HELLEN MORAIS-correçõespósbanca

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HELLEN MORAIS-correçõespósbanca
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INTRODUÇÃO
A proposta deste estudo, feita pela professora Dra. Aparecida Nunes, orientadora
do presente trabalho, parecia estranha de início mas, rapidamente, se revelou plausível e
intrigante. A informação de que Juscelino Kubitschek se deslocava até São Lourenço,
no Sul de Minas, para visitar o templo da Sociedade Brasileira de Eubiose1, como
provam fotografias divulgadas no livro “JK JK! A Conexão Esotérica” do jornalista (e
eubiota) Miguel Henrique Borges - e as quais serão apresentadas neste trabalho, surgiu
como a ponte entre a história oficial e as diferentes versões dos momentos mais
polêmicos da vida política de JK. Uma dessas versões apresenta Juscelino como o expresidente que alavancou o desenvolvimento nacional ao implementar a indústria e
transferir a capital federal para a região central do país, outra o mostra como o
presidente que, em virtude da construção de Brasília, mergulhou o país na inflação e no
endividamento externo, além de romper com o FMI.
O livro de Miguel Borges, publicado em 2002, foi o ponto de partida para este
estudo. Para escrever a obra, o jornalista teve à sua disposição os arquivos da Sociedade
Brasileira de Eubiose, o que levou os chamados iniciados (eubiotas) a considerarem a
obra como uma valiosa contribuição à história do país, uma vez que revela a inclinação
de JK para a espiritualidade e as ordens esotéricas (no caso, a Eubiose), as quais o
teriam influenciado em suas grandes decisões como presidente. Essa informação,
conhecida dos eubiotas, não era divulgada pela Eubiose e foi trazida a público através
do supracitado livro escrito por ocasião do centenário do nascimento de JK. No livro,
Borges cita a discrição do presidente em relação à sua inclinação para a religiosidade
não ligada ao catolicismo (já que Juscelino Kubitschek jamais divulgou ter ligação com
ordens esotéricas, declara Borges no livro). O jornalista ainda afirma que a
concretização de Brasília, por exemplo, não se resume a um mero capricho de Juscelino,
mas à obra de um “gênio transcendente”, dotado de superioridade. Juscelino teria sido
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Eubiose é a filosofia do viver em harmonia com a natureza. É difundida em todo o mundo pela
Sociedade Brasileira de Eubiose, com sede na cidade de São Lourenço – Minas Gerais, e funciona como
colégio iniciático, aberto a qualquer pessoa independentemente de suas crenças ou etnias. A palavra
Eubiose foi criada pelo teósofo brasileiro Henrique José de Souza a partir das raízes gregas Eu (eús, eú,
bom, bem), bio (bios, vida) e ose (osis, processo, ação, condição), significando, portanto, processo ou
condição de bem viver.
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um homem designado por “ordens superiores” para a idealização e concretização da
nova capital federal, e o próprio JK relata, em suas autobiografias, ter essa convicção.
O objeto de análise escolhido foi o conjunto de discursos proferidos por
Juscelino durante os cinco anos de mandato como presidente da República. O fato de o
estudo ser orientado para a área de Letras permite que as análises não se restrinjam à
política e a história, mas englobem a sociologia, a filosofia e, principalmente, a
ideologia presente nos discursos proferidos pelo ex-presidente em seus cinco anos à
frente do governo federal. A escolha das palavras e verbos, a construção das frases,
nada é inocente. Em conversas com o Prof. Dr. Cláudio Leitão durante as aulas de
semiótica no mestrado, uma hipótese veio à tona: a possibilidade de haver um
“intérprete” para o pensamento de JK. Não que o ex-presidente não soubesse se
expressar em público, mas poderia haver a intenção de se apagar traços da suposta
influência religiosa em seu discurso, o que também interferiria na identidade de JK
conhecida publicamente.
Que personalidade então seria a apresentada à nação? Segundo o professor
Cláudio Leitão, o escritor e jornalista mineiro Autran Dourado seria um dos
responsáveis por redigir os discursos do ex-presidente, informação confirmada pelo
próprio Autran no livro “Gaiola Aberta - Tempos de JK e Schmidt” e também em
entrevistas concedidas por telefone em 22 de julho de 2007 e 19 de setembro do mesmo
ano, entrevistas estas que o escritor não permitiu serem gravadas. O escritor ainda cita,
no livro, que havia outros ghost writers, como o poeta Augusto Frederico Schmidt. A
informação me levou a supor que o espesso livro “Por que construí Brasília”, narrado
em primeira pessoa e assinado por JK, poderia ter sido um desses trabalhos realizados
por Autran Dourado. Durante a entrevista, ele informou que o livro foi escrito pelo
também jornalista Carlos Heitor Cony, informação esta confirmada na página eletrônica
de Cony (http://www.carlosheitorcony.com.br/biografia/texto.asp?id=84) e em um livro
do historiador Ricardo Maranhão (1985, p. 104). Esses dados despertaram minha
preocupação antes mesmo do início das análises, uma vez que os meus questionamentos
poderiam não ser solucionados por meio dos documentos que estavam sendo reunidos.
Por outro lado, é certo que ninguém tem total domínio sobre o que fala ou escreve, daí a
hipótese de que, mesmo se quisessem esconder possíveis traços do esoterismo presentes
nos discursos de Juscelino, os ghost writers teriam travado um duelo cuja vitória é
utópica.
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O problema de pesquisa foi então definido: como Juscelino Kubitschek
transparecia nos discursos que proferia se não era ele quem os escrevia? Minha
expectativa era a de que tivessem ocorrido improvisos durante os pronunciamentos e
meus objetivos, então, se definiram: identificar os supostos improvisos, assim como
analisar essas intervenções nos pronunciamentos do ex-presidente de modo a checar
como elas alteravam o conteúdo dos discursos, e também verificar quais eram as
conseqüências dos improvisos.
Para a estruturação do presente trabalho foi feita uma pesquisa exploratória por
meio de livros e pesquisas na internet, além de uma entrevista pessoal com o jornalista
Miguel Borges. O passo seguinte foi a leitura de livros sobre Juscelino Kubitschek, a
exemplo de “Gaiola Aberta”, do jornalista Autran Dourado, e obras de autoria de
estudiosos como Michel Foucault, Mikhail Bakhtin e Maurice Blanchot. As
informações preciosas constantes no livro de Autran Dourado foram questionadas
através de entrevistas feitas por telefone, contudo, o ex-assessor de imprensa do governo
JK e ex-ghost writer do ex-presidente não citou, por telefone, nenhum dado que pudesse
comprometê-lo ou macular o nome de Juscelino. Aparentemente ainda atuando como
assessor de JK, o jornalista não disponibilizou documentos ou declarações que
confirmassem as hipóteses deste trabalho, tampouco se mostrou acessível a um contato
pessoal. Apesar do distanciamento de Autran Dourado durante as entrevistas via
telefone, a relação próxima entre o jornalista e o ex-presidente é nítida no livro “Gaiola
Aberta” e a obra não apresenta qualquer receio ao apresentar os bastidores do poder e
afirmar que a gênese da ditadura militar de 1964 não aconteceu no governo de João
Goulart, e sim no de JK, o qual conseguiu evitar que os vários golpes se concretizassem
durante seu governo.
A última etapa do trabalho se concentrou na seleção e análise dos discursos
proferidos por Juscelino Kubitschek nos cinco anos de mandato como presidente,
registrados em cinco livros disponibilizados no Memorial JK em Brasília. O estudo foi
dividido em seis capítulos. O primeiro apresenta a história pessoal de Juscelino, da vida
pobre em Diamantina até o ingresso na vida pública, além de tratar do político JK; o
capítulo seguinte traz a história da capital federal, desde a polêmica a respeito da
transferência do governo à concretização de Brasília; o capítulo posterior trata dos dois
mais famosos ghost writers do ex-presidente, o escritor Autran Dourado e o poeta
Frederico Augusto Schmidt, nomes-chave neste estudo; o capítulo quatro apresenta os
discursos proferidos por Juscelino, discursos estes supostamente escritos por ghost
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writers e que teriam sido alterados por JK durante o pronunciamento dos mesmos; o
capítulo seguinte apresenta as possíveis aparições de Juscelino nos discursos proferidos
por ele; e o último capítulo traz a análise de discurso de alguns discursos, os quais
revelariam traços da personalidade do ex-presidente que teriam sido manifestados nos
pronunciamentos, uma vez que Juscelino era um expert em improvisos e sempre os
fazia quando discursava. O mote desse estudo é o discurso político entremeado pelo
religioso, de modo a potencializar a retórica a ponto de convencer os interlocutores, os
brasileiros, de que JK teria sido designado por forças superiores para as realizações a
que se propôs antes mesmo de ser eleito.
As análises supracitadas baseiam-se na teoria do dialogismo de Mikhail Bakhtin
e, principalmente, na da morte do autor de Michel Foucault. De acordo com o filósofo,
não se pode reduzir o sujeito do enunciado aos elementos gramaticais, ou seja, a análise
implica questionamentos, no mínimo, sociológicos. A pergunta eminentemente
foucaultiana: “Quem é o autor?” exige uma resposta bastante complexa e o lugar de
onde se diz seria considerado mais importante do que sua autoria. A contextualização
dos discursos e tudo o que os precede são importantes não apenas para sua
compreensão, mas para a definição daquilo que pode ser dito e de como o pode ser. E o
que Bakhtin teria a oferecer a este estudo? Sua teoria sobre a alteridade. Segundo ele, o
que dizemos depende do sujeito com o qual interagimos; como um espelho que nos
permite ver em nós o que somente os outros podem ver. Isso porque tudo o que dizemos
e fazemos depende do olhar do outro, da interação de outrem; o outro é co-autor dos
nossos atos.
É importante ressaltar que este trabalho não pretende fazer qualquer previsão
sobre novas páginas na biografia de Juscelino Kubitschek e nos livros de história do
Brasil. Esta dissertação se coloca como o início de uma investigação sobre como o
principal mito da política nacional teria sido construído por seus assessores e guiado por
sua suposta crença em “forças superiores”, mudando definitivamente os rumos do país.
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1 JK, O HOMEM E O POLÍTICO
Meu sonho é viver e morrer em um país em liberdade.
Juscelino Kubitschek de Oliveira
Do nascimento do menino Juscelino Kubitschek de Oliveira ao nascimento
do político JK passaram-se 30 anos. Seria o surgimento de um mito que mudaria os
rumos do país, a começar pela localização da capital federal, até então consolidada na
cidade do Rio de Janeiro. Uma estória pessoal que entrou para a história do Brasil: a
vida de um menino humilde do centro-oeste de Minas, filho de uma professora primária
descendente de tchecos, d. Júlia Kubitschek, e de um caixeiro viajante, João César de
Oliveira, um pé-de-valsa que gostava de violão, serestas e boa comida. João César
morreu, vítima da tuberculose, quando Juscelino tinha apenas dois anos de idade. O
garoto, chamado de “Nonô”, foi criado e educado pela mãe e, em decorrência das
condições financeiras da família, só teve seu primeiro par de sapatos aos doze anos de
idade.
A alternativa para conseguir fazer o curso ginasial foi entrar para o
seminário, embora o menino jamais tivesse demonstrado qualquer vocação para o
sacerdócio. A monotonia no seminário e a consciência de “Nonô” em relação à vida
sacrificada da mãe o tornaram silencioso e reservado, o oposto do pai. Livros
emprestados permitiram que Juscelino continuasse seus estudos e o primeiro emprego,
como telegrafista em Belo Horizonte, concretizou o sonho do diploma em medicina,
conquistado em 1927. A permanência em Paris por sete meses, no ano de 1930, garantiu
a especialização em urologia e uma experiência valiosa para a futura carreira política,
embora, nessa época, JK ainda não tivesse conhecido a “mosca azul” da política.
Novamente em Belo Horizonte, JK desposou Sarah Lemos, filha de um exdeputado federal. Mas não foi ela a ponte para o ingresso de “Nonô” na política.
Durante a Revolução Constitucionalista de 1932, quando Juscelino serviu no front na
divisa de Minas com São Paulo como capitão-médico da Força Publica de Minas
Gerais, ele conheceu o prefeito de Pará de Minas e chefe de polícia da região dos
combates, Benedito Valadares. Na capital mineira, o prestígio de “Nonô” como médico
crescia e Benedito Valadares despontava na política, sem contar que Valadares tinha
acesso ao presidente, Getúlio Vargas, porque era concunhado de um primo de Vargas.
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Benedito Valadares, então nomeado por Getúlio Vargas como interventor federal de
Minas Gerais, convidou JK a assumir um cargo que atualmente equivale ao de
secretário de governo. Apesar do pé na política, Juscelino manteve o consultório de
urologia de portas abertas. Juscelino só se entregou à carreira política quando teve
notícias de que Diamantina estava “em situação de abandono”. Com a projeção dada
pelo cargo político, Juscelino disputou sua primeira eleição em 1934, ano em que,
finalmente, fechou seu consultório. Foi o deputado federal mais votado em Minas pela
chapa do Partido Progressista. Empossado no ano posterior, perdeu o mandato em
novembro de 1937, em virtude de o golpe do Estado Novo ter fechado a Câmara e o
Senado.
A perda do mandato levou Juscelino a voltar a Belo Horizonte e à rotina do
consultório. A dedicação à profissão parecia apagar qualquer chance de retorno à
política. Ao receber, de Benedito Valadares, o convite para assumir o cargo de prefeito
da capital em fevereiro de 1940, JK não aceitou, porém acabou nomeado prefeito pelo
governador em 16 de abril do mesmo ano. Juscelino respondeu com o anúncio de que
administraria na rua e não em um gabinete, promessa que foi cumprida e que lhe rendeu
posteriormente o título de “prefeito furacão”. Com apenas 37 anos de idade, cinco anos
a menos que a cidade que administrava, transformou a capital mineira, com destaque
para obras como o asfaltamento da Avenida Afonso Pena, o coração da cidade, a
conclusão da Avenida do Contorno, outra importante via de escoamento do trânsito de
Belo Horizonte, e o conjunto arquitetônico da Pampulha, onde Niemeyer, sem saber,
ensaiou os traços da futura capital do país.
Eleito novamente deputado federal em 1945, tendo sido o segundo mais votado
do Estado naquela eleição, Juscelino acabou por ser indicado pelo PSD, em 1950, para
concorrer ao governo de Minas. Em campanha, JK visitou 168 cidades em dois meses e
fez até dez comícios por dia. JK venceu seu cunhado Gabriel Passos, candidato da
União Democrática Nacional (UDN), com 56,5 % dos votos e assumiu seu novo cargo
em janeiro de 1961, aos 48 anos de idade. Ao assumir o Palácio da Liberdade,
apresentou seu programa de governo intitulado “binômio energia e transporte”, o qual
foi parodiado por um novo jornal chamado de “Binômio”, fundado por dois jovens
jornalistas, Euro Arantes e José Maria Rabêlo. O jornal defendia a política esquerdista e
circulou em Belo Horizonte entre 1952 e 1964. Foi um precursor do “Pasquim” que fez
oposição ao governo JK até a presidência da república e tinha como bandeira a frase
“sombra e água fresca”.
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Juscelino não se intimidou e colocou o programa em prática. O estilo à frente do
governo mineiro logo rendeu o apelido de “governador a jato”. Ele promoveu a
industrialização do Estado, até então com vocação exclusivamente agropecuária, a
começar pela criação de empresas energéticas regionais. A eletrificação permitiu, por
exemplo, a instalação de uma siderúrgica na região central do Estado. Os investimentos
no setor de transportes levaram à construção de mais de três mil quilômetros de
estradas-tronco e o número de campos de pouso para aviões de porte médio chegou a
75. A agricultura ganhou uma empresa fabricante de adubos com a apatita de Araxá e o
potássio de Poços e Caldas e, a pecuária, uma companhia de frigoríficos. Entre outras
obras, constaram a construção de 120 postos de saúde, 137 escolas e 251 pontes,
números que deram destaque ao mineiro de Diamantina. Mas os números não
garantiram a unanimidade na aprovação do governo. A imprensa e os políticos de
oposição se revezavam em ataques ao então governador de Minas. Acusavam JK de
corrupto por concentrar as obras nas mãos de poucas construtoras. Os ataques eram
pequenos diante do estrago promovido pela UDN, em especial o jornalista Carlos
Lacerda, ao governo de Getúlio Vargas.
Contudo, o final de mandato como governador não foi das tarefas mais fáceis
para JK. Uma das pedras no sapato de Juscelino foi o rompimento da barragem da
Pampulha em abril de 1954. A corrida presidencial, em 1955, não foi diferente.
Primeiramente, houve resistência dentro de seu próprio partido, o PSD, cujos membros
temiam desagradar os militares e, por isso, tentaram fazer passar a tese de uma
candidatura suprapartidária. A oposição também tinha eco em João Café Filho, vicepresidente que assumiu a nação após a morte de Getúlio. Tendo iniciado a campanha,
JK declarou frente às pressões para desistir da candidatura: “Deus poupou-me o
sentimento do medo”, frase escrita sob medida pelo ghost writer Autran Dourado. A
UDN obteve até mesmo a aprovação de uma mudança no sistema de votação na
tentativa de impedir a eleição de Juscelino: as cédulas, antes feitas e distribuídas por
cada partido com o nome de seu candidato, passaram a ter os nomes de todos os
candidatos. Na tentativa de prejudicar JK, o nome dele foi colocado em último lugar,
abaixo dos nomes de Juarez Távora, Adhemar de Barros e Plínio Salgado, o que não
evitou que Juscelino fosse eleito em três de outubro de 1955 com 36% dos votos
válidos. Távora ficou em segundo lugar, Barros em terceiro e Salgado na quarta
colocação, o que gerou protesto por parte dos opositores de JK, os quais, mesmo sem
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amparo legal, argumentavam que o candidato eleito deveria ter a maioria absoluta dos
votos.
Em primeiro de novembro, durante o enterro do general Canrobert Pereira da
Costa, o coronel Jurandir de Bizarria Mamede conclamou as Forças Armadas a impedir
a posse do presidente eleito. O ministro da Guerra, general Henrique Lott, exigiu a
punição do general Mamede. Café Filho (que não participava diretamente da
conspiração contra JK mas também não se opunha à conspiração) e o deputado Carlos
Luz, então presidente da Câmara, não colaboraram, o que resultou no pedido de
demissão por parte do general Lott. O pedido foi aceito mas, horas depois, antes que
fosse substituído, Lott realizou o que chamou de “contragolpe preventivo”, com tanques
do Exército nas ruas do Rio de Janeiro. Carlos Luz e outros golpistas, a princípio,
refugiaram-se, mas acabaram por se render. Café Filho ainda tentou assumir a
presidência, no que foi impedido. Foi o então vice-presidente do Senado, Nereu Ramos,
quem assumiu a presidência e JK finalmente pôde assumir, em 31 de janeiro de 1956, o
cargo para o qual tivera sido eleito.
Antes porém da posse, em novembro de 1955, Juscelino realizou uma viagem
pela Europa e Estados Unidos. Se encontrou com presidentes e chefes de governo,
cumpriu protocolos como o de se ajoelhar aos pés do Papa, na época Pio XII, e fez
contatos importantes para o cumprimento do chamado Plano de Metas. De volta à então
capital federal, o Rio de Janeiro, em 24 de janeiro de 1956, o clima era de consagração.
Sete dias depois, em companhia de seu vice, João Goulart, e aos 53 anos de idade, JK
recebeu, de Nereu Ramos, a faixa presidencial. Do primeiro ministério fizeram parte o
general Henrique Lott, a quem ficou devendo a posse, e o colega dos tempos de
telegrafista, José Maria Alkmin.
Era o início do mandato do “presidente Bossa Nova”. As características
populistas do 23º líder da nação seriam logo reconhecidas: a alegria e a facilidade para
lidar com as massas, que o chamavam de “Nonô”, assim como a família fazia. JK tinha
assessores que lhe passavam informações preciosas para transformar promessas de
palanque em propostas racionais. O governo JK se resumia a idéias de movimento, ação
e desenvolvimento, na tentativa de transformar o país em uma nação próspera do
Oiapoque ao Chuí, com o compromisso de despertar o “gigante adormecido”. O perfil
desenvolvimentista, que definiu-se quando ele ainda era prefeito de Belo Horizonte, se
consolidou na presidência da república. A esse perfil, somou-se outro: o nacionalista,
que defendia o desenvolvimento nacional, os interesses nacionais, as forças nacionais e,
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claro, a integração nacional. A sustentação política de Juscelino se embasou na aliança
entre o Partido Social Democrático (PSD), o qual JK integrava, e o Partido Trabalhista
Brasileiro (PTB), do qual participava João Goulart, o vice-presidente. Enquanto o PSD
era conservador e ruralista, o PTB defendia interesses trabalhistas. A aliança garantia ao
governo de Juscelino uma posição “central”. O principal partido de oposição era a
União Democrática Nacional (UDN), do qual fazia parte Carlos Lacerda. A UDN
combatia a herança político e ideológica getulista que estava presente na aliança
PSD/PTB.
A “era JK” ficou conhecida como “Anos Dourados”. Mas a lua-de-mel durou
pouco. Já em 11 de fevereiro de 1956, Juscelino enfrentou uma rebelião da Aeronáutica,
a qual estava descontente com o regime e simpatizava com o que pregava Lacerda.
Oficiais da Aeronáutica que estavam inconformados com a posse do novo governante
foram liderados pelo major Haroldo Veloso e pelo capitão José Chaves Lameirão. O
grupo partiu do Rio de Janeiro para a base aérea de Jacareacanga, no sul do Pará, e ali
instalou um quartel-general. Esses oficiais temiam uma represália do grupo militar
vitorioso em 11 de Novembro e, por isso, não apoiavam o ministro Vasco Alves Seco
na pasta da Aeronáutica do governo JK. Após dez dias do início da rebelião, os oficiais
já controlavam várias localidades e contavam com o apoio das populações locais. Os
rebeldes ainda receberam o apoio de mais um oficial da Aeronáutica, o major Paulo
Victor da Silva, que tinha sido enviado para combater o grupo. Mais nove dias se
passaram e a rebelião foi controlada. O principal líder dos oficiais opositores, o major
Haroldo Veloso, foi preso e os demais conseguiram se asilar na Bolívia. O presidente
Juscelino então enviou ao Congresso um projeto de lei que concedia anistia irrestrita a
todos os civis e militares participantes de movimentos políticos ou militares no período
de 10 de novembro de 1955 a 19 de março de 1956. Ainda assim o clima de insatisfação
e de conspiração contra o governo se manteve, principalmente na Aeronáutica.
Não demorou e um novo problema bateu à porta do presidente. Tinham se
passado três meses e a questão agora eram os protestos estudantis contra um aumento
das passagens dos bondes no Rio de Janeiro. Houve pancadaria em frente à sede da
União Nacional dos Estudantes (UNE) na praia do Flamengo e foi necessária a atuação
do Exército. Rapidamente o problema se tornou de ordem pública. Estrategista,
Juscelino convidou as lideranças estudantis para uma conversa no Palácio do Catete,
colocou o presidente da UNE, Carlos Veloso de Oliveira, na cadeira do presidente da
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república e perguntou o que deveria fazer para salvar o regime. Foi o suficiente para o
fim da rebelião.
Entre todos os presidentes eleitos entre 1946 e 1964, JK foi o presidente
democrático que mais se destacou como homem público de ação. Foi um político
habilidoso e audacioso que enfrentou desafios que ele próprio se impôs, como governar
dentro dos limites constitucionais e democráticos; acelerar o desenvolvimento
econômico, com a intensificação do desenvolvimento industrial de tipo capitalista e
promover 50 anos de progresso num período de apenas 5 anos; além de integrar a
nacionalidade a partir da mudança da capital para a região central do país.
O programa de governo, Plano de Metas, era dividido em 30 metas, sendo as
primeiras cinco referentes ao setor de energia, as sete seguintes relacionadas ao
transporte, outras seis referentes à alimentação, outras onze relacionadas à indústria de
base e, a trigésima, à educação. A construção de Brasília figurou como a trigésima
primeira meta e foi incorporada ao Plano de Metas posteriormente, durante a campanha
presidencial, atrapalhando o trabalho dos planejadores Lucas Lopes e Roberto Campos.
Autran [Dourado] confirma que o Plano de Metas começou a ser
escrito depois de JK eleito. No curto espaço de tempo entre a eleição e
a posse, Roberto Campos e Lucas Lopes mandaram ver. Campos já
tinha as idéias da cabeça; Lucas Lopes, a metodologia de projetos que
trouxera da Cemig e aperfeiçoara na Consultec. O plano mesmo foi de
Roberto Campos, conta Autran. Lucas e JK ficaram com a execução
(http://www.lainsignia.org/2006/febrero/ibe_061.htm).
Logo Brasília se tornou a prioridade do governo e passou a ser considerada a
“grande meta de integração nacional” ou “meta-síntese” da administração. Apesar de
não ter o apoio do Congresso e muito menos da oposição para realizar a transferência da
capital federal e a construção de Brasília, os opositores não barraram o projeto por
considerá-lo como o “túmulo político” de Juscelino. Sem “caixa” para realizar tudo o
que o Plano de Metas preconizava, e sem poder solicitar empréstimo a outros governos,
uma vez que, naquela época, o que ocorria era a injeção de capital nas economias
consideradas promissoras, o então presidente implementou grande parte do programa de
governo a partir da emissão de papel moeda e do incentivo à instalação de
multinacionais no país. Resultado: houve aumento inflacionário e aumento do volume
de capital internacional na economia brasileira.
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Nos cinco anos à frente do país, JK provou a eficiência do Plano de Metas, como
os vinte mil quilômetros de novas estradas e outros 5.600 quilômetros de rodovias
asfaltadas, números superiores aos objetivos estabelecidos pelo setor no programa de
governo. Foram criadas, nesse período, várias empresas governamentais como a Cemig,
que permitiu melhorias no setor elétrico. A potência do segmento foi ampliada de 3
milhões para 4,7 milhões de quilowatts com a construção de grandes hidrelétricas como
Furnas e Três Marias. A produção de petróleo foi de 6800 para 100 mil barris diários,
época em que foram implantadas a refinaria Duque de Caxias e a indústria da
construção naval, além da Sudene, responsável pelo desenvolvimento do Nordeste, e da
Comissão Nacional de Energia Nuclear (CNEN). Saldo positivo também para o produto
interno bruto (PIB), que cresceu sete por cento ao ano (contra cinco por cento a.a. entre
1945 e 1955), e para o PIB industrial, cujo índice chegou a 10,7% ao ano. O PIB
cresceu quase 50% durante o governo JK, metade do valor máximo obtido
anteriormente ao longo da história do país. A siderurgia cresceu 100%, a indústria
mecânica, 125%, a elétrica e a de comunicações, 300%, e o setor de transportes em
600%. A produção industrial teve aumento de 80% e ganhou impulso no setor
automobilístico. O primeiro carro de passageiros fabricado no Brasil, um sedan DKWVemag, com 50% das peças nacionais, circulou no dia 28 de abril de 1958, e o primeiro
100% nacional ficou pronto em janeiro do ano seguinte. A produção industrial em
franco crescimento permitiu que a classe média pudesse consumir produtos antes
inacessíveis a essa camada da sociedade em razão de serem importados e terem custos
altos (Cf. WERNECK, 2002, p. 71).
Já a inflação não foi motivo para orgulho: alcançou 24,7% e, enquanto o Sul e o
Sudeste do país eram embalados pelo ritmo do crescimento, o Nordeste sofria com a
seca e crescia a influência das Ligas Camponesas, que se espalharam pelo país pedindo
a reforma agrária. A chamada, pelos congressistas ruralistas, de “Nova Marcha para o
Oeste” era importante, já que 70% da população do país viviam em zonas rurais. Sabiase que o interior era um pólo consumidor pouco explorado e, ao mesmo tempo, era um
pólo agropecuário responsável pela produção de alimentos que sustentava as demais
regiões brasileiras. Mas a falta de uma comunicação eficaz entre os quatro cantos do
país impedia o desenvolvimento equilibrado das diferentes regiões brasileiras e,
sobretudo, do interior. Sanar esta deficiência era primordial para possibilitar o salto
industrial programado pelo governo. Na ausência da reforma agrária, as melhorias no
campo não passaram de promessas. Para essa parcela da população, os “Anos
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Dourados” não aconteceram. Esses brasileiros permaneceram à margem do
desenvolvimento do país e das melhorias que esse desenvolvimento promovia. A
resposta do presidente veio com a criação da Sudene em dezembro de 1959, mas as
divergências
sociais
permaneceram.
Ao
implementar
o
projeto
nacional-
desenvolvimentista, o governo ampliou o que se julgava de mais arcaico na sociedade: a
grande propriedade rural, assim como a classe social e a política ligadas a ela (Ibid.,
p.71-76).
Além da Sudene, outra sigla famosa na época foi a OPA, Operação PanAmericana, uma tentativa do então presidente de estabelecer um novo relacionamento
entre os países da América Latina, na verdade, uma criação de Augusto Frederico
Schmidt, ghost writer de JK, para que, por exemplo, fossem reatadas as relações com
nações comunistas e fosse paga nossa dívida externa (Cf. DOURADO, 2000, p. 74-76).
A idéia oficial de unir os países da América Latina foi bem recebida, mas não deu certo.
Entretanto, atraiu a ajuda norte-americana para a América Latina e contribuiu para a
criação do BID, Banco Interamericano de Desenvolvimento. Juscelino ainda ficou
conhecido como o presidente brasileiro que abriu o país ao capital estrangeiro, ao
mesmo tempo em que ocupava uma posição independente e nacionalista ao romper com
o Fundo Monetário Internacional (FMI). O rompimento não foi a solução para os
problemas econômicos do país, embora tenha contribuído para o aumento do apoio ao
governo. E entre os pontos considerados negativos durante o quinqüênio de JK à frente
do país, como a herança deixada ao governo seguinte: a crise econômica, não atrapalhou
a popularidade do presidente. Segundo uma pesquisa feita em 1961 pelo Instituto
Brasileiro de Opinião Pública e Estatística (Ibope), 88% dos entrevistados julgaram o
governo de Juscelino como ótimo, bom ou regular e 80% afirmaram que o presidente
acelerou o desenvolvimento econômico do país.
Entretanto, o Brasil teve outros êxitos que tornaram a época JK inesquecível,
como a conquista do primeiro título de campeã mundial pela seleção brasileira de
futebol, em 1958 na Suíça; a conquista do primeiro título mundial pela seleção de
basquete, no Chile no ano seguinte; e, em 1960, a vitória de Éder Jofre sobre o
mexicano Eloy Sánchez, o que garantiu o primeiro título mundial do Brasil nesse
segmento esportivo. Culturalmente, o país também fervilhava. O ano de 1958 foi o ano
da revolução musical intitulada Bossa Nova. Foi a partir do final da década de 1950 (e,
conseqüentemente, no início da década de 1960) que despontaram Vinícius de Moraes,
João Gilberto, entre outros, na música; Décio Pignatari, Haroldo de Campos e Ferreira
23
Goulart na poesia; Glauber Rocha no cinema; Gianfrancesco Guarnieri no teatro; e
livros como Grande sertão: veredas de Guimarães Rosa, Duas águas de João Cabral de
Melo Neto e Laços de Família de Clarice Lispector, entre outros clássicos. JK era um
sucesso de popularidade e os “Anos Dourados” tornaram-se uma espécie de modelo, o
qual é até hoje invocado pelos políticos em corrida eleitoral.
O movimento de interiorização, tão sonhado por Juscelino teve seu ápice com a
inauguração de Brasília, cidade que se tornou símbolo da mudança econômica, de um
Brasil agrário para um país industrializado. A população percebeu esse novo perfil
brasileiro poucos meses após a inauguração da nova capital federal. Por todo o país,
havia obras como estradas, barragens, centrais elétricas e outras. O clima da nação
tornou-se eufórico.
Entre os políticos, já se pensava em eleição presidencial. A corrida eleitoral para
a sucessão de JK começou mais de um ano antes do término do mandato dele. O
ministro da Guerra, general Henrique Lott, foi o candidato do PSD. O vice, mais uma
vez era João Goulart, do Partido Trabalhista Brasileiro (PDT). Lott era apresentado
como a continuidade do projeto nacional-desenvolvimentista e perdeu nas urnas para
Jânio Quadros, que teve 48% dos votos válidos naquele três de outubro de 1960. No dia
de passar a faixa para o sucessor (31 de janeiro de 1961), Juscelino foi informado de
que
Jânio
pretendia
insultá-lo.
JK
levou
então
no
bolso
dois
discursos
(http://www.terra.com.br/istoe/biblioteca/brasileiro/lideres/est1.htm), segundo a filha
Márcia: um deles, específico para rebater as críticas caso o sucessor ousasse ser
deselegante durante a cerimônia. Juscelino estaria preparado até para o caso de a
passagem da faixa presidencial acabar em agressão física. Prevenido da possível reação
de Juscelino, Jânio Quadros desistiu dos insultos.
JK já havia declarado à imprensa de que sua vida seria um tédio após transmitir
o cargo de presidente e estava interessado na reeleição em 1965. Juscelino sabia que as
contas de seu Plano de Metas explodiriam no governo seguinte. Dessa forma, preferiria
que a oposição vencesse e recebesse a “bomba”, tivesse o ônus da impopularidade e,
então, facilitasse a sua volta ao poder.
Muito antes da eleição de 1965, Juscelino estava de volta à política. Em janeiro
de 1961, o senador Taciano Gomes de Melo, do PSD de Goiás, foi convencido a
renunciar, o que abriu uma vaga que seria preenchida em uma eleição complementar.
Seis meses depois, Juscelino era eleito senador, seu último cargo político. JK preparava
a campanha “JK-65: 5 anos de agricultura, 50 anos de fartura”, mas ele não contava
24
com o golpe de 1964, uma guinada na história do país maior do que a provocada pela
renúncia de Jânio Quadros em 25 de agosto de 1961. O golpe tirou do cargo de
presidente da república João Goulart, vice de Jânio, e, em 11 de Abril de 1964, o
Congresso Nacional elegeu o general Humberto de Alencar Castelo Branco como
presidente do Brasil. Um dos eleitores do general foi o senador Juscelino Kubitschek.
Na época, Castelo Branco prometeu a Juscelino manter as eleições de 1965, mas não
cumpriu. A vida do ex-presidente se tornou difícil. Ele era intimidado a depor sobre
casos de corrupção, até mesmo da época em que foi prefeito de Belo Horizonte. Embora
tivesse votado no general, JK figurou entre os políticos com o mandato cassado, e ficou
exilado por 976 dias.
Durante o exílio, Juscelino esteve no Brasil por duas vezes. Em uma delas, veio
para o enterro da irmã, “Naná”. Em outra, mal desceu do avião e recebeu duas
intimações para depor em inquéritos policiais militares. Ele era acusado de ligação com
os comunistas e de corrupção. As investigações sobre as contas de JK não paravam. Os
militares não davam trégua. Até mesmo Lacerda se voltou contra o golpe e se uniu a
Juscelino pela redemocratização na Frente Ampla, o que foi em vão com o AI-5, em 13
de dezembro de 1968. Naquela noite, JK foi preso ao sair de uma formatura no Teatro
Municipal do Rio de Janeiro, solenidade durante a qual foi paraninfo de uma turma de
engenheiros. Juscelino foi mantido, durante vários dias, em um pequeno quarto e,
posteriormente, permaneceu em regime de prisão domiciliar.
O dia 22 de agosto de 1976 foi novo marco na história do mito JK. Tinham se
passado apenas duas semanas da data em que correu pelo país a notícia de que o
presidente havia morrido em um acidente automobilístico. Dessa vez, a notícia seria
verdadeira: o Opala que transportava o ex-presidente Juscelino Kubitschek de Oliveira
pela via Dutra atravessou o canteiro central no Km 162,5 da rodovia, invadiu a pista
contrária e colidiu com uma carreta carregada com 30 toneladas de gesso. O carro foi
arrastado para fora da estrada e destruído. Os dois ocupantes, JK e seu motorista
Geraldo Ribeiro, não resistiram aos ferimentos. De acordo com a perícia, o Opala foi
tocado na traseira por um ônibus, o que deixou o veículo desgovernado. Contudo, o
motorista do ônibus negou a versão. Afirmou que o carro não fez a curva do Km 162,5.
O motorista do ônibus foi duas vezes julgado; e absolvido, segundo o jornalista Timóteo
Lopes em um artigo publicado recentemente na internet pelo site “No mínimo”
(http://nominimo.ig.com.br/notitia/servlet/newstorm.notitia.presentation.NavigationServ
let?publicationCode=1&pageCode=54&textCode=20792¤tDate=1138845660000).
25
Assim como as mortes de Getúlio Vargas e Tancredo Neves, o acidente de
Juscelino Kubitschek gerou dúvidas e várias teorias conspiratórias. Entre as teorias, está
a de que o motorista Geraldo Ribeiro teria sido baleado na cabeça. Outras seriam de
sabotagem no veículo ou mesmo um atentado provocado pela Operação Condor,
organização secreta criada pelas ditaduras do Cone Sul, na década de 1970, para afastar
lideranças políticas adversárias.
De acordo com o historiador Ronaldo Costa Couto, Sarah Kubitschek e a filha
Márcia morreram acreditando em homicídio doloso. O historiador ainda afirma que a
Câmara Federal criou em 2000 uma comissão para verificar as causas e as
circunstâncias do acidente que matou JK. Durante sete meses de trabalho, foram
colhidos vários depoimentos, houve discussões e debates técnicos, assim como
repericiamento, simulações de hipóteses e viagens investigativas ao Chile, Paraguai e
Estados Unidos. O resultado confirmou que o episódio resultante na morte de Juscelino
foi um acidente, mas, segundo Couto, JK estaria na agenda da Operação Condor.
As versões “misteriosas” ganharam força com o velório de Juscelino e o do
motorista, realizados na sede da “Revista Manchete”, prédio onde Juscelino tinha um
escritório no 12º andar. Os caixões teriam chegado ao local na madrugada do dia 23 e
teriam permanecido lacrados durante todo o período da “despedida” de JK e o motorista
Geraldo Ribeiro, profissional que trabalhava para o ex-presidente havia 36 anos. O
motivo do lacre seria a desfiguração dos cadáveres em virtude da violência do acidente,
o que despertou curiosidade por serem os caixões idênticos e terem sido igualmente
ornados, com cravos vermelhos, brancos e roxos. Nada de bandeiras ou outras honras
que pudessem diferenciar o corpo de Juscelino do de seu fiel motorista, de acordo com o
artigo divulgado no site “No mínimo”.
Ao meio-dia, saiu o cortejo com o caixão do ex-presidente. O destino era o
Aeroporto Santos Dumont, de onde foi transportado até Brasília para o sepultamento no
Campo da Esperança, de onde foi retirado em 1981 para o transporte até o Memorial
JK, projetado por Niemeyer. Por volta das 4h da tarde, o caixão de Geraldo Ribeiro foi
levado até o Cemitério São João Batista, no Rio de Janeiro. Ainda não era o fim da
polêmica. O escritor e jornalista Murilo Mello Filho afirma: “Não foi uma nem duas
vezes que ouvi falar de um possível engano, uma troca despropositada”. (...) “Logo, o
corpo de Juscelino Kubitschek poderia ter sido sepultado no Rio e o de Geraldo Ribeiro
no
Campo
da
Esperança,
em
Brasília”
26
(http://nominimo.ig.com.br/notitia/servlet/newstorm.notitia.presentation.NavigationServ
let?publicationCode=1&pageCode=54&textCode=20792¤tDate=1138845660000).
A polêmica reacendeu-se quando da exumação do corpo do ex-presidente.
Nenhum parente próximo de JK teria testemunhado o procedimento, garante Timóteo
Lopes. E no artigo publicado no site “No mínimo” (Ibid.), Lopes ainda afirma que:
...Na única vez em que escreveu algumas linhas sobre as cerimônias
fúnebres, Carlos Heitor Cony não menciona o suborno2 revelado por
Murilo Mello Filho, mas também reforça a desordem e a
possibilidade dos restos mortais de Juscelino Kubitschek não estarem
repousando no Memorial JK, em Brasília. “Quem não acreditar que
não acredite”, diz ele na crônica intitulada ‘Coisas que acontecem’,
publicada em 4 de junho de 2005 na página dois da “Folha”.
Uma outra versão para a morte enigmática de Juscelino Kubitschek foi insinuada
também em 2005 pelo jornalista Miguel Henrique Borges, ex-editor da Revista Ano
Zero, ex-cronista dos jornais Última Hora e O Dia, ex-secretário da Presidência da
República e ex-presidente do Conselho Nacional de Cinema. O livro de sua autoria
intitulado “JK JK! A Conexão Esotérica” apresenta um Juscelino ligado à religiosidade
e a ordens esotéricas, e que teria cumprido ordens “superiores” em sua “passagem por
este mundo”. A obra apresenta diversas fotos de JK na sede da Sociedade Brasileira de
Eubiose, em São Lourenço (MG), na década de 1970 e narra episódios ocorridos na
mesma época, mas a ligação do ex-presidente com a religiosidade seria anterior. Borges
narra, por exemplo, o caso de um frade misterioso que teria entrado no Palácio das
Mangabeiras em Belo Horizonte, em 1454, quando JK governava Minas. O episódio
teria sido narrado pelo Coronel Affonso Heliodoro, Policial Militar reformado e
presidente do Instituto Histórico e Geográfico de Brasília. De acordo com a narrativa do
coronel, o então governador Juscelino Kubitschek teria sido informado da vista, não
2
O dono da Editora Bloch, Adolfo Bloch, alegava que muitas pessoas que deram as costas a Juscelino
nos anos de ostracismo do ex-presidente se interessaram, naquele momento, pela posse do cadáver de JK.
Bloch afirmava que a “Manchete” era o único e último refúgio de Juscelino e, daí, veio a idéia de desviar
o trajeto dos dois corpos, que eram esperados pela diretora Niomar Muniz Sodré Bittencourt no Museu de
Arte Moderna. Adolfo Bloch pediu que Murilo Mello Filho, o escritor Carlos Heitor Cony e o repórter
Tarlis Batista, entre outros funcionários, realizassem a tarefa. Tarefa esta muito difícil, segundo Mello
Filho. “O motorista só aceitou mudar de percurso quando lhe demos uma boa gorjeta”, afirma
(http://nominimo.ig.com.br/notitia/servlet/newstorm.notitia.presentation.NavigationServlet?publicationCo
de=1&pageCode=54&textCode=20792¤tDate=1138845660000).
27
agendada, de um religioso. Juscelino o teria recebido e tido uma conversa rápida. O
frade teria pedido que o governador não deixasse de pensar na humanidade e se
preparasse para ser presidente da república. O religioso o teria abençoado e se retirado.
Perplexo, JK teria pedido que se verificasse o ocorrido, contudo, a guarda e a portaria
garantiram que ninguém havia entrado ou saído do Palácio. Affonso Heliodoro ainda
teria ouvido de Juscelino outro episódio ocorrido no Palácio das Mangabeiras, desta vez
em 1955. Um amigo político teria procurado JK e solicitado que ele abrisse mão da
candidatura à presidência, pedido que teria tido como resposta a frase: “Não adianta, Zé.
Está escrito nas estrelas”. Os dois casos foram narrados pelo Coronel Affonso
Heliodoro no livro de sua autoria intitulado “JK exemplo e desafio” e confirmados em
entrevista concedida ao jornalista Miguel Borges (2002, p. 52-53).
Borges também cita, em sua obra, um trecho, supostamente ligado à
religiosidade, presente no livro assinado por JK e intitulado “Meu caminho para Brasília
- 50 anos em cinco”, publicado em 1974. No trecho, o ex-presidente comenta a provável
profecia feita por Dom Bosco, a qual previa o aparecimento da Grande Civilização da
Terra Prometida entre os paralelos 15º e 20º, os mesmos paralelos que norteiam a
localização de Brasília:
28
Eram duas da manhã. [...] Não sei porque lembrei-me de repente da
profecia de Dom Bosco: No dia 30 de agosto de 1933, tive um sonovisão. Mas isso não era tudo. Entre os paralelos 15º e 20º havia um
leito muito largo e extenso, que partia de um ponto onde se formava
um lago. Então uma voz disse repetidamente: “Quando escavarem as
minas escondidas no meio destes montes, aparecerá aqui a Grande
Civilização, a Terra Prometida, onde correrá leite e mel. Será uma
riqueza inconcebível! E estas coisas acontecerão na terceira
geração.”
Recordei, palavra por palavra, o que lera no volume XVI das
Memórias Biográficas. Era a famosa profecia sobre a Grande
Civilização que iria surgir entre os paralelos 15º e 20º a área em que
Brasília estava sendo construída. O lago, da visão do santo, já
figurava no Plano-Piloto de Lúcio Costa.
[...] E veio-me à mente, outra vez, a frase do santo de Becchi: “E
essas coisas acontecerão na terceira geração.” Dom Bosco falecera
em 1888. Computando-se o período de vinte anos para cada geração,
era óbvio que a década dos 50 seria a da “terceira geração”. As forças
misteriosas que regem o mundo haviam agido no sentido de que as
circunstâncias se articulassem e criassem a “oportunidade” para que o
velho sonho se convertesse em realidade. Justamente na década dos
50 a idéia havia chegado à maturação, requerendo execução.
Naquela madrugada, olhando as árvores do Parque Guinle, procurava
tirar ilações da profecia de dom Bosco. Existia uma curiosa
coincidência de local e de data. O importante, porém, era que a
construção da nova capital estava em andamento. Foi aí, mergulhado
no devaneio imposto pelo silêncio da noite, que concebi a idéia de
denominar a construção de Brasília – “Meta-Síntese”
(KUBITSCHEK, 1974, p. 171 apud BORGES, 2002, p. 103-104).
Ao final do livro “JK JK! A Conexão Esotérica”, Miguel Borges apresenta um
suposto diálogo entre JK e o “espírito” de um falecido membro da Eubiose, professor
Henrique José de Souza. A “Manifestação”, como chama o jornalista, teria dito que JK
não era o 23º presidente do Brasil por acaso.3 O diálogo está relacionado ao
comportamento de JK descrito nas páginas finais da obra de Miguel Borges, onde
consta a suposta despedida de Juscelino “deste mundo” após um diálogo do então
presidente com a suposta “Manifestação”:
3
A soma dos números 2 e 3 resulta em 5. O número cinco corresponde, para os Eubiotas, ao “quinto filho
do Eterno, aquele que traz a luz, ação”, afirmou Borges em entrevista concedida em São Lourenço em 21
de abril de 2007.
29
_ Que dúvida! Você é o moderno I-Juca Pirama. Em Tupi quer dizer:
“Aquele Que Vai Morrer” [sic]. Está no poema de Gonçalves Dias:
“Além dos Andes revive o forte que soube contrastar os medos da
morte” [disse a Manifestação]. _ Dos Andes? [perguntou Juscelino].
_ Da montanha. Cada herói tem a sua. No seu caso, é a Mantiqueira
[afirmou a Manifestação]. _ Não gosto da idéia de me amarrarem no
penhasco para me morderem... [retrucou JK]. _ Mas na hora da
passagem para outra dimensão, de sair da vida para entrar na História,
você nada sofrerá. [...] Eles [Senhores do Carma, segundo a
Manifestação] vão tirar você da cena de sangue um minuto antes do
impacto final. Seu corpo, JK, será dilacerado, enquanto seu espírito
passará incólume pelas nuvens densas [explicou a Manifestação].
[...] Dá para apostar [conclui Borges]. Foi por isso que ele [JK], sem
quê nem pra quê, chegou à janela e mostrou a montanha a uma
criança, seu afilhado Osíris, naquele dia de agosto de 1976, em Belo
Horizonte. Por isso também, no domingo, 22, fez o motorista e amigo
Geraldo Ribeiro sair momentaneamente da Via Dutra, entre São Paulo
e Rio de Janeiro, para dar uma breve passada no acesso à subida da
Serra, no rumo a São Lourenço. Pediu uma pausa na corrida e desceu
para se despedir. Do alto daquela montanha, quarenta milênios o
contemplavam. Então retomou seu lugar no carro, que voltou para a
estrada e bateu... (BORGES, Op. cit., p. 114-115).
O prefácio da obra de Miguel Borges, escrito por Elielson Vianna Gomes,
Diretor da Sociedade Brasileira de Eubiose e Grão-Chanceler da Ordem do Santo Graal,
assim trata do referido livro:
...apresenta a trama que envolveu o Presidente Juscelino como própria
de um gênio transcendente, o que se justifica pelas grandes realizações
de seu governo, sobretudo a inauguração de Brasília, construída num
período de quatro anos. Como pôde fazê-la, sendo o País tido como
pobre, sem verbas especiais e no regime democrático? Daí a
inclinação de Juscelino Kubitschek para a espiritualidade e sua ligação
com ordens esotéricas, em nível discreto, porque não é comum, nem
interessa aos dotados desse pendor, alardear a superioridade. [...]
Interpretações de muitos atos do Governo Juscelino são colocadas de
maneira diferente pelo Autor [sic], descartando o estigma de mero
capricho ou interesse menor, costumeiramente lançado sobre grandes
decisões dos governantes (Ibid., p.5).
Diferentemente do que acreditam os eubiotas, no livro “Brasília Kubitschek de
Oliveira” o historiador Ronaldo Costa Couto afirma que, apesar de o clima esotérico
que diferentes videntes e ufólogos atribuem a Brasília e à sua construção, a nova capital
federal teria a ver, sim, com uma estratégia política de JK. Ao mudar a sede do poder
político nacional, ele ganhava autonomia para governar o país (2002, p. 194-238).
Contudo, em um artigo divulgado na internet, o historiador cita uma estranha anotação
30
do diário do ex-presidente, anotação esta feita no ano em que JK morreu (em
conseqüência de um acidente automobilístico):
Vimos nascer 1976. Sentia-me bem. Uma sensação de inutilização e
de abandono dominava-me no instante supremo da mudança. O céu
carregado de estrelas atraiu os meus olhos. O que procurava eu nos
mundos infinitos que piscavam para mim? O que trará 76? Até a
morte
pode
trazer
(www.balaiodeminas.com.br/.../sociedade/familias.asp?codigo=906&
area=mineiros&area1=sociedade, grifo do autor).
Coincidência ou não, quinze dias antes da data em que ocorreu o acidente que
tirou a vida do então presidente brasileiro, correu pelo país a notícia de que JK havia
morrido em um acidente automobilístico, como citado anteriormente. Apesar de
intrigante, essa questão não faz parte do eixo principal deste trabalho e, portanto, o
assunto não será tratado aqui.
31
2 BRASÍLIA, MAIS QUE UMA CIDADE PROJETADA
Hoje é o dia mais feliz da minha vida. O Congresso
acaba de aprovar o projeto para a construção de Brasília.
Sabe por que o projeto foi aprovado ?
Eles pensam que não vou conseguir executá-lo.
