resumo - Faculdade de São Bento

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resumo - Faculdade de São Bento
FACULDADE DE SÃO BENTO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU EM FILOSOFIA
MESTRADO ACADÊMICO
Cídio Lopes de Almeida
Estética e educação nas obras
O Nascimento da Tragédia, Sobre o Futuro dos Nossos Estabelecimentos
de Ensino e III Consideração Intempestiva: Schopenhauer Educador de
Friedrich W. Nietzsche
São Paulo
2010
FACULDADE DE SÃO BENTO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU EM FILOSOFIA
MESTRADO ACADÊMICO
Estética e educação nas obras O Nascimento da Tragédia, Sobre o
Futuro dos Nossos Estabelecimentos de Ensino e III Consideração
Intempestiva: Schopenhauer Educador de Friedrich W. Nietzsche
Cídio Lopes de Almeida
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação Stricto
Sensu em Filosofia da Faculdade de São Bento do Mosteiro de
São Bento de São Paulo, como requisito parcial à obtenção do
título de Mestre em Filosofia.
Área de concentração: História da Filosofia Moderna
Orientador: Prof. Dr. Franklin Leopoldo e Silva
São Paulo
2010
Dedico esta dissertação a Rogério
Ignácio de Almeida Cunha, Zenóbia
Rodrigues Cunha e Rosângela Ribeiro
dos Santos.
AGRADECIMENTOS
Ao Prof. Dr. Franklin Leopoldo e Silva pela orientação que sempre motivou e
valorizou minhas iniciativas na construção do presente trabalho.
Ao Coordenador e ao Vice-Coordenador da Pós-graduação
Prof. Dr. Elias
Humberto Alves e Prof. Dr. Djalma Medeiros pelos constantes incentivo e prontidão
nos assuntos administrativos referente ao desenvolvimento do mestrado.
Ao Abade Dom Mathias Tolentino Braga, OSB, pela concessão de bolsa, sem a
qual não seria possível terminar o curso de mestrado no Mosteiro de São Bento.
Ao Prof. Dr. José Carlos Bruni que, em suas aulas, propiciou algumas discussões
sobre Nietzsche que muito contribuíram com meu trabalho.
Aos Professores, Dr. Edelcio Serafim Ottaviani e Drª Maria Cristina Dal Pian,
pela leitura e observações feitas.
Aos colegas do mestrado que me propiciaram uma rica convivência acadêmica.
Não poderia deixar, também, de registrar as contribuições de épocas passadas
sem as quais não teria chegado até aqui. Expresso minha mais profunda gratidão ao
Irmão Israel Poste Ribeiro, FMS, e aos Irmãos Maristas por terem propiciado em minha
vida uma significativa etapa de formação intelectual e introdução aos estudos
universitários. Também, significativa foi minha convivência com o Prof. Dr. Rogério
Ignácio de Almeida Cunha e sua esposa a Profª Zenóbia Rodrigues Cunha, sem os
quais meus sonhos na seara filosófica teriam sucumbido.
IV
RESUMO
Pretende-se com a dissertação abordar a Estética e a Educação em Nietzsche
circunscrita a três obras do período de juventude do filósofo, a saber: O Nascimento da
Tragédia, Sobre o futuro de nossos estabelecimentos de ensino e III Consideração
Intempestiva: Schopenhauer Educador. Nossa investigação irá procurar, em primeiro
momento, compreender a estrutura teórica das obras. Nesse sentido vamos acompanhar
o movimento do autor em demonstrar como surgiu a tragédia e o conhecimento trágico
entre os Gregos Clássicos, sua decadência com o pensamento socrático e ressurgimento,
em solo alemão, com a música de Wagner. Depois, nas conferências Sobre o Furturo de
Nossos Estabelecimentos de Ensino, vamos acompanhar as teses do autor sobre
educação e que, de início, é aquela de educação aristocrática comprometida, isso já na
III Consideração Intempestiva: Schopenhauer Educador, com a formação do gênio. Ao
final desse percurso, pretende-se também destacar as imbricações que se pode fazer da
estética e da educação nesses trabalhos do autor e quais a possíveis atualizações do seu
pensamento para compreender a nossa cena educacional do dias atuais.
V
ABSTRACT
It is intended to address the dissertation and Aesthetic Education in Nietzsche
limited to three works by the youth of the philosopher, namely: The Birth of Tragedy,
On the future of our schools and untimely III Consideration: Schopenhauer Educator.
Our investigation will look, at first, understand the theoretical structure of the works. In
this sense we will monitor the movement of the author to demonstrate how did the
tragedy and the tragic knowledge among the ancient Greeks, its decay with the Socratic
thought and resurgence in German soil, with the music of Wagner. Then the conference
About the Future of our education, we will follow the author's thesis on education and
that, initially, is that of aristocratic education compromised, this has the unintended
Consideration III: Schopenhauer Educator with the formation of genius. At the end of
this passage is also to highlight the interconnections that can be made of aesthetics and
education in these author's works and what the possible updates of their thinking to
understand our educational scene today.
VI
SUMÁRIO
Introdução........................................................................................................................01
Capítulo I – O Nascimento da Tragédia
1.1. O Conhecimento Trágico..............................................................................08
1.2. O Coro..........................................................................................................19
1.3. Decadência da Tragédia e do Conhecimento Trágico ................................31
1.4. O Advento da Teoria como Centro Gravitacional da Vida..........................41
1.5. O Renascimento da Tragédia e do Conhecimento Trágico..........................45
1.6. Como Sobreviveu o Trágico: Dois Tipos de Serenojovialidade...................54
1.7. Homens que Lutaram por uma Cultura Autêntica e o Drama Perfeito........66
1.8. A Emoção Trágica........................................................................................74
Capítulo II – Escritos Sobre Educação
2.1. Extensão e Redução da Cultura....................................................................84
2.2. O Desinteresse como Fulcro da Cultura......................................................88
2.3. Situação do Ginásio......................................................................................97
2.4. A Liberdade na Escrita Ainda no Ginásio..................................................100
2.5. A Falsa Necessidade de Cultura.................................................................107
2.6. A Formação Técnica e a Formação do Jovem de Cultura.........................116
2.7. O Problema da Liberdade na Universidade...............................................124
2.8. III Consideração Intempestiva: Schopenhauer Educador..........................132
2.9. O Mestre e seu Percurso Solitário..............................................................140
Capítulo III – A Educação Estética de Nietzsche
3.1. A Educação Aristocrática...........................................................................148
VII
3.2. A Educação Estética de Nietzsche..............................................................153
3.3. A Educação da Vontade..............................................................................159
3.4. O Egoísmo da Utilidade.............................................................................165
Considerações Finais.....................................................................................................174
Bibliografia....................................................................................................................178
VIII
INTRODUÇÃO
Propõe-se dissertar acerca de dois veios temáticos nas obras de Nietzsche que o
próprio autor não o fez de modo explícito, isto é, por meio de uma única obra que
tratasse de relacionar diretamente a estética e a educação. Segundo Giorgio Colli,1 há
nessa época da produção do autor um centro de gravitação e ele se manifesta na obra O
Nascimento da Tragédia. Desse projeto, no que antecede e, depois, no que sucede a sua
publicação, é que iremos encontrar o autor lapidando temas de estética, cultura e
educação. Nota-se, então, nos escritos pré-nascimento da tragédia, textos, geralmente
ligados a sua atividade de professor na Universidade de Basiléia, que preparam temas
como Introdução à Tragédia de Sófocles2, A visão Dionisíaca do Mundo3 entre outros.
Material que chega até nós em forma de livro, mas que se constituem de textos
utilizados para a atividade de docência, tomando o formato livro entre nós e nas
acomodações feita pela edição de Manzino Montinari e Giorgio Colli. Temática
literária, mas com olhos que procuram compreender a cena “oitocentista”,
especialmente aquela que desenrola na sociedade alemã. Seu estudo sobre a tragédia é
com vistas à crítica da ópera de seu tempo. A qual compreende como atividade de
entretenimento dos ricos. Observa-se, portanto, que os temas de estética e educação
afloram das atividades de professor e escritor. Apesar de não se constituírem um único
livro, fazem parte de um conjunto de reflexões realizadas por Nietzsche nesta fase de
sua produção. O “jovem Nietzsche”,4 como é corrente denominá-lo nessa fase,
compreende, portanto, um projeto que se relaciona não apenas em suas obras renomadas
1
Cf. COLLI, Giorgio. Escritos sobre Nietzsche. Trad. Maria Filomena Molder. Lisboa: Relógio d‟água
Editores, 2000, 175 p.
2
Cf. NIETZSCHE, Friederich. Introdução à Tragédia de Sófocles. Trad. Ernani Chaves. Rio de Janeiro:
Ed. Zahar, 2006, 94 p.
3
NIETZSCHE, F. A Visão Dionisíaca do Mundo, e outros Textos de Juventude. Trad. Marcos Sinésio
Pereira Fernandes, Maria Cristina dos Santos de Souza; rev. da trad. Marco Casanova. São Paulo: Martins
Fontes, 2005, 93 p.
4
Cf. GIACOIA JÚNIOR, Osvaldo. Nietzsche. São Paulo: Publifolha, 2000, p. 27 (Col. Folha Explica).
1
e publicadas, como é o caso de O Nascimento da Tragédia, mas aparece nos seus
escritos destinados a exposição de temas no exercício da docência na Universidade de
Basiléia. Nossa demarcação temática procura pesquisar exatamente esse fio reflexivo
do autor, que entre os escritos de língua portuguesa encontra-se em O Nascimento da
Tragédia, Sobre o futuro dos nossos Estabelecimentos de Ensino e III Consideração
Intempestiva: Shopenhauer Educador. O teatro de ação e toda a cenografia utilizada
para desenvolver suas reflexões nas três obras citadas são a literatura, sobretudo as
tragédias gregas, e a cena educacional na qual Nietzsche atuava com professor.
O estudo dos Clássicos em Nietzsche tem um propósito: compreender uma cultura
original que não fosse aquilo que se desenvolvia em seu tempo e, sobretudo, na
modernidade. Da cena cultural, de uma arte feita para o entretenimento, ou autor
procura estudar o surgimento da tragédia para, em contrapartida, denunciar as falácias
existentes na cultura alemã de seu tempo. Cena que, vale destacar, apesar das atividades
culturais em solo Germânico, se desenvolvia com tudo que tinha de direito em Itália e
em França e essas eram o centro das atenções.
Atividade cultural decadente a qual Nietzsche os enfeixa nas expressões fariseus e
filisteus da cultura, para denotar o total descompasso da cultura das elites com a vida
social. Seu registro denota que a contradição ia mais longe e não ficava só no plano
social, mas se expandia, passava pela vida social e instaurava concepções de arte e
cultura, operando, também, uma total dissonância estética.
No contexto de denúncia de uma cultura decadente, a moderna, os estudos dos
gregos, que, aliás, já fazia parte do repertório de estudos de Nietzsche desde o colegial,
se acentua com o exercício da docência na Universidade da Basiléia. Sua atividade
docente se dava para alunos de curso superior e para o Pedägogium, que corresponde ao
ensino fundamental II e ensino médio de nossas escolas, onde Nietzsche fazia leitura
2
das tragédias de Ésquilo e Sófocles. Fazia parte, também, de suas atividades a produção
e leitura de textos que versassem sobre sua função na cadeira de filologia clássica.
Contexto que o leva a escrever uma introdução a Trágedia de Sófocles. Nesse itinerário
vão surgindo os temas fundamentais para O Nascimento da Tragédia. Não se trata de
uma evolução retilínea e necessária. Alguns conceitos acerca da tragédia, por exemplo,
sua origem ou quem é o responsável pela sua decadência – Eurípides ou Sófocles, são
apresentados de um modo e depois de outro lá na frente. Movimento que se explica pela
maturação conceitual que o filósofo está fazendo, expresso nos seus escritos, e no
confronto dessas meditações que ocorrem na atividade de professor. Ressalta-se,
portanto, que a prática da docência é um teatro importante, ao lado dos acontecimentos
culturais que vivencia ao lado de amigos, para as exposições, confronto e maturação de
seu trabalho. Prática cotejada, evidentemente, com leituras de filósofos e, em especial
nessa fase, com o convívio cultural travado com Wagner.
Feito o contexto da obra de Nietzsche que vamos dissertar, passemos aos problemas
teóricos aos quais vamos nos ater. Nietzsche tece dura crítica à cultura universitária de
seu tempo. Suas principais investidas são contra a idéia de cultura útil e, sobretudo,
vinculada, a serviço dos propósitos do Estado. Mais uma vez a questão de suas críticas
não se atém a meros aspectos externos. Essa postura da cultura útil e a serviço de
outrem que não ao humano tem uma conformação precisa e é disso de que ele se dispõe
a criticar. Ao dissociar Estado e cultura, o que Nietzsche faz é dizer apenas que a
interferência de outros propósitos no interior da produção cultural que não os próprios
da cultura faz com que o feito cultural se torne contraditório, anacrônico, menor,
inferior.
Nietzsche chama a atenção para o fato de que existe uma dimensão do humano
irredutível, a dimensão da cultura e do valor de ser humano, que não pode ser
3
negligenciada, substituída ou vinculada a nenhum outro propósito. Essa dimensão, que
ele observa ter emergido de modo singular entre os gregos trágicos, é que põe as
questões próprias do homem. No âmbito da estética, ele continua a tecer sua crítica à
modernidade. A arte passa a ser algo que não lida com a condição humana. Ora é
entretenimento, ora é algo para dar lucro financeiro. Tanto nas óperas, acontecimentos
artísticos que movimentavam um número razoável de pessoas naquele contexto, quanto
na educação, na qual Nietzsche atua como professor, a massificação opera um
movimento de esvaziamento e distanciamento do conceito de cultura trágica. Essa
decadência fica mais notória quanto comparada, segundo a concepção que o autor está
perscrutando entre os pré-clássicos, com os gregos da época das tragédias.
Contudo, à primeira vista, nos escritos aqui demarcados por nós para pesquisa,
temos que ter algumas cautelas para não extrair reflexões do tipo “oito ou oitenta”, isto
é, conclusões que vinculam o pensamento de Nietzsche a algum tipo de fundamentação
do “nacional-socialismo” alemão do século XX, conhecido entre nós como nazismo.
Nos escritos Sobre o Futuro de Nossos Estabelecimentos de Ensino há a tese de que a
educação é para poucos, coisa de uma aristocracia da cultura.5 Afirma que a cultura
grega deve ser o modelo, que a cultura moderna é exatamente o oposto dessa e
encontra-se em decadência, que o excesso de história mata a cultura e só faz produzir
indivíduos ilustrados, mas ignóbeis, medíocres, servidores do Estado e nada mais.
Dos vários problemas possíveis, vamos, agora, tentar demarcar alguns que nos
ocupam. As más interpretações decorrentes da contundente crítica da cultura, da
educação, da estética vigente, precisam ser tratadas, pois constituem o ponto peculiar a
partir do qual Nietzsche irá produzir sua reflexão filosófica.
5
Na Correspondência com Wagner, citada em nota anterior, Nietzsche demonstra essa idéia não como
um projeto de raça pura, eleita, entre outras quimeras racistas, mas fica notório que se trata de uma
constatação de que as pessoas não conseguem perceber as sutilezas da vida. Cf. NIETZSCHE, F.
Correspondência com Wagner. 2ª ed. Trad. Maria José de La Fuente. Lisboa: Guimarães Editores, 1915,
p. 27.
4
É preciso, portanto, pensar a crítica nietzscheana da cultura e da educação tendo
em vista essa possibilidade interpretativa. Não temos dúvidas do ponto de vista do
autor, ele não defende nenhum tipo de racismo. 6 A questão é que seu trabalho de
desmonte da cultura vigente irá por o dedo em uma ferida que exatamente produz os
anacronismos no âmbito da cultura decadente que se expressa nas idéias de espectador
da arte e na idéia de sujeito como ser pensante e capaz de argüir o Ser pelo poder da
lógica. Defender uma educação do gênio, de uma aristocracia é combustível farto para
conclusões apressadas de que se trata de interesses elitistas; logo de uns poucos. Tal
veio interpretativo é dissonante e procura logo uma resposta que se atém à aparência ou
um mero ordenamento social. Nietzsche crítica nas manifestações culturais de seu
tempo exatamente seu caráter superficial e alijamento do conhecimento trágico. As
críticas construídas por Nietzsche no que toca a educação e a cultura nos coloca o
desafio: como pensar a educação, como projeto estético cultural, do homem sem
praticar um tosco etnocentrismo ou puritanismo de raça?
Um segundo grupo de problemas que teremos de tratar em nosso trabalho, concerne
o estético e o cognoscitivo da obra principal de nossa investigação. Se por um lado, no
problema anterior, teremos que pensar a implicações sociais, agora é mais sutil. Há aí,
sem dúvida, uma proposta que tem no drama trágico seu ponto de referência. Sabe-se,
por exemplo, que a concepção de tragédia não é a mesma de Aristóteles, 7 aliás, sendo
essa combatida indiretamente e apontada como motora da ópera de sua época. O que
estará posto nessa nova forma de conhecer? Um conhecimento conceitual susceptível de
ser memorizado não é o caso. No lugar desse conhecimento Nietzsche preconiza o
“transe dionisíaco”. Mas como, então, pensarmos? Ou será essa noção tão naturalizada
6
No livro A Minha irmã e eu, Nietzsche demonstra, já em tratamento psiquiátrico, total aversão ao
semitismo. Cf. NIETZSCHE, F. A minha irmã e eu. Trad. Rubens Eduardo Frias. São Paulo: Ed. Moraes.
1992, p. 4.
7
Cf. DIAS, R. M. A influência de Schopenhauer na filosofia da arte de Nietzsche em O Nascimento da
Tragédia. Cadernos Nietzsche, 3, p. 7-21.
5
entre nós que parece não haver outro ser além do pensar? Decorre daí, também, a
pergunta como seria uma sociedade assim disposta? Só carnaval, vinho e as orgias
bacantes? A Tragédia Grega, para Nietzsche, consegue aparar, aquilo que por si só seria
inviável: a pulsão dionisíaca. Em seus vários escritos ele trata disso e a conciliação, que
é sempre tensa, com Apolo é fundamental, feito que é perceptível em O Nascimento da
Tragédia.
No debate dessas questões esboçadas pode-se, ainda, pensar como desenvolver um
projeto educacional e cultural decorrentes da cultura grega trágica. Eleita pelo autor não
com modelo ideal, mas muito mais como um arquétipo capaz de incidir na vida dos
modernos de seu tempo. Suas preocupações com a Grécia não eram a de retorno ideal
aquele momento cultural. Fato que produziria um projeto impossível de se concretizar.
Mas, como seus comentadores nos alertam, Nietzsche procura pensar saídas para o seu
tempo. Não se trata de mais um utilitarista que questiona as opções vigentes e propõe o
seu caminho como o válido. Fica então, mais um nó a ser desatado: como a estética, a
vida estética, pode ser a via do conhecimento. Como a música, motor da tragédia,
poderá cumprir papel de formação dos cidadãos de uma dada nação. Como viver para a
cultura, feito dos Gregos trágicos e administrar as questões práticas da vida. São
questões que teremos de pensar, também, em nossa pesquisa.
Para fazermos essa investigação, então, vamos, no primeiro capítulo, procurar
compreender o movimento de construção8 da obra O Nascimento da Tragédia e seus
8
A disposição de nosso trabalho encontra referência na seguinte observação de Scarlett Marton:
“Diversas são as motivações que a Nietzsche conduzem os estudiosos das novas gerações. Nele se
inspiram grande número de trabalhos; deles tratam outros tantos. Há os que buscam reinscrever o seu
pensamento em sua época, resgatando seus referenciais teóricos, científicos e culturais, e os que procuram
compreendê-lo à luz de sua inserção no conjunto da história da filosofia. Há os que querem reconstituir
seu percurso intelectual, recuperando o confronto com seus contemporâneos e predecessores, e os que
pretendem realçar seu caráter radical e inovador. Há os que se empenham em elaborar estudos
sistemáticos, que propõem uma visão de conjunto de sua obra, e os que se dedicam a trabalhos pontuais
sobre alguns de seus temas. E é esta diversidade que constitui nossa maior riqueza.” Em itálico realçamos
a parte em específico que coaduna com nosso trabalho de mestrado. Cf. MARTON, Scarlett.
6
conceitos relacionados ao surgimento da tragédia, seu declínio e renascimento, segundo
Nietzsche, através do drama musical de Wagner. Nossa atenção, também, estará voltada
para compreender as implicações do conteúdo dessa primeira obra filosófica de
Nietzsche com a educação, ou seja, em que medida os processos próprios da tragédia
podem ser formativos ou como a estética preconizada nessa obra perfaz, também, um
intinerário formativo.
No capítulo seguinte nosso labor é fazer exame das Conferências que Nietzche
executou na Universidade da Basiléia, que rececebeu título de Sobre o Futuro de
Nossos Estabelecimentos de Ensino, e da III Consideração Intempestiva: Schopenhauer
Educador. Aí de modo mais direto no que a educação nosso exercício terá duas etapas.
A primeira é a de compreender as idéias de Nietzsche sobre os estabelecimentos de
ensino, no qual atuava como professor. Na segunda etapa, precisamente na III
Consideração Intempestiva: Schopenhauer Educador, nossa investigação procura
compreender como Nietzsche toma Schopenhauer como modelo de mestre, como
educador e quais são os obstáculos, modernos certamente, que o gênio e mestre tem que
vencer para chegar à afirmação de si.
Por último, sem a pretensão de fazer uma síntese magistral, iremos procurar
tratar de articular os temas de estética e educação dos dois capítulos anteriores. Na
perspectiva de compreender como Nietzsche advoga uma educação aristocrática e como
é a educação estética em Nietzsche e quais implicações podemos fazer com a educação
da vontade, como projeto educativo para nossos dias. O que certamente nos colocará,
também, em confronto com ao menos um de dos egoísmos de nossos que parece reinar
na sociedade atual: a utilidade como tribunal da ação pedagógica.
Extravagâncias. Ensaios sobre a filosofia de Nietzsche. São Paulo: Discurso Editorial/Editora Unijuí,
2000, p. 208.
7
CAPÍTULO I:
O NASCIMENTO DA TRAGÉDIA
1.1. O CONHECIMENTO TRÁGICO
A obra O Nascimento da Tragédia certamente tem um projeto, com início meio
e fim e que nos dispomos aqui acompanhar. O olhar por meio do qual vamos perscrutála certamente é o do conhecimento trágico, como o próprio autor, nas linhas de seu
texto, nos assevera. Poderíamos desenvolver um projeto dissertativo no qual
arrolaríamos as idéias do autor de modo a fazer esporadicamente citações para
corroborar nossa empreitada. Essa certamente é uma via possível. Contudo, optamos
por um outro processo, averiguar as linhas da obra e certificar o autor entende por
conhecimento trágico. Como nos adverte Carlos A. R. Moura:
“[...] nenhum autor parece suscitar tantas dificuldades metodológicas para o
seu interprete quanto Nietzsche, o que já se evidencia pela exuberante
diversidade de interpretações a que sua obra foi submetida. Essa divergência
entre as interpretações permanece tributária, em grande parte, de uma
constatação muito freqüente entre seus comentadores: Nietzsche seria um
autor „contraditório‟.” (MOURA, 2005, p. IX)
Imbuídos do propósito de saber o que é o conhecimento trágico, prestemos
atenção ao alerta sinalizado pelo autor na abertura da obra O Nascimento da Tragédia:9
“Teremos ganho muito a favor da ciência estética se chegarmos não apenas à
intelecção lógica mas à certeza imediata da introvisão de que o contínuo
desenvolvimento da arte está ligado à duplicidade do apolíneo e do
dionisíaco.” (NT, 2001, p. 27)
Esse convite a um olhar peculiar, no qual não é o primado da lógica, da
linguagem científica, mas o de uma “imediata introvisão”, que irá determinar o ritmo do
conteúdo da obra em questão. Serão as pulsões dionisíacas e as ponderações apolíneas
os motores de engendramento do conteúdo aqui refletido. Toda a sua investigação irá
9
Adotamos, para a citação da obra O Nascimento da Tragédia, a convenção proposta pelos Cadernos
Nietzsche segundo o qual a referência à obra pode ser através de suas iniciais NT, seguida pelo ano da
edição, em português, e pelo número da página correspondente à idéia e/ou citação da obra.
NIETZSCHE, F. O Nascimento da Tragédia ou Helenismo e Pessimismo. Trad. notas e posfácio Jacó
Guinsburg. São Paulo: Companhia das Letras, 1992, 177 p.
8
fazer uso, então, dessa linguagem que se utiliza de metáforas vinculadas ao teatro e à
literatura das tragédias da Grécia Antiga,10 para revelar, com muito mais força, suas
teses filosóficas acerca do conhecimento e de como ele é produzido. Nesse mote, ele
propõe que o conhecimento surgiu de um jogo entre duas partes. “A seus dois deuses da
arte, Apolo e Dionísio, vincula-se a nossa cognição de que o mundo helênico existe uma
enorme contraposição.”11 Nietzsche compreende que a realidade, o real, surge desse
jogo. Quando ele fala de duelo quer dizer que o movimento que caracteriza a realidade é
parecido com uma luta entre o deus Apolo e Dionísio. Para ele pensar o real como
sendo apenas uma dessas forças, representadas pelos deuses da mitologia Grega, seria
uma negação do movimento presente no real.
Sobre o duelo anunciado entre Apolo e Dionísio, Nietzsche, ainda na primeira
página, já assinala o fato de que houve uma solução no aparente duelo de forças
constitutivas da cultura helênica. “[...] por fim, através de um miraculoso ato metafísico
da „vontade‟ helênica, apareceram emparelhados um com o outro, e nesse
emparelhamento tanto a obra de arte dionisíaca quanto a apolínea geraram a tragédia
ática.”12 Será, então, no entorno da tragédia que o autor fará o percurso de sua obra que
marca sua produção propriamente filosófica. É no uso da análise o teatro da tragédia
grega, no poeta lírico, na epopéia, na música do coro que ele vai extrair sua reflexão
sobre a “verdade trágica”, sobre sua origem e sobre como ela poderá um dia surgir entre
os seus, vários séculos depois de seu desaparecimento. Sobre essa “solução” de que
aludimos, vale, antes de continuarmos, dizer algo. No que toca ao duelo Dionísio Apolo
10
No nosso texto, sempre que nos remetermos à Grécia, estaremos fazendo uso das seguintes
demarcações históricas. Época clássica ou socrática referente ao período do florescimento da filosofia que
inclui os três grandes nomes da filosofia: Sócrates, Platão e Aristóteles. Época trágica, por outro lado,
como um período no qual o conhecimento filosófico não havia emergido na sua força total e prevalecia
uma cultura na qual as manifestações teatrais era o momento de “conhecimento do povo”. Nesse
momento das tragédias e até mesmo antes de seu surgimento prevalecia uma estreita relação com os
mitos, em oposição ao conhecimento racional que irá substituí-lo no desenvolvimento histórico-cultural
da Grécia Antiga.
