é sua regra básica, constituindo o centro ético e lógico da
discussão, a partir do qual é possível conceber a discussão, tendo em vista
os seus diferentes componentes, como uma unidade estruturada. Não há
discussão sem onus probandi; se há um dever de dizer, há também um dever de
provar o que se diz. Centro ético da discussão, esse dever estabelece,
também, uma relação entre os componentes da discussão, permitindo-lhe,
assim, uma estrutura” (FERRAZ JR., Tércio Sampaio. Direito, retórica e
comunicação, p. 7-8).
206
possibilidade de escolha; se o exercício da liberdade
não fosse fundamentado em razões, toda escolha seria
irracional e se reduziria a uma decisão arbitrária
atuando num vazio intelectual. Graças à possibilidade de
uma argumentação que forneça razões, mas razões nãocoercivas, é que é possível escapar ao dilema: adesão a
uma verdade objetiva e universalmente válida, ou recurso
à sugestão e à violência para fazer que se admitam suas
opiniões e decisões.”307
A possibilidade de se tomar decisões nos traz a
noção de liberdade que, segundo PERELMAN, só pode se dar num
ambiente
pluralista,
posto
que
apenas
o
pluralismo
confere
“...o sentido da responsabilidade e da liberdade nas relações
humanas.
Quando
não
há
nem
possibilidade
de
escolha
nem
alternativa, não exercemos a nossa liberdade. A deliberação é
que distingue o homem do autômato”.308 A liberdade implica a
possibilidade
capacidades
de
estas
inventar
que
não
e
a
têm
possibilidade
lugar
nem
de
numa
aderir,
filosofia
puramente analítica e nem numa filosofia apenas preocupada com
a
verdade,
apenas
como
já
que,
no
primeiro
descoberta”309
e,
caso,
no
“...a
segundo,
invenção
“...a
vale
adesão
desaparece ante a verdade”.310
Nesse sentido, com o rompimento das barreiras
impostas pelo dogmatismo, a razão não obriga à unidade e ao
307
PERELMAN, C., OLBRECHTS-TYTECA, L.
retórica, p. 581.
308
PERELMAN, Chaïm. Retóricas, p. 90.
309
PERELMAN. C. Idem, p. 250.
310
PERELMAN. C. Idem, ibidem.
Tratado
da
argumentação:
a
nova
207
consenso;
nem
a
falta
de
acordo
deve
ser
encarada
como
sinônimo de irracionalidade.311
Feitas estas considerações iniciais, cabe agora
mencionar os pontos de partida da nova retórica de PERELMAN,
que, segundo GRÁCIO, são os seguintes:
“
... 1) os homens têm que organizar-se entre si; 2)
esta
organização,
para
evitar
soluções
de
pura
violência, implica a capacidade para se estabelecerem
acordos e partilharem convicções; 3) é na adesão
coletiva, explícita ou implícita, a valores que se funda
a vida social; 4) a razão intervém quando a ordem
estabelecida necessita de renovação ou se verificam
transformações que há que justificar. Destes pontos
decorre, naturalmente, uma conclusão: aquilo a que se
possa chamar razão e aquilo que se possa considerar
racional deve ser procurado a partir de uma análise do
modo como, na prática, se procuram estabelecer soluções
de continuidade relativamente a mudanças — numa palavra,
justificar — que, segundo as exigências da própria ação,
se têm que operar nos quadros de referência a partir dos
quais os homens, aderindo a valores, convicções e
normas, se organizam em sociedade.”312
311
“... O que é essencial é que, sejam quais forem os motivos do início da
reflexão filosófica, ela não se concebe, a meu ver, sem uma ruptura da
comunhão do homem com o seu meio, sem os primeiros questionamentos daquilo
que, até então, era óbvio, tanto na visão do mundo como naquela do lugar
que nele ocupamos; primeiros questionamentos tanto de nossas crenças como
de nossas modalidades de ação. Ora, do questionamento ao desacordo, e do
desacordo ao uso da força para restabelecer a unanimidade, a passagem é tão
normal que quase não necessita de comentários. O que é excepcional, em
contrapartida, e constituiu uma data na história da humanidade, é que se
tenha permitido que, em matérias fundamentais, reservadas à tradição
religiosa e aos seus porta-vozes, o uso da força possa ser substituído pelo
da persuasão, que se possam formular questões e receber explicações,
avançar opiniões e submetê-las à crítica alheia. O recurso ao logos, cuja
força convincente dispensaria o recurso à força física e permitiria trocar
a submissão pelo acordo, constitui o ideal secular da filosofia desde
Sócrates. Esse ideal de racionalidade foi associado, desde então, à busca
individual da sabedoria e à comunhão das mentes fundamentada no saber.
Como, graças à razão, dominar as paixões e evitar a violência? Quais são as
verdades e os valores sobre os quais seria possível esperar o acordo de
todos os seres dotados de razão? Eis o ideal confesso de todos os
pensadores da grande tradição filosófica do Ocidente”(PERELMAN, C. Ética e
direito, p. 96).
312
GRÁCIO, Rui Alexandre. Racionalidade argumentativa, p. 24.
208
A nova retórica, ao contrário da razão prática
(moral) de KANT, não parte portanto de idéias que caracterizam
e configuram a priori a razão, em que, por um lado, o homem é
um fim em si mesmo, e de que, por outro, todos os fins e
projetos individuais podem concordar, que a moralidade pode
coincidir
com
o
fim
natural,
podendo
as
suas
regras
ser
universalizadas sem contradizerem.313
Vale
dizer
que
o
modelo
da
filosofia
cartesiana, segundo PERELMAN, é que foi o grande responsável
pela depreciação de uma tradição secular aberta ao diálogo: a
tradição
da
retórica.
Com
efeito,
o
modelo
cartesiano
que
busca conceber:
“
...todo progresso do conhecimento unicamente como
uma extensão do campo aberto por esses elementos claros
e distintos, chegar mesmo a imaginar que, no limite, num
pensamento perfeito, que imita o pensamento divino,
poderíamos eliminar do conhecimento tudo o que não se
conformasse com esse ideal de clareza e de distinção,
seria querer reduzir progressivamente o recurso à
argumentação até o momento em que seu uso se tornaria
completamente supérfluo. Provisoriamente, sua utilização
estigmatizaria os ramos do saber que dela se servem,
como áreas imperfeitamente constituídas, ainda em busca
de seu método e não merecedoras do nome de ciência. Não
é de espantar que esse estado de espírito tenha desviado
os lógicos e os filósofos do estudo da argumentação,
considerada indigna de suas preocupações, deixando-o por
conta dos especialistas da publicidade e da propaganda,
que caracterizavam sua falta de escrúpulos e sua
oposição
constante
a
qualquer
busca
sincera
da
verdade.”314
313
Neste aspecto a moral Kantiana seria utópica à medida em que,
apresentando uma hierarquização de deveres, nega a possibilidade de um
conflito de deveres, ou seja, o imperativo categórico descrito no capítulo
anterior não poderia ser estabelecido a priori.
314
PERELMAN, C.,
retórica, p. 577.
OLBRECHTS-TYTECA,
L.
Tratado
da
argumantação:
a
nova
209
Essa
sobretudo
pelo
depreciação
racionalismo315,
da
será
retórica
combatida
promovida,
por
PERELMAN
através da elaboração de uma teoria da argumentação que faça
“...reviver uma tradição gloriosa e secular”.316
Esse
centrado
precisamente
ARISTÓTELES317
315
resgate
chamava
da
tradição
na
forma
de
de
dialética,
retórica
estará
racionalidade
cuja
que
“...primeira
Note-se que, para que PERELMAN, é a perda das ilusões do racionalismo
clássico e a necessidade de romper definitivamente com o positivismo que
torna oportuna a reabilitação da tradição retórica. Reabilitar a retórica
significa libertá-la de todo um conjunto de conotações pejorativas que se
associaram ao próprio termo retórica e que conduziram à sua desvalorização
e depreciação. As idéias segundo as quais a retórica é um conjunto de
procedimentos para enganar ignorantes, que o seu domínio de estudo é o das
figuras de estilo ou dos ornamentos do discurso, que nela o que interessa é
a forma e não o conteúdo, de que nela o que conta é fazer prevalecer os
interesses pessoais e não dar realmente resposta aos verdadeiros problemas,
procedem, no fundo, do triunfo do dogmatismo que elege, para a resolução
dos problemas, instâncias últimas de soberania — sejam elas a razão, a
experiência ou a revelação — que asseguram, contra o vago e o confuso,
contra o ambíguo e o incerto, numa palavra, contra o problemático e o
controverso, um espaço de aproblematicidade em que o plano das hipóteses e
da plausibilidade é descartado em detrimento de um plano an-hipotético em
que a solução se impõe como única solução; é que o dogmatismo é solidário
do monismo axiológico, que transforma os problemas de valor em problemas de
verdade. Reabilitar a retórica é, por isso, mostrar a fecundidade do que,
de um ponto de vista dogmático, sempre se considerou como defeito: mostrar
a importância das noções confusas e dos juízos de valor; mostrar como a
controvérsia e o debate não são desprovidos de razão; mostrar como, aí, a
razão se exerce; mostrar que a redução dos meios de provas às provas
formais ou experimentais deixa de fora todo um campo que diretamente diz
respeitos às coisas humanas e ao real humano (Cf. PERELMAN. C. Retóricas,
p. 180-184).
316
PERELMAN, C., OLBRECHTS-TYTECA, L. Tratado da argumentação: a nova
retórica, p. 5.
317
BERTI assim justifica o por quê da escolha de ARISTÓTELES e não de
outros pensadores clássicos que também trataram da retórica: “O que mais
interessa na polêmica de Aristóteles contra Isócrates e, portanto, contra a
retórica de tipo gorgiano é a nova concepção de retórica como arte da
comunicação, não mais do puro encantamento ou da pura sugestão emotiva: por
esse motivo a retórica de Aristóteles atraiu o interesse dos filósofos
contemporâneos, seja como possível lógica do discurso político ou
judiciário, seja como ocasião de recuperação da dimensão comunicativa da
linguagem, para além daquela dimensão puramente instrumental própria da
ciência e da técnica modernas” (BERTI, Enrico. As razões de aristóteles, p.
170).
210
caracterização,
extremamente
densa
de
significado,
que
Aristóteles nos oferece da dialética é exatamente o exórdio
dos
Tópicos:
‘nosso
tratado
se
propõe
encontrar
um
método
(méthodos) de investigação graças ao qual possamos raciocinar,
partindo
qualquer
de
opiniões
problema
que
geralmente
nos
seja
aceitas
proposto,
(éndoxa),
sobre
sejamos
também
e
capazes, quando replicamos a algum argumento, de evitar dizer
alguma coisa que nos causa embaraços (I 1, 100 a 18-21)’.”318
Neste sentido, “...dialética significa discurso
ou
intercâmbio
opiniões
entre
diversas,
dois
tendo,
ou
mais
assim,
a
oradores
que
conotação
de
expressam
um
pensar
baseado na oposição interpessoal”319, sendo, portanto, “...a
arte das contradições”320, noção esta que se confirma a partir
do que BERTI fala a esse respeito:
318
BERTI, Enrico. Obra citada, p. 19. Segundo REBOUL: “A dialética é, pois,
um jogo cujo objetivo consiste em provar ou refutar uma tese respeitando-se
as regras do raciocínio. O papel do inquiridor ‘é concluir a discussão de
modo que o defensor sustente os mais extravagantes paradoxos, como
conseqüências necessárias de sua tese’ (...). Ao outro, em contrapartida,
cabe defender sua tese por todos os meios. O essencial é que cada um mostre
que raciocinou bem e utilizou todos os argumentos a seu alcance. E esse
‘mostrar’ já não é simples aparência; é o sofista que raciocina na
aparência, exatamente como o trapaceiro, que faz de conta que está jogando.
Quanto à dialética, é uma argumentação que vai da aparência à aparência,
mas raciocinando de modo real, quer dizer, correto. E o que reforça ainda
mais a idéia de jogo é a afirmação de Aristóteles: quando um dos dois
adversários raciocina mal, a discussão vira chicana, e o faltoso ‘impede o
bom cumprimento da obra comum’ (...); como em todo jogo, cada parceiro
persegue seu próprio objetivo, porém ambos perseguem um objetivo comum, que
é chegar ao fim da partida. Cada um quer ganhar, mas ambos querem levar a
bom termo ‘a obra comum’” (REBOUL, Olivier. Introdução à retórica, p. 32).
319
PRADO, Lidia Reis de Almeida. A lógica do razoável na teoria da
interpretação do direito. p. 36.
