HELLEN MORAIS-correçõespósbanca
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HELLEN MORAIS-correçõespósbanca
11 INTRODUÇÃO A proposta deste estudo, feita pela professora Dra. Aparecida Nunes, orientadora do presente trabalho, parecia estranha de início mas, rapidamente, se revelou plausível e intrigante. A informação de que Juscelino Kubitschek se deslocava até São Lourenço, no Sul de Minas, para visitar o templo da Sociedade Brasileira de Eubiose1, como provam fotografias divulgadas no livro “JK JK! A Conexão Esotérica” do jornalista (e eubiota) Miguel Henrique Borges - e as quais serão apresentadas neste trabalho, surgiu como a ponte entre a história oficial e as diferentes versões dos momentos mais polêmicos da vida política de JK. Uma dessas versões apresenta Juscelino como o expresidente que alavancou o desenvolvimento nacional ao implementar a indústria e transferir a capital federal para a região central do país, outra o mostra como o presidente que, em virtude da construção de Brasília, mergulhou o país na inflação e no endividamento externo, além de romper com o FMI. O livro de Miguel Borges, publicado em 2002, foi o ponto de partida para este estudo. Para escrever a obra, o jornalista teve à sua disposição os arquivos da Sociedade Brasileira de Eubiose, o que levou os chamados iniciados (eubiotas) a considerarem a obra como uma valiosa contribuição à história do país, uma vez que revela a inclinação de JK para a espiritualidade e as ordens esotéricas (no caso, a Eubiose), as quais o teriam influenciado em suas grandes decisões como presidente. Essa informação, conhecida dos eubiotas, não era divulgada pela Eubiose e foi trazida a público através do supracitado livro escrito por ocasião do centenário do nascimento de JK. No livro, Borges cita a discrição do presidente em relação à sua inclinação para a religiosidade não ligada ao catolicismo (já que Juscelino Kubitschek jamais divulgou ter ligação com ordens esotéricas, declara Borges no livro). O jornalista ainda afirma que a concretização de Brasília, por exemplo, não se resume a um mero capricho de Juscelino, mas à obra de um “gênio transcendente”, dotado de superioridade. Juscelino teria sido 1 Eubiose é a filosofia do viver em harmonia com a natureza. É difundida em todo o mundo pela Sociedade Brasileira de Eubiose, com sede na cidade de São Lourenço – Minas Gerais, e funciona como colégio iniciático, aberto a qualquer pessoa independentemente de suas crenças ou etnias. A palavra Eubiose foi criada pelo teósofo brasileiro Henrique José de Souza a partir das raízes gregas Eu (eús, eú, bom, bem), bio (bios, vida) e ose (osis, processo, ação, condição), significando, portanto, processo ou condição de bem viver. 12 um homem designado por “ordens superiores” para a idealização e concretização da nova capital federal, e o próprio JK relata, em suas autobiografias, ter essa convicção. O objeto de análise escolhido foi o conjunto de discursos proferidos por Juscelino durante os cinco anos de mandato como presidente da República. O fato de o estudo ser orientado para a área de Letras permite que as análises não se restrinjam à política e a história, mas englobem a sociologia, a filosofia e, principalmente, a ideologia presente nos discursos proferidos pelo ex-presidente em seus cinco anos à frente do governo federal. A escolha das palavras e verbos, a construção das frases, nada é inocente. Em conversas com o Prof. Dr. Cláudio Leitão durante as aulas de semiótica no mestrado, uma hipótese veio à tona: a possibilidade de haver um “intérprete” para o pensamento de JK. Não que o ex-presidente não soubesse se expressar em público, mas poderia haver a intenção de se apagar traços da suposta influência religiosa em seu discurso, o que também interferiria na identidade de JK conhecida publicamente. Que personalidade então seria a apresentada à nação? Segundo o professor Cláudio Leitão, o escritor e jornalista mineiro Autran Dourado seria um dos responsáveis por redigir os discursos do ex-presidente, informação confirmada pelo próprio Autran no livro “Gaiola Aberta - Tempos de JK e Schmidt” e também em entrevistas concedidas por telefone em 22 de julho de 2007 e 19 de setembro do mesmo ano, entrevistas estas que o escritor não permitiu serem gravadas. O escritor ainda cita, no livro, que havia outros ghost writers, como o poeta Augusto Frederico Schmidt. A informação me levou a supor que o espesso livro “Por que construí Brasília”, narrado em primeira pessoa e assinado por JK, poderia ter sido um desses trabalhos realizados por Autran Dourado. Durante a entrevista, ele informou que o livro foi escrito pelo também jornalista Carlos Heitor Cony, informação esta confirmada na página eletrônica de Cony (http://www.carlosheitorcony.com.br/biografia/texto.asp?id=84) e em um livro do historiador Ricardo Maranhão (1985, p. 104). Esses dados despertaram minha preocupação antes mesmo do início das análises, uma vez que os meus questionamentos poderiam não ser solucionados por meio dos documentos que estavam sendo reunidos. Por outro lado, é certo que ninguém tem total domínio sobre o que fala ou escreve, daí a hipótese de que, mesmo se quisessem esconder possíveis traços do esoterismo presentes nos discursos de Juscelino, os ghost writers teriam travado um duelo cuja vitória é utópica. 13 O problema de pesquisa foi então definido: como Juscelino Kubitschek transparecia nos discursos que proferia se não era ele quem os escrevia? Minha expectativa era a de que tivessem ocorrido improvisos durante os pronunciamentos e meus objetivos, então, se definiram: identificar os supostos improvisos, assim como analisar essas intervenções nos pronunciamentos do ex-presidente de modo a checar como elas alteravam o conteúdo dos discursos, e também verificar quais eram as conseqüências dos improvisos. Para a estruturação do presente trabalho foi feita uma pesquisa exploratória por meio de livros e pesquisas na internet, além de uma entrevista pessoal com o jornalista Miguel Borges. O passo seguinte foi a leitura de livros sobre Juscelino Kubitschek, a exemplo de “Gaiola Aberta”, do jornalista Autran Dourado, e obras de autoria de estudiosos como Michel Foucault, Mikhail Bakhtin e Maurice Blanchot. As informações preciosas constantes no livro de Autran Dourado foram questionadas através de entrevistas feitas por telefone, contudo, o ex-assessor de imprensa do governo JK e ex-ghost writer do ex-presidente não citou, por telefone, nenhum dado que pudesse comprometê-lo ou macular o nome de Juscelino. Aparentemente ainda atuando como assessor de JK, o jornalista não disponibilizou documentos ou declarações que confirmassem as hipóteses deste trabalho, tampouco se mostrou acessível a um contato pessoal. Apesar do distanciamento de Autran Dourado durante as entrevistas via telefone, a relação próxima entre o jornalista e o ex-presidente é nítida no livro “Gaiola Aberta” e a obra não apresenta qualquer receio ao apresentar os bastidores do poder e afirmar que a gênese da ditadura militar de 1964 não aconteceu no governo de João Goulart, e sim no de JK, o qual conseguiu evitar que os vários golpes se concretizassem durante seu governo. A última etapa do trabalho se concentrou na seleção e análise dos discursos proferidos por Juscelino Kubitschek nos cinco anos de mandato como presidente, registrados em cinco livros disponibilizados no Memorial JK em Brasília. O estudo foi dividido em seis capítulos. O primeiro apresenta a história pessoal de Juscelino, da vida pobre em Diamantina até o ingresso na vida pública, além de tratar do político JK; o capítulo seguinte traz a história da capital federal, desde a polêmica a respeito da transferência do governo à concretização de Brasília; o capítulo posterior trata dos dois mais famosos ghost writers do ex-presidente, o escritor Autran Dourado e o poeta Frederico Augusto Schmidt, nomes-chave neste estudo; o capítulo quatro apresenta os discursos proferidos por Juscelino, discursos estes supostamente escritos por ghost 14 writers e que teriam sido alterados por JK durante o pronunciamento dos mesmos; o capítulo seguinte apresenta as possíveis aparições de Juscelino nos discursos proferidos por ele; e o último capítulo traz a análise de discurso de alguns discursos, os quais revelariam traços da personalidade do ex-presidente que teriam sido manifestados nos pronunciamentos, uma vez que Juscelino era um expert em improvisos e sempre os fazia quando discursava. O mote desse estudo é o discurso político entremeado pelo religioso, de modo a potencializar a retórica a ponto de convencer os interlocutores, os brasileiros, de que JK teria sido designado por forças superiores para as realizações a que se propôs antes mesmo de ser eleito. As análises supracitadas baseiam-se na teoria do dialogismo de Mikhail Bakhtin e, principalmente, na da morte do autor de Michel Foucault. De acordo com o filósofo, não se pode reduzir o sujeito do enunciado aos elementos gramaticais, ou seja, a análise implica questionamentos, no mínimo, sociológicos. A pergunta eminentemente foucaultiana: “Quem é o autor?” exige uma resposta bastante complexa e o lugar de onde se diz seria considerado mais importante do que sua autoria. A contextualização dos discursos e tudo o que os precede são importantes não apenas para sua compreensão, mas para a definição daquilo que pode ser dito e de como o pode ser. E o que Bakhtin teria a oferecer a este estudo? Sua teoria sobre a alteridade. Segundo ele, o que dizemos depende do sujeito com o qual interagimos; como um espelho que nos permite ver em nós o que somente os outros podem ver. Isso porque tudo o que dizemos e fazemos depende do olhar do outro, da interação de outrem; o outro é co-autor dos nossos atos. É importante ressaltar que este trabalho não pretende fazer qualquer previsão sobre novas páginas na biografia de Juscelino Kubitschek e nos livros de história do Brasil. Esta dissertação se coloca como o início de uma investigação sobre como o principal mito da política nacional teria sido construído por seus assessores e guiado por sua suposta crença em “forças superiores”, mudando definitivamente os rumos do país. 15 1 JK, O HOMEM E O POLÍTICO Meu sonho é viver e morrer em um país em liberdade. Juscelino Kubitschek de Oliveira Do nascimento do menino Juscelino Kubitschek de Oliveira ao nascimento do político JK passaram-se 30 anos. Seria o surgimento de um mito que mudaria os rumos do país, a começar pela localização da capital federal, até então consolidada na cidade do Rio de Janeiro. Uma estória pessoal que entrou para a história do Brasil: a vida de um menino humilde do centro-oeste de Minas, filho de uma professora primária descendente de tchecos, d. Júlia Kubitschek, e de um caixeiro viajante, João César de Oliveira, um pé-de-valsa que gostava de violão, serestas e boa comida. João César morreu, vítima da tuberculose, quando Juscelino tinha apenas dois anos de idade. O garoto, chamado de “Nonô”, foi criado e educado pela mãe e, em decorrência das condições financeiras da família, só teve seu primeiro par de sapatos aos doze anos de idade. A alternativa para conseguir fazer o curso ginasial foi entrar para o seminário, embora o menino jamais tivesse demonstrado qualquer vocação para o sacerdócio. A monotonia no seminário e a consciência de “Nonô” em relação à vida sacrificada da mãe o tornaram silencioso e reservado, o oposto do pai. Livros emprestados permitiram que Juscelino continuasse seus estudos e o primeiro emprego, como telegrafista em Belo Horizonte, concretizou o sonho do diploma em medicina, conquistado em 1927. A permanência em Paris por sete meses, no ano de 1930, garantiu a especialização em urologia e uma experiência valiosa para a futura carreira política, embora, nessa época, JK ainda não tivesse conhecido a “mosca azul” da política. Novamente em Belo Horizonte, JK desposou Sarah Lemos, filha de um exdeputado federal. Mas não foi ela a ponte para o ingresso de “Nonô” na política. Durante a Revolução Constitucionalista de 1932, quando Juscelino serviu no front na divisa de Minas com São Paulo como capitão-médico da Força Publica de Minas Gerais, ele conheceu o prefeito de Pará de Minas e chefe de polícia da região dos combates, Benedito Valadares. Na capital mineira, o prestígio de “Nonô” como médico crescia e Benedito Valadares despontava na política, sem contar que Valadares tinha acesso ao presidente, Getúlio Vargas, porque era concunhado de um primo de Vargas. 16 Benedito Valadares, então nomeado por Getúlio Vargas como interventor federal de Minas Gerais, convidou JK a assumir um cargo que atualmente equivale ao de secretário de governo. Apesar do pé na política, Juscelino manteve o consultório de urologia de portas abertas. Juscelino só se entregou à carreira política quando teve notícias de que Diamantina estava “em situação de abandono”. Com a projeção dada pelo cargo político, Juscelino disputou sua primeira eleição em 1934, ano em que, finalmente, fechou seu consultório. Foi o deputado federal mais votado em Minas pela chapa do Partido Progressista. Empossado no ano posterior, perdeu o mandato em novembro de 1937, em virtude de o golpe do Estado Novo ter fechado a Câmara e o Senado. A perda do mandato levou Juscelino a voltar a Belo Horizonte e à rotina do consultório. A dedicação à profissão parecia apagar qualquer chance de retorno à política. Ao receber, de Benedito Valadares, o convite para assumir o cargo de prefeito da capital em fevereiro de 1940, JK não aceitou, porém acabou nomeado prefeito pelo governador em 16 de abril do mesmo ano. Juscelino respondeu com o anúncio de que administraria na rua e não em um gabinete, promessa que foi cumprida e que lhe rendeu posteriormente o título de “prefeito furacão”. Com apenas 37 anos de idade, cinco anos a menos que a cidade que administrava, transformou a capital mineira, com destaque para obras como o asfaltamento da Avenida Afonso Pena, o coração da cidade, a conclusão da Avenida do Contorno, outra importante via de escoamento do trânsito de Belo Horizonte, e o conjunto arquitetônico da Pampulha, onde Niemeyer, sem saber, ensaiou os traços da futura capital do país. Eleito novamente deputado federal em 1945, tendo sido o segundo mais votado do Estado naquela eleição, Juscelino acabou por ser indicado pelo PSD, em 1950, para concorrer ao governo de Minas. Em campanha, JK visitou 168 cidades em dois meses e fez até dez comícios por dia. JK venceu seu cunhado Gabriel Passos, candidato da União Democrática Nacional (UDN), com 56,5 % dos votos e assumiu seu novo cargo em janeiro de 1961, aos 48 anos de idade. Ao assumir o Palácio da Liberdade, apresentou seu programa de governo intitulado “binômio energia e transporte”, o qual foi parodiado por um novo jornal chamado de “Binômio”, fundado por dois jovens jornalistas, Euro Arantes e José Maria Rabêlo. O jornal defendia a política esquerdista e circulou em Belo Horizonte entre 1952 e 1964. Foi um precursor do “Pasquim” que fez oposição ao governo JK até a presidência da república e tinha como bandeira a frase “sombra e água fresca”. 17 Juscelino não se intimidou e colocou o programa em prática. O estilo à frente do governo mineiro logo rendeu o apelido de “governador a jato”. Ele promoveu a industrialização do Estado, até então com vocação exclusivamente agropecuária, a começar pela criação de empresas energéticas regionais. A eletrificação permitiu, por exemplo, a instalação de uma siderúrgica na região central do Estado. Os investimentos no setor de transportes levaram à construção de mais de três mil quilômetros de estradas-tronco e o número de campos de pouso para aviões de porte médio chegou a 75. A agricultura ganhou uma empresa fabricante de adubos com a apatita de Araxá e o potássio de Poços e Caldas e, a pecuária, uma companhia de frigoríficos. Entre outras obras, constaram a construção de 120 postos de saúde, 137 escolas e 251 pontes, números que deram destaque ao mineiro de Diamantina. Mas os números não garantiram a unanimidade na aprovação do governo. A imprensa e os políticos de oposição se revezavam em ataques ao então governador de Minas. Acusavam JK de corrupto por concentrar as obras nas mãos de poucas construtoras. Os ataques eram pequenos diante do estrago promovido pela UDN, em especial o jornalista Carlos Lacerda, ao governo de Getúlio Vargas. Contudo, o final de mandato como governador não foi das tarefas mais fáceis para JK. Uma das pedras no sapato de Juscelino foi o rompimento da barragem da Pampulha em abril de 1954. A corrida presidencial, em 1955, não foi diferente. Primeiramente, houve resistência dentro de seu próprio partido, o PSD, cujos membros temiam desagradar os militares e, por isso, tentaram fazer passar a tese de uma candidatura suprapartidária. A oposição também tinha eco em João Café Filho, vicepresidente que assumiu a nação após a morte de Getúlio. Tendo iniciado a campanha, JK declarou frente às pressões para desistir da candidatura: “Deus poupou-me o sentimento do medo”, frase escrita sob medida pelo ghost writer Autran Dourado. A UDN obteve até mesmo a aprovação de uma mudança no sistema de votação na tentativa de impedir a eleição de Juscelino: as cédulas, antes feitas e distribuídas por cada partido com o nome de seu candidato, passaram a ter os nomes de todos os candidatos. Na tentativa de prejudicar JK, o nome dele foi colocado em último lugar, abaixo dos nomes de Juarez Távora, Adhemar de Barros e Plínio Salgado, o que não evitou que Juscelino fosse eleito em três de outubro de 1955 com 36% dos votos válidos. Távora ficou em segundo lugar, Barros em terceiro e Salgado na quarta colocação, o que gerou protesto por parte dos opositores de JK, os quais, mesmo sem 18 amparo legal, argumentavam que o candidato eleito deveria ter a maioria absoluta dos votos. Em primeiro de novembro, durante o enterro do general Canrobert Pereira da Costa, o coronel Jurandir de Bizarria Mamede conclamou as Forças Armadas a impedir a posse do presidente eleito. O ministro da Guerra, general Henrique Lott, exigiu a punição do general Mamede. Café Filho (que não participava diretamente da conspiração contra JK mas também não se opunha à conspiração) e o deputado Carlos Luz, então presidente da Câmara, não colaboraram, o que resultou no pedido de demissão por parte do general Lott. O pedido foi aceito mas, horas depois, antes que fosse substituído, Lott realizou o que chamou de “contragolpe preventivo”, com tanques do Exército nas ruas do Rio de Janeiro. Carlos Luz e outros golpistas, a princípio, refugiaram-se, mas acabaram por se render. Café Filho ainda tentou assumir a presidência, no que foi impedido. Foi o então vice-presidente do Senado, Nereu Ramos, quem assumiu a presidência e JK finalmente pôde assumir, em 31 de janeiro de 1956, o cargo para o qual tivera sido eleito. Antes porém da posse, em novembro de 1955, Juscelino realizou uma viagem pela Europa e Estados Unidos. Se encontrou com presidentes e chefes de governo, cumpriu protocolos como o de se ajoelhar aos pés do Papa, na época Pio XII, e fez contatos importantes para o cumprimento do chamado Plano de Metas. De volta à então capital federal, o Rio de Janeiro, em 24 de janeiro de 1956, o clima era de consagração. Sete dias depois, em companhia de seu vice, João Goulart, e aos 53 anos de idade, JK recebeu, de Nereu Ramos, a faixa presidencial. Do primeiro ministério fizeram parte o general Henrique Lott, a quem ficou devendo a posse, e o colega dos tempos de telegrafista, José Maria Alkmin. Era o início do mandato do “presidente Bossa Nova”. As características populistas do 23º líder da nação seriam logo reconhecidas: a alegria e a facilidade para lidar com as massas, que o chamavam de “Nonô”, assim como a família fazia. JK tinha assessores que lhe passavam informações preciosas para transformar promessas de palanque em propostas racionais. O governo JK se resumia a idéias de movimento, ação e desenvolvimento, na tentativa de transformar o país em uma nação próspera do Oiapoque ao Chuí, com o compromisso de despertar o “gigante adormecido”. O perfil desenvolvimentista, que definiu-se quando ele ainda era prefeito de Belo Horizonte, se consolidou na presidência da república. A esse perfil, somou-se outro: o nacionalista, que defendia o desenvolvimento nacional, os interesses nacionais, as forças nacionais e, 19 claro, a integração nacional. A sustentação política de Juscelino se embasou na aliança entre o Partido Social Democrático (PSD), o qual JK integrava, e o Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), do qual participava João Goulart, o vice-presidente. Enquanto o PSD era conservador e ruralista, o PTB defendia interesses trabalhistas. A aliança garantia ao governo de Juscelino uma posição “central”. O principal partido de oposição era a União Democrática Nacional (UDN), do qual fazia parte Carlos Lacerda. A UDN combatia a herança político e ideológica getulista que estava presente na aliança PSD/PTB. A “era JK” ficou conhecida como “Anos Dourados”. Mas a lua-de-mel durou pouco. Já em 11 de fevereiro de 1956, Juscelino enfrentou uma rebelião da Aeronáutica, a qual estava descontente com o regime e simpatizava com o que pregava Lacerda. Oficiais da Aeronáutica que estavam inconformados com a posse do novo governante foram liderados pelo major Haroldo Veloso e pelo capitão José Chaves Lameirão. O grupo partiu do Rio de Janeiro para a base aérea de Jacareacanga, no sul do Pará, e ali instalou um quartel-general. Esses oficiais temiam uma represália do grupo militar vitorioso em 11 de Novembro e, por isso, não apoiavam o ministro Vasco Alves Seco na pasta da Aeronáutica do governo JK. Após dez dias do início da rebelião, os oficiais já controlavam várias localidades e contavam com o apoio das populações locais. Os rebeldes ainda receberam o apoio de mais um oficial da Aeronáutica, o major Paulo Victor da Silva, que tinha sido enviado para combater o grupo. Mais nove dias se passaram e a rebelião foi controlada. O principal líder dos oficiais opositores, o major Haroldo Veloso, foi preso e os demais conseguiram se asilar na Bolívia. O presidente Juscelino então enviou ao Congresso um projeto de lei que concedia anistia irrestrita a todos os civis e militares participantes de movimentos políticos ou militares no período de 10 de novembro de 1955 a 19 de março de 1956. Ainda assim o clima de insatisfação e de conspiração contra o governo se manteve, principalmente na Aeronáutica. Não demorou e um novo problema bateu à porta do presidente. Tinham se passado três meses e a questão agora eram os protestos estudantis contra um aumento das passagens dos bondes no Rio de Janeiro. Houve pancadaria em frente à sede da União Nacional dos Estudantes (UNE) na praia do Flamengo e foi necessária a atuação do Exército. Rapidamente o problema se tornou de ordem pública. Estrategista, Juscelino convidou as lideranças estudantis para uma conversa no Palácio do Catete, colocou o presidente da UNE, Carlos Veloso de Oliveira, na cadeira do presidente da 20 república e perguntou o que deveria fazer para salvar o regime. Foi o suficiente para o fim da rebelião. Entre todos os presidentes eleitos entre 1946 e 1964, JK foi o presidente democrático que mais se destacou como homem público de ação. Foi um político habilidoso e audacioso que enfrentou desafios que ele próprio se impôs, como governar dentro dos limites constitucionais e democráticos; acelerar o desenvolvimento econômico, com a intensificação do desenvolvimento industrial de tipo capitalista e promover 50 anos de progresso num período de apenas 5 anos; além de integrar a nacionalidade a partir da mudança da capital para a região central do país. O programa de governo, Plano de Metas, era dividido em 30 metas, sendo as primeiras cinco referentes ao setor de energia, as sete seguintes relacionadas ao transporte, outras seis referentes à alimentação, outras onze relacionadas à indústria de base e, a trigésima, à educação. A construção de Brasília figurou como a trigésima primeira meta e foi incorporada ao Plano de Metas posteriormente, durante a campanha presidencial, atrapalhando o trabalho dos planejadores Lucas Lopes e Roberto Campos. Autran [Dourado] confirma que o Plano de Metas começou a ser escrito depois de JK eleito. No curto espaço de tempo entre a eleição e a posse, Roberto Campos e Lucas Lopes mandaram ver. Campos já tinha as idéias da cabeça; Lucas Lopes, a metodologia de projetos que trouxera da Cemig e aperfeiçoara na Consultec. O plano mesmo foi de Roberto Campos, conta Autran. Lucas e JK ficaram com a execução (http://www.lainsignia.org/2006/febrero/ibe_061.htm). Logo Brasília se tornou a prioridade do governo e passou a ser considerada a “grande meta de integração nacional” ou “meta-síntese” da administração. Apesar de não ter o apoio do Congresso e muito menos da oposição para realizar a transferência da capital federal e a construção de Brasília, os opositores não barraram o projeto por considerá-lo como o “túmulo político” de Juscelino. Sem “caixa” para realizar tudo o que o Plano de Metas preconizava, e sem poder solicitar empréstimo a outros governos, uma vez que, naquela época, o que ocorria era a injeção de capital nas economias consideradas promissoras, o então presidente implementou grande parte do programa de governo a partir da emissão de papel moeda e do incentivo à instalação de multinacionais no país. Resultado: houve aumento inflacionário e aumento do volume de capital internacional na economia brasileira. 21 Nos cinco anos à frente do país, JK provou a eficiência do Plano de Metas, como os vinte mil quilômetros de novas estradas e outros 5.600 quilômetros de rodovias asfaltadas, números superiores aos objetivos estabelecidos pelo setor no programa de governo. Foram criadas, nesse período, várias empresas governamentais como a Cemig, que permitiu melhorias no setor elétrico. A potência do segmento foi ampliada de 3 milhões para 4,7 milhões de quilowatts com a construção de grandes hidrelétricas como Furnas e Três Marias. A produção de petróleo foi de 6800 para 100 mil barris diários, época em que foram implantadas a refinaria Duque de Caxias e a indústria da construção naval, além da Sudene, responsável pelo desenvolvimento do Nordeste, e da Comissão Nacional de Energia Nuclear (CNEN). Saldo positivo também para o produto interno bruto (PIB), que cresceu sete por cento ao ano (contra cinco por cento a.a. entre 1945 e 1955), e para o PIB industrial, cujo índice chegou a 10,7% ao ano. O PIB cresceu quase 50% durante o governo JK, metade do valor máximo obtido anteriormente ao longo da história do país. A siderurgia cresceu 100%, a indústria mecânica, 125%, a elétrica e a de comunicações, 300%, e o setor de transportes em 600%. A produção industrial teve aumento de 80% e ganhou impulso no setor automobilístico. O primeiro carro de passageiros fabricado no Brasil, um sedan DKWVemag, com 50% das peças nacionais, circulou no dia 28 de abril de 1958, e o primeiro 100% nacional ficou pronto em janeiro do ano seguinte. A produção industrial em franco crescimento permitiu que a classe média pudesse consumir produtos antes inacessíveis a essa camada da sociedade em razão de serem importados e terem custos altos (Cf. WERNECK, 2002, p. 71). Já a inflação não foi motivo para orgulho: alcançou 24,7% e, enquanto o Sul e o Sudeste do país eram embalados pelo ritmo do crescimento, o Nordeste sofria com a seca e crescia a influência das Ligas Camponesas, que se espalharam pelo país pedindo a reforma agrária. A chamada, pelos congressistas ruralistas, de “Nova Marcha para o Oeste” era importante, já que 70% da população do país viviam em zonas rurais. Sabiase que o interior era um pólo consumidor pouco explorado e, ao mesmo tempo, era um pólo agropecuário responsável pela produção de alimentos que sustentava as demais regiões brasileiras. Mas a falta de uma comunicação eficaz entre os quatro cantos do país impedia o desenvolvimento equilibrado das diferentes regiões brasileiras e, sobretudo, do interior. Sanar esta deficiência era primordial para possibilitar o salto industrial programado pelo governo. Na ausência da reforma agrária, as melhorias no campo não passaram de promessas. Para essa parcela da população, os “Anos 22 Dourados” não aconteceram. Esses brasileiros permaneceram à margem do desenvolvimento do país e das melhorias que esse desenvolvimento promovia. A resposta do presidente veio com a criação da Sudene em dezembro de 1959, mas as divergências sociais permaneceram. Ao implementar o projeto nacional- desenvolvimentista, o governo ampliou o que se julgava de mais arcaico na sociedade: a grande propriedade rural, assim como a classe social e a política ligadas a ela (Ibid., p.71-76). Além da Sudene, outra sigla famosa na época foi a OPA, Operação PanAmericana, uma tentativa do então presidente de estabelecer um novo relacionamento entre os países da América Latina, na verdade, uma criação de Augusto Frederico Schmidt, ghost writer de JK, para que, por exemplo, fossem reatadas as relações com nações comunistas e fosse paga nossa dívida externa (Cf. DOURADO, 2000, p. 74-76). A idéia oficial de unir os países da América Latina foi bem recebida, mas não deu certo. Entretanto, atraiu a ajuda norte-americana para a América Latina e contribuiu para a criação do BID, Banco Interamericano de Desenvolvimento. Juscelino ainda ficou conhecido como o presidente brasileiro que abriu o país ao capital estrangeiro, ao mesmo tempo em que ocupava uma posição independente e nacionalista ao romper com o Fundo Monetário Internacional (FMI). O rompimento não foi a solução para os problemas econômicos do país, embora tenha contribuído para o aumento do apoio ao governo. E entre os pontos considerados negativos durante o quinqüênio de JK à frente do país, como a herança deixada ao governo seguinte: a crise econômica, não atrapalhou a popularidade do presidente. Segundo uma pesquisa feita em 1961 pelo Instituto Brasileiro de Opinião Pública e Estatística (Ibope), 88% dos entrevistados julgaram o governo de Juscelino como ótimo, bom ou regular e 80% afirmaram que o presidente acelerou o desenvolvimento econômico do país. Entretanto, o Brasil teve outros êxitos que tornaram a época JK inesquecível, como a conquista do primeiro título de campeã mundial pela seleção brasileira de futebol, em 1958 na Suíça; a conquista do primeiro título mundial pela seleção de basquete, no Chile no ano seguinte; e, em 1960, a vitória de Éder Jofre sobre o mexicano Eloy Sánchez, o que garantiu o primeiro título mundial do Brasil nesse segmento esportivo. Culturalmente, o país também fervilhava. O ano de 1958 foi o ano da revolução musical intitulada Bossa Nova. Foi a partir do final da década de 1950 (e, conseqüentemente, no início da década de 1960) que despontaram Vinícius de Moraes, João Gilberto, entre outros, na música; Décio Pignatari, Haroldo de Campos e Ferreira 23 Goulart na poesia; Glauber Rocha no cinema; Gianfrancesco Guarnieri no teatro; e livros como Grande sertão: veredas de Guimarães Rosa, Duas águas de João Cabral de Melo Neto e Laços de Família de Clarice Lispector, entre outros clássicos. JK era um sucesso de popularidade e os “Anos Dourados” tornaram-se uma espécie de modelo, o qual é até hoje invocado pelos políticos em corrida eleitoral. O movimento de interiorização, tão sonhado por Juscelino teve seu ápice com a inauguração de Brasília, cidade que se tornou símbolo da mudança econômica, de um Brasil agrário para um país industrializado. A população percebeu esse novo perfil brasileiro poucos meses após a inauguração da nova capital federal. Por todo o país, havia obras como estradas, barragens, centrais elétricas e outras. O clima da nação tornou-se eufórico. Entre os políticos, já se pensava em eleição presidencial. A corrida eleitoral para a sucessão de JK começou mais de um ano antes do término do mandato dele. O ministro da Guerra, general Henrique Lott, foi o candidato do PSD. O vice, mais uma vez era João Goulart, do Partido Trabalhista Brasileiro (PDT). Lott era apresentado como a continuidade do projeto nacional-desenvolvimentista e perdeu nas urnas para Jânio Quadros, que teve 48% dos votos válidos naquele três de outubro de 1960. No dia de passar a faixa para o sucessor (31 de janeiro de 1961), Juscelino foi informado de que Jânio pretendia insultá-lo. JK levou então no bolso dois discursos (http://www.terra.com.br/istoe/biblioteca/brasileiro/lideres/est1.htm), segundo a filha Márcia: um deles, específico para rebater as críticas caso o sucessor ousasse ser deselegante durante a cerimônia. Juscelino estaria preparado até para o caso de a passagem da faixa presidencial acabar em agressão física. Prevenido da possível reação de Juscelino, Jânio Quadros desistiu dos insultos. JK já havia declarado à imprensa de que sua vida seria um tédio após transmitir o cargo de presidente e estava interessado na reeleição em 1965. Juscelino sabia que as contas de seu Plano de Metas explodiriam no governo seguinte. Dessa forma, preferiria que a oposição vencesse e recebesse a “bomba”, tivesse o ônus da impopularidade e, então, facilitasse a sua volta ao poder. Muito antes da eleição de 1965, Juscelino estava de volta à política. Em janeiro de 1961, o senador Taciano Gomes de Melo, do PSD de Goiás, foi convencido a renunciar, o que abriu uma vaga que seria preenchida em uma eleição complementar. Seis meses depois, Juscelino era eleito senador, seu último cargo político. JK preparava a campanha “JK-65: 5 anos de agricultura, 50 anos de fartura”, mas ele não contava 24 com o golpe de 1964, uma guinada na história do país maior do que a provocada pela renúncia de Jânio Quadros em 25 de agosto de 1961. O golpe tirou do cargo de presidente da república João Goulart, vice de Jânio, e, em 11 de Abril de 1964, o Congresso Nacional elegeu o general Humberto de Alencar Castelo Branco como presidente do Brasil. Um dos eleitores do general foi o senador Juscelino Kubitschek. Na época, Castelo Branco prometeu a Juscelino manter as eleições de 1965, mas não cumpriu. A vida do ex-presidente se tornou difícil. Ele era intimidado a depor sobre casos de corrupção, até mesmo da época em que foi prefeito de Belo Horizonte. Embora tivesse votado no general, JK figurou entre os políticos com o mandato cassado, e ficou exilado por 976 dias. Durante o exílio, Juscelino esteve no Brasil por duas vezes. Em uma delas, veio para o enterro da irmã, “Naná”. Em outra, mal desceu do avião e recebeu duas intimações para depor em inquéritos policiais militares. Ele era acusado de ligação com os comunistas e de corrupção. As investigações sobre as contas de JK não paravam. Os militares não davam trégua. Até mesmo Lacerda se voltou contra o golpe e se uniu a Juscelino pela redemocratização na Frente Ampla, o que foi em vão com o AI-5, em 13 de dezembro de 1968. Naquela noite, JK foi preso ao sair de uma formatura no Teatro Municipal do Rio de Janeiro, solenidade durante a qual foi paraninfo de uma turma de engenheiros. Juscelino foi mantido, durante vários dias, em um pequeno quarto e, posteriormente, permaneceu em regime de prisão domiciliar. O dia 22 de agosto de 1976 foi novo marco na história do mito JK. Tinham se passado apenas duas semanas da data em que correu pelo país a notícia de que o presidente havia morrido em um acidente automobilístico. Dessa vez, a notícia seria verdadeira: o Opala que transportava o ex-presidente Juscelino Kubitschek de Oliveira pela via Dutra atravessou o canteiro central no Km 162,5 da rodovia, invadiu a pista contrária e colidiu com uma carreta carregada com 30 toneladas de gesso. O carro foi arrastado para fora da estrada e destruído. Os dois ocupantes, JK e seu motorista Geraldo Ribeiro, não resistiram aos ferimentos. De acordo com a perícia, o Opala foi tocado na traseira por um ônibus, o que deixou o veículo desgovernado. Contudo, o motorista do ônibus negou a versão. Afirmou que o carro não fez a curva do Km 162,5. O motorista do ônibus foi duas vezes julgado; e absolvido, segundo o jornalista Timóteo Lopes em um artigo publicado recentemente na internet pelo site “No mínimo” (http://nominimo.ig.com.br/notitia/servlet/newstorm.notitia.presentation.NavigationServ let?publicationCode=1&pageCode=54&textCode=20792¤tDate=1138845660000). 25 Assim como as mortes de Getúlio Vargas e Tancredo Neves, o acidente de Juscelino Kubitschek gerou dúvidas e várias teorias conspiratórias. Entre as teorias, está a de que o motorista Geraldo Ribeiro teria sido baleado na cabeça. Outras seriam de sabotagem no veículo ou mesmo um atentado provocado pela Operação Condor, organização secreta criada pelas ditaduras do Cone Sul, na década de 1970, para afastar lideranças políticas adversárias. De acordo com o historiador Ronaldo Costa Couto, Sarah Kubitschek e a filha Márcia morreram acreditando em homicídio doloso. O historiador ainda afirma que a Câmara Federal criou em 2000 uma comissão para verificar as causas e as circunstâncias do acidente que matou JK. Durante sete meses de trabalho, foram colhidos vários depoimentos, houve discussões e debates técnicos, assim como repericiamento, simulações de hipóteses e viagens investigativas ao Chile, Paraguai e Estados Unidos. O resultado confirmou que o episódio resultante na morte de Juscelino foi um acidente, mas, segundo Couto, JK estaria na agenda da Operação Condor. As versões “misteriosas” ganharam força com o velório de Juscelino e o do motorista, realizados na sede da “Revista Manchete”, prédio onde Juscelino tinha um escritório no 12º andar. Os caixões teriam chegado ao local na madrugada do dia 23 e teriam permanecido lacrados durante todo o período da “despedida” de JK e o motorista Geraldo Ribeiro, profissional que trabalhava para o ex-presidente havia 36 anos. O motivo do lacre seria a desfiguração dos cadáveres em virtude da violência do acidente, o que despertou curiosidade por serem os caixões idênticos e terem sido igualmente ornados, com cravos vermelhos, brancos e roxos. Nada de bandeiras ou outras honras que pudessem diferenciar o corpo de Juscelino do de seu fiel motorista, de acordo com o artigo divulgado no site “No mínimo”. Ao meio-dia, saiu o cortejo com o caixão do ex-presidente. O destino era o Aeroporto Santos Dumont, de onde foi transportado até Brasília para o sepultamento no Campo da Esperança, de onde foi retirado em 1981 para o transporte até o Memorial JK, projetado por Niemeyer. Por volta das 4h da tarde, o caixão de Geraldo Ribeiro foi levado até o Cemitério São João Batista, no Rio de Janeiro. Ainda não era o fim da polêmica. O escritor e jornalista Murilo Mello Filho afirma: “Não foi uma nem duas vezes que ouvi falar de um possível engano, uma troca despropositada”. (...) “Logo, o corpo de Juscelino Kubitschek poderia ter sido sepultado no Rio e o de Geraldo Ribeiro no Campo da Esperança, em Brasília” 26 (http://nominimo.ig.com.br/notitia/servlet/newstorm.notitia.presentation.NavigationServ let?publicationCode=1&pageCode=54&textCode=20792¤tDate=1138845660000). A polêmica reacendeu-se quando da exumação do corpo do ex-presidente. Nenhum parente próximo de JK teria testemunhado o procedimento, garante Timóteo Lopes. E no artigo publicado no site “No mínimo” (Ibid.), Lopes ainda afirma que: ...Na única vez em que escreveu algumas linhas sobre as cerimônias fúnebres, Carlos Heitor Cony não menciona o suborno2 revelado por Murilo Mello Filho, mas também reforça a desordem e a possibilidade dos restos mortais de Juscelino Kubitschek não estarem repousando no Memorial JK, em Brasília. “Quem não acreditar que não acredite”, diz ele na crônica intitulada ‘Coisas que acontecem’, publicada em 4 de junho de 2005 na página dois da “Folha”. Uma outra versão para a morte enigmática de Juscelino Kubitschek foi insinuada também em 2005 pelo jornalista Miguel Henrique Borges, ex-editor da Revista Ano Zero, ex-cronista dos jornais Última Hora e O Dia, ex-secretário da Presidência da República e ex-presidente do Conselho Nacional de Cinema. O livro de sua autoria intitulado “JK JK! A Conexão Esotérica” apresenta um Juscelino ligado à religiosidade e a ordens esotéricas, e que teria cumprido ordens “superiores” em sua “passagem por este mundo”. A obra apresenta diversas fotos de JK na sede da Sociedade Brasileira de Eubiose, em São Lourenço (MG), na década de 1970 e narra episódios ocorridos na mesma época, mas a ligação do ex-presidente com a religiosidade seria anterior. Borges narra, por exemplo, o caso de um frade misterioso que teria entrado no Palácio das Mangabeiras em Belo Horizonte, em 1454, quando JK governava Minas. O episódio teria sido narrado pelo Coronel Affonso Heliodoro, Policial Militar reformado e presidente do Instituto Histórico e Geográfico de Brasília. De acordo com a narrativa do coronel, o então governador Juscelino Kubitschek teria sido informado da vista, não 2 O dono da Editora Bloch, Adolfo Bloch, alegava que muitas pessoas que deram as costas a Juscelino nos anos de ostracismo do ex-presidente se interessaram, naquele momento, pela posse do cadáver de JK. Bloch afirmava que a “Manchete” era o único e último refúgio de Juscelino e, daí, veio a idéia de desviar o trajeto dos dois corpos, que eram esperados pela diretora Niomar Muniz Sodré Bittencourt no Museu de Arte Moderna. Adolfo Bloch pediu que Murilo Mello Filho, o escritor Carlos Heitor Cony e o repórter Tarlis Batista, entre outros funcionários, realizassem a tarefa. Tarefa esta muito difícil, segundo Mello Filho. “O motorista só aceitou mudar de percurso quando lhe demos uma boa gorjeta”, afirma (http://nominimo.ig.com.br/notitia/servlet/newstorm.notitia.presentation.NavigationServlet?publicationCo de=1&pageCode=54&textCode=20792¤tDate=1138845660000). 27 agendada, de um religioso. Juscelino o teria recebido e tido uma conversa rápida. O frade teria pedido que o governador não deixasse de pensar na humanidade e se preparasse para ser presidente da república. O religioso o teria abençoado e se retirado. Perplexo, JK teria pedido que se verificasse o ocorrido, contudo, a guarda e a portaria garantiram que ninguém havia entrado ou saído do Palácio. Affonso Heliodoro ainda teria ouvido de Juscelino outro episódio ocorrido no Palácio das Mangabeiras, desta vez em 1955. Um amigo político teria procurado JK e solicitado que ele abrisse mão da candidatura à presidência, pedido que teria tido como resposta a frase: “Não adianta, Zé. Está escrito nas estrelas”. Os dois casos foram narrados pelo Coronel Affonso Heliodoro no livro de sua autoria intitulado “JK exemplo e desafio” e confirmados em entrevista concedida ao jornalista Miguel Borges (2002, p. 52-53). Borges também cita, em sua obra, um trecho, supostamente ligado à religiosidade, presente no livro assinado por JK e intitulado “Meu caminho para Brasília - 50 anos em cinco”, publicado em 1974. No trecho, o ex-presidente comenta a provável profecia feita por Dom Bosco, a qual previa o aparecimento da Grande Civilização da Terra Prometida entre os paralelos 15º e 20º, os mesmos paralelos que norteiam a localização de Brasília: 28 Eram duas da manhã. [...] Não sei porque lembrei-me de repente da profecia de Dom Bosco: No dia 30 de agosto de 1933, tive um sonovisão. Mas isso não era tudo. Entre os paralelos 15º e 20º havia um leito muito largo e extenso, que partia de um ponto onde se formava um lago. Então uma voz disse repetidamente: “Quando escavarem as minas escondidas no meio destes montes, aparecerá aqui a Grande Civilização, a Terra Prometida, onde correrá leite e mel. Será uma riqueza inconcebível! E estas coisas acontecerão na terceira geração.” Recordei, palavra por palavra, o que lera no volume XVI das Memórias Biográficas. Era a famosa profecia sobre a Grande Civilização que iria surgir entre os paralelos 15º e 20º a área em que Brasília estava sendo construída. O lago, da visão do santo, já figurava no Plano-Piloto de Lúcio Costa. [...] E veio-me à mente, outra vez, a frase do santo de Becchi: “E essas coisas acontecerão na terceira geração.” Dom Bosco falecera em 1888. Computando-se o período de vinte anos para cada geração, era óbvio que a década dos 50 seria a da “terceira geração”. As forças misteriosas que regem o mundo haviam agido no sentido de que as circunstâncias se articulassem e criassem a “oportunidade” para que o velho sonho se convertesse em realidade. Justamente na década dos 50 a idéia havia chegado à maturação, requerendo execução. Naquela madrugada, olhando as árvores do Parque Guinle, procurava tirar ilações da profecia de dom Bosco. Existia uma curiosa coincidência de local e de data. O importante, porém, era que a construção da nova capital estava em andamento. Foi aí, mergulhado no devaneio imposto pelo silêncio da noite, que concebi a idéia de denominar a construção de Brasília – “Meta-Síntese” (KUBITSCHEK, 1974, p. 171 apud BORGES, 2002, p. 103-104). Ao final do livro “JK JK! A Conexão Esotérica”, Miguel Borges apresenta um suposto diálogo entre JK e o “espírito” de um falecido membro da Eubiose, professor Henrique José de Souza. A “Manifestação”, como chama o jornalista, teria dito que JK não era o 23º presidente do Brasil por acaso.3 O diálogo está relacionado ao comportamento de JK descrito nas páginas finais da obra de Miguel Borges, onde consta a suposta despedida de Juscelino “deste mundo” após um diálogo do então presidente com a suposta “Manifestação”: 3 A soma dos números 2 e 3 resulta em 5. O número cinco corresponde, para os Eubiotas, ao “quinto filho do Eterno, aquele que traz a luz, ação”, afirmou Borges em entrevista concedida em São Lourenço em 21 de abril de 2007. 