Juscelino Kubitschek de Oliveira
Após terminar o curso na França, Juscelino aproveitou para conhecer
outros países, como o Egito, onde visitou as cidades de Alexandria e Cairo. JK ficou
fascinado pelo Egito, principalmente depois de conhecer a história de Akhenaton, faraó
egípcio que, com apenas dezenove anos, fez uma revolução religiosa em favor do
monoteísmo a Aton. Então, o jovem faraó, a fim de romper com as tradições e a
oposição a seu regime, mudou a capital do Egito de Tebas para Akhetaton. Juscelino
visitou a cidade e afirmou ter refletido a respeito dela quando começou a esboçar a idéia
da construção de Brasília. Na Grécia, diante do Parthenon, ouviu o guia dizer a
visitantes que Péricles havia sido acusado de gastar muito para fazer a obra. Péricles
teria replicado dizendo que se os atenienses não conseguiam perceber a grandeza da
obra, a qual desafiaria séculos e milênios, ele mesmo a pagaria. A passagem fortaleceu
Juscelino na época da construção de Brasília, obra esta que também foi criticada. A
viagem àqueles países, segundo JK, aumentou sua fé na democracia.
A construção de Brasília foi outro marco e outro motivo de polêmica. Só entre
1957 e 1958, JK fez 225 viagens entre o Rio de Janeiro e Brasília para acompanhar as
obras, quase dez viagens por mês. No auge da construção, Juscelino terminava o
expediente no Palácio do Catete e voava para Brasília. Inspecionava as obras e voava de
volta ao Rio de Janeiro. Às sete da manhã já reiniciava suas atividades na sede do
governo. Explicações para tanta preocupação por parte de JK não faltam. De acordo
com a teoria apresentada pela egiptóloga Iara Kern após seis anos de estudo, Brasília é
mais do que uma cidade projetada. Juscelino seria a reencarnação de Amenófis IV ou
Akhenaton, o faraó que viveu entre 1550 a.C. e 1307 a.C., impôs o monoteísmo e
fundou a primeira capital planejada do mundo, Akhetaton. A estudiosa afirma que
Akhenaton dedicou a vida à cidade que construiu às margens do rio Nilo, assim como
teria feito JK em relação à Brasília, e ambos morreram dezesseis anos após a fundação
das respectivas cidades, o mesmo número de colunas presentes na Catedral
32
Metropolitana de Brasília e o mesmo número do templo na cabala hebraica e no tarô
egípcio. Kern ainda cita que, enquanto Akhetaton tinha a forma do pássaro Íbis, o
guardião das pirâmides, Brasília tem a forma de um pássaro em pleno vôo e construções
em forma piramidal, baseadas em triângulos. Enquanto as pirâmides guardavam os
sarcófagos dos faraós, o Memorial JK, em Brasília, guarda os restos mortais de
Juscelino Kubitschek. Quando esteve no Egito, em 1930, JK ficou fascinado pela
história de Akhenaton e, já presidente da república, declarou que possuía admiração por
Akhenaton desde a mocidade e que essa admiração poderia ter sido o combustível
necessário para sustentar o seu ideal de construir Brasília.
De fato, a construção de Brasília estava “na manga” de JK havia tempo, desde a
época em que ainda era deputado. E ele não foi o primeiro a pensar na transferência da
capital para o interior do país (LOPES, 2006, p. 58-68). Tiradentes imaginava a capital
em São João Del-Rey, caso a Inconfidência Mineira fosse bem sucedida. Em 1823, José
Bonifácio, deputado na época da independência, teve um papel importante. Além de
defender a mudança da capital em 1823, sugeriu o nome Brasília (WERNECK, 2002, p.
96). A mudança da capital esteve presente nas Constituições de 1891 e 1934, havia sido
retirada da Constituição de 1937, mas Juscelino trabalhou para que a transferência da
capital voltasse a constar na Constituição. Em sua primeira aparição na tribuna, como
constituinte de 1946, ele pediu que um estudo feito pelo engenheiro Lucas Lopes, que
posteriormente seria o responsável pelo planejamento em seu governo, fosse inserido
nos Anais da Assembléia. O estudo, intitulado “Memória sobre a Mudança do Distrito
Federal”, propunha a localização da capital federal no Triângulo Mineiro. JK conseguiu
deslocar a discussão em torno da possível mudança da capital para a discussão sobre o
local onde o Distrito Federal deveria ser localizado. Segundo Lucas Lopes, era como se
Juscelino tivesse encerrado a polêmica em torno da mudança ou não da capital. Agora, o
assunto era o local: o Triângulo Mineiro ou o sertão de Goiás (Op. cit., p. 58-68).
O tom religioso em torno de Brasília, presente no estudo da egiptóloga Iara
Kern, também aparece em citações feitas nos livros autobiográficos de JK intitulados
“Meu caminho para Brasília: 50 anos em cinco”, de 1974, e “Por que construí Brasília”,
publicado em 1975. Ao tratar da mudança da capital brasileira no livro sobre esse tema,
Juscelino fala do sonho de Dom Bosco em 30 de agosto de 1883 na Itália:
33
No plano místico, fez-se ouvir, como uma advertência profética, o tão
citado sonho de São João Bosco. O santo Becchi, na Itália, era dado a
visões, que constituíam verdadeiras antecipações do que iria ocorrer
em futuro, às vezes, remoto. A 30 de agosto de 1883, passou ele por
outra experiência desse gênero. Tratava-se de um sonho-visão – e
desta vez referente ao Brasil – relatado numa reunião do Capítulo
Geral de sua congregação. Dom Bosco revelou que “fora arrebatado
pelos anjos” e, durante a viagem, um dos guias celestiais disse-lhe de
repente: “Olhai. Viajamos em direção das cordilheiras”. O santo
relatou, então, que viu “as selvas amazônicas, com seus rios
intrincados e enormes”. Visitou as malocas dos índios e assistiu,
aterrorizado, ao sacrifício de dois missionários salesianos, abatidos a
tacape pelos selvagens – fato que posteriormente se deu na Amazônia,
em 1934, quando morreram, vítimas dos xavantes, os padres Pedro
Sacillotti e João Fuchs. Mas não era tudo. E o santo prosseguiu na sua
narrativa: “Entre os paralelos 15º e 20º, havia um leito muito largo e
muito extenso, que partia de um ponto onde se formava um lago”.
Então, uma voz lhe disse repetidamente: “Quando escavarem as minas
escondidas no meio destes montes, aparecerá aqui a Grande
Civilização, a Terra Prometida, onde correrá leite e mel. Será uma
riqueza inconcebível. E essas coisas acontecerão na terceira geração”.
Quando li essas palavras nas suas Memórias Biográficas, não deixei
de me emocionar. Meditei sobre a Grande Civilização que iria surgir
entre os paralelos 15º e 20º - justamente a área em que estava
construindo, naquele momento, Brasília. O lago, da visão do santo, já
figurava no Plano-Piloto do urbanista Lúcio Costa. E a Terra
Prometida, anunciada repetidamente, pela voz misteriosa, ainda não
existia de fato, mas já se configurava através de um anseio coletivo,
que passara a constituir uma aspiração nacional. Ali, “correria leite e
mel”. A visão de Dom Bosco fora, de fato, uma antecipação, uma
advertência profética sobre o que iria ocorrer no Planalto Central a
partir de 1956 (KUBITSCHEK, 1975, p. 19, grifo do autor).
Outro fato que poderíamos chamar “intrigante” se deve à forma como foi
concebido e apresentado o projeto do arquiteto Lúcio Costa para a construção da nova
capital do país. O projeto foi escolhido entre vários outros após um concurso promovido
pelo governo e, embora não atendesse aos pré-requisitos, uma vez que não passava de
um rascunho, a concepção de Brasília apresentada pelo arquiteto foi a vencedora. O
motivo, traduzia exatamente o que o então presidente imaginava para a nova capital
federal. É importante dizer que Lúcio Costa não pretendia participar do concurso e
assim escreveu ao enviar seu material para a comissão que avaliava os projetos:
34
Não pretendia competir e, na verdade, não concorro; apenas me
desvencilho de uma solução possível, que não foi procurada, mas
surgiu, por assim dizer, já pronta.
Compareço, não como técnico devidamente aparelhado, pois nem
sequer disponho de escritório, mas como simples "maquis" no
desenvolvimento da idéia apresentada, senão eventualmente na
qualidade de mero consultor. E se procedo assim cândidamente, é
porque me amparo num raciocínio igualmente simplório; se a
sugestão é válida, êstes dados, conquanto sumários na sua aparência,
já serão suficientes, pois revelarão que, apesar da espontaneidade
original, ela foi, depois, intensamente pensada e resolvida; se não o é,
a exclusão se fará mais fàcilmente, e não terei perdido meu tempo
nem tomado o tempo de ninguém.
[...] Dito isto, vejamos como nasceu, se definiu e resolveu a presente
solução:
1. Nasceu do gesto primário de quem assinala um lugar ou dêle toma
posse:-- dois eixos cruzando-se em ângulo reto, ou seja, o próprio
sinal
da
Cruz
(http://www.guiadebrasilia.com.br/historico/i_mmrial.htm,
grifo
meu).
Há uma legião de videntes, visionários e ufólogos que afirmam que a atual
capital brasileira atrai energias cósmicas e ovnis, sendo a cidade considerada, inclusive,
a sétima parada na rota de extraterrestres, além de capital do terceiro milênio e da
civilização aquariana, um exemplo de ecumenismo (Cf. COUTO, 2002, p. 194). O
famoso discurso na cidade goiana de Jataí seria o início da conspiração esotérica para a
consolidação de Brasília. Segundo consta, durante um comício, um eleitor de nome
Antônio Soares Neto, conhecido como Toniquinho, indagou a JK se, uma vez eleito, ele
transferiria a capital para o interior do Brasil conforme previa a Constituição. Juscelino,
então candidato à presidência, teria hesitado por um instante e finalmente respondido
que sim. De acordo com o historiador Ronaldo Costa Couto, JK teria se livrado do
compromisso facilmente se assim o quisesse. Bastava enviar o projeto de lei, como de
fato fez, e deixar a oposição vetá-lo ou manter o assunto em banho-maria, como já era
de costume dos políticos da época. Entretanto, a decisão passou a integrar o Plano de
Metas do presidente após ter sido eleito, atropelando o planejamento geral do governo.
Couto afirma que a decisão não foi precedida de projeto econômico-financeiro nem
tampouco de estudos preliminares. Foi, sim, “tomada no escuro” (COUTO, Op. cit., p.
238). Não havia tempo para um estudo de viabilidade, completa o historiador, e, de
antemão, era possível saber que não havia viabilidade financeira ou econômica e que a
execução de uma nova cidade levaria mais que quatro anos. Executar um plano ousado
como aquele ainda causaria graves problemas à economia (Ibid., 238), e, ainda hoje, não
35
se sabe qual foi o gasto total com as obras da construção de Brasília (como veremos
ainda neste capítulo).
Outro historiador, Ricardo Maranhão, afirma que Juscelino teve o cuidado e a
estratégia de atribuir a idéia da construção de Brasília a uma aspiração popular, ao
atribuir à pergunta do eleitor “Toniquinho”, no famoso discurso de Jataí, a semente do
processo de transferência da capital federal do litoral para o interior do país.
No livro “Por que construí Brasília”, de 1975, Juscelino narra o episódio em
Jataí e apresenta suas explicações a respeito do que o teria motivado a se empenhar na
mudança da capital brasileira:
Como nasceu Brasília? A resposta é simples. Como todas as grandes
iniciativas, surgiu quase de um nada. A idéia da interiorização do país
era antiga, remontando à época da Inconfidência Mineira. A partir daí
viera rolando através de diferentes fases a nossa História: o fim da era
colonial, os dois reinados e os sessenta e seis anos da República, até
1955. Pregada por alguns idealistas, chegou, mesmo, a se converter
em dispositivo constitucional. No entanto, a despeito dessa prolongada
hibernação, nunca aparecera alguém suficientemente audaz para darlhe vida e convertê-la em realidade. Coube a mim levar a efeito essa
audaciosa tarefa (p. 7).
JK dedica várias páginas à explicação do discurso em Jataí (Goiás) realizado em
4 de abril de 1955 durante a campanha à presidência da república. A escolha da
cidadezinha foi estratégica, segundo Juscelino. Ele decidiu falar primeiro aos moradores
do interior do país ao invés de priorizar as populações do litoral, como era de costume
na época. No livro “JK - Um comício em Goíás”, o professor e escritor, Jacinto Guerra
explica que a escolha do pequeno município tem relação com a abelha que deu nome à
cidade e lembra trabalho, organização e eficiência. A cidadezinha possuía um dos mais
organizados diretórios do Partido Social Democrático, partido de JK, no interior do país.
Na época da candidatura de Juscelino à presidência, os jornais citavam Jataí como a
fortaleza do PSD. O líder da “fortaleza” era um grande amigo de JK e ex-colega de
Juscelino na Faculdade de Medicina de Belo Horizonte, de nome Serafim de Carvalho.
Além de médico, o amigo do então candidato à presidência era fazendeiro e,
principalmente, um chefe político e um parlamentar de prestígio (GUERRA, 2005, p.
19-22).
36
Durante o discurso em Jataí, o então candidato Juscelino declarou que, se eleito,
cumpriria rigorosamente a Constituição. O discurso foi seguido da pergunta de um
morador da região identificado como Antônio Carvalho Soares, conhecido como
Toniquinho:
O senhor disse que, se eleito, irá cumprir rigorosamente a
Constituição. Desejo saber, então, se pretende pôr em prática o
dispositivo da Carta Magna que determina, nas suas Disposições
Transitórias, a mudança da capital federal para o Planalto Central
(KUBITSCHEK, Op. Cit., p. 8).
O ex-presidente garante, no livro, que a indagação o surpreendeu e a resposta
afirmativa dada de prontidão não correspondia a nenhuma das propostas pretendidas
pelo então candidato à presidência da República. Eleito, Juscelino cumpriu a promessa
feita durante o discurso e fez da construção de Brasília uma das principais metas de seu
governo, chamada de Meta-síntese. No livro “JK: um comício em Goiás”, Jacinto
Guerra (Op. cit., p.18) narra a resposta dada por Juscelino: “Acabo de prometer que
cumprirei, na íntegra, a Constituição, e não vejo razão para ignorar esse dispositivo.
Durante meu qüinqüênio farei a mudança da capital”. Segundo o livro de Miguel
Borges, a pergunta certa à pessoa certa no momento certo não foi mera coincidência.
Miguel Borges e Jacinto Guerra corrigem JK quanto ao nome do eleitor que indagou
Juscelino quando este ainda era candidato à presidência: Antônio Soares Neto, e não
Antônio Carvalho Soares como citou Juscelino na página 8 do livro “Por que construí
Brasília”. Borges ainda afirma que o eleitor (Toniquinho) assumiu ter sentido a
interferência de poderes superiores no momento da indagação: “A gente chega a pensar
que foi uma iluminação vinda lá do Alto” (BORGES, Op. cit., p. 58). A revista “IstoÉ”
entrevistou Toniquinho recentemente, mas ele nada falou sobre qualquer influência
religiosa ou “sobrenatural” por ocasião do questionamento feito por ele ao então
presidenciável em Jataí:
“Juscelino ficou assustado com a pergunta. Demorou um pouco, mas
respondeu que assumiria o compromisso de construir a nova capital",
lembra Antônio Soares Neto, o Toniquinho, hoje com 74 anos.
"Recebi o convite para a inauguração da cidade. Me sinto um pouco
responsável
por
tudo."
(http://www.terra.com.br/istoe/biblioteca/brasileiro/lideres/est1.htm).
37
Entretanto, uma declaração de Márcia Kubitschek citada pelo historiador
Ronaldo Costa Couto no livro “Brasília Kubitschek de Oliveira” reforça a suposta
influência religiosa na construção de Brasília. Márcia afirma que Juscelino tomou a
decisão de construir Brasília rapidamente: “Acho que foi uma inspiração divina. Deu
um clique na cabeça dele. [...] Foi uma inspiração divina e, após ter esse pensamento,
ficou inteiramente dominado por ele...” (COUTO, Op. cit., p. 198). Ela também afirma
em sua declaração que, nas conversas em família, Juscelino comentava que era
impossível governar o país do Rio de Janeiro.
É essa a teoria defendida pelo historiador Ronaldo Costa Couto, o qual garante
que não houve influência esotérica na decisão de JK e sim o que chama de instinto
kubitschekiano. Para Couto, Juscelino teria, na verdade, percebido a importância de tirar
o governo da vulnerabilidade presente na capital carioca, e a idéia de tirar a capital
federal daquela cidade vinha desde a Inconfidência Mineira, constava em três
Constituições, inclusive naquela em vigor na época, sem contar que já havia uma
legislação definindo o local da nova capital e o nome Brasília já havia sido sugerido, em
1823, por José Bonifácio de Andrada e Silva, considerado o patricarca da Independência
do Brasil. JK, segundo o historiador, estaria impressionado com os problemas no Rio de
Janeiro e com a forma como esses problemas afetavam o governo federal. Ele teria
percebido que, deslocando a capital federal para o interior, alteraria a posição relativa
do presidente no “fogo cruzado” político-militar presente na capital carioca. E sabia que
a transferência da capital envolvia interesses contraditórios dos parlamentares, militares,
imprensa, empresas de construção civil, além do funcionalismo da cidade carioca.
Mas, em seus discursos, Juscelino jamais deu margem para que fosse levantada a
hipótese apresentada anteriormente por Couto, a “fuga” do Rio de Janeiro, e muito
menos qualquer influência religiosa como a citada por Márcia Kubitschek. Ao se
pronunciar em público, JK sempre justificava a mudança da capital com aquilo que
previa a constituição:
38
Não sou o inventor de Brasília, mas no meu espírito se arraigou a
convicção de que chegou a hora, obedecendo ao que manda a nossa
Lei Magna, de praticarmos um ato renovador, um ato político,
criador, um ato que, impulsionado pelo crescimento nacional a que
acabo de me referir, virá promover a fundação de uma nova era para
nossa pátria. (...) Constitui um refrão monótono dizermos que
necessitamos ocupar o nosso país, possuir a terra, marchar para o
oeste, voltar as costas para o mar, e não permanecer eternamente com
o olhar fixo nas águas como se pensássemos em partir, em voltar. (...)
A fundação de Brasília é um ato político (...) É a marcha para o
interior em sua plenitude. É a completa consumação da posse da terra
(KUBISTCHEK DE OLIVEIRA, 1956, p. 403).
Em 30 de setembro de 1957, o então presidente Juscelino Kubitschek sancionou
a lei que fixou a data da transferência da capital da república, 21 de abril de 1960. Ao
sancionar a lei, afirmou em seu discurso:
Sabeis que o sentido desta solenidade transcende os seus objetivos
imediatos, vai além, visando ao deslocamento, para as vastas áreas
despovoadas do interior, da aplicação de esforços que têm sido
grandes, mas que até agora só se têm exercido numa estreita faixa do
litoral deste imenso país. Rejubilo-me com a circunstâncias [sic] de
Deus me haver permitido cumprir o pacto que firmei com o povo
brasileiro, atendendo aos veementes apelos que recebi de todo o país,
nos dias da campanha da sucessão presidencial, para que se
obedecesse ao mandamento da Constituição, que traduzia indesviável
propósito, vontade firme, consciente e tenaz de operar essa mudança.
E congratulo-me com o Congresso Nacional, que, com alto
discernimento e patriotismo, soube auscultar os sentimentos desta
nação, soube acolher os seus históricos anseios, soube, mais uma vez,
mostrar-se fidedigno cumpridor da soberana vontade do povo
brasileiro (KUBISTCHEK DE OLIVEIRA, 1958, p. 218-219).
Os comentários sobre a transferência da capital federal tinham outro enfoque
entre as personalidades. A discussão girava em torno do sucesso da mudança e suas
conseqüências. Assis Chateaubriand considerava a construção de Brasília uma loucura
do presidente e um crime contra o país. O professor ícone da Fundação Getúlio Vargas,
Eugênio Gudin, considerava Brasília não como um foco de polarização econômica e
sim como um foco de absorção de recursos, enquanto o Nordeste do país convivia com
a miséria. Para Gilberto Freyre, Brasília foi feita de forma ditatorial.
Em entrevista ao historiador Ronaldo Costa Couto, Oscar Niemeyer defendeu
Juscelino e disse que levar o progresso para o interior do país era o sonho de JK, embora
fosse grande a torcida para que Brasília não saísse do papel. “Armaram uma campanha
39
fantástica contra a cidade”, declarou o arquiteto (COUTO, Op. cit., p. 13). A primeira
edificação foi batizada de “Catetinho”. Era uma construção de tábuas cuja inauguração,
em 10 de novembro de 1956, teve até chuva de granizo para contornar a falta de gelo na
hora de servir uísque. Hoje, o Catetinho abriga um museu onde estão expostos objetos
pessoais do ex-presidente e móveis utilizados por ele. Na véspera da mudança definitiva
da capital, JK chegou ao Palácio do Catete, no Rio de Janeiro, acompanhado da esposa,
D. Sarah, das filhas Márcia e Maria Estela, e da mãe, D. Júlia. Segundo Autran Dourado
em Gaiola Aberta, Juscelino parecia um menino na festa do próprio aniversário. Uma
felicidade geral. Quem quisesse se despedir da família Kubitschek de Oliveira podia
adentrar os portões. Posteriormente, o então presidente e a família desceram a escadaria
do palácio e JK foi homenageado por estudantes, que acenaram lenços brancos. Ao
fechar os portões do Palácio do Catete, a edificação passou de sede do governo federal a
Museu da República.
As festividades da inauguração de Brasília duraram um dia inteiro. Começou
com uma missa trinta minutos antes da meia-noite do dia 20 para o dia 21 de abril. Duas
relíquias aumentaram o glamour da ocasião: a cruz de Frei Henrique de Coimbra, com a
qual foi rezada a primeira missa, e o sino que anunciou a morte de Tiradentes. E houve
até mensagem do papa João XXIII, em português, através da rede brasileira de rádio. Na
manhã do dia 21, os festejos tiveram início já às oito da manhã. Às oito e meia Juscelino
fez seu primeiro discurso, ouvido por oficiais-generais e 55 embaixadores. Em seguida,
foi realizada a primeira reunião ministerial de Brasília, que marcou oficialmente a
instalação do governo federal e, durante a qual foi proclamada inaugurada a nova capital
do país. As festividades não paravam. O roteiro incluía atividades como um desfile e a
apresentação da Esquadrilha da Fumaça. Naquela noite, JK e D. Sarah recepcionaram
três mil convidados em uma festa no Palácio do Planalto, enquanto o povo dançava no
Eixo Monumental ao som da banda dos fuzileiros navais.
Juscelino se dizia em estado de êxtase. Não era para menos; nos últimos três
anos ele vinha planejando a inauguração da nova capital brasileira. Entretanto, todo o
entusiasmo ao transferir o centro do poder nacional extrapolou o orçamento e, segundo
o historiador Ronaldo Costa Couto, o custo de Brasília ainda é um mistério. JK resolveu
construir a capital no meio do nada e a partir do nada, na opinião de Couto. Na época, o
Produto Interno Bruto do país não superava em quase nada o PIB atual da Bolívia, ou
seja, os recursos financeiros eram insuficientes para as obras em Brasília. O historiador
ainda declara que a construção da nova capital federal foi uma epopéia no sertão, uma
40
aventura improvisada e incompatível com rígidos controles de gastos. E acrescenta que
não havia quem executasse nem como executar o controle de despesas, também em
função da precariedade reinante na época (COUTO, Op. cit., p. 239). O historiador
conta uma estranha passagem narrada pelo filho de um ex-funcionário do canteiro de
obras implantado em Brasília: José Roberto de Paiva Martins estava com doze anos de
idade quando o pai, Cícero Milton Martins de Oliveira, trabalhava na futura capital
federal. Por vezes, o menino foi passear na casa de Israel Pinheiro, quem mandava no
canteiro de obras, e teria visto muito dinheiro espalhado pelo chão. Ao indagar o motivo
de haver tanto dinheiro espalhado, teve como resposta que o montante estava
embolorando no imenso cofre que existiria na casa. Sobre os gastos com as obras, José
Roberto afirma que não havia controle ou era muito precário; não havia licitações e os
pagamentos executados no “canteiro de obras” eram feitos em dinheiro, uma vez que
não havia bancos na futura cidade. Peões de outras obras entravam na fila de pagamento
e recebiam salários, caminhões passavam pela balança com a mesma carga mais de uma
vez, e ainda havia um motorista que recebia por “quilômetro rodado” e, para aumentar
os ganhos, colocava o caminhão em ponto morto sobre sobre cavaletes e deixava que as
rodas girassem no ar durante toda a noite (COUTO, Op. cit., p. 237-251).
Sem qualquer estudo de viabilidade ou projeto econômico-financeiro, Brasília
saiu do papel e em prazo recorde: 42 meses. A falta de planejamento para as obras
elevou o custo da construção de Brasília. Segundo um depoimento do ex-presidente
Ernesto Geisel, publicado em 1997, tijolos chegaram a ser transportados de avião. A
falta de dinheiro somada à pressa em construir a nova capital causou problemas na
economia, especialmente nas finanças públicas e nas contas externas. Economistas
brasileiros afirmam que, ao semear a desestruturação das finanças do país, a construção
da nova capital gerou um crônico processo inflacionário e dificultou a governabilidade;
uma herança que estaria sendo transmitida a cada nova geração. Em 1959, penúltimo
ano do governo JK, a inflação acabou virando motivo de chacota em música cantada
pelo palhaço Carequinha, intitulada “Dá um jeito nele, Nonô”, cujos versos tratavam da
desvalorização do Cruzeiro. O economista e jornalista Ib Teixeira, da Fundação Getúlio
Vargas, publicou em 1996 um ensaio sobre o custo da construção de Brasília; quanto as
obras custaram e continuam custando aos cofres públicos. Segundo o economista, para a
implantação da nova capital houve desvio dos recursos da seguridade social, o que
quebrou a Previdência e desestabilizou o país, comprometendo contas internas e
externas e gerando inflação. Ele cita que 36 anos após a renúncia de Jânio Quadros,
41
sucessor de JK, soube-se que havia transferências anuais de mais de US$ 1 bilhão da
União para Brasília. A estimativa feita em 1996 por Teixeira era a de que o valor que
teria sido transferido no período de construção de Brasília representasse, naquele ano,
US$ 36 bilhões. Acrescido dos gastos com obras civis e o investimento privado em
Brasília, a soma (em 1996) chegaria a algo entre US$ 120 bilhões e US$ 155 bilhões, o
equivalente a três vezes e meia o PIB do Chile no referido ano. Roberto Campos
confirma que a construção de Brasília se deve, principalmente, aos recursos da
Previdência, a qual tinha muito dinheiro em caixa na época, conseqüência do número de
contribuintes ser muito superior em relação ao número de beneficiados. Outras fontes de
recursos foram os empréstimos estrangeiros, a emissão de moeda e os créditos de
fornecedores de equipamentos, sobretudo importados. Aos “colegas” naquela
empreitada JK dizia que construiria Brasília com verbas tiradas da cabeça dele; aos
jornalistas afirmou, em 9 de novembro de 1958, que a iniciativa privada construiria a
nova capital. O gasto com as obras seria coberto com a venda de 80 mil lotes (COUTO,
Op. cit., p. 238-248).
O historiador Ronaldo Costa Couto diz que não é possível saber como o país
estaria hoje se o Rio de Janeiro tivesse permanecido como a capital federal; pensar nisso
seria um contra-senso, afirma. “Para o bem ou para o mal, Brasília tem que ser pensada
como decisão de estadista, em que sentido da história, o senso da atividade política e a
intuição contam mais do que os princípios de economia política”, declara Couto (Ibid.,
p. 237, grifo meu).
42
3 FANTASMAS POR TRÁS DO MITO
Não me arrependo do que fiz, não me arrependo
de ter levado em consideração o interesse de
preservar o nosso dia de amanhã –
o futuro da Pátria Brasileira.
Juscelino Kubitschek de Oliveira
Recentemente, vários ghost writers se apresentaram aos brasileiros através de
livros em que revelaram ser os verdadeiros autores dos discursos proferidos por
políticos famosos, como o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. Seu ghost writer
nos oito anos de mandato, Eduardo Graeff, afirma que só escreveu para FHC porque foi
orientando dele e conhecia de cor o estilo do sociólogo. "Não houve dúvida moral, já
que
eu
acreditava
nele",
declara
Graeff
(http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,EDG61537-6011,00.html). O trabalho
que começou na Antigüidade para a produção de discursos e até cartas-testamento e
orações, sempre foi relacionado à manutenção do segredo em torno da identidade desses
escritores, daí o nome ghost writers. Contudo, os jornalistas ou diplomatas que
atualmente exercem essa atividade têm revelado seus nomes e obras. O assunto virou
tema do recente romance “Budapeste”, de Chico Buarque, que tem como personagem
José Costa, escritor de livros por encomenda. Outra obra lançada recentemente, A
Sombra do Meio-Dia, trata do mesmo assunto. O livro do diplomata Sérgio Danese
apresenta a história de um publicitário que se converte em ghost writer de um senador e
acaba escrevendo para o político até cartas de amor. A obra tem traços autobiográficos,
já que Danese, ministro do Itamaraty na Argentina, foi ghost writer de celebridades, a
exemplo de seu antigo chefe, o ex-ministro das Relações Exteriores Luiz Felipe
Lampreia. No livro Diplomacia Presidencial - História e Crítica, publicado em 1999,
resultado de sua tese de doutorado, Danese rebatiza o ghost writer de “speech-writer”.
Ele conta que, no Brasil, esse profissional é conhecido como “rapaz dos discursos”,
embora seja uma peça-chave da expressão do pensamento institucional. Danese defende
que “ ‘Speech-writer’ é uma profissão legítima, embora o profissional corra o risco de
sofrer
um
dano
a
seu
patrimônio
de
(http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,EDG61537-6011,00.html).
idéias”
43
Outro ghost writer que transformou sua experiência em livro é o romancista
mineiro Waldomiro Freitas Autran Dourado, conhecido nacional e internacionalmente
como Autran Dourado. Seu romance “A Serviço del-Rei”, publicado pela primeira vez
em 1984, está de volta às livrarias e trata de um escritor mineiro que se associa a um
político, o qual acaba eleito presidente da República.
Em 2000, outro livro de sua autoria foi lançado: “Gaiola Aberta – Tempos de JK
e Schmidt”, obra em que apresentou os bastidores do governo do grande mito da
política brasileira, Juscelino Kubistchek de Oliveira, e revelou oficialmente os nomes de
alguns dos ghost writers do ex-presidente.
Autran Dourado foi um dos ghost writers de Juscelino durante o qüinqüênio
como presidente e, segundo ele, JK tinha preferência por escritores ao escolher as
pessoas que o assessoravam. Confiava plenamente nesses assessores. Muitos deles eram
escritores de Minas Gerais, a exemplo do próprio Autran, além de críticos como Álvaro
Lins. Apenas Sette Câmara, que foi ministro de JK e, posteriormente, embaixador não
era ligado à Literatura.
Até os livros autobiográficos de JK, publicados após o final do mandato
presidencial, foram redigidos por um ghost writer, o jornalista Carlos Heitor Cony,
informação passada por Autran Dourado durante a entrevista concedida por telefone e
confirmada
através
de
informações
disponíveis
no
site
de
Cony
(http://www.carlosheitorcony.com.br/biografia/texto.asp?id=84). E, no caso das obras
autobiográficas do ex-presidente, Autran alerta que, uma vez não tendo escrito suas
memórias, as tendo apenas narrado, Juscelino poderia ter sofrido falhas de memória e
alterado os fatos ocorridos em importantes episódios de seu governo. A origem da
Operação Pan-Americana, por exemplo, teria sido criada por outro ghost writer,
Augusto Frederico Schmidt, durante o mandato de Juscelino como presidente, como
apresentarei ainda neste capítulo.
3.1 Autran Dourado, a serviço de dois senhores
Autran Dourado conta que se tornou funcionário de Juscelino quanto este ainda
era governador de Minas, porque se encaixava no perfil solicitado por JK. O político
queria um taquígrafo que também fosse escritor. Autran foi indicado por Cristiano
44
Martins e tanto conquistou a confiança de JK que se tornou seu secretário de imprensa
quando Juscelino assumiu a presidência do país. O escritor conta que não tinha muita
intimidade com Juscelino quando ele governava Minas Gerais. Só tinha contato com o
governador quando era chamado. Autran pouco presenciou os acontecimentos na sede
do governo, a exemplo de uma conversa entre JK e seu secretário particular, Cristiano
Martins, em que o então governador manifestava o interesse em ser presidente do país.
Nessa época, era Cristiano Martins quem escrevia os textos em nome de JK. Ele era
especialista em escrever de forma que o signatário não se comprometesse, o que era
aplaudido pelos políticos mineiros. Cristiano se esquivava tanto ao escrever que, quando
JK, já presidente, precisava dizer algo mais forte, não recorria a Martins.
Na época em que Juscelino decidiu transferir a capital mineira para Ouro Preto,
no dia 21 de abril, Autran Dourado foi convocado para ir ao Rio de Janeiro taquigrafar
um discurso que JK havia pedido a Augusto Frederico Schmidt, o poeta. Autran logo
percebeu que Schmidt não precisava de um taquígrafo. O poeta justificou que invejava a
oratória de Francisco Campos, o qual certa vez Schmidt viu ditando a uma taquígrafa.
Posteriormente, Autran teve a oportunidade de mostrar sua capacidade em auxiliar JK.
Na ausência de Schmidt, Juscelino solicitou uma importante carta para o escritor. Na
verdade, não foi uma solicitação de JK; foi Autran quem se ofereceu para o serviço,
conta o escritor.
Um mês antes de passar o governo de Minas Gerais a Clóvis Salgado, Juscelino
indagou a Autran se ele queria trabalhar em seu comitê no Rio de Janeiro. O escritor
alegou que não seria possível, porque ele era funcionário da Assembléia em Minas.
Juscelino prometeu um cargo no Rio, sendo que, pela manhã, Autran ficaria trabalhando
com Schmidt. No início, o escritor não passava de um datilógrafo do poeta. Contudo,
assim que Schmidt descobriu as qualidades de Autran, eles passaram a escrever a quatro
mãos. Às vezes, Autran tinha que finalizar discursos escritos pelo poeta e imitava seu
estilo pomposo, já que, para JK, Schmidt era o autor dos textos.
Um discurso em que Autran deu sua opinião foi a oportunidade para que o
escritor passasse a escrever oficialmente para Juscelino. Carlos Lacerda havia declarado
na televisão que JK não seria candidato a presidente, se fosse, não seria eleito e, se
eleito, não tomaria posse, se tomasse, não governaria. Juscelino solicitou que Autran
Dourado fosse à casa de Schmidt. Lá, Autran relatou o que ouviu de uma conversa entre
o governador mineiro e o presidente Café Filho, o qual se aliara a Carlos Lacerda. Café
Filho havia mostrado a JK um manifesto dos chefes militares que vetava a candidatura
45
de Juscelino; era uma armação de militares golpistas aos quais o presidente havia se
aliado. JK deveria pronunciar um discurso no dia seguinte na sede do PSD carioca.
Schmidt então iniciou a redação do discurso e indagou a Autran se ele acreditava que
Juscelino era realmente tão corajoso quanto dizia ser. Autran respondeu com uma frase
de Benedito Valadares, a qual dava conta que JK queria bancar o Tiradentes com o
pescoço dos outros. Em seguida, Autran Dourado sugeriu: “Deus poupou-me o
sentimento do medo”. A frase foi acrescentada ao discurso, embora o poeta e o escritor
não estivessem certos de que Juscelino a diria em público. Depois de pedir opinião a
várias pessoas a respeito da tal frase, JK se convenceu de que era um homem corajoso.
Não demorou e Autran foi chamado para um novo serviço. Juscelino queria que
o escritor lesse uma carta considerada de extrema importância, a qual havia sido escrita
pelo jurista Francisco Campos a pedido de Benedito Valadares. Antes de se encontrar
com o governador, Autran tentou encontrar o poeta, sem sucesso. Foi então sozinho ao
encontro do presidente. Ao ler a carta, a qual JK queria assinar por considerar adequada,
Autran apontou o risco da ação: se Juscelino assinasse a carta, estaria aceitando a
indicação de sua candidatura e, ao mesmo tempo, devolvendo-a à Executiva do partido
para que esta decidisse por entendimento e não por votação. Por votação, JK seria
facilmente vitorioso, completou o escritor. Juscelino se espantou com a inteligência de
Autran e solicitou que ele escrevesse uma carta em substituição à que acabara de ler. O
escritor assim o fez. JK leu-a e pediu que a entregassem a Amaral Peixoto, em vez de
entregarem a Benedito Valadares. Acabada a leitura da carta por Amaral Peixoto, leitura
esta acompanhada por um outro homem o qual Autran não soube identificar, o tal
homem declarou que aquela não era a carta escrita por Francisco Campos a pedido de
Benedito Valadares. Já era tarde. JK foi escolhido candidato pela convenção e foi logo
para o Palácio Tiradentes, onde foi bastante aplaudido e até carregado nos ombros.
Autran afirma que era bisbilhoteiro da política na época e solicitou que Juscelino
o transferisse de oficial de gabinete a secretário de imprensa, cargo inexistente até
então. O escritor foi atendido e seu trabalho se multiplicou. Autran continuou
acompanhando as audiências dos congressistas e anotando as ordens do presidente. Ele
conta que pensou em colocar alguém em seu lugar, contudo, não queria abrir mão de
saber tudo o que acontecia nos bastidores do governo. O que JK despachava ou ditava
para Autran, o agora secretário de imprensa assinava com um “De ordem do presidente,
autorizar”. No início, alguns ministros e outras autoridades perguntavam se realmente
deviam cumprir tais despachos. JK chegou a deixar com Autran Dourado papéis em
46
branco assinados para o caso de emergências, tal era sua confiança no escritor. Houve
ainda um caso em que Juscelino deixou como recado que Autran poderia autorizar sem
mesmo consultar o presidente. A autonomia gerou acusações de corrupção, das quais
Autran Dourado se defendeu brilhantemente.
Em outro episódio, Autran foi chamado por D. Sarah. Juscelino havia sofrido
um enfarte e estava hospitalizado. Ela e algumas autoridades eram contra a divulgação
do fato e queriam a opinião do secretário de imprensa, o qual se manifestou favorável à
divulgação. Entretanto, Autran não foi apoiado e chegou a se passar pelo presidente,
acenando para jornalistas de dentro do helicóptero presidencial e imitando a assinatura
de JK em documentos. Quando a notícia correu e o escritor se viu pressionado pelos
jornalistas, fez com que o presidente saísse da cama e, no Palácio das Laranjeiras,
recebesse as credenciais de um embaixador, estratégia criada para que os fotógrafos
registrassem o presidente “em plena saúde”. Estava seguro o segredo do enfarte do
presidente.
O romancista ainda relata que, quando presidente da república, JK começava a
trabalhar bem cedo e convocava os principais assessores a comparecerem no Palácio das
Laranjeiras. Autran explica que, muitas vezes, eram seis e meia da manhã quando
iniciava as atividades com o então presidente e o trabalho como assessor se tornou tão
íntimo que chegava a despachar com Juscelino no banheiro. O romancista comenta que
o incomodava ver o presidente se ensaboando na banheira e ressalta que nada havia de
homossexualismo no trabalho em local tão reservado. Conta ainda que, certa vez, ao ver
JK molhar um relógio de ouro durante o banho, o alertou e ouviu como resposta que o
assessor era um “capiau” do Sul de Minas por não saber que o relógio era à prova
d’água.
As atividades continuavam no Palácio do Catete, onde os assessores não
dispunham de uma sala específica para trabalharem. Eles permaneciam na ante-sala
presidencial aguardando o momento em que seriam chamados por Juscelino. A sala de
JK ficava no terceiro andar e eram poucos os que tinham acesso a ele, a exemplo dos
que trabalhavam naquele andar. Juscelino tinha o temperamento imperativo e explosivo,
características escondidas atrás da aparência risonha do presidente.
47
Ilustração 1 – Juscelino, cordial e generoso, mas sem perder o sutil distanciamento4
Autran conta que Juscelino não entregava nada por escrito aos assessores.
Apenas dizia o que deveriam fazer e eles já sabiam exatamente como proceder. Os
discursos principais eram redigidos por Augusto Frederico Schmidt, o poeta, o qual não
era funcionário de JK mas foi um importante personagem da era JK. Os demais eram
escritos pelos assessores apontados por Autran Dourado, o qual verificava todos os
discursos, até mesmo os do poeta, antes de encaminhá-los à datilografia, trabalho feito
pelas secretárias do Palácio. De acordo com o romancista, os assessores não
costumavam trabalhar até tarde, porque o presidente também não tinha esse costume.
Comuns eram as noites de música no Palácio das Laranjeiras embaladas por Geraldo
Carneiro, chefe de gabinete. Autran conta que JK arranhava no violão, mas não herdou
esse talento do pai.
Ainda sobre o trabalho dos assessores como redatores dos discursos do
presidente, Autran explica que não havia dificuldade em redigir os textos, uma vez que
4
Fonte: Ricardo MARANHÃO, O governo Juscelino Kubitschek, p. 11.
48
Juscelino não tinha uma escrita específica, com marcas de linguagem, nem foi criado
um estilo para o presidente (por seus assessores). Como responsável por “fiscalizar”
todos os discursos de Juscelino, Autran Dourado garantia certa uniformidade aos textos
a serem lidos pelo então presidente, uniformidade esta que não tinha tanto rigor a ponto
de impedir que fosse possível notar duas diferentes linhas estilísticas nos discursos
proferidos por Juscelino Kubitschek. O romancista explica que, apesar de não redigir os
próprios discursos, JK tinha excelente oratória e improvisava durante os
pronunciamentos.
Visto que não havia então um estilo “presidencial” de escrita, Autran explica
que uma vez foi comunicado por um homem (que não quis se identificar) da existência
de diários escritos pelo então presidente e nos quais JK teria narrados seus romances.
Autran explica que só se certificou de que o material pertencia a Juscelino devido à
caligrafia do então presidente (DOURADO, 2000, p. 177-183).
Os discursos redigidos para JK seguiam a mesma linha; nada de marcas
estilísticas, embora Autran Dourado tenha afirmado em entrevista, concedida por
telefone, que seria possível perceber o estilo de Schmidt nos discursos os quais este
escreveu. Quando não escritos por Schmidt, não havia preocupação por parte dos
assessores em imitar o estilo de escrita do poeta, afirma Autran. Contudo, era
indispensável a revisão dos textos, o que, como já mencionado, ficava a cargo de Autran
Dourado. Ele devia eliminar as informações consideradas “perigosas” à imagem do
governo, isto é, informações que beneficiariam Schmidt e as quais poderiam prejudicar
o governo ou a imagem do presidente.
Autran viria a agir muitas outras vezes sem que JK soubesse que o assessor de
imprensa estaria mudando o curso da história. Uma homenagem preparada por
esquerdistas ao general Lott, certa vez, gerou um problema político que culminou no
fechamento da Frente de Novembro e do Clube da Lanterna pelo presidente. Carlos
Lacerda, então, iniciou uma série de ataques a Juscelino na televisão. Embora Autran
alertasse que, ao proibir Lacerda de se manifestar surgiriam problemas entre o governo
e a imprensa, o então diretor do Departamento de Telecomunicações do Ministério da
Viação e Obras Públicas, o general Olímpio Mourão Filho, não se convenceu e fez o
contrário. O resultado foi uma chuva de acusações contra JK. O jornalista Hélio
Fernandes “substituiu” Lacerda na TV, com ataques inclusive à família do presidente.
Juscelino solicitou um “cala boca” a Autran, que encontrou numa chantagem a solução
para os ataques a JK. Na véspera de um programa bombástico em que Sarah Kubistchek
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seria o alvo das acusações, Autran conseguiu um contato com o proprietário da emissora
de televisão através da qual o jornalista fazia os ataques ao presidente e, agora, à sua
família. Autran disse que mandaria executar a TV e seu presidente, devido às dívidas,
caso o programa não fosse suspenso. A solução veio rapidamente. O proprietário da
emissora decidiu provocar um defeito na antena de transmissão e, assim, evitar que o
programa fosse ao ar. O passo seguinte foi mudar a posição radical do jornal Diário de
Notícias, no qual o mesmo jornalista Hélio Fernandes mantinha uma coluna destinada a
atacar a Companhia Construtora da Nova Capital e seu presidente, Israel Pinheiro. Mais
uma tarefa para Autran. Desta vez, o “cala-boca” viria através da obtenção de um
empréstimo para o diretor do jornal, contudo, não houve negociação. O jornal manteve
sua posição.
Uma outra estratégia de Autran Dourado viria a dar certo. Ele decidiu ganhar
publicidade com Brasília através de um convite ao ministro da Cultura da França na
época, André Malraux, e ao escritor Aldous Huxley, conhecido no Brasil e ligado ao
esoterismo, o que provocaria a empatia entre ele e Brasília. Malraux foi o primeiro
visitante e, ao retornar ao seu país, concedeu uma entrevista sobre a nova capital
brasileira, entrevista esta que Autran divulgou pela Agência Nacional. Aldous veio em
seguida e fez um “tour” pelo país. O passeio foi estrategicamente providenciado para
que fosse uma viagem em que o escritor conhecesse o passado, o presente e o futuro do
país, com elementos como os índios, as cidades históricas mineiras e o aspecto futurista
de Brasília. O escritor retribuiu o passeio com um texto exaltando o que viu, texto que
também foi divulgado através da Agência Nacional. Um terceiro visitante foi
providenciado por Autran Dourado, um jornalista da Columbia Broadcasting System
que vinha solicitando uma entrevista com o presidente brasileiro.
Outra tarefa do romancista, desta vez mais árdua, foi a de diminuir os efeitos de
uma das mais sérias e longas greves do sindicalismo no Brasil. Um golpe estaria prestes
a ocorrer, o que causou preocupação em JK, o qual solicitou a presença de Autran.
Juscelino sugeriu que conversasse com Schmidt, que estava sempre bem informado
devido ao constante contato com Roberto Marinho, mas não levasse o poeta até o
Palácio das Laranjeiras. Autran levou a preocupação do presidente ao poeta e este se
apavorou. Ambos procuraram o jurista Francisco Campos e o general Odylo Denys, mas
a solução não veio. Entretanto, Autran encontrou uma saída estratégica, utilizou um
telegrama recém-chegado da África do Sul para o presidente brasileiro. A mensagem
tratava de uma reclamação da delegação do Botafogo contra aquele país. O motivo: um
50
jogador havia sido impedido de jogar por ser negro. Autran então convocou jornalistas
para anunciar uma notícia importante e, uma vez que não conseguiu tratar do assunto
com o presidente, tomou sozinho a decisão: comunicou ao ministro do Exterior, Negrão
de Lima, uma “ordem” do presidente JK para que a delegação do Botafogo retornasse
ao Brasil. O ministro duvidou do pedido, mas o cumpriu. No dia seguinte, a notícia
estava estampada nas primeiras páginas dos jornais e a greve havia se tornado
“insignificante”. Assim, a polícia espancou os grevistas sem que o assunto tivesse
repercussão. O episódio na África do Sul era o destaque do dia.
Autran conta que conseguiu emplacar outra manchete nos jornais quando decidiu
transformar uma mentira em uma verdade extraordinária e um dos atos fundamentais do
governo JK, afirma o romancista em seu livro (Cf. DOURADO, Op. cit., p. 143-145).
Autran disse ao filho de um biógrafo de Machado de Assis que Juscelino estava
interessado em desapropriar a obra Machadiana ou torná-la de domínio público. O
biógrafo reuniu jornalistas machadianos por solicitação de Dourado, o qual pediu que
presidente fingisse ler um exemplar de Dom Casmurro e assinasse um documento que
tinha no alto a palavra aprovo. JK fez o que lhe foi solicitado sem questionar. No dia
seguinte, os jornais estamparam a fotografia de Juscelino na primeira página e ele,
espantado, comentou com Autran que não conseguia entender a imprensa: “...fiz uma
coisinha de nada e veja que repercussão” (Ibid., p. 145).
A história traria outros desafios para o secretário de imprensa do presidente. Um
deles foi a decisão de JK de romper com o FMI, sem que tivesse que pagar caro por
isso. O presidente convocou uma reunião. Autran decidiu convocar a imprensa para que
Juscelino anunciasse o rompimento com o Fundo Monetário Internacional e os motivos
do rompimento, como não aceitar as condições impostas pelo FMI para conceder os
empréstimos solicitados. O povo se mostrou solidário e a frente do Palácio do Catete
ficou cheia de populares, que aplaudiram JK. Até o secretário geral do Partido
Comunista, Luís Carlos Prestes, apareceu. Juscelino decidiu não ler o discurso que
estava em seu bolso e, nesse caso, Autran Dourado não conseguiu fazer qualquer
manobra. Os jornais do dia seguinte publicaram que o discurso havia sido lido e tinha
jargões de esquerda. Dessa vez, a estratégia foi dos comunistas.
Outro desafio para o secretário de imprensa foi uma visita ao então governador
do Rio Grande do Sul, Leonel Brizola. Segundo o presidente, Brizola estaria usando
uma linguagem marxista e JK queria que Autran apurasse. O secretário de imprensa
aproveitou a inauguração de uma sucursal do Diário Carioca, jornal 100% governista,
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em Porto Alegre e voou para lá. Quando voltou ao Rio de Janeiro, trouxe a notícia de
que Brizola estaria envolvido com militares. Não demorou e Jânio Quadros e Brizola
bateram à porta do presidente para pedir o afastamento de Autran, o que Juscelino se
recusou a fazer. Tempo depois, Autran recebeu a notícia de que o dono do jornal havia
retirado todo o dinheiro em caixa e ido embora para a Europa, ou seja, o jornal 100%
governista e muito lido pelos políticos ia fechar as portas. O secretário de imprensa
conseguiu fazer com que JK liberasse dinheiro para que o jornal mantivesse as portas
abertas. Autran, então, levou uma mala de dinheiro para Pompeu de Sousa colocar o
jornal “de volta aos trilhos”.
A confiança depositada por JK em Autran aumentava a ponto de o romancista
trabalhar sigilosamente na condução de negócios políticos de Juscelino no Rio de
Janeiro. Ao fim do mandato de JK, Autran foi convidado por Juscelino para se
candidatar a deputado, desde que devolvesse o eleitorado quando JK voltasse a se
candidatar a uma vaga no Congresso. Autran recusou o convite e o apoio porque,
segundo ele, “a literatura é uma mulher muito ciumenta” (DOURADO, Op. cit., p. 8).
Autran Dourado também cita que Juscelino era muito diferente do mito que o
romancista ajudou a construir. Não era autoritário como político; era, sim, inquieto e
impaciente. Segundo Autran, JK “era muitas vezes um homem terrível para os que o
conheciam de perto, contraditório, que tanto me estranhava” (Ibid., p. 110).