11
NT, 1992, p. 27.
12
NT, 1992, p. 27.
9
não se pode aplicar uma dialética que visa uma síntese. A esse respeito Gilles Deleuze
nos diz: “o comentador de Nietzsche deve principalmente evitar „dialetizar‟ o
pensamento nietzscheniano sob seja que pretexto for”.13 Deleuze, na seqüência de seu
pensamento acerca do não dialetizar Nietzsche, continua sua observação e nos propõe
romper com um olhar que procura eliminar a tensão produtiva própria do trágico e ver a
tragédia como momento de solução dessa tensão, uma síntese.
Ainda, segundo Deleuze, “a dialética propõe uma certa concepção do trágico:
liga o trágico ao negativo, à oposição, à contradição.” Para início de nosso trabalho
basta esse aviso, de suma importância, de que no trágico nietzscheano não se encontra o
apagamento da tensão, ao contrário, será dessa tensão, sempre posta e nunca dirimida,
que a tragédia grega se nutrirá e no entender de Nietzsche será por isso que esse
momento cultural deve ser considerado como genial.
Passemos aos pontos que o autor disserta e nos apresenta essa construção da
realidade ou da verdade ainda entre os gregos antigos.
Antes propriamente de averiguar entre os gregos, Nietzsche pensa que é
necessário a toda criação figurativa uma característica:
“A bela aparência do mundo do sonho, em cuja produção cada ser humano é
um artista consumado, constitui a precondição de toda arte plástica, mas
também, como veremos, de uma importante metade da poesia. Nós
desfrutamos de uma compreensão imediata da figuração, todas as formas nos
falam, não há nada que seja indiferente e inútil.” (NT, 1992, p. 28)
O autor nos propõe e ao mesmo tempo põe em suspenso algo novo: o sonho, a
produção onírica como fonte de construção da realidade, ou como fonte de verdade, isto
é, como expressando algo do cerne da vida, da força que faz tudo vir-a-ser. Para melhor
elucidar esse ponto vale recorrermos a Eugen Fink que nos auxilia a compreender essa
questão do sonho como uma intuição criadora. Comentando exatamente a mesma
passagem da citação acima ele nos diz:
13
DELEUZE, Gilles. Nietzsche e a Filosofia. Trad. Antônio M. Magalhães. Portugal: Rés Editora, p. 19.
10
“O sonho cria o mundo das imagens, o cenário das formas, das figuras; a sua
magia produz a aparência bela que proporciona à alma a felicidade de uma
visão definida; o sonho, por muito arbitrário que seja o seu curso, produz
imagens, sempre imagens, é uma força plástica, é visão criadora. Apolo, diz
Nietzsche, foi concebido pelos gregos como sendo precisamente esta força
capaz de criar o mundo de imagens que se manifesta no sonho dos homens,
mas que tem ainda mais poderes. E é neste ponto que da interpretação
psicológica do sonho, Nietzsche dá um salto brusco: Apolo não cria apenas o
mundo de imagens do sonho dos homens, cria outrossim o mundo de
imagens daquilo a que o homem habitualmente chama o real.” (FINK, 1983,
p. 24)
Segundo FINK, Nietzsche então faz a seguinte operação: de algo psicológico, o
sonho, ele passa “para o sonho da própria natureza original”. E mais adiante ele
contínua: “Nietzsche pensa por analogia: ao sonho do homem, criador de imagens, é
análogo o poder do ser, produtor de formas e imagens, a que dá o nome de Apolo.” 14 E
Nietzsche contínua a assinalar a existência desse véu, o sonho, sob o qual jaz algo
importante:
“O homem da propensão filosófica tem mesmo a premonição de que também
sob essa realidade, na qual vivemos e somos, se encontra oculta uma outra,
inteiramente diversa, que, portanto, também é uma aparência: e
Schopenhauer assinalou sem rodeios, como características da aptidão
filosófica, o dom de em certas ocasiões considerar os homens e todas as
coisas como puros fantasmas ou imagens oníricas.” (NT, 1992, p. 28)
Ou seja, há um mundo da aparência, do qual os sonhos podem ser, também,
tomados como uma outra realidade, deixando transparecer, com isso, que, além deles,
existe um outro algo, que nesse momento é para Nietzsche a chamada vontade. E será
na criação da arte, no sonho, a fórmula para se resolver esse problema posto de
aparência e coisa-em-si, “pois a partir dessas imagens interpreta a vida e com base
nessas ocorrências exercita-se para a vida”.15 O sonhar é como um vestíbulo, um
exercício importante para a vida; para as criações simbólicas acerca da vida.
Aliás, aqui é apresentado Apolo como esse deus capaz de criar o mundo da
aparência, do sonho, e com isso ele é a potência, a força da natureza artística capaz de
14
15
FINK, Eugen. A filosofia de Nietzsche. Trad. Joaquim Lourenço. Lisboa: Presença, 1983, p. 24.
NT, 1992, p. 29.
11
conceituar, demarcar; e é dele que procede, portanto, o mundo da aparência e do
indivíduo. Para Roberto Machado “o apolíneo é para Nietzsche o princípio de
individuação, um processo de criação do indivíduo, que se realiza como uma
experiência da medida e da consciência de si.” 16
Ainda no texto: “[...] poder-se-ia inclusive caracterizar Apolo com a esplêndida
imagem divina do principium indivivuationis [...]”, conceito com o qual Nietzsche irá
opor a Vontade, que é representada por Dionísio, como sendo um princípio que a tudo
dissolve dessa individualidade.
Aqui há uma necessidade de explicitar um aparente embate. De um lado temos
Apolo, deus demarcador, criador da individualidade, e que faz sempre esse movimento.
Por outro lado temos forças que dissolvem essas demarcações, essas forças são
dionisíacas, e como totalidade sua tendência é acabar com a individualidade. Eis o jogo
de forças, um puxa para a individualidade, para o particular, Apolo, outra força procura
desmanchar, despedaçar essa identidade e transformá-la em não-identidade. Nesse jogo,
necessário para a vida existir, deve haver um equilíbrio. Nesse jogo de aparência e
essência há, na proposta de Nietzsche, algo que faz reconduzir essa relação a um campo
saudável, é preciso, para a vida existir, que o indivíduo possa se relacionar de modo
adequado com esse outro lado do real que é a essência. Para isso, “ser-nos-á dado lançar
um olhar à essência do dionisíaco, que é trazido a nós, o mais de perto possível, pela
analogia da embriaguez.”17
A celebração dionisíaca é um momento de retorno ao cerne da vida, pois
segundo Nietzsche, inicialmente existia apenas o todo. “A experiência dionisíaca é a
possibilidade de escapar da divisão da individualidade, e se fundir ao uno, ao ser; é a
16
MACHADO, R. C. M. (Org.). Nietzsche e a polêmica sobre O nascimento da tragédia. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Editor, 2005, V. 1, p. 7.
17
NT, 1992, p. 30.
12
possibilidade de integração da parte na totalidade.” 18 Considerando que a via conceitual
é uma tentativa de fragmentar esse todo, e de certo modo perdendo-o, esse movimento
de retorno ao cerne é como sonho. É um deixar-se acreditar no sonho. Tem-se
consciência disso, faz, produz isso como sendo uma forma consciente de viver a vida,
mesmo ela sendo trágica. Mas para retornar ao ser é preciso deixar-se: “sob a magia do
dionisíaco torna a selar-se não apenas o laço de pessoa a pessoa, mas também a natureza
alheada, inamistosa ou subjugada volta a celebrar a festa de reconciliação [...]”.
19
FINK, também, diz que esse movimento é o mesmo que se notou em Apolo. De algo
humano psicológico, o sonho, há um salto para a percepção de que a própria natureza é
que age. Assim, também, “o mesmo é válido também para a embriaguez; primeiramente
ela é encarnada como qualquer coisa de humano, como aquele estado de êxtase onde
temos o sentimento da queda de todas as barreiras, de sairmos de nós próprios, de nos
tornarmos um com o todo, de desaguarmos, de mergulharmos no oceano infinito.” 20
Desse processo passa-se, segundo FINK, para algo cósmico na qual “a embriaguez é a
torrente cósmica, um delírio báquico que destrói, despedaça, reabsorve todas as formas,
que suprime tudo, o que é finito e individual. É o grande ímpeto da vida.”21
O que se pode notar, tanto em Nietzsche como na leitura de FINK, até aqui é que
o autor propõe ver que o real como movimento, e que isso se expressa de dois modos.
Um é caracterizado por Apolo, forma, aparência, estável, outro é Dionísio, movimento,
natureza, fulcro do real. Eles se relacionam, e o êxtase é, digamos assim, o jeito desse
mundo fenomênico se relacionar com esse centro do real, donde um dia partiu, sem
deixar de ser por completo, daí a saudade e a vontade de retornar a ele ser uma
constante do mundo da individuação.
18
MACHADO, 2005, p. 8.
NT, 1992, p. 31.
20
FINK, 1983, p. 25.
19
21
FINK, 1983, p. 25.
13
Em termos mais preciso o autor assim nos apresenta os impulsos que estão na
natureza: “[...] o apolíneo e o seu oposto, o dionisíaco, como poderes artísticos que, sem
a mediação do artista humano, irrompem da própria natureza [...].” 22 Aqui é interessante
notar que a pulsão onírica, apolínea, não é um ato intelectual, mas uma pulsão natural “e
nos quais os impulsos artísticos desta se satisfazem imediatamente e por via direta”,
através do sonho. Isso nos faz pôr em suspenso em pensar que já o apolíneo é obra da
razão. Mais adiante iremos ver a razão de uma outra perspectiva, a socrática, por ora,
concentremo-nos no percurso do autor e aqui temos o mundo onírico como sendo
apolíneo sem mediação e, por outro lado, temos o êxtase que pode matar, que pode
despedaçar o indivíduo, como força dionisíaca. Certamente esses dois impulsos da
natureza irão se casar em um dado momento que é na tragédia grega, “enquanto artista
ao mesmo tempo onírico e extático.”23
Acerca dos impulsos artísticos presentes na natureza vale observar que
Nietzsche considera que a natureza se cria. Daí a idéia de impulso artístico da natureza.
A criação, que depois o humano também terá essa marca, é um impulso inerente à
natureza. O artista quando cria imita a natureza ou revela em si a parte dessa natureza.
Tecidos suas considerações sobre os impulsos artísticos e como eles se
acomodam, Nietzsche procura agora averiguar:
“a fim de reconhecer em que grau e até que ponto estavam neles
desenvolvidos esses impulsos artísticos na natureza: o que nos colocará em
condições de compreender e apreciar mais profundamente a relação do artista
helênico com os seus arquétipos ou, [...] a imitação da natureza”.(NT, 1992,
p. 32)
Nietzsche parte agora na direção de saber como os impulsos naturais se
acomodam ou como os artistas gregos organizam esse impulso oriundo da natureza.
Nessa rota, ele percebe que os “Ditirambos de Dionísio” são a manifestação em solo
22
23
NT, 1992, p. 32.
NT, 1992, p. 32.
14
Grego das pulsões dionisíacas. Se inicialmente temos os impulsos como força da
natureza, agora, depois de registrar a presença de Dionísio nas festas bacantes, ele se
manifesta não mais como algo natural, orgiástico, mas como arte. E aqui vale ressaltar o
“ditirambo dionisíaco” como música. O som ou a musicalização, no qual o corpo é
embriagado pela percussão excitante, faz com que se reconciliem as forças constitutivas
da natureza, permitindo assim, a existência da realidade como nos é comum proceder
com ela. De impulso natural essas forças sempre irão se expressar de modo artístico e
sempre conciliando, sopesando duas pulsões. “Agora a essência da natureza deve
expressar-se por via simbólica, um novo mundo de símbolos se faz necessário, todo o
simbolismo corporal, não apenas o simbolismo dos lábios, dos semblantes, das palavras,
mas o conjunto inteiro [...].”24 Nesse jogo de criação, no qual toda palavra será
considerada uma criação metafórica ou criação. Aqui vale relembrar as observações de
FINK sobre a passagem de condições psicológicas para cósmicas ou naturais. No
movimento do texto de Nietzsche, primeiro ele fala dos impulsos naturais e, depois, em
como ele se manifesta artisticamente. Operação que FINK chama de salto.
Mas como esse jogo teve início? Como os gregos conseguiram fazer com que a
máxima do deus silvestre, Sileno, de que era melhor não nascer e, depois de ter nascido,
era melhor morrer, se convertesse e possibilitasse a vida? “O grego conheceu e sentiu os
temores e os horrores do existir: para que lhe fosse possível de algum modo viver, teve
de colocar ali, entre ele e a vida, a resplendente criação onírica dos deuses olímpicos.” 25
Certamente, esse momento é fundamental para compreendermos o novo jeito de lidar
com a verdade. É nesse contexto que Nietzsche cunha, propõe, um novo olhar para a
“Senhora Verdade”. Não que ele proponha um ceticismo, mas propõe um novo olhar de
como surge a verdade.
24
25
NT, 1992, p. 35.
NT, 1992, p. 37.
15
Em um balanço preliminar Nietzsche pontua que em sua busca para certificar
como essas forças, apolínea e dionisíaca, se deram em solo grego ele certifica que é “na
tragédia ática e no ditirambo dramático” a manifestação dessa união.
Para melhor compreendermos o que é a tragédia em seu contexto social
lancemos mão da análise de Jaeguer.26 Segundo ele, após a vitória de Atenas sobre os
Persas, instalou-se em Atenas um novo modelo de governo. Não mais baseado nas
aristocracias rurais e proprietárias de terras, mas agora estribada no espírito de um povo
que venceu seus “invasores”, o qual crê na sua participação como pedra fundamental na
constituição do Estado. Nesse novo período é que floresceu, então a arte Dórica, mais
enxuta, robusta, forte. Substituindo a arte Jônica própria daquela corte abastada, onde o
que importava era ser bem nascido. A hereditariedade é que determinava o futuro dos
indivíduos e não seus méritos. A arte dórica, a que Nietzsche se refere como sendo o
mais belo rebento ou como o casamento mais adequado entre Apolo e Dionísio, é isso:
representa a pulsão de um povo, o desejo de um povo.
É nesse contexto que surge a “tragédia Ática e do ditirambo dramático, como
alvo comum de ambos os impulsos, cuja misteriosa união conjugal, depois de
prolongada luta prévia, se glorificou em semelhante rebento [...]”.27
Faz-se mister nesse percurso pensar, segundo Nietzsche, um tipo de artista que
desenvolveu essas manifestações da natureza, a apolínea e a dionisíaca, no campo das
artes. Nesse caminho ele encontra dois modelos de artista. Um é Homero, artista
objetivo, outro é Arquíloco, artista subjetivo. Mas para Nietzsche de O Nascimento da
Tragédia um bom artista deve ser objetivo. Propõe, então, um novo olhar sobre a idéia
que se tem de artista subjetivo. Para FINK, Nietzsche dá saltos do âmbito psicológico
26
Cf. JAEGUER, W. Paidéia: A formação do homem grego. Trad. Artur M. Pereira. São Paulo: Martins
Fontes, 1986, 966 p. Consultamos, na obra, o Livro Segundo, intitulado: Apogeu e Crise do Espírito
Ático, dedicado ao estudo da tragédia e da comédia.
27
NT , 1992, p. 42.
16
para a construção mesma da natureza, do real e desse modo diz que a realidade é
vontade e aparência. Em um outro momento ele faz o contrário, salta dessas condições
cósmicas para saber como elas se dão no âmbito artístico e é isso que ele procura em
Homero e Arquíloco. Assim, então, Nietzsche caracteriza o artista capaz de dar o salto
da natureza para arte:
“[...] pois só conhecemos o artista subjetivo como mau artista e exigimos em
cada gênero e nível da arte, primeiro e acima de tudo, a submissão do
subjetivo,a libertação das malhas do “eu” e o emudecimento de toda a
apetência e vontade individuais, sim, uma vez que sem objetividade, sem
pura contemplação desinteressada, jamais podemos crer na mais ligeira
produção verdadeiramente artística.” (NT, 2001, p. 43)
Ora, o artista lírico é caracterizado por relacionar-se com uma certa
subjetividade. Mas, considerando o princípio acima, como ele, então se faz artista
agora?
“Ele se fez primeiro, enquanto artista dionisíaco, totalmente um só com o
Uno-primordial, com sua dor e contradição, e produz a réplica desse Unoprimordial em forma de música, ainda que esta seja, de outro modo,
denominada com justiça de repetição do mundo e de segunda moldagem
deste: agora porém esta música se lhe torna visível, como numa imagem
similiforme do sonho, sob a influência apolínea do sonho. Aquele reflexo
afigural e aconceitual da dor primordial na música, com sua redenção na
aparência, gera agora um segundo espelhamento, como símile ou exemplo
isolado. (...) O „eu‟ do lírico soa portanto a partir do abismo do ser: sua
„subjetividade‟, no sentido dos estetas modernos, é um ilusão.” (NT, 1992, p.
44)
A solução apresentada, então, é de que a experiência subjetiva é um
participar de uma natureza, de um princípio originário de tudo. E desse modo ele não
está fazendo experiência de sua subjetividade, de sua individualidade, mas de um fluxo,
de um rio, do devir. Esse nosso rumo interpretativo encontra alento: “O gênio lírico
sente brotar, da mística auto-alienação e estado de unidade, um mundo de imagens e de
símiles, que tem coloração, causalidade e velocidade completamente diversas do mundo
do artista plástico e do épico.”28 Esse modo de pensar o artista lírico procura administrar
28
NT, 1992, p. 45.
17
a idéia parcial que comporia o artista. Ele, nesse olhar de Nietzsche, não pode ser
apenas uma das partes do real. Deve conter na sua criação aquelas duas forças. Sua
atividade de criação é também aquela força criadora universal. Nesse sentido, segundo
DIAS, Nietzsche rejeita a distinção entre subjetivo e objetivo. “Rejeita-a integralmente.
O artista subjetivo é um mau artista, um não artista. Um verdadeiro artista deverá ser
necessariamente objetivo, isto é, ser capaz de conter e calar o querer individual. O
triunfo sobre a subjetividade é a condição de toda arte e de todo o poetar”.29
Mas então como considerar Arquíloco artista? Segundo DIAS, “Nietzsche
encontra para essa questão uma resposta: a música. Para ele, „o som é o meio mais
importante para se desembaraçar da individualidade.‟ O poeta lírico é antes de tudo
compositor, artista dionisíaco que renuncia à sua subjetividade para indentificar à
verdadeira realidade e refleti-la na música”.30 Acompanhando as reflexões de DIAS,
podemos notar que Nietzsche caminha para compreender de um modo diferente o poeta
lírico, pois ele é dionisíaco e apolíneo; ele deve conter as duas pulsões que compõe o
real que: “sob a influência de Apolo, em estado de sonho, transfigura essa música em
palavras, simboliza-a na forma específica da linguagem poética [...]”.31
É assim, então, que se pode pensar o poeta da música, da percussão, embalando
o artista que se entrega em êxtase místico e que com isso participa da eterna verdade, ou
da vontade que é a que faz as coisas acontecerem. Essa questão da criação artística, que
deve, no entender de Nietzsche, romper com individualidade, não pode ser reflexo
disso, e até mesmo essas artes, o mito, o herói se justificam no entendimento de
Nietzsche quando tem com fonte de sua existência o vir-a-ser, Dionísio. E ele insiste:
“Nós, de nossa parte, afirmamos antes que toda essa contraposição do
subjetivo e do objetivo, segundo a qual, como se fora uma medida de valor,
29
DIAS, Rosa M. Nietzsche e a música. São Paulo: Discurso Editorial; Ijuí-RS: Editora Unijuí, 2005, p.
42 (Col. Sendas e Veredas. Coord. Scarlet Marton).
30
DIAS, 2005, p. 43.
31
DIAS, 2005, p. 46.
18
mesmo Schopenhauer ainda divide as artes, é em geral inadequado em
estética, uma vez que o sujeito, o indivíduo que quer e que promove os seus
escopos egoísticos, só pode ser pensado como adversário e não como origem
da arte”. (NT, 1992, p. 43)
Enfim, não é possível criar arte da individualidade ou da idéia de que existe uma
individualidade independente do todo, “mas na medida em que sujeito é um artista, ele
já está liberto de sua vontade individual e tornou-se, por assim dizer, um médium
através do qual o único Sujeito verdadeiramente existente celebra a sua redenção na
aparência.”32 E aqui nós é apresentado a idéia de que só existimos como fenômenos
estéticos. De que o verdadeiro existente, o Ser é o único que existe por detrás das
aparências. Que a própria aparência é uma criação desse, e nesse sentido toda nossa
„aparente‟ individualidade é uma criação estética.“(...) que nós já somos, para o
verdadeiro criador desse mundo, imagens e projeções artísticas.33” E a na seqüência,
uma das observações clássicas dessa obra: “pois só como fenômeno estético podem a
existência e o mundo justificar-se eternamente.” Consideração fundamental para
podermos lançar um novo olhar sobre a verdade. Só há movimento e por isso é
necessário considerar que os fenômenos são criados. Não são algo extático.
Consideração que julgamos relevantes em nossa investigação, pois considerando esse
processo de criação podemos estendê-lo a processos educacionais, perspectiva que
estamos perscrutando em O Nascimento da Trágedia.
1.2. O CORO
Posto essa observação, de como o artista lírico cria, fundamental no pensamento
de Nietzsche nessa obra, passemos, então, a compreender um outro processo. Como o
coro entra e passa a fazer parte desse processo de criação. Para Anna Hartmann
32
33
NT, 1992, p. 47.
NT, 1992, p. 47.
19
Cavalcanti, “após analisar o processo de criação do poeta lírico [...] Nietzsche dispõe
dos principais elementos para desenvolver [...] a tese central de sua primeira obra, a
saber, o nascimento e gênese da tragédia grega a partir do coro ditirâmbico.” 34 No
encalço dessa senda investigativa vale, antes, fazer uma digressão que demonstrará em
que especificamente nosso olhar está atento. Temos observado no ensino de Filosofia o
seguinte fato: é da música, da sonoridade que surge o verbo, o conceito, a ação. O
jovem aluno está profundamente marcado por isso. A porta de aprendizado deles, para
nos remeter ao que Nietzsche procura nos primórdios de cada cultura, encontra-se na
música e a canção popular ou, com um termo mais abrangente, a musicalização é o
terreno mais fértil para tal. A música, desse modo, parece-nos ter capacidades peculiares
na expressão de uma cultura. Aprofundando nossa constatação, podemos trazer aqui o
próprio conceito de lúdico que é pensamento em movimento. A criança é marcada por
pensar em movimento, suas brincadeiras, seu jeito de dizer as coisas se dão sempre
ligadas ao movimento.35
Nesse sentido de que o movimento e pensamento são modos de expressão não só
da criança, mas das culturas em geral e que a música é uma fiel expressão dessa
dimensão é que Nietzsche procura compreender o coro e seu papel na composição
daquela manifestação cultural, a tragédia, que muito bem administra, no seu olhar, as
pulsões constitutivas do real.
Na época de Nietzsche tinha-se uma definição para o coro a qual era política,
porém lhe interessava uma outra. “Bem mais celebre do que essa explicação política do
coro é o pensamento de A.W. Schelegel, o qual nos aconselha a encarar o coro, em certa
34
CAVALCANTI, Anna Hartmann. Símbolo e Alegoria: a gênese da concepção de linguagem em
Nietzsche. São Paulo: Annablume/FAPESP/DAAD, 2005. p. 214
35
Cf. WALLON, Henri. Psicologia e Educação da criança. Lisboa: Vega/Universidade, 1979. Essa idéia
de que o lúdico é pensamento em movimento foi nos apresentada, também, pela professora Drª Maria
Celia Moraes Dias [FEUSP] por ocasião em que éramos aluno de pós-graduação, latu sensu, em arteeducação, da PUC MINAS.
20
medida, como a suma e o extrato da multidão de expectadores, como o „espectador
ideal.”36
Nietzsche discorda desse conceito, mas salienta que essa asserção de que “o coro
trágico dos gregos é obrigado a reconhecer nas figuras do palco existência vivas”, algo
de positivo. Porém, é na concepção de Schiller: “onde o coro é visto como muralha
viva que a tragédia estende à sua volta a fim de isolar-se do mundo real e de
salvaguardar para si o seu chão ideal e a sua liberdade poética”, que o autor ancora seu
barco reflexivo e denota que é essa a asserção mais apropriada para se pensar o coro e
sua relação com o surgimento da tragédia grega. Será nessa capacidade do coro de
auxiliar o clima da tragédia que Nietzsche irá vê sua importância.
Aqui vale insistir no texto de O nascimento da tragédia: “enquanto o próprio dia
é no teatro apenas artificial, a arquitetura somente simbólica e a linguagem métrica
apresenta um caráter ideal, continua reinando o engano no todo [...].37 A arte entra,
assim, de vez no terreno da criação e não vale a pergunta pelo que é real, no sentido de
opor realidade e fantasia, pois real é aqui é o fantasioso. A realidade na arte trágica é
aquilo que está acontecendo no palco. A criação artística é considerada como realidade
e não se pode dizer que exista uma outra realidade mais importante do que ela. Aqui o
jogo de criação já é real e o coro é, nesse contexto quem endossa esse jogo.
Nessa senda, o surgimento da tragédia grega tem como base o coro e na sua
qualidade: “O grego construiu para esse coro a armação suspensa de um fingido estado
natural e colocou nela fingidos seres naturais”.38 O que fez com que a tragédia não fosse
cobrada em termos de realidade e com isso ela “cresceu muito e, na verdade, por causa
disso, ficou desde o começo desobrigada de efetuar uma penosa retratação servil da
36
NT, 1992, p. 52.
NT, 1992, p. 54.
38
NT, 1992, p. 54.