320
ASSIS, Olney Queiroz. Interpretação do direito sob o enfoque tópicoretórico: uma contraposição ao método sistemático, p. 20.
211
“
A discussão dialética supõe, portanto, que os dois
interlocutores discutam na presença de um público (de
ouvintes, mas hoje dir-se-ia leitores), o qual, em certo
sentido, faz as vezes de árbitro, e decide qual dos dois
teve sucesso, isto é, conseguiu refutar o outro ou não
fazer-se refutar pelo outro. As premissas ‘conhecidas’,
que de agora em diante denominaremos, por brevidade,
pelo nome grego éndoxa, são partilhadas por todos os
ouvintes, por isso servem como ponto de referência comum
para a discussão. Do mesmo modo é partilhada pelos
ouvintes a regra segundo a qual a contradição é signo da
falsidade de uma tese, e, portanto, aquele que nela
incorre deve ser considerado perdedor. Aquele que
pergunta, por conseguinte, caso queira obter de seu
interlocutor certa resposta, que lhe permita refutá-lo,
deverá formular sua pergunta de modo que o outro seja
quase obrigado a dar-lhe certa resposta, e isso
acontecerá se a resposta for conforme a alguma coisa
‘conhecida’, isto é, éndoxon. A habilidade de cada um
consistirá em chegar ao resultado por ele desejado, e
temido pelo outro, mesmo atendo-se aos éndoxa, isto é,
não se pondo em contradição com o público, que é o
árbitro. Para o público, com efeito, o que é éndoxon
deve ser aceito, enquanto o que é contraditório deve ser
refutado.”321
Quanto à noção de dialética322, cumpre alertar
para um aspecto importante que, segundo BERTI, tem sido a
origem
de
muitos
aristotélico.
É
equívocos
que
o
na
termo
interpretação
éndoxa
do
pensamento
(opiniões
geralmente
aceitas) tem sido traduzido por premissas prováveis ou, ainda,
por premissas verossímeis. No entanto, para BERTI, a diferença
entre premissas verdadeiras (que operam nos raciocínios por
demonstração) e premissas éndoxa não é de grau:
“
...como fazem pensar aqueles que traduzem éndoxa
por ‘premissas prováveis’, dando a impressão de que se
321
BERTI, E. Obra citada, p. 23.
Como visto, PERELMAN preferiu denominá-la de retórica em face da
polissemia que o termo dialética foi acumulando através dos tempos. Com
efeito, segundo BERTI: “O que Perelman denomina ‘retórica’, portanto, não é
senão o que Aristóteles denominava dialética” (BERTI, Enrico. Aristóteles
no século xx, p. 287).
322
212
trata de uma aproximação à verdade de tipo estatístico
(isto é, de premissas com um grau de verdade superior a
50%), nem se trata da diferença entre realidade e
aparência, como fazem pensar aqueles que traduzem éndoxa
por ‘premissas verossímeis’, dando a impressão de que
não são verdadeiras.”323
Com efeito, segundo BERTI, quem “...conhece a
dialética de Aristóteles sabe que isso não é verdade, e que as
premissas
das
argumentações
dialéticas,
isto
é,
os
éndoxa,
distinguem-se das premissas da argumentação científica, isto
é, das definições e dos axiomas, não porque sejam somente
verossímeis, mas exatamente porque devem receber a adesão de
todos os interlocutores, sendo professados por todos ou pelos
sophói, isto é, pelos ‘especialistas’, pelos ‘competentes’.”324
Portanto, o que se pretende esclarecer é que,
para ARISTÓTELES, a dialética (retórica, para PERELMAN) não
renuncia à verdade e nem se contenta com um grau de verdade
inferior ao da ciência, “...porque a dialética simplesmente
não se preocupa com a verdade, mas apenas com a discussão,
isto é, com a refutação e, portanto, com o consenso que a esta
é indispensável”.325
Mas,
ARISTÓTELES
para
a
na
teoria
transposição
da
do
argumentação
pensamento
de
PERELMAN
de
os
éndoxa poderão, em alguns casos, fugir à noção ortodoxa do
323
324
325
BERTI, E. As razões de aristóteles, p. 24-25.
BERTI, E. Aristóteles no século xx, p. 286-287.
BERTI, E. As razões de aristóteles, p. 25.
213
conceito, que é ampliado também para abrigar as noções de
probabilidade e verossimilhança326, pois a busca de critérios
racionais
de
escolha
(valoração)
para
a
justificação
de
decisões jurídicas pode sim admitir aquelas noções.
Mas é possível formular um critério racional
que estabeleça a melhor escolha? Ou, em outras palavras, é
possível estabelecer uma lógica do preferível? Para GRÁCIO, no
pensamento de PERELMAN a problemática dos valores é concebida:
“
...‘em função da argumentação face a outrem’ e que
aos valores, definidos como objetos de crença ou de
adesão relativos, não ao real, mas ao preferível,
corresponderá, definitivamente, o papel de justificar
escolhas. Se nas perspectivas que defendem o monismo
axiológico vigora a idéia de que ‘em todo o conflito de
valores, há um meio de reduzir todas as divergências de
opinião, reconduzindo todos os valores, na sua infinita
diversidade, a um só, concebido em termos de perfeição,
de
utilidade
ou
de
verdade’,
já
na
perspectiva
pluralista e dialógica de Perelman se torna impossível
assimilar a noção de demonstração à de justificação na
medida em que esta, ao invés daquela, implica sempre
polêmica,
confronto,
possibilidade
de
crítica,
perspectivas suscetíveis de revisão, provisoriedade,
multiplicidade de pontos de vista.”327
326
É claro que a busca do consenso que não tem preocupação de verdade é
perfeitamente assimilável ao direito, pois, de acordo com ATIENZA, o mesmo
“...não está só interessado na verdade, mas também em resolver conflitos
sociais” (RODRIGUEZ, Manuel Atienza. Las Razones del derecho: teorías de la
argumentación jurídica, p. 165). Ou, segundo PERELMAN: “... Uma decisão
razoável não é, portanto, simplesmente uma decisão conforme à verdade, mas
aquela que pode ser justificada pelas melhores razões, pelo menos na medida
em que ela necessita de justificação” (PERELMAN, C. Ética e direito, p.
384). Mas inevitavelmente a noção aristotélica de éndoxa deve ser ampliada,
pois há casos, como nos silogismos judiciais, em que procurar critérios
racionais para fixar aquilo que pode ser aceito como provável (no
estabelecimento de uma premissa fática, por exemplo) é fundamental.
327
GRÁCIO, Rui Alexandre. Racionalidade argumentativa, p.39.
214
O
caráter
provisório
das
escolhas
levará
PERELMAN a falar numa lógica do preferível, a qual não tem
características de necessidade e nem é constringente, enfim,
uma lógica associada à retórica.
A partir daí PERELMAN se diz partidário de uma
filosofia
regressiva,
a
qual
se
contrapõe
às
filosofias
primeiras ou metafísicas, que absolutizam a razão. Já para a
filosofia
regressiva,
o
fundamental
é
sempre
relativo
aos
fatos e aos acordos sobre fatos. PERELMAN assim distingue as
duas posturas:
“
Os
partidários
de
uma
filosofia
primeira
fundamentam sua argumentação na existência de certos
princípios aceitos tanto por eles próprios quanto por
seus interlocutores (e, na falta de outra coisa, vão
procurar
esses
princípios
na
própria
teoria
dos
adversários): sua meta será transformar esse acordo de
fato em acordo de direito, fazer dele um acordo
necessário, de validade universal, do qual possam
inferir uma criteriologia das verdades primeiras. Os
partidários
da
filosofia
regressiva
baseiam
sua
argumentação no fato da existência de princípios em
desuso que, após terem sido universalmente aceitos,
tiveram de ser abandonados ou cujo alcance teve de ser
restringido; também extrapolam quando afirmam que a
experiência da evolução do pensamento científico nos
veda cristalizar, em algum ponto, os princípios que
formam a base atual de nosso saber. Os adeptos de uma
filosofia primeira transformam princípios atuais em
princípios eternos, os da filosofia regressiva situam o
atual num devir histórico, do qual não crêem poder
privilegiar nenhum momento, subtraindo-o, a priori, a
toda evolução; recusam o princípio de Aristóteles que
requer um termo absolutamente primeiro a qualquer série
regressiva.
As
duas
atitudes
levam
em
conta
a
experiência do passado, mas dela tiram conclusões
diferentes para o futuro. A filosofia primeira afirma
que uma nova experiência já não pode trazer a
modificação de certos princípios, que resistiram a todos
os ataques anteriores; a filosofia regressiva crê que
tantos princípios tiveram de ser abandonados que não se
pode afirmar de nenhum que é tão firme que uma nova
experiência (no sentido mais lato da palavra) nunca
possa
questioná-lo.
Aquela
busca
um
conhecimento
perfeito, necessário ou absoluto, seu ideal consiste em
215
encontrar alguma verdade evidente diante da qual os
homens teriam de inclinar-se, à qual teriam de aderir —
seu ideal de liberdade se define como o consentimento ao
ser ou à ordem absoluta —, esta só admite um
conhecimento imperfeito e sempre perfectível, comprazse, não num ideal de perfeição, mas num ideal de
progresso, entendendo com isso não o fato de aproximarse de alguma perfeição utópica, mas o fato de solucionar
as dificuldades que se apresentam por meio de uma
arbitragem constante, efetuada por uma sociedade de
mentes livres, em interação umas com as outras, das
vantagens e dos inconvenientes de qualquer tomada de
posição ante o conjunto dos elementos da experiência.”328
Não se pretende mais buscar razões últimas e
fundamentos
eternos,
pois
com
a
filosofia
regressiva
o
fundamento reside no acordo, ou melhor, nos acordos que os
homens estabelecem e convencionam e não em algum acordo de
direito anterior ao próprio acordo de fato e com validade
independente dos acordos de fato. É recusada a admissão de que
os princípios de uma filosofia sejam fundamentos definitivos,
válidos para toda a filosofia. A questão das divergências de
opinião deixa de ser perspectivada do ponto de vista formal da
contradição
lógica
e
passa
a
ser
encarada
sob
a
ótica
da
incompatibilidade.
Assim,
substituída
pela
divergência
deixam
de
de
a
noção
de
contradição
incompatibilidade:
ser
sinônimo
de
a
deve
oposição
contradição
ser
e
e
a
de
irracionalidade para passarem a ser consideradas a partir da
idéia de que há incompatibilidades, que não são formais, mas,
328
PERELMAN, Chaïm. Retóricas, p. 148-149.
216
sempre,
relativas
a
circunstâncias
contingentes
e
apenas
existentes em certas situações.329
Começa a ser estabelecida uma afinidade entre
razão330
e
justificação.
A
tarefa
de
justificar
liga-se
ao
princípio racional da inércia, que por sua vez é decorrente de
uma tendência natural do nosso espírito para considerar como
normal
e
racional
justificação
e,
portanto,
suplementar,
um
como
não
exigindo
comportamento
nenhuma
conforme
aos
precedentes; dito de outra maneira, o princípio de inércia,
que transforma em norma toda a maneira habitual de proceder,
está nas bases das regras que se desenvolvem espontaneamente
em toda a sociedade. O princípio de inércia desempenha, assim,
um papel estabilizador indispensável na vida social. Isto não
quer dizer que tudo o que está deva permanecer imutável, mas
que não há lugar para o mudar sem razão: só a mudança deve ser
justificada.331
A tarefa de justificação, portanto, é exigida
quando
o
que
se
pretende
é
a
contraposição
de
algo
já
estabelecido, posto que só a mudança deve ser justificada.
Ressalte-se
regressiva
329
de
PERELMAN,
que,
no
âmbito
fundamentar
é
da
filosofia
justificar
as
Cf. PERELMAN, C., OLBRECHTS-TYTECA, L. Tratado da argumentação: a nova
retórica, p. 221-223.
330
Mas, uma nova idéia de razão, sem pretensões exorbitantes.
331
Cf. PERELMAN, Chaïm. Ética e direito, 366-371.
217
transformações que se operaram relativamente a um quadro de
referências anteriores e não estabelecer, de uma vez por todas
e a partir do zero, o critério a partir do qual nada mais
necessitaria de justificação.