O romancista mineiro Autran Dourado tem obras traduzidas para vários idiomas
e possui diversos prêmios nacionais e internacionais, a exemplo do Goethe, da
Alemanha, e do Camões, o qual o escritor recebeu em 2000 pelo conjunto de sua obra.
A Unesco escolheu Ópera dos Mortos, um de seus livros mais importantes, para
integrar a Coleção de Obras Representativas da Literatura Universal. Outra obra, Os
Sinos da Agonia, foi adotada para os exames de Agregação das Universidades
Francesas. E já são, pelo menos, trinta as dissertações de mestrado e teses de doutorado
sobre a obra de Autran Dourado. O currículo invejável também inclui o cargo de
secretário de imprensa do governo do ex-presidente Juscelino Kubitschek e o trabalho
silencioso como ghost writer de JK durante os cinco anos em que Juscelino permaneceu
à frente do país.
Mineiro nascido em Patos de Minas, e da cidade de Monte Santo de Minas de
coração, relutou, por décadas, em contar suas memórias em livro, apesar da insistência
dos amigos. A recusa do escritor era justificada pela dificuldade em provar os fatos que
seriam narrados, uma vez que ele afirma não ter qualquer documento ou cópia de
52
discurso da época em que assessorou o então presidente Juscelino Kubitschek. O
romancista conta que, em 1968, quando da edição do AI 5, membros do gabinete de
Juscelino foram presos, e o ex-presidente também foi posteriormente. Já Autran foi
avisado por um policial de que seria preso e, antes que se concretizasse, destruiu todos
os documentos que tinha em seu poder os quais pudessem comprometer JK. Na véspera
de sua prisão, o romancista foi informado de que não seria mais detido.
Autran Dourado acabou convencido a escrever suas memórias, apesar de alegar
não ter qualquer documento como prova de suas narrativas nem se lembrar da ordem de
alguns acontecimentos ou as datas em que ocorreram.
Há décadas, os amigos insistiam para que Autran escrevesse suas
memórias, capazes de remexer em dolorosas feridas e arrepiantes
pormenores dos bastidores do Poder. O romancista recusava, dizendo
que não guardara documentos e, assim, não poderia provar o que
contasse. Mas acabou sendo convencido, com o argumento de que, ao
lançar o livro, ele já estaria morto ou velho demais, portanto acima das
contestações (http://www.editoras.com/rocco/022326.htm).
O principal responsável para que as memórias fossem escritas foi o escritor
Silviano Santiago. Em conversas com Silviano, Autran Dourado comentou que o livro
deveria então ser publicado após sua morte. Ao dizer ao amigo, em tom de brincadeira,
que poderia viver muito e, nesse período, o país poderia restringir JK aos livros
escolares, sem que os brasileiros soubessem quem foi realmente Juscelino Kubitschek
de Oliveira, talvez tenha lhe ocorrido a idéia de permitir que a publicação fosse feita em
vida, como de fato ocorreu.
3.2 Schmidt, o poeta que “governou” o país
Mesmo sem exercer qualquer função pública, a não ser a de embaixador
temporário da ONU quase no final do mandato de Juscelino, Augusto Frederico
Schmidt, o poeta, foi a maior figura do governo JK, afirma Autran Dourado. O
romancista relata que, certa vez, o poeta declarou que “administrar e governar um país é
uma coisa muito secundária” (DOURADO, Op. cit., p. 9), o que causou estranheza e
risos em Autran Dourado. O então presidente tinha especial admiração por Schmidt e o
53
encarregava de escrever os principais discursos presidenciais, aqueles em que Juscelino
queria realmente dizer alguma coisa. O presidente sequer precisava dizer a Schmidt o
que gostaria de falar nesses discursos; era como se o poeta soubesse exatamente o que
pensava JK. Esses discursos, em particular, mereciam atenção especial de Autran
(encarregado de alterar, “à vontade”, os discursos e pronunciamentos do presidente), em
função de Schmidt, muitas vezes, escrever coisas que favoreciam a Orquima, empresa
que vendia produtos para o governo, promovendo um verdadeiro tráfico de influências.
A estratégia do poeta nos discursos se devia ao fato de ele ser presidente da empresa. Na
verdade, Kurt Weill era o “manda-chuva” da Orquima; Schmidt apenas emprestava seu
nome, era como um relações-públicas altamente qualificado, afirma Autran Dourado. O
poeta tratava, nos discursos, de assuntos considerados, por Autran, perigosos ao
governo.
O trabalho exercido por Autran Dourado era importante porque Juscelino, por
inúmeras vezes, teria pronunciado discursos sem antes tê-los lido ou sequer visto.
Autran cita uma vez em que chamou a atenção do presidente, o qual respondeu que
cofiava no romancista e estava certo de que Autran conhecia muito bem a filosofia de
seu governo. Autran Dourado também comenta que aconselhava o poeta a pedir ao
presidente o que queria, assim não precisaria usar os discursos a seu favor quando
tivesse que redigi-los. Apostava que os pedidos de Schmidt não seriam negados, mas o
poeta não deixou de tentar favorecer-se por meio dos pronunciamentos do presidente.
Para piorar, Schmidt não escondia o fato de ser escriba de JK, informação que,
várias vezes, foi parar nos noticiários. O fato dava margem a ataques por parte da
imprensa e parlamentares; entretanto, Juscelino nunca disse nada ao poeta, embora não
o agradasse a divulgação sobre o ghost writer. O silêncio do presidente talvez fosse
justificado pela importância que Schmidt tinha para o governo JK, conforme Autran
relata em Gaiola Aberta. Ele afirma que Juscelino invejava a capacidade intelectual do
poeta e aproveitou essa capacidade do assessor para potencializar seu governo.
O poeta [Schmidt] foi muito injustiçado (...) É preciso que se diga, e
disso dou testemunho: metade da grandeza do governo de JK se deve
a ele, e eu lhe faço justiça agora. (...) Para mim, uma das virtudes de
JK foi ter sabido escolher o Schmidt e saber usá-lo. Mas JK no fundo
tinha inveja da grandeza, brilho e capacidade dele. (DOURADO,
Op. cit., p.22-23).
54
Prova de que Schmidt “dava as cartas” pode ser observada quando o vicepresidente norte-americano, Nixon, levou pedradas em Caracas e Juscelino solicitou que
fosse redigido um telegrama ao presidente Eisenhower lamentando o ocorrido com
Nixon. Schmidt disse a Autran que um telegrama seria muito provinciano. O poeta
então telefonou para Juscelino e afirmou que deveria ser redigida uma carta para afirmar
JK como um grande estadista, para que ele crescesse internacionalmente. A carta
deveria manifestar a convicção do presidente brasileiro em relação à necessidade de
recomposição da unidade continental, que havia sido duramente atingida; mostraria que
o presidente brasileiro tinha preocupações sobre o pan-americanismo e ele gostaria de
expô-las ao presidente norte-americano quando houvesse oportunidade. O poeta então
deu o nome de Operação Pan-Americana (OPA) e iniciou a redação da carta. Não
demorou para que o texto estivesse pronto. Um estranho detalhe era o de que a carta
fugia dos padrões da diplomacia brasileira. Schmidt determinou a Autran até quem
devia encaminhar a carta ao destinatário. Antes que JK pudesse lê-la, o poeta telefonou
para ele e o informou de que aquela carta seria o início de um plano de investimentos
para a América Latina semelhante ao que o Plano Marshall foi para a reconstrução da
Europa após a guerra.
Juscelino pediu a opinião de José Maria Alkmin, o qual prontamente reconheceu
o autor da carta. JK rebateu afirmando que tinha idéias sobre pan-americanismo e que
Schmidt tinha sido apenas a mão que escreveu a carta. O poeta teria sido escolhido para
redigir o texto por ser o melhor escriba à disposição do presidente. Mas Alkmin não
engoliu a estória. Entretanto, disse a JK para aproveitar a manifestação de solidariedade
a o governo norte-americano e solicitar o apoio de Ensenhower para os interesses do
governo brasileiro, solicitação esta que o poeta saberia manifestar brilhantemente.
Autran ficou incumbido de levar a carta até o embaixador Macedo Soares, o qual
recebeu o escritor prevenido, já que havia recebido um telefonema do ministro Sette
Câmara, subchefe da Casa Civil. Antes de ler a carta, falou de como uma simples
vírgula muda todo o sentido do texto. Como era de se esperar, a carta causou espanto no
Departamento de Estado Norte-Americano e foi determinado que o chanceler americano
Foster Dulles viria ao Brasil. Schmidt comemorava e sugeriu a criação do Comitê da
Operação Pan-Americana, no que foi atendido. Autran e os diplomatas passaram a se
reunir na casa do poeta e foi escrito um documento a ser entregue ao chanceler. A
imprensa de oposição tentou ridicularizar a operação e o poeta, mas JK não recuou.
Quando o Foster Dulles chegou, propôs que o presidente brasileiro deixasse de lado os
55
investimentos maciços em todos os países latino-americanos e mantivesse a relação que
já existia entre Brasil e EUA. JK solicitou a seu secretário de imprensa que comunicasse
a Schmidt que estava tentado a aceitar a sugestão. Algumas autoridades do governo se
manifestaram favoráveis à proposta do chanceler. Sette Câmara e Araújo Castro se
disseram contrários à proposta americana. Schmidt se indignou e, caso JK não pensasse
como ele, deveria assumir sozinho a OPA.
JK disse então ao chanceler que estava com todos os países latino-americanos e
pediu que Autran desse um novo recado a Schmidt. Desta vez a mensagem estava
escrita em um pedaço de papel e dizia que o chanceler queria, ao final da reunião, uma
declaração anticomunista. O motivo do comunicado por escrito seria a desconfiança que
Juscelino teria de que Autran ainda estaria ligado ao comunismo e, portanto, não
confiaria nele para a transmissão oral daquela mensagem. A resposta do poeta foi a de
que a declaração diminuiria a importância do encontro e, portanto, o presidente deveria
concordar apenas em fazer uma declaração em favor da democracia.
O episódio ainda rendeu uma foto em que o presidente, ao estender a mão com a
palma para cima, indicando que o chanceler se sentasse primeiro, se transformou em
uma foto-bomba, cuja legenda era: “Me dá um dinheiro aí”, assim como na música que
tinha essa frase como refrão, muito popular naquela época. JK ficou irritado com a
astúcia dos jornalistas, mas o ódio não superou o manifestado por Schmidt, que
considerava uma humilhação não para Juscelino, mas para o país.
Quando foi a vez da visita do presidente Eisenhower, um novo documento foi
escrito e, mais uma vez decorado por JK. Schmidt, Autran e o presidente brasileiro mais
uma vez combinaram que, caso Juscelino tivesse qualquer dúvida sobre as decisões a
tomar, o secretário de imprensa faria contato com o poeta. Eles só não contavam que
haveria um problema quanto à questão do investimento americano em empresas estatais
brasileiras. Tal investimento seria estendido a outros países latino-americanos,
conforme a proposta da OPA. O presidente norte-americano declarou que os EUA não
fariam investimentos em estatais. Eisenhower queria chegar à Petrobrás. Antes que o
assunto chegasse a esse ponto, JK pediu que Autran contatasse Schmidt. A posição do
poeta, que antes era de ataque ao monopólio do petróleo, causou espanto em Autran
Dourado; Schmidt afirmou que não poderia haver distinção entre empresa estatal e
privada. O poeta ainda disse que os países, os quais eram aliados do Brasil, não
deveriam ser abandonados, traídos. Se houvesse traição, que o presidente não contasse
com ele.
56
O resultado do encontro foi a exoneração do ministro Macedo Soares. Schmidt
esperava ser nomeado o novo ministro do Exterior, mas JK fez uma manobra para evitar
a nomeação. Pediu que Autran comunicasse o poeta da decisão. Qualquer nome deveria
ser indicado para o cargo e, na verdade, quem mandaria na política externa brasileira
seria Schmidt. O poeta rompeu com JK e só reataram a amizade tempo depois. Para
Autran, que funcionou como um joguete na armação de Juscelino, a conclusão a que
chegou quatro décadas após o episódio é a de que o presidente teria sido tomado por
inveja. Caso Schmidt tivesse ido para o Itamaraty, ele teria sido a grande figura da
política externa brasileira, e não JK.
57
4 OS DISCURSOS DO PRESIDENTE
Louvado seja Deus por me ter
propiciado a ocasião de poder servir
a todos os Estados da Federação...
Juscelino Kubitschek de Oliveira
O material analisado, discursos proferidos pelo ex-presidente Juscelino
Kubitschek nos cinco anos de mandato, foi obtido no Memorial JK em Brasília. Os
pronunciamentos datam de 1956 a 1960 e estão reunidos em livros preparados pelo
Serviço de Documentação da Presidência da República, os quais foram compostos e
impressos pelas oficinas gráficas do Departamento de Imprensa Nacional. São, no total,
cinco volumes, os quais têm mais de 300 páginas cada um e apresentam um índice
cronológico em que, além da data de cada discurso, constam informações sobre o local
onde foi realizado, além do tema ou motivo. Ao final de cada volume, há um índice
remissivo, nomeado de índice analítico, e justificado como uma ferramenta para a
melhor realização de sua finalidade documental. Nesse índice, constam nomes de
cidades, personalidades e assuntos, a exemplo de “agricultura”, “Alagoas”, “barragem
de Três Marias, “José Bonifácio de Andrada Silva”, “soldados brasileiros mortos em
combate”, “Tribunal Federal de Recursos”. Os discursos registrados nos referidos livros
foram pronunciados por Juscelino Kubitschek no Palácio do Catete, sede do governo
federal até a transferência para Brasília; nas cidades visitadas pelo então presidente por
ocasião de inaugurações, congressos e formaturas (nas quais paraninfou turmas), entre
outros eventos. Alguns foram irradiados por meio de “A Voz do Brasil”, noticiário
radiofônico pertencente ao governo federal.
Para a realização deste estudo, foi necessária a solicitação de cópias dos cinco
livros. Os volumes com os registros dos pronunciamentos de 1956, 1957, 1959 e 1960
foram disponibilizados por meio de fotocópias impressas e o volume com os discursos
registrados em 1958, através de fotos digitais. Antes de concluída a leitura das mais de
1.500 páginas de pronunciamentos, foram feitos contatos telefônicos com Autran
Dourado, ex-ghost writer de JK, com o intuito de descobrir se o jornalista e escritor
possuía cópia do que foi dito oficialmente pelo ex-presidente e sabia informar quais
teriam sido escritos por cada escritor fantasma, o porquê da designação deste ou daquele
assessor para a redação de certos discursos e o que teria sido alterado por Juscelino.
58
Contudo, uma vez que não guardou qualquer documento ou rascunho sequer dos textos
redigidos para JK, Dourado afirmou acreditar que os pronunciamentos mantidos no
Memorial são transcrições do que foi proferido pelo presidente, ou seja, seriam os textos
escritos pelos ghost writers com as devidas alterações feitas por Juscelino enquanto
proferia os mesmos. Autran Dourado ainda afirmou que é difícil precisar a autoria dos
discursos, visto que eram vários os redatores fantasmas. Apenas as falas oficiais do expresidente consideradas mais importantes poderiam ter sua autoria definida, uma vez
que era solicitado a Schmidt que as redigisse. Mesmo sem qualquer outra menção de
Dourado sobre a autoria dos pronunciamentos de Juscelino, acredito que há trechos nos
textos redigidos pelos ghost whiters em que poderiam ser reconhecidas as intervenções
do ex-presidente e, por isso, foi possível pensar no desenvolvimento do presente
trabalho, o qual propõe identificar essas intervenções e analisá-las.
As datas dos discursos que constam nos cinco livros mostram que o expresidente chegava a discursar uma vez ao dia ou até mais. Em 6 de abril de 1956, por
exemplo, JK fez dois discursos em Porto Alegre, um sobre o desenvolvimento e
iniciativas nacionais e outro na instalação da 11ª Mesa Redonda das Associações
Comerciais do Brasil. No dia 28 de abril de abril de 1957, Juscelino também fez dois
pronunciamentos, entretanto, um ocorreu na capital carioca, na Sessão Solene Inaugural
do IV Congresso de Municípios, e outro na cidade de Peixotos, por ocasião da
inauguração da represa de mesmo nome no município paulista. Outros discursos foram
realizados seguidamente em cidades diferentes, contudo, havia pelo menos um dia de
intervalo entre um pronunciamento e outro, como o feito no Amapá no dia 5 de janeiro
de 1957, na inauguração do porto de minérios do território do Amapá, e o feito no
Palácio das Laranjeiras no Rio de Janeiro no dia seguinte, durante a apresentação de
telas do museu de arte de São Paulo. Em geral, passavam de cinqüenta, sessenta e até
setenta os discursos feitos anualmente e eles funcionavam, principalmente, como uma
prestação de contas do governo para com a população, com números sobre a economia
nacional; anunciavam a construção de Brasília, além dos esperados benefícios políticos
e sociais que derivariam da transferência da capital federal para o interior do país. Há,
ainda, manifestações de patriotismo; respostas às críticas da oposição; discursos
entremeados de poesia e metáforas, com direito a dados históricos e nomes de artistas
não conhecidos pelo grande público; e manifestações de religiosidade, quando aparecem
alusões a narrativas bíblicas, exaltações e louvores a Deus.
59
Essa miscelânea de enfoques e a falta de um padrão nos pronunciamentos
poderiam ser justificadas por teorias, como a da morte do autor defendida por Michel
Foucault (2002, p. 80-84), a qual trata do apagamento do autor em seu discurso. O
autor, para ele, é “princípio de agrupamento do discurso, como unidade e origem de
suas significações, como foco de sua coerência” (FOUCAULT, 2008, p. 26). A autoria
figura, dessa forma, como resultado, efeito do discurso. No caso dos discursos de JK,
esse apagamento não ocorre pela pluralidade de autores (ghost writers) mas pela
pluralidade de posições que cada sujeito pode assumir, como pai, filho, presidente. O
que deve ser considerado, então, é o lugar de onde se fala e não se deve confundir lugar
com a posição física; na verdade, é a posição em um contexto, nesse caso, a presidência.
Ao tratarmos das falas oficiais de Juscelino e analisarmos a posição ocupada por
ele, a de Presidente da República, não podemos nos esquecer das condições de produção
dos discursos, as quais dizem respeito ao contexto histórico em que a autoridade
presidencial estava inserida com toda a ideologia e o jogo de interesses intrínsecos a
este contexto. Como chefe da nação, JK sobreviveu a vários golpes e, ao priorizar a
construção de Brasília, esta representou um trunfo para ele, principalmente por retirar o
centro do poder do Rio de Janeiro, onde Juscelino não acreditava que conseguiria
governar, como já foi abordado aqui. Ao mesmo tempo, a transferência da capital
federal era vista pela oposição como o caminho mais curto até a sepultura do político
Juscelino Kubitschek, parafraseando o historiador Ronaldo Costa Couto (2002, p. 21).
Essa situação desconfortável, agravada pelos gastos incessantes com Brasília, enquanto
outros setores, a exemplo da agricultura, não recebiam estímulo financeiro suficiente
para se desenvolver, poderia ter levado os ghost writers a pensar em um discurso
presidencial como a chave para a manutenção da ordem no país. E uma vez que a
apropriação da língua é social
...os interlocutores constituem-se na bipolaridade contraditória daquilo
que, por sua vez, constituem: o texto (o discurso) enquanto sua
unidade. Assumindo essa posição, não se estará privilegiando nem o
locutor nem o ouvinte, mas a relação que os constitui: a instância da
interlocução, a interação (ORLANDI, 2001b, p. 150, grifo da autora).
Isso significa que JK, na posição de presidente, era tão importante para os
pronunciamentos quanto o povo brasileiro que os ouvia, o que significaria que os
60
escritores fantasmas deviam pensar não apenas no que um presidente deveria falar e
como deveria falar mas também antever a reação e os interesses do público para, só
então, redigirem os textos a serem lidos por Juscelino. “Arquitetar” os discursos não era
uma missão tão fácil, visto que Carlos Lacerda e outras faces opositoras ao governo
kubitschekiano faziam suas interpretações e até paródias das ações e falas oficiais de
JK, além de cobrarem dele uma postura diferente diante de setores que não eram
financeiramente beneficiados em virtude de o governo ter priorizado a construção de
uma nova capital da República. A fala do presidente precisava convencer e, para isto, ao
utilizar como instrumento da retórica o discurso político combinado ao religioso, a
fórmula, embora antiga no segmento, se mostrou uma solução eficaz para contornar
uma situação que poderia se tornar insustentável, o gasto milionário na concretização de
um município para sediar a capital federal enquanto outro importante setor padecia, a
agricultura.
Parece mecânico o ato de produzir sentido em um discurso esperando que o
ouvinte lhe atribua igual sentido, especialmente num discurso feito por um presidente.
Mas, na verdade, os sentidos não nascem no enunciador, sendo que este também imputa
sentido àquilo que fala. Para a interpretação de um discurso, portanto, seria necessária a
interpretação do sentido literal, do contexto e das regras às quais a fala está submetida
(ORLANDI, 2001b, p. 168), um jogo entre explícito e implícito – este último o que
realmente se quis dizer, em muitos casos. Contudo, não podemos pensar que, se o
sentido não nasce no locutor este não conseguiria instituir um sentido como o
dominante entre os múltiplos que podem ser produzidos. É ao estabelecer essa
dominação que o discurso político funciona. Esse tipo de discurso “procura absolutizar
um sentido só, de maneira que ele não se torne apenas o dominante, mas o único (Ibid.,
p. 163). Por isso, podemos afirmar que um sentido se estabelece e ganha legitimidade,
institucionalidade, sendo considerado o sentido oficial. “...o produto dessa sedimentação
[de processos de significação] é que pode ser visto como a história dos sentidos
cristalizados, é a história do jogo de poder da/na linguagem” (Ibid., p. 162), da verdade
imposta e legalizada, por meio de práticas que a sedimentam, de modo a ser aceita sem
discussão. A palavra divina auxilia nesta legitimação, sua força (na religião) é
incontestável e uma vez que JK ainda dispunha do sonho profético de um padre italiano
que viveu no século XIX como argumento para a concretização de Brasília, a
argumentação poderia ser considerada infalível.
61
Também é importante considerar o que John Austin chamou de enunciado
performativo, aquele que realiza uma ação, por exemplo: “perdôo você” e “condeno
esse homem a dez anos de prisão”. Dizer, nesse caso, corresponde a fazer. Diferente do
enunciado chamado de constativo, aquele que descreve um estado de coisas e, por isso,
está sujeito ao rótulo de verdadeiro ou falso, o enunciado performativo não se sujeita a
essa rotulação. Para que o enunciado seja chamado de performativo, são consideradas,
além da ação que realiza, as circunstâncias em que as palavras são pronunciadas e a
autoridade do falante para a execução dos atos. Quando o enunciado performativo tem
um enunciador inadequado ou é realizado em condições incorretas, é nulo
(http://www.filologia.org.br/viiifelin/41.htm).
Retomando os discursos de Juscelino Kubitschek, ressalto que a diferença da
retórica no discurso religioso - utilizado pelos ghost writers para dar mais poder ao
político - é que o falante, nesse caso JK, não assume a posição de onde se fala, a posição
de Deus, mas transmite as palavras de Deus, da vontade e dos desígnios divinos.
Poderia haver a ilusão de que o então presidente se confundisse com Deus, ilusão que
figura como condição necessária para que esse discurso funcione: “o como se fosse sem
nunca ser” (ORLANDI, 2001b, p. 253).
Ainda sobre as falas presidenciais da “era JK”, ressalto que além da pluralidade
de “pessoas” que existe dentro de um sujeito, no caso da assessoria do ex-presidente
ainda havia vários escritores redigindo os discursos para ele. Entre os redatores não
havia uma preocupação com a padronização do que era dito oficialmente por Juscelino,
isto é, a variação estilística dos discursos era comum, assim como o nível dos textos
(sendo alguns mais formais e outros mais próximos da fala).
Quanto às ocasiões e temas dos discursos, estes variavam entre inaugurações,
aniversários de municípios, formaturas, congressos, visitas de autoridades estrangeiras
ao Brasil, inflação, déficit orçamentário, industrialização, meta de emancipação
econômica do país, Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste (Sudene),
Operação Pan-Americana (OPA), a transferência da capital federal e suas
conseqüências.
As falas do presidente, em geral, utilizam a segunda pessoa do plural todas as
vezes em que o presidente se dirige àqueles que o ouvem e apresentam duas linhas
estilísticas distintas: uma que se espelha no estilo jornalístico e outra com uma
linguagem completamente oposta, a qual apresenta metáforas e vocábulos eruditos, por
exemplo. Segundo Eni Orlandi, a tipologia dos discursos [em geral] deveria atender a
62
relação linguagem/contexto, sendo o contexto compreendido em seu sentido estrito
(situação de interlocução etc.) e também no sentido lato (como as determinações sóciohistóricas e ideológicas), isto é, “a tipologia deveria incorporar a relação de linguagem
com suas condições de produção” (2001b, p. 152). Cada tipo de discurso tem certa
estrutura, está voltado para determinado interlocutor, assim como para um falante
específico e uma finalidade definida, ou seja, interlocutor e falante representam as
posições dos sujeitos no discurso e não a presença de uma pessoa em especial. Assim,
os textos redigidos pelos ghost writers deveriam contemplar o que era esperado do líder
da nação, o que geraria uma reação positiva no público e estivesse de acordo com a
ideologia circulante, uma vez que não poderia sofrer distorções de compreensão.
Entre os discursos do ex-presidente Juscelino Kubitschek, estão vários
exemplares de uma linguagem objetiva, típica do jornalismo, com frases claras e
concisas – como identifico o primeiro estilo dos discursos de JK. Há também trechos
em que constam termos formais e sentenças nem sempre construídas em ordem direta,
características ainda apropriadas ao exercício da profissão de jornalista na época. São
raros os casos em que aparece a primeira pessoa do singular. É o caso do proferido em
14 de novembro de 1956 no Palácio do Catete, Rio de Janeiro, por ocasião do encontro
de JK com arcebispos e bispos do nordeste:
Nesta ordem de idéias, apraz-me5 significar que entre os atos com
que pretendemos assinalar o transcurso do primeiro aniversário do
governo, a ocorrer em 31 de janeiro próximo – atos estes que não
serão propriamente festividades mas sim inaugurações de obras e
empreendimentos concretos – eu incluo desde já uma visita a
Brasília, a futura capital do país, para assistir à primeira missa a ser
ali celebrada (KUBITSCHEK DE OLIVEIRA, 1958, p. 337, grifos
meus).
Outros discursos, ainda nessa linha estilística, se apresentam como prestações de
contas do governo à população que acompanhava os pronunciamentos do então
presidente, como o realizado em Juiz de Fora no dia 16 de dezembro de 1958, o qual
trata da verba investida pela União na Educação. Geralmente, os pronunciamentos são
impessoais, apresentam números e justificam os investimentos feitos:
5
Aprazer – agradar, ser agradável, causar prazer, contentar-se, deliciar-se.
63
Quanto ao ensino de grau médio no corrente exercício, destinaram-se
verbas de 17 milhões para ampliação do Colégio Estadual de Belo
Horizonte e para prosseguimento das obras do colégio Estadual de
Caratinga, além de verbas menores para o início da construção de
numerosos ginásios de redes de educandários gratuitos. Concluíramse as obras iniciadas no ano anterior, do Colégio Municipal de
Visconde de Rio Branco. [...] No plano do Ensino Superior, não
menos significativas têm sido as providências e iniciativas do
Governo, consciente de que, só através de cientistas e de técnicos de
alto nível, será possível expandir, fortificar e emancipar a nossa
produção. Nossas vistas se têm voltado sobretudo para os setores da
engenharia e da Química (KUBITSCHEK DE OLIVEIRA, 1959, p.
485-486).
A respeito dos recortes apresentados até agora, seria difícil atribuir a autoria a
este ou aquele escritor fantasma em virtude de os redatores que assessoravam Juscelino
serem escritores e/ou jornalistas numa época em que os estilos de escrita de ambas as
profissões ainda podiam ser confundidos. Dessa forma, a teoria da morte do autor pode
facilmente ser aplicada, visto que a principal preocupação percebida é a de redigir o que
se espera de um chefe de nação, isto é, manifesta-se o que Foucault nomeou de arquivo,
“a lei do que pode ser dito, o sistema que rege o que o aparecimento dos enunciados
como acontecimentos singulares” (2005, p. 174). Esse arquivo é latente e não se origina
no sujeito; não equivale a um acervo de documentos nem é descritível. Mas é essencial
para a materialização dos discursos e está intimamente ligado às relações de poder,
submetido a elas: “...o indivíduo é uma produção do poder, ou seja, na concepção
foucaultiana, é formador de uma verdade sobre o sujeito. Assim, o indivíduo é uma
fabricação do poder e o elemento que torna possível um conhecimento sobre ele”
(SILVA, 2004, p. 172). Ao considerarmos a identidade criada para o presidente
Juscelino a partir dos textos escritos para ele, temos uma verdade programada para
justificar as ações presidenciais e um poder que o discurso religioso reforçou, já que JK
se considerava um designado à construção de Brasília e à salvação do país da
estagnação, e seus pronunciamentos (com marcas lingüísticas religiosas) se
aproveitavam disso. É essa relação entre poder e “verdade produzida” que entendo ser a
matéria-prima para os discursos políticos e, por isso, se justifica o embasamento de
minhas análises em obras do filósofo francês Michel Foucault.
Retomando o “diagnóstico” das linhas estilísticas dos discursos de JK, apresento,
ainda dentro do primeiro estilo, uma linha temática que exalta o nacionalismo. Nesses
textos, o país e a construção da nova capital federal são os sujeitos das orações e são
64
tratados com orgulho, considerados extensões bem sucedidas do governo e do povo,
“obras” que espelham as qualidades, capacidades e aspirações da nação. Como o
discurso de 25 de abril de 1956, apresentado por Juscelino Kubitschek em Curitiba: “O
Brasil é uma grande nação, é um império. Como grande nação, como vasto império, é
que deve ser considerado e interpretado” (KUBITSCHEK DE OLIVEIRA, 1958, p. 89,
grifo meu). Outro exemplo é o pronunciamento feito por JK no Rio de Janeiro em 30 de
setembro de 1957, ao sancionar a lei que fixou a data da transferência da capital da
república:
...congratulo-me com o Congresso Nacional, que, com alto
discernimento e patriotismo, soube auscultar os sentimentos desta
nação, soube acolher os seus históricos anseios, soube, mais uma vez,
mostrar-se fidedigno cumpridor da soberana vontade do povo
brasileiro (IDEM, 1958, p. 219).
Embora haja uma linha temática - nacionalista, não há marcas lingüísticas que
identifiquem uma autoria específica ou mesmo um traço de participação de Juscelino no
pronunciamento.
Dentro da segunda linha estilística, aparecem metáforas e informações que
remetem à intelectualidade, os textos são entremeados de palavras eruditas (entre elas,
vocábulos em latim), nomes de obras e de artistas nem sempre conhecidos pela maioria
da população, além da presença constante da palavra “epopéia” e de verbos como
“aprazer”. É o caso do pronunciamento de 5 de novembro de 1958, ocorrido durante
solenidade comemorativa do sesquicentenário da Instituição do Ensino médico no
Brasil, na Faculdade Nacional de Medicina no Rio de Janeiro:
65
Há um século e meio o Brasil era apenas o prefácio do livro selado
pelo mistério do futuro. Este livro em branco, o livro divino dos
tempos, tanto poderia ser uma epopéia6 da raça, como o relato do seu
desânimo, da sua desagregação e do seu fracasso. É verdade que os
nossos antepassados tinham escrito como sangue, no prólogo7
heróico das entradas e bandeiras, o poema do descobrimento e do
povoamento da terra generosa. Mas a liberdade é um desafio à
competência. E se, ébrios8 de liberdade, os seus sucessores se
desmandassem em subversões estéreis, em despotismos dissolventes,
em incompreensões nefastas, aqui não floresceriam os estudos, o
regime de união e de ordem, a sabedoria que ensina e as vocações por
ela atraídas; nem os cento e cinqüenta anos dessa ilustre medicina
fariam honra à brasilidade. Graças a Deus, o livro do Brasil dia a dia
se foi enriquecendo com a memória dos pioneiros, o nome e as ações
dos beneméritos, o exemplo e a palavra dos mestres, a correção e a
continuidade das gerações, na história da pátria que, sem cessar se
robustece (KUBITSCHEK DE OLIVEIRA, 1959, p. 390, grifos
meus).
Essas marcas lingüísticas não contrariam a teoria do apagamento do autor, já
que, assim como os estilos de escrita, pode ser imitadas, como aconteceu com alguns
pronunciamentos de JK, os quais foram redigidos por Autran Dourado. Ele teve que
imitar a forma de escrita de Schmidt, que apresentava vocábulos elitizados (como
“ébrios de liberdade” e “numa espécie de sinfonia wagneriana do trabalho”), nos casos
em que o poeta, apesar de designado como redator oficial dos principais discursos
presidenciais, não podia escrevê-los. Se era possível imitar o estilo de Augusto
Frederico Schmidt, podemos considerar que a redação dele era marcante, uma pista para
as análises a serem desenvolvidas nos dois capítulos seguintes, sobretudo no último,
quando serão contrapostas as características do discurso do poeta e as do discurso de
JK.
Dentro da segunda e última linha estilística identificada entre os discursos de
Juscelino Kubitschek, há uma linha temática que atenta para a religiosidade e tem, entre
os principais exemplos, falas a autoridades religiosas e moradores de Diamantina, terra
natal de JK. Esses pronunciamentos fogem ao padrão dos demais por, em sua maioria,
apresentarem frases mais longas, assim como os parágrafos, aparentando liberdade ao
falar. Mas também há trechos curtos ligados à religiosidade que aparecem em
pronunciamentos de estilo mais objetivo, o primeiro apresentado nesse trabalho. Os
pronunciamentos com características religiosas sempre apresentam palavras ligadas ao
6
Epopéia – poema longo sobre assunto heróico, série de ações heróicas (fig.).
Prólogo – parte do drama que um só personagem representava antes da peça propriamente dita, prefácio.
8
Ébrios – alcoólatra, bêbado, esponja, beberrão.
7
66
catolicismo, como no discurso realizado no Rio de Janeiro em 27 de novembro de 1957,
dia de ação de graças, todo voltado para a gratidão a Deus e do qual é aqui transcrito
apenas um trecho:
A crença no Deus Único é o mais adiantado estágio que alcançou a
civilização [...] Desde que o homem aperfeiçoou o dom divino de
amar, sublimando o amor, elevando-o à categoria espiritual mais
pura, foi o amor de Deus o caminho para romper a solidão que o
sufocava, o elo capaz de unir os seres isolados na perfeita comunhão
com o Espírito que paira sobre a terra. Só no seio de Deus, no amor
divino, é possível encontrar a paz e a compreensão entre os homens.
Estas palavras de fé podem soar estranhas aos ouvidos de muitos, pois
assumem a feição de uma prece, o reconhecimento da nossa
humildade e paradoxalmente da nossa grandeza; nos dias atuais,
quando mais prementes e necessárias se tornam a oração e a fé, a
prece ainda é a grande revelação [...] desejo pedir a todos que voltem
o seu pensamento para o alto e agradeçam ao Supremo Bem todas as
dádivas e alegrias que nos concedeu, e mesmo todas as provações e
sofrimentos, que serviram para nos mostrar a Sua Magnitude.
Rendamos graças a Deus pelo destino que nos conferiu [...] peçamos
a Deus que continue a favorecer-nos com a Sua proteção [...]
Roguemos então a Deus que favoreça todos os povos do mundo para
que não haja fome e guerra [...] Roguemos a Deus para que o
trabalho dos homens só sirva para louvá-lo e exaltá-lo na Sua
Suprema Glória! (KUBITSCHEK DE OLIVEIRA, 1958, p. 257258, grifos meus).
Entre os exemplos de trechos religiosos que aparecem em pronunciamentos de
outra linha estilística (no caso, a próxima do jornalismo), está o feito por JK no Palácio
das Laranjeiras na presença dos embaixadores das vinte e uma Repúblicas Americanas,
no Rio de Janeiro, em 24 de setembro de 1960. O tema da fala do presidente era a
Operação Pan-Americana (OPA) e o trecho aparece logo após o então presidente
brasileiro tratar da importância de uma conferência realizada em Bogotá pouco tempo
antes, na qual a OPA teria sido consagrada.
Não mais se cogitará de conquistarmos a uma causa nova adeptos
indecisos ou receosos, de combatermos a incredulidade, de
vencermos a inação ou o ceticismo: cristãos velhos ou novos, todos
hoje comungamos da mesma fé (KUBITSCHEK DE OLIVEIRA,
[1961], p. 347, grifos meus).
67
Outro trecho que exemplifica o aparecimento de vocábulos religiosos em
discursos voltados a assuntos não ligados à religião é o pronunciado em Fortaleza no dia
15 de julho de 1960, quando JK recebeu os títulos de cidadão do Estado do Ceará e de
cidadão de Fortaleza. Juscelino aproveita a oportunidade para apresentar uma prestação
de contas de seu governo. Fala das melhorias em rodovias, dos investimentos em
irrigação, piscicultura e outros setores. Na seqüência, afirma que a prestação de contas
foi um desabafo e declara:
Louvado seja Deus por me ter propiciado a ocasião de poder servir a
todos os Estados da Federação, sem levar em conta a filiação
partidária de seus Governantes e o montante de votos que recebi
quando candidato (KUBITSCHEK DE OLIVEIRA, [1961], p. 251,
grifo meu).
Neste pronunciamento de 15 de julho, não há qualquer menção a respeito da
suposta preocupação de JK em cumprir a constituição, contrariando o que ele trata no
livro “Por que construí Brasília”. Em outro discurso, realizado em 24 de abril do mesmo
ano, Juscelino novamente faz uso da religiosidade para justificar a Meta-Síntese de seu
governo:
Mencionando os deveres sagrados que me moveram a transportar
para o interior a Capital da República, aludi à segurança nacional [...]
Graças devemos dar ao Criador do Universo porque um trabalho
fecundo nos espera e isso equivale a uma benção dos céus (Ibid., p.
151, grifos meus).
Os últimos discursos citados não só apresentam termos ligados ao catolicismo
como também poderiam ser considerados possíveis intervenções de Juscelino nos textos
escritos para ele, visto que são trechos isolados, destoantes dos demais que entremeiam
os pronunciamentos. Contudo, atribuir autoria aos trechos ditos religiosos é arriscado,
uma vez que havia ghost writers católicos, caso do fervoroso Augusto Frederico
Schmidt, e mesmo os adeptos de outras crenças e religiões, poderiam ter assimilado
características da fala de JK, visto que vários discursos apresentam invocações a Deus,
como “Deus seja louvado” e “Roguemos a Deus”. Os vocábulos também poderiam ter
sido usados propositalmente pelos redatores fantasmas, como estratégia para atrair a
68
atenção do povo, ao colocar o presidente como um homem que prezava pela
religiosidade. “A religião constitui um domínio privilegiado para se observar esse
funcionamento da ideologia dado, entre outras coisas, o lugar atribuído à Palavra”
(ORLANDI, 2001b, p. 242). Nesse caso, a posição ocupada por quem fala é diferente
daquela existente nos discursos tradicionais: o falante não ocupa o lugar de Deus; é
apenas um representante Dele. Se nos lembrarmos de que no discurso religioso
considera-se que a voz de Deus fala no padre ou em outro representante divino, e no
discurso político considera-se que a voz do povo fala no político, poderíamos afirmar
que os discursos de JK uniam desejo/mensagem de Deus com desejo/mensagem do
povo. Não seria sem motivo o uso da primeira pessoa do plural nos pronunciamentos de
JK com esse mote. E mesmo tão próximo do povo, e fazendo parte do povo, o falante,
que representa Deus mas não ocupa o lugar Dele, torna sua fala um rito.
É preciso ressaltar que, no catolicismo, Deus representa o Pai acolhedor e que
tudo perdoa, Aquele que cura, que espera que Seus filhos trilhem o caminho da Verdade
e do Bem, Aquele que garante a salvação aos que crêem sem questionar (dogmatismo) e
que fala com os homens por meio do padre ou mesmo sem intermediários. Mas o Deus
católico também representa Aquele que pune quando Seus filhos se desviam do
caminho que leva até Ele. Essas concepções, segundo Gramsci, são para o povo um
misto de “formas precedentes do catolicismo atual, movimentos heréticos9 populares,
superstições científicas vinculadas a religiões do passado, etc. (Gramsci apud Orlandi,
2001b, p. 248). Orlandi também cita Gramsci para explicar como funciona o discurso
religioso católico, baseado na fé, ou seja, em dogmas - verdades incontestáveis pelos
fiéis. O homem e Deus pertencem a mundos diferentes, material e espiritual
respectivamente, e, para se estabelecer uma relação entre ambos é necessário ao homem
assumir as qualidades do espírito, daí a importância da fé nesse contexto como uma
possibilidade de ele possuir um poder que emana de Deus, embora não assuma a
posição de Deus, e alcançar a salvação. A fé, também é utilizada para classificar as
pessoas como as que pertencem à Igreja - as que crêem - e as que não pertencem – e,
portanto, não crêem. Assim, o discurso religioso significa uma promessa aos fiéis e uma
ameaça aos não-fiéis (Cf. ORLANDI, 2001b, p. 250).
Ao unir o discurso religioso e o político, JK aparece como a voz de Deus e do
povo, é como se ambos falassem no presidente. “Essa é a forma da representação, ou
9
Heréticos – contrários à religião.
69
seja, da relação simbólica” (ORLANDI, 2001b, p. 244). Aqui é necessário tratar de uma
característica importante do catolicismo: a crença sem contestação, o dogma,
diferentemente de outras religiões e crenças que combatem o que chamam de “fé-cega”
e defendem o conhecimento ilimitado. Ora, o que garante a eficácia do discurso
religioso é a ilusão de que Deus fala no sujeito e, uma vez que o católico não contesta o
que ouve do padre ou outro representante de Deus, o poder de convencimento do
discurso religioso católico, também utilizado por JK, se torna infalível. Não é necessária
uma prova da verdade. A verdade é aquilo que o falante anuncia e não é passível de
refutação.
Nos pronunciamentos de 1960, além dos trechos que apresentam marcas de
religiosidade, há outro elemento que merece atenção. Em sua maioria, a fala oficial do
presidente não fez mais do que enaltecer o próprio JK pela coragem de mudar a capital
brasileira do Rio de Janeiro para o interior do país. Os discursos, com assuntos variados,
tratam, na verdade, de um único tema: a transferência da capital do país para o centrooeste brasileiro, o que era considerado “apenas” o cumprimento da Constituição Federal
por Juscelino, conforme ele próprio anunciava. Mesmo quando o título da fala de JK
discorria sobre, por exemplo, a visita do então presidente do México, López Mateos, ao
Brasil, o assunto central da fala oficial não variava; como que uma “alfinetada” na
oposição e naqueles que não acreditavam que Brasília um dia sairia do papel. Era uma
verdadeira propaganda dos “50 anos em 5” em oposição ao que JK chamava de
estagnação do continuísmo. Mesmo quando não fala diretamente de Brasília, Juscelino
enfatiza os pontos positivos de seu governo. Chega a apresentar um extenso relatório
sobre o desenvolvimento do país durante o pronunciamento feito no dia do quarto
aniversário de seu governo, em 31 de Janeiro de 1960, como que para provar sua
capacidade para administrar o país e, conseqüentemente, para conduzir a transferência
da capital federal. De acordo com Autran Dourado, essas falas oficiais de Juscelino
como presidente seriam um reflexo da obsessão de JK pela “Meta-síntese” às vésperas
da concretização de Brasília. O escritor ainda afirma que era o então presidente quem
solicitava que os discursos tratassem da nova capital federal, mesmo quando o tema era
outro.
Em pronunciamento realizado em 26 de junho, Juscelino comenta até sobre a
agricultura, setor que não recebeu muitos investimentos em seu governo em virtude dos
esforços terem se concentrado na indústria e na construção de Brasília. JK promete
investimentos no campo para beneficiar a agricultura e a pecuária, embora já estivesse
70
no final de seu mandato. Era uma forma de preparar os eleitores para as eleições de
1965, quando Juscelino voltaria a disputar o cargo mais elevado do país e teria como
lema “JK-65: 5 anos de agricultura, 50 anos de fartura”. O discurso rendeu críticas, as
quais foram rebatidas em um pronunciamento feito em Belo Horizonte em 2 de julho,
quando, mais uma vez, Juscelino reverteu o foco de sua fala para as obras realizadas em
seu governo e para os benefícios que haveriam de surgir após a transferência da sede do
governo para Brasília, uma “manobra” típica dos pronunciamentos políticos.
No discurso proferido no Rio de Janeiro em 26 de julho de 1960, durante a
instalação do I Simpósio Nacional sobre Conceituação da Economia Brasileira, embora
o tema do congresso fosse economia, JK não tratou da política econômica nacional nem
mesmo da inflação. O mesmo ocorreu com várias outras falas oficiais datadas de 1960,
as quais, na verdade, trataram da construção de Brasília em vez dos verdadeiros temas
sobre os quais se propunha a discorrer.
E apesar de os discursos que não tratam de religiosidade pareçam ser mais bem
arquitetados e, por isso, os que mereceriam maior atenção neste trabalho e,
conseqüentemente, uma análise, é no discurso especificamente religioso que serão
concentrados meus esforços e nos quais acredito estar a chave para resposta do
problema de pesquisa que propus, já que seriam a principal oportunidade dos
improvisos de JK.
Para isso, lanço a pergunta: que panopticon seria mais eficiente que a
onipresença de Deus? Ao analisarmos Juscelino como o designado para a construção da
nova capital federal podemos estabelecer uma ponte com a época em que os reis eram
considerados enviados de Deus e os padres comungavam da riqueza dos reinos. Igreja e
Estado se confundiam e o discurso religioso já era usado para a comercialização de
indulgências, como a compra de “santinhos” para a garantia de absolvição de pecados e
a conquista de uma vaga no Céu. “O palácio e a Igreja constituíam as grandes formas, às
quais é preciso acrescentar as fortalezas; manifestava-se a força, manifestava-se o
soberano, manifestava-se Deus” (FOUCAULT, 2006a, p. 211). Seguindo o pensamento
de Foucault, poderíamos afirmar que Juscelino reunia as duas instituições: o Estado e a
Igreja, ou seja, representava dois pilares da sociedade cujos discursos e atos não são
passíveis de refutação.
71
5 POR TRÁS DOS DISCURSOS
É inútil fechar os olhos à realidade.
Se o fizermos, a realidade abrirá nossas
pálpebras e nos imporá a sua presença.
Juscelino Kubitschek de Oliveira
Os discursos feitos por JK, mesmo que não fossem escritos por ele, seguiam o
que o então presidente almejava dizer ou fazer. O jornalista Franklin Martins,
atualmente à frente do Ministério da Comunicação Social, ressalta que todo político
defende interesses, os quais podem ser, ou não, legítimos e honestos, e são raras as
vezes em que seu pronunciamento coincide com aquilo que realmente defende. Na
verdade, o discurso político visaria à solidariedade de um público em número superior
àquele que seria beneficiado com sua proposta. O jornalista ilustra as explicações sobre
os pronunciamentos políticos com dois exemplos: o primeiro, um pacote com um belo
embrulho; o segundo, uma citação de Guimarães Rosa, a qual dizia que a palavra oculta
mais do que desvela. Martins completa que, de modo geral, o político fala para
transferir o foco de algo que o incomoda para algo que o favorece (MARTINS, 2005, p.
63-65).
No caso dos discursos proferidos por JK, os ghost writers tanto atendiam aos
anseios de JK que muitos pronunciamentos não tratavam somente, e principalmente, do
tema anunciado; pouco depois de seu início desviavam-se para assuntos de interesse de
Juscelino, como já citado neste estudo.
Os discursos produzidos pela suposta miscelânea de autores não eram
submetidos a uma uniformização, segundo afirmou Autran Dourado, de modo a deixar os
discursos com um mesmo padrão de estilo, o que permitiu delinear as linhas estilísticas
aqui apresentadas. Questionado sobre as possíveis alterações no padrão dos discursos de
JK, Autran Dourado afirmou, em entrevista, que é impossível definir onde consta o estilo
literário desta ou daquela pessoa, já o estilo de Schmidt teria sua identificação mais
acessível, já que era ele quem escrevia os principais discursos proferidos por JK, como
Autran também afirmou à “Revista Época”:
72
"Escrevi discursos para JK, embora o principal ghost-writer dele fosse
Augusto Frederico Schmidt (1906-1965), seu chefe-de-gabinete, cujo
estilo podia ser detectado na fala do presidente. JK pegava o
discurso direto, sem olhar", [afirma o ex-secretário de imprensa].
Dourado chegou a fazer discursos para o próprio Schmidt, imitandolhe o jeito de escrever. "Fui ghost do ghost", brinca [o jornalista]. "JK
era um caipira que amava literatura. Como não tinha cultura,
cercava-se
de
escritores"
(http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,EDG615376011,00.html, grifos meus).
A declaração de Dourado à revista é uma pista para se cogitar a autoria de uma
das linhas estilísticas dos discursos, aquela em são apresentadas informações culturais e
históricas, além de metáforas, vocábulos em latim e termos típicos dos intelectuais.
Entre os discursos deste estilo, o erudito, que fez sucesso entre a elite brasileira nas
décadas de 50 e 60 e ainda hoje é admirado, está o pronunciado em Florianópolis, no dia
3 de abril de 1957, na Conferência dos Governadores da Bacia Paraná-Uruguai. O
assunto, o desenvolvimento regional e nacional:
Concito-vos10 a meditar no problema de ajudar o café e a sustentar a
luta e ajudar o Brasil [...] Sei que para isso se impõe a ação do
Governo Federal, facilitando os transportes e criando energia, mas já
todo o país sabe que em tal sentido trabalhamos infatigavelmente,
sem desfalecimentos, numa luta áspera contra forças maléficas de
toda espécie, desde as negativas, as da inércia, as do pessimismo
dissolvente, até as agressivas e virulentas erupções de ódio de
desajustados que procuram em vão desorganizar o país com a calúnia
soez11 e ira malsã12. [...] Passou a hora dos inimigos da paz, dos
detratores (KUBITSCHEK DE OLIVEIRA, 1958, p. 86).
Retomando a informação de que os discursos do presidente JK eram redigidos
por diferentes assessores, é preciso enfatizar que Dourado era o responsável pela revisão
dos textos e sabia dos interesses do poeta ao redigir os pronunciamentos, como comenta
Luis Nassif:
10
Concitar – incitar, instigar, insuflar, excitar, mover.
Soez – vil, torpe, reles.
12
Malsã – doentia, insalubre, ainda não curada totalmente.
11
73
13
A grande eminência parda do governo JK foi o poeta e empresário
Augusto Frederico Schmidt. Autran sentia que JK tinha medo do
brilho do Schmidt. Os melhores discursos de JK eram preparados por
Schmidt, mas passavam pelo crivo de Autran, incumbido de lhes
conferir uniformidade e extirpar algum exagero retórico ou algum
contrabando
não
combinado
(http://www.lainsignia.org/2006/febrero/ibe_061.htm).