37
21
realidade.”39 O que na verdade podemos notar é uma criação de uma égregora, de uma
involucro mística, no qual a tragédia encontrou terreno fértil para existir, e produzir
sentido. As observações de HARTMANN CAVALCANTI nos auxiliam a melhor
compreender e situar essa percepção que Nietzsche tem do coro. Para ela “o coro
trágico concentra e reúne em si, segundo Nietzsche, o papel que a música e o canto
tinham nos antigos cultos, a saber, o de possibilitar, através da metamorfose, a vivência
de um dóminio da experiência inacessível à imagem e ao conceito.” 40 É dentro dessa
dimensão para-real, portanto, que, ironicamente, Nietzsche observa como sendo o
centro, o fulcro, da produção daquela outra realidade. Vale precisar ainda: o coro gera
condições para a fantasia criadora operar, sem peia, sem amarras. Esse local não é só
físico, mas é também cultural. Aqui o espaço não é só aquele do teatro, mas o espaço
mais sutil e na verdade mais necessário, surge: é nas mentes daquela cultura que se
permite uma realidade teatral; palco para a criação e promissor, no olhar de Nietzsche,
na construção daquela outra realidade, daquela realidade que depois será tomada
parcialmente como uma realidade pelos socráticos.
O teatro ainda é susceptível de mais uma digressão nesse contexto. A
participação do indivíduo no êxtase dionisíaco proporcionado pelo teatro trágico, que
para Nietzsche é o indivíduo se entregando a fantasia de Dionísio, tem uma volta. E ela
é amarga, o deixar se lançar nos braços da fantasia tem um preço que pode ser um certo
pessimismo de Hamlet que ao perceber o rio da vontade não tem mais ânimo para
continuar a viver. Desse momento a arte é a salvadora. É ela que aplaina esse jogo. Se
por um lado somos atraídos pelo cerne da vida, pois ela é a única existente na
concepção de Nietzsche de O Nascimento da Tragédia, somos obrigados a encarar a
39
NT, 1992, p. 54.
HARTMANN CAVALCANT, A. Arte como experiência: a tragédia antiga segundo a interpretação
de Nietzsche. In: Barrenechea, M., Pinheiro, P., Feitosa, C.. (Org.). Nietzsche e os gregos. V Simposio
Internacional de Filosofia Assim Falou Nietzsche. Rio de Janeiro: DP&A, 2006, p. 54
40
22
vida particular e individual. Apesar da vida particular ser fruta da vontade como fundo
único e verdadeiro da realidade, essa particularidade é posta em cheque e perde o
sentido de ser. Para resolver essa falta de sentido que a vontade gera na vida individual
só a arte pode salvar. “Só ela [a arte] tem o poder de transformar aqueles pensamentos
enojados sobre o horror e o absurdo da existência em representações com as quais é
possível viver”.41 Aqui se faz a presença daquela outra pulsão que também existe: a de
criar fantasias, o poder de Apolo, pois sem esse não haveria o que chamamos mundo
fenomênico de realidade. Não se teria apego à própria individualidade. Assim, para
Nietzsche se justifica a individualidade. É o impulso natural de Apolo que instiga o
artista a criar o particular como dotado de sentido e razão de ser.
O poeta, esse nobre trabalhador, faz seu labor envolto em uma não-realidade,
reflete ele, também, esse modo de produzir a verdade. E como ele faz isso: “o poeta só é
poeta porque se vê cercado de figuras que vivem e atuam diante dele e em cujo ser mais
íntimo seu olhar penetra”.42 Sem as complicações modernas, dirá Nietzsche, “a metáfora
é para o autêntico poeta não uma figura de retórica, porém uma imagem substitutiva,
que paira à sua frente em lugar realmente de um conceito.” 43 Apesar de a vontade em
seu incessante jogo de criação parecer a única a existir. Nietzsche pensa ao contrário.
Ele considera que também há o impulso apolíneo que também atua e cria os sonhos, os
fantasmas, como atuação imediata de seus impulsos.
Ao definir a vontade como sendo aquilo que existe por detrás dos fenômenos,
identificado ela a Dionísio, Nietzsche passa a explicar como se dá o processo de criação
do artista. A questão que o autor procura resolver é: como algo que não se expressa em
palavras, não tem forma, pode se tornar em arte? A explicação dele é a seguinte: “No
fundo, o fenômeno estético é simples; tem-se apenas a faculdade de ver incessantemente
41
NT, 1992, p. 56.
NT, 1992, p. 59.
43
NT, 1992, p. 59.
42
23
um jogo vivo e de viver continuamente rodeado de hostes de espíritos, é-se poeta; Esse
feito é fruto de Apolo, é ele que cria essas imagens que ficam pairando na imaginação
do poeta. Imaginação que se bem excitada pela música, ganha força e contornos mais
nítidos, ao ponto, diríamos nós nos dias de hoje, de ter alucinações visuais, de fazer
confusão entre o sonho e o que chamamos de real. E continua no que toca a ser
dramaturgo, que também é uma explicação de como o drama surge: “[...] se a gente
sente apenas o impulso de metamorfosear-se e passar a falar de dentro de outros corpos,
é-se dramaturgo.”44 Nesse caso não se vê, mas transforma-se ou deixa-se possuir por
outra força que atua sobre o indivíduo que esta criando. Desprende-se dessas
observações duas idéias que procuram relacionar ação teatral e o papel teatral. Um
dionisíaco, a atuação, e outra apolínea, o papel a ser desenvolvido. Amarrando assim o
pensamento de Nietzsche em demonstrar como se dá a criação artística que é uma
transposição, sempre problemática, de algo sem forma, a vontade, para a linguagem
artística.
Consolida-se e com isso e vai autorizando nosso olhar de que a arte é a que
constrói uma verdade, mas essa verdade é um jogo estético de criação, e sua lei é a da
arte e não de qualquer outra coisa. O coro nessa empresa é o transfigurador e que
auxilia a romper as barreiras da individualidade. E a “tragédia grega como sendo o coro
dionisíaco a descarregar-se sempre de novo em um mundo de imagens apolíneo”,45
funciona como esse local privilegiado de formação, transformação. O teatro Grego é o
local privilegiado no qual as condições são as mais favoráveis para se produzir a arte;
arte entendida como sendo essa relação de dois impulsos naturais, que se transforma em
arte; Apolo e Dionísio.
44
45
NT, 1992, p. 59.
NT, 1992, p. 60.
24
Nessa nova definição ou demarcação do que seria propriamente coro Nietzsche
considera que “[...] o drama é a encarnação apolínea de cognições e efeitos dionisíacos,
estando dessa maneira separado do epos por um enorme abismo.”46 O coro, portanto,
não é um espectador ideal, mas é ele o motor da cena, é ele o representante da vontade e
por isso mais digno do que um mero espectador ideal. É nesse “plus” que Nietzsche
pensa observar a particularidade dessa manifestação cultural entre os gregos trágicos. “É
aí precisamente o coro, o qual gera a partir de si mesmo a visão e fala dela com todo o
simbolismo da dança, da música e da palavra.”47 Mas nem sempre o coro era
propriamente drama, outrora ele contituia nuna festa dionisíaca, o ditirambo dionsíaco,
mas será na tragédia propriamente que ele vai cumprir esse papel e em uma dada altura
ele “recebe a incumbência de excitar o ânimo dos ouvintes até o grau dionisíaco, para
que eles, quando o herói trágico aparecer no palco, não vejam algum informe homem
mascarado, porém uma figura como que nascida da visão extasiada deles próprios” 48.
Recorrendo a HARTMANN CAVALCANTI, para compreender melhor o processo de
criação envolvido no drama e que Nietzsche vê já acontecer no ditirambo, mas que
agora acontece como arte e não como ritual religioso, ela nós diz:
“Na interpretação de Nietzsche, acontecia com o dramaturgo algo semelhante
ao coreuta do ditirambo. Ele expressava em seus dramas tudo o que
vivenciava nos cultos dionisíacos – a intensidade e alternância dos afetos, os
estados de transformação de si característicos destes rituais – traduzindo este
plano das forças e emoções primeiramente para uma melodia e, em seguida,
esta era transposta para imagens, figuras e acontecimentos”. (HARTIMANN
CAVALCANTI, 2006. p. 54)
Essa seria uma fase na qual estamos falando do ditirambo e como ele se cria. No
olhar de HARTMANN CAVALCANTI, Nietzsche então conceberia que a dramaturgia
passaria por processo semelhante. Sua observação, então, elucida nossa última citação
de Nietzssche, pois explica como o drama se constitue: “Nietzsche compreende,
46
NT, 1992, p. 61.
NT, 1992, p. 61.
48
NT, 1992, p. 62.
47
25
portanto, a criação dramática como um duplo movimento de transposição: um primeiro
movimento, no qual o plano não figurativo das pulsões e emoções dionisíacas recebe
expressão na música. E um segundo, no qual a música suscita imagens que são a
expressão alegórica do estado dionisíaco.”49
A tragédia, como aquele modelo de arte que é fruto da proximidade tensa de
Apolo e Dionísio, carrega em si contradições, de um lado: “linguagem, cor, mobilidade,
dinâmica do discurso entram, [...] na lírica dionisíaca do coro e, de outro, no onírico
mundo apolíneo da cena, como esferas completamente distintas de expressão.” 50 Mas
será assim que aquelas forças naturais irão se expressar; agora o herói será a expressão
da vontade, da pulsão dionisíaca. O herói será aquela imagem apolínea das pulsões
dionisíacas. Será nessa relação que essência se expressará na aparência.
A força da aparência, e aqui Nietzsche recorre às produções de Sófocles, nesse
contexto é de uma aparente desvelamento total do ser. No efeito da tragédia é isso que
ocorre. Mas aqui uma metáfora que envolve o mito é pertinente: “surgem diante dos
olhos, como uma espécie de remédio, manchas escuras [...]” que protege o “olhar no
que há de mais íntimo e horroroso na natureza.” 51 O mito, portanto, cumpre esse papel
de revelar o Ser, que para Nietzsche é a própria vontade. É desse processo que surge a
chamada “serenojovialidade grega”. Apesar do absurdo da existência, o grego da época
das tragédias constrói nesse processo uma estabilidade. Mas essa conquista dos gregos
não pode ser confundida, salienta Nietzsche. Sua vitória não foi fruto de uma razão, mas
desse jogo, desse fitar o cerne da vida e ser ao mesmo tempo protegido. Processo que
logra êxito, como no foi apresentado por HARTMANN CAVALCANTI, dado aquele
49
HARTMANN CAVALCANTI, 2006. p. 54.
NT, 1992, p. 62.
51
NT, 1992, p. 63.
50
26
processo de criação do drama que parte da vontade, que se expressa em melodia, que, de
melodia, transforma-se em “expressão alegórica do estado dionisíaco.”52
No fundo o mito quer dizer algo. Ele funciona como protetor, ele joga, pois ora
mostra o ser, ora esconde-o para nos proteger. O mito representa, apesar de sua
aparência, algo mais e Édipo, enquanto mito, nos quer dizer:
“Sim, o mito parece querer murmurar-nos ao ouvido que a sabedoria, e
precisamente a sabedoria dionisíaca, é um horror antinatural, que aquele que
por seu saber precipita a natureza no abismo da destruição há de
experimentar também em si próprio a desintegração da natureza. „O aguilhão
da sabedoria se volta contra o sábio; a sabedoria é um crime contra a
natureza”. (NT, 1992, p. 65)
Surge, então, uma questão, que mais adiante caracterizaremos melhor, que é a
contradição, a dor, na composição do real. Se o mito, a tragédia, permite estabelecer um
jogo entre as duas pulsões do real, que é a pulsão apolínea e a dionisíaca,
já
transformadas em arte, é preciso agora administrar essa contradição e, após analisar as
contradições em torno do mito de Prometeu, Nietzsche a esse respeito chega ao seguinte
termo, citando o Fausto de Goethe: “Tudo o que existe é justo e injusto e em ambos os
casos é igualmente justificado.” Demonstrando, mais uma vez, que a “serenojovialidade
grega” administra essa contradição da culpa ou “a necessidade de sacrilégio imposta ao
indivíduo que aspira o titânico.”53 Ter desejos titânicos é ter sede de conhecer, de
participar do fluxo eterno, o que implica essas contradições, mas que acomoda a esse
ambíguo: “justo e injusto”. O todo é assim: sem sentido, pode-se dizer isso, também, do
ser, ou seja, o ente, o indivíduo, perde seu sentido diante do todo. O todo nesse aspecto
aterroriza o indivíduo por sua falta de propósito, não que o todo não tenha propósito, ao
contrário ele tem todos e por isso não tem nenhum em particular, ele engloba todos os
propósitos.
52
53
HARTMANN CAVALCANTI, 2006. p. 54.
NT, 1992, p. 69.
27
A tragédia, no entender de Nietzsche, tinha como pano de fundo único Dionísio,
a dor, ou a própria vontade que ali se apresentava de formas “aparentemente”
diversificada, mas no fundo era uma única coisa. Por apresentar a contradição, o mito
corre o risco de acabar. Porém, para Nietzsche, a tragédia salva o mito de sua possível
decadência.
Se nesse ponto a tragédia, dita mais uma vez de um modo diferente, é: “[...] o
conhecimento básico da unidade de tudo o que existe, a consideração da individuação
como causa primeira do mal, a arte como esperança jubilosa de que possa ser rompido o
feitiço da individuação, como pressentimento de uma unidade restabelecida.” 54
Dessa consideração é que a tragédia vai se posicionar como salvadora. Se o mito
fala, revela algo do ser, algo da vontade e por fitar o fluxo eterno se despedaça, ele é
revivido, pois a tragédia é arte; é aquela pulsão que mesmo diante da atração do todo
insiste em individuar-se. Arte de criar realidades. Só com essa capacidade ela vai dar
vida, injetar ânimo nos mitos homéricos, segundo Nietzsche. Pois o contrário, no que
toca ao mito, é sua corrosão, sua decadência, pois ao se argúi-las, com a razão, causa-se
a sucumbência dos mesmos. Talvez o que está nessa dinâmica é o interesse em resolver
o dilema que o mito apresenta, as contradições que ele põe, incita uma solução, um fim,
um resolver a peleja. Porém, o mito morre quando se procura historicizá-lo:
„Pois é o destino de todo mito arrastar-se pouco a pouco na estreiteza de uma
suposta realidade histórica e ser tratado por alguma época ulterior como um
fato único com pretensões históricas: e os gregos já estavam inteiramente em
vias de reestampar com perspicácia e arbítrio todo o seu sonho mítico de
juventude em uma estória de juventude histórico-pragmática.” (NT, 1992, p.
71)
Sistematizar é de certo modo resolver algo que não se deixa solucionar
aparentemente. O mito revela uma contradição, mas que deve permanecer sempre sem
uma solução. O movimento que o mito representa deve ser administrado sem substituir
54
NT, 1992, p. 70.
28
ou esquecer esse jogo que é ele representa. Quando se sistematiza os primórdios míticos
de uma cultura/religião é o atestado de morte. A questão do mistério, do véu, vem à
baila. Não é possível atuar sem uma boa dose de ilusão, a dor da contradição ou da falta
mesmo de sentido deve ser sempre aplainada por essa ilusão. Para Nietzsche a Tragédia
Grega soube em um primeiro momento de sua história fazer esse jogo. Ao permitir a
existência do drama sem uma resolução racional de suas questões. Ainda nas tragédias
de Ésquilo e Sófocles permaneceu o fundo misterioso e místico desses problemas
trágicos. A tragédia não permitiu que os fundamentos míticos dessa cultura fosse
suplantados pela necessidade racional de história.
“Esse mito moribundo é agora capturado pelo gênio recém-nascido da música
dionisíaca: e em suas mãos floresce ele mais uma vez, em cores como jamais
apresentara, com um aroma que excita o pressentimento nostálgico de um
mundo metafísico.(...) Através da tragédia o mito chega ao seu mais profundo
conteúdo, à sua forma mais expressiva. Uma vez mais ele se ergue, como um
herói ferido, e em seus olhos, com derradeiro e poderoso brilho, arde todo o
excesso de força, junto com a calma cheia de sabedoria do moribundo.” (NT,
1992, p. 72)
O que está em questão é exatamente o poder do mito em continuar a propiciar o
jogo entre Ser e Ente. Com a tragédia é revivido esse poder, essa função do mito em
falar daquilo que Nietzsche chama de vontade. Como aquela força cósmica e metafísica
que se encontra por detrás de toda realidade. A tragédia permite que o mito funcione
com plenitude. Sua principal estratégia, segundo Nietzsche, encontra-se no coro. Para
HARTMANN CAVALCANTI, “o coro trágico torna possível lançar um olhar ao que
Nietzsche chama de abismo mais íntimo das coisas, o jogo gratuito de construção e
destruição, no qual todas as convicções se dissolvem em sempre novas interrogações.” 55
Mas só será nesse jogo que se recupera o sentido da vida e é desse jogo que a arte
trágica, segundo HARTMANN CAVALCANTI, “vivenciava os mistérios, como era
55
HARTMANN CAVALCANTI, 2006. p. 59.
29
capa de enriquecer sua compreensão de si e da existência.” 56 Mexer no o coro é colocar
em riscos o mito e a própria tragédia. A tragédia é um campo “energético”, estético, de
criação. Sua força, sua origem é Dionísio que representa a pulsão dionisíaca. Substituílo é como tirar o combustível de uma lâmpada: ela vai apagando, depois queima o
próprio pavio e, por fim, apaga. Após decrescer sua origem, sua composição, como cada
composição de dá, Nietzsche aponta como se deu o ocaso. Infelizmente esse momento
peculiar de lide com a vontade e fenômeno não conseguiu perdurar. O conhecimento
trágico, porém, não foi muito longe. Do embalo produzido pela música o espectador
conseguia forças para dotar de sentido a própria vida. A música, então faria a transição
do estado dionisíaco para o apolíneo. HARTMANN CAVALCANTI nos diz:
“Assim como dramaturgo dá expressão total a seus afetos e emoções, a partir
dos quais engendra imagens e símbolos poéticos, o espectador antigo
encontra na música uma forma de transpor o que foi vivenciado no estado
dionisíaco, formando a partir dela imagens e associações. Quando estas
energias se convertem em representações, o espectador tem uma experiência
pessoal, capaz de iluminar e orientar sua existência”.(HARTMANN
CAVALCANTI. 2006. p. 60)
Reafirma-se, então, a ideia de que o coro é o motor da tragédia. Porém, seguindo
o percurso de Nietzsche em O Nascimento da Tragédia, esse núcleo está prestes a ser
substituido. Fazendo uso da literatura grega que lhe era familiar por ofício de professor
de filologia, arregimentando provas nesse campo, ele chega a Eurípides, primeiro, e,
depois, a Sócrates como expoentes, arquétipos, de uma coisa que não poderá ser
chamada de instinto, pois o pensar não seria propriamente instinto,57 mas de pathos da
racionalidade e que enseja se colocar no lugar do coro e de sua música.
A racionalidade, portanto, substitui o combustível da tragédia. Substitui o cerne
das criações que era a música; a arte que mais se aproxima da vontade. Com essa
56
HARTMANN CAVALCANTI, 2006. p. 60.
Cf. NIETZSCHE, F. Verdade e Mentira no Sentido Extramoral. Tradução e prefácio de Noeli Correia
de Melo Sobrinho. Comum - Rio de Janeiro - v.6 - nº 17 - p. 05 a 23 - jul./dez. 2001. Texto em que
Nietzsche, segundo Roberto Machado em “Nietzache e Verdade”, desenvolve com mais consciência a
idéia da verdade mais ligada a um instinto de verdade, algo mais já ligado a moral do que propriamente
epistemológico.
57
30
operação de substituição, que veremos em mais detalhes na seção seguinte, é que
observaremos algo: não mais se cria, função própria da arte, mas se argüi, examina,
disseca, jeito próprio da razão nascente. O conhecimento racional é oposto ao
conhecimento trágico. Para o conhecimento racional o que importa é apenas a
dissecação lógica da realidade. Sua pretensão é dizer sobre a pulsão da vida; até
pretende participar do rio “caudalosa” da existência, mas se mantém longe dele, e
pretende, como que apartado, falar de algo e para tal usa a metáfora, uma pura
conjectura, uma projeção. Se ela, a razão, sempre fosse honesta revelaria essa sua
condição, mas ela não o faz, arroga-se no direito inclusive de achar que sua “pretensão à
verdade” é a única digna de respeito.
Para Nietzsche, como podemos observar na seção em que estamos concluindo,
na tragédia grega a coisa se dá de modo diferente. Há a participação das faculdades
sensoriais no “rio caudaloso” da existência e por isso nela, na tragédia, existe o
“símile”. Aqui a dimensão apolínea quando fala, o faz por símile. A razão, que é a
dimensão apolínea, é autorizada a falar da coisa-em-si, pois participa dela através do
êxtase do teatro da tragédia; dizendo de outro modo: ao se expressar por símile ela se
expressa acerca de algo no qual ela se mistura e sua construção é mais pura emergência
da coisa-em-si, e não mera inferência racional sobre um mundo alheio. Pode-se dizer
que o sujeito racional faz a experiência da coisa-em-si no caso do conhecimento trágico.
Quando fala ou cria é daí que se faz. Suas criações é arte e expressam a própria
existência.
1.3. DECADÊNCIA DA TRAGÉDIA E DO CONHECIMENTO TRÁGICO
Se até aqui percorremos o surgimento, a composição, suas implicações, agora,
no percurso feito por Nietzsche, vamos acompanhar o fim da tragédia como
31
manifestação artística entre os gregos antigos. MACHADO, nesse ponto, nos dá um
importante aviso acerca da morte da tragédia: “A segunda idéia importante de O
Nascimento da Tragédia é a denúncia da morte da arte trágica perpetrada por
Eurípedes”.58 A tragédia enquanto manifestação artística suicidou, a morte das demais
artes foi algo lento e logo surgira suas substituas, mas na tragédia não, a coisa foi
rápida, para Nietzsche a “nova comedia ática pretendeu substituir a tragédia - nela
continuou a viver a figura degenerada da tragédia, um movimento a seu penoso e
violento passamento.”59 O nome que está ligado, que marcou esse episódio foi
Eurípides e a racionalidade emergente. No próprio texto assim Nietzsche passa tecer
suas considerações sobre esse fim: “Se se quiser, porém, com toda a brevidade, e sem a
pretensão de dizer algo exaustivo, caracterizar aquilo que Eurípides tinha em comum
com Menandro e Filemon [...] bastar dizer que o espectador foi levado por Eurípides à
cena.”60
Sob a acusação de que Eurípides trouxe para a cena o espectador, com
preocupações racionais de explicar para o público a cena, a ocorrência cênica da
tragédia, está não só a questão do esquecimento de que há metáforas que chamamos de
real, como também, a perda, ou o início dessa perda, do que é próprio da tragédia.
Perde-se também, a referência da tragédia que é a de administrar, matendo sempre a
tensão dos dois impulsos artísticos da natureza. Nessa mesma citação Nietzsche já
assinala que esse feito é começo do fim da tragédia. Quando o espectador é posto em
cena o que está fazendo é esquecer desse jogo. E dar início ao cultivo de um modelo que
toma efetivamente o encenado como sendo algo garantidor de que há conexão entre o
58
MACHADO, R. C. M. (Org.). Nietzsche e a polêmica sobre O nascimento da tragédia. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar, 2005. p. 9. - Nesse mesmo texto MACHADO nos fala de dois outros pontos capitais da obra
em questão de Nitzsche. A primeira é a explicação da origem, da composição e finalidade da arte trágica
grega. A terceira idéia “é a tentativa de encontrar o renascimento da tragédia ou da concepção trágica do
mundo, em algumas manisfestações culturais da modernidade”. Que iremos abordar no tópico 1.5 desse
capítulo.
59
NT, 1992, p. 73.
60
NT, 1992, p. 73.
32
jogo de linguagem, as metáforas e o cerne do ser, daquilo que existe. E depois, em um
segundo momento, o esquecimento mesmo de que o que deve ser encenado não é os
desejos egoístas do indivíduo, mas aquele jogo da vontade. “Quem tiver compreendido
de que matéria os tragediógrafos prometeicos anteriores a Eurípides formavam os seus
heróis e quão longe deles estava o propósito de trazer à cena a máscara fiel da realidade
[...]”.61 Ou seja, os mitos eram feitos de fantasia, pura criação artística e cumpria o papel
de dizer sobre as contradições que encerra a vida, mas sem nos desanimar da vida, ao
contrário, produzia um prazer em viver.
Eurípides, dentro do movimento de decadência do conhecimento trágico, ao
racionalizar a tragédia acaba com todo o efeito do conhecimento trágico que requer uma
dose de mistério. Para Nietzsche, Eurípides ao racionalizar os processos trágicos acaba
por esquecer que o mais importante é o êxtase dionisíaco. Ele chega mesmo a esquecer
que o mais importante não são as figuras, a aparência, mas seu fundo dionisíaco.
Nietzsche vai dizer que esse desejo pela verdade, ainda mais explicita em Sócrates,
acaba acossando a idéia de que o mundo fenomênico é uma criação artística. A razão
assume o lugar da arte e declara a criadora da realidade.
No texto de Nietzsche, sempre com seu jogo, com seu recurso de linguagem, ele
demarca, mais uma vez, na minúcia do fato, como Eurípides fez isso. “No essencial, o
espectador via e ouvia agora o seu duplo no palco euripidiano e alegrava-se com o fato
de que soubesse falar tão bem.”62 Ora, como isso é possível? Onde fica o cerne da vida?
Onde fica, e isso é mais relevante nessa mudança de perspectiva, a consciência de que
tudo não passa de um jogo estético de criação que tem como referente o dionisíaco.
Começa, então, uma caminhada para o “esquecimento do ser”, sem aqui nos
comprometermos com a clássica leitura de Heidegger sobre a metafísica, pode-se dizer,
61
62
NT, 1992, p. 73.
NT, 1992, p. 73.
33
no texto em análise, que ao fazer com o espectador fosse levado para o palco é isso que
estava acontecendo entre os gregos clássicos. Passaram a entreter com a superfície e
esqueceram do que constituía o núcleo gerador da cena. Vale seguir ainda um pouco
mais esse detalhe que Nietzsche denota como ruim: “A mediocridade burguesa, sobre a
qual Eurípides edificou todas as suas esperanças políticas, tomou agora a palavra 63” e
foi isso que passou a ser cultuado. Ora, no modo anterior não era assim, “quando até ali
o semi-deus na tragédia e o sátiro bêbado ou o semi-home na comédia haviam
determinado o caráter da linguagem.”64
Esse movimento de levar as coisas, o jeito, o palavreado “burguês” para a cena
fez com que empobrecesse a tragédia e transformasse em nova comédia. O jeito iniciado
por Eurípides, segundo Nietzsche, fez surgir no lugar daquele indivíduo que participava
da tragédia a figura do espectador. O espectador se caracteriza por não participara do
jogo estético proposto pela tragédia, mas ele é alguém que observa a cena e procura
absorver racionalmente o que acontece no palco. Surge assim a idéia do espectador,
diferente do participante da tragédia, pois esse não participa propriamente. Ele fica
apartado da cena e é pelo intelecto que se relaciona com a cena. Desse modo, segundo
Nietzsche, Eurípides cria um novo tipo, o espectador.
