Um escrit não pode Mas eles p uma marg de não co

Transcrição

Um escrit não pode Mas eles p uma marg de não co
Luis Buñuel – Vida e Obra
Ferreira, Leonardo Luiz; Palma, Sylvia (orgs.)
1ª Edição
Agosto de 2016
ISBN 978-85-66110-28-9
Coordenação editorial & Revisão de textos
Leonardo Luiz Ferreira
Capa & Projeto gráfico
Guilherme Lopes Moura
Distribuição gratuita. Venda proibida.
É com grande honra que a CAIXA apresenta a mostra Luis Buñuel – Vida
e Obra. Roteirista, ator e diretor, Buñuel é um dos maiores ícones do cinema e
suas obras contribuíram imensamente com a renovação da linguagem cinematográfica. Desde o lançamento de seu primeiro curta-metragem, Um Cão Andaluz, já causou polêmica com imagens oníricas e surrealistas. Ele se manteve ativo até os 83 anos de idade, com uma filmografia repleta de obras-primas.
Os projetos que ocupam os espaços da CAIXA Cultural são escolhidos através de seleção pública, uma opção da CAIXA para tornar mais democrática e
acessível a participação de produtores e artistas de todo o país.
Sempre com o intuito de promover a pluralidade de ideias e democratizar o
acesso do grande público a produções artísticas de relevância histórica e contemporânea, a CAIXA reafirma seu compromisso com a cidadania, a cultura e
o desenvolvimento do país. É por isso que a CAIXA é reconhecida como uma
das principais patrocinadoras de projetos culturais em todo o território nacional, porque a vida pede mais que um banco.
Caixa Econômica Federal
A mostra Luis Buñuel – Vida e Obra nasceu na minha cabeça quando, aos
18 anos, assisti no Cinema Leblon ao filme Esse Obscuro Objeto do Desejo. Acabara de chegar ao Rio de Janeiro e na segunda sessão de cinema na Cidade
Maravilhosa me vi arrebatada pela narrativa pungente e avassaladora de um
homem de meia-idade obcecado de paixão por uma jovem e fugidia virgem.
O filme parecia falar comigo com tal intimidade que me dispus a assistir tudo
o que o diretor tinha feito na vida, sem saber que aquele longa-metragem seria seu último trabalho.
Percorrendo novamente essa trajetória que nasceu há muitos anos, fui me
surpreendendo maravilhada com a contemporaneidade do cinema de Luis
Buñuel, com sua genialidade ao narrar uma história sempre instigante que
dialoga com uma estética única, híbrida, quase inclassificável dentro de uma
só escola ou estilo.
Original, iconoclasta, rigoroso e detalhista, o cinema de Luis Buñuel nos leva
a uma viagem vertiginosa pelo universo do improvável, mas possível. As repetições, as interrupções, o distanciamento, o engajamento de histórias aparentemente díspares, a linha tênue que estabelece entre o real e o surreal, entre a
vida e o sonho, entre o desejo e a frustração, entre o sacro e o profano, criando
círculos — uma teia — capazes de nos enredar de tal forma dentro da narrativa, que nunca concluímos totalmente aquela tessitura de imagens e sons. Ela
continua para além do cinema, em nossas cabeças, reverberando em nossos
pensamentos, buscando sentidos, formulando reflexões, abrindo caminhos.
Muitas vezes, me peguei perplexa ao desvendar o poder incomensurável
de suas personagens femininas, o “empoderamento”, para usar uma palavra
atual, de suas Conchita, Viridiana, Tristana, Andara, Beatriz, Suzana, Paloma,
Meche, Albina, Raquel, Lavínia, La Belle de Jour, entre outras. Vi-me rindo dos
fetiches – as botas, os sapatos, os espartilhos, as noivas em seus leitos de núpcias, as figuras virginais em oração, o chicote e as cintas-ligas. Também do uso
insólito de animais em cena: avestruz, carneiros, urso..., para descobrir depois
que muitos desses elementos eram representações de cenas ocorridas na vida
real, como o próprio Buñuel atesta em seu livro de memórias Meu Último Suspiro.
A verdade é que a cada filme de Luis Buñuel nos sentimos provocados pela
sua grande capacidade crítica em abordar temas complexos como a política, a
religião, o sexo, o desejo, as questões de gênero e de luta de classes.
Ainda é comovente assistir Nazarin oferecer a própria vida para curar a de
uma jovem camponesa e suplicar aos seus seguidores que não lhe atribuam o
milagre de ter feito a menina voltar à vida. Nazarin quer destituir-se de qualquer poder, sendo levado por isso à morte. O filme odiado e amado pela Igreja
coloca em choque seus principais dogmas.
É surpreendente quando Simão, no deserto, não sabe dizer ao clérigo o que é
seu e o que é dele. Não sabe fazer essa distinção de posses, não sabe o que é isso,
pois nada é de ninguém e tudo é de todos. Um líder religioso confuso e perdido
em meio ao mundo materialista, que, tentado pelo diabo — uma bela mulher
— acaba numa boate entre jovens dançando enlouquecidamente uma moderninha música americana. Para Buñuel, não há cinema sem crítica, sem reflexão.
Em O Discreto Charme da Burguesia, a sequência que abre o filme (grupo de
pessoas muito bem vestidas chega para jantar numa casa de classe média alta
e é recebido pela dona da casa de camisola e robe, pois o marido se esquecera de avisá-la que havia marcado um jantar com uns casais de amigos) é baseada em um fato verídico que aconteceu com um amigo de Buñuel, assim
como realmente existiu a anfitriã excêntrica de O Anjo Exterminador, que mandou seus serviçais espalharem animais pela casa durante um jantar de confraternização. Aquilo que muitos acham ser fruto do movimento surrealista foi
puro realismo. Isso é: puro BUÑUEL!
Uma tarde, indo ao cinema, o mesmo Leblon onde conheci Buñuel, avistei
uma senhora andando ajoelhada pela calçada que levava à porta do cinema.
Parecia rezar e pagar uma penitência. Ninguém ousou perguntar ou questionar. As pessoas passavam entre constrangidas com a cena ou indiferentes. Se
tivesse colocado essa ação extemporânea num roteiro de cinema, dentro de
uma história realista, provavelmente diriam que isso é impossível de acontecer. Seria surreal, no mínimo.
Fato é que a realidade está cheia desses detalhes surreais. Buñuel, porém,
ousou trabalhar com esses elementos e levá-los ao paroxismo. Alguém acreditaria que um velho senhor enlouquecido pelo amor de uma jovem fogosa
iria levar consigo, a todo lugar, um saco cheio de camisolas imaculadas, prova da resistência de sua amada em ceder-lhe a virgindade, como acontece em
Esse Obscuro Objeto do Desejo? Não é provável, mas é possível.
Nessas frestas de possibilidades, de realidades que transitam entre o sonho e
a vida real, entre o desejo e a frustração, entre as pulsões mais fortes do ser humano e suas fraquezas, entre o consciente e o inconsciente, Buñuel construiu
seu universo de narrativas cinematográficas único, atemporal, insubstituível.
O que dizemos dos sonhos sonhados? Uma hora estamos aqui, noutra ali,
e já não somos nós, mas o outro. E, de repente, não estamos mais sonhando,
mas vivendo. Ou sonhando que estamos sonhando, ou acordando dentro do
sonho. E tudo tem sentido, porque se trata de nós e do que somos. Também
não faz sentido, porque também não se trata de nós e nem do que somos, mas
se trata do outro, que apareceu e não sabemos quem é. É como um filme de
Buñuel. Temos que decifrar, desvendar, descobrir.
Buñuel havia dito em suas memórias que o tanto que algo lhe causava repulsa também lhe causava atração. Esse jogo paradoxal está presente em cada
fragmento de suas lentes, que nos expõe a imagem à média distância, sem os
“emolduramentos” das produções cinematográficas que facilitam o olhar. Ao
contrário, disseca a imagem diante dos olhos, fazendo-nos questionar cada
quadro, cada movimento, fazendo do tempo o seu próprio tempo, do qual não
somos prisioneiros, mas participantes presentes. Não é à toa que ele procurava retirar da cena tudo que fosse enfeite, beleza construída, deixava a essência
da história. Como era econômico, tinha facilidade de montar tudo, tanto que
uma de suas obras-primas, Os Esquecidos, foi feita em apenas 22 dias. O filme
inteiro pronto, filmado e editado.
Ainda sobre a imagem, lembro-me de uma cena em O Diário de uma Camareira, onde uma voz em off fala qualquer coisa enquanto vemos duas borboletas angelicais em seus movimentos de polinização de uma margarida do
campo. Enquanto vemos os pequenos voos das borboletas, as vozes em off
continuam falando... De repente, um tiro inesperado arrebenta com a flor e
com as borboletas. A cena se abre, e vemos que se tratava de um caçador mos-
trando sua boa mira a outro personagem.
Tudo o que o genial Buñuel quer de nós é que não nos adormeçamos nas
imagens pueris e ilusórias da vida. A realidade rasga com tudo isso num segundo, com a chegada da morte ou da violência, ou da decadência.
Durante sua fase mexicana, Buñuel foi duramente criticado, tanto pelos
mexicanos, que não se viam retratados nos filmes do diretor, como pelo partido comunista, que alegava que ele dava importância demasiada à polícia e
ao poder. Tampouco a Igreja deixava de se horrorizar com os “sacrilégios” embutidos nas histórias cristãs de Nazarin, Simão, ou mesmo da dos peregrinos de A
Via Láctea. Mas, sempre havia os que discordavam dessas posições doutrinárias
e viam nos filmes do cineasta a crítica perfeita às instituições. Principalmente os
intelectuais, contemporâneos de Buñuel, como Lorca, Salvador Dalí, André Breton e outros destacados em suas memórias em meu Meu Último Suspiro.
Nunca foi receber nenhum prêmio, entre os vinte e tantos que recebeu, entre eles os mais importantes do cinema mundial, como o Festival de Cannes, o
Festival de Veneza, o Bafta e o Oscar.
Indicado para o Oscar por O Discreto Charme da Burguesia, ele fez uma provocação buñuelesca ao anunciar que o ganharia, pois havia pago 25 mil dólares à Academia e que uma coisa os americanos tinham: palavra. Por essa brincadeira, moveu-se o mundo e Buñuel ficou terrivelmente constrangido com
seus produtores. Mesmo assim, acabou ganhando o merecido prêmio.
O filme faz parte de uma tríade, ao lado de O Anjo Exterminador e A Via Láctea, segundo suas próprias palavras em Meu Último Suspiro. São roteiros originais, interligados pela estética da repetição e da subversão, sempre com críticas acirradas à aparente imobilidade e futilidade da burguesia e aos dogmas
da igreja católica apostólica romana.
Nos quase 50 anos de carreira ruidosa e premiada, ele concluiu 32 filmes
fantásticos, produzidos em diversos países e em idiomas distintos, sendo os
mais recordados: Os Esquecidos (Los Olvidados, 1950), O Anjo Exterminador (El
Ángel Exterminador, 1962), A Bela da Tarde (La Belle de Jour, 1967) e O Discreto
Charme da Burguesia (Le Charme Discret de la Bourgeoisie, 1972). Buñuel ressalta ainda, como obra que destacaria em sua filmografia, O Fantasma da Liberdade (Le Fantôme de la Liberté, 1974).
O diretor faz questão de dar destaque aos seus colaboradores roteiristas e
dialoguistas, com os quais sempre fez questão de dividir os méritos de seu
trabalho. Atitude inusual, principalmente para aquela geração de cineastas,
onde em geral a figura do diretor se sobrepunha à do roteirista.
Existem vários conceitos interessantes sobre a obra de Buñuel, principalmente em torno da dança que ele faz entre realismo e surrealismo, e poderíamos passar a eternidade tentando desembaraçar esses limites. Entretanto,
queria particularmente me debruçar sobre algo que é especialmente intrigante: o uso do diretor da interrupção como uma ferramenta cinematográfica.
Para fugir dos encantos enganosos da narrativa, Buñuel põe em crise a estabilidade dessa narrativa, criando interrupções na base de sua arte. O que força a imagem a se debruçar sobre ela própria e o espectador a despertar para a
reflexão sobre o que está vendo, uma reflexão acerca da própria imagem, da
própria narrativa.
Normalmente, elas seguem um fluxo natural. Vemos isso na estrutura da
narrativa clássica do cinema, com histórias de início, meio e fim. Onde há um
aumento encadeado de ações que levam ao clímax e ao desfecho.
No entanto, quando essa progressão é interrompida, há um tempo de reflexão, até frustração, porque o público está buscando a libertação emocional
daquela narrativa que foi construída. É aí que a técnica brilhante de Buñuel é
realizada, porque ela essencialmente força o público a se tornar participante
ativo da experiência cinematográfica, em vez de espectador passivo. Ele tem
que construir esse desfecho. Mesmo nos seus melodramas, que ficam longe
das facilidades digestivas comuns aos filmes deste tipo.
O impulso habitual de Buñuel é interromper uma linha narrativa sempre que
ele pode encontrar uma desculpa adequada para fazê-lo: uma piada, um detalhe irônico ou uma justaposição surpreendente que a desvia para outra direção.
A realização singular da estética de Buñuel é permitir que ambos os pontos
de vista possam funcionar. Ele nos permite manter a nossa distância dos personagens, reconhecendo ao mesmo tempo e repetidamente o nosso próprio
comportamento neles.
Em outras palavras, Buñuel não concede ao público a satisfação de estar
imerso em um ambiente ilusório, mas em vez disso coloca-o cara a cara com
a realidade. Sim, estamos falando de um dos cineastas surrealistas mais elogiados do mundo. Eis a graça!
Mesma graça contida em suas frases emblemáticas como: “Sou ateu, graças
a Deus!” ou “Sou fanaticamente contra qualquer fanatismo“.
Buñuel estava bem ciente das excentricidades do mundo. Sua abordagem
ao representar o absurdo da vida real era fazer filmes com imagens absurdas,
como combater o fogo com mais fogo.
O mais famoso cineasta espanhol influenciou uma geração de novos diretores de cinema, como Almodóvar, Tarantino e o nosso querido Glauber Rocha. Era um artista extremamente culto, leitor voraz, com domínio pleno de
suas técnicas narrativas. Mais que tudo, dizia que o público não podia entediar-se dentro de uma sala de cinema. E a despeito de todas suas liberdades
e transgressões cinematográficas, o figurino de seus filmes era impecável, assim como a iluminação das cenas e os posicionamentos de câmera. Não há
sobras, grandes closes, tudo é exato como vemos. Diria até que abusou de pequenos chicotes e zoom, em algumas obras, mas diria também que estava a
serviço do espanto e da perplexidade.
Sobre Buñuel disse o cineasta Carlos Saura, seu patrício: “O cinema de
Buñuel bebe suas fontes em um anarquismo visceral como reação a uma Espanha conservadora, prisioneira de um passado dominado pela igreja e pela
mediocridade dos políticos”. Semelhança com países da América Latina é apenas mera coincidência...
Com uma carreira consolidada através de uma filmografia que apresenta
um olhar iconoclasta e sutil do mundo, sempre criticando a burguesia, os políticos de direita, a religião católica, os desejos latentes e mais inconfessos dos
seres humanos, Luis Buñuel criou uma obra poética, visionária e completaSylvia Palma é curadora da mostra Luis Buñuel – Vida e Obra. Jornalista, editora, diretora de documentários e roteirista na área de cinema, TV e novas mídias. Trabalhou nas principais emissoras do país
como TV GLOBO, TV RECORD, REDE TV, SBT, CANAL FUTURA, entre
outras. Mestre em Comunicação, Cultura e Educação/ UERJ/RJ. Pósgraduada em roteiro para Cinema e TV/PUC/RJ. Vice-Presidente da
Associação dos Roteiristas, AR, 2014/15/16. Consultora para área de
documentários do CANAL FUTURA/ Rede Globo 2014/15/16.
mente irreverente, que lhe garantiu um lugar na galeria dos melhores cineastas de todos os tempos. Um gênio!
sumário
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Biografia
artigos
36
Fase França-Espanha (1929-1937)
Octavio Caruso
46
Fase Mexicana I (1946-1953)
Filipe Furtado
60
Fase Mexicana II (1954-1960)
Sérgio Alpendre
ensaios
Buñuel, o autor e os temas
76
O cinema metafísico e religioso
Fernando Oriente
88
O cinema poético, onírico e erótico
Sílvia Marques
100
O cinema político
Marcelo Miranda
110
Buñuel para contemporaneidade:
legado estético e político do cineasta
Carol Almeida
120
Fichas técnicas e sinopses
134
Agradecimentos
135
Equipe
“Dê-me duas horas
por dia de atividade,
e eu tiro as outras 22
em sonhos.”
Luis Buñuel
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Biografia
L uis Bu ñ u e l – V ida e Obra
Luis Buñuel Portolés nasceu na Calanda, uma pequena cidade da província de Teruel, em Aragão, na Espanha, no dia 22 de fevereiro de 1900. Filho
de Leonardo Buñuel, rebento de uma família tradicional aragonesa, e María
Portolés, muitos anos mais jovem que seu marido, rica e com conexões familiares próprias. Ele mais tarde descreveria seu local de nascimento dizendo
que em Calanda, “A Idade Média durou até a 1ª Guerra Mundial”. O mais velho
de sete irmãos, Luis teve quatro irmãs e dois irmãos.
Com menos de 1 ano de idade, a família se mudou para Zaragoza, onde eram
uma das mais ricas da cidade. Lá, Buñuel recebeu uma educação jesuíta severa, que o marca por toda a vida. Depois de ser retirado e insultado pelo diretor
antes do exame final, ele se recusa a voltar para a escola. Acaba por terminar
os estudos em um colégio público. Amigos desse período dizem que o diretor já tinha algo de cinematográfico em si: ele projetava sombras numa tela
usando apenas uma lanterna mágica e um lençol. Nesse período teve também aulas de boxe e violino.
Por mais estranho que pareça hoje, na sua juventude, Buñuel foi profundamente religioso, indo a missas e fazendo comunhão todos os dias. Isso só mudou na adolescência, aos 16 anos de idade, quando percebeu a falta de lógica
da Igreja, ao lado do poder e da riqueza que cercava a instituição.
Em 1917, Buñuel foi estudar na Universidade de Madri, primeiro em Agronomia e depois em Engenharia Industrial. Acabou mudando para Filosofia.
É nesse momento que desenvolve um relacionamento próximo com o pintor
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Salvador Dalí e o poeta Federico García Lorca, entre outros artistas espanhóis
criativos que viviam na Residência de Estudantes. Os três acabaram formando um núcleo do surrealismo de vanguarda, e se transformando nos chamados A Geração dos 27.