Sobre os discursos escritos para Juscelino, é necessário salientar também que, de
acordo com Autran Dourado, o então presidente jamais teria solicitado que os discursos
possuíssem amostras de sua religiosidade. Entretanto, é provável que os ghost writers
tenham assimilado características da personalidade do então presidente do Brasil e isso
transpareceria nos textos escritos para JK. Ou que essas características tivessem sido
utilizadas propositalmente pelos escritores fantasmas. De qualquer forma, um jogo entre
o sujeito e o autor do enunciado.
Mikhail Bakhtin explicaria essa simulação do discurso do outro com a teoria da
polifonia. De acordo com o filósofo, o ser chamado social ganhou essa nomenclatura
em virtude de “se construir” continuamente a partir de outros eus, estejam eles dentro
ou fora do sujeito – o que chamou de alteridade. E essa relação se explicita tanto nas
ações quanto no discurso. A alteridade ou dialogismo, de acordo com o autor, são
inerentes ao discurso. O sujeito emerge do outro, afirma ele; a partir do seu diálogo com
outros “eus”. O discurso é constituído a partir de vozes concorrentes (polifonia), tanto
internas quanto externas. A partir desse dialogismo, a imagem do homem é construída
num processo de comunicação interativa, no qual nos vemos e nos reconhecemos
através do outro, da imagem que ele faz de nós.
Aquele que apreende a enunciação de outrem não é um ser mudo,
privado da palavra, mas ao contrário um ser cheio de palavras
interiores. Toda a sua atividade mental, o que se pode chamar o
“fundo perceptivo”, é mediatizado para ele pelo discurso interior e é
por aí que se opera a junção com o discurso apreendido do exterior.
(BAKHTIN, 2006, p. 153-154).
13
Expressão usada para designar uma pessoa que se mantém nos bastidores da vida pública e exerce o
poder secretamente; é quem realmente manda, contudo não aparece. O significado do termo “Eminência
Parda” não difere do subtítulo do capítulo três deste trabalho: “Schmidt, o poeta que governou o país”.
Eminência Parda - termo originado no governo de Luís XIII, quando o capuchinho Père Joseph (Frei
José), ao tornar-se secretário particular, conselheiro e confidente do Cardeal Richelieu, o verdadeiro
homem forte da França de Luis XIII, exerceu sobre o Cardeal tal influência que fez do religioso um das
mais poderosas figuras do reino, embora Père Joseph não ocupasse um cargo oficial.
74
Faço aqui um adendo para justificar que, embora o filósofo Bakhtin considere
fatores extra-lingüisticos como o contexto de fala, a relação entre falante e ouvinte, e o
momento histórico em suas pesquisas, vou concentrar as análises deste trabalho nos
estudos de Foucault. O estudioso francês também trata de alteridade e afirma que
estamos sujeitos ao que chama de memória, vozes provenientes do outro, carregadas de
ideologia, valores etc. e que se entrelaçam. E a memória no discurso tratado por
Foucault não funciona como os pensamentos e conhecimentos que sabemos possuir,
mas como uma “ferramenta” de esquecimento, de forma a utilizarmos ideologias,
expressões e informações naturalmente, sem atribuirmos a este ou aquele “outro”. Mas
há uma falsa impressão de liberdade nesse enunciar. Elementos como o contexto, as
condições de produção e a posição de onde se fala também determinam o discurso. Por
isso, os redatores fantasmas poderiam ter assimilado marcas da fala de JK e as utilizado
nos textos redigidos para o presidente, mesmo que não tivessem a intenção de usar essas
marcas, o que é pouco provável, já que estamos tratando de discursos políticos. Michel
Foucault também fala que “o autor deve apagar-se ou ser apagado em proveito das
formas próprias aos discursos” (2002, p. 80). Foucault chamou esse “falar sem dono” de
teoria da morte do autor, como já mencionado neste trabalho. Segundo o filósofo
francês, a obra que antes conferia imortalidade ao autor seria, na verdade, a responsável
pela morte dele. A escrita estaria, então, ligada a um sacrifício: o de abdicar da própria
autoria, apagar-se da obra voluntariamente. De acordo com Foucault, “trata-se de retirar
ao sujeito (ou ao seu substituto) o papel de fundamento originário e de analisá-lo como
uma função variável e complexa do discurso” (Ibid., p. 70); esse apagamento do autor
ocorre a partir da construção da função-autor, um efeito do discurso. Em resumo,
embora o sujeito acredite ser a origem de seu discurso, ele, na verdade, faz parte do que
diz e seu dizer tem origem em outros dizeres.
Ainda segundo Foucault, os sujeitos têm a falsa impressão de liberdade,
completude, essência. Na verdade, são sujeitados, cindidos, “em face de um poder, que
é lei, o sujeito que é constituído como sujeito – que é ‘sujeitado’ – e aquele que
obedece” (FOUCAULT, 2006a, p. 95). Esse poder não é proveniente de uma única
pessoa, ele está por toda parte, provém de todos os lugares, diz Foucault (Ibid., p. 103).
E, no discurso, a lei é regida conforme as condições de produção14, o contexto, a
14
Condições de produção - consideram não só a interlocução mas também a ideologia em que o discurso
está “mergulhado”. Orlandi cita Pêcheux para explicar as condições de produção, as quais seriam
formações imaginárias, palco de uma relação de forças - lugares sociais dos interlocutores e posições
75
posição de onde se fala, o interlocutor e a antecipação que o falante faz da reação do
interlocutor. Não há como falar o que se quer, mas deve-se dizer o que se pode de onde
se está. Nem mesmo um rei ou um Presidente da República poderiam enunciar sem
considerar esses aspectos, isto é, mesmo quem detém o poder na sociedade está
sujeitado ao que pode e deve falar. Mesmo quando não está explicito, há sujeito, já que
existe a necessidade de um autor, uma instância produtora, para que haja um enunciado.
Contudo, não se pode confundir esse autor com o sujeito do enunciado quanto à
identidade. E segundo Michel Foucault, o sujeito não é a origem do discurso, mas é
construído pelo discurso, o qual determina o que, como, e quando dizer - esse é o
arquivo. A partir desse do conceito de arquivo, podemos repensar até que ponto os
redatores dos textos do presidente dominavam o que escreviam, já que para o
“funcionamento” do arquivo, o qual não é um patrimônio individual, é necessária a
memória, não a memória cognitiva, mas a responsável pelas tradições, aspectos
culturais etc. Saberes, em sua maioria, anônimos, “que ao permanecerem, se
transformam: ao serem lembrados, são esquecidos. [...] a memória é, portanto, sempre
esquecimento, pois é sempre interpretação de algo que já passou; passado que se faz
presente; presente que, a todo momento, já é futuro (CORACINI, 2007, p. 16). Foucault
tinha conhecimento dos esquecimentos tratados por Pêcheux, os quais permitiriam que
nos comunicássemos, já que não trabalhamos como manipuladores dos discursos, pelo
contrário, temos a falsa ilusão de liberdade ao falar, visto que acreditamos ser a origem
do sentido e temos a certeza, também, de que o interlocutor imputará o mesmo sentido
que atribuimos àquilo que enunciamos.
Por que esse breve comentário teórico? Utilizo um episódio histórico, já
mencionado no capítulo 3, para justificar: às vésperas da indicação do então candidato
do PSD à presidência da República, Juscelino Kubitschek, Carlos Lacerda declarou na
televisão que Juscelino não seria candidato, se fosse candidato não seria eleito e, caso
fosse eleito, não tomaria posse; se tomasse, não governaria. A resposta de JK foi: "Deus
poupou-me o sentimento do medo". Contudo, a frase não era de Juscelino, mas de
Autran Dourado, que teria assimilado a marca da fala de JK, a religiosidade; ou teria
feito uso da temática religiosa para conseguir o efeito desejado.
relativas no discurso, além da intertextualidade - relações entre os discursos, e a antecipação à reação do
interlocutor e vice-versa (Ibid., p. 163).
76
Hoje, Autran Dourado lembra com simpatia o episódio em seu livro
Gaiola aberta - Tempos de JK e Schmidt. A frase não era de
Juscelino, mas dele, que ajudava o poeta Augusto Frederico Schmidt
a preparar os discursos do criador de Brasília. Schmidt perguntou a
Autran se o homem de Diamantina tinha mesmo toda a coragem "que
arrotava" e o romancista afirmou: "tem sim! Pode escrever esta frase
aí" (http://www.editoras.com/rocco/022326.htm, grifo do autor).
E então pergunto: mudaria o sentido dos discursos de JK caso se soubesse que
não era ele quem os escrevia? E será mesmo que não se sabia? Já citei, no capítulo 3, um
trecho do livro de Autran Dourado em que o jornalista afirma que Schmidt não escondia
dos amigos o fato de escrever os discursos do então presidente; informação que, de acordo
com Dourado, ia “muitas vezes parar no noticiário da imprensa” (DOURADO, 2000, p.
22). E embora o público tivesse acesso à informação de que outra pessoa escrevia os
discursos do então presidente, essa informação poderia ter sido desconsiderada na época.
Por quê? Sabemos que há discursos que precisam de uma assinatura, como é o caso dos
pronunciamentos presidenciais, mas não é necessário um autor. Dessa forma, “um texto
pode até não ter um autor específico mas, pela função-autor, sempre se imputa uma autoria
a ele (ORLANDI, 2001a, p. 75). Juscelino, então, seria considerado autor dos discursos
que pronunciou, porque, ao pronunciá-los, tomou posse dos mesmos, ocupou a funçãoautor na elocução. Essa ilusão de autoria era necessária para se legitimar o discurso
presidencial. Para Coracini:
É justamente porque constrói verdades que o poder se conserva e se
dissemina na sociedade por meio dos discursos. Ora, assim como os
discursos carregam poder e são alvos de poder, aqueles que o detêm
detêm igualmente poder. Poder que cria em cada sujeito a ilusão de
completude, de verdade, de estabilidade, de identidade e, portanto, de
essência, que ele busca incessantemente, sem jamais alcançar... (2007,
p. 24).
Como estamos lidando com pronunciamentos políticos, que se enquadram no
tipo de discurso autoritário, a fala oficial do presidente deve apresentar um sentido
absoluto, não permitindo qualquer margem para outros sentidos, embora eles sejam
possíveis. Assim, a assinatura presidencial atribuiu o status de verdade ao que JK dizia
oficialmente. De acordo com Foucault, “o problema não é de se fazer a partilha entre o que
num discurso revela da cientificidade e da verdade e o que revelaria de outra coisa; mas de
77
ver historicamente como se produzem efeitos da verdade no interior dos discursos que não
são em si nem verdadeiros nem falsos” (2006a, p. 7).
Recapitulando o trabalho dos ghost writers, ao estudarmos o fato de eles terem
possivelmente abdicado de suas identidades e assimilado o discurso de Juscelino
Kubitschek, ainda acredito ser possível identificar intervenções autênticas de Juscelino
em alguns dos discursos que pronunciou durante o mandato presidencial. Minha crença
se baseia em informações de Autran Dourado, o qual afirma que Juscelino intervinha
nos discursos, o que tornaria essa possibilidade uma ação concreta. O ex-secretário de
imprensa conta que o então presidente improvisava durante os pronunciamentos e era
um expert nessa arte. O historiador e cientista político Ricardo Maranhão confirma que
Juscelino tinha uma “...oratória capaz de entusiasmar as multidões...” (1985, p. 17). De
acordo com Dourado, não foram poucas as vezes em que o ex-presidente usou do
improviso durante os discursos e uma pista para identificar as intervenções do então
presidente seria, justamente, o vocabulário religioso: uma marca lingüística na fala do
ex-presidente. Autran Dourado afirma que Juscelino não podia ser considerado um
“beato”, mas era muito religioso, praticava a religião católica e respeitava outras
religiões e crenças.
Ressalto que o ex-secretário de imprensa de Juscelino disse, em entrevista
concedida por telefone, que JK não tinha um estilo de escrita, com marcas de
linguagem, nem foi criado um estilo presidencial para os discursos dele, entretanto,
Dourado reconhece que havia marcas na fala do presidente, marcas de religiosidade,
marcas facilmente imitada e um clichê no discurso político. Caso, então, os ghost
writers tenham assimilado ou imitado aquela que julgo ser a principal característica de
Juscelino, o vocabulário religioso, esta característica pode ter sido utilizada,
propositalmente ou não, pelos assessores do presidente que eram responsáveis por
redigir discursos durante o governo JK, embora seja mais provável o uso proposital da
religiosidade. Seria uma estratégia política para atingir o público, uma vez que o Brasil
é um dos países que possuem o maior número de católicos no mundo e, naquela época,
a hegemonia católica ainda não era ameaçada pelos evangélicos e os praticantes de
outras religiões. Seria grande o número de pessoas dispostas a ouvir o que era dito por
alguém que dizia ter fé e, principalmente, ser católico.
Dentre os termos religiosos constantes nas falas de JK está um nome: “Deus”, o
qual também é citado de diferentes formas; certas vezes, aparece como “Autor de tudo o
que existe”, em outras como “Ente Supremo”, em outras ainda como “Criador do
78
Universo”. Alguns trechos que apresentam características de religiosidade vêm isolados,
como já citei, e são exclusivos em um discurso, a exemplo do trecho a seguir, o qual
encerra o pronunciamento de Juscelino realizado no Tribunal Superior Eleitoral, no Rio de
Janeiro, ao receber o diploma de Presidente da República em 27 de janeiro de 1956:
“Pedimos a Deus que nos inspire e nos dê o sentimento da grandeza de nossa missão”
(KUBITSCHEK DE OLIVEIRA, 1958, p. 11, grifo meu).
Em um discurso feito quatro dias depois pela rede de radiodifusão da “Voz do
Brasil”, há mais um trecho ligado à religiosidade que aparece isolado e, desta vez, entre
hífens: “...a fim de que se torne possível a salvação de grande parte de nosso povo, que
vive – só Deus sabe como – condenado a uma pobreza que nos envergonha”
(KUBITSCHEK DE OLIVEIRA, 1958, p. 205, grifos meus). Esse discurso, um balanço
sobre os seis primeiros meses de gestão presidencial, traz o nome Deus uma segunda
vez, e, embora não apareça entre hífens, o trecho se diferencia do restante do texto em
função do vocabulário simples que utiliza: “O culto da infabilidade do poder está
derrogado15; o poder se sujeita a erros e Deus sabe quantas vezes tem errado o poder
em nosso país. Mais grave do que o erro, entretanto, é a obstinação...” (Ibid., p. 206,
grifo meu). Destaco que o referido trecho consta entre ponto e vírgula e ponto final,
sinal de respiração do falante, o que poderia significar que JK incluiu a frase de
improviso. Nos discursos com expressões religiosas, Eni Orlandi explica que “A própria
fala é ritualizada, é dada de antemão. Há fórmulas para se falar com Deus, mesmo
quando se caracteriza essa relação de fala pela familiaridade [...] de um lado, temos
sempre a onipotência divina, de outro, a submissão humana” (2001b, p. 247). “O eucristão pode falar diretamente com Deus mas isto não modifica o seu poder de dizer, o
lugar de onde fala (Ibid., p. 247).
Outro discurso que apresenta um estilo objetivo mas poderia ter sofrido
intervenções de Juscelino foi proferido no Rio de Janeiro, em 21 de julho de 1959,
durante a Conferência realizada no Clube Militar sobre a Política de Desenvolvimento
do governo. O pronunciamento, o qual foi transcrito em quatorze páginas, apresenta o
nome Deus apenas uma vez e também entre hífens. Entretanto, ressalto que o “clima” de
religiosidade não se resume a esta frase no discurso, e, nele, JK afirma sua intenção
religiosa à frente do país:
15
Derrogar – anular, abolir, substituir (preceitos legais), conter disposições contrárias a.
79
Com efeito, desde que cheguei ao poder e comecei a pôr em execução
os planos de minha política de metas, senti a impossibilidade de
operar a revolução do desenvolvimento – que há de encaminhar-se
bem, com a ajuda de Deus, até o fim de meu mandato – se não
continuasse a devotar parte de meu tempo a uma tarefa de elucidação
e doutrina. A luta pelo desenvolvimento não será capaz de alcançar os
seus objetivos, se empreendida apenas no plano material, fundando
cidade, aparelhando portos [...], para que ela seja bem sucedida, é
necessário criar, formar, aguçar a opinião pública, associando-a a essa
campanha, que é – se me perdoam a impropriedade de comparação –
uma verdadeira guerra santa; guerra santa pela salvação do país,
pela sua redenção econômica, pelo reinado de justiça longamente
esperado, pacientemente esperado por muitos milhões de brasileiros,
que nascem e vivem prisioneiros de condições de vida tão dolorosas,
que as classificaremos, sem exagero, de atentatórias ao próprio
espírito do Cristianismo (KUBITSCHEK DE OLIVEIRA, 1960, p.
199, grifo meu, grifos meus).
No trecho acima, JK demonstra “cumplicidade” com Deus: “...desenvolvimento
- que há de caminhar-se bem, com a ajuda de Deus, até o fim de meu mandato...”. Logo
depois vem a frase “guerra santa pela salvação do país”, que reflete marcas do discurso
religioso, o qual se utiliza antíteses para a transposição do temporal para o Espiritual, a
exemplo de “viver para morrer” (ORLANDI, 2001b, p. 257). E, ainda segundo Orlandi,
temos “em Deus o poder absoluto/no homem, a vontade desse poder (Ibid., p. 257).
Juscelino, provavelmente, se utilizaria dessa busca pelo poder para conquistar a
confiança do povo, visto que representava, ao mesmo tempo, a voz do público e a de
Deus quando falava como presidente.
Outro documento que poderia auxiliar na comprovação de fala improvisada de
JK durante seus pronunciamentos seria, exatamente, o discurso em que não consta a
participação de Juscelino: o primeiro de 1960, o qual não foi feito pelo então presidente,
mas pelo Ministro José Sette Câmara Filho, então Chefe da Casa Civil do governo JK.
Considero esta fala oficial como “controle”, por acreditar que Juscelino não interferiu
diretamente nela, já que não a escreveu nem a proferiu. Esse pronunciamento segue um
padrão do início ao fim, os parágrafos são curtos, assim como os períodos, o que me
80
leva a cogitar que não há traços de improviso. O discurso ainda mescla trechos poéticos,
palavras formais e alguns vocábulos ligados à religiosidade, o que poderia significar
uma assimilação do estilo de JK pelos escritores fantasmas, tornando nulos os indícios
de qualquer participação de Juscelino nesse pronunciamento; expectativa esta reforçada
pela informação de que não foi o ex-presidente quem o leu em público. O referido
discurso, trata de Brasília, das pessoas que participavam de sua construção e também
traz críticas àqueles que não acreditavam que a nova capital federal sairia do papel:
Eu me via na antemanhã do Brasil do futuro, na hora em que a
primeira luz do alvorecer insinua a sua presença difusa no oceano
das sombras circundantes e vai tirando das trevas o campanário das
igrejas [...] Mercê de Deus, dispúnhamos de uma equipe de arquitetos
e urbanistas de provada experiência [...] Minha experiência de vida,
meu conhecimento da realidade brasileira, meu longo contato com as
forças vivas de que promana16 a formidável energia de nosso povo,
de há muito tinham-me dado a certeza de que a nação saberia
corresponder ao milagre [...] de construir em três anos uma cidade
monumental nesta amplidão silenciosa. [...] Eu os vi chegar [homens
que trabalharam na construção de Brasília], compondo as primeiras
levas de trabalhadores, a esses nossos patrícios. Humildes de feitio e
cordatos17 de temperamento [...] E aí então se há de compreender que,
acima do desânimo do sibarita18 citadino19, que só vê o Brasil no
horizonte de sua janela, está o herói humilde que luta por um Brasil
maior e há de morrer sem que lhe guardem o nome... (KUBITSCHEK
DE OLIVEIRA, [1961], p. 9-16).
O trecho se inicia com uma discreta paráfrase de um trecho do Gênesis: “o
espírito de Deus pairava sobre as águas”. A informação de que o discurso não foi
pronunciado pelo presidente, e uma vez não tendo sido escrito por ele, reforça a tese de
que os ghost writers poderiam ter assimilado a marca lingüística presente na fala de JK,
a religiosidade, ou teriam utilizado a marca lingüística como estratégia política. Essa
assimilação de uma característica alheia, do outro, reforça a teoria de Bakhtin quanto à
alteridade. Considerando que eram poucos os ghost-writers que tinham contato direto
com JK, é maior a possibilidade de que a assimilação de características do então
presidente fosse uma estratégia, a qual teria sido “encarnada” no personagem
“presidente Juscelino Kubitschek de Oliveira”, construído em conjunto pelos ghost16
Promanar – provir, dimanar, brotar, proceder, derivar.
Cordato – prudente, manso, tratável.
18
Sibarita – designativo de ou pessoa que vive na voluptuosidade ou que é efeminada.
19
Citadino – aquele que habita a cidade.
17
81
writers e pelo próprio Juscelino que, ao proferir os discursos, assume a função-autor.
Seria possível que esses escritores fantasmas desconhecessem a inclinação do presidente
a outras crenças ou que tivessem essa informação e fossem orientados a apagar qualquer
marca referente a essas crenças.
Um dado importante a respeito do discurso não proferido por Juscelino é a
ausência de trechos em que constem louvores ou súplicas a Deus, ou seja, esta
característica específica, certas vezes próxima de ser considerada “beata”, que estaria
presente nos discursos em que constariam improvisos de Juscelino não está presente no
pronunciamento tratado acima. Entretanto seria um equívoco concluir que a presença ou
a ausência desta característica peculiar tornariam possível reconhecer a interferência de
JK nos discursos que ele proferiu como Presidente da República, uma vez que as marcas
lingüísticas são facilmente imitadas.
Os pronunciamentos com temas religiosos, a exemplo dos feitos por ocasião do
Dia de Ação de Graças, do Natal e do Ano Novo; e aqueles destinados a religiosos,
católicos ou não, como o discurso proferido na Comemoração do primeiro centenário do
Presbiterianismo no Brasil, apresentam informações de um praticante do catolicismo,
uma pessoa que realmente sabe o que fala desta religião e, mesmo assim, sujeitas ao
conhecimento dos não praticantes do catolicismo ou à imitação por parte desses. Ao ser
paraninfo da elevação de Dom José Pedro ao Episcopado de Caitité, Juscelino diz
durante seu discurso, proferido em Diamantina em 15 de Setembro de 1957:
...Vossa Reverendíssima bem o sabe, Senhor Bispo de Caitité, que o
recebimento do báculo de Pastor, de Visitante e de Guia, é grande
honra, mas séria responsabilidade. [...] De agora em diante, a Cruz da
ignonímia do condenado, que é a Cruz da Salvação da humanidade,
pesará ainda mais sobre Vossa Excelência. [...] Aqui, em Diamantina,
o hoje bispo de Caitité teve santos exemplos de pastores insignes.
Para Diamantina, é o dia de hoje de importância que não necessita
salientar-se; dies nobis festus, poderei dizer poderei dizer, parodiando
Horácio (KUBITSCHEK DE OLIVEIRA, 1958, p. 208-210).
Mas acredito também que, mesmo quando não apresentam termos relativos à
religiosidade, nem louvores ou súplicas a Deus, os trechos incluídos de improviso por
Juscelino em seus discursos poderiam ser identificados por outra temática: a “salvação
da nação” ou o “cumprimento de um destino”, a qual não se afasta do tema religioso.
82
Essa temática aparece quando o pronunciamento perde o padrão “próximo do
jornalístico” e constam frases como: “Minha vida obedeceu à mesma necessidade de
lutar pela conquista do destino. Somos exemplares vivos do que é a democracia, desse
regime que leva órfãos pobres à Presidência da República” (KUBITSCHEK DE
OLIVEIRA, [1961], p. 30, grifo meu); ou “Não podemos permanecer na retaguarda;
nenhuma força humana será capaz de nos deter” (Ibid., p. 360, grifo meu); ou ainda:
...quero afirmar que longe de estarmos perdidos ou parados, viajamos
de novo ao encontro do nosso alto destino. Os ventos começam a ser
propícios, o Brasil é uma nação que nasceu para ser poderosa. Nada
deterá a nossa marcha (IDEM, 1958, p. 220, grifos meus).
Acredito que, nesses discursos, JK reafirma sua crença na possibilidade de ele
ser a peça-chave no cumprimento do destino do país onde nasceu e o qual governou por
cinco anos. Uma vez crente de seus prováveis desígnios, age de modo a cumprí-los:
Ombro a ombro convosco, seja no Governo seja fora dele, aqui me
tereis sempre, trabalhadores do Brasil Novo, a construir com os
homens de boa vontade a nação que o destino quer que seja rica,
culta, poderosa (KUBITSCHEK DE OLIVEIRA, [1961], p. 205,
grifos meus).
Ressalto que essa crença numa predestinação poderia não ser uma manobra
política de Juscelino, uma vez que ele teria atribuído ao sonho de um religioso italiano a
raiz de sua fé na transferência da capital federal para o interior do Brasil. Contudo, não
posso deixar de mencionar que em 1946, quando ainda era deputado, Juscelino
trabalhou para que a transferência da capital voltasse a constar na Constituição e pediu
que um estudo feito pelo engenheiro Lucas Lopes fosse inserido nos Anais da
Assembléia. Eleito presidente, sabia que seria impossível governar o país com o centro
do poder no Rio de Janeiro e a predestinação era um excelente argumento para a
transferência da capital federal.
83
6 A RELIGIOSIDADE NOS DISCURSOS
Presidente da República de um país cristão,
considero-me intérprete das aspirações de
seu povo generoso ao voltar-me em espírito
para o humilde sítio em que nasceu o Salvador
do mundo, pedindo-lhe que atente para esta
hora difícil do mundo em que tão grandes
perigos atravessa a humanidade.
Juscelino Kubitschek de Oliveira
O livro “Por que construí Brasília” apresenta, em suas páginas ilustradas, frases
que poderiam ser de autoria de JK, como: “De todas as partes do País [sic] chegavam
levas de brasileiros que desejavam colaborar na construção da obra. Chamei-os, um dia,
de construtores de Catedral...” (KUBITSCHEK., 1975, s/p, grifo do autor). A
expressão “construtores de Catedral”, enfatizada no livro, pode ter relação com os
primeiros construtores de catedrais, chamados, no passado, de maçons, pedreiros em
francês. Uma vez que Juscelino seria uma pessoa religiosa e respeitadora de outras
religiões e crenças, e tendo morado na França, ele poderia conhecer o termo “maçom”,
assim como seu significado.
Caso fosse confirmada a intenção no uso da expressão “construtores de
Catedral”, isso não seria o suficiente para afirmar que ele tinha qualquer afinidade com
a Maçonaria ou outra sociedade secreta; o fato é que as principais obras de JK têm suas
catedrais, a Igreja da Pampulha e a Catedral de Brasília, igrejas católicas mas com
arquitetura muito diferente daquela presente nas tradicionais Catedrais Católicas.
Mesmo a Igreja da Pampulha não tendo sido reconhecida pela Igreja Católica na época
de sua construção, já que lembrava uma outra espécie de templo, uma construção
diferente ou uma obra de arte, o catolicismo era e é a religião da catedral. Enfim, as
catedrais eram obras de um político, líder de um dos maiores países católicos do
planeta, e não da Igreja, como de costume. Enfatizo que JK também fez questão de
repetir em Brasília o que foi feito quando o país foi descoberto: uma cruz foi colocada
no local onde a cidade seria delineada e foi celebrada uma missa. Foi um espetáculo
programado, assim como foi programada uma missa na véspera da inauguração da nova
capital, às 23:30 do dia 20 de abril de 1960, celebrada pelo cardeal-patricarca de Lisboa,
Manuel Gonçalves Cerejeira, diante do crucifixo usado na primeira missa celebrada no
84
país. Coincidentemente, o projeto de Lúcio Costa começou, como ele mesmo disse,
com “dois eixos cruzando-se em ângulo reto, ou seja, o próprio sinal da Cruz”
(http://www.guiadebrasilia.com.br/historico/i_mmrial.htm).
Mas apesar do “compromisso” do então presidente para com a religião católica,
ele não dispensou um presente da Ordem do Sol, a Grã-Cruz com Brilhantes, oferecida
em 1957 pelo vice-presidente do Peru, Carlos Moreyra. A Ordem teria inspiração
religiosa dos Incas, conforme dito por JK no discurso feito em 28 de julho daquele ano
no Palácio do Catete. Em 1960, Juscelino recebeu, no Palácio das Laranjeiras, outra
Grã-Cruz, desta vez da Ordem do Santo Graal (fotos 1-2).
Foto 1 - Verso e frente da Grã-Cruz recebida por JK da Ordem do Santo Graal20
Foto 2 - César do Rego Monteiro, do Grão-Conselho da Ordem do Santo Graal, coloca
Grã-Cruz em JK21
20
21
Fonte: Miguel Henrique BORGES, JK JK! A Conexão Esotérica, p. 65.
Fonte: Ibid., p. 66.
85
Doze anos mais tarde, JK foi fotografado em cerimônias da Sociedade Brasileira
de Eubiose em São Lourenço, sul de Minas (fotos 3-4).
Foto 3 - Juscelino Kubitschek é consagrado no Templo da Eubiose em São Lourenço
em 197222
Foto 4 - Juscelino discurso no Templo da Eubiose em São Lourenço em 197223
Essas informações, assim como as fotografias inéditas presentes em um
documento (livro) vinculado à Eubiose, poderiam justificar a possibilidade de influência
22
23
Fonte: Miguel Henrique BORGES, Op. cit., p. 74.
Fonte: Ibid., p. 78.
86
do discurso religioso e de outros discursos considerados esotéricos, mas é necessário
enfatizar que JK não fazia uso das comendas recebidas como Marketing religioso. Não
se preocupava ou evitava apresentar em público qualquer relação às ordens esotéricas,
caso essa relação existisse. A manifestação autêntica de Juscelino, ligada ao
catolicismo, apareceria em pronunciamentos, como o proferido em Diamantina em 12
de abril de 1958 sob o título “Na manifestação prestada pelo povo diamantinense”. Esse
discurso destoa da grande maioria, a qual apresenta frases curtas e idéias concisas. O
discurso tem sete páginas, parágrafos com até 57 linhas e frases com até treze linhas, o
que significaria que, se os discursos constantes no Memorial JK são realmente
transcrições dos pronunciamentos feitos pelo ex-presidente, como acredita Autran
Dourado, os parágrafos longos representariam uma fala desenfreada, livre. E Juscelino
inicia o discurso em Diamantina com uma declaração que confirma essa suspeita:
Sempre vos abordei sem compor frases antecipadamente, mas
deixando que minha própria emoção, o que habita sempre o meu
peito e está ligado a essa cidade e a seu povo, se fosse transformando
em palavras, tão naturalmente como flui a água de uma fonte.
(KUBITSCHEK DE OLIVEIRA, 1959, p. 177, grifos meus).
Ao falar de si, o presidente utiliza a primeira pessoa do singular, demonstrando
cumplicidade com seus ouvintes. Dessa forma, ele ainda expressa ter liberdade ao se
dirigir aos conterrâneos, isto é, não se coloca no discurso como político, como
manipulador.
Faço um parêntese para tratar de características de JK, as quais ainda não foram
apresentadas neste trabalho, entre elas, o riso fácil, que, segundo Nelson Rodrigues, fez
de Juscelino o “antipresidente”. O escritor comentou no jornal Brasil em Marcha de 10
de fevereiro de 1961:
Ninguém mais antipresidencial.[...] Nenhum outro chefe de Estado,
no Brasil, teve essa capacidade de rir, e nos momentos mais
inoportunos, menos indicados. [...] riso que ele puxava
escandalosamente nas cerimônias mais enfáticas. Os outros
presidentes têm sempre a rigidez de quem ouve o Hino Nacional.
Cada qual se comporta como se fosse estátua de si mesmo. Não
Juscelino. Quando ele tirou os sapatos para Kim Novak (que achado
genial! Que piada miguelangesca!), ele foi o antipresidente, uma
espécie de cafageste dionisíaco. Eu diria que jamais alguém foi tão
brasileiro (1961 apud WERNECK, 2002, p. 93, grifos meus).
87
Como rir, tirar os sapatos era uma atitude comum de JK como presidente,
diferente do temperamento imperativo e explosivo citado por Autran Dourado em
Gaiola Aberta. Era também com naturalidade que ele lidava desde para com as
autoridades até para com as pessoas mais simples, as quais se sentiam íntimas do
presidente. Gostava de festas, de acordar cedo, de comida mineira e fazia questão do
convívio com a família. Embora estivesse sempre bem trajado e até evitasse carregar
uma caneta no bolso do paletó para não marcar a roupa, ele caminhava, tarde da noite,
nos canteiros de obras em Brasília incentivando os operários (COUTO, 2002, p. 81). A
capacidade de Juscelino saber lidar com as Forças Armadas, mesmo com a oposição de
alguns grupos militares e focos de instabilidade, fez dele o único presidente do regime
democrático que vigorou entre 1945 e 1964 a concluir o mandato no prazo previsto pela
constituição(http://www.cpdoc.fgv.br/nav_jk/htm/o_brasil_de_jk/Situacao_e_oposicao_
um_equilibrio_delicado.asp). Tancredo Neves afirmou que “O Juscelino quando queria
ser amável, era genial” (LIMA; RAMOS, 1986 apud COUTO, 2001, p. 69-70). Essa era
a personagem “presidente JK”, risonho, amável, católico, um herói.
Retomando o discurso analisado, temos:
Nunca temi ficar suspenso no meio de um discurso, sem saber como
prosseguir. Diamantina sempre teve o poder de despertar em mim a
faculdade de exprimir-me como desejava (KUBITSCHEK DE
OLIVEIRA, 1959, p. 177, grifos meus).
Deus é evocado, logo no início do pronunciamento, como co-responsável por
manter JK o mesmo diamantinense dos tempos em que ainda residia no município, e
Juscelino utiliza o vocábulo “Providência” para justificar como o menino pobre de
Diamantina se tornou o mais famoso filho da terra. JK teria sido escolhido pela
“Providência” para cumprir desígnios específicos e secretos. O fato de posições tão
diferentes serem “fundidas” numa mesma pessoa, “pelos desígnios de um Ente
Supremo”, coloca o presidente como um interlocutor acima de qualquer suspeita, um
membro do Estado como os antigos reis, escolhido por Deus e, ao mesmo tempo uma
pessoa simples, um filho daquela terra que não se deixou afetar pelo poder nem se
rendeu à tentação da soberba (pecado capital):
88
Permitiu Deus que eu me conservasse inalteravelmente natural,
espontâneo e simples, através de posições, de honrarias e nos lugares
mais pomposos, por onde tenho andado. Aqui, nesta minha terra
natal, com muito mais valiosas e mais numerosas razões, sou o
mesmo cidadão que vós sempre conhecestes. Sei que, diante de
Diamantina, pouco importa para exaltar-me saber o que a
Providência fez de mim; entre os que me ouvem, nesta hora, muitos
são os amigos que ainda me conheceram na infância e outros que
foram meus companheiros de começo de existência; para os
diamantinenses, pouca é a distância que separa o filho da professora,
que morava no alto da Grupiara, do atual presidente da República.
[...] Ouço invariavelmente, nos momentos em que me assalta a
tentação de julgar-me o que não sou, a voz de minha humilde
infância a lembrar-me que à Providência que tudo devo, aos seus
secretos desígnios, às suas Leis tantas vezes insondáveis para nós
outros. Sei que tudo devo a uma orientação especial da Providência,
que me trouxe do fundo do meu desvalimento e obscuridade até as
responsabilidades que enfrento nesta hora. Aqui [em Diamantina]
recebi o ensinamento maior e mais profundo, que me tem orientado,
conduzido e salvo, muitas vezes: o de que sou uma criatura feita à
imagem e semelhança de seu Criador; que possuo uma alma
imortal; que tenho de prestar contas a um Juiz Supremo de todos os
meus atos. Aqui, em Diamantina, foi que começou a germinar em
mim a idéia de que não vivemos por acaso; de que não somos uma
espécie que deve apenas se preocupar com o sustento da vida
corporal, mas que a finalidade da vida do homem é encontrar o
caminho de sua salvação (KUBITSCHEK DE OLIVEIRA, 1959, p.
177-179, grifos meus).
Em seguida, JK evoca Deus mais uma vez, agora para explicar que o que vem
fazendo como presidente do país não é um capricho de governante, mas o cumprimento
do destino do Brasil:
89
Aqui, nesta terra natal tão querida, aprendi que o Brasil não é apenas
uma expressão geográfica, [...] aprendi que não foi apenas a ambição
da fortuna, do ouro, das riquezas materiais, que nos fez o que somos:
um quase continente; o que atuou, de maneira predominante, no
sentido do advento (para alguns milagroso) da nossa unidade, foi o
sentimento religioso, a noção de que existe e preside aos nossos
destinos um Ente Supremo. Aqui, [...] recebi a noção de que não é
apenas à voz da pequena ambição, tantas vezes perigosa e falaz, que
devemos estar atentos, mas, principalmente, a uma voz mais grave e
mais séria, que nos manda servir com lealdade ao Autor de tudo o
que existe, ao Deus que não apenas modelou as formas de nossa
aparência, mas soprou dentro de nós, com a vida, a essência imortal
com que sobreviveremos além do tempo. Aqui aprendi que não se trai
a pátria somente através de atos que a despojam de bens materiais,
mas que há uma traição bem mais grave, bem mais merecedora de
repressão e castigo, que é a de renegar-lhe as origens espirituais,
destruir-lhe as crenças, desfigurando o que de mais sagrado existe,
que é um ideal superior, que é a Fé, pois só ela pode inspirar.
Seria descer a um grau extremamente baixo de civilização, se os
homens com responsabilidade na direção da vida brasileira, nesta
hora, se ocupassem apenas de valores materiais, deixando que os
valores espirituais, formadores do país, fautores [sic] da
nacionalidade, fossem atacados, destruídos, arruinados por pregações
de ideologias exóticas, com o fim de atentarem contra o que há de
mais precioso na nacionalidade, que é a alma, o conteúdo, o
elemento humano (KUBITSCHEK DE OLIVEIRA, 1959, p. 179180, grifos meus).
A seqüência do discurso também traz termos ligados à religiosidade e parece
revelar a relação de JK com outras religiões e crenças; contudo, o trecho faz menção ao
comunismo, o qual era identificado com o ateísmo na época e se tornou uma “arma” na
política. Quando ainda era candidato à presidência, por exemplo, Juscelino foi
“atacado” pela UDN, que pediu ao TSE a impugnação das eleições presidenciais em
1955 com a alegação de que Juscelino e seu vice, João Goulart, tinham recebido
aproximadamente quinhentos mil votos dos comunistas. As doutrinas citadas no trecho
a seguir simbolizam o comunismo, acusado de aliciar as pessoas ditas “fracas”;
90
É preciso que os pregadores de doutrinas que se opõem ao que há de
mais autêntico no Brasil saibam que não estão passando
despercebidos, nas suas intenções. Aqueles que – a pretexto de alertar
a atenção do país para a salvaguarda de seus recursos materiais –
pretendem e visam roubar-lhe os tesouros espirituais, precisam saber
que a defesa da nacionalidade inclui, prioritariamente, a defesa da
alma, da crença que nos fez o povo que somos. Sabemos bem – e
ninguém o tem dito com mais insistência do que eu – que é necessário
ativarmos o desenvolvimento material, promovermos a riqueza, mas
tudo isso tem que ser feito nos moldes de nossa personalidade
nacional, dentro das normas de nossa formação cristã – e não contra
ela. [...] Somos um povo, isto é, um conjunto de cidadãos ligados não
apenas por interesses materiais, mas por valores éticos e espirituais;
temos a felicidade de ser um povo assim e não apenas massa
moldável que possa sofrer transformações químicas produzidas por
ideologias que, além de nos serem estranhas, já estão sendo superadas
(KUBITSCHEK DE OLIVEIRA, 1959, p. 180-181).
Quase no encerramento do discurso, aparece a frase “Deus sabe que vigiar é
preciso e que, pelo efeito da vigilância, o mal será conjurado24” (KUBITSCHEK DE
OLIVEIRA, 1959, p. 182), uma releitura da frase bíblica “Orai e vigiai”. Com ela, JK
enfatiza que está atento e que aqueles que trabalhavam para o insucesso de Brasília
seriam derrotados, e com o auxílio divino. E o significado vai além da religião.
Novamente é o comunismo o assunto. O discurso coloca JK como anti-comunista, uma
forma de barrar possíveis identificações do desenvolvimentismo com a ruptura para
com a religião e a fé. Ele, o presidente, reafirma que cumprirá os desígnios preparados
para o Brasil e, conseqüentemente, para ele:
Não consentirá o governo que a liberdade seja utilizada para
assassinar a própria liberdade. Pode estar tranqüila a nação; podem
estar tranqüilos os que atribuem valor ao que realmente vale além
das contingências. Não será um homem desta grei – que teve a
fortuna de receber em ensinamentos morais o que lhe faltou em bens
materiais – que deixará sem defesa o que deve ser defendido e
preservado, isto é, o verdadeiro nacionalismo, que consiste, em
primeiro lugar, em sermos cidadãos obedientes às raízes da alma
brasileira e à inspiração de nossos maiores. [...] Agradeço-vos, povo
desta minha velha cidade de Diamantina, [...] a oportunidade de poder
dirigir-me daqui a todo o Brasil, para dizer que o tesouro moral e
espiritual de nossa pátria está sendo devidamente acautelado, neste
momento, e que isto faz parte integrante e primordial do meu dever
de Chefe de Estado (Ibid., p. 183, grifo meu).
24
Conjurar – exorcizar, esconjurar, desviar, evitar (um perigo), projetar, intentar por meio de conspiração,
maquinar.
91
Até a data do discurso em Diamantina, a maioria dos discursos proferidos pelo
presidente naquele ano tinha como tema inaugurações e entregas de obras, como o
Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, ou seja, ocasiões favoráveis ao presidente.
Vários pronunciamentos foram utilizados para expor os avanços do país durante o
governo, inclusive com números sobre a produção de veículos em solo brasileiro e
estimativas otimistas para a obtenção dos recursos necessários ao cumprimento das
metas do governo. A “manobra” desviou a atenção da imprensa e do público de um fato
ainda não conhecido dos brasileiros no início de 1958 e que havia ocorrido no ano
anterior: o governo federal havia rompido com o FMI, devido à recusa em ceder às
exigências do órgão estrangeiro para a concessão dos financiamentos solicitados. No
âmbito internacional, outro ponto negativo foi o não-reatamento das relações comerciais
com a União Soviética, já que o ministro da Guerra, general Lott, opôs-se à proposta,
alegando motivo de segurança nacional. Em março de 1958, a seca assolou o Nordeste
e, em função do estado de emergência em que a região se encontrava, Kubitschek viajou
ao interior do Ceará três dias depois de discursar ao povo de sua terra natal, mas não há
registro de discurso em terras cearenses. Ainda em 1958, a UDN se mobilizava para
adiar a transferência da capital, o que resultou, no final daquele ano, no requerimento de
uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) por Carlos Lacerda, sob a alegação de
irregularidades na construção da cidade. A CPI intimaria os diretores da Novacap e
empreiteiros a prestarem depoimento. Contudo, aliados do governo comprometeram-se
a adiar a CPI até a inauguração de Brasília.
O clima tenso ao qual o presidente estava submetido era nítido e, a terra natal era
um lugar “seguro” para o desabafo de Juscelino. Ele alega que fala de Diamantina para
o Brasil, esperando a repercussão de suas palavras. O discurso é feito no “curral
eleitoral” de JK; digo isto com convicção porque quando Juscelino ofereceu a Autran
Dourado a oportunidade de abraçar a carreira política, disse que “emprestaria” seus
eleitores a ele, o povo de Diamantina.
Não era a primeira vez que cidade mineira era escolhida para “ouvir” um
balanço do governo. Em 9 de julho de 1956, por exemplo, a cidade mineira também foi
palco de um discurso sobre as realizações do governo.
No discurso em questão,
realizado em 12 de abril de 1958, os períodos são iniciados com verbos no pretérito e,
todas as vezes em que se dirige ao público, Juscelino utiliza a segunda pessoa do plural,
o mesmo padrão adotado nos discursos escritos pelos ghost writers, o que poderia
92
significar que JK assimilou marcas de linguagem dos assessores ou que ocorreu o
inverso, em resumo, um exemplo de alteridade.
Feita essa análise superficial do discurso proferido por JK em sua terra natal,
chamo a atenção para uma citação apresentada no capítulo anterior e que reforça a frase
lida anteriormente: “Minha vida obedeceu à mesma necessidade de lutar pela conquista
do destino. Somos exemplares vivos do que é a democracia, desse regime que leva
órfãos pobres à Presidência da República” (KUBITSCHEK DE OLIVEIRA, [1961], p.
30, grifo meu). Embora as frases tragam a mesma mensagem utilizando palavras
diferentes, uma informação pode ser duplamente interpretada, a referente aos órfãos
pobres que chegam à presidência do país. É fato que Juscelino teve uma infância pobre
e logo cedo perdeu o pai, contudo, se considerarmos que Schmidt também enfrentou a
pobreza e perdeu os pais ainda muito jovem, não estaríamos errados ao supor que esse
discurso, anteriormente atribuído a JK, poderia ter sido redigido pelo poeta e teria
passado despercebido pelo olhar atento de Autran Dourado. Digo passar despercebido
porque não é o sujeito que comanda o discurso, como pensavam os ghost writers. O
sujeito faz parte da construção do discurso e as relações entre eles determinam o que
pode ser dito, onde e de que forma. Retomando a discussão, podemos nos embasar na
informação de que ambos, JK e o poeta, eram órfãos que viveram uma infância pobre e
estavam no poder: Juscelino como o Chefe de Estado e Schmidt como “a Eminência
Parda”.
Se também considerarmos a informação de que Augusto Frederico Schmidt era
tido como um homem conservador e um católico fervoroso, podemos “enxergar” o
poeta naqueles trechos dos discursos com vocábulos religiosos, cuja autoria era até
então atribuída a Juscelino. Schmidt chegou a administrar uma editora católica (que
ganhou seu nome), e, segundo o sociólogo e amigo Gilberto Freyre, “O meninão gordo
era já, contra todo esse seu físico nada romântico de burguês de caricatura, um
admirável poeta, ora delicadamente lírico, ora biblicamente profético, como se
conservasse, não do sangue, mas da tradição, de avós remotos, além do nome alemão e
do romantismo germânico, alguma coisa de hebreu ou de israelita no seu misticismo.
(http://bvgf.fgf.org.br/portugues/obra/artigos_imprensa/augusto_fred.htm, grifo meu). O
termo “biblicamente profético” se encaixa perfeitamente nas citações tratadas no
capítulo cinco como sendo de autoria de Juscelino Kubitschek, citações estas que
trazem a mensagem referente ao cumprimento de um destino pelo país e por seu
governante, no caso, JK. A informação de que o poeta era um católico fervoroso ainda
93
levanta uma outra suspeita: não seria Schmidt o responsável por discursos destinados a
autoridades religiosas?
Já Juscelino, segundo o historiador Ronaldo Costa Couto:
...era católico de sólida fé, mas também estendia suas articulações
sobrenaturais e esperanças a outras propostas e caminhos religiosos.
Inclusive o espiritismo. Admirava o médium Chico Xavier [...] Há
várias histórias de JK com o médium (COUTO, 2002, p. 81).
O assessor e amigo de JK, o economista carioca Nelson Teixeira, que esteve
com Juscelino no dia-a-dia do governante, explica a relação do ex-presidente com o
espiritismo e o médium Chico Xavier:
Ele era místico. [...] os militares não queriam que fosse candidato a
governador. Quando chegou a hora de decidir, ele foi ao Chico Xavier,
que lhe disse para ir em frente. E mais: alertou-o de que chegaria à
Presidência da República. Juscelino acreditava muito em espiritismo.
Era católico, mas tinha lá também seu tanto de Allan Kardec. Ele
escutava mesmo o Chico Xavier25 (Ibid., p. 81).
E realmente não podemos considerar Juscelino um “beato”, como afirmou
Autran Dourado. JK herdou a boemia do pai e “...era [um] mulherengo incorrigível. A
paixão mais arrebatadora foi a da carioca Maria Lúcia Pedroso - um romance
clandestino
de
18
anos,
que
durou
até
a
morte
do
presidente”
(http://www.terra.com.br/istoe/biblioteca/brasileiro/seculo/indice.htm). Preocupado com
a vida sexual. Juscelino tomava hormônios para estimular a libido, o que resultou em
um câncer (Cf. COUTO, 2002, p. 299-301). Os vários romances do presidente foram
registrados em um diário secreto, destruído por D. Sarah após a morte de Juscelino, mas
publicado após a morte de D. Sarah, a partir de uma cópia guardada por Adolfo Bloch,
amigo do ex-presidente.
Outro dado importante sobre Augusto Frederico Schmidt apresentado por
Gilberto Freyre diz respeito ao patriotismo do poeta:
25
Depoimento do economista Nelson Teixeira, amigo e assessor de JK, ao historiador Ronaldo Costa
Couto em 15 de outubro de 2000, e que consta no livro Brasília Kubitschek de Oliveira escrito pelo
historiador e elencado nas referências bibliográficos deste trabalho.
94
Ninguém mais brasileiro. Ao se anunciar, ele próprio, num dos seus
primeiros poemas, ‘o brasileiro Augusto Frederico Schmidt’, era como
se, magoado com as insinuações de não ser autêntico brasileiro [era
descendente de alemães], quisesse proclamar a sua condição de
brasileiríssimo brasileiro. [...] um brasileiro a quem não faltou nunca
amor
ao
Brasil
(http://bvgf.fgf.org.br/portugues/obra/artigos_imprensa/augusto_fred.h
tm).
A informação sobre patriotismo também poderia ser considerada uma pista para
uma nova análise dos discursos que exaltavam o país. Sob essa nova ótica, ao relermos
os discursos analisados neste estudo. Não posso, porém, deixar de mencionar que JK
também era patriota, não ufanista. Uma das justificativas para essa afirmação está no
fato de que, embora tivesse paixão por aviões e tenha passado boa parte do governo
voando, o então presidente fez apenas duas viagens ao exterior como chefe da nação
(Cf. COUTO, 2002, p. 23) e sofreu no período em que ficou exilado, longe do Brasil
(Ibid., p. 266). "É o castigo mais cruel imposto a um homem que só pensava no Brasil,
só estudava o Brasil, só viajava pelo Brasil e em torno de si reunia uma equipe só para
adorar
o
Brasil",
diria
ele
mais
tarde
(http://www.terra.com.br/istoe/biblioteca/brasileiro/seculo/indice.htm).