Já não se tem mais a pretensão de querer tudo
justificar
(no
sentido
dado
a
este
termo
pelas
filosofias
primeiras), pois esta tarefa só é exigida na mudança, pois
“...não se deve mudar nada sem razão”.332
Neste momento PERELMAN se propõe uma hipótese
original
de
trabalho,
que
parte
de
uma
correção
no
olhar
filosófico: depois de se ter, durante séculos, procurado o
modelo de pensamento filosófico nas matemáticas e nas ciências
exatas, não seria melhor inspiração compará-lo com o modelo
dos juristas, que tanto devem elaborar um direito novo como
aplicar o direito existente a situações concretas?
Duas serão as bases para a formulação da teoria
da argumentação de PERELMAN: por um lado, pensar, a partir do
modelo jurídico, a razão no seu uso prático; por outro, tentar
332
PERELMAN. C. Idem, p. 367 e 381. “O direito nos ensina (...) a não
abandonar regras existentes, a não ser que boas razões justifiquem-lhes a
substituição: apenas a mudança necessita de uma justificação, pois a
presunção joga em favor do que existe, do mesmo modo que o ônus da prova
incumbe àquele que quer mudar um estado de coisas estabelecido. E se advém
que a novidade prevalece racionalmente (e não pela violência), é graças ao
fato de ela satisfazer melhor a critérios ou a exigências preexistentes”
(PERELMAN, C. Idem, p. 382).
218
encontrar, a partir da idéia de justiça, a regra mestra da
razão prática (lógica do preferível).
A
tomada
do
raciocínio
jurídico
como
modelo
implica, em primeiro lugar, o abandono de um preconceito que
vê o direito como uma espécie de mal menor, uma espécie de
gestão de problemas humanos através de um conjunto de regras e
de
agentes
contudo,
que
a
permitem
ordem,
que
estabelecer
embora
ordem
permitam
mas
não
soluções
trazem,
para
os
conflitos não trazem, contudo, a solução que acabaria de vez
com todos os conflitos.
De acordo com PERELMAN, é preciso não ver no
direito
uma
espécie
de
remendo,
lado
infeliz
de
uma
racionalidade plena cuja realização teima em não se consumar,
recurso que atenua as imperfeições, mas não satisfaz. Esta
posição que subalterniza, secundariza ou mesmo desvaloriza o
direito é própria dos filósofos que sonham com a utopia de uma
sociedade paradisíaca ou perfeita — e para que serviria, com
efeito, o direito no país da utopia?333
Para PERELMAN, a questão é a de saber se o
ideal de racionalidade filosófica deve apresentar aos homens
333
Cf. PERELMAN, C. Idem, p. 372-389. “Almeja-se que, na sociedade ideal,
as leis estejam inscritas no coração, na consciência e na razão de cada
qual, que cada qual paute espontaneamente por elas a sua conduta e que não
se tenha necessidade nem de juízes nem de advogados. Alguém imagina
tribunais no seio do paraíso?” (PERELMAN, C. Idem, p. 373-374).
219
unicamente a visão de um paraíso terrestre, no qual todos os
homens, tornados sábios, conduzem-se como santos, ou se ele
deve visar também a organização de uma sociedade com um mínimo
de
violência,
uma
sociedade
que
admite
reconhecer
seus
defeitos e suas falhas.
Segundo
direito
tem
exatamente
PERELMAN,
esta
uma
última
vez
constatado
preocupação,
que
o
torna-se
compreensível que continue a ser desdenhado por aqueles cujas
pretensões são absolutistas, que vêem no direito nada mais que
um conjunto de expedientes indignos do filósofo. Porém, ao
contrário do que pensam os absolutistas, o direito deve ser
posto como um digno objeto de estudo para os filósofos que
encontram alguma racionalidade na organização de um saber e de
uma ação que são essencialmente falíveis.
Assim,
contra
a
posição
absolutista
que
desdenha o estudo do direito e ignora a sua dimensão racional,
PERELMAN questiona:
“
... Cumprirá condenar o direito e os juristas em
nome de uma concepção da razão e da justiça inspirada
pelas
ciências
matemáticas
ou
naturais,
ou
não
cumpriria, contando com o fato de que os juristas mais
eminentes são tão razoáveis e tão honestos como os
homens de ciência, reconhecer, de uma vez por todas, que
as divergências de todo tipo que se constatam em direito
se devem à sua própria natureza, à sua especificidade em
comparação com as ciências?”334
334
PERELMAN, C. Idem, p. 375.
220
Na mesma obra, referindo-se à divergência de
opiniões e de interpretações que geralmente se geram em torno
da lei e à ausência de unanimidade que, por exemplo, numa
assembléia legislativa ou mesmo nos tribunais, freqüentemente
e usualmente se verifica335, PERELMAN continua a questionar:
“
Mas, já que a prática jurídica de todos os povos
reconhece esse estado de coisas, cumprirá condenar o
direito em nome de critérios que lhe são alheios, ou não
se poderá, ao contrário, tirar proveito de uma análise
da especificidade do direito, para compreender melhor
outras situações em que se manifestam divergências
irredutíveis,
como
em
moral,
em
política
e
em
filosofia?”336
Com
jurídico,
PERELMAN
essas
irá
observações
então
acerca
concluir
que
do
o
pensamento
direito
está
essencialmente ligado ao problema da decisão, sendo que esta
não
pode
ser
nem
puramente
necessária,
nem
puramente
arbitrária; mas sim como algo decorrente de um processo que
exige razões ou motivos que a justifiquem, tornem-na razoável,
ou lhe confiram, ao menos, uma certa razoabilidade.
Também
incompatibilidade
se
neste
sobrepõe
335
domínio
ao
da
o
princípio
contradição.
Segundo
da
a
“De fato, admitimos perfeitamente que dois homens razoáveis e honestos
possam não estar de acordo sobre uma determinada questão e julgar
diferentemente. A situação é mesmo considerada tão normal, tanto nas
assembléias legislativas como nos tribunais que comportam vários juízes,
que são consideradas excepcionais as decisões tomadas por unanimidade, e é
normal prever procedimentos que permitem chegar a uma decisão quando
pareceres opostos permanecem irredutíveis quando confrontados” (PERELMAN,
C. Idem, ibidem).
336
PERELMAN, C. Idem, p. 376.
221
lógica daquele, o fato de duas decisões serem incompatíveis
não
significa
que
ambas,
ou
pelo
menos
uma
delas,
sejam
irracionais. Segundo PERELMAN, nada impede que duas decisões,
apesar de incompatíveis, sejam ambas razoáveis.
Contudo,
esta
afirmação
só
pode
ser
teoricamente sustentável se, ao invés de associarmos a idéia
de
razão
à
idéia
de
verdade337,
caminharmos
para
uma
perspectiva que sublinha o papel que a razão pode desempenhar
no plano da ação e dos valores e, a partir daí, concebermos um
outro
tipo
de
racionalidade,
sustentada
na
solidariedade
existente entre argumentação, crítica e justificação. Ora, uma
justificação pode ser mais ou menos pertinente, mais ou menos
plausível,
mais
ou
menos
convincente,
mas
não
justifica,
nunca, a única pespectiva possível.338
337
“... Se um sistema formal é coerente, a negação de uma tese demonstrada
é necessariamente falsa; não se pode pensar, num sistema formal, em
demonstrar a tese e a antítese. Pode-se, muito pelo contrário, pleitear o
pró e o contra, e duas decisões incompatíveis podem ser igualmente
razoáveis. Mas, para que essa afirmação seja teoricamente defensável, não
se deve vincular a idéia de razão à idéia de verdade. A dissociação dessas
duas noções é, aliás, indispensável para que a idéia de uma decisão
razoável tenha um sentido. Pois, quando se trata de decisão, não se pode
tratar de verdade. Diante da verdade, temos de inclinar-nos, não temos de
decidir. Não decido que dois mais dois são quatro nem que Paris é a capital
da França. Uma decisão razoável não é, portanto, simplesmente uma decisão
conforme à verdade, mas aquela que pode ser justificada pelas melhores
razões, pelo menos na medida em que ela necessita de justificação”
(PERELMAN, C. Idem, p. 384).
338
Com efeito, assumir que só há uma justificação possível equivaleria a
equiparar justificação e demonstração, pois, segundo PERELMAN, em primeiro
lugar, “...toda justificação pressupõe a existência, ou a eventualidade, de
uma apreciação desfavorável referente ao que cabe justificar” (PERELMAN, C.
Idem, p. 343), daí por que a justificação liga-se intimamente à idéia de
valorização ou desvalorização. Em segundo lugar, a “...justificação só diz
respeito ao que é, a um só tempo, discutível e discutido” (PERELMAN, C.
222
Sintetizando o pensamento de PERELMAN acerca do
olhar jurídico como modelo, afirma GRÁCIO:
“
...a necessidade de justificação racional não
implica uma tarefa de fundamentação última nem o
estabelecimento
de,
ou
o
recurso
a,
critérios
indubitáveis
e
infalíveis
que
garantissem,
definitivamente, a sua validade. A racionalidade do
empreendimento justificativo refere-se à forma como se
articula, sem rupturas absolutas com o pré-existente, o
tradicional e o novo, à maneira pela qual se consegue
assegurar
uma
continuidade
entre
o
pretérito
ou
atualmente
estabelecido
e
aquilo
que
pretende
estabelecer-se. O começo radical a partir do zero,
fazendo tábula rasa do passado e purgando, pelo
exercício da dúvida, todos os preconceitos, supõe que
seja possível um despojamento total das nossas crenças e
das nossas opiniões; ora, a idéia de um tal despojamento
só é viável num pensamento que se alimenta da ficção de
uma épokhé, visando preparar o terreno para uma certeza
absoluta, permitiria consumar, num registro a-temporal,
um fechamento do pensamento sobre si próprio, isolando-o
desta forma de toda e qualquer referência à prática,
desligando-o da premência da ação e purgando-o de
contaminações provenientes de adesões a crenças ou da
sua ligação a interesses e valores. Mas, a idéia de que
por um gesto de voluntária suspensão o pensamento se
pode dissociar do assentimento de um auditório, é uma
idéia que se nutre da utopia da pureza. Na verdade, esta
oscilação entre uma dúvida absoluta e uma certeza
absoluta, característica das metafísicas absolutistas,
oculta a transitividade a que o pensamento não pode
escapar e mascara o fato de nos encontrarmos sempre num
entre, no meio de, pertencentes a um processo cujo
controle jamais é integralmente nosso. Por isso, a
perspectiva perelmaniana duma racionalidade que rejeita
a seriedade de uma dúvida universal, a oposição da razão
e da vontade ou a nítida separação destas duas
faculdades, tende a sublinhar que se o dado constitui um
elemento do qual é impossível prescindir, isso não é,
contudo, impeditivo — é, pelo contrário, solidário — de
uma atitude pluralista que permite, dentro do razoável,
configurações interpretativas e contextualizações de
sentido diversas.”339
Idem, p. 343-344). Resulta daqui que tudo aquilo que é absolutamente válido
não deve ser submetido a um processo de justificação e, inversamente,
aquilo que procuramos justificar não pode ser considerado incondicional e
absolutamente válido. Em terceiro lugar, deve ser justificado, para o
espírito tomado de racionalidade, aquilo que não é evidente nem arbitrário
(Cf. PERELMAN, C. Idem, p. 343).
339
GRÁCIO, R. A. Obra citada, p. 52-53.
223
Disso
decorre
o
já
abordado
princípio
da
inércia, segundo o qual só a mudança necessita justificação,
donde a racionalidade vai situar-se precisamente ao nível da
justificação dessa passagem para novo, pois a ruptura com o
que se aceita só é racional se se apresentarem as razões pelas
quais se mostra a insuficiência do que se rejeita e os motivos
que justificam uma nova tomada de posição.
É
assim,
escreve
PERELMAN,
“...que
a
racionalidade, tal como se apresenta em direito, é sempre uma
forma
de
continuidade:
conformidade
a
regras
anteriores
ou
justificação do novo por meio de valores antigos. O que não
tem nenhuma amarra com o passado só pode impor-se pela força,
não pela razão”.340 Dito de outra forma, para os juristas toda
a racionalidade é continuidade: a racionalidade apresenta-se,
no quadro da jurisprudência, como adaptação àquilo que já é
admitido — como conformidade aos precedentes — e se constrói,
não eliminando, mas se apoiando no passado.
A
fidelidade
a
regras
desempenha
um
papel
importante no modelo jurídico; e é a partir daí que PERELMAN
começa
a
analisar
a
regra
de
justiça,
que
exige
o
mesmo
tratamento para seres e situações essencialmente semelhantes,
340
PERELMAN, C. Obra citada, p. 381.
224
donde a instauração de uma razão analógica que deve conciliar,
ao invés de excluir, identidade e diferença.