Uma curiosidade dos anos estudantis é que Luis se tornou um notório hipnotizador. Ele alegava que chegou a acalmar uma prostituta histérica somente através
da hipnose. O cineasta via conexões entre a hipnose e assistir filmes no cinema.
O arrebatamento pela sétima arte acontece durante uma sessão de A Morte Cansada (Der Müde Tod, 1921), de Fritz Lang, como chegou a afirmar em algumas entrevistas. “Os filmes que mais me influenciaram, contudo, são os de
Fritz Lang. Quando eu vi A Morte Cansada, eu descobri de repente que queria
fazer filmes. Não eram as três histórias que me moveram tanto, mas o episódio principal — a chegada do homem com o chapéu preto, que de imediato
identifiquei como a Morte, e a cena no cemitério. Tem algo nesse filme que me
toca profundamente; ilumina a minha vida e a minha visão de mundo. Este
sentimento ocorre toda vez que assisto a um filme de Lang, particularmente
os filmes ‘Nibelungos’, e Metrópolis (1927).”
A mudança para Paris foi um acontecimento natural. Buñuel realiza, então,
uma série de trabalhos relacionados ao cinema, incluindo assistência de direção para Jean Epstein. Passa a assistir religiosamente a três filmes por dia e a
escrever crítica cinematográfica em algumas publicações. É nesse momento
que começa uma colaboração com o escritor Ramón Gómez de la Serna em
um roteiro que sonhava ser seu primeiro filme, uma história com seis cenas
chamada Los Caprichos, que nunca foi filmada.
Nesse instante de transição e encontro com o cinema, apaixona-se por
Jeanne Rucar Lefebvre, uma professora de ginástica, que foi medalhista olímpica. Eles se casaram em 1934 e ficaram juntos por toda a vida. Tiveram dois
filhos, Juan-Luis e Rafael.
L uis Bu ñ u e l – V ida e Obra
A sua estreia no cinema não poderia ser mais arrebatadora: a obra-prima
Um Cão Andaluz é considerada um dos curtas-metragens fundamentais da
sétima arte. O trabalho foi financiado por sua mãe e conta com assistência
criativa de Salvador Dalí, que assina o roteiro com Buñuel. Este foi escrito em
apenas seis dias na residência do pintor. Em uma carta para um amigo, Luis
descreveu o processo: “Nós tivemos que olhar para a linha narrativa. Dalí me
disse, ‘Eu sonhei com formigas ao redor das minhas mãos’, e eu disse, ‘Meu
Deus, e eu sonhei que cortava o olho de alguém. Este é o filme, vamos fazê-lo.”
Indo contrário a cartilha da narrativa cinematográfica predominante e se distanciando de Epstein, de quem virou inimigo, Buñuel e Dalí constroem uma
experiência única que despreza a lógica e despedaça o que se imaginava de
um filme. A imagem de uma mulher tendo o olho cortado é uma das mais fortes e representativas do cinema, que abre para múltiplas interpretações ainda
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hoje, e pegou de assalto os intelectuais e artistas do movimento surrealista,
que elegeram o curta como uma pedra de toque do surrealismo.
As portas começavam a se abrir e para uma segunda produção, Buñuel e
Dalí já conseguiram financiamento de patronos artísticos. Dessa forma nasce
o polêmico A Idade do Ouro, tão forte e contundente quanto Um Cão Andaluz.
O ataque é direcionado, dessa vez, para a Igreja e a burguesia, temas recorrentes de sua obra posterior.
A sua carreira promissora sofre um grave revés com a Guerra Civil espanhola
e a dificuldade em estabelecer seu trabalho sem apoio. Decide se mudar para
os Estados Unidos em busca de trabalho na indústria de Hollywood. Acaba
por trabalhar com dublagem para a Warner Bros. Alimenta o sonho de realizar novos filmes, ainda que escreva ideias, não consegue levar adiante nenhuma. O seu choque com o cinema comercial é grande, o que faz pensar em até
desistir da sétima arte.
Nova mudança de horizonte acontece nos anos 40: ele desembarca no
México para trabalhar com o produtor Óscar Dancigers, e após permanecer
obscuro por tanto tempo no meio cinematográfico mundial, Buñuel ressurge com uma obra-prima à altura de sua fase inicial, Os Esquecidos (1950), que
vence a Palma de Ouro de Direção no Festival de Cannes. Uma história sobre a
violência infanto-juvenil sem concessões que inicia o que foi chamado posteriormente de cinema da crueldade.
Apesar dessa nova aclamação, Luis passa grande parte da década trabalhando em uma grande variedade de filmes de baixíssimo orçamento, às vezes rodando mais de um longa por ano. Filmes que não tiveram boa distribuição e
pouco impacto fora de países que falavam espanhol. Esses projetos permaneceram obscuros para os estudiosos do cineasta. Somente com o advento do DVD
é que foram resgatados e puderam ser assistidos em revisão crítica para serem
encaixados cronologicamente em uma carreira das mais brilhantes do cinema.
L uis Bu ñ u e l – V ida e Obra
Mas em 1961, o General Franco, ansioso para dar suporte a cultura hispânica decide convidar Buñuel para retornar à sua terra natal. E o realizador logo
mostra as caras novamente e “morde a mão de quem o alimentou” com o choque de Viridiana, que foi banido da Espanha, considerado uma blasfêmia,
apesar de vencer o prêmio máximo no Festival de Cannes.
Viridiana inaugura o último período da carreira do cineasta quando, em colaboração com o produtor Serge Silberman e o escritor Jean-Claude Carrière,
ele realiza sete obras-primas consecutivas, que marcam definitivamente seu
nome no panteão dos grandes autores do cinema.
Depois de declarar desde A Bela da Tarde (1967) que o próximo filme seria o
último, ele finalmente cumpriu a promessa com Esse Obscuro Objeto do Desejo
(1977), que marca a despedida das telas em grande estilo. Antes de morrer no
dia 29 de julho de 1983 de câncer no fígado, Buñuel escreveu sua autobiografia, intitulada Meu Último Suspiro, na qual chega a declarar que ficaria feliz em
queimar todas as cópias de todos os seus filmes.
Por mais que tenha tentado, com o passar dos anos, diminuir seu papel no
cinema, Luis Buñuel é um dos mais reverenciados e estudados diretores do
mundo com um legado que sobrevive incólume as vicissitudes do tempo.
Curiosidades
† Tinha 1,71m.
† Recebeu o apelido de O Flagelo da Burguesia, devido às constantes críticas ao
modo de vida da classe média e alta.
† Tinha atração por insetos, que aparecem invariavelmente em seus filmes.
† Seus filmes normalmente incluem um animal em cena, que parecem inteiramente deslocados.
† Satiriza ou ataca diretamente o estilo de vida burguês.
† Discute sobre temas-tabu.
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† Ironiza e ataca a Igreja, especialmente o Catolicismo.
† Tornou-se um cidadão mexicano em 1948.
† Trabalhou como editor-chefe de um departamento do Museu de Arte Moderna em Nova York.
† Rejeitou a oferta de Salvador Dalí para realizar uma sequência direta de Um
Cão Andaluz, em 1966.
† Foi votado como o 14º maior diretor do mundo pela Entertainment Weekly.
† Foi ressaltado por Alfred Hithcock como o melhor diretor do cinema.
† Membro do júri do Festival de Cannes em 1954. Festival no qual recebeu diversos prêmios em algumas ocasiões.
† Era fluente em francês e espanhol, mas nunca aprendeu a falar inglês.
† Dirigiu uma performance indicada ao Oscar, Dan O´Herlihy em Aventuras
de Robinson Crusoé.
† Trabalhou como ator em 11 produções, incluindo uma ponta em Um Cão
Andaluz.
† Ganhou prêmios nos principais festivais do mundo: Oscar, Bafta, Cannes,
Berlim, Veneza, Ariel, Karlovy Vary, Bodil, Moscou e National Board of Review.
Filmografia Completa
Um Cão Andaluz (Un Chien Andalou, 1929)
A Idade do Ouro (L´âge D´or, 1930)
Terra sem Pão (Las Hurdes, 1933)
A Menina Raptada (Quién me Quiere a Mí?, 1936), codireção de José Luis Sáenz
de Heredia
Coração de Soldado (Centinela, Alerta!, 1937), codireção de Jean Grémillon
El Vaticano de Pio XII (1940)
Gran Casino (1947)
El Gran Calavera (1949)
L uis Bu ñ u e l – V ida e Obra
Os Esquecidos (Los Olvidados, 1950)
Susana, Mulher Diábolica (Susana, 1951)
A Filha do Engano (La Hija Del Engaño, 1951)
Subida ao Céu (Subida al Cielo, 1952)
Mulher Sem Amor (Una Mujer sin Amor, 1952)
O Bruto (El Bruto, 1953)
O Alucinado (El, 1953)
Escravos do Rancor (Abismos de Pasión, 1953)
O Rio e a Morte (El Río y la Muerte, 1954)
A Ilusão Viaja de Trem (La Ilusión Viaja en Tranvía, 1954)
Aventuras de Robinson Crusoé (Robinson Crusoe, 1954)
Ensaio de um Crime (Ensayo de un Crimen, 1955)
Assim é a Aurora (Cela s´appelle l´aurore, 1956)
A Morte no Jardim (La Mort en ce Jardin, 1956)
Nazarin (Nazarín, 1959)
Os Ambiciosos (La Fièvre monte à El Pao, 1959)
A Adolescente (The Young One, 1960)
Viridiana (1961)
O Anjo Exterminador (El Ángel Exterminador, 1962)
O Diário de uma Camareira (Le Journal d´une Femme de Chambre, 1964)
Simão do Deserto (Simón del Desierto, 1965)
A Bela da Tarde (Belle de Jour, 1967)
A Via Láctea ou O Estranho Caminho de Santiago (La Voie Lactée, 1969)
Tristana, uma paixão mórbida (Tristana, 1970)
O Discreto Charme da Burguesia (Le Charme Discret de la Bourgeoisie, 1972)
O Fantasma da Liberdade (Le Fantôme de la Liberté, 1974)
Esse Obscuro Objeto do Desejo (Cet Obscur Objet du Désir, 1977)
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“Eu daria a minha vida para um homem que está
procurando a verdade. Mas eu mataria de maneira
feliz um homem que pensa ter encontrado a verdade.”
Luis Buñuel
artigos
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Fase França-Espanha
(1929-1937)
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Buñuel, uma jovem e valiosa
peça de resistência
Octavio Caruso
O surrealismo é uma atitude revolucionária diante do ordinário cotidiano, mais do que um curioso movimento artístico a ser estudado, uma
convocação para que se ative o instinto inconsciente e desligue os impulsos
racionais, em suma, um instrumento crítico sociopolítico transformador altamente perigoso nas mãos certas. Luis Buñuel, até então um dedicado cronista de cinema para a Gazeta Literária de Ernesto Giménez Caballero, fascinado
pelo viés poético daquela ferramenta, foi aplaudido pela burguesia francesa
por sua implacável estreia como cineasta em Um Cão Andaluz, em 1929, uma
colagem ousada de imagens impactantes sem qualquer elo lógico, a resposta
agressiva de um jovem desencantado com o materialismo deturpado dessa
mesma classe social.
Com a ajuda dos colegas de elegante rebeldia, o pintor Salvador Dalí e,
como fonte de provocadora inspiração, o poeta e dramaturgo Federico García
Lorca, fortes amizades forjadas nas salas esfumaçadas da Residência de Estudantes de Madri, o rapaz havia assinado uma declaração corajosa de caráter
que praticamente incitava o revide, um panorama trepidante que obviamente
não foi amenizado com a realização de A Idade do Ouro, no ano seguinte, um
proposital insulto direcionado ao hipócrita sistema religioso, seu berço enquanto estudante na adolescência, com direito a uma sequência final que traçava uma espécie de paralelo visual entre as orgias escritas pelo Marquês de
Sade e a figura tradicionalmente identificável como sendo Jesus Cristo, simbolizando a supressão histórica da representabilidade do feminino pela insti-
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tuição. Ao expor suas chagas psicológicas em seu ataque às práticas da igreja
católica, ele escutou o clamor de ódio dos intransigentes escandalizados, teve
seu filme banido e seu nome difamado, na tentativa de que sua voz fosse devidamente silenciada pela eternidade, tal qual Giordano Bruno, Galileu e tantos
outros livres pensadores de diversas áreas. Em 1932, após um frustrante exílio
criativo de seis meses nos Estados Unidos, com todas as despesas pagas pelos
executivos da Metro-Goldwyn-Mayer, onde percebeu que o modo de produção da indústria norte-americana favorecia um convencionalismo preguiçoso
que não o interessava, Buñuel decidiu voltar para a Espanha, financeiramente
quebrado, em um momento especialmente complicado para a nação.
Após sete anos da ditadura do general Miguel Primo de Rivera, substituída
conturbadamente, em 1931, por um segundo governo republicano com promessas de profundas mudanças sociais, a nação passava por um momento
de atraso em todos os setores, com cerca de trinta por cento da população
em estado de analfabetismo. O desemprego atingia níveis vergonhosos, a degradação lancinante destruía o espírito, enquanto a fome fustigava impiedosamente o corpo. A comarca de Las Hurdes era a representação mais evidente dessa realidade deplorável dominada pela ignorância, logo, terreno fértil
para o misticismo. O local chegou a ser retratado em artigos jornalísticos do
início do século XX como sendo habitado por primitivas criaturas sub-humanas com aspecto de lobo. Nesse contexto, Buñuel encontrou a matéria-prima
para seu terceiro trabalho, o excelente documentário Terra sem Pão (Las Hurdes, tierra sin pan, 1933), realizado com o apoio financeiro do revolucionário
anarquista Ramón Acín, pintor e jornalista, que havia prometido ao amigo cineasta que patrocinaria integralmente um filme seu caso ganhasse o prêmio
máximo na loteria. Como nada é por acaso, a sorte sorriu para os dois. Numa
análise mais atenta, fica latente que o investimento era de profundo interesse
do grupo anarquista, revelar ao mundo pela ótica cinematográfica de um di-
L uis Bu ñ u e l – V ida e Obra
retor que já havia comprovado ter coragem para enfrentar a batalha, as reais
condições lastimáveis do povo rural, com o interesse óbvio de provocar repulsa e revolta nos espectadores. Toda a equipe era formada por militantes da
causa, inclusive profissionais que já haviam sido presos na tentativa de documentar aquilo que os dignitários da nação não desejavam que se tornasse público. Nesse intuito, a estratégia mais eficiente é que a mensagem fosse passada de forma objetiva, sucinta, potencializando o choque, uma vocação natural
que se mostrou parte intrínseca do repertório de Buñuel desde o corte do olho
com navalha, o “cartão de apresentação” mais corajoso da história do cinema.
É sensacional a forma como o filme sutilmente trabalha o tema com admirada reverência, elemento perceptível até mesmo na trilha sonora, mostrando os habitantes do local como valentes símbolos de resistência, ao invés do
viés de coitadismo que compreensivelmente poderia ter sido utilizado. Em um
dos momentos mais impactantes, o narrador revela que o professor da região
entrega os pães para as crianças, pedindo para que elas comam na sua presença, por medo de que, em suas casas, o alimento seja roubado pelos pais.
As famílias consideradas privilegiadas eram aquelas que tinham um porco ao
longo de um ano, refeição que durava cerca de três dias. Carne de cabra era
rara, apenas quando alguma perdia o equilíbrio nas ladeiras íngremes e era
encontrada morta. Infecções causadas por falta de higiene no tratamento de
picadas de cobra, ou o bócio que atinge crianças e adultos, parece não haver
escapatória para esses bravos desamparados. A morte é o único evento que
perturba a apatia miserável, corpos sendo carregados por longas distâncias
para serem enterrados nos poucos cemitérios. Já próximo do desfecho, entramos em contato com anões selvagens e retardados frutos das frequentes relações sexuais incestuosas, a câmera registra com a clara intenção de explorar
o medo do desconhecido, como se utilizasse o misticismo inerente à história
do local como fonte narrativa. Mas nada disso é mais triste do que o relato de
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uma espécie de indústria que premiava a parentalidade irresponsável. Mulheres pobres que faziam dois longos dias de caminhada até a Assistência Pública e pegavam crianças abandonadas, mantendo-as em casa apenas como
forma de garantir uma pensão mensal de quinze pesetas, um valor que sustentava essas famílias.
O governo vetou a exibição do filme alegando que manchava a imagem do
país e atentava contra o orgulho do povo espanhol, acusando o golpe crítico
certeiro desferido pelo cineasta, atitude que quebrou definitivamente a ilusão de Buñuel com relação à República. Apenas quando a Frente Popular centro-esquerdista retomou o poder, em 1936, o documentário receberia uma licença para exibição pública, somente para ser retirado do radar novamente
com o início da Guerra Civil. Outro amor de formação, o surrealismo, também
começava a ruir em seu idealismo, descontente com o crescente apreço de seus
colegas de filosofia pela fama, e, por conseguinte, pela busca da satisfação de
outrem, atitude que ia contra os princípios fundamentais do movimento. Em
1934, ele casa com Jeanne Rucar, a mulher que ficaria ao seu lado por cinquenta anos, e começa a trabalhar nos estúdios de dublagem da Warner em Madri.
No ano seguinte, recrutado como produtor executivo pela Filmófono, companhia espanhola pioneira na tecnologia do som, defensora de um cinema
popular de gêneros e mercadologicamente competitivo, o jovem se viu novamente confrontado por suas crenças e com medo de ferir sua reputação. Pela
primeira vez, ele teria controle artístico, como produtor, editor e diretor, mas
estava confinado em um sistema regido por um baixíssimo critério. Com dor
na consciência, ele aceitou a proposta impondo uma única condição: o total
anonimato. Essa condição radical acabou favorecendo o empreendimento, já
que os censores, alertas para toda e qualquer movimentação artística do perigoso Buñuel, não se incomodavam com o tal fulano desconhecido que assinava os projetos. A experiência durou cerca de intensos dois anos, período
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L uis Bu ñ u e l – V ida e Obra
em que ele teve oportunidade de amadurecer profissionalmente, aprendendo na prática a importância de alcançar o elegante equilíbrio entre os desejos
autorais e a demanda de mercado, o caminho que seguiu em seus projetos
futuros, a única maneira de uma nação construir uma indústria forte de cinema. Sem essa passagem pela Filmófono, provavelmente ele não teria realizado suas várias obras-primas posteriores e seu nome seria hoje reconhecido
apenas como curiosidade exótica pelos estudantes mais dedicados.