Ainda seria possível pensar uma nova questão: se Juscelino declarou que o
discurso feito por JK em Diamantina, o qual foi tratado anteriormente, foi o único
pronunciado em sua terra natal o qual não teve improviso, por que, então, o discurso
lido pelo Ministro Sette Câmara Filho e considerado neste trabalho como um “discurso
controle”, uma vez que não teria qualquer influência de JK, apresenta mais de dez
menções a vocábulos religiosos, a exemplo de compromisso sagrado, louvor, e o nome
Deus? Poderíamos pensar também: por que o único pronunciamento, entre os vários
constantes nos cinco volumes de discursos do acervo do Memorial JK, em que é
declarado que o presidente falou de improviso não possui uma única palavra ligada à
religiosidade? O discurso lido por Sette Câmara apresenta, ainda, trechos rebuscados
como “...se a cidade não existia, sua falta era compensada pelo risco imaginoso dos
cartógrafos, à maneira da tela idealizada por Balzac” (KUBITSCHEK DE OLIVEIRA,
[1961], p. 10, grifo meu) e “...o labor incessante de sua construção majestosa, marcado
pelo ritmo das máquinas e pelo rumor das ferramentas, numa espécie de sinfonia
wagneriana do trabalho” (Ibid., p. 13, grifo meu). O discurso é encerrado com uma
frase “profética”: “Nesse clima [democrático] levantamos esta Cidade. Isto significa que
95
a erguemos sobre a rocha, para resistir ao tempo e aos vendavais, como a própria
Nação, que tem o sentido da eternidade” (Ibid., p. 19, grifos meus), uma paráfrase da
passagem bíblica em que Cristo anuncia “Tu és Pedro e sobre esta pedra edificarei
minha igreja”.
E ao JK afirmar, em seu desabafo em Diamantina, jamais ter se preparado para
um discurso feito em sua terra natal, como poderíamos levar essa informação a sério se
os demais discursos proferidos na cidade mineira apresentam características estilísticas
dos discursos supostamente redigidos pelo poeta? A exemplo do discurso proferido por
Juscelino em Diamantina em 15 de Setembro de 1957, ao ser paraninfo da elevação de
Dom José Pedro ao Episcopado de Caitité:
Para Diamantina, é o dia de hoje de importância que não necessita
salientar-se; dies nobis festus, poderei dizer poderei dizer,
parodiando Horácio (KUBITSCHEK DE OLIVEIRA, 1958, p. 210,
grifos meus).
Antes de analisar dois recortes fundamentais à conclusão deste estudo, chamo a
atenção para outros dois discursos que considero importantes para o então presidente e
sua “Eminência Parda”, aquele feito na inauguração de Brasília e o proferido em
agradecimento ao apoio de países sul-americanos à Operação Pan-Americana (OPA), da
qual o poeta foi o grande idealizador. O primeiro discurso citado foi pronunciado em 21
de abril de 1960 e, de minha parte, era esperado um discurso “apaixonado”, semelhante
ao proferido em Diamantina em 12 de abril de 1958, o qual foi analisado no início deste
capítulo. Entretanto, não apareceram muitas palavras relacionadas à religiosidade. Mas
também não faltaram termos formais, metáforas e religiosidade. Era o discurso mais
importante sobre Brasília, meta de governo que era a “menina dos olhos” de Juscelino:
A magnitude desta solenidade há de contrastar por certo com o tom
simples de que se reveste a minha oração. [...] Não nos voltemos para
o passado, que se ofusca ante esta profusa radiação de luz que outra
aurora derrama sobre a nossa Pátria. [...] Somente me abalancei a
construí-la quando de mim se apoderou a convicção de sua
exeqüibilidade por um povo amadurecido para ocupar e valorizar
plenamente no território que a Providência Divina lhe reservara
(http://www.franklinmartins.com.br/estacao_historia_artigo.php?titul
o=discurso-de-jk-na-inauguracao-de-brasilia-1960,
grifos
meus).
96
O outro discurso mencionado se referia à principal meta de Schmidt, a OPA, que
representava a denúncia do abandono e do descaso da política norte-americana para com
os países latino-americanos, e era, oficialmente, a principal meta de JK na política
externa brasileira. O discurso feito a membros da delegação brasileira que participaram
de uma conferência em Bogotá e embaixadores das vinte e uma Repúblicas Americanas,
esse sim, foi “inflamado” e tem vários exemplares de termos rebuscados, que poderiam
ser considerados influência de Schmidt:
Graças a vós, triunfou não apenas a mais importante meta de meu
Governo no campo da política externa, como também uma iniciativa
magna, de alcance universal [...] sem vossa dedicação, vossa
perseverança e vosso sacrifício, a OPA jazeria hoje no cemitério das
grandes idéias irrealizadas. Se isto não aconteceu foi não somente
porque pude contar com uma plêiade26 excepcional de negociadores
diplomáticos, mas também porque o apelo da Operação PanAmericana ressoou em todos os rincões do continente,
galvanizando27 em torno de si o sentimento unânime das demais
nações latino-americanas. [...] Desde o momento em que germinou
em mim a idéia da Operação Pan-Americana, não duvidei um só
instante que ela floresceria e daria frutos [...] Animava-me,
principalmente, a íntima convicção de que a Operação PanAmericana corresponderia perfeitamente à vocação americanista do
Brasil e aos anelos28 mais profundos e genuínos da nossa política
exterior (KUBITSCHEK DE OLIVEIRA, [1961], p. 343-345, grifos
meus).
Poderia concluir, de antemão, que ambos os discursos foram redigidos pelo
poeta, pelo o que foi informado por Autran Dourado, que os principais pronunciamentos
de JK eram de responsabilidade de Schmidt, e porque o estilo dos discursos condiz com
as características até agora apresentadas neste trabalho como sendo típicas dos discursos
escritos pelo poeta. Aproveito para justificar que decidi comentar sobre a intensidade
das palavras nos dois pronunciamentos em questão porque o envolvimento do poeta
com a OPA poderia levá-lo a aparecer mais no discurso, mesmo que não fosse
intencional; e é importante ressaltar que Dourado também mencionou que Schmidt
26
Plêiade – grupo, reunião de homens, de poetas célebres.
Galvanizar – reanimar, dar vida, polarizar, atrair (as atenções).
28
Anelo – desejo veemente, aspiração, ânsia.
27
97
cometia excessos em alguns discursos, ao usá-los como “ferramenta” para fazer tráfico
de influências. Luis Nassif comenta sobre os excessos do principal escriba de JK:
Autran considerava Schmidt um injustiçado, acusado de se aproveitar
das relações do governo para turbinar seus negócios. O poetaempresário, na verdade, ganhou grande poder de fogo com sua
influência sobre a Cexim (a Cacex da época), órgão incumbido de
emitir licenças de importação. Graças a esse poder, conseguiu se
tornar sócio de uma dezena de empresas, junto com Lulu Aranha,
irmão de Oswaldo Aranha29 - a quem acusavam de estar por trás dos
negócios.
Provavelmente não. Coube ao próprio Aranha acabar com o poder da
Cexim, ao criar o sistema de leilão de câmbio. De qualquer modo,
todo dinheiro acumulado por Lulu e Schmidt tiveram uma grande
destinação social: o glorioso Clube de Regatas Botafogo
(http://www.lainsignia.org/2006/febrero/ibe_061.htm, grifos meus).
Mas a tentativa de identificar a origem dos discursos, além de ser utópica, se
mostra desnecessária diante da constatação de que o estilo de escrita de Schmidt como
ghost writer de JK não condiz com o estilo do mesmo Schmidt como autor de textos em
poesia e prosa. Mesmo ao ser prolixo, não utiliza palavras elitizadas, mas outras
características estão presentes: a exaltação ao Brasil na poesia, por exemplo:
...E sentirei que te libertarei da solidão
Porque desci ao teu ser múltiplo e sensível.
Porque é minha Pátria,
As tuas paisagens são as da minha saudade.
(http://fundacaoschmidt.com.br/, grifo meu).
A relação com a Igreja Católica aparece em vários textos, como o em prosa
apresentado a seguir:
29
Teve participação ativa da Revolução de 24; foi um dos principais articuladores da Revolução de 30;
foi Ministro da Justiça do Governo Provisório; foi Ministro da Fazenda; além de embaixador em
Washington entre 1933 e 1937, e Ministro das Relações Exteriores em 1938. Em 1947, teve participação
destacada na Organização das Nações Unidas para a criação do Estado de Israel; em 1956, já sob o
governo Kubitschek, Aranha foi convidado a participar da delegação brasileira na ONU, mas recusou. No
ano seguinte, porém, aceitou o novo convite que lhe fora feito nesse sentido, sendo nomeado, a 6 de
setembro, chefe da delegação brasileira na XII Assembléia Geral das Nações Unidas
(http://www.unificado.com.br/calendario/10/oswaldo_aranha.htm).
98
Como alguns jovens que me vieram visitar me perguntassem qual a
solução para tantos e tão angustiosos problemas que nos perseguem,
respondi-lhes que outra salvação não encontrara eu, senão a volta de
Jesus Cristo. [...] Sei que toda crise do mundo resultou da deformação
de Sua doutrina [...] mas os poucos que contemplam o Cristo [...] os
raros que O encontram tal como é [...] sabem que tudo o que vem
d’Ele está certo, é a verdade... (http://fundacaoschmidt.com.br/, grifos
meus).
Dessa forma, poderia ser cogitado que o poeta criou um estilo específico para os
discursos de JK. Mais que um estilo, o padrão marcante dos textos presidenciais
redigidos pelo poeta poderiam ser considerados resultado de uma personalidade criada
para os discursos presidenciais. Se ainda pensarmos que Schmidt não respeitava um
conceito imprescindível ao trabalho de ghost writer, o segredo quanto à sua participação
na confecção do texto, seu trabalho como redator dos pronunciamentos do ex-presidente
configuraria como a atividade de um romancista, que inventa uma personagem e lhe
concede falas que produzem o efeito de serem consideradas próprias da personagem.
Assim, seria essa a personalidade, a de uma personagem, que transpareceria nos
discursos proferidos por Juscelino, e não o autêntico JK, o homem Juscelino, como se
esperava.
A livre-docente em Análise de Discurso, Maria do Rosário Gregolin, completa
que não podemos reduzir o sujeito do enunciado aos elementos gramaticais (2004, p.
27), os quais tornam um discurso formal, por exemplo, e, por isso, mais adequado a ser
proferido por uma autoridade. Vale lembrar que Juscelino freqüentou o seminário,
quando menino e, certamente, sabia latim; que JK tinha curso superior - formou-se em
medicina; falava inglês e também sabia francês, em virtude de ter morado na França,
onde estudou após obter o diploma de médico. Assim, a autoria dos discursos não
poderia se restringir a Augusto Frederico Schmidt. Juscelino e outros escritores
fantasmas também poderiam ter a intelectualidade que vinha sendo atribuída, no
presente estudo, apenas a Schmidt.
A tentativa de se atribuir a uma pessoa a autoria dos discursos também é
frustrada em virtude de JK, ao assinar os discursos e pronunciá-los, assume a funçãoautor. Função-autor esta construída simultaneamente à construção da personagem
“presidente JK” tanto pelos ghost writers que redigiam os discursos presidenciais
quanto pelo homem Juscelino Kubitschek.
99
A partir dessa constatação, inicio a análise de dois recortes dos discursos
considerados “controle” neste trabalho. Ambos têm Brasília no eixo temático, mesmo
não sendo o principal assunto dos pronunciamentos. O primeiro discurso a ser analisado
é o único a conter em seu título a informação de que não foi o presidente que o proferiu.
Este foi lido pelo então chefe da Casa Civil, o ministro Sette Câmara Filho em 3 de
janeiro de 1960. O segundo, apresentado por JK em Brasília em 12 de setembro de
1959, data do 57º aniversário do presidente, traz no título o dado de que foi feito de
improviso por Juscelino. É importante dizer que é o único a apresentar esta informação
entre todos os registrados durante os cinco anos de mandato do ex-presidente.
O
trecho
escolhido
do
primeiro
texto,
intitulado
“Nas
solenidades
comemorativas do aniversário do presidente da Novacap Doutor Israel Pinheiro
(discurso lido pelo chefe da Casa Civil, Ministro José Sette Câmara)”, traz uma
apreciação sobre a cidade que se desenhava no planalto:
...o milagre de construir em três anos uma cidade monumental nesta
amplidão silenciosa. Não uma cidade qualquer, erigida de emergência
por um capricho do momento, mas a cidade definitiva e modelar,
imponentemente bela na sua realidade urbana, síntese de nossa
vitalidade, convergência e resumo de nossas originalidades evidentes.
No dia de hoje, ao estender os olhos pela antiga solidão verde do
altiplano, o que sinto e vejo à minha volta é a cidade tangível e
objetiva, radiante na sua beleza nova, como que descida dos céus
pela bondade de Deus, porque nos dá de longe a impressão de estar
ainda suspensa nos ares, tocando o solo, com a leveza de libélula do
seu traçado (KUBITSCHEK DE OLIVEIRA, [1961], p. 10-11).
O recorte tem início com a palavra milagre, adequada para a atmosfera que
envolvia a construção da nova capital federal, cidade apresentada em um sonho
premonitório a um religioso italiano décadas antes, cuja realização foi “concedida” a um
predestinado, JK, e que nasceu do sinal da cruz, como disse Lúcio Costa, traçado este
chamado também de libélula, e que é citado com este nome ao final do trecho analisado.
Entretanto, dificilmente o vocábulo teria sido usado visando apenas seu sentido
religioso, uma vez que, ainda hoje, a expressão “milagre” é utilizada entre os brasileiros
para identificar uma tarefa feita em curto prazo ou difíceis condições. A construção de
Brasília, feita em menos de quatro anos, se enquadra nesse contexto. O planalto, palco
da construção da nova capital, é chamado de “amplidão silenciosa”. O adjetivo
silencioso substitui termos mais concretos como “inabitado”. A expressão também dá a
100
idéia de deserto e de não-criado (anterior à Criação), termos que têm lugar no discurso
religioso. É o primeiro exemplo de como o lugar e os referenciais de onde se diz
prevalecem ao que se diz. Em um palco de teatro ou em um sarau, o trecho “amplidão
silenciosa” poderia assumir outros significados. Mas ao seguir uma frase pronunciada
pelo presidente e que trata da fundação de uma nova cidade, que era construída em um
imenso terreno plano (típico da região central do país), o qual parece infinito ao se
observar e era até então inabitado, o trecho ganha um sentido restrito, mesmo tendo sido
formatado nos moldes da poesia. Ao tratarmos esse presidente como um homem
religioso à frente de um país cristão, o significado de Brasília deixa de ficar restrito à
construção de uma cidade com a missão única de sediar o governo do país. Ela pode ser
comparada com o destino do “povo de Deus” ao fugir o Egito e se livrar da escravidão.
A nova capital federal trazia a promessa de progresso para o país; de prosperidade para
o interior, tão esquecido desde os primórdios do país. Brasília pode, dessa forma, ser
comparada a um milagre, a Terra Prometida, como anunciada no sonho profético de
Dom Bosco.
Em seguida, no discurso analisado, aparecem os primeiros termos considerados
formais e, por isso, adequados ao discurso de um presidente da República na situação
em que proferiu o discurso em questão, situação esta formal. Erigida substitui o popular
“construída”, substituição que também pode ser traduzida como uma estratégia para não
utilizar uma palavra proveniente do mesmo radical de “construir”, verbo utilizado na
sentença anterior. Enfatizo que essa preocupação em não repetir termos é típica de
escritores e jornalistas, sobretudo quando se expressam por meio da escrita. Outras
metáforas foram utilizadas para relatar a genialidade da obra de Lúcio Costa e Oscar
Niemeyer, além da “jovialidade” do país e do modelo de construção de cidade, que já
não era uma novidade na época. Faço um hiato para tratar de uma informação que ainda
não mencionei: as metáforas também são características do discurso religioso e, assim
como os textos bíblicos, permitem várias interpretações, as quais dependem das
condições de produção e recepção do discurso.
Voltando aos trechos analisados, é importante lembrar que JK repetia o que
havia sido feito em outras cidades projetadas, a exemplo de Belo Horizonte. A cidade é
tratada como “definitiva e modelar, imponentemente bela na sua realidade urbana,
síntese da nossa vitalidade, convergência e resumo de nossas originalidades evidentes”.
Essa mesma estratégia, citada anteriormente, foi utilizada para não se repetir o trecho
“amplidão silenciosa” nem se fazer uso de uma expressão não-poética. As palavras
101
escolhidas foram “antiga solidão verde do altiplano”. Para tratar da cidade que se
delineava no planalto central, é utilizado o trecho “é a cidade intangível e objetiva”. A
seguir o trecho “radiante na sua beleza nova, como que descida dos céus pela bondade
de Deus”, embora com forte carga metafórica, pode estar inscrito em um contexto
religioso e complementar a lista de vocábulos ligados à religião pulverizados neste
discurso, como compromisso sagrado, fé e o nome Deus.
É possível observar, então, como várias características se cruzam no discurso: a
preocupação “jornalística” de não repetir palavras; a formalidade ao lidar com o
interlocutor; o clima poético ao tratar a nova cidade; além da religiosidade. Ao invés de
apagamento deste ou daquele ghost writer, desta ou daquela forma de escrita, percebese a influência dos vários construtores dos discursos do ex-presidente. JK é quem assina
o discurso, embora não o tenha pronunciado, e assume a função-autor mesmo se jamais
viu ou leu uma única linha do referido discurso. Essa construção, a várias mãos,
resultava na personagem assumida por Juscelino, o “presidente JK”, e que teve a
participação direta do governante nos demais discursos feitos durante os cinco anos de
presidência. Uma personagem como as de peças de teatro, por exemplo, criadas,
conjuntamente, pelo o autor, ator, o diretor, o figurinista e, entre outros, pelo público,
cujas reações podem influenciar o próximo ato.
O trecho escolhido do segundo discurso a ser analisado, intitulado
“Agradecendo, de improviso, as palavras de saudação do senhor Israel Pinheiro, na festa
com que os trabalhadores de Brasília assinalaram a passagem de mais um aniversário do
presidente da República”, também traz uma apreciação sobre a cidade construída na
região central do país:
Um reduzido grupo de pioneiros lançou-se à construção da pequena
casa que ficou conhecida como o Catetinho e na qual, nos primeiros
dias de novembro de 1956, o presidente da República despachava o
seu primeiro expediente nas alturas deste planalto. Em seguida, as
iniciativas se foram multiplicando e, aos poucos, iam brotando deste
solo, de uma cor arroxeada tão bela, as construções que começaram a
encher de espanto grande parte do Brasil. A obra, porém, era maior do
que se podia imaginar. E não foi apenas a nossa nação que tomou
conhecimento da iniciativa. A humanidade inteira sentiu que alguma
coisa nova se operava no Brasil. Procurávamos vencer a etapa inicial
do nosso combate ao subdesenvolvimento, para nos impormos ao
mundo como uma nação que sabe o que quer e fará o que deseja
(KUBITSCHEK DE OLIVEIRA, 1960, p. 11).
102
O recorte começa com um trecho narrativo, no qual é relatado o início da
construção da nova capital federal. JK apresenta, no discurso, um movimento de
afastamento ao se tratar como uma terceira pessoa, dizendo “o presidente da República
despachava o seu primeiro expediente nas alturas deste planalto”. Logo o presidente
assume uma nova posição e se coloca como que junto da população brasileira. Fala de
“nossa nação”, “procurávamos vencer” e “nos impormos”, num movimento em que
poderia tentar convencer o público de que foi um trabalho conjunto e não uma luta
individual para a realização de um sonho particular, o de deixar uma marca indelével
como presidente do país. Uma observação importante é a de que este discurso não
apresenta uma característica comum à maioria dos discursos proferidos por Juscelino, o
tratamento do público ouvinte pela segunda pessoa do plural. Todas as vezes em que
Brasília é colocada como um objetivo da nação, de seus habitantes, a exemplo do final
do recorte: “nos impormos ao mundo como uma nação que sabe o que quer e fará o que
deseja”, Juscelino se coloca em nível de igualdade com os interlocutores e valoriza os
trabalhadores durante sua fala. O discurso todo apresenta vocábulos acessíveis a
qualquer cidadão e construções gramaticais igualmente simples, diferentemente do
outro recorte analisado. Essa característica se deve à preocupação com o público,
trabalhadores que participaram da construção de Brasília e que, como já tratei aqui, se
sentiam íntimos do presidente. Contudo, o discurso não possui a característica tão
aguardada: a expressão de religiosidade na fala de JK. Mas isso não pode ser
confundido com um enunciado neutro, independente. Todo enunciado faz parte de um
conjunto, e desenvolve um papel entre os outros enunciados. “Como o texto é um
espaço mas um espaço simbólico, não é fechado em si mesmo: tem relação com o
contexto e com os outros textos [...] A intertextualidade é, pois, um dos fatores que
constituem a unidade do texto (ORLANDI, 2001b, p. 159-160). E para significar, um
enunciado necessita de materialidade, é necessário possuir, por exemplo, um lugar e
uma data. Também se faz necessário que essa materialidade possa ser manipulada pelos
enunciadores, de modo a haver um regime para nortear os discursos. Outra característica
imprescindível é a submissão do enunciado aos limites “impostos pelo lugar que ocupa
entre outros enunciados” (GREGOLIN, 2004, p. 31). O sentido vai depender do
contexto onde o enunciado está inserido, assim como da posição de onde o enunciador
fala, de como fala e da reação de quem ouve e interage. No caso dos pronunciamentos
de JK, é o presidente falando ao povo e, em vários casos, pelo povo, visto que em
muitas vezes utiliza a primeira pessoa do plural.
103
Não posso deixar de citar a utilização de um discurso autoritário, em que o
falante se impõe sobre o ouvinte, representando a capacidade de influenciar
comportamentos e, geralmente, sem a oportunidade de resposta pelo interlocutor, como
é comum em discursos políticos. E uma vez que o discurso autoritário é atrelado ao
religioso, a vontade imposta sobre os ouvintes “coincide” com a vontade de Deus.
Embora JK se coloque no mesmo nível que seus interlocutores, ao narrar, por exemplo,
que fez os primeiros despachos em Brasília em uma casa sem qualquer luxo, e utilizar a
terceira pessoa do plural ao tratar da construção da nova capital como solução para o
subdesenvolvimento do interior do país, ele também impõe uma verdade a respeito da
nova sede do governo federal, contudo, sete meses antes da inauguração de Brasília! JK
fala da nova cidade como uma obra admirada pela nação brasileira e por outras,
percebida por toda a humanidade e apresenta o Brasil como um país que vai se impor ao
mundo, “como uma nação que sabe o que quer e fará o que deseja”. Novamente,
percebe-se a construção de um discurso em que há a preocupação com o como falar e no
qual, mesmo ao se impor, o presidente o faz de maneira sutil, visto que JK utiliza a
terceira pessoa do plural, como que colocando-se em coro com o povo. Um discurso em
que a personagem “presidente JK” assume um lugar que coincide com sua origem
humilde e sua liderança para levar o país ao progresso. Não faltam pinceladas dos ghost
writers, sejam elas por meio de uma escrita de fácil compreensão; de metáforas - “iam
brotando deste solo [...] as construções...”; de características, mesmo que, sutis do
discurso autoritário. Juscelino “completa” o perfil da “personagem” não apenas ao
assumir a função-autor por proferir o discurso, mas por estar envolto numa atmosfera
que apresentava Brasília como a realização de uma profecia, a qual seria a solução para
problemas de ordem econômica e social no país. Sem contar que a transferência da
capital, a descentralização do poder, significaria garantir a presença de JK à frente do
país até o último dia de seu mandato.
Ao compararmos os dois recortes selecionados para análise, mais do que tentar
afirmar que no primeiro discurso estudado há traços da erudição de Schmidt e que o
segundo discurso condiz com um estilo sóbrio, narrativo, próximo do jornalismo, a
autoria de cada um seria dificilmente identificada e já não é esse o propósito do presente
trabalho. No decorrer das análises, se tornou claro que a chave para se estudar os
discursos - mesmo os que foram escritos por uma única pessoa e não foram revisados, o
que pode ter ocorrido com os redigidos por Autran Dourado – não está na descoberta de
quem os escreveu e sim na forma como os discursos foram construídos pelos ghost
104
writers e pelo homem Juscelino Kubitschek, resultando na personagem “presidente JK”
e na função-autor. Além de estar em conformidade com o que podia ser dito, a forma e
o lugar do dizer, a personagem também atendia às expectativas do povo, o que tornou o
“presidente JK” conhecido como dos presidentes mais carismáticos e acessíveis, embora
Autran Dourado tenha comentado em Gaiola Aberta que a aparência risonha do
presidente escondia seu temperamento explosivo e imperativo, como já citei neste
estudo.
É preciso, ainda, atentar para o fato de que, ao analisar os discursos à luz de
Foucault, não estamos lidando com o sujeito cartesiano e, portanto, é por isso que
acredito que mesmo ao tentar ser racionais, os ghost writers não ficaram imunes a
“vazamentos” em seus discursos.
É no exato momento em que [o sujeito] se submete às expectativas do
outro – ou talvez por isso mesmo-, que resvalam cá e lá, fragmentos,
fagulhas candentes da subjetividade que (se) diz; escapam
representações, desejos, inconscientes e abafados, que se ateiam à
menor oportunidade: uma confissão, um concurso, uma entrevista
formal... [...] podem fazer parte do arquivo ou da memória discursiva
conforme o interesse e o valor que despertam naqueles que detêm um
certo poder. Este pode anular, silenciar, apagar uma vida, assim como
pode dela e nela construir uma identidade, que se transforma na
verdade do sujeito, deixando uns na penumbra do esquecimento e
outros na evidência (CORACINI, 2007, p. 24-25).
É interessante perceber aqui que, considerando os discursos de Juscelino
Kubitschek, quem “se submete às expectivas do outro” - outro este representado pelo
povo brasileiro e duplamente por JK: a personagem e a função-autor - são os ghost
writers.
Por meio do arquivo, eles foram os responsáveis por “construir uma
identidade” - a da personagem presidente JK - “que se transforma na verdade do
sujeito”, o qual, agora, é Juscelino Kubitschek, o mito, e não mais os redatores
fantasmas. Poderia concluir que, ao assumirem a posição de presidente para escreverem
os textos, os “ghosts” construíram o mito, o herói JK, colocando-o em evidência e a si
próprios “na penumbra do esquecimento”, o que caracteriza o trabalho dos “fantasmas”,
um ato silencioso e com garantia de manutenção do segredo referente à instância
produtora dos textos.
Lembrando Foucault, sabemos que os sujeitos são cindidos e têm a falsa
impressão de liberdade, completude, essência; isso porque eles são construídos pelo
105
discurso, o qual determina o que deve ser falado, de que maneira e em que lugar. Todo
falante, ao dizer alguma coisa a alguém, configura seu discurso. “Não há discurso sem
configuração como não há fala sem estilo (ORLANDI, 2001b, p. 153). E não devemos
considerar essa configuração como um modelo a ser preenchido pelo falante, mas um
padrão estabelecido por ele; dessa forma, não representa uma informação anterior à fala
e sim o que se define durante a interação (Ibid., p. 153).
Examinando, então, os vazamentos nos discursos dos escritores fantasmas,
principalmente de Augusto Frederico Schmidt, o fato de ser possível ler nas entrelinhas
de um dos pronunciamentos de Juscelino (“...desse regime que leva órfãos pobres à
Presidência da República”) a frase que o poeta já havia dito a Autran Dourado:
“administrar e governar um país é uma coisa muito secundária” (DOURADO, Op. cit.,
p. 9) é um exemplo de como a palavra pode desvelar mais do que ocultar. Dizer se o
poeta procurou aparecer no trecho “Minha vida obedeceu à mesma necessidade de lutar
pela conquista do destino. Somos exemplares vivos do que é a democracia, desse
regime que leva órfãos pobres à Presidência da República” (KUBITSCHEK DE
OLIVEIRA, [1961], p. 30), seria especulação, já que consideramos neste estudo o
sujeito sujeitado.
Dessa forma, a construção da personagem “presidente JK” foi possível
(seguindo uma citação de Coracini que apresentei anteriormente) a partir de: o sujeito
(escritor fantasma), ao se submeter à apreciação de outrem (o povo brasileiro e
duplamente JK), deixar escapar “fagulhas candentes da subjetividade que (se) diz e criar
uma nova identidade (a personagem “presidente JK”, o mito, o herói JK) e, ao
confeccionar essa nova verdade do sujeito, coloca o sujeito inicial (o ghost-writer), se
podemos chamar assim, na “penumbra do esquecimento”.
Schmidt experimentou o poder de ser Presidente da República, sem nunca o ter
sido, como uma “Eminência Parda” deve fazer. O próprio presidente também o
experimentou ao fazer seus discursos.
106
7 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Este estudo se delineou a partir da intenção de se detectar como Juscelino
Kubitschek transparecia nos discursos que proferia já que não era ele quem os escrevia.
Havia a expectativa de que tivessem ocorrido improvisos durante os pronunciamentos e
que, uma vez identificados os supostos improvisos, seria possível analisar essas
intervenções nos pronunciamentos do ex-presidente para saber como elas alteravam o
conteúdo dos discursos e quais eram as conseqüências dos improvisos. Entretanto, no
decorrer das análises, foi possível perceber que os improvisos não estavam livres das
simulações presentes nos discursos escritos pelos ghost writers.
As primeiras leituras me levaram a crer que teria havido uma influência religiosa
nos discursos e ações do então presidente, e essa influência seria de natureza esotérica.
Essa possibilidade foi reforçada por declarações de Juscelino em um dos seus livros
autobiográficos, que apresentavam um JK que acreditaria ser o predestinado à
construção de Brasília; contudo, não podemos considerar as declarações como uma
verdade e sim como argumento construído. Outro livro, De Akhenaton a JK: Das
pirâmides a Brasília, resultado de uma dissertação de mestrado, trata da construção de
Brasília como um fato programado, e não apenas por JK. A cidade é comparada a outra
edificada por um faraó egípcio e teria as mesmas características arquitetônicas e
místicas da egípcia. Mas as considerações feitas pela autora da obra, Iara Kern, não se
configuraram sustentáveis para este estudo.
A descoberta de um livro que apresentava os verdadeiros autores dos discursos
proferidos por Juscelino, incitou o surgimento de novos questionamentos, visto que as
marcas lingüísticas esperadas poderiam ter sido apagadas pelos chamados ghost writers,
a fim de tornar os discursos adequados para um presidente da República.
Iniciada a triagem dos discursos proferidos por Juscelino durante os cinco anos
em que esteve à frente do país, apareceu um novo problema: a falta de marcas
lingüísticas de teor esotérico nos discursos, confirmando a situação prevista no
parágrafo anterior. Entretanto, não foi difícil encontrar vocábulos relacionados à religião
católica. Os novos questionamentos foram passados a um dos principais escritores
fantasmas de JK, o escritor Autran Dourado, o qual afirmou, em entrevista concedida
por telefone, que o ex-presidente era católico e fazia intervenções nos discursos
107
(improvisos) durante os pronunciamentos. A pista para identificar as intervenções de JK
seria a presença de vocábulos ligados à religião, contudo, Dourado também admitiu ser
difícil apontar a autoria dos discursos e onde transparecia esta ou aquela pessoa. E,
iniciadas as análises, ficou claro o fato de que a autoria não deveria ser identificada
como origem e que o foco deste estudo deveria ser a forma como a autoria é construída
como efeito de discurso, no qual se manifesta a função-autor.
Surgiu então uma nova expectativa, a de que seria possível perceber os
improvisos de JK em seus discursos por meio dos pronunciamentos registrados em
áudio e vídeo, mas a dificuldade de se encontrar esses registros pela World Wide Web
só não foi maior que a tarefa de detectar onde estavam estes improvisos, uma vez que a
forma como Juscelino se manifestava era linear e os discursos televisionados trazem
imagens sobrepostas à imagem do ex-presidente discursando. O material de pesquisa
áudio-visual foi então descartado.
Detectar os supostos improvisos de Juscelino nos discursos que proferiu como
presidente se tornou uma tarefa ainda mais desafiadora após a informação de que seu
principal ghost writer, Augusto Frederico Schmidt, era um católico fervoroso e uma
verdadeira “Eminência Parda” do governo JK. Diferenciar onde estava o discurso de
Schmidt e o de outro redator fantasma até poderia ser uma tarefa mais fácil, lembrando
uma declaração de Autran Dourado à Revista Época, entretanto, ainda citando a referida
declaração, Dourado chegou a fazer o papel que ele próprio chamou de “ghost [writer]
do ghost [writer]” e, uma vez sendo um intelectual e conhecedor30 da religião católica,
poderia ser o autor de alguns dos discursos atribuídos a Frederico Schmidt neste
trabalho.
O que interessa quem disse? - diria o filósofo francês. Nesse caso, houve o
apagamento de uma subjetividade em favor de um sujeito que tem pluralidade de
posições e funções. Um exemplo está no discurso feito por JK em Diamantina, discurso
este tratado no capítulo cinco deste estudo. No mesmo discurso, Juscelino aparece ora
como o presidente da República ora como o filho da terra, nesse episódio, a cidade de
Diamantina. O discurso foi produzido por um sujeito em um lugar determinado por
regras sócio-históricas que definem e possibilitam que ele seja enunciado. O que dizer
30
Algumas obras de Autran Dourado tratam do rito funerário católico, a exemplo de “Tempo de amar”,
“A barca dos homens”, “Ópera dos mortos”, “O risco do bordado” e “Os sinos da agonia”, livros
analisados por Necilda de Souza em sua dissertação de Mestrado [SOUZA, Necilda de. O rito funerário
em Autran Dourado. 2003. 111 f. Dissertação. (Mestrado em Estudos Literários). Universidade Estadual
de Londrina. Londrina.].
108
então de uma série de discursos proferidos, no período de cinco anos, pela autoridade
máxima de um país, sabendo-se que esses discursos foram escritos por várias pessoas e
assumidos pelo presidente? Nesses discursos, há a construção de uma função-autor,
identificada com JK, e a construção de uma personagem, o “presidente JK”. E o sujeito,
nesse caso o presidente, é uma construção do discurso, sujeitado a o que dizer, como,
quando e onde.
Comparo o caso dos discursos de JK a outro clássico, “Alice no país das
maravilhas” e seu autor, Lewis Carroll (pseudônimo do matemático e escritor inglês
Charles Lutwidge Dodson). A história criada em 1865 é mundialmente conhecida e
resiste há séculos, independentemente de seu autor. Diferente da fábula de Alice, a
biografia do inglês é desconhecida da maioria das pessoas. O autor já estava morto antes
mesmo de vir a falecer em 1898; Lewis Carroll sucumbiu à obra em favor dela.
Ninguém jamais deixou de ler a fábula em virtude do desconhecimento em relação ao
autor da história. O mesmo se aplica aos textos de Ricardo Reis, Alberto Caeiro e
Álvaro de Campos, os três mais famosos heterônimos de Fernando Pessoa. Esses
autores fictícios ou pseudoautores possuíam estilos diferentes, mas todos eram escritos
por Fernando Pessoa. Assim como Lewis Carrol é um efeito de discurso do texto escrito
pelo matemático Charles Lutwidge Dodson, os heterônimos de Pessoa são efeitos de
sentido criados pelo poeta. Fernando Pessoa ortônimo, igualmente, é um efeito de
discurso dos poemas escritos pelo homem Fernando Pessoa. Deste ponto de vista, não é
o escritor o autor do texto. Dito de outro modo, não é o autor quem (apenas) escreve o
texto. Ele é, antes, escrito (como autor) pelo texto que escreve. Outro exemplo está nas
obras do próprio Mikhail Bakhtin e Volochínov, duas pessoas ou a mesma? Há quem
diga que Volochínov era um aluno de Bakhtin e teria escrito os livros a partir de
anotações feitas em aula, outros afirmam que era um pseudônimo de Bakhtin, para que
ele pudesse publicar livros sem as modificações impostas por seu editor ao filósofo
Mikhail Bakhtin.
No caso dos discursos de JK, conhecer a biografia do ex-presidente e a biografia
de cada um de seus ghost writers não significa ter em mãos a solução para o enigma da
autoria dos discursos proferidos, conforme apresentei no capítulo seis deste estudo. A
base biológica e biográfica não explica o que só o texto faz: criar um efeito de sentido
que responde pela função-autor, por uma representação de autoria. E mesmo que
Schmidt tenha tornado pública a informação de que escrevia discursos para o então
presidente, conforme apresentei no capítulo três, nada abalou o mito criado em torno do
109
nome de JK. Temos, então, discursos assinados por um mito, um dos mais aclamados
presidentes da República, discursos estes que produziram sentido a partir da posição
ocupada por aquele que os proferiu, o que reforça a tese de que não importa quem disse
mas de onde disse. Esse “lugar”, que não pode ser confundido como lugar físico, é que
determina o que pode ser dito, quando e como, além de ser determinante na produção de
sentido. Antes de tudo, importa como se disse, já que, ao dizer de um determinado
modo, construiu-se como função-autor e personagem.
Ainda hoje o nome de Juscelino é evocado por políticos que concorrem ao mais
alto cargo do país. E embora, muitas vezes, a era JK seja relacionada à inflação e à
dívida externa, a “marca” de estadista deixada pelos cinco anos do mineiro de
Diamantina à frente da nação é mais forte, talvez pelo sucesso que a industrialização do
país e construção de Brasília representaram para o Brasil da década de 1950, símbolos
da modernidade.
Acredito poder afirmar que as atitudes de Juscelino e os discursos do então
presidente com palavras ora rebuscadas, ora acessíveis, sua cumplicidade com o público
ouvinte e a religiosidade expressada pelo líder de uma das maiores nações católicas do
planeta fizeram a personalidade do mito, e não o contrário. É a encenação - construída
por meio de vários textos e, também, de vários discursos – que constrói o mito. Se foi de
JK a idéia de que era um predestinado à construção de Brasília ou se a transferência da
capital federal não passava de uma criação “biblicamente profética” do poeta não é
possível afirmar, se a religiosidade de ambos acenava para essa suposta profecia como
verdade ou se tudo foi uma estratégia política, só eles poderiam dizer, ou Autran
Dourado, mas o que ele escreveu em livro não declara em entrevista.
O que “enxergo” neste contexto é a possibilidade de Schmidt ter criado uma
identidade para os discursos que escrevia para Juscelino Kubitschek e, assim, ter criado
uma personagem, o “presidente JK”. Mas não uma personagem para ele, o poeta. Ao se
apagar dos discursos e ações, como “Eminência Parda”, o ghost writer permitiu o
surgimento do mito JK. Esse mito era a personagem “presidente JK” e a respectiva
função-autor.
110
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9 ANEXOS
I. Reportagem do site “No Mínino” sobre o enterro de JK
http://nominimo.ig.com.br/notitia/servlet/newstorm.notitia.presentation.NavigationServl
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Será mesmo o corpo de JK?
Timóteo Lopes
02.02.2006 | A dúvida acende seu primeiro sinal quando os esquifes de Juscelino Kubitschek e de
Geraldo Ribeiro são retirados apressadamente de duas kombis em frente à sede da revista
“Manchete”, na Rua do Russel, na zona sul do Rio de Janeiro. É madrugada de 23 de agosto de
1976, uma segunda-feira. São poucas as pessoas que àquela hora - quase quatro horas da manhã
- ainda estão ali. Parecem tensas, nervosas, estupefatas com a trágica morte do ex-presidente e
do motorista que o acompanhara durante os últimos 36 anos. Mas, para se desvencilhar da
presença ostensiva de policiais, quase todos à paisana, elas são rápidas e decididas: em não
menos de três minutos, carregam os caixões para dentro do saguão da “Manchete” e os dispõem
lado a lado, em frente a uma escultura de pedras, árvores e raízes de Franz Krajcberg.
Com a justificativa de que os cadáveres ficaram completamente desfigurados, em conseqüência da
gravidade do acidente na Via Dutra na tarde anterior, os esquifes de Juscelino e Geraldo estão - e
irão permanecer até o sepultamento - absolutamente fechados. São exatamente iguais, até na
simplicidade. A madeira de pinho envernizada de ambos é lisa, as alças, douradas. Não há um
único detalhe que os diferencie. Logo, é natural que o porteiro Gileno Almeida faça uma indagação
óbvia, mas adequada: “Em qual dos caixões está o corpo do presidente?” Diante dos mesmos
esquifes que começam a ser cobertos com cravos vermelhos, brancos e roxos, o repórter Tarlis
Batista é resoluto. Afinal, só ele, entre os presentes, pode ter alguma certeza, pois, aboletado em
uma das kombis, havia comandado o transporte dos corpos desde o Instituto Médico-Legal. Tarlis
levanta o braço o direito e, com o dedo indicador: aponta, convicto: “O presidente Juscelino está
no caixão à esquerda.”
Todos os que chegam fazem quase a mesma pergunta: “Em qual dos caixões está o corpo do
presidente?” Tudo é muito igual e ninguém parece lembrar ou tem coragem de estender uma
bandeira nacional sobre o ataúde de Juscelino Kubitschek. Até às 11h45, o corpo do político
mineiro é velado no edifício da “Manchete” e 1.892 assinaturas são registradas nos dois livros de
presença. Em seguida, sob um escaldante sol do meio-dia, um cortejo de cerca de três mil
pessoas ganha as ruas do bairro da Glória, entra no aterro do Flamengo e carrega nas mãos o que
deve ser o esquife do ex-presidente até o Aeroporto Santos Dumont, de onde seguirá para o
sepultamento no Campo da Esperança em Brasília.
O velório de Geraldo Ribeiro, no entanto, prossegue até perto das 16h, quando pouco mais de 100
pessoas levam o caixão para o Cemitério São João Batista. Ele é enterrado no túmulo 410-B da
quadra 12. Na sede da “Manchete”, a dúvida se instala de vez: em que detalhe ou em que
diferença Tarlis Batista havia se baseado para indicar, com tanta certeza, que o ataúde de
Juscelino Kubitschek fora colocado à esquerda?
Esta é apenas uma das muitas histórias que começam a emergir com a ressurreição midiática de
Juscelino Kubitschek no rastro da minissérie da TV Globo e será contada por funcionários dos
áureos tempos da Editora Bloch em livro que deve ser lançado em meados do ano. Além de narrar
o apogeu e a decadência de um império jornalístico, a publicação - que aponta indícios e
possibilidades - pode instigar ainda mais o imaginário popular sobre uma morte que ainda
permanece nebulosa, enigmática, polêmica. “Não foi uma nem duas vezes que ouvi falar de um
possível engano, uma troca despropositada”, afirma o escritor e jornalista Murilo Mello Filho.
“Logo, o corpo de Juscelino Kubitschek poderia ter sido sepultado no Rio e o de Geraldo Ribeiro no
115
Campo da Esperança, em Brasília.”
Bloch monta pelotão de resgate
Quase trinta anos depois, Murilo Mello Filho lembra, como se vivesse hoje, aquela madrugada
tensa e confusa de agosto de 1976. Ele assinala que, desde que o Chevrolet Opala verde que
trazia Juscelino Kubitschek para o Rio de Janeiro invadiu a contramão do quilômetro 162,5 da Via
Dutra batendo de frente contra uma carreta Scania que trafegava no sentido oposto e se
transformou num amontoado de ferros retorcidos e vidros espatifados, a morte do ex-presidente é
tratada com a irresponsabilidade dos boatos e a dramaticidade dos mistérios.
Murilo Mello Filho era um dos principais colunistas políticos da revista “Manchete” na época e
rememora detalhes de uma noite singular em sua vida. Enquanto se discutia se o acidente poderia
ter sido uma circunstância trágica de estrada ou um crime político, era também necessário tratar
das cerimônias fúnebres. “Estava decidido que o velório seria realizado no Museu de Arte Moderna,
mas Adolpho Bloch não se conformava”, afirma o escritor e jornalista. “Ele queria que Juscelino
fosse velado na sede da “Manchete”, onde o ex-presidente tinha seu escritório no décimo-segundo
andar.”
O dono da Editora Bloch tinha suas razões. Alegava que muitos dos que deram as costas a
Juscelino Kubitschek em anos de ostracismo queriam naquele momento se apossar de seu cadáver
e que a “Manchete” havia seu único e último refúgio. Foi, então, que teve a idéia de organizar uma
espécie de pelotão de resgate com a missão de desviar o trajeto dos dois corpos que, por volta de
3h da madrugada, eram esperados pela diretora Niomar Muniz Sodré Bittencourt no Museu de
Arte Moderna. Pediu que Murilo Mello Filho, o escritor Carlos Heitor Cony e o repórter Tarlis
Batista, entre outros, partissem para a tarefa - um vale-tudo. “Foi muito difícil”, conta Mello Filho.
“O motorista só aceitou mudar de percurso quando lhe demos uma boa gorjeta.”
Com o passar do tempo, um outro protagonista da missão de resgate - o escritor Carlos Heitor
Cony - passou a vasculhar mistérios e estranhezas que até hoje cercam o fim do ex-presidente.
Escreveu “JK - Como nasce uma estrela” e foi um dos autores de “O Beijo da Morte”, em que
sugere que as mortes de Juscelino Kubitschek, João Goulart e Carlos Lacerda foram ações
perpetradas pela Operação Condor - organização secreta criada em 1974 pelas ditaduras militares
do Cone Sul para eliminar inimigos. (Procurado por NoMínimo, o escritor informou, por meio de
sua secretária, que está de férias até o final de fevereiro, embora sua coluna continue saindo
diariamente na “Folha de S. Paulo”.)
Na única vez em que escreveu algumas linhas sobre as cerimônias fúnebres, Carlos Heitor Cony
não menciona o suborno revelado por Murilo Mello Filho, mas também reforça a desordem e a
possibilidade dos restos mortais de Juscelino Kubitschek não estarem repousando no Memorial JK,
em Brasília. “Quem não acreditar que não acredite”, diz ele na crônica intitulada “Coisas que
acontecem”, publicada em 4 de junho de 2005 na página dois da “Folha”. A sua memória do
episódio mistura realidade e ficção. Escreveu: “Do lado de fora, vi um rabecão saindo da garagem
do instituto, com o Tarlis Batista ao volante, no banco da frente, pedindo ao povo que abrisse
caminho. Meia hora após, o velório teria início com gente aos prantos, no saguão da ‘Manchete’.”
Um repórter cheio de histórias
O comandante da improvisada missão de resgate, o repórter Tarlis Batista, foi um jornalista que
construiu quase toda sua carreira na Editora Bloch. Era uma figura muitas vezes folclórica, um
repórter obstinado. “O Tarlis tinha a fama de se enredar em matérias fáceis e de conseguir
reportagens impossíveis”, recorda um de seus companheiros na “Manchete”.
Os exemplos são inúmeros. Nenhum outro jornalista brasileiro conseguiu se aproximar do cantor
Frank Sinatra, em 1980, quando ele aqui desembarcou para uma lendária apresentação no estádio
do Maracanã. Só Tarlis Batista. “O Sinatra gostou tanto dele que, além de abrir seu camarim,
posou para várias fotos a seu lado”, conta outro de seus colegas da Editora Bloch.
Tem outras histórias. Amigo de Edson Arantes do Nascimento, ele resolveu contar a vida de
descasado do rei do futebol na reportagem “Minha liberdade vale ouro”. No dia da sessão de fotos
para a capa da revista, Tarlis escolheu algumas modelos para serem fotografadas ao lado de Pelé.
Fisgou uma delas para apresentar ao rei. Era Xuxa Meneghel que, naquele dia, recebeu seu
passaporte para o estrelato.
Não só ela. Ao conhecer uma atriz iniciante que chegou ao Brasil para interpretar um pequeno
papel no filme “Feitiço no Rio”, Tarlis Batista convenceu-a de que suas chances em Hollywood
aumentariam se ela aceitasse posar de top-less nas areias da Barra da Tijuca. A atriz aceitou e,
116
logo em seguida, se transformou num furacão de sensualidade nas telas de cinema. Era Demi
Moore.
Até falecer, há três anos, Tarlis Batista sempre desconversava quando alguém lhe indagava da
possibilidade de ter se enganado ao indicar em qual dos ataúdes estava o corpo de Juscelino
Kubitschek. “Ele mudava de assunto ou procurava transformar a dúvida em troça”, declara outro
de seus colegas de redação. E, assim, a história de que os restos mortais de Juscelino Kubitschek
poderiam estar repousando no Cemitério da Paz, em Belo Horizonte - para onde os familiares de
Geraldo Ribeiro os transferiram em 1981, certos de que eram os do motorista - é um prato cheio
para todos os que acreditam em teses conspiratória e costumam desconfiar das versões oficiais
dos fatos.
Um episódio repleto de enigmas
Autor de “Brasília Kubitschek de Oliveira”, obra de referência da minissérie “JK” que está sendo
apresentada na Rede Globo, o escritor Ronaldo Costa Couto não tocou nem passou perto da
hipótese. No livro de 402 páginas, ele dedica apenas seis linhas ao velório no saguão da
“Manchete”, ressaltando apenas que Adolpho Bloch chorava como criança. Costa Couto acredita
que - como muitas teorias conspiratórias - esta também é fantasiosa. “São muitos os exemplos”,
diz ele. “Já disseram que Adolf Hitler não havia se suicidado em 1945 e estava vivo no interior do
Paraguai.”
A verdade é que, muitas vezes, a morte de personagens públicos transforma-se em num
acontecimento repleto de mistérios e interrogações. Logo, as versões conspiratórias surgem e se
propagam como fogo em gasolina. Ninguém esteve mais no olho dos furacões do que a família
Kennedy. Por muito tempo, o escritor Truman Capote sustentou que o presidente John Kennedy
não morreu no atentado de que foi vítima em 1963, mas sobrevivia numa ilha da Indonésia,
cercado por um intransponível aparato de seguranças. As incertezas não param por aí. Marilyn
Monroe teria sido assassinada por saber demais sobre os bastidores do poder. John Lennon teria
sido morto pela CIA. Jim Morrison - o libertário líder da banda The Doors - ainda estaria vivo num
país do Oriente...
O mundo político brasileiro também é um terreno fértil para as teorias conspiratórias. As mortes
de Paulo César Farias, Pedro Collor de Mello, Luiz Eduardo Magalhães e a do prefeito de Santo
André, Celso Daniel, são as que despertam mais suspeitas em capítulos recheados de inveja,
disputa, vingança e corrupção. Nenhuma, no entanto, esbanja tanta nebulosidade quanto a de
Juscelino Kubitschek. “Ele foi assassinado pela ditadura”, afirma Serafim Melo Jardim. “Não foi
acidente. Foi um crime político.”
Serafim Melo Jardim foi secretário particular de Juscelino Kubitschek até as 17h55min de 22 de
agosto de 1.976 - hora e dia em que o ex-presidente morreu na Via Dutra. Recolhido em
Diamantina, Serafim reuniu uma série de certezas para escrever “Onde está a verdade?”, livro em
que enumera detalhes, coincidências, interesses e interessados no desaparecimento de seu chefe
e amigo. Lembra aqueles tempos em que o regime militar usava e abusava de sua rígida
musculatura para afastar, constranger e até torturar inimigos, desfiando uma série de fatos
estranhos que testemunhou antes, durante e depois do velório de Juscelino Kubitschek e Geraldo
Ribeiro. “Prefiro acreditar que a troca de corpos seja um exercício de imaginação, uma fantasia”,
diz ele.