Segundo PERELMAN, a “...regra de justiça requer
a aplicação de um tratamento idêntico a seres ou a situações
que são integrados numa mesma categoria. A racionalidade dessa
regra e a validade que lhe reconhecem se reportam ao princípio
de
inércia,
do
qual
resulta,
notadamente,
a
importância
conferida ao precedente”.341
No entanto, continua PERELMAN, para “...que a
regra de justiça constitua o fundamento de uma demonstração
rigorosa, os objetos aos quais ela se aplica deveriam ser
idênticos,
ou
seja,
completamente
intercambiáveis.
Mas,
na
verdade, isso nunca acontece. Os objetos sempre diferem em
algum aspecto, e o grande problema, o que suscita a maioria
das controvérsias, é decidir se as diferenças constatadas são
ou não irrelevantes ou, em outros termos, se os objetos não
diferem pelas características que se consideram essenciais,
isto é, os únicos a serem levados em conta na administração da
justiça”.342
Portanto, a regra é abstrata e formal, já que
ela
341
não
indica
quando
dois
seres
são
PERELMAN, C., OLBRECHTS-TYTECA, L. Tratado da
retórica, p. 248.
342
PERELMAN, C., OLBRECHTS-TYTECA, L. Idem, ibidem.
essencialmente
argumentação:
a
nova
225
semelhantes nem como é preciso tratá-los para se ser justo, ou
seja,
a
regra
de
justiça
nada
nos
diz
sobre
os
critérios
segundo os quais os seres devem ser classificados, nem sobre a
maneira
como
eles
devem
ser
tratados
depois
de
serem
classificados.
Ocorre que a aplicação de tal regra a casos
concretos
Conclui-se
necessita
daí
da
que
a
especificação
margem
de
destas
duas
maleabilidade
noções.
e
de
indeterminação, ao mesmo tempo em que permite que a regra seja
aplicável, impede, no entanto, que a sua aplicação possa ser
mecânica ou aproblemática.
Não
há,
portanto,
a
indicação
de
nenhum
critério material para a justiça, mas isso não quer dizer que
se devam subscrever as teses do positivismo acerca de valores.
Se os valores que fundamentam um sistema jurídico nem resultam
da
experiência,
incontroversos,
nem
diz
podem
LARENZ
ser
ao
deduzidos
comentar
o
de
princípios
pensamento
de
PERELMAN, nem por isso seria necessário concluir “...‘que os
valores e normas fundamentais que guiam a nossa atuação são
alheios a qualquer racionalidade, que não podem ser criticados
nem justificados, que toda a reflexão a eles atinente é apenas
a expressão dos nossos interesses e desejos’. Esta conclusão
será decerto óbvia ‘para aqueles para quem toda a prova é
baseada no cálculo ou na experiência e todo o pensamento a
226
fundamentar racionalmente de um modo convincente é uma forma
de dedução ou de indução’.”343
Portanto,
independentemente
das
dificuldades
que a formulação abstrata e formal que a regra de justiça
suscita, a sua importância se manifesta pelo fato de, por um
lado, exigir que se seja, na ação, fiel a uma linha de conduta
regular344, ou seja, enunciar um princípio de continuidade e de
coerência, “...um princípio diretor de nosso pensamento”345;
por
outro,
formal,
da
ao
apresentar
atividade
“...a
racional”346,
parte
ela
comum,
se
e
torna
puramente
a
regra
a
partir da qual se manifesta a racionalidade do pensamento e da
ação; ela delimita o problema da justiça no domínio da ação.
Em outras palavras, para que a regra de justiça
seja
aplicada
a
casos
concretos,
os
seus
aspectos
indeterminados têm que ser especificados e esta especificação
não pode ser feita pela via da demonstração, mas apenas pelo
recurso a técnicas de raciocínio que implicam valorações347, o
que demanda o desenvolvimento de uma teoria da argumentação. A
regra de justiça é, assim, um princípio diretor do pensamento,
343
344
345
346
347
LARENZ, Karl. Metodologia da ciência do direito, p. 245.
Cf. PERELMAN, C. Ética e direito, p. 187.
PERELMAN, C. Idem, p. 89.
PERELMAN, C. Retóricas, p. 367.
Cf. PERELMAN, C. Ética e direito, p. 472.
227
pois dita o quadro a partir do qual uma argumentação pode ser
reconhecida como razoável.348
GRÁCIO
faz
ainda
outra
abordagem
sobre
a
importância assinalada por PERELMAN acerca do modelo jurídico:
“
... 1) a especificidade do raciocínio jurídico e da
racionalidade presente na prática do direito implicam
continuidade, atenção aos precedentes, justificação do
novo a partir de uma referência ao pré-existente; 2)
trata-se de uma racionalidade dialética em que razão e
vontade não estão separadas, mas articuladas numa
conjugação de exigências que são as do razoável; 3) esta
racionalidade encontra-se ligada, não à idéia de
verdade, mas à idéia de justificação, não às idéias
extremas de necessidade ou de arbitrariedade, mas à
idéia de razão em situação, exigindo esta situação que a
ordem da razão seja antes de mais uma ordem adaptativa;
4) neste quadro, é possível conceber uma racionalidade
que a) rejeita as oposições pensamento/ação, teo-
348
Vale mencionar, ainda, que a regra de justiça também pode ser
apresentada como critério de valor de um argumento. Segundo PERELMAN,
“...um argumento forte, numa área determinada, é um argumento que pode
prevalecer de precedentes” (PERELMAN, C. Ética e direito, p. 109). A
aplicação da regra de justiça supõe a existência de precedentes que nos dão
instrução sobre a maneira como foram resolvidas, no passado, situações
semelhantes às que no presente se apresentam e sobre o valor das
argumentações utilizadas a seu respeito, pois, segundo PERELMAN: “Invocar
um precedente significa assimilar o caso novo a um caso antigo, significa
insistir nas similitudes e desprezar as diferenças. Se a assimilação não é
imediatamente aceita, uma argumentação pode mostrar-se indispensável. Ora,
para determinar quais argumentos são, no assunto, relevantes, para
determinar quando um argumento será considerado forte ou fraco, a regra de
justiça intervém de novo; é graças à sua intervenção que o próprio valor
dos argumentos — que contrariamente às provas demonstrativas nunca são
coercivos — depende de seus usos anteriores, da admissibilidade e da
eficácia que, em contextos semelhantes do passado, lhes foram reconhecidos”
(PERELMAN, C. Retóricas, p. 307). Marina Gascón ABELLÁN desenvolve um
estudo em que defende a técnica do precedente como a melhor forma de
controle da racionalidade judicial. Para aquela autora, o imperativo
categórico de KANT e seu critério de universalização deveria sempre ser
atendido pelo juiz da seguinte forma: “...na presença de um mesmo fato,
resolve-se sempre de igual forma, ou melhor ainda, deve-se tomar a decisão
que
no
futuro
se
estaria
disposto
a
respaldar
ante
as
mesmas
circunstâncias” (ABELLÁN, Marina Gascón. La técnica del precedente y la
argumentación racional, p. 31). Ressalte-se que aqui também não se admite o
caráter a priori da moral Kantiana, pois o critério de racionalidade é
historicamente situado e o precedente poderá ser alterado depois, desde que
justificado (aplicação do princípio da inércia), pois, ainda segundo
ABELLÁN: “Quem quiser se distanciar de um precedente deve assumir a carga
da argumentação” (ABELLÁN, M. G. Idem, nota 20, p. 39).
228
ria/prática, formalismo/pragmatismo, racional/irracional; b) associando-se à noção de preferível e trazendo a
primeiro plano a idéia de preferência justificada, dá
expressão ao dinamismo interativo das nossas faculdades
e torna inseparáveis e dificilmente isoláveis o plano do
conhecimento e o plano do interesse, o plano do ser e o
plano da crença e das opções credíveis; c) não é apenas,
nem sobretudo, calculadora, mas avaliadora e ajuizadora;
d) aliada aos problemas da escolha e da decisão permite
conferir um sentido à liberdade humana.”349
Assim, a partir dessas conclusões derivadas da
proposta de se ter um olhar jurídico como modelo do pensar é
que PERELMAN irá propor um alargamento das noções de razão
(que haviam sido reduzidas à lógica formal) através de uma
teoria da argumentação.
Conforme se vê no início do Tratado, a redução
do racional à lógica formal provocou conseqüências desastrosas
no plano das ciências humanas. Isso porque havia, por parte
dos lógicos e dos teóricos do conhecimento, nos últimos três
séculos e sob a inspiração do ideal cartesiano, a tendência
para privilegiar sobretudo o estudo dos meios de demonstração
utilizados nas ciências matemáticas e para reduzir a lógica à
lógica formal.
No que diz respeito ao exame dos meios de prova
utilizados nas ciências humanas, PERELMAN faz notar que, nesse
domínio,
349
os
lógicos
raramente
se
aventuraram.350
Desta
GRÁCIO, R. A. Obra citada, p. 63.
Cf. PERELMAN, C., OLBRECHTS-TYTECA, L. Tratado da argumentação: a nova
retórica, p. 2.
350
229
tendência resultou “...uma limitação indevida e perfeitamente
injustificada
do
campo
onde
intervém
nossa
faculdade
de
raciocinar e de provar”.351 A distinção que encontraremos no
pensamento
de
PERELMAN,
entre
argumentação
lógica
e
argumentação retórica ou, ainda, de uma forma mais abreviada,
entre
demonstração
e
argumentação,
deve
justamente
ser
compreendida a partir do esforço para repensar esta tendência
num
sentido
lógicas:
de
“...
um
alargamento
Os
lógicos
do
devem
domínio
da
completar
investigações
a
teoria
da
demonstração assim obtida com uma teoria da argumentação.”352
Para tanto, PERELMAN encontrará no resgate da
retórica
uma
inquietações:
possível
a)
que
solução
a
lógica
para
a
seguinte
moderna,
ordem
enquanto
de
lógica
matemática, seja uma lógica formal, equivale isso a dizer que
toda a argumentação utilizada fora das ciências matemáticas
não é lógica? b) estas argumentações externas à lógica formal
seriam então fundadas somente na sugestão? c) o que dizer da
filosofia
do
humanas?
d)
convincentes,
direito,
por
da
que
necessárias
política,
somente
e
de
as
todas
provas
constringentes
as
ciências
consideradas
podem
receber
o
estatuto de lógicas? e) por que negligenciar outros meios de
provas que, não obstante não serem necessariamente admitidos,
351
352
PERELMAN, C., OLBRECHTS-TYTECA, L. Idem, p. 3.
PERELMAN, C., OLBRECHTS-TYTECA, L. Idem, p. 11.
230
nem as suas conclusões constringentes, não deixam de possuir
uma
dimensão
juízos
de
lógica
valor?
f)
e
possibilitar
e
por
que
não
uma
fundamentação
proceder
a
um
aos
estudo
sistemáticos desses meios de prova?
A estas questões PERELMAN não conseguia dar uma
resposta
satisfatória
casualmente,
lendo
até
um
que,
livro
depois
sobre
de
muitos
retórica
anos
e
literária353,
encontrou-se com a obra de ARISTÓTELES e, em particular, com o
tipo de raciocínios a que este denominava dialéticos (que são
encontrados
na
Sofísticas)
e
Tópica,
que
o
na
Retórica
estagirita
e
havia
nas
Refutações
distinguido
dos
raciocínios analíticos ou dedutivos (encontrados nos Primeiros
e Segundos Analíticos).354
PERELMAN logo constatou a proximidade entre os
propósitos da sua investigação e as preocupações daqueles que
se ocuparam no passado com os problemas da retórica. Ambos
353
O livro era Les Fleurs des Tarbes ou la terreur dans les lettres, de
Jean PAULHAN, que remetia, em apêndice, para alguns extratos da obra de
Brunnetto LATINI, autor preocupado com os argumentos dos discursos e que
tinha sido mestre de DANTE Alighieri. A partir daí foi fácil remontar a
toda a tradição greco-latina da retórica e dos Tópicos.
354
Diga-se ainda que, segundo PERELMAN, este encontro com a retórica foi
uma surpresa e uma revelação: a) surpresa, pois o termo retórica caíra no
desuso da tradição filosófica e, mais ainda, assumira conotações
pejorativas. As obras que foram publicadas nesta matéria (e não faltaram
tratados de retórica nos últimos cem anos) vinham sempre acompanhadas de
uma certa reserva; e b) revelação, pois este encontro deixava antever
possibilidades fecundas, conforme se depreende da seguinte constatação de
PERELMAN: “Não temos o direito de esperar que, ao utilizar, para o estudo
da retórica o mesmo método que foi bem-sucedido em lógica, o método
experimental, também conseguiremos reconstruir a retórica e torná-la
interessante?” (PERELMAN, C. Retóricas, p. 65).