O mais importante ao analisar a gênese artística de Luis Buñuel é constatar
que em apenas três produções, juntas elas não somavam sequer duas horas,
um rapaz nascido na aldeia de Calanda foi capaz de estabelecer mundialmente
o seu nome como algo a ser temido pelos conformistas ideológicos, uma personalidade tão íntegra que não tombaria ao sabor do vento. Em um meio que prima pela insegurança, pela necessidade mercadológica da obra ser validada pela
quantidade de ingressos comprados, ele era uma valiosa peça de resistência.
Octavio Caruso é crítico de cinema, escritor, ator, roteirista e cineasta, membro da Associação de Críticos de Cinema do RJ (ACCRJ).
“Eu adoro sonhos, até quando eles são pesadelos,
que é na verdade o caso. Meus sonhos estão repletos
dos mesmos obstáculos, mas isso não importa.
Meu amor louco pelos sonhos como eu compartilhei
com os surrealistas. Um Cão Andaluz nasceu de um
encontro entre os meus sonhos e os de Dalí. Mais
tarde, eu trouxe os sonhos diretamente aos filmes,
tento o máximo que podia evitar qualquer tipo de
análise. ‘Não se preocupe se o filme é curto’, eu disse
uma vez a um produtor mexicano. ‘Eu colocarei em
um sonho.’ Ele não ficou impressionado com isso.”
Luis Buñuel
“O cinema é um instrumento de poesia, com toda a
palavra que implica do senso de liberação, de subversão de realidade, do limite do mundo maravilhoso do subconsciente, da não conformidade com a sociedade limitada que nos rodeia.”
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Fase Mexicana I
(1946-1953)
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Buñuel conquista o México
Filipe Furtado
Quando Os Esquecidos começou a circular, em 1950, pelos festivais europeus era como se o cinema internacional reencontrasse um mito perdido no
tempo. Ao contrário de outras figuras capitais do avant garde (Clair, Cavalcanti),
que foram aos poucos absorvidas pela indústria, nada se ouviu sobre Buñuel
por quase duas décadas e do nada lá estava o cineasta com um filme relativamente realista sobre delinquência juvenil, que pouco lembrava o homem que
ao lado de Dalí levara o surrealismo ao cinema com Um Cão Andaluz.
O intervalo mexicano de Buñuel, aproximadamente 15 anos entre 1947 e
1962 (apesar de ocasionais paradas na França, EUA e sua Espanha natal), foi
durante muito tempo o momento de mistério da obra do realizador, onde salvo por alguns filmes de temática muito forte (o próprio Os Esquecidos, Nazarin,
O Anjo Exterminador), seguiam pouco vistos, por vezes dependiam das descrições que o próprio realizador lhes dava (imagino que eu não seja o único cinéfilo que leu pela primeira vez sobre muitos deles na sua autobiografia). Hoje graças ao DVD e Blu-Ray, estes filmes foram retirados das sombras
e é até mesmo possível encontrar críticos e pesquisadores que prefiram o Luis
Buñuel em guerra constante com a indústria mexicana ao cineasta que operou com completa liberdade na Europa nos anos 60/70.
A carreira mexicana de Luis Buñuel teve um falso começo com o musical
Gran Casino, em 1947, antes de iniciar para valer dois anos mais tarde com a
comédia El Gran Cavalera e a partir dali filmar continuamente mais de um
filme por ano. A maior parte deste artigo se concentra nos nove filmes que
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ele realizou entre 1949 e 1953, período no qual se consolidou como um nome
de referência da produção mexicana. Época em que realizou alguns filmeschave, mas também o período em que dirige seus trabalhos mais anônimos
como parte do cabo de guerra com a indústria local.
El Gran Cavalera é uma comédia familiar em que um rico viúvo e alcoólatra sustenta os filhos, o irmão e a cunhada. O irmão faz com que ele acredite que está falido. Assim, os familiares precisarão arranjar um emprego para
se manter. É um filme bem populista, como a premissa aponta, marcado por
uma alegria e otimismo que o realizador raramente deixava transparecer. Foi
um sucesso considerável no mercado latino (podemos ver ecos do filme, por
exemplo, no A Família Lero-Lero que Alberto Pieralisi realizou por aqui em 1953).
O filme encontra seus momentos mais fortes quando consegue unir a ideia de
atuação com a sátira de classes sociais. Foi também a primeira oportunidade do diretor de trabalhar com alguns nomes, em particular Fernando Soler,
que se tornaria presença constante nos seus primeiros filmes mexicanos. Se as
concessões são bastante visíveis, o clima do filme também não deixa de acrescentar um elemento novo e bem-vindo a obra buñueliana: ele realiza algumas
das suas melhores peças cômicas. O Gran Cavalera de Soler é o primeiro da série de grandes personagens masculinos do período, já que se a fase francesa é
memorável pelas grandes personagens femininas, os mexicanos vão pelo caminho oposto, mesmo que eles frequentemente se revelem incorrigíveis idiotas prontos para atormentarem suas mulheres.
O sucesso de El Gran Cavalera permitiu a Buñuel se aventurar numa obra
mais pessoal como Os Esquecidos, cujo tratamento duro e seco da delinquência juvenil lhe garantiu uma primeira entrada no universo do cinema de autor
europeu, no qual se estabeleceria uma década mais tarde. Junto com O Anjo
Exterminador é, sem dúvida, o filme de Buñuel mais influente e é raro encontrar um longa-metragem sobre crianças marginalizadas no qual a sombra de
L uis Bu ñ u e l – V ida e Obra
Os Esquecidos não seja pronunciada. É o primeiro dos seus filmes mexicanos
que lhe permite exercer a sua crueldade contumaz, e o contraste entre ela e
os desejos dos seus personagens é o que o trabalho tem de mais marcante. Se
El Gran Cavalera suspendia o julgamento duro, este retorna em dobro aqui, e o
filme poderia facilmente se chamar Os Condenados. É um dos exemplares mais
claros do que podemos chamar de catolicismo agnóstico na obra do realizador,
a perspectiva religiosa tão visível quanto à ausência de redenção possível. Por
muitos anos, Os Esquecidos sofreu um pouco por seu isolamento, figura estranha que era em meio a obra europeia do realizador, agora que seus filmes mexicanos foram recuperados, ele parece fluir de forma muito mais natural dentro da sua obra. Por exemplo, não deixa de se tratar de uma inversão crítica do
populismo de El Gran Cavalera, se o filme anterior mantinha a crença ingênua
de que a pobreza podia enobrecer e reencontrar o homem com si mesmo, aqui
vemos o seu outro lado; e a aspereza e falta de perspectivas dão o tom.
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Os três filmes que o cineasta realizou logo depois (Susana, A Filha do Engano
e Uma Mulher sem Amor) são provavelmente os trabalhos que ele tratava com
mais desprezo, não perdendo uma oportunidade para declarar Uma Mulher sem
Amor como o seu pior filme. Sem dúvida, tratam-se de longas muito mais próximos da indústria local e com grandes dívidas com a tradição do melodrama
mexicano, e é possível sentir o esforço de Buñuel para buscar uma conexão com
o material. A Filha do Engano, em particular, deve muito pouco ao seu realizador,
a despeito de uma atuação forte de Fernando Soler como o homem que deixa
a filha que ele acredita não ser dele com o bêbado local e a assiste crescer com
amargor no coração. Até a ambiência entre a pequena vila e o cassino sugere
mais o cinema local do que o de Buñuel. Uma Mulher sem Amor, adaptado de
uma história de Guy de Maupassant, é em teoria mais interessante e a antipatia
de Buñuel pelo núcleo familiar pode ser sentida na maneira como o caso que a
protagonista tivera anos antes e que serve de ponto de partida ao filme se revelar mais importante e definidor do que sua posição de mãe de família.
Se a antipatia do realizador por A Filha do Engano e A Mulher sem Amor é compreensível, o mesmo não se pode dizer a respeito de Susana. Buñuel jamais perdoou o final altamente moralista com a punição da personagem-título, uma
jovem desequilibrada que se infiltra no meio de uma boa família burguesa e
procede na tentativa em implodi-la ao flertar com todos os homens. Ele desejava um final mais irônico, mas o plano final, com a família reunida, é tão artificial
e cínico que é difícil perder seu sentido. O anjo exterminador Susana passou por
ali pronto a revelar a selvageria dos desejos contidos em cada membro da família. Susana é um dos filmes mais visualmente ricos de Buñuel e a sensualidade
das suas imagens reforçam a ideia de sexo como elemento pronto a desarranjar
o bom núcleo familiar. É uma das críticas mais corrosivas do diretor.
Se estes três trabalhos apontam muito para as frustações de Buñuel como
parte da indústria cinematográfica mexicana, sobretudo num momento em
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que ele ainda não recebera carta branca para perseguir seus interesses, o seu
outro filme do biênio 51/52, Subida ao Céu, talvez seja aquele que melhor equilibre as muitas forças em jogo nestes filmes. Road movie simbólico e sem grandes pretensões realistas, Subida ao Céu coloca um jovem recém-casado na estrada para buscar o testamento de sua mãe, no percurso será testado por uma
série de interrupções e tentações. A via-crúcis buñueliana não poderia ser mais
clara: o peso da responsabilidade familiar ao fim da estrada e uma série de
prazeres mundanos para testar a resistência do jovem casal. Algumas destas
interrupções até permitem ao cineasta exercitar sua imaginação com interlúdios aos moldes dos que desenvolveria na sua longa parceria com Jean-Claude Carrière, e o filme em geral mantém um foco notável. É um dos mais leves
e agradáveis entre seus filmes mexicanos, mas também um dos mais irônicos.
A família será o tema que o diretor revisita com frequência nestes anos e assim como Susana, Subida ao Céu lhe permite um ataque mordaz.
Porém, será em 1953 que Luis Buñuel conquistará de vez sua independência na indústria mexicana. Seus três filmes lançados naquele ano, El, O Bruto
e Abismos da Paixão, serão, cada um a sua maneira, tragicomédias românticas
de grande entrega e triunfos inegáveis da sua imaginação. O Bruto remete aos
dramas sociais de John Ford nos seus tempos de parceria com o roteirista Dudley Nichols, com um conflito de classes altamente determinista filtrado por
uma lente expressionista. Os ocasionais momentos de ternura servindo como
um respiro em meio à aspereza e inevitabilidade da ação. Produção cara, estrelada por Pedro Armendáriz e Katy Jurado (astros mexicanos acostumados
a papeis menores em Hollywood), o filme é notável pela forma que a partir do
conflito social, Buñuel costura uma teia de paixões mal resolvidas mais delirante do que dos seus melodramas assumidos. O Bruto de Armendáriz é um
tipo turrão contratado para ajudar a expulsar os moradores de uma área de
classe média baixa pela especulação imobiliária. Ele é pura energia não cana-
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lizada, seus delírios românticos apontam para uma redenção impossível em
meio ao determinismo do material.
É uma das melhores variações entre os retratos do machismo latino do diretor e faz uma bela dupla com o amante ciumento louco de Arturo de Córdova em El, ambos retratos sociais complementares, apesar de Armendáriz estar mais para o trágico e Córdova para o cômico, como bem pedem os espaços
que cada um deles ocupam. Ambos os filmes também têm em comum um
certo esforço de sugerir uma subjetividade de ação que reforça a influência de
Ford, sobretudo dos anos 30, apesar de O Bruto se apresentar mais como um
retrato de comunidade. Muitos dos filmes mais ácidos de Buñuel no México
adotam a forma de um pesadelo delirante, mas poucos o fazem com a entrega destes dois filmes. El é, sem dúvida, o melhor filme deste período e, ao
lado de Ensaio de um Crime, o que de melhor Buñuel fez nos seus anos no México ou mesmo na sua carreira toda. Como retrato da insegurança e orgulho
masculino ferido tem poucos iguais. Cínico e cruel no seu retrato de dissolução é Buñuel no que ele tem de mais antirromântico, e a misantropia da personagem de Córdova também tem poucos equivalentes. É também um dos
seus filmes mais anticlericais e entre suas críticas sociais do período aquela
que mais abertamente aproximam igreja da elite local. É curioso pensar em
como o filme tem similaridades com Um Corpo que Cai, de Hitchcock, e como
ele se insere muito bem na tradição de filmes que implicam no ciúme masculino doentio, como a versão de Chantal Akerman para A Prisioneira, de Proust.
O último filme que Buñuel realizara em 1953 talvez seja menos bem-sucedido, mas mais do que qualquer um destes, aponta para a posição consolidada
do realizador naquele momento. Uma adaptação de O Morro dos Ventos Uivantes, de Emily Brontë, que ele desejava realizar há muitos anos. É um dos filmes
mais românticos do realizador e é visível seu prazer em adaptar o texto (o filme
até às vezes trava num excesso de zelo). Transportado para as haciendas mexi-
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canas e revelando como o romance de Brontë serve bem as necessidades do
melodrama local. A narrativa é uma das expressões mais claras da ligação temática com o amor louco na carreira do realizador, menos pelo controle dramatúrgico do que pela forma como cada sombra na tela parece dominada pelo
sentimento de paixão atormentada dos protagonistas. Os últimos dez minutos incluem um pouco do material mais delirante da obra do cineasta.
Ao final de 1953 não restam dúvidas da posição de Luis Buñuel dentro da
indústria mexicana. A partir dali, ele poderá ousar mais e passar a flertar ocasionalmente com a Europa até se mudar em definitivo para seu continente
natal nos anos 60.
Filipe Furtado é editor da Revista Cinética e ex-editor da Revista Paisà.
Colaborou para espaços como Contracampo, Filme Cultura, Teorema,
La Furia Umana, Lumiere, Rouge e The Film Journal. Mantém o blog
Anotações de um Cinéfilo (http://anotacoescinefilo.com/).
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“Mas creio que é preciso evitar ver, nessas leis necessárias que nos
permitem viver juntos, uma necessidade fundamental, primordial.
Parece-me, na realidade, que não é necessário que este mundo exista,
que não é necessário que estejamos aqui vivendo e morrendo.
Já que somos apenas os filhos do acaso, a terra e o universo poderiam
ter continuado sem nós, até à consumação dos séculos.
Imagem inimaginável, a de um universo vazio e infinito, teoricamente
inútil, que nenhuma inteligência poderia contemplar, que existiria
sozinho, caos duradouro, abismo inexplicavelmente privado de vida.
Talvez outros mundos, que não conhecemos, sigam assim
seu curso inconcebível. Atração pelo caos que às vezes sentimos
profundamente em nós mesmos.”
Luis Buñuel
“Me comparar com Goya é loucura. Críticos falam de Goya
porque não conhecem nada sobre Quevedo, Theresa de Avila,
Galdòs, Ramón Del Valle-Inclán e outros... A cultura de hoje
está infelizmente ligada à Economia e ao poder militar.
Uma nação dominante pode impor a sua cultura e dar fama a
um escritor de segundo escalão como Ernest Hemingway.
John Steinbeck é importante devido às armas americanas.
Se John Dos Passos e William Faulkner tivessem nascido
no Paraguai ou Turquia, quem os leria? ”
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Fase Mexicana II
(1954-1960)
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Buñuel, um dos cineastas da crueldade
Sérgio Alpendre
1954 é um ano chave para a carreira mexicana de Buñuel. Foi nesse ano
que ele realizou A Ilusão Viaja de Trem, lançado pouco tempo depois, e foi nesse período que ele viu o lançamento comercial de dois outros filmes cuja importância é inegável, ainda que pouco considerada: Robinson Crusoe, filmado
em coprodução com os EUA, em 1952; e Escravos do Rancor, filmado em 1953,
uma versão diferente para o romance de Emile Brontë, que já havia originado O Morro dos Ventos Uivantes (William Wyler, 1939). Com três belos filmes
lançados no ano, dois deles projetos do coração filmados em anos anteriores, Buñuel atinge uma marca inédita desde que começou a filmar no México.
Este artigo pretende dar conta desse período rico que se inicia em 1954 e
vai até 1960. Esse é só um recorte, entre outros possíveis. Podemos definir, por
exemplo, três fases mexicanas: a de gradual recuperação do prestígio (que iria
de 1947 a 1951), a de consolidação de um estilo (de 1952 a 1955), e a fase final
mexicana, de coproduções com a França, que se iniciaria com Assim é a Aurora
e terminaria em Simão do Deserto (1965), um ano após o começo da fase final,
francesa, que teria um preâmbulo em Diário de uma Camareira (1964). Aqui,
respeitando o recorte da editoria, adotaremos o ano de estreia comercial desses filmes no local em que foram feitos, ou seja, predominantemente no México1. Pessoalmente, acho que o filme nasce em sua primeira exibição pública
(o que alteraria o recorte presente aqui).
A Ilusão Viaja de Trem é um projeto mais comercial de Buñuel. O que não
quer dizer que Buñuel esteja ausente. Um de seus maiores atributos é a capa-
1
Usei como base o excelente material compilado por Javier Herrera
no livro Luis Buñuel en su Archivo: de Los Olvidados a Viridiana, lançado
pelo Ministerio de Educación, Cultura e Deporte da Espanha.
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cidade de se apropriar de qualquer material transformando-o em pessoal. Se
aqui ele adere a um sem-número de concessões comerciais da comédia, insere também, por vezes nas entrelinhas, por outras descaradamente, elementos
de sua poética. Dois empregados de uma companhia de transporte público
ficam decepcionados com a retirada de linha do bonde em que eles trabalhavam. Após uma noite de bebedeira, na qual ainda tiveram tempo para uma
performance teatral bíblica das mais buñuelianas, resolvem sair uma última
vez com o bonde, como forma de homenagem. O passeio, contudo, acaba sendo uma nova viagem, com passageiros e tudo, e o toque Buñuel está, sobretudo, na galeria sui generis de passageiros que vemos entrar e sair do bonde:
aristocratas que fazem questão de pagar apesar das negativas dos empregados, duas beatas com uma estátua de Cristo cheio de feridas, um açougueiro
e seu material de trabalho (membros de animais mortos), crianças das mais
travessas, uma turista americana que reclama da gratuidade (porque lhe parece coisa de comunista), um ex-empregado da companhia dos bondes que
desconfia da viagem clandestina... Fauna característica que propicia a Buñuel
suas observações habituais sobre as contradições da sociedade.