No entanto, faz algumas ressalvas. Aos ataúdes exatamente iguais e absolutamente fechados
como foram velados e desceram às sepulturas, o secretário particular adiciona mais um detalhe
inusitado: a exumação realizada em 12 de setembro de 1981 - quando os restos mortais de
Juscelino foram transferidos para o Memorial JK - não foi presenciada por nenhuma pessoa do
círculo íntimo do ex-presidente, nem familiares nem amigos. Por isso, toda vez que alguém lhe
apresenta indícios de que os corpos de Juscelino Kubitschek e do motorista Geraldo Ribeiro podem
ter sido trocados involuntariamente no velório, a dúvida acende mais um sinal. Falando pelo
telefone, de Diamantina, Serafim Melo Jardim entrincheira-se na cautela e dispara uma
interrogação: “Num episódio repleto de enigmas como o da morte de Juscelino Kubitschek, por
que não se poderia acrescentar mais este?”
[email protected]
117
II. Texto do site “Balaio de Minas” sobre o acidente que matou JK
www.balaiodeminas.com.br/.../sociedade/familias.asp?codigo=906&area=mineiros&a
rea1=sociedade - 105k
JK: Morte acidental?
Ronaldo Costa Couto (*)
Duas da tarde de 22 de agosto de 1976, domingo. No quilômetro 2 da Via Dutra, São
Paulo, JK se ajeita no banco traseiro do Opala placa BH 9326, da antiga Guanabara,
dirigido pelo fiel motorista Geraldo Ribeiro. Destino: Rio de Janeiro. Ia de avião, mas
resolvera mudar. Tira os sapatos, velho hábito, acena alegremente para o funcionário da
Editora Bloch que acaba de trazê-lo de almoço com o amigo Olavo Drummond.
Macarronada caseira, prato predileto.
Quatro horas depois, na curva do quilômetro 165, em Resende-RJ, o carro atravessa
desgovernado o canteiro central, invade a pista oposta e é colhido por enorme carreta
Scania–Vabis da cidade de Orleães, Santa Catarina, placa ZR 0938, conduzida por
Ladislau Borges, de 47 anos, que vinha do Ceará com trinta toneladas de gesso.
Esmagado e arrastado para fora da estrada, o Opala vira um amontoado de ferros
retorcidos, vidros espatifados, assentos destruídos e ensangüentados. O Brasil perde
dois filhos e ganha um mito.
Conforme a perícia, o Opala se desgovernou ao ser tocado na traseira esquerda pelo
ônibus de passageiros de prefixo 3148 da Viação Cometa, de São Paulo, placa HX
2630, dirigido por Josias Nunes de Oliveira, de 33 anos, paulista de Rancharia.
Jeito de acidente comum, fatalidade. Exceto por alguns indícios e hipóteses ainda não
comprovadas, questionamentos à perícia realizada e circunstâncias políticas da época.
Afinal, tratava-se de um presidente idolatrado pelo povo, mas cassado, perseguido e
injustiçado pela ditadura. Sombras, dúvidas. Por que optou pela viagem de carro?
Estrada defeituosa? Falha humana ou mecânica? Toque do ônibus no Opala? O
motorista Josias nega. Diz que o carro não fez a curva do quilômetro 165. Acusado, foi
duas vezes julgado e absolvido.
Alguns suspeitam de certeiro tiro de longe na cabeça do motorista Geraldo Ribeiro,
outros de explosão de bomba dentro do carro ou de sabotagem numa das rodas
dianteiras durante parada em local próximo. Também de atentado da sinistra Operação
Condor, organização secreta criada em 1974 pelas ditaduras do Cone Sul para afastar
lideranças políticas adversárias.
Em 2000, a Câmara Federal criou comissão para verificar as causas e circunstâncias do
acidente. Sete meses de trabalho, dezenas de depoimentos colhidos, discussões e
debates técnicos, repericiamento, simulações de hipóteses, viagens investigativas e de
pesquisa ao Chile, Paraguai e Estados Unidos. Conclusão: acidente de estrada, mas JK
estaria na agenda da Operação Condor. Atuaram dois novos peritos, que ratificaram as
118
conclusões oficiais de 1976, consideradas inaceitáveis pelos que crêem em morte
planejada.
Crime premeditado ou acaso? Certeza oficial, incertezas de muitos. A guerreira Sarah
Kubitschek e a filha Márcia morreram acreditando em homicídio doloso.
Anotação de JK em seu diário: “Vimos nascer 1976. Sentia-me bem. Uma sensação de
inutilização e de abandono dominava-me no instante supremo da mudança. O céu
carregado de estrelas atraiu os meus olhos. O que procurava eu nos mundos infinitos
que piscavam para mim? O que trará 76? Até a morte pode trazer”.
O escritor Ronaldo Costa Couto, doutor em história pela Universidade de ParisSorbonne, é autor, entre outros, de Brasília Kubitschek de Oliveira (Ed. Record, Rio de
Janeiro, 5ª edição nas livrarias), obra de referência da MINISSÉRIE JK, apresentada
pela Rede Globo de Televisão de janeiro a março de 2006.
119
III. Texto da “Revista Época” na internet sobre ghost writers
http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,EDG61537-6011,00.html
28/11/2003 - 18:11 | Edição nº 289
literatura
Clube de fantasmas
Os ghost-writers de políticos saem da sombra, transformam-se em personagens de
romances e reivindicam legitimidade literária
Luís Antônio Giron
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Horas depois da posse de Lula, em 1º de janeiro deste ano, o assessor do Ministério da
Cultura, Antonio Risério, foi abordado num restaurante de Brasília por José Dirceu: "O
Fidel mandou cumprimentá-lo pelo discurso. Ele o chamou de 'una obra de arte!'". O
elogio encheu de orgulho Risério, mas também o espantou. "Não disse a ninguém, mas
todo mundo ficou sabendo que o discurso era de minha autoria", comenta, bemhumorado. Esquematizado por Risério, o texto contou depois com intervenções de
André Singer, o assessor de imprensa, de Luiz Dulci, secretário-geral da Presidência, e
do presidente. "É um discurso que Lula poderia ter feito", jura Risério. "Conheço os
charmes e ironias que ele gosta de inserir nas falas." Eis a vida do ghost-writer: prestar
serviços autorais e se contentar com o nome brilhando à sombra. Cedo ou tarde, como
costuma acontecer aos gênios, seu valor pode acabar vindo à luz.
Os ghost-writers são fantasmas camaradas cuja identidade deve permanecer oculta em
benefício do indivíduo que contratou seus serviços de criação literária. Desde a
Antigüidade, eles trabalharam com líderes políticos, produzindo discursos e até cartastestamento. O faraó Tutancâmon teve um escriba de orações. Atualmente são jornalistas
ou diplomatas a serviço de um governo ou um partido. Nos últimos tempos, esses
autores espectrais têm encarnado para defender a dignidade da confraria. O atual
romance de maior sucesso no Brasil é Budapeste, de Chico Buarque, e tem como
personagem José Costa, escritor de livros por encomenda, presa de terríveis dilemas
éticos e estéticos. Acaba também de ser lançada uma novela que trata do mesmo tema, a
excelente A Sombra do Meio-Dia (TopBooks, 160 págs., R$ 23), do diplomata Sérgio
Danese. Além de bem escrita, a história de um publicitário que se converte em ghostwriter de um senador, e termina por redigir para o político até cartas de amor, reveste-se
de traços autobiográficos. Aos 49 anos, Danese, ministro do Itamaraty na Argentina, foi
ghost-writer de celebridades, entre elas seu antigo chefe, o ex-ministro das Relações
Exteriores Luiz Felipe Lampreia. Danese publicou, em 1999, o livro Diplomacia
120
Presidencial - História e Crítica, fruto de sua tese de doutorado. Neste ensaio, ele faz a
apologia do ghost-writer, que rebatiza de "speech-writer". Ele argumenta que, no Brasil,
esse profissional é chamado pejorativamente de "rapaz dos discursos", embora constitua
uma peça-chave da expressão do pensamento institucional. Danese pensa que o trabalho
do fantasma serve como "instrumento de reflexão e de sistematização de políticas",
lembra o texto publicitário e consiste em um trabalho institucional feito em equipe. O
personagem de sua novela, como José Costa, rompe o limite institucional para viver o
drama de ouvir suas palavras na boca de terceiros. "Speech-writer é uma profissão
legítima, embora o profissional corra o risco de sofrer um dano a seu patrimônio de
idéias."
Uma terceira ficção sobre o tema é A Serviço del-Rei (Rocco, 174 págs., R$ 19,50), do
mineiro Autran Dourado. Publicado pela primeira vez em 1984, o romance está de volta
às livrarias. João da Fonseca é um escritor mineiro associado a um político que acaba
virando presidente da República. "É um aproveitamento romanesco de minha
experiência", reconhece o autor. Dourado foi secretário de imprensa do presidente
Juscelino Kubitschek entre 1955 e 1960. "Escrevi discursos para JK, embora o principal
ghost-writer dele fosse Augusto Frederico Schmidt (1906-1965), seu chefe-de-gabinete,
cujo estilo podia ser detectado na fala do presidente. JK pegava o discurso direto, sem
olhar." Dourado chegou a fazer discursos para o próprio Schmidt, imitando-lhe o jeito
de escrever. "Fui ghost do ghost", brinca. "JK era um caipira que amava literatura.
Como não tinha cultura, cercava-se de escritores." Fonseca padece da deformação do
poder, e sua escrita se escraviza à ambição. O problema dos três ghost-writers de ficção
reside na autoralidade. Eles não contêm o ego que transborda nas frases que redigem
para outrem. Mesmo porque os outros terminam por lhes pedir textos que nada têm a
ver com política, como ensaios, romances e sonetos.
#Q:Clube de Fantasmas - Continuação:#
"Sacanagem. Agora que me aposentei como ghost-writer, eles entram em moda!" O
comentário é de Eduardo Graeff, autor de discursos do presidente Fernando Henrique
Cardoso em oito anos de mandato. "Escrevi só para o FHC, porque fui orientando dele e
conhecia seu estilo de cor", confessa. "Não houve dúvida moral, já que eu acreditava
nele." Risério tampouco sente qualquer tipo de impasse. "Não tenho dilema autoral.
Escrevo muito discurso. Hoje me orgulho de ser ghost - melhor ainda, logógrafo, como
diziam os gregos - e isso não interfere em minha obra literária." Risério é autor da
expressão "Do-in antropológico", popularizada pelo ministro da Cultura, Gilberto Gil.
"É uma expressão que Gil poderia usar, pois ele já se tratou com do-in", comenta.
Risério não tem feito discursos para Lula: "O principal logógrafo do presidente é
Dulci". Luiz Dulci foi crítico literário em Belo Horizonte, possui uma pena bombástica
e costuma rechear os pronunciamentos de Lula com imagens eruditas. "Mas, na posse,
Lula citou afoxés da Bahia e tambores do Maranhão", diverte-se Risério. "Sarney me
ligou para elogiar a parte dos tambores! Como ele ficou sabendo, não sei."
Segundo o jornalista Carlos Figueiredo, a chave do negócio do autor sombra está na
qualidade de estilo e na confiança do cliente. "Ele deve ter a certeza de que o ghostwriter jamais, nem sob tortura persa, revelará a autoria de discursos e artigos que
circulam pela imprensa ou pela história", ensina. Figueiredo também se confessa ghostwriter, foi secretário do político paulista Franco Montoro, mas não abre para quem
produziu discursos. Prefere ensinar como fazê-los. Para tanto, acaba de lançar 100
121
Discursos Históricos Brasileiros (Editora Leitura, 552 págs., R$ 39), uma coletânea de
falações que vão de Pero Vaz de Caminha a Lula. Do volume, consta a carta-testamento
de Getúlio Vargas, escrita de fato pelo jornalista João Soares Maciel Filho (1904-1975),
colega de outro espectro do verbo, Lourival Fontes. É de Maciel a frase: "Serenamente
dou o primeiro passo no caminho da eternidade e saio da vida para entrar na História".
Getúlio só pediu que ela principiasse com o advérbio "serenamente". Maciel não sabia
que ele iria se matar quando o chamou para redigir o documento, certa madrugada. Ao
ser informado do suicídio de Getúlio, na manhã de 24 de agosto de 1954, teve uma crise
nervosa - fato que não o impediu de revelar que havia sido o autor da mensagem mais
trágica da história brasileira. Maciel daria um personagem de romance capaz de
rivalizar com os de Chico, Danese e Dourado. Difícil é evitar hoje ser assombrado por
ghost-writers. "Virou uma função tão necessária que até as editoras contratam-nos para
reescrever livros de autores de peso", diz Figueiredo. Atire a primeira pedra quem nunca
foi copidescado.
#Q:Conheça alguns autores que são ghost-writer ou escreveram sobre ele:#
122
IV. Texto da “Revista Isto É” no site “Terra” sobre o homem que teria levado JK a
prometer a construção de Brasília
http://www.terra.com.br/istoe/biblioteca/brasileiro/lideres/est1.htm
1) Juscelino Kubitschek
"Abril de 1955. O homem que havia modernizado Minas Gerais agora prometia fazer o País
crescer 50 anos em cinco. Para inaugurar a campanha rumo à Presidência, nada de centros
urbanos. Marcou o primeiro comício para Jataí, cidadezinha de 15 mil habitantes no sudoeste
de -Goiás. Chovia a cântaros quando ele começou a discursar no galpão de uma oficina
mecânica. Apresentou um plano de 30 metas de desenvolvimento. "Acima de tudo, pretendo
respeitar a Constituição", finalizou o discurso. "E agora pergunto a vocês: além disso, o que
acham que eu devo fazer?" Um rapaz, conhecido como Toniquinho, tomou coragem: "Vossa
Excelência sabia que a Constituição de 1891 estabelece a transferência da capital para o
Planalto Central? Se for eleito, cumprirá também esta lei?"
ISTOÉ localizou em Goiânia o rapaz que interpelou o candidato a presidente do PSD.
"Juscelino ficou assustado com a pergunta. Demorou um pouco, mas respondeu que assumiria
o compromisso de construir a nova capital", lembra Antônio Soares Neto, o Toniquinho, hoje
com 74 anos. "Recebi o convite para a inauguração da cidade. Me sinto um pouco responsável
por tudo." Brasília é a meta-síntese de um governo que levou o País à euforia. Até quem
nasceu depois tem saudades da era JK (1956 a 1961). O ex-presidente apontava o otimismo
como sua principal virtude. Talvez porque ele próprio tivesse superado incontáveis obstáculos
antes de fazer política.
A começar pela infância pobre em Diamantina (MG), onde nasceu a 12 de setembro de 1902.
Não era por andar descalço, sem dinheiro para comprar calçados, que Juscelino Kubitschek de
Oliveira chamava a atenção. O que impressionava era o sobrenome estranho, herança do
bisavô materno, um tcheco que desembarcou no Brasil em 1830. Nonô, apelido dentro de casa,
mal teve contato com o pai, mascate que morreu de tuberculose quando ele tinha dois anos. A
educação rígida veio do convívio com a mãe, dona Júlia, uma professora primária que
caminhava nove quilômetros todas as manhãs para dar aulas no município vizinho.
Aos 17 anos, foi para Belo Horizonte, onde os Correios haviam aberto concurso para
telegrafista. Ficou oito anos no emprego, até se formar em Medicina em 1927. Consultório
aberto, parecia ter o destino traçado quando o governador Benedito Valadares o convidou para
trabalhar como chefe de gabinete.
Refrigerantes ao povo
Valadares se impressionara com a dedicação do doutor Juscelino aos feridos na Revolução
Constitucionalista de 1932. Daí à nomeação como prefeito de Belo Horizonte, em 1940, foi um
pulo. Executou obras de grande repercussão e ganhou fama de modernizador. Em 1950, JK
lançou-se ao governo de Minas Gerais. Vencer as eleições não foi problema. Nem fundar a
Cemig, empresa estatal encarregada de produzir e distribuir energia elétrica. Dias difíceis ele
viveu quando Getúlio Vargas se suicidou, em 1954. Na avenida Afonso Pena, no centro da
capital mineira, oradores de plantão estimulavam a multidão em polvorosa. Cheio de artimanha,
JK pediu calma e conduziu a massa até os jardins do Palácio da Liberdade. Em seguida,
mandou servir refrigerantes, deixando todos de garrafa e canudo na mão. Os espíritos se
desarmaram.
O estilo conciliador despertava inveja. Até adversários admitiam: bastava conhecer sua
simpatia para baixar a guarda. Que o diga o jurista Miguel Reale, fiel amigo de Adhemar de
Barros. O adhemarismo era forte em São Paulo, mas tinha tênue repercussão em Belo
Horizonte. Ao instalar um novo diretório do PSP na cidade, Reale organizou uma festa com
muita música, fogos de artifício e dança ao ar livre - no melhor estilo populista que
caracterizava o partido. "A nossa festança ia às mil maravilhas, com vivas a Adhemar, quando
123
repentinamente surge Juscelino em visita de cordialidade", conta o jurista. Enquanto os
paulistas permaneciam quietos, arredios à alegria popular, Nonô tirou as morenas mais
assanhadas para dançar, roubando a cena. Dentro em pouco, só se ouviam vivas a ele.
"Era mesmo um ótimo pé-de-valsa", reforça o ex-secretário particular Serafim Jardim, atual
presidente da Casa de Juscelino Kubitschek em Diamantina. O jeito amável e carismático,
aliado a promessas desenvolvimentistas, explica os milhões de votos nas eleições
presidenciais de 1955. Alegando que ele não obtivera maioria absoluta - ganhara com 36% dos
votos -, a oposição, comandada pela UDN, tentou impedir a posse. Só não teve êxito porque o
marechal Henrique Teixeira Lott deu um contragolpe no dia 11 de novembro. Mal assumiu o
governo, JK enfrentou a resistência de oficiais da Aeronáutica que rumaram para o Pará, mas
se renderam diante da falta de apoio dentro das próprias Forças Armadas. Mostrando que seria
o presidente da concórdia, JK deu anistia a todos os golpistas.
Quase aos tapas
Além de desenvolver a indústria automobilística, JK abriu 20 mil quilômetros de rodovias, três
mil de ferrovias, aumentou 15 vezes a produção de petróleo e construiu as hidrelétricas de
Furnas e Três Marias. E ergueu a nova capital em três anos e dez meses. "JK ia a Brasília ao
menos uma vez por semana e chamava os peões pelo nome", lembra o subchefe da Casa
Civil, Affonso Heliodoro dos Santos. Por trás do grande homem, a discreta companheira. Dona
Sarah, com quem ele se casou em 1931, quase protagonizou uma cena hilariante na entrega
da faixa presidencial a Jânio Quadros em 1961. Dizia-se que Jânio o acusaria de corrupção.
Em entrevista a ISTOÉ, Márcia Kubitschek, a filha mais velha - ele também adotou uma
menina, Maria Estela -, conta que JK carregava dois discursos no bolso: um desejando bom
governo, outro rebatendo as críticas. "Se Jânio se metesse a fazer denúncias, meu pai partiria
para cima dele. Eu e minha mãe também íamos querer briga com Tutu e dona Eloá (filha e
esposa de Jânio)", disse Márcia. Para alívio da nação, predominou a diplomacia.
Senador por Goiás, chegou a se candidatar a presidente em 1965, com o lema "cinco anos de
agricultura para 50 de fartura". Mas o regime militar o cassou e ele deixou o Brasil. Afastado da
vida pública, dava palestras a executivos de bancos e mantinha um romance secreto com a
socialite carioca Maria Lúcia Pedroso - especula-se que a relação tenha durado 18 anos.
Comprou uma fazenda em Luziânia (GO), só para ficar próximo a Brasília. "Acordava o pessoal
às seis da manhã com um sino trazido de Diamantina. Gostava de montar a cavalo e passear
na fazenda conosco", conta Márcia. A 22 de agosto de 1976, numa viagem pela via Dutra, que
liga São Paulo ao Rio de Janeiro, seu Opala se espatifou contra uma carreta que vinha em
sentido contrário. Até hoje, muita gente acredita que ele foi assassinado.
VOCÊ SABIA?
Foi de JK o primeiro avião presidencial brasileiro, o quadrimotor Viscount. Certa vez, voando
sobre o Nordeste, uma das turbinas parou de funcionar. Tranquilo, foi para o seu aposento e
vestiu um pijama. Em seguida, outros dois motores falharam. Sem esperança de sobreviver,
ele assinou a promoção dos militares a bordo para aumentar a pensão das viúvas. Com
apenas uma turbina, o avião pousou são e salvo. JK ainda saiu sorridente.
VOCÊ SABIA?
Na Presidência, levava para o gabinete uma marmita preparada por dona Sarah. Até o dia em
que ela cansou de fazer o prato. Aí JK passou a almoçar em casa. Não se esquecia de
convidar os assessores, que abusavam da comida mineira: arroz com quiabo, couve e galinha
o molho pardo.
124
V. Transcrição do discurso feito por JK na inauguração de Brasília e divulgado no
site oficial do jornalista Franklin Martins
http://www.franklinmartins.com.br/estacao_historia_artigo.php?titulo=discurso-de-jkna-inauguracao-de-brasilia-1960
A construção de Brasília em menos de cinco anos foi a marca registrada do
governo Juscelino Kubitschek. A transferência da capital enfrentou enorme resistência,
especialmente da oposição da UDN, comandada por Carlos Lacerda, mas terminou
prevalecendo. Foi decisiva para que o Brasil deixasse de ser uma “civilização de
caranguejos ”, na qual quase toda a população concentrava-se no litoral, e se procedesse
à ocupação do interior do país. O discurso abaixo foi proferido por JK na sessão solene
de instalação do governo no Palácio do Planalto, no dia 21 de abril de 1960. Naquele
momento, a cidade, na verdade, ainda era um acampamento, com poucos prédios
construídos e quase tudo por fazer. Mas o ato, simbolicamente, marcou a transferência
da capital.
Não me é possível traduzir em palavras o que sinto e o que penso nesta hora, a mais
importante de minha vida de homem público. A magnitude desta solenidade há de
contrastar por certo com o tom simples de que se reveste a minha oração.
Dirigindo-me a todos os meus concidadãos, de todas as condições sociais, de todos os
graus de cultura, que, dos mais longínquos rincões da Pátria, voltais os olhos para a
mais nova das cidades que o Governo vos entrega, quero deixar que apenas fale o
coração do Vosso Presidente.
Não vos preciso recordar, nem quero fazê-lo agora, o mundo de obstáculos que se
afiguravam insuportáveis para que o meu Governo concretizasse a vontade do povo,
expressa através de sucessivas constituições, de transferir a Capital para este planalto
interior, centro geográfico do País, deserto ainda há poucas dezenas de meses.
Não nos voltemos para o passado, que se ofusca ante esta profusa radiação de luz que
outra aurora derrama sobre a nossa Pátria.
Quando aqui chegamos, havia na grande extensão deserta apenas o silêncio e o mistério
da natureza inviolada. No sertão bruto iam-se multiplicando os momentos felizes em
que percebíamos tomar formas e erguer-se por fim a jovem Cidade. Vós todos, aqui
presentes, a estais vendo, agora, estais pisando as suas ruas, contemplando os seus belos
edifícios, respirando o seu ar, sentindo o sangue da vida em suas artérias.
Somente me abalancei a construí-la quando de mim se apoderou a convicção de sua
exeqüibilidade por um povo amadurecido para ocupar e valorizar plenamente no
território que a Providência Divina lhe reservara. Nosso parque industrial e nossos
quadros técnicos apresentavam condições e para traduzir no betume, no cimento e no
aço as concepções arrojadas da arquitetura e do planejamento urbanístico modernos.
Surgira uma geração excepcional, capaz de conceber e executar aquela "arquitetura em
escala maior, a que cria cidades e, não, edifícios", como observou um visitante ilustre.
Por maior que fosse, no entanto, a tentação de oferecer oportunidade única a esse grupo
magnífico, em que se destacam Lúcio Costa e Oscar Niemeyer, não teria ela bastado
para decidir-me a levar adiante, com determinação inflexível, obra de tamanha
envergadura. Pesou, sobretudo, em meu ânimo, a certeza de que era chegado o
momento de estabelecer o equilíbrio do País, promover o seu progresso harmônico,
prevenir o perigo de uma excessiva desigualdade no desenvolvimento das diversas
125
regiões brasileiras, forçando o ritmo de nossa interiorização.
No programa de metas do meu Governo, a construção da nova Capital representou o
estabelecimento de um núcleo, em torno do qual se vão processar inúmeras realizações
outras, que ninguém negará fecundas em conseqüências benéficas para a unidade e a
prosperidade do País.
Viramos no dia de hoje uma página da História do Brasil. Prestigiado, desde o primeiro
instante, pelas duas Câmaras do Congresso Nacional e amparado pela opinião pública,
através de incontável número de manifestações de apoio, sinceras e autenticamente
patrióticas, dos brasileiros de todas as camadas sociais que me acolhiam nos pontos
mais diversos do território nacional, damos por cumprido o nosso dever mais ousado; o
mais dramático dever.
Só nos que não conheciam diretamente os problemas do nosso Hinterland percebemos,
a princípio, dúvida, indecisão. Mas no País inteiro sentimos raiar a grande esperança, a
companheira constante em toda esta viagem que hoje concluímos; ela amparou-nos a
todos, a mim e a essa esplêndida legião que vai desde Israel Pinheiro, cujo nome estará
perenemente ligado a este cometimento, até ao mais obscuro, ao mais ignorado desses
trabalhadores infatigáveis que tornaram possível o milagre de Brasília.
Em todos os instantes nas decepções e nos entusiasmos, levantando o nosso ânimo e
multiplicando as nossas forças, mais de que qualquer outro amparo ou guia, foi a
Esperança valimento nosso. Um homem, cujos olhos morreram e ressuscitaram muitas
vezes na contemplação da grandeza - aludo, novamente, a André Malraux - viu em
Brasília a Capital da Esperança.
Seu dom de perceber o sentido das coisas e de encontrar a expressão justa fê-lo
sintetizar o que nos trouxe até aqui, o que nos deu coragem para a dura travessia, que foi
a substância, a matéria-prima espiritual desta jornada. Olhai agora para a Capital da
Esperança do Brasil. Ela foi fundada, esta cidade, porque sabíamos estar forjada em nós
a resolução de não mais conter o Brasil civilizado numa fímbria ao longo do oceano, de
não mais vivermos esquecidos da existência de todo um mundo deserto, a reclamar
posse e conquista.
Esta cidade, recém-nascida, já se enraizou na alma dos brasileiros; já elevou o prestígio
nacional em todos os continentes; já vem sendo apontada como demonstração pujante
da nossa vontade de progresso, como índice do alto grau de nossa civilização; já a
envolve a certeza de uma época de maior dinamismo, de maior dedicação ao trabalho e
à Pátria, despertada, enfim, para o seu irresistível destino de criação e de força
construtiva.
Deste Planalto Central, Brasília estende aos quatro ventos as estradas da definitiva
integração nacional: Belém, Fortaleza, Porto Alegre, dentro em breve o Acre. E por
onde passam as rodovias vão nascendo os povoados, vão ressuscitando as cidades
mortas, vai circulando, vigorosa, a seiva do crescimento nacional.
Brasileiros! Daqui, do centro da Pátria, levo o meu pensamento a vossos lares e vos
dirijo a minha saudação. Explicai a vossos filhos o que está sendo feito agora. É
sobretudo para eles que se ergue esta cidade síntese, prenúncio de uma revolução
fecunda em prosperidade. Eles é que nos hão de julgar amanhã.
Neste dia - 21 de abril - consagrado ao Alferes Joaquim José da Silva Xavier, o
Tiradentes, ao centésimo trigésimo oitavo ano da Independência e septuagésimo
primeiro da República, declaro, sob a proteção de Deus, inaugurada a cidade de
Brasília, Capital dos Estados Unidos do Brasil.
126
VI. Divulgação do livro “Gaiola Aberta – Tempos de JK e Schmidt” publicada pelo
site da “Editora Rocco”
http://www.editoras.com/rocco/022326.htm
Às vésperas da indicação do candidato do PSD à presidência da República, Carlos
Lacerda declarou na televisão: "Juscelino não será candidato, se for candidato não será
eleito, se for eleito não tomará posse, se tomar posse não governará". No dia seguinte,
na sede carioca do partido, JK deu a resposta: "Deus poupou-me o sentimento do
medo". Foi um delírio. A assistência não parava de aplaudir, de gritar. JK foi candidato,
foi eleito, tomou posse, fez o que muitos consideram o maior governo que o Brasil já
teve.
Hoje, Autran Dourado lembra com simpatia o episódio em seu livro Gaiola aberta Tempos de JK e Schmidt. A frase não era de Juscelino, mas dele, que ajudava o poeta
Augusto Frederico Schmidt a preparar os discursos do criador de Brasília. Schmidt
perguntou a Autran se o homem de Diamantina tinha mesmo toda a coragem "que
arrotava" e o romancista afirmou: "tem sim! Pode escrever esta frase aí".
O lançamento de Gaiola aberta é um momento para a História, pois Autran Dourado
ganhou de maneira extremada a confiança e a intimidade de Juscelino. Muitas vezes
despachava com ele à beira da banheira, o presidente em pleno banho. Há décadas, os
amigos insistiam para que Autran escrevesse suas memórias, capazes de remexer em
dolorosas feridas e arrepiantes pormenores dos bastidores do Poder. O romancista
recusava, dizendo que não guardara documentos e, assim, não poderia provar o que
contasse. Mas acabou sendo convencido, com o argumento de que, ao lançar o livro, ele
já estaria morto ou velho demais, portanto acima das contestações.
Gaiola aberta é uma preciosidade para os estudiosos do período anterior ao Golpe de 64
e para as pessoas interessadas no Brasil. Porém não é um livro de História. Não cita uma
data sequer. Trata-se, antes, da psicologia do homem que mudou os destinos do Brasil.
Aquele sorriso otimista que era seu logotipo em nada se confirmava fora dos olhos do
público. Na intimidade, Juscelino às vezes amanhecia "com a avó atrás do toco, botando
fumaça pelas ventas". Mulherengo, chegava ao requinte de descrever aventuras em um
caderninho que, mais tarde, perdeu. As perigosas recordações foram recuperadas ao
custo de uma indicação de emprego feito pelo próprio presidente.
Autran mostra que a gênese da ditadura militar de 64 não ocorreu no governo João
Goulart, mas no de JK, com várias tentativas de golpe magistralmente desmanchadas
pelo criador de Brasília. Na época, as idéias que desembocaram no AI-5 já eram
cochichadas pelos generais e por personalidades como Francisco Campos. Autran viaja,
também, pela corrupção gerada pelo Poder e pelos que giram em torno dele. Quem quer
entender JK não pode perder esta oportunidade. E nem quem quer entender Autran
Dourado e as razões que o levaram a escrever maravilhas como A serviço del-Rei e seus
demais romances.
127
Sobre o autor
Waldomiro Autran Dourado nasceu em Patos de Minas, Minas Gerais, em 1926. É
casado e mora há mais de 40 anos no Rio de Janeiro. Nenhum outro escritor brasileiro
possui os prêmios e honrarias do romancista. Há vários livros seus traduzidos e trinta
teses de mestrado e doutorado sobre sua obra. Seu romance Ópera dos mortos foi
escolhido pela Unesco para integrar a sua Coleção de Obras Representativas da
Literatura Universal, e Os sinos da agonia adotado para os exames de Agregação das
Universidades Francesas. Tem nove prêmios no Brasil e um na Alemanha, o Prêmio
Goethe de Literatura. Em agosto último, recebeu o Prêmio Camões pelo conjunto de sua
obra. A Rocco reeditou as obras selecionadas e revistas pelo autor, entre romances,
contos e ensaios As capas das reedições são feitas especialmente pelo gravurista Ciro
Fernandes.
Obras reeditadas pela Rocco
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Ópera dos mortos, romance
Os sinos da agonia, romance
A barca dos homens, romance
O risco do bordado, romance
Um artista aprendiz, romance
Uma poética de romance: matéria de carpintaria, ensaio
Novelário de Donga Novais, romance
A serviço del-Rei, romance
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VII. Memorial do Plano Piloto de Brasília publicado pelo site “Guia de Brasília”
http://www.guiadebrasilia.com.br/historico/i_mmrial.htm
Memorial do plano piloto de Brasília
Transcrevemos o memorial de Lúcio Costa, vencedor do concurso do Plano-Piloto de Brasília.
A introdução desse relatório — verdadeira obra de arte — demonstrou o elevado espírito do
autor:
Desejo inicialmente desculpar-me perante a Direção da Companhia Urbanizadora e a
Comissão Julgadora do Concurso pela apresentação sumária do partido aqui sugerido para a
nova Capital e também justificar-me.
Não pretendia competir e, na verdade, não concorro; apenas me desvencilho de uma solução
possível, que não foi procurada, mas surgiu, por assim dizer, já pronta.
Compareço, não como técnico devidamente aparelhado, pois nem sequer disponho de
escritório, mas como simples "maquis" no desenvolvimento da idéia apresentada, senão
eventualmente na qualidade de mero consultor. E se procedo assim cândidamente, é porque
me amparo num raciocínio igualmente simplório; se a sugestão é válida, êstes dados,
conquanto sumários na sua aparência, já serão suficientes, pois revelarão que, apesar da
espontaneidade original, ela foi, depois, intensamente pensada e resolvida; se não o é, a
exclusão se fará mais fàcilmente, e não terei perdido meu tempo nem tomado o tempo de
ninguém.
A liberação do acesso ao concurso o reduziu de certo modo à consulta àquilo que de fato
importa, ou seja à concepção urbanística da cidade pròpriamente dita, porque esta não será,
no caso, uma decorrência do planejamento regional, mas a causa dêle; a sua fundação é que
dará ensejo ao ulterior desenvolvimento planejado da região. Trata-se de um ato desbravador,
nos moldes da tradição colonial. E o que se indaga é como no entender de cada concorrente
uma tal cidade deve ser concebida.
Neste momento Lúcio Costa descreve sumàriamente o tipo de cidade que se vai criar. Êsse
trecho que adiante vamos transcrever é de um grande alcance, naturalmente só perceptível
aos espíritos evoluídos, aos homens de idéias avançadas, aos contemporâneos do futuro.
Temos repetido o quanto podemos nestes últimos anos: Brasília não é uma cidade qualquer,
uma cidade igual a tantas outras, para servir de palco aos tantos erros existentes, nas velhas e
desorganizadas comunidades; em Brasília não deverão se desenvolver os sistemas de vida já
definitivamente banidos das nações civilizadas nem em Brasília deveriam as autoridades
consentir na implantação dos mesmos métodos rotineiros em vigor por êsse Brasil afora;
Brasília não é uma cidade qualquer, mas a Capital do Brasil, planejada e idealizada para tal.
Mas a autoridade de LUCIO COSTA melhor faria entender os recalcitrantes:
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Ela deve ser concebida não como simples organismo capaz de preencher, satisfatoriamente,
sem esfôrço as funções vitais próprias de UMA CIDADE MODERNA QUALQUER, não apenas
como URBS, mas como CIVITAS, possuidora dos atributos inerentes a uma Capital. E para
tanto, a condição primeira é achar-se o urbanista iimbuído de UMA CERTA DIGNIDADE E
NOBREZA DE INTENÇÃO, porquanto desta atividade fundamental decorrem a ordenação e o
senso de conveniência e medida capazes de conferir ao conjunto projetado o desejável caráter
monumental. Monumental não no sentido de ostentação, mas no sentido da expressão
palpável, por assim dizer, consciente, daquilo que vale e significa. Cidade planejada para o
trabalho ordenado e eficiente, mas ao mesmo tempo cidade viva e aprazível, própria ao
devaneio e à especulação intelectual, capaz de torna-se, com o tempo, além de centro de
govêrno e administração, num foco de cultura das mais lúcidas do país.
O intróito do memorial de Lúcio Costa já indica, aos mais inteligentes, a grande sabedoria do
mestre, do filósofo, do sociólogo.
E continua LUCIO COSTA:
Dito isto, vejamos como nasceu, se definiu e resolveu a presente solução:
1. Nasceu do gesto primário de quem assinala um lugar ou dêle toma posse:-- dois eixos
cruzando-se em ângulo reto, ou seja, o próprio sinal da Cruz.
3. Procurou-se depois a adaptação à topografia local, ao escoamento natural das águas, à
melhor orientação, arqueando-se um dos eixos a fim de contê-lo no triângulo equilátero que
define a área urbanizada.
3. E houve o propósito de aplicar os princípios francos da técnica rodoviária — inclusive a
eliminação de cruzamentos — à técnica urbanística, conferindo-se ao eixo arqueado,
correspondente às vias naturais de acesso, a função circulatória-tronco, com pistas centrais de
velocidade e pistas laterais, para o tráfego local, e dispondo-se ao longo dêsse eixo o grosso
dos setores residenciais.
4. Como decorrência dessa concentração residencial, os centros cívico e administrativo, o setor
cultural, o centro de diversões, o centro esportivo, o setor administrativo municipal, os quartéis,
as zonas destinadas à armazenagem, ao abastecimento e às pequenas indústrias locais, e, por
fim, a estação ferroviária, foram-se naturalmente ordenando e dispondo ao longo do eixo
transversal que passou a ser assim o eixo-monumental do sistema. Lateralmente à interseção
dos dois eixos, mas participando funcionalmente e em têrmos de composição urbanística do
eixo-monumental, localizaram-se o setor bancário e comercial, o setor de escritórios de
emprêsas e profissões liberais e ainda amplos setores de varejo comercial.
130
5. O cruzamento dêsse eixo monumental, de cota inferior, com eixo rodoviário-residencial
impôs a criação de uma grande plataforma liberta do tráfego que não se destina ao
estacionamento ali, remanso onde se concentrou lògicamente o centro de diversões da cidade,
com os cinemas, os teatros, os restaurantes, etc.
6. O tráfego destinado aos demais setores prossegue, ordenado em mão única na área inferior
coberta pela plataforma e entalada nos dois topos, mas aberta nas faces maiores, área
utilizada em grande parte para o estacionamento de veículos onde se localizou a estação
rodoviária interurbana, acessível aos passageiros pelo nível superior da plataforma. Apenas as
pistas de velocidade mergulham, já então subterrâneas, na parte central dêsse piso inferior que
se espraia em declive até nivelar-se com a esplanada do setor dos Ministérios.
7. Dêsse modo e com a introdução de três trevos completos em cada ramo do eixo rodoviário e
outras tantas passagens de nível inferior, o tráfego de automóveis e ônibus se processa tanto
na parte central quanto nos setores residenciais sem qualquer cruzamento. Para o tráfego de
caminhões estabeleceu-se um sistema secundário autônomo com cruzamentos sinalizados,
mas sem cruzamento ou interferência alguma com o sistema anterior, salvo acima do setor
esportivo, e que a cede aos edifícios do setor comercial ao nível do subsolo, contornando o
centro cívico, em cota inferior, com galerias de acesso previstas no terrapleno.
8. Fixada a rêde geral do tráfego de automóvel, estabeleceram-se tanto nos setores centrais
como nos residenciais tramas autônomas para o trânsito local dos pedestres a fim de garantirlhes o uso livre do chão, sem, contudo,levar tal separação a extremos sistemáticos e
antinaturais, pois não se deve esquecer que o automóvel, hoje em dia, deixou de ser o inimigo
inconciliável do homem, domesticou-se, já faz, por assim dizer, parte da família. Êle só se
"desumaniza, readquirindo vis-a-vis do pedestre, feição ameaçadora e hostil, quando
incorporado à massa anônima do tráfego". Há, então, que separá-lo, mas sem perder de vista
que, em determinadas condições e para comodidade recíproca, a coexistência se impõe...
9. Veja-se agora como, nesse arcabouço de circulação ordenada, se integram e articulam os
vários setores. Destacam-se, no conjunto, os edifícios destinados aos podêres fundamentais
que, sendo em número de três e autônomos, encontraram no triângulo equilátero, vinculado à
arquitetura da mais remota antiguidade, a forma elementar apropriada para contê-los. Criou-se,
então, um terrapleno triangular, com arrimo de pedra à vista, sobrelevado na campina
circunvizinha, a que se tem acesso pela própria rampa da auto-estrada que conduz à
residência e ao aeroporto. Em cada ângulo dessa praça — PRAÇA DOS TRÊS PODERES —
localizou-se uma das casas, ficando as do govêrno e do Supremo Tribunal na base, a do
Congresso no vértice, com frente igualmente para uma esplanada ampla, disposta num
segundo terrapleno, de forma retangular e nivel mais alto, de acôrdo com a topografia local,
igulamente arrimado de pedras em todo o seu perímetro. A aplicação, em têrmos atuais, dessa
técnica oriental milenar dos terraplenos garante a coesão do conjunto e lhe confere uma ênfase
monumental imprevista. Ao longo dessa esplanada — o Mall dos inglêses, extenso gramado
destinado a pedestres, a paradas e a desfiles, foram dispostos os ministérios e autarquias. Os
das Relações Exteriores e Justiça ocupando os cantos infericres, contíguos ao edifício do
Congresso e com enquadramento condigno; os Ministérios militares, constituindo uma praça
autônoma, e os demais ordenados em sequência — todos com áreas privativas de
estacionamento — sendo o último o da Educação, a fim de ficar vizinho do setor cultural,
tratado à maneira de parque para melhor ambientação dos museus, da biblioteca, do
planetário, das academias, dos institutos, etc., setor êsse também contíguo à ampla área
131
destinada à Cidade Universitária com o respectivo Hospital de Clínicas e onde também se
prevê a instalação do Observatório. A Catedral ficou igualmente localizada nessa esplanada,
mas numa praça autônoma disposta lateralmente, não só por questão de protocolo, uma vez
que a Igreja é separada do Estado, como por questão de escala, tendo-se em vista valorizar o
monumento e, ainda, principalmente por outra razão de ordem arquitetônica: a perspectiva de
conjunto da esplanada deve prosseguir desimpedida até além da plataforma, onde os dois
eixos se cruzam.
10. Nesta plataforma, onde, como se viu anteriormente, o tráfego é apenas local, sitou-se então
o centro de diversões da cidade ( mistura, em têrmos adequados, de Piccadilly Circus, Times
Square e Champs Elysées). A face da platafoma debruçada sôbre o setor cultural e a
esplanada dos Ministérios, não foi edificada, com exceção de uma eventual casa de chá e da
Ópera, cujo acesso tanto se faz pelo próprio setor de diversões, como pelo setor cultural
contíguo, em plano inferior. Na face fronteira foram concentrados os cinemas e teatros, cujo
gabarito se fêz baixo e uniforme, constituindo, assim, o conjunto dêles, um corpo arquitetônico
contínuo, com galeria, amplas calçadas, terraços e cafés, servindo as respectivas fachadas em
tôda a altura de campo livre para a instalação de painéis luminosos de reclame. As várias
casas de espetáculo estarão ligadas entre si por travessas no gênero tradicional da rua do
Ouvidor, das vielas venezianas ou de galerias cobertas (arcadas) e articuladas a pequenos
pátios com bares e cafés, e "loggias" na parte dos fundos, com vista para o parque, tudo no
propósito de propiciar ambiente adequado ao convívio e à expansão. O pavimento térreo do
setor central dêsse conjunto de teatros e cinemas manteve-se vazado em tôda a sua extensão,
salvo os núcleos de acesso aos pavimentos superiores, a fim de garantir continuidade à
perspectiva, e os andares se previram envidraçados nas duas faces, para que os restaurantes,
clubes, casas de chá, etc, tenham vista de um lado para a esplanada inferior, e do outro para o
aclive do parque no prolongamento do eixo monumental e onde ficaram localizados os hotéis
comerciais e de turismo,e , mais acima, para a tôrre monumental das estações radioemissoras
e de televisão tratada como elemento plástico integrado na composição geral. Na parte central
da plataforma, porém, disposto lateralmente, acha-se o saguão da estação rodoviária com
bilheteria, bares, restaurantes, etc, construção baixa, ligadas por escadas rolantes ao hall
inferior de embarque, separado por envidraçamento do cais pròpriamento dito. O sistema de
mão única obriga os ônibus, na saída, a uma volta, num ou noutro sentido, fora da área coberta
pela plataforma, o que permite ao viajante uma última vista ao eixo monumental da cidade
antes de entrar no eixo rodoviário-residencial — despedida psicològicamente desejável.
Previram-se igualmente nesta extensa plataforma destinada principalmente , tal como no piso
érreo, ao estacionamento de automóveis, duas amplas praças privativas de pedestres, uma
fronteira ao teatro da ópera e outra, simètricamente disposta, em frente a um pavilhão de pouca
altura debruçado sôbre os jardins do setor cultural e destinado a restaurante, bar e casa de
chá. Nestas praças, as pistas de rolamento, sempre de sentido único, foi ligeiramente
sobrelevado em larga extensão para o livre cruzamento dos pedestres num e noutro sentido, o
que permitirá acesso franco e direto tanto aos setores do varejo comercial quanto ao setor dos
bancos e escritórios.
11. Lateralmente ao setor central de diversões, e articulados a êle, encontram-se dois grandes
núcleos destinados, exclusivamente, ao comércio - lojas e magazines, e dois setores distintos,
o bancário-comercial e o dos escritórios para profissões liberais, representações e emprêsas,
onde foram localizados respectivamente o Banco do Brasil e a sede dos Correios e Telégrafos.
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Êsses núcleos e setores são acessíveis aos automóveis diretamente das respectivas pistas, e
aos pedestres por calçadas sem cruzamento e dispõem de autoportos para estacionamento em
dois níveis e de acesso de serviço pelo subsolo correspondente ao piso inferior da plataforma
central. No setor dos bancos, tal como no dos escritórios, previram-se três blocos altos e quatro
de menor altura, ligados entre si por extensa área térrea com sobreloja, de modo a permitir
intercomunicação coberta e amplo espaço para instalação de agências bancárias, agências de
emprêsas, cafés, restaurantes, etc. Em cada núcleo comercial, propõe-se uma sequência
ordenada de blocos baixos e alongados e um maior, de igual altura dos anteriores, todos
interligados por um amplo corpo térreo com lojas, sobrelojas e galerias. Dois braços elevados
da pista de contôrno permitem, também aqui, acesso franco aos pedestres.
12. O setor esportivo, com extensíssima área destinada exclusivamente ao estacionamento de
automóveis, instalou-se entre a Praça da Municipalidade e a tôrre radioemissora, que se prevê
de planta triangular com embasamento monumental de concreto aparente até o piso dos
estúdios e mais instalações e superestrutura metálica com mirante localizado a meia altura. De
um lado, o estádio e mais dependências, tendo aos fundos o Jardim Botânico; do outro,
hipódromo com as respectivas tribunas e vila hípica e, contíguo, o Jardim Zoológico
constituindo essas duas imensas áreas verdes, simètricamente dispostas em relação ao eixo
monumental, como que pulmões de nova cidade.
13. Na Praça Municipal instalaram-se a Prefeitura, a Polícia Central, o Corpo de Bombeiros e a
Assistência Pública. A penitenciária e o hospício, conquanto afastados do contro urbanizado,
fazem igualmente parte dêste setor.
14. Acima do setor municipal, foram dispostas as garagens da viação urbana, em seguida, de
uma banda e de outra os quartéis e numa larga faixa transversal o setor destinado ao
armazenamento e à instalação das pequenas indústrias de interêsse local, com setor
residencial autônomo, zona esta rematada pela estação ferroviária e articulada igualmente a
um dos ramos da ramos da rodovia destinada aos caminhões.
15. Percorrido assim de ponta a ponta êsse eixo monumental, vê-se que a fluência e unidade
do traçado, desde a praça do Govêrno até a Praça Municipal, não exclui a variedade e cada
setor, por assim dizer, vale por si como organismo praticamente autônomo na composição do
conjunto. Essa autonomia cria espaços adequados à escala do homem e permite o diálogo
monumental localizado sem prejuízo de desempenho arquitetônico de cada setor na harmonia
da integração urbanística do todo.
16. Quanto ao problema residencial, ocorreu a solução de criar-se uma seqüência contínua de
grandes quadras dispostas em ordem dupla ou singela, de ambos os lados da faixa rodoviária,
e emolduradas por uma larga cinta densamente arborizada, árvores de porte, prevalecendo em
cada quadra determinada espécie vegetal, com chão gramado e uma cortina suplementar
interminente de arbustos e folhagens, a fim de resguardar melhor, qualquer que seja a posição
do observador, o conteúdo das quadras visto sempre num segundo plano e como que
amortecido na paisagem.. Disposição que apresenta a dupla vantagem de garantir a ordenação
133
urbanística mesmo quando varie a densidade, categoria, padrão ou qualidade arquitetônica dos
edifícios e de oferecer aos moradores extensas faixas sombreadas para passeio e lazer,
independentemente das áreas livres previstas no interior das próprias quadras.
Dentro dessas "superquadras" os blocos residenciais podem dispor-se da maneira mais
variada, obedecendo porém, a dois princípios gerais: gabarito máximo uniforme, talvez seis
pavimentos e pilotis, e separação do tráfego de veículos do trânsito de pedestres, mormente o
acesso à escola primária e às comodidades existentes no interior de cada quadra.
Ao fundo das quadras, estende-se a via de serviços para o tráfego de caminhóes, destinandose ao longo dela a frente oposta às quadras a instalação de garagens, oficinas, depósitos de
comércio em grosso, etc. e reservando-se uma faixa de terreno equivalente a uma terceira
ordem de quadras para floricultura, horta e pomar. Entaladas entre essa via de serviço e as
vias do eixo rodoviário, intercalam-se então largas e extensas faixas com acesso alternado, ora
por uma ora por outra, e onde se localizaram a igreja, as escolas secundárias, o cinema e o
varejo do bairro, disposto conforme a sua classe ou natureza.
O mercadinho, o açougue, as vendas, quitandas, casas de ferragens etc, na primeira metade
da faixa correspondente ao acesso de serviço; as barbearias, cabelereiros, modistas,
confeitarias, etc na primeira seção da faixa de acesso privativo dos automóveis e ônibus, onde
se encontram igualmente os postos de serviço para venda de gasolina. As lojas dispõem-se em
renque com vitrinas e passeio coberto na face fronteira às cintas arborizadas de
enquadramento dos quarteirões e privativas dos pedestres, e o estacionamento na face oposta
contígua às vias de acesso motorizado, prevendo-se travessas para ligação de uma parte a
outra, ficando, assim, as lojas geminadas duas a duas, embora o seu conjunto constitua um
corpo só.
Na confluência das quatro quadras, localizou-se a igreja do bairro, e aos fundos dela as
escolas secundárias, ao passo que na parte da faixa de serviço fronteira à rodovia se previu o
cinema, a fim de torná-lo acessível a quem proceda de outros bairros, ficando a extensa área
livre intermediária destinada ao clube de juventude, com campos de jogos e recreio.