231
partilhavam de um ponto de partida empírico, entre ambos havia
uma
atenção
às
categorias
do
senso
comum,
em
ambos
se
registrava um interesse por questões relativas à ação segundo
a razão. E, mais do que a dialética dos antigos, limitada à
especulação, a retórica, trazendo ao primeiro plano a ação
exercida
pelo
discurso,
levava
a
que
a
argumentação
e
o
pensamento argumentativo fossem concebidos em função da ação
que preparam ou determinam.
Na
atualidade,
transposição
PERELMAN
da
reconhecerá
retórica
as
suas
antiga
vantagens
para
no
a
que
tange às noções de auditório355, de adesão e de acordo.
O auditório situa os raciocínios, impedindo a
teoria
da
argumentação
de
se
desprender
prematuramente
do
mundo concreto, isto é, permite que se conceba a atividade da
razão e a racionalidade fora de dogmatismos ou de pretensões
absolutistas, ou seja, ajusta-nas ao nível da discussão entre
os homens, relativamente aos quais o acordo não é um dado, nem
definitivo, nem pacífico.
A retórica chama a atenção para o excesso que a
tradicional e tentadora manobra da fuga para a transcendência,
ato
355
fundador
das
filosofias
metafísicas
absolutistas,
“O que conservamos da retórica tradicional é a idéia mesma de auditório,
que é imediatamente evocada assim que se pensa num discurso. Todo discurso
se dirige a um auditório...” (PERELMAN, C., OLBRECHTS-TYTECA, L. Tratado da
argumentação: a nova retórica, p. 7).
232
comporta. Com efeito se é tentado, a partir do momento em que
se está na presença de um acordo, a transformá-lo em acordo
universal
e
absoluto
e,
em
conseqüência,
procurar-lhe
um
fundamento ontológico.
A retórica, pela revisão constante do caminho
percorrido para a obtenção deste acordo, da sua precariedade,
impede de ver nele algo de fixo, de eterno, de dado de uma vez
por todas. Ela situa o acordo relativamente a um desacordo
cujos inconvenientes eram tais que se foi obrigado a procurar
um meio de o superar, fato que constitui mais uma pausa do que
uma
realização
definitiva.
Ela
dá
também
o
seu
valor
aos
acordos limitados.
Por outro lado, é a noção de auditório que
permite falar de razão como razão histórica e situada.356 É
que, como mostram as teorias antigas da retórica, nas quais a
idéia
de
direção
do
discurso
(o
discurso
se
dirige
a
um
conjunto de espíritos) e a idéia de adesão são essenciais,
pois, repita-se, “... é em função de um auditório que qualquer
argumentação se desenvolve”.357 Esta tese se torna essencial e
permite
precisar,
a
partir
da
definição
de
auditório,
o
domínio a que uma teoria da argumentação diz respeito. Se o
auditório
356
357
é
entendido
como
“...o
conjunto
daqueles
que
Neste caso a noção de auditório universal, que será abordado adiante.
PERELMAN, C., OLBRECHTS-TYTECA, L. Obra citada, p. 6.
o
233
orador
quer
influenciar
com
argumentação”358,
sua
então
o
objeto da teoria da argumentação será “...o estudo dos meios
de
argumentação,
não
pertencentes
à
lógica
formal,
que
permitem obter ou aumentar a adesão de outrem às teses que se
lhe propõem ao seu assentimento”359 ou, dito de outra maneira,
o estudo das técnicas discursivas que permitem provocar ou
aumentar a adesão.
Os
antigos
classificavam
a
oratória
em
três
gêneros: o deliberativo (que diz respeito ao útil e aos meios
para obter a adesão das assembléias políticas), o judiciário
(que diz respeito ao justo e à argumentação perante os juízes)
e o epidítico (que é o discurso apologético, exortativo, de
elogio, de censura, sobre o belo ou o disforme).
O gênero oratório que mais intrigava os gregos
era
o
epidítico
que,
“...tal
como
é
representado
pelo
panegírico dos gregos, e pela laudatio funebris dos latinos,
se refere ao elogio ou à censura, ao belo e ao feio; mas ao
que
visará?
É
aqui
que
os
antigos
se
viram
em
grande
embaraço?”360
Com
efeito,
“...para
a
Antigüidade
—
se
isentarmos a tradição dos grandes sofistas — nada era mais
358
359
PERELMAN, C., OLBRECHTS-TYTECA, L. Idem, p. 22.
PERELMAN, C. Retóricas, p. 57.
360
PERELMAN, C. Idem, p. 66.
234
seguro
do
que
a
apreciação
moral.
Enquanto
os
gêneros
deliberativos e judiciários supunham um adversário, portanto
um combate, visavam a obter uma decisão sobre uma questão
controvertida, e neles o uso da retórica se justificava pela
incerteza
e
pela
ignorância,
como
compreender
o
gênero
epidítico, referente a coisas certas, incontestáveis, e que
adversário nenhum contesta?”361
Não
achando
qualquer
finalidade
no
discurso
epidítico, os antigos se inclinaram a considerá-lo apenas como
uma
espécie
espectadores
de
e
a
espetáculo,
glória
do
visando
orador
a
pelo
satisfação
exercício
dos
de
suas
sutilezas técnicas. A técnica se tornou um fim em si mesmo. É
dessa forma que o próprio ARISTÓTELES vê o gênero epidítico,
pois ele não “...percebe que as premissas nas quais se apóiam
os
discursos
parece
tão
deliberativos
importante,
são
e
judiciários,
juízos
de
cujo
valor.
objeto
Ora,
lhe
essas
premissas, é preciso que o discurso epidítico as sustente, as
confirme.”362 Por isso PERELMAN conclui que o gênero epidítico
em nada difere dos gêneros deliberativo e judiciário, pois
“...seu objeto é idêntico em todos os graus”.363
361
362
PERELMAN, C. Idem, p 67.
PERELMAN, C. Idem, ibidem.
363
PERELMAN, C. Idem, ibidem.
235
Com
edificante
do
esta
discurso
tese,
PERELMAN
epidítico
e
a
valoriza
a
dimensão
importância
de
uma
comunhão sobre os valores admitidos (que determina escolhas
virtuais,
previne
contra
objeções
futuras,
mantém
certas
hierarquias de valores e exorta à sua defesa). Se é certo que
o discurso epidítico se presta ao brilho do orador, tal não
quer dizer que seja esta a sua finalidade.364
Foi esta incompreensão do papel e da natureza
do
discurso
epidítico
que
fez
com
que
a
retórica
se
desenvolvesse no campo literário e fosse cindida entre duas
tendências: a) uma filosófica, que visava a sua integração na
lógica das discussões sobre assuntos controversos, incertos e
em que cada um dos adversários procura mostrar que a verdade
ou
a
verosimilhança
estão
do
seu
lado
e;
b)
a
outra,
literária, visando o desenvolvimento do aspecto artístico do
discurso e preocupada sobretudo com problemas de expressão:
“Nessa cisão da retórica encontramos, de certa maneira, um
aspecto
das
invasões
da
lógica
e
da
sugestão
na
área
da
argumentação que nos interessa”.365
364
Um dos problemas centrais no domínio da argumentação é o da distinção
entre finalidade e conseqüência.
365
PERELMAN, Chaïm. Obra citada, p. 69.
236
Como visto, ambas as tendências acabam por ser
redutoras e conduzem à desvalorização da retórica.
Com a retomada do pensamento de ARISTÓTELES,
PERELMAN delimita o sentido em que passará a empregar o termo
retórica:
“...utilizaremos
daqui
para
a
frente
o
termo
‘retórica’ para designar o que se poderia ter chamado também a
lógica
do
circunscrita
preferível”366,
a
teoria
que
da
é
o
âmbito
argumentação
em
que
inspirada
estará
pela
retórica.367
Note-se que não se trata de uma transposição
fiel, para o presente, da obra de ARISTÓTELES, pois há algumas
diferenças
importantes
na
nova
proposta.
Uma
diferença
fundamental, por exemplo, entre a retórica dos antigos e nova
retórica diz respeito à noção de auditório.
Enquanto naquela a argumentação retórica diz
respeito à arte de bem falar em público, ao uso da palavra e
ao discurso oral perante um grupo de pessoas pouco capazes de
366
367
PERELMAN, C. Idem, ibidem.
A nova retórica tem como finalidade a adesão obtida por intermédio da
argumentação, estando excluídos, portanto, o uso persuasivo da arma, o uso
persuasivo do dinheiro, enfim, todo a forma persuasiva que escapa ao âmbito
lingüístico, valendo dizer que a ameaça, nos casos em que ocorre pelo uso
da palavra — chantagens, por exemplo — é incluída por PERELMAN no âmbito de
sua teoria.
237
um
raciocínio
proceder,
com
minucioso
ou
pouco
seriedade,
a
dadas
uma
ao
trabalho
investigação
de
prévia,
destinando-se, por isso, a um público de ignorantes; já na
perspectiva da nova retórica não há motivos, nem para limitar
o
campo
da
argumentação
ao
discurso
falado,
nem
para
restringir o auditório a um grupo de incompetentes.
Com
efeito,
diz
PERELMAN,
“...por
que
não
admitir que algumas argumentações possam ser dirigidas a toda
espécie de auditórios?”368
Neste
sentido
torna-se
possível
afirmar,
no
contexto alargado em que a nova retórica concebe a noção de
auditório,
que
além
dos
auditórios
a
que
se
referiam
os
antigos, também a discussão com um único interlocutor e, até
mesmo,
a
deliberação
íntima,
são
parte
integrante
de
uma
teoria geral da argumentação, cujo objeto de estudo, ressaltese, ultrapassa largamente os limites da retórica clássica.
Além
do
alargamento
dos
limites
da
retórica
clássica, a nova retórica também pressupõe uma ampliação do
conceito de prova, que nas ciências dedutivas ou experimentais
368
Ver PERELMAN, C., OLBRECHTS-TYTECA, L. Tratado da argumentação: a nova
retórica, p. 8.
238
tem um sentido restrito, ligado à demonstração369 daquilo que
se quer provar.
PERELMAN diferencia provas lógicas de provas
retóricas, distinção esta que poderá ser melhor compreendida
se antes fizermos um apanhado geral das noções perelmanianas
de
lógica
e
argumentação,
retórica,
por
outro:
por
a)
um
o
lado;
termo
e
demonstração
retórica
é
usado
e
por
PERELMAN para designar o que se poderia, também, chamar de uma
lógica
do
preferível
ou,
ainda,
uma
lógica
informal.
Ao
contrário da lógica tradicional, esta última não se preocupa
com a verdade abstrata, categórica ou hipotética, mas com a
adesão. Assim, a lógica opõe-se à retórica, pois naquela a
idéia
ou
a
opinião
que
o
auditório
tem
do
orador
não
é
importante para a avaliação das conclusões que este apresenta,
o mesmo não acontecendo com a retórica, em que se verifica uma
369
A lógica formal seria a lógica da demonstração; e a lógica informal
seria a lógica da argumentação. Note-se que apesar de distinguir
demonstração e argumentação, PERELMAN sustenta que deve haver uma relação
de complementaridade entre a teoria da argumentação e a teoria da
demonstração, sendo que ao invés de serem tidas como opostas, deveriam ser
consideradas como formas complementares de raciocínio, enquadrando-se na
idéia de racionalidade também o razoável: “... A lógica formal moderna
constituiu-se como o estudo dos meios de demonstração utilizados nas
ciências matemáticas. Mas o resultado foi a limitação de seu campo, pois
tudo quanto é ignorado pelos matemáticos é alheio à lógica formal. Os
lógicos devem completar a teoria da demonstração assim obtida com uma
teoria da argumentação. Procuraremos construí-la analisando os meios de
prova usados pelas ciências humanas, o direito e a filosofia; examinaremos
argumentações apresentadas pelos publicitários em seus jornais, pelos
políticos em seus discursos, pelos advogados em seus arrazoados, pelos
juízes em suas sentenças, pelos filósofos em seus tratados. Nosso campo de
estudos, que é imenso, ficou inculto durante séculos. Esperamos que nossos
primeiros resultados incentivem outros pesquisadores a completá-los e a
aperfeiçoá-los” (PERELMAN, C., OLBRECHTS-TYTECA, L. Obra citada, p. 11).