29 _ Que dúvida! Você é o moderno I-Juca Pirama. Em Tupi quer dizer: “Aquele Que Vai Morrer” [sic]. Está no poema de Gonçalves Dias: “Além dos Andes revive o forte que soube contrastar os medos da morte” [disse a Manifestação]. _ Dos Andes? [perguntou Juscelino]. _ Da montanha. Cada herói tem a sua. No seu caso, é a Mantiqueira [afirmou a Manifestação]. _ Não gosto da idéia de me amarrarem no penhasco para me morderem... [retrucou JK]. _ Mas na hora da passagem para outra dimensão, de sair da vida para entrar na História, você nada sofrerá. [...] Eles [Senhores do Carma, segundo a Manifestação] vão tirar você da cena de sangue um minuto antes do impacto final. Seu corpo, JK, será dilacerado, enquanto seu espírito passará incólume pelas nuvens densas [explicou a Manifestação]. [...] Dá para apostar [conclui Borges]. Foi por isso que ele [JK], sem quê nem pra quê, chegou à janela e mostrou a montanha a uma criança, seu afilhado Osíris, naquele dia de agosto de 1976, em Belo Horizonte. Por isso também, no domingo, 22, fez o motorista e amigo Geraldo Ribeiro sair momentaneamente da Via Dutra, entre São Paulo e Rio de Janeiro, para dar uma breve passada no acesso à subida da Serra, no rumo a São Lourenço. Pediu uma pausa na corrida e desceu para se despedir. Do alto daquela montanha, quarenta milênios o contemplavam. Então retomou seu lugar no carro, que voltou para a estrada e bateu... (BORGES, Op. cit., p. 114-115). O prefácio da obra de Miguel Borges, escrito por Elielson Vianna Gomes, Diretor da Sociedade Brasileira de Eubiose e Grão-Chanceler da Ordem do Santo Graal, assim trata do referido livro: ...apresenta a trama que envolveu o Presidente Juscelino como própria de um gênio transcendente, o que se justifica pelas grandes realizações de seu governo, sobretudo a inauguração de Brasília, construída num período de quatro anos. Como pôde fazê-la, sendo o País tido como pobre, sem verbas especiais e no regime democrático? Daí a inclinação de Juscelino Kubitschek para a espiritualidade e sua ligação com ordens esotéricas, em nível discreto, porque não é comum, nem interessa aos dotados desse pendor, alardear a superioridade. [...] Interpretações de muitos atos do Governo Juscelino são colocadas de maneira diferente pelo Autor [sic], descartando o estigma de mero capricho ou interesse menor, costumeiramente lançado sobre grandes decisões dos governantes (Ibid., p.5). Diferentemente do que acreditam os eubiotas, no livro “Brasília Kubitschek de Oliveira” o historiador Ronaldo Costa Couto afirma que, apesar de o clima esotérico que diferentes videntes e ufólogos atribuem a Brasília e à sua construção, a nova capital federal teria a ver, sim, com uma estratégia política de JK. Ao mudar a sede do poder político nacional, ele ganhava autonomia para governar o país (2002, p. 194-238). Contudo, em um artigo divulgado na internet, o historiador cita uma estranha anotação 30 do diário do ex-presidente, anotação esta feita no ano em que JK morreu (em conseqüência de um acidente automobilístico): Vimos nascer 1976. Sentia-me bem. Uma sensação de inutilização e de abandono dominava-me no instante supremo da mudança. O céu carregado de estrelas atraiu os meus olhos. O que procurava eu nos mundos infinitos que piscavam para mim? O que trará 76? Até a morte pode trazer (www.balaiodeminas.com.br/.../sociedade/familias.asp?codigo=906& area=mineiros&area1=sociedade, grifo do autor). Coincidência ou não, quinze dias antes da data em que ocorreu o acidente que tirou a vida do então presidente brasileiro, correu pelo país a notícia de que JK havia morrido em um acidente automobilístico, como citado anteriormente. Apesar de intrigante, essa questão não faz parte do eixo principal deste trabalho e, portanto, o assunto não será tratado aqui. 31 2 BRASÍLIA, MAIS QUE UMA CIDADE PROJETADA Hoje é o dia mais feliz da minha vida. O Congresso acaba de aprovar o projeto para a construção de Brasília. Sabe por que o projeto foi aprovado ? Eles pensam que não vou conseguir executá-lo. Juscelino Kubitschek de Oliveira Após terminar o curso na França, Juscelino aproveitou para conhecer outros países, como o Egito, onde visitou as cidades de Alexandria e Cairo. JK ficou fascinado pelo Egito, principalmente depois de conhecer a história de Akhenaton, faraó egípcio que, com apenas dezenove anos, fez uma revolução religiosa em favor do monoteísmo a Aton. Então, o jovem faraó, a fim de romper com as tradições e a oposição a seu regime, mudou a capital do Egito de Tebas para Akhetaton. Juscelino visitou a cidade e afirmou ter refletido a respeito dela quando começou a esboçar a idéia da construção de Brasília. Na Grécia, diante do Parthenon, ouviu o guia dizer a visitantes que Péricles havia sido acusado de gastar muito para fazer a obra. Péricles teria replicado dizendo que se os atenienses não conseguiam perceber a grandeza da obra, a qual desafiaria séculos e milênios, ele mesmo a pagaria. A passagem fortaleceu Juscelino na época da construção de Brasília, obra esta que também foi criticada. A viagem àqueles países, segundo JK, aumentou sua fé na democracia. A construção de Brasília foi outro marco e outro motivo de polêmica. Só entre 1957 e 1958, JK fez 225 viagens entre o Rio de Janeiro e Brasília para acompanhar as obras, quase dez viagens por mês. No auge da construção, Juscelino terminava o expediente no Palácio do Catete e voava para Brasília. Inspecionava as obras e voava de volta ao Rio de Janeiro. Às sete da manhã já reiniciava suas atividades na sede do governo. Explicações para tanta preocupação por parte de JK não faltam. De acordo com a teoria apresentada pela egiptóloga Iara Kern após seis anos de estudo, Brasília é mais do que uma cidade projetada. Juscelino seria a reencarnação de Amenófis IV ou Akhenaton, o faraó que viveu entre 1550 a.C. e 1307 a.C., impôs o monoteísmo e fundou a primeira capital planejada do mundo, Akhetaton. A estudiosa afirma que Akhenaton dedicou a vida à cidade que construiu às margens do rio Nilo, assim como teria feito JK em relação à Brasília, e ambos morreram dezesseis anos após a fundação das respectivas cidades, o mesmo número de colunas presentes na Catedral 32 Metropolitana de Brasília e o mesmo número do templo na cabala hebraica e no tarô egípcio. Kern ainda cita que, enquanto Akhetaton tinha a forma do pássaro Íbis, o guardião das pirâmides, Brasília tem a forma de um pássaro em pleno vôo e construções em forma piramidal, baseadas em triângulos. Enquanto as pirâmides guardavam os sarcófagos dos faraós, o Memorial JK, em Brasília, guarda os restos mortais de Juscelino Kubitschek. Quando esteve no Egito, em 1930, JK ficou fascinado pela história de Akhenaton e, já presidente da república, declarou que possuía admiração por Akhenaton desde a mocidade e que essa admiração poderia ter sido o combustível necessário para sustentar o seu ideal de construir Brasília. De fato, a construção de Brasília estava “na manga” de JK havia tempo, desde a época em que ainda era deputado. E ele não foi o primeiro a pensar na transferência da capital para o interior do país (LOPES, 2006, p. 58-68). Tiradentes imaginava a capital em São João Del-Rey, caso a Inconfidência Mineira fosse bem sucedida. Em 1823, José Bonifácio, deputado na época da independência, teve um papel importante. Além de defender a mudança da capital em 1823, sugeriu o nome Brasília (WERNECK, 2002, p. 96). A mudança da capital esteve presente nas Constituições de 1891 e 1934, havia sido retirada da Constituição de 1937, mas Juscelino trabalhou para que a transferência da capital voltasse a constar na Constituição. Em sua primeira aparição na tribuna, como constituinte de 1946, ele pediu que um estudo feito pelo engenheiro Lucas Lopes, que posteriormente seria o responsável pelo planejamento em seu governo, fosse inserido nos Anais da Assembléia. O estudo, intitulado “Memória sobre a Mudança do Distrito Federal”, propunha a localização da capital federal no Triângulo Mineiro. JK conseguiu deslocar a discussão em torno da possível mudança da capital para a discussão sobre o local onde o Distrito Federal deveria ser localizado. Segundo Lucas Lopes, era como se Juscelino tivesse encerrado a polêmica em torno da mudança ou não da capital. Agora, o assunto era o local: o Triângulo Mineiro ou o sertão de Goiás (Op. cit., p. 58-68). O tom religioso em torno de Brasília, presente no estudo da egiptóloga Iara Kern, também aparece em citações feitas nos livros autobiográficos de JK intitulados “Meu caminho para Brasília: 50 anos em cinco”, de 1974, e “Por que construí Brasília”, publicado em 1975. Ao tratar da mudança da capital brasileira no livro sobre esse tema, Juscelino fala do sonho de Dom Bosco em 30 de agosto de 1883 na Itália: 33 No plano místico, fez-se ouvir, como uma advertência profética, o tão citado sonho de São João Bosco. O santo Becchi, na Itália, era dado a visões, que constituíam verdadeiras antecipações do que iria ocorrer em futuro, às vezes, remoto. A 30 de agosto de 1883, passou ele por outra experiência desse gênero. Tratava-se de um sonho-visão – e desta vez referente ao Brasil – relatado numa reunião do Capítulo Geral de sua congregação. Dom Bosco revelou que “fora arrebatado pelos anjos” e, durante a viagem, um dos guias celestiais disse-lhe de repente: “Olhai. Viajamos em direção das cordilheiras”. O santo relatou, então, que viu “as selvas amazônicas, com seus rios intrincados e enormes”. Visitou as malocas dos índios e assistiu, aterrorizado, ao sacrifício de dois missionários salesianos, abatidos a tacape pelos selvagens – fato que posteriormente se deu na Amazônia, em 1934, quando morreram, vítimas dos xavantes, os padres Pedro Sacillotti e João Fuchs. Mas não era tudo. E o santo prosseguiu na sua narrativa: “Entre os paralelos 15º e 20º, havia um leito muito largo e muito extenso, que partia de um ponto onde se formava um lago”. Então, uma voz lhe disse repetidamente: “Quando escavarem as minas escondidas no meio destes montes, aparecerá aqui a Grande Civilização, a Terra Prometida, onde correrá leite e mel. Será uma riqueza inconcebível. E essas coisas acontecerão na terceira geração”. Quando li essas palavras nas suas Memórias Biográficas, não deixei de me emocionar. Meditei sobre a Grande Civilização que iria surgir entre os paralelos 15º e 20º - justamente a área em que estava construindo, naquele momento, Brasília. O lago, da visão do santo, já figurava no Plano-Piloto do urbanista Lúcio Costa. E a Terra Prometida, anunciada repetidamente, pela voz misteriosa, ainda não existia de fato, mas já se configurava através de um anseio coletivo, que passara a constituir uma aspiração nacional. Ali, “correria leite e mel”. A visão de Dom Bosco fora, de fato, uma antecipação, uma advertência profética sobre o que iria ocorrer no Planalto Central a partir de 1956 (KUBITSCHEK, 1975, p. 19, grifo do autor). Outro fato que poderíamos chamar “intrigante” se deve à forma como foi concebido e apresentado o projeto do arquiteto Lúcio Costa para a construção da nova capital do país. O projeto foi escolhido entre vários outros após um concurso promovido pelo governo e, embora não atendesse aos pré-requisitos, uma vez que não passava de um rascunho, a concepção de Brasília apresentada pelo arquiteto foi a vencedora. O motivo, traduzia exatamente o que o então presidente imaginava para a nova capital federal. É importante dizer que Lúcio Costa não pretendia participar do concurso e assim escreveu ao enviar seu material para a comissão que avaliava os projetos: 34 Não pretendia competir e, na verdade, não concorro; apenas me desvencilho de uma solução possível, que não foi procurada, mas surgiu, por assim dizer, já pronta. Compareço, não como técnico devidamente aparelhado, pois nem sequer disponho de escritório, mas como simples "maquis" no desenvolvimento da idéia apresentada, senão eventualmente na qualidade de mero consultor. E se procedo assim cândidamente, é porque me amparo num raciocínio igualmente simplório; se a sugestão é válida, êstes dados, conquanto sumários na sua aparência, já serão suficientes, pois revelarão que, apesar da espontaneidade original, ela foi, depois, intensamente pensada e resolvida; se não o é, a exclusão se fará mais fàcilmente, e não terei perdido meu tempo nem tomado o tempo de ninguém. [...] Dito isto, vejamos como nasceu, se definiu e resolveu a presente solução: 1. Nasceu do gesto primário de quem assinala um lugar ou dêle toma posse:-- dois eixos cruzando-se em ângulo reto, ou seja, o próprio sinal da Cruz (http://www.guiadebrasilia.com.br/historico/i_mmrial.htm, grifo meu). Há uma legião de videntes, visionários e ufólogos que afirmam que a atual capital brasileira atrai energias cósmicas e ovnis, sendo a cidade considerada, inclusive, a sétima parada na rota de extraterrestres, além de capital do terceiro milênio e da civilização aquariana, um exemplo de ecumenismo (Cf. COUTO, 2002, p. 194). O famoso discurso na cidade goiana de Jataí seria o início da conspiração esotérica para a consolidação de Brasília. Segundo consta, durante um comício, um eleitor de nome Antônio Soares Neto, conhecido como Toniquinho, indagou a JK se, uma vez eleito, ele transferiria a capital para o interior do Brasil conforme previa a Constituição. Juscelino, então candidato à presidência, teria hesitado por um instante e finalmente respondido que sim. De acordo com o historiador Ronaldo Costa Couto, JK teria se livrado do compromisso facilmente se assim o quisesse. Bastava enviar o projeto de lei, como de fato fez, e deixar a oposição vetá-lo ou manter o assunto em banho-maria, como já era de costume dos políticos da época. Entretanto, a decisão passou a integrar o Plano de Metas do presidente após ter sido eleito, atropelando o planejamento geral do governo. Couto afirma que a decisão não foi precedida de projeto econômico-financeiro nem tampouco de estudos preliminares. Foi, sim, “tomada no escuro” (COUTO, Op. cit., p. 238). Não havia tempo para um estudo de viabilidade, completa o historiador, e, de antemão, era possível saber que não havia viabilidade financeira ou econômica e que a execução de uma nova cidade levaria mais que quatro anos. Executar um plano ousado como aquele ainda causaria graves problemas à economia (Ibid., 238), e, ainda hoje, não 35 se sabe qual foi o gasto total com as obras da construção de Brasília (como veremos ainda neste capítulo). Outro historiador, Ricardo Maranhão, afirma que Juscelino teve o cuidado e a estratégia de atribuir a idéia da construção de Brasília a uma aspiração popular, ao atribuir à pergunta do eleitor “Toniquinho”, no famoso discurso de Jataí, a semente do processo de transferência da capital federal do litoral para o interior do país. No livro “Por que construí Brasília”, de 1975, Juscelino narra o episódio em Jataí e apresenta suas explicações a respeito do que o teria motivado a se empenhar na mudança da capital brasileira: Como nasceu Brasília? A resposta é simples. Como todas as grandes iniciativas, surgiu quase de um nada. A idéia da interiorização do país era antiga, remontando à época da Inconfidência Mineira. A partir daí viera rolando através de diferentes fases a nossa História: o fim da era colonial, os dois reinados e os sessenta e seis anos da República, até 1955. Pregada por alguns idealistas, chegou, mesmo, a se converter em dispositivo constitucional. No entanto, a despeito dessa prolongada hibernação, nunca aparecera alguém suficientemente audaz para darlhe vida e convertê-la em realidade. Coube a mim levar a efeito essa audaciosa tarefa (p. 7). JK dedica várias páginas à explicação do discurso em Jataí (Goiás) realizado em 4 de abril de 1955 durante a campanha à presidência da república. A escolha da cidadezinha foi estratégica, segundo Juscelino. Ele decidiu falar primeiro aos moradores do interior do país ao invés de priorizar as populações do litoral, como era de costume na época. No livro “JK - Um comício em Goíás”, o professor e escritor, Jacinto Guerra explica que a escolha do pequeno município tem relação com a abelha que deu nome à cidade e lembra trabalho, organização e eficiência. A cidadezinha possuía um dos mais organizados diretórios do Partido Social Democrático, partido de JK, no interior do país. Na época da candidatura de Juscelino à presidência, os jornais citavam Jataí como a fortaleza do PSD. O líder da “fortaleza” era um grande amigo de JK e ex-colega de Juscelino na Faculdade de Medicina de Belo Horizonte, de nome Serafim de Carvalho. Além de médico, o amigo do então candidato à presidência era fazendeiro e, principalmente, um chefe político e um parlamentar de prestígio (GUERRA, 2005, p. 19-22). 36 Durante o discurso em Jataí, o então candidato Juscelino declarou que, se eleito, cumpriria rigorosamente a Constituição. O discurso foi seguido da pergunta de um morador da região identificado como Antônio Carvalho Soares, conhecido como Toniquinho: O senhor disse que, se eleito, irá cumprir rigorosamente a Constituição. Desejo saber, então, se pretende pôr em prática o dispositivo da Carta Magna que determina, nas suas Disposições Transitórias, a mudança da capital federal para o Planalto Central (KUBITSCHEK, Op. Cit., p. 8). O ex-presidente garante, no livro, que a indagação o surpreendeu e a resposta afirmativa dada de prontidão não correspondia a nenhuma das propostas pretendidas pelo então candidato à presidência da República. Eleito, Juscelino cumpriu a promessa feita durante o discurso e fez da construção de Brasília uma das principais metas de seu governo, chamada de Meta-síntese. No livro “JK: um comício em Goiás”, Jacinto Guerra (Op. cit., p.18) narra a resposta dada por Juscelino: “Acabo de prometer que cumprirei, na íntegra, a Constituição, e não vejo razão para ignorar esse dispositivo. Durante meu qüinqüênio farei a mudança da capital”. Segundo o livro de Miguel Borges, a pergunta certa à pessoa certa no momento certo não foi mera coincidência. Miguel Borges e Jacinto Guerra corrigem JK quanto ao nome do eleitor que indagou Juscelino quando este ainda era candidato à presidência: Antônio Soares Neto, e não Antônio Carvalho Soares como citou Juscelino na página 8 do livro “Por que construí Brasília”. Borges ainda afirma que o eleitor (Toniquinho) assumiu ter sentido a interferência de poderes superiores no momento da indagação: “A gente chega a pensar que foi uma iluminação vinda lá do Alto” (BORGES, Op. cit., p. 58). A revista “IstoÉ” entrevistou Toniquinho recentemente, mas ele nada falou sobre qualquer influência religiosa ou “sobrenatural” por ocasião do questionamento feito por ele ao então presidenciável em Jataí: “Juscelino ficou assustado com a pergunta. Demorou um pouco, mas respondeu que assumiria o compromisso de construir a nova capital", lembra Antônio Soares Neto, o Toniquinho, hoje com 74 anos. "Recebi o convite para a inauguração da cidade. Me sinto um pouco responsável por tudo." (http://www.terra.com.br/istoe/biblioteca/brasileiro/lideres/est1.htm). 37 Entretanto, uma declaração de Márcia Kubitschek citada pelo historiador Ronaldo Costa Couto no livro “Brasília Kubitschek de Oliveira” reforça a suposta influência religiosa na construção de Brasília. Márcia afirma que Juscelino tomou a decisão de construir Brasília rapidamente: “Acho que foi uma inspiração divina. Deu um clique na cabeça dele. [...] Foi uma inspiração divina e, após ter esse pensamento, ficou inteiramente dominado por ele...” (COUTO, Op. cit., p. 198). Ela também afirma em sua declaração que, nas conversas em família, Juscelino comentava que era impossível governar o país do Rio de Janeiro. É essa a teoria defendida pelo historiador Ronaldo Costa Couto, o qual garante que não houve influência esotérica na decisão de JK e sim o que chama de instinto kubitschekiano. Para Couto, Juscelino teria, na verdade, percebido a importância de tirar o governo da vulnerabilidade presente na capital carioca, e a idéia de tirar a capital federal daquela cidade vinha desde a Inconfidência Mineira, constava em três Constituições, inclusive naquela em vigor na época, sem contar que já havia uma legislação definindo o local da nova capital e o nome Brasília já havia sido sugerido, em 1823, por José Bonifácio de Andrada e Silva, considerado o patricarca da Independência do Brasil. JK, segundo o historiador, estaria impressionado com os problemas no Rio de Janeiro e com a forma como esses problemas afetavam o governo federal. Ele teria percebido que, deslocando a capital federal para o interior, alteraria a posição relativa do presidente no “fogo cruzado” político-militar presente na capital carioca. E sabia que a transferência da capital envolvia interesses contraditórios dos parlamentares, militares, imprensa, empresas de construção civil, além do funcionalismo da cidade carioca. Mas, em seus discursos, Juscelino jamais deu margem para que fosse levantada a hipótese apresentada anteriormente por Couto, a “fuga” do Rio de Janeiro, e muito menos qualquer influência religiosa como a citada por Márcia Kubitschek. Ao se pronunciar em público, JK sempre justificava a mudança da capital com aquilo que previa a constituição: 38 Não sou o inventor de Brasília, mas no meu espírito se arraigou a convicção de que chegou a hora, obedecendo ao que manda a nossa Lei Magna, de praticarmos um ato renovador, um ato político, criador, um ato que, impulsionado pelo crescimento nacional a que acabo de me referir, virá promover a fundação de uma nova era para nossa pátria. (...) Constitui um refrão monótono dizermos que necessitamos ocupar o nosso país, possuir a terra, marchar para o oeste, voltar as costas para o mar, e não permanecer eternamente com o olhar fixo nas águas como se pensássemos em partir, em voltar. (...) A fundação de Brasília é um ato político (...) É a marcha para o interior em sua plenitude. É a completa consumação da posse da terra (KUBISTCHEK DE OLIVEIRA, 1956, p. 403). Em 30 de setembro de 1957, o então presidente Juscelino Kubitschek sancionou a lei que fixou a data da transferência da capital da república, 21 de abril de 1960. Ao sancionar a lei, afirmou em seu discurso: Sabeis que o sentido desta solenidade transcende os seus objetivos imediatos, vai além, visando ao deslocamento, para as vastas áreas despovoadas do interior, da aplicação de esforços que têm sido grandes, mas que até agora só se têm exercido numa estreita faixa do litoral deste imenso país. Rejubilo-me com a circunstâncias [sic] de Deus me haver permitido cumprir o pacto que firmei com o povo brasileiro, atendendo aos veementes apelos que recebi de todo o país, nos dias da campanha da sucessão presidencial, para que se obedecesse ao mandamento da Constituição, que traduzia indesviável propósito, vontade firme, consciente e tenaz de operar essa mudança. E congratulo-me com o Congresso Nacional, que, com alto discernimento e patriotismo, soube auscultar os sentimentos desta nação, soube acolher os seus históricos anseios, soube, mais uma vez, mostrar-se fidedigno cumpridor da soberana vontade do povo brasileiro (KUBISTCHEK DE OLIVEIRA, 1958, p. 218-219). Os comentários sobre a transferência da capital federal tinham outro enfoque entre as personalidades. A discussão girava em torno do sucesso da mudança e suas conseqüências. Assis Chateaubriand considerava a construção de Brasília uma loucura do presidente e um crime contra o país. O professor ícone da Fundação Getúlio Vargas, Eugênio Gudin, considerava Brasília não como um foco de polarização econômica e sim como um foco de absorção de recursos, enquanto o Nordeste do país convivia com a miséria. Para Gilberto Freyre, Brasília foi feita de forma ditatorial. Em entrevista ao historiador Ronaldo Costa Couto, Oscar Niemeyer defendeu Juscelino e disse que levar o progresso para o interior do país era o sonho de JK, embora fosse grande a torcida para que Brasília não saísse do papel. “Armaram uma campanha 39 fantástica contra a cidade”, declarou o arquiteto (COUTO, Op. cit., p. 13). A primeira edificação foi batizada de “Catetinho”. Era uma construção de tábuas cuja inauguração, em 10 de novembro de 1956, teve até chuva de granizo para contornar a falta de gelo na hora de servir uísque. Hoje, o Catetinho abriga um museu onde estão expostos objetos pessoais do ex-presidente e móveis utilizados por ele. Na véspera da mudança definitiva da capital, JK chegou ao Palácio do Catete, no Rio de Janeiro, acompanhado da esposa, D. Sarah, das filhas Márcia e Maria Estela, e da mãe, D. Júlia. Segundo Autran Dourado em Gaiola Aberta, Juscelino parecia um menino na festa do próprio aniversário. Uma felicidade geral. Quem quisesse se despedir da família Kubitschek de Oliveira podia adentrar os portões. Posteriormente, o então presidente e a família desceram a escadaria do palácio e JK foi homenageado por estudantes, que acenaram lenços brancos. Ao fechar os portões do Palácio do Catete, a edificação passou de sede do governo federal a Museu da República. As festividades da inauguração de Brasília duraram um dia inteiro. Começou com uma missa trinta minutos antes da meia-noite do dia 20 para o dia 21 de abril. Duas relíquias aumentaram o glamour da ocasião: a cruz de Frei Henrique de Coimbra, com a qual foi rezada a primeira missa, e o sino que anunciou a morte de Tiradentes. E houve até mensagem do papa João XXIII, em português, através da rede brasileira de rádio. Na manhã do dia 21, os festejos tiveram início já às oito da manhã. Às oito e meia Juscelino fez seu primeiro discurso, ouvido por oficiais-generais e 55 embaixadores. Em seguida, foi realizada a primeira reunião ministerial de Brasília, que marcou oficialmente a instalação do governo federal e, durante a qual foi proclamada inaugurada a nova capital do país. As festividades não paravam. O roteiro incluía atividades como um desfile e a apresentação da Esquadrilha da Fumaça. Naquela noite, JK e D. Sarah recepcionaram três mil convidados em uma festa no Palácio do Planalto, enquanto o povo dançava no Eixo Monumental ao som da banda dos fuzileiros navais. Juscelino se dizia em estado de êxtase. Não era para menos; nos últimos três anos ele vinha planejando a inauguração da nova capital brasileira. Entretanto, todo o entusiasmo ao transferir o centro do poder nacional extrapolou o orçamento e, segundo o historiador Ronaldo Costa Couto, o custo de Brasília ainda é um mistério. JK resolveu construir a capital no meio do nada e a partir do nada, na opinião de Couto. Na época, o Produto Interno Bruto do país não superava em quase nada o PIB atual da Bolívia, ou seja, os recursos financeiros eram insuficientes para as obras em Brasília. O historiador ainda declara que a construção da nova capital federal foi uma epopéia no sertão, uma 40 aventura improvisada e incompatível com rígidos controles de gastos. E acrescenta que não havia quem executasse nem como executar o controle de despesas, também em função da precariedade reinante na época (COUTO, Op. cit., p. 239). O historiador conta uma estranha passagem narrada pelo filho de um ex-funcionário do canteiro de obras implantado em Brasília: José Roberto de Paiva Martins estava com doze anos de idade quando o pai, Cícero Milton Martins de Oliveira, trabalhava na futura capital federal. Por vezes, o menino foi passear na casa de Israel Pinheiro, quem mandava no canteiro de obras, e teria visto muito dinheiro espalhado pelo chão. Ao indagar o motivo de haver tanto dinheiro espalhado, teve como resposta que o montante estava embolorando no imenso cofre que existiria na casa. Sobre os gastos com as obras, José Roberto afirma que não havia controle ou era muito precário; não havia licitações e os pagamentos executados no “canteiro de obras” eram feitos em dinheiro, uma vez que não havia bancos na futura cidade. Peões de outras obras entravam na fila de pagamento e recebiam salários, caminhões passavam pela balança com a mesma carga mais de uma vez, e ainda havia um motorista que recebia por “quilômetro rodado” e, para aumentar os ganhos, colocava o caminhão em ponto morto sobre sobre cavaletes e deixava que as rodas girassem no ar durante toda a noite (COUTO, Op. cit., p. 237-251). Sem qualquer estudo de viabilidade ou projeto econômico-financeiro, Brasília saiu do papel e em prazo recorde: 42 meses. A falta de planejamento para as obras elevou o custo da construção de Brasília. Segundo um depoimento do ex-presidente Ernesto Geisel, publicado em 1997, tijolos chegaram a ser transportados de avião. A falta de dinheiro somada à pressa em construir a nova capital causou problemas na economia, especialmente nas finanças públicas e nas contas externas. Economistas brasileiros afirmam que, ao semear a desestruturação das finanças do país, a construção da nova capital gerou um crônico processo inflacionário e dificultou a governabilidade; uma herança que estaria sendo transmitida a cada nova geração. Em 1959, penúltimo ano do governo JK, a inflação acabou virando motivo de chacota em música cantada pelo palhaço Carequinha, intitulada “Dá um jeito nele, Nonô”, cujos versos tratavam da desvalorização do Cruzeiro. O economista e jornalista Ib Teixeira, da Fundação Getúlio Vargas, publicou em 1996 um ensaio sobre o custo da construção de Brasília; quanto as obras custaram e continuam custando aos cofres públicos. Segundo o economista, para a implantação da nova capital houve desvio dos recursos da seguridade social, o que quebrou a Previdência e desestabilizou o país, comprometendo contas internas e externas e gerando inflação. Ele cita que 36 anos após a renúncia de Jânio Quadros, 41 sucessor de JK, soube-se que havia transferências anuais de mais de US$ 1 bilhão da União para Brasília. A estimativa feita em 1996 por Teixeira era a de que o valor que teria sido transferido no período de construção de Brasília representasse, naquele ano, US$ 36 bilhões. Acrescido dos gastos com obras civis e o investimento privado em Brasília, a soma (em 1996) chegaria a algo entre US$ 120 bilhões e US$ 155 bilhões, o equivalente a três vezes e meia o PIB do Chile no referido ano. Roberto Campos confirma que a construção de Brasília se deve, principalmente, aos recursos da Previdência, a qual tinha muito dinheiro em caixa na época, conseqüência do número de contribuintes ser muito superior em relação ao número de beneficiados. Outras fontes de recursos foram os empréstimos estrangeiros, a emissão de moeda e os créditos de fornecedores de equipamentos, sobretudo importados. Aos “colegas” naquela empreitada JK dizia que construiria Brasília com verbas tiradas da cabeça dele; aos jornalistas afirmou, em 9 de novembro de 1958, que a iniciativa privada construiria a nova capital. O gasto com as obras seria coberto com a venda de 80 mil lotes (COUTO, Op. cit., p. 238-248). O historiador Ronaldo Costa Couto diz que não é possível saber como o país estaria hoje se o Rio de Janeiro tivesse permanecido como a capital federal; pensar nisso seria um contra-senso, afirma. “Para o bem ou para o mal, Brasília tem que ser pensada como decisão de estadista, em que sentido da história, o senso da atividade política e a intuição contam mais do que os princípios de economia política”, declara Couto (Ibid., p. 237, grifo meu). 42 3 FANTASMAS POR TRÁS DO MITO Não me arrependo do que fiz, não me arrependo de ter levado em consideração o interesse de preservar o nosso dia de amanhã – o futuro da Pátria Brasileira. Juscelino Kubitschek de Oliveira Recentemente, vários ghost writers se apresentaram aos brasileiros através de livros em que revelaram ser os verdadeiros autores dos discursos proferidos por políticos famosos, como o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. Seu ghost writer nos oito anos de mandato, Eduardo Graeff, afirma que só escreveu para FHC porque foi orientando dele e conhecia de cor o estilo do sociólogo. "Não houve dúvida moral, já que eu acreditava nele", declara Graeff (http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,EDG61537-6011,00.html). O trabalho que começou na Antigüidade para a produção de discursos e até cartas-testamento e orações, sempre foi relacionado à manutenção do segredo em torno da identidade desses escritores, daí o nome ghost writers. Contudo, os jornalistas ou diplomatas que atualmente exercem essa atividade têm revelado seus nomes e obras. O assunto virou tema do recente romance “Budapeste”, de Chico Buarque, que tem como personagem José Costa, escritor de livros por encomenda. Outra obra lançada recentemente, A Sombra do Meio-Dia, trata do mesmo assunto. O livro do diplomata Sérgio Danese apresenta a história de um publicitário que se converte em ghost writer de um senador e acaba escrevendo para o político até cartas de amor. A obra tem traços autobiográficos, já que Danese, ministro do Itamaraty na Argentina, foi ghost writer de celebridades, a exemplo de seu antigo chefe, o ex-ministro das Relações Exteriores Luiz Felipe Lampreia. No livro Diplomacia Presidencial - História e Crítica, publicado em 1999, resultado de sua tese de doutorado, Danese rebatiza o ghost writer de “speech-writer”. Ele conta que, no Brasil, esse profissional é conhecido como “rapaz dos discursos”, embora seja uma peça-chave da expressão do pensamento institucional. Danese defende que “ ‘Speech-writer’ é uma profissão legítima, embora o profissional corra o risco de sofrer um dano a seu patrimônio de (http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,EDG61537-6011,00.html). idéias” 43 Outro ghost writer que transformou sua experiência em livro é o romancista mineiro Waldomiro Freitas Autran Dourado, conhecido nacional e internacionalmente como Autran Dourado. Seu romance “A Serviço del-Rei”, publicado pela primeira vez em 1984, está de volta às livrarias e trata de um escritor mineiro que se associa a um político, o qual acaba eleito presidente da República. Em 2000, outro livro de sua autoria foi lançado: “Gaiola Aberta – Tempos de JK e Schmidt”, obra em que apresentou os bastidores do governo do grande mito da política brasileira, Juscelino Kubistchek de Oliveira, e revelou oficialmente os nomes de alguns dos ghost writers do ex-presidente. Autran Dourado foi um dos ghost writers de Juscelino durante o qüinqüênio como presidente e, segundo ele, JK tinha preferência por escritores ao escolher as pessoas que o assessoravam. Confiava plenamente nesses assessores. Muitos deles eram escritores de Minas Gerais, a exemplo do próprio Autran, além de críticos como Álvaro Lins. Apenas Sette Câmara, que foi ministro de JK e, posteriormente, embaixador não era ligado à Literatura. Até os livros autobiográficos de JK, publicados após o final do mandato presidencial, foram redigidos por um ghost writer, o jornalista Carlos Heitor Cony, informação passada por Autran Dourado durante a entrevista concedida por telefone e confirmada através de informações disponíveis no site de Cony (http://www.carlosheitorcony.com.br/biografia/texto.asp?id=84). E, no caso das obras autobiográficas do ex-presidente, Autran alerta que, uma vez não tendo escrito suas memórias, as tendo apenas narrado, Juscelino poderia ter sofrido falhas de memória e alterado os fatos ocorridos em importantes episódios de seu governo. A origem da Operação Pan-Americana, por exemplo, teria sido criada por outro ghost writer, Augusto Frederico Schmidt, durante o mandato de Juscelino como presidente, como apresentarei ainda neste capítulo. 3.1 Autran Dourado, a serviço de dois senhores Autran Dourado conta que se tornou funcionário de Juscelino quanto este ainda era governador de Minas, porque se encaixava no perfil solicitado por JK. O político queria um taquígrafo que também fosse escritor. Autran foi indicado por Cristiano 44 Martins e tanto conquistou a confiança de JK que se tornou seu secretário de imprensa quando Juscelino assumiu a presidência do país. O escritor conta que não tinha muita intimidade com Juscelino quando ele governava Minas Gerais. Só tinha contato com o governador quando era chamado. Autran pouco presenciou os acontecimentos na sede do governo, a exemplo de uma conversa entre JK e seu secretário particular, Cristiano Martins, em que o então governador manifestava o interesse em ser presidente do país. Nessa época, era Cristiano Martins quem escrevia os textos em nome de JK. Ele era especialista em escrever de forma que o signatário não se comprometesse, o que era aplaudido pelos políticos mineiros. Cristiano se esquivava tanto ao escrever que, quando JK, já presidente, precisava dizer algo mais forte, não recorria a Martins. Na época em que Juscelino decidiu transferir a capital mineira para Ouro Preto, no dia 21 de abril, Autran Dourado foi convocado para ir ao Rio de Janeiro taquigrafar um discurso que JK havia pedido a Augusto Frederico Schmidt, o poeta. Autran logo percebeu que Schmidt não precisava de um taquígrafo. O poeta justificou que invejava a oratória de Francisco Campos, o qual certa vez Schmidt viu ditando a uma taquígrafa. Posteriormente, Autran teve a oportunidade de mostrar sua capacidade em auxiliar JK. Na ausência de Schmidt, Juscelino solicitou uma importante carta para o escritor. Na verdade, não foi uma solicitação de JK; foi Autran quem se ofereceu para o serviço, conta o escritor. Um mês antes de passar o governo de Minas Gerais a Clóvis Salgado, Juscelino indagou a Autran se ele queria trabalhar em seu comitê no Rio de Janeiro. O escritor alegou que não seria possível, porque ele era funcionário da Assembléia em Minas. Juscelino prometeu um cargo no Rio, sendo que, pela manhã, Autran ficaria trabalhando com Schmidt. No início, o escritor não passava de um datilógrafo do poeta. Contudo, assim que Schmidt descobriu as qualidades de Autran, eles passaram a escrever a quatro mãos. Às vezes, Autran tinha que finalizar discursos escritos pelo poeta e imitava seu estilo pomposo, já que, para JK, Schmidt era o autor dos textos. Um discurso em que Autran deu sua opinião foi a oportunidade para que o escritor passasse a escrever oficialmente para Juscelino. Carlos Lacerda havia declarado na televisão que JK não seria candidato a presidente, se fosse, não seria eleito e, se eleito, não tomaria posse, se tomasse, não governaria. Juscelino solicitou que Autran Dourado fosse à casa de Schmidt. Lá, Autran relatou o que ouviu de uma conversa entre o governador mineiro e o presidente Café Filho, o qual se aliara a Carlos Lacerda. Café Filho havia mostrado a JK um manifesto dos chefes militares que vetava a candidatura 45 de Juscelino; era uma armação de militares golpistas aos quais o presidente havia se aliado. JK deveria pronunciar um discurso no dia seguinte na sede do PSD carioca. Schmidt então iniciou a redação do discurso e indagou a Autran se ele acreditava que Juscelino era realmente tão corajoso quanto dizia ser. Autran respondeu com uma frase de Benedito Valadares, a qual dava conta que JK queria bancar o Tiradentes com o pescoço dos outros. Em seguida, Autran Dourado sugeriu: “Deus poupou-me o sentimento do medo”. A frase foi acrescentada ao discurso, embora o poeta e o escritor não estivessem certos de que Juscelino a diria em público. Depois de pedir opinião a várias pessoas a respeito da tal frase, JK se convenceu de que era um homem corajoso. Não demorou e Autran foi chamado para um novo serviço. Juscelino queria que o escritor lesse uma carta considerada de extrema importância, a qual havia sido escrita pelo jurista Francisco Campos a pedido de Benedito Valadares. Antes de se encontrar com o governador, Autran tentou encontrar o poeta, sem sucesso. Foi então sozinho ao encontro do presidente. Ao ler a carta, a qual JK queria assinar por considerar adequada, Autran apontou o risco da ação: se Juscelino assinasse a carta, estaria aceitando a indicação de sua candidatura e, ao mesmo tempo, devolvendo-a à Executiva do partido para que esta decidisse por entendimento e não por votação. Por votação, JK seria facilmente vitorioso, completou o escritor. Juscelino se espantou com a inteligência de Autran e solicitou que ele escrevesse uma carta em substituição à que acabara de ler. O escritor assim o fez. JK leu-a e pediu que a entregassem a Amaral Peixoto, em vez de entregarem a Benedito Valadares. Acabada a leitura da carta por Amaral Peixoto, leitura esta acompanhada por um outro homem o qual Autran não soube identificar, o tal homem declarou que aquela não era a carta escrita por Francisco Campos a pedido de Benedito Valadares. Já era tarde. JK foi escolhido candidato pela convenção e foi logo para o Palácio Tiradentes, onde foi bastante aplaudido e até carregado nos ombros. Autran afirma que era bisbilhoteiro da política na época e solicitou que Juscelino o transferisse de oficial de gabinete a secretário de imprensa, cargo inexistente até então. O escritor foi atendido e seu trabalho se multiplicou. Autran continuou acompanhando as audiências dos congressistas e anotando as ordens do presidente. Ele conta que pensou em colocar alguém em seu lugar, contudo, não queria abrir mão de saber tudo o que acontecia nos bastidores do governo. O que JK despachava ou ditava para Autran, o agora secretário de imprensa assinava com um “De ordem do presidente, autorizar”. No início, alguns ministros e outras autoridades perguntavam se realmente deviam cumprir tais despachos. JK chegou a deixar com Autran Dourado papéis em 46 branco assinados para o caso de emergências, tal era sua confiança no escritor. Houve ainda um caso em que Juscelino deixou como recado que Autran poderia autorizar sem mesmo consultar o presidente. A autonomia gerou acusações de corrupção, das quais Autran Dourado se defendeu brilhantemente. Em outro episódio, Autran foi chamado por D. Sarah. Juscelino havia sofrido um enfarte e estava hospitalizado. Ela e algumas autoridades eram contra a divulgação do fato e queriam a opinião do secretário de imprensa, o qual se manifestou favorável à divulgação. Entretanto, Autran não foi apoiado e chegou a se passar pelo presidente, acenando para jornalistas de dentro do helicóptero presidencial e imitando a assinatura de JK em documentos. Quando a notícia correu e o escritor se viu pressionado pelos jornalistas, fez com que o presidente saísse da cama e, no Palácio das Laranjeiras, recebesse as credenciais de um embaixador, estratégia criada para que os fotógrafos registrassem o presidente “em plena saúde”. Estava seguro o segredo do enfarte do presidente. O romancista ainda relata que, quando presidente da república, JK começava a trabalhar bem cedo e convocava os principais assessores a comparecerem no Palácio das Laranjeiras. Autran explica que, muitas vezes, eram seis e meia da manhã quando iniciava as atividades com o então presidente e o trabalho como assessor se tornou tão íntimo que chegava a despachar com Juscelino no banheiro. O romancista comenta que o incomodava ver o presidente se ensaboando na banheira e ressalta que nada havia de homossexualismo no trabalho em local tão reservado. Conta ainda que, certa vez, ao ver JK molhar um relógio de ouro durante o banho, o alertou e ouviu como resposta que o assessor era um “capiau” do Sul de Minas por não saber que o relógio era à prova d’água. As atividades continuavam no Palácio do Catete, onde os assessores não dispunham de uma sala específica para trabalharem. Eles permaneciam na ante-sala presidencial aguardando o momento em que seriam chamados por Juscelino. A sala de JK ficava no terceiro andar e eram poucos os que tinham acesso a ele, a exemplo dos que trabalhavam naquele andar. Juscelino tinha o temperamento imperativo e explosivo, características escondidas atrás da aparência risonha do presidente. 47 Ilustração 1 – Juscelino, cordial e generoso, mas sem perder o sutil distanciamento4 Autran conta que Juscelino não entregava nada por escrito aos assessores. Apenas dizia o que deveriam fazer e eles já sabiam exatamente como proceder. Os discursos principais eram redigidos por Augusto Frederico Schmidt, o poeta, o qual não era funcionário de JK mas foi um importante personagem da era JK. Os demais eram escritos pelos assessores apontados por Autran Dourado, o qual verificava todos os discursos, até mesmo os do poeta, antes de encaminhá-los à datilografia, trabalho feito pelas secretárias do Palácio. De acordo com o romancista, os assessores não costumavam trabalhar até tarde, porque o presidente também não tinha esse costume. Comuns eram as noites de música no Palácio das Laranjeiras embaladas por Geraldo Carneiro, chefe de gabinete. Autran conta que JK arranhava no violão, mas não herdou esse talento do pai. Ainda sobre o trabalho dos assessores como redatores dos discursos do presidente, Autran explica que não havia dificuldade em redigir os textos, uma vez que 4 Fonte: Ricardo MARANHÃO, O governo Juscelino Kubitschek, p. 11. 48 Juscelino não tinha uma escrita específica, com marcas de linguagem, nem foi criado um estilo para o presidente (por seus assessores). Como responsável por “fiscalizar” todos os discursos de Juscelino, Autran Dourado garantia certa uniformidade aos textos a serem lidos pelo então presidente, uniformidade esta que não tinha tanto rigor a ponto de impedir que fosse possível notar duas diferentes linhas estilísticas nos discursos proferidos por Juscelino Kubitschek. O romancista explica que, apesar de não redigir os próprios discursos, JK tinha excelente oratória e improvisava durante os pronunciamentos. Visto que não havia então um estilo “presidencial” de escrita, Autran explica que uma vez foi comunicado por um homem (que não quis se identificar) da existência de diários escritos pelo então presidente e nos quais JK teria narrados seus romances. Autran explica que só se certificou de que o material pertencia a Juscelino devido à caligrafia do então presidente (DOURADO, 2000, p. 177-183). Os discursos redigidos para JK seguiam a mesma linha; nada de marcas estilísticas, embora Autran Dourado tenha afirmado em entrevista, concedida por telefone, que seria possível perceber o estilo de Schmidt nos discursos os quais este escreveu. Quando não escritos por Schmidt, não havia preocupação por parte dos assessores em imitar o estilo de escrita do poeta, afirma Autran. Contudo, era indispensável a revisão dos textos, o que, como já mencionado, ficava a cargo de Autran Dourado. Ele devia eliminar as informações consideradas “perigosas” à imagem do governo, isto é, informações que beneficiariam Schmidt e as quais poderiam prejudicar o governo ou a imagem do presidente. Autran viria a agir muitas outras vezes sem que JK soubesse que o assessor de imprensa estaria mudando o curso da história. Uma homenagem preparada por esquerdistas ao general Lott, certa vez, gerou um problema político que culminou no fechamento da Frente de Novembro e do Clube da Lanterna pelo presidente. Carlos Lacerda, então, iniciou uma série de ataques a Juscelino na televisão. Embora Autran alertasse que, ao proibir Lacerda de se manifestar surgiriam problemas entre o governo e a imprensa, o então diretor do Departamento de Telecomunicações do Ministério da Viação e Obras Públicas, o general Olímpio Mourão Filho, não se convenceu e fez o contrário. O resultado foi uma chuva de acusações contra JK. O jornalista Hélio Fernandes “substituiu” Lacerda na TV, com ataques inclusive à família do presidente. Juscelino solicitou um “cala boca” a Autran, que encontrou numa chantagem a solução para os ataques a JK. Na véspera de um programa bombástico em que Sarah Kubistchek 49 seria o alvo das acusações, Autran conseguiu um contato com o proprietário da emissora de televisão através da qual o jornalista fazia os ataques ao presidente e, agora, à sua família. Autran disse que mandaria executar a TV e seu presidente, devido às dívidas, caso o programa não fosse suspenso. A solução veio rapidamente. O proprietário da emissora decidiu provocar um defeito na antena de transmissão e, assim, evitar que o programa fosse ao ar. O passo seguinte foi mudar a posição radical do jornal Diário de Notícias, no qual o mesmo jornalista Hélio Fernandes mantinha uma coluna destinada a atacar a Companhia Construtora da Nova Capital e seu presidente, Israel Pinheiro. Mais uma tarefa para Autran. Desta vez, o “cala-boca” viria através da obtenção de um empréstimo para o diretor do jornal, contudo, não houve negociação. O jornal manteve sua posição. Uma outra estratégia de Autran Dourado viria a dar certo. Ele decidiu ganhar publicidade com Brasília através de um convite ao ministro da Cultura da França na época, André Malraux, e ao escritor Aldous Huxley, conhecido no Brasil e ligado ao esoterismo, o que provocaria a empatia entre ele e Brasília. Malraux foi o primeiro visitante e, ao retornar ao seu país, concedeu uma entrevista sobre a nova capital brasileira, entrevista esta que Autran divulgou pela Agência Nacional. Aldous veio em seguida e fez um “tour” pelo país. O passeio foi estrategicamente providenciado para que fosse uma viagem em que o escritor conhecesse o passado, o presente e o futuro do país, com elementos como os índios, as cidades históricas mineiras e o aspecto futurista de Brasília. O escritor retribuiu o passeio com um texto exaltando o que viu, texto que também foi divulgado através da Agência Nacional. Um terceiro visitante foi providenciado por Autran Dourado, um jornalista da Columbia Broadcasting System que vinha solicitando uma entrevista com o presidente brasileiro. Outra tarefa do romancista, desta vez mais árdua, foi a de diminuir os efeitos de uma das mais sérias e longas greves do sindicalismo no Brasil. Um golpe estaria prestes a ocorrer, o que causou preocupação em JK, o qual solicitou a presença de Autran. Juscelino sugeriu que conversasse com Schmidt, que estava sempre bem informado devido ao constante contato com Roberto Marinho, mas não levasse o poeta até o Palácio das Laranjeiras. Autran levou a preocupação do presidente ao poeta e este se apavorou. Ambos procuraram o jurista Francisco Campos e o general Odylo Denys, mas a solução não veio. Entretanto, Autran encontrou uma saída estratégica, utilizou um telegrama recém-chegado da África do Sul para o presidente brasileiro. A mensagem tratava de uma reclamação da delegação do Botafogo contra aquele país. O motivo: um 50 jogador havia sido impedido de jogar por ser negro. Autran então convocou jornalistas para anunciar uma notícia importante e, uma vez que não conseguiu tratar do assunto com o presidente, tomou sozinho a decisão: comunicou ao ministro do Exterior, Negrão de Lima, uma “ordem” do presidente JK para que a delegação do Botafogo retornasse ao Brasil. O ministro duvidou do pedido, mas o cumpriu. No dia seguinte, a notícia estava estampada nas primeiras páginas dos jornais e a greve havia se tornado “insignificante”. Assim, a polícia espancou os grevistas sem que o assunto tivesse repercussão. O episódio na África do Sul era o destaque do dia. Autran conta que conseguiu emplacar outra manchete nos jornais quando decidiu transformar uma mentira em uma verdade extraordinária e um dos atos fundamentais do governo JK, afirma o romancista em seu livro (Cf. DOURADO, Op. cit., p. 143-145). Autran disse ao filho de um biógrafo de Machado de Assis que Juscelino estava interessado em desapropriar a obra Machadiana ou torná-la de domínio público. O biógrafo reuniu jornalistas machadianos por solicitação de Dourado, o qual pediu que presidente fingisse ler um exemplar de Dom Casmurro e assinasse um documento que tinha no alto a palavra aprovo. JK fez o que lhe foi solicitado sem questionar. No dia seguinte, os jornais estamparam a fotografia de Juscelino na primeira página e ele, espantado, comentou com Autran que não conseguia entender a imprensa: “...fiz uma coisinha de nada e veja que repercussão” (Ibid., p. 145). A história traria outros desafios para o secretário de imprensa do presidente. Um deles foi a decisão de JK de romper com o FMI, sem que tivesse que pagar caro por isso. O presidente convocou uma reunião. Autran decidiu convocar a imprensa para que Juscelino anunciasse o rompimento com o Fundo Monetário Internacional e os motivos do rompimento, como não aceitar as condições impostas pelo FMI para conceder os empréstimos solicitados. O povo se mostrou solidário e a frente do Palácio do Catete ficou cheia de populares, que aplaudiram JK. Até o secretário geral do Partido Comunista, Luís Carlos Prestes, apareceu. Juscelino decidiu não ler o discurso que estava em seu bolso e, nesse caso, Autran Dourado não conseguiu fazer qualquer manobra. Os jornais do dia seguinte publicaram que o discurso havia sido lido e tinha jargões de esquerda. Dessa vez, a estratégia foi dos comunistas. Outro desafio para o secretário de imprensa foi uma visita ao então governador do Rio Grande do Sul, Leonel Brizola. Segundo o presidente, Brizola estaria usando uma linguagem marxista e JK queria que Autran apurasse. O secretário de imprensa aproveitou a inauguração de uma sucursal do Diário Carioca, jornal 100% governista, 51 em Porto Alegre e voou para lá. Quando voltou ao Rio de Janeiro, trouxe a notícia de que Brizola estaria envolvido com militares. Não demorou e Jânio Quadros e Brizola bateram à porta do presidente para pedir o afastamento de Autran, o que Juscelino se recusou a fazer. Tempo depois, Autran recebeu a notícia de que o dono do jornal havia retirado todo o dinheiro em caixa e ido embora para a Europa, ou seja, o jornal 100% governista e muito lido pelos políticos ia fechar as portas. O secretário de imprensa conseguiu fazer com que JK liberasse dinheiro para que o jornal mantivesse as portas abertas. Autran, então, levou uma mala de dinheiro para Pompeu de Sousa colocar o jornal “de volta aos trilhos”. A confiança depositada por JK em Autran aumentava a ponto de o romancista trabalhar sigilosamente na condução de negócios políticos de Juscelino no Rio de Janeiro. Ao fim do mandato de JK, Autran foi convidado por Juscelino para se candidatar a deputado, desde que devolvesse o eleitorado quando JK voltasse a se candidatar a uma vaga no Congresso. Autran recusou o convite e o apoio porque, segundo ele, “a literatura é uma mulher muito ciumenta” (DOURADO, Op. cit., p. 8). Autran Dourado também cita que Juscelino era muito diferente do mito que o romancista ajudou a construir. Não era autoritário como político; era, sim, inquieto e impaciente. Segundo Autran, JK “era muitas vezes um homem terrível para os que o conheciam de perto, contraditório, que tanto me estranhava” (Ibid., p. 110). O romancista mineiro Autran Dourado tem obras traduzidas para vários idiomas e possui diversos prêmios nacionais e internacionais, a exemplo do Goethe, da Alemanha, e do Camões, o qual o escritor recebeu em 2000 pelo conjunto de sua obra. A Unesco escolheu Ópera dos Mortos, um de seus livros mais importantes, para integrar a Coleção de Obras Representativas da Literatura Universal. Outra obra, Os Sinos da Agonia, foi adotada para os exames de Agregação das Universidades Francesas. E já são, pelo menos, trinta as dissertações de mestrado e teses de doutorado sobre a obra de Autran Dourado. O currículo invejável também inclui o cargo de secretário de imprensa do governo do ex-presidente Juscelino Kubitschek e o trabalho silencioso como ghost writer de JK durante os cinco anos em que Juscelino permaneceu à frente do país. Mineiro nascido em Patos de Minas, e da cidade de Monte Santo de Minas de coração, relutou, por décadas, em contar suas memórias em livro, apesar da insistência dos amigos. A recusa do escritor era justificada pela dificuldade em provar os fatos que seriam narrados, uma vez que ele afirma não ter qualquer documento ou cópia de 52 discurso da época em que assessorou o então presidente Juscelino Kubitschek. O romancista conta que, em 1968, quando da edição do AI 5, membros do gabinete de Juscelino foram presos, e o ex-presidente também foi posteriormente. Já Autran foi avisado por um policial de que seria preso e, antes que se concretizasse, destruiu todos os documentos que tinha em seu poder os quais pudessem comprometer JK. Na véspera de sua prisão, o romancista foi informado de que não seria mais detido. Autran Dourado acabou convencido a escrever suas memórias, apesar de alegar não ter qualquer documento como prova de suas narrativas nem se lembrar da ordem de alguns acontecimentos ou as datas em que ocorreram. Há décadas, os amigos insistiam para que Autran escrevesse suas memórias, capazes de remexer em dolorosas feridas e arrepiantes pormenores dos bastidores do Poder. O romancista recusava, dizendo que não guardara documentos e, assim, não poderia provar o que contasse. Mas acabou sendo convencido, com o argumento de que, ao lançar o livro, ele já estaria morto ou velho demais, portanto acima das contestações (http://www.editoras.com/rocco/022326.htm). O principal responsável para que as memórias fossem escritas foi o escritor Silviano Santiago. Em conversas com Silviano, Autran Dourado comentou que o livro deveria então ser publicado após sua morte. Ao dizer ao amigo, em tom de brincadeira, que poderia viver muito e, nesse período, o país poderia restringir JK aos livros escolares, sem que os brasileiros soubessem quem foi realmente Juscelino Kubitschek de Oliveira, talvez tenha lhe ocorrido a idéia de permitir que a publicação fosse feita em vida, como de fato ocorreu. 