17. A graduação social poderá ser dosada fàcilmente, atribuindo-se maior valor a determinadas
quadras, como, por exemplo, às quadras singelas contíguas ao setor das embaixadas, setor
que se estende de ambos os lados do eixo principal paralelamente ao eixo rodoviário, com
alamêda, de acesso autônomo, e via de serviço para o tráfego de caminhóes comum às
quadras residenciais. Essa alameda, por assim dizer, privativa dos bairros das embaixadas e
legações, se prevê edificada apenas num dos lados, deixando-se o outro com a vista
desimpedida sôbre a paisagem, excetuando-se o hotel principal localizado nesse setor e
próximo do centro da cidade. No outro lado do eixo-rodoviário-residencial, as quadras
contíguas à rodoviária serão naturalmente mais valorizadas que as quadras internas, o que
permitirá as gradações próprias do regime vigente; contudo, o agrupamento delas, de quatro
em quatro, propicia, em certo grau, a coexistência social, evitando-se assim uma indevida e
indesejável estratificação. E, seja como fôr, as diferenças de padrão de uma quadra a outra
serão neutralizadas pelo próprio agenciamento urganístico proposto, e não serão de natureza a
afetar o confôrto social a que todos têm direito. Elas decorrerão apenas de uma maior ou
menor densidade, de maior ou menor espaço atribuído a cada indivíduo e a cada família, da
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escolha dos materiais e do grau e requinte do acabamento. Neste sentido, deve-se impedir a
enquistação de favelas, tanto na periferia urbana quanto na rural. Cabe à Companhia
Urbanizadora prover dentro do esquema proposto acomodações decentes e econômicas para
a totalidade da população.
18. Previram-se igualmente sotores ilhados, cercados de arvoredo e de campo, destinados a
loteamento para casas individuais, sugerindo-se uma disposição dentada em cremalheira para
que as casas construídas nos lotes do tôpo se destaquem na paisagem, afastadas umas das
outras disposição que ainda permite acesso autônomo do serviço para todos os lotes. E
admitiu-se igualmente a constução eventual de casas avulsas isoladas, de alto padrão
arquitetônico — o que não implica tamanho — estabelecendo-se porém, como regra, nestes
casos, o afastamento mínimo de um quilômetro de casa a casa, o que acentuará o caráter
excepcional dessas concessões.
19. Os cemitérios localizados nos extremos do eixo rodiviário-residencial, evitam aos cortejos a
travessia do centro urbano. Terão chão e grama e serão convenientemente arborizados, com
sepulturas rasas e lápides singelas, à maneira inglesa, tudo desprovido de qualquer
ostentação.
20. Evitou-se a localização dos bairros residenciais na orla da lagoa, a fim de preservá-la intata,
tratada com bosques e campos de feição naturalista e rústica para os passeios e amenidades
bucólicas de tôda a população urbana. Apenas os clubes esportivos, os restaurantes, os
lugares de recreio, os balneários e os núcleos de pesca podem chegar à beira d’água. O clube
de Gôlfe situou-se na extremidade leste, contíguo à residência e ao Hotel, ambos em
construção e o Iate Clube, na enseada vizinha, entremeados por denso bosque que se estende
até à margem da reprêsa, bordejada neste trecho pela alamêda de contôrno que
intermitentemente se desprende de sua orla para embrenhar-se pelo campo que se pretende
eventualmente florido e manchado de arvoredo. Essa estrada se articula ao eixo rodoviário e
também à pista autônoma de acesso direto do aeroporto ao centro cívico, por onde entrarão na
cidade os visitantes ilustes, podendo a respectiva saída processar-se, com vantagem, pelo
próprio eixo rodoviário-residencial. Propõe-se ainda a localização do aeroporto definitivo na
área interna da reprêsa, a fim de evitar-lhe a travessia ou o contôrno.
Quanto à numeração urbana, a referência deve ser o eixo monumental, distribuindo-se a
cidade em metades NORTE e SUL, as quadras seriam assinaladas por números, os blocos
residenciais por letras, e, finalmente, o número de apartamentos na forma usual, assim por
exemplo: N-Q3 - L - ap 201. A designação dos blocos em relação à entrada da quadra deve
seguir da esquerda para a direita, de acôrdo com a norma.
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22. Resta o problema, de como dispor do terreno e troná-lo acessível ao capital oarticular,
Entendo que as quadras não devem ser loteadas, sugerindo, em vez de venda de lotes, a
venda de quotas de terreno, cujo valor dependerá do setor em causa e do gabarito, a fim de
não entravar o planejamento atual e possíveis remodelações futuras no delineamento interno
das quadras. Entendo, também, que esse planejamento deveria de preferência anteceder a
venda das quotas, mas nada impede que compradores de um número substancial de quotas
submetam à aprovação da Companhia projeto próprio de uma urbanização de uma
determinada quadra, e que, além de facilitar aos incorporadores a aquisição de quotas, a
própria Companhia funcione, em grande parte, como incorporadora. E entendo igualmente que
o preço das quotas, oscilável conforme a procura, deveria incluir uma parcela com taxa fixa,
destinada a cobrir as despesas do projeto no intuito de facilitar tanto o convite a determinados
arquitetos, como a abertura de concursos para a urbanização e edificação das quadras que
não fôssem projetadas pela Divisão de Arquitetura da própria Companhia. E sugiro ainda que a
aprovação dos projetos se processe em duas etapas, anteprojeto e projeto definitivo, no intuito
de permitir seleção prévia e melhor contrôle da qualidade das construcões.
Da mesma forma quanto ao setor do varejo comercial e aos setores bancários e dos escritórios
das empresas e profissões liberais, que deveriam ser projetados previamente de modo a se
poderem fracionar em subsetores e unidades autônomas, sem prejuíso da integridade
arquitetônica, e assim se sumeterem parceladamente à venda no mercado imobiliário, podendo
a costrução propriamente dita, ou parte dela, correr por conta dos interessados ou da
Companhia, ou, ainda, conjuntamente..
23. Resumindo, a solução apresentada é de fácil apreensão, pois se caracteriza pela
simplicidade e clareza do risco original, o que não exclui, conforme se viu, a variedade no
tratamento das partes, cada qual concebida segundo a natureza peculiar da respectiva função,
resultando daí a harmonia da exigências de aparência contraditória. É assim que, sendo
monumental, é também cômoda, eficiente, acolhedora e íntima. É ao mesmo tempo derramada
e concisa, bucólica e urbana, lírica e funcional. O tráfego de automóveis de processa sem
cruzamento, e se restitui o chão, na justa medida, ao pedestre. E, por ter o arcabouço tão
claramente definido, é de fácil execução: dois eixos, dois terraplenos, uma plataforma, duas
pistas largas num sentido, uma rodovia no outro, rodovia que pode ser construída por partes —
primeiro as faixas centrais com um trevo de cada lado, depois as pistas laterais, que
avançariam com o desenvolvimento normal da cidade. As instalações teriam sempre campo
livre nas faixas verdes contíguas às pistas de rolamento. As quadras seriam apenas niveladas
e paisagisticamente definidas, com as respectivas cintas plantadas de grama e desde logo
arborizadas, mas sem calçamento de qualquer espécie nem meios-fios. De uma parte, técnica
rodoviária: de outra, técnica paisagística de parques e jardins.
Êste é o maravilhoso plano urbanístico, elaborado por LUCIO COSTA para a cidade de
Brasília.
136
Paralelamente ao Plano Urbanístico, foram elaborados, através de equipes capazes e em
coordenação com Lúcio Costa, todos os planos do funcionamento da cidade: plano
administrativo; plano educacional; plano médico-hospitalar: plano de assistência social, plano
de abastecimento.
Foi planejado algo digno do século XXI, mas inúmeras mutilações estão deformando a cidade.
Aliás, vai aqui, para confirmar, uma declaração de Oscar Niemeyer perante a Comissão do
Distrito Federal na Câmara dos Deputados em 12 de julho de 1 963:
"Brasília está ficando uma cidade como as outras, pois o plano-piloto de Lúcio Costa vem
sendo totalmente desvirtuado."
Brasília — capital aérea e rodoviária: Cidade parque. Sonho arquisecular do Patriarca
(Extraído do COE - Código de Obras e Edificações - Brasília, DF)
137
VIII. Frases ditas por JK publicadas pelo site “Memorial JK”
http://www.memorialjk.com.br/
Deixemos entregues ao esquecimento e ao juízo da história os que não
compreenderam e não amaram esta obra"
" Ninguém pode ter outro interesse se não o de que se consolide o regime de
liberdade, sem o qual não há nação que possa qualificar-se de civilizada."
" É inútil fechar os olhos à realidade. Se o fizermos, a realidade abrirá nossas
pálpebras e nos imporá a sua presença."
" Nas tardes do planalto, os corpúsculos de fogo se confundem com as tintas da
aurora. Tudo se transforma em alvorada nesta cidade, que se abre para o amanha ..."
" Se acredito ou não, é outra história. O certo é que no dia 21 de abril, colocarei
minha bagagem num automóvel e quem quiser que me acompanhe."
" Hoje é o dia mais feliz da minha vida. O Congresso acaba de aprovar o projeto para
a construção de Brasília. Sabe por que o projeto foi aprovado ? Eles pensam que não
vou conseguir executá-lo."
" Um governo forte se faz perdoando."
" Como valeu a pena."
" Estou com uma sensação de que Brasília não é mais minha. Não é como uma filha
que se casa. É diferente. É pior."
" Creio no triunfo do espírito que afirma e deseja a grandeza nacional, no espírito
que se opõe à negação, a descrença, ao ressentimento estéril."
" Não consigo guardar ódios no meu coração."
" Sou conciliador por natureza."
" Deste Planalto Central, desta solidão que em breve se transformará em cérebro das
mais altas decisões nacionais, lanço os olhos mais uma vez sobre o amanhã o do meu
país e antevejo esta alvorada, com fé inquebrantável e uma confiança sem limites no
seu grande destino."
" Não me arrependo do que fiz, não me arrependo de ter levado em consideração o
interesse de preservar o nosso dia de amanhã - o futuro da Pátria Brasileira."
" Não aceito o julgamento dos que agora me julgam; só aceito o julgamento do povo,
pois só nele reconheço o juiz de minhas ações."
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< " Brasília é a manifestação inequívoca de fé na capacidade realizadora dos
brasileiros, triunfo de espírito pioneiro, prova de confiança na grandeza deste país,
ruptura completa com a rotina e o compromisso."
" Creio que apressar a marcha do Brasil, ativar o seu desenvolvimento é imperativo
da defesa de nossa própria sobrevivência."
" Creio que avançaremos cada vez mais para atingirmos nossa independência
econômica, produzindo sempre melhor, fundando a nossa industrialização sobre as
riquezas naturais que Deus colocou em nosso território."
" Creio na vitória final e inexorável do Brasil, como Nação."
" Escolhi Brasília como ponto alto do meu governo porque estou convencido de que a
nova capital representou um marco. Depois de sua construção ninguém poderia
duvidar de nossas indústrias ou da capacidade do trabalho brasileiro. Brasília deixou
atrás de si uma nova era de autoconfiança e otimismo."
" Meu sonho é viver e morrer em um país em liberdade."
" A criação de Brasília, a interiorização do governo, foi um ato democrático e
irretratável de ocupação efetiva do nosso vazio territorial."
139
IX. Biografia de Frederico Schmidt publicada pelo site da Fundação Gilberto
Freyre
http://bvgf.fgf.org.br/portugues/obra/artigos_imprensa/augusto_fred.htm
O BRASILEIRO AUGUSTO FREDERICO SCHMIDT
O Schmidt mais vivo na minha lembrança é o meninão moreno, gordo, obeso
mesmo, a quem um padrinho rico dera uma livraria para o afilhado administrar. Uma
vez senhor de uma livraria em rua ilustre do Rio, Augusto Frederico acrescentara ao
ofício de livreiro a aventura de editor. Foi quando o conheci.
O meninão gordo era já, contra todo esse seu físico nada romântico de burguês
de caricatura, um admirável poeta, ora delicadamente lírico, ora biblicamente profético,
como se conservasse, não do sangue, mas da tradição, de avós remotos, além do nome
alemão e do romantismo germânico, alguma coisa de hebreu ou de israelita no seu
misticismo. Alguns dos seus inimigos já então se antecipavam em ver no poeta-livreiro
ou no poeta-editor um homem sequioso apenas de fortuna. O que atribuíram, com
evidente idiotice na sua interpretação predominantemente racista de tendências
individuais, à origem étnica do poeta.
Ninguém mais brasileiro. Ao se anunciar, ele próprio, num dos seus primeiros
poemas, "o brasileiro Augusto Frederico Schmidt", era como se, magoado com as
insinuações de não ser autêntico brasileiro, quisesse proclamar a sua condição de
brasileiríssimo brasileiro.
Se veio a tornar-se milionário, é que era um inquieto. Necessitava de ação.
Chegou, por esse ativismo, a desdenhar, da boca para fora, das letras, da literatura, da
própria poesia. Talvez seguisse, a seu modo, nessa atitude, o exemplo de Rimbaud.
A verdade, porém, é que permaneceu um poeta em quem ao fervor lírico
continuou a juntar-se sempre aquele outro fervor: o profético. O messiânico. O político.
Chegou a ter, como inspirador de ação política, posição saliente, no governo
Kubitschek: na política internacional desse governo.
Foi o meu primeiro editor: o editor do meu livro intitulado Casa-Grande &
Senzala. Não posso dizer de Schmidt, editor, que fosse um modelo no gênero. Na fase
em que escrevi esse livro, estava eu em situação mais que precária: angustiosa. Tendo,
no exílio a que me forçara o movimento de 1930 - exílio de que nunca me mostrei
ressentido a ninguém: sempre o considerei justo - me extremado em repelir quanta
generosidade das que me foram oferecidas por membros do novo governo - um deles o
excelente José Américo de Almeida - e, de regresso ao Brasil, me extremado, ainda
mais, em não incomodar amigo algum com qualquer pedido de proteção ou de auxílio, é
claro que não podia ser outra minha situação. Pelo meu contrato com Schmidt para a
publicação do livro que se intitularia Casa-Grande & Senzala, ele se obrigava a pagarme quinhentos mil-réis, por mês, enquanto eu estivesse no Rio empenhado na
elaboração do livro: trabalho que deveria concluir no Recife. Raramente cumpriu
Schmidt essa obrigação de editor. Deixou-me mais de uma vez nas piores aflições.
Obrigou-me, por isto, a levar a casas de penhores quanto me restava de algum valor:
relógio de platina, botões de ouro, anel de avô.
E o pior é que, uma vez editado o livro - do qual devo recordar ter tido, de
súbito, imensa aceitação do público brasileiro, a despeito dos silêncios deliberados da
140
imprensa da época e da crítica militante daqueles dias: um desses críticos, o hoje
ultraliberal, mas muito meu conhecido, sob outro aspecto, Prof. Alceu Amoroso Lima
(Tristão de Ataíde) - e das hostilidades, naqueles dias, quer de jesuítas ainda de feitio
antigo, quer de comunistas, assombrados com a força revolucionária do ensaio
inclassificável - Schmidt, à base desse sucesso, passou a outro sua editora, incluindo na
transação a publicação bem-sucedida. Daí resultaram duas edições, das chamadas
piratas, terem sido feitas do meu livro, sem que o autor fosse beneficiado com um único
mil-réis. Foi o advogado Trajano de Miranda Valverde quem, por iniciativa própria,
livrou-me dessa escravidão.
Anos depois, encontrando-me com Augusto Frederico Schmidt já milionário,
num almoço em casa de amigo comum -Nehemias Gueiros - disse, gracejando, ao meu
primeiro editor: "Lembre-se, Schmidt, que estou à base da sua fortuna".
Não creio, de modo algum, que no seu procedimento para comigo e para com
outros editados, houvesse de sua parte qualquer mesquinharia de cru "fazedor de
dinheiro"; e sim boemia. Pura boemia. Havia nele um boêmio nato que, aliado ao poeta,
não deixou que o milionário se banalizasse, em tempo algum, num ricaço vulgar. Nunca
Schmidt se vulgarizou num argentário preso só aos negócios.
Nesse extraordinário Schmidt, tão homem de ação quanto de imaginação,
desaparece um brasileiro a quem não faltou nunca amor ao Brasil. Cantou, nos seus
poemas, mulheres que amou romanticamente. Mas com igual fervor romântico amou e
cantou o seu e nosso Brasil.
Fonte: FREYRE, Gilberto. O brasileiro Augusto Frederico Schmidt. Jornal do
Commercio. Recife, 14 fev. 1965. Coluna: Pessoas, Coisas e Animais.
141
X. Biografia de Frederico Schmidt publicada pelo site do Serviço Social do
Comércio de São Paulo
http://www.sescsp.org.br/sesc/revistas_sesc/pb/artigo.cfm?Edicao_Id=249&breadcrum
b=1&Artigo_ID=3929&IDCategoria=4337&reftype=1
Schmidt, nosso “gordinho sinistro”
Empresário e poeta, conservador e polêmico, ele influenciou JK, de quem foi o ghost-writer
preferido
CECÍLIA PRADA
A comemoração dos 50 anos do governo de Juscelino Kubitschek traz à tona uma figura do
maior relevo na época, hoje quase totalmente esquecida e ignorada. Empresário de grande
sucesso, poeta lírico de valor reconhecido e bibliografia vasta, católico ferrenho, de convicções
exacerbadas e de um conservadorismo extremo, mas dotado de visão e capacidade política
capaz de influenciar Juscelino – do qual se tornou embaixador e ghost-writer predileto –, o
polêmico Augusto Frederico Schmidt polarizou contradições, provocando a ira de tantos, a
admiração de muitos.
Como o centenário de seu nascimento ocorre neste ano, algumas editoras estão promovendo a
reedição de suas obras – discursos políticos, poesia, crônicas – reapresentando-o ao público
brasileiro. E na biografia Quem Contará as Pequenas Histórias?, baseada na esgotadíssima
autobiografia O Galo Branco (1948), Letícia Mey e Euda Alvim esmiúçam as circunstâncias de
sua vida e de sua época.
De pobre a rico
Schmidt é o protótipo do self-made man. Vencendo circunstâncias adversas, construiu uma
enorme fortuna e tornou-se figura de relevo político, por sua inteligência e cultura, e
principalmente por sua grande habilidade de estabelecer relacionamentos. Nascido no Rio de
Janeiro em 18 de abril de 1906 em uma família paterna abastada, viajou, menino, com os pais
para a Europa – onde a mãe, tuberculosa, procurava a cura – e ficou interno dois anos em um
colégio suíço. Mas, quando contava 8 anos, a inesperada morte do pai – que entrementes
dilapidara toda a fortuna da família – obrigou a viúva a regressar ao Brasil, com os filhos
Augusto, Magdalena e Anita, indo todos morar na casa dos avós maternos. O avô, Joca
Azevedo, fazia o possível para sustentar a família, mas era apenas um modesto contador. A
infância e a adolescência de Augusto transcorreram num ambiente de muito afeto e união
familiar, mas também de sacrifício e privações. Angustiado pelo agravamento da doença da
mãe – que faleceu quando ele tinha apenas 16 anos –, o adolescente gordinho e de óculos,
que se sentia imensamente humilhado pela sua dupla situação de órfão e de pobre, para ajudar
a sustentar a casa já trabalhava como caixeiro em uma loja de armarinhos. Da qual muitas
vezes fugia para a vizinha Livraria Garnier – centro da vida intelectual carioca, freqüentada por
escritores e jornalistas renomados, com os quais ia tecendo laços de amizade e embrenhandose nos mais sofisticados atalhos daquela que seria a sua principal paixão, a literatura.
Transferindo-se em 1924 para São Paulo, foi trabalhar como caixeiro-viajante de uma firma de
bebidas, uma atividade que desenvolveu muito bem, pois não dependia de patrão nem de
horário e podia trabalhar de dia e passar a noite lendo. Dos dois anos que viveu em São Paulo,
viajando pelo interior, dizia: "Foram anos de aprendizagem, de vida obscura, desconfortável, de
começo, de inauguração de uma existência". Nesse período estabeleceu laços duradouros,
tanto de amizade como de inimizade, com as principais figuras do modernismo – colhido no
embate das ideologias totalitárias que se defrontavam (comunismo x integralismo), escolheu
142
nítida e conscientemente a segunda. Diz em sua autobiografia: "Plínio Salgado passou a
constituir desde logo, para a minha vida, um centro de atração. (...) Vivíamos, desde o dia em
que nos encontramos, em uma camaradagem completa".
Voltando para o Rio de Janeiro, permaneceu sempre ligado ao círculo dos intelectuais
católicos, que, naquele tempo, concentrados em torno do Centro Dom Vital e da revista "A
Ordem" – com figuras como Jackson de Figueiredo e Alceu Amoroso Lima –, representavam
uma aguerrida e constante força de combate contra o comunismo/socialismo, em nome de
Cristo e das instituições.
Em 1928 lançou seu primeiro livro de poesia, Canto do Brasileiro Augusto Frederico Schmidt.
Gilberto Freyre, no necrológio que faria em 1965, diria, dessa época da vida de Schmidt: "O
meninão gordo era já, contra todo esse seu físico nada romântico de burguês de caricatura, um
admirável poeta, ora delicadamente lírico, ora biblicamente profético..." No início da década de
1930 temos já estabelecida no Rio de Janeiro sua primeira empresa, a Schmidt Editora,
sucessora da Livraria Católica de Jackson de Figueiredo – comprada por um grupo de
intelectuais católicos e entregue a Schmidt para que a administrasse. Uma aventura valiosa do
ponto de vista intelectual, mas desastrosa financeiramente. Porém, ao vender a editora em
1934, Schmidt já contava com importantes relacionamentos empresariais, que, com imensa
habilidade e inteligência, soube aproveitar para adentrar o mundo dos grandes negócios.
Seguindo os modelos econômicos norte-americanos – foi sempre um admirador irrestrito do
American way of life –, começa a delinear a política desenvolvimentista que mais tarde, no
governo Kubitschek, alcançaria o auge, com seu planejamento e assessoria. Sua atividade
caracterizou-se pela multiplicidade de negócios em que se metia – sua primeira empresa de
sucesso foi a Metrópole Seguros; foi um dos fundadores da Panair do Brasil e o pioneiro das
redes de supermercados, fundando o Disco (Distribuidora de Comestíveis), no Rio de Janeiro.
Para se ter uma idéia da rapidez com que sua fortuna foi feita, dois anos após a venda da
deficitária editora, em 1936, quando se casou com a muito amada Yedda Ovalle Lemos, seu
presente de casamento foi um terreno situado na esquina da Rua Paula Freitas com a praia de
Copacabana, onde ergueria um prédio em cuja cobertura viveria o casal.
Conseguiria até o fim da vida conciliar suas funções empresariais e intelectuais – publicou, de
1928 até o ano de sua morte, 22 livros de poesia, aos quais somam-se quatro póstumos, e dois
autobiográficos. No entanto, sua reputação literária foi grandemente prejudicada pelo fato de
ser um homem rico, e "de direita". Ao preconceito generalizado de que artista, principalmente
poeta, tem de ser pobre e sofredor, somava-se sua atuação ostensiva como baluarte e portavoz do pensamento mais retrógrado e conservador. Alguns escritores seus contemporâneos o
defendem, considerando "injustas" as discriminações por ele sofridas. Como o ficcionista
Autran Dourado, que recorda: "Era uma figura admirável, mas havia muita rivalidade dos outros
poetas para com ele, pelo fato de Schmidt ser um homem rico, preocupado com negócios. Isso
dava inveja". E Ivo Barroso diz: "Schmidt era injustamente colocado na prateleira por ser filiado
à direita. Havia uma discriminação ideológica contra ele (...) só é possível julgar um artista
através de sua obra e não por suas posições ideológicas".
Um editor boêmio
Gilberto Freyre costumava dizer, brincando, que Schmidt "fizera fortuna às suas custas" – o
sociólogo pernambucano devia ao poeta/empresário, realmente, o lançamento de sua primeira
e mais famosa obra, Casa-Grande & Senzala, em 1933. A publicação desse livro mostra a
ousadia e a independência do jovem editor, pois contrariava as duas facções em luta – de um
lado os comunistas, "assombrados pela força revolucionária do ensaio inclassificável", como
diz Freyre; de outro, os próprios católicos que haviam dado o "emprego" a Schmidt, à frente
dos quais estava Alceu Amoroso Lima, ainda representante de uma Igreja "antiga", embora
mais tarde, nos anos 1960, tenha se tornado ultraliberal e combatido a ditadura militar.
O primeiro sucesso editorial de Schmidt seria o romance A Mulher que Fugiu de Gomorra
(1931), um verdadeiro best-seller escrito por José Geraldo Vieira – um autor hoje
completamente esquecido. Nos quatro anos em que foi editor, Schmidt descobriu e lançou
alguns dos mais importantes escritores da nossa literatura, que desempenharam papel
143
relevante no ciclo do "romance do nordeste" – como Rachel de Queiroz (João Miguel), Jorge
Amado (O País do Carnaval) e Graciliano Ramos (Caetés).
Sobre este último, são bem conhecidas as circunstâncias da sua estréia literária – o escritor
José Américo de Almeida, que na época era ministro do governo Vargas, recebera de
Graciliano, então prefeito de Palmeira dos Índios, um relatório tão bem escrito que concluiu:
"Este homem deve ter um romance na gaveta". Tinha. Tratava-se de Caetés, e foi
encaminhado a José Américo, que o remeteu a Schmidt. No entanto, o tempo passava sem
que o editor se manifestasse. Não por desinteresse, mas simplesmente porque perdera os
originais – Schmidt era um grande "bagunceiro", um "boêmio nato". Para felicidade de nós
todos, certo dia, transcorrido um ano, o editor reencontrou os originais, que havia deixado no
bolso de uma velha capa de chuva.
Foi também o primeiro editor de Octávio de Faria (Maquiavel e o Brasil), Lúcio Cardoso
(Maleita), Marques Rebelo (Oscarina) e Vinicius de Moraes (O Caminho para a Distância) – no
caso deste último teve de insistir, contra a opinião de muitos, que se tratava de um ótimo poeta.
O segredo que possibilitava à pequena e deficitária editora lançar autores de tanta importância
era, além do "faro" de Schmidt para descobrir talentos, a antecipação de um processo
comercial hoje amplamente empregado – a chamada "captação de recursos", que naquele
tempo não tinha o amparo de leis de incentivo cultural. Apenas o interesse genuíno de
"patrocinadores", como sempre foram Alceu Amoroso Lima, Hamilton Nogueira, Tristão da
Cunha – foi este que apadrinhou O País do Carnaval, de Jorge Amado, que descobrira um dia
remexendo a gaveta de Schmidt em busca de algo para ler, enquanto o esperava para uma
conversa.
O poeta
Schmidt, que já gozava de boa reputação como poeta, lançou por sua editora somente um de
seus livros, Desaparição da Amada, em 1933 – um longo poema dedicado a Yedda. Seu livro
de estréia, Canto do Brasileiro Augusto Frederico Schmidt, deixara os críticos atordoados, sem
ousarem classificá-lo nos moldes da época – romantismo ou modernismo. E já demonstrava,
contra o estreito nacionalismo de então, uma ambição de internacionalismo ("Não quero mais o
Brasil/ Não quero mais geografia/ Nem pitoresco"). Embora usasse versos brancos como os
modernos, o poeta mostrava um ideário espiritual, uma angústia diante do universo, a procura
incessante de Deus. Devemos lembrar que por essa época também Vinicius de Moraes – que
mais tarde seria o celebrante por excelência do amor livre e da vida – escrevia versos
angustiados, de exaltação religiosa e fervor místico. Schmidt permaneceu religioso até o fim.
Sua obsessão pela morte valeu-lhe desde o início da carreira o apelido de "gordinho sinistro",
que lhe foi dado pelos críticos.
Embora reticente em relação ao jovem poeta na sua estréia, Manuel Bandeira teceria mais
tarde grandes elogios a ele, pois via em seus versos "a voz necessária que vinha quebrar os
clichês gastos do modernismo da primeira hora" e que, "aproveitando-lhe as lições, sabia
superá-lo". Lêdo Ivo, poeta e acadêmico, dizia: "Schmidt pertence ao modernismo, mas não ao
modernismo do poema-piada. Sua voz é grave, dissonante, voltada para as coisas perdidas".
Quatro anos após a morte de Schmidt, Carlos Drummond de Andrade ainda falava a seu
respeito, em uma crônica para o "Jornal do Brasil": "O melhor de Schmidt jorra de uma fonte
invisível, oculta no ponto em que o poeta alcança finalmente farto exercício com as palavras, e
aí o etéreo substitui o compacto". E citava mesmo "um verso de circunstância" que lhe dedicara
outrora, e que fazia questão de repetir: "Fui à fonte de Schmidt,/ beber água, lá fiquei./
Quedava bem no limite/ do reino de onde-não-sei./ Na sua linfa sensível/ água da mais pura
lei,/ brilhava o raio invisível/ do amor. Como esquecerei?"
Antonio Olinto, em artigo na "Tribuna da Imprensa" de fevereiro deste ano, em que saúda a
reedição dos poemas de Schmidt, diz: "Podemos ver hoje, a 41 anos de sua morte, como a
poesia de Schmidt falava por nós. (...) Ao mesmo tempo em que fazia as palavras dançarem,
ele se dependurava nelas como elementos solitários de uma declaração de amor ou de uma
busca do mesmo (...) Na força de sua lírica, não se detém diante de qualquer bom-mocismo.
144
Não fugia a debates, não deixava assunto de interesse público sem nele entrar com
propriedade e em espírito de realidade e de poesia".
Jornalista e político
No começo de 1937 Schmidt foi convidado a escrever uma coluna para o "Correio da Manhã" –
manteve-a pelo resto de sua vida. Mais tarde, ao iniciar uma amizade duradoura com Roberto
Marinho, passaria também a colunista de "O Globo" e muito contribuiria para o estabelecimento
da Rede Globo de Televisão – a cuja inauguração, no entanto, não chegaria a assistir, pois
faleceu em 8 de fevereiro de 1965.
Plenamente amadurecido como intelectual e como empresário, estaria sempre presente no
panorama político – com sua grande habilidade para lidar com pessoas, tendo acesso a todos
os setores sociais, tanto no Brasil como no exterior, desenvolveu uma intrincada e fecunda
"rede de informações" que alimentava seus artigos e influía diretamente nos rumos econômicos
da nação. Não hesitava em denunciar e atacar os políticos que julgava nocivos – o que lhe
valeu uma quantidade imensa de inimigos, entre os quais o polêmico Carlos Lacerda. Mas o
"gordinho sinistro" era bom de briga e não recuava. Extremamente generoso com os amigos,
patrocinou muitas iniciativas culturais – como o "Jornal de Letras" dos irmãos Condé, que só
pôde ser criado com o apoio da Orquima, a principal empresa de Schmidt. Foi um dos
incentivadores da produção de Vestido de Noiva, de Nelson Rodrigues – peça considerada um
divisor de águas do teatro brasileiro –, da qual dizia: "É mais que uma peça. É um processo e
uma revolução".
Durante o governo Kubitschek, Schmidt exerceria o papel de verdadeira "eminência parda". Em
artigo no "Jornal do Brasil" de 21 de dezembro de 2002, o jornalista Murilo Mello Filho, que foi
seu amigo, dizia: "Como se fosse um Richelieu redivivo, tinha o gosto de manipular nos
bastidores os cordões da cena brasileira e foi uma das vozes mais influentes do seu tempo".
Foi o grande planejador e realizador da Operação Pan-Americana (OPA), que concretizava
uma verdadeira denúncia do abandono e descaso da política exterior norte-americana para
com os países latino-americanos. Escrevendo e agindo, batalhou diariamente para que estes
abrissem os olhos para o aviltamento de preços das matérias-primas que forneciam, para a
ameaça representada pelo poder tecnológico dos países desenvolvidos e para "o longo exílio
na inobjetividade" em que se viam forçados a permanecer. Em 1958 – aproveitando o episódio
das pedradas com que o vice-presidente Richard Nixon fora recebido em Caracas – Schmidt
escreveu para JK uma histórica carta endereçada ao presidente Dwight Eisenhower, alinhando
objetivos considerados "bem ousados" pelos norte-americanos, e clamando por uma imediata
reviravolta política. A conseqüência foi a vinda do próprio secretário de Estado John Foster
Dulles ao Brasil, para combinar, em célebre reunião privada com Juscelino, as bases da OPA –
uma grande vitória diplomática para o Brasil, o reforço necessário para o Programa de Metas
de JK. A partir de maio de 1959, Schmidt chefiaria várias missões diplomáticas ao exterior,
negociando a política desenvolvimentista. Foi depois nomeado embaixador especial junto à
Comunidade Econômica Européia (atual União Européia), para tentar atrair os interesses
comerciais dos países do Velho Continente. Um resultado prático da OPA foi a criação, em
1959, do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID).
Com os governos Jânio Quadros e João Goulart, Schmidt retraiu-se, doente e completamente
desiludido com o verdadeiro desmonte da OPA – cuja pá de cal foi a criação pelo presidente
John Kennedy, em março de 1961, da assistencialista Aliança para o Progresso. Como
jornalista, continuou, porém, a defender Kubitschek e sua política desenvolvimentista. Em
1964, antes do golpe militar, combatia abertamente Goulart, declarando-o "um homem
despreparado, e da espécie dos despreparados simuladores". Quando o general Castello
Branco foi eleito presidente da República, por voto indireto, Schmidt, que era seu amigo, criou
novo alento, baseado no espírito nacionalista de Castello e em sua boa-fé, segundo dizem, ao
prometer eleições livres no ano seguinte. Suas esperanças, como as de tantos, não duraram
mais de três meses – logo começou a fazer, em suas colunas, advertências e denúncias sobre
o superpoder militar que se estabelecia: "Ainda é cedo para julgar, mas já é tempo para alertar.
Estamos em condições de distinguir certas inclinações, e confesso que elas não tiveram o
poder de conservar em mim o mesmo fervor das primeiras horas".
145
A cassação de Juscelino, em junho de 1964, escandalizou o país e deixou Schmidt desolado.
Antes que o ex-presidente partisse para Paris, em exílio voluntário, pronunciou um discurso de
despedida – escrito por Schmidt. A partir dali e até sua morte súbita, oito meses mais tarde, o
empresário/poeta tornaria suas críticas a Castello, à política econômica de Roberto Campos e
ao poder militar cada vez mais abertas e acerbas. Recusou cargos com os quais o novo
governo lhe acenava, mas intercedeu pessoalmente junto a Castello Branco, numerosas vezes,
em favor de amigos, e até de desconhecidos, que eram presos e torturados.
146
XI. Website da Fundação Schmidt
http://www.fundacaoschmidt.com.br/
Augusto Frederico Schmidt
Brasileiro (1906-1965)
Augusto Frederico Schmidt nasceu aos 18 de abril de 1906 na Rua Marques de Abrantes,
Flamengo, Rio de Janeiro. Filho de Gustavo e Anita Schmidt, aos 8 anos muda-se para Lausanne,
Suíça, onde estudou até a morte do pai, em 1916, quando sua família retornou ao Brasil.
De volta ao país, o menino Augusto Frederico continua os estudos no Instituto O´GrandBerry,
em Juiz de Fora. Retornou ao Rio de Janeiro em 1922, quando foi reprovado nos exames para o
Colégio Pedro II. Começou, então a trabalhar como caixeiro em um armarinho do centro da
cidade. Nesta época, Schmidt publicou seus primeiros versos de amor num jornalzinho do bairro
de Copacabana chamado “O Beira-Mar”.
Em 1924, Schmidt ficou desempregado e começou a freqüentar os cafés do centro da cidade.
Se torna amigo de grandes medalhões da época e de jovens talentos que ainda iriam despontar
em suas carreiras no futuro. É um período marcado por leitura ávida e intensa. Através de suas
novas amizades, Schmidt arranjou um emprego como caixeiro-viajante em São Paulo. Em São
Paulo, o futuro poeta conheceu a nova geração de artistas e intelectuais que integravam a famosa
Semana de Arte Moderna de 1922, entre eles: Mário e Oswald de Andrade. Schmidt e Plínio
Salgado se tornaram grandes amigos, apesar de muitas diferenças ideológicas.
Em 1928 Schmidt retornou ao Rio de Janeiro, empregado como gerente de uma serralheria em
Nova Iguaçú. Neste ano, ele também lançaria seu primeiro livro de poesias: Canto do Brasileiro
Augusto Frederico Schmidt. Foi o início de uma longa carreira como poeta.
Em 1930, Schmidt se tornou um editor: financiado por amigos, ele fundou a Schmidt Editora. A
Schmidt Editora foi a responsável pelo lançamento de alguns dos maiores nomes da literatura
brasileira, entre eles: Vinícius de Moraes (Caminho para a distância), Graciliano Ramos (Caetés),
Gilberto Freyre (Casa Grande & Senzala), Rachel de Queiroz (João Miguel), Marques Rebelo
(Oscarina), Jorge Amado (O país do Carnaval), Octávio de Faria (Maquiavel e o Brasil), Lúcio
Cardoso (Maleita), Hamilton Nogueira, entre outros. Schmidt igualmente ajudou a firmar, no
panorama literário, alguns autores já iniciados na edição, como Leonel Franca (Ensino religioso e
ensino leigo e Catolicismo e Protestantismo), Alceu Amoroso Lima (Problema da burguesia,
Preparação à Sociologia, Debates pedagógicos e Estudos, 4ª série) e Virgílio de Melo Franco
(Outubro de 1930). Infelizmente, a Schmidt Editora durou pouco mais de três anos.
Em 1934, Schmidt fundaria, junto com Luiz Aranha, sua primeira empresa de sucesso: a
Metrópole Seguros. Daí pra frente, Schmidt só cresceria nas mais diversas áreas comerciais e
industriais, que iam dos pneumáticos à aviação civil, do processamento de materiais radioativos ao
setor da alimentação.
Schmidt se casou com Yêdda Ovalle Lemos em 1936, no Mosteiro de São Bento, Rio de Janeiro.
Nunca tiveram filhos. No ano seguinte, iniciou uma longa e fecunda carreira como cronista do
jornal Correio da Manhã, de Paulo e Niomar Bittencourt. Alguns anos depois, também começaria a
escrever artigos para o jornal O Globo.
Na década de 50, Schmidt abre o primeiro supermercado do Rio de Janeiro: o DISCO,
inaugurado em 1952 em Copacabana.
Schmidt foi ghost-writer do ex-presidente Juscelino Kubitschek, ainda durante sua campanha
para presidente. Eleito Juscelino, Schmidt ajudou a elaborar a Operação Pan-Americana, um
primeiro plano de ajuda ao desenvolvimento da América Latina. Da OPA nasceria o BIRD (Banco
Interamericano de Desenvolvimento) e, algumas décadas depois, o Mercosul.
Schmidt morreu aos 08 de fevereiro de 1965, vítima de um ataque cardíaco. Ao morrer, já
havia publicado mais de trinta livros, entre prosa e poesia, além de milhares de artigos espalhados
em diversos jornais e revistas da época.
Por ocasião de seu falecimento, Schmidt era membro Jockey Club e Sociedade Hípica Brasileira,
do clube Botafogo de Futebol e Regatas; da Associação Felipe D`Oliveira; era Presidente da
Câmara de Comércio Brasil Israel. Também era sócio de inúmeras empresas, entre elas: S.A.
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Brasil-Canadá Com. e Imp. de Produtos Americanos, Sociedade de Expansão Comercial S.A., Ind.
Soc. Anônima, Meridional Cia de Seguros de Acidentes do Trabalho, além de estar ligado à
Orquima, Disco, Cia. Colonizadora Brasileira, Linho São Borja S.A., Berco Indústria Química
Mineral, Rilsan Brasileira, Manufatura Nacional de Plástico e Comércio de Materiais de Construção
– COMACO.
Conheça a vida desse Brasilleiro
Ghost-writer preferido do Presidente Juscelino Kubitschek, Schmidt foi o grande idealizador da
Operação Pan-Americana. Se em poesia Schmidt era prolixo, volumoso, em se tratando de política
ele não perdoava: estava sempre atento ao cenário do Brasil e do mundo, e denunciava
continuamente em suas colunas nos jornais, as atitudes de políticos que ‘sabotavam’ o próprio
país....
Conheça as poesias
“Compreensão
Eu te direi as grandes palavras
As que parecem sopradas de cima.
Eu te direi as grandes palavras,
As que se conjugam com as grandes verdades,
E saem do sentimento mais fundo
Como os animais marinhos das águas lúcidas.
Eu te direi a minha compreensão do teu ser,
E sentirei que te transfiguras a ti mesmo revelada,
E sentirei que te libertei da solidão
Porque desci ao teu ser múltiplo e sensível.
Quero descer até as tuas regiões mais desconhecidas
Porque és minha Pátria,
As tuas paisagens são as da minha saudade.
Quero descer ao teu coração como se descesse ao mar,
E é azul
Como este céu cortado de aves,
Como este céu limpo e mais fundo que o mar.
As tuas manhãs acordadas pelos galos.
Quero ver a tua tarde banhada de róseo como nuvens frágeis tangidas pelos ventos.
Quero assistir à tua noite e ao sacrifício dos teus martírios
Oh!, estrela, oh! música
Oh! tempo, espaço meu!”
Fragmentos do Galo Branco
Quando se fazia noite, eu ia jantar numa casa de pasto perto da estação.
Deixava na serraria apenas o velho vigia. Uma vez ou outra, ia espairecer
no único cinema de Nova Iguaçu. Lembro-me de que foi nesse pobre e
humilde cinema mambembe, com seus bancos de pinho, que vi um filme
de amor que me pareceu maravilhoso. Não me lembro dos nomes dos
atores que figuraram nessa comovente história, contada com tocante
simplicidade. Até hoje – já lá se vão tantos anos, bem mais de trinta, pelo
menos – não me esqueci do enredo. Tratava-se de um rapaz tímido, uma
espécie de gigante com alma de criança, que não tivera coragem de
declarar-se à mulher do seu amor e acabara perdendo-a para um amigo
mais resoluto, menos perplexo. O herói do filme assiste ao casamento de
sua amada, segue-lhe a vida, vê nascerem os filhos do amigo, sempre
guardando o segredo de seu amor. Esse filme, envolto numa sombra de
melancolia, com a marca pungente dos destinos partidos, exerceu em mim,
naquele momento de solidão, de tristeza, de mocidade angustiada, uma
influência decisiva. Já havia no meu ser – o que eu mesmo desconhecia,
tanto que não lograva fixar as minhas próprias fundações, calcular os meus
pontos de resistência ou fragilidade – uma tendência para amores
148
impossíveis, irrealizados e irrealizáveis... O filme veio provocar ainda mais
certas reações sempre mal definidas, aprofundar uma inclinação nostálgica
e uma certa incapacidade de viver coisas que o mundo oferece com
normalidade e simplicidade aos demais mortais. Via eu, nesse longínquo
tempo da primeira juventude, os seres se encontrarem, se enraizarem uns
nos outros, se amarem; mas tudo isso me parecia acima do que me era
lícito esperar do mundo. Havia alguma coisa de tardonhamente romântico
no meu ser. As raparigas que eu encontrava e desejava, logo se revestiam
de inalcansável importância, transformavam-se em sonhos, em seres
inatingíveis e intocáveis, ou passavam a representar o papel de mensageiras
do impossível.
Sabia eu que necessitava amar; ser amado, porém, não era o meu destino.
Algumas vezes, no entanto, me surpreendia. É que a realidade me
informava o contrário. Recebia mesmo demonstrações bastante positivas,
provas que seriam suficientes para qualquer outro menos inseguro do que
eu. Mas uma espécie de pessimismo sobre mim mesmo, e uma invencível
desconfiança impediam-me de reconhecer a própria evidência. L., por
exemplo, pousara sua magra e branca mão sobre as minhas durante um
concerto de piano. Abandonara-me sua mão, tão apetecida pelo meu desejo
adolescente, e eu ficara atônito e não compreendera, não quisera aceitar a
minha imprevista felicidade. Que se passava comigo? O tempo corrigiu
muitas coisas, adaptou-me melhor à própria fortuna do amor; mas estou
retratando um momento distante e impreciso em que eu era assim mesmo.
Mas, voltando a Nova Iguaçu e à serraria onde eu trabalhava, reencontrome, de novo, caminhando depois da sessão de cinema pela rua esburacada,
atravessando a linha férrea e voltando ao escritório, onde se improvisava,
todas as noites, um quarto de dormir para mim. Transformava, a mulher do
vigia, um sofá em cama; estendia os lençóis, esquentava um copo de leite,
dando-me no desamparo desses momentos ásperos uma sensação de
conforto e de carinho.
Foi nesse instante de minha vida que veio visitar-me um novo amor, logo
por mim considerado impossível. Todas as manhãs, em frente à serraria, a
caminho de uma obrigação cotidiana qualquer, passava uma jovem
criatura. Teria, calculo hoje, seus dezesseis anos. Era mais gorda do que
magra; morena e pálida. Portava quase sempre um gracioso chapéu-de-sol
– que se chamava sombrinha – e trazia uns livros e rolos de papel que
deviam ser textos de músicas. Depreendo que saía de casa para receber
lições de piano. Seus cabelos lisos, negros e longos caíam-lhe pelos
ombros. Era a filha de um político local que possuía, segundo me
informaram, uma plantação em Queimados. Às dez horas da manhã ou
pouco antes, já me encontrava eu na janela do escritório para ver passar
aquela que, sem o saber, se tornara a meus olhos a encarnação do eterno
feminino. Revejo-a bem. Não caminhava como as moças de hoje, que
aprendem a andar bem nas escolas de charme, que conhecem os
movimentos e os ritmos que tanto impressionam os homens.
A minha visão do amor era solene, lenta, soberana em sua marcha. Seus
pés não pisavam nuvens, não se desviavam da rota; em volteios graciosos,
apoiava-se ela fortemente no chão. Se pelo caminhar de uma pessoa
podem-se descobrir os seus ritmos interiores, a sua maneira de ser, a minha
rapariga de Nova Iguaçu deveria ser uma pessoa tranqüila, não temerosa do
dia de amanhã, capaz de dirigir-se pela razão, uma mulher forte e decidida.
Mas tudo isso era harmoniosamente combinado com uma espécie de
encanto físico, que não se poderia chamar de beleza, mas que era
misterioso encantamento.
Essa sedução, esse enigmático dom de atrair alimentava o meu sonho.
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O Cristo Autêntico
Não haverá solução alguma, se mudarmos a estrutura social sem reformar e
mudar a alma humana. E tudo o que desejou o Cristo foi mudar, reformar,
esclarecer, iluminar, avivar a Caridade e o Amor no homem. Sem Ele não
haverá nada de bom – e a pretexto de socorrer os necessitados e estabelecer
o paraíso terrestre, cairemos todos no maior e mais longo cativeiro que a
História registra até aqui.
Como alguns jovens que me vieram visitar me perguntassem qual a solução
para tantos e tão angustiosos problemas que nos perseguem, respondi-lhes
que outra salvação não encontrara eu, senão a da volta de Jesus Cristo. Não
vejo, não descubro, não encontro outra saída para a humanidade senão a
que nos ofereceu Aquele que se confessou Filho de Deus. Estou afastado
das práticas religiosas, sou um marginal da Igreja Católica, difícil se me vai
tornando, com o correr dos tempos, compreender e aceitar certas
afirmações, certas interpretações, certos aspectos da ortodoxia, mas a
noção da grandeza do Cristo aumenta e me invade, cada vez mais e todos
os dias. Naturalmente, sei que o mundo de hoje é um mar de desespero;
que a vida humana se tornou uma aventura sem sentido; que, à medida que
os seres, escravizados há séculos e séculos perdem a inocência e verificam
que estão nus e que não há outro mundo, o desejo de punir os que os
exploraram é imperioso e irresistível. Sei que tudo que amamos – e gira em
torno do homem, de seu prazer, de sua dignidade, de sua liberdade de amar,
de pensar e de agir – está ameaçado de perto; sei que as tiranias e as
opressões voltaram com multiplicado conteúdo de força destruidora; sei
que a dificuldade de crer não é mais o tormento de alguns espíritos
indagadores mas o quinhão de todos; de tudo isto sei e de muito mais
ainda. Mas sei também que a volta, o redescobrimento, a recuperação do
Cristo seria o resgate do homem moderno. A idéia de que é necessário
recuperar o Cristo é uma idéia mais revolucionária, mais eficaz, mais difícil
de projetar na ação prática, do que tudo o que se faz na China do pesadelo
ou na Cuba de Fidel Castro. Mas é luta maior ainda, mais exaustiva, mais
dura do que mutilar o homem – esse trabalho de reconstruí-lo, de fazê-lo
reconquistar a Esperança natural. A Esperança foi o legado que recebemos,
para atravessar o tempo e enfrentar esta inacreditável aventura terrestre. Se
tivermos Esperança, estaremos salvos. Se nos faltar Esperança, cairemos
para sempre, não nos será possível permanecer de pé.
Perdi eu próprio muitas esperanças; vi ruírem construções que se me
afiguravam eternas; presenciei a ação do tempo tirar muitas máscaras e
exibir as faces verdadeiras dos seres. O que é sempre terrível. Vi as coisas
em que acreditava com maior ardência se transformarem em cinza, poeira e
nada. E espíritos que alimentaram meu espírito, verifiquei que perdiam o
poder de dizer-me fosse o que fosse. Vi a fraqueza de estruturas morais que
me pareciam as mais firmes. Colhi desencantos; dei-me eu próprio para
muitos desencantos alheios. O mundo que recebi ao tomar consciência das
coisas perdeu-se, desfigurou-se, é uma outra coisa. Seres que me foram
essenciais – sem os quais não podia eu viver – passaram a ser-me
indiferentes, o que é pior do que tê-los como hostis.
Tudo o que fui conheceu mudança. Mas o Cristo não. O Cristo – que
representou para a minha infância um pequeno fantasma, para minha
mocidade um símbolo – nesta hora de sombra em que vivo tornou-se uma
presença. Sua palavra, eu a procuro como solução de dificuldades, como
chave dos maiores enigmas. Sei que toda a crise do mundo resultou da
deformação de Sua doutrina, do esquecimento do que Ele propõe como
regra de conduta dos homens. Não vejo nenhuma possibilidade de qualquer
salvação para o Ocidente sem o Cristo autêntico. Porque estou falando no
Cristo autêntico e não n´Aquele que nos oferecem quase vinte séculos de
150
deformações, de falsificações, de devoções, de fantasias.
Não creio em nenhuma forma de paraíso terrestre sem o Cristo... Sei que é
importante que as fomes de tantos milhões de homens sejam saciadas, as
doenças curadas e os corpos expostos ao frio aquecidos, que haja um
mínimo de conforto para todos os homens. Mas não desconheço que não
pode haver qualquer felicidade ou plenitude do homem, com a simples
fundação de uma sociedade de consumidores e produtores. A própria
condição humana reclama a Esperança. Uma humanidade sem Esperança é
algo terrível. Se o Cristo não sobreviver, a raça humana será uma coisa
irreconhecível. Poderão fartar-se, os grandes rebanhos, de seres frutos da
inseminação artificial, todos com saúde perfeita. Mas não haverá mais este
abismo que é o homem, com as surpresas boas e más que ele nos oferece.