239
interação constante entre a pessoa do orador e o auditório
para o qual discorre; b) um outro traço distintivo da lógica
relativamente
à
retórica
é
que,
enquanto
na
primeira
se
raciocina sempre no interior de um sistema dado, supostamente
admitido,
numa
argumentação
retórica
tudo
pode
ser
sempre
recolocado em questão, pode-se sempre retirar a adesão: aquilo
a que se dá assentimento é um fato e não um direito, ou seja,
enquanto
a
argumentação
lógica
é
constringente,
forçosa
ou
necessária, a argumentação retórica é maleável, já que esta
pode ter mais ou menos força, ser mais ou menos plausível; c)
em terceiro lugar está a questão da amplitude da argumentação:
enquanto na lógica a prova de uma proposição dispensa e torna
supérfluas outras provas, na argumentação retórica nunca se
sabe,
antecipadamente
e
ao
certo,
qual
o
limite
para
a
acumulação útil de argumentos; d) em quarto lugar, enquanto na
demonstração a ordem pela qual são apresentados os axiomas e a
sucessão de etapas não é importante (desde que cada um dos
encadeamentos possa ser percorrido com a aplicação das regras
de inferência adotadas), já na argumentação a ordem pela qual
os
argumentos
se
apresentam
e
se
dispõem
é
de
máxima
importância para os efeitos por ela produzidos; e) Em quinto
lugar, enquanto na lógica é exigida uma definição precisa dos
termos
com
os
quais
se
opera,
as
noções
empregadas
na
argumentação retórica são sempre ambíguas e confusas; e f)
finalmente,
pode-se
dizer
que
o
que
constitui
a
diferença
240
essencial entre demonstração e argumentação é que o tempo não
desempenha qualquer papel naquela, enquanto na argumentação
ele é essencial.
A partir deste panorama, pode-se concluir que a
chamada
lógica
do
preferível
deve
abranger
um
espaço
mais
amplo que o da lógica tradicional. Para esta última, a prova é
a
operação
que
deve
levar
todo
o
espírito
normalmente
constituído, seja a reconhecer a verdade de uma proposição
(ponto de vista racionalista), seja a conformar a sua crença
ao fato (ponto de vista empirista). Quer numa quer noutra
destas
concepções
elemento
objetivo
toda
e
de
a
prova
uma
supõe
a
faculdade
existência
—
a
de
razão
ou
um
a
sensibilidade — comum a todos os homens e que lhes permitiria
reconhecer de forma indubitável as verdade e os fatos. Assim,
segundo as concepções clássicas, a prova deve ser necessária e
possuir
uma
validade
universal.
Dito
de
outra
forma,
toda
prova é redução à evidência e o que é evidente não teria
necessidade de prova.
No caso da lógica retórica, ao contrário, a
“...própria natureza da deliberação e da argumentação se opõe
à necessidade e à evidência, pois [repita-se] não se delibera
241
quando a solução é necessária e não se argumenta contra a
evidência”.370
Assim,
a
lógica
tradicional
deve
ser
complementada pelos argumentos retóricos (dialéticos), que são
necessários
princípios
porque,
quando
e
se
conforme
Analíticos,
os
a
trata
já
discussão
de
discutir
ensinava
princípios
remonta
esses
a
princípios.
ARISTÓTELES
não
são
questões
nos
passíveis
de
Isso
Segundos
de
ser
demonstrados, conforme notícia BERTI:
“
... Aristóteles observa que não é possível dar
demonstração dos princípios, porque demonstrar significa
mostrar a necessidade de uma conclusão a partir de
alguns
princípios,
e
se
também
estes
fossem
demonstráveis então já não seriam princípios, mas em
seguida exigiriam outros princípios a partir dos quais
pudessem ser demonstrados, produzindo, desse modo, um
processo ao infinito que jamais levaria aos princípios
autênticos e, por isso, destruiria toda demonstração
possível. Portanto, deve-se admitir que, se a ciência
existe, isto é, se existem as demonstrações, deve haver
um saber dos princípios, que não é de tipo demonstrativo
mas — como Aristóteles diz explicitamente — uma ‘ciência
an-apodítica’, mas propriamente ‘princípio da ciência’ e
que tem por objeto os princípios indemonstráveis, em
particular as definições (1 3, 72b 18-25).”371
Deve-se recorrer, portanto, à provas dialéticas
ou retóricas quando os princípios deixam de ser considerados
como evidentes e é necessário proceder o restabelecimento de
critérios cuja validade se tornou discutível.
370
371
PERELMAN, C., OLBRECHTS-TYTECA, L. Idem, p. 1.
BERTI, Enrico. As razões de aristóteles, p. 11-12.
242
Essas provas dialéticas, aduz GRÁCIO, operam da
seguinte forma:
“
Os meios de prova utilizados na argumentação
retórica não são demonstrações, mas justificações. Eles
não visam a imposição de uma certeza indubitável, mas a
obtenção de adesão. A prova é, assim, organizada por um
conjunto
de
processos
que
tendem
a
enfatizar
a
plausibilidade de uma tese que se defende, mas que nem
por isso exclui, antes pressupõe, a possibilidade de
outras teses eventuais. A prova exerce o seu poder pela
força do melhor argumento (e do ponto de vista da
argumentação retórica os argumentos não são qualificados
como corretos ou incorretos, mas como fortes ou fracos,
mais ou menos pertinentes, mais ou menos convincentes),
pela motivação racional que acompanha a apresentação da
tese que se defende e que é vinculadora e comprometedora
do agente que, escolhendo e decidindo, se justifica,
apresentando razões. A prova não é então, apenas, o
exercício de uma razão pura e calculadora que, com a sua
operacionalidade
imutável
e
na
sua
funcionalidade
impessoal e an-histórica, opera. O ato da prova é,
antes, indissociável de uma dimensão referencial que
remete para as condições concretas do emprego da
linguagem natural, que é moldada por elas e que se joga
no espaço de ambigüidade das expressões, na dimensão
confusa e vaga das noções utilizadas e na possibilidade
permanente de interpretações múltiplas — é que, nota
Perelman, ‘a necessidade de interpretar apresenta-se,
pois, como a regra, constituindo a eliminação de toda a
interpretação uma situação excepcional e artificial’.
Trata-se, portanto, de uma prova a realizar nas e para
as situações concretas a partir das quais se elabora e
relativamente às quais se apresenta como a justificação
razoável de uma opção. Como escreve o filósofo de
Bruxelas, ‘a possibilidade de se conferir a uma mesma
expressão sentidos múltiplos, por vezes inteiramente
novos, de recorrer a metáforas, a interpretações
controversas, está ligada às condições de emprego da
linguagem natural. O fato desta recorrer freqüentemente
a noções confusas, que dão lugar a interpretações
múltiplas, a definições variadas, obriga-nos muito
freqüente a realizar escolhas, decisões, não necessariamente coincidentes. Donde a obrigação, bem
freqüente, de justificar esta escolha, de motivar estas
decisões’.”372
372
GRÁCIO, R. A. Obra citada, p. 78-79.
243
A
concepção
perelmaniana
de
argumentação
e
prova retórica admite que o pensamento possa ser exercido de
uma
forma
não
necessária
sem
deixar
de
ser
racional;
uma
racionalidade que tem como característica a continuidade, a
atenção aos precedentes, a justificação do novo a partir de
uma referência ao pré-existente, daí porque o alargamento da
noção de razão implica a necessidade de alargamento da noção
de
prova;
e
disso
tudo
decorrem
as
seguintes
palavras
de
PERELMAN e TYTECA já no final do Tratado:
“
... Esperamos que nosso tratado provocará uma
salutar reação e que sua simples presença impedirá,
futuramente, que se reduzam todas as técnicas da prova à
lógica formal e que se veja na razão apenas uma
faculdade calculadora.”373
É contra essa noção de razão reduzida à lógica
formal
que
deve
se
situar
o
ponto
de
vista
retórico
em
filosofia, introduzindo a dimensão contextual do auditório e o
grau de adesão que uma tese filosófica suscita ou não. Este
fato
conduz,
no
entanto,
a
outras
dificuldades,
dada
a
diversidade cultural ou disciplinar dos auditórios, os seus
níveis
de
especialidade
ou
a
sua
composição
psicológica
e
sociológica. Encontramos aqui um primeiro impasse que, segundo
Manuel Maria CARRILHO, foi reconhecido por PERELMAN:
“
...‘como sair do impasse que surge, para o discurso
filosófico, com a infinita variedade dos auditores a que
este discurso é suposto dirigir-se?’ A resposta de
373
PERELMAN, C., OLBRECHTS-TYTECA, L. Obra citada, p. 576.
244
Perelman passa por uma outra concepção da razão, pensada
não à imagem das faculdades mas do auditório, de um
auditório que, todavia, só pode evitar o impasse
assinalado qualificando-se através de um recurso afinal
semelhante ao das filosofias clássicas: surge assim o
auditório universal, que se considera ‘englobar todos os
homens razoáveis e competentes nas questões em debate.
Qualquer
discurso
filosófico
deve
esforçar-se
por
convencer um tal auditório’.”374
A
noção
de
auditório
universal,
conforme
noticia GRÁCIO, surgiu da seguinte maneira no pensamento de
PERELMAN:
“
...lecionava, então, um curso de história da
filosofia e ao chegar ao período medieval constatou que
as duas principais obras de S. Tomás de Aquino, a Summa
Theologica e a Summa Contra Gentiles, expressavam,
essencialmente, as mesmas idéias e, todavia, eram
profundamente
diferentes
no
que
diz
respeito
ao
auditório a que se dirigiam. A primeira das obras era
escrita para teólogos; a segunda, contra aqueles que não
acreditavam na Igreja. E verificou que este último era
um livro de filosofia porque se dirigia a pessoas cujos
compromissos ou crenças específicas não eram tomados
como pressupostos necessários para a aceitação da
argumentação desenvolvida. A argumentação de S. Tomás
fazia exclusivamente apelo à razão. A quem se dirigia,
então, a obra? Escreve Perelman: ‘Havia um apelo a
qualquer ser racional que lesse o seu livro. Portanto,
chamei-lhe auditório universal, não porque toda a gente
o fosse ler’ mas porque ‘não havia crenças e valores
particulares aos quais ele pudesse apelar. Ele fazia
apenas apelo àquilo que poderia ou seria admitido por
todos’.”375
O
auditório
universal
é,
portanto,
uma
construção ideal elaborada em função de um discurso que aspira
ao consenso de todas os homens racionais acerca do que é dito
neste discurso, porém não se trata de um conceito puramente
374
375
CARRILHO, Manoel Maria. Jogos de racionalidade, p. 66-67.
GRÁCIO, R. A. Obra citada. p. 90.
245
abstrato e atemporal, posto que a construção imaginária que o
orador faz de um tal auditório deve levar em conta um acordo
prévio que parte de um senso comum historicamente situado:
“
... Ainda que a argumentação racional vise o
auditório universal, é preciso notar, contudo, que este
auditório não é imutável. Os lugares a partir dos quais
se raciocina variam no tempo. Por isso escreveu Perelman
que: ‘toda a argumentação, qualquer que ela seja,
propõe-se influenciar um auditório — no sentido lato
deste termo, que engloba não apenas os auditores mas
também os leitores — e este auditório não é uma tábula
rasa, mas admite já certos fatos, certas presunções,
certos valores e certas técnicas argumentativas. Isto
vale para todo o auditório e, portanto, igualmente para
aquele que deve, aos nossos olhos, incarnar a razão.”376
O
auditório
universal
tem,
portanto,
as
seguintes características: a) é um conceito limite, no sentido
de que a argumentação ante o auditório universal é a norma da
argumentação objetiva; b) dirigir-se ao auditório universal é
o que caracteriza a argumentação filosófica; c) o auditório
universal não é um conceito empírico, pois o acordo de um
auditório universal não é uma questão de fato, mas sim de
direito377; d) o auditório universal é ideal no sentido de que
376
GRÁCIO, R. A. Idem, p. 92-93.
Segundo PERELMAN, os filósofos, ao buscarem o acordo do auditório
universal, sempre se dirigem a ele, “...não por esperarem obter o
consentimento efetivo de todos os homens — sabem muito bem que somente uma
pequena minoria terá um dia a oportunidade de conhecer seus escritos —, mas
por crerem que todos os que compreenderem suas razões terão de aderir às
suas conclusões. O acordo de um auditório universal não é, portanto, uma
questão de fato, mas de direito. É por se afirmar o que é conforme a um
fato objetivo, o que constitui uma asserção verdadeira e mesmo necessária,
que se conta com a adesão daqueles que se submetem aos dados da experiência
ou às luzes da razão” (PERELMAN, C., OLBRECHTS-TYTECA, L. Tratado da
argumentação: a nova retórica, p. 35). O acordo de um auditório universal,
portanto, não é uma questão de fato, pois, ainda segundo PERELMAN: “Um fato
é aquilo que se impõe a todos; nenhuma autoridade pode nada contra ele.