Escravos do Rancor, filmado bem antes, estreado dias depois de A Ilusão..., é
importante porque permitiu a Buñuel exacerbar o amor louco, esse arrebatamento pelo amor tão característico dos anos 20, os anos de sua formação (arrebatamento presente em boa parte de seus filmes), em um melodrama tipicamente mexicano. Seguindo o espírito da obra de Brontë, Buñuel realiza um
filme de ritmo e modulações, com a câmera movendo-se habilmente pelos
cômodos, perseguindo. Mise en scène magnífica, injustiçada. A queda de um
revólver da mão que a segura pode significar muito mais do que uma mensagem pacifista, sobretudo quando, habilmente, vemos apenas a mão e o revólver, sendo impedidos de ver o rosto do homem no momento em que larga a
arma, instante da ruína de seu coração.
L uis Bu ñ u e l – V ida e Obra
Coisa de mestre, e melodrama é gênero nobre, que só pode ser filmado por
mestres. A faixa de leitura do melodrama é muito estreita. Muitos nem conseguem ultrapassar a primeira fronteira, e boa parte dos que ultrapassam, acabam ultrapassando também a segunda fronteira, saindo dos limites nobres
do melodrama e caindo no piegas.
No fundo, ninguém presta em Escravos do Rancor, ninguém é confiável. Temos de um lado os selvagens, que, por amor, desejam vingar e torturar. De outro, aqueles que se sujeitam aos jogos de poder e dominação por fraqueza de
caráter. Filmar pessoas assim, dentro de situações que exigem o pior delas, requer uma perfeita sintonia. Um passo a mais e se cai no ramerrão da chantagem sentimental. Um passo a menos e sentimos a inadequação de tudo que
cerca o filme, e ele parece incompleto.
O amor louco, levado às últimas consequências, é um tema bem surrealista, e por isso este filme está entre os que mais se filiam ao que Buñuel, esse
cineasta que nunca filmou algo contrário aos seus princípios, acreditava que
deveria ser uma representação da vida e da sociedade. Quando vemos o autodestrutivo Ricardo, sempre bêbado de desilusão, defender Isabel, a tola que se
casou com o cruel Alejandro, e esta se virar para agradecê-lo, o que se espera
num melodrama comum é que o bêbado seja tratado com uma certa integridade, um nobre digno de pena, que de alguma forma entenda a mulher nesse
martírio que é ter se casado com um tirano. Não é o que acontece aqui. Ricardo a maltrata, praticamente implorando para ser odiado, jamais desprezado.
Personagem tipicamente buñueliano, Ricardo é o centro desse melodrama retorcido (mais do que seu equivalente no romance, Hindley), embora não esteja
nem perto de ser um dos principais personagens. Penso que é por ele, também,
um desiludido pela frustração, por ter amado loucamente e ter perdido esse
amor, que Buñuel se apaixonou pela história e se apossou dela de tal maneira
que é bobagem considerar o filme atípico em sua carreira (há também o uso de
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“Tristão e Isolda”, de Wagner, que Buñuel adora e usa em outros filmes, incluindo Um Cão Andaluz, como uma marca registrada de sua atração pelo amor louco,
embora ele tenha reclamado que o produtor colocou música em todo lugar).
Robinson Crusoe é uma adaptação do romance de Daniel Defoe de que Buñuel
não gostava. Primeiro filme do diretor em cores e o primeiro falado em inglês,
pode passar como uma aventura trivial, o que seria enganoso. Existe um momento tipicamente buñueliano, tirando os sonhos e delírios que acometem o
náufrago de vez em quando. Crusoe ensina o catecismo a Sexta-Feira, o nativo que encontrou na ilha deserta. A horas tantas, Sexta-feira questiona os ensinamentos do mestre, que é colocado em xeque. Sua reação é a de quem está
sem palavras para responder. Crusoe limita-se a chamá-lo de ignorante, ao que
Sexta-feira sorri maliciosamente, fumando o cachimbo ofertado por Crusoe.
Nos anos seguintes, destacam-se Ensaio de um Crime e Nazarin. Ambos estão entre os melhores filmes de Buñuel para dez entre uma dezena de críticos.
Representam o tipo de unanimidade da qual não se pode desdenhar rodrigueanamente, e são, ao lado de outras obras-primas do período mexicano (Os
Esquecidos, Susana, El – O Alucinado e O Anjo Exterminador), Buñuel na quintessência. Mas o injustamente desprezado O Rio e a Morte (1955), realizado pouco
antes de Ensaio de um Crime, não deve ser descartado. Trata da velha dualidade entre a tradição de morte de um povoado e o progresso da grande cidade.
Se Buñuel carrega nas tintas no lado civilizado, com diálogos exageradamente edificantes, sente-se bem à vontade nas cenas no povoado, principalmente nos flashbacks, quando retrata o que lhe chamou a atenção no México, em
contraste com a Europa. É um western admirável na maior parte do tempo,
com uma forte sugestão homoerótica no final.
Ensaio de um Crime começa com a infância de Archibaldo de la Cruz, conforme ele a conta para uma enfermeira noviça de um hospital público. Menino
insuportável de tão mimado, é negligenciado pelos pais (mais interessados
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L uis Bu ñ u e l – V ida e Obra
em viver a vida) e cuidado por uma babá. Esta será vítima de seus primeiros
desejos, de morte e de sexo. Seu corpo, atingido fatalmente por uma bala da
revolução que toma as ruas, está no chão de maneira sensual, meias de seda
ornando as pernas e mexendo com a imaginação do pequeno Archibaldo. A
partir dessa imagem despertadora, três mulheres se envolverão com o adulto Archibaldo: Patrícia, Carlota e Lavínia. Cada uma representa um arquétipo
feminino: a safada, a mãe e a charmosa. Safada e mãe morrem pelo desejo de
Archibaldo. Lavínia é poupada, mas um manequim com seu rosto e suas proporções é queimado no lugar. A ideia de substituição, presente já em Um Cão
Andaluz, retorna a Buñuel.
Escreve Bernadette Lyra, em texto presente no livro Um Jato na Contramão:
Buñuel no México (organização de Eduardo Peñuela Cañizal):
Archibaldo de la Cruz é um esteta da morte. Um sujeito que, voluptuosamente, maquina matar. Um gourmet que saboreia a morte como
especiaria erótica da imaginação.
Os assassinatos com os quais se delicia por antecipação fatalmente lhe serão roubados. Cada um desses crimes frustrados, porém, parece mover sempre um pouco além a espiral persecutória que ocupa
Archibaldo. Mal a vítima lhe é arrebatada, ele parte para outra. Que,
por sua vez, lhe será surrupiada também.
O ato de matar, sempre interditado, será por isso mesmo sempre
imaginariamente possível ao assassino. A frustração da morte mantém a possibilidade infinita do gozo.
Essa espiral persecutória de que fala Bernadette antecipa O Anjo Exterminador, em que convidados não conseguem sair de uma sala de jantar, embora as
portas estejam claramente abertas, e O Discreto Charme da Burguesia, em que
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um grupo de amigos sempre se reúne para jantar, mas algo os interrompe.
Como os personagens desses dois filmes, Archibaldo é um burguês paralisado por suas próprias contradições.
João Bénard da Costa destacou bem a faceta onanista de Archibaldo. Sozinho em sua grande casa, com sua caixinha de música e suas cerâmicas, envolve-se com essas mulheres, mas sem envolver-se de fato. Imagina as situações
que podem o levar à perdição sexual ou ao crime, mas nunca materializa seus
desejos. É um homem incompleto, que só caminha para uma possível plenitude quando se livra da caixinha de música. Mas e antes de recuperá-la, como
era esse homem? Nada indica que não fosse já um onanista, assim como não
fica evidente se ele deixa de ser onanista ao livrar-se da caixinha. Como eu disse, ele caminha para uma possível plenitude, mas nada indica que a plenitude chegará. E nesse sentido, o final lembra o de El, mas com um desfecho que
emula Chaplin em vez de um perturbador caminhar em zigue-zague.
O filme seguinte foi filmado na França. Assim é a Aurora, aparentemente, tem
muito pouco de Buñuel. É estranho isso de sempre se esperar uma característica específica que identificaria o autor Buñuel, quando, de fato, isso não
importa muito. Importa menos ainda nesse caso, pois se trata de um grande
filme, injustiçado em sua época, quando obteve uma recepção fria. Longa belíssimo sobre idealismo e responsabilidade. Segundo João Bénard da Costa,
Assim é a Aurora está para a obra de Buñuel como Sob o Signo de Capricórnio
está para a de Hitchcock, por causa da inevitável frustração que acompanha
os personagens. Mas é possível entender a semelhança também como filmes
incompreendidos dentro de filmografias cheias de riquezas como são as desses dois diretores. Como também porque o que ele tem de buñueliano, como o
outro tem de hitchcockiano, só se percebe numa visão atenta, com algum conhecimento das obras desses mestres.
La Mort en ce Jardin, feito logo depois, é um dos filmes mais desconhecidos de
L uis Bu ñ u e l – V ida e Obra
Buñuel, apesar de ter a estrela Simone Signoret (Michel Piccoli só será estrela
a partir dos anos 60, e será ator constante na fase final de Buñuel). Coprodução México-França, rodado no México com história ambientada na Amazônia, apesar da estranheza de vermos personagens latino-americanos falando
em francês, artifício que não funciona no tipo de registro com o qual Buñuel
trabalha, o longa está longe de ser ruim (Buñuel nunca realizou nada que não
fosse ao menos digno). De fato, é muito melhor do que normalmente se fala/
escreve. Mas tem um raro problema em se tratando de Buñuel: alguns personagens são fragilmente construídos (apesar da colaboração do escritor Raymond
Queneau). Penso, sobretudo, na garota surda-muda e em seu pai (Bénard sugere que a deficiência está nos atores, respectivamente Charles Vanel e Michèle
Girardon, mas tenho minhas dúvidas), como também na prostituta vivida por
Signoret (que, segundo consta, preferia estar em Paris). Não se entende direito
porque ela faz juras de amor após ter apanhado de um homem que ela mesmo
antes havia denunciado para a polícia. Os sentimentos duram menos do que
uma hora, e uma série de acontecimentos surgem meio mal explicados.
Em Assim é a Aurora há elipses geniais, como a que envolve a personagem
de Lucia Bosé e o médico interpretado por Georges Marchal. Em uma cena
eles se conhecem, na próxima sequência com o médico eles já são amantes
há um tempo (talvez meses, pois ficamos sabendo num diálogo futuro que a
esposa do médico se ausentou por quatro meses). Em La Mort en ce Jardin algumas elipses não funcionam tão bem. Há, claro, os momentos buñuelianos
para agradar os surrealistas (a cobra devorada por saúvas, a Bíblia rasgada, o
delírio com o Arco do Triunfo a partir do qual a loucura e a perdição se apossa
dos cinco fugitivos na floresta, a furada no olho com uma caneta – clara alusão a Um Cão Andaluz), e no todo uma boa dose de aventura. É seu segundo
filme em cores, tem uma série de cenas muito boas, a repetição do tema da
frustração (disfarçada no final, mas ainda presente), e uma interessante pará-
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bola sobre o julgamento apressado que fazemos uns aos outros.
Chegamos então a Nazarin, um de seus filmes mais celebrados, não sem
motivo. Desse período coberto pelo artigo, é o filme sobre o qual mais se escreveu. É também, entre seus filmes mexicanos, o mais paradigmático de suas
obsessões e do estilo que se consolidaria nos anos 1960 (principalmente na
ausência de música). Condecorado pela Igreja Católica, o filme mostra o padre Nazarin, um homem puro, em meio à perdição e a crueldade de uma região pobre e urbana (e depois, numa região rural igualmente cruel). Ninguém
presta ao redor dele, com a exceção da moça Beatriz, que após um desequilíbrio emocional filmado de maneira impressionante (como uma possessão),
L uis Bu ñ u e l – V ida e Obra
aproxima-se do padre e o vê como santo, e o anão apaixonado por Andara,
irmã de Beatriz. A fotografia expressionista de Gabriel Figueroa ajuda a fazer
com que o filme seja o mais próximo que Buñuel chegou do gênero horror. Ao
mesmo tempo, sua via observacional extremamente crítica aos costumes e às
instituições, o aproxima do que iriam fazer, nos anos seguintes, cineastas como
Federico Fellini e Pier Paolo Pasolini. Vemos também antecipações de Fassbinder e do português João Cesar Monteiro. É além de tudo mais uma obra a tratar
do tema da frustração, desta vez com uma força até então não vista.
Buñuel é um mestre da elipse, e Nazarin é um dos pontos altos de sua carreira nessa matéria. O que se passou entre o padre e Andara após o primeiro
sentar-se na cama da segunda com uma pergunta e o corte nos levar a um outro momento, em que o padre abre a janela e reclama do perfume de Andara? Provavelmente nada, dado o que conhecemos do padre. Mas como termos
certeza, se a elipse, assim como a reação dos demais personagens, nos induz
a acreditar que houve algo?
De Os Ambiciosos (1960), mais uma produção México/França, destaca-se
o início documental (o documentário é muito presente na obra ficcional de
Buñuel), que lembra Terra sem Pão. A passagem para a ficção acontece de maneira brilhante: Gérard Philippe chega à mansão enquanto o governador tirano e sua amante (Maria Félix) se beijam no alpendre. Nós vemos antes o intruso, por uma janela redonda que dá para o jardim, numa notável profundidade
de campo. Mas logo a amante o vê também, e a câmera se move em direção
à escada que liga o jardim ao alpendre. Coisa de gênio. A trama lembra, em
alguns aspectos, Assim é a Aurora (um assassino está à solta, mas os protagonistas se preocupam com ele, além do sentimento de frustração que está por
todos os lados), e em outros, La Mort en ce Jardin (durante um tempo, muitos
devem ser sacrificados para salvar a vida dos protagonistas). O país onde a
trama se passa é fictício, e existe um local chamado Miranda, o que nos reme-
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te à República de Miranda, tantas vezes mencionada, pejorativamente, em O
Discreto Charme da Burguesia. No geral, a ideia por trás do filme é uma só: o
poder corrompe ainda mais que o amor.
Os Ambiciosos tem uma mise en scène fantástica, das melhores feitas por Buñuel,
É sabido o desinteresse de Buñuel com o filme, o que pode ter dei-
quase um Max Ophüls, e a direção de fotografia de Gabriel Figueroa2 ajuda um
xado Figueroa bem à vontade para ousar nos movimentos de câme-
bocado. Mas aqui a estranheza observada em La Mort en ce Jardin, latino-ame-
2
ra, fazendo deste filme uma espécie de portfólio para suas habilidades. Também é bem conhecida a história do receio que Buñuel
ricanos falando francês, é ainda maior. Uma pena: a mesma coprodução que
tinha com Figueroa. Este último passava horas arrumando a cena
garantiu com que o filme fosse feito é responsável pelos germes que o enfra-
para Os Esquecidos. Quando estava pronto, Buñuel chegava e mudava a câmera de posição. Esse desentendimento não impediu que o
filme fosse uma obra-prima. Depois, ambos trabalharam juntos em
alguns outros longas, e é inevitável a percepção de que a mise en scè-
quecem, ainda que parcialmente.
Fechando o período encontramos A Adolescente (1960), a segunda coprodu-
ne de Buñuel melhorou quando ele passou a se entender melhor
ção com os EUA e seu segundo filme rodado em inglês. É um dos trabalhos
com Figueroa, confiando mais no trabalho do celebrado fotógrafo.
mais ousadamente fetichistas de Buñuel, com as pernas e os pés de Evvie, a
Em El, outra obra-prima, já se nota um maior entrosamento, que
iria se confirmar no ponto máximo da parceria, Nazarin, o terceiro
adolescente, adornando a tela em diversos momentos reforçando a atração
longa em que trabalharam juntos (à altura de O Anjo Exterminador e
sexual que ela passa a exercer nos adultos que estão próximos. Nesse sentido,
Simão do Deserto, já estava consagrada como uma das melhores parcerias da história do cinema).
é quase que uma continuação de Susana, com uma adolescente descobrindo
seu poder de atração sexual no lugar de uma jovem já formada e bem ciente
do poder de seu corpo. Buñuel e as forças da natureza: animais comendo animais, animais sendo caçados, homem sendo caçado, homens sendo atraídos
pela adolescente, instintos a mil numa ilha paradisíaca que o preto e branco
disfarça para nos atermos melhor à carne, ao chamado de nosso lado animal.
Evvie, a adolescente, está entre dois homens maduros. Um deles é Travers,
músico negro fugitivo por um crime de estupro que não cometeu, falso estupro de uma mulher branca e rica (o racismo é uma questão no filme, tão frontal quanto raros filmes do período, mas não é a única questão, e talvez seja
um tema menor perto da atração sexual que exerce a adolescente). O fugitivo
resiste, aliás, a essa atração sexual. O outro homem é Miller, guarda florestal
que adotou Evvie, orfã. Despertado pela observação de que Evvie cresceu, e
pela concorrência com outro macho, Miller estupra a menina; um branco es-
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L uis Bu ñ u e l – V ida e Obra
tuprador, white trash. Um padre surge como instância justa, que procura evitar a selvageria do homem branco, e não é frustrado como Nazarin. Quase no
fim, o fugitivo se encaminha para uma nova fuga, Evvie lhe diz: “você ainda
vai me ver na TV tocando clarinete”. Esse é o sonho da menina branca, mesmo
que ela tenha crescido em um ambiente pobre. Ao músico negro sobra apenas a culpa por algo que ele não fez, e a certeza de que provavelmente nunca
aparecerá na TV como artista. Buñuel não o trata como santo, mas como um
homem de contradições, como todos os humanos. Do mesmo modo, Miller
terá a oportunidade de se redimir.
Grande filme, pleno de tesão e carnalidade, tanto quanto os filmes de Shohei
Imamura, tanto quanto Susana, mais do que seus filmes dos anos 70, que têm
corpos nus com mais liberdade, o que mostra o quanto Buñuel estava livre e
à vontade nessa altura da carreira. Fosse feito hoje, provavelmente seria acusado de pedofilia, quando no fundo é muito mais complexo e inteligente do
Sérgio Alpendre é crítico de cinema, professor, pesquisador e jor-
que a acusação sugeriria. Mas é também cruel, e nos lembra da velha associa-
terludio.com.br. Mestre em Meios e Processos Audiovisuais pela
ção atribuída a André Bazin (que morreu antes do filme ser feito): Buñuel, um
ECA – USP. Doutorando em comunicação pela Anhembi-Morum-
dos cineastas da crueldade.
rium. Ministra cursos e oficinas de crítica por todo o Brasil.
nalista. Escreve na Folha de São Paulo e edita o site www.revistain-
bi. Coordenador do Núcleo de História e Crítica da Escola Inspirato-
“Toda a minha vida eu fui incomodado por questões:
Por que algo é dessa forma e não da outra?
Essa fúria em entender, em preencher os vazios,
apenas deixa a vida mais banal. Se apenas
encontrássemos coragem para deixarmos
nosso destino ao acaso, aceitar o mistério
fundamental de nossas vidas, então nós
estaríamos mais perto de um certo tipo
de felicidade que chega com a inocência.”
Luis Buñuel
“Não me peça opiniões sobre arte, porque eu não
tenho. Preocupação estética tem um papel pequeno em
minha vida, e eu tenho que rir quando um crítico fala,
por exemplo, sobre a minha ‘paleta’. Eu acho impossível
passar horas em galerias analisando e gesticulando.”
ensaios
Buñuel, o autor
e os temas
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O cinema
metafísico e religioso
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L uis Bu ñ u e l – V ida e Obra
A Desconstrução de Signos
Fernando Oriente
Em seu livro de memórias, Meu Último Suspiro, Buñuel escreve o quanto, para ele, o mundo é guiado pelo acaso e pelo mistério, e que entre os dois
existe sempre a imaginação. O cineasta não acredita em dogmas, em explicações baseadas em preceitos religiosos e mesmo a ciência para ele não lhe diz
nada. É pelo mistério, pelo imponderável do acaso e na imaginação sem limites e sem explicações que surgem a força e as pulsões do homem, da vida, da
existência, da arte — e do cinema. Luis Buñuel transpôs todos esses seus sentimentos e visões de mundo para seus filmes. Sempre foi fiel à liberdade do
acaso, aos mistérios e deu uma dimensão absoluta à imaginação.
A religião, as explicações dogmáticas para a imposição de poder de uma
ordem metafísica presente na vida de homens e mulheres sempre causaram
horror ao diretor, que teve uma criação rigorosa dentro de preceitos religiosos
em um colégio católico na Espanha. Buñuel se dizia “ateu, graças a Deus”. Esse
sarcasmo presente no comentário, bem como o paroxismo da afirmação são
chaves para penetrarmos em sua obra, toda ela calcada no repúdio ao religioso,
ao capitalismo, à burguesia e às instituições reacionárias da família, do Estado
e da burguesia. Os temas do religioso, da Igreja, dos dogmas e mitos católicos e
do cristianismo aparecem em toda a obra de Buñuel, desde seus filmes surrealistas como Um Cão Andaluz e a A Idade de Ouro, passando por suas fases seguintes, incluindo o período em que filmou no México, e estão presentes de maneira
frontal em seus últimos filmes realizados na França. Essas questões são abordadas sempre de maneira intensa, subversiva, por meio do sarcasmo, do uso de
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signos e significantes icônicos da religião e da Igreja — e que são sempre subvertidos (e muitas vezes avacalhados) por Buñuel — por situações dramáticas,
por elementos centrais e paralelos na evolução narrativa e pela inserção de situações absurdas e momentos de surrealismo.
Vamos nos debruçar sobre três filmes distintos e seminais dentro da obra de
Luis Buñuel para tentar penetrar nessa relação do diretor com o religioso, o sagrado, a igreja e sua simbologia, signos e dogmas, e o caráter metafísico da vida,
e ressaltar a forma como ele desconstrói tudo isso de maneira brilhante.
Em Viridiana, obra-prima de 1961 realizada no México, Buñuel constrói um
filme a partir da jornada de sua protagonista e das diversas reviravoltas e desilusões que conduzem seu caminho. Viridiana é uma jovem devota que vive
num convento e está prestes a ordenar-se freira quando é enviada pelas madres para visitar seu tio, Dom Jaime, que se encontra doente e é o único parente que a jovem possui. Na bela casa de Dom Jaime, Viridiana irá ter contato
direto com os descaminhos e conflitos de sua fé. O tio é um homem cheio de
vícios e ao ver a beleza de Viridiana e perceber o quanto ela se parece com sua
mulher morta, ele decide dopá-la e estuprá-la para mantê-la ao seu lado. O
tio não chega a consumar a violação e sentindo-se impotente e fraco, se mata
enforcado. Aqui temos o primeiro abalo moral/religioso de Viridiana; mesmo
tendo sido vítima de um golpe e de uma violência sórdida, a jovem se acha
pecadora por ter apenas provocado o desejo carnal em seu tio e, ao sentir-se
impura e indigna, desiste da vida no convento.
A partir desse momento, Buñuel irá construir uma sequência de choques e
confrontos entre as intenções e aspirações metafísicas da fé dogmática de Viridiana com a realidade do mundo e do ser humano comum. Após a morte do
tio, a jovem decide abrigar mendigos e moradores de rua na casa que herdou.
Ela pretende salvar, recuperar e colocar as vítimas da sociedade no caminho
da fé dando abrigo, comida, fazendo com que trabalhem e rezem diariamente.
L uis Bu ñ u e l – V ida e Obra
Ao mesmo tempo, o filho bastardo de Dom Jaime, também herdeiro da mansão, se muda para a casa com uma mulher. Outro conflito posto por Buñuel
é entre a jovem beata e o filho bastardo, um pequeno burguês materialista.
Buñuel subverte o que poderia ser um filme de ascese metafísico, uma obra
de conciliação entre o humano e o divino, e faz de Viridiana uma jornada de
desilusão e desconstrução da fé por meio do choque entre as aspirações religiosas com os elementos incontornáveis da materialidade abjeta do mundo,
do homem decaído e do mundo desencantado. Por meio de um total domínio
da encenação, pela força dramática da evolução narrativa e por um onipresente sarcasmo crítico, Buñuel vai transformando a jornada de Viridiana no que
poderia ser visto como uma queda. Os mendigos mostram-se seres humanos comuns, movidos por desejos imediatos, carnais, por ataques de cólera e
ações violentas. Não gostam de trabalhar, querem levar vantagem um sobre o
outro, segregam aqueles que são mais fracos ou doentes, querem os prazeres
da carne: o sexo, a comida, a bebida e o conforto. Aqui a ideia cristã propagada pela igreja do ser humano, como almas boas em busca de salvação divina,
cai por terra. Os mendigos de Viridiana são seres humanos comuns, vítimas da
sociedade capitalista, da pobreza material. Quando têm sua chance de possuírem aquilo que o mundo os nega, fazem de tudo para levar vantagem e
buscarem os prazeres carnais e materiais.
Viridiana é repleto de cenas icônicas, em que Buñuel coloca de maneira frontal a desconstrução de signos, significantes, símbolos e dogmas do cristianismo
e da religião institucional. Ao chegar à casa de Dom Jaime, a aspirante a freira
traz na pequena bagagem um crucifixo, uma coroa de espinhos e vestimentas
rudes. Ao longo do filme a vemos rezar constantemente, ajoelhada em frente
a ícones sagrados. Enquanto isso, seu mundo idealizado de fé desmorona ao
seu redor. Cenas antológicas se sucedem. Em um determinado momento, o
filho bastardo de Dom Jaime sente pena de um cachorrinho que anda amar-
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rado a uma carroça e resolve comprar o bichinho para salvá-lo. Na mesma
sequência, logo após ele ter libertado o cachorro vemos na mesma estrada
outra carroça passando com um cão idêntico amarrado a ela. É um comentário explícito de Buñuel de que por mais que as boas intenções possam levar
um ser humano a salvar um animal, um homem, uma mulher, nunca poderá
salvar a todos, milhares de condenados estão por todos os lados, as boas intenções não passam de ações assistencialistas movidas por impulsos de comiseração que servem apenas para ajudar um entre milhões de vítimas das
mazelas do mundo.
Buñuel é seco, explícito e direto na sua encenação, depura seu filme de sentimentalismos e reforça o caráter do cinema de crueldade, de não conciliação,
que é uma de suas principais características. Não é maniqueísta, não julga
seus personagens, nem cai em moralismos. Tudo o que registra é para comentar com sarcasmo e muita acidez as idiossincrasias e a hipocrisia das boas intenções. A fé, a igreja, os dogmas são invenções do homem para controlar,
anular e alienar o ser humano em meio aos processos históricos que determinam a vida real, desencantada. E é o choque de Viridiana com essa realidade que irá conduzir sua jornada dentro de um processo de desencantamento, de falência de suas esperanças e certezas dogmáticas; ela constantemente
confrontada pelo acaso, pelo imponderável. A realidade da vida esgota suas
crenças, suas ilusões metafísicas e vão tornando a jovem apática, ela passa a
ser conduzida e manipulada por forças materiais imponderáveis, forças muito
maiores que ela e que seus valores religiosos herméticos.
E Buñuel vai mais fundo na desconstrução, ele usa elementos e significantes clássicos da mitologia cristã para destilar seu discurso sarcástico. Na cena
mais emblemática de Viridiana vemos os mendigos, após fazerem um banquete na ausência dos donos da casa, em que comem e bebem na grande mesa
da sala de jantar, posar para uma foto. Esta é uma reconstrução visual idêntica
L uis Bu ñ u e l – V ida e Obra
ao famoso quadro Santa Ceia, de Leonardo Da Vinci. No quadro vemos Cristo e
seus apóstolos em torno da mesa após a última ceia antes da crucificação. No
filme, a foto reproduz de maneira idêntica a disposição dos personagens, só
que ao invés de Jesus e seus seguidores, temos mendigos sujos e bêbados nas
exatas mesmas posições. É esse uso direto de ícones clássicos do cristianismo
que Buñuel subverte de maneira gráfica e frontal, para potencializar seu discurso crítico e confrontar os signos sagrados.
Ao final do filme, após ser contaminada, agredida por uma realidade que
nega todas as suas crenças, vemos Viridiana em roupas comuns, com um
olhar e uma postura derrotada, apática diante da desilusão, sentada na mesa
ao lado do filho de Dom Jaime e da criada da casa jogando baralho. A postura
de Viridiana em cena é a de um fantasma, uma presença esgotada, derrotada.
Ao mesmo tempo, do lado de fora, a câmera de Buñuel fecha em close na coroa de espinhos que a jovem havia levado sendo queimada pelos mendigos. O
fogo arde e destrói a coroa de espinhos da mesma forma que a fé e os dogmas
de Viridiana foram destruídos pela materialidade do mundo.
Simão do Deserto, também realizado no México, em 1965, é um média-metragem no qual Buñuel, de maneira coesa, revisita um dos clássicos mitos do
cristianismo: o profeta, o santo, aquele que abdica da vida para se isolar e por
meio de penitências, sacrifícios e devoção irrestrita à oração e à meditação
tenta se afastar dos valores terrenos para se aproximar de Deus. Tudo no filme tem um ar farsesco, por mais natural que seja a construção de cena, os ambientes e a caracterização dos personagens. Simão é um homem que abandona a vida entre seus pares em uma vila da Idade média e se retira para um
monte onde passa anos no alto de uma coluna, comendo e bebendo o mínimo para seu sustento e orando freneticamente para se purgar dos pecados do
mundo e se aproximar do divino, do mundo metafísico do cristianismo, de
Deus e de seus ensinamentos. A relação de Simão com os moradores da vila,
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os padres da região e com sua mãe é pautada no distanciamento arrogante
de alguém que se acha superior em sua fé. Ele os recebe na base de sua coluna, prega a eles os ensinamentos sagrados e constantemente faz julgamentos
morais e comportamentais sobre todos.
Desde o início, Buñuel faz de Simão um misto de fanático religioso, moralista, sempre em meio a incertezas e fraquezas de sua personalidade. O diretor desconstrói o caráter heróico do mártir para fazer de Simão um homem
perdido em devaneios de divindade, arrogante em seus discursos moralistas
com que julga a todos, confuso — ele esquece as orações, entra em surtos
no qual afirma que benzer pessoas, animais e objetos é algo “divertido e que
faz o tempo passar sem cometer nenhuma afronta em relação aos desígnios
de Deus” —, fraco e inseguro. Um típico beato irracional em delírios de fé e
grandeza de espírito.
A encenação de Buñuel é ágil, a câmera se move o tempo todo em travellings,
recuos e aproximações, contextualiza tanto os primeiros planos quanto os planos médios e os de fundo, usa a profundidade de campo (onde quase sempre
vemos Simão no fundo do plano em pé sobre sua coluna enquanto as ações
se desenrolam no chão, próximas à câmera, nos primeiros planos — a presença de Simão no alto da coluna é quase onipresente e mesmo quando não está
no quadro é sentida no extra-campo). Essa mise en scéne passa uma inquietude que domina o quadro e traduz as tensões das situações narrativas. Simão
é quase sempre filmado em contra-plongée, vendo todos de cima, numa posição de superioridade. Os outros olham de baixo pra cima, e são registrados
em plongées que mantém os personagens hierarquicamente inferiores a Simão
dentro da construção do campo. A caracterização física de Simão é outra alusão direta de Buñuel a signos clássicos do cristianismo. Vestido em uma túnica
puída, com longas barbas e cabelo comprido, ele nos aparece como um profeta, um santo e, até mesmo, como o Cristo dentro da iconografia da igreja.
L uis Bu ñ u e l – V ida e Obra
O grande conflito do filme é entre Simão e o diabo, que constantemente
vem tentá-lo. Aqui uma alusão direta as tentações do demônio à Cristo enquanto ele se retirou para o deserto para orar. Só que o diabo no filme é vivido pela belíssima Silvia Pinal, a mesma atriz que havia interpretado Viridiana no filme de
1961. Ela surge num misto de erotismo e humor, seu diabo é impaciente, irritadiço, se incomoda com o fanatismo de Simão e tenta trazê-lo de volta ao mundo,
destituí-lo de sua fé cega. A personagem vivida por Pinal é moderna (uma típica
mulher dos anos 1960), destoa da iconografia clássica do catolicismo e esbanja carisma. Tem humor, se veste de Deus, com barba e tudo, para tentar Simão,
mostra as pernas, os seios e leva Simão a sentir desejos carnais que ele tanto se
esforça em negar. O Simão de Buñuel é um fraco, confuso e meio abobalhado; é
uma desconstrução irônica dos santos, dos mártires e profetas.
A Via Láctea ou O Estranho Caminho de Santiago, longa de 1969, está inserido dentro do que podemos considerar a fase final do diretor. Filmes realizados na França a partir do final dos anos 1960 até o início da década de 80,
com uma enorme liberdade criativa, construções dramático-narrativas radicais em que todos os temas trabalhados por Buñuel voltam de maneira visceral e intensa. São dessa fase filmes primorosos como o próprio A Via Láctea, O
Fantasma da Liberdade, O Discreto Charme da Burguesia e Esse Obscuro Objeto do
Desejo. Buñuel assume um discurso mais coeso em filmes que trabalham isoladamente os significantes de cada plano, sem seguir uma evolução narrativa
e sem contar uma história com início, meio e fim. O que valem são as sequências e os planos em si.
Em A Via Láctea, Buñuel volta a colocar a religião, seus dogmas, ícones e símbolos em primeiro plano. Mas aqui o diretor parte de uma análise corrosiva
da relação entre religião e heresia. O filme acompanha a viagem de dois peregrinos a pé da França até a cidade de Santiago de Compostela, seguindo a
famosa rota que fiéis percorrem há séculos para chegarem a Igreja onde fi-
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cam os restos mortais de Tiago, apóstolo de Cristo. O longa é um grande filme de episódios e situações isoladas, em que a jornada dos dois vagabundos
é entrecortada por personagens e ações que surgem em seus caminhos, bem
como por flashbacks de tempos passados, em que vemos desde Cristo, a Virgem Maria, cavaleiros medievais, nobres da Idade Moderna, religiosos de diversos períodos históricos, membros e vítimas da Inquisição e até o Marquês
de Sade (um dos mais famosos inimigos da Igreja e de seus dogmas).
O humor se faz presente ao longo de todo o filme, um humor ácido, sarcástico e crítico, mas que não busca o riso fácil e sim a cumplicidade do espectador mediante aquilo que o filme critica e debocha. É um Buñuel ácido,
que abusa das referências histórico-religiosas para despossuí-las de seu caráter sacro, de suas certezas dogmáticas. A Via Láctea é um filme de imaginação,
em que as ideias de Buñuel são transpostas para a tela em diversas sequências fantásticas e muitas vezes surrealistas. O diretor não busca explicações,
ele quer questionar, criticar e expor os aspectos patéticos da fé institucionalizada, não só a católica ou cristã, mas qualquer fé cega que se deixa guiar por
estatutos e códigos impostos.
As heresias clássicas e os hereges que fazem parte da história do cristianismo são revisitados por Buñuel. Desde os questionamentos sobre a real exis-
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L uis Bu ñ u e l – V ida e Obra
tência da Santíssima Trindade, a afirmação de que o homem é capaz de escolher entre o bem e o mal sem a influência divina, a reivindicação de não se
seguir aos mandamentos e ordens morais impostas pelas autoridades eclesiásticas até as dúvidas acerca da transubstanciação do Cristo na hóstia. O filme trata de cada uma dessas questões em sequências isoladas, ora no tempo presente em que vivem a dupla de peregrinos que amarram as narrativas,
ora em flashbacks acionados por algo que a dupla vê ou ouve. É por meio dos
diálogos constantes do filme que essas questões são abordadas. A todo o momento surgem personagens que discutem religião, dogmas, heresias, o sagrado e o metafísico. Mas Buñuel subverte toda a dramaturgia ao introduzir
constantemente o fantástico, o inverossímil, o surreal e o grotesco do mundo.
A materialidade da vida e o caráter mundano do homem sempre surgem a se
sobrepor aos preceitos do sagrado e da fé. O diretor retira qualquer possibilidade de ascese metafísica dos dramas e situações, e faz do acaso novamente
o agente motor das ações.
Sequências antológicas se sucedem: um diálogo de um padre com um policial que é interrompido quando o religioso se exalta e atira uma xícara de
café no policial até ser levado para o hospício de onde havia fugido por dois
enfermeiros em uma ambulância, a sequência onde Jesus se prepara para se
barbear e é convencido pela Virgem Maria a deixar a barba, no duelo de sabre
entre dois nobres, um jansenista e outro jesuíta, subitamente interrompido
quando ambos decidem fazer as pazes sem nenhum motivo aparente, numa
aula de catecismo que se transforma em um tribunal da Inquisição, ou na sequência em que Jesus, durante um almoço com seus apóstolos, a Virgem Maria e outros de seus seguidores, conta uma parábola sem pé nem cabeça e que
Fernando Oriente é crítico, professor e pesquisador de cinema. É
não faz o menor sentido. Tudo no filme é composto para desconstruir os dog-
editor do site Tudo Vai Bem (www.tudovaibem.com), além de co-
mas e ridicularizar com alto grau crítico as normas e significantes da religião
laborador das revistas Interlúdio e Teorema. Foi um dos editores e
e da fé institucionalizada.
pela PUC SP.
críticos do Site Cinequanon de 2007 a 2012. É jornalista formado
“Até hoje, eu não tenho ideia do que
a verdade é, ou o que fiz com ela”
Luis Buñuel
“Se alguém pudesse provar nesse
instante que Deus, em toda sua
iluminação, existe, não mudaria um
único aspecto do meu comportamento.”
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O cinema poético,
onírico e erótico
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L uis Bu ñ u e l – V ida e Obra
Um tour pela insondabilidade do desejo
Sílvia Marques
Luis Buñuel, cineasta espanhol, mais especificamente aragonês, foi muito mais do que um esteta. Foi um filósofo. Sim, Buñuel fez a mais fina e brutal
filosofia por meio das suas imagens aparentemente despretensiosas. Buñuel
desconfiava de todo e qualquer tipo de efeito técnico por considerá-los pretensiosos, como afirmou Jean-Claude Carrière. Por outro lado, para olhos mais
atentos, é possível perceber uma série de sutilezas visuais apresentadas pelo
cineasta, como por exemplo, a insistência em planos abertos e fixos.
A escassez de movimento e a câmera aberta captando todo um contexto não
acontecem por acaso na obra de Buñuel. Nada acontece por acaso na obra de
um grande artista. Com o objetivo de atrair a atenção do espectador para aquilo
que realmente importava, despia suas imagens dos efeitos técnicos. Por meio da
escassez de trilha sonora evitava a catarse. Por meio dos planos gerais fazia uma
metáfora da monotonia da vida cotidiana, com relações interpessoais pouco espontâneas por serem construídas sobre convenções severas e tradições rígidas.
Podemos relacionar a filmografia de Buñuel com os conceitos de imagemtempo e imagem-sonho do filósofo francês Gilles Deleuze. Para Deleuze, o
cinema não era signo e sim objeto. Ideia ousada com alguns adeptos. Para
Buñuel, como para Deleuze, não havia diferença entre viver e sonhar, entre viver e imaginar ou lembrar. Este foi outro motivo que fez com que Buñuel não
diferenciasse sonho e realidade em seus filmes por meio de efeitos técnicos,
como o uso de preto e branco ou o desfocamento da imagem, por exemplo.
Para Deleuze, o cinema moderno, o cinema do pós-Segunda Guerra, não busca-
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va a verdade. Era o cinema dos falsários. Buñuel foi um grande representante deste cinema mais voltado para as questões do tempo, da memória e da existência.
Em O Anjo Exterminador, obra-prima da fase mexicana, Buñuel revela que
para aquela sociedade, a burguesia mexicana, o amour fou era impossível,
pois todos estavam muito presos às convenções sociais e às suas respectivas
máscaras. Um recurso muito interessante utilizado neste filme foi a repetição
de cenas, para reiterar o automatismo da vida burguesa.
Embora a sociedade retratada no filme seja a mexicana, tal realidade pode ser
transposta para outras culturas. Por meio de um cinema altamente hispânico, Buñuel
retratava temas universais, como o mundo das pulsões e a crítica feroz às instituições.
Buñuel ficou conhecido e reconhecido internacionalmente como o mestre do
surrealismo no cinema e inclusive fez uma parceria com o pintor Salvador Dalí
em seus dois primeiros filmes: Um Cão Andaluz (1929) e A Idade do Ouro (1930).
Porém, o surrealismo para Buñuel era um meio e não um fim. Por meio do
surrealismo, o cineasta dissecou uma sociedade hipócrita, injusta, cruel e devassou o mundo das pulsões. Por meio de uma linguagem sóbria e racional,
falou sobre o irracional, o ilógico, o inexplicável, o incontrolável. Compreender Buñuel é entrar num mundo onírico, onde nem tudo pode ser explicado
ou entendido racionalmente. É o mundo das pulsões, dos desejos submersos,
do irracional e do ilógico.
Seus filmes da fase europeia que melhor resgataram a linguagem surrealista
ortodoxa de Um Cão Andaluz e A Idade do Ouro foram A Via Láctea (1969), O Discreto
Charme da Burguesia (1972) e O Fantasma da Liberdade (1974). Buñuel e Dalí utilizaram o método da livre associação para elaborarem o roteiro de Um Cão Andaluz.
Porém, toda a obra de Buñuel apresenta elementos surrealistas, pois este
movimento se dedicava a falar da mais pura realidade por meio do absurdo.
Em filmes aparentemente mais convencionais, com uma estrutura mais linear, como A Bela da Tarde (1967) e Esse Obscuro Objeto do Desejo (1977) pode-
L uis Bu ñ u e l – V ida e Obra
mos encontrar fortes indícios da arte surrealista de Buñuel.
O surrealismo encantou a Buñuel, pois ele apreciava o inusitado, o acaso,
todo tipo de mistério. Manteve muitos elementos obscuros em seus filmes
e não é possível explicar nem entender racionalmente muitas de suas cenas,
que podem ser captadas apenas sensorialmente. Muitas imagens possuem
mais de uma interpretação. O próprio Buñuel não buscava uma explicação lógica para tudo aquilo que filmava.
Arrisco a dizer que em termos narrativos, A Bela da Tarde seja o seu mais complexo filme, o que soa como um irônico paradoxo porque A Bela da Tarde e O
Discreto Charme da Burguesia são seus filmes mais populares. O segundo recebeu, inclusive, o Oscar de melhor filme estrangeiro, o que preocupou Buñuel.
Voltando ao filme A Bela da Tarde, esta obra pode ser lida de três formas.
1. Séverine é uma dona de casa que sonha em ser prostituta e realmente se
prostitui. Esta primeira leitura é a mais óbvia.
2. Séverine é uma dona de casa que sonha em ser prostituta, mas apenas se
imagina trabalhando em um bordel.
3. Séverine é uma prostituta que sonha em ser uma dona de casa burguesa.
Se analisarmos o conjunto da obra de Buñuel, perceberemos que a terceira
leitura é pouco plausível, pois as protagonistas do cineasta normalmente rumam de uma vida mais tradicional e puritana para uma realidade menos convencional. Viridiana, por exemplo, de noviça e missionária, passa a integrar
um ménage à trois com seu primo e a empregada da casa ao som de rock and
roll. O filme que se inicia com Aleluia, de Handel, se encerra com uma música
laica. Em suma: Buñuel utilizou duas músicas para simbolizar a mudança de
rumo na trajetória da protagonista. A noviça bem-intencionada, que queria
mudar o mundo, se descobre humana no final da trama. Ela abandona seus
nobres ideais depois de ter sido quase violentada duas vezes e adere aos prazeres simples de uma vida banal. Se para um olhar mais religioso, Viridiana
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sofre uma derrocada, para Buñuel ela se libertou.
Talvez Viridiana seja um dos filmes de Buñuel que trabalhe mais ferozmente a questão do desejo perverso. Embora A Bela da Tarde mexa com temas-tabu, como a dissociação entre amor e sexo, Viridiana faz um paralelo poderoso
entre sexualidade e religiosidade. Viridiana (1961) é um mergulho profundo
entre o sagrado e profano, conflito muito presente na obra de Buñuel. Existe
toda uma aura de sensualidade ao redor dos objetos religiosos que a noviça
Viridiana transporta em sua bagagem. Este filme trabalha bem a questão do
fetiche das pernas e pés, e profana os símbolos religiosos, carregando-os com
um conteúdo erótico.
Em A Bela da Tarde, mais uma vez, surge o conflito entre sagrado e profano,
por meio da protagonista que se divide entre uma dona de casa burguesa e
uma prostituta. Séverine não precisa do dinheiro. Sim, ela se prostitui por prazer. E quanto mais faz sexo com outros homens, mais se sente ligada amorosamente ao marido.
Enfim, neste filme, Buñuel coloca o dedo numa ferida muito dolorida da sociedade: nem toda mulher associa amor e sexo. Nem toda mulher se realiza
plenamente por meio do casamento burguês. Talvez não exista nada mais ousado do que a ideia da sexualidade feminina vista sob um viés menos afetivo
e mais transgressor. Esta obra continua sendo polêmica mesmo depois de 50
anos. Como surrealista, Buñuel admirava Sade e toda sua obra tem uma aura
sadiana. Os surrealistas almejavam a liberdade irrestrita e trabalhavam constantemente com o tema da ruptura. Queriam romper com todos os limites: de
valores, de costumes, e do próprio corpo.
Outro filme aparentemente simples, mas que apresenta metáforas altamente complexas é Esse Obscuro Objeto do Desejo, última obra realizada pelo
cineasta. Baseado no romance francês A Mulher e o Fantoche, Buñuel toca numa
cara questão lacaniana: a mulher não existe.
L uis Bu ñ u e l – V ida e Obra
Por meio de duas atrizes, a francesa Carole Bouquet e a espanhola Angela Molina, que interpretaram Conchita, Buñuel revela visualmente a ambiguidade feminina neste filme irônico, que mescla com maestria os dramas
políticos da Espanha, que havia se libertado recentemente do franquismo,
com os dramas de um casal extremamente instável. Na realidade, o relacionamento entre Mathieu, um homem rico de meia idade com Conchita, uma
jovem pobre, pode ser entendido como uma metáfora das turbulências políticas e culturais da Espanha. E se Conchita se nega a ser desvirginada por Mathieu é porque provavelmente a Espanha ainda não estivesse preparada para
romper com o estabelecido.
Buñuel parece unir seu primeiro filme, Um Cão Andaluz, com Esse Obscuro
Objeto do Desejo, por meio da cena final deste. Em Um Cão Andaluz, vemos um
olho sendo cortado. Este olho representa, em minha opinião, o falo penetrando de forma violenta o sexo feminino.
Para compensar ato tão brutal, Buñuel mostra em Esse Obscuro Objeto do
Desejo uma mulher remendando um tecido sujo de sangue diante do olhar
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severo de Conchita, que como Séverine de A Bela da Tarde, também se divide
entre duas personalidades antagônicas. Os próprios nomes das personagens
revelam tal contradição.
Conchita é o apelido de Maria de la Concepción. Esta se refere a Nossa Senhora. O apelido Conchita se refere ao genital feminino de forma chula.
Em A Bela da Tarde, o nome Séverine nos remete a uma ideia de severidade.
Por outro lado, a bela da tarde, apelido utilizado pela protagonista no bordel,
se refere a uma flor que se abre apenas durante o dia.
L uis Bu ñ u e l – V ida e Obra
No filme Tristana, Don Lope, tutor de Tristana, dissocia o nome da jovem em
“Triste” e em “Ana”. É como se os nomes das personagens apresentassem uma
relação não arbitrária com as mesmas. Mais um delírio surrealista e lacaniano.
Mas voltando à relação entre Um Cão Andaluz e Esse Obscuro Objeto do Desejo,
podemos dizer que ambos giram ao redor do mesmo tema: a incomunicabilidade entre homens e mulheres. Outro tema caro ao cinema de Luis Buñuel.
Como comentei anteriormente, o cinema de Buñuel tem uma aura sadiana. Em Tristana, temos Don Lope, o tutor de Tristana, um homem que deveria
proteger a jovem pupila como um verdadeiro pai. Porém, Don Lope a transforma em sua amante e a encurrala num jogo perverso, muito bem simbolizado pela seguinte frase: “Sou teu pai e teu marido conforme a minha conveniência”. Esta frase carrega um conteúdo incestuoso. Embora Don Lope não
pratique um incesto de fato, simbolicamente falando podemos dizer que sim.
É uma relação ambígua. Falando em ambiguidade, este é um traço constante
na obra de Buñuel. O próprio Buñuel apreciava dizer frases ambíguas, como
por exemplo: “Sou ateu, graças a Deus”.
Como os maiores cineastas, nem tudo o que aparece nos filmes de Buñuel
pode ser entendido de forma direta e objetiva. O cinema de Buñuel é altamente poético. Poético no sentido de metaforizado. Ele utilizava relacionamentos afetivos para revelar os dramas políticos e culturais do seu país. Explorou profundamente os grandes ícones espanhóis e podemos encontrar ricas
metáforas até mesmo nas obras aparentemente mais lineares.
No filme Tristana, encontramos muitas metáforas poderosas, entre elas,
uma cena aparentemente desimportante. Uma greve de operários sendo reprimida por guardas civis a cavalo pode representar o sentimento da jovem
protagonista em relação ao seu tutor, que a encurralou num relacionamento
sufocante e indesejável.
Em Esse Obscuro Objeto do Desejo, explosões que acontecem durante o filme,
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parecem simbolizar as próprias turbulências afetivas do casal protagonista.
Outro elemento poético bastante presente na obra de Buñuel é a presença
constante de personagens arquetípicos.
Em A Bela da Tarde, encontramos na figura de um cliente coreano uma metáfora do impulso sexual brutal. Ainda em A Bela da Tarde, temos um professor com fantasias masoquistas, que funciona como uma metáfora da própria
protagonista e também é uma figura arquetípica: as autoridades são perversas. Provavelmente, o filme que trabalha com arquétipos mais assustadores
é Viridiana. Em uma cena antológica, a Santa Ceia de Leonardo Da Vinci é reproduzida por meio de um grupo de mendigos devassos que transformam o
jantar numa orgia.
Mas não podemos deixar de falar sobre amour fou quando pensamos no cinema de Buñuel. Os surrealistas eram grandes apreciadores do amor louco,
pois prezavam tudo aquilo que rompia limites. Embora o surrealismo tenha
nascido na França, se desenvolveu muito bem na Espanha. Como diria Mirian
Nogueira, o amour fou tem grande similaridade com o amor total espanhol.
Referências bibliográficas
MARQUES, Sílvia. O cinema da paixão: Cultura espanhola nas telas. São
Paulo: Editora Giostri, 2013.
Hispanismo e Erotismo: O cinema de Luis Buñuel. São Paulo: Editora Annablume, 2010.
Sílvia Marques é professora universitária, blogueira e escritora.
Inclusive Buñuel dirigiu uma versão do célebre romance inglês O Morro dos
Ventos Uivantes, com o título de Abismos da Paixão, porque tal obra apresenta
elementos surrealistas.
Em suma: Buñuel faz parte deste seleto rol de diretores indispensáveis para
quem deseja realmente conhecer o melhor e mais profundo do cinema mun-
Doutora e mestre em Comunicação e Semiótica pela PUC/SP. Ba-
dial. Por meio do hispânico, falou sobre o universal. Por meio do surrealismo,
charel em Cinema pela FAAP. Atriz pelo SENAC. Autora de 8 livros,
mostrou a realidade. Por meio da escassez de recursos técnicos, elaborou a
entre eles, Hispanismo e Erotismo: O cinema de Luis Buñuel, O cinema da paixão: Cultura espanhola nas telas. Venceu sete concursos literários nos gêneros dramaturgia, conto e poesia e concorreu
em 2013 ao prêmio Jabuti na categoria Educação, com o livro Sociologia da Educação.
https://www.facebook.com/livrossilviamarques/?fref=ts
http://garotadesbocada.blogspot.com.br/
http://obviousmag.org/cinema_pensante/autor/
mais sofisticada e intrincada estética.
“Algumas vezes, assistir a um
filme é como ser estuprado.”
Luis Buñuel
“Sexo sem religião é como
cozinhar um ovo sem sal.
Pecado dá mais chances
para o desejo.”
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O cinema político
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L uis Bu ñ u e l – V ida e Obra
De uma mesa de jantar a outra
Marcelo Miranda
O cinema de Luis Buñuel percorre 50 anos do século XX e fixa-se num
eixo triplo: religião, sexo e burguesia. Alguns filmes tratam de uma ou outra
questão com mais profundidade, em determinados casos há a completa imbricação de todas elas. Fato é que os curtas e longas-metragens do diretor espanhol possuem, num nível mínimo que seja, as três vertentes a compartilharem inquietações, que se apresentam invariavelmente sob camadas políticas,
representadas ora por relações de poder, ora por sátiras ou alegorias surrealistas. A política, no caso, não surge apenas na utilização dos temas “burguesia”,
“sexo” e “religião”, mas na forma como estes se conjugam. A complexidade da
obra de Buñuel está na maneira singular com que o realizador mescla a naturalidade e o comezinho da vida cotidiana de diversas classes sociais ou universos de vivência à absoluta e irrestrita quebra das convenções e das lógicas
de causa, efeito e sentido.
Uma cena muito específica, já em seu penúltimo filme, ilustra o curto-circuito buñuelesco. Em O Fantasma da Liberdade (1974), um grupo de pessoas
se senta à mesa. As cadeiras são vasos sanitários, no que homens arriam as
calças e mulheres levantam as saias para se acomodarem; em vez de pratos
e talheres, há jornais e revistas à disposição; a empregada circula com uma
bandeja de papel higiênico; quando uma criança diz estar com fome, ela é
repreendida pela mãe: “Não se fala essas coisas na mesa!”. Um dos presentes se levanta, dá descarga e cochicha com a empregada: “Onde fica a sala de
jantar?”. Ela aponta um canto do corredor, ele se dirige ao local, fecha a por-
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ta, monta uma mesinha e discretamente inicia uma bela refeição. Ao ouvir alguém bater à porta, grita: “Está ocupado!”.
A inversão da lógica e do senso comum é, em Buñuel, a contribuição política
de suas ideias para um olhar ácido e controverso aos padrões sociais. Ele herda
a prática da experiência de juventude com o movimento surrealista, no começo dos anos 1930, na Espanha, quando convivia com parceiros como Salvador
Dalí, André Breton, Man Ray e Paul Éluard. Num trecho de suas memórias no
livro Meu Último Suspiro, o diretor explicita os objetivos daquela geração:
Como todos os membros do grupo, eu me sentia atraído por certa
ideia de revolução. Os surrealistas, que não se consideravam terroristas ou ativistas armados, lutavam contra uma sociedade que eles
detestavam utilizando o escândalo como arma principal. Contra as
desigualdades sociais, a exploração do homem pelo homem, o poder emburrecedor da religião, o militarismo grosseiro e colonialista,
o escândalo pareceu durante muito tempo o revelador todo-poderoso, capaz de trazer à tona as molas secretas e odiosas do sistema que
era preciso derrubar. (...) A verdadeira finalidade do surrealismo não
era criar um novo movimento literário, ou pictórico, ou ainda filosófi1
Meu Último Suspiro, Cosac Naify, 2009, p. 155-56.
co, mas fazer a sociedade explodir, mudar a vida.1
Buñuel era antiutópico o suficiente para saber que seus filmes não seriam
capazes de “mudar a vida”, mas isso jamais o impediu de tentar. Os preceitos
do surrealismo lhe serviram à zombaria e crítica sem limites a todo tipo de
núcleo pelo qual sentisse algum grau de antipatia (burguesia e religião) ou
que se utilizasse perversamente de determinadas prerrogativas com intuitos
escusos ou egoístas (sexo). Dentre tantos exemplos, é num trio de filmes em
que vamos aqui nos deter brevemente: O Anjo Exterminador (México, 1962), O
103
L uis Bu ñ u e l – V ida e Obra
Discreto Charme da Burguesia (França, 1972) e O Fantasma da Liberdade (França,
1974). Separados por uma década e produzidos em dois países, revelam facetas significativas da maneira como o cinema de Buñuel tratou de questões delicadas com virulência e desrecalque, impregnando de sentidos políticos uma
série de escolhas aparentemente aleatórias.
O cerimonial de se sentar à mesa para uma refeição serve de ponto de relação
imediata entre os três longas. Para cada um, Buñuel apresenta uma situação
em que os personagens planejam comer juntos. Rito social típico, o ato é tratado nos filmes como a reunião entre gente abastada que se encontra para falar
amenidades, criticar comportamentos vistos como “inferiores” ou “mal-educados” e expor-se diante da visão aristocrática do outro. É o gatilho que serve para
Buñuel lidar com a “moral burguesa”, definida por ele como “a moral fundada
sobre nossas injustas instituições sociais, como a religião, a pátria, a família, a
cultura, enfim, isso que se chama ‘os pilares da sociedade’ (...)”2.
Em O Anjo Exterminador, um grupo se reúne na casa de um milionário após
uma apresentação teatral. Ao mesmo tempo em que os convidados chegam,
2
Citado por Glauber Rocha no artigo “Os 12 mandamentos de nosso
senhor Buñuel”, em O Século do Cinema (Cosac Naify, 2006, p. 172).
104
os empregados parecem estar fugindo de algum perigo nunca revelado. A
premissa do filme, tratada com naturalidade pelo enredo e típica do surrealismo, é de que os ricos nunca conseguem sair da sala onde estão. Eles querem,
eles tentam, eles desejam, mas simplesmente lhes é impossível atravessar o
limite geográfico entre o salão e o restante da mansão: quando se aproximam
desse limite, eles desistem ou recuam.
O ponto de partida dá a deixa para o filme exibir uma fauna de tipos humanos, quase todos sob o viés caricato, gente que se orgulha de estar inserida
na alta sociedade e de apontar as inferioridades das quais acredita não fazer
parte, mas é incapaz de tomar atitudes simples como ir embora. Direto e objetivo, Buñuel debochava de quem via no filme simbolismos mais profundos,
como interpretar o urso que habita os corredores e escadarias da casa como
“o bolchevismo espreitando a sociedade capitalista paralisada por suas con3
Meu Último Suspiro, p. 332.
tradições”3. Em tempos de Guerra Fria, podia, de fato, não ser nada disso, mas
também não deixava de ser. A questão mais importante nem era o significado
de quaisquer elementos em cena, mas o sentido que esses elementos ofereciam à dramaturgia e ao desenvolvimento do filme.
Do lado de fora da casa, por exemplo, inicia-se um grande tumulto, como
se houvesse uma situação de reféns. Pessoas se aglomeram, crianças se divertem, militares parecem se posicionar para alguma intervenção. Dentro do salão, porém, a única coisa que acontece é que os convidados não saem de lá.
Eles devem reconstruir o instante de “aprisionamento” para conseguirem se libertar, só que esse momento não será o mesmo de antes. Sujos, humilhados,
primitivos, eles agora são restos de si e resignam-se a repetir os próprios movimentos para que possam efetivar a possibilidade de novas ações. No epílogo de O Anjo Exterminador, Buñuel deixa uma provocação: o mesmo fenômeno acontece numa igreja abarrotada de fiéis.
Uma década depois, em O Discreto Charme da Burguesia, o cineasta retoma o
L uis Bu ñ u e l – V ida e Obra
mote do jantar, agora o ampliando para além da situação surreal isolada. Um
grupo mais fechado de personagens circula pelos diversos acontecimentos do
filme. Se antes, em O Anjo Exterminador, a impossibilidade estava no deslocamento espacial, agora a trava é de ação: por mais que tentem, das mais variadas formas, os protagonistas não conseguem se sentar para comer. O movimento dos corpos é plenamente possível, tornando a narrativa inclusive uma
espécie de road movie por salas de jantar e cafés parisienses, mas a finalidade
social jamais é cumprida. É como se uma força externa estivesse a todo instante criando obstáculos para os burgueses se refestelarem em seus prazeres
gastronômicos, pelos quais muitas vezes tentam se mostrar superiores àqueles que os servem. “Nenhum sistema dará ao povo algum refinamento social”
é uma frase dita a certa altura que parece ecoar a forma de agir de cada personagem. Só que nem o pseudorrefinamento será suficiente para que eles cometam o ato mais básico da sobrevivência humana (comer) ou escapem de
um purgatório que insiste em fazer parte de seus destinos, como dão a ver as
cenas do grupo caminhando pela estrada vazia.
A performance burguesa denunciada por Buñuel através da farsa é levada
ao literal na cena em que os amigos, sem saberem, veem-se num palco de
teatro, diante de uma plateia séria e atenta ao que eles vão dizer. O sonho de
uma pessoa dentro do sonho de outra é mais um recurso narrativo pelo qual,
ao mesmo tempo em que se permite fazer troça com personalidades de excesso, o diretor oferece sofisticação insuspeita aos desdobramentos do enredo, já que o surreal vai se compondo sem que chame atenção para si enquanto construção. O Discreto Charme da Burguesia, tal como a literatura de Murilo
Rubião e alguns escritos de Jorge Luis Borges, trata do absurdo e do inesperado a partir do mesmo ponto de equilíbrio com que trafega pelo que se convenciona chamar de normalidade. É quase impossível apontar no filme o que
seria de fato “surreal”, pois Buñuel não hierarquiza as situações. Elas apenas
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existem, e eis um de seus atestados políticos. Categorizá-las seria diminuí-las
na sua autonomia e dar-lhes importâncias distintas.
A montagem de Buñuel não pretende informar pela lógica: desperta,
critica, aniquila, pela violência, pela introdução do plano anárquico,
profano, erótico — sempre pelas imagens proibidas no contexto da
burguesia. Seu estilo é uma ideia em movimento — a liberdade realista desta ação é seguida por um olho atento aos detalhes: a ducha
de água quente e fria, irregularmente, jamais permitindo que o es4
Glauber Rocha em O Século do Cinema (p. 174-75).
pectador pare de pensar.4
O Fantasma da Liberdade desenvolve ainda mais e radicaliza os procedimentos de O Anjo Exterminador e O Discreto Charme da Burguesia. A fragmentação da
ação e do espaço se torna mais protagonista do que situações ou personagens
específicos. Numa corrente aparentemente interminável, um núcleo abre espaço a outro núcleo na medida em que novas camadas vão sendo acrescentadas.
Não se está, aqui, num filme de sinopse, mas de instantes únicos, que se juntam
para um retrato bastante complexificado daquela moral burguesa, alvo da raiva de Buñuel. O filme circula com desenvoltura por cada núcleo, dando voltas
e voltas dentro de si mesmo, até atingir a abstração do desfecho, marcado pelo
olhar inquieto de um avestruz, inocência não domesticada submetida às diatribes do ser humano que não se entende consigo mesmo.
Se em O Discreto Charme da Burguesa havia três desvios narrativos em que
soldados ou recrutas descreviam sonhos (apresentados em flashbacks), O
Fantasma da Liberdade é como que um filme inteiro composto por aquele tipo
de sonho. A lógica estabelecida pelas convenções é constantemente colocada
à prova, como no segmento em que um casal procura desesperadamente a
filha pequena que está o tempo todo presente ao lado deles, ou no pesadelo
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L uis Bu ñ u e l – V ida e Obra
kafkiano do comissário de polícia acusado de não ser o comissário de polícia.
Esse tipo de choque, tão simples de aparecer na maneira como Buñuel estrutura seus roteiros (muito ajudado, aqui e no filme anterior, por Jean-Claude Carrière), se apresenta muito forte numa dramaturgia em que a câmera é
simplesmente apontada para aquilo que se encena diante dela e retira dessa
dramaturgia todo o impacto. Não deve ser por acaso que O Anjo Exterminador,
O Discreto Charme da Burguesia e O Fantasma da Liberdade se concluam com
estranhos tumultos nas ruas e sons de tiros e aglomerações engalfinhadas
(golpe militar? resistência da esquerda? massa faminta? tomada das ruas?): a
ordem social está constantemente na iminência do caos, seja por ação individual do sujeito, seja por imposição coletiva do Estado. Resta a cada pessoa se
ajeitar como pode ou como consegue, tendo a burguesia como ilustração da
covardia, seja ficando quietinha num salão de piano e usando o fundo da parede como banheiro, insistindo nos seus rituais de alienação regados a marti-
5
Meu Último Suspiro, p. 345.
Marcelo Miranda é jornalista e crítico de cinema. Mora em Belo Ho-
ni seco ou praticando sadomasoquismo diante de padres atônitos. Amplian-
rizonte e é mestrando em Comunicação na UFMG. Colaborador de
do o escopo de algumas palavras de Buñuel, pode-se dizer que estes filmes
diversas publicações impressas e virtuais, como as revistas Cinética,
“falam da procura da verdade, da qual temos que fugir a partir do momento
ma, os jornais Estado de São Paulo, Folha de São Paulo e Valor, e
em que julgamos tê-la encontrado no implacável rito social. Falam da busca
em catálogos de retrospectivas e festivais de cinema. Coorganiza-
inexorável, do acaso, da moral pessoal, do mistério que convém respeitar”.5
1957 / 1961-1964).
Interlúdio, Contracampo, Filme Cultura, Teorema e Revista de Cine-
dor do livro em dois volumes Revista de Cinema: Antologia (1954-
“Eu só posso esperar pela
amnésia, aquela que pode
apagar uma vida inteira.”
Luis Buñuel
“Eu faço filmes para mostrar
que o cinema não é o melhor
de todos os mundos possíveis.”
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Buñuel para
contemporaneidade: legado
estético e político do cineasta
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L uis Bu ñ u e l – V ida e Obra
O Absurdo e a Realidade
Carol Almeida
É o absurdo que irrompe a realidade ou a realidade que corta com navalha o absurdo? O cinema de Luis Buñuel trabalha para confundir esses dois
personagens — o Absurdo e a Realidade — a ponto de não mais sermos capazes de identificá-los na multidão: deixaremos ambas as potências explosivas
passarem pelos guichês de imigração. E antes que se acuse essas entidades
como possíveis terroristas a por em risco o sistema e suas normas moralizantes, é preciso deixar claro que Buñuel nunca disfarçou suas intenções iconoclastas: “a simbólica do terrorismo, inevitável em nosso século, sempre me
atraiu, mas do terrorismo total, que visa à destruição de toda sociedade”, escrevia ele em sua autobiografia. O século ao qual o cineasta faz referência mudou, mas na verdade em nada se alterou a inevitabilidade do símbolo terror.
Não aquele empreendido a serviço de grupos de poder financeiros e/ou religiosos — “deles, tenho horror” —, mas sim um cujas intenções seriam destruir a sociedade enquanto um mecanismo de opressores e oprimidos. Se podemos, pois, pensar em um legado estético/político da obra de Don Luis, ele
está justamente nas possibilidades que seu cinema abre quando explode os
monumentos da moral e da razão com imagens absurdas de tão reais e reais
de tão absurdas. O gesto provocador aparentemente sem sentido como aquilo que primeiro, de fato, sentimos latejar em nossos cegos olhos.
De modo que não apenas é possível, como é de fato necessário — e urgente — tensionar a obra de Buñuel com o contemporâneo, identificar nela não
as lições, mas justamente o rompimento de qualquer projeto doutrinador dos
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quais somos cárceres, saber ver e ler as imagens que ele propõe justamente
como uma recusa de explicar um mundo que, quando se explica, de alguma
forma, também se submete. O cineasta aragonês quis desde sempre libertar
a imagem para além do sentido que esperamos dela, usando esse estranhamento como uma forma de estender nosso desconforto diante do que é visto
para aquilo que é tematizado em cena: os três pilares aprisionadores da sociedade como sempre a conhecemos, aristocracia, religião e patriarcado. Eis
a santíssima trindade disposta sobre os móveis mais caros de recintos fechados: o pai, o filho e o espírito porco da burguesia. E a grande audácia do diretor espanhol não foi exatamente arranhar os crucifixos e a prataria dessas
pessoas da sala de jantar, mas sim debochar delas. A ironia que inaugurou seu
cinema, bem como aquela que esteve presente em seus filmes pós-anos 60,
foi e continua sendo também um de seus maiores atentados “terroristas”, nos
termos definidos pelo próprio diretor.
Não é de se estranhar que até hoje sua obra, seja essa do deboche, ou mesmo das imagens despidas de qualquer elaboração fictícia, como nas cenas de
crianças e adultos se tremendo e morrendo diante das câmeras em Terra sem
pão (1933), ou mesmo ainda aquele de uma fabulação dolorosa sobre uma humanidade incapaz de ser humana em filmes como Os Esquecidos (1950), tenha
incomodado e perturbado alguns setores da própria crítica cinematográfica
alinhados a um pensamento conservador. A lembrar do pouco afeto dispensado pela imprensa norte-americana quando o espanhol ficou exilado nos
Estados Unidos entre 1938 e 1946. Mas um episódio particular, praticamente
inaugural da relação de seu cinema com o mundo, se tornaria a epítome do irracional que povoaria os personagens dentro e fora de quadro. Trata-se da exibição de A Idade do Ouro (1930) na famosa sala Studio 28, em Paris, quando organizações integralistas, estimuladas por uma imprensa de direita, rasgaram
a tela do cinema e atacaram pessoas que estavam assistindo ao filme. Esse
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não é um fato tão distante quanto gostaríamos que fosse. O surrealismo do
cinema de Buñuel atingia já naquele momento o espaço extrafílmico, onde a
câmera sequer conseguia alcançar as imagens reais do absurdo. De várias formas, esse cinema ainda nos atinge quando o articulamos com o cenário que
se desdobra na paisagem contemporânea, num momento em que, mais de
80 anos depois, agressões semelhantes começam a atingir qualquer discurso
dissonante do combo Tradição, Família, Propriedade. Novas (novas?) frentes fascistas se armam, um movimento internacional de
fortalecimento da extrema direita se ergue e, do lado de cá, é fundamental
ressoar a cena de nobres senhores e senhoras que, da sacada de uma mansão,
observam, entediados, uma criança ser assassinada por ter escolhido a hora
errada de brincar em A Idade do Ouro. Ou de outra criança que, em O Fantasma
da Liberdade, puxa a barra do vestido da mãe para dizer que ela não está perdida, enquanto a mãe nada vê e pede que a polícia investigue o desaparecimento da menina que está bem diante dela. Com muita frequência, quem vê
nos filmes de Buñuel não consegue enxergar, e aqueles que não veem - a reincidência de personagens cegos em sua filmografia não acontece à toa - parecem ser os primeiros a sentir a inoperância de qualquer ordem racional. O fato
de que o procedimento cinematográfico de Buñuel é quase sempre o mesmo
para filmar as sequências “reais” e as “imaginárias” revela suas intenções de
nos deixar as imagens gravadas — pois precisamos politicamente dessa memória visual — a despeito de seus sentidos, ou melhor, contra a própria ideia
de sentido, uma vez que este vive sob domínio das instituições. Para Buñuel
e o movimento surrealista, que era essencialmente político em suas diversas
manifestações, os sentidos são com frequência forjados para justificar extermínios, guerras e todos os mais diversos mecanismos de opressão, sejam eles
épicos ou cotidianos.
É, de fato, a “suspensão do sentido”, como escreveria Roland Barthes quando
L uis Bu ñ u e l – V ida e Obra
se debruçou sobre O Anjo Exterminador, o horizonte possível de uma narrativa
revolucionária. “Nada explica nada”, diz um dos personagens, desse que é possivelmente o filme que melhor catalisa todo o legado do cinema de Buñuel. A
diegese de O Anjo Exterminador é onde, tantos anos após sua filmagem, ainda
permanecemos presos no tabuleiro. Numa sátira à natureza cíclica e perversa
da História, o diretor espanhol filma um voluntário e inexplicável aprisionamento da burguesia dentro de uma sala onde as situações e cenas se repetem,
como se não apenas aqueles personagens, mas nós que os assistimos, nos resignássemos todos diante do absurdo e passássemos inconscientemente a tomar esse absurdo, tantas vezes reiterado em cena, como normalidade. E se
isso não diz sobre o atual estado das coisas, nada mais pode dizer.
No âmbito da narrativa cinematográfica, essas e outras imagens ecoam em
vários diretores que atribuem a Buñuel uma referência não apenas da ordem
da estética do insólito, mas fundamentalmente um pilar na hora de se pensar
criticamente o despautério da sociedade burguesa a partir desse insólito. Seria impensável imaginar a filmografia de David Lynch sem a presença anterior
de Buñuel; há sequências de filmes assinados por Terry Gilliam claramente
espelhadas no diretor aragonês; não é possível entender o próprio cinema espanhol de Pedro Almodóvar, Carlos Saura, Fernando Trueba, Vicente Aranda
e Bigas Luna sem pensá-lo como uma linha contínua daquilo que começou
com Um Cão Andaluz e terminou com as oníricas representações de uma aristocracia patética; os diretores mexicanos Arturo Ripstein, que começou sua
carreira sendo assistente de direção em O Anjo Exterminador, e Carlos Reygadas são confessadamente influenciados pela obra buñueliana. A frisar que na
estreia do mais recente filme de Reygadas exibido em Cannes, Post Tenebras
Lux (2012), que carrega ele próprio imagens de um absurdo marcado pelas
sombras da instituição familiar, a plateia presente ouviu alguém soltar um
sonoro ‘viva Buñuel!’ durante os créditos finais. No Brasil, a obra de Glauber
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Rocha cresce quando colocada lado a lado com a do diretor espanhol. Ambas
lidam diretamente com a crítica direta à institucionalização (pela Igreja, Família ou Capital) dos mitos originais.
Mas o espólio de Don Luis excede a linguagem cinematográfica. Sim, sua
obra criou cineclubes, mas mais do que isso, atravessou e constituiu o imaginário estético/político de várias gerações de artistas e pensadores. O caso da
literatura, por exemplo. É preciso lembrar que o escritor cubano Alejo Carpentier, antes de inaugurar aquilo que viria a se chamar de realismo maravilhoso
na literatura latino-americana, foi fortemente influenciado pelo movimento
surrealista do qual Buñuel fazia parte e que este fato está ligado a um episódio que quase passou despercebido pela História: em 1962, o ainda jovem escritor Gabriel García Márquez enviou um roteiro de uma comédia surrealista
para Buñuel filmar. Don Luis recusou. Poucos anos depois, aquele romancista
colombiano se tornaria internacionalmente famoso com os seus Cem Anos de
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L uis Bu ñ u e l – V ida e Obra
Solidão e se tornaria então o grande representante do realismo maravilhoso,
também conhecido como mágico ou fantástico. Não se pode dizer que a obra
nem de Carpentier, e muito menos a de García Márquez, tenham marcações
de Buñuel em suas escritas, mas é inegável perceber, ainda que por contraponto, como o realismo maravilhoso desses autores é herdeiro dessa necessidade de tensionar o real e o absurdo, o racional e o irracional, e a verdade que
cada campo desses carrega em si. E o que é a fictícia República de Miranda em
O Discreto Charme da Burguesia senão um diálogo direto com essa literatura? Seja nas manifestações ilógicas do inconsciente no surrealismo e mesmo
nas alegorias sobrenaturais usadas posteriormente pelo realismo maravilhoso, Buñuel está presente.
Para além desses embates, sua obra, em todas as suas fases, é marcada por
um forte tom crítico da sociedade em que continuamos a viver, ressoa ainda
mais hoje no modo como recebemos as imagens dos acontecimentos (reais?
lógicos?) do mundo cada vez mais submisso a todas as instituições as quais
Buñuel condenava. No amontoado de cenas filmadas por celulares, gifs que
colocam as situações em infinita repetição, a falsa materialização de personagens virtuais em jogos compartilhados por multidões presas a pequenos
monitores e uma imprensa que, diante do fato concreto, opta por desviar sua
câmera para o espaço vazio onde ela mesma cria o fato, o resíduo que fica de
tudo isso é a sensação de que esse excesso de imagens cíclicas não se propõe
a nos fazer enxergar nada. Mas agora, esse “nada explica nada” se tornou um
projeto ideológico que, em lugar de incomodar, anestesia as massas. Precisamos voltar a Buñuel para resgatar as implicações sociais e políticas da suspensão do sentido. Se, para usar as referências entomológicas do cineasta, ainda
somos os mesmos insetos perigosos de sempre, que usemos da nossa irra-
Carol Almeida é jornalista, doutoranda da UFPE com pesquisa fo-
cionalidade para pulsar ideias e, quem sabe, conseguir escapar desse buraco
cada na relação entre cinema e cidade, escreve também sobre cine-
com um pouco de poesia.
do Vidraças – Desconstruindo o machismo no audiovisual.
ma em seu site foradequadro.com e faz parte do coletivo Quebran-
Fichas Técnicas e Sinopses
L uis Bu ñ u e l – V ida e Obra
Um Cão Andaluz (Un Chien Andalou)
França, 1929
Elenco Simonne Mareuil, Pierre Batchef e Luis Buñuel
Roteiro Luis Buñuel e Salvador Dalí
Fotografia Albert Duverger
Montagem Luis Buñuel
Duração 17 minutos
Sinopse O filme não possui uma história na ordem normal dos acontecimentos. Utiliza a lógica
dos sonhos, baseado em conceitos da psicanálise de Freud, como o inconsciente e as fantasias.
Ele apresenta uma reunião de imagens oníricas, encadeadas como se fossem um pesadelo, repleto de cenas metafóricas.
Classificação indicativa 14 anos
A Idade do Ouro (L´âge D´or)
França, 1930
Elenco Gaston Modot, Lya Lys e Max Ernst
Roteiro Luis Buñuel e Salvador Dalí
Fotografia Albert Duverger
Montagem Luis Buñuel
Duração 60 minutos
Sinopse Um homem e uma mulher estão loucamente apaixonados, mas não conseguem consumar esse amor. Primeiro, eles interrompem um cerimonial estranho cheio de bispos com os seus
gritos, depois estão em uma festa, mas são interrompidos de várias maneiras.
Classificação indicativa 16 anos
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Terra sem Pão (Las Hurdes)
Espanha, 1933
Roteiro Luis Buñuel
Fotografia Eli Lotar
Montagem Luis Buñuel
Duração 30 minutos
Sinopse Em uma remota região montanhosa da Espanha, os habitantes vivem em extrema pobreza na década de 30. Eles sobrevivem sem as mínimas condições, em meio a doenças, desnutrição e ignorância, e tudo é calmamente observado por uma câmera.
Classificação indicativa 14 anos
El Gran Calavera
México, 1949
Elenco Fernando Soler, Rosario Granados e Rubén Rojo
Roteiro Janet Alcoriza e Luis Alcoriza
Fotografia Ezequiel Carrasco
Montagem Carlos Savage
Duração 87 minutos
Sinopse Um rico viúvo e alcoólatra sustenta os filhos, o irmão e a cunhada. O irmão faz com que
ele acredite que está falido. Assim, os familiares precisarão arranjar um emprego para se manter.
Classificação indicativa 14 anos
L uis Bu ñ u e l – V ida e Obra
Os Esquecidos (Los Olvidados)
México, 1950
Elenco Estela Inda, Alfonso Mejía e Miguel Inclán
Roteiro Luis Buñuel e Luis Alcoriza
Fotografia Gabriel Figueroa
Montagem Carlos Savage
Duração 85 minutos
Sinopse Nos subúrbios da cidade do México, um grupo de jovens delinquentes passa os dias cometendo pequenos roubos. Um fugitivo de um reformatório, por ser mais velho e experiente, se
torna o líder natural deles. Prêmio de Melhor Direção no Festival de Cannes.
Classificação indicativa 14 anos
A Filha do Engano (La Hija Del Engaño)
México, 1951
Elenco Fernando Soler, Alicia Caro e Fernando Soto
Roteiro Janet Alcoriza e Luis Alcoriza
Fotografia José Ortiz Ramos
Montagem Carlos Savage
Duração 78 minutos
Sinopse Um modesto caixeiro-viajante passa por dificuldades econômicas. Um dia, ele encontra
sua esposa com outro homem. E passa a duvidar da paternidade de sua filha. Anos depois decide procurá-la.
Classificação indicativa 14 anos
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Subida ao Céu (Subida al Cielo)
México, 1952
Elenco Lilia Prado, Esteban Márquez e Luis Aceves Castañeda
Roteiro Manuel Reachi, Manuel Altolaguirre, Luis Buñuel, Juan de La Cabada e Lilia Solano
Fotografia Alex Phillips
Montagem Rafael Portillo
Duração 85 minutos
Sinopse A lua de mel de um jovem casal é interrompida quando o homem descobre que a sua
mãe ficou doente. O filho retorna para a casa e constata que seus irmãos estão discutindo sobre
a herança. Em uma viagem de ônibus para buscar o testamento, o jovem se depara com alguns
imprevistos. Seleção Oficial do Festival de Cannes.
Classificação indicativa 14 anos
Escravos do Rancor (Abismos de Pasión)
México, 1953
Elenco Irasema Dilian, Jorge Mistral e Lilia Prado
Roteiro Luis Buñuel, Julio Alejandro e Dino Maiuri
Fotografia Agustín Jiménez
Montagem Carlos Savage
Duração 91 minutos
Sinopse Casal recebe a visita de ex-cavalariço, criado junto com a esposa e ainda apaixonado por
ela. Ele é rico agora e utiliza seu poder para se vingar dos que o desprezaram antes e conquistar a
moça. Adaptação do romance O Morro dos Ventos Uivantes, de Emily Brontë.
Classificação indicativa 14 anos
L uis Bu ñ u e l – V ida e Obra
A Ilusão Viaja de Trem (La Ilusión Viaja en Tranvía)
México, 1954
Elenco Lilia Prado, Carlos Navarro e Fernando Soto
Roteiro José Revueltas, Juan de la Cabada, Luis Alcoriza e Mauricio de la Serna
Fotografia Raúl Martínez Solares
Montagem Jorge Bustos
Duração 90 minutos
Sinopse Ao saberem que o bonde 133, no qual trabalharam durante toda a vida, será retirado de
serviço, indo para o ferro-velho, dois amigos ficam bêbados e decidem sequestrá-lo. Nesta última viagem, acabam levando um grupo de passageiros de diferentes idades, profissões e condições sociais. Classificação indicativa 14 anos
Ensaio de um Crime (Ensayo de un Crimen)
México, 1955
Elenco Miroslava, Ernesto Alonso e Rita Macedo
Roteiro Eduardo Ugarte e Luis Buñuel
Fotografia Agustín Jiménez
Montagem Jorge Bustos e Pablo Gómez
Duração 89 minutos
Sinopse Archibaldo é presenteado na infância com uma caixinha de música que pretensamente
lhe daria poderes para eliminar seus inimigos. Coincidentemente assiste à morte de sua ama enquanto testa os poderes da caixa e atribui o feito aos poderes desta. Adulto, marcado pelo episódio, ele confessa ao chefe de polícia seus crimes, apresentando-se como serial killer. Prêmio Ariel,
o Oscar do México, de Melhor Fotografia.
Classificação indicativa 14 anos
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Nazarin (Nazarín)
México, 1959
Elenco Francisco Rabal, Marga López e Rita Macedo
Roteiro Emilio Carballido, Julio Alejandro e Luis Buñuel
Fotografia Gabriel Figueroa
Montagem Carlos Savage
Duração 94 minutos
Sinopse O padre Nazarin tenta viver de forma honesta, segundo os princípios cristãos. Humilde,
porém idealista, ele acaba abrigando Andara, uma prostituta que está fugindo da polícia e eles
são obrigados a sair da cidade. Prêmio Internacional no Festival de Cannes.
Classificação indicativa 14 anos
Viridiana
Espanha/México, 1961
Elenco Silvia Pinal, Francisco Rabal e Fernando Rey
Roteiro Julio Alejandro e Luis Buñuel
Fotografia Jose F. Aguayo
Montagem Pedro del Rey
Duração 90 minutos
Sinopse A noviça Viridiana faz uma visita ao seu tio moribundo, atendendo a um pedido do próprio. O pervertido homem, obcecado pela beleza da jovem, tenta seduzi-la de todas as formas.
Palma de Ouro de Melhor Filme no Festival de Cannes.
Classificação indicativa 16 anos
L uis Bu ñ u e l – V ida e Obra
O Anjo Exterminador (El Ángel Exterminador)
México, 1962
Elenco Silvia Pinal, Enrique Rambal e Claudio Brook
Roteiro Luis Buñuel
Fotografia Gabriel Figueroa
Montagem Carlos Savage
Duração 95 minutos
Sinopse Um casal da elite da sociedade convida um grupo de amigos para um jantar em sua luxuosa mansão. Mas, depois do evento, eles descobrem que estão presos em uma sala. Não há nada físico que os prenda ali, mas ninguém consegue sair do local. Seleção Oficial do Festival de Cannes.
Classificação indicativa 14 anos
O Diário de uma Camareira
(Le Journal d´une Femme de Chambre)
França/Itália, 1964
Elenco Jeanne Moreau, Michel Piccoli e Georges Géret
Roteiro Jean-Claude Carrière e Luis Buñuel
Fotografia Roger Fellous
Montagem Louisette Hautecoeur e Luis Buñuel
Duração 101 minutos
Sinopse Uma camareira conseguiu emprego trabalhando para a família Monteil, que tem certas
peculiaridades. A patroa é frígida, mas seu marido está sempre caçando animais ou mulheres. O
pai de Madame Monteil tem um fetiche: sapatos femininos, e logo faz a camareira usar um deles.
Prêmio de Melhor Atriz no Festival Internacional de Karlovy Vary.
Classificação indicativa 14 anos
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A Bela da Tarde (Belle de Jour)
França/Itália, 1967
Elenco Catherine Deneuve, Michel Piccoli e Pierre Clémenti
Roteiro Jean-Claude Carrière e Luis Buñuel
Fotografia Sacha Vierny
Montagem Louisette Hautecoeur
Duração 101 minutos
Sinopse Uma jovem é rica e bonita, porém infeliz. Ela ama seu marido, um médico, mas eles não
são tão íntimos quanto ela deseja. Ela procura um discreto bordel para realizar suas fantasias
eróticas e conseguir o prazer que seu marido não consegue lhe dar. Vencedor do Leão de Ouro de
Melhor Filme no Festival de Veneza.
Classificação indicativa 16 anos
A Via Láctea ou O Estranho Caminho de Santiago
(La Voie Lactée)
França/Itália, 1969
Elenco Paul Frankeur, Edith Scob e Michael Piccoli
Roteiro Jean-Claude Carrière e Luis Buñuel
Fotografia Christian Matras
Montagem Louisette Hautecoeur
Duração 98 minutos
Sinopse Dois peregrinos saem para uma jornada pelo caminho de Santiago de Compostela, e
têm sua fé testada durante muitos momentos da peregrinação. Principalmente nos encontros
com Jesus, a Virgem Maria e até o próprio Diabo. Prêmio Especial no Festival de Berlim.
Classificação indicativa 14 anos
L uis Bu ñ u e l – V ida e Obra
Tristana, uma paixão mórbida (Tristana)
Espanha/França/Itália, 1970
Elenco Catherine Deneuve, Fernando Rey e Franco Nero
Roteiro Julio Alejandro e Luis Buñuel
Fotografia José F. Aguayo
Montagem Pedro del Rey
Duração 95 minutos
Sinopse Após a morte da mãe, uma órfã é entregue aos cuidados do respeitado Don Lope. O relacionamento da jovem com o tutor vai se modificando, ele a seduz e os dois logo se tornam amantes. Com a chegada de um jovem, o relacionamento do casal é abalado. Indicado ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro.
Classificação indicativa 14 anos
O Discreto Charme da Burguesia
(Le Charme Discret de la Bourgeoisie)
França, 1972
Elenco Fernando Rey, Paul Frankeur e Delphine Seyrig
Roteiro Jean-Claude Carrière e Luis Buñuel
Fotografia Edmond Richard
Montagem Hélène Plemiannikov
Duração 102 minutos
Sinopse Seis pessoas da classe média burguesa se reúnem para jantar, mas são constantemente
interrompidos por uma série de estranhos acontecimentos. Mistura de situações reais da história
com os sonhos e devaneios dos personagens, o filme se passa apenas durante uma tarde. Vencedor do Oscar de Melhor Filme Estrangeiro.
Classificação indicativa 14 anos
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O Fantasma da Liberdade (Le Fantôme de la Liberté)
França/Itália, 1974
Elenco Jean-Claude Brialy, Adolfo Celi e Michael Lonsdale
Roteiro Jean-Claude Carrière e Luis Buñuel
Fotografia Edmond Richard
Montagem Hélène Plemiannikov
Duração 104 minutos
Sinopse Não há uma narrativa em especial e sim situações surreais, que começam com o fantástico relato que se passou em Toledo, Espanha, em 1808. Um oficial de um exército napoleônico
quis levar para a cama uma morta, mas ao abrir o caixão a falecida tinha um rosto que conservava todo o seu frescor. Prêmio de Melhor Filme Estrangeiro para Associação de Críticos e Jornalistas da Itália.
Classificação indicativa 14 anos
Esse Obscuro Objeto do Desejo
(Cet Obscur Objet du Désir)
Espanha/França, 1977
Elenco Fernando Rey, Carole Bouquet e Angela Molina
Roteiro Jean-Claude Carrière e Luis Buñuel
Fotografia Edmond Richard
Montagem Hélène Plemiannikov
Duração 102 minutos
Sinopse Um homem rico e sofisticado, que está entrando na 3ª idade, tenta obsessivamente ganhar os afetos de uma jovem de 18 anos. Assim ela manipula o desejo carnal dele e cada um tenta ganhar absoluto controle sobre o outro. Indicado ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro e Roteiro Adaptado.
Classificação indicativa 16 anos
“Felizmente, em algum lugar
entre o acaso e o mistério reside a
imaginação, a única coisa que protege
nossa liberdade, ainda que as pessoas
tentem reduzi-la ou matá-la.”
Luis Buñuel
“Francamente, independente
do meu horror pela imprensa,
eu adoro sair do túmulo a cada
10 anos e comprar alguns jornais.”
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Ag r a d e c i m e n to s
Andre Vital
Antonio Carlos de Mello
Claudia Lima Fernandes
Consulado Geral do México no Rio de Janeiro
Diego Luis Buñuel
Eidil Fonseca
Instituto Cervantes do Rio de Janeiro
Oscar Pujol Riembau – Diretor Instituto Cervantes Río de Janeiro
Carlos Alberto Della Paschoa – Bibliotecário
María Fernanda Míguez Bastos – Coordenadora de cultura
Marina Díaz Lopes – Depto. Cultura Instituto Cervantes de Madri
Biblioteca José García Nieto
Filmoteca Espanhola
José-Marcio Martins da Cruz
Marcelo Laffitte
Octávio Bezerra
Suellen Felix Nascimento
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L uis Bu ñ u e l – V ida e Obra
Créditos
Coordenação Geral
Touché Produção & Comunicação
Claudia Oliveira
Mariana Bezerra
apoio institucional
Curadoria
Sylvia Palma
Produção Executiva
Breno Lira Gomes
Assistente de Produção
Daniela Barbosa
Secretária de Produção
Glória Pereira
Coordenação Editorial
Leonardo Luiz Ferreira
apoio
Projeto Gráfico
Guilherme Lopes Moura
Web Designer
Fernando Alvarez
Coordenação de Redes Sociais
Gabi Moscardini
Marketing
Daniela Barbosa
Monitoria
Urion Castilho
Yasmin Cavalcanti
Alimentação
Silvia Nascimento
Vinheta
Fernanda Teixeira
Assessoria de Imprensa
Mariana Bezerra
Gabi Moscardini
Registro Fotográfico
Miguel Pinheiro
23 de agosto a 4 de setembro de 2016
CAIXA Cultural Rio de Janeiro
Cinema 1
Av. Almirante Barroso, 25, Centro
Tel: 21 3980-3815
www.caixacultural.gov.br
Baixe o aplicativo CAIXA Cultural
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www.facebook.com/mostraluisbunuel
Alvará de Funcionamento da CAIXA Cultural RJ:
nº 041667, de 31/03/2009, sem vencimento.
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Este catálogo foi composto com a família tipográfica Alegreya Sans,
o miolo foi impresso em papel couché matte 150g/m2, e a capa
em papel Supremo Duo Design 300g/m2 na Gráfica Stamppa.

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