O Cristo é a chave do mundo moderno, é o fim do egoísmo e o advento da
tão esperada justiça social. Neguem os que não têm forças para crer na Sua
divindade, mas os poucos que contemplam o Cristo despido de falsas
roupagens, os raros que O encontram tal como é, os que ouvem Sua voz,
estes sabem que tudo o que vem d´Ele está certo, é a verdade, é o
equilíbrio, é a medida do humano. Não há outro movimento a fazer senão
responder com o Cristo, não só à heresia do nosso tempo como aos que se
intitulam cristãos sem o serem, aos que O exibem como recurso defensivo
e não sabem quem Ele é.
151
XII. Discurso do presidente Juscelino Kubitschek feito em Diamantina em 12 de
abril de 1958
152
153
XIII. Texto sobre JK na Revista IstoÉ on line
http://www.terra.com.br/istoe/biblioteca/brasileiro/seculo/indice.htm
1) Juscelino Kubitschek
21,1% dos votos
Símbolo de uma era de democracia e prosperidade, JK foi o presidente que desenvolveu a
indústria automobilística, multiplicou por 15 a produção nacional de petróleo, implantou as
hidrelétricas de Furnas e de Três Marias e construiu Brasília"
Três homens afoitos abriram espaço entre a multidão que cercava a comitiva do candidato a
presidente: "Há um médico entre os senhores? Fomos informados de que um dos políticos que
passariam aqui hoje é doutor." Mal sabiam que ele era o ex-governador de Minas Gerais,
Juscelino Kubitschek, em campanha pelo sertão nordestino. Uma mulher grávida de nove
meses ia dar à luz em instantes. Os assessores alertaram para o risco de um sequestro. "Isso
é bobagem", protestou JK, montando no cavalo e partindo mata adentro, acompanhado dos
três desconhecidos. Ao final do caminho de terra, rapidamente ele tirou o paletó, arregaçou as
mangas e colocou água para ferver. Pegou alguns panos e deu início ao trabalho de parto. Os
gritos de dor da moça logo deram lugar ao choro do recém-nascido. O cordão umbilical foi
rompido com uma tesoura velha desinfetada com cachaça. O pai não se continha em lágrimas.
Aproximou-se do médico e quis saber quanto lhe devia. JK espiou os cantos da casa,
encontrou um pedaço de papel e escreveu seu nome. "Você não me deve absolutamente nada.
Mas, na eleição, não se esqueça de mim", despediu-se, sorridente. Três milhões de votos
conduziram JK à Presidência da República. O País nunca viveu momento de tanta euforia
quanto o período em que ele governou, entre fevereiro de 1956 e janeiro de 1961. No futebol,
conquistaríamos o primeiro título mundial em 1958. A bossa nova daria status internacional à
nossa música popular. Éder Jofre nocauteava os gigantes dos ringues e a tenista Maria Esther
Bueno fazia bonito nas quadras de Wimbledon. O otimismo de JK jogava o País na trilha do
desenvolvimento. A meta-síntese de um audacioso plano que prometia fazer o Brasil crescer
50 anos em cinco era a construção de uma nova capital federal.
Uma primeira-dama
atuante
Ao chegar em casa após mais um dia
clinicando, o médico Juscelino
Kubitschek contou à esposa que
recebera um convite para entrar na
política. Dona Sarah passou a noite
inteira chorando. Quando amanheceu,
porém, ela enxugou as lágrimas e
incentivou o marido a aceitar a chefia
de gabinete do governo de Minas
Gerais. Pensando bem, a política não
era novidade para aquela moça de
tradicional família mineira (era filha
de deputado federal e prima de
Francisco Negrão de Lima, que
depois viria a ser governador da
Guanabara). Sarah Gomes de Lemos
foi seduzida por JK num baile e
casou-se com ele em 1931. Com
154
personalidade própria, fundou a
Organização das Pioneiras Sociais,
entidade que abriu escolas e creches
em Minas Gerais.
Quando JK se tornou presidente, o
projeto ganhou dimensão nacional e
dona Sarah idealizou hospitais
especia-lizados no Rio de Janeiro e
em Brasília. Com a morte de
Juscelino, ela lançou uma campanha
para a construção do Memorial JK,
em 1981. O projeto arquitetônico de
Oscar Niemeyer incluía um
monumento que causou rebuliço. Os
militares queriam vetá-lo por achar
que lembrava uma foice, "símbolo do
comunismo". Dona Sarah não deu o
braço a torcer. Inaugurou o Memorial
- onde repousam os restos mortais de
JK - da forma como fora projetado e
lá trabalhou diariamente até morrer
em 1996, aos 87 anos. "Ela nunca se
contentou com o papel de primeiradama. Imagine uma mulher que, nos
anos 50, se preocupava em construir
um hospital para combater o câncer
no útero", orgulha-se a filha Maria
Estela.
Pedra fundamental Durante quase quatro anos,
caminhões rasgaram o cerrado transportando
madeira e equipamentos para a cidade que se
erguia. Pelo menos uma vez por semana, o próprio
JK deixava o Palácio do Catete, no Rio de Janeiro,
para inspecionar os trabalhos. "Era um mestre-deobras incansável percorrendo os canteiros, nos
cumprimentando e perguntando sobre nossas
famílias", disse a ISTOÉ o presidente da Vasp,
Wagner Canhedo, que na época comandava frotas
com mais de 300 caminhões com destino a
Brasília. "Lembro-me do lançamento da pedra
fundamental do Hotel Nacional. JK estava lá, de
botas, comendo churrasco e tomando cerveja,
abrindo plantas e croquis em cima dos capôs.
Tratava os peões pelo nome." O andamento das
obras não poupou JK de imprevistos. Um dos mais
extravagantes, seguramente, ocorreu quando o
presidente de Portugal, Craveiro Lopes, visitou a
nova capital. Hospedado no Catetinho, alojamento
que abrigava a família de JK, Craveiro Lopes
confessou, antes de se deitar, ao colega brasileiro:
"Só durmo com um penico perto da cama." Altas
horas da noite, saíram os assessores de JK no
meio do nada à procura do acessório. A marcha
para o oeste do País encontrou forte resistência da
UDN, principal partido de oposição, o que
aumentou o alívio no dia 21 de abril de 1960,
quando, enfim, JK inaugurou a nova capital. "Só vi
meu pai chorar em duas ocasiões: a morte de
familiares e a inauguração de Brasília", conta Maria
Estela, filha adotiva de JK.
O pressentimento de que chegava ao mundo o
executor de uma grande obra contagiou os
moradores das margens do rio Piruruca. Era o dia 12 de setembro de 1902 em Diamantina, no
norte de Minas Gerais, e o nascimento do filho do espalhafatoso João César foi motivo de festa
entre os vizinhos. Ex-delegado de polícia e caixeiro-viajante, seu João redigiu uma carta para
um primo de outra localidade mineira: "Zino, nasceu ontem o futuro presidente do Brasil. O
nome dele é Juscelino Kubitschek de Oliveira." Bisneto de um imigrante tcheco, aos dois anos
o menino Nonô perdeu o pai, vítima de tuberculose. As primeiras letras ele tomou com a mãe,
dona Júlia, heroína que caminhava sete quilômetros todas as manhãs para dar aulas na escola
primária do município vizinho. "Mestra Júlia tinha a majestade de uma rainha e a integridade de
um juiz: firme, segura, mas muito brava", afirma o coronel Affonso Heliodoro dos Santos, 83
anos, um de seus alunos - mais tarde, ele seria chefe da Casa Militar de Minas Gerais e
subchefe do Gabinete Civil da Presidência de JK.
Trem-hospital
A educação rígida veio dos tempos de seminário em Diamantina. A dura rotina de levantar às
cinco horas da manhã, vestir a batina e estudar o dia inteiro acabou aos 15 anos. Ficou a fé
inabalável, mas também a certeza da falta de vocação para o sacerdócio. Preferiu seguir para
a capital mineira, onde os Correios haviam aberto concurso para telegrafista. Trabalhou
durante oito anos numa agência de Belo Horizonte, até terminar a Faculdade de Medicina, em
1927. Ao abrir um consultório e casar-se com Sarah, mulher de família tradicional, já poderia se
considerar um vitorioso. Mas aí estourou a Revolução Constitucionalista de 1932. Para conter o
avanço dos paulistas, o governo mineiro deslocou tropas estaduais para a região divisória.
Capitão-médico da Polícia Militar, o doutor Juscelino usou um vagão de trem como prontosocorro no front de batalha. No meio do tiroteio, conheceu um delegado de polícia local,
Benedito Valadares, que no ano seguinte se tornaria interventor federal no Estado.
Impressionado com a dedicação do amigo, Valadares o chamou para trabalhar como chefe de
155
gabinete.
A carreira política teve uma ascensão meteórica. Em 1934, JK se elegeu deputado federal com
o apoio maciço dos antigos pacientes. Em 1940, foi nomeado prefeito de Belo Horizonte.
Bastaria ter asfaltado as ruas da periferia e ampliado a rede de esgoto para ganhar a fama de
modernizador, mas ele fez questão de construir o complexo da Pampulha. É verdade que
suscitou indignação na Igreja Católica ao convidar o comunista Oscar Niemeyer para elaborar o
projeto arquitetônico. Para piorar, ainda comprou do marxista Candido Portinari os afrescos que
decoram a igreja São Francisco.
Mas, com a popularidade em alta, depois de eleger-se deputado federal, em 1945, tornou-se
cinco anos depois governador de Minas Gerais pelo PSD (Partido Social Democrata), que
ajudara a fundar. O estilo conciliador já se fazia notar nas pequenas discussões. Apesar de
gostar de futebol, mantinha-se afastado das brigas apaixonadas entre torcedores. A bem da
verdade, guardava imenso carinho pelo Cruzeiro, clube que batizou seu estádio com o nome
de JK. Em contrapartida, era conselheiro do
arquiinimigo Atlético Mineiro.
Juscelinista de corpo e
alma
Uma legião de fãs cultua até hoje a
memória de JK. O admirador mais
devotado, com certeza, é o paulista
Antoninho Rapassi, 58 anos. Dono de
um hotel em Americana (município a
127 quilômetros de São Paulo),
Rapassi não oferece apenas comida
caseira e um ambiente aconchegante
a seus hóspedes. Ex-professor de
História, ele se entusiasma ao falar
sobre JK e dá verdadeiras aulas aos
turistas, relembrando o período em
que o País vivia de bem com a vida.
Os sinais de admiração são evidentes.
Pelos corredores do hotel, fotos
contam a trajetória política do expresidente. No restaurante, até as
xícaras de café e os rótulos das
garrafas de vinho reproduzem frases
de JK. O primeiro contato de Rapassi
com o ídolo ocorreu em 1955, quando
o então candidato a presidente
discursou numa cidade próxima a
Americana. "O comício não me
despertou muito", desconversa
Antoninho, na época estudante. Mas
o programa desenvolvimentista do
governo JK ganhou a admiração do
rapaz. Serviu até para inspirar as
promessas de Antoninho em sua
campanha para comandar o grêmio
estudantil da escola. "Eu ganhava
votos defendendo idéias
juscelinistas", orgulha-se.
156
Pé-de-valsa
Em 1960, ele viu JK pela segunda
"Ele nunca se definiu, mas sempre achei que seu
vez. "Depois de um comício,
coração pendia mais para o Cruzeiro", entrega o
Juscelino saiu percorrendo a cidade
ex-secretário particular Serafim Jardim, atual
presidente da Casa de Juscelino em Diamantina.
de carro. Como não havia segurança,
Certo mesmo é que, sem pendores para muitos
pulei no Cadillac presidencial.
exercícios físicos, cansava-se só em olhar um
Enquanto Juscelino saudava o povo,
grupo de marmanjos correndo atrás da bola. "Seu
eu fiquei abraçado à barriga dele. Foi
esporte era a dança. Se estivéssemos num
a glória." A partir daí, Antoninho
restaurante com música, pedia para o garçom
afastar a mesa e exercia o talento de pé-de-valsa", passou a colecionar filmes, livros,
lembra Jardim.
jornais e revistas sobre JK. O acervo
No governo de Minas Gerais, o desenvolvimento do
não parou de crescer. Comemora todo
binômio energia e transportes não se resumiu a
o ano o aniversário de nascimento de
mera promessa de campanha. JK intensificou a
JK no dia 12 de setembro. Aproveita
industrialização no Estado, criou a Cemig empresa de produção e distribuição de energia
para incrementar uma Semana JK em
elétrica - e rasgou as montanhas com três mil
Americana, expondo seu acervo e
quilômetros de novas rodovias. "Feliz é o JK que
dando palestras. A paixão é tão
avoa (sic)", era o slogan nos pára-choques dos
avassaladora que, quando estava para
caminhões mineiros, em referência à abertura de
aeroportos capazes de receber -aviões de pequeno nascer seu primeiro filho, Antoninho
porte. Os caciques pessedistas logo perceberam
trocou de emprego e levou a esposa
sua capacidade de transformar eficiência
às pressas para Brasília. Ela deu à luz
administrativa em votos. JK surgiu como candidato
três dias depois. "Tenho orgulho de
natural à Presidência da República, em outubro de
dizer que o menino é brasiliense, mas
1955.
não quis batizá-lo como Juscelino.
Ninguém duvidava, entretanto, que o cargo seria
disputado voto a voto. A preocupação com o
Porque isso seria fanatismo demais",
resultado levou a sogra de JK, dona Luísa, a
diz Antoninho. Ah, bom.
levantar-se do leito pela última vez. Muito -doente,
ela fez questão de depositar seu voto nas urnas. Por isso, recebeu um puxão de orelha de JK,
mas respondeu: "Sou sua sogra, não sou? Portanto, não fiz mais do que o meu dever." A
vitória foi apertada. JK recebeu 36% dos votos, contra 30% do udenista Juarez Távora e 26%
de Adhemar de Barros. A pouca diferença era o argumento perfeito para a UDN tentar impedir
a posse. Liderado pelo jornalista Carlos Lacerda, o partido afirmava que JK precisaria ter
maioria absoluta para assumir. Foi preciso a intervenção do marechal Henrique Teixeira Lott,
ministro da Guerra, para derrubar o presidente interino Carlos Luz, aliado dos golpistas, no dia
11 de novembro - o episódio ficou conhecido como "novembrada".
Índios armados
Quando, enfim, conseguiu tomar posse, em fevereiro de 1956, JK enfrentou um novo foco de
resistência. Eram setores reacionários da Aeronáutica que sequestraram aviões e partiram em
direção a Jacareacanga, no sul do Pará. Lá, aproximadamente 20 oficiais arregimentaram
alguns civis descontentes e um punhado de índios armados com arcos e flechas. A maioria dos
militares reprovava a ação, mas se recusava a lutar contra os colegas. A solução para o
impasse se deu após 18 dias, com a rendição dos rebeldes. Para mostrar que o País realmente
viveria ares de democracia em seu governo, um dos primeiros gestos de JK no Palácio do
Catete foi conceder anistia ampla e irrestrita a todos os golpistas.
O fim das intrigas estava longe de significar sossego. Pelo contrário, havia muito a fazer. O
presidente frequentemente passava mais de 15 horas por dia trabalhando. O Plano de Metas dividido em energia, transportes, alimentação, indústrias de base e educação - transformou o
País num canteiro de obras. JK ergueu as hidrelétricas de Furnas e Três Marias, implantou a
indústria automobilística, construiu 20 mil quilômetros de rodovias e três mil de ferrovias.
Também aumentou em 15 vezes a produção de petróleo e desenvolveu a siderurgia, com a
cria-ção da Cosipa e da Usiminas. Isso sem falar em Brasília. "Antes de Juscelino
importávamos caneta esferográfica; depois, exportávamos automóveis", exalta o coronel
Affonso Heliodoro dos Santos, assessor mais próximo do presidente. Nos anos JK, o País
cresceu 7% em média. O preço a pagar foram o aumento no custo de vida - a inflação chegou
a 30% ao ano - e o endividamento externo, que os correligionários negam até hoje. "Quando
157
Juscelino assumiu, a dívida externa era de US$ 1,9 bilhão. Ao final do governo, estava em US$
3,1 bilhões. Não houve crescimento tão grande como se alardeou", afirma Affonso. Em atitudes
aparentemente contraditórias, JK ampliou a intervenção estatal na economia, ao mesmo tempo
que estimulou como nunca o investimento privado. Abriu as portas ao capital estrangeiro, mas
rompeu com o Fundo Monetário Internacional - que pedia contenção de gastos com o
programa de desenvolvimento.
No exercício do poder, não perdeu a simplicidade de bom mineiro. A primeira tarefa do dia, por
exemplo, era um telefonema à mãe. Fazia uma sesta de 15 a 20 minutos depois do almoço.
Fechava as cortinas do Palácio das Laranjeiras, residência oficial na antiga capital, Rio de
Janeiro, e vestia o pijama. Acordava revigorado e pronto para encarar o resto do expediente.
Hábitos caseiros
Apreciava música caipira. Certa vez, dispensou os
secretários e telefonou para a cantora Inezita
Barroso. Pensando se tratar de um trote, Inezita
JK era mulherengo incorrigível. A
bateu o telefone estupidamente. JK teve de
paixão mais arrebatadora foi a da
queimar saliva para convencê-la de que era ele
cario-ca Maria Lúcia Pedroso - um
mesmo. Queria simplesmente uma visita ao Catete
romance clandestino de 18 anos, que para ouvir suas canções ao vivo. Era um estadista
durou até a morte do presidente.
que preservava hábitos caseiros e o convívio
familiar. "A primeira coisa que fazia quando
"Maria Lúcia era linda, apesar da
chegava em casa era perguntar como estavam
baixa estatura. Loiríssima, era
minhas notas na escola", conta Maria Estela
parecida com a atriz Kim Novak",
Kubitschek.
afirma João Pinheiro Neto, autor do
Ao deixar o poder, em janeiro de 1961 - sem
livro Juscelino, uma história de amor. conseguir eleger seu sucessor, o marechal Lott -,
Casada com o médico e ex-deputado JK elegeu-se senador por Goiás e era apontado
José Pedroso, Maria Lúcia conheceu como candidato natural a presidente em 1965. As
pesquisas chegaram a apontar seu nome com
JK em 1958, numa festa no Palácio
quase 60% de preferência do eleitorado brasileiro.
das Laranjeiras. "Posso lhe oferecer
Já havia até material de campanha, com o lema
um chá amanhã?", perguntou o
"cinco anos de agricultura para 50 de fartura"
quando veio o golpe militar em 31 de março de
presidente. Ciumenta, a amante não
1964. Cassado dois meses depois, JK tomaria um
escondia o desgosto com outros
romances paralelos de JK. "Ou você avião com destino a Madri. No Aeroporto do
Galeão, no Rio de Janeiro, ovacionado pela
dissolve seu comitê feminino, ou
multidão, que cantava o Hino Nacional, Juscelino
nunca mais vai me ver", ameaçava.
embarcou com dona Sarah e a população se
dispersou. A aeronave já tomava velocidade para a
Pinheiro Neto diz que JK estava
disposto a se casar com Maria Lúcia - decolagem, mas repentinamente parou. Havia um
temor generalizado de que fossem prendê-lo. Com
que ainda mora no Rio - quando
os nervos à flor da pele, Sarah passou às mãos do
morreu em acidente na Via Dutra.
marido uma pequena pistola: "Juscelino, toma isto.
Se eles tocarem em você, faça uso da arma."
Felizmente, o avião retornou apenas para pegar um passageiro que, por causa do tumulto, não
havia conseguido embarcar.
Foram três longos anos de exílio em Lisboa, Nova York e Paris. "É o castigo mais cruel imposto
a um homem que só pensava no Brasil, só estudava o Brasil, só viajava pelo Brasil e em torno
de si reunia uma equipe só para adorar o Brasil", diria ele mais tarde. Em Portugal, JK recebeu
o convite para participar de um movimento de resistência ao regime autoritário. Era organizado
por seu antigo desafeto, Carlos Lacerda, e chamava-se Frente Ampla. JK duvidou de que se
tratasse de algo sério, mas aceitou almoçar com Lacerda. Para evitar maledicências do
udenista, dona Sarah sutilmente colocou uma imagem de Nossa Senhora de Fátima embaixo
da poltrona onde sentaria Lacerda. Os ânimos de fato se arrefeceram, mas a Frente Ampla - da
qual também fazia parte o ex-presidente João
Goulart - não vingou.
Sedução e poder
Modelo a ser imitado
O charme da bandeira
158
desenvolvimentista ainda seduz os
políticos brasileiros. "JK personificou
a prosperidade e o sentimento de
conciliação nacional. Acima de tudo,
era um político que mantinha um
astral elevado. Nenhum outro
presidente encarnou estas qualidades
no mesmo grau", afirma o cientista
político Bolivar Lamonier. Entre os
que poderiam ser apontados como
sucessores de JK, Lamonier cita o
presidente Fernando Henrique
Cardoso. "FHC é de longe o que mais
se assemelha a JK. É naturalmente
uma pessoa de bom humor e faz tudo
para relaxar a tensão", compara
Lamonier, com a ressalva de que hoje
o País não está emergindo para uma
época de desenvolvimento, como na
era JK. "Não é fácil repetir o script."
FHC não é o único a querer tirar uma
lasquinha do charme de JK. Em
outros tempos, Orestes Quércia e
Fernando Collor de Mello também se
apresentaram ao eleitorado como
herdeiros de JK. Quércia abraçou a
imagem de tocador de obra, enquanto
Collor quis ser um ícone da
modernidade. "Collor não tem o bom
humor de JK. Pelo contrário, ele tem
um fígado shakespeariano", diz
Lamonier. Quem não disfarça a
vontade de se assemelhar a Juscelino
é o presidente da Câmara Federal,
Michel Temer (PMDB-SP). "Como
ele, sou conciliador, não guardo
rancor. Sou capaz de fazer sete ou
oito reuniões até garantir o
consenso", afirma Temer, que
conheceu JK no tempo em que era
estudante da Faculdade de Direito do
Largo de São Francisco, em São
Paulo.
Em 1960, tinha 18 anos quando sua
turma escolheu JK como paraninfo. O
presidente não pôde comparecer à
formatura, mas, ao fazer uma escala
em São Paulo, indo para o Sul,
mandou o pessoal se deslocar até o
aeroporto de Congonhas. "Aí,
159
Chapéu de palha
entramos no avião e ele fez questão
Em 1967, JK voltou ao Brasil. Por ocasião do AI-5,
de assinar nossos diplomas. Nunca
passou um mês em prisão domiciliar. Afastado da
esqueci seu rosto sorridente", lembra
vida pública e dando palestras para executivos de
bancos, comprou uma fazenda em Luziânia (GO)
Temer.
com o único pretexto de poder passar os fins de
semana perto de Brasília, onde havia uma "pressão branca" dos militares para que não botasse
os pés. Depois de muitos anos, JK não resistiu e se disfarçou com um chapéu de palha. Certa
noite, chamou um caminhoneiro e subiu na boléia. Chorou ao ver de longe a capital com as
luzes acesas.
"Papai gostava de ensinar os netos a tirar leite de vaca na fazenda", recorda Maria Estela. E
estava justamente em Luziânia quando, a 7 de agosto de 1976, os repórteres o procuraram
para saber se era mesmo boato a notícia de que ele morrera na Via Dutra. "Estão querendo me
matar, mas ainda não conseguiram", comentou com amigos. No dia 22 de agosto de 1976, JK
morreu num acidente de carro, exatamente na Via Dutra. O Opala do presidente, guiado pelo
motorista Geraldo Ribeiro, seguia de São Paulo para o Rio de Janeiro quando foi atingido por
um ônibus, passou para a outra pista e bateu de frente num caminhão carregado de gesso.
Não faltam teses conspiratórias para explicar o que o inquérito policial apontou como simples
desastre. Há quem diga que havia explosivos no automóvel. Outros apostam que um tiro
disparado por ocupantes de um veículo não-identificado acertou o motorista Geraldo, que
perdeu o controle do Opala. "A versão oficial é uma grande montagem", acusa o perito criminal
Alberto Carlos de Minas. Em 1996, ele foi um dos responsáveis pela reabertura do caso. As
investigações não avançaram e o inquérito, após 20 anos, acabou prescrevendo. No entanto,
Alberto Carlos e Serafim Jardim - presidente da Casa de Juscelino em Diamantina - ainda hoje
se dizem convictos de que JK foi morto por ordem dos militares no poder.
Os indícios são muitos, de acordo com a tese conspiratória. Em agosto de 1976, o diretor do
serviço secreto chileno, Manuel Contreras Sepúlveda, enviou carta ao general João Baptista
Figueiredo, então chefe do Serviço Nacional de Informações, dizendo-se preocupado com o
possível triunfo do Partido Democrata nas eleições americanas. "Temos conhecimento do
reiterado apoio dos democratas a Kubitschek e Letelier." Orlando Letelier, ministro do
presidente chileno deposto, Salvador Allende, morreria num atentado em Washington, pouco
antes da morte de JK. As fotos dos cadáveres de JK e do motorista simplesmente não foram
anexadas ao inquérito. O caixão com o corpo do motorista foi lacrado, sem que se pudesse
checar se ele levou um tiro na cabeça, como especulam os juscelinistas. Em 1996, o corpo foi
exumado. "Pode ter sido imaginação minha, já que estava eufórico demais. Mas vi um orifício
no crânio de Geraldo. Dias depois, os legistas responsáveis pelo laudo avisaram que o crânio
se fragmentara, algo incomum com o manuseio de profissionais", afirma o perito Alberto Carlos
de Minas. O mistério contribui ainda mais para perpetuar o mito Juscelino Kubitschek.
VOCÊ SABIA?
Quiseram saber o segredo da assombrosa capacidade de JK para se lembrar de nomes. "É
simples: você dá um abraço no sujeito e pergunta baixinho como se chama. Aí repete alto: olá,
fulano, como vai?"
VOCÊ SABIA?
Quebrou o dedinho do pé ao bater na porta do armário. Usava só sapato sem cadarço - mais
fácil de tirar nas reuniões e se livrar da dor crônica.
VOCÊ SABIA?
O avião que o levava sofreu uma pane e o piloto quis pousar em Brasília. Os militares
avisaram: "Se JK estiver no bimotor, negamos."
XIV. Biografia de Oswaldo Aranha
160
http://www.unificado.com.br/calendario/10/oswaldo_aranha.htm
Breve biografia de
Oswaldo Aranha
Oswaldo Aranha ajudou a
articular a Revolução de 30
Osvaldo Euclides de Sousa Aranha nasceu em Alegrete (RS) no dia 15
de fevereiro de 1894, filho do coronel Euclides de Sousa Aranha e de Luísa
de Freitas Vale Aranha, proprietários da estância Alto Uruguai no município
gaúcho de Itaqui. Segundo entre os 11 filhos do casal, descendia
diretamente, pelo lado paterno, de Maria Luzia de Sousa Aranha, baronesa
de Campinas (da região paulista que hoje corresponde à cidade do mesmo
nome), cujo marido foi um dos responsáveis pelo início do plantio de café
na província de São Paulo. Seu pai, paulista de nascimento, exercia a
chefia do Partido Republicano Rio-Grandense (PRR) em Itaqui. Na família
de sua mãe, dedicada tradicionalmente à política em Alegrete, destacou-se
Luís de Freitas Vale, barão de lbirocaí.
Após concluir o ensino secundário, fez amizade com Virgílio de Melo
Franco, que alcançaria projeção política com a Revolução de 1930, e com
Rubens Antunes Maciel, que o apresentaria a Luís Carlos Prestes,
revolucionário de 1924 e mais tarde líder comunista. Estreitou também
amizade nesse período com José Antônio Flores da Cunha, que viria a
exercer o governo do Rio Grande do Sul.
Freqüentou a Faculdade de Direito, aproximou-se de colegas que na
política gaúcha se ligavam às oposições, embora seu pai fosse um
republicano. Manteve também intensa atividade política contra o governo
federal, especialmente contra o presidente da República, marechal Hermes
da Fonseca, apoiado pelo chefe do PRR e presidente do Rio Grande do Sul,
Antônio Augusto Borges de Medeiros, e contra o líder situacionista José
Gomes Pinheiro Machado, senador pelo Rio Grande do Sul.
Em princípios de 1917 instalou sua banca de advogado em Uruguaiana.
Entre 1917 e 1923 dedicou-se quase exclusivamente à advocacia, obtendo
em pouco tempo alto conceito profissional. Já em meados de 1917 o
também advogado Getúlio Vargas, que se formara em 1907, fazia-lhe
consultas sobre assuntos jurídicos, prática que se tornaria cada vez mais
freqüente entre ambos, que chegariam inclusive a ter clientes em comum.
Pouco depois de haver fixado residência em Uruguaiana, casou-se, em
meados de junho, com Delminda Benvinda Gudolle, de quem teve quatro
filhos: Euclides, Osvaldo, Delminda e Luísa.
Teve participação ativa da Revolução de 24, de onde saiu prestigiado e
politicamente fortalecido. Com a eleição de Vargas, em novembro de
1927, para a presidência do Rio Grande do Sul, Aranha foi convidado para
ocupar a Secretaria do Interior e Justiça do estado.
161
Foi um dos principais articuladores da Revolução de 30, que começou
em Porto Alegre precisamente às 17:30h do dia 3 de outubro, chefiando
junto a Flores da Cunha o ataque aos quartéis da rua da Praia, sedes dos
comandos do Exército e da Região Militar.
Em 11 de outubro de 1930, Getúlio Vargas passou o poder do estado
para Osvaldo Aranha, antes de rumar para Ponta Grossa (PR), onde
estabeleceria seu quartel-general e assumiria o comando das forças
revolucionárias em marcha para a capital da República.
Além disso, tornou-se Ministro da Justiça do Governo Provisório e da
Fazenda, em 1931. Criou o "Esquema Aranha" destinado a evitar o
aumento da dívida externa e que possibilitou uma redução real da dívida.
Durante os quatro anos do esquema, o país pagou 33,6 milhões de libras,
quando deveria ter pago 90,7 milhões de libras, o que proporcionou um
ganho real, considerada a redução real dos pagamentos de juros e o
adiamento dos pagamentos dos fundos de amortização, de 57,1 milhões
de libras.
Foi embaixador em Washington entre 1933 e 1937, e Ministro das
Relações Exteriores em 1938. Já em 1947, teve participação destacada na
Organização das Nações Unidas para a criação do Estado de Israel.
Em 1953, a convite de Getúlio Vargas voltou ao Ministério da Fazenda,
onde criou o "Plano Aranha". Essencialmente antiinflacionário, o plano
tinha por linhas básicas a reorganização do próprio Ministério da Fazenda
de modo a agilizar o mecanismo fazendário e fiscal, a adoção de uma
política orçamentária, a necessidade de codificação do direito tributário e a
lei orgânica do crédito público.
Após o suicídio de Vargas, em agosto de 1954, afastou-se da vida
pública, retornando ao seu escritório de advocacia. Em 1956, já sob o
governo Kubitschek, Aranha foi convidado a participar da delegação
brasileira na ONU, mas recusou. No ano seguinte, porém, aceitou o novo
convite que lhe fora feito nesse sentido, sendo nomeado, a 6 de setembro,
chefe da delegação brasileira na XII Assembléia Geral das Nações Unidas.
Em 1958 seu nome foi cogitado para concorrer ao Senado, tanto pelo
Distrito Federal quanto pelo Rio Grande do Sul. Dois anos mais tarde
concorreria à vice-presidência da República na chapa encabeçada pelo
general Henrique Teixeira Lott, o que não ocorreu devido ao seu
falecimento, em 27 de janeiro de 1960.
Fontes: Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil - CPDOC
Planeta.terra.com
XV. Artigo de Luis Nassif sobre Augusto Frederico Schmidt
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http://www.lainsignia.org/2006/febrero/ibe_061.htm
Brasil
O escriba do presidente
Luís Nassif
La Insignia. Brasil, fevereiro de 2006.
O velho escritor mora em um apartamento em uma rua pequena de Botafogo. Escreve no
computador, fuça na Internet, mas não recebe nem manda e-mails. Mantém os mesmos termos
e o mesmo sotaque mineiro, que ajudaram a consagrá-lo como grande escritor. E mantém
muitas lembranças de Juscelino Kubistcheck, com quem foi trabalhar, ele ainda governador de
Minas, por ser escritor e taquígrafo. Autran Dourado não foi o único escritor a cercar um
presidente que adorava escritores.
Eleito governador do estado, JK chamou Cristiano Martins (tradutor do Dante e Wilke) e pediu:
-Cristiano, preciso de um taquígrafo que seja ao mesmo tempo um escritor.
-Única pessoa com esse perfil é o Autran Dourado.
O Chefe da Casa Civil era Ciro dos Anjos, tinha também Alphonsus Guimarães Filho. Depois
que se tornou presidente, a equipe de JK tinha Álvaro Lins, Chefe da Casa Civil, Cristiano
Martins, Secretário Particular, Ciro dos Anjos, Sub-Chefe da Casa Civil, assim como Josué
Montello.
Juscelino era culto? E Autran, com a perspicácia típica dos mineiros: "Ele não exagerava".
Estudou medicina na França, fez um curso de extensão, por isso falava o francês com
facilidade. Quando se tornou presidente passou a estudar inglês, para evitar muito intérprete
nas conversas com os visitantes estrangeiros.
Autran confirma que o Plano de Metas começou a ser escrito depois de JK eleito. No curto
espaço de tempo entre a eleição e a posse, Roberto Campos e Lucas Lopes mandaram ver.
Campos já tinha as idéias da cabeça; Lucas Lopes, a metodologia de projetos que trouxera da
Cemig e aperfeiçoara na Consultec. O plano mesmo foi de Roberto Campos, conta Autran.
Lucas e JK ficaram com a execução.
A grande eminência parda do governo JK foi o poeta e empresário Augusto Frederico Schmidt.
Autran sentia que JK tinha medo do brilho do Schmidt. Os melhores discursos de JK eram
preparados por Schmidt, mas passavam pelo crivo de Autran, incumbido de lhes conferir
uniformidade e extirpar algum exagero retórico ou algum contrabando não combinado.
Nessa atividade, Autran começou como oficial de gabinete e terminou como Secretário de
Imprensa de JK e testemunhou um episódio relevante.
Schmidt era um liberal radical. Assim que JK assumiu, recebeu em visita John Foster Dulles,
homem forte de IKE, truculento como um pitbull. Na conversa, queria de toda forma convencer
JK a fazer uma declaração anti-comunista. Na prática, significaria esfacelar a Operação
Panamericana -uma tentativa de criar uma política externa única no continente, criação de
Schmidt. Na época, Schmidt constituiu um grupo, à margem do Itamaraty, composto por
pessoas como Araújo Castro, Celso Souza e Silva, João Rio Branco, e Autran Dourado.
163
Com a resistência de JK, Dulles achou melhor que o próprio IKE visitasse o Brasil, para
prevenir eventuais crises com os EUA. Na conversa, IKE propôs uma espécie de Plano
Marshall para o continente, mas com uma condição: os EUA não emprestariam um tostão para
investimento em empresas estatais. A negativa tinha endereço certo: a Petrobrás, ainda em
processo de consolidação. Coube a Schmidt reagir contra a imposição. Logo ele que já havia
assinado vários artigos contra a Petrobrás. Quando Autran saiu da sala de reunião, onde se
encontravam JK e IKE, e comunicou a Schmidt a imposição norte-americana, a resposta foi
fulminante:
-Fala para o Juscelino que se ele assinar esse acordo pego o boné e vou embora.
Autran considerava Schmidt um injustiçado, acusado de se aproveitar das relações do governo
para turbinar seus negócios. O poeta-empresário, na verdade, ganhou grande poder de fogo
com sua influência sobre a Cexim (a Cacex da época), órgão incumbido de emitir licenças de
importação. Graças a esse poder, conseguiu se tornar sócio de uma dezena de empresas,
junto com Lulu Aranha, irmão de Oswaldo Aranha - a quem acusavam de estar por trás dos
negócios.
Provavelmente não. Coube ao próprio Aranha acabar com o poder da Cexim, ao criar o sistema
de leilão de câmbio. De qualquer modo, todo dinheiro acumulado por Lulu e Schmidt tiveram
uma grande destinação social: o glorioso Clube de Regatas Botafogo.
164
XVI. Artigo sobre Teoria dos Atos de Fala
http://www.filologia.org.br/viiifelin/41.htm
Círculo Fluminense de Estudos Filológicos e Lingüísticos (CiFEFiL)
TEORIA DOS ATOS DE FALA
Gustavo Adolfo da Silva (UERJ– UGF)
Introdução
No Gênesis, vê-se que a linguagem é um atributo da divindade, pois o criador dela se vale quando realiza sua
obra. Deus cria o mundo falando. No início, não havia nada. Depois, há o caos:
No princípio, criou Deus o céu e a terra. A terra, contudo, estava vazia e vaga e as trevas cobriam o abismo e o
Espírito de Deus pairava sobre as águas (1,1,2).
A passagem do caos à ordem (=cosmo) faz-se por meio de um ato de linguagem. É esta que dá sentido ao
mundo. O poder criador da divindade é exercido pela linguagem, que tem, no mito, um poder ilocucional, já
que nela e por ela se ordena o mundo:
Deus disse: “Faça-se a luz”. E a luz foi feita. E viu Deus que a luz era boa: e separou a luz e as trevas. Deus
chamou à luz dia e às trevas, noite; fez-se uma tarde e uma manhã, primeiro dia (1.3,5).
Ao mesmo tempo que faz as coisas, Deus denomina-as. No universo mítico, dar nome é criar. Até o quinto dia,
o senhor vai criando lingüisticamente o mundo.
A expulsão do paraíso foi a colocação do homem na História. No âmbito da linguagem, o que pertence à ordem
da História é o discurso. Colocar o homem na História é enunciá-lo.
Dentro desta visão performativa da linguagem, é que nos propomos, num esforço de síntese, a acompanhar a
evolução do pensamento de Austin.
A TEORIA DOS ATOS DE FALA
A Teoria dos Atos de Fala surgiu no interior da Filosofia da Linguagem, no início dos anos sessenta, tendo sido,
posteriormente apropriada pela Pragmática. Filósofos da Escola Analítica de Oxford, tendo como pioneiro o
inglês John Langshaw Austin (1911-1960), seguido por John Searle e outros, entendiam a linguagem como uma
forma de ação ("todo dizer é um fazer"). Passaram, então, a refletir sobre os diversos tipos de ações humanas
que se realizam através da linguagem: os "atos de fala", (em inglês, "Speech acts").
A Teoria dos Atos de Fala tem por base doze conferências proferidas por Austin na Universidade de Harvard,
EUA, em 1955, e publicadas postumamente, em 1962, no livro How to do Things with words. 0 título da obra
resume claramente a idéia principal defendida por Austin: dizer é transmitir informações, mas é também (e
sobretudo) uma forma de agir sobre o interlocutor e sobre o mundo circundante.
Até então, os lingüistas e os filósofos, de modo geral, pensavam que as afirmações serviam apenas para
descrever um estado de coisas, e, portanto, eram verdadeiras ou falsas. Austin põe em xeque essa visão
descritiva da língua, mostrando que certas afirmações não servem para descrever nada, mas sim para realizar
ações.
Inicialmente, Austin (1962) distinguiu dois tipos de enunciados: os constativos e os performa1ivos:
• enunciados constativos são aqueles que descrevem ou relatam um estado de coisas, e que, por isso, se
submetem ao critério de verificabilidade, isto é, podem ser rotulados de verdadeiros ou falsos. Na prática, são
os enunciados comumente denominados de afirmações, descrições ou relatos, como Eu jogo futebol ; A Terra
gira em torno do sol; A mosca caiu na sopa, etc.;
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• enunciados performativos são enunciados que não descrevem, não relatam, nem constatam
absolutamente nada, e, portanto, não se submetem ao critério de verificabilidade (não são falsos nem
verdadeiros). Mais precisamente, são enunciados que, quando proferidos na primeira pessoa do singular do
presente do indicativo, na forma afirmativa e na voz ativa, realizam uma ação (daí o termo performativo: o
verbo inglês to perform significa realizar). Eis alguns exemplos: Eu te batizo em nome do Pai, do Filho e do
Espírito Santo; Eu te condeno a dez meses de trabalho comunitário; Declaro aberta a sessão; Ordeno que
você saia; Eu te perdôo. Tais enunciados, no exato momento em que são proferidos, realizam a ação denotada
pelo verbo; não servem para descrever nada, mas sim para executar atos (ato de batizar, condenar, perdoar,
abrir uma sessão, etc.). Nesse sentido, dizer algo é fazer algo. Com efeito, dizer, por exemplo, Declaro aberta a
sessão não é informar sobre a abertura da sessão, é abrir a sessão. São os enunciados performativos que
constituem o maior foco de interesse de Austin.
É preciso observar, no entanto, que o simples fato de proferir um enunciado performativo não garante a sua
realização. Para que um enunciado performativo seja bem-sucedido, ou seja, para que a ação por ele designada
seja de fato realizada, é preciso, ainda, que as circunstâncias sejam adequadas. Um enunciado performativo
pronunciado em circunstâncias inadequadas não é falso, mas sim nulo, sem efeito: ele simplesmente fracassa.
Assim, por exemplo, se um faxineiro (e não o presidente da câmara) diz Declaro aberta a sessão, o
performativo não se realiza (isto é, a sessão não se abre), porque o faxineiro não tem poder ou autoridade para
abrir a sessão. 0 enunciado é, portanto, nulo, sem efeito (ou, nas palavras de Austin, "infeliz").
Aos critérios que precisam ser satisfeitos para que um enunciado performativo seja bem-sucedido, Austin
denominou "condições de felicidade”. As principais são:
. falante deve ter autoridade para executar o ato (como no exemplo do parágrafo anterior);
. as circunstâncias em que as palavras são proferidas devem ser apropriadas (se o presidente da câmara
declara aberta a sessão, sozinho, em sua casa, o performativo não se realiza, porque não está sendo enunciado
nas circunstâncias apropriadas);
Posteriormente, ao tentar fixar um critério gramatical para os enunciados performativos (inicialmente, o critério
verbo na primeira pessoa do singular do presente do indicativo etc.), Austin esbarra em muitos problemas, pois
constata, entre outras coisas, que:
1. nem todo enunciado performativo tem verbo na primeira pessoa do singular do presente do indicativo na
forma afirmativa e na voz ativa. Eis alguns exemplos:
Proibido fumar; Vocês estão autorizados a sair; Todos os funcionários estão convidados para a reunião de hoje.
Nesses exemplos, os atos de proibição, autorização e convite se realizam sem o emprego de proíbo, autorizo e
convido;
2. nem todo enunciado na primeira pessoa do singular do presente do indicativo na forma afirmativa e na voz
ativa é performativo. Eis alguns exemplos: Eu jogo futebol; Eu corro; Eu estudo inglês. Nesses exemplos, os
atos de jogar futebol, correr e estudar inglês não se realizam ao se enunciar tais sentenças.
Apesar disso, Austin não abandona, logo de início, a idéia de encontrar um critério gramatical para definir os
enunciados performativos, mas parece que acaba encontrando mais problemas do que soluções. Um deles é a
constatação de que pode haver enunciados performativos sem nenhuma palavra relacionada ao ato que
executam. É o caso, por exemplo, de enunciados como Curva perigosa e Virei amanhã, que podem equivaler,
respectivamente, a Eu te advirto que a curva é perigosa e Eu prometo que virei amanhã. É o caso também dos
imperativos, como Feche a porta, cuja performatividade pode ser explicitada em Eu ordeno que você feche a
porta.
Há, porém, uma diferença entre esses dois tipos de performativo: Eu ordeno que você saia é uma frase que
tem uma indicação muito precisa do ato que realiza: trata-se de uma ordem e nada mais. Já Saia é vago ou
ambíguo: pode ser uma ordem, um pedido, um conselho etc.
Face a essa constatação, Austin passa a propor a distinção performativo explícito (para enunciados com
performatividade explícita, como em Eu ordeno que você saia), em oposição a performativo implícito, ou
primário (para enunciados sem performatividade explícita, como em Saia). 0 performativo primário seria uma
espécie de forma reduzida do performativo explícito.
A partir dessa distinção, Austin constata que a denominação performativo primário também se aplica aos
enunciados constativos, e acaba admitindo que a distinção constativo-performativo se desfaz, já que é possível
transformar qualquer enunciado constativo em performativo, bastando antecedê-lo de verbos como declarar,
afirmar, dizer, etc. Por exemplo– [Eu afirmo que] A mosca caiu na sopa; [Eu digo que]vai chover; [Eu afirmo
que]A terra é redonda, etc.
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Ao concluir que todos os enunciados são performativos (porque, no momento em que são enunciados, realizam
algum tipo de ação), Austin retoma o problema em novas bases, e identifica três atos simultâneos que se
realizam em cada enunciado: o locucionário, o ilocucionário e o perlocucionário:
Austin, então, postula que todo ato de fala é ao mesmo tempo locucionário, ilocucionário e perlocucionário.
Assim, quando se enuncia a frase Eu prometo que estarei em casa hoje à noite, há o ato de enunciar cada
elemento lingüístico que compõe a frase. É o ato locucionário. Paralelamente, no momento em que se enuncia
essa frase, realiza-se o ato de promessa. É o ato ilocucionário: o ato que se realiza na linguagem. Quando se
enuncia essa frase, o resultado pode ser de ameaça, de agrado ou de desagrado. Trata-se do ato
perlocucionário: um ato que não se realiza na linguagem, mas pela linguagem.
Todas essas noções são retomadas e sistematizadas por John Searle, primeiramente em Speech actos (1969) e
depois em Expression and meaning (1979). Searle distingue cinco grandes categorias de atos de linguagem:
1. os representativos (mostram a crença do locutor quanto à verdade de uma proposição: afirmar, asseverar,
dizer);
2. os diretivos (tentam levar o alocutário a fazer algo: ordenar, pedir, mandar);
3. os comissivos (comprometem o locutor com uma ação futura: prometer, garantir);
4. os expressivos (expressam sentimentos: desculpar, agradecer, dar boas vindas);
5. e os declarativos (produzem uma situação externa nova: batizar, demitir, condenar).
Searle postula que, ao se comunicar uma frase, realizam-se um ato proposicional (que corresponde à referência
e à predicação, isto é, ao conteúdo comunicado ) e um ato ilocucional (que corresponde ao ato que se realiza
na linguagem). Assim, para Searle, enunciar uma sentença é executar um ato proposicional e um ato
ilocucional.
Searle chama a atenção ainda para o fato de que não há uma correspondência biunívoca entre conteúdo
proposicional e força ilocutória, dado que um mesmo conteúdo proposicional pode exprimir diferentes valores
ilocutórios. A proposição João, estude bastante, por exemplo, pode ter força ilocutória de ordem, pedido,
conselho, etc.
Essa falta de correspondência biunívoca entre a estrutura sintática dos enunciados (declarativa, interrogativa,
imperativa, etc.) e o seu valor ilocucionário (de asserção, pergunta, ordem, pedido, etc.) levou a se estabelecer
uma outra distinção no interior da Teoria dos Atos de Fala: a distinção entre atos de fala diretos e atos de fala
indiretos:
. um ato de fala é direto, quando realizado por meio de formas lingüísticas especializadas, isto é, típicas
daquele tipo de ato. Há, por exemplo, uma entonação típica para perguntas; as formas imperativas são
tipicamente usadas para dar ordens ou fazer pedidos; expressões como por favor, por gentileza, etc. são
tipicamente usadas para fazer pedidos ou solicitações, etc. Eis alguns exemplos: Que horas são? (ato de
perguntar); Saia daqui (ato de ordenar); Por favor, traga-me um copo d'água (ato de pedir);
. um ato de fala é indireto (ou derivado), quando realizado indiretamente, isto é, por meio de formas
lingüísticas típicas de outro tipo de ato. Nesse sentido, "dizer é fazer uma coisa sob a aparência de outra" . Eis
alguns exemplos:
.Você tem um cigarro? (pedido com aparência de pergunta) Quem enuncia essa frase não está perguntando se
o alocutário tem ou não um cigarro, mas sim pedindo-lhe que ceda um cigarro.
.Como está abafada esta sala! (pedido com aparência de constatação) Normalmente, quem enuncia essa frase
não está simplesmente fazendo uma constatação sobre a temperatura no interior do recinto, mas sim pedindo
que o alocutário faça algo para amenizar o calor, como abrir as janelas, ligar o ventilador, o arcondicionado,etc.
.Você pode fechar a porta? (pedido com aparência de pergunta) Quem enuncia essa frase não está perguntando
sobre a (in)capacidade fisica do alocutário de fechar a porta, mas sim pedindo-lhe que feche a porta. Seria
estranho se o alocutário pensasse que a pergunta é mera curiosidade e respondesse simplesmente sim ou não.
Nesses casos, Searle (1982) denomina de "secundários" os atos de perguntar, constatar, etc. e de "primário" o
ato de pedir. No entanto, do ponto de vista da interpretação, pode-se dizer que o valor de pergunta e
constatação é "literal", e o valor de pedido, "derivado".
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O principal mecanismo interpretativo que intervém na decodificação dos atos de fala indiretos são as célebres
máximas conversacionais do lingüista Paul Grice. Quanto menos convencionalizado é um ato de fala indireto,
mais ele necessita do contexto para esclarecer seu valor ilocutório.
Antes de concluir, cumpre salientar que a Teoria dos Atos de Fala trouxe para o foco de atenção dos estudos
lingüísticos os elementos do contexto (quem fala, com quem se fala, para que se fala, onde se fala, o que se
fala, etc.), os quais fornecem importantes pistas para a compreensão dos enunciados. Essa proposta muito tem
influenciado e inspirado os estudos posteriores destinados a aprofundar as questões que envolvem a análise
dos diferentes tipos de discurso. Com efeito, os atos de fala são, hoje, uma fonte inesgotável de trabalhos tanto
na área da Pragmática, quanto na área da Lingüística em geral, bem como em outras áreas de estudos
lingüísticos.
Para muitos, a obra de Austin constituiu um verdadeiro marco divisor dos estudos lingüísticos, inaugurando
uma nova concepção de linguagem: uma concepção performativa e pragmática de uso da linguagem,
rompendo, assim, com uma longa tradição de estudos lingüísticos, caracterizada por uma concepção
meramente descritiva da linguagem.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
AUSTIN, John L. How to do Things with words. New York: Oxford University Press, 1965.
SEARLE, John R. Expression and meaning. Cambridge: Cambridge University Press, 1979.
SILVA, Gustavo Adolfo Pinheiro da. Pragmática: a ordem dêitica do discurso. Rio de Janeiro: ENELIVROS, 2005.

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