377
246
está formado por todos os seres de razão, mas por outro lado é
uma
construção
do
orador
(ou
seja,
não
é
uma
entidade
objetiva), isso significa dizer que não só diversos oradores
constroem diversos auditórios universais, como também que o
auditório universal de um mesmo orador pode ser alterado.
Uma
das
funções
que
o
auditório
universal
possui é a de tornar possível a distinção entre persuadir e
convencer. Uma argumentação persuasiva, segundo PERELMAN, é
aquela que vale somente para um auditório particular, enquanto
uma argumentação convincente é a que se pretende válida para
todo o ser de razão.378
Portanto, tornar algo, que deveria ser independente da pessoa, dependente
da qualidade de quem o afirma, é abalar esse estatuto de fato. Lembremos
(...) a célebre anedota do mágico, favorito de um rei, a quem presenteou
vestimentas que, dizia ele, só eram vistas por homens moralmente
irrepreensíveis. Nem o rei nem os cortesãos ousam confessar que nada vêem,
até o momento em que um menino, em sua inocência, exclama: ‘Por que o rei
está correndo inteiramente nu?’ Estava quebrado o encanto. O prestígio do
mágico era suficiente para atribuir à percepção o valor de um critério de
moralidade, até o momento em que a inocência incontestável do menino
destruiu o crédito do mágico.
Se é inegável que os fatos e as verdades escapam, enquanto são
reconhecidos como tais, ao domínio da argumentação (...), quando se poderá
dizer que se está diante de um fato ou de uma verdade? É isso que acontece
[está-se diante de um fato ou verdade] (...) enquanto o enunciado é
considerado válido para um auditório universal” (PERELMAN, C., OLBRECHTSTYTECA, L. Idem, 356).
Sendo assim, ainda de acordo com PERELMAN, fatos e verdades estão
próximos, pois: “Aplicamos, ao que se chamam verdades, tudo o que acabamos
de dizer dos fatos. Fala-se geralmente de fatos para designar objetos de
acordo precisos, limitados; em contrapartida, designar-se-ão de preferência
com o nome de verdades sistemas mais complexos, relativos a ligações entre
fatos, que se trate de teorias científicas ou de concepções filosóficas ou
religiosas que transcendem a experiência” (PERELMAN, C., OLBRECHTS-TYTECA,
L. Idem, p. 77). Portanto, tanto os fatos quanto as verdades não são
independentes do auditório a que estão submetidos, dependem de critérios
relacionados com o auditório.
378
Diz PERELMAN: “Propomo-nos chamar persuasiva a uma argumentação que
pretende valer só para um auditório particular e chamar convincente àquela
247
Enfim,
a
argumentação,
diferentemente
da
demonstração, está bastante ligada à ação. A argumentação é,
na realidade, uma ação — ou um processo — com a qual se
pretende obter um resultado, que é o de alcançar a adesão do
auditório,
mas
prescindindo
desde
portanto
que
do
seja
uso
através
da
da
violência
linguagem,
física
ou
psicológica.
Por outro lado, a proximidade com a prática de
que goza a argumentação não faz com que a mesma tenha que ser
dotada de objetividade, mas sim de imparcialidade.379
Seja como for, é bom repetir que o auditório
universal não é um ente inteiramente abstrato, independente de
critérios
demais
temporais.
auditórios
O
auditório
particulares,
universal,
é
também
assim
um
como
os
auditório
que deveria obter a adesão de todo ser racional” (PERELMAN, C., OLBRECHTSTYTECA, L. Idem, p. 31). PERELMAN exemplifica um argumento que teria valor
(seria rapidamente eficaz, persuasivo) apenas no âmbito de um auditório
particular, mas que de nada prestaria para o convencimento, ou seja, para o
caso de o argumento ser dirigido ao auditório universal: “Eis um exemplo
muito simples. Seremos onze ao almoço. A empregada exclama: ‘Oh! Isso dá
azar!’ Apressada, a patroa responde: ‘Não, Marie, você está enganada: treze
é que dá azar.’ O argumento não tem réplica e termina imediatamente o
diálogo. Essa resposta (...) não questiona nenhum interesse pessoal da
empregada, mas baseia-se no que esta admite. Mais rapidamente eficaz do que
seria uma dissertação sobre o ridículo das superstições, ela permite
argumentar no âmbito do preconceito, ao invés de combatê-lo” (PERELMAN, C.,
OLBRECHTS-TYTECA, L. Idem, p. 125).
379
Ser imparcial não é o mesmo que ser objetivo, é se incluir no mesmo
grupo daqueles a quem se julga, sem que se tome partido de antemão em favor
de nenhum deles. A noção de imparcialidade, portanto, está bem próxima à
regra de justiça (ser imparcial também significa que, diante de
circunstâncias análogas, deva-se agir da mesma forma) e mesmo com a noção
de auditório universal (os critérios seguidos teriam que ser válidos para
os seres de razão.
248
concreto, que se modifica no tempo a partir da idéia que dele
faz o orador. É por isso que PERELMAN afirma que:
“
...para o filósofo, a racionalidade é vinculada a
valores que ele quereria não só comuns, mas também
universalizáveis, almejando que pudessem obter a adesão
do auditório universal, ou seja, composto de todos os
homens a um só tempo razoáveis e competentes. Mas,
jamais estando seguro da universalidade de suas normas e
de seus valores, o filósofo deve estar sempre pronto
para ouvir as objeções, que se lhe poderiam opor, e para
levá-las em conta, se não tem condições de refutá-las. O
diálogo deve ser aberto, pois as teses que ele avança
nunca pode considerá-las definitivas. Se, em direito, a
necessidade de estabelecer uma ordem exige que certas
autoridades
tenham
o
poder
de
decisão
[caráter
institucionalizado da argumentação em direito], o mesmo
não se dá em filosofia. Não existe, em filosofia,
autoridade que possa conceder a certas teses o estatuto
da coisa julgada.”380
A partir de todas essas noções é que PERELMAN
descreverá
uma
interagir
para
série
que
de
técnicas
uma
argumentativas
argumentação
não
que
seja
devem
apenas
persuasiva, mas seja sobretudo convincente. Neste sentido o
auditório
universal
racionalidade
se
torna
argumentativa,
o
uma
ponto
idéia
de
justificações que se fizerem necessárias.
380
PERELMAN, C. Ética e direito, p. 385-386.
reguladora
referência
para
da
as
249
3.3 Teoria da Argumentação como Racionalidade Possível
Não cabe neste momento analisar todas aquelas
técnicas
argumentativas
descritas
por
PERELMAN
no
Tratado,
pois já se pode enfrentar o problema formulado no início deste
capítulo,
assim
sintetizado:
é
possível
justificar
racionalmente as decisões a ser tomadas em casos difíceis,
isto
é,
não
admitir
a
irracionalidade
que
dá
azo
à
arbitrariedade? Se a resposta for afirmativa, de que forma
isso ocorre?
Como visto, a resposta à primeira questão só
pode
ser
afirmativa
se
ampliarmos
(ou
se
se
quiser,
debilitarmos) o conceito da lógica dedutiva clássica.381 Essa
idéia de que existe uma racionalidade possível entre a lógica
formal, por um lado; e a arbitrariedade total, por outro,
talvez seja a grande contribuição de PERELMAN ao debate atual,
posto
que
o
seu
pensamento382
ajudou
sobremaneira
na
reabilitação da razão prática — a aceitação de algum tipo de
racionalidade nas discussões relativas à moral, ao direito, à
política,
381
entre
outras
—
e
tem
sido
considerado
como
o
Argumentar racionalmente, isto é, passar com fundamentos de umas
proposições a outras, não é o mesmo que — ou não é só — deduzir.
382
Juntamente com o pensamento a partir de problemas, inaugurado por
Theodor VIEHWEG também na década de 1950.
250
precursor das atuais tentativas de se formular uma teoria da
argumentação jurídica.383
Com
PERELMAN
ao
âmbito
efeito,
a
pragmático
importância
da
linguagem
conferida
(o
por
objetivo
da
argumentação é persuadir), ao contexto social e cultural em
que
se
desenvolve
a
argumentação,
ao
princípio
da
universalidade (regra de justiça) e às noções de acordo e de
auditório
(em
especial
elementos
essenciais
de
a
de
auditório
outras
teorias
universal)
da
antecipam
argumentação
que
hoje centram o debate concernente à razão prática.384
Portanto, o grande mérito da teoria de PERELMAN
foi o de ter respondido sim à indagação sobre se é possível
uma
racionalidade
intermediária
à
razão
teórica
e
a
irracionalidade, sendo que a partir dessa resposta afirmativa
iniciou-se a tarefa desde então incessante de se buscar um
método de como justificar racionalmente as decisões, ou seja,
a
tentativa
de
se
estabelecer
uma
teoria
da
argumentação
jurídica.
383
384
Especialmente as teorias de Neil MACCORMICK e Robert ALEXY.
A propósito disso basta mencionar as semelhanças existentes entre a
noção de auditório universal e a de comunidade ideal de diálogo
habermasiana, ainda que este não seja o único ponto de coincidência entre
PERELMAN e HABERMAS (cf. ALEXY, Robert. Teoría de la argumentación
jurídica: la teoría del discurso racional como teoría de la fundamentación
jurídica, p. 156 e ss.).
251
Neste ponto a teoria de PERELMAN, embora tenha
fornecido várias noções que têm sido utilizadas por aqueles
que
lhe
sucederam,
trouxe
alguns
critérios
que
têm
sido
considerados confusos ou insuficientes, como, por exemplo, a
própria idéia de auditório universal como idéia reguladora da
racionalidade argumentativa, em que o intérprete não poderá
decidir inspirado na sua visão subjetiva (discricionariedade),
mas sim buscando uma solução que seria aceitável tanto pelos
membros esclarecidos da sociedade em que vive quanto pelas
opiniões
e
tradições
dominantes
em
seu
meio
profissional
(princípio da inércia).
Porém diante dos casos difíceis em que, por
definição,
a
opinião
pública
(esclarecida
ou
não)
está
dividida a tal ponto que não se possa encontrar uma solução
que seria convincente para o ideal de auditório universal,
qual seria, então, a decisão razoável?385
Vale
argumentação
que
dizer
vieram
que
mesmo
depois
nas
teorias
(algumas
até
da
muito
sofisticadas) esta continua a ser uma questão aberta. Ademais
quase
385
todos
os
teóricos
têm
recorrido,
para
a
solução
do
CANARIS é mais agudo na crítica, pois segundo ele “...torna-se, com
isso, claro que a tópica desconhece, no fundamental, a essência da Ciência
do Direito. Pois não se determina qual seja o Direito vigente ou qual o
ponto de vista vinculativo, em regra, através do ‘common sense’ ou da
‘opinião de todos ou da maioria ou dos mais sábios’, mas antes através do
Direito objetivo” (CANARIS, Claus-Wilhelm. Pensamento sistemático e
conceito de sistema na ciência do direito, p. 260).
252
problema, não a instâncias reais, mas sim a instâncias ideais,
como por exemplo “...o espectador imparcial de Adam Smith a
quem apela MacCormick, o juiz Hércules de Dworkin, o auditório
universal de Perelman ou a comunidade ideal de diálogo de
Habermas”386,
que,
respectivamente,
entendem
que
a
resposta
correta seria aquela a que chegaria um ser racional, ou o
conjunto de todos os seres racionais, ou os seres humanos à
medida em que respeitassem as regras do discurso racional.
Tais constatações, no entanto, não podem levar
à conclusão de que a formulação de uma teoria da argumentação
é
uma
tarefa
impossível
ou
até
mesmo
inútil.
O
que
essas
constatações demonstram é que também a racionalidade prática
sofre limitações, as quais no entanto nunca foram omitidas.
Com efeito já se vê no pensamento de PERELMAN
que deve haver uma complementaridade entre as razões teórica e
prática387, que aquilo que já está estabelecido só pode ser
alterado
386
através
de
justificações
racionais
(que
não
podem
RODRIGUEZ, Manuel Atienza. Tras la justicia: una introducción al derecho
y al razonamiento jurídico, p. 136.
387
“... A teoria da argumentação se move (...) no terreno do discurso, mas
a racionalidade é uma capacidade — ou um método — que deve nos permitir
resolver ou enfrentar problemas que vão além do discurso. Se necessitamos
da racionalidade, basicamente é para que possamos enfrentar os problemas
relativos à compreensão do mundo (problemas de conhecimento) e também como
atuar diante deles (problemas práticos). Ora, em todo o problema
cognoscitivo ou prático subjaz uma dimensão lógica — uma dimensão
argumentativa — pelo que se pode afirmar que a racionalidade lógica é o
nível mais básico de racionalidade e que tem um caráter instrumental em
relação à racionalidade teórica e à racionalidade prática” (RODRIGUEZ,
Manuel Atienza. Contribución a una teoría de la legislación, p. 85-86).
253
violar, por exemplo, a lógica formal388} que se dão através da
argumentação. Com efeito, aduz GRÁCIO:
“
... Argumentar representa sempre uma ruptura com a
inércia em que se estabiliza o senso comum e que
determina o racional como normalidade. Mas esta ruptura
não
é
radical,
nem
se
apresenta
com
tendências
solipsistas. Representa, pelo contrário, um desafio que
se lança e se repercute na emergência da necessidade de
justificação do que permanecia não justificado porque
até então não discutido.”389
A submissão ao princípio de inércia (que de uma
maneira ou de outra também é admitida pelas demais teorias da
argumentação)
tem
sido
acusada
de
ser
uma
postura
conservadora, dado que os “...mais significativos avanços no
pensamento
sobre
intelectual
fatos
e
se
questões
caracterizam
que
antes
pela
eram
(...)
crítica
considerados
sem
importância, desonestos ou evidentes por si mesmos”.390
No entanto essas críticas se esquecem que as
teorias
da
argumentação
nunca
absolutizaram
os
valores
estabelecidos, apenas exigem uma justificação para a mudança,
o que só pode ocorrer, se se quiser repudiar a arbitrariedade
e
a
força,
argumentação
388
através
que
da
permite
argumentação.
a
crítica
É
justamente
daquilo
que
a
está
“...uma decisão jurídica tem (...) que estar justificada internamente,
[sendo que] a justificação interna é independente da justificação externa,
no sentido de que a primeira é condição necessária, mas não suficiente,
para a segunda” (RODRIGUEZ, Manuel Atienza. Las razones del derecho:
teorías de la argumentación jurídica, p. 137).
389
GRÁCIO, R. A. Obra citada, p. 94.
390
FRANK, Jerome. Derecho y incertidumbre, p. 24.
254
estabelecido,
donde
a
ruptura
com
o
passado
ocorre
numa
situação de consenso.
Por
imposição
julgam
—
muitas
possuir
o
outro
lado,
vezes
porque
conhecimento
da
as
mudanças
aqueles
verdade
operadas
que
—
as
é
por
impõem
que
se
levam
à
arbitrariedade e que são, portanto, irracionais.
Neste ponto chega-se a outra limitação, que na
verdade é uma condição de existência, da proposta defendida
pelas teorias da argumentação: é que só é possível falar em
argumentação no quadro de um regime democrático, ou seja, num
ambiente em que a maioria dita o compromisso com um consenso,
compromisso este que só encontra firmeza e confiabilidade se
for fundado numa comunhão de valores, começando pelo próprio
reconhecimento universal do valor de democracia; ou, conforme
salienta HOBSBAWM:
“
... O sistema democrático não funciona se não há um
consenso básico entre a maioria dos cidadãos sobre a
aceitabilidade de seu Estado e sistema social, ou pelo
menos uma disposição de negociar acordos consensuais.”391
Há
ainda
outras
limitações,
posto
que
na
prática a adoção de decisões jurídicas mediante instrumentos
argumentativos
391
não
esgota
o
fundamento
do
direito,
que
HOBSBAWM, Eric. Era dos extremos: o breve século xx: 1914-1991, p. 139.
Segundo HOBSBAWM, ainda, consensos tais são muito facilitados pela
prosperidade, sendo mais difíceis, portanto, em épocas de carestia.
255
consiste também na utilização de instrumentos burocráticos e
coercitivos.392
A
tentativa
de
se
formular
uma
teoria
da
argumentação jurídica, como visto, é algo bem recente, de modo
que,
a
exemplo
do
que
foi
exposto
acima,
há
ainda
várias
aporias por ser enfrentadas e quem sabe superadas, ou seja,
existe
um
grande
trabalho
pela
frente,
principalmente
se
concebermos a teoria da argumentação não apenas como um campo
do saber que descreve os modos pelos quais as argumentações se
desenrolam, mas que tenha também um caráter prescritivo, que
diga o que é ou não correto, o que pode e o que não pode,
enfim,
que
auxilie
na
tarefa
de
controle
das
decisões
jurídicas, cuja discricionariedade, se não pode ser suprimida
em alguns casos, pode e deve ser reduzida.
Para
próprio
objeto
argumentação
de
tanto
será
necessária
a
ampliação
do
que
têm
se
ocupado
as
teorias
da
existentes,
que
se
prendem
a
questões
de
aplicação do direito aos casos difíceis e, em decorrência, na
392
Há quem sustente, como Hannah ARENDT, que onde se admite o uso da força
não há espaço para a argumentação, “...visto que a autoridade sempre exige
obediência, ela é comumente confundida com alguma forma de poder ou
violência. Contudo, a autoridade exclui a utilização de meios externos de
coerção; onde a força é usada, a autoridade em si mesma fracassou. A
autoridade, por outro lado, é incompatível como a persuasão, a qual
pressupõe igualdade e opera mediante um processo de argumentação. Onde se
utilizam argumentos, a autoridade é colocada em suspenso. Contra a ordem
igualitária da persuasão, ergue-se a ordem autoritária, que é sempre
hierárquica” (ARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro, p. 129).
256
análise
dos
argumentos
que
se
produzem
na
interpretação
e
aplicação do direito e na elaboração da dogmática jurídica.
Com
ocupado,
quase
efeito,
que
as
teorias
exclusivamente,
existentes
com
questões
têm
do
se
tipo
normativo, deixando de fora a maior parte das argumentações
produzidas fora dos tribunais superiores393, além de excluírem
da análise, também, as argumentações que têm lugar no âmbito
da
produção
das
leis.
Ora,
se
a
teoria
da
argumentação
jurídica pretende introduzir algum tipo de pauta que permita
controlar o uso dos instrumentos jurídicos, parece claro que
esse
controle
também
deva
ser
estendido
aos
momentos
de
produção das provas e das normas.
Todas estas observações confirmam que há ainda
um longo caminho a ser trilhado pela teoria da argumentação.
Até agora seus esforços tinham sido direcionados quase que por
completo na tarefa de mostrar que existe sim uma racionalidade
prática
complementar
encontrar
a
forma
à
racionalidade
através
da
qual
se
teórica.
Cabe
agora
poderá
aplicar
essa
racionalidade satisfatoriamente, o que implicará, inclusive, a
ampliação do próprio âmbito de análise de que tradicionalmente
as teorias da argumentação têm se ocupado. O desenvolvimento
de
393
uma
teoria
da
argumentação
é,
talvez,
um
dos
maiores
Que envolvem argumentações sobre fatos, cuja importância, como visto,
foi aventada por FRANK, porém, de certa forma, até agora negligenciada.
257
desafios
que
o
pensamento
jurídico
deverá
enfrentar,
tarefa a desempenhar, neste século que se inicia.
como
258
CONCLUSÃO
A
teoria
não
pode
estar
desacompanhada
da
prática, sob pena de se limitar a problematizações improfícuas
e sem qualquer alcance da realidade. Da mesma forma, a prática
não tem vitalidade sem fundamentação teórica.
Através da evolução das sociedades, quanto mais
complexas
suas
estudo
o
e
organizações,
debate
da
teoria
tanto
do
mais
se
direito,
faz
que
premente
o
fundamenta
e
auxilia na regulamentação da vida destas sociedades interna e
externamente.
A filosofia política, a partir de MAQUIAVEL,
mostra que na prática política as prioridades e até mesmo os
princípios podem ser negociados. Porém, há uma conquista da
atualidade
que,
enquanto
nada
melhor
for
concebido
para
substituí-la, de modo algum pode ser negociada: a democracia.
Nas sociedades contemporâneas a democracia é
praticada e vem sendo aperfeiçoada na construção histórica que
formou os Estados Democráticos de Direito.
Não é possível se falar em Estado democrático
sem a presença do direito. É o Estado de direito o garantidor
da
democracia
e
fora
dele
a
proximidade
com
a
barbárie
é
gritante.
As possibilidades de se falar na construção de
uma
teoria
da
argumentação
só
têm
lugar
em
ambientes
259
democráticos,
em
que
haja
espaço
para
o
convencimento,
a
mudança de rumos ditada por acordos e não pela violência ou
imposições injustificadas.
Dentro do âmbito democrático — que é vulnerável
em qualquer sociedade — uma teoria da argumentação jurídica
pode ser desenvolvida para fazer frente à perplexidade causada
pelo ceticismo do positivismo jurídico.
Ora, será que a razão é deficiente justamente
quando
se
trata
de
encontrar
uma
solução
aos
problemas
jurídicos em que mais se necessita de seu auxílio? Ora, os
casos
difíceis
invariavelmente
requerem,
para
que
sejam
solucionados, a opção dentre dois ou mais valores caros à
sociedade, os quais são em geral especialmente tutelados pelos
ordenamentos jurídicos existentes.
Por
exemplo,
quando
direitos
fundamentais
entram em conflito, com a exigência da aplicação de uns em
detrimento de outros, está-se diante de um caso difícil que
certamente exigirá uma justificação externa pelo órgão que tem
o dever de resolver o problema. E, na linha das observações
acima, justamente nesses casos, que são os mais importantes e
polêmicos em face dos interesses em jogo, a razão se torna
insuficiente?
O
argumentação,
PERELMAN,
em
desenvolvimento
cujas
que
se
bases
aceita
pioneiras
a
de
uma
foram
ampliação
dos
teoria
da
propostas
por
horizontes
do
260
raciocínio para além da lógica clássica, pode contribuir muito
na
tarefa
de
se
reduzir
aquela
perplexidade
trazida
pelo
ceticismo.
Não se pode, em direito, simplesmente suspender
o juízo e acatar pacificamente que nada pode ser solucionado,
ou melhor, que a tarefa de se buscar uma solução correta é
totalmente inglória. É necessário dar solução aos conflitos
existentes.
Ora, se isso é necessário, devemo-nos esforçar
para
eliminar,
o
máximo
possível,
as
possibilidades
de
arbítrio daqueles que têm por missão decidir. Para tanto, uma
teoria
da
argumentação
poderá
fixar
regras
de
caráter
negativo: quando uma decisão deve ser tida por não justificada
e, por isso mesmo, inaceitável. Na base de tudo deve estar a
sua conformidade com as regras clássicas de raciocínio, que
não
podem
ser
descartadas.
Mas
quando
essas
regras
são
insuficientes, quando se exige uma justificação externa em que
haverá um forte componente moral na decisão, como se encontrar
um critério de racionalidade? Aqui igualmente uma teoria da
argumentação
envolvem
poderá
regras
de
fornecer
caráter
alguns
negativo:
caminhos,
uma
que
decisão
também
deve
ser
coerente, atender aos precedentes ou dar boas razões no caso
de não aplicá-los, entre outras.
Todas essas regras podem ser aplicadas, no caso
de controle das decisões judiciais, por algum órgão criado
261
exatamente para coibir decisões manifestamente injustificadas:
se a decisão dada pelo juiz ou o tribunal não atender às
regras
básicas
determinação
a
de
ser
tomada
estipuladas
de
uma
deve
nova
ser
decisão.
possível
No
Brasil
a
é
urgente a necessidade de se criar um órgão de controle, seja
ele interno ao próprio judiciário (um conselho geral como há
em outros países) ou externo.
Para
este
mister
a
teoria
da
argumentação
jurídica também pode ser útil, pois, dada a sua importância,
não pode e não deve se ocupar — como tem ocorrido — apenas de
casos difíceis no âmbito de conflitos que se desenvolvem nas
lides
judiciais.
Ora,
uma
tal
teoria
pode
dar
boas
contribuições na hora de se criar leis, sejam aquelas de ordem
processual que venham a estabelecer, a par das já existentes,
novas regras que se preocupam com o grau de racionalidade das
decisões, sejam elas de ordem geral, ou seja, que controlem a
racionalidade
das
opções
legislativas.
Neste
também se aventurar as teorias da argumentação.
âmbito
devem
262
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