Essa observação de que Eurípides criou o espectador, ao dizer que o participante
da tragédia poderia entender racionalmente a cena e ser capaz de fazer avaliações acerca
do que era encenado, não se dá por completo. Para Nietzsche ainda resta um mistério:
“Diante dessa ponderação, [a de que Eurípides levou o público ao palco]
vemos que a nossa afirmação, segundo a qual Eurípides levou o espectador
ao palco, a fim de torná-lo verdadeiramente apto ao ajuizamento, era apenas
uma afirmação provisória, e que devemos procurar uma compreensão mais
profunda de sua tendência.” (NT, 1992, p. 76)
63
64
NT, 1992, p. 74.
NT, 1992, p. 74.
34
Nietzsche, então, indaga, “o que foi então que impeliu o artista ricamente dotado
e incessantemente movido à criação a desviar-se de maneira tão violenta do caminho
sobre o qual brilhavam o sol dos maiores nomes poéticos[...]”.65 A suspeita de
Nietzsche é a de que o pensamento ou o modo no qual é a partir da consciência, do
pensar que se vive, está próximo de se tornar modelo de vida, ainda que para Eurípides
isso não fosse claro. Pairava para ele um fundo misterioso que não deixava ser
totalmente dominado pela razão.
A racionalidade que movia Eurípides o fez se deparar com algo. Na ânsia por
metrificar, Eurípides fez mais uma coisa, ou melhor, ele descobre algo:
“E aí encontrou algo que não deve ser surpresa para o iniciado nos
arcanos mais profundos da tragédia esquiliana: percebeu alguma coisa de
incomensurável em cada traço e em cada linha, uma certa precisão
enganadora e ao mesmo tempo uma profundidade enigmática, sim, uma
infinitude do fundo. A mais clara figura ainda assim trazia consigo uma
cabeleira de cometa, que parecia apontar para o incerto; o inclarificável. O
mesmo lusco-fusco estendia-se sobre a estrutura do drama, particularmente
sobre o significado do coro. E quão duvidosa permanecia para ele a solução
dos problemas éticos!” (NT, 1992, p. 77)
Eurípides parece ter notado que seus esforços de racionalização da tragédia não
contribuíram para que ela se manifestasse com mais força. Todo o seu trabalho de
metrificar a tragédia não conseguiu dar força a ela, ao contrário, quando prevalecia o
êxtase dionisíaco sua força era revelada com mais vivacidade. Ele tentou por ordem,
falar racionalmente, mas mesmo assim ele se viu obrigado a aceitar que o elemento
dionisíaco era mais forte e era daí que brotava o seu movimento e não da explicação
racional, muito menos do espectador. Inconformado com essa falta de racionalidade
Eurípides e o espectador ficava “assim, cismado, intranqüilo, ficava sentado no teatro, e
ele, o espectador, confessava a si mesmo que não entendia seus grandes
predecessores”,66 pois faltava neles, segundo o olhar desse, algo de racional. Então seu
65
66
NT, 1992, p. 76.
NT, 1992, p. 77.
35
propósito era: “Exciar da tragédia aquele elemento dionisíaco originário e onipotente e
voltar a construí-lo de novo puramente sobre uma arte, uma moral e uma visão do
mundo não-dionisíaco tal é a tendência de Eurípides que agora se nos revela em luz
meridiana.”67 A questão é, ele logrou êxito? Não. E ironicamente Nietzsche se dispõe,
agora, a apresentar esse elemento que fez do próprio uma máscara. Ou seja, o que o
movia, seu manipulador, era Sócrates e será com essa nova categoria que a tragédia veio
a baixo. Para MACHADO:
“[...] a segunda causa, ou melhor ainda, a razão principal, do chamado
suicídio da tragédia é o socratismo de Eurípedes. Pois, para Nietzsche,
Eurípides foi apenas uma máscara, no sentido de que quem falava por ele não
era Apolo nem Dionísio, era Sócrates, o protótipo do homem teórico, aquele
que só encontra satisfação em arrancar o véu da aparência, aquele que
acredita ser possível penetrar no fundo das coisas, separando o conhecimento
verdadeiro da aparência.” (MACHADO, 2005, p. 10)
Sócrates representando um modelo de cultura que vê na razão a única fiadora da
existência. Como sendo ela a que tem a capacidade de dizer, então, o que é verdade,
dizer acerca do Ser.
Será a categoria Sócrates com a qual Eurípides combateu e venceu a tragédia de
Ésquilo. No conjunto de estranhezas e substituição Nietzsche, ardoroso amante da
música, começa por notar que lugar da música se põe o intelecto como motor, motivo,
do drama, algo, para ele, totalmente estranho.
“Assim, o drama euripidiano é ao mesmo tempo uma coisa fria e ígnea, capaz
de gelar e de queimar; é lhe impossível atingir o efeito apolíneo do epos, ao
passo que, de outro lado, libertou-se o mais possível do elemento dionisíaco e
agora, para produzir efeito em geral, precisa de novos meios de excitação, os
quais já não podem encontrar-se dentro dos dois únicos impulsos artísticos, o
apolíneo e o dionisíaco. Tais excitantes são frios pensamentos paradoxais
[grifo nosso] – em vez das introvisões apolíneas – e afetos ardentes – em
lugar dos êxtase dionisíacos[...]”. (NT, 1992, p. 80)
Enfim, substitui o cerne da tragédia que é a música pelo intelecto. O
racionalismo de Eurípides no trato do teatro é algo estranho e Nietzsche assim denota:
“Nada pode haver de mais contrário à nossa técnica cênica do que o prólogo
no drama de Eurípides. Que uma personagem individual se apresente no
67
NT, 1992, p. 78.
36
início da peça contando quem ela é, o que precedeu à ação, o que aconteceu
até então, sim, o que no decurso da peça há de acontecer – isso um autor
teatral moderno tacharia de renúncia propositada é imperdoável ao efeito da
tensão. Quem vai querer esperar que ocorra realmente? – Mesmo porque, no
caso, não se verifica absolutamente a excitante relação de um sonho
vaticinador com uma realidade que se apresentará mais tarde”. (NT, 1992, p.
81)
O modo de criação da arte trágica de Ésquilo e Sófocles era intuitivo e não
estava preocupado com questão lógica, com causa e efeito. Não eram racionalistas. Eles
conseguiram criar uma atmosfera tal, embalada pela música e pelo coro, que a
participação do Ser se dava com efeitos fantásticos. Ao contrário, Eurípides, em termos
de conhecimento, podemos dizer que esse modelo que pretende ser racional acaba por
desmotivar. É um estilo que mata a pulsão, o querer se envolver com a trama e, como
efeito, fazer parte de fato do cerne da natureza. Podemos notar essa insistência de
Nietzsche em denotar esse argumento:
“Completamente diverso era o modo de Eurípides de refletir. O efeito da
tragédia jamais repousava sobre a tensão épica, sobre a estimulante incerteza
acerca do que agora e depois iria suceder, mas antes sobre aquelas grandes
retórico-lírica em que a paixão e a dialética do protagonista se acaudalavam
em largo e poderoso rio. Tudo predispunha para o pathos e não para a ação”.
(NT, 1992, p. 81)
É o exemplo da razão substituindo o pathos trágico. Os recursos da tragédia, sua
emotividade, que fazia com que o mito, a saga do herói, ganhasse força e fizesse o
objetivo de criar uma realidade estética, é substituído pela pura racionalidade que torna
o cerne do drama. Algo, no olhar de Nietzsche, totalmente estranho, e desprezível. Seu
modelo, por outro lado, é a tragédia de Ésquilo e Sófocles:
“A tragedia sofocliana-esquiliana empregava os mais engenhosos meios
artísticos para pôr em mãos do espectador, nas primeiras cenas, em certa
medida de um modo acidental, todo aqueles fios necessários ao
entendimento: um traço em que se comprova essa nobre mestria artística que
mascara o necessariamente formal e, ao mesmo tempo, o deixa aparecer
como acidental”. (NT, 1992, p. 82)
Nessa perspectiva pode-se notar que o cerne da tragédia é a pulsão dionisíaca e
não a razão. A razão e o espírito racional atuam como falsários quando pretendem ser o
37
cerne da tragédia. A razão, que deveria apenas ser serviçal, agora, com Eurípides, se
arvora no direito de ser ala a fonte do real. Não assume seu papel de dissimuladora, no
sentido de que cria. Essa razão quer ser duas coisas, sendo que lhe compete apenas
sorver do Ser e representá-lo, mas ela quer ser também a fonte. O modo racional de
Eurípides chega à conclusão de que se Ésquilo cria sem saber racionalmente o que está
fazendo sua arte é menor e não pode ser considerada como arte. “Eurípides se
encarregou, como também Platão o fizera, de mostrar a contraparte do poeta
„irracional‟; o seu princípio estético, „tudo deve ser consciente para ser belo” 68 esse
movimento que nega a natureza dionisíaca também encontra correlato em Sócrates, que
no texto de Nietzsche assim é: “ tudo deve ser consciente para ser bom”69.
Se Eurípides é o iniciador dessa racionalidade, será em Sócrates o arquétipo
dela. A tendência da racionalidade, do primado da razão encontra, para Nietzsche, em
Sócrates larga guarida: “Com espanto, reconheceu que todas aquelas celebridades não
possuíam uma compreensão certa e segura nem sequer sobre suas profissões e seguiamnas apenas por instinto”.70 Com essa surpresa é que o Sócrates se sente bem, e será com
essa arrogância que ele irá argüir a todos.
O socratismo, então, seria culpado por apagar o instinto e por no seu lugar a
razão. O pathos racional, nesse sentido, é uma operação que mata a pulsão da vida. Ora,
mas é essa pulsão que gera vida, é daí que surgem as coisas, em termos culturais, é
desse pulsar a fonte que gera as manifestações, colocar no seu lugar um “impulsoracional” é no mínimo praticar um crime. É propor algo que irá necrosar. Segundo
MACHADO a crítica de Nietzsche a “estética racionalista‟ socrática ou o „socratismo
68
NT, 1992, p. 83.
NT, 1992, p. 83.
70
NT, 1992, p. 85.
69
38
estético‟ como o princípio mortal que destruiu a tragédia, é por ter introduzido na arte a
lógica, a teoria, o conceito, subordinando o poeta ao teorico, a beleza à razão.” 71
Opera-se, em Sócrates algo estranho: “enquanto, em todas as pessoas produtivas,
o instinto é justamente a força afirmativa-criativa, e a consciência se conduz de maneira
crítica e dissuasora, em Sócrates é o instinto que se converte em crítico, a consciência
em criadora [...]”,72 algo profundamente estranho. Se consideramos que é da coisa-em-si
ou da Vontade a fonte donde, através da experiência subjetiva desse universal, se cria,
se faz metáforas, observa-se que em Sócrates é a consciência que se coloca no lugar da
Vontade. Ela se posta como se fosse dionisíaca, mas mais parece, inicialmente, com
apolínea. Mas uma apolínea peculiar, não é aquele instinto estabeleceu um jogo
profícuo no teatro da tragédia, ele é anacrônico, pois reina sozinho. Assim é essa
consciência que toma para si o papel de criadora e é ela que aflora com o Sócrates
argüidor.
Mas o mais cômico é que esse espírito lógico tem uma contradição básica: “[...]
de outro lado, porém, aquele impulso lógico que aparece em Sócrates estava
inteiramente proibido de voltar-se contra si próprio.”73
Esse olhar crítico e que se aprazia em desbancar os saberes erigidos sob os
instintos, agora acossa a tragédia. Certamente a arte trágica era o prato predileto para as
críticas de Sócrates. Ainda nos efeitos de Sócrates, para ele “parecia que a arte trágica
nunca „diz a verdade‟: sem considerar o fato de que se dirigia àquele que „não tem
muito entendimento”, portanto aos não filósofos [...]. ” 74 A solução para esse problema,
a saber, para a falta de razão da tragédia, fato que a desqualificava, inscrevendo-a entre
as arte aduladoras, deveria ser a seguinte:
71
MACHADO, 2005. p. 10.
NT, 1992, p. 86.
73
NT, 1992, p. 86.
74
NT, 1992, p. 87.
72
39
“[...] agora o herói virtuoso tem de ser dialético; agora tem de haver entre
virtude e saber, crença e moral, uma ligação obrigatoriamente visível. agora a
solução transcendental da justiça de Ésquilo é rebaixada ao nível do raso e
insolente princípio da “justiça poética [...].” (NT, 1992, p. 89)
Passo a passo de como acabar com a tragédia. Se anteriormente era através do
êxtase o momento em que o indivíduo se reconcilia com o uno primordial, agora, como
o advento do homem socrático, é a dialética que se propõe a resolver esse problema.
Mas terá a dialética tal poder? Segundo o pensamento de Nietzsche não. Essa
substituição ou essa imposição da dialética, como prática do homem teórico, deve ser
considerada não apenas como um detalhe simples no interior de uma dada manifestação
cultural. Aliás, tomemos cuidados, pois com olhos modernos deixamos de ver o quanto
isso é grave, o que está em questão é algo viçoso ceder lugar para um razão cinza, de
concreto. O estilo racional emergente vai, pouco a pouco, “concertando” os problemas
da tragédia. Até trocar, retirar aquilo que Nietzsche compreende como fulcro dessa
manifestação, que é a música e as particularidades da tragédia em lidar com o
movimento do real.
Uma tentativa de renegar algo, mas que também produz, segundo o olhar de
Nietzsche, mais uma contradição. Se Platão, discípulo singular de Sócrates, desqualifica
a arte por ser ela representação da representação ele, nesse olhar, produz algo que é uma
tentativa de acomodar a tragédia, já que essa não se classificava meramente como
representação. Para cumprir um compromisso Platão, nessa perspectiva, acaba por criar
os diálogos. O que são seus diálogos? “Nascido, por mistura, de todos os estilos e
formas precedentes, paira no meio, entre narrativa, lírica e drama, entre prosa e poesia, e
com isso infringe igualmente a severa lei antiga da unidade da forma lingüística.”75 Esse
novo modelo de escrever falar, “protótipo do romance”, opera a substituição da poesia
75
NT, 1992, p. 88.
40
para o pensar, pensar filosófico. E nesse novo texto, gera-se, também um novo contexto,
no qual:
“A dialética otimista, com o chicote de seus silogismos, expulsa a música da
tragédia: quer dizer, destrói a essência da tragédia, essência que cabe
interpretar unicamente como manifestação e configuração de estados
dionisíacos, como simbolização visível da música, como o mundo onírico de
uma embriaguez dionisíaca”. (NT, 1992, p. 90)
Sem a música na tragédia, agravo relevante para Nietzsche, perde-se um terreno
propício para a expressão e construção estética. Não se trata apenas de um deleite, mas a
música, não como a que se compreende popularmente nos dias de hoje, mas como
aquela mais “abençoada” na expressão da Vontade, como aquele tipo de linguagem
mais fiel aos desígnios da Vontade. Com isso, no texto de O Nascimento da Tragédia,
Nietzsche se dedica a falar do modelo racional como projeto de uma cultura e de como
esse foi o início de algo decadente.
1.4. O ADVENTO DA TEORIA COMO CENTRO GRAVITACIONAL DA VIDA
Segundo Nietzsche é mais plausível que o ser humano viva movido pelo instinto
e não pela razão. Para ele é mais plausível dizer que é a pulsão dionisíaca o que move a
vida e não o razão. E o autor concentra na figura de Dionísio esse princípio original
como sendo o que fato move a vida. Porém surge algo novo, o homem teórico. Esse
modelo propõe, advoga, um modelo de vida muito estranho: a vida é erigida sob a
razão. Para esse o homem teórico há seguinte substituição: no lugar da intuição, do
desejo de viver, instala-se uma razão que, naquele impulso criador, a tudo põe em
suspenso, e procura pensar a coisa, ou seja, não cria. Vive-se assim, dissecando, para
esse tipo é mais importante a forma, a regra, a inteligibilidade... E aí alguém pergunta,
mas vamos criar a coisa, já podemos começar! Mas o ser “raciocinante” está, como um
sujeito apegado excessivamente a Lei, querendo saber se já foi feito o estatuto. A
respeito desse homem teórico e de seu modelo de cultura o que está em questão para
41
Nietzsche é a imposição da lógica, da consciência como forma de viver. Segundo
Rüdiger SAFRANSKI:
“Nietzsche critica a alta valorização da consciência, considera funesta a
carreira do pensamento socrático [...]. Primeiro, isso destrói a Tragédia, e
depois limita o inconsciente criativo, e o inibe. Sócrates quebra o poder da
música, e em seu lugar coloca a Dialética. Sócrates foi funesto, com ele
começa o racionalismo que nada mais quer saber das profundezas do Ser.
Sócrates é o começo de um saber sem sabedoria.” (SAFRANSKI, 2001. p.
55)
Não quer dizer que o homem teórico não tenha, inicialmente, um ligação com a
vida e Nietzche pensa:
“Também o homem teórico tem um deleite infinito com o existente, qual o
artista, e, como ele, é protegido, por esse contentamento, da ética prática do
pessimismo e de seus olhos de Liceu, que só brilham na escuridão. Se com
efeito o artista, a cada desvelamento da verdade, permanece sempre preso,
com olhares extáticos, tão-somente ao que agora, após a revelação,
permanece velado, o homem teórico se compraz e se satisfaz com o véu
desprendido e tem o seu mais alto alvo de prazer no processo de um
desvelamento cada vez mais feliz [...] (NT, 1992, p. 92)
Talvez, vale dizer, em um primeiro momento, artista e homem teórico tem
estreitos laços, mas nesse momento fundamental ocorre algo inovador e põe artista para
um lado e o homem teórico para outro. O teórico começa a deixar prevalecer seu gosto
pelo analítico, pelo dissecar e pensa que aí está a questão fundamental.
O homem teórico, também, é movido pelo cerne da vida. Mas seu jeito, suas
opções, é que vão dá em outro resultado, assevera Nietzsche. Vejamos no texto:
“Agora, junto a esse conhecimento isolado ergue-se por certo, com excesso
de honradez, se não de petulância, uma profunda representação ilusória, que
veio ao mundo pela primeira vez na pessoa de Sócrates – aquela inabalável fé
de que o pensar, pelo fio condutor da causalidade, atinge até os abismos mais
profundos do ser e que o pensar está em condições, não só de conhecê-lo,
mas inclusive de corrigi-lo.”(NT, 1992, p. 93)
Essa crença inabalável é que propicia a substituição do saber trágico pelo
teórico. Essa razão irá resolver a contradição que jaz no princípio de fundamentação do
que chamamos de realidade. Mas, não se pode esquecer que se trata de uma
representação ilusória e que essa ciência tem limites, mesmo que goze entre nós,
42
modernos, sobretudo com o advento da cultura de massa televisiva, de uma posição
natural. Nietzsche, mais adiante, irá felicitar, para registrar que a tragédia está em vias
de nascer em solo germânico, a demarcação feita por Kant, isto é, ele verá que a
demarcação feita pelo filósofo da Crítica da Razão Pura registra os limites daquela
razão socrática. Precisamente, delimita aquele otimismo, aquela petulância de achar que
suas representações tinham o poder de perscrutar o próprio ser, a coisa-em-si.
Nietzsche registra aqui algo peculiar, que essa razão, como descrita na citação
acima, produz em determinado momento de sua trajetória uma espécie de arte. Isso se
dá porque esse espírito perscrutativo sempre leva a um limite, é como que a
investigação sempre chega em um fim e, nesse momento, ela precisa se libertar. Precisa,
então, se recriar ou criar-se. Ela precisa continuar a perscrutar, “onde ela tem de
transmutar-se em arte, que é o objetivo propriamente visado por esse mecanismo.” 76
Arte sempre considerada como criação.
Mas esse modo de conhecimento, que tem no homem teórico seu criador, antes
de entrar em declínio, ou mesmo sendo ele em si decadente teve êxito e foi capaz, desde
Sócrates, de consolidar-se a ponto de cobrir todo o orbe terrestre com suas proposições,
com seu véu. Véu no sentido de ilusão prazerosa, aquela gerada pelo coro. Aqui, no
caso de Sócrates, se trata mesmo de engano, engodo, mentira. Esse espírito nascente
com Sócrates, “conduziu a ciência ao alto-mar de onde nunca mais, desde então, ela
pôde ser inteiramente afugentada”,77 fato, aliás, que faz com que qualquer impetulante
que ouse propor algo novo, dizer que ela está em alto-mar e precisa voltar para a terra, é
logo reprimido e classificado como portador de uma chaga das mais bravas. Esse
mesmo navegante do alto mar “produz uma rede conjunta de pensamentos é estendida
pela primeira vez sobre o conjunto do globo terráqueo, com vistas mesmo de estabelecer
76
77
NT, 1992, p. 93.
NT, 1992, p. 94.
43
leis para todo sistema solar.”78 Por essa maioria, por ter conseguido se impor a todo
orbe terrestre essa ciência advoga ser a única capaz de dizer sobre o ser. Mas é apenas
por isso.
Esse modelo de conhecimento e de sociedade que emerge desse núcleo tem
pretensões, mas deixa rastro e contradições. Para esse modelo, no qual o erro é
abominável, o que vale são seus “mecanismos dos conceitos, juízos e deduções [...]
considerado, desde Sócrates, como a atividade suprema e o admirável dom da natureza,
superior a todas as outras aptidões.”79 Esse fazer foi preterido aos morais e qualquer
outro, o que inclui, certamente, o fazer artístico. Porém, e esse é sempre o pano de
fundo que Nietzsche está arrolando aqui, tal postura encontra com contradições no seu
próprio interior. E na proposta sobre um novo olhar para a verdade, projeto maior de O
Nascimento da Tragédia, a lógica também é acossada. No texto:
“Quando divisa aí, para seu susto, como nesses limites, a lógica passa a girar
em redor de si mesma e acaba por morder a própria cauda – então irrompe a
nova forma de conhecimento, o conhecimento trágico, que, mesmo para ser
apenas suportado, precisa da arte como meio de proteção e remédio”. (NT,
1992, p. 95)
Nietzsche nos demonstrou, com suas argumentações sobre o homem teórico, que
o modelo de racionalidade oriunda de Sócrates derrubou a tragédia, mas ele
demonstrou, por outro lado, que esse vencedor tem pontos frágeis. Aliás, ele denomina
esse modelo como decadente, por ter negado a força dionisíaca que constitui o real e se
constituindo apenas de uma perspectiva. Em termos ontológicos podemos dizer que a
hegemonia do pensamento lógico que considera apenas o Ser; o principio de identidade,
em relação ao não-ser, ao movimento, ao vir-a-ser, contitui-se em um movimento
fadado a não dar certo. Para SAFRASKI, comentando Nietzsche, “a vontade de saber
domina as forças vitais de mito, religião e arte. A vida humana se aparta do escuro
78
79
NT, 1992, p. 94.
NT, 1992, p. 95
44
fundo de raízes de seus instintos e paixões. É como se o Ser devesse justificar-se
perante a consciência. A vida anseia pela luz, a dialética vence a música trevosa do
destino.”80
Ao demonstrar que a vida sem o conhecimento trágico é um projeto fadado ao
fracasso, pois a razão não consegue dar resposta satisfatória para as contradições da
vida, Nietzsche prepara seus argumentos para demonstrar que o conhecimento trágico
pode voltar. Certamente não será ele quem vai fazer esse retorno, mas será a música de
Wagner sua grande esperança.
1.5. O RENASCIMENTO DA TRAGÉDIA E DO CONHECIMENTO TRÁGICO
O projeto de Nietzsche em pensar um modelo de cultura baseado no
conhecimento trágico é para confrontar com os limites do conhecimento racional de seu
tempo. Para fazer esse confronto ele procura descrever a origem e como se caracteriza o
conhecimento trágico. Nesse movimento ele demonstra, por comparação, o limite do
conhecimento racional que denomina como conhecimento socrático. Certamente, para
seus leitores de hoje, sabemos que não se pode concordar com tudo o que foi escrito
nessa obra. O próprio Nietzsche, por exemplo, vai romper com Wagner que nesse
momento se apresenta como o artista capaz de fazer surgir a arte trágica. Se ele, nessa
fase de sua vida, ao pensar o surgimento da tragédia em solo alemão tinha em vista
Wagner e seus projetos, logo mais, com o andamento dos fatos, irá perceber que
Wagner não consegue fugir de alguns equívocos burgueses, como o culto ao egoísta.
Porém, no momento de redação de O Nascimento da Tragédia, Nietzsche vislumbra
Wagner como o artista capaz desse ressurgimento do conhecimento trágico. Nietzsche
enquanto um professor engajado em projetos culturais, certamente vislumbrava um
80
SAFRANSKI, Rüdiger. Nietzsche: biografia de uma tragédia. Trad. Lya Luft. São Paulo: Geração
Editorial, 2001. p. 55
45
modelo de formação do homem de seu tempo. E é esse movimento que nos leva a tomar
as linhas de O Nascimento da Tragédia como um arcabouço relevante na compreensão
do pensamento de Nietzsche. Se ele fantasiou, quem não o faz quando cheio de vontade,
de esperança, devemos ponderar tais licenças e observar o que há de novo e pertinente
em meio a isso.
Nossas ressalvas, também, não podem levar a uma idéia de que a obra é toda um
engano, como um belo motivo de base. Como estamos acompanhando suas linhas,
podemos notar que sua crítica ao conhecimento vigente, suscita questões relevantes no
âmbito do conhecimento. Sua análise sobre o conhecimento trágico nos apresenta que é
enquanto criação que a vida pode fazer mais sentido, também, não pode ser furtado de
pertinência. Não só em nome da pulsão da vida, em nome de um cerne cheio de vontade
de vida, é que devemos dar continuidade em nosso labor dissertativo, seguidos e
inspirados pelo estilo trágico da vida, como vem sendo arrolado em O Nascimento da
Tragédia, mas a oferta, proposta de um modelo peculiar na produção de conhecimento e
do próprio conhecimento trágico são motivos que nos incitam a continuar nossa
investigação.
