Clique aqui e leia o conto Doce de Teresa na íntegra.

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Clique aqui e leia o conto Doce de Teresa na íntegra.
Doce de Teresa
1º Lugar, IV Prêmio Escriba de Contos, Secretaria Municipal de Ação Cultural de Piracicaba, SP
Menção Honrosa, Prêmio Cataratas de Conto, Prefeitura Municipal de Foz do Iguaçu, PR
3º Lugar, Grande Concurso de Poesia e Prosa, Taba Cultural Editora, Rio de Janeiro, RJ
1º Lugar, Prêmio Cidade de Blumenau, Sociedade dos Escritores e Fundação Cultural de Blumenau, SC
1º Lugar, X Concurso de Contos José Cândido de Carvalho, Fundação Cultural Jornalista Oswaldo Lima, RJ
Menção Honrosa, XXXI Concurso de Contos Abdala Mameri, Academia de Letras e Artes de Araguari, MG
2º Lugar, Concurso Literário Açoriano de Contos e Poesias, Prefeitura Municipal de General Câmara, RS
Menção Honrosa, V Concurso de Contos Tristão dos Valles, Associação de Escritores de Bragança Paulista, SP
Teresa, não. As outras, não sei, mas ela, com certeza, não. Nunca reclama. Parece um
doce que não desanda. Sentada na varanda de sua casinha modesta, mas limpinha,
casinha branca de janelas azuis, tão de brinquedo que parece uma pintura. Florezinhas
plantadas em latas de óleo vazias, um gato malhado que dorme no primeiro degrau.
Borboletas voando que estalam as asas, feito quem diz: “Ai, que bom viver! Ai, que
delícia!”. Ali não é um lugar, é uma lembrança de infância.
Será por isso que os filhos nunca aparecem? Nem para as festas? As comadres falam
“que absurdo!”, e outras exclamações cheias de vogais. Teresa, não. Nunca reclama.
Ao invés, faz mais doces, mais e mais. E tão difícil que é, veja só: num fogão de lenha!
Tem que catar graveto, que ela não tem dinheiro para encomendar lenha já cortada,
como a vizinha Salete, aposentada do Correio. Que quê tem? Graveto dá no chão,
graveto dá de graça. É só pegar.
Teresa pega as coisas do ar. Com seus olhinhos de jabuticaba, só faz sonhar. Por isso
que a vida não dói. Fazendo beiradas de paninhos de copa, vai cabeceando,
cabeceando até cochilar. Entra no sonho, toma um sorvete com o primeiro namorado,
brinca de roda com as amigas de longas tranças, banho de rio, rouba goiaba e faz doce
de tacho... Acorda com o cheiro do doce de verdade. Quase passou da hora de tirar do
fogo!
Teresa gostava muito de filme de bangue-bangue. Perdia tempo escrevendo cartas
compridas para uma sua prima do interior mais interior que o dela. E tendo já uma
queda para o doce, ia matando menos índios, dando menos tiros, amansando os
gritos, aumentando os romances e suspiros, terminando por fazer do tal filme, um
melado. Mas agradava. A prima sempre respondia agradecida, dizendo que não
perderia de jeito nenhum o tal filme, quando passasse em sua cidade. Que nunca ia
ser: no interior do interior ninguém nem sabia o que era filme, que dirá cinema.
Isso quando era menina-moça. Depois o marido largou dela e teve de pelejar para criar
os sete filhos. Só. Com doce. O que ficava de menino com o nariz espetado na janela,
que nem pardal querendo roubar pão da mesa de gente, nem te conto. Um mundo!
Esqueceu dos filmes. E o doce? Levado em potes, para as casas com mais abastança.
Nem por isso parava de brotar, do seu coração, mais doce, mais e mais. Quem não tem
vocação para amarga, venha a onda que for — não arrasta. Nem salga.
Nesse meio tempo, teve de botar as cartas, letras, filmes e histórias de lado. Para
depois. Mas depois sempre vem. Os sete filhos, criados, foram cada um para um lado.
Nenhum puxou seu jeito doce, todos traziam o selo do pai: sério, preocupado com
essa coisa de fazer dinheiro. Os filhos, iguais, foram buscar o ouro no pote do final do
arco-íris. Teresa queria era o pote. E o arco-íris. O ouro, se tivesse, botava de enfeite
num bolo.
Um dia, procurando cortes de fazenda para fazer um vestido novo de Natal, deu com
as cartas da prima. Que saudade de escrever! A prima, já morta, escrever para quem?
Os filhos trabalhavam tanto, os netos e bisnetos nunca iriam responder...
— Pra mim, ué. Por acaso, eu sou ninguém?
A mão, treinada de doce, buscava um gosto de começar. Com canela ou sem? Pitada
de baunilha, sim ou não? E foi soltando a imaginação, brotando o caldo, em calda.
Uma vida toda para contar, bem temperada. Doce que nem ela. Feito compotas
guardadas em porões secretos, coisas simplezinhas que, envelhecidas, tornam-se finas
iguarias para adoçar a mesa de reis. Escreveu, escreveu, escreveu. Depois amarrou o
monte de cadernos de espiral com uma tira de chita florida. E deixou para lá.
Até que um dia... (sempre tem um dia em que as coisas mudam, sei lá por quê). Um
dia, os filhos disseram que vinham para o Natal. Com a família completa. Vai ver
assistiram a um desses filmes xaroposos na televisão, em que morre a mãe velhinha,
sofrendo da horrível dor da solidão e do abandono. É verdade que é triste isso de
passar borracha em gente, mas Teresa... Teresa, não. Nunca reclama. Achou boa a
ideia. E foi fazer doce.
Trabalhou que foi uma enormidade. Mas quando se tem noventa e seis anos já não se
é mais uma menina. Vá convencer Teresa disso! Arrumou a casa, preparou tudo, os
meninos chegavam daí a pouco. Guardou o avental e foi se sentar na varanda, à hora
da Ave-maria. Que pôr de sol bonito! Parecia um caldo de goiabada, esparramado num
chão de azulejo azul. Foi cabeceando, cabeceando até cochilar.
Nem o barulho das gentes chegando acordou Teresa. Nem os beijos dos bebês,
melados das lágrimas do medo de ver um rosto tão marcado de rugas. Nem os
presentes de todo tamanho e feitio. Nem chamando pelo nome, que fazia tempo ela
não ouvia de boca outra que não a própria. Nem balançando de leve a cadeirinha. Nem
sacudindo, sacudindo. Teresa entrou no sonho e era um sonho tão doce, doce, mais e
mais. Não deu vontade de sair. Parecia um sonho de verdade, não como os de padaria
— dos feitos em casa.
Depois do enterro, a família voltou para casa com pressa de ir embora. Não cabiam
mais ali. Distribuíram os muitos doces entre si, arrumando as coisas com a pressa de
quem quer fugir. Quase iam deixando o principal para trás. Porém um menino se
soltou do colo da mãe e, andando por aí, deu com uma ponta de chita florida embaixo
da cama. Foram abrindo os cadernos, um por um, lendo devagar, sentando no chão
para apreciar. Aquilo é que era doce!
Não sei... É por essas e outras que eu penso que a vida devia começar pela sobremesa.
O salgado vinha depois. Porque, às vezes, quando o doce chega, não tem mais
espaço...