3.2 Schmidt, o poeta que “governou” o país Mesmo sem exercer qualquer função pública, a não ser a de embaixador temporário da ONU quase no final do mandato de Juscelino, Augusto Frederico Schmidt, o poeta, foi a maior figura do governo JK, afirma Autran Dourado. O romancista relata que, certa vez, o poeta declarou que “administrar e governar um país é uma coisa muito secundária” (DOURADO, Op. cit., p. 9), o que causou estranheza e risos em Autran Dourado. O então presidente tinha especial admiração por Schmidt e o 53 encarregava de escrever os principais discursos presidenciais, aqueles em que Juscelino queria realmente dizer alguma coisa. O presidente sequer precisava dizer a Schmidt o que gostaria de falar nesses discursos; era como se o poeta soubesse exatamente o que pensava JK. Esses discursos, em particular, mereciam atenção especial de Autran (encarregado de alterar, “à vontade”, os discursos e pronunciamentos do presidente), em função de Schmidt, muitas vezes, escrever coisas que favoreciam a Orquima, empresa que vendia produtos para o governo, promovendo um verdadeiro tráfico de influências. A estratégia do poeta nos discursos se devia ao fato de ele ser presidente da empresa. Na verdade, Kurt Weill era o “manda-chuva” da Orquima; Schmidt apenas emprestava seu nome, era como um relações-públicas altamente qualificado, afirma Autran Dourado. O poeta tratava, nos discursos, de assuntos considerados, por Autran, perigosos ao governo. O trabalho exercido por Autran Dourado era importante porque Juscelino, por inúmeras vezes, teria pronunciado discursos sem antes tê-los lido ou sequer visto. Autran cita uma vez em que chamou a atenção do presidente, o qual respondeu que cofiava no romancista e estava certo de que Autran conhecia muito bem a filosofia de seu governo. Autran Dourado também comenta que aconselhava o poeta a pedir ao presidente o que queria, assim não precisaria usar os discursos a seu favor quando tivesse que redigi-los. Apostava que os pedidos de Schmidt não seriam negados, mas o poeta não deixou de tentar favorecer-se por meio dos pronunciamentos do presidente. Para piorar, Schmidt não escondia o fato de ser escriba de JK, informação que, várias vezes, foi parar nos noticiários. O fato dava margem a ataques por parte da imprensa e parlamentares; entretanto, Juscelino nunca disse nada ao poeta, embora não o agradasse a divulgação sobre o ghost writer. O silêncio do presidente talvez fosse justificado pela importância que Schmidt tinha para o governo JK, conforme Autran relata em Gaiola Aberta. Ele afirma que Juscelino invejava a capacidade intelectual do poeta e aproveitou essa capacidade do assessor para potencializar seu governo. O poeta [Schmidt] foi muito injustiçado (...) É preciso que se diga, e disso dou testemunho: metade da grandeza do governo de JK se deve a ele, e eu lhe faço justiça agora. (...) Para mim, uma das virtudes de JK foi ter sabido escolher o Schmidt e saber usá-lo. Mas JK no fundo tinha inveja da grandeza, brilho e capacidade dele. (DOURADO, Op. cit., p.22-23). 54 Prova de que Schmidt “dava as cartas” pode ser observada quando o vicepresidente norte-americano, Nixon, levou pedradas em Caracas e Juscelino solicitou que fosse redigido um telegrama ao presidente Eisenhower lamentando o ocorrido com Nixon. Schmidt disse a Autran que um telegrama seria muito provinciano. O poeta então telefonou para Juscelino e afirmou que deveria ser redigida uma carta para afirmar JK como um grande estadista, para que ele crescesse internacionalmente. A carta deveria manifestar a convicção do presidente brasileiro em relação à necessidade de recomposição da unidade continental, que havia sido duramente atingida; mostraria que o presidente brasileiro tinha preocupações sobre o pan-americanismo e ele gostaria de expô-las ao presidente norte-americano quando houvesse oportunidade. O poeta então deu o nome de Operação Pan-Americana (OPA) e iniciou a redação da carta. Não demorou para que o texto estivesse pronto. Um estranho detalhe era o de que a carta fugia dos padrões da diplomacia brasileira. Schmidt determinou a Autran até quem devia encaminhar a carta ao destinatário. Antes que JK pudesse lê-la, o poeta telefonou para ele e o informou de que aquela carta seria o início de um plano de investimentos para a América Latina semelhante ao que o Plano Marshall foi para a reconstrução da Europa após a guerra. Juscelino pediu a opinião de José Maria Alkmin, o qual prontamente reconheceu o autor da carta. JK rebateu afirmando que tinha idéias sobre pan-americanismo e que Schmidt tinha sido apenas a mão que escreveu a carta. O poeta teria sido escolhido para redigir o texto por ser o melhor escriba à disposição do presidente. Mas Alkmin não engoliu a estória. Entretanto, disse a JK para aproveitar a manifestação de solidariedade a o governo norte-americano e solicitar o apoio de Ensenhower para os interesses do governo brasileiro, solicitação esta que o poeta saberia manifestar brilhantemente. Autran ficou incumbido de levar a carta até o embaixador Macedo Soares, o qual recebeu o escritor prevenido, já que havia recebido um telefonema do ministro Sette Câmara, subchefe da Casa Civil. Antes de ler a carta, falou de como uma simples vírgula muda todo o sentido do texto. Como era de se esperar, a carta causou espanto no Departamento de Estado Norte-Americano e foi determinado que o chanceler americano Foster Dulles viria ao Brasil. Schmidt comemorava e sugeriu a criação do Comitê da Operação Pan-Americana, no que foi atendido. Autran e os diplomatas passaram a se reunir na casa do poeta e foi escrito um documento a ser entregue ao chanceler. A imprensa de oposição tentou ridicularizar a operação e o poeta, mas JK não recuou. Quando o Foster Dulles chegou, propôs que o presidente brasileiro deixasse de lado os 55 investimentos maciços em todos os países latino-americanos e mantivesse a relação que já existia entre Brasil e EUA. JK solicitou a seu secretário de imprensa que comunicasse a Schmidt que estava tentado a aceitar a sugestão. Algumas autoridades do governo se manifestaram favoráveis à proposta do chanceler. Sette Câmara e Araújo Castro se disseram contrários à proposta americana. Schmidt se indignou e, caso JK não pensasse como ele, deveria assumir sozinho a OPA. JK disse então ao chanceler que estava com todos os países latino-americanos e pediu que Autran desse um novo recado a Schmidt. Desta vez a mensagem estava escrita em um pedaço de papel e dizia que o chanceler queria, ao final da reunião, uma declaração anticomunista. O motivo do comunicado por escrito seria a desconfiança que Juscelino teria de que Autran ainda estaria ligado ao comunismo e, portanto, não confiaria nele para a transmissão oral daquela mensagem. A resposta do poeta foi a de que a declaração diminuiria a importância do encontro e, portanto, o presidente deveria concordar apenas em fazer uma declaração em favor da democracia. O episódio ainda rendeu uma foto em que o presidente, ao estender a mão com a palma para cima, indicando que o chanceler se sentasse primeiro, se transformou em uma foto-bomba, cuja legenda era: “Me dá um dinheiro aí”, assim como na música que tinha essa frase como refrão, muito popular naquela época. JK ficou irritado com a astúcia dos jornalistas, mas o ódio não superou o manifestado por Schmidt, que considerava uma humilhação não para Juscelino, mas para o país. Quando foi a vez da visita do presidente Eisenhower, um novo documento foi escrito e, mais uma vez decorado por JK. Schmidt, Autran e o presidente brasileiro mais uma vez combinaram que, caso Juscelino tivesse qualquer dúvida sobre as decisões a tomar, o secretário de imprensa faria contato com o poeta. Eles só não contavam que haveria um problema quanto à questão do investimento americano em empresas estatais brasileiras. Tal investimento seria estendido a outros países latino-americanos, conforme a proposta da OPA. O presidente norte-americano declarou que os EUA não fariam investimentos em estatais. Eisenhower queria chegar à Petrobrás. Antes que o assunto chegasse a esse ponto, JK pediu que Autran contatasse Schmidt. A posição do poeta, que antes era de ataque ao monopólio do petróleo, causou espanto em Autran Dourado; Schmidt afirmou que não poderia haver distinção entre empresa estatal e privada. O poeta ainda disse que os países, os quais eram aliados do Brasil, não deveriam ser abandonados, traídos. Se houvesse traição, que o presidente não contasse com ele. 56 O resultado do encontro foi a exoneração do ministro Macedo Soares. Schmidt esperava ser nomeado o novo ministro do Exterior, mas JK fez uma manobra para evitar a nomeação. Pediu que Autran comunicasse o poeta da decisão. Qualquer nome deveria ser indicado para o cargo e, na verdade, quem mandaria na política externa brasileira seria Schmidt. O poeta rompeu com JK e só reataram a amizade tempo depois. Para Autran, que funcionou como um joguete na armação de Juscelino, a conclusão a que chegou quatro décadas após o episódio é a de que o presidente teria sido tomado por inveja. Caso Schmidt tivesse ido para o Itamaraty, ele teria sido a grande figura da política externa brasileira, e não JK. 57 4 OS DISCURSOS DO PRESIDENTE Louvado seja Deus por me ter propiciado a ocasião de poder servir a todos os Estados da Federação... Juscelino Kubitschek de Oliveira O material analisado, discursos proferidos pelo ex-presidente Juscelino Kubitschek nos cinco anos de mandato, foi obtido no Memorial JK em Brasília. Os pronunciamentos datam de 1956 a 1960 e estão reunidos em livros preparados pelo Serviço de Documentação da Presidência da República, os quais foram compostos e impressos pelas oficinas gráficas do Departamento de Imprensa Nacional. São, no total, cinco volumes, os quais têm mais de 300 páginas cada um e apresentam um índice cronológico em que, além da data de cada discurso, constam informações sobre o local onde foi realizado, além do tema ou motivo. Ao final de cada volume, há um índice remissivo, nomeado de índice analítico, e justificado como uma ferramenta para a melhor realização de sua finalidade documental. Nesse índice, constam nomes de cidades, personalidades e assuntos, a exemplo de “agricultura”, “Alagoas”, “barragem de Três Marias, “José Bonifácio de Andrada Silva”, “soldados brasileiros mortos em combate”, “Tribunal Federal de Recursos”. Os discursos registrados nos referidos livros foram pronunciados por Juscelino Kubitschek no Palácio do Catete, sede do governo federal até a transferência para Brasília; nas cidades visitadas pelo então presidente por ocasião de inaugurações, congressos e formaturas (nas quais paraninfou turmas), entre outros eventos. Alguns foram irradiados por meio de “A Voz do Brasil”, noticiário radiofônico pertencente ao governo federal. Para a realização deste estudo, foi necessária a solicitação de cópias dos cinco livros. Os volumes com os registros dos pronunciamentos de 1956, 1957, 1959 e 1960 foram disponibilizados por meio de fotocópias impressas e o volume com os discursos registrados em 1958, através de fotos digitais. Antes de concluída a leitura das mais de 1.500 páginas de pronunciamentos, foram feitos contatos telefônicos com Autran Dourado, ex-ghost writer de JK, com o intuito de descobrir se o jornalista e escritor possuía cópia do que foi dito oficialmente pelo ex-presidente e sabia informar quais teriam sido escritos por cada escritor fantasma, o porquê da designação deste ou daquele assessor para a redação de certos discursos e o que teria sido alterado por Juscelino. 58 Contudo, uma vez que não guardou qualquer documento ou rascunho sequer dos textos redigidos para JK, Dourado afirmou acreditar que os pronunciamentos mantidos no Memorial são transcrições do que foi proferido pelo presidente, ou seja, seriam os textos escritos pelos ghost writers com as devidas alterações feitas por Juscelino enquanto proferia os mesmos. Autran Dourado ainda afirmou que é difícil precisar a autoria dos discursos, visto que eram vários os redatores fantasmas. Apenas as falas oficiais do expresidente consideradas mais importantes poderiam ter sua autoria definida, uma vez que era solicitado a Schmidt que as redigisse. Mesmo sem qualquer outra menção de Dourado sobre a autoria dos pronunciamentos de Juscelino, acredito que há trechos nos textos redigidos pelos ghost whiters em que poderiam ser reconhecidas as intervenções do ex-presidente e, por isso, foi possível pensar no desenvolvimento do presente trabalho, o qual propõe identificar essas intervenções e analisá-las. As datas dos discursos que constam nos cinco livros mostram que o expresidente chegava a discursar uma vez ao dia ou até mais. Em 6 de abril de 1956, por exemplo, JK fez dois discursos em Porto Alegre, um sobre o desenvolvimento e iniciativas nacionais e outro na instalação da 11ª Mesa Redonda das Associações Comerciais do Brasil. No dia 28 de abril de abril de 1957, Juscelino também fez dois pronunciamentos, entretanto, um ocorreu na capital carioca, na Sessão Solene Inaugural do IV Congresso de Municípios, e outro na cidade de Peixotos, por ocasião da inauguração da represa de mesmo nome no município paulista. Outros discursos foram realizados seguidamente em cidades diferentes, contudo, havia pelo menos um dia de intervalo entre um pronunciamento e outro, como o feito no Amapá no dia 5 de janeiro de 1957, na inauguração do porto de minérios do território do Amapá, e o feito no Palácio das Laranjeiras no Rio de Janeiro no dia seguinte, durante a apresentação de telas do museu de arte de São Paulo. Em geral, passavam de cinqüenta, sessenta e até setenta os discursos feitos anualmente e eles funcionavam, principalmente, como uma prestação de contas do governo para com a população, com números sobre a economia nacional; anunciavam a construção de Brasília, além dos esperados benefícios políticos e sociais que derivariam da transferência da capital federal para o interior do país. Há, ainda, manifestações de patriotismo; respostas às críticas da oposição; discursos entremeados de poesia e metáforas, com direito a dados históricos e nomes de artistas não conhecidos pelo grande público; e manifestações de religiosidade, quando aparecem alusões a narrativas bíblicas, exaltações e louvores a Deus. 59 Essa miscelânea de enfoques e a falta de um padrão nos pronunciamentos poderiam ser justificadas por teorias, como a da morte do autor defendida por Michel Foucault (2002, p. 80-84), a qual trata do apagamento do autor em seu discurso. O autor, para ele, é “princípio de agrupamento do discurso, como unidade e origem de suas significações, como foco de sua coerência” (FOUCAULT, 2008, p. 26). A autoria figura, dessa forma, como resultado, efeito do discurso. No caso dos discursos de JK, esse apagamento não ocorre pela pluralidade de autores (ghost writers) mas pela pluralidade de posições que cada sujeito pode assumir, como pai, filho, presidente. O que deve ser considerado, então, é o lugar de onde se fala e não se deve confundir lugar com a posição física; na verdade, é a posição em um contexto, nesse caso, a presidência. Ao tratarmos das falas oficiais de Juscelino e analisarmos a posição ocupada por ele, a de Presidente da República, não podemos nos esquecer das condições de produção dos discursos, as quais dizem respeito ao contexto histórico em que a autoridade presidencial estava inserida com toda a ideologia e o jogo de interesses intrínsecos a este contexto. Como chefe da nação, JK sobreviveu a vários golpes e, ao priorizar a construção de Brasília, esta representou um trunfo para ele, principalmente por retirar o centro do poder do Rio de Janeiro, onde Juscelino não acreditava que conseguiria governar, como já foi abordado aqui. Ao mesmo tempo, a transferência da capital federal era vista pela oposição como o caminho mais curto até a sepultura do político Juscelino Kubitschek, parafraseando o historiador Ronaldo Costa Couto (2002, p. 21). Essa situação desconfortável, agravada pelos gastos incessantes com Brasília, enquanto outros setores, a exemplo da agricultura, não recebiam estímulo financeiro suficiente para se desenvolver, poderia ter levado os ghost writers a pensar em um discurso presidencial como a chave para a manutenção da ordem no país. E uma vez que a apropriação da língua é social ...os interlocutores constituem-se na bipolaridade contraditória daquilo que, por sua vez, constituem: o texto (o discurso) enquanto sua unidade. Assumindo essa posição, não se estará privilegiando nem o locutor nem o ouvinte, mas a relação que os constitui: a instância da interlocução, a interação (ORLANDI, 2001b, p. 150, grifo da autora). Isso significa que JK, na posição de presidente, era tão importante para os pronunciamentos quanto o povo brasileiro que os ouvia, o que significaria que os 60 escritores fantasmas deviam pensar não apenas no que um presidente deveria falar e como deveria falar mas também antever a reação e os interesses do público para, só então, redigirem os textos a serem lidos por Juscelino. “Arquitetar” os discursos não era uma missão tão fácil, visto que Carlos Lacerda e outras faces opositoras ao governo kubitschekiano faziam suas interpretações e até paródias das ações e falas oficiais de JK, além de cobrarem dele uma postura diferente diante de setores que não eram financeiramente beneficiados em virtude de o governo ter priorizado a construção de uma nova capital da República. A fala do presidente precisava convencer e, para isto, ao utilizar como instrumento da retórica o discurso político combinado ao religioso, a fórmula, embora antiga no segmento, se mostrou uma solução eficaz para contornar uma situação que poderia se tornar insustentável, o gasto milionário na concretização de um município para sediar a capital federal enquanto outro importante setor padecia, a agricultura. Parece mecânico o ato de produzir sentido em um discurso esperando que o ouvinte lhe atribua igual sentido, especialmente num discurso feito por um presidente. Mas, na verdade, os sentidos não nascem no enunciador, sendo que este também imputa sentido àquilo que fala. Para a interpretação de um discurso, portanto, seria necessária a interpretação do sentido literal, do contexto e das regras às quais a fala está submetida (ORLANDI, 2001b, p. 168), um jogo entre explícito e implícito – este último o que realmente se quis dizer, em muitos casos. Contudo, não podemos pensar que, se o sentido não nasce no locutor este não conseguiria instituir um sentido como o dominante entre os múltiplos que podem ser produzidos. É ao estabelecer essa dominação que o discurso político funciona. Esse tipo de discurso “procura absolutizar um sentido só, de maneira que ele não se torne apenas o dominante, mas o único (Ibid., p. 163). Por isso, podemos afirmar que um sentido se estabelece e ganha legitimidade, institucionalidade, sendo considerado o sentido oficial. “...o produto dessa sedimentação [de processos de significação] é que pode ser visto como a história dos sentidos cristalizados, é a história do jogo de poder da/na linguagem” (Ibid., p. 162), da verdade imposta e legalizada, por meio de práticas que a sedimentam, de modo a ser aceita sem discussão. A palavra divina auxilia nesta legitimação, sua força (na religião) é incontestável e uma vez que JK ainda dispunha do sonho profético de um padre italiano que viveu no século XIX como argumento para a concretização de Brasília, a argumentação poderia ser considerada infalível. 61 Também é importante considerar o que John Austin chamou de enunciado performativo, aquele que realiza uma ação, por exemplo: “perdôo você” e “condeno esse homem a dez anos de prisão”. Dizer, nesse caso, corresponde a fazer. Diferente do enunciado chamado de constativo, aquele que descreve um estado de coisas e, por isso, está sujeito ao rótulo de verdadeiro ou falso, o enunciado performativo não se sujeita a essa rotulação. Para que o enunciado seja chamado de performativo, são consideradas, além da ação que realiza, as circunstâncias em que as palavras são pronunciadas e a autoridade do falante para a execução dos atos. Quando o enunciado performativo tem um enunciador inadequado ou é realizado em condições incorretas, é nulo (http://www.filologia.org.br/viiifelin/41.htm). Retomando os discursos de Juscelino Kubitschek, ressalto que a diferença da retórica no discurso religioso - utilizado pelos ghost writers para dar mais poder ao político - é que o falante, nesse caso JK, não assume a posição de onde se fala, a posição de Deus, mas transmite as palavras de Deus, da vontade e dos desígnios divinos. Poderia haver a ilusão de que o então presidente se confundisse com Deus, ilusão que figura como condição necessária para que esse discurso funcione: “o como se fosse sem nunca ser” (ORLANDI, 2001b, p. 253). Ainda sobre as falas presidenciais da “era JK”, ressalto que além da pluralidade de “pessoas” que existe dentro de um sujeito, no caso da assessoria do ex-presidente ainda havia vários escritores redigindo os discursos para ele. Entre os redatores não havia uma preocupação com a padronização do que era dito oficialmente por Juscelino, isto é, a variação estilística dos discursos era comum, assim como o nível dos textos (sendo alguns mais formais e outros mais próximos da fala). Quanto às ocasiões e temas dos discursos, estes variavam entre inaugurações, aniversários de municípios, formaturas, congressos, visitas de autoridades estrangeiras ao Brasil, inflação, déficit orçamentário, industrialização, meta de emancipação econômica do país, Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste (Sudene), Operação Pan-Americana (OPA), a transferência da capital federal e suas conseqüências. As falas do presidente, em geral, utilizam a segunda pessoa do plural todas as vezes em que o presidente se dirige àqueles que o ouvem e apresentam duas linhas estilísticas distintas: uma que se espelha no estilo jornalístico e outra com uma linguagem completamente oposta, a qual apresenta metáforas e vocábulos eruditos, por exemplo. Segundo Eni Orlandi, a tipologia dos discursos [em geral] deveria atender a 62 relação linguagem/contexto, sendo o contexto compreendido em seu sentido estrito (situação de interlocução etc.) e também no sentido lato (como as determinações sóciohistóricas e ideológicas), isto é, “a tipologia deveria incorporar a relação de linguagem com suas condições de produção” (2001b, p. 152). Cada tipo de discurso tem certa estrutura, está voltado para determinado interlocutor, assim como para um falante específico e uma finalidade definida, ou seja, interlocutor e falante representam as posições dos sujeitos no discurso e não a presença de uma pessoa em especial. Assim, os textos redigidos pelos ghost writers deveriam contemplar o que era esperado do líder da nação, o que geraria uma reação positiva no público e estivesse de acordo com a ideologia circulante, uma vez que não poderia sofrer distorções de compreensão. Entre os discursos do ex-presidente Juscelino Kubitschek, estão vários exemplares de uma linguagem objetiva, típica do jornalismo, com frases claras e concisas – como identifico o primeiro estilo dos discursos de JK. Há também trechos em que constam termos formais e sentenças nem sempre construídas em ordem direta, características ainda apropriadas ao exercício da profissão de jornalista na época. São raros os casos em que aparece a primeira pessoa do singular. É o caso do proferido em 14 de novembro de 1956 no Palácio do Catete, Rio de Janeiro, por ocasião do encontro de JK com arcebispos e bispos do nordeste: Nesta ordem de idéias, apraz-me5 significar que entre os atos com que pretendemos assinalar o transcurso do primeiro aniversário do governo, a ocorrer em 31 de janeiro próximo – atos estes que não serão propriamente festividades mas sim inaugurações de obras e empreendimentos concretos – eu incluo desde já uma visita a Brasília, a futura capital do país, para assistir à primeira missa a ser ali celebrada (KUBITSCHEK DE OLIVEIRA, 1958, p. 337, grifos meus). Outros discursos, ainda nessa linha estilística, se apresentam como prestações de contas do governo à população que acompanhava os pronunciamentos do então presidente, como o realizado em Juiz de Fora no dia 16 de dezembro de 1958, o qual trata da verba investida pela União na Educação. Geralmente, os pronunciamentos são impessoais, apresentam números e justificam os investimentos feitos: 5 Aprazer – agradar, ser agradável, causar prazer, contentar-se, deliciar-se. 63 Quanto ao ensino de grau médio no corrente exercício, destinaram-se verbas de 17 milhões para ampliação do Colégio Estadual de Belo Horizonte e para prosseguimento das obras do colégio Estadual de Caratinga, além de verbas menores para o início da construção de numerosos ginásios de redes de educandários gratuitos. Concluíramse as obras iniciadas no ano anterior, do Colégio Municipal de Visconde de Rio Branco. [...] No plano do Ensino Superior, não menos significativas têm sido as providências e iniciativas do Governo, consciente de que, só através de cientistas e de técnicos de alto nível, será possível expandir, fortificar e emancipar a nossa produção. Nossas vistas se têm voltado sobretudo para os setores da engenharia e da Química (KUBITSCHEK DE OLIVEIRA, 1959, p. 485-486). A respeito dos recortes apresentados até agora, seria difícil atribuir a autoria a este ou aquele escritor fantasma em virtude de os redatores que assessoravam Juscelino serem escritores e/ou jornalistas numa época em que os estilos de escrita de ambas as profissões ainda podiam ser confundidos. Dessa forma, a teoria da morte do autor pode facilmente ser aplicada, visto que a principal preocupação percebida é a de redigir o que se espera de um chefe de nação, isto é, manifesta-se o que Foucault nomeou de arquivo, “a lei do que pode ser dito, o sistema que rege o que o aparecimento dos enunciados como acontecimentos singulares” (2005, p. 174). Esse arquivo é latente e não se origina no sujeito; não equivale a um acervo de documentos nem é descritível. Mas é essencial para a materialização dos discursos e está intimamente ligado às relações de poder, submetido a elas: “...o indivíduo é uma produção do poder, ou seja, na concepção foucaultiana, é formador de uma verdade sobre o sujeito. Assim, o indivíduo é uma fabricação do poder e o elemento que torna possível um conhecimento sobre ele” (SILVA, 2004, p. 172). Ao considerarmos a identidade criada para o presidente Juscelino a partir dos textos escritos para ele, temos uma verdade programada para justificar as ações presidenciais e um poder que o discurso religioso reforçou, já que JK se considerava um designado à construção de Brasília e à salvação do país da estagnação, e seus pronunciamentos (com marcas lingüísticas religiosas) se aproveitavam disso. É essa relação entre poder e “verdade produzida” que entendo ser a matéria-prima para os discursos políticos e, por isso, se justifica o embasamento de minhas análises em obras do filósofo francês Michel Foucault. Retomando o “diagnóstico” das linhas estilísticas dos discursos de JK, apresento, ainda dentro do primeiro estilo, uma linha temática que exalta o nacionalismo. Nesses textos, o país e a construção da nova capital federal são os sujeitos das orações e são 64 tratados com orgulho, considerados extensões bem sucedidas do governo e do povo, “obras” que espelham as qualidades, capacidades e aspirações da nação. Como o discurso de 25 de abril de 1956, apresentado por Juscelino Kubitschek em Curitiba: “O Brasil é uma grande nação, é um império. Como grande nação, como vasto império, é que deve ser considerado e interpretado” (KUBITSCHEK DE OLIVEIRA, 1958, p. 89, grifo meu). Outro exemplo é o pronunciamento feito por JK no Rio de Janeiro em 30 de setembro de 1957, ao sancionar a lei que fixou a data da transferência da capital da república: ...congratulo-me com o Congresso Nacional, que, com alto discernimento e patriotismo, soube auscultar os sentimentos desta nação, soube acolher os seus históricos anseios, soube, mais uma vez, mostrar-se fidedigno cumpridor da soberana vontade do povo brasileiro (IDEM, 1958, p. 219). Embora haja uma linha temática - nacionalista, não há marcas lingüísticas que identifiquem uma autoria específica ou mesmo um traço de participação de Juscelino no pronunciamento. Dentro da segunda linha estilística, aparecem metáforas e informações que remetem à intelectualidade, os textos são entremeados de palavras eruditas (entre elas, vocábulos em latim), nomes de obras e de artistas nem sempre conhecidos pela maioria da população, além da presença constante da palavra “epopéia” e de verbos como “aprazer”. É o caso do pronunciamento de 5 de novembro de 1958, ocorrido durante solenidade comemorativa do sesquicentenário da Instituição do Ensino médico no Brasil, na Faculdade Nacional de Medicina no Rio de Janeiro: 65 Há um século e meio o Brasil era apenas o prefácio do livro selado pelo mistério do futuro. Este livro em branco, o livro divino dos tempos, tanto poderia ser uma epopéia6 da raça, como o relato do seu desânimo, da sua desagregação e do seu fracasso. É verdade que os nossos antepassados tinham escrito como sangue, no prólogo7 heróico das entradas e bandeiras, o poema do descobrimento e do povoamento da terra generosa. Mas a liberdade é um desafio à competência. E se, ébrios8 de liberdade, os seus sucessores se desmandassem em subversões estéreis, em despotismos dissolventes, em incompreensões nefastas, aqui não floresceriam os estudos, o regime de união e de ordem, a sabedoria que ensina e as vocações por ela atraídas; nem os cento e cinqüenta anos dessa ilustre medicina fariam honra à brasilidade. Graças a Deus, o livro do Brasil dia a dia se foi enriquecendo com a memória dos pioneiros, o nome e as ações dos beneméritos, o exemplo e a palavra dos mestres, a correção e a continuidade das gerações, na história da pátria que, sem cessar se robustece (KUBITSCHEK DE OLIVEIRA, 1959, p. 390, grifos meus). Essas marcas lingüísticas não contrariam a teoria do apagamento do autor, já que, assim como os estilos de escrita, pode ser imitadas, como aconteceu com alguns pronunciamentos de JK, os quais foram redigidos por Autran Dourado. Ele teve que imitar a forma de escrita de Schmidt, que apresentava vocábulos elitizados (como “ébrios de liberdade” e “numa espécie de sinfonia wagneriana do trabalho”), nos casos em que o poeta, apesar de designado como redator oficial dos principais discursos presidenciais, não podia escrevê-los. Se era possível imitar o estilo de Augusto Frederico Schmidt, podemos considerar que a redação dele era marcante, uma pista para as análises a serem desenvolvidas nos dois capítulos seguintes, sobretudo no último, quando serão contrapostas as características do discurso do poeta e as do discurso de JK. Dentro da segunda e última linha estilística identificada entre os discursos de Juscelino Kubitschek, há uma linha temática que atenta para a religiosidade e tem, entre os principais exemplos, falas a autoridades religiosas e moradores de Diamantina, terra natal de JK. Esses pronunciamentos fogem ao padrão dos demais por, em sua maioria, apresentarem frases mais longas, assim como os parágrafos, aparentando liberdade ao falar. Mas também há trechos curtos ligados à religiosidade que aparecem em pronunciamentos de estilo mais objetivo, o primeiro apresentado nesse trabalho. Os pronunciamentos com características religiosas sempre apresentam palavras ligadas ao 6 Epopéia – poema longo sobre assunto heróico, série de ações heróicas (fig.). Prólogo – parte do drama que um só personagem representava antes da peça propriamente dita, prefácio. 8 Ébrios – alcoólatra, bêbado, esponja, beberrão. 7 66 catolicismo, como no discurso realizado no Rio de Janeiro em 27 de novembro de 1957, dia de ação de graças, todo voltado para a gratidão a Deus e do qual é aqui transcrito apenas um trecho: A crença no Deus Único é o mais adiantado estágio que alcançou a civilização [...] Desde que o homem aperfeiçoou o dom divino de amar, sublimando o amor, elevando-o à categoria espiritual mais pura, foi o amor de Deus o caminho para romper a solidão que o sufocava, o elo capaz de unir os seres isolados na perfeita comunhão com o Espírito que paira sobre a terra. Só no seio de Deus, no amor divino, é possível encontrar a paz e a compreensão entre os homens. Estas palavras de fé podem soar estranhas aos ouvidos de muitos, pois assumem a feição de uma prece, o reconhecimento da nossa humildade e paradoxalmente da nossa grandeza; nos dias atuais, quando mais prementes e necessárias se tornam a oração e a fé, a prece ainda é a grande revelação [...] desejo pedir a todos que voltem o seu pensamento para o alto e agradeçam ao Supremo Bem todas as dádivas e alegrias que nos concedeu, e mesmo todas as provações e sofrimentos, que serviram para nos mostrar a Sua Magnitude. Rendamos graças a Deus pelo destino que nos conferiu [...] peçamos a Deus que continue a favorecer-nos com a Sua proteção [...] Roguemos então a Deus que favoreça todos os povos do mundo para que não haja fome e guerra [...] Roguemos a Deus para que o trabalho dos homens só sirva para louvá-lo e exaltá-lo na Sua Suprema Glória! (KUBITSCHEK DE OLIVEIRA, 1958, p. 257258, grifos meus). Entre os exemplos de trechos religiosos que aparecem em pronunciamentos de outra linha estilística (no caso, a próxima do jornalismo), está o feito por JK no Palácio das Laranjeiras na presença dos embaixadores das vinte e uma Repúblicas Americanas, no Rio de Janeiro, em 24 de setembro de 1960. O tema da fala do presidente era a Operação Pan-Americana (OPA) e o trecho aparece logo após o então presidente brasileiro tratar da importância de uma conferência realizada em Bogotá pouco tempo antes, na qual a OPA teria sido consagrada. Não mais se cogitará de conquistarmos a uma causa nova adeptos indecisos ou receosos, de combatermos a incredulidade, de vencermos a inação ou o ceticismo: cristãos velhos ou novos, todos hoje comungamos da mesma fé (KUBITSCHEK DE OLIVEIRA, [1961], p. 347, grifos meus). 67 Outro trecho que exemplifica o aparecimento de vocábulos religiosos em discursos voltados a assuntos não ligados à religião é o pronunciado em Fortaleza no dia 15 de julho de 1960, quando JK recebeu os títulos de cidadão do Estado do Ceará e de cidadão de Fortaleza. Juscelino aproveita a oportunidade para apresentar uma prestação de contas de seu governo. Fala das melhorias em rodovias, dos investimentos em irrigação, piscicultura e outros setores. Na seqüência, afirma que a prestação de contas foi um desabafo e declara: Louvado seja Deus por me ter propiciado a ocasião de poder servir a todos os Estados da Federação, sem levar em conta a filiação partidária de seus Governantes e o montante de votos que recebi quando candidato (KUBITSCHEK DE OLIVEIRA, [1961], p. 251, grifo meu). Neste pronunciamento de 15 de julho, não há qualquer menção a respeito da suposta preocupação de JK em cumprir a constituição, contrariando o que ele trata no livro “Por que construí Brasília”. Em outro discurso, realizado em 24 de abril do mesmo ano, Juscelino novamente faz uso da religiosidade para justificar a Meta-Síntese de seu governo: Mencionando os deveres sagrados que me moveram a transportar para o interior a Capital da República, aludi à segurança nacional [...] Graças devemos dar ao Criador do Universo porque um trabalho fecundo nos espera e isso equivale a uma benção dos céus (Ibid., p. 151, grifos meus). Os últimos discursos citados não só apresentam termos ligados ao catolicismo como também poderiam ser considerados possíveis intervenções de Juscelino nos textos escritos para ele, visto que são trechos isolados, destoantes dos demais que entremeiam os pronunciamentos. Contudo, atribuir autoria aos trechos ditos religiosos é arriscado, uma vez que havia ghost writers católicos, caso do fervoroso Augusto Frederico Schmidt, e mesmo os adeptos de outras crenças e religiões, poderiam ter assimilado características da fala de JK, visto que vários discursos apresentam invocações a Deus, como “Deus seja louvado” e “Roguemos a Deus”. Os vocábulos também poderiam ter sido usados propositalmente pelos redatores fantasmas, como estratégia para atrair a 68 atenção do povo, ao colocar o presidente como um homem que prezava pela religiosidade. “A religião constitui um domínio privilegiado para se observar esse funcionamento da ideologia dado, entre outras coisas, o lugar atribuído à Palavra” (ORLANDI, 2001b, p. 242). Nesse caso, a posição ocupada por quem fala é diferente daquela existente nos discursos tradicionais: o falante não ocupa o lugar de Deus; é apenas um representante Dele. Se nos lembrarmos de que no discurso religioso considera-se que a voz de Deus fala no padre ou em outro representante divino, e no discurso político considera-se que a voz do povo fala no político, poderíamos afirmar que os discursos de JK uniam desejo/mensagem de Deus com desejo/mensagem do povo. Não seria sem motivo o uso da primeira pessoa do plural nos pronunciamentos de JK com esse mote. E mesmo tão próximo do povo, e fazendo parte do povo, o falante, que representa Deus mas não ocupa o lugar Dele, torna sua fala um rito. É preciso ressaltar que, no catolicismo, Deus representa o Pai acolhedor e que tudo perdoa, Aquele que cura, que espera que Seus filhos trilhem o caminho da Verdade e do Bem, Aquele que garante a salvação aos que crêem sem questionar (dogmatismo) e que fala com os homens por meio do padre ou mesmo sem intermediários. Mas o Deus católico também representa Aquele que pune quando Seus filhos se desviam do caminho que leva até Ele. Essas concepções, segundo Gramsci, são para o povo um misto de “formas precedentes do catolicismo atual, movimentos heréticos9 populares, superstições científicas vinculadas a religiões do passado, etc. (Gramsci apud Orlandi, 2001b, p. 248). Orlandi também cita Gramsci para explicar como funciona o discurso religioso católico, baseado na fé, ou seja, em dogmas - verdades incontestáveis pelos fiéis. O homem e Deus pertencem a mundos diferentes, material e espiritual respectivamente, e, para se estabelecer uma relação entre ambos é necessário ao homem assumir as qualidades do espírito, daí a importância da fé nesse contexto como uma possibilidade de ele possuir um poder que emana de Deus, embora não assuma a posição de Deus, e alcançar a salvação. A fé, também é utilizada para classificar as pessoas como as que pertencem à Igreja - as que crêem - e as que não pertencem – e, portanto, não crêem. Assim, o discurso religioso significa uma promessa aos fiéis e uma ameaça aos não-fiéis (Cf. ORLANDI, 2001b, p. 250). Ao unir o discurso religioso e o político, JK aparece como a voz de Deus e do povo, é como se ambos falassem no presidente. “Essa é a forma da representação, ou 9 Heréticos – contrários à religião. 69 seja, da relação simbólica” (ORLANDI, 2001b, p. 244). Aqui é necessário tratar de uma característica importante do catolicismo: a crença sem contestação, o dogma, diferentemente de outras religiões e crenças que combatem o que chamam de “fé-cega” e defendem o conhecimento ilimitado. Ora, o que garante a eficácia do discurso religioso é a ilusão de que Deus fala no sujeito e, uma vez que o católico não contesta o que ouve do padre ou outro representante de Deus, o poder de convencimento do discurso religioso católico, também utilizado por JK, se torna infalível. Não é necessária uma prova da verdade. A verdade é aquilo que o falante anuncia e não é passível de refutação. Nos pronunciamentos de 1960, além dos trechos que apresentam marcas de religiosidade, há outro elemento que merece atenção. Em sua maioria, a fala oficial do presidente não fez mais do que enaltecer o próprio JK pela coragem de mudar a capital brasileira do Rio de Janeiro para o interior do país. Os discursos, com assuntos variados, tratam, na verdade, de um único tema: a transferência da capital do país para o centrooeste brasileiro, o que era considerado “apenas” o cumprimento da Constituição Federal por Juscelino, conforme ele próprio anunciava. Mesmo quando o título da fala de JK discorria sobre, por exemplo, a visita do então presidente do México, López Mateos, ao Brasil, o assunto central da fala oficial não variava; como que uma “alfinetada” na oposição e naqueles que não acreditavam que Brasília um dia sairia do papel. Era uma verdadeira propaganda dos “50 anos em 5” em oposição ao que JK chamava de estagnação do continuísmo. Mesmo quando não fala diretamente de Brasília, Juscelino enfatiza os pontos positivos de seu governo. Chega a apresentar um extenso relatório sobre o desenvolvimento do país durante o pronunciamento feito no dia do quarto aniversário de seu governo, em 31 de Janeiro de 1960, como que para provar sua capacidade para administrar o país e, conseqüentemente, para conduzir a transferência da capital federal. De acordo com Autran Dourado, essas falas oficiais de Juscelino como presidente seriam um reflexo da obsessão de JK pela “Meta-síntese” às vésperas da concretização de Brasília. O escritor ainda afirma que era o então presidente quem solicitava que os discursos tratassem da nova capital federal, mesmo quando o tema era outro. Em pronunciamento realizado em 26 de junho, Juscelino comenta até sobre a agricultura, setor que não recebeu muitos investimentos em seu governo em virtude dos esforços terem se concentrado na indústria e na construção de Brasília. JK promete investimentos no campo para beneficiar a agricultura e a pecuária, embora já estivesse 70 no final de seu mandato. Era uma forma de preparar os eleitores para as eleições de 1965, quando Juscelino voltaria a disputar o cargo mais elevado do país e teria como lema “JK-65: 5 anos de agricultura, 50 anos de fartura”. O discurso rendeu críticas, as quais foram rebatidas em um pronunciamento feito em Belo Horizonte em 2 de julho, quando, mais uma vez, Juscelino reverteu o foco de sua fala para as obras realizadas em seu governo e para os benefícios que haveriam de surgir após a transferência da sede do governo para Brasília, uma “manobra” típica dos pronunciamentos políticos. No discurso proferido no Rio de Janeiro em 26 de julho de 1960, durante a instalação do I Simpósio Nacional sobre Conceituação da Economia Brasileira, embora o tema do congresso fosse economia, JK não tratou da política econômica nacional nem mesmo da inflação. O mesmo ocorreu com várias outras falas oficiais datadas de 1960, as quais, na verdade, trataram da construção de Brasília em vez dos verdadeiros temas sobre os quais se propunha a discorrer. E apesar de os discursos que não tratam de religiosidade pareçam ser mais bem arquitetados e, por isso, os que mereceriam maior atenção neste trabalho e, conseqüentemente, uma análise, é no discurso especificamente religioso que serão concentrados meus esforços e nos quais acredito estar a chave para resposta do problema de pesquisa que propus, já que seriam a principal oportunidade dos improvisos de JK. Para isso, lanço a pergunta: que panopticon seria mais eficiente que a onipresença de Deus? Ao analisarmos Juscelino como o designado para a construção da nova capital federal podemos estabelecer uma ponte com a época em que os reis eram considerados enviados de Deus e os padres comungavam da riqueza dos reinos. Igreja e Estado se confundiam e o discurso religioso já era usado para a comercialização de indulgências, como a compra de “santinhos” para a garantia de absolvição de pecados e a conquista de uma vaga no Céu. “O palácio e a Igreja constituíam as grandes formas, às quais é preciso acrescentar as fortalezas; manifestava-se a força, manifestava-se o soberano, manifestava-se Deus” (FOUCAULT, 2006a, p. 211). Seguindo o pensamento de Foucault, poderíamos afirmar que Juscelino reunia as duas instituições: o Estado e a Igreja, ou seja, representava dois pilares da sociedade cujos discursos e atos não são passíveis de refutação. 71 5 POR TRÁS DOS DISCURSOS É inútil fechar os olhos à realidade. Se o fizermos, a realidade abrirá nossas pálpebras e nos imporá a sua presença. Juscelino Kubitschek de Oliveira Os discursos feitos por JK, mesmo que não fossem escritos por ele, seguiam o que o então presidente almejava dizer ou fazer. O jornalista Franklin Martins, atualmente à frente do Ministério da Comunicação Social, ressalta que todo político defende interesses, os quais podem ser, ou não, legítimos e honestos, e são raras as vezes em que seu pronunciamento coincide com aquilo que realmente defende. Na verdade, o discurso político visaria à solidariedade de um público em número superior àquele que seria beneficiado com sua proposta. O jornalista ilustra as explicações sobre os pronunciamentos políticos com dois exemplos: o primeiro, um pacote com um belo embrulho; o segundo, uma citação de Guimarães Rosa, a qual dizia que a palavra oculta mais do que desvela. Martins completa que, de modo geral, o político fala para transferir o foco de algo que o incomoda para algo que o favorece (MARTINS, 2005, p. 63-65). No caso dos discursos proferidos por JK, os ghost writers tanto atendiam aos anseios de JK que muitos pronunciamentos não tratavam somente, e principalmente, do tema anunciado; pouco depois de seu início desviavam-se para assuntos de interesse de Juscelino, como já citado neste estudo. Os discursos produzidos pela suposta miscelânea de autores não eram submetidos a uma uniformização, segundo afirmou Autran Dourado, de modo a deixar os discursos com um mesmo padrão de estilo, o que permitiu delinear as linhas estilísticas aqui apresentadas. Questionado sobre as possíveis alterações no padrão dos discursos de JK, Autran Dourado afirmou, em entrevista, que é impossível definir onde consta o estilo literário desta ou daquela pessoa, já o estilo de Schmidt teria sua identificação mais acessível, já que era ele quem escrevia os principais discursos proferidos por JK, como Autran também afirmou à “Revista Época”: 72 "Escrevi discursos para JK, embora o principal ghost-writer dele fosse Augusto Frederico Schmidt (1906-1965), seu chefe-de-gabinete, cujo estilo podia ser detectado na fala do presidente. JK pegava o discurso direto, sem olhar", [afirma o ex-secretário de imprensa]. Dourado chegou a fazer discursos para o próprio Schmidt, imitandolhe o jeito de escrever. "Fui ghost do ghost", brinca [o jornalista]. "JK era um caipira que amava literatura. Como não tinha cultura, cercava-se de escritores" (http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,EDG615376011,00.html, grifos meus). A declaração de Dourado à revista é uma pista para se cogitar a autoria de uma das linhas estilísticas dos discursos, aquela em são apresentadas informações culturais e históricas, além de metáforas, vocábulos em latim e termos típicos dos intelectuais. Entre os discursos deste estilo, o erudito, que fez sucesso entre a elite brasileira nas décadas de 50 e 60 e ainda hoje é admirado, está o pronunciado em Florianópolis, no dia 3 de abril de 1957, na Conferência dos Governadores da Bacia Paraná-Uruguai. O assunto, o desenvolvimento regional e nacional: Concito-vos10 a meditar no problema de ajudar o café e a sustentar a luta e ajudar o Brasil [...] Sei que para isso se impõe a ação do Governo Federal, facilitando os transportes e criando energia, mas já todo o país sabe que em tal sentido trabalhamos infatigavelmente, sem desfalecimentos, numa luta áspera contra forças maléficas de toda espécie, desde as negativas, as da inércia, as do pessimismo dissolvente, até as agressivas e virulentas erupções de ódio de desajustados que procuram em vão desorganizar o país com a calúnia soez11 e ira malsã12. [...] Passou a hora dos inimigos da paz, dos detratores (KUBITSCHEK DE OLIVEIRA, 1958, p. 86). Retomando a informação de que os discursos do presidente JK eram redigidos por diferentes assessores, é preciso enfatizar que Dourado era o responsável pela revisão dos textos e sabia dos interesses do poeta ao redigir os pronunciamentos, como comenta Luis Nassif: 10 Concitar – incitar, instigar, insuflar, excitar, mover. Soez – vil, torpe, reles. 12 Malsã – doentia, insalubre, ainda não curada totalmente. 11 73 13 A grande eminência parda do governo JK foi o poeta e empresário Augusto Frederico Schmidt. Autran sentia que JK tinha medo do brilho do Schmidt. Os melhores discursos de JK eram preparados por Schmidt, mas passavam pelo crivo de Autran, incumbido de lhes conferir uniformidade e extirpar algum exagero retórico ou algum contrabando não combinado (http://www.lainsignia.org/2006/febrero/ibe_061.htm). Sobre os discursos escritos para Juscelino, é necessário salientar também que, de acordo com Autran Dourado, o então presidente jamais teria solicitado que os discursos possuíssem amostras de sua religiosidade. Entretanto, é provável que os ghost writers tenham assimilado características da personalidade do então presidente do Brasil e isso transpareceria nos textos escritos para JK. Ou que essas características tivessem sido utilizadas propositalmente pelos escritores fantasmas. De qualquer forma, um jogo entre o sujeito e o autor do enunciado. Mikhail Bakhtin explicaria essa simulação do discurso do outro com a teoria da polifonia. De acordo com o filósofo, o ser chamado social ganhou essa nomenclatura em virtude de “se construir” continuamente a partir de outros eus, estejam eles dentro ou fora do sujeito – o que chamou de alteridade. E essa relação se explicita tanto nas ações quanto no discurso. A alteridade ou dialogismo, de acordo com o autor, são inerentes ao discurso. O sujeito emerge do outro, afirma ele; a partir do seu diálogo com outros “eus”. O discurso é constituído a partir de vozes concorrentes (polifonia), tanto internas quanto externas. A partir desse dialogismo, a imagem do homem é construída num processo de comunicação interativa, no qual nos vemos e nos reconhecemos através do outro, da imagem que ele faz de nós. Aquele que apreende a enunciação de outrem não é um ser mudo, privado da palavra, mas ao contrário um ser cheio de palavras interiores. Toda a sua atividade mental, o que se pode chamar o “fundo perceptivo”, é mediatizado para ele pelo discurso interior e é por aí que se opera a junção com o discurso apreendido do exterior. (BAKHTIN, 2006, p. 153-154). 13 Expressão usada para designar uma pessoa que se mantém nos bastidores da vida pública e exerce o poder secretamente; é quem realmente manda, contudo não aparece. O significado do termo “Eminência Parda” não difere do subtítulo do capítulo três deste trabalho: “Schmidt, o poeta que governou o país”. Eminência Parda - termo originado no governo de Luís XIII, quando o capuchinho Père Joseph (Frei José), ao tornar-se secretário particular, conselheiro e confidente do Cardeal Richelieu, o verdadeiro homem forte da França de Luis XIII, exerceu sobre o Cardeal tal influência que fez do religioso um das mais poderosas figuras do reino, embora Père Joseph não ocupasse um cargo oficial. 74 Faço aqui um adendo para justificar que, embora o filósofo Bakhtin considere fatores extra-lingüisticos como o contexto de fala, a relação entre falante e ouvinte, e o momento histórico em suas pesquisas, vou concentrar as análises deste trabalho nos estudos de Foucault. O estudioso francês também trata de alteridade e afirma que estamos sujeitos ao que chama de memória, vozes provenientes do outro, carregadas de ideologia, valores etc. e que se entrelaçam. E a memória no discurso tratado por Foucault não funciona como os pensamentos e conhecimentos que sabemos possuir, mas como uma “ferramenta” de esquecimento, de forma a utilizarmos ideologias, expressões e informações naturalmente, sem atribuirmos a este ou aquele “outro”. Mas há uma falsa impressão de liberdade nesse enunciar. Elementos como o contexto, as condições de produção e a posição de onde se fala também determinam o discurso. Por isso, os redatores fantasmas poderiam ter assimilado marcas da fala de JK e as utilizado nos textos redigidos para o presidente, mesmo que não tivessem a intenção de usar essas marcas, o que é pouco provável, já que estamos tratando de discursos políticos. Michel Foucault também fala que “o autor deve apagar-se ou ser apagado em proveito das formas próprias aos discursos” (2002, p. 80). Foucault chamou esse “falar sem dono” de teoria da morte do autor, como já mencionado neste trabalho. Segundo o filósofo francês, a obra que antes conferia imortalidade ao autor seria, na verdade, a responsável pela morte dele. A escrita estaria, então, ligada a um sacrifício: o de abdicar da própria autoria, apagar-se da obra voluntariamente. De acordo com Foucault, “trata-se de retirar ao sujeito (ou ao seu substituto) o papel de fundamento originário e de analisá-lo como uma função variável e complexa do discurso” (Ibid., p. 70); esse apagamento do autor ocorre a partir da construção da função-autor, um efeito do discurso. Em resumo, embora o sujeito acredite ser a origem de seu discurso, ele, na verdade, faz parte do que diz e seu dizer tem origem em outros dizeres. Ainda segundo Foucault, os sujeitos têm a falsa impressão de liberdade, completude, essência. Na verdade, são sujeitados, cindidos, “em face de um poder, que é lei, o sujeito que é constituído como sujeito – que é ‘sujeitado’ – e aquele que obedece” (FOUCAULT, 2006a, p. 95). Esse poder não é proveniente de uma única pessoa, ele está por toda parte, provém de todos os lugares, diz Foucault (Ibid., p. 103). E, no discurso, a lei é regida conforme as condições de produção14, o contexto, a 14 Condições de produção - consideram não só a interlocução mas também a ideologia em que o discurso está “mergulhado”. Orlandi cita Pêcheux para explicar as condições de produção, as quais seriam formações imaginárias, palco de uma relação de forças - lugares sociais dos interlocutores e posições 75 posição de onde se fala, o interlocutor e a antecipação que o falante faz da reação do interlocutor. Não há como falar o que se quer, mas deve-se dizer o que se pode de onde se está. Nem mesmo um rei ou um Presidente da República poderiam enunciar sem considerar esses aspectos, isto é, mesmo quem detém o poder na sociedade está sujeitado ao que pode e deve falar. Mesmo quando não está explicito, há sujeito, já que existe a necessidade de um autor, uma instância produtora, para que haja um enunciado. Contudo, não se pode confundir esse autor com o sujeito do enunciado quanto à identidade. E segundo Michel Foucault, o sujeito não é a origem do discurso, mas é construído pelo discurso, o qual determina o que, como, e quando dizer - esse é o arquivo. A partir desse do conceito de arquivo, podemos repensar até que ponto os redatores dos textos do presidente dominavam o que escreviam, já que para o “funcionamento” do arquivo, o qual não é um patrimônio individual, é necessária a memória, não a memória cognitiva, mas a responsável pelas tradições, aspectos culturais etc. Saberes, em sua maioria, anônimos, “que ao permanecerem, se transformam: ao serem lembrados, são esquecidos. [...] a memória é, portanto, sempre esquecimento, pois é sempre interpretação de algo que já passou; passado que se faz presente; presente que, a todo momento, já é futuro (CORACINI, 2007, p. 16). Foucault tinha conhecimento dos esquecimentos tratados por Pêcheux, os quais permitiriam que nos comunicássemos, já que não trabalhamos como manipuladores dos discursos, pelo contrário, temos a falsa ilusão de liberdade ao falar, visto que acreditamos ser a origem do sentido e temos a certeza, também, de que o interlocutor imputará o mesmo sentido que atribuimos àquilo que enunciamos. Por que esse breve comentário teórico? Utilizo um episódio histórico, já mencionado no capítulo 3, para justificar: às vésperas da indicação do então candidato do PSD à presidência da República, Juscelino Kubitschek, Carlos Lacerda declarou na televisão que Juscelino não seria candidato, se fosse candidato não seria eleito e, caso fosse eleito, não tomaria posse; se tomasse, não governaria. A resposta de JK foi: "Deus poupou-me o sentimento do medo". Contudo, a frase não era de Juscelino, mas de Autran Dourado, que teria assimilado a marca da fala de JK, a religiosidade; ou teria feito uso da temática religiosa para conseguir o efeito desejado. relativas no discurso, além da intertextualidade - relações entre os discursos, e a antecipação à reação do interlocutor e vice-versa (Ibid., p. 163). 76 Hoje, Autran Dourado lembra com simpatia o episódio em seu livro Gaiola aberta - Tempos de JK e Schmidt. A frase não era de Juscelino, mas dele, que ajudava o poeta Augusto Frederico Schmidt a preparar os discursos do criador de Brasília. Schmidt perguntou a Autran se o homem de Diamantina tinha mesmo toda a coragem "que arrotava" e o romancista afirmou: "tem sim! Pode escrever esta frase aí" (http://www.editoras.com/rocco/022326.htm, grifo do autor). E então pergunto: mudaria o sentido dos discursos de JK caso se soubesse que não era ele quem os escrevia? E será mesmo que não se sabia? Já citei, no capítulo 3, um trecho do livro de Autran Dourado em que o jornalista afirma que Schmidt não escondia dos amigos o fato de escrever os discursos do então presidente; informação que, de acordo com Dourado, ia “muitas vezes parar no noticiário da imprensa” (DOURADO, 2000, p. 22). E embora o público tivesse acesso à informação de que outra pessoa escrevia os discursos do então presidente, essa informação poderia ter sido desconsiderada na época. Por quê? Sabemos que há discursos que precisam de uma assinatura, como é o caso dos pronunciamentos presidenciais, mas não é necessário um autor. Dessa forma, “um texto pode até não ter um autor específico mas, pela função-autor, sempre se imputa uma autoria a ele (ORLANDI, 2001a, p. 75). Juscelino, então, seria considerado autor dos discursos que pronunciou, porque, ao pronunciá-los, tomou posse dos mesmos, ocupou a funçãoautor na elocução. Essa ilusão de autoria era necessária para se legitimar o discurso presidencial. Para Coracini: É justamente porque constrói verdades que o poder se conserva e se dissemina na sociedade por meio dos discursos. Ora, assim como os discursos carregam poder e são alvos de poder, aqueles que o detêm detêm igualmente poder. Poder que cria em cada sujeito a ilusão de completude, de verdade, de estabilidade, de identidade e, portanto, de essência, que ele busca incessantemente, sem jamais alcançar... (2007, p. 24). Como estamos lidando com pronunciamentos políticos, que se enquadram no tipo de discurso autoritário, a fala oficial do presidente deve apresentar um sentido absoluto, não permitindo qualquer margem para outros sentidos, embora eles sejam possíveis. Assim, a assinatura presidencial atribuiu o status de verdade ao que JK dizia oficialmente. De acordo com Foucault, “o problema não é de se fazer a partilha entre o que num discurso revela da cientificidade e da verdade e o que revelaria de outra coisa; mas de 77 ver historicamente como se produzem efeitos da verdade no interior dos discursos que não são em si nem verdadeiros nem falsos” (2006a, p. 7). Recapitulando o trabalho dos ghost writers, ao estudarmos o fato de eles terem possivelmente abdicado de suas identidades e assimilado o discurso de Juscelino Kubitschek, ainda acredito ser possível identificar intervenções autênticas de Juscelino em alguns dos discursos que pronunciou durante o mandato presidencial. Minha crença se baseia em informações de Autran Dourado, o qual afirma que Juscelino intervinha nos discursos, o que tornaria essa possibilidade uma ação concreta. O ex-secretário de imprensa conta que o então presidente improvisava durante os pronunciamentos e era um expert nessa arte. O historiador e cientista político Ricardo Maranhão confirma que Juscelino tinha uma “...oratória capaz de entusiasmar as multidões...” (1985, p. 17). De acordo com Dourado, não foram poucas as vezes em que o ex-presidente usou do improviso durante os discursos e uma pista para identificar as intervenções do então presidente seria, justamente, o vocabulário religioso: uma marca lingüística na fala do ex-presidente. Autran Dourado afirma que Juscelino não podia ser considerado um “beato”, mas era muito religioso, praticava a religião católica e respeitava outras religiões e crenças. Ressalto que o ex-secretário de imprensa de Juscelino disse, em entrevista concedida por telefone, que JK não tinha um estilo de escrita, com marcas de linguagem, nem foi criado um estilo presidencial para os discursos dele, entretanto, Dourado reconhece que havia marcas na fala do presidente, marcas de religiosidade, marcas facilmente imitada e um clichê no discurso político. Caso, então, os ghost writers tenham assimilado ou imitado aquela que julgo ser a principal característica de Juscelino, o vocabulário religioso, esta característica pode ter sido utilizada, propositalmente ou não, pelos assessores do presidente que eram responsáveis por redigir discursos durante o governo JK, embora seja mais provável o uso proposital da religiosidade. Seria uma estratégia política para atingir o público, uma vez que o Brasil é um dos países que possuem o maior número de católicos no mundo e, naquela época, a hegemonia católica ainda não era ameaçada pelos evangélicos e os praticantes de outras religiões. Seria grande o número de pessoas dispostas a ouvir o que era dito por alguém que dizia ter fé e, principalmente, ser católico. Dentre os termos religiosos constantes nas falas de JK está um nome: “Deus”, o qual também é citado de diferentes formas; certas vezes, aparece como “Autor de tudo o que existe”, em outras como “Ente Supremo”, em outras ainda como “Criador do 78 Universo”. Alguns trechos que apresentam características de religiosidade vêm isolados, como já citei, e são exclusivos em um discurso, a exemplo do trecho a seguir, o qual encerra o pronunciamento de Juscelino realizado no Tribunal Superior Eleitoral, no Rio de Janeiro, ao receber o diploma de Presidente da República em 27 de janeiro de 1956: “Pedimos a Deus que nos inspire e nos dê o sentimento da grandeza de nossa missão” (KUBITSCHEK DE OLIVEIRA, 1958, p. 11, grifo meu). Em um discurso feito quatro dias depois pela rede de radiodifusão da “Voz do Brasil”, há mais um trecho ligado à religiosidade que aparece isolado e, desta vez, entre hífens: “...a fim de que se torne possível a salvação de grande parte de nosso povo, que vive – só Deus sabe como – condenado a uma pobreza que nos envergonha” (KUBITSCHEK DE OLIVEIRA, 1958, p. 205, grifos meus). Esse discurso, um balanço sobre os seis primeiros meses de gestão presidencial, traz o nome Deus uma segunda vez, e, embora não apareça entre hífens, o trecho se diferencia do restante do texto em função do vocabulário simples que utiliza: “O culto da infabilidade do poder está derrogado15; o poder se sujeita a erros e Deus sabe quantas vezes tem errado o poder em nosso país. Mais grave do que o erro, entretanto, é a obstinação...” (Ibid., p. 206, grifo meu). Destaco que o referido trecho consta entre ponto e vírgula e ponto final, sinal de respiração do falante, o que poderia significar que JK incluiu a frase de improviso. Nos discursos com expressões religiosas, Eni Orlandi explica que “A própria fala é ritualizada, é dada de antemão. Há fórmulas para se falar com Deus, mesmo quando se caracteriza essa relação de fala pela familiaridade [...] de um lado, temos sempre a onipotência divina, de outro, a submissão humana” (2001b, p. 247). “O eucristão pode falar diretamente com Deus mas isto não modifica o seu poder de dizer, o lugar de onde fala (Ibid., p. 247). Outro discurso que apresenta um estilo objetivo mas poderia ter sofrido intervenções de Juscelino foi proferido no Rio de Janeiro, em 21 de julho de 1959, durante a Conferência realizada no Clube Militar sobre a Política de Desenvolvimento do governo. O pronunciamento, o qual foi transcrito em quatorze páginas, apresenta o nome Deus apenas uma vez e também entre hífens. Entretanto, ressalto que o “clima” de religiosidade não se resume a esta frase no discurso, e, nele, JK afirma sua intenção religiosa à frente do país: 15 Derrogar – anular, abolir, substituir (preceitos legais), conter disposições contrárias a. 79 Com efeito, desde que cheguei ao poder e comecei a pôr em execução os planos de minha política de metas, senti a impossibilidade de operar a revolução do desenvolvimento – que há de encaminhar-se bem, com a ajuda de Deus, até o fim de meu mandato – se não continuasse a devotar parte de meu tempo a uma tarefa de elucidação e doutrina. A luta pelo desenvolvimento não será capaz de alcançar os seus objetivos, se empreendida apenas no plano material, fundando cidade, aparelhando portos [...], para que ela seja bem sucedida, é necessário criar, formar, aguçar a opinião pública, associando-a a essa campanha, que é – se me perdoam a impropriedade de comparação – uma verdadeira guerra santa; guerra santa pela salvação do país, pela sua redenção econômica, pelo reinado de justiça longamente esperado, pacientemente esperado por muitos milhões de brasileiros, que nascem e vivem prisioneiros de condições de vida tão dolorosas, que as classificaremos, sem exagero, de atentatórias ao próprio espírito do Cristianismo (KUBITSCHEK DE OLIVEIRA, 1960, p. 199, grifo meu, grifos meus). No trecho acima, JK demonstra “cumplicidade” com Deus: “...desenvolvimento - que há de caminhar-se bem, com a ajuda de Deus, até o fim de meu mandato...”. Logo depois vem a frase “guerra santa pela salvação do país”, que reflete marcas do discurso religioso, o qual se utiliza antíteses para a transposição do temporal para o Espiritual, a exemplo de “viver para morrer” (ORLANDI, 2001b, p. 257). E, ainda segundo Orlandi, temos “em Deus o poder absoluto/no homem, a vontade desse poder (Ibid., p. 257). Juscelino, provavelmente, se utilizaria dessa busca pelo poder para conquistar a confiança do povo, visto que representava, ao mesmo tempo, a voz do público e a de Deus quando falava como presidente. Outro documento que poderia auxiliar na comprovação de fala improvisada de JK durante seus pronunciamentos seria, exatamente, o discurso em que não consta a participação de Juscelino: o primeiro de 1960, o qual não foi feito pelo então presidente, mas pelo Ministro José Sette Câmara Filho, então Chefe da Casa Civil do governo JK. Considero esta fala oficial como “controle”, por acreditar que Juscelino não interferiu diretamente nela, já que não a escreveu nem a proferiu. Esse pronunciamento segue um padrão do início ao fim, os parágrafos são curtos, assim como os períodos, o que me 80 leva a cogitar que não há traços de improviso. O discurso ainda mescla trechos poéticos, palavras formais e alguns vocábulos ligados à religiosidade, o que poderia significar uma assimilação do estilo de JK pelos escritores fantasmas, tornando nulos os indícios de qualquer participação de Juscelino nesse pronunciamento; expectativa esta reforçada pela informação de que não foi o ex-presidente quem o leu em público. O referido discurso, trata de Brasília, das pessoas que participavam de sua construção e também traz críticas àqueles que não acreditavam que a nova capital federal sairia do papel: Eu me via na antemanhã do Brasil do futuro, na hora em que a primeira luz do alvorecer insinua a sua presença difusa no oceano das sombras circundantes e vai tirando das trevas o campanário das igrejas [...] Mercê de Deus, dispúnhamos de uma equipe de arquitetos e urbanistas de provada experiência [...] Minha experiência de vida, meu conhecimento da realidade brasileira, meu longo contato com as forças vivas de que promana16 a formidável energia de nosso povo, de há muito tinham-me dado a certeza de que a nação saberia corresponder ao milagre [...] de construir em três anos uma cidade monumental nesta amplidão silenciosa. [...] Eu os vi chegar [homens que trabalharam na construção de Brasília], compondo as primeiras levas de trabalhadores, a esses nossos patrícios. Humildes de feitio e cordatos17 de temperamento [...] E aí então se há de compreender que, acima do desânimo do sibarita18 citadino19, que só vê o Brasil no horizonte de sua janela, está o herói humilde que luta por um Brasil maior e há de morrer sem que lhe guardem o nome... (KUBITSCHEK DE OLIVEIRA, [1961], p. 9-16). O trecho se inicia com uma discreta paráfrase de um trecho do Gênesis: “o espírito de Deus pairava sobre as águas”. A informação de que o discurso não foi pronunciado pelo presidente, e uma vez não tendo sido escrito por ele, reforça a tese de que os ghost writers poderiam ter assimilado a marca lingüística presente na fala de JK, a religiosidade, ou teriam utilizado a marca lingüística como estratégia política. Essa assimilação de uma característica alheia, do outro, reforça a teoria de Bakhtin quanto à alteridade. Considerando que eram poucos os ghost-writers que tinham contato direto com JK, é maior a possibilidade de que a assimilação de características do então presidente fosse uma estratégia, a qual teria sido “encarnada” no personagem “presidente Juscelino Kubitschek de Oliveira”, construído em conjunto pelos ghost16 Promanar – provir, dimanar, brotar, proceder, derivar. Cordato – prudente, manso, tratável. 18 Sibarita – designativo de ou pessoa que vive na voluptuosidade ou que é efeminada. 19 Citadino – aquele que habita a cidade. 17 81 writers e pelo próprio Juscelino que, ao proferir os discursos, assume a função-autor. Seria possível que esses escritores fantasmas desconhecessem a inclinação do presidente a outras crenças ou que tivessem essa informação e fossem orientados a apagar qualquer marca referente a essas crenças. Um dado importante a respeito do discurso não proferido por Juscelino é a ausência de trechos em que constem louvores ou súplicas a Deus, ou seja, esta característica específica, certas vezes próxima de ser considerada “beata”, que estaria presente nos discursos em que constariam improvisos de Juscelino não está presente no pronunciamento tratado acima. Entretanto seria um equívoco concluir que a presença ou a ausência desta característica peculiar tornariam possível reconhecer a interferência de JK nos discursos que ele proferiu como Presidente da República, uma vez que as marcas lingüísticas são facilmente imitadas. Os pronunciamentos com temas religiosos, a exemplo dos feitos por ocasião do Dia de Ação de Graças, do Natal e do Ano Novo; e aqueles destinados a religiosos, católicos ou não, como o discurso proferido na Comemoração do primeiro centenário do Presbiterianismo no Brasil, apresentam informações de um praticante do catolicismo, uma pessoa que realmente sabe o que fala desta religião e, mesmo assim, sujeitas ao conhecimento dos não praticantes do catolicismo ou à imitação por parte desses. Ao ser paraninfo da elevação de Dom José Pedro ao Episcopado de Caitité, Juscelino diz durante seu discurso, proferido em Diamantina em 15 de Setembro de 1957: ...Vossa Reverendíssima bem o sabe, Senhor Bispo de Caitité, que o recebimento do báculo de Pastor, de Visitante e de Guia, é grande honra, mas séria responsabilidade. [...] De agora em diante, a Cruz da ignonímia do condenado, que é a Cruz da Salvação da humanidade, pesará ainda mais sobre Vossa Excelência. [...] Aqui, em Diamantina, o hoje bispo de Caitité teve santos exemplos de pastores insignes. Para Diamantina, é o dia de hoje de importância que não necessita salientar-se; dies nobis festus, poderei dizer poderei dizer, parodiando Horácio (KUBITSCHEK DE OLIVEIRA, 1958, p. 208-210). Mas acredito também que, mesmo quando não apresentam termos relativos à religiosidade, nem louvores ou súplicas a Deus, os trechos incluídos de improviso por Juscelino em seus discursos poderiam ser identificados por outra temática: a “salvação da nação” ou o “cumprimento de um destino”, a qual não se afasta do tema religioso. 82 Essa temática aparece quando o pronunciamento perde o padrão “próximo do jornalístico” e constam frases como: “Minha vida obedeceu à mesma necessidade de lutar pela conquista do destino. Somos exemplares vivos do que é a democracia, desse regime que leva órfãos pobres à Presidência da República” (KUBITSCHEK DE OLIVEIRA, [1961], p. 30, grifo meu); ou “Não podemos permanecer na retaguarda; nenhuma força humana será capaz de nos deter” (Ibid., p. 360, grifo meu); ou ainda: ...quero afirmar que longe de estarmos perdidos ou parados, viajamos de novo ao encontro do nosso alto destino. Os ventos começam a ser propícios, o Brasil é uma nação que nasceu para ser poderosa. Nada deterá a nossa marcha (IDEM, 1958, p. 220, grifos meus). Acredito que, nesses discursos, JK reafirma sua crença na possibilidade de ele ser a peça-chave no cumprimento do destino do país onde nasceu e o qual governou por cinco anos. Uma vez crente de seus prováveis desígnios, age de modo a cumprí-los: Ombro a ombro convosco, seja no Governo seja fora dele, aqui me tereis sempre, trabalhadores do Brasil Novo, a construir com os homens de boa vontade a nação que o destino quer que seja rica, culta, poderosa (KUBITSCHEK DE OLIVEIRA, [1961], p. 205, grifos meus). Ressalto que essa crença numa predestinação poderia não ser uma manobra política de Juscelino, uma vez que ele teria atribuído ao sonho de um religioso italiano a raiz de sua fé na transferência da capital federal para o interior do Brasil. Contudo, não posso deixar de mencionar que em 1946, quando ainda era deputado, Juscelino trabalhou para que a transferência da capital voltasse a constar na Constituição e pediu que um estudo feito pelo engenheiro Lucas Lopes fosse inserido nos Anais da Assembléia. Eleito presidente, sabia que seria impossível governar o país com o centro do poder no Rio de Janeiro e a predestinação era um excelente argumento para a transferência da capital federal. 83 6 A RELIGIOSIDADE NOS DISCURSOS Presidente da República de um país cristão, considero-me intérprete das aspirações de seu povo generoso ao voltar-me em espírito para o humilde sítio em que nasceu o Salvador do mundo, pedindo-lhe que atente para esta hora difícil do mundo em que tão grandes perigos atravessa a humanidade. Juscelino Kubitschek de Oliveira O livro “Por que construí Brasília” apresenta, em suas páginas ilustradas, frases que poderiam ser de autoria de JK, como: “De todas as partes do País [sic] chegavam levas de brasileiros que desejavam colaborar na construção da obra. Chamei-os, um dia, de construtores de Catedral...” (KUBITSCHEK., 1975, s/p, grifo do autor). A expressão “construtores de Catedral”, enfatizada no livro, pode ter relação com os primeiros construtores de catedrais, chamados, no passado, de maçons, pedreiros em francês. Uma vez que Juscelino seria uma pessoa religiosa e respeitadora de outras religiões e crenças, e tendo morado na França, ele poderia conhecer o termo “maçom”, assim como seu significado. Caso fosse confirmada a intenção no uso da expressão “construtores de Catedral”, isso não seria o suficiente para afirmar que ele tinha qualquer afinidade com a Maçonaria ou outra sociedade secreta; o fato é que as principais obras de JK têm suas catedrais, a Igreja da Pampulha e a Catedral de Brasília, igrejas católicas mas com arquitetura muito diferente daquela presente nas tradicionais Catedrais Católicas. Mesmo a Igreja da Pampulha não tendo sido reconhecida pela Igreja Católica na época de sua construção, já que lembrava uma outra espécie de templo, uma construção diferente ou uma obra de arte, o catolicismo era e é a religião da catedral. Enfim, as catedrais eram obras de um político, líder de um dos maiores países católicos do planeta, e não da Igreja, como de costume. Enfatizo que JK também fez questão de repetir em Brasília o que foi feito quando o país foi descoberto: uma cruz foi colocada no local onde a cidade seria delineada e foi celebrada uma missa. Foi um espetáculo programado, assim como foi programada uma missa na véspera da inauguração da nova capital, às 23:30 do dia 20 de abril de 1960, celebrada pelo cardeal-patricarca de Lisboa, Manuel Gonçalves Cerejeira, diante do crucifixo usado na primeira missa celebrada no 84 país. Coincidentemente, o projeto de Lúcio Costa começou, como ele mesmo disse, com “dois eixos cruzando-se em ângulo reto, ou seja, o próprio sinal da Cruz” (http://www.guiadebrasilia.com.br/historico/i_mmrial.htm). Mas apesar do “compromisso” do então presidente para com a religião católica, ele não dispensou um presente da Ordem do Sol, a Grã-Cruz com Brilhantes, oferecida em 1957 pelo vice-presidente do Peru, Carlos Moreyra. A Ordem teria inspiração religiosa dos Incas, conforme dito por JK no discurso feito em 28 de julho daquele ano no Palácio do Catete. Em 1960, Juscelino recebeu, no Palácio das Laranjeiras, outra Grã-Cruz, desta vez da Ordem do Santo Graal (fotos 1-2). Foto 1 - Verso e frente da Grã-Cruz recebida por JK da Ordem do Santo Graal20 Foto 2 - César do Rego Monteiro, do Grão-Conselho da Ordem do Santo Graal, coloca Grã-Cruz em JK21 20 21 Fonte: Miguel Henrique BORGES, JK JK! A Conexão Esotérica, p. 65. Fonte: Ibid., p. 66. 85 Doze anos mais tarde, JK foi fotografado em cerimônias da Sociedade Brasileira de Eubiose em São Lourenço, sul de Minas (fotos 3-4). Foto 3 - Juscelino Kubitschek é consagrado no Templo da Eubiose em São Lourenço em 197222 Foto 4 - Juscelino discurso no Templo da Eubiose em São Lourenço em 197223 Essas informações, assim como as fotografias inéditas presentes em um documento (livro) vinculado à Eubiose, poderiam justificar a possibilidade de influência 22 23 Fonte: Miguel Henrique BORGES, Op. cit., p. 74. Fonte: Ibid., p. 78. 86 do discurso religioso e de outros discursos considerados esotéricos, mas é necessário enfatizar que JK não fazia uso das comendas recebidas como Marketing religioso. Não se preocupava ou evitava apresentar em público qualquer relação às ordens esotéricas, caso essa relação existisse. A manifestação autêntica de Juscelino, ligada ao catolicismo, apareceria em pronunciamentos, como o proferido em Diamantina em 12 de abril de 1958 sob o título “Na manifestação prestada pelo povo diamantinense”. Esse discurso destoa da grande maioria, a qual apresenta frases curtas e idéias concisas. O discurso tem sete páginas, parágrafos com até 57 linhas e frases com até treze linhas, o que significaria que, se os discursos constantes no Memorial JK são realmente transcrições dos pronunciamentos feitos pelo ex-presidente, como acredita Autran Dourado, os parágrafos longos representariam uma fala desenfreada, livre. E Juscelino inicia o discurso em Diamantina com uma declaração que confirma essa suspeita: Sempre vos abordei sem compor frases antecipadamente, mas deixando que minha própria emoção, o que habita sempre o meu peito e está ligado a essa cidade e a seu povo, se fosse transformando em palavras, tão naturalmente como flui a água de uma fonte. (KUBITSCHEK DE OLIVEIRA, 1959, p. 177, grifos meus). Ao falar de si, o presidente utiliza a primeira pessoa do singular, demonstrando cumplicidade com seus ouvintes. Dessa forma, ele ainda expressa ter liberdade ao se dirigir aos conterrâneos, isto é, não se coloca no discurso como político, como manipulador. Faço um parêntese para tratar de características de JK, as quais ainda não foram apresentadas neste trabalho, entre elas, o riso fácil, que, segundo Nelson Rodrigues, fez de Juscelino o “antipresidente”. O escritor comentou no jornal Brasil em Marcha de 10 de fevereiro de 1961: Ninguém mais antipresidencial.[...] Nenhum outro chefe de Estado, no Brasil, teve essa capacidade de rir, e nos momentos mais inoportunos, menos indicados. [...] riso que ele puxava escandalosamente nas cerimônias mais enfáticas. Os outros presidentes têm sempre a rigidez de quem ouve o Hino Nacional. Cada qual se comporta como se fosse estátua de si mesmo. Não Juscelino. Quando ele tirou os sapatos para Kim Novak (que achado genial! Que piada miguelangesca!), ele foi o antipresidente, uma espécie de cafageste dionisíaco. Eu diria que jamais alguém foi tão brasileiro (1961 apud WERNECK, 2002, p. 93, grifos meus). 87 Como rir, tirar os sapatos era uma atitude comum de JK como presidente, diferente do temperamento imperativo e explosivo citado por Autran Dourado em Gaiola Aberta. Era também com naturalidade que ele lidava desde para com as autoridades até para com as pessoas mais simples, as quais se sentiam íntimas do presidente. Gostava de festas, de acordar cedo, de comida mineira e fazia questão do convívio com a família. Embora estivesse sempre bem trajado e até evitasse carregar uma caneta no bolso do paletó para não marcar a roupa, ele caminhava, tarde da noite, nos canteiros de obras em Brasília incentivando os operários (COUTO, 2002, p. 81). A capacidade de Juscelino saber lidar com as Forças Armadas, mesmo com a oposição de alguns grupos militares e focos de instabilidade, fez dele o único presidente do regime democrático que vigorou entre 1945 e 1964 a concluir o mandato no prazo previsto pela constituição(http://www.cpdoc.fgv.br/nav_jk/htm/o_brasil_de_jk/Situacao_e_oposicao_ um_equilibrio_delicado.asp). Tancredo Neves afirmou que “O Juscelino quando queria ser amável, era genial” (LIMA; RAMOS, 1986 apud COUTO, 2001, p. 69-70). Essa era a personagem “presidente JK”, risonho, amável, católico, um herói. Retomando o discurso analisado, temos: Nunca temi ficar suspenso no meio de um discurso, sem saber como prosseguir. Diamantina sempre teve o poder de despertar em mim a faculdade de exprimir-me como desejava (KUBITSCHEK DE OLIVEIRA, 1959, p. 177, grifos meus). Deus é evocado, logo no início do pronunciamento, como co-responsável por manter JK o mesmo diamantinense dos tempos em que ainda residia no município, e Juscelino utiliza o vocábulo “Providência” para justificar como o menino pobre de Diamantina se tornou o mais famoso filho da terra. JK teria sido escolhido pela “Providência” para cumprir desígnios específicos e secretos. O fato de posições tão diferentes serem “fundidas” numa mesma pessoa, “pelos desígnios de um Ente Supremo”, coloca o presidente como um interlocutor acima de qualquer suspeita, um membro do Estado como os antigos reis, escolhido por Deus e, ao mesmo tempo uma pessoa simples, um filho daquela terra que não se deixou afetar pelo poder nem se rendeu à tentação da soberba (pecado capital): 88 Permitiu Deus que eu me conservasse inalteravelmente natural, espontâneo e simples, através de posições, de honrarias e nos lugares mais pomposos, por onde tenho andado. Aqui, nesta minha terra natal, com muito mais valiosas e mais numerosas razões, sou o mesmo cidadão que vós sempre conhecestes. Sei que, diante de Diamantina, pouco importa para exaltar-me saber o que a Providência fez de mim; entre os que me ouvem, nesta hora, muitos são os amigos que ainda me conheceram na infância e outros que foram meus companheiros de começo de existência; para os diamantinenses, pouca é a distância que separa o filho da professora, que morava no alto da Grupiara, do atual presidente da República. [...] Ouço invariavelmente, nos momentos em que me assalta a tentação de julgar-me o que não sou, a voz de minha humilde infância a lembrar-me que à Providência que tudo devo, aos seus secretos desígnios, às suas Leis tantas vezes insondáveis para nós outros. Sei que tudo devo a uma orientação especial da Providência, que me trouxe do fundo do meu desvalimento e obscuridade até as responsabilidades que enfrento nesta hora. Aqui [em Diamantina] recebi o ensinamento maior e mais profundo, que me tem orientado, conduzido e salvo, muitas vezes: o de que sou uma criatura feita à imagem e semelhança de seu Criador; que possuo uma alma imortal; que tenho de prestar contas a um Juiz Supremo de todos os meus atos. Aqui, em Diamantina, foi que começou a germinar em mim a idéia de que não vivemos por acaso; de que não somos uma espécie que deve apenas se preocupar com o sustento da vida corporal, mas que a finalidade da vida do homem é encontrar o caminho de sua salvação (KUBITSCHEK DE OLIVEIRA, 1959, p. 177-179, grifos meus). Em seguida, JK evoca Deus mais uma vez, agora para explicar que o que vem fazendo como presidente do país não é um capricho de governante, mas o cumprimento do destino do Brasil: 89 Aqui, nesta terra natal tão querida, aprendi que o Brasil não é apenas uma expressão geográfica, [...] aprendi que não foi apenas a ambição da fortuna, do ouro, das riquezas materiais, que nos fez o que somos: um quase continente; o que atuou, de maneira predominante, no sentido do advento (para alguns milagroso) da nossa unidade, foi o sentimento religioso, a noção de que existe e preside aos nossos destinos um Ente Supremo. Aqui, [...] recebi a noção de que não é apenas à voz da pequena ambição, tantas vezes perigosa e falaz, que devemos estar atentos, mas, principalmente, a uma voz mais grave e mais séria, que nos manda servir com lealdade ao Autor de tudo o que existe, ao Deus que não apenas modelou as formas de nossa aparência, mas soprou dentro de nós, com a vida, a essência imortal com que sobreviveremos além do tempo. Aqui aprendi que não se trai a pátria somente através de atos que a despojam de bens materiais, mas que há uma traição bem mais grave, bem mais merecedora de repressão e castigo, que é a de renegar-lhe as origens espirituais, destruir-lhe as crenças, desfigurando o que de mais sagrado existe, que é um ideal superior, que é a Fé, pois só ela pode inspirar. Seria descer a um grau extremamente baixo de civilização, se os homens com responsabilidade na direção da vida brasileira, nesta hora, se ocupassem apenas de valores materiais, deixando que os valores espirituais, formadores do país, fautores [sic] da nacionalidade, fossem atacados, destruídos, arruinados por pregações de ideologias exóticas, com o fim de atentarem contra o que há de mais precioso na nacionalidade, que é a alma, o conteúdo, o elemento humano (KUBITSCHEK DE OLIVEIRA, 1959, p. 179180, grifos meus). A seqüência do discurso também traz termos ligados à religiosidade e parece revelar a relação de JK com outras religiões e crenças; contudo, o trecho faz menção ao comunismo, o qual era identificado com o ateísmo na época e se tornou uma “arma” na política. Quando ainda era candidato à presidência, por exemplo, Juscelino foi “atacado” pela UDN, que pediu ao TSE a impugnação das eleições presidenciais em 1955 com a alegação de que Juscelino e seu vice, João Goulart, tinham recebido aproximadamente quinhentos mil votos dos comunistas. As doutrinas citadas no trecho a seguir simbolizam o comunismo, acusado de aliciar as pessoas ditas “fracas”; 90 É preciso que os pregadores de doutrinas que se opõem ao que há de mais autêntico no Brasil saibam que não estão passando despercebidos, nas suas intenções. Aqueles que – a pretexto de alertar a atenção do país para a salvaguarda de seus recursos materiais – pretendem e visam roubar-lhe os tesouros espirituais, precisam saber que a defesa da nacionalidade inclui, prioritariamente, a defesa da alma, da crença que nos fez o povo que somos. Sabemos bem – e ninguém o tem dito com mais insistência do que eu – que é necessário ativarmos o desenvolvimento material, promovermos a riqueza, mas tudo isso tem que ser feito nos moldes de nossa personalidade nacional, dentro das normas de nossa formação cristã – e não contra ela. [...] Somos um povo, isto é, um conjunto de cidadãos ligados não apenas por interesses materiais, mas por valores éticos e espirituais; temos a felicidade de ser um povo assim e não apenas massa moldável que possa sofrer transformações químicas produzidas por ideologias que, além de nos serem estranhas, já estão sendo superadas (KUBITSCHEK DE OLIVEIRA, 1959, p. 180-181). Quase no encerramento do discurso, aparece a frase “Deus sabe que vigiar é preciso e que, pelo efeito da vigilância, o mal será conjurado24” (KUBITSCHEK DE OLIVEIRA, 1959, p. 182), uma releitura da frase bíblica “Orai e vigiai”. Com ela, JK enfatiza que está atento e que aqueles que trabalhavam para o insucesso de Brasília seriam derrotados, e com o auxílio divino. E o significado vai além da religião. Novamente é o comunismo o assunto. O discurso coloca JK como anti-comunista, uma forma de barrar possíveis identificações do desenvolvimentismo com a ruptura para com a religião e a fé. Ele, o presidente, reafirma que cumprirá os desígnios preparados para o Brasil e, conseqüentemente, para ele: Não consentirá o governo que a liberdade seja utilizada para assassinar a própria liberdade. Pode estar tranqüila a nação; podem estar tranqüilos os que atribuem valor ao que realmente vale além das contingências. Não será um homem desta grei – que teve a fortuna de receber em ensinamentos morais o que lhe faltou em bens materiais – que deixará sem defesa o que deve ser defendido e preservado, isto é, o verdadeiro nacionalismo, que consiste, em primeiro lugar, em sermos cidadãos obedientes às raízes da alma brasileira e à inspiração de nossos maiores. [...] Agradeço-vos, povo desta minha velha cidade de Diamantina, [...] a oportunidade de poder dirigir-me daqui a todo o Brasil, para dizer que o tesouro moral e espiritual de nossa pátria está sendo devidamente acautelado, neste momento, e que isto faz parte integrante e primordial do meu dever de Chefe de Estado (Ibid., p. 183, grifo meu). 24 Conjurar – exorcizar, esconjurar, desviar, evitar (um perigo), projetar, intentar por meio de conspiração, maquinar. 91 Até a data do discurso em Diamantina, a maioria dos discursos proferidos pelo presidente naquele ano tinha como tema inaugurações e entregas de obras, como o Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, ou seja, ocasiões favoráveis ao presidente. Vários pronunciamentos foram utilizados para expor os avanços do país durante o governo, inclusive com números sobre a produção de veículos em solo brasileiro e estimativas otimistas para a obtenção dos recursos necessários ao cumprimento das metas do governo. A “manobra” desviou a atenção da imprensa e do público de um fato ainda não conhecido dos brasileiros no início de 1958 e que havia ocorrido no ano anterior: o governo federal havia rompido com o FMI, devido à recusa em ceder às exigências do órgão estrangeiro para a concessão dos financiamentos solicitados. No âmbito internacional, outro ponto negativo foi o não-reatamento das relações comerciais com a União Soviética, já que o ministro da Guerra, general Lott, opôs-se à proposta, alegando motivo de segurança nacional. Em março de 1958, a seca assolou o Nordeste e, em função do estado de emergência em que a região se encontrava, Kubitschek viajou ao interior do Ceará três dias depois de discursar ao povo de sua terra natal, mas não há registro de discurso em terras cearenses. Ainda em 1958, a UDN se mobilizava para adiar a transferência da capital, o que resultou, no final daquele ano, no requerimento de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) por Carlos Lacerda, sob a alegação de irregularidades na construção da cidade. A CPI intimaria os diretores da Novacap e empreiteiros a prestarem depoimento. Contudo, aliados do governo comprometeram-se a adiar a CPI até a inauguração de Brasília. O clima tenso ao qual o presidente estava submetido era nítido e, a terra natal era um lugar “seguro” para o desabafo de Juscelino. Ele alega que fala de Diamantina para o Brasil, esperando a repercussão de suas palavras. O discurso é feito no “curral eleitoral” de JK; digo isto com convicção porque quando Juscelino ofereceu a Autran Dourado a oportunidade de abraçar a carreira política, disse que “emprestaria” seus eleitores a ele, o povo de Diamantina. Não era a primeira vez que cidade mineira era escolhida para “ouvir” um balanço do governo. Em 9 de julho de 1956, por exemplo, a cidade mineira também foi palco de um discurso sobre as realizações do governo. No discurso em questão, realizado em 12 de abril de 1958, os períodos são iniciados com verbos no pretérito e, todas as vezes em que se dirige ao público, Juscelino utiliza a segunda pessoa do plural, o mesmo padrão adotado nos discursos escritos pelos ghost writers, o que poderia 92 significar que JK assimilou marcas de linguagem dos assessores ou que ocorreu o inverso, em resumo, um exemplo de alteridade. Feita essa análise superficial do discurso proferido por JK em sua terra natal, chamo a atenção para uma citação apresentada no capítulo anterior e que reforça a frase lida anteriormente: “Minha vida obedeceu à mesma necessidade de lutar pela conquista do destino. Somos exemplares vivos do que é a democracia, desse regime que leva órfãos pobres à Presidência da República” (KUBITSCHEK DE OLIVEIRA, [1961], p. 30, grifo meu). Embora as frases tragam a mesma mensagem utilizando palavras diferentes, uma informação pode ser duplamente interpretada, a referente aos órfãos pobres que chegam à presidência do país. É fato que Juscelino teve uma infância pobre e logo cedo perdeu o pai, contudo, se considerarmos que Schmidt também enfrentou a pobreza e perdeu os pais ainda muito jovem, não estaríamos errados ao supor que esse discurso, anteriormente atribuído a JK, poderia ter sido redigido pelo poeta e teria passado despercebido pelo olhar atento de Autran Dourado. Digo passar despercebido porque não é o sujeito que comanda o discurso, como pensavam os ghost writers. O sujeito faz parte da construção do discurso e as relações entre eles determinam o que pode ser dito, onde e de que forma. Retomando a discussão, podemos nos embasar na informação de que ambos, JK e o poeta, eram órfãos que viveram uma infância pobre e estavam no poder: Juscelino como o Chefe de Estado e Schmidt como “a Eminência Parda”. Se também considerarmos a informação de que Augusto Frederico Schmidt era tido como um homem conservador e um católico fervoroso, podemos “enxergar” o poeta naqueles trechos dos discursos com vocábulos religiosos, cuja autoria era até então atribuída a Juscelino. Schmidt chegou a administrar uma editora católica (que ganhou seu nome), e, segundo o sociólogo e amigo Gilberto Freyre, “O meninão gordo era já, contra todo esse seu físico nada romântico de burguês de caricatura, um admirável poeta, ora delicadamente lírico, ora biblicamente profético, como se conservasse, não do sangue, mas da tradição, de avós remotos, além do nome alemão e do romantismo germânico, alguma coisa de hebreu ou de israelita no seu misticismo. (http://bvgf.fgf.org.br/portugues/obra/artigos_imprensa/augusto_fred.htm, grifo meu). O termo “biblicamente profético” se encaixa perfeitamente nas citações tratadas no capítulo cinco como sendo de autoria de Juscelino Kubitschek, citações estas que trazem a mensagem referente ao cumprimento de um destino pelo país e por seu governante, no caso, JK. A informação de que o poeta era um católico fervoroso ainda 93 levanta uma outra suspeita: não seria Schmidt o responsável por discursos destinados a autoridades religiosas? Já Juscelino, segundo o historiador Ronaldo Costa Couto: ...era católico de sólida fé, mas também estendia suas articulações sobrenaturais e esperanças a outras propostas e caminhos religiosos. Inclusive o espiritismo. Admirava o médium Chico Xavier [...] Há várias histórias de JK com o médium (COUTO, 2002, p. 81). O assessor e amigo de JK, o economista carioca Nelson Teixeira, que esteve com Juscelino no dia-a-dia do governante, explica a relação do ex-presidente com o espiritismo e o médium Chico Xavier: Ele era místico. [...] os militares não queriam que fosse candidato a governador. Quando chegou a hora de decidir, ele foi ao Chico Xavier, que lhe disse para ir em frente. E mais: alertou-o de que chegaria à Presidência da República. Juscelino acreditava muito em espiritismo. Era católico, mas tinha lá também seu tanto de Allan Kardec. Ele escutava mesmo o Chico Xavier25 (Ibid., p. 81). E realmente não podemos considerar Juscelino um “beato”, como afirmou Autran Dourado. JK herdou a boemia do pai e “...era [um] mulherengo incorrigível. A paixão mais arrebatadora foi a da carioca Maria Lúcia Pedroso - um romance clandestino de 18 anos, que durou até a morte do presidente” (http://www.terra.com.br/istoe/biblioteca/brasileiro/seculo/indice.htm). Preocupado com a vida sexual. Juscelino tomava hormônios para estimular a libido, o que resultou em um câncer (Cf. COUTO, 2002, p. 299-301). Os vários romances do presidente foram registrados em um diário secreto, destruído por D. Sarah após a morte de Juscelino, mas publicado após a morte de D. Sarah, a partir de uma cópia guardada por Adolfo Bloch, amigo do ex-presidente. Outro dado importante sobre Augusto Frederico Schmidt apresentado por Gilberto Freyre diz respeito ao patriotismo do poeta: 25 Depoimento do economista Nelson Teixeira, amigo e assessor de JK, ao historiador Ronaldo Costa Couto em 15 de outubro de 2000, e que consta no livro Brasília Kubitschek de Oliveira escrito pelo historiador e elencado nas referências bibliográficos deste trabalho. 94 Ninguém mais brasileiro. Ao se anunciar, ele próprio, num dos seus primeiros poemas, ‘o brasileiro Augusto Frederico Schmidt’, era como se, magoado com as insinuações de não ser autêntico brasileiro [era descendente de alemães], quisesse proclamar a sua condição de brasileiríssimo brasileiro. [...] um brasileiro a quem não faltou nunca amor ao Brasil (http://bvgf.fgf.org.br/portugues/obra/artigos_imprensa/augusto_fred.h tm). A informação sobre patriotismo também poderia ser considerada uma pista para uma nova análise dos discursos que exaltavam o país. Sob essa nova ótica, ao relermos os discursos analisados neste estudo. Não posso, porém, deixar de mencionar que JK também era patriota, não ufanista. Uma das justificativas para essa afirmação está no fato de que, embora tivesse paixão por aviões e tenha passado boa parte do governo voando, o então presidente fez apenas duas viagens ao exterior como chefe da nação (Cf. COUTO, 2002, p. 23) e sofreu no período em que ficou exilado, longe do Brasil (Ibid., p. 266). "É o castigo mais cruel imposto a um homem que só pensava no Brasil, só estudava o Brasil, só viajava pelo Brasil e em torno de si reunia uma equipe só para adorar o Brasil", diria ele mais tarde (http://www.terra.com.br/istoe/biblioteca/brasileiro/seculo/indice.htm). Ainda seria possível pensar uma nova questão: se Juscelino declarou que o discurso feito por JK em Diamantina, o qual foi tratado anteriormente, foi o único pronunciado em sua terra natal o qual não teve improviso, por que, então, o discurso lido pelo Ministro Sette Câmara Filho e considerado neste trabalho como um “discurso controle”, uma vez que não teria qualquer influência de JK, apresenta mais de dez menções a vocábulos religiosos, a exemplo de compromisso sagrado, louvor, e o nome Deus? Poderíamos pensar também: por que o único pronunciamento, entre os vários constantes nos cinco volumes de discursos do acervo do Memorial JK, em que é declarado que o presidente falou de improviso não possui uma única palavra ligada à religiosidade? O discurso lido por Sette Câmara apresenta, ainda, trechos rebuscados como “...se a cidade não existia, sua falta era compensada pelo risco imaginoso dos cartógrafos, à maneira da tela idealizada por Balzac” (KUBITSCHEK DE OLIVEIRA, [1961], p. 10, grifo meu) e “...o labor incessante de sua construção majestosa, marcado pelo ritmo das máquinas e pelo rumor das ferramentas, numa espécie de sinfonia wagneriana do trabalho” (Ibid., p. 13, grifo meu). O discurso é encerrado com uma frase “profética”: “Nesse clima [democrático] levantamos esta Cidade. Isto significa que 95 a erguemos sobre a rocha, para resistir ao tempo e aos vendavais, como a própria Nação, que tem o sentido da eternidade” (Ibid., p. 19, grifos meus), uma paráfrase da passagem bíblica em que Cristo anuncia “Tu és Pedro e sobre esta pedra edificarei minha igreja”. E ao JK afirmar, em seu desabafo em Diamantina, jamais ter se preparado para um discurso feito em sua terra natal, como poderíamos levar essa informação a sério se os demais discursos proferidos na cidade mineira apresentam características estilísticas dos discursos supostamente redigidos pelo poeta? A exemplo do discurso proferido por Juscelino em Diamantina em 15 de Setembro de 1957, ao ser paraninfo da elevação de Dom José Pedro ao Episcopado de Caitité: Para Diamantina, é o dia de hoje de importância que não necessita salientar-se; dies nobis festus, poderei dizer poderei dizer, parodiando Horácio (KUBITSCHEK DE OLIVEIRA, 1958, p. 210, grifos meus). Antes de analisar dois recortes fundamentais à conclusão deste estudo, chamo a atenção para outros dois discursos que considero importantes para o então presidente e sua “Eminência Parda”, aquele feito na inauguração de Brasília e o proferido em agradecimento ao apoio de países sul-americanos à Operação Pan-Americana (OPA), da qual o poeta foi o grande idealizador. O primeiro discurso citado foi pronunciado em 21 de abril de 1960 e, de minha parte, era esperado um discurso “apaixonado”, semelhante ao proferido em Diamantina em 12 de abril de 1958, o qual foi analisado no início deste capítulo. Entretanto, não apareceram muitas palavras relacionadas à religiosidade. Mas também não faltaram termos formais, metáforas e religiosidade. Era o discurso mais importante sobre Brasília, meta de governo que era a “menina dos olhos” de Juscelino: A magnitude desta solenidade há de contrastar por certo com o tom simples de que se reveste a minha oração. [...] Não nos voltemos para o passado, que se ofusca ante esta profusa radiação de luz que outra aurora derrama sobre a nossa Pátria. [...] Somente me abalancei a construí-la quando de mim se apoderou a convicção de sua exeqüibilidade por um povo amadurecido para ocupar e valorizar plenamente no território que a Providência Divina lhe reservara (http://www.franklinmartins.com.br/estacao_historia_artigo.php?titul o=discurso-de-jk-na-inauguracao-de-brasilia-1960, grifos meus). 96 O outro discurso mencionado se referia à principal meta de Schmidt, a OPA, que representava a denúncia do abandono e do descaso da política norte-americana para com os países latino-americanos, e era, oficialmente, a principal meta de JK na política externa brasileira. O discurso feito a membros da delegação brasileira que participaram de uma conferência em Bogotá e embaixadores das vinte e uma Repúblicas Americanas, esse sim, foi “inflamado” e tem vários exemplares de termos rebuscados, que poderiam ser considerados influência de Schmidt: Graças a vós, triunfou não apenas a mais importante meta de meu Governo no campo da política externa, como também uma iniciativa magna, de alcance universal [...] sem vossa dedicação, vossa perseverança e vosso sacrifício, a OPA jazeria hoje no cemitério das grandes idéias irrealizadas. Se isto não aconteceu foi não somente porque pude contar com uma plêiade26 excepcional de negociadores diplomáticos, mas também porque o apelo da Operação PanAmericana ressoou em todos os rincões do continente, galvanizando27 em torno de si o sentimento unânime das demais nações latino-americanas. [...] Desde o momento em que germinou em mim a idéia da Operação Pan-Americana, não duvidei um só instante que ela floresceria e daria frutos [...] Animava-me, principalmente, a íntima convicção de que a Operação PanAmericana corresponderia perfeitamente à vocação americanista do Brasil e aos anelos28 mais profundos e genuínos da nossa política exterior (KUBITSCHEK DE OLIVEIRA, [1961], p. 343-345, grifos meus). Poderia concluir, de antemão, que ambos os discursos foram redigidos pelo poeta, pelo o que foi informado por Autran Dourado, que os principais pronunciamentos de JK eram de responsabilidade de Schmidt, e porque o estilo dos discursos condiz com as características até agora apresentadas neste trabalho como sendo típicas dos discursos escritos pelo poeta. Aproveito para justificar que decidi comentar sobre a intensidade das palavras nos dois pronunciamentos em questão porque o envolvimento do poeta com a OPA poderia levá-lo a aparecer mais no discurso, mesmo que não fosse intencional; e é importante ressaltar que Dourado também mencionou que Schmidt 26 Plêiade – grupo, reunião de homens, de poetas célebres. Galvanizar – reanimar, dar vida, polarizar, atrair (as atenções). 28 Anelo – desejo veemente, aspiração, ânsia. 27 97 cometia excessos em alguns discursos, ao usá-los como “ferramenta” para fazer tráfico de influências. Luis Nassif comenta sobre os excessos do principal escriba de JK: Autran considerava Schmidt um injustiçado, acusado de se aproveitar das relações do governo para turbinar seus negócios. O poetaempresário, na verdade, ganhou grande poder de fogo com sua influência sobre a Cexim (a Cacex da época), órgão incumbido de emitir licenças de importação. Graças a esse poder, conseguiu se tornar sócio de uma dezena de empresas, junto com Lulu Aranha, irmão de Oswaldo Aranha29 - a quem acusavam de estar por trás dos negócios. Provavelmente não. Coube ao próprio Aranha acabar com o poder da Cexim, ao criar o sistema de leilão de câmbio. De qualquer modo, todo dinheiro acumulado por Lulu e Schmidt tiveram uma grande destinação social: o glorioso Clube de Regatas Botafogo (http://www.lainsignia.org/2006/febrero/ibe_061.htm, grifos meus). Mas a tentativa de identificar a origem dos discursos, além de ser utópica, se mostra desnecessária diante da constatação de que o estilo de escrita de Schmidt como ghost writer de JK não condiz com o estilo do mesmo Schmidt como autor de textos em poesia e prosa. Mesmo ao ser prolixo, não utiliza palavras elitizadas, mas outras características estão presentes: a exaltação ao Brasil na poesia, por exemplo: ...E sentirei que te libertarei da solidão Porque desci ao teu ser múltiplo e sensível. Porque é minha Pátria, As tuas paisagens são as da minha saudade. (http://fundacaoschmidt.com.br/, grifo meu). A relação com a Igreja Católica aparece em vários textos, como o em prosa apresentado a seguir: 29 Teve participação ativa da Revolução de 24; foi um dos principais articuladores da Revolução de 30; foi Ministro da Justiça do Governo Provisório; foi Ministro da Fazenda; além de embaixador em Washington entre 1933 e 1937, e Ministro das Relações Exteriores em 1938. Em 1947, teve participação destacada na Organização das Nações Unidas para a criação do Estado de Israel; em 1956, já sob o governo Kubitschek, Aranha foi convidado a participar da delegação brasileira na ONU, mas recusou. No ano seguinte, porém, aceitou o novo convite que lhe fora feito nesse sentido, sendo nomeado, a 6 de setembro, chefe da delegação brasileira na XII Assembléia Geral das Nações Unidas (http://www.unificado.com.br/calendario/10/oswaldo_aranha.htm). 98 Como alguns jovens que me vieram visitar me perguntassem qual a solução para tantos e tão angustiosos problemas que nos perseguem, respondi-lhes que outra salvação não encontrara eu, senão a volta de Jesus Cristo. [...] Sei que toda crise do mundo resultou da deformação de Sua doutrina [...] mas os poucos que contemplam o Cristo [...] os raros que O encontram tal como é [...] sabem que tudo o que vem d’Ele está certo, é a verdade... (http://fundacaoschmidt.com.br/, grifos meus). Dessa forma, poderia ser cogitado que o poeta criou um estilo específico para os discursos de JK. Mais que um estilo, o padrão marcante dos textos presidenciais redigidos pelo poeta poderiam ser considerados resultado de uma personalidade criada para os discursos presidenciais. Se ainda pensarmos que Schmidt não respeitava um conceito imprescindível ao trabalho de ghost writer, o segredo quanto à sua participação na confecção do texto, seu trabalho como redator dos pronunciamentos do ex-presidente configuraria como a atividade de um romancista, que inventa uma personagem e lhe concede falas que produzem o efeito de serem consideradas próprias da personagem. Assim, seria essa a personalidade, a de uma personagem, que transpareceria nos discursos proferidos por Juscelino, e não o autêntico JK, o homem Juscelino, como se esperava. A livre-docente em Análise de Discurso, Maria do Rosário Gregolin, completa que não podemos reduzir o sujeito do enunciado aos elementos gramaticais (2004, p. 27), os quais tornam um discurso formal, por exemplo, e, por isso, mais adequado a ser proferido por uma autoridade. Vale lembrar que Juscelino freqüentou o seminário, quando menino e, certamente, sabia latim; que JK tinha curso superior - formou-se em medicina; falava inglês e também sabia francês, em virtude de ter morado na França, onde estudou após obter o diploma de médico. Assim, a autoria dos discursos não poderia se restringir a Augusto Frederico Schmidt. Juscelino e outros escritores fantasmas também poderiam ter a intelectualidade que vinha sendo atribuída, no presente estudo, apenas a Schmidt. A tentativa de se atribuir a uma pessoa a autoria dos discursos também é frustrada em virtude de JK, ao assinar os discursos e pronunciá-los, assume a funçãoautor. Função-autor esta construída simultaneamente à construção da personagem “presidente JK” tanto pelos ghost writers que redigiam os discursos presidenciais quanto pelo homem Juscelino Kubitschek. 99 A partir dessa constatação, inicio a análise de dois recortes dos discursos considerados “controle” neste trabalho. Ambos têm Brasília no eixo temático, mesmo não sendo o principal assunto dos pronunciamentos. O primeiro discurso a ser analisado é o único a conter em seu título a informação de que não foi o presidente que o proferiu. Este foi lido pelo então chefe da Casa Civil, o ministro Sette Câmara Filho em 3 de janeiro de 1960. O segundo, apresentado por JK em Brasília em 12 de setembro de 1959, data do 57º aniversário do presidente, traz no título o dado de que foi feito de improviso por Juscelino. É importante dizer que é o único a apresentar esta informação entre todos os registrados durante os cinco anos de mandato do ex-presidente. O trecho escolhido do primeiro texto, intitulado “Nas solenidades comemorativas do aniversário do presidente da Novacap Doutor Israel Pinheiro (discurso lido pelo chefe da Casa Civil, Ministro José Sette Câmara)”, traz uma apreciação sobre a cidade que se desenhava no planalto: ...o milagre de construir em três anos uma cidade monumental nesta amplidão silenciosa. Não uma cidade qualquer, erigida de emergência por um capricho do momento, mas a cidade definitiva e modelar, imponentemente bela na sua realidade urbana, síntese de nossa vitalidade, convergência e resumo de nossas originalidades evidentes. No dia de hoje, ao estender os olhos pela antiga solidão verde do altiplano, o que sinto e vejo à minha volta é a cidade tangível e objetiva, radiante na sua beleza nova, como que descida dos céus pela bondade de Deus, porque nos dá de longe a impressão de estar ainda suspensa nos ares, tocando o solo, com a leveza de libélula do seu traçado (KUBITSCHEK DE OLIVEIRA, [1961], p. 10-11). O recorte tem início com a palavra milagre, adequada para a atmosfera que envolvia a construção da nova capital federal, cidade apresentada em um sonho premonitório a um religioso italiano décadas antes, cuja realização foi “concedida” a um predestinado, JK, e que nasceu do sinal da cruz, como disse Lúcio Costa, traçado este chamado também de libélula, e que é citado com este nome ao final do trecho analisado. Entretanto, dificilmente o vocábulo teria sido usado visando apenas seu sentido religioso, uma vez que, ainda hoje, a expressão “milagre” é utilizada entre os brasileiros para identificar uma tarefa feita em curto prazo ou difíceis condições. A construção de Brasília, feita em menos de quatro anos, se enquadra nesse contexto. O planalto, palco da construção da nova capital, é chamado de “amplidão silenciosa”. O adjetivo silencioso substitui termos mais concretos como “inabitado”. A expressão também dá a 100 idéia de deserto e de não-criado (anterior à Criação), termos que têm lugar no discurso religioso. É o primeiro exemplo de como o lugar e os referenciais de onde se diz prevalecem ao que se diz. Em um palco de teatro ou em um sarau, o trecho “amplidão silenciosa” poderia assumir outros significados. Mas ao seguir uma frase pronunciada pelo presidente e que trata da fundação de uma nova cidade, que era construída em um imenso terreno plano (típico da região central do país), o qual parece infinito ao se observar e era até então inabitado, o trecho ganha um sentido restrito, mesmo tendo sido formatado nos moldes da poesia. Ao tratarmos esse presidente como um homem religioso à frente de um país cristão, o significado de Brasília deixa de ficar restrito à construção de uma cidade com a missão única de sediar o governo do país. Ela pode ser comparada com o destino do “povo de Deus” ao fugir o Egito e se livrar da escravidão. A nova capital federal trazia a promessa de progresso para o país; de prosperidade para o interior, tão esquecido desde os primórdios do país. Brasília pode, dessa forma, ser comparada a um milagre, a Terra Prometida, como anunciada no sonho profético de Dom Bosco. Em seguida, no discurso analisado, aparecem os primeiros termos considerados formais e, por isso, adequados ao discurso de um presidente da República na situação em que proferiu o discurso em questão, situação esta formal. Erigida substitui o popular “construída”, substituição que também pode ser traduzida como uma estratégia para não utilizar uma palavra proveniente do mesmo radical de “construir”, verbo utilizado na sentença anterior. Enfatizo que essa preocupação em não repetir termos é típica de escritores e jornalistas, sobretudo quando se expressam por meio da escrita. Outras metáforas foram utilizadas para relatar a genialidade da obra de Lúcio Costa e Oscar Niemeyer, além da “jovialidade” do país e do modelo de construção de cidade, que já não era uma novidade na época. Faço um hiato para tratar de uma informação que ainda não mencionei: as metáforas também são características do discurso religioso e, assim como os textos bíblicos, permitem várias interpretações, as quais dependem das condições de produção e recepção do discurso. Voltando aos trechos analisados, é importante lembrar que JK repetia o que havia sido feito em outras cidades projetadas, a exemplo de Belo Horizonte. A cidade é tratada como “definitiva e modelar, imponentemente bela na sua realidade urbana, síntese da nossa vitalidade, convergência e resumo de nossas originalidades evidentes”. Essa mesma estratégia, citada anteriormente, foi utilizada para não se repetir o trecho “amplidão silenciosa” nem se fazer uso de uma expressão não-poética. As palavras 101 escolhidas foram “antiga solidão verde do altiplano”. Para tratar da cidade que se delineava no planalto central, é utilizado o trecho “é a cidade intangível e objetiva”. A seguir o trecho “radiante na sua beleza nova, como que descida dos céus pela bondade de Deus”, embora com forte carga metafórica, pode estar inscrito em um contexto religioso e complementar a lista de vocábulos ligados à religião pulverizados neste discurso, como compromisso sagrado, fé e o nome Deus. É possível observar, então, como várias características se cruzam no discurso: a preocupação “jornalística” de não repetir palavras; a formalidade ao lidar com o interlocutor; o clima poético ao tratar a nova cidade; além da religiosidade. Ao invés de apagamento deste ou daquele ghost writer, desta ou daquela forma de escrita, percebese a influência dos vários construtores dos discursos do ex-presidente. JK é quem assina o discurso, embora não o tenha pronunciado, e assume a função-autor mesmo se jamais viu ou leu uma única linha do referido discurso. Essa construção, a várias mãos, resultava na personagem assumida por Juscelino, o “presidente JK”, e que teve a participação direta do governante nos demais discursos feitos durante os cinco anos de presidência. Uma personagem como as de peças de teatro, por exemplo, criadas, conjuntamente, pelo o autor, ator, o diretor, o figurinista e, entre outros, pelo público, cujas reações podem influenciar o próximo ato. O trecho escolhido do segundo discurso a ser analisado, intitulado “Agradecendo, de improviso, as palavras de saudação do senhor Israel Pinheiro, na festa com que os trabalhadores de Brasília assinalaram a passagem de mais um aniversário do presidente da República”, também traz uma apreciação sobre a cidade construída na região central do país: Um reduzido grupo de pioneiros lançou-se à construção da pequena casa que ficou conhecida como o Catetinho e na qual, nos primeiros dias de novembro de 1956, o presidente da República despachava o seu primeiro expediente nas alturas deste planalto. Em seguida, as iniciativas se foram multiplicando e, aos poucos, iam brotando deste solo, de uma cor arroxeada tão bela, as construções que começaram a encher de espanto grande parte do Brasil. A obra, porém, era maior do que se podia imaginar. E não foi apenas a nossa nação que tomou conhecimento da iniciativa. A humanidade inteira sentiu que alguma coisa nova se operava no Brasil. Procurávamos vencer a etapa inicial do nosso combate ao subdesenvolvimento, para nos impormos ao mundo como uma nação que sabe o que quer e fará o que deseja (KUBITSCHEK DE OLIVEIRA, 1960, p. 11). 102 O recorte começa com um trecho narrativo, no qual é relatado o início da construção da nova capital federal. JK apresenta, no discurso, um movimento de afastamento ao se tratar como uma terceira pessoa, dizendo “o presidente da República despachava o seu primeiro expediente nas alturas deste planalto”. Logo o presidente assume uma nova posição e se coloca como que junto da população brasileira. Fala de “nossa nação”, “procurávamos vencer” e “nos impormos”, num movimento em que poderia tentar convencer o público de que foi um trabalho conjunto e não uma luta individual para a realização de um sonho particular, o de deixar uma marca indelével como presidente do país. Uma observação importante é a de que este discurso não apresenta uma característica comum à maioria dos discursos proferidos por Juscelino, o tratamento do público ouvinte pela segunda pessoa do plural. Todas as vezes em que Brasília é colocada como um objetivo da nação, de seus habitantes, a exemplo do final do recorte: “nos impormos ao mundo como uma nação que sabe o que quer e fará o que deseja”, Juscelino se coloca em nível de igualdade com os interlocutores e valoriza os trabalhadores durante sua fala. O discurso todo apresenta vocábulos acessíveis a qualquer cidadão e construções gramaticais igualmente simples, diferentemente do outro recorte analisado. Essa característica se deve à preocupação com o público, trabalhadores que participaram da construção de Brasília e que, como já tratei aqui, se sentiam íntimos do presidente. Contudo, o discurso não possui a característica tão aguardada: a expressão de religiosidade na fala de JK. Mas isso não pode ser confundido com um enunciado neutro, independente. Todo enunciado faz parte de um conjunto, e desenvolve um papel entre os outros enunciados. “Como o texto é um espaço mas um espaço simbólico, não é fechado em si mesmo: tem relação com o contexto e com os outros textos [...] A intertextualidade é, pois, um dos fatores que constituem a unidade do texto (ORLANDI, 2001b, p. 159-160). E para significar, um enunciado necessita de materialidade, é necessário possuir, por exemplo, um lugar e uma data. Também se faz necessário que essa materialidade possa ser manipulada pelos enunciadores, de modo a haver um regime para nortear os discursos. Outra característica imprescindível é a submissão do enunciado aos limites “impostos pelo lugar que ocupa entre outros enunciados” (GREGOLIN, 2004, p. 31). O sentido vai depender do contexto onde o enunciado está inserido, assim como da posição de onde o enunciador fala, de como fala e da reação de quem ouve e interage. No caso dos pronunciamentos de JK, é o presidente falando ao povo e, em vários casos, pelo povo, visto que em muitas vezes utiliza a primeira pessoa do plural. 103 Não posso deixar de citar a utilização de um discurso autoritário, em que o falante se impõe sobre o ouvinte, representando a capacidade de influenciar comportamentos e, geralmente, sem a oportunidade de resposta pelo interlocutor, como é comum em discursos políticos. E uma vez que o discurso autoritário é atrelado ao religioso, a vontade imposta sobre os ouvintes “coincide” com a vontade de Deus. Embora JK se coloque no mesmo nível que seus interlocutores, ao narrar, por exemplo, que fez os primeiros despachos em Brasília em uma casa sem qualquer luxo, e utilizar a terceira pessoa do plural ao tratar da construção da nova capital como solução para o subdesenvolvimento do interior do país, ele também impõe uma verdade a respeito da nova sede do governo federal, contudo, sete meses antes da inauguração de Brasília! JK fala da nova cidade como uma obra admirada pela nação brasileira e por outras, percebida por toda a humanidade e apresenta o Brasil como um país que vai se impor ao mundo, “como uma nação que sabe o que quer e fará o que deseja”. Novamente, percebe-se a construção de um discurso em que há a preocupação com o como falar e no qual, mesmo ao se impor, o presidente o faz de maneira sutil, visto que JK utiliza a terceira pessoa do plural, como que colocando-se em coro com o povo. Um discurso em que a personagem “presidente JK” assume um lugar que coincide com sua origem humilde e sua liderança para levar o país ao progresso. Não faltam pinceladas dos ghost writers, sejam elas por meio de uma escrita de fácil compreensão; de metáforas - “iam brotando deste solo [...] as construções...”; de características, mesmo que, sutis do discurso autoritário. Juscelino “completa” o perfil da “personagem” não apenas ao assumir a função-autor por proferir o discurso, mas por estar envolto numa atmosfera que apresentava Brasília como a realização de uma profecia, a qual seria a solução para problemas de ordem econômica e social no país. Sem contar que a transferência da capital, a descentralização do poder, significaria garantir a presença de JK à frente do país até o último dia de seu mandato. Ao compararmos os dois recortes selecionados para análise, mais do que tentar afirmar que no primeiro discurso estudado há traços da erudição de Schmidt e que o segundo discurso condiz com um estilo sóbrio, narrativo, próximo do jornalismo, a autoria de cada um seria dificilmente identificada e já não é esse o propósito do presente trabalho. No decorrer das análises, se tornou claro que a chave para se estudar os discursos - mesmo os que foram escritos por uma única pessoa e não foram revisados, o que pode ter ocorrido com os redigidos por Autran Dourado – não está na descoberta de quem os escreveu e sim na forma como os discursos foram construídos pelos ghost 104 writers e pelo homem Juscelino Kubitschek, resultando na personagem “presidente JK” e na função-autor. Além de estar em conformidade com o que podia ser dito, a forma e o lugar do dizer, a personagem também atendia às expectativas do povo, o que tornou o “presidente JK” conhecido como dos presidentes mais carismáticos e acessíveis, embora Autran Dourado tenha comentado em Gaiola Aberta que a aparência risonha do presidente escondia seu temperamento explosivo e imperativo, como já citei neste estudo. É preciso, ainda, atentar para o fato de que, ao analisar os discursos à luz de Foucault, não estamos lidando com o sujeito cartesiano e, portanto, é por isso que acredito que mesmo ao tentar ser racionais, os ghost writers não ficaram imunes a “vazamentos” em seus discursos. É no exato momento em que [o sujeito] se submete às expectativas do outro – ou talvez por isso mesmo-, que resvalam cá e lá, fragmentos, fagulhas candentes da subjetividade que (se) diz; escapam representações, desejos, inconscientes e abafados, que se ateiam à menor oportunidade: uma confissão, um concurso, uma entrevista formal... [...] podem fazer parte do arquivo ou da memória discursiva conforme o interesse e o valor que despertam naqueles que detêm um certo poder. Este pode anular, silenciar, apagar uma vida, assim como pode dela e nela construir uma identidade, que se transforma na verdade do sujeito, deixando uns na penumbra do esquecimento e outros na evidência (CORACINI, 2007, p. 24-25). É interessante perceber aqui que, considerando os discursos de Juscelino Kubitschek, quem “se submete às expectivas do outro” - outro este representado pelo povo brasileiro e duplamente por JK: a personagem e a função-autor - são os ghost writers. Por meio do arquivo, eles foram os responsáveis por “construir uma identidade” - a da personagem presidente JK - “que se transforma na verdade do sujeito”, o qual, agora, é Juscelino Kubitschek, o mito, e não mais os redatores fantasmas. Poderia concluir que, ao assumirem a posição de presidente para escreverem os textos, os “ghosts” construíram o mito, o herói JK, colocando-o em evidência e a si próprios “na penumbra do esquecimento”, o que caracteriza o trabalho dos “fantasmas”, um ato silencioso e com garantia de manutenção do segredo referente à instância produtora dos textos. Lembrando Foucault, sabemos que os sujeitos são cindidos e têm a falsa impressão de liberdade, completude, essência; isso porque eles são construídos pelo 105 discurso, o qual determina o que deve ser falado, de que maneira e em que lugar. Todo falante, ao dizer alguma coisa a alguém, configura seu discurso. “Não há discurso sem configuração como não há fala sem estilo (ORLANDI, 2001b, p. 153). E não devemos considerar essa configuração como um modelo a ser preenchido pelo falante, mas um padrão estabelecido por ele; dessa forma, não representa uma informação anterior à fala e sim o que se define durante a interação (Ibid., p. 153). Examinando, então, os vazamentos nos discursos dos escritores fantasmas, principalmente de Augusto Frederico Schmidt, o fato de ser possível ler nas entrelinhas de um dos pronunciamentos de Juscelino (“...desse regime que leva órfãos pobres à Presidência da República”) a frase que o poeta já havia dito a Autran Dourado: “administrar e governar um país é uma coisa muito secundária” (DOURADO, Op. cit., p. 9) é um exemplo de como a palavra pode desvelar mais do que ocultar. Dizer se o poeta procurou aparecer no trecho “Minha vida obedeceu à mesma necessidade de lutar pela conquista do destino. Somos exemplares vivos do que é a democracia, desse regime que leva órfãos pobres à Presidência da República” (KUBITSCHEK DE OLIVEIRA, [1961], p. 30), seria especulação, já que consideramos neste estudo o sujeito sujeitado. Dessa forma, a construção da personagem “presidente JK” foi possível (seguindo uma citação de Coracini que apresentei anteriormente) a partir de: o sujeito (escritor fantasma), ao se submeter à apreciação de outrem (o povo brasileiro e duplamente JK), deixar escapar “fagulhas candentes da subjetividade que (se) diz e criar uma nova identidade (a personagem “presidente JK”, o mito, o herói JK) e, ao confeccionar essa nova verdade do sujeito, coloca o sujeito inicial (o ghost-writer), se podemos chamar assim, na “penumbra do esquecimento”. Schmidt experimentou o poder de ser Presidente da República, sem nunca o ter sido, como uma “Eminência Parda” deve fazer. O próprio presidente também o experimentou ao fazer seus discursos. 106 7 CONSIDERAÇÕES FINAIS Este estudo se delineou a partir da intenção de se detectar como Juscelino Kubitschek transparecia nos discursos que proferia já que não era ele quem os escrevia. Havia a expectativa de que tivessem ocorrido improvisos durante os pronunciamentos e que, uma vez identificados os supostos improvisos, seria possível analisar essas intervenções nos pronunciamentos do ex-presidente para saber como elas alteravam o conteúdo dos discursos e quais eram as conseqüências dos improvisos. Entretanto, no decorrer das análises, foi possível perceber que os improvisos não estavam livres das simulações presentes nos discursos escritos pelos ghost writers. As primeiras leituras me levaram a crer que teria havido uma influência religiosa nos discursos e ações do então presidente, e essa influência seria de natureza esotérica. Essa possibilidade foi reforçada por declarações de Juscelino em um dos seus livros autobiográficos, que apresentavam um JK que acreditaria ser o predestinado à construção de Brasília; contudo, não podemos considerar as declarações como uma verdade e sim como argumento construído. Outro livro, De Akhenaton a JK: Das pirâmides a Brasília, resultado de uma dissertação de mestrado, trata da construção de Brasília como um fato programado, e não apenas por JK. A cidade é comparada a outra edificada por um faraó egípcio e teria as mesmas características arquitetônicas e místicas da egípcia. Mas as considerações feitas pela autora da obra, Iara Kern, não se configuraram sustentáveis para este estudo. A descoberta de um livro que apresentava os verdadeiros autores dos discursos proferidos por Juscelino, incitou o surgimento de novos questionamentos, visto que as marcas lingüísticas esperadas poderiam ter sido apagadas pelos chamados ghost writers, a fim de tornar os discursos adequados para um presidente da República. Iniciada a triagem dos discursos proferidos por Juscelino durante os cinco anos em que esteve à frente do país, apareceu um novo problema: a falta de marcas lingüísticas de teor esotérico nos discursos, confirmando a situação prevista no parágrafo anterior. Entretanto, não foi difícil encontrar vocábulos relacionados à religião católica. Os novos questionamentos foram passados a um dos principais escritores fantasmas de JK, o escritor Autran Dourado, o qual afirmou, em entrevista concedida por telefone, que o ex-presidente era católico e fazia intervenções nos discursos 107 (improvisos) durante os pronunciamentos. A pista para identificar as intervenções de JK seria a presença de vocábulos ligados à religião, contudo, Dourado também admitiu ser difícil apontar a autoria dos discursos e onde transparecia esta ou aquela pessoa. E, iniciadas as análises, ficou claro o fato de que a autoria não deveria ser identificada como origem e que o foco deste estudo deveria ser a forma como a autoria é construída como efeito de discurso, no qual se manifesta a função-autor. Surgiu então uma nova expectativa, a de que seria possível perceber os improvisos de JK em seus discursos por meio dos pronunciamentos registrados em áudio e vídeo, mas a dificuldade de se encontrar esses registros pela World Wide Web só não foi maior que a tarefa de detectar onde estavam estes improvisos, uma vez que a forma como Juscelino se manifestava era linear e os discursos televisionados trazem imagens sobrepostas à imagem do ex-presidente discursando. O material de pesquisa áudio-visual foi então descartado. Detectar os supostos improvisos de Juscelino nos discursos que proferiu como presidente se tornou uma tarefa ainda mais desafiadora após a informação de que seu principal ghost writer, Augusto Frederico Schmidt, era um católico fervoroso e uma verdadeira “Eminência Parda” do governo JK. Diferenciar onde estava o discurso de Schmidt e o de outro redator fantasma até poderia ser uma tarefa mais fácil, lembrando uma declaração de Autran Dourado à Revista Época, entretanto, ainda citando a referida declaração, Dourado chegou a fazer o papel que ele próprio chamou de “ghost [writer] do ghost [writer]” e, uma vez sendo um intelectual e conhecedor30 da religião católica, poderia ser o autor de alguns dos discursos atribuídos a Frederico Schmidt neste trabalho. O que interessa quem disse? - diria o filósofo francês. Nesse caso, houve o apagamento de uma subjetividade em favor de um sujeito que tem pluralidade de posições e funções. Um exemplo está no discurso feito por JK em Diamantina, discurso este tratado no capítulo cinco deste estudo. No mesmo discurso, Juscelino aparece ora como o presidente da República ora como o filho da terra, nesse episódio, a cidade de Diamantina. O discurso foi produzido por um sujeito em um lugar determinado por regras sócio-históricas que definem e possibilitam que ele seja enunciado. O que dizer 30 Algumas obras de Autran Dourado tratam do rito funerário católico, a exemplo de “Tempo de amar”, “A barca dos homens”, “Ópera dos mortos”, “O risco do bordado” e “Os sinos da agonia”, livros analisados por Necilda de Souza em sua dissertação de Mestrado [SOUZA, Necilda de. O rito funerário em Autran Dourado. 2003. 111 f. Dissertação. (Mestrado em Estudos Literários). Universidade Estadual de Londrina. Londrina.]. 108 então de uma série de discursos proferidos, no período de cinco anos, pela autoridade máxima de um país, sabendo-se que esses discursos foram escritos por várias pessoas e assumidos pelo presidente? Nesses discursos, há a construção de uma função-autor, identificada com JK, e a construção de uma personagem, o “presidente JK”. E o sujeito, nesse caso o presidente, é uma construção do discurso, sujeitado a o que dizer, como, quando e onde. Comparo o caso dos discursos de JK a outro clássico, “Alice no país das maravilhas” e seu autor, Lewis Carroll (pseudônimo do matemático e escritor inglês Charles Lutwidge Dodson). A história criada em 1865 é mundialmente conhecida e resiste há séculos, independentemente de seu autor. Diferente da fábula de Alice, a biografia do inglês é desconhecida da maioria das pessoas. O autor já estava morto antes mesmo de vir a falecer em 1898; Lewis Carroll sucumbiu à obra em favor dela. Ninguém jamais deixou de ler a fábula em virtude do desconhecimento em relação ao autor da história. O mesmo se aplica aos textos de Ricardo Reis, Alberto Caeiro e Álvaro de Campos, os três mais famosos heterônimos de Fernando Pessoa. Esses autores fictícios ou pseudoautores possuíam estilos diferentes, mas todos eram escritos por Fernando Pessoa. Assim como Lewis Carrol é um efeito de discurso do texto escrito pelo matemático Charles Lutwidge Dodson, os heterônimos de Pessoa são efeitos de sentido criados pelo poeta. Fernando Pessoa ortônimo, igualmente, é um efeito de discurso dos poemas escritos pelo homem Fernando Pessoa. Deste ponto de vista, não é o escritor o autor do texto. Dito de outro modo, não é o autor quem (apenas) escreve o texto. Ele é, antes, escrito (como autor) pelo texto que escreve. Outro exemplo está nas obras do próprio Mikhail Bakhtin e Volochínov, duas pessoas ou a mesma? Há quem diga que Volochínov era um aluno de Bakhtin e teria escrito os livros a partir de anotações feitas em aula, outros afirmam que era um pseudônimo de Bakhtin, para que ele pudesse publicar livros sem as modificações impostas por seu editor ao filósofo Mikhail Bakhtin. No caso dos discursos de JK, conhecer a biografia do ex-presidente e a biografia de cada um de seus ghost writers não significa ter em mãos a solução para o enigma da autoria dos discursos proferidos, conforme apresentei no capítulo seis deste estudo. A base biológica e biográfica não explica o que só o texto faz: criar um efeito de sentido que responde pela função-autor, por uma representação de autoria. E mesmo que Schmidt tenha tornado pública a informação de que escrevia discursos para o então presidente, conforme apresentei no capítulo três, nada abalou o mito criado em torno do 109 nome de JK. Temos, então, discursos assinados por um mito, um dos mais aclamados presidentes da República, discursos estes que produziram sentido a partir da posição ocupada por aquele que os proferiu, o que reforça a tese de que não importa quem disse mas de onde disse. Esse “lugar”, que não pode ser confundido como lugar físico, é que determina o que pode ser dito, quando e como, além de ser determinante na produção de sentido. Antes de tudo, importa como se disse, já que, ao dizer de um determinado modo, construiu-se como função-autor e personagem. Ainda hoje o nome de Juscelino é evocado por políticos que concorrem ao mais alto cargo do país. E embora, muitas vezes, a era JK seja relacionada à inflação e à dívida externa, a “marca” de estadista deixada pelos cinco anos do mineiro de Diamantina à frente da nação é mais forte, talvez pelo sucesso que a industrialização do país e construção de Brasília representaram para o Brasil da década de 1950, símbolos da modernidade. Acredito poder afirmar que as atitudes de Juscelino e os discursos do então presidente com palavras ora rebuscadas, ora acessíveis, sua cumplicidade com o público ouvinte e a religiosidade expressada pelo líder de uma das maiores nações católicas do planeta fizeram a personalidade do mito, e não o contrário. É a encenação - construída por meio de vários textos e, também, de vários discursos – que constrói o mito. Se foi de JK a idéia de que era um predestinado à construção de Brasília ou se a transferência da capital federal não passava de uma criação “biblicamente profética” do poeta não é possível afirmar, se a religiosidade de ambos acenava para essa suposta profecia como verdade ou se tudo foi uma estratégia política, só eles poderiam dizer, ou Autran Dourado, mas o que ele escreveu em livro não declara em entrevista. O que “enxergo” neste contexto é a possibilidade de Schmidt ter criado uma identidade para os discursos que escrevia para Juscelino Kubitschek e, assim, ter criado uma personagem, o “presidente JK”. Mas não uma personagem para ele, o poeta. Ao se apagar dos discursos e ações, como “Eminência Parda”, o ghost writer permitiu o surgimento do mito JK. Esse mito era a personagem “presidente JK” e a respectiva função-autor. 110 8 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e Filosofia da Linguagem. 12 ed. São Paulo: Hucitec, 2006. BALAIO DE MINAS. Disponível em: <www.balaiodeminas.com.br/.../sociedade/familias.asp?codigo=906&area=mineiros& area1=sociedade>. Acesso em: 15 ago. 2007. BARTHES, Roland. A câmara clara. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984. BAUDRILLARD, Jean. Da sedução. Campinas: Papirus, 1991. BEZERRA, Paulo. Polifonia. In: BRAIT, Beth (Org.). Bakhtin: conceitos-chave. 2 ed. São Paulo: Editora Contexto, 2005. BLANCHOT, Maurice. O livro por vir. 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São Paulo: Fundação Odebrecht; Brasília, DF: Fundação do Banco do Brasil, 2002. 114 9 ANEXOS I. Reportagem do site “No Mínino” sobre o enterro de JK http://nominimo.ig.com.br/notitia/servlet/newstorm.notitia.presentation.NavigationServl et?publicationCode=1&pageCode=54&textCode=20792¤tDate=1138845660000> Será mesmo o corpo de JK? Timóteo Lopes 02.02.2006 | A dúvida acende seu primeiro sinal quando os esquifes de Juscelino Kubitschek e de Geraldo Ribeiro são retirados apressadamente de duas kombis em frente à sede da revista “Manchete”, na Rua do Russel, na zona sul do Rio de Janeiro. É madrugada de 23 de agosto de 1976, uma segunda-feira. São poucas as pessoas que àquela hora - quase quatro horas da manhã - ainda estão ali. Parecem tensas, nervosas, estupefatas com a trágica morte do ex-presidente e do motorista que o acompanhara durante os últimos 36 anos. Mas, para se desvencilhar da presença ostensiva de policiais, quase todos à paisana, elas são rápidas e decididas: em não menos de três minutos, carregam os caixões para dentro do saguão da “Manchete” e os dispõem lado a lado, em frente a uma escultura de pedras, árvores e raízes de Franz Krajcberg. Com a justificativa de que os cadáveres ficaram completamente desfigurados, em conseqüência da gravidade do acidente na Via Dutra na tarde anterior, os esquifes de Juscelino e Geraldo estão - e irão permanecer até o sepultamento - absolutamente fechados. São exatamente iguais, até na simplicidade. A madeira de pinho envernizada de ambos é lisa, as alças, douradas. Não há um único detalhe que os diferencie. Logo, é natural que o porteiro Gileno Almeida faça uma indagação óbvia, mas adequada: “Em qual dos caixões está o corpo do presidente?” Diante dos mesmos esquifes que começam a ser cobertos com cravos vermelhos, brancos e roxos, o repórter Tarlis Batista é resoluto. Afinal, só ele, entre os presentes, pode ter alguma certeza, pois, aboletado em uma das kombis, havia comandado o transporte dos corpos desde o Instituto Médico-Legal. Tarlis levanta o braço o direito e, com o dedo indicador: aponta, convicto: “O presidente Juscelino está no caixão à esquerda.” Todos os que chegam fazem quase a mesma pergunta: “Em qual dos caixões está o corpo do presidente?” Tudo é muito igual e ninguém parece lembrar ou tem coragem de estender uma bandeira nacional sobre o ataúde de Juscelino Kubitschek. Até às 11h45, o corpo do político mineiro é velado no edifício da “Manchete” e 1.892 assinaturas são registradas nos dois livros de presença. Em seguida, sob um escaldante sol do meio-dia, um cortejo de cerca de três mil pessoas ganha as ruas do bairro da Glória, entra no aterro do Flamengo e carrega nas mãos o que deve ser o esquife do ex-presidente até o Aeroporto Santos Dumont, de onde seguirá para o sepultamento no Campo da Esperança em Brasília. O velório de Geraldo Ribeiro, no entanto, prossegue até perto das 16h, quando pouco mais de 100 pessoas levam o caixão para o Cemitério São João Batista. Ele é enterrado no túmulo 410-B da quadra 12. Na sede da “Manchete”, a dúvida se instala de vez: em que detalhe ou em que diferença Tarlis Batista havia se baseado para indicar, com tanta certeza, que o ataúde de Juscelino Kubitschek fora colocado à esquerda? Esta é apenas uma das muitas histórias que começam a emergir com a ressurreição midiática de Juscelino Kubitschek no rastro da minissérie da TV Globo e será contada por funcionários dos áureos tempos da Editora Bloch em livro que deve ser lançado em meados do ano. Além de narrar o apogeu e a decadência de um império jornalístico, a publicação - que aponta indícios e possibilidades - pode instigar ainda mais o imaginário popular sobre uma morte que ainda permanece nebulosa, enigmática, polêmica. “Não foi uma nem duas vezes que ouvi falar de um possível engano, uma troca despropositada”, afirma o escritor e jornalista Murilo Mello Filho. “Logo, o corpo de Juscelino Kubitschek poderia ter sido sepultado no Rio e o de Geraldo Ribeiro no 115 Campo da Esperança, em Brasília.” Bloch monta pelotão de resgate Quase trinta anos depois, Murilo Mello Filho lembra, como se vivesse hoje, aquela madrugada tensa e confusa de agosto de 1976. Ele assinala que, desde que o Chevrolet Opala verde que trazia Juscelino Kubitschek para o Rio de Janeiro invadiu a contramão do quilômetro 162,5 da Via Dutra batendo de frente contra uma carreta Scania que trafegava no sentido oposto e se transformou num amontoado de ferros retorcidos e vidros espatifados, a morte do ex-presidente é tratada com a irresponsabilidade dos boatos e a dramaticidade dos mistérios. Murilo Mello Filho era um dos principais colunistas políticos da revista “Manchete” na época e rememora detalhes de uma noite singular em sua vida. Enquanto se discutia se o acidente poderia ter sido uma circunstância trágica de estrada ou um crime político, era também necessário tratar das cerimônias fúnebres. “Estava decidido que o velório seria realizado no Museu de Arte Moderna, mas Adolpho Bloch não se conformava”, afirma o escritor e jornalista. “Ele queria que Juscelino fosse velado na sede da “Manchete”, onde o ex-presidente tinha seu escritório no décimo-segundo andar.” O dono da Editora Bloch tinha suas razões. Alegava que muitos dos que deram as costas a Juscelino Kubitschek em anos de ostracismo queriam naquele momento se apossar de seu cadáver e que a “Manchete” havia seu único e último refúgio. Foi, então, que teve a idéia de organizar uma espécie de pelotão de resgate com a missão de desviar o trajeto dos dois corpos que, por volta de 3h da madrugada, eram esperados pela diretora Niomar Muniz Sodré Bittencourt no Museu de Arte Moderna. Pediu que Murilo Mello Filho, o escritor Carlos Heitor Cony e o repórter Tarlis Batista, entre outros, partissem para a tarefa - um vale-tudo. “Foi muito difícil”, conta Mello Filho. “O motorista só aceitou mudar de percurso quando lhe demos uma boa gorjeta.” Com o passar do tempo, um outro protagonista da missão de resgate - o escritor Carlos Heitor Cony - passou a vasculhar mistérios e estranhezas que até hoje cercam o fim do ex-presidente. Escreveu “JK - Como nasce uma estrela” e foi um dos autores de “O Beijo da Morte”, em que sugere que as mortes de Juscelino Kubitschek, João Goulart e Carlos Lacerda foram ações perpetradas pela Operação Condor - organização secreta criada em 1974 pelas ditaduras militares do Cone Sul para eliminar inimigos. (Procurado por NoMínimo, o escritor informou, por meio de sua secretária, que está de férias até o final de fevereiro, embora sua coluna continue saindo diariamente na “Folha de S. Paulo”.) Na única vez em que escreveu algumas linhas sobre as cerimônias fúnebres, Carlos Heitor Cony não menciona o suborno revelado por Murilo Mello Filho, mas também reforça a desordem e a possibilidade dos restos mortais de Juscelino Kubitschek não estarem repousando no Memorial JK, em Brasília. “Quem não acreditar que não acredite”, diz ele na crônica intitulada “Coisas que acontecem”, publicada em 4 de junho de 2005 na página dois da “Folha”. A sua memória do episódio mistura realidade e ficção. Escreveu: “Do lado de fora, vi um rabecão saindo da garagem do instituto, com o Tarlis Batista ao volante, no banco da frente, pedindo ao povo que abrisse caminho. Meia hora após, o velório teria início com gente aos prantos, no saguão da ‘Manchete’.” Um repórter cheio de histórias O comandante da improvisada missão de resgate, o repórter Tarlis Batista, foi um jornalista que construiu quase toda sua carreira na Editora Bloch. Era uma figura muitas vezes folclórica, um repórter obstinado. “O Tarlis tinha a fama de se enredar em matérias fáceis e de conseguir reportagens impossíveis”, recorda um de seus companheiros na “Manchete”. Os exemplos são inúmeros. Nenhum outro jornalista brasileiro conseguiu se aproximar do cantor Frank Sinatra, em 1980, quando ele aqui desembarcou para uma lendária apresentação no estádio do Maracanã. Só Tarlis Batista. “O Sinatra gostou tanto dele que, além de abrir seu camarim, posou para várias fotos a seu lado”, conta outro de seus colegas da Editora Bloch. Tem outras histórias. Amigo de Edson Arantes do Nascimento, ele resolveu contar a vida de descasado do rei do futebol na reportagem “Minha liberdade vale ouro”. No dia da sessão de fotos para a capa da revista, Tarlis escolheu algumas modelos para serem fotografadas ao lado de Pelé. Fisgou uma delas para apresentar ao rei. Era Xuxa Meneghel que, naquele dia, recebeu seu passaporte para o estrelato. Não só ela. Ao conhecer uma atriz iniciante que chegou ao Brasil para interpretar um pequeno papel no filme “Feitiço no Rio”, Tarlis Batista convenceu-a de que suas chances em Hollywood aumentariam se ela aceitasse posar de top-less nas areias da Barra da Tijuca. A atriz aceitou e, 116 logo em seguida, se transformou num furacão de sensualidade nas telas de cinema. Era Demi Moore. Até falecer, há três anos, Tarlis Batista sempre desconversava quando alguém lhe indagava da possibilidade de ter se enganado ao indicar em qual dos ataúdes estava o corpo de Juscelino Kubitschek. “Ele mudava de assunto ou procurava transformar a dúvida em troça”, declara outro de seus colegas de redação. E, assim, a história de que os restos mortais de Juscelino Kubitschek poderiam estar repousando no Cemitério da Paz, em Belo Horizonte - para onde os familiares de Geraldo Ribeiro os transferiram em 1981, certos de que eram os do motorista - é um prato cheio para todos os que acreditam em teses conspiratória e costumam desconfiar das versões oficiais dos fatos. Um episódio repleto de enigmas Autor de “Brasília Kubitschek de Oliveira”, obra de referência da minissérie “JK” que está sendo apresentada na Rede Globo, o escritor Ronaldo Costa Couto não tocou nem passou perto da hipótese. No livro de 402 páginas, ele dedica apenas seis linhas ao velório no saguão da “Manchete”, ressaltando apenas que Adolpho Bloch chorava como criança. Costa Couto acredita que - como muitas teorias conspiratórias - esta também é fantasiosa. “São muitos os exemplos”, diz ele. “Já disseram que Adolf Hitler não havia se suicidado em 1945 e estava vivo no interior do Paraguai.” A verdade é que, muitas vezes, a morte de personagens públicos transforma-se em num acontecimento repleto de mistérios e interrogações. Logo, as versões conspiratórias surgem e se propagam como fogo em gasolina. Ninguém esteve mais no olho dos furacões do que a família Kennedy. Por muito tempo, o escritor Truman Capote sustentou que o presidente John Kennedy não morreu no atentado de que foi vítima em 1963, mas sobrevivia numa ilha da Indonésia, cercado por um intransponível aparato de seguranças. As incertezas não param por aí. Marilyn Monroe teria sido assassinada por saber demais sobre os bastidores do poder. John Lennon teria sido morto pela CIA. Jim Morrison - o libertário líder da banda The Doors - ainda estaria vivo num país do Oriente... O mundo político brasileiro também é um terreno fértil para as teorias conspiratórias. As mortes de Paulo César Farias, Pedro Collor de Mello, Luiz Eduardo Magalhães e a do prefeito de Santo André, Celso Daniel, são as que despertam mais suspeitas em capítulos recheados de inveja, disputa, vingança e corrupção. Nenhuma, no entanto, esbanja tanta nebulosidade quanto a de Juscelino Kubitschek. “Ele foi assassinado pela ditadura”, afirma Serafim Melo Jardim. “Não foi acidente. Foi um crime político.” Serafim Melo Jardim foi secretário particular de Juscelino Kubitschek até as 17h55min de 22 de agosto de 1.976 - hora e dia em que o ex-presidente morreu na Via Dutra. Recolhido em Diamantina, Serafim reuniu uma série de certezas para escrever “Onde está a verdade?”, livro em que enumera detalhes, coincidências, interesses e interessados no desaparecimento de seu chefe e amigo. Lembra aqueles tempos em que o regime militar usava e abusava de sua rígida musculatura para afastar, constranger e até torturar inimigos, desfiando uma série de fatos estranhos que testemunhou antes, durante e depois do velório de Juscelino Kubitschek e Geraldo Ribeiro. “Prefiro acreditar que a troca de corpos seja um exercício de imaginação, uma fantasia”, diz ele. No entanto, faz algumas ressalvas. Aos ataúdes exatamente iguais e absolutamente fechados como foram velados e desceram às sepulturas, o secretário particular adiciona mais um detalhe inusitado: a exumação realizada em 12 de setembro de 1981 - quando os restos mortais de Juscelino foram transferidos para o Memorial JK - não foi presenciada por nenhuma pessoa do círculo íntimo do ex-presidente, nem familiares nem amigos. Por isso, toda vez que alguém lhe apresenta indícios de que os corpos de Juscelino Kubitschek e do motorista Geraldo Ribeiro podem ter sido trocados involuntariamente no velório, a dúvida acende mais um sinal. Falando pelo telefone, de Diamantina, Serafim Melo Jardim entrincheira-se na cautela e dispara uma interrogação: “Num episódio repleto de enigmas como o da morte de Juscelino Kubitschek, por que não se poderia acrescentar mais este?” [email protected] 117 II. Texto do site “Balaio de Minas” sobre o acidente que matou JK www.balaiodeminas.com.br/.../sociedade/familias.asp?codigo=906&area=mineiros&a rea1=sociedade - 105k JK: Morte acidental? Ronaldo Costa Couto (*) Duas da tarde de 22 de agosto de 1976, domingo. No quilômetro 2 da Via Dutra, São Paulo, JK se ajeita no banco traseiro do Opala placa BH 9326, da antiga Guanabara, dirigido pelo fiel motorista Geraldo Ribeiro. Destino: Rio de Janeiro. Ia de avião, mas resolvera mudar. Tira os sapatos, velho hábito, acena alegremente para o funcionário da Editora Bloch que acaba de trazê-lo de almoço com o amigo Olavo Drummond. Macarronada caseira, prato predileto. Quatro horas depois, na curva do quilômetro 165, em Resende-RJ, o carro atravessa desgovernado o canteiro central, invade a pista oposta e é colhido por enorme carreta Scania–Vabis da cidade de Orleães, Santa Catarina, placa ZR 0938, conduzida por Ladislau Borges, de 47 anos, que vinha do Ceará com trinta toneladas de gesso. Esmagado e arrastado para fora da estrada, o Opala vira um amontoado de ferros retorcidos, vidros espatifados, assentos destruídos e ensangüentados. O Brasil perde dois filhos e ganha um mito. Conforme a perícia, o Opala se desgovernou ao ser tocado na traseira esquerda pelo ônibus de passageiros de prefixo 3148 da Viação Cometa, de São Paulo, placa HX 2630, dirigido por Josias Nunes de Oliveira, de 33 anos, paulista de Rancharia. Jeito de acidente comum, fatalidade. Exceto por alguns indícios e hipóteses ainda não comprovadas, questionamentos à perícia realizada e circunstâncias políticas da época. Afinal, tratava-se de um presidente idolatrado pelo povo, mas cassado, perseguido e injustiçado pela ditadura. Sombras, dúvidas. Por que optou pela viagem de carro? Estrada defeituosa? Falha humana ou mecânica? Toque do ônibus no Opala? O motorista Josias nega. Diz que o carro não fez a curva do quilômetro 165. Acusado, foi duas vezes julgado e absolvido. Alguns suspeitam de certeiro tiro de longe na cabeça do motorista Geraldo Ribeiro, outros de explosão de bomba dentro do carro ou de sabotagem numa das rodas dianteiras durante parada em local próximo. Também de atentado da sinistra Operação Condor, organização secreta criada em 1974 pelas ditaduras do Cone Sul para afastar lideranças políticas adversárias. Em 2000, a Câmara Federal criou comissão para verificar as causas e circunstâncias do acidente. Sete meses de trabalho, dezenas de depoimentos colhidos, discussões e debates técnicos, repericiamento, simulações de hipóteses, viagens investigativas e de pesquisa ao Chile, Paraguai e Estados Unidos. Conclusão: acidente de estrada, mas JK estaria na agenda da Operação Condor. Atuaram dois novos peritos, que ratificaram as 118 conclusões oficiais de 1976, consideradas inaceitáveis pelos que crêem em morte planejada. Crime premeditado ou acaso? Certeza oficial, incertezas de muitos. A guerreira Sarah Kubitschek e a filha Márcia morreram acreditando em homicídio doloso. Anotação de JK em seu diário: “Vimos nascer 1976. Sentia-me bem. Uma sensação de inutilização e de abandono dominava-me no instante supremo da mudança. O céu carregado de estrelas atraiu os meus olhos. O que procurava eu nos mundos infinitos que piscavam para mim? O que trará 76? Até a morte pode trazer”. O escritor Ronaldo Costa Couto, doutor em história pela Universidade de ParisSorbonne, é autor, entre outros, de Brasília Kubitschek de Oliveira (Ed. Record, Rio de Janeiro, 5ª edição nas livrarias), obra de referência da MINISSÉRIE JK, apresentada pela Rede Globo de Televisão de janeiro a março de 2006. 119 III. Texto da “Revista Época” na internet sobre ghost writers http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,EDG61537-6011,00.html 28/11/2003 - 18:11 | Edição nº 289 literatura Clube de fantasmas Os ghost-writers de políticos saem da sombra, transformam-se em personagens de romances e reivindicam legitimidade literária Luís Antônio Giron • • • • Comente a matéria Leia os comentários Envie a um amigo Imprimir Horas depois da posse de Lula, em 1º de janeiro deste ano, o assessor do Ministério da Cultura, Antonio Risério, foi abordado num restaurante de Brasília por José Dirceu: "O Fidel mandou cumprimentá-lo pelo discurso. Ele o chamou de 'una obra de arte!'". O elogio encheu de orgulho Risério, mas também o espantou. "Não disse a ninguém, mas todo mundo ficou sabendo que o discurso era de minha autoria", comenta, bemhumorado. Esquematizado por Risério, o texto contou depois com intervenções de André Singer, o assessor de imprensa, de Luiz Dulci, secretário-geral da Presidência, e do presidente. "É um discurso que Lula poderia ter feito", jura Risério. "Conheço os charmes e ironias que ele gosta de inserir nas falas." Eis a vida do ghost-writer: prestar serviços autorais e se contentar com o nome brilhando à sombra. Cedo ou tarde, como costuma acontecer aos gênios, seu valor pode acabar vindo à luz. Os ghost-writers são fantasmas camaradas cuja identidade deve permanecer oculta em benefício do indivíduo que contratou seus serviços de criação literária. Desde a Antigüidade, eles trabalharam com líderes políticos, produzindo discursos e até cartastestamento. O faraó Tutancâmon teve um escriba de orações. Atualmente são jornalistas ou diplomatas a serviço de um governo ou um partido. Nos últimos tempos, esses autores espectrais têm encarnado para defender a dignidade da confraria. O atual romance de maior sucesso no Brasil é Budapeste, de Chico Buarque, e tem como personagem José Costa, escritor de livros por encomenda, presa de terríveis dilemas éticos e estéticos. Acaba também de ser lançada uma novela que trata do mesmo tema, a excelente A Sombra do Meio-Dia (TopBooks, 160 págs., R$ 23), do diplomata Sérgio Danese. Além de bem escrita, a história de um publicitário que se converte em ghostwriter de um senador, e termina por redigir para o político até cartas de amor, reveste-se de traços autobiográficos. Aos 49 anos, Danese, ministro do Itamaraty na Argentina, foi ghost-writer de celebridades, entre elas seu antigo chefe, o ex-ministro das Relações Exteriores Luiz Felipe Lampreia. Danese publicou, em 1999, o livro Diplomacia 120 Presidencial - História e Crítica, fruto de sua tese de doutorado. Neste ensaio, ele faz a apologia do ghost-writer, que rebatiza de "speech-writer". Ele argumenta que, no Brasil, esse profissional é chamado pejorativamente de "rapaz dos discursos", embora constitua uma peça-chave da expressão do pensamento institucional. Danese pensa que o trabalho do fantasma serve como "instrumento de reflexão e de sistematização de políticas", lembra o texto publicitário e consiste em um trabalho institucional feito em equipe. O personagem de sua novela, como José Costa, rompe o limite institucional para viver o drama de ouvir suas palavras na boca de terceiros. "Speech-writer é uma profissão legítima, embora o profissional corra o risco de sofrer um dano a seu patrimônio de idéias." Uma terceira ficção sobre o tema é A Serviço del-Rei (Rocco, 174 págs., R$ 19,50), do mineiro Autran Dourado. Publicado pela primeira vez em 1984, o romance está de volta às livrarias. João da Fonseca é um escritor mineiro associado a um político que acaba virando presidente da República. "É um aproveitamento romanesco de minha experiência", reconhece o autor. Dourado foi secretário de imprensa do presidente Juscelino Kubitschek entre 1955 e 1960. "Escrevi discursos para JK, embora o principal ghost-writer dele fosse Augusto Frederico Schmidt (1906-1965), seu chefe-de-gabinete, cujo estilo podia ser detectado na fala do presidente. JK pegava o discurso direto, sem olhar." Dourado chegou a fazer discursos para o próprio Schmidt, imitando-lhe o jeito de escrever. "Fui ghost do ghost", brinca. "JK era um caipira que amava literatura. Como não tinha cultura, cercava-se de escritores." Fonseca padece da deformação do poder, e sua escrita se escraviza à ambição. O problema dos três ghost-writers de ficção reside na autoralidade. Eles não contêm o ego que transborda nas frases que redigem para outrem. Mesmo porque os outros terminam por lhes pedir textos que nada têm a ver com política, como ensaios, romances e sonetos. #Q:Clube de Fantasmas - Continuação:# "Sacanagem. Agora que me aposentei como ghost-writer, eles entram em moda!" O comentário é de Eduardo Graeff, autor de discursos do presidente Fernando Henrique Cardoso em oito anos de mandato. "Escrevi só para o FHC, porque fui orientando dele e conhecia seu estilo de cor", confessa. "Não houve dúvida moral, já que eu acreditava nele." Risério tampouco sente qualquer tipo de impasse. "Não tenho dilema autoral. Escrevo muito discurso. Hoje me orgulho de ser ghost - melhor ainda, logógrafo, como diziam os gregos - e isso não interfere em minha obra literária." Risério é autor da expressão "Do-in antropológico", popularizada pelo ministro da Cultura, Gilberto Gil. "É uma expressão que Gil poderia usar, pois ele já se tratou com do-in", comenta. Risério não tem feito discursos para Lula: "O principal logógrafo do presidente é Dulci". Luiz Dulci foi crítico literário em Belo Horizonte, possui uma pena bombástica e costuma rechear os pronunciamentos de Lula com imagens eruditas. "Mas, na posse, Lula citou afoxés da Bahia e tambores do Maranhão", diverte-se Risério. "Sarney me ligou para elogiar a parte dos tambores! Como ele ficou sabendo, não sei." Segundo o jornalista Carlos Figueiredo, a chave do negócio do autor sombra está na qualidade de estilo e na confiança do cliente. "Ele deve ter a certeza de que o ghostwriter jamais, nem sob tortura persa, revelará a autoria de discursos e artigos que circulam pela imprensa ou pela história", ensina. Figueiredo também se confessa ghostwriter, foi secretário do político paulista Franco Montoro, mas não abre para quem produziu discursos. Prefere ensinar como fazê-los. Para tanto, acaba de lançar 100 121 Discursos Históricos Brasileiros (Editora Leitura, 552 págs., R$ 39), uma coletânea de falações que vão de Pero Vaz de Caminha a Lula. Do volume, consta a carta-testamento de Getúlio Vargas, escrita de fato pelo jornalista João Soares Maciel Filho (1904-1975), colega de outro espectro do verbo, Lourival Fontes. É de Maciel a frase: "Serenamente dou o primeiro passo no caminho da eternidade e saio da vida para entrar na História". Getúlio só pediu que ela principiasse com o advérbio "serenamente". Maciel não sabia que ele iria se matar quando o chamou para redigir o documento, certa madrugada. Ao ser informado do suicídio de Getúlio, na manhã de 24 de agosto de 1954, teve uma crise nervosa - fato que não o impediu de revelar que havia sido o autor da mensagem mais trágica da história brasileira. Maciel daria um personagem de romance capaz de rivalizar com os de Chico, Danese e Dourado. Difícil é evitar hoje ser assombrado por ghost-writers. "Virou uma função tão necessária que até as editoras contratam-nos para reescrever livros de autores de peso", diz Figueiredo. Atire a primeira pedra quem nunca foi copidescado. #Q:Conheça alguns autores que são ghost-writer ou escreveram sobre ele:# 122 IV. Texto da “Revista Isto É” no site “Terra” sobre o homem que teria levado JK a prometer a construção de Brasília http://www.terra.com.br/istoe/biblioteca/brasileiro/lideres/est1.htm 1) Juscelino Kubitschek "Abril de 1955. O homem que havia modernizado Minas Gerais agora prometia fazer o País crescer 50 anos em cinco. Para inaugurar a campanha rumo à Presidência, nada de centros urbanos. Marcou o primeiro comício para Jataí, cidadezinha de 15 mil habitantes no sudoeste de -Goiás. Chovia a cântaros quando ele começou a discursar no galpão de uma oficina mecânica. Apresentou um plano de 30 metas de desenvolvimento. "Acima de tudo, pretendo respeitar a Constituição", finalizou o discurso. "E agora pergunto a vocês: além disso, o que acham que eu devo fazer?" Um rapaz, conhecido como Toniquinho, tomou coragem: "Vossa Excelência sabia que a Constituição de 1891 estabelece a transferência da capital para o Planalto Central? Se for eleito, cumprirá também esta lei?" ISTOÉ localizou em Goiânia o rapaz que interpelou o candidato a presidente do PSD. "Juscelino ficou assustado com a pergunta. Demorou um pouco, mas respondeu que assumiria o compromisso de construir a nova capital", lembra Antônio Soares Neto, o Toniquinho, hoje com 74 anos. "Recebi o convite para a inauguração da cidade. Me sinto um pouco responsável por tudo." Brasília é a meta-síntese de um governo que levou o País à euforia. Até quem nasceu depois tem saudades da era JK (1956 a 1961). O ex-presidente apontava o otimismo como sua principal virtude. Talvez porque ele próprio tivesse superado incontáveis obstáculos antes de fazer política. A começar pela infância pobre em Diamantina (MG), onde nasceu a 12 de setembro de 1902. Não era por andar descalço, sem dinheiro para comprar calçados, que Juscelino Kubitschek de Oliveira chamava a atenção. O que impressionava era o sobrenome estranho, herança do bisavô materno, um tcheco que desembarcou no Brasil em 1830. Nonô, apelido dentro de casa, mal teve contato com o pai, mascate que morreu de tuberculose quando ele tinha dois anos. A educação rígida veio do convívio com a mãe, dona Júlia, uma professora primária que caminhava nove quilômetros todas as manhãs para dar aulas no município vizinho. Aos 17 anos, foi para Belo Horizonte, onde os Correios haviam aberto concurso para telegrafista. Ficou oito anos no emprego, até se formar em Medicina em 1927. Consultório aberto, parecia ter o destino traçado quando o governador Benedito Valadares o convidou para trabalhar como chefe de gabinete. Refrigerantes ao povo Valadares se impressionara com a dedicação do doutor Juscelino aos feridos na Revolução Constitucionalista de 1932. Daí à nomeação como prefeito de Belo Horizonte, em 1940, foi um pulo. Executou obras de grande repercussão e ganhou fama de modernizador. Em 1950, JK lançou-se ao governo de Minas Gerais. Vencer as eleições não foi problema. Nem fundar a Cemig, empresa estatal encarregada de produzir e distribuir energia elétrica. Dias difíceis ele viveu quando Getúlio Vargas se suicidou, em 1954. Na avenida Afonso Pena, no centro da capital mineira, oradores de plantão estimulavam a multidão em polvorosa. Cheio de artimanha, JK pediu calma e conduziu a massa até os jardins do Palácio da Liberdade. Em seguida, mandou servir refrigerantes, deixando todos de garrafa e canudo na mão. Os espíritos se desarmaram. O estilo conciliador despertava inveja. Até adversários admitiam: bastava conhecer sua simpatia para baixar a guarda. Que o diga o jurista Miguel Reale, fiel amigo de Adhemar de Barros. O adhemarismo era forte em São Paulo, mas tinha tênue repercussão em Belo Horizonte. Ao instalar um novo diretório do PSP na cidade, Reale organizou uma festa com muita música, fogos de artifício e dança ao ar livre - no melhor estilo populista que caracterizava o partido. "A nossa festança ia às mil maravilhas, com vivas a Adhemar, quando 123 repentinamente surge Juscelino em visita de cordialidade", conta o jurista. Enquanto os paulistas permaneciam quietos, arredios à alegria popular, Nonô tirou as morenas mais assanhadas para dançar, roubando a cena. Dentro em pouco, só se ouviam vivas a ele. "Era mesmo um ótimo pé-de-valsa", reforça o ex-secretário particular Serafim Jardim, atual presidente da Casa de Juscelino Kubitschek em Diamantina. O jeito amável e carismático, aliado a promessas desenvolvimentistas, explica os milhões de votos nas eleições presidenciais de 1955. Alegando que ele não obtivera maioria absoluta - ganhara com 36% dos votos -, a oposição, comandada pela UDN, tentou impedir a posse. Só não teve êxito porque o marechal Henrique Teixeira Lott deu um contragolpe no dia 11 de novembro. Mal assumiu o governo, JK enfrentou a resistência de oficiais da Aeronáutica que rumaram para o Pará, mas se renderam diante da falta de apoio dentro das próprias Forças Armadas. Mostrando que seria o presidente da concórdia, JK deu anistia a todos os golpistas. Quase aos tapas Além de desenvolver a indústria automobilística, JK abriu 20 mil quilômetros de rodovias, três mil de ferrovias, aumentou 15 vezes a produção de petróleo e construiu as hidrelétricas de Furnas e Três Marias. E ergueu a nova capital em três anos e dez meses. "JK ia a Brasília ao menos uma vez por semana e chamava os peões pelo nome", lembra o subchefe da Casa Civil, Affonso Heliodoro dos Santos. Por trás do grande homem, a discreta companheira. Dona Sarah, com quem ele se casou em 1931, quase protagonizou uma cena hilariante na entrega da faixa presidencial a Jânio Quadros em 1961. Dizia-se que Jânio o acusaria de corrupção. Em entrevista a ISTOÉ, Márcia Kubitschek, a filha mais velha - ele também adotou uma menina, Maria Estela -, conta que JK carregava dois discursos no bolso: um desejando bom governo, outro rebatendo as críticas. "Se Jânio se metesse a fazer denúncias, meu pai partiria para cima dele. Eu e minha mãe também íamos querer briga com Tutu e dona Eloá (filha e esposa de Jânio)", disse Márcia. Para alívio da nação, predominou a diplomacia. Senador por Goiás, chegou a se candidatar a presidente em 1965, com o lema "cinco anos de agricultura para 50 de fartura". Mas o regime militar o cassou e ele deixou o Brasil. Afastado da vida pública, dava palestras a executivos de bancos e mantinha um romance secreto com a socialite carioca Maria Lúcia Pedroso - especula-se que a relação tenha durado 18 anos. Comprou uma fazenda em Luziânia (GO), só para ficar próximo a Brasília. "Acordava o pessoal às seis da manhã com um sino trazido de Diamantina. Gostava de montar a cavalo e passear na fazenda conosco", conta Márcia. A 22 de agosto de 1976, numa viagem pela via Dutra, que liga São Paulo ao Rio de Janeiro, seu Opala se espatifou contra uma carreta que vinha em sentido contrário. Até hoje, muita gente acredita que ele foi assassinado. VOCÊ SABIA? Foi de JK o primeiro avião presidencial brasileiro, o quadrimotor Viscount. Certa vez, voando sobre o Nordeste, uma das turbinas parou de funcionar. Tranquilo, foi para o seu aposento e vestiu um pijama. Em seguida, outros dois motores falharam. Sem esperança de sobreviver, ele assinou a promoção dos militares a bordo para aumentar a pensão das viúvas. Com apenas uma turbina, o avião pousou são e salvo. JK ainda saiu sorridente. VOCÊ SABIA? Na Presidência, levava para o gabinete uma marmita preparada por dona Sarah. Até o dia em que ela cansou de fazer o prato. Aí JK passou a almoçar em casa. Não se esquecia de convidar os assessores, que abusavam da comida mineira: arroz com quiabo, couve e galinha o molho pardo. 124 V. Transcrição do discurso feito por JK na inauguração de Brasília e divulgado no site oficial do jornalista Franklin Martins http://www.franklinmartins.com.br/estacao_historia_artigo.php?titulo=discurso-de-jkna-inauguracao-de-brasilia-1960 A construção de Brasília em menos de cinco anos foi a marca registrada do governo Juscelino Kubitschek. A transferência da capital enfrentou enorme resistência, especialmente da oposição da UDN, comandada por Carlos Lacerda, mas terminou prevalecendo. Foi decisiva para que o Brasil deixasse de ser uma “civilização de caranguejos ”, na qual quase toda a população concentrava-se no litoral, e se procedesse à ocupação do interior do país. O discurso abaixo foi proferido por JK na sessão solene de instalação do governo no Palácio do Planalto, no dia 21 de abril de 1960. Naquele momento, a cidade, na verdade, ainda era um acampamento, com poucos prédios construídos e quase tudo por fazer. Mas o ato, simbolicamente, marcou a transferência da capital. Não me é possível traduzir em palavras o que sinto e o que penso nesta hora, a mais importante de minha vida de homem público. A magnitude desta solenidade há de contrastar por certo com o tom simples de que se reveste a minha oração. Dirigindo-me a todos os meus concidadãos, de todas as condições sociais, de todos os graus de cultura, que, dos mais longínquos rincões da Pátria, voltais os olhos para a mais nova das cidades que o Governo vos entrega, quero deixar que apenas fale o coração do Vosso Presidente. Não vos preciso recordar, nem quero fazê-lo agora, o mundo de obstáculos que se afiguravam insuportáveis para que o meu Governo concretizasse a vontade do povo, expressa através de sucessivas constituições, de transferir a Capital para este planalto interior, centro geográfico do País, deserto ainda há poucas dezenas de meses. Não nos voltemos para o passado, que se ofusca ante esta profusa radiação de luz que outra aurora derrama sobre a nossa Pátria. Quando aqui chegamos, havia na grande extensão deserta apenas o silêncio e o mistério da natureza inviolada. No sertão bruto iam-se multiplicando os momentos felizes em que percebíamos tomar formas e erguer-se por fim a jovem Cidade. Vós todos, aqui presentes, a estais vendo, agora, estais pisando as suas ruas, contemplando os seus belos edifícios, respirando o seu ar, sentindo o sangue da vida em suas artérias. Somente me abalancei a construí-la quando de mim se apoderou a convicção de sua exeqüibilidade por um povo amadurecido para ocupar e valorizar plenamente no território que a Providência Divina lhe reservara. Nosso parque industrial e nossos quadros técnicos apresentavam condições e para traduzir no betume, no cimento e no aço as concepções arrojadas da arquitetura e do planejamento urbanístico modernos. Surgira uma geração excepcional, capaz de conceber e executar aquela "arquitetura em escala maior, a que cria cidades e, não, edifícios", como observou um visitante ilustre. Por maior que fosse, no entanto, a tentação de oferecer oportunidade única a esse grupo magnífico, em que se destacam Lúcio Costa e Oscar Niemeyer, não teria ela bastado para decidir-me a levar adiante, com determinação inflexível, obra de tamanha envergadura. Pesou, sobretudo, em meu ânimo, a certeza de que era chegado o momento de estabelecer o equilíbrio do País, promover o seu progresso harmônico, prevenir o perigo de uma excessiva desigualdade no desenvolvimento das diversas 125 regiões brasileiras, forçando o ritmo de nossa interiorização. No programa de metas do meu Governo, a construção da nova Capital representou o estabelecimento de um núcleo, em torno do qual se vão processar inúmeras realizações outras, que ninguém negará fecundas em conseqüências benéficas para a unidade e a prosperidade do País. Viramos no dia de hoje uma página da História do Brasil. Prestigiado, desde o primeiro instante, pelas duas Câmaras do Congresso Nacional e amparado pela opinião pública, através de incontável número de manifestações de apoio, sinceras e autenticamente patrióticas, dos brasileiros de todas as camadas sociais que me acolhiam nos pontos mais diversos do território nacional, damos por cumprido o nosso dever mais ousado; o mais dramático dever. Só nos que não conheciam diretamente os problemas do nosso Hinterland percebemos, a princípio, dúvida, indecisão. Mas no País inteiro sentimos raiar a grande esperança, a companheira constante em toda esta viagem que hoje concluímos; ela amparou-nos a todos, a mim e a essa esplêndida legião que vai desde Israel Pinheiro, cujo nome estará perenemente ligado a este cometimento, até ao mais obscuro, ao mais ignorado desses trabalhadores infatigáveis que tornaram possível o milagre de Brasília. Em todos os instantes nas decepções e nos entusiasmos, levantando o nosso ânimo e multiplicando as nossas forças, mais de que qualquer outro amparo ou guia, foi a Esperança valimento nosso. Um homem, cujos olhos morreram e ressuscitaram muitas vezes na contemplação da grandeza - aludo, novamente, a André Malraux - viu em Brasília a Capital da Esperança. Seu dom de perceber o sentido das coisas e de encontrar a expressão justa fê-lo sintetizar o que nos trouxe até aqui, o que nos deu coragem para a dura travessia, que foi a substância, a matéria-prima espiritual desta jornada. Olhai agora para a Capital da Esperança do Brasil. Ela foi fundada, esta cidade, porque sabíamos estar forjada em nós a resolução de não mais conter o Brasil civilizado numa fímbria ao longo do oceano, de não mais vivermos esquecidos da existência de todo um mundo deserto, a reclamar posse e conquista. Esta cidade, recém-nascida, já se enraizou na alma dos brasileiros; já elevou o prestígio nacional em todos os continentes; já vem sendo apontada como demonstração pujante da nossa vontade de progresso, como índice do alto grau de nossa civilização; já a envolve a certeza de uma época de maior dinamismo, de maior dedicação ao trabalho e à Pátria, despertada, enfim, para o seu irresistível destino de criação e de força construtiva. Deste Planalto Central, Brasília estende aos quatro ventos as estradas da definitiva integração nacional: Belém, Fortaleza, Porto Alegre, dentro em breve o Acre. E por onde passam as rodovias vão nascendo os povoados, vão ressuscitando as cidades mortas, vai circulando, vigorosa, a seiva do crescimento nacional. Brasileiros! Daqui, do centro da Pátria, levo o meu pensamento a vossos lares e vos dirijo a minha saudação. Explicai a vossos filhos o que está sendo feito agora. É sobretudo para eles que se ergue esta cidade síntese, prenúncio de uma revolução fecunda em prosperidade. Eles é que nos hão de julgar amanhã. Neste dia - 21 de abril - consagrado ao Alferes Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes, ao centésimo trigésimo oitavo ano da Independência e septuagésimo primeiro da República, declaro, sob a proteção de Deus, inaugurada a cidade de Brasília, Capital dos Estados Unidos do Brasil. 126 VI. Divulgação do livro “Gaiola Aberta – Tempos de JK e Schmidt” publicada pelo site da “Editora Rocco” http://www.editoras.com/rocco/022326.htm Às vésperas da indicação do candidato do PSD à presidência da República, Carlos Lacerda declarou na televisão: "Juscelino não será candidato, se for candidato não será eleito, se for eleito não tomará posse, se tomar posse não governará". No dia seguinte, na sede carioca do partido, JK deu a resposta: "Deus poupou-me o sentimento do medo". Foi um delírio. A assistência não parava de aplaudir, de gritar. JK foi candidato, foi eleito, tomou posse, fez o que muitos consideram o maior governo que o Brasil já teve. Hoje, Autran Dourado lembra com simpatia o episódio em seu livro Gaiola aberta Tempos de JK e Schmidt. A frase não era de Juscelino, mas dele, que ajudava o poeta Augusto Frederico Schmidt a preparar os discursos do criador de Brasília. Schmidt perguntou a Autran se o homem de Diamantina tinha mesmo toda a coragem "que arrotava" e o romancista afirmou: "tem sim! Pode escrever esta frase aí". O lançamento de Gaiola aberta é um momento para a História, pois Autran Dourado ganhou de maneira extremada a confiança e a intimidade de Juscelino. Muitas vezes despachava com ele à beira da banheira, o presidente em pleno banho. Há décadas, os amigos insistiam para que Autran escrevesse suas memórias, capazes de remexer em dolorosas feridas e arrepiantes pormenores dos bastidores do Poder. O romancista recusava, dizendo que não guardara documentos e, assim, não poderia provar o que contasse. Mas acabou sendo convencido, com o argumento de que, ao lançar o livro, ele já estaria morto ou velho demais, portanto acima das contestações. Gaiola aberta é uma preciosidade para os estudiosos do período anterior ao Golpe de 64 e para as pessoas interessadas no Brasil. Porém não é um livro de História. Não cita uma data sequer. Trata-se, antes, da psicologia do homem que mudou os destinos do Brasil. Aquele sorriso otimista que era seu logotipo em nada se confirmava fora dos olhos do público. Na intimidade, Juscelino às vezes amanhecia "com a avó atrás do toco, botando fumaça pelas ventas". Mulherengo, chegava ao requinte de descrever aventuras em um caderninho que, mais tarde, perdeu. As perigosas recordações foram recuperadas ao custo de uma indicação de emprego feito pelo próprio presidente. Autran mostra que a gênese da ditadura militar de 64 não ocorreu no governo João Goulart, mas no de JK, com várias tentativas de golpe magistralmente desmanchadas pelo criador de Brasília. Na época, as idéias que desembocaram no AI-5 já eram cochichadas pelos generais e por personalidades como Francisco Campos. Autran viaja, também, pela corrupção gerada pelo Poder e pelos que giram em torno dele. Quem quer entender JK não pode perder esta oportunidade. E nem quem quer entender Autran Dourado e as razões que o levaram a escrever maravilhas como A serviço del-Rei e seus demais romances. 127 Sobre o autor Waldomiro Autran Dourado nasceu em Patos de Minas, Minas Gerais, em 1926. É casado e mora há mais de 40 anos no Rio de Janeiro. Nenhum outro escritor brasileiro possui os prêmios e honrarias do romancista. Há vários livros seus traduzidos e trinta teses de mestrado e doutorado sobre sua obra. Seu romance Ópera dos mortos foi escolhido pela Unesco para integrar a sua Coleção de Obras Representativas da Literatura Universal, e Os sinos da agonia adotado para os exames de Agregação das Universidades Francesas. Tem nove prêmios no Brasil e um na Alemanha, o Prêmio Goethe de Literatura. Em agosto último, recebeu o Prêmio Camões pelo conjunto de sua obra. A Rocco reeditou as obras selecionadas e revistas pelo autor, entre romances, contos e ensaios As capas das reedições são feitas especialmente pelo gravurista Ciro Fernandes. Obras reeditadas pela Rocco • • • • • • • • Ópera dos mortos, romance Os sinos da agonia, romance A barca dos homens, romance O risco do bordado, romance Um artista aprendiz, romance Uma poética de romance: matéria de carpintaria, ensaio Novelário de Donga Novais, romance A serviço del-Rei, romance 128 VII. Memorial do Plano Piloto de Brasília publicado pelo site “Guia de Brasília” http://www.guiadebrasilia.com.br/historico/i_mmrial.htm Memorial do plano piloto de Brasília Transcrevemos o memorial de Lúcio Costa, vencedor do concurso do Plano-Piloto de Brasília. A introdução desse relatório — verdadeira obra de arte — demonstrou o elevado espírito do autor: Desejo inicialmente desculpar-me perante a Direção da Companhia Urbanizadora e a Comissão Julgadora do Concurso pela apresentação sumária do partido aqui sugerido para a nova Capital e também justificar-me. Não pretendia competir e, na verdade, não concorro; apenas me desvencilho de uma solução possível, que não foi procurada, mas surgiu, por assim dizer, já pronta. Compareço, não como técnico devidamente aparelhado, pois nem sequer disponho de escritório, mas como simples "maquis" no desenvolvimento da idéia apresentada, senão eventualmente na qualidade de mero consultor. E se procedo assim cândidamente, é porque me amparo num raciocínio igualmente simplório; se a sugestão é válida, êstes dados, conquanto sumários na sua aparência, já serão suficientes, pois revelarão que, apesar da espontaneidade original, ela foi, depois, intensamente pensada e resolvida; se não o é, a exclusão se fará mais fàcilmente, e não terei perdido meu tempo nem tomado o tempo de ninguém. A liberação do acesso ao concurso o reduziu de certo modo à consulta àquilo que de fato importa, ou seja à concepção urbanística da cidade pròpriamente dita, porque esta não será, no caso, uma decorrência do planejamento regional, mas a causa dêle; a sua fundação é que dará ensejo ao ulterior desenvolvimento planejado da região. Trata-se de um ato desbravador, nos moldes da tradição colonial. E o que se indaga é como no entender de cada concorrente uma tal cidade deve ser concebida. Neste momento Lúcio Costa descreve sumàriamente o tipo de cidade que se vai criar. Êsse trecho que adiante vamos transcrever é de um grande alcance, naturalmente só perceptível aos espíritos evoluídos, aos homens de idéias avançadas, aos contemporâneos do futuro. Temos repetido o quanto podemos nestes últimos anos: Brasília não é uma cidade qualquer, uma cidade igual a tantas outras, para servir de palco aos tantos erros existentes, nas velhas e desorganizadas comunidades; em Brasília não deverão se desenvolver os sistemas de vida já definitivamente banidos das nações civilizadas nem em Brasília deveriam as autoridades consentir na implantação dos mesmos métodos rotineiros em vigor por êsse Brasil afora; Brasília não é uma cidade qualquer, mas a Capital do Brasil, planejada e idealizada para tal. Mas a autoridade de LUCIO COSTA melhor faria entender os recalcitrantes: 129 Ela deve ser concebida não como simples organismo capaz de preencher, satisfatoriamente, sem esfôrço as funções vitais próprias de UMA CIDADE MODERNA QUALQUER, não apenas como URBS, mas como CIVITAS, possuidora dos atributos inerentes a uma Capital. E para tanto, a condição primeira é achar-se o urbanista iimbuído de UMA CERTA DIGNIDADE E NOBREZA DE INTENÇÃO, porquanto desta atividade fundamental decorrem a ordenação e o senso de conveniência e medida capazes de conferir ao conjunto projetado o desejável caráter monumental. Monumental não no sentido de ostentação, mas no sentido da expressão palpável, por assim dizer, consciente, daquilo que vale e significa. Cidade planejada para o trabalho ordenado e eficiente, mas ao mesmo tempo cidade viva e aprazível, própria ao devaneio e à especulação intelectual, capaz de torna-se, com o tempo, além de centro de govêrno e administração, num foco de cultura das mais lúcidas do país. O intróito do memorial de Lúcio Costa já indica, aos mais inteligentes, a grande sabedoria do mestre, do filósofo, do sociólogo. E continua LUCIO COSTA: Dito isto, vejamos como nasceu, se definiu e resolveu a presente solução: 1. Nasceu do gesto primário de quem assinala um lugar ou dêle toma posse:-- dois eixos cruzando-se em ângulo reto, ou seja, o próprio sinal da Cruz. 3. Procurou-se depois a adaptação à topografia local, ao escoamento natural das águas, à melhor orientação, arqueando-se um dos eixos a fim de contê-lo no triângulo equilátero que define a área urbanizada. 3. E houve o propósito de aplicar os princípios francos da técnica rodoviária — inclusive a eliminação de cruzamentos — à técnica urbanística, conferindo-se ao eixo arqueado, correspondente às vias naturais de acesso, a função circulatória-tronco, com pistas centrais de velocidade e pistas laterais, para o tráfego local, e dispondo-se ao longo dêsse eixo o grosso dos setores residenciais. 4. Como decorrência dessa concentração residencial, os centros cívico e administrativo, o setor cultural, o centro de diversões, o centro esportivo, o setor administrativo municipal, os quartéis, as zonas destinadas à armazenagem, ao abastecimento e às pequenas indústrias locais, e, por fim, a estação ferroviária, foram-se naturalmente ordenando e dispondo ao longo do eixo transversal que passou a ser assim o eixo-monumental do sistema. Lateralmente à interseção dos dois eixos, mas participando funcionalmente e em têrmos de composição urbanística do eixo-monumental, localizaram-se o setor bancário e comercial, o setor de escritórios de emprêsas e profissões liberais e ainda amplos setores de varejo comercial. 130 5. O cruzamento dêsse eixo monumental, de cota inferior, com eixo rodoviário-residencial impôs a criação de uma grande plataforma liberta do tráfego que não se destina ao estacionamento ali, remanso onde se concentrou lògicamente o centro de diversões da cidade, com os cinemas, os teatros, os restaurantes, etc. 6. O tráfego destinado aos demais setores prossegue, ordenado em mão única na área inferior coberta pela plataforma e entalada nos dois topos, mas aberta nas faces maiores, área utilizada em grande parte para o estacionamento de veículos onde se localizou a estação rodoviária interurbana, acessível aos passageiros pelo nível superior da plataforma. Apenas as pistas de velocidade mergulham, já então subterrâneas, na parte central dêsse piso inferior que se espraia em declive até nivelar-se com a esplanada do setor dos Ministérios. 7. Dêsse modo e com a introdução de três trevos completos em cada ramo do eixo rodoviário e outras tantas passagens de nível inferior, o tráfego de automóveis e ônibus se processa tanto na parte central quanto nos setores residenciais sem qualquer cruzamento. Para o tráfego de caminhões estabeleceu-se um sistema secundário autônomo com cruzamentos sinalizados, mas sem cruzamento ou interferência alguma com o sistema anterior, salvo acima do setor esportivo, e que a cede aos edifícios do setor comercial ao nível do subsolo, contornando o centro cívico, em cota inferior, com galerias de acesso previstas no terrapleno. 8. Fixada a rêde geral do tráfego de automóvel, estabeleceram-se tanto nos setores centrais como nos residenciais tramas autônomas para o trânsito local dos pedestres a fim de garantirlhes o uso livre do chão, sem, contudo,levar tal separação a extremos sistemáticos e antinaturais, pois não se deve esquecer que o automóvel, hoje em dia, deixou de ser o inimigo inconciliável do homem, domesticou-se, já faz, por assim dizer, parte da família. Êle só se "desumaniza, readquirindo vis-a-vis do pedestre, feição ameaçadora e hostil, quando incorporado à massa anônima do tráfego". Há, então, que separá-lo, mas sem perder de vista que, em determinadas condições e para comodidade recíproca, a coexistência se impõe... 9. Veja-se agora como, nesse arcabouço de circulação ordenada, se integram e articulam os vários setores. Destacam-se, no conjunto, os edifícios destinados aos podêres fundamentais que, sendo em número de três e autônomos, encontraram no triângulo equilátero, vinculado à arquitetura da mais remota antiguidade, a forma elementar apropriada para contê-los. Criou-se, então, um terrapleno triangular, com arrimo de pedra à vista, sobrelevado na campina circunvizinha, a que se tem acesso pela própria rampa da auto-estrada que conduz à residência e ao aeroporto. Em cada ângulo dessa praça — PRAÇA DOS TRÊS PODERES — localizou-se uma das casas, ficando as do govêrno e do Supremo Tribunal na base, a do Congresso no vértice, com frente igualmente para uma esplanada ampla, disposta num segundo terrapleno, de forma retangular e nivel mais alto, de acôrdo com a topografia local, igulamente arrimado de pedras em todo o seu perímetro. A aplicação, em têrmos atuais, dessa técnica oriental milenar dos terraplenos garante a coesão do conjunto e lhe confere uma ênfase monumental imprevista. Ao longo dessa esplanada — o Mall dos inglêses, extenso gramado destinado a pedestres, a paradas e a desfiles, foram dispostos os ministérios e autarquias. Os das Relações Exteriores e Justiça ocupando os cantos infericres, contíguos ao edifício do Congresso e com enquadramento condigno; os Ministérios militares, constituindo uma praça autônoma, e os demais ordenados em sequência — todos com áreas privativas de estacionamento — sendo o último o da Educação, a fim de ficar vizinho do setor cultural, tratado à maneira de parque para melhor ambientação dos museus, da biblioteca, do planetário, das academias, dos institutos, etc., setor êsse também contíguo à ampla área 131 destinada à Cidade Universitária com o respectivo Hospital de Clínicas e onde também se prevê a instalação do Observatório. A Catedral ficou igualmente localizada nessa esplanada, mas numa praça autônoma disposta lateralmente, não só por questão de protocolo, uma vez que a Igreja é separada do Estado, como por questão de escala, tendo-se em vista valorizar o monumento e, ainda, principalmente por outra razão de ordem arquitetônica: a perspectiva de conjunto da esplanada deve prosseguir desimpedida até além da plataforma, onde os dois eixos se cruzam. 10. Nesta plataforma, onde, como se viu anteriormente, o tráfego é apenas local, sitou-se então o centro de diversões da cidade ( mistura, em têrmos adequados, de Piccadilly Circus, Times Square e Champs Elysées). A face da platafoma debruçada sôbre o setor cultural e a esplanada dos Ministérios, não foi edificada, com exceção de uma eventual casa de chá e da Ópera, cujo acesso tanto se faz pelo próprio setor de diversões, como pelo setor cultural contíguo, em plano inferior. Na face fronteira foram concentrados os cinemas e teatros, cujo gabarito se fêz baixo e uniforme, constituindo, assim, o conjunto dêles, um corpo arquitetônico contínuo, com galeria, amplas calçadas, terraços e cafés, servindo as respectivas fachadas em tôda a altura de campo livre para a instalação de painéis luminosos de reclame. As várias casas de espetáculo estarão ligadas entre si por travessas no gênero tradicional da rua do Ouvidor, das vielas venezianas ou de galerias cobertas (arcadas) e articuladas a pequenos pátios com bares e cafés, e "loggias" na parte dos fundos, com vista para o parque, tudo no propósito de propiciar ambiente adequado ao convívio e à expansão. O pavimento térreo do setor central dêsse conjunto de teatros e cinemas manteve-se vazado em tôda a sua extensão, salvo os núcleos de acesso aos pavimentos superiores, a fim de garantir continuidade à perspectiva, e os andares se previram envidraçados nas duas faces, para que os restaurantes, clubes, casas de chá, etc, tenham vista de um lado para a esplanada inferior, e do outro para o aclive do parque no prolongamento do eixo monumental e onde ficaram localizados os hotéis comerciais e de turismo,e , mais acima, para a tôrre monumental das estações radioemissoras e de televisão tratada como elemento plástico integrado na composição geral. Na parte central da plataforma, porém, disposto lateralmente, acha-se o saguão da estação rodoviária com bilheteria, bares, restaurantes, etc, construção baixa, ligadas por escadas rolantes ao hall inferior de embarque, separado por envidraçamento do cais pròpriamento dito. O sistema de mão única obriga os ônibus, na saída, a uma volta, num ou noutro sentido, fora da área coberta pela plataforma, o que permite ao viajante uma última vista ao eixo monumental da cidade antes de entrar no eixo rodoviário-residencial — despedida psicològicamente desejável. Previram-se igualmente nesta extensa plataforma destinada principalmente , tal como no piso érreo, ao estacionamento de automóveis, duas amplas praças privativas de pedestres, uma fronteira ao teatro da ópera e outra, simètricamente disposta, em frente a um pavilhão de pouca altura debruçado sôbre os jardins do setor cultural e destinado a restaurante, bar e casa de chá. Nestas praças, as pistas de rolamento, sempre de sentido único, foi ligeiramente sobrelevado em larga extensão para o livre cruzamento dos pedestres num e noutro sentido, o que permitirá acesso franco e direto tanto aos setores do varejo comercial quanto ao setor dos bancos e escritórios. 11. Lateralmente ao setor central de diversões, e articulados a êle, encontram-se dois grandes núcleos destinados, exclusivamente, ao comércio - lojas e magazines, e dois setores distintos, o bancário-comercial e o dos escritórios para profissões liberais, representações e emprêsas, onde foram localizados respectivamente o Banco do Brasil e a sede dos Correios e Telégrafos. 132 Êsses núcleos e setores são acessíveis aos automóveis diretamente das respectivas pistas, e aos pedestres por calçadas sem cruzamento e dispõem de autoportos para estacionamento em dois níveis e de acesso de serviço pelo subsolo correspondente ao piso inferior da plataforma central. No setor dos bancos, tal como no dos escritórios, previram-se três blocos altos e quatro de menor altura, ligados entre si por extensa área térrea com sobreloja, de modo a permitir intercomunicação coberta e amplo espaço para instalação de agências bancárias, agências de emprêsas, cafés, restaurantes, etc. Em cada núcleo comercial, propõe-se uma sequência ordenada de blocos baixos e alongados e um maior, de igual altura dos anteriores, todos interligados por um amplo corpo térreo com lojas, sobrelojas e galerias. Dois braços elevados da pista de contôrno permitem, também aqui, acesso franco aos pedestres. 12. O setor esportivo, com extensíssima área destinada exclusivamente ao estacionamento de automóveis, instalou-se entre a Praça da Municipalidade e a tôrre radioemissora, que se prevê de planta triangular com embasamento monumental de concreto aparente até o piso dos estúdios e mais instalações e superestrutura metálica com mirante localizado a meia altura. De um lado, o estádio e mais dependências, tendo aos fundos o Jardim Botânico; do outro, hipódromo com as respectivas tribunas e vila hípica e, contíguo, o Jardim Zoológico constituindo essas duas imensas áreas verdes, simètricamente dispostas em relação ao eixo monumental, como que pulmões de nova cidade. 13. Na Praça Municipal instalaram-se a Prefeitura, a Polícia Central, o Corpo de Bombeiros e a Assistência Pública. A penitenciária e o hospício, conquanto afastados do contro urbanizado, fazem igualmente parte dêste setor. 14. Acima do setor municipal, foram dispostas as garagens da viação urbana, em seguida, de uma banda e de outra os quartéis e numa larga faixa transversal o setor destinado ao armazenamento e à instalação das pequenas indústrias de interêsse local, com setor residencial autônomo, zona esta rematada pela estação ferroviária e articulada igualmente a um dos ramos da ramos da rodovia destinada aos caminhões. 15. Percorrido assim de ponta a ponta êsse eixo monumental, vê-se que a fluência e unidade do traçado, desde a praça do Govêrno até a Praça Municipal, não exclui a variedade e cada setor, por assim dizer, vale por si como organismo praticamente autônomo na composição do conjunto. Essa autonomia cria espaços adequados à escala do homem e permite o diálogo monumental localizado sem prejuízo de desempenho arquitetônico de cada setor na harmonia da integração urbanística do todo. 16. Quanto ao problema residencial, ocorreu a solução de criar-se uma seqüência contínua de grandes quadras dispostas em ordem dupla ou singela, de ambos os lados da faixa rodoviária, e emolduradas por uma larga cinta densamente arborizada, árvores de porte, prevalecendo em cada quadra determinada espécie vegetal, com chão gramado e uma cortina suplementar interminente de arbustos e folhagens, a fim de resguardar melhor, qualquer que seja a posição do observador, o conteúdo das quadras visto sempre num segundo plano e como que amortecido na paisagem.. Disposição que apresenta a dupla vantagem de garantir a ordenação 133 urbanística mesmo quando varie a densidade, categoria, padrão ou qualidade arquitetônica dos edifícios e de oferecer aos moradores extensas faixas sombreadas para passeio e lazer, independentemente das áreas livres previstas no interior das próprias quadras. Dentro dessas "superquadras" os blocos residenciais podem dispor-se da maneira mais variada, obedecendo porém, a dois princípios gerais: gabarito máximo uniforme, talvez seis pavimentos e pilotis, e separação do tráfego de veículos do trânsito de pedestres, mormente o acesso à escola primária e às comodidades existentes no interior de cada quadra. Ao fundo das quadras, estende-se a via de serviços para o tráfego de caminhóes, destinandose ao longo dela a frente oposta às quadras a instalação de garagens, oficinas, depósitos de comércio em grosso, etc. e reservando-se uma faixa de terreno equivalente a uma terceira ordem de quadras para floricultura, horta e pomar. Entaladas entre essa via de serviço e as vias do eixo rodoviário, intercalam-se então largas e extensas faixas com acesso alternado, ora por uma ora por outra, e onde se localizaram a igreja, as escolas secundárias, o cinema e o varejo do bairro, disposto conforme a sua classe ou natureza. O mercadinho, o açougue, as vendas, quitandas, casas de ferragens etc, na primeira metade da faixa correspondente ao acesso de serviço; as barbearias, cabelereiros, modistas, confeitarias, etc na primeira seção da faixa de acesso privativo dos automóveis e ônibus, onde se encontram igualmente os postos de serviço para venda de gasolina. As lojas dispõem-se em renque com vitrinas e passeio coberto na face fronteira às cintas arborizadas de enquadramento dos quarteirões e privativas dos pedestres, e o estacionamento na face oposta contígua às vias de acesso motorizado, prevendo-se travessas para ligação de uma parte a outra, ficando, assim, as lojas geminadas duas a duas, embora o seu conjunto constitua um corpo só. Na confluência das quatro quadras, localizou-se a igreja do bairro, e aos fundos dela as escolas secundárias, ao passo que na parte da faixa de serviço fronteira à rodovia se previu o cinema, a fim de torná-lo acessível a quem proceda de outros bairros, ficando a extensa área livre intermediária destinada ao clube de juventude, com campos de jogos e recreio. 17. A graduação social poderá ser dosada fàcilmente, atribuindo-se maior valor a determinadas quadras, como, por exemplo, às quadras singelas contíguas ao setor das embaixadas, setor que se estende de ambos os lados do eixo principal paralelamente ao eixo rodoviário, com alamêda, de acesso autônomo, e via de serviço para o tráfego de caminhóes comum às quadras residenciais. Essa alameda, por assim dizer, privativa dos bairros das embaixadas e legações, se prevê edificada apenas num dos lados, deixando-se o outro com a vista desimpedida sôbre a paisagem, excetuando-se o hotel principal localizado nesse setor e próximo do centro da cidade. No outro lado do eixo-rodoviário-residencial, as quadras contíguas à rodoviária serão naturalmente mais valorizadas que as quadras internas, o que permitirá as gradações próprias do regime vigente; contudo, o agrupamento delas, de quatro em quatro, propicia, em certo grau, a coexistência social, evitando-se assim uma indevida e indesejável estratificação. E, seja como fôr, as diferenças de padrão de uma quadra a outra serão neutralizadas pelo próprio agenciamento urganístico proposto, e não serão de natureza a afetar o confôrto social a que todos têm direito. Elas decorrerão apenas de uma maior ou menor densidade, de maior ou menor espaço atribuído a cada indivíduo e a cada família, da 134 escolha dos materiais e do grau e requinte do acabamento. Neste sentido, deve-se impedir a enquistação de favelas, tanto na periferia urbana quanto na rural. Cabe à Companhia Urbanizadora prover dentro do esquema proposto acomodações decentes e econômicas para a totalidade da população. 18. Previram-se igualmente sotores ilhados, cercados de arvoredo e de campo, destinados a loteamento para casas individuais, sugerindo-se uma disposição dentada em cremalheira para que as casas construídas nos lotes do tôpo se destaquem na paisagem, afastadas umas das outras disposição que ainda permite acesso autônomo do serviço para todos os lotes. E admitiu-se igualmente a constução eventual de casas avulsas isoladas, de alto padrão arquitetônico — o que não implica tamanho — estabelecendo-se porém, como regra, nestes casos, o afastamento mínimo de um quilômetro de casa a casa, o que acentuará o caráter excepcional dessas concessões. 19. Os cemitérios localizados nos extremos do eixo rodiviário-residencial, evitam aos cortejos a travessia do centro urbano. Terão chão e grama e serão convenientemente arborizados, com sepulturas rasas e lápides singelas, à maneira inglesa, tudo desprovido de qualquer ostentação. 20. Evitou-se a localização dos bairros residenciais na orla da lagoa, a fim de preservá-la intata, tratada com bosques e campos de feição naturalista e rústica para os passeios e amenidades bucólicas de tôda a população urbana. Apenas os clubes esportivos, os restaurantes, os lugares de recreio, os balneários e os núcleos de pesca podem chegar à beira d’água. O clube de Gôlfe situou-se na extremidade leste, contíguo à residência e ao Hotel, ambos em construção e o Iate Clube, na enseada vizinha, entremeados por denso bosque que se estende até à margem da reprêsa, bordejada neste trecho pela alamêda de contôrno que intermitentemente se desprende de sua orla para embrenhar-se pelo campo que se pretende eventualmente florido e manchado de arvoredo. Essa estrada se articula ao eixo rodoviário e também à pista autônoma de acesso direto do aeroporto ao centro cívico, por onde entrarão na cidade os visitantes ilustes, podendo a respectiva saída processar-se, com vantagem, pelo próprio eixo rodoviário-residencial. Propõe-se ainda a localização do aeroporto definitivo na área interna da reprêsa, a fim de evitar-lhe a travessia ou o contôrno. Quanto à numeração urbana, a referência deve ser o eixo monumental, distribuindo-se a cidade em metades NORTE e SUL, as quadras seriam assinaladas por números, os blocos residenciais por letras, e, finalmente, o número de apartamentos na forma usual, assim por exemplo: N-Q3 - L - ap 201. A designação dos blocos em relação à entrada da quadra deve seguir da esquerda para a direita, de acôrdo com a norma. 135 22. Resta o problema, de como dispor do terreno e troná-lo acessível ao capital oarticular, Entendo que as quadras não devem ser loteadas, sugerindo, em vez de venda de lotes, a venda de quotas de terreno, cujo valor dependerá do setor em causa e do gabarito, a fim de não entravar o planejamento atual e possíveis remodelações futuras no delineamento interno das quadras. Entendo, também, que esse planejamento deveria de preferência anteceder a venda das quotas, mas nada impede que compradores de um número substancial de quotas submetam à aprovação da Companhia projeto próprio de uma urbanização de uma determinada quadra, e que, além de facilitar aos incorporadores a aquisição de quotas, a própria Companhia funcione, em grande parte, como incorporadora. E entendo igualmente que o preço das quotas, oscilável conforme a procura, deveria incluir uma parcela com taxa fixa, destinada a cobrir as despesas do projeto no intuito de facilitar tanto o convite a determinados arquitetos, como a abertura de concursos para a urbanização e edificação das quadras que não fôssem projetadas pela Divisão de Arquitetura da própria Companhia. E sugiro ainda que a aprovação dos projetos se processe em duas etapas, anteprojeto e projeto definitivo, no intuito de permitir seleção prévia e melhor contrôle da qualidade das construcões. Da mesma forma quanto ao setor do varejo comercial e aos setores bancários e dos escritórios das empresas e profissões liberais, que deveriam ser projetados previamente de modo a se poderem fracionar em subsetores e unidades autônomas, sem prejuíso da integridade arquitetônica, e assim se sumeterem parceladamente à venda no mercado imobiliário, podendo a costrução propriamente dita, ou parte dela, correr por conta dos interessados ou da Companhia, ou, ainda, conjuntamente.. 23. Resumindo, a solução apresentada é de fácil apreensão, pois se caracteriza pela simplicidade e clareza do risco original, o que não exclui, conforme se viu, a variedade no tratamento das partes, cada qual concebida segundo a natureza peculiar da respectiva função, resultando daí a harmonia da exigências de aparência contraditória. É assim que, sendo monumental, é também cômoda, eficiente, acolhedora e íntima. É ao mesmo tempo derramada e concisa, bucólica e urbana, lírica e funcional. O tráfego de automóveis de processa sem cruzamento, e se restitui o chão, na justa medida, ao pedestre. E, por ter o arcabouço tão claramente definido, é de fácil execução: dois eixos, dois terraplenos, uma plataforma, duas pistas largas num sentido, uma rodovia no outro, rodovia que pode ser construída por partes — primeiro as faixas centrais com um trevo de cada lado, depois as pistas laterais, que avançariam com o desenvolvimento normal da cidade. As instalações teriam sempre campo livre nas faixas verdes contíguas às pistas de rolamento. As quadras seriam apenas niveladas e paisagisticamente definidas, com as respectivas cintas plantadas de grama e desde logo arborizadas, mas sem calçamento de qualquer espécie nem meios-fios. De uma parte, técnica rodoviária: de outra, técnica paisagística de parques e jardins. Êste é o maravilhoso plano urbanístico, elaborado por LUCIO COSTA para a cidade de Brasília. 136 Paralelamente ao Plano Urbanístico, foram elaborados, através de equipes capazes e em coordenação com Lúcio Costa, todos os planos do funcionamento da cidade: plano administrativo; plano educacional; plano médico-hospitalar: plano de assistência social, plano de abastecimento. Foi planejado algo digno do século XXI, mas inúmeras mutilações estão deformando a cidade. Aliás, vai aqui, para confirmar, uma declaração de Oscar Niemeyer perante a Comissão do Distrito Federal na Câmara dos Deputados em 12 de julho de 1 963: "Brasília está ficando uma cidade como as outras, pois o plano-piloto de Lúcio Costa vem sendo totalmente desvirtuado." Brasília — capital aérea e rodoviária: Cidade parque. Sonho arquisecular do Patriarca (Extraído do COE - Código de Obras e Edificações - Brasília, DF) 137 VIII. Frases ditas por JK publicadas pelo site “Memorial JK” http://www.memorialjk.com.br/ Deixemos entregues ao esquecimento e ao juízo da história os que não compreenderam e não amaram esta obra" " Ninguém pode ter outro interesse se não o de que se consolide o regime de liberdade, sem o qual não há nação que possa qualificar-se de civilizada." " É inútil fechar os olhos à realidade. Se o fizermos, a realidade abrirá nossas pálpebras e nos imporá a sua presença." " Nas tardes do planalto, os corpúsculos de fogo se confundem com as tintas da aurora. Tudo se transforma em alvorada nesta cidade, que se abre para o amanha ..." " Se acredito ou não, é outra história. O certo é que no dia 21 de abril, colocarei minha bagagem num automóvel e quem quiser que me acompanhe." " Hoje é o dia mais feliz da minha vida. O Congresso acaba de aprovar o projeto para a construção de Brasília. Sabe por que o projeto foi aprovado ? Eles pensam que não vou conseguir executá-lo." " Um governo forte se faz perdoando." " Como valeu a pena." " Estou com uma sensação de que Brasília não é mais minha. Não é como uma filha que se casa. É diferente. É pior." " Creio no triunfo do espírito que afirma e deseja a grandeza nacional, no espírito que se opõe à negação, a descrença, ao ressentimento estéril." " Não consigo guardar ódios no meu coração." " Sou conciliador por natureza." " Deste Planalto Central, desta solidão que em breve se transformará em cérebro das mais altas decisões nacionais, lanço os olhos mais uma vez sobre o amanhã o do meu país e antevejo esta alvorada, com fé inquebrantável e uma confiança sem limites no seu grande destino." " Não me arrependo do que fiz, não me arrependo de ter levado em consideração o interesse de preservar o nosso dia de amanhã - o futuro da Pátria Brasileira." " Não aceito o julgamento dos que agora me julgam; só aceito o julgamento do povo, pois só nele reconheço o juiz de minhas ações." 138 < " Brasília é a manifestação inequívoca de fé na capacidade realizadora dos brasileiros, triunfo de espírito pioneiro, prova de confiança na grandeza deste país, ruptura completa com a rotina e o compromisso." " Creio que apressar a marcha do Brasil, ativar o seu desenvolvimento é imperativo da defesa de nossa própria sobrevivência." " Creio que avançaremos cada vez mais para atingirmos nossa independência econômica, produzindo sempre melhor, fundando a nossa industrialização sobre as riquezas naturais que Deus colocou em nosso território." " Creio na vitória final e inexorável do Brasil, como Nação." " Escolhi Brasília como ponto alto do meu governo porque estou convencido de que a nova capital representou um marco. Depois de sua construção ninguém poderia duvidar de nossas indústrias ou da capacidade do trabalho brasileiro. Brasília deixou atrás de si uma nova era de autoconfiança e otimismo." " Meu sonho é viver e morrer em um país em liberdade." " A criação de Brasília, a interiorização do governo, foi um ato democrático e irretratável de ocupação efetiva do nosso vazio territorial." 139 IX. Biografia de Frederico Schmidt publicada pelo site da Fundação Gilberto Freyre http://bvgf.fgf.org.br/portugues/obra/artigos_imprensa/augusto_fred.htm O BRASILEIRO AUGUSTO FREDERICO SCHMIDT O Schmidt mais vivo na minha lembrança é o meninão moreno, gordo, obeso mesmo, a quem um padrinho rico dera uma livraria para o afilhado administrar. Uma vez senhor de uma livraria em rua ilustre do Rio, Augusto Frederico acrescentara ao ofício de livreiro a aventura de editor. Foi quando o conheci. O meninão gordo era já, contra todo esse seu físico nada romântico de burguês de caricatura, um admirável poeta, ora delicadamente lírico, ora biblicamente profético, como se conservasse, não do sangue, mas da tradição, de avós remotos, além do nome alemão e do romantismo germânico, alguma coisa de hebreu ou de israelita no seu misticismo. Alguns dos seus inimigos já então se antecipavam em ver no poeta-livreiro ou no poeta-editor um homem sequioso apenas de fortuna. O que atribuíram, com evidente idiotice na sua interpretação predominantemente racista de tendências individuais, à origem étnica do poeta. Ninguém mais brasileiro. Ao se anunciar, ele próprio, num dos seus primeiros poemas, "o brasileiro Augusto Frederico Schmidt", era como se, magoado com as insinuações de não ser autêntico brasileiro, quisesse proclamar a sua condição de brasileiríssimo brasileiro. Se veio a tornar-se milionário, é que era um inquieto. Necessitava de ação. Chegou, por esse ativismo, a desdenhar, da boca para fora, das letras, da literatura, da própria poesia. Talvez seguisse, a seu modo, nessa atitude, o exemplo de Rimbaud. A verdade, porém, é que permaneceu um poeta em quem ao fervor lírico continuou a juntar-se sempre aquele outro fervor: o profético. O messiânico. O político. Chegou a ter, como inspirador de ação política, posição saliente, no governo Kubitschek: na política internacional desse governo. Foi o meu primeiro editor: o editor do meu livro intitulado Casa-Grande & Senzala. Não posso dizer de Schmidt, editor, que fosse um modelo no gênero. Na fase em que escrevi esse livro, estava eu em situação mais que precária: angustiosa. Tendo, no exílio a que me forçara o movimento de 1930 - exílio de que nunca me mostrei ressentido a ninguém: sempre o considerei justo - me extremado em repelir quanta generosidade das que me foram oferecidas por membros do novo governo - um deles o excelente José Américo de Almeida - e, de regresso ao Brasil, me extremado, ainda mais, em não incomodar amigo algum com qualquer pedido de proteção ou de auxílio, é claro que não podia ser outra minha situação. Pelo meu contrato com Schmidt para a publicação do livro que se intitularia Casa-Grande & Senzala, ele se obrigava a pagarme quinhentos mil-réis, por mês, enquanto eu estivesse no Rio empenhado na elaboração do livro: trabalho que deveria concluir no Recife. Raramente cumpriu Schmidt essa obrigação de editor. Deixou-me mais de uma vez nas piores aflições. Obrigou-me, por isto, a levar a casas de penhores quanto me restava de algum valor: relógio de platina, botões de ouro, anel de avô. E o pior é que, uma vez editado o livro - do qual devo recordar ter tido, de súbito, imensa aceitação do público brasileiro, a despeito dos silêncios deliberados da 140 imprensa da época e da crítica militante daqueles dias: um desses críticos, o hoje ultraliberal, mas muito meu conhecido, sob outro aspecto, Prof. Alceu Amoroso Lima (Tristão de Ataíde) - e das hostilidades, naqueles dias, quer de jesuítas ainda de feitio antigo, quer de comunistas, assombrados com a força revolucionária do ensaio inclassificável - Schmidt, à base desse sucesso, passou a outro sua editora, incluindo na transação a publicação bem-sucedida. Daí resultaram duas edições, das chamadas piratas, terem sido feitas do meu livro, sem que o autor fosse beneficiado com um único mil-réis. Foi o advogado Trajano de Miranda Valverde quem, por iniciativa própria, livrou-me dessa escravidão. Anos depois, encontrando-me com Augusto Frederico Schmidt já milionário, num almoço em casa de amigo comum -Nehemias Gueiros - disse, gracejando, ao meu primeiro editor: "Lembre-se, Schmidt, que estou à base da sua fortuna". Não creio, de modo algum, que no seu procedimento para comigo e para com outros editados, houvesse de sua parte qualquer mesquinharia de cru "fazedor de dinheiro"; e sim boemia. Pura boemia. Havia nele um boêmio nato que, aliado ao poeta, não deixou que o milionário se banalizasse, em tempo algum, num ricaço vulgar. Nunca Schmidt se vulgarizou num argentário preso só aos negócios. Nesse extraordinário Schmidt, tão homem de ação quanto de imaginação, desaparece um brasileiro a quem não faltou nunca amor ao Brasil. Cantou, nos seus poemas, mulheres que amou romanticamente. Mas com igual fervor romântico amou e cantou o seu e nosso Brasil. Fonte: FREYRE, Gilberto. O brasileiro Augusto Frederico Schmidt. Jornal do Commercio. Recife, 14 fev. 1965. Coluna: Pessoas, Coisas e Animais. 141 X. Biografia de Frederico Schmidt publicada pelo site do Serviço Social do Comércio de São Paulo http://www.sescsp.org.br/sesc/revistas_sesc/pb/artigo.cfm?Edicao_Id=249&breadcrum b=1&Artigo_ID=3929&IDCategoria=4337&reftype=1 Schmidt, nosso “gordinho sinistro” Empresário e poeta, conservador e polêmico, ele influenciou JK, de quem foi o ghost-writer preferido CECÍLIA PRADA A comemoração dos 50 anos do governo de Juscelino Kubitschek traz à tona uma figura do maior relevo na época, hoje quase totalmente esquecida e ignorada. Empresário de grande sucesso, poeta lírico de valor reconhecido e bibliografia vasta, católico ferrenho, de convicções exacerbadas e de um conservadorismo extremo, mas dotado de visão e capacidade política capaz de influenciar Juscelino – do qual se tornou embaixador e ghost-writer predileto –, o polêmico Augusto Frederico Schmidt polarizou contradições, provocando a ira de tantos, a admiração de muitos. Como o centenário de seu nascimento ocorre neste ano, algumas editoras estão promovendo a reedição de suas obras – discursos políticos, poesia, crônicas – reapresentando-o ao público brasileiro. E na biografia Quem Contará as Pequenas Histórias?, baseada na esgotadíssima autobiografia O Galo Branco (1948), Letícia Mey e Euda Alvim esmiúçam as circunstâncias de sua vida e de sua época. De pobre a rico Schmidt é o protótipo do self-made man. Vencendo circunstâncias adversas, construiu uma enorme fortuna e tornou-se figura de relevo político, por sua inteligência e cultura, e principalmente por sua grande habilidade de estabelecer relacionamentos. Nascido no Rio de Janeiro em 18 de abril de 1906 em uma família paterna abastada, viajou, menino, com os pais para a Europa – onde a mãe, tuberculosa, procurava a cura – e ficou interno dois anos em um colégio suíço. Mas, quando contava 8 anos, a inesperada morte do pai – que entrementes dilapidara toda a fortuna da família – obrigou a viúva a regressar ao Brasil, com os filhos Augusto, Magdalena e Anita, indo todos morar na casa dos avós maternos. O avô, Joca Azevedo, fazia o possível para sustentar a família, mas era apenas um modesto contador. A infância e a adolescência de Augusto transcorreram num ambiente de muito afeto e união familiar, mas também de sacrifício e privações. Angustiado pelo agravamento da doença da mãe – que faleceu quando ele tinha apenas 16 anos –, o adolescente gordinho e de óculos, que se sentia imensamente humilhado pela sua dupla situação de órfão e de pobre, para ajudar a sustentar a casa já trabalhava como caixeiro em uma loja de armarinhos. Da qual muitas vezes fugia para a vizinha Livraria Garnier – centro da vida intelectual carioca, freqüentada por escritores e jornalistas renomados, com os quais ia tecendo laços de amizade e embrenhandose nos mais sofisticados atalhos daquela que seria a sua principal paixão, a literatura. Transferindo-se em 1924 para São Paulo, foi trabalhar como caixeiro-viajante de uma firma de bebidas, uma atividade que desenvolveu muito bem, pois não dependia de patrão nem de horário e podia trabalhar de dia e passar a noite lendo. Dos dois anos que viveu em São Paulo, viajando pelo interior, dizia: "Foram anos de aprendizagem, de vida obscura, desconfortável, de começo, de inauguração de uma existência". Nesse período estabeleceu laços duradouros, tanto de amizade como de inimizade, com as principais figuras do modernismo – colhido no embate das ideologias totalitárias que se defrontavam (comunismo x integralismo), escolheu 142 nítida e conscientemente a segunda. Diz em sua autobiografia: "Plínio Salgado passou a constituir desde logo, para a minha vida, um centro de atração. (...) Vivíamos, desde o dia em que nos encontramos, em uma camaradagem completa". Voltando para o Rio de Janeiro, permaneceu sempre ligado ao círculo dos intelectuais católicos, que, naquele tempo, concentrados em torno do Centro Dom Vital e da revista "A Ordem" – com figuras como Jackson de Figueiredo e Alceu Amoroso Lima –, representavam uma aguerrida e constante força de combate contra o comunismo/socialismo, em nome de Cristo e das instituições. Em 1928 lançou seu primeiro livro de poesia, Canto do Brasileiro Augusto Frederico Schmidt. Gilberto Freyre, no necrológio que faria em 1965, diria, dessa época da vida de Schmidt: "O meninão gordo era já, contra todo esse seu físico nada romântico de burguês de caricatura, um admirável poeta, ora delicadamente lírico, ora biblicamente profético..." No início da década de 1930 temos já estabelecida no Rio de Janeiro sua primeira empresa, a Schmidt Editora, sucessora da Livraria Católica de Jackson de Figueiredo – comprada por um grupo de intelectuais católicos e entregue a Schmidt para que a administrasse. Uma aventura valiosa do ponto de vista intelectual, mas desastrosa financeiramente. Porém, ao vender a editora em 1934, Schmidt já contava com importantes relacionamentos empresariais, que, com imensa habilidade e inteligência, soube aproveitar para adentrar o mundo dos grandes negócios. Seguindo os modelos econômicos norte-americanos – foi sempre um admirador irrestrito do American way of life –, começa a delinear a política desenvolvimentista que mais tarde, no governo Kubitschek, alcançaria o auge, com seu planejamento e assessoria. Sua atividade caracterizou-se pela multiplicidade de negócios em que se metia – sua primeira empresa de sucesso foi a Metrópole Seguros; foi um dos fundadores da Panair do Brasil e o pioneiro das redes de supermercados, fundando o Disco (Distribuidora de Comestíveis), no Rio de Janeiro. Para se ter uma idéia da rapidez com que sua fortuna foi feita, dois anos após a venda da deficitária editora, em 1936, quando se casou com a muito amada Yedda Ovalle Lemos, seu presente de casamento foi um terreno situado na esquina da Rua Paula Freitas com a praia de Copacabana, onde ergueria um prédio em cuja cobertura viveria o casal. Conseguiria até o fim da vida conciliar suas funções empresariais e intelectuais – publicou, de 1928 até o ano de sua morte, 22 livros de poesia, aos quais somam-se quatro póstumos, e dois autobiográficos. No entanto, sua reputação literária foi grandemente prejudicada pelo fato de ser um homem rico, e "de direita". Ao preconceito generalizado de que artista, principalmente poeta, tem de ser pobre e sofredor, somava-se sua atuação ostensiva como baluarte e portavoz do pensamento mais retrógrado e conservador. Alguns escritores seus contemporâneos o defendem, considerando "injustas" as discriminações por ele sofridas. Como o ficcionista Autran Dourado, que recorda: "Era uma figura admirável, mas havia muita rivalidade dos outros poetas para com ele, pelo fato de Schmidt ser um homem rico, preocupado com negócios. Isso dava inveja". E Ivo Barroso diz: "Schmidt era injustamente colocado na prateleira por ser filiado à direita. Havia uma discriminação ideológica contra ele (...) só é possível julgar um artista através de sua obra e não por suas posições ideológicas". Um editor boêmio Gilberto Freyre costumava dizer, brincando, que Schmidt "fizera fortuna às suas custas" – o sociólogo pernambucano devia ao poeta/empresário, realmente, o lançamento de sua primeira e mais famosa obra, Casa-Grande & Senzala, em 1933. A publicação desse livro mostra a ousadia e a independência do jovem editor, pois contrariava as duas facções em luta – de um lado os comunistas, "assombrados pela força revolucionária do ensaio inclassificável", como diz Freyre; de outro, os próprios católicos que haviam dado o "emprego" a Schmidt, à frente dos quais estava Alceu Amoroso Lima, ainda representante de uma Igreja "antiga", embora mais tarde, nos anos 1960, tenha se tornado ultraliberal e combatido a ditadura militar. O primeiro sucesso editorial de Schmidt seria o romance A Mulher que Fugiu de Gomorra (1931), um verdadeiro best-seller escrito por José Geraldo Vieira – um autor hoje completamente esquecido. Nos quatro anos em que foi editor, Schmidt descobriu e lançou alguns dos mais importantes escritores da nossa literatura, que desempenharam papel 143 relevante no ciclo do "romance do nordeste" – como Rachel de Queiroz (João Miguel), Jorge Amado (O País do Carnaval) e Graciliano Ramos (Caetés). Sobre este último, são bem conhecidas as circunstâncias da sua estréia literária – o escritor José Américo de Almeida, que na época era ministro do governo Vargas, recebera de Graciliano, então prefeito de Palmeira dos Índios, um relatório tão bem escrito que concluiu: "Este homem deve ter um romance na gaveta". Tinha. Tratava-se de Caetés, e foi encaminhado a José Américo, que o remeteu a Schmidt. No entanto, o tempo passava sem que o editor se manifestasse. Não por desinteresse, mas simplesmente porque perdera os originais – Schmidt era um grande "bagunceiro", um "boêmio nato". Para felicidade de nós todos, certo dia, transcorrido um ano, o editor reencontrou os originais, que havia deixado no bolso de uma velha capa de chuva. Foi também o primeiro editor de Octávio de Faria (Maquiavel e o Brasil), Lúcio Cardoso (Maleita), Marques Rebelo (Oscarina) e Vinicius de Moraes (O Caminho para a Distância) – no caso deste último teve de insistir, contra a opinião de muitos, que se tratava de um ótimo poeta. O segredo que possibilitava à pequena e deficitária editora lançar autores de tanta importância era, além do "faro" de Schmidt para descobrir talentos, a antecipação de um processo comercial hoje amplamente empregado – a chamada "captação de recursos", que naquele tempo não tinha o amparo de leis de incentivo cultural. Apenas o interesse genuíno de "patrocinadores", como sempre foram Alceu Amoroso Lima, Hamilton Nogueira, Tristão da Cunha – foi este que apadrinhou O País do Carnaval, de Jorge Amado, que descobrira um dia remexendo a gaveta de Schmidt em busca de algo para ler, enquanto o esperava para uma conversa. O poeta Schmidt, que já gozava de boa reputação como poeta, lançou por sua editora somente um de seus livros, Desaparição da Amada, em 1933 – um longo poema dedicado a Yedda. Seu livro de estréia, Canto do Brasileiro Augusto Frederico Schmidt, deixara os críticos atordoados, sem ousarem classificá-lo nos moldes da época – romantismo ou modernismo. E já demonstrava, contra o estreito nacionalismo de então, uma ambição de internacionalismo ("Não quero mais o Brasil/ Não quero mais geografia/ Nem pitoresco"). Embora usasse versos brancos como os modernos, o poeta mostrava um ideário espiritual, uma angústia diante do universo, a procura incessante de Deus. Devemos lembrar que por essa época também Vinicius de Moraes – que mais tarde seria o celebrante por excelência do amor livre e da vida – escrevia versos angustiados, de exaltação religiosa e fervor místico. Schmidt permaneceu religioso até o fim. Sua obsessão pela morte valeu-lhe desde o início da carreira o apelido de "gordinho sinistro", que lhe foi dado pelos críticos. Embora reticente em relação ao jovem poeta na sua estréia, Manuel Bandeira teceria mais tarde grandes elogios a ele, pois via em seus versos "a voz necessária que vinha quebrar os clichês gastos do modernismo da primeira hora" e que, "aproveitando-lhe as lições, sabia superá-lo". Lêdo Ivo, poeta e acadêmico, dizia: "Schmidt pertence ao modernismo, mas não ao modernismo do poema-piada. Sua voz é grave, dissonante, voltada para as coisas perdidas". Quatro anos após a morte de Schmidt, Carlos Drummond de Andrade ainda falava a seu respeito, em uma crônica para o "Jornal do Brasil": "O melhor de Schmidt jorra de uma fonte invisível, oculta no ponto em que o poeta alcança finalmente farto exercício com as palavras, e aí o etéreo substitui o compacto". E citava mesmo "um verso de circunstância" que lhe dedicara outrora, e que fazia questão de repetir: "Fui à fonte de Schmidt,/ beber água, lá fiquei./ Quedava bem no limite/ do reino de onde-não-sei./ Na sua linfa sensível/ água da mais pura lei,/ brilhava o raio invisível/ do amor. Como esquecerei?" Antonio Olinto, em artigo na "Tribuna da Imprensa" de fevereiro deste ano, em que saúda a reedição dos poemas de Schmidt, diz: "Podemos ver hoje, a 41 anos de sua morte, como a poesia de Schmidt falava por nós. (...) Ao mesmo tempo em que fazia as palavras dançarem, ele se dependurava nelas como elementos solitários de uma declaração de amor ou de uma busca do mesmo (...) Na força de sua lírica, não se detém diante de qualquer bom-mocismo. 144 Não fugia a debates, não deixava assunto de interesse público sem nele entrar com propriedade e em espírito de realidade e de poesia". Jornalista e político No começo de 1937 Schmidt foi convidado a escrever uma coluna para o "Correio da Manhã" – manteve-a pelo resto de sua vida. Mais tarde, ao iniciar uma amizade duradoura com Roberto Marinho, passaria também a colunista de "O Globo" e muito contribuiria para o estabelecimento da Rede Globo de Televisão – a cuja inauguração, no entanto, não chegaria a assistir, pois faleceu em 8 de fevereiro de 1965. Plenamente amadurecido como intelectual e como empresário, estaria sempre presente no panorama político – com sua grande habilidade para lidar com pessoas, tendo acesso a todos os setores sociais, tanto no Brasil como no exterior, desenvolveu uma intrincada e fecunda "rede de informações" que alimentava seus artigos e influía diretamente nos rumos econômicos da nação. Não hesitava em denunciar e atacar os políticos que julgava nocivos – o que lhe valeu uma quantidade imensa de inimigos, entre os quais o polêmico Carlos Lacerda. Mas o "gordinho sinistro" era bom de briga e não recuava. Extremamente generoso com os amigos, patrocinou muitas iniciativas culturais – como o "Jornal de Letras" dos irmãos Condé, que só pôde ser criado com o apoio da Orquima, a principal empresa de Schmidt. Foi um dos incentivadores da produção de Vestido de Noiva, de Nelson Rodrigues – peça considerada um divisor de águas do teatro brasileiro –, da qual dizia: "É mais que uma peça. É um processo e uma revolução". Durante o governo Kubitschek, Schmidt exerceria o papel de verdadeira "eminência parda". Em artigo no "Jornal do Brasil" de 21 de dezembro de 2002, o jornalista Murilo Mello Filho, que foi seu amigo, dizia: "Como se fosse um Richelieu redivivo, tinha o gosto de manipular nos bastidores os cordões da cena brasileira e foi uma das vozes mais influentes do seu tempo". Foi o grande planejador e realizador da Operação Pan-Americana (OPA), que concretizava uma verdadeira denúncia do abandono e descaso da política exterior norte-americana para com os países latino-americanos. Escrevendo e agindo, batalhou diariamente para que estes abrissem os olhos para o aviltamento de preços das matérias-primas que forneciam, para a ameaça representada pelo poder tecnológico dos países desenvolvidos e para "o longo exílio na inobjetividade" em que se viam forçados a permanecer. Em 1958 – aproveitando o episódio das pedradas com que o vice-presidente Richard Nixon fora recebido em Caracas – Schmidt escreveu para JK uma histórica carta endereçada ao presidente Dwight Eisenhower, alinhando objetivos considerados "bem ousados" pelos norte-americanos, e clamando por uma imediata reviravolta política. A conseqüência foi a vinda do próprio secretário de Estado John Foster Dulles ao Brasil, para combinar, em célebre reunião privada com Juscelino, as bases da OPA – uma grande vitória diplomática para o Brasil, o reforço necessário para o Programa de Metas de JK. A partir de maio de 1959, Schmidt chefiaria várias missões diplomáticas ao exterior, negociando a política desenvolvimentista. Foi depois nomeado embaixador especial junto à Comunidade Econômica Européia (atual União Européia), para tentar atrair os interesses comerciais dos países do Velho Continente. Um resultado prático da OPA foi a criação, em 1959, do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID). Com os governos Jânio Quadros e João Goulart, Schmidt retraiu-se, doente e completamente desiludido com o verdadeiro desmonte da OPA – cuja pá de cal foi a criação pelo presidente John Kennedy, em março de 1961, da assistencialista Aliança para o Progresso. Como jornalista, continuou, porém, a defender Kubitschek e sua política desenvolvimentista. Em 1964, antes do golpe militar, combatia abertamente Goulart, declarando-o "um homem despreparado, e da espécie dos despreparados simuladores". Quando o general Castello Branco foi eleito presidente da República, por voto indireto, Schmidt, que era seu amigo, criou novo alento, baseado no espírito nacionalista de Castello e em sua boa-fé, segundo dizem, ao prometer eleições livres no ano seguinte. Suas esperanças, como as de tantos, não duraram mais de três meses – logo começou a fazer, em suas colunas, advertências e denúncias sobre o superpoder militar que se estabelecia: "Ainda é cedo para julgar, mas já é tempo para alertar. Estamos em condições de distinguir certas inclinações, e confesso que elas não tiveram o poder de conservar em mim o mesmo fervor das primeiras horas". 145 A cassação de Juscelino, em junho de 1964, escandalizou o país e deixou Schmidt desolado. Antes que o ex-presidente partisse para Paris, em exílio voluntário, pronunciou um discurso de despedida – escrito por Schmidt. A partir dali e até sua morte súbita, oito meses mais tarde, o empresário/poeta tornaria suas críticas a Castello, à política econômica de Roberto Campos e ao poder militar cada vez mais abertas e acerbas. Recusou cargos com os quais o novo governo lhe acenava, mas intercedeu pessoalmente junto a Castello Branco, numerosas vezes, em favor de amigos, e até de desconhecidos, que eram presos e torturados. 146 XI. Website da Fundação Schmidt http://www.fundacaoschmidt.com.br/ Augusto Frederico Schmidt Brasileiro (1906-1965) Augusto Frederico Schmidt nasceu aos 18 de abril de 1906 na Rua Marques de Abrantes, Flamengo, Rio de Janeiro. Filho de Gustavo e Anita Schmidt, aos 8 anos muda-se para Lausanne, Suíça, onde estudou até a morte do pai, em 1916, quando sua família retornou ao Brasil. De volta ao país, o menino Augusto Frederico continua os estudos no Instituto O´GrandBerry, em Juiz de Fora. Retornou ao Rio de Janeiro em 1922, quando foi reprovado nos exames para o Colégio Pedro II. Começou, então a trabalhar como caixeiro em um armarinho do centro da cidade. Nesta época, Schmidt publicou seus primeiros versos de amor num jornalzinho do bairro de Copacabana chamado “O Beira-Mar”. Em 1924, Schmidt ficou desempregado e começou a freqüentar os cafés do centro da cidade. Se torna amigo de grandes medalhões da época e de jovens talentos que ainda iriam despontar em suas carreiras no futuro. É um período marcado por leitura ávida e intensa. Através de suas novas amizades, Schmidt arranjou um emprego como caixeiro-viajante em São Paulo. Em São Paulo, o futuro poeta conheceu a nova geração de artistas e intelectuais que integravam a famosa Semana de Arte Moderna de 1922, entre eles: Mário e Oswald de Andrade. Schmidt e Plínio Salgado se tornaram grandes amigos, apesar de muitas diferenças ideológicas. Em 1928 Schmidt retornou ao Rio de Janeiro, empregado como gerente de uma serralheria em Nova Iguaçú. Neste ano, ele também lançaria seu primeiro livro de poesias: Canto do Brasileiro Augusto Frederico Schmidt. Foi o início de uma longa carreira como poeta. Em 1930, Schmidt se tornou um editor: financiado por amigos, ele fundou a Schmidt Editora. A Schmidt Editora foi a responsável pelo lançamento de alguns dos maiores nomes da literatura brasileira, entre eles: Vinícius de Moraes (Caminho para a distância), Graciliano Ramos (Caetés), Gilberto Freyre (Casa Grande & Senzala), Rachel de Queiroz (João Miguel), Marques Rebelo (Oscarina), Jorge Amado (O país do Carnaval), Octávio de Faria (Maquiavel e o Brasil), Lúcio Cardoso (Maleita), Hamilton Nogueira, entre outros. Schmidt igualmente ajudou a firmar, no panorama literário, alguns autores já iniciados na edição, como Leonel Franca (Ensino religioso e ensino leigo e Catolicismo e Protestantismo), Alceu Amoroso Lima (Problema da burguesia, Preparação à Sociologia, Debates pedagógicos e Estudos, 4ª série) e Virgílio de Melo Franco (Outubro de 1930). Infelizmente, a Schmidt Editora durou pouco mais de três anos. Em 1934, Schmidt fundaria, junto com Luiz Aranha, sua primeira empresa de sucesso: a Metrópole Seguros. Daí pra frente, Schmidt só cresceria nas mais diversas áreas comerciais e industriais, que iam dos pneumáticos à aviação civil, do processamento de materiais radioativos ao setor da alimentação. Schmidt se casou com Yêdda Ovalle Lemos em 1936, no Mosteiro de São Bento, Rio de Janeiro. Nunca tiveram filhos. No ano seguinte, iniciou uma longa e fecunda carreira como cronista do jornal Correio da Manhã, de Paulo e Niomar Bittencourt. Alguns anos depois, também começaria a escrever artigos para o jornal O Globo. Na década de 50, Schmidt abre o primeiro supermercado do Rio de Janeiro: o DISCO, inaugurado em 1952 em Copacabana. Schmidt foi ghost-writer do ex-presidente Juscelino Kubitschek, ainda durante sua campanha para presidente. Eleito Juscelino, Schmidt ajudou a elaborar a Operação Pan-Americana, um primeiro plano de ajuda ao desenvolvimento da América Latina. Da OPA nasceria o BIRD (Banco Interamericano de Desenvolvimento) e, algumas décadas depois, o Mercosul. Schmidt morreu aos 08 de fevereiro de 1965, vítima de um ataque cardíaco. Ao morrer, já havia publicado mais de trinta livros, entre prosa e poesia, além de milhares de artigos espalhados em diversos jornais e revistas da época. Por ocasião de seu falecimento, Schmidt era membro Jockey Club e Sociedade Hípica Brasileira, do clube Botafogo de Futebol e Regatas; da Associação Felipe D`Oliveira; era Presidente da Câmara de Comércio Brasil Israel. Também era sócio de inúmeras empresas, entre elas: S.A. 147 Brasil-Canadá Com. e Imp. de Produtos Americanos, Sociedade de Expansão Comercial S.A., Ind. Soc. Anônima, Meridional Cia de Seguros de Acidentes do Trabalho, além de estar ligado à Orquima, Disco, Cia. Colonizadora Brasileira, Linho São Borja S.A., Berco Indústria Química Mineral, Rilsan Brasileira, Manufatura Nacional de Plástico e Comércio de Materiais de Construção – COMACO. Conheça a vida desse Brasilleiro Ghost-writer preferido do Presidente Juscelino Kubitschek, Schmidt foi o grande idealizador da Operação Pan-Americana. Se em poesia Schmidt era prolixo, volumoso, em se tratando de política ele não perdoava: estava sempre atento ao cenário do Brasil e do mundo, e denunciava continuamente em suas colunas nos jornais, as atitudes de políticos que ‘sabotavam’ o próprio país.... Conheça as poesias “Compreensão Eu te direi as grandes palavras As que parecem sopradas de cima. Eu te direi as grandes palavras, As que se conjugam com as grandes verdades, E saem do sentimento mais fundo Como os animais marinhos das águas lúcidas. Eu te direi a minha compreensão do teu ser, E sentirei que te transfiguras a ti mesmo revelada, E sentirei que te libertei da solidão Porque desci ao teu ser múltiplo e sensível. Quero descer até as tuas regiões mais desconhecidas Porque és minha Pátria, As tuas paisagens são as da minha saudade. Quero descer ao teu coração como se descesse ao mar, E é azul Como este céu cortado de aves, Como este céu limpo e mais fundo que o mar. As tuas manhãs acordadas pelos galos. Quero ver a tua tarde banhada de róseo como nuvens frágeis tangidas pelos ventos. Quero assistir à tua noite e ao sacrifício dos teus martírios Oh!, estrela, oh! música Oh! tempo, espaço meu!” Fragmentos do Galo Branco Quando se fazia noite, eu ia jantar numa casa de pasto perto da estação. Deixava na serraria apenas o velho vigia. Uma vez ou outra, ia espairecer no único cinema de Nova Iguaçu. Lembro-me de que foi nesse pobre e humilde cinema mambembe, com seus bancos de pinho, que vi um filme de amor que me pareceu maravilhoso. Não me lembro dos nomes dos atores que figuraram nessa comovente história, contada com tocante simplicidade. Até hoje – já lá se vão tantos anos, bem mais de trinta, pelo menos – não me esqueci do enredo. Tratava-se de um rapaz tímido, uma espécie de gigante com alma de criança, que não tivera coragem de declarar-se à mulher do seu amor e acabara perdendo-a para um amigo mais resoluto, menos perplexo. O herói do filme assiste ao casamento de sua amada, segue-lhe a vida, vê nascerem os filhos do amigo, sempre guardando o segredo de seu amor. Esse filme, envolto numa sombra de melancolia, com a marca pungente dos destinos partidos, exerceu em mim, naquele momento de solidão, de tristeza, de mocidade angustiada, uma influência decisiva. Já havia no meu ser – o que eu mesmo desconhecia, tanto que não lograva fixar as minhas próprias fundações, calcular os meus pontos de resistência ou fragilidade – uma tendência para amores 148 impossíveis, irrealizados e irrealizáveis... O filme veio provocar ainda mais certas reações sempre mal definidas, aprofundar uma inclinação nostálgica e uma certa incapacidade de viver coisas que o mundo oferece com normalidade e simplicidade aos demais mortais. Via eu, nesse longínquo tempo da primeira juventude, os seres se encontrarem, se enraizarem uns nos outros, se amarem; mas tudo isso me parecia acima do que me era lícito esperar do mundo. Havia alguma coisa de tardonhamente romântico no meu ser. As raparigas que eu encontrava e desejava, logo se revestiam de inalcansável importância, transformavam-se em sonhos, em seres inatingíveis e intocáveis, ou passavam a representar o papel de mensageiras do impossível. Sabia eu que necessitava amar; ser amado, porém, não era o meu destino. Algumas vezes, no entanto, me surpreendia. É que a realidade me informava o contrário. Recebia mesmo demonstrações bastante positivas, provas que seriam suficientes para qualquer outro menos inseguro do que eu. Mas uma espécie de pessimismo sobre mim mesmo, e uma invencível desconfiança impediam-me de reconhecer a própria evidência. L., por exemplo, pousara sua magra e branca mão sobre as minhas durante um concerto de piano. Abandonara-me sua mão, tão apetecida pelo meu desejo adolescente, e eu ficara atônito e não compreendera, não quisera aceitar a minha imprevista felicidade. Que se passava comigo? O tempo corrigiu muitas coisas, adaptou-me melhor à própria fortuna do amor; mas estou retratando um momento distante e impreciso em que eu era assim mesmo. Mas, voltando a Nova Iguaçu e à serraria onde eu trabalhava, reencontrome, de novo, caminhando depois da sessão de cinema pela rua esburacada, atravessando a linha férrea e voltando ao escritório, onde se improvisava, todas as noites, um quarto de dormir para mim. Transformava, a mulher do vigia, um sofá em cama; estendia os lençóis, esquentava um copo de leite, dando-me no desamparo desses momentos ásperos uma sensação de conforto e de carinho. Foi nesse instante de minha vida que veio visitar-me um novo amor, logo por mim considerado impossível. Todas as manhãs, em frente à serraria, a caminho de uma obrigação cotidiana qualquer, passava uma jovem criatura. Teria, calculo hoje, seus dezesseis anos. Era mais gorda do que magra; morena e pálida. Portava quase sempre um gracioso chapéu-de-sol – que se chamava sombrinha – e trazia uns livros e rolos de papel que deviam ser textos de músicas. Depreendo que saía de casa para receber lições de piano. Seus cabelos lisos, negros e longos caíam-lhe pelos ombros. Era a filha de um político local que possuía, segundo me informaram, uma plantação em Queimados. Às dez horas da manhã ou pouco antes, já me encontrava eu na janela do escritório para ver passar aquela que, sem o saber, se tornara a meus olhos a encarnação do eterno feminino. Revejo-a bem. Não caminhava como as moças de hoje, que aprendem a andar bem nas escolas de charme, que conhecem os movimentos e os ritmos que tanto impressionam os homens. A minha visão do amor era solene, lenta, soberana em sua marcha. Seus pés não pisavam nuvens, não se desviavam da rota; em volteios graciosos, apoiava-se ela fortemente no chão. Se pelo caminhar de uma pessoa podem-se descobrir os seus ritmos interiores, a sua maneira de ser, a minha rapariga de Nova Iguaçu deveria ser uma pessoa tranqüila, não temerosa do dia de amanhã, capaz de dirigir-se pela razão, uma mulher forte e decidida. Mas tudo isso era harmoniosamente combinado com uma espécie de encanto físico, que não se poderia chamar de beleza, mas que era misterioso encantamento. Essa sedução, esse enigmático dom de atrair alimentava o meu sonho. 149 O Cristo Autêntico Não haverá solução alguma, se mudarmos a estrutura social sem reformar e mudar a alma humana. E tudo o que desejou o Cristo foi mudar, reformar, esclarecer, iluminar, avivar a Caridade e o Amor no homem. Sem Ele não haverá nada de bom – e a pretexto de socorrer os necessitados e estabelecer o paraíso terrestre, cairemos todos no maior e mais longo cativeiro que a História registra até aqui. Como alguns jovens que me vieram visitar me perguntassem qual a solução para tantos e tão angustiosos problemas que nos perseguem, respondi-lhes que outra salvação não encontrara eu, senão a da volta de Jesus Cristo. Não vejo, não descubro, não encontro outra saída para a humanidade senão a que nos ofereceu Aquele que se confessou Filho de Deus. Estou afastado das práticas religiosas, sou um marginal da Igreja Católica, difícil se me vai tornando, com o correr dos tempos, compreender e aceitar certas afirmações, certas interpretações, certos aspectos da ortodoxia, mas a noção da grandeza do Cristo aumenta e me invade, cada vez mais e todos os dias. Naturalmente, sei que o mundo de hoje é um mar de desespero; que a vida humana se tornou uma aventura sem sentido; que, à medida que os seres, escravizados há séculos e séculos perdem a inocência e verificam que estão nus e que não há outro mundo, o desejo de punir os que os exploraram é imperioso e irresistível. Sei que tudo que amamos – e gira em torno do homem, de seu prazer, de sua dignidade, de sua liberdade de amar, de pensar e de agir – está ameaçado de perto; sei que as tiranias e as opressões voltaram com multiplicado conteúdo de força destruidora; sei que a dificuldade de crer não é mais o tormento de alguns espíritos indagadores mas o quinhão de todos; de tudo isto sei e de muito mais ainda. Mas sei também que a volta, o redescobrimento, a recuperação do Cristo seria o resgate do homem moderno. A idéia de que é necessário recuperar o Cristo é uma idéia mais revolucionária, mais eficaz, mais difícil de projetar na ação prática, do que tudo o que se faz na China do pesadelo ou na Cuba de Fidel Castro. Mas é luta maior ainda, mais exaustiva, mais dura do que mutilar o homem – esse trabalho de reconstruí-lo, de fazê-lo reconquistar a Esperança natural. A Esperança foi o legado que recebemos, para atravessar o tempo e enfrentar esta inacreditável aventura terrestre. Se tivermos Esperança, estaremos salvos. Se nos faltar Esperança, cairemos para sempre, não nos será possível permanecer de pé. Perdi eu próprio muitas esperanças; vi ruírem construções que se me afiguravam eternas; presenciei a ação do tempo tirar muitas máscaras e exibir as faces verdadeiras dos seres. O que é sempre terrível. Vi as coisas em que acreditava com maior ardência se transformarem em cinza, poeira e nada. E espíritos que alimentaram meu espírito, verifiquei que perdiam o poder de dizer-me fosse o que fosse. Vi a fraqueza de estruturas morais que me pareciam as mais firmes. Colhi desencantos; dei-me eu próprio para muitos desencantos alheios. O mundo que recebi ao tomar consciência das coisas perdeu-se, desfigurou-se, é uma outra coisa. Seres que me foram essenciais – sem os quais não podia eu viver – passaram a ser-me indiferentes, o que é pior do que tê-los como hostis. Tudo o que fui conheceu mudança. Mas o Cristo não. O Cristo – que representou para a minha infância um pequeno fantasma, para minha mocidade um símbolo – nesta hora de sombra em que vivo tornou-se uma presença. Sua palavra, eu a procuro como solução de dificuldades, como chave dos maiores enigmas. Sei que toda a crise do mundo resultou da deformação de Sua doutrina, do esquecimento do que Ele propõe como regra de conduta dos homens. Não vejo nenhuma possibilidade de qualquer salvação para o Ocidente sem o Cristo autêntico. Porque estou falando no Cristo autêntico e não n´Aquele que nos oferecem quase vinte séculos de 150 deformações, de falsificações, de devoções, de fantasias. Não creio em nenhuma forma de paraíso terrestre sem o Cristo... Sei que é importante que as fomes de tantos milhões de homens sejam saciadas, as doenças curadas e os corpos expostos ao frio aquecidos, que haja um mínimo de conforto para todos os homens. Mas não desconheço que não pode haver qualquer felicidade ou plenitude do homem, com a simples fundação de uma sociedade de consumidores e produtores. A própria condição humana reclama a Esperança. Uma humanidade sem Esperança é algo terrível. Se o Cristo não sobreviver, a raça humana será uma coisa irreconhecível. Poderão fartar-se, os grandes rebanhos, de seres frutos da inseminação artificial, todos com saúde perfeita. Mas não haverá mais este abismo que é o homem, com as surpresas boas e más que ele nos oferece. O Cristo é a chave do mundo moderno, é o fim do egoísmo e o advento da tão esperada justiça social. Neguem os que não têm forças para crer na Sua divindade, mas os poucos que contemplam o Cristo despido de falsas roupagens, os raros que O encontram tal como é, os que ouvem Sua voz, estes sabem que tudo o que vem d´Ele está certo, é a verdade, é o equilíbrio, é a medida do humano. Não há outro movimento a fazer senão responder com o Cristo, não só à heresia do nosso tempo como aos que se intitulam cristãos sem o serem, aos que O exibem como recurso defensivo e não sabem quem Ele é. 151 XII. Discurso do presidente Juscelino Kubitschek feito em Diamantina em 12 de abril de 1958 152 153 XIII. Texto sobre JK na Revista IstoÉ on line http://www.terra.com.br/istoe/biblioteca/brasileiro/seculo/indice.htm 1) Juscelino Kubitschek 21,1% dos votos Símbolo de uma era de democracia e prosperidade, JK foi o presidente que desenvolveu a indústria automobilística, multiplicou por 15 a produção nacional de petróleo, implantou as hidrelétricas de Furnas e de Três Marias e construiu Brasília" Três homens afoitos abriram espaço entre a multidão que cercava a comitiva do candidato a presidente: "Há um médico entre os senhores? Fomos informados de que um dos políticos que passariam aqui hoje é doutor." Mal sabiam que ele era o ex-governador de Minas Gerais, Juscelino Kubitschek, em campanha pelo sertão nordestino. Uma mulher grávida de nove meses ia dar à luz em instantes. Os assessores alertaram para o risco de um sequestro. "Isso é bobagem", protestou JK, montando no cavalo e partindo mata adentro, acompanhado dos três desconhecidos. Ao final do caminho de terra, rapidamente ele tirou o paletó, arregaçou as mangas e colocou água para ferver. Pegou alguns panos e deu início ao trabalho de parto. Os gritos de dor da moça logo deram lugar ao choro do recém-nascido. O cordão umbilical foi rompido com uma tesoura velha desinfetada com cachaça. O pai não se continha em lágrimas. Aproximou-se do médico e quis saber quanto lhe devia. JK espiou os cantos da casa, encontrou um pedaço de papel e escreveu seu nome. "Você não me deve absolutamente nada. Mas, na eleição, não se esqueça de mim", despediu-se, sorridente. Três milhões de votos conduziram JK à Presidência da República. O País nunca viveu momento de tanta euforia quanto o período em que ele governou, entre fevereiro de 1956 e janeiro de 1961. No futebol, conquistaríamos o primeiro título mundial em 1958. A bossa nova daria status internacional à nossa música popular. Éder Jofre nocauteava os gigantes dos ringues e a tenista Maria Esther Bueno fazia bonito nas quadras de Wimbledon. O otimismo de JK jogava o País na trilha do desenvolvimento. A meta-síntese de um audacioso plano que prometia fazer o Brasil crescer 50 anos em cinco era a construção de uma nova capital federal. Uma primeira-dama atuante Ao chegar em casa após mais um dia clinicando, o médico Juscelino Kubitschek contou à esposa que recebera um convite para entrar na política. Dona Sarah passou a noite inteira chorando. Quando amanheceu, porém, ela enxugou as lágrimas e incentivou o marido a aceitar a chefia de gabinete do governo de Minas Gerais. Pensando bem, a política não era novidade para aquela moça de tradicional família mineira (era filha de deputado federal e prima de Francisco Negrão de Lima, que depois viria a ser governador da Guanabara). Sarah Gomes de Lemos foi seduzida por JK num baile e casou-se com ele em 1931. Com 154 personalidade própria, fundou a Organização das Pioneiras Sociais, entidade que abriu escolas e creches em Minas Gerais. Quando JK se tornou presidente, o projeto ganhou dimensão nacional e dona Sarah idealizou hospitais especia-lizados no Rio de Janeiro e em Brasília. Com a morte de Juscelino, ela lançou uma campanha para a construção do Memorial JK, em 1981. O projeto arquitetônico de Oscar Niemeyer incluía um monumento que causou rebuliço. Os militares queriam vetá-lo por achar que lembrava uma foice, "símbolo do comunismo". Dona Sarah não deu o braço a torcer. Inaugurou o Memorial - onde repousam os restos mortais de JK - da forma como fora projetado e lá trabalhou diariamente até morrer em 1996, aos 87 anos. "Ela nunca se contentou com o papel de primeiradama. Imagine uma mulher que, nos anos 50, se preocupava em construir um hospital para combater o câncer no útero", orgulha-se a filha Maria Estela. Pedra fundamental Durante quase quatro anos, caminhões rasgaram o cerrado transportando madeira e equipamentos para a cidade que se erguia. Pelo menos uma vez por semana, o próprio JK deixava o Palácio do Catete, no Rio de Janeiro, para inspecionar os trabalhos. "Era um mestre-deobras incansável percorrendo os canteiros, nos cumprimentando e perguntando sobre nossas famílias", disse a ISTOÉ o presidente da Vasp, Wagner Canhedo, que na época comandava frotas com mais de 300 caminhões com destino a Brasília. "Lembro-me do lançamento da pedra fundamental do Hotel Nacional. JK estava lá, de botas, comendo churrasco e tomando cerveja, abrindo plantas e croquis em cima dos capôs. Tratava os peões pelo nome." O andamento das obras não poupou JK de imprevistos. Um dos mais extravagantes, seguramente, ocorreu quando o presidente de Portugal, Craveiro Lopes, visitou a nova capital. Hospedado no Catetinho, alojamento que abrigava a família de JK, Craveiro Lopes confessou, antes de se deitar, ao colega brasileiro: "Só durmo com um penico perto da cama." Altas horas da noite, saíram os assessores de JK no meio do nada à procura do acessório. A marcha para o oeste do País encontrou forte resistência da UDN, principal partido de oposição, o que aumentou o alívio no dia 21 de abril de 1960, quando, enfim, JK inaugurou a nova capital. "Só vi meu pai chorar em duas ocasiões: a morte de familiares e a inauguração de Brasília", conta Maria Estela, filha adotiva de JK. O pressentimento de que chegava ao mundo o executor de uma grande obra contagiou os moradores das margens do rio Piruruca. Era o dia 12 de setembro de 1902 em Diamantina, no norte de Minas Gerais, e o nascimento do filho do espalhafatoso João César foi motivo de festa entre os vizinhos. Ex-delegado de polícia e caixeiro-viajante, seu João redigiu uma carta para um primo de outra localidade mineira: "Zino, nasceu ontem o futuro presidente do Brasil. O nome dele é Juscelino Kubitschek de Oliveira." Bisneto de um imigrante tcheco, aos dois anos o menino Nonô perdeu o pai, vítima de tuberculose. As primeiras letras ele tomou com a mãe, dona Júlia, heroína que caminhava sete quilômetros todas as manhãs para dar aulas na escola primária do município vizinho. "Mestra Júlia tinha a majestade de uma rainha e a integridade de um juiz: firme, segura, mas muito brava", afirma o coronel Affonso Heliodoro dos Santos, 83 anos, um de seus alunos - mais tarde, ele seria chefe da Casa Militar de Minas Gerais e subchefe do Gabinete Civil da Presidência de JK. Trem-hospital A educação rígida veio dos tempos de seminário em Diamantina. A dura rotina de levantar às cinco horas da manhã, vestir a batina e estudar o dia inteiro acabou aos 15 anos. Ficou a fé inabalável, mas também a certeza da falta de vocação para o sacerdócio. Preferiu seguir para a capital mineira, onde os Correios haviam aberto concurso para telegrafista. Trabalhou durante oito anos numa agência de Belo Horizonte, até terminar a Faculdade de Medicina, em 1927. Ao abrir um consultório e casar-se com Sarah, mulher de família tradicional, já poderia se considerar um vitorioso. Mas aí estourou a Revolução Constitucionalista de 1932. Para conter o avanço dos paulistas, o governo mineiro deslocou tropas estaduais para a região divisória. Capitão-médico da Polícia Militar, o doutor Juscelino usou um vagão de trem como prontosocorro no front de batalha. No meio do tiroteio, conheceu um delegado de polícia local, Benedito Valadares, que no ano seguinte se tornaria interventor federal no Estado. Impressionado com a dedicação do amigo, Valadares o chamou para trabalhar como chefe de 155 gabinete. A carreira política teve uma ascensão meteórica. Em 1934, JK se elegeu deputado federal com o apoio maciço dos antigos pacientes. Em 1940, foi nomeado prefeito de Belo Horizonte. Bastaria ter asfaltado as ruas da periferia e ampliado a rede de esgoto para ganhar a fama de modernizador, mas ele fez questão de construir o complexo da Pampulha. É verdade que suscitou indignação na Igreja Católica ao convidar o comunista Oscar Niemeyer para elaborar o projeto arquitetônico. Para piorar, ainda comprou do marxista Candido Portinari os afrescos que decoram a igreja São Francisco. Mas, com a popularidade em alta, depois de eleger-se deputado federal, em 1945, tornou-se cinco anos depois governador de Minas Gerais pelo PSD (Partido Social Democrata), que ajudara a fundar. O estilo conciliador já se fazia notar nas pequenas discussões. Apesar de gostar de futebol, mantinha-se afastado das brigas apaixonadas entre torcedores. A bem da verdade, guardava imenso carinho pelo Cruzeiro, clube que batizou seu estádio com o nome de JK. Em contrapartida, era conselheiro do arquiinimigo Atlético Mineiro. Juscelinista de corpo e alma Uma legião de fãs cultua até hoje a memória de JK. O admirador mais devotado, com certeza, é o paulista Antoninho Rapassi, 58 anos. Dono de um hotel em Americana (município a 127 quilômetros de São Paulo), Rapassi não oferece apenas comida caseira e um ambiente aconchegante a seus hóspedes. Ex-professor de História, ele se entusiasma ao falar sobre JK e dá verdadeiras aulas aos turistas, relembrando o período em que o País vivia de bem com a vida. Os sinais de admiração são evidentes. Pelos corredores do hotel, fotos contam a trajetória política do expresidente. No restaurante, até as xícaras de café e os rótulos das garrafas de vinho reproduzem frases de JK. O primeiro contato de Rapassi com o ídolo ocorreu em 1955, quando o então candidato a presidente discursou numa cidade próxima a Americana. "O comício não me despertou muito", desconversa Antoninho, na época estudante. Mas o programa desenvolvimentista do governo JK ganhou a admiração do rapaz. Serviu até para inspirar as promessas de Antoninho em sua campanha para comandar o grêmio estudantil da escola. "Eu ganhava votos defendendo idéias juscelinistas", orgulha-se. 156 Pé-de-valsa Em 1960, ele viu JK pela segunda "Ele nunca se definiu, mas sempre achei que seu vez. "Depois de um comício, coração pendia mais para o Cruzeiro", entrega o Juscelino saiu percorrendo a cidade ex-secretário particular Serafim Jardim, atual presidente da Casa de Juscelino em Diamantina. de carro. Como não havia segurança, Certo mesmo é que, sem pendores para muitos pulei no Cadillac presidencial. exercícios físicos, cansava-se só em olhar um Enquanto Juscelino saudava o povo, grupo de marmanjos correndo atrás da bola. "Seu eu fiquei abraçado à barriga dele. Foi esporte era a dança. Se estivéssemos num a glória." A partir daí, Antoninho restaurante com música, pedia para o garçom afastar a mesa e exercia o talento de pé-de-valsa", passou a colecionar filmes, livros, lembra Jardim. jornais e revistas sobre JK. O acervo No governo de Minas Gerais, o desenvolvimento do não parou de crescer. Comemora todo binômio energia e transportes não se resumiu a o ano o aniversário de nascimento de mera promessa de campanha. JK intensificou a JK no dia 12 de setembro. Aproveita industrialização no Estado, criou a Cemig empresa de produção e distribuição de energia para incrementar uma Semana JK em elétrica - e rasgou as montanhas com três mil Americana, expondo seu acervo e quilômetros de novas rodovias. "Feliz é o JK que dando palestras. A paixão é tão avoa (sic)", era o slogan nos pára-choques dos avassaladora que, quando estava para caminhões mineiros, em referência à abertura de aeroportos capazes de receber -aviões de pequeno nascer seu primeiro filho, Antoninho porte. Os caciques pessedistas logo perceberam trocou de emprego e levou a esposa sua capacidade de transformar eficiência às pressas para Brasília. Ela deu à luz administrativa em votos. JK surgiu como candidato três dias depois. "Tenho orgulho de natural à Presidência da República, em outubro de dizer que o menino é brasiliense, mas 1955. não quis batizá-lo como Juscelino. Ninguém duvidava, entretanto, que o cargo seria disputado voto a voto. A preocupação com o Porque isso seria fanatismo demais", resultado levou a sogra de JK, dona Luísa, a diz Antoninho. Ah, bom. levantar-se do leito pela última vez. Muito -doente, ela fez questão de depositar seu voto nas urnas. Por isso, recebeu um puxão de orelha de JK, mas respondeu: "Sou sua sogra, não sou? Portanto, não fiz mais do que o meu dever." A vitória foi apertada. JK recebeu 36% dos votos, contra 30% do udenista Juarez Távora e 26% de Adhemar de Barros. A pouca diferença era o argumento perfeito para a UDN tentar impedir a posse. Liderado pelo jornalista Carlos Lacerda, o partido afirmava que JK precisaria ter maioria absoluta para assumir. Foi preciso a intervenção do marechal Henrique Teixeira Lott, ministro da Guerra, para derrubar o presidente interino Carlos Luz, aliado dos golpistas, no dia 11 de novembro - o episódio ficou conhecido como "novembrada". Índios armados Quando, enfim, conseguiu tomar posse, em fevereiro de 1956, JK enfrentou um novo foco de resistência. Eram setores reacionários da Aeronáutica que sequestraram aviões e partiram em direção a Jacareacanga, no sul do Pará. Lá, aproximadamente 20 oficiais arregimentaram alguns civis descontentes e um punhado de índios armados com arcos e flechas. A maioria dos militares reprovava a ação, mas se recusava a lutar contra os colegas. A solução para o impasse se deu após 18 dias, com a rendição dos rebeldes. Para mostrar que o País realmente viveria ares de democracia em seu governo, um dos primeiros gestos de JK no Palácio do Catete foi conceder anistia ampla e irrestrita a todos os golpistas. O fim das intrigas estava longe de significar sossego. Pelo contrário, havia muito a fazer. O presidente frequentemente passava mais de 15 horas por dia trabalhando. O Plano de Metas dividido em energia, transportes, alimentação, indústrias de base e educação - transformou o País num canteiro de obras. JK ergueu as hidrelétricas de Furnas e Três Marias, implantou a indústria automobilística, construiu 20 mil quilômetros de rodovias e três mil de ferrovias. Também aumentou em 15 vezes a produção de petróleo e desenvolveu a siderurgia, com a cria-ção da Cosipa e da Usiminas. Isso sem falar em Brasília. "Antes de Juscelino importávamos caneta esferográfica; depois, exportávamos automóveis", exalta o coronel Affonso Heliodoro dos Santos, assessor mais próximo do presidente. Nos anos JK, o País cresceu 7% em média. O preço a pagar foram o aumento no custo de vida - a inflação chegou a 30% ao ano - e o endividamento externo, que os correligionários negam até hoje. "Quando 157 Juscelino assumiu, a dívida externa era de US$ 1,9 bilhão. Ao final do governo, estava em US$ 3,1 bilhões. Não houve crescimento tão grande como se alardeou", afirma Affonso. Em atitudes aparentemente contraditórias, JK ampliou a intervenção estatal na economia, ao mesmo tempo que estimulou como nunca o investimento privado. Abriu as portas ao capital estrangeiro, mas rompeu com o Fundo Monetário Internacional - que pedia contenção de gastos com o programa de desenvolvimento. No exercício do poder, não perdeu a simplicidade de bom mineiro. A primeira tarefa do dia, por exemplo, era um telefonema à mãe. Fazia uma sesta de 15 a 20 minutos depois do almoço. Fechava as cortinas do Palácio das Laranjeiras, residência oficial na antiga capital, Rio de Janeiro, e vestia o pijama. Acordava revigorado e pronto para encarar o resto do expediente. Hábitos caseiros Apreciava música caipira. Certa vez, dispensou os secretários e telefonou para a cantora Inezita Barroso. Pensando se tratar de um trote, Inezita JK era mulherengo incorrigível. A bateu o telefone estupidamente. JK teve de paixão mais arrebatadora foi a da queimar saliva para convencê-la de que era ele cario-ca Maria Lúcia Pedroso - um mesmo. Queria simplesmente uma visita ao Catete romance clandestino de 18 anos, que para ouvir suas canções ao vivo. Era um estadista durou até a morte do presidente. que preservava hábitos caseiros e o convívio familiar. "A primeira coisa que fazia quando "Maria Lúcia era linda, apesar da chegava em casa era perguntar como estavam baixa estatura. Loiríssima, era minhas notas na escola", conta Maria Estela parecida com a atriz Kim Novak", Kubitschek. afirma João Pinheiro Neto, autor do Ao deixar o poder, em janeiro de 1961 - sem livro Juscelino, uma história de amor. conseguir eleger seu sucessor, o marechal Lott -, Casada com o médico e ex-deputado JK elegeu-se senador por Goiás e era apontado José Pedroso, Maria Lúcia conheceu como candidato natural a presidente em 1965. As pesquisas chegaram a apontar seu nome com JK em 1958, numa festa no Palácio quase 60% de preferência do eleitorado brasileiro. das Laranjeiras. "Posso lhe oferecer Já havia até material de campanha, com o lema um chá amanhã?", perguntou o "cinco anos de agricultura para 50 de fartura" quando veio o golpe militar em 31 de março de presidente. Ciumenta, a amante não 1964. Cassado dois meses depois, JK tomaria um escondia o desgosto com outros romances paralelos de JK. "Ou você avião com destino a Madri. No Aeroporto do Galeão, no Rio de Janeiro, ovacionado pela dissolve seu comitê feminino, ou multidão, que cantava o Hino Nacional, Juscelino nunca mais vai me ver", ameaçava. embarcou com dona Sarah e a população se dispersou. A aeronave já tomava velocidade para a Pinheiro Neto diz que JK estava disposto a se casar com Maria Lúcia - decolagem, mas repentinamente parou. Havia um temor generalizado de que fossem prendê-lo. Com que ainda mora no Rio - quando os nervos à flor da pele, Sarah passou às mãos do morreu em acidente na Via Dutra. marido uma pequena pistola: "Juscelino, toma isto. Se eles tocarem em você, faça uso da arma." Felizmente, o avião retornou apenas para pegar um passageiro que, por causa do tumulto, não havia conseguido embarcar. Foram três longos anos de exílio em Lisboa, Nova York e Paris. "É o castigo mais cruel imposto a um homem que só pensava no Brasil, só estudava o Brasil, só viajava pelo Brasil e em torno de si reunia uma equipe só para adorar o Brasil", diria ele mais tarde. Em Portugal, JK recebeu o convite para participar de um movimento de resistência ao regime autoritário. Era organizado por seu antigo desafeto, Carlos Lacerda, e chamava-se Frente Ampla. JK duvidou de que se tratasse de algo sério, mas aceitou almoçar com Lacerda. Para evitar maledicências do udenista, dona Sarah sutilmente colocou uma imagem de Nossa Senhora de Fátima embaixo da poltrona onde sentaria Lacerda. Os ânimos de fato se arrefeceram, mas a Frente Ampla - da qual também fazia parte o ex-presidente João Goulart - não vingou. Sedução e poder Modelo a ser imitado O charme da bandeira 158 desenvolvimentista ainda seduz os políticos brasileiros. "JK personificou a prosperidade e o sentimento de conciliação nacional. Acima de tudo, era um político que mantinha um astral elevado. Nenhum outro presidente encarnou estas qualidades no mesmo grau", afirma o cientista político Bolivar Lamonier. Entre os que poderiam ser apontados como sucessores de JK, Lamonier cita o presidente Fernando Henrique Cardoso. "FHC é de longe o que mais se assemelha a JK. É naturalmente uma pessoa de bom humor e faz tudo para relaxar a tensão", compara Lamonier, com a ressalva de que hoje o País não está emergindo para uma época de desenvolvimento, como na era JK. "Não é fácil repetir o script." FHC não é o único a querer tirar uma lasquinha do charme de JK. Em outros tempos, Orestes Quércia e Fernando Collor de Mello também se apresentaram ao eleitorado como herdeiros de JK. Quércia abraçou a imagem de tocador de obra, enquanto Collor quis ser um ícone da modernidade. "Collor não tem o bom humor de JK. Pelo contrário, ele tem um fígado shakespeariano", diz Lamonier. Quem não disfarça a vontade de se assemelhar a Juscelino é o presidente da Câmara Federal, Michel Temer (PMDB-SP). "Como ele, sou conciliador, não guardo rancor. Sou capaz de fazer sete ou oito reuniões até garantir o consenso", afirma Temer, que conheceu JK no tempo em que era estudante da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, em São Paulo. Em 1960, tinha 18 anos quando sua turma escolheu JK como paraninfo. O presidente não pôde comparecer à formatura, mas, ao fazer uma escala em São Paulo, indo para o Sul, mandou o pessoal se deslocar até o aeroporto de Congonhas. "Aí, 159 Chapéu de palha entramos no avião e ele fez questão Em 1967, JK voltou ao Brasil. Por ocasião do AI-5, de assinar nossos diplomas. Nunca passou um mês em prisão domiciliar. Afastado da esqueci seu rosto sorridente", lembra vida pública e dando palestras para executivos de bancos, comprou uma fazenda em Luziânia (GO) Temer. com o único pretexto de poder passar os fins de semana perto de Brasília, onde havia uma "pressão branca" dos militares para que não botasse os pés. Depois de muitos anos, JK não resistiu e se disfarçou com um chapéu de palha. Certa noite, chamou um caminhoneiro e subiu na boléia. Chorou ao ver de longe a capital com as luzes acesas. "Papai gostava de ensinar os netos a tirar leite de vaca na fazenda", recorda Maria Estela. E estava justamente em Luziânia quando, a 7 de agosto de 1976, os repórteres o procuraram para saber se era mesmo boato a notícia de que ele morrera na Via Dutra. "Estão querendo me matar, mas ainda não conseguiram", comentou com amigos. No dia 22 de agosto de 1976, JK morreu num acidente de carro, exatamente na Via Dutra. O Opala do presidente, guiado pelo motorista Geraldo Ribeiro, seguia de São Paulo para o Rio de Janeiro quando foi atingido por um ônibus, passou para a outra pista e bateu de frente num caminhão carregado de gesso. Não faltam teses conspiratórias para explicar o que o inquérito policial apontou como simples desastre. Há quem diga que havia explosivos no automóvel. Outros apostam que um tiro disparado por ocupantes de um veículo não-identificado acertou o motorista Geraldo, que perdeu o controle do Opala. "A versão oficial é uma grande montagem", acusa o perito criminal Alberto Carlos de Minas. Em 1996, ele foi um dos responsáveis pela reabertura do caso. As investigações não avançaram e o inquérito, após 20 anos, acabou prescrevendo. No entanto, Alberto Carlos e Serafim Jardim - presidente da Casa de Juscelino em Diamantina - ainda hoje se dizem convictos de que JK foi morto por ordem dos militares no poder. Os indícios são muitos, de acordo com a tese conspiratória. Em agosto de 1976, o diretor do serviço secreto chileno, Manuel Contreras Sepúlveda, enviou carta ao general João Baptista Figueiredo, então chefe do Serviço Nacional de Informações, dizendo-se preocupado com o possível triunfo do Partido Democrata nas eleições americanas. "Temos conhecimento do reiterado apoio dos democratas a Kubitschek e Letelier." Orlando Letelier, ministro do presidente chileno deposto, Salvador Allende, morreria num atentado em Washington, pouco antes da morte de JK. As fotos dos cadáveres de JK e do motorista simplesmente não foram anexadas ao inquérito. O caixão com o corpo do motorista foi lacrado, sem que se pudesse checar se ele levou um tiro na cabeça, como especulam os juscelinistas. Em 1996, o corpo foi exumado. "Pode ter sido imaginação minha, já que estava eufórico demais. Mas vi um orifício no crânio de Geraldo. Dias depois, os legistas responsáveis pelo laudo avisaram que o crânio se fragmentara, algo incomum com o manuseio de profissionais", afirma o perito Alberto Carlos de Minas. O mistério contribui ainda mais para perpetuar o mito Juscelino Kubitschek. VOCÊ SABIA? Quiseram saber o segredo da assombrosa capacidade de JK para se lembrar de nomes. "É simples: você dá um abraço no sujeito e pergunta baixinho como se chama. Aí repete alto: olá, fulano, como vai?" VOCÊ SABIA? Quebrou o dedinho do pé ao bater na porta do armário. Usava só sapato sem cadarço - mais fácil de tirar nas reuniões e se livrar da dor crônica. VOCÊ SABIA? O avião que o levava sofreu uma pane e o piloto quis pousar em Brasília. Os militares avisaram: "Se JK estiver no bimotor, negamos." XIV. Biografia de Oswaldo Aranha 160 http://www.unificado.com.br/calendario/10/oswaldo_aranha.htm Breve biografia de Oswaldo Aranha Oswaldo Aranha ajudou a articular a Revolução de 30 Osvaldo Euclides de Sousa Aranha nasceu em Alegrete (RS) no dia 15 de fevereiro de 1894, filho do coronel Euclides de Sousa Aranha e de Luísa de Freitas Vale Aranha, proprietários da estância Alto Uruguai no município gaúcho de Itaqui. Segundo entre os 11 filhos do casal, descendia diretamente, pelo lado paterno, de Maria Luzia de Sousa Aranha, baronesa de Campinas (da região paulista que hoje corresponde à cidade do mesmo nome), cujo marido foi um dos responsáveis pelo início do plantio de café na província de São Paulo. Seu pai, paulista de nascimento, exercia a chefia do Partido Republicano Rio-Grandense (PRR) em Itaqui. Na família de sua mãe, dedicada tradicionalmente à política em Alegrete, destacou-se Luís de Freitas Vale, barão de lbirocaí. Após concluir o ensino secundário, fez amizade com Virgílio de Melo Franco, que alcançaria projeção política com a Revolução de 1930, e com Rubens Antunes Maciel, que o apresentaria a Luís Carlos Prestes, revolucionário de 1924 e mais tarde líder comunista. Estreitou também amizade nesse período com José Antônio Flores da Cunha, que viria a exercer o governo do Rio Grande do Sul. Freqüentou a Faculdade de Direito, aproximou-se de colegas que na política gaúcha se ligavam às oposições, embora seu pai fosse um republicano. Manteve também intensa atividade política contra o governo federal, especialmente contra o presidente da República, marechal Hermes da Fonseca, apoiado pelo chefe do PRR e presidente do Rio Grande do Sul, Antônio Augusto Borges de Medeiros, e contra o líder situacionista José Gomes Pinheiro Machado, senador pelo Rio Grande do Sul. Em princípios de 1917 instalou sua banca de advogado em Uruguaiana. Entre 1917 e 1923 dedicou-se quase exclusivamente à advocacia, obtendo em pouco tempo alto conceito profissional. Já em meados de 1917 o também advogado Getúlio Vargas, que se formara em 1907, fazia-lhe consultas sobre assuntos jurídicos, prática que se tornaria cada vez mais freqüente entre ambos, que chegariam inclusive a ter clientes em comum. Pouco depois de haver fixado residência em Uruguaiana, casou-se, em meados de junho, com Delminda Benvinda Gudolle, de quem teve quatro filhos: Euclides, Osvaldo, Delminda e Luísa. Teve participação ativa da Revolução de 24, de onde saiu prestigiado e politicamente fortalecido. Com a eleição de Vargas, em novembro de 1927, para a presidência do Rio Grande do Sul, Aranha foi convidado para ocupar a Secretaria do Interior e Justiça do estado. 161 Foi um dos principais articuladores da Revolução de 30, que começou em Porto Alegre precisamente às 17:30h do dia 3 de outubro, chefiando junto a Flores da Cunha o ataque aos quartéis da rua da Praia, sedes dos comandos do Exército e da Região Militar. Em 11 de outubro de 1930, Getúlio Vargas passou o poder do estado para Osvaldo Aranha, antes de rumar para Ponta Grossa (PR), onde estabeleceria seu quartel-general e assumiria o comando das forças revolucionárias em marcha para a capital da República. Além disso, tornou-se Ministro da Justiça do Governo Provisório e da Fazenda, em 1931. Criou o "Esquema Aranha" destinado a evitar o aumento da dívida externa e que possibilitou uma redução real da dívida. Durante os quatro anos do esquema, o país pagou 33,6 milhões de libras, quando deveria ter pago 90,7 milhões de libras, o que proporcionou um ganho real, considerada a redução real dos pagamentos de juros e o adiamento dos pagamentos dos fundos de amortização, de 57,1 milhões de libras. Foi embaixador em Washington entre 1933 e 1937, e Ministro das Relações Exteriores em 1938. Já em 1947, teve participação destacada na Organização das Nações Unidas para a criação do Estado de Israel. Em 1953, a convite de Getúlio Vargas voltou ao Ministério da Fazenda, onde criou o "Plano Aranha". Essencialmente antiinflacionário, o plano tinha por linhas básicas a reorganização do próprio Ministério da Fazenda de modo a agilizar o mecanismo fazendário e fiscal, a adoção de uma política orçamentária, a necessidade de codificação do direito tributário e a lei orgânica do crédito público. Após o suicídio de Vargas, em agosto de 1954, afastou-se da vida pública, retornando ao seu escritório de advocacia. Em 1956, já sob o governo Kubitschek, Aranha foi convidado a participar da delegação brasileira na ONU, mas recusou. No ano seguinte, porém, aceitou o novo convite que lhe fora feito nesse sentido, sendo nomeado, a 6 de setembro, chefe da delegação brasileira na XII Assembléia Geral das Nações Unidas. Em 1958 seu nome foi cogitado para concorrer ao Senado, tanto pelo Distrito Federal quanto pelo Rio Grande do Sul. Dois anos mais tarde concorreria à vice-presidência da República na chapa encabeçada pelo general Henrique Teixeira Lott, o que não ocorreu devido ao seu falecimento, em 27 de janeiro de 1960. Fontes: Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil - CPDOC Planeta.terra.com XV. Artigo de Luis Nassif sobre Augusto Frederico Schmidt 162 http://www.lainsignia.org/2006/febrero/ibe_061.htm Brasil O escriba do presidente Luís Nassif La Insignia. Brasil, fevereiro de 2006. O velho escritor mora em um apartamento em uma rua pequena de Botafogo. Escreve no computador, fuça na Internet, mas não recebe nem manda e-mails. Mantém os mesmos termos e o mesmo sotaque mineiro, que ajudaram a consagrá-lo como grande escritor. E mantém muitas lembranças de Juscelino Kubistcheck, com quem foi trabalhar, ele ainda governador de Minas, por ser escritor e taquígrafo. Autran Dourado não foi o único escritor a cercar um presidente que adorava escritores. Eleito governador do estado, JK chamou Cristiano Martins (tradutor do Dante e Wilke) e pediu: -Cristiano, preciso de um taquígrafo que seja ao mesmo tempo um escritor. -Única pessoa com esse perfil é o Autran Dourado. O Chefe da Casa Civil era Ciro dos Anjos, tinha também Alphonsus Guimarães Filho. Depois que se tornou presidente, a equipe de JK tinha Álvaro Lins, Chefe da Casa Civil, Cristiano Martins, Secretário Particular, Ciro dos Anjos, Sub-Chefe da Casa Civil, assim como Josué Montello. Juscelino era culto? E Autran, com a perspicácia típica dos mineiros: "Ele não exagerava". Estudou medicina na França, fez um curso de extensão, por isso falava o francês com facilidade. Quando se tornou presidente passou a estudar inglês, para evitar muito intérprete nas conversas com os visitantes estrangeiros. Autran confirma que o Plano de Metas começou a ser escrito depois de JK eleito. No curto espaço de tempo entre a eleição e a posse, Roberto Campos e Lucas Lopes mandaram ver. Campos já tinha as idéias da cabeça; Lucas Lopes, a metodologia de projetos que trouxera da Cemig e aperfeiçoara na Consultec. O plano mesmo foi de Roberto Campos, conta Autran. Lucas e JK ficaram com a execução. A grande eminência parda do governo JK foi o poeta e empresário Augusto Frederico Schmidt. Autran sentia que JK tinha medo do brilho do Schmidt. Os melhores discursos de JK eram preparados por Schmidt, mas passavam pelo crivo de Autran, incumbido de lhes conferir uniformidade e extirpar algum exagero retórico ou algum contrabando não combinado. Nessa atividade, Autran começou como oficial de gabinete e terminou como Secretário de Imprensa de JK e testemunhou um episódio relevante. Schmidt era um liberal radical. Assim que JK assumiu, recebeu em visita John Foster Dulles, homem forte de IKE, truculento como um pitbull. Na conversa, queria de toda forma convencer JK a fazer uma declaração anti-comunista. Na prática, significaria esfacelar a Operação Panamericana -uma tentativa de criar uma política externa única no continente, criação de Schmidt. Na época, Schmidt constituiu um grupo, à margem do Itamaraty, composto por pessoas como Araújo Castro, Celso Souza e Silva, João Rio Branco, e Autran Dourado. 163 Com a resistência de JK, Dulles achou melhor que o próprio IKE visitasse o Brasil, para prevenir eventuais crises com os EUA. Na conversa, IKE propôs uma espécie de Plano Marshall para o continente, mas com uma condição: os EUA não emprestariam um tostão para investimento em empresas estatais. A negativa tinha endereço certo: a Petrobrás, ainda em processo de consolidação. Coube a Schmidt reagir contra a imposição. Logo ele que já havia assinado vários artigos contra a Petrobrás. Quando Autran saiu da sala de reunião, onde se encontravam JK e IKE, e comunicou a Schmidt a imposição norte-americana, a resposta foi fulminante: -Fala para o Juscelino que se ele assinar esse acordo pego o boné e vou embora. Autran considerava Schmidt um injustiçado, acusado de se aproveitar das relações do governo para turbinar seus negócios. O poeta-empresário, na verdade, ganhou grande poder de fogo com sua influência sobre a Cexim (a Cacex da época), órgão incumbido de emitir licenças de importação. Graças a esse poder, conseguiu se tornar sócio de uma dezena de empresas, junto com Lulu Aranha, irmão de Oswaldo Aranha - a quem acusavam de estar por trás dos negócios. Provavelmente não. Coube ao próprio Aranha acabar com o poder da Cexim, ao criar o sistema de leilão de câmbio. De qualquer modo, todo dinheiro acumulado por Lulu e Schmidt tiveram uma grande destinação social: o glorioso Clube de Regatas Botafogo. 164 XVI. Artigo sobre Teoria dos Atos de Fala http://www.filologia.org.br/viiifelin/41.htm Círculo Fluminense de Estudos Filológicos e Lingüísticos (CiFEFiL) TEORIA DOS ATOS DE FALA Gustavo Adolfo da Silva (UERJ– UGF) Introdução No Gênesis, vê-se que a linguagem é um atributo da divindade, pois o criador dela se vale quando realiza sua obra. Deus cria o mundo falando. No início, não havia nada. Depois, há o caos: No princípio, criou Deus o céu e a terra. A terra, contudo, estava vazia e vaga e as trevas cobriam o abismo e o Espírito de Deus pairava sobre as águas (1,1,2). A passagem do caos à ordem (=cosmo) faz-se por meio de um ato de linguagem. É esta que dá sentido ao mundo. O poder criador da divindade é exercido pela linguagem, que tem, no mito, um poder ilocucional, já que nela e por ela se ordena o mundo: Deus disse: “Faça-se a luz”. E a luz foi feita. E viu Deus que a luz era boa: e separou a luz e as trevas. Deus chamou à luz dia e às trevas, noite; fez-se uma tarde e uma manhã, primeiro dia (1.3,5). Ao mesmo tempo que faz as coisas, Deus denomina-as. No universo mítico, dar nome é criar. Até o quinto dia, o senhor vai criando lingüisticamente o mundo. A expulsão do paraíso foi a colocação do homem na História. No âmbito da linguagem, o que pertence à ordem da História é o discurso. Colocar o homem na História é enunciá-lo. Dentro desta visão performativa da linguagem, é que nos propomos, num esforço de síntese, a acompanhar a evolução do pensamento de Austin. A TEORIA DOS ATOS DE FALA A Teoria dos Atos de Fala surgiu no interior da Filosofia da Linguagem, no início dos anos sessenta, tendo sido, posteriormente apropriada pela Pragmática. Filósofos da Escola Analítica de Oxford, tendo como pioneiro o inglês John Langshaw Austin (1911-1960), seguido por John Searle e outros, entendiam a linguagem como uma forma de ação ("todo dizer é um fazer"). Passaram, então, a refletir sobre os diversos tipos de ações humanas que se realizam através da linguagem: os "atos de fala", (em inglês, "Speech acts"). A Teoria dos Atos de Fala tem por base doze conferências proferidas por Austin na Universidade de Harvard, EUA, em 1955, e publicadas postumamente, em 1962, no livro How to do Things with words. 0 título da obra resume claramente a idéia principal defendida por Austin: dizer é transmitir informações, mas é também (e sobretudo) uma forma de agir sobre o interlocutor e sobre o mundo circundante. Até então, os lingüistas e os filósofos, de modo geral, pensavam que as afirmações serviam apenas para descrever um estado de coisas, e, portanto, eram verdadeiras ou falsas. Austin põe em xeque essa visão descritiva da língua, mostrando que certas afirmações não servem para descrever nada, mas sim para realizar ações. Inicialmente, Austin (1962) distinguiu dois tipos de enunciados: os constativos e os performa1ivos: • enunciados constativos são aqueles que descrevem ou relatam um estado de coisas, e que, por isso, se submetem ao critério de verificabilidade, isto é, podem ser rotulados de verdadeiros ou falsos. Na prática, são os enunciados comumente denominados de afirmações, descrições ou relatos, como Eu jogo futebol ; A Terra gira em torno do sol; A mosca caiu na sopa, etc.; 165 • enunciados performativos são enunciados que não descrevem, não relatam, nem constatam absolutamente nada, e, portanto, não se submetem ao critério de verificabilidade (não são falsos nem verdadeiros). Mais precisamente, são enunciados que, quando proferidos na primeira pessoa do singular do presente do indicativo, na forma afirmativa e na voz ativa, realizam uma ação (daí o termo performativo: o verbo inglês to perform significa realizar). Eis alguns exemplos: Eu te batizo em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo; Eu te condeno a dez meses de trabalho comunitário; Declaro aberta a sessão; Ordeno que você saia; Eu te perdôo. Tais enunciados, no exato momento em que são proferidos, realizam a ação denotada pelo verbo; não servem para descrever nada, mas sim para executar atos (ato de batizar, condenar, perdoar, abrir uma sessão, etc.). Nesse sentido, dizer algo é fazer algo. Com efeito, dizer, por exemplo, Declaro aberta a sessão não é informar sobre a abertura da sessão, é abrir a sessão. São os enunciados performativos que constituem o maior foco de interesse de Austin. É preciso observar, no entanto, que o simples fato de proferir um enunciado performativo não garante a sua realização. Para que um enunciado performativo seja bem-sucedido, ou seja, para que a ação por ele designada seja de fato realizada, é preciso, ainda, que as circunstâncias sejam adequadas. Um enunciado performativo pronunciado em circunstâncias inadequadas não é falso, mas sim nulo, sem efeito: ele simplesmente fracassa. Assim, por exemplo, se um faxineiro (e não o presidente da câmara) diz Declaro aberta a sessão, o performativo não se realiza (isto é, a sessão não se abre), porque o faxineiro não tem poder ou autoridade para abrir a sessão. 0 enunciado é, portanto, nulo, sem efeito (ou, nas palavras de Austin, "infeliz"). Aos critérios que precisam ser satisfeitos para que um enunciado performativo seja bem-sucedido, Austin denominou "condições de felicidade”. As principais são: . falante deve ter autoridade para executar o ato (como no exemplo do parágrafo anterior); . as circunstâncias em que as palavras são proferidas devem ser apropriadas (se o presidente da câmara declara aberta a sessão, sozinho, em sua casa, o performativo não se realiza, porque não está sendo enunciado nas circunstâncias apropriadas); Posteriormente, ao tentar fixar um critério gramatical para os enunciados performativos (inicialmente, o critério verbo na primeira pessoa do singular do presente do indicativo etc.), Austin esbarra em muitos problemas, pois constata, entre outras coisas, que: 1. nem todo enunciado performativo tem verbo na primeira pessoa do singular do presente do indicativo na forma afirmativa e na voz ativa. Eis alguns exemplos: Proibido fumar; Vocês estão autorizados a sair; Todos os funcionários estão convidados para a reunião de hoje. Nesses exemplos, os atos de proibição, autorização e convite se realizam sem o emprego de proíbo, autorizo e convido; 2. nem todo enunciado na primeira pessoa do singular do presente do indicativo na forma afirmativa e na voz ativa é performativo. Eis alguns exemplos: Eu jogo futebol; Eu corro; Eu estudo inglês. Nesses exemplos, os atos de jogar futebol, correr e estudar inglês não se realizam ao se enunciar tais sentenças. Apesar disso, Austin não abandona, logo de início, a idéia de encontrar um critério gramatical para definir os enunciados performativos, mas parece que acaba encontrando mais problemas do que soluções. Um deles é a constatação de que pode haver enunciados performativos sem nenhuma palavra relacionada ao ato que executam. É o caso, por exemplo, de enunciados como Curva perigosa e Virei amanhã, que podem equivaler, respectivamente, a Eu te advirto que a curva é perigosa e Eu prometo que virei amanhã. É o caso também dos imperativos, como Feche a porta, cuja performatividade pode ser explicitada em Eu ordeno que você feche a porta. Há, porém, uma diferença entre esses dois tipos de performativo: Eu ordeno que você saia é uma frase que tem uma indicação muito precisa do ato que realiza: trata-se de uma ordem e nada mais. Já Saia é vago ou ambíguo: pode ser uma ordem, um pedido, um conselho etc. Face a essa constatação, Austin passa a propor a distinção performativo explícito (para enunciados com performatividade explícita, como em Eu ordeno que você saia), em oposição a performativo implícito, ou primário (para enunciados sem performatividade explícita, como em Saia). 0 performativo primário seria uma espécie de forma reduzida do performativo explícito. A partir dessa distinção, Austin constata que a denominação performativo primário também se aplica aos enunciados constativos, e acaba admitindo que a distinção constativo-performativo se desfaz, já que é possível transformar qualquer enunciado constativo em performativo, bastando antecedê-lo de verbos como declarar, afirmar, dizer, etc. Por exemplo– [Eu afirmo que] A mosca caiu na sopa; [Eu digo que]vai chover; [Eu afirmo que]A terra é redonda, etc. 166 Ao concluir que todos os enunciados são performativos (porque, no momento em que são enunciados, realizam algum tipo de ação), Austin retoma o problema em novas bases, e identifica três atos simultâneos que se realizam em cada enunciado: o locucionário, o ilocucionário e o perlocucionário: Austin, então, postula que todo ato de fala é ao mesmo tempo locucionário, ilocucionário e perlocucionário. Assim, quando se enuncia a frase Eu prometo que estarei em casa hoje à noite, há o ato de enunciar cada elemento lingüístico que compõe a frase. É o ato locucionário. Paralelamente, no momento em que se enuncia essa frase, realiza-se o ato de promessa. É o ato ilocucionário: o ato que se realiza na linguagem. Quando se enuncia essa frase, o resultado pode ser de ameaça, de agrado ou de desagrado. Trata-se do ato perlocucionário: um ato que não se realiza na linguagem, mas pela linguagem. Todas essas noções são retomadas e sistematizadas por John Searle, primeiramente em Speech actos (1969) e depois em Expression and meaning (1979). Searle distingue cinco grandes categorias de atos de linguagem: 1. os representativos (mostram a crença do locutor quanto à verdade de uma proposição: afirmar, asseverar, dizer); 2. os diretivos (tentam levar o alocutário a fazer algo: ordenar, pedir, mandar); 3. os comissivos (comprometem o locutor com uma ação futura: prometer, garantir); 4. os expressivos (expressam sentimentos: desculpar, agradecer, dar boas vindas); 5. e os declarativos (produzem uma situação externa nova: batizar, demitir, condenar). Searle postula que, ao se comunicar uma frase, realizam-se um ato proposicional (que corresponde à referência e à predicação, isto é, ao conteúdo comunicado ) e um ato ilocucional (que corresponde ao ato que se realiza na linguagem). Assim, para Searle, enunciar uma sentença é executar um ato proposicional e um ato ilocucional. Searle chama a atenção ainda para o fato de que não há uma correspondência biunívoca entre conteúdo proposicional e força ilocutória, dado que um mesmo conteúdo proposicional pode exprimir diferentes valores ilocutórios. A proposição João, estude bastante, por exemplo, pode ter força ilocutória de ordem, pedido, conselho, etc. Essa falta de correspondência biunívoca entre a estrutura sintática dos enunciados (declarativa, interrogativa, imperativa, etc.) e o seu valor ilocucionário (de asserção, pergunta, ordem, pedido, etc.) levou a se estabelecer uma outra distinção no interior da Teoria dos Atos de Fala: a distinção entre atos de fala diretos e atos de fala indiretos: . um ato de fala é direto, quando realizado por meio de formas lingüísticas especializadas, isto é, típicas daquele tipo de ato. Há, por exemplo, uma entonação típica para perguntas; as formas imperativas são tipicamente usadas para dar ordens ou fazer pedidos; expressões como por favor, por gentileza, etc. são tipicamente usadas para fazer pedidos ou solicitações, etc. Eis alguns exemplos: Que horas são? (ato de perguntar); Saia daqui (ato de ordenar); Por favor, traga-me um copo d'água (ato de pedir); . um ato de fala é indireto (ou derivado), quando realizado indiretamente, isto é, por meio de formas lingüísticas típicas de outro tipo de ato. Nesse sentido, "dizer é fazer uma coisa sob a aparência de outra" . Eis alguns exemplos: .Você tem um cigarro? (pedido com aparência de pergunta) Quem enuncia essa frase não está perguntando se o alocutário tem ou não um cigarro, mas sim pedindo-lhe que ceda um cigarro. .Como está abafada esta sala! (pedido com aparência de constatação) Normalmente, quem enuncia essa frase não está simplesmente fazendo uma constatação sobre a temperatura no interior do recinto, mas sim pedindo que o alocutário faça algo para amenizar o calor, como abrir as janelas, ligar o ventilador, o arcondicionado,etc. .Você pode fechar a porta? (pedido com aparência de pergunta) Quem enuncia essa frase não está perguntando sobre a (in)capacidade fisica do alocutário de fechar a porta, mas sim pedindo-lhe que feche a porta. Seria estranho se o alocutário pensasse que a pergunta é mera curiosidade e respondesse simplesmente sim ou não. Nesses casos, Searle (1982) denomina de "secundários" os atos de perguntar, constatar, etc. e de "primário" o ato de pedir. No entanto, do ponto de vista da interpretação, pode-se dizer que o valor de pergunta e constatação é "literal", e o valor de pedido, "derivado". 167 O principal mecanismo interpretativo que intervém na decodificação dos atos de fala indiretos são as célebres máximas conversacionais do lingüista Paul Grice. Quanto menos convencionalizado é um ato de fala indireto, mais ele necessita do contexto para esclarecer seu valor ilocutório. Antes de concluir, cumpre salientar que a Teoria dos Atos de Fala trouxe para o foco de atenção dos estudos lingüísticos os elementos do contexto (quem fala, com quem se fala, para que se fala, onde se fala, o que se fala, etc.), os quais fornecem importantes pistas para a compreensão dos enunciados. Essa proposta muito tem influenciado e inspirado os estudos posteriores destinados a aprofundar as questões que envolvem a análise dos diferentes tipos de discurso. Com efeito, os atos de fala são, hoje, uma fonte inesgotável de trabalhos tanto na área da Pragmática, quanto na área da Lingüística em geral, bem como em outras áreas de estudos lingüísticos. Para muitos, a obra de Austin constituiu um verdadeiro marco divisor dos estudos lingüísticos, inaugurando uma nova concepção de linguagem: uma concepção performativa e pragmática de uso da linguagem, rompendo, assim, com uma longa tradição de estudos lingüísticos, caracterizada por uma concepção meramente descritiva da linguagem. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AUSTIN, John L. How to do Things with words. New York: Oxford University Press, 1965. SEARLE, John R. Expression and meaning. Cambridge: Cambridge University Press, 1979. SILVA, Gustavo Adolfo Pinheiro da. Pragmática: a ordem dêitica do discurso. Rio de Janeiro: ENELIVROS, 2005.