Para um Nietzsche que está de olho no seu tempo, leitor da cena cultural, o
ressurgimento do trágico é a esperança, é seu projeto. Nesse contexto, segundo
MACHADO, aparece:
“A terceira idéia importante do livro é a tentativa de encontrar o nascimento
da tragédia, ou da concepção trágica do mundo, em algumas manifestações
culturais da modernidade. Por um lado, a música de Wagner, grande
motivador e inspirador de suas análises, a quem o livro é dedicado, e em que
Nietzsche vê a volta da arte da Antiguidade, ou, mais precisamente, o retorno
do sentimento trágico do mundo; por outro lado, a filosofia de Schopenhauer,
que teria brotado da mesma fonte dionisíaca que a música e aniquilando o
otimismo socrático”. (MACHADO, 2005. p.11)
Sendo assim, voltemos para assistir Nietzsche a registrar como a arte trágica
pode renascer em solo alemão, e ele já avisa: “[...] de que modo a tragédia, assim como
perece com o esvanecer do espírito da música, só pode nascer desse espírito
46
unicamente.”81 Ou seja, a música certamente é a capaz de fazer esse ressuscitar. Mas
para o artista, no caso Wagner, fazer ressurgir a tragédia, Nietzsche demonstra que há
um contexto para tal. Demonstra que o conhecimento vigente, o conhecimento
científico, não goza mais de todo o poder e soberania. E começa por enfrentar as
ciências:
“Quero falar apenas da oposição mais ilustre à consideração trágica do
mundo, e com isso me refiro à ciência, otimista em sua essência mais
profunda, com o seu progenitor Sócrates à testa. Será mister também,
imediatamente, mencionar pelo nome os poderes que me parecem garantir
um renascimento da tragédia [...]”. (NT, 1992, p. 97)
Quais poderes? Certamente o trabalho de Wagner. Mas antes, como um recurso
no estilo das tragédias de Ésquilo e Sófocles, Nietzsche faz uma revisão sobre donde
deriva a arte, contrário, vale dizer, segundo o próprio texto, dos demais historiadores
desse campo do saber:
“Vejo Apolo diante de mim como o gênio transfigurador do principium
individuationis, único através do qual se pode alcançar de verdade a redenção
na aparência, ao passo que, sob o grito de júbilo místico de Dionísio, é
rompido o feitiço da individuação e fica franqueado o cominho para as Mães
do Ser, para o cerne mais íntimo das coisas”.(NT, 1992, p. 97)
É sob esse olhar que Nietzsche examina os gregos antigos. Ele procura, no
exame de um dado cenário, de uma dada arquitetura, analisar ou divisar os dois
impulsos aí subjacentes. Do cenário, dos figurinos ele extrai suas ações: a saber, Apolo,
o poder de individualizar, e Dionísio, o poder de dissolver as barreiras do indivíduo e
fazer com que tudo volte ao cerne do Ser. Para Nietzsche é essencial a idéia oriunda de
Dionísio como fonte do conhecimento trágico. Ter acesso a esse deus e ao que ele
representa conceitualmente só se faz possível através do êxtase proporcionado pela
música dionisíaca.
É demarcado na citação acima, para que se compreenda bem o ressurgimento da
tragédia, algo de suma importância na leitura de Nietzsche. Pode parecer que Nietzsche
81
NT, 1992, p. 96.
47
tenha dileção por Dionísio, pois ele é a fonte da vida, mas ele sabe que a existência
isolada de apenas um desses impulsos não permitiria a existência da vida. Só com a
existência dos dois impulsos a vida é possível. Não se trata de alguém meramente
dionisíaco, e, desse modo, sem contribuições para o campo do conhecimento conceitual,
regido pela forma. Em O Nascimento da Tragédia a grandeza está exatamente em notar
que os dois impulsos da natureza só existem quando transformado em uma arte que não
suprime uma das partes. Aí é que há a grandeza, onde a tensão permanece, a dor e
contradição da vida não são escondidas, mas assumidas como condição da vida que
mesmo assim vale ser vivida. Certamente Nietzsche pode ser considerado um defensor
de Dionísio na medida que essa pulsão foi suplantada pelo conhecimento teórico. Nesse
sentido é que podemos ver Nietzsche defendendo Dionísio, mas não para dizer que ele é
o único. Sua preocupação é que essa pulsão foi suplantada desde Sócrates e sua
ausência só pode produzir o desgosto pela vida ou o niilismo, um conceito que irá
aparecer mais adiante em sua produção filosófica.
E nesse retorno da tragédia, a música é passagem obrigatória. Ela é a parte
fundamental da tragédia, que Nietzsche toma como sendo uma fiel servidora do deus
Dionísio. Capaz de ser a mais fiel representante a Vontade.
Na construção de seu argumentar sobre o renascimento do trágico, Nietzsche
apresenta o seu conceito de música. Ela é uma parte relevante na trama da tragédia,
pois é uma manifestação artística capaz expressar a Vontade. Sobre a essência da
música, conceito relevante no encadeamento discursivo arrolado em O Nascimento da
Tragédia, Nietzsche toma de Schopenhauer o seguinte dizer: “[...] porque ela não é,
como todas as demais, reflexo do fenômeno, porém reflexo imediato da Vontade mesma
48
e, portanto, representa, para tudo o que é físico no mundo, o metafísico, e para todo o
fenômeno, a coisa em si.”82
Não se pode, considerando a definição de música, cobrar dela o que se fazia
comumente no tocante às artes visuais, ou não é justo impor as regras do socratismo a
um modelo de arte distinta. Não se pode cobrar da música “[...] um efeito parecido ao
das obras da arte figurativa, a saber, a excitação do agrado pelas formas. Após tomar
conhecimento dessa enorme contraposição,”83 isto é, de que o cânone para pensar a
música é distinto do que pensa as artes plásticas, Nietzsche diz: “senti uma forte
necessidade de me aproximar da essência da tragédia grega e com isso da mais profunda
revelação do gênio helênico[...]” E sua questão, então, é: “como se comporta a música
para com a imagem e o conceito?”84 O importante notar é que para o renascimento da
tragédia Nietzsche formula um conceito distinto para a música. Para advogar esse
renascimento é preciso ter outras considerações sobre a música que é peça fundamental
naquilo que a tragédia tem de melhor.
O autor aqui nos aponta para uma questão: como se relaciona à música com o
conceito. Parece-nos inusitado, mas em partes tal ponto em muito responde nossas
indagações sobre estética e educação. Pensando a educação como um processo que se
caracteriza como construção de conhecimento, nada mais pertinente do que essa
consideração no âmbito da tragédia. A tragédia seria esse local por excelência de
educação, local de formação cultural do povo. E nesse sentido nos felicita muito a
pergunta de Nietzsche pela relação entre música e conceito e como Nietzsche pensa essa
relação. Seu entendimento é:
“[...] segundo a doutrina de Schopenhauer, a música como linguagem
imediata da vontade, e sentimos a nossa fantasia incitada a enformar aquele
mundo de espíritos que nos fala, mundo invisível e no entanto tão vivamente
82
NT, 1992, p. 97.
NT, 1992, p. 98.
84
NT, 1992, p. 98.
83
49
movimentado [...]. Duas são as classes de efeitos que a música dionisíaca
costuma, por conseguinte, exercer sobre a faculdade artística apolínea: a
música estimula à introvisão similiforme da universalidade dionisíaca e deixa
então que a imagem similiforme emerja com suprema significavidade.” (NT,
1992, p. 101)
Essa é a marca do conhecimento que emerge da tragédia. A música permite a
participação da coisa-em-si ou Vontade. O conhecimento que se beneficia dessa relação
da música é produzido não pela especulação ou projeção, mas com a “introvisão
similiforme” por participação. Perspectiva a qual estamos pesquisando, isto é, saber
qual relação é possível de se fazer entre os textos aqui demarcados para nossos estudos.
Vamos, no próximo capítulo, fazer uma investigação do que o próprio Nietzsche,
enquanto professor, pensava em termos de métodos e concepções educacionais, mas
aqui já podemos pensar que a música é como aquela capaz de propiciar o lugar mais
adequado para se cultivar o conhecimento escolar. O conceito de musicalização, como
um vetor fundamental no trato da educação, da formação da juventude, é o que se
sobressai desse pensamento. Nos propondo um olhar para a idéia de que uma educação
de qualidade não pode negar a pulsão dionisíaca. Não será, como observamos nos
tópicos anteriores, daquele estilo socrático, do prazer em argüir, investigar as causas e
efeitos dos fenômenos, que encontraremos o terreno fértil para a formação da juventude.
A outra perspectiva de se considerar a música na formação do conceito é de implicações
cognitivas: nesse modelo as criações conceituais são por participação, são criações; e o
que garante uma rede de causa e efeito entre representação e representado é o jogo da
música, é a experiência interior do Ser. Ressurgir a tragédia implica também retomar
uma relação antiga com o conhecimento. Deve-se considerá-lo como criação.
Ainda no mesmo raciocínio, e o que corrobora o que estamos arrolando, isto é,
de que a música dionisíaca é peça fundamental na transposição da Vontade para a
linguagem artística, temos o mito como fruto desse jogo.
50
“Desses fatos [de que é da introvisão similiforme que emerge a
significatividade], em si compreensíveis e de modo algum inacessíveis a
qualquer observação mais profunda, deduzo eu a capacidade da música para
dar nascimento ao mito, isto é, o exemplo significativo, e precisamente o
mito trágico: o mito que fala em símiles acerca do conhecimento dionisíaco.”
(NT, 1992, p. 101)
Essa página do texto do filósofo é rica e nos interessa muito para o projeto aqui
empreendido. Dizendo mais uma vez: demarcar no pensamento de Nietzsche, na obra
em questão, a possibilidade de que é por vias diversas, sobretudo e especialmente, pela
estética, que se produz o autêntico conhecimento e não por ele mesmo, ou pela via da
mera argüição lógica. Qualquer outra via, sobretudo a socrática, é uma empresa falida.
O curioso é que o arcabouço, o contexto, o canteiro do conhecimento não é ele próprio.
O conhecimento racional é uma empresa que na perspectiva da arte trágica só pode ser
não por si, mas depende do êxtase dionisíaco.
No contexto da obra de Nietzsche, essa relação de base para fomentar o
conhecimento formal tem sua origem na música. Ele assim pensa: “deduzo eu a
capacidade da música para dar nascimento ao mito, isto é, o exemplo significativo, e
precisamente o mito trágico: o mito que fala em símiles acerca do conhecimento
dionisíaco.”85
Por um lado o autor lírico, como foi apresentado, nessa nova visão, é o que se
esforça para transformar sua participação na coisa-em-si em imagens, em versos, em
métrica, assevera Nietzsche, por outro lado temos, agora, de pensar a música com uma
particularidade de expressão. Ela, como dionisíaca, não pode se contentar em metrificar,
isso é o lírico nessa nova proposta de Nietzsche, “e onde mais havemos de buscar tal
expressão senão na tragédia e, em geral, no conceito do trágico?”86
85
86
NT, 1992, p. 101.
NT, 1992, p. 101.
51
Há, então, uma nova forma de medir a arte e não se pode pensá-la, o que
Nietzsche denuncia, “segundo a exclusiva categoria da aparência e da beleza.” 87 A arte
trágica, o conhecimento trágico, requer um novo parâmetro para ser avaliado. O
ressurgimento da tragédia se dá pela música. Modalidade de expressão que requer uma
nova forma de percepção da arte, que não é mais o modelo das artes da aparência. É
condição para o ressurgimento da tragédia essa nova mentalidade. Temos que romper
com um olhar viciado, pois, caso contrário, vai-se cobrar do conhecimento, de um
modelo educacional, uma categoria que não comporta pensar o novo, radicalmente
novo. “Somente a partir do espírito da música é que compreendemos a alegria pelo
aniquilamento do indivíduo”. Ou seja:
“Pois só nos exemplos individuais de tal aniquilamento é que fica claro para
nós o eterno fenômeno da arte dionisíaca, a qual leva à expressão a vontade
em sua onipotência, por assim dizer, por trás do principium individuationis, a
vida eterna para além de toda a aparência e apesar de todo o aniquilamento. A
alegria metafísica com o trágico é uma transposição da sabedoria dionisíaca
instintivamente inconsciente para a linguagem das imagens: o herói, a mais
elevada aparição da vontade, é, para o nosso prazer, negado, porque é apenas
aparência, e a vida eterna da vontade não é tocada de modo nenhum por seu
aniquilamento.”(NT, 1992, p. 102)
Esse sem dúvidas é o nexo nesse renascimento da tragédia, ou seja, Nietzsche
procura acomodar, mais uma vez, Dionísio e Apolo. A aparente mudança das coisas é
uma máxima da arte apolínea, o que em termos de conhecimento pode nos dizer que as
mil possibilidades, que até paralisa o sujeito conhecedor, não passa de uma aparência e
que por detrás está o eterno, a Vontade. Nesse aspecto é que apagar a consciência
individual, esse transe, pode ser benéfico, pois resolve a angústia do individual diante
do todo, o qual, enquanto indivíduo, se sente esmagado. “Nós acreditamos na vida
eterna‟. Assim exclama a tragédia. [...] Sob a troca incessante das aparências, a mãe
87
NT, 1992, p. 101.
52
primordial eternamente criativa, eternamente a obrigar à existência, eternamente a
satisfazer-se com essa mudança das aparências!”88
O conhecimento trágico não se deixa levar pelas soluções aparentes. Ao
apresentar o caráter passageiro da aparência ele mostra que há algo eterno por detrás e
que é esse “algo” que pulsa em todo existir. No que toca a processos educacionais e
culturais, a Vontade, que sempre se faz representar, é peça fundamental. Educar, assim,
é trabalhar essa vontade, pois é ela que é motora do aprendizado, do querer ler esse
livro, do querer resolver essa equação. Ter essa vontade mal trabalhada ou até mesmo
contingenciada em nome da aparência é se vincular a um projeto falido.
É preciso, portanto, uma acurada compreensão do que é a Vontade e de como,
nos processos de formação cultural e educacional, torná-la viável, cultivá-la. O erro
mais perigoso é quando tomamos a representação como sendo a coisa, o próprio.
“Também a arte dionisíaca quer nos convencer do eterno prazer da existência: só que
não devemos procurar esse prazer nas aparências, mas por trás delas.”89 Nietzsche,
então, quer nos dizer que o renascimento do conhecimento trágico passa por essa nova
perspectiva no que toca o conhecimento apolíneo. É preciso nesse renascimento do
trágico ter em mente essa proposta da Vontade como subjacente ao aparente. E será
assim que se enfrentara alegremente, como os gregos antigos, os temores da vida.
“Apesar do medo e da compaixão, somos os ditosos viventes, não como indivíduos,
porém como o uno vivente, com cujo gozo procriador estamos fundidos.”90
Mais um aspecto que Nietzsche levanta, nesse momento de demarcar o
renascimento da tragédia, é que a música que embalava a criação do mito não permitia
ao mesmo tempo dá uma clareza conceitual, uma explicitação verbal, de todas a forças
contidas no mito. Esse movimento, dizendo de nosso jeito, mais parece com o percurso
88
NT, 1992, p. 102.
NT, 1992, p. 102.
90
NT, 1992, p. 103.
89
53
que se faz no estudo de Filosofia. Por se tratar de uma leitura formativa e que exige
maturação, ao ler um texto temos uma compreensão geral, sobressai, por assim dizer,
uma figura do todo. Em uma nova aproximação, com mais maturidade, observa-se saltar
do texto mais detalhes antes não percebidos. Ora! Nos perguntamos, como isso passou
sem ter notado? Mas no que toca a tragédia isso não é problema, pois a força embalada
pela musicalização sempre lhe faz presente à totalidade da cena, mesmo que na
consciência do indivíduo só apareça uma parte. O mito, desse modo, revela sua força.
Ele é sempre dotado de totalidade, mesmo que naquele momento o indivíduo só perceba
uma parte. Esse aparente esquecimento é mais profícuo do que a razão pode imaginar.
Segundo Nietzsche, “[...] aquilo que o poeta da palavra não alcançava, a suprema
espiritualização e idealidade do mito, ele, como músico criador, podia conseguir a todo
instante.”91 O que prova que a participação do Ser propicia encher-se de sentido que irá
municiar a criação do poeta.
Interessante notar que os motivos e propósitos do aparente não subjaz nele
próprio. A lógica por assim dizer, o que dá sentido, encontra-se não na métrica
conceitual, mas na música enquanto expressão “mais” genuína da vontade. A música é
que move a cena.
1.6. COMO SOBREVIVEU O TRÁGICO: DOIS TIPOS DE SERENOJOVIALIDADSE
Em recapitulação, e, vale dizer, como nas tragédias, Nietzsche, nesse percurso
de dizer como a tragédia está preste a renascer, fala novamente sobre a música e de seu
poder de pulsão, de produção e de como ela se vincula daquela época aos seus dias.
Nietzsche nota que a música foi substituída pela razão lá entre os Gregos. Mas em seus
argumentos em torno do renascimento da tragédia ele diz que nem tudo ficou perdido.
91
NT, 1992, p. 103.
54
Sua sutileza é demonstrar que a pulsão trágica da vida persistiu meio que às escondidas.
No seu texto assim é expresso:
“Essa luta do espírito da música por revelação figurativa e mítica, que se
intensifica desde os primórdios da lírica até a tragédia ática, interrompe-se de
súbito, depois de apenas atingido um viçoso desenvolvimento, e como que
desaparece da superfície da arte helênica: enquanto a consideração dionísica
do mundo, nascida desta luta, sobrevive nos mistérios e, nas mais
maravilhosas metamorfoses e degenerações, não cessa de atrair para si as
naturezas mais sérias. Será que ela não voltará a elevar-se um dia, como arte
para fora de sua profundeza mística?” (NT, 1992, p. 104)
Os argumentos de renascimento do trágico se constituem ora na idéia de que o
trágico não morreu por completo, mas sobreviveu na clandestinidade, ora na idéia de
que Wagner através de sua arte o faz renascer. O texto do próprio filósofo não deixa
dúvida. Seu movimento de ir aos gregos manifesta a intenção de ver nos seus dias qual
fenômeno cultural é herdeiro daquilo que foi esplendoroso entre os gregos pré-clássicos.
Mas sua análise é estética, sua nomeação é estética, procura pelos traços da tragédia, da
manifestação trágica, e encontra alento em algo que lhe dê dileção: a música. É na
música que ele formula seu pensamento sobre o trágico e Wagner é alguém que tem na
música sua arma revolucionária. Pensa que através das tragédias, como momento
cultural comum de seu tempo, é que vai formar o novo alemão, precisamente, formar o
espírito alemão. Mas algo ainda lhe preocupa. As forças contrárias ao conhecimento
trágico.
“Aqui nos ocupa a questão de saber se a potência por cuja atuação contrária a
tragédia se rompe, encontará em todos os tempos com força suficiente para
impedir o despertar artístico da tragédia e da consideração trágica do mundo.
Se a tragédia antiga foi obrigada a sair dos trilhos pelo impulso dialético para
o saber otimista da ciência, é mister deduzir desse fato uma luta externa entre
a consideração teórica e a consideração trágica do mundo”. (NT, 1992, p.
104)
Ao acompanhar a decadência da música, podemos notar que as condições
trágicas do conhecimento, o que envolve uma plêiade de condições estéticas na
produção do conhecimento, deu lugar ao conhecimento teórico. Essa luta da música
55
também teve no olhar de Nietzsche uma mudança precisa. Ou seja, em um momento a
música também sofreu a pressão da razão. “Isso ocorre no desenvolvimento do novo
ditirambo ático, cuja música não mais exprimia o ser interno, a vontade mesma, mas só
reproduzia a aparência de modo insuficiente, em uma imitação mediada por conceitos
[...]”.92 Essa ressalva de Nietzsche certamente tem em vista algo: o que se entende por
música? Para, então, falar que a música é o renascimento da tragédia. Em seu tempo
certamente prevalecia na ópera um tipo de música, mas ele pontua bem que existem
conceitos e conceitos. A música, lá entre Aristófanes e Eurípides, na Grécia clássica, já
sofria dessa racionalização. “Por meio desse novo ditirambo a música foi convertida, de
forma hedionda, em retrato imitativo da aparência, por exemplo, de uma batalha, de
uma tempestade do mar [...]”.93
Que horror, expressão que caberia bem no estilo vivo do texto de Nietzsche, a
música não é mais a expressão da Vontade, é agora algo de terceira, ou seja, representa
o representado. Representa o fenômeno água, o fenômeno batalha, isso não é música
naquele sentido de representante genuína, de primeira mão, da vontade.
“A música verdadeiramente dionisíaca se nos apresenta como um tal espelho
geral da vontade do mundo: o evento intuitivo que se refrata nesse espelho
amplia-se desde logo para o nosso sentimento, até tornar-se imagem reflexa
de uma verdade eterna. Ao contrário, tal evento, é imediatamente despido de
todo caráter mítico pela pintura sonora do novo ditirambo.” (NT, 1992, p.
105)
Se a música migra para a aparência, ela não poderá auxiliar naquela percepção
trágica da vida. Onde por detrás da aparência há a Vontade. Ainda entre os gregos e na
rota de como a tragédia se foi, “Eurípides [...] é [...] um adepto apaixonado da nova
música ditirâmbica [...]”,94 que é um tipo de música que se impõe parâmetros visuais e
92
NT, 1992, p. 105.
NT, 1992, p. 105.
94
NT, 1992, p. 105.
93
56
racionais. Nesse movimento, nota-se, que o chamado espírito teórico vai se
consolidando e apagando o espírito dionisíaco, como já dissemos.
A música rebaixada: procura ser reflexo da aparência. Perde, assim, seu contato
com a Vontade. E Nietzsche não se contenta com poucos exemplos, sua documentação
na literatura vai demonstrar com veemência essa decadência da música. Sua
preocupação parece-nos justificada, pois seu olhar é inusitado, em sua época reinava
exatamente esse tipo de música, nada mais precavido em suas argumentações construir
provas detalhadas do que ele pretende criticar. Sendo assim ele diz: “Mas é no desfecho
dos novos dramas que se revela mais nitidamente o novo espírito não-dionisíaco. Na
tragédia antiga fazia-se sentir no fim o consolo metafísico, sem o qual não há como
explicar de modo algum o prazer pela tragédia [...]”. 95 Só que agora a música não faz
mais “esse consolo metafísico”, pois ela não é expressão da Vontade. Esse modelo de
música acaba por empobrecer a imagem, pois nega sua origem.
A solução para a retirada do cerne propulsor da tragédia, a sua música, foi a
implantação de recompensas terrenas para os heróis. Turvando, com isso a idéia de
tragicidade que é inerente ao aparente. Negando de vez o fundo metafísico, a Vontade
do real. Essa recompensa, esse recurso é que permite a razão uma aparente vitória e
assim, durante um tempo, ela irá garantir serenidade às pessoas; irá construir uma
cultura aparentemente sóbria, como que segura e precavida contra as inseguranças da
vida e, depois, segurança mesma diante o sentido da vida.
Nietzsche utiliza dois recursos para falar das garantia de sentido para vida.
Sentido que ele chama de serenojovialidade e tem por significado a certeza de que a
vida, apesar das contradições e terrores, vale a pena ser vivida. Demonstrando a
fragilidade da serenojovialidade socrática, que é a garantia de sentido para a vida a
95
NT, 1992, p. 107.
57
partir do uso da razão e da lógica, Nietzsche procura justificar, como contrapartida, a
volta do trágico operada pela arte de Wagner. Sua preocupação é fazer essa ligação
entre a arte trágica da Grécia Antiga e o que Wagner estava construindo na Alemanha
tantos séculos depois. Para ele, então, a cultura trágica se escondeu, ficou fora da cena
oficial, sobretudo das histórias oficiais, mas sempre viveu nos porões da história e agora
renasce entre os alemães. Apesar da hegemonia da razão ao longo da história que separa
a Grécia Clássica da Alemanha de seu tempo, Nietzsche pensa que tanto tempo não foi
o suficiente para apagar o trágico. “O deus ex machina tomou lugar do reconforto
metafísico”.96 E com isso acossou o estilo trágico de cena, mas ele não morreu, insiste o
autor: “[...] sabemos apenas que precisou fugir da arte para refugiar-se, por assim dizer,
no mundo ínfero, numa degeneração em culto secreto.”97 O deus ex machina, isto é, a
razão, propõe dar confiança e segurança diante o tormento da vida. Mas sua serenidade,
sua segurança é superficial.
A “serenojovialidade” oriunda da racionalidade socrática pode mais
parecer uma maquiagem de defunto, ou seja, tenta dar belas aparências para uma base
morta. Uma outra forma serenidade é aquela que Nietzsche chamará de autêntica e
preferível, pois sem dúvida brota da concepção trágica da vida. Para ele:
“[...] essa serenojovialidade é o oposto da esplêndida „ingenuidade‟ dos
helenos antigos, que se deve conceber, segundo a característica dada, com a
flor a brotar de um sombrio abismo da cultura apolínea, como triunfo obtido
pela vontade helênica, através de seu espelhamento da beleza, sobre o
sofrimento e a sabedoria do sofrimento.” (NT,1992, p. 107)
Essa tragicidade da vida quando bem equacionada gera uma serenidade, pois é
fruto de uma parceria tensa das duas pulsões da natureza: Dionísio e Apolo, feita na
invenção perfeita: a tragédia grega. Ao contrário dessa forma de serenojovialidade,
96
97
NT, 1992, p. 107.
NT, 1992, p. 107.
58
quando prevalece apenas a razão, observa-se a serenojovialidade proposta pela
socratismo:
“[...] que acredita em uma correção do mundo pelo saber, em uma vida
guiada pela ciência; e que é efetivamente capaz de desterrar o ser humano
individual em um círculo estreitissímo de tarefas solucionáveis, dentro do
qual ele diz sernojovialmente para a vida: „Eu te quero: tu és digna de ser
conhecida”. (NT, 1992, p. 108)
O interessante a notar é que esse dois modelos de levar a vida, no tratamento que
Nietzsche tem dispensado, andam muito próximos, às vezes até chegam em resultados
“aparentemente” iguais. Mas não nos enganemos, adverte Nietzsche, o caso da
serenojovialidade é exemplar: vejamos, no final da citação acima, um detelhe: “tu és
digna de ser conhecida”; repitamos: “conhecida” essa é a diferença do homem teórico e
de sua aparente vitória sobre o fluxo eterno do devir. Ele canta, por assim dizer, vitória
sobre algo que não obteve. Seu propósito é conhecer e não viver. Acha que conhecer é o
suficiente para viver, mas não para Nietzsche não é. A solução tem que ser mais
profunda, passa pelo conhecer, ou por uma criação de metáforas acerca da Vontade,
sobre o eterno devir, mas conhecer racionalmente não garante a apreensão do real.
Um outro detalhe é a pretensão do homem teórico em corrigir, enfeixar, amarrar,
o ser vivente em seus conceitos. A pretensão de apreender através do raciocínio o real é
decadente, segundo as argumentações de Nietzsche, pois nega a pulsão da vida. Aliás,
esse tipo de racionalidade troca o cerne do existir, denominado por Nietzsche como
Dionísio, pelo intelecto. Esse homem teórico não reconhece que a linguagem não passa
de um jogo, de uma criação que procura dar resposta ao principal: a Vontade. Mas não é
ela própria, a coisa em si, sempre é representação disso. A linguagem, aliás, é uma
representação de segunda mão, a música é que seria uma das melhores representações,
pois é reflexo imediato da coisa em si.
59
Na relação da Vontade com a linguagem artística surge a cultura. Seja ela
socrática ou dionisíaca. O fato é que nos dias de Nietzsche é a socrática que venceu e
que canta vitória com uma certa serenidade perante os terrores da vida. Para Nietzsche
a Vontade não é dotada de sentido. Sua ação é imparcial, pois é a natureza agindo e não
se pode falar em questões de valor moral. Seria a natureza cega em questões de certo e
errado. Seu agir, então, por não considerar o certo e errado, produz para a vida humana
muita dor e até mesmo falta de sentido. Mas para Nietzsche é essa mesma natureza que
engendra no humano o sentido para vida, através do impulso apolíneo. A Vontade para
Nietzsche, “é um fenômeno eterno: a vontade ávida sempre encontra um meio, através
de uma ilusão distendida sobre as coisas, de prender à vida as suas criaturas, e de
obrigá-las a prosseguir vivendo”. A vontade, portanto utiliza-se de artimanhas para
compor o que chamamos de real. Segundo Nietzsche ela ora usa os teóricos, com seu
“prazer socrático de conhecer e a ilusão de poder curar por seu intermédio”98 as
contradições do existir. A um outro tipo, a vontade se faz valer das artes e do
conhecimento trágico. Nessa perspectiva trágica o sentido para vida brota da
compreensão de que tudo é criado e deve-se criar a própria vida, dotando-a de sentido.
O homem não precisa procurar um sentido por detrás da aparência. O que ele vai
encontrar é apenas a Vontade, que é, como já dito, sem sentido. O homem trágico,
então, deve compreender que é no jogo da criação onde se encontra o sentido para a
vida. A descoberta que o homem trágico faz é o “consolo metafísico de que sob o
turbilhão dos fenômenos, continua fluindo a vida eterna.”99
Feito essa pontuação dos dois modelos de cultura, uma do homem trágico outra
do homem teórico, o autor insiste em dizer que o modelo vencedor não é o que ele mais
gostaria. Nietzsche até concede ao homem teórico a idéia de que ele também procura
98
99
NT, 1992, p. 108.
NT, 1992, p. 108.
60
dar resposta para a falta de sentido da vida, mas certamente não logra êxito. Observa
que no momento histórico em que ele vive é o homem teórico que está em voga e ele é a
marca da educação. Assim ele no diz:
“Todo o nosso mundo moderno está preso na rede da cultura alexandrina e
reconhece como ideal o homem teórico, equipado com as mais altas forças
cognitivas, que trabalha a serviço da ciência, cujo protótipo e tronco ancestral
é Sócrates. Todos os nossos meios educativos têm originariamente esse ideal
em vista: qualquer outra existência precisa lutar penosamente para pôr-se à
sua altura, como existência permitida e não como existência proposta.” (NT,
1992, p. 109)
Mas no seio desse modelo teórico começa a instalar-se o desconforto. Porém,
antes é preciso reconhecer que a cultura teórica tem uma longa história. Qualquer outra
perspcetiva educacional cultural é sempre vista de lado. O homem teórico ou o
acadêmico da época de Nietzsche ainda é o avaliador da cultura trágica. O homem
teórico, transmutado em homem douto, é que tem o poder até mesmo de falar, sobre
esse outro tipo de cultura: a cultura trágica agora é dita, vista, e aceita, na medida que
passa pelo crivo do homem douto.
“Em um sentido quase aterrador, durante longo tempo, o homem culto era
encontrado aqui unicamente na forma do homem douto; mesmo as nossas
artes poéticas tiveram de desenvolver-se a partir de imitações doutas e, no
efeito capital da rima, reconhecemos ainda a gênese de nossa forma poética a
partir de experimentos artificiais com uma linguagem não familiar,
propriamente erudita.” (NT , 1992, p. 109)
Esse tratamento faz com que o novo não tenha vez. E será nessa aparente solidez
cultura que Nietzsche procura a lacuna para provar o contrário. Aliás, até o novo será
condicionado pelas categorias socráticas, quem não entrar nela simplesmente não existe.
Aqui para Nietzsche o FAUSTO, personagem de GOETHE,
representa o
definhamento da cultura teórica, pois a personagem não encontra sentido para vida no
seu labor de cientista. Não encontra consolo para a existência nos conhecimentos
vigentes, e como esse estilo de homem não consegue compreender o “grego autêntico”.
A tranqüilidade proposta pela cultura teórica também chega a seu limite.
61
Um outro argumento que demonstra os limites do conhecimento teórico é a
incapacidade desse em dar ao homem moderno sentido para vida. O otimismo cultural
que teve origem em Sócrates demonstra sinais de fracasso:
“Enquanto o infortúnio que dormitava no sei da cultura teórica começa
paulatinamente a angustiar o homem moderno, e ele, inquieto, recorre,
tirando-os de suas experiências, a certos meios a fim de desviar o perigo, sem
que ele mesmo creia nesse meios; isto é, enquanto esse homem começa a
pressentir as suas próprias consequências, grandes naturezas, com
disposições universais, souberam utilizar com incrível sensatez o instrumento
da própria ciência, a fim de expor os limites e condicionamentos do conhecer
em geral e, com isso, negar definitivamente a pretensão da ciência à validade
universal e metas universais: prova mediate a qual, pela primeira vez, foi
reconhecida como tal aquela idéia ilusória que, pela mão da causalidade, se
arroga o poder de sondar o ser mais íntimo das cosias”. (NT, 1992, p. 110)
Nota-se que Nietzsche constrói seu argumento de que o trágico é uma via
necessária, a partir dos limites da ciência teórica em dar sentido para vida.A demarcação
desses limites da ciência e de que ela não pode tudo é registrado por ele em dois
filósofos. “A enorme bravura e sabedoria de Kant e Schopenhauer conquistaram a
vitória mais difícil, a vitória sobre o otimismo oculto na essência da lógica, que é, por
sua vez, o substrato de nossa cultura.”100
Quando Kant, então, demarca que não é possível, no âmbito do conhecimento
racional, conhecer a coisa-em-si, Nietzsche vê aí uma fundamentação teórica de suma
importância:
“Com esse conhecimento se introduz uma cultura que me atrevo a denominar
trágica: cuja característica mais importante é que, para o lugar da ciência
como alvo supremo, se empurra a sabedoria, a qual, não iludida pelos
sedutores desvios das ciências, volta-se com olhar fixo para a imagem
conjunta do mundo, e com um sentimento simpático de amor procura
apreender nela o eterno sofrimento como sofrimento próprio”.(NT, 1992, p.
111)
Roberto Machado, no seu livro sobre o trágico101, argumenta que a filosofia
trágica não é apenas falar do trágico, mas trata-se mesmo de uma questão ontológica. E
nesse aspecto Nietzsche assinala acerca do ocaso de um modelo de conhecimento no
100
NT, 1992, p. 110.
Cf. MACHADO, R. O Nascimento do Trágico: de Schiller a Nietzsche. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Ed., 2006, 279 p.
101
62
âmbito ontológico que privilegiou apenas uma dimensão da realidade que é o Ser. O
trágico, por outro lado, se propõe pensar a realidade enquanto dotada de movimento.
Também, com a demarcação dos limites da ciência, Nietzsche demonstra que ela não foi
capaz de produzir um conhecimento de conjunto ou de sentido da totalidade.
No raciocínio de Nietzsche a cultura socrática foi abalada e ela própria percebe
isso. Não mais tem total confiança nos seus propósitos, “o homem teórico se assusta
diante de suas conseqüências e, insatisfeito, não mais se atreve a confiar-se à terrível
corrente de gelo da existência: angustiado, corre pela margem, para cima e para
baixo.”102
Nessa trajetória de declínio moderno do conhecimento socrático temos,
também, um estilo artístico decadente, como nome próprio. “Não se pode caracterizar
de forma mais aguda o conteúdo íntimo dessa cultura socrática do que denominando-a
cultura da ópera.”103 Ela é decadente por um motivo preciso. O que inscreve ela como
rompimento da “serenojovialidade” teórica. Uma das primeiras questões é idéia de
distração presente na ópera, depois a idéia de que é a palavra que tem mais lugar do que
qualquer outra cosia. Sobre esse modo de arte Nietzsche a vê como antinatural, estranho
é seu jeito de ser:
“Esse alternar-se do discurso afetivamente impressivo, mas apenas meio
cantado, e da interjeição inteiramente cantada, que está na essência do stilo
rappresentativo, esse esforço, rapidamente alternante, de agir ora sobre o
conceito e sobre a representação, ora sobre o fundo musical do ouvinte, é
algo tão completamente inatural e tão inteiramente contrário aos impulsos
artísticos tanto do dionisíaco quanto do apolíneo, de igual maneira, que é
preciso inferir uma fonte originária do recitativo situada fora dos instintos
artísticos.” (NT, 1992, p. 113)
Enfrentando aquilo que era muito forte em seu tempo, poderíamos até dizer
como sendo uma novela televisiva nos nossos dias, como menos características de
massa, já que era uma elite econômica que freqüentava a ópera, Nietzsche se dispõe
demonstrar que esse feito cultural está exalando contradição, está cambaleante, dando
102
103
NT, 1992, p. 112.
NT, 1992, p. 112.
63
seus últimos fôlegos e botando abaixo aquela aparente segurança que se propunha a
prevenir o sofrimento do homem. E vai mais adiante na sua tese de que se trata de algo
estranho. Não poupando suas críticas, Nietzsche vai dizer que a ópera não propriamente
arte.
“Basta-os haver reconhecido que o fascínio efetivo e, com ele, a gênese dessa
nova forma de arte residem na satisfação de uma necessidade totalmente
inestética, na glorificação otimista do ser humano em si, na concepção do
homem primitivo como o homem bom e artístico por natureza [...].” (NT,
1992, p. 114)
Enfim, Nietzsche nos apresenta o que é a ópera e o quanto essa arte apresenta
os traços da cultura socrática. “A ópera é fruto do homem teórico, do leigo crítico, não
artista. [...] Entender acima de tudo a palavra foi uma exigência dos ouvintes
propriamente amusicais.”104 Esse mesmo homem “por não perceber a profundeza
dionisíaca da música, transforma fruição musical em retórica intelectual de palavras e
sons da paixão no stilo rappresentativo.”105 Ou seja, o desejo de arte contínua a se
manifestar, só que os meios racionais acabam por perverter todas as nuances da
autêntica arte em coisas estranhas. Tudo isso, pois:
“O pressuposto da ópera é uma falsa crença acerca do processo artístico, a
saber, a crença idílica de que, a bem dizer, todo homem sensitivo é um
artista. No sentido dessa crença, a ópera é a expressão do laicado na arte, que
dita as suas leis com o otimismo serenojovial do homem teórico”. (NT, 1992,
p. 115)
Essa mesma postura, que é a do homem teórico se elegendo capaz de se advogar
em qualquer domínio, é a base das várias negações do conhecimento trágico. É com
essa mesma destreza que o homem teórico arbitra em matérias de ópera, educação e
cultura. “Sobre os traços marcantes da ópera não se estende, portanto, de modo algum,
aquela dor elegíaca de uma perda eterna, mas antes a sernojovialidade do eterno
104
105
NT, 1992, p. 115.
NT, 1992, p. 115.
64
reencontrar, o cômodo prazer de um mundo idílico afetivo, o qual se pode imaginar a
cada momento como efetivamente real [...]”. 106
Esse é o modelo de arte que ele pretende combater ou demonstrar suas
contradições. Sua batalha conceitual é contra esse modelo que impera. “Quem quiser
aniquilar a ópera, terá de empreender a luta contra aquela serenojovialidade alexandrina
que nela se expressa tão ingenuamente acerca de sua idéia favorita, sim, cuja autêntica
forma de arte ela é.”107
O que será da tragédia diante desse modelo que faz a música servir a
palavra? “O que será das sempiternas verdades do dionisíaco e do apolíneo numa tal
mistura de estilos, [...] onde a música é considerada como serva, a palavra do texto
como senhor, onde a música é comparada ao corpo e a palavra do texto á alma [...]”. 108
Na descrição do que é a ópera Nietzsche registra seus últimos argumentos que
demonstram a viabilidade do renascimento do trágico. Nietzsche acredita que Dionísio
fala novamente e pensar ver em “Bach a Beethoven, de Beethoven a Wagner”, 109 esse
ressurgir do espírito da música grega entre os alemães.
Depois de uma longa luta, na descrição da decadência da ciência socrática, da
ópera, Nietzsche acredita profundamente ter fundamentado o que mais lhe alegra, o
renascimento da tragédia.
Sempre enfileirando provas que corroborem suas proposições ele recorre,
novamente, a duas de suas influências nessa época. No campo da filosofia algo parecido
com arte, também, acontece:
“Lembremos-nos em seguida como, por meio de Kant e Schopenhauer, o
espírito da filosofia alemã, [...], viu-se possibilitado a destruir o satisfeito
prazer de existir do socratismo científico, pela demonstração de seus limites,
e como através dessa demonstração se introduziu um modo infinitamente
mais profundo e sério de considerar as questões éticas e a arte, modo que
podemos designar francamente como a sabedoria dionisíaca expressa em
conceitos [...].” (NT, 1992, p. 119)
106
NT, 1992, p. 117.
NT, 1992, p. 117.
108
NT, 1992, p. 117.
109
NT, 1992, p. 117.
107
65
Para ele até mesmo no âmbito da Filosofia se observa o que opera na cultura
alemã de retorno ao conhecimento do trágico. O que representa nesse movimento o
interesse do filósofo em encontra a ligação da Grécia Clássica à Alemanha de seus dias.
E ele diz acerca do povo alemão: “Agora, por fim, após o regresso à fonte primeira de
seu ser, pôde ele ousar apresentar-se, destemido e livre, diante de todos os povos
[...]”.110 Certamente ele vislumbra que aquela “serenojovialidade” grega, produzida pela
tragédia, seja a melhor forma do povo alemão encarar a vida.
1.7. HOMENS QUE LUTARAM POR UMA CULTURA AUTÊNTICA E O DRAMA PERFEITO
O trágico ressurge, como pudemos acompanhar na assídua crítica de Nietzsche a
varias manifestações da cultura socrática, por uma crise da cultura vigente, mas,
sobretudo, pelas mãos de grandes homens criadores de cultura. Agora é vez de exaltar,
como recurso de um filósofo culturalmente engajado, os indivíduos que no seu
entendimento lutaram por uma cultura autêntica, e pelo surgimento, então, da tragédia
nas mãos desses heróis da cultura. Entendido como autêntico aqueles criadores de
cultura que observaram os ditames do conhecimento trágico da vida. As figuras que
Nietzsche toma como referência para esse retorno são Goethe, Shiller e Winckelmam. O
principal desses autores, e que Nietzsche procura identificar, é saber como foi a sua luta
para implementar uma cultura autêntica entre os alemães.
De início Nietzsche lança um olhar de dúvida sobre os heróis, pois há nos meios
culturais uma certa displicência no que toca o conhecimento dos gregos. “Vemos, desde
aquele tempo, (o tempo dos heróis da cultura) degenerar da mais perigosa forma o juízo
sobre o valor dos gregos para a cultura”.111 Aqueles que teriam como função social
promover a cultura não o fazem. Por causa disso teriam os heróis da cultura “em algum
110
111
NT, 1992, p. 120.
NT, 1992, p. 121.
66
ponto capital [...] tampouco aqueles lutadores conseguiram penetrar no âmago do ser
helênico [...]”.112 Essa dúvida que Nietzsche lança sobre os heróis da cultura tem duas
perspectivas. Uma, como estamos vendo no próprio texto de Nietzsche, é fruto do
descaso daqueles que deveriam promover a cultura e não o faz. Por exemplo, a postura
cômoda dos professores universitários. Outra perspectiva, segundo MACHADO, é
“porque [os heróis da cultura] não usaram a boa chave para isso: a música, ou melhor
ainda, a tragédia musical.”113 No encadeamento do pensamento de Nietzsche podemos
fazer a inferência de que se os heróis da cultura tivessem procedido para com os gregos
na sua inteireza, o que incluiria notar toda a riqueza da tragédia grega, sobretudo no que
ela tem de música, não se assistiria o descaso para com os clássicos entre aqueles que
deveriam promover essa cultura na Alemanha de então. Esse descaso aparece onde
menos se deveria esperar:
“é precisamente nos círculos cuja dignidade poderia consistir em tirar água
sem descanso do leito do rio grego para salvação da cultura alemã, no círculo
dos professores das instituições superiores da cultura, é onde melhor se
aprendeu a ajeitar-se rápida e comodamente com os gregos, indo-se não raro
até uma renúncia cética dos ideais helênicos [...] (NT, 1992, p. 121)
Esse descaso no entendimento de Nietzsche não ocorreria se os heróis da cultura
tivessem notado que o elemento chave da cultura trágica grega era a música. Desse
modo não se assistiria a postura de não artista e filósofos dos professores
contemporâneos a Nietzsche. Ao demarcar bem a ausência do elemento musical
Nietzsche certamente está nos levando para Wagner e seu drama musical.
Seus argumentos nos demonstram que é necessário outro tipo de conhecimento.
“Que ninguém tente enfraquecer a nossa fé em um iminente renascimento da
Antiguidade grega”.114 Certamente os universitários acabaram por serem meros
reprodutores, revisores de antiguidades e não tomam para si o projeto de fazer renascer
112
NT, 1992, p. 120.
MACHADO, 2005, p. 11.
114
NT, 1992, p. 122.
113
67
os gregos, e especialmente aquela manifestação cultural genuína que é a tragédia. O que
importa para Nietzsche no renascimento do trágico é que ele consegue resolver a falta
de sentido na sociedade moderna. Mas questões da vida aqui não é a redução da arte e
da vida social, o que comumente os modernos chamam de útil. A coisa é mais profunda.
“O povo dos Mistérios trágicos é o que trava as batalhas contra os persas e, por sua vez,
o povo que conduziu aquela guerra tem a tragédia como necessária beberragem
curativa.”115 É dessa relação entre arte e sociedade, entre o povo que se organiza
enquanto Estado e Povo no entorno de uma manifestação cultural na qual se concilie a
contento as pulsões naturais de Dionísio e Apolo. Nessa perspectiva, de uma dada
manifestação cultural orgânica, vale, mais uma vez ver no seu texto o que ele tem em
mente:
“A tragédia absorve em seu íntimo o mais alto orgiasmo musical, de modo
que é ela que, tanto entre os gregos quanto entre nós, leva diretamente a
música à sua perfeição, mas, logo a seguir, coloca a seu lado o mito trágico, o
qual então, como um poderoso Titã, toma sobre o dorso o mundo dionisíaco
inteiro e nos alivia dele [...]” (NT, 1992, p. 124)
Por um lado temos até aqui aqueles setores universitários que não
compreenderam o que é o trágico. Pois não estão compromissados em fazê-lo surgir; os
trabalhos desses professores não estão à altura daqueles heróis da cultura alemã e de
certo modo o que impera é um tipo de cultura contrária aos gregos.
A música é o ponto principal desse renascimento. Certamente não é qualquer
música, mas é um tipo de “orgiasmo” – dionisíaco é claro, que se transforma em arte.
Em termos de conceituação, de conhecimento, Nietzsche nas vésperas de dar o
nome de uma obra de Wagner, como esse exemplo de renascimento do trágico, retoma
essa relação profícua da tragédia não só na perspectiva da música, de Dionísio. Ele
também pontua o lado apolíneo. E aqui vale dizer, Nietzsche combate o socratismo, mas
isso não quer dizer que toda forma de razão seja socrática. O autor, portanto, não exclui
115
NT, 1992, p. 123.
68
um projeto para a razão. A defesa que Nietzsche faz da música é pelo motivo dela ser
alijado no modelo de cultura teórica. Mas é sempre preciso lembrar que a música
trágica não é algo isolada. A música em Nietzsche deve ser sempre lembrada enquanto
tragédia, pois:
“A tragédia interpõe, entre o valimento universal de sua música e o ouvinte
dionisicamente suscetível, um símile sublime, o mito e desperta naquele a
aparência, como se a música fosse unicamente o mais elevado meio de
representação para vivificar o mundo plástico do mito”. (NT, 1992, p. 125)
Esse conceito já foi apresentado anteriormente na obra, mas sempre é bom dizer
algo: Nietzsche escreve como se tivesse produzindo uma peça de tragédia. Daí esse
recurso da recapitulação parece ser na intenção de criar essa atmosfera trágica.
Ademais, ele faz isso na preparação para dizer algo novo. Que é a apresentação da obra
de Tristão e Isolda, tragédia de Wagner, como o exemplo encarnado de renascimento da
arte trágica; depois de uma longa preparação, em um percurso que descarta, de modo
fundamentado, as ciências, a ópera, os estabelecimentos de ensino que não promovem o
nascimento do trágico. Essa obra de Wagner é apresentada como aquela que fala pela
música: “sem o auxilio da palavra e da imagem, apenas como um prodigioso
movimento sinfônico.”116 Esse é, sem dúvida, o modelo do drama ideal que Nietzsche
pensa estar presente em Wagner.
É no entendimento desse drama que podermos compreender o real surgimento
da tragédia. Feito que as universidades não conseguiram. Essa relação da música com a
imagem, dentro de uma perspectiva cultural nos lança a indagação de que para os
processos cognitivos deve-se ater a essas bases. Como caminho que prepara o indivíduo
para os emaranhados teóricos.
A música e, sobretudo, a musicalização, conceito mais amplo do que a música
relaciona-se com a Vontade, aliás, é a expressão mais fiel da Vontade. Será essa
116
NT, 1992, p. 126.
69
vontade que incessantemente se põe, se expressa no apolíneo. Compreendendo a cultura
e os conhecimentos um arcabouço apolíneo, logo se vê a fertilidade dessa senda
interpretativa.
O mito, nessa relação com a música é uma forma de proteção e ao mesmo
tempo, como uma vela de barco, o propulsor de significados. O mito é movido pela
música; o mito seria a expressão mais produtiva da Vontade em termos de palavra. O
mito, por essa relação íntima com a Vontade, nos oferece uma “significatividade
metafísica tão impressiva e convincente que a palavra e a imagem, sem aquela ajuda
única, jamais conseguiria atingir.”117
Nessa relação entre a parte e todo, que é o jogo presente no drama, Nietzsche
ainda disserta mais para esclarecer a arrumação que ele julga perfeita nessa
manifestação:
“Aqui se infiltram, entre a nossa mais alta excitação musical e aquela música,
o mito trágico e o herói trágico, no fundo apenas como símiles do fatos mais
universais, de que só a música pode falar por via direta. Com símile, porém,
apenas o mito, se o nosso modo de sentir fosse o de seres puramente
dionisíacos, permaneceria ao nosso lado, despercebido e ineficaz, e não nos
desviaria por um instante sequer de prestarmos ouvido ao eco das universalia
ant rem [universais anteriores à coisa]”. (NT, 1992, p. 126)
O herói e o mito é o remédio, o que salva o indivíduo da participação do todo.
Mito e herói, também, são fundamentais nesse drama, aliás, essa é parte mais eficaz e
rica da tragédia. São esses elementos que a fazem da tragédia um eficiente instrumento
de formação do povo.
Mais um mote argumentativo que nos autoriza dissertar sobe as implicações
entre estética e educação. Ou seja, a forma como é composta a tragédia, como
explicitados na citação acima, forma aquilo que já dissemos ser uma espécie de
atmosfera estética e aí o indivíduo é levado a fazer experiência do Ser. Efetivando uma
117
NT, 1992, p. 125.
70
formação muito mais eficaz por permitir a participação do Ser e não a uma mera
dialética.
Se o autor elogia a pulsão dionisíaca, ele não deixe de demarcar a função e o
papel relevante do apolíneo. Ele o situa e realça seu papel na arquitetura da vida.
“Assim, o apolíneo nos arranca da universalidade dioniosíaca e nos encanta
para os indivíduos: neles encadeia o nosso sentimento de compaixão, através
deles satisfaz o nosso senso de beleza sedento de grandes e sublimes formas.
Faz desfilar ante nós imagens de vida e nos incita a aprender com o
pensamento o cerne vital e nos incita a apreender com o pensamento o cerne
vital nelas contido. Com a força descomunal da imagem, do conceito, do
ensinamento ético, da excitação simpática, o apolíneo arrasta o homem para
fora de sua auto-aniquilação orgiástica e o engana, passando por sobre a
universidade da ocorrência dionisíaca, a fim de levá-la à ilusão de que ele vê
uma única imagem do mundo, por exemplo, Tristão e Isolda, e que, através
da música, apenas há de vê-la melhor e mais intimante”. (NT, 1992, p. 127)
Ainda nessa senda de como o dionisíaco faz e auxilia o apolíneo. É no drama
perfeito que esse equilíbrio se dá. Sem nunca perdermos de vista que não ocorre uma
síntese ou solução das forças. Apenas coabitam. Nietzsche assim o descreve: “Com essa
harmonia preestabelecida que impera entre o drama perfeito e a sua música, alcança o
drama um grau supremo de visibilidade, de outro modo inacessível ao drama falado.”118
O autor vê no drama uma miríade de possibilidades no que toca a revolução cultural, o
renascimento da tragédia grega e, por conseguinte, o surgimento em solo alemão
daquele fenômeno cultural alcançado pelos gregos pré-clássicos, e, como mais um
detalhe exaltado, nesse drama, com seus recursos, ele permite uma maior claridade
conceitual. Mais adiante ele contínua:
“Assim todos as figuras vivas da cena se simplificam diante de nós nas
linhas melódicas a moverem-se independentemente até atingirem a clareza da
linha ondulada, assim a contigüidade dessas linhas ressoa para nós (...)
através dessa alternância, as relações das coisas se nos tornam imediatamente
perceptíveis, [...] de modo sensível e nunca abstrato [...] E enquanto a música
nos obriga a ver mais, e de um modo mais intrínseco do que em geral, e a
estender diante de nós, qual delicada teia, o evento da cena, para o nosso
olhar espiritualizado a mirar para o íntimo, o mundo do palco se amplia
infinitamente, assim como se ilumina de dentro para fora” (NT, 1992, p. 128)
118
NT, 1992, p. 128.
71
Nessas linhas o autor afirma, então, essa idéia de que a música potencializa a
própria palavra. Para ele “Que coisa análoga poderia oferecer o poeta da palavra, [...]
aquela ampliação interior do mundo visível da cena e sua iluminação interna?”119
Tomando aqui o real como mundo fenomênico e que, portanto, é o mundo de
Apolo, podemos extrair dessa citação um rico escopo para a reflexão sobre a relação dos
processos cognitivos com a Vontade, enquanto subjacente a todo o real.
Aqui aclara para nós o fato de que o sentido, o mais importante do emaranhado
que constitui o conhecimento, a cena que se desenvolve no palco da senda científicoconceitual, não se encontra nela mesma, apesar de sua beleza, das artimanhas de Apolo,
mas o mais importante é o cerne dessa ação cênica, que é o real, que é o conhecimento
científico. O fenômeno aqui é tomado exatamente naquilo que é, fenômeno,
inteiramente dependente da coisa-em-si, oriunda daí.
O autor, portanto, destaca que fora desse contexto reflexivo parece ser absurdo:
o não-conceitual é mais importante para que o conceitual aconteça, venha à cena,
apareça no palco. O espírito humano é alçado ao pensar não pelas próprias forças do
pensar, mas pela pulsão dionisíaca que aqui é o próprio ser-das-coisas. “No fundo, a
relação da música com o drama é precisamente a inversa: a música é a autêntica Idéia
do mundo, o drama é somente um reflexo, uma silhueta isolada dessa Idéia.” Pode-se
ponderar, pois que tipo de música, na prática é essa fiel representante da coisa-em-si,
mas a idéia do ponto de vista conceitual, de como o Nietzsche vem desenvolvendo, e de
nos alegrar essa possibilidade da música como representante da Vontade e, portanto, no
drama ser ela o conteúdo, o sangue, da cena.
A observação acima coaduna com o nosso propósito dissertativo é averiguar e
relacionar a estética com a educação nas obras de Nietzsche que aqui demarcamos. 120 A
119
NT, 1992, p. 128.
72
educação não como Escola, mas como processos cognitivos, o que, então, abre-se uma
cena rica e fértil para a nossa empresa. As imbricações estéticas nessa perspectiva, aliás,
são indispensáveis, pois é pela via estética que se da o processamento do conhecimento,
escopo fundamental da educação. A via estética vale dizer, aqui compreendida como
representação, percepção sensória, enfim, que se inscreve na clássica asserção de Kant e
Schopenhauer. O que nos leva a notar a pertinência do raciocínio arrolado de que,
através da música, pode haver estreita relação do não conceitual com o conceitual.
Os efeitos de uma percepção de que a música enquanto expressão mais fiel da
Vontade contribui para melhor compreender a cena, pois a cena é como um ventríloquo
que tem como manipulador a Vontade, pode levar ao risco de tomar a cena como sendo
independente e apenas ela basta para a ação, enredo. Isso pode ser uma ilusão da ilusão.
Apolo pode ter vencido o jogo, mas, ironicamente, ele vence apenas na “aparência”.
“Se com a nossa análise resultou que o apolíneo na tragédia obteve, mercê de
sua força de ilusão, completa vitória sobre o proto-elemento dionisíaco da
música, e que ele se aproveitou desta para os seus desígnios, a saber, para
uma elucidação máxima do drama, haveria que acrescentar dede logo uma
restrição muito importante: no ponto mais essencial de todos, aquele engano
apolíneo é rompido e destruído”. (NT, 1992, p. 129)
Nietzsche logo trata de ponderar, como notamos em citações anteriores sobre o
drama perfeito, diz que a música acentua a cena, dá mais clareza para ela, só que esse
efeito não pode esquecer de sua relação primordial. Os conceitos oriundos do trágico
sempre consideram e superam a dor primordial da existência, e por isso é capaz de dotar
a vida de sentido.
Enfim, chega a um termo a relação de Apolo e Dionísio e que revela o estilo do
conhecimento trágico. “Dionísio fala a linguagem de Apolo, mas Apolo, ao fim, fala a
linguagem de Dionísio: com o que fica alcançada a meta suprema da tragédia e da arte
120
As obras de Nietzche que estamos estudando são: O Nascimento da Tragédia, que abordamos no
primeiro capítulo, e Sobre o Futuro dos Nossos Estabelecimentos de Ensino e III Consideração
Intemnpestiva: Schopenhauer Educador, tratadas no próximo capítulo.
73
em geral.”121 Dessa aliança é que Nietzsche vê a forma mais adequada para formar o
povo. , segundo Nietzsche, para formar o povo. Esse poder de fazer com que se crie a
realidade, como véu que encobre o terrível da existência que é falta de sentido. Por isso
é que a tragédia constitui para Nietzsche nesse momento, o renascer cultural mais
desejado, por todas essas suas qualidades em lidar com o tragicidade inerente ao real.
1.8. A EMOÇÃO TRÁGICA
Nesse contexto de investigar na obra O Nascimento da Tragédia uma estética e
sua implicação com a educação, entendida como cognição, é significativo, agora, a
abordagem que Nietzsche faz da emoção do espectador de seu tempo. Ora, para nós, é,
também, de suma relevância essa análise na medida em que são as emoções do
educando que irão determinar o seu aprendizado. Se até esse momento podemos notar
que o conhecimento não-conceitual é relevante para o conceitual, nada mais pertinente
do que abordar e demarcar sobre as emoções. Mas não de qualquer emoção, trata-se
especificamente das emoções oriundas de um novo modo de pensar a vida; o modo
trágico de conceber a vida.
Aqui é fundamental notar que ele convida “o amigo atento” a analisar “suas
experiências” e nessa perspectiva que vamos nos ater:
“Ele há de lembrar-se, efetivamente, de que, à vista do mito movendo-se à
sua frente, sentia-se elevado a uma espécie de onisciência, como se agora a
força visiva de seus olhos não fosse meramente uma força superficial, porém
capaz de penetrar no interior, e como se, agora, as ebulições da vontade, a
luta dos motivos e a corrente engrossante das paixões ele as exergasse diante
de si, com a ajuda da música, tangivelmente visíveis, por assim dizer, qual
uma profusão de linhas e figuras vivamente movidas, e com isso pudesse
mergulhar até o mais delicados mistérios das emoções inconscientes”. (NT,
1992, p.130)
Nitidamente dá seqüência, ou reafirma a idéia de que o dionisíaco, o nãoconceitual, é que reforça e faz vir à luz o conceitual. Aqui, vale uma obsrvação, não se
121
NT, 1992, p. 130.
74
trata de uma relação de subordinação. Dionísio não é a condição de Apolo; esse não está
contido naquele. Mas o que está em e questão, mais uma vez, é aquele relação tensa, na
qual as diferênças permanecem, sem nunca criar uma síntese. Então, de um lado
Dionísio se lança, dá a força, o vetor; mas tudo isso seria inaudito, então entra Apolo,
que metrifica, faz com que essa algo informe ganhe forma e torne palpável aos
humanos, ao entendimento. Sempre aplicando suas metáforas no campo da arte trágica,
do drama, ele fala que esse movimento permite o espectador ir o mais profundo possível
das emoções, “pudesse mergulhar até o mais delicado mistérios das emoções
inconscientes”. Inconsciente como sendo, certamente, aquela parte do dionisíaco em
cada indivíduo. Para Nietzsche, como um exemplo desse fundo que atua na cena:
“O mito trágico só deve ser entendido como uma afiguração da sabedoria
dionisíaca através de meios artísticos apolíneos; ele leva o mundo da
aparência ao limite em que este se nega a si mesmo e procura refugiar-se de
novo no regaço das verdadeiras e únicas realidades [...].” (NT , 1992, p. 131)
Nietzsche faz um confronto do seu conceito de arte trágica com o que era
comum em seu tempo e tinha sua origem em Aristóteles. “Por certo, os nossos estetas
nada têm a nos informar acerca desse retorno à pátria primogênita, da aliança fraterna
das duas deidades artísticas da tragédia, (...) 122 Na construção teórica acerca do trágico
Nietzsche discorda da definição e até redução da tragédia a algo moralizante. Para
MACHADO, “é nesse momento que ele critica as interpretações do efeito trágico de
Aristóteles e de Schiller, que, segundo ele, em vez de reconhecerem o jogo estético da
tragédia, são moralizantes.”123 Nietzsche, por outro lado, preconiza a tragédia com o
sendo um feito cheio rico de muitas outras coisas no âmbito da criação artística. Para ele
os estetas de então “não se cansam de caracterizar como propriamente trágica a luta do
herói com o destino, o triunfo da ordem moral do mundo, ou uma descarga os afetos
122
NT, 1992, p. 131.
MACHADO, R. C. M. O nascimento do trágico: de Schiller a Nietzsche. 1ª. ed. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Editor, 2006. p. 235.
123
75
efetuadas através da tragédia[...]”,124 ou seja, não vêm nada além disso. E mais a frente
nessa mesma citação Nietzsche assevera: “Nunca, desde Aristóteles, foi dada, a
propósito do efeito trágico, uma explicação da qual se pudessem inferir estados
artísticos, uma atividade estética do ouvinte.”125
Nietzsche nos apresenta um rico arcabouço analítico. Nesse caso, mais uma vez,
observamos ele nos apresentar uma miríade de possibilidades. Se sua pontuação de que
a arte trágica é algo mais e não se reduz a uma questão moral, ou como “descarga
patológica”, é mais um indicativo de que estamos em um caminho proveitoso quando
pretendemos relacionar a arte trágica com os processos de formação educacional e
cultural. Sua compreensão acerca do trágico preconiza uma participação afetiva e não
meramente racional do cerne da vida, que ele denomina de Vontade. A tragédia no seu
entendimento não é apenas uma atividade que produz lição de moral, mas vai além,
produz condições estéticas capazes de motivar o participante a ir mais a fundo nas
questões da vida e notar que essa arte é um rico jogo de dar sentido para as contradições
da existência.
Nietzsche aposta em um nascimento de “ouvinte estético” e não um tipo que
estava acostumado a ver a ópera, um tipo que era um filho de douto, mas não muito.
Um crítico que não era muito bem crítico, como Nietzsche denomina-o “um estranho
quidproquo com pretensões meio morais e meio doutas, o „crítico”.126
Certamente esse registro de um expectador que se eleva a critico, municiado por
opiniões jornalescas, era algo presente não só na postura do público das óperas, mas,
também, dos alunos para os quais Nietzsche lecionava. E essa disposição de espírito cria
situações que impediam o bom desenvolvimento da arte. “O artista desempenhante já
não sabia de fato por onde começar com um ouvinte assim, que se dava ares de crítico, e
124
NT, 1992, p. 131.
NT, 1992, p. 132.
126
NT, 1992, p. 133.
125
76
por isso espreitava inquieto [...]”.127 O espírito do espectador como fenômeno
tipicamente da cultura socrática é aquele que mesmo sem conhecer uma dada matéria
sente no direito de lançar questões a ela. Mas, segundo Nietzsche, esse tipo estava com
os dias contados e “já é contada entre as incríveis antiguidades de uma cultura
superada.”128 E ele contínua:
“Quem queira, com todo o rigor, pôr-se a si mesmo à prova, a fim de saber o
quanto é aparentado ao verdadeiro ouvinte estético ou se pertence à
comunidadse dos homens socráticos-críticos, deve apenas perguntar-se com
que recebe o milagre representado na cena [...]”. (NT, 1992, p. 134)
Será de acordo com nossas emoções que saberemos se somos um espectador
trágico ou socrático. Descobrir-se socrático não é suficiente para, então, virarmos o
jogo, pois ou outro modo não nos é conhecido e não é uma mera outra coisa. O trágico é
também complexo.
O trágico é preferível, segundo o entendimento de Nietzsche, por ele ser a
forma mais apropriada de lidar com as contradições vida. O socratismo, por outro lado,
não seria possível dado as suas várias lacunas. Nietzsche, também, no olhar de
MACHADO “crítica a interpretação patológica da catarse, em nome de uma explicação
estritamente estética da tragédia.”129
Interessante notar que a disposição emotiva do espectador socrático acaba por
acossar o mito. Não o aceita e sempre o coloca na balança da razão, das cadeias causais,
o que, desse modo, sempre acossa a narrativa mitológica. Mas para Nietzsche o mito é
“a imagem concentrada do mundo, a qual, como abreviatura da aparência, não pode
dispensar o milagre.”130
É peculiar a proposta do mito como síntese e com presente ou como necessário
na composição do real e é com esse poder que o mito, não considerado naquela
127
NT, 1992, p. 133.
NT, 1992, p. 133.
129
MACHADO, 2006. p. 235
130
NT, 1992, p. 134.
128
77
disposição do espectador socrático, propicia ao outro tipo de espectador, o dionisíaco, a
rica e proveitosa relação de êxtase, e de que a cena no palco é muito mais rica do que
lições morais. Para poder, então, ver essa “boa nova” devemos nos desvencilhar da idéia
de que o mito é algo “antigo e que só servia aos gregos antigos”. Outra visão de mito
comum entre nós socráticos, é achar que se trata de algo dos índios, povos nativos, que
tem uma “visão mitológica” do mundo. “Sem o mito, porém, toda cultura perde sua
força natural sadia e criadora: só um horizonte cercado de mitos encerra em unidade
todo um movimento cultural.”131
Acompanhando o raciocínio sobre o mito, notamos o quanto nossa disposição,
nossas emoções são socráticas, isto é, como é hábito avaliarmos o mito como algo do
passado, algo de alguma cultura aborígine. Superando esse véu socrático que tem
pretensão de verdade, nos deparamos com o seguinte: opomos à idéia do mito o “mito
da razão”. O modo que comumente nos armamos contra a idéia do mito se arvora em
um conjunto de elementos que e analisados com cautela podemos notar que detém
características exatamente míticas. Aliás, esse são os caracteres do mito da razão,
refutar os demais mitos e se por no seu lugar.
Para melhor entendermos o movimento argumentativo de Nietzsche esse trecho
não deixa dúvidas:
“Coloque-se agora ao lado desse homem abstrato, guiado sem mitos, a
educação abstrata, os costumes abstratos, o direito abstrato, o Estado
abstrato: represente-se o vaguear desregrado, não refreado por nenhum mito
nativo, da fantasia artística; imagine-se uma cultura que não possua nenhuma
sede originária, fixa e sagrada, senão que esteja condenada a esgotar todas as
possibilidades e a nutrir-se pobremente de todas as culturas – esse é o
presente, como resultado daquele socratismo dirigido à aniquilação do
mito.(NT, 1992, p. 135)
O filósofo reitera a idéia de que o suporte da cultura é o trágico e não a
racionalidade fundada por Sócrates. O sentido da cultura não está apenas na razão. Essa
131
NT, 1992, p. 135.
78
base é a cultura trágica que entre outros expedientes, faz uso do mito, do herói e da
tragédia e a composição das emoções do espectador deve se deixar compor pelo mito.
Deve notar que a tragédia propicia muito mais coisas do que lição de vida. Propícia a
experiência de criação, de significação para a vida. Tipo de saber, amplamente acossado
pela razão, mas extremamente necessário e que precisa ser administrado de modo que
não se suprima o seu jogo estético. A atitude de interpretação racional acaba por
descartar esse tipo de conhecimento “bonitinho”, mas que não serve para nada. O que
Nietzsche demonstra contrário: diz que a razão já é um mito, e como tal tem as mesmas
posturas e trejeitos do outro “mito” que ela procura descartar. No texto do autor:
“Deles [Gregos] tomamos por empréstimos até agora, para a purificação de
nosso conhecimento estético, aquelas duas imagens de deuses, das quais cada
um rege por si um reino estético separado e acerca de cujo contato e
intensificação recíprocas chegamos a ter uma idéia graças à tragédia grega.
Era forçoso que o acaso desta nos parecesse originado por uma dissociação
notável dos dois impulsos artísticos primordiais: ocorrência com a qual
estava em consonância uma degeneração e uma transformação do caráter do
povo grego, e que nos convida a uma séria reflexão sobre quão necessária e
estreitamente entrelaçados estão, em seus fundamentos, a arte e o povo, o
mito e o costume, a tragédia e o Estado”. (NT, 1992, p. 136)
O que de fato está em questão quando um povo ri dos mitos ou racionaliza ele
perde o contato com a Vontade. O indivíduo em sua singularidade, como conseqüência,
se perde nas aparências e perde o sentido para a vida. Um povo vivo e que tem vigor,
“vale precisamente tanto quanto é capaz de imprimir em suas vivências o selo do eterno:
pois com isso fica como que desmundanizado e mostra a sua convicção íntima e
inconsciente acerca da realidade do tempo e do significado verdadeiro, isto é,
metafísico, da vida.”132
Essa capacidade de que fala o texto de Nietzsche é o mito. Sem o qual a cultura
perde seu fundamento, seu vigor, seu viço. E aqui, certamente, o autor procura ver isso
no seu povo alemão. Em que medida ele está importando modas e modismo de outras
132
NT,1992, p. 137.
79
culturas, e pensando que isso é cultura, ou está produzindo em lavra própria essa
condições de surgimento de uma autêntica cultura. Nessa fase certamente Wagner com
sua música é o representante de originalidade, inteligência capaz de fazer nas suas obras
de tragédia surgir o mito, surgir às condições de toda autêntica cultura. Wagner não só
faz, através da música, surgir o mito, mas surgir o grego trágico entre os alemães, assim
é, nessa fase de sua vida, a percepção de Nietzsche.
O movimento de ressurgimento do trágico não se dá só em fatos externos, mas
também no espírito do povo. Nesse sentido ele tem no povo alemão, pressente que aí, na
consciência também algo acontece: “Temos em tão grande conta o núcleo puro e
vigoroso do ser alemão, que nos atrevemos a esperar precisamente dele essa expulsão de
elementos estranhos implantados à força e consideramos possível que o espírito alemão
retorne a si mesmo [...]”.133 Uma cultura, portanto, é feito desse artesanato, feito por
cada indivíduo, no qual o mito, o cultivo do mito é esse contato consigo mesmo, com a
natureza que há em cada um de nós, e nesse movimento é que se ergue uma cultura
original. Aqui não se tem aversão ao românico ou ao francês, a questão é que não se
deve importar cultura, não se compra cultura, não se pode comprar conhecimento, é da
condição do humano ter que produzir isso e ninguém mais pode fazer em seu lugar.
“Miramos o drama e penetramos com o olhar perfurante em seu
movimentado mundo interno dos motivos – e, no entanto, nos sentíamos
como se junto a nós passasse unicamente uma imagem similiforme, cujo
sentido mais profundo críamos quase adivinhar, e que desejávamos puxar,
qual uma cortina, para divisar por trás dela a proto imagens”. (NT, 1992, p.
139)
Desses efeitos descritos nas citações acima é que o verdadeiro espectador
estético participa. Entre os espectadores verdadeiramente estéticos “há de me confirmar
que, entre os efeitos peculiares da tragédia, o que há de mais notável é essa co-
133
NT, 1992, p. 138.
80
presença”.134 O conteúdo aí desenvolvido girava em torno do herói, do mito. E nesse
aspecto: “O conteúdo do mito trágico é um acontecimento épico, com a glorificação do
herói lutador [...]”.135 Aqui a idéia de que é através dessa batalha que a vida se justifica,
ou seja, ter uma vida ganha entre os gregos era sinal de que se consegui isso através de
uma árdua trajetória, e as lutas do herói representavam isso, vencer a vida, ganhar a
vida. Subjaz a esse raciocínio, também, a contraposição que Nietzsche faz da tragédia
como fenômeno estético e não moral. Segundo MACHADO, “contrapondo-se a uma
interpretação moral da tragédia, o que ele faz é propor uma interpretação metafísica, que
vê na tragédia musical, na tragédia em que o mito trágico é expressão da música, uma
metafísica de artista.”136 Essa cena na consciência ou na emoção do espectador é de
fundamental importância; o que ele chama a consciência do trágico.
A arte não é uma resposta à vida dionisíaca, não é resposta às questões que
desesperam a vida, vai além, acerca da arte, então, Nietzsche diz:
“[...] suplemento metafísico dessa realidade natural, colocada junto dela a fim
de superá-a. O mito trágico, na medida em que pertence de algum modo à
arte, também participa plenamente do intento metafísico de transfiguração
inerente à arte como tal” (NT, 1992, p. 140)
O que o autor caminha para demonstrar é que se trata da Vontade, e é essa que a
arte, então, procura ser suplemento metafísico. Ou seja, a Vontade não tem propósito,
ela é cruel, mas ela contínua querendo, se lançando, se fazendo ex-pressar no real, ela
não para, não cessa, e por isso a criação apolínea a envolve com um véu, dá para a sua
falta de finalidade um propósito e com isso faz a vida humana ser algo suportável. Ao
espectador dionisíaco é dado no drama esse direito. O que é distante daquele outro
modo “raciocinante” que esta ali não para participar desse jogo com a Vontade, mas
134
NT, 1992, p. 140.
NT, 1992, p. 140.
136
MACHADO, 2006, p. 240.
135
81
para apenas procurar relações causais entre um amontoado de metáforas que só fazem
sentido quando tomadas como jogo de criação.
A prova de que a arte é suplemento metafísico, segundo Nietzsche, é que
justifica a presença no mito trágico do feio, do desarmônico. Se formos por uma via
moral no trato dessa manifestação artística, a tragédia musical, não teremos êxito, se
procurarmos “defluir o efeito trágico unicamente dessas fontes morais [...] não poderá
crer que haja feito com isso algo pela arte.”137 Nietzsche insiste nessa perspectiva de
criação artística como sendo uma administração dos embates na consciência do
espectador, do indivíduo: “Para aclarar o mito trágico, o primeiro reclamo é justamente
o de procurar o prazer a ele peculiar na esfera esteticamente pura, sem qualquer intrusão
no terreno da compaixão, do medo, do moralmente sublime.”138 Só assim poderemos
notar o que o autor traz de novo nesse âmbito, quando tomamos o teatro trágico como
fonte moral, o que está em jogo é um aceitar o que chamamos de real com sendo real e
não um mero jogo de algo mais profundo. Já nessa perspectiva ele assevera: “o primeiro
reclamo é justamente o de procurar o prazer a ele peculiar na esfera esteticamente pura”,
sem as imbricações morais que impõe a tomada de um mundo fenomênico como dotado
de um estatuto que na percepção de um mundo dotado de pulsões dionisíacas e
apolíneas não comportam. Corrobora isso quando ele afirma:
“[...] de que a existência e o mundo aparecem justificados somente como
fenômeno estético: nesse sentido precisamente o mito trágico nos deve
convencer de que mesmo o feio e o desarmônico são um jogo artístico que a
vontade, na perene plenitude de seu prazer, joga consigo própria”. (NT, 1992,
p. 141)
Para finalizar sua empresa Nietzsche, coerente com suas teses sobre a criação
estética, assevera que: “Música e mito trágico são de igual maneira expressão da aptidão
137
138
NT, 1992, p. 141.
NT, 1992, p. 141.
82
dionisíaca de um povo e inseparáveis uma da outro.”139 Sempre considerando que
Dionísio e Apolo são duas categorias conceituais ricas, que Nietzsche emprega para
fazer sua obra filosófica, essa afirmação, mais uma vez, nos chama a atenção para o fato
de que a cultura, e todo invento dela, toda sua criação no âmbito do conhecimento é
uma criação. Criação entendida não como mera reprodução, vale ressaltar, mas por
aquilo que é próprio da arte humana. Essa criação na dimensão interior do indivíduo é
que permite superar certas faltas de sentido que é próprio do todo ou da vontade. É
pensando nisso, que a criação é que dá sentido, que as emoções do trágico se justificam.
Corroboram nosso raciocínio as afirmações de MACHADO:
“Se, para O Nascimento da Tragédia, a arte é um remédio, [...] ela é um
remédio metafísico. Não um purgante, como Nietzsche interpretava a posição
de Aristóteles, nem um calmante, como pensava Schopenhauer, mas um
tônico, um estimulante capaz de fazer o espectador alegrar-se como o
sofrimento e até mesmo com a morte porque a destruição da individualidade
não é o aniquilamento do mundo, da vida, da vontade. Foi isso que Nietzsche
chamou nessa época de „consolação metafísica‟ proporcionada pela tragédia”.
(MACHADO. 2006. p. 240)
Enfim, foi possível notar nessa seção as implicações das emoções trágicas e com
o renascimento da tragédia. A inovação acerca da emoção do espectador parece-nos
coerente com uma nova forma de pensar a arte trágica. Não seria possível assentar sobre
velhas concepções de tragédia uma nova perspectiva proposta por Nietzsche. No que
toca ao conjunto da obra e sobre a emoção trágica certamente observamos aí muitas
chaves que entrelaçam estética e educação. A concepção do trágico certamente será o
fio condutor desse pensamento. No próximo capítulo vamos observar em dois escritos
de Nietzsche como ele pensou a educação de modo mais institucionalizado. Ou seja,
como ele, enquanto professor, teceu suas considerações sobre esses estabelecimentos e
depois, no mesmo capítulo, como ele aponta com mais precisão no texto da III
Intempestiva, sua concepção de educação.
139
NT, 1992, p. 143.
83
CAPÍTULO II
ESCRITOS SOBRE EDUCAÇÃO
2.1. EXTENSÃO E REDUÇÃO DA CULTURA
Acerca das orientações que irão balizar o seu trabalho em Sobre o Futuro dos
Nossos Estabelecimentos de Ensino140 Nietzsche, já no prefácio, adverte:
“Duas correntes aparentemente opostas, ambas nefastas nos seus efeitos e
finalmente unidas nos seus resultados, dominam hoje os nossos
estabelecimentos de ensino, originariamente fundadas em bases totalmente
diferentes: por um lado, a tendência de estender tanto quanto possível à
cultura, por outro lado, a tendência de reduzi-la e enfraquecê-la”. (EE, 2004,
p. 44)
Quer dizer: para estender a cultura deve-se simplificá-la, reduzir; “ser mais
objetivo” seria o bordão mais evocado pelos burocratas da educação.
Só que esse espírito dito prático é um veneno para a cultura, pois ele
“enfraquece”, simplifica, em um primeiro momento, depois ele toma gosto pelo
superficial é que assume o lugar de cultura, de algo como sendo elevado.
“De acordo com a primeira tendência, a cultura deve ser levada a círculos
cada vez mais amplos; de acordo com a segunda, se exige da cultura que ela
abandone suas mais elevadas pretensões de soberania e se submeta como
uma serva a uma outra forma de vida, especialmente aquela do Estado”.( EE,
2004, p. 44)
Aqui subjaz uma perspectiva interpretativa elitista da cultura. Essa postura é
para nós desconcertante na medida em que somos abarcados por visões ora marxistas ou
liberais acerca do que é educação. Scarlet Marton expresa muito bem essa questão
quando nos adverte que o projeto de Nietzsche é distinto de dois modos de concepção
educacional que nós é comum nos dias de hoje. Segundo Marton:
“Distante do projeto pedagógico do Iluminismo, considera que a cultura não
é dada a todos. Mais afastado ainda do ideário marxista, acredita que ela cabe
140
Adotamos, para a citação da obra Sobre o Futuro de Nossos Estabelecimentos de Ensino, a convenção
proposta pelos Cadernos Nietzsche segundo a qual a referência à obra pode ser através de suas iniciais
BA/EE. (BA/EE trata-se de Über die Zukunft unserer Bildungsanstalten/Sobre o Futuro de Nossos
Estabelecimentos de Ensino.) Como adotamos para consulta apenas o texto em português vamos utilizar
apenas EE, seguida pelo ano da edição, em português, e pelo número da página correspondente à idéia
e/ou citação da obra.
84
a uns poucos. Tornar os homens felizes não faz parte de seu desiderato;
melhorar a humanidade não constitui um próposito seu. Partidário da
aristocracia do espírito [...] defende a tese de que todo esforço cultural deve
visar a engendrar homens excepcionais” (MARTON. In: AZEREDO, 2008,
p. 18)
Resta-nos fazer uma exegese que procure administrar o fato de que realmente os
argumentos arrolados pelo autor têm alguma pertinência, ademais, certamente sua tese
de cultura para formar os grandes homens é uma constante não só em sua obra, mas
entre outros pensadores de seu tempo de século XIX. MARTON 141 nesse ponto não nos
deixa dúvida em sua leitura. Dizer ao contrário seria impor ao filósofo pensamento
estranho a ele. Contudo, dessa sua crítica, procede alguns frutos que julgamos
fundamentais à critica da idéia de cultura para as massas. Quando se pretende planificar
a cultura, produzindo uma cultura não autêntica, que não brote do próprio povo, o
resultado é esse que ele critica. A extensão e massificação cultural, que tem um orgão
central como promotor. Aliás, o desejo de cultura para todos parte exatamente daí e a
redução de que ele fala decorre, entre outros pontos, desse fato: partir da cabeça de
alguns, algo para todos. Outro aspecto é que para massificar faz-se necessário
simplificar por questões funcionais e ideológicas.
“Ao examinar estas duas tendências fatais à extensão e à redução, nos
desesperaríamos totalmente, se não fosse em determinado momento possível
ajudar a vencer estas duas tendências opostas, realmente alemães e de uma
maneira geral ricas de futuro, quer dizer, a tendência ao estreitamento e à
concentração da cultura, como réplica à extensão, e a tendência ao
fortalecimento e à soberania da cultura, como réplica á redução. [...]”. (EE,
2004, p. 45)
Já na abertura, é posto algo que parece muito contrário às idéias contemporâneas
de educação para todos. Na citação acima, podemos registrar no própro texto do filósofo
o que Marton nos adverte, ou seja, o caráter aristocrático nas concepções de cultura do
filósofo. A idéia de que a educação deve ser um serviço para todos é tão consolidada
que um pensamento contrário é uma blasfema. O autor certamente pensa em algo
141
Cf. MARTON, S. Claustros vão se Fazer Outra Vez Necessários. In: AZEREDO, V. D. Nietzsche:
Filosofia e Educação. (org) Ijuí: Ed. Unijuí, 2008, p. 17
85
reduzido, mas isso não invalida sua crítica. Resta-nos pensar em algo peculiar. Sim,
suas teses sobre a expansão da educação e cultura são pertinentes, esse movimento, o da
expansão, como já dissemos, tende a esvaziar a cultura e subordiná-la a outros fins, isso
não podemos negar. Aqui nos vemos, já de início, embaraçados com a idéia de redução
da cultura e os estabelecimentos de ensino. Certamente, como viventes do século XXI,
temos muito arraigado os ideais burgueses ou comunistas no que tocam a cultura e a
educação e o confronto com a idéia de Nietzsche é inevitável. Nessa encruzilhada
conceitual José Fernandes Weber nos serviu como seta, indicador de qual caminho
seguir. Para ele, quando se apresenta as teses do início das Conferências e que também
serão mantidas na III Consideração Intempestiva: Schopenhauer Educador, logo se
ouve o seguinte: “E já é possível ouvir o coro dos acusadores: “antidemocrático”!,
“tirano”!, “nazista”!.142 Na seqüência ele explica os motivos dessas respostas que
chegam mesmo a impedir a pensar no assunto, pois quem o fizer já é logo considerado
com um dos adjetivos acima. Então ele nos diz:
“Tornou-se habitual entre os democratas comprometidos com a
argumentação e a organização do melhor dos mundos em vias de se tornar
possível um procedimento quase fisiológico, em que o uso de determinados
termos gera conclusões automáticas. Usado o termo X – que aqui é “cultura”
e “pequeno número” –, já não há mais por que buscar compreender. Ou
melhor, a compreensão se processa por curto-circuito. Tentar entender,
justificar, encontrar uma razão mais profunda já é sinal de compromisso com
a opressão. E a despeito de ser politicamente incorreta, a opção aqui
sustentada será buscar entender tanto a argumentação quanto os problemas a
que ela faz frente. (WEBER, 2008, p.522)
Weber, então, nos auxilia a pensar no risco das conclusões apressadas. Em seu
artigo ele também assinala que os reclamantes dessa idéia de restrição são aqueles que,
movidos por egoísmo, estão é preocupados em ter mais um produto. Esse não querem
saber de ser um gênio, mas de ter mais um produto na prateleira do supermercado. Um
estudante movido por essa incultura já se sente em seus primeiros trabalhos digno de
142
WEBER, José Fernandes. Autoridade, singularidade e criação: sobre o problema da formação
(Bildung) em Sobre o futuro dos Nossos Estabelecimentos de Ensino, de Nietzsche. Educação e
Sociedade, v. 29, 2008, p. 522.
86
um Schiller, de um Guimarães Rosa, sem é claro fazer o esforço desses heróis da
cultura. Ainda vamos abordar melhor esse falsos interesses pela cultura, mas agora
nossa atenção ainda é a pressa na elaboração do juízo acerca das teses que Nietzsche
abre suas Conferencias.
Ele próprio já nos indica na abertura algo que em muito sinaliza como lidar
com as idéias da obra em análise: “O leitor de quem espero algo deve ter três
qualidades: ele deve ser calmo e ler sem pressa, não deve sempre privilegiar a si e à sua
“cultura”, não deve, enfim, esperar por encerrar um quadro de resultados.”143
Um balde d‟água nos viciados em sistema, que logo querem saber qual o sistema
a ser proposto pelo autor e, com isso, acaba por sempre trocar um vício por outro. Na
pressa, entra-se em um ciclo vicioso que não opera mundança; pela pressa de mudar.
“[...] leitores calmos, aos homens que não foram ainda arrastados pela pressa vertiginosa
da nossa época precipitada e que não experimentaram um prazer idólatra de se deixar
esmagar por duas rodas [...].”144 O artigo do Professor José Carlos Bruni nos auxília a
formular essa questão da pressa. “A calma e o devagar [...] são antes exigências
essênciais da formação e da cultura, pressupostos que dizem respeito à própria
cultura.”145
Exige-se, para que a autêntica cultura se faça, que “[...] ele [o indivíduo] não
coloque, a si e a sua cultura, como medida e critério seguro de todas as coisas.
Desejamos antes que seja bastante culto para não ter da sua cultura senão uma opinião
modesta [...].” 146 Modéstia, diríamos nós.
As três posturas de leitores, junto com as idéias de redução e extensão, nos
parecem já uma indicação do conteúdo das reflexões do livro. Denotam, também, a
143
EE, 2004, p. 46.
EE, 2004, p. 46.
145
BRUNI, José Carlos. O Tempo da cultura em Nietzsche. Cienc. Cult. vol.54 no.2 São Paulo Out./Dez.
2002, p. 33-35
146
EE, 2004, p. 46.
144
87
dificuldade e peculiaridade do assunto. Consonante com o projeto dos textos aqui
demarcados é inovadora a sua crítica na medida que rompe com a idéia de que educação
deve ser para todos, depois, que educação cultural é a mesma coisa que educação
industrial, técnica. Segundo Noéli Correia de Melo Sobrinho Nietzsche aponta nas
Conferências “[...] os objetivos, os métodos, os conteúdos e as formas da educação dos
jovens, considerando especificamente as relações didáticas entre professor e aluno
[...]”.147 Não propõe um projeto no sentido de reformar o que já existe. Fazendo com
que a base continue a mesma, só fazendo alguns ajustes na educação vigente de seu
tempo. Essas e outras propostas parecem ser inexplicáveis, sensação que certamente
leva o leitor apressado a ficar angustiado, que lê rápido – prefere até jornal por ser já
algo ligeiro. Antes, Nietzsche pressupõe o leitor calmo e sem pressa para poder entender
o que vai dizer sobre educação. Quão irritante deve ser isso para a sua época, e o quanto
é entre nós. Chega parecer inconcebível, mesmo entre pessoas que não são do mundo
acadêmico dizer a ela que você não poder ter pressa, ser calmo soa como uma
contradição demasiada. Mesmo para um público que não lê, caso de alunos e
professores de escolas estaduais, salvo, claro, raras exceções. Tese, a da pressa como
óbvia, que BRUNI nos apresenta ser fadada ao fracasso, pois o tempo da cultura é mais
lento. Aliás, nesse mesmo artigo, temos a idéia de que sob a pressa não se produz
cultura autêntica. Não se desce aos confins do ser. O apressando passa por cima das
sutilezas da existência.148
2.2. O DESINTERESSE COMO FULCRO DA CULTURA
Lançados seus propósitos e tese acerca do conjunto das Conferências, como
apresentamos no tópico anterior, Nietzsche dá abertura em suas exposições
147
MELO SOBRINHO, Noéli Correia de. A Pedagogia de Nietzsche. In: Noéli Correia de Melo
Sobrinho. (Org.). Friedrich Nietzsche: Escritos sobre Educação. 2ª ed. Rio de Janeiro: Loyola - PUC-RJ,
2004, p. 8.
148
BRUNI, 2002, p. 34.
88
demonstrando um trato distinto tanto no jeito de comunicar, quanto na forma de instigar
seu ouvinte.
No início de suas conferências Nietzsche exalta seus interlocutores.
Procura contextualizá-los como exceção, como pessoas pensantes. Tudo isso demonstra
duas coisas: primeiro que o professor Nietzsche era alguém amável e que seus alunos
gostavam dele, segundo que se tratava de alguém comprometido com o que fazia,
ensinava. No que toca ao professor, percepção necessária para se compreender bem as
suas críticas à educação, segundo Rosa Maria Dias, “poucos professores foram tão
estimados pelos alunos quanto Nietzsche. Seu temperamento, suas maneiras, o charme
de sua personalidade afável fascinava-os.” 149
Ao dar seqüência na leitura da primeira conferência vem a pergunta: o que é
fantasia e o que seria fato? Ora, um certo exagero nas cenas descritas, para adornar uma
associação literária nos chama a atenção e nos faz olhar o início da conferência com
mais atenção onde o autor demarca bem o que irá fazer e qual o propósito dessa opção.
A esse propósito, Giorgio Colli endossa a idéia de que Nietzsche, para criticar a cultura
vigente, faz uso, como o fez em O Nascimento da Tragédia, de um novo estilo
lingüístico. “Com uma ruptura análoga [a do N.T.], Nietzsche tenta nestas conferências
– que aparecem na esfera mais ortodoxa da comunicação acadêmica – despertar a
fantasia e a memória do auditor, obrigá-lo a considerar os problemas da cultura como
experiências íntimas, pessoais, cujas vibrações todos os que pertencem ao mundo
acadêmico devem ter sentido, pelo menos por um momento.”150
Aqui há implicações, também, com o Nietzsche de O Nascimento da Tragédia,
que se utiliza uma criação poética em que se pode pensar, também, a realidade dita
verdadeira. Nessa criação literária pode-se pensar as forças fundamentais que compõe
149
DIAS, R. M. O professor Nietzsche. In: Vânia Dutra de Azeredo. (Org.). Nietzsche Filosofia e
Educação. Ijuí: Editora Unijuí, 2008, p. 169.
150
COLLI, Giorgio. Escritos sobre Nietzsche. Tradução e prefácio de Maria Filomena Molder. Lisboa:
Relogio D‟Água Editores, 2000, p. 45.
89
uma dada realidade.
Sendo assim, ele põe sua fantasia em andamento: “[...] ser
testemunha de uma conversa que homens admiráveis tiveram exatamente sobre esse
assunto, e tenho profundamente gravado na minha memória os pontos mais importantes
de suas reflexões.”151 Propositadamente ele, então, passa a falar de um diálogo, como se
tivesse ouvido uma prosa, fato que mais adiante ele próprio irá dizer que se trata de uma
rememoração vinculada a uma boa dose de fantasia. “Assim, me pareceu cada vez mais
útil descrever enfim com boa fé um semelhante diálogo [...]”. 152 Demonstrando, mais
uma vez sua preocupação em criar uma atmosfera mais eficiente na comunicação,
como, também, reforçando a tese de DIAS de que o professor Nietzsche “insistia no
desenvolvimento do senso crítico e da atividade criadora de cada um.” 153
A forma como Nietzsche conduz o texto de sua palestra nos revela sua
preocupação em não fazer desse momento acadêmico algo enfadonho. Nietzsche rompe
com o tipo comum de se fazer essas palestras, que se caracterizava por um professor
convidado a versar sobre algum tema. Devia-se apresentar vestido formalmente, quando
fazia a leitura de sua preleção e aos ouvintes não era permitido interromper.154 Mas ele
propõe outro ritmo e espera do ouvinte outra postura. “Ouvintes que advinham
imediatamente o que somente pode ser indicado, que completem o que foi preciso calar
e que, de uma maneira geral, somente precisem que se lhes lembre o que já sabem, e
não que lhes seja ensinado uma coisa nova.” 155 Essa exigência em muito se coaduna
com a crítica que Nietzsche vai fazer, mais adiante, acerca da falsa autonomia nos
cursos Universitários. A idéia de que aluno era vinculado a seus mestres apenas pelo
ouvido.
151
EE, 2004, p. 48.
EE, 2004, p. 48.
153
DIAS, 2008, p. 169.
154
Cf. CHAVES, E. Nas origens do Nascimento da Tragédia. Introdução à Tragédia de Sófocles. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2006, p. 12.
155
EE, 2004, p. 49.
152
90
O texto de Nietzsche, então, nos leva pensar que ele espera que o ouvinte não apenas
ouça, mas que vá completando e construindo um pensamento enquanto escuta a leitura
que está fazendo. Nietzsche, desse modo, propõe uma atitude de ouvir que é
participativa e não meramente passiva. Preparando desse modo uma condição estética
mais favorável à compreensão do que ele vai comunicar de novo.
“Coloquemos-nos no estado de espírito de um jovem estudante, quer dizer,
num estado de espírito que, na época tumultuada e agitada em que vivemos, é
algo totalmente incrível: é preciso tê-la experimentado para que pudesse
parecer simplesmente possível esta ilusão despreocupada, esta tranqüilidade,
conquistada no momento e, por assim dizer, estranha ao tempo”.(EE, 2004, p.
49)
O desinteresse, atmosfera a que o ouvinte é convidado, no sentido de falta de
utilidade de ser algo para ser usado no mercado, se faz presente nesse vestíbulo das
reflexões das conferências de Sobre o Futuro de Nossos Estabelecimentos de Ensino.
Certamente suas reflexões sobre a tragédia o marcaram, pois naquele contexto sua
denúncia era exatamente da imposição da racionalidade, nas figuras de Eurípides e
Sócrates, sobre a pulsão dionisíaca que é o cerne da Tragédia Grega. A utilidade a que
Nietzsche refuta ao apresentar em seu texto a figura de jovens desinteressados parecenos que é uma ressalva contra a postura corrente de fazer a leitura de um texto novo já
imbuído de idéias pré-estabelecidas. A idéia de utilidade, tão constantes nos modernos,
certamente não fazia parte do contexto trágico, pois naquela cultura dos gregos o mais
importante era a própria cultura. Ao invés de impor a tragédia uma necessidade, o que o
grego fazia era vivenciar aí a contradição subjacente à vida e daí glorificá-la. No texto
assim esse desinteresse é apresentado:
“[...] um ano no qual a ausência de qualquer plano e de qualquer objetivo, o
desinteresse quanto a qualquer projeto de futuro têm diante de minha
consciência de hoje o jeito de um sonho, ainda que de ambos os lados, antes e
depois, ele se cercasse de períodos de vigília”. (EE, 2004, p. 49)
91
Nesse espírito de juventude, e fazendo uso de uma narrativa rica em imagens,
Nietzsche propõe, para expor seu pensamento, um exercício de tiro que causa uma
interessante cena. O que parece dá mais vida aos seus argumentos.
A interrupção do velho é enigmática, como o autor evoca seu público ouvinte a
concluir, enfim, pensamos que é estratégico um velho que interpreta logo algo
desinteressado como sendo um duelo. Algo com propósito, algo corriqueiro ou mais
provável. A presença do lugar comum da época, das teorias educacionais que apregoava
a expansão da educação e a redução da cultura para que todos pudessem alcançar,
revelando no fundo as idéias do trabalho útil.
Após descobrir que o velho ia ocupar o mesmo lugar que eles: “Para que serve
toda a filosofia, pensávamos, se ela nos impede de estarmos sós e de gozarmos da
amizade na solidão, se ela nos impede mesmo que nos tornemos filósofos?” 156
“[...] como tinha ele [o amigo] temido que hoje, pela primeira vez, o filósofo
o impedisse de filosofar. O velho se pôs a rir „como‟? vocês temem que o
filósofo os impeça de filosofar? Eis que isto pode mesmo ocorrer, e vocês
não experimentaram ainda? Não tiveram a experiência disso na sua
Universidade? Não ouviram, enfim, aulas de filosofia? (EE, 2004, p. 57)
Crítica que nos reporta ao texto de O Nascimento da Tragédia quando ele
constata que os professores universitários não conseguem fazer o trágico por falta de
filosofia. Aqui o jogo entre o interesse pela filosofia, aposta de que os estabelecimentos
de ensino seria o lugar para cultivá-la realça a idéia que nesses estabelecimentos não se
consegue filosofar e o filósofo que aí se encontra não promove a filosofia. “Além disso,
naquela época acreditávamos ainda ingenuamente que aquele que, numa universidade,
tem o nível e a dignidade de filósofo deve ser também filósofo: sim, tínhamos pouca
experiência e estávamos mal informados.”157
156
157
EE, 2004, p. 55.
EE, 2004, p. 57.
92
Imbuídos de propósito elevados os jovens do diálogo pretendem, através da
filosofia, “refletir sobre a melhor maneira de nos tornar homens cultos.” 158 Sempre no
jogo do diálogo, Nietzsche põe o velho a dizer aquilo que iremos notar ao longo de seu
pensamento sobre educação: “imitem pelo menos hoje os pitagóricos, que tinham de se
calar durante cinco anos, porque serviam a uma filosofia autêntica [...] para servir à sua
futura formação, com a qual vocês se preocupam de maneira tão urgente.” 159
Um jogo de raciocínio que diz muito. Silêncio, paciência e a deixa do velho
filósofo em convidá-los a ficarem quietos, menos ruidosos. Propósitos que revelam que
para se educar é preciso de uma dura disciplina. Submeter-se a princípios rígidos,
dentre ele o silêncio como um princípio cultivado lá entre os filósofos pré-socráticos. A
chamada de atenção por parte do velho para que os jovens se eduquem segundo os
princípios pitagórico, prepara no texto a exposição em que Nietzsche esboça a questão
que acossa a formação, os interesses a idéia e utilidade:
“Não esqueçamos que, graças a esta associação, jamais pensamos naquilo
que se chama comumente de profissão. A exploração quase sistemática que o
Estado fez destes anos, na medida em que quis o mais cedo possível atrair
para si funcionários utilizáveis e se assegurar, através de exames
excessivamente rigorosos, da sua docilidade incondicional, tudo isso estava
muito distante da nossa formação; não éramos determinado por qualquer
espírito utilitário, qualquer desejo de progredir rapidamente e fazer
rapidamente uma carreira; [...] Já disse que esta maneira de se satisfazer com
o momento sem imaginar um objetivo, de se embalar numa cadeira de
balanço ao ritmo do momento, deve parecer quase incrível [inacreditável],
em todo caso, censurável na época atual, que se desvia de tudo o que é
inútil”. (EE, 2004, p. 58)
E propor uma educação que tenha por finalidade ela própria parece ser uma
aberração em épocas modernas. Mas Nietzsche questiona que a imposição ainda muito
cedo, de objetivos entra em contraste com uma outra educação sem essa interferência.
Modelo que permite o apreciar o momento, o presente, “o momento sem imaginar o
objetivo”. Aqui temos que caminhar, no que toca a educação desinteressada, sob um
muro. Onde de um lado temos o humanismo da época e que pode ser, também,
158
159
EE, 2004, p. 57.
EE, 2004, p. 57.
93
considerado a cultura desinteressada da burguesia, que no fundo remete a cultura
ilustrada das elites. Sociedade na qual o poder é tiranamente imposto sobre a maioria
que financia o desinteresse dos ilustrados. De outro temos o interesse Liberal, o do
trabalho como fulcro sagrado da vida humana. Trabalho vale dizer, como forma de,
também, exercer o poder. Como cultivar, então, esse desinteresse da associação cultural
de que fala Nietzsche? Certamente a ebulição cultural por que passava o Nietzsche do
ginásio, necessitava de um canteiro para florescer e uma das coisas, ervas daninhas que
se deve arrancar desse canteiro é a utilidade. Blasfêmia que nos exigiria um homérico
esforço para acomodar em nosso seio essa verdade, a da supremacia da cultura sem
interferências.
Nietzsche propõe um olhar que procura fugir as duas possibilidades. Ele já lança
aqui no início de suas conferências em Sobre o Futuro de Nossos Estabelecimentos de
Ensino algo que irá dizer de vários modos ao longo delas e na III Consideração
Intempestiva: Schopenhauer Educador. A saber:
“Ninguém aspiraria a cultura se soubesse a que ponto o número de homens
verdadeiramente cultos é, enfim, e não poderia deixar de ser, incrivelmente
pequeno; e que, no entanto, nem seque este pequeno número de homens
realmente cultos seria possível, a não ser que uma grande massa [...] se
dedicasse à cultura.” (EE, 2004, p. 60)
Por enquanto as linhas seguintes demonstram uma idéia de que a cultura e o
gênio, seu arauto por excelência, é coisa rara.160 Coisa para poucos. E que a pretensa
democratização é uma farsa, pois, os duros caminhos a que gênio tem de percorrer para
se formar são para poucos e querer logo ser gênio é mais uma expertise da vida
moderna, que sempre quer as coisas de modo fácil. Essa excepcionalidade do homem
de cultura, como nos auxilia a compreender MARTON, 161 é também formulado nas
anotações do próprio Nietzsche da seguinte forma:
160
Cf. DIAS, R. Maria. Nietzsche Educador. 3ª ed, São Paulo: Scipione, 2003, p. 81 (Col. Pensamento e
Ação no Magistério).
161
MARTON. In: AZEREDO, 2008, p. 18.
94
“Fala-se muito da república dos eruditos, mas não da república dos gênios.
Esta funciona da seguinte maneira: um gigante grita a outro através do
deserto espaço intermediário dos séculos, sem que o mundo dos anões, que se
arrasta aos seus pés, perceba mais do que um murmúrio e entenda mais do
que se passa no geral. E, por outro lado, os anões ali embaixo ocupam-se com
incessantes farsas e fazem muito barulho, arrastam-se com aquilo que
deixaram cair, proclamam heróis, que também são anões, pelos quais os
espíritos gigantes não se deixam perturbar, mas prosseguem com sua elevada
conversa espiritual” (26[14] NIETZSCHE, Inverno de 1872-73)162
Essa anotação do filósofo consolida o que também MARTON nos indica. A
crença nos grandes homens e cultura. Nietzsche, então, questiona a tentativa de se fazer
o contrário. “Democratizam-se os direitos do gênio para suavizar o trabalho que exige
uma formação, para arrefecer a carência pessoal de cultura.” 163
As pretensões
burguesas que tudo reduz segundo lógica da compra, do capital. E que: “Acreditas
alcançar com um só golpe o que eu pude finalmente conquistar, depois de um combate
longo e obstinado, com o objetivo exclusivo de viver como filósofo?” 164
A cultura é algo de difícil produção, para poucos. No seu tempo parece que se
procura sistematizar a produção de cultura, e de modos diversificados, Nietzsche vai
falar dessa cena, ou seja, ele vai insistir sobre essas teses que foram lançadas já no início
de sua conferência: o dilema de maior número de cultura, o que implica diminuição de
sua qualidade,
No prefácio, o autor apresenta a tese de redução da cultura como sua. Agora,
como recurso lingüístico ele põe o discípulo do filósofo a falar a mesma tese de
extensão e simplificação da cultura como problema capital para o estabelecimento de
ensino.
“[...] a tendência à extensão, à ampliação máxima da cultura, e a tendência à
redução, ao enfraquecimento da própria cultura. A cultura, por diversas
razões, deve ser estendida a círculos cada vez mais amplos, eis o que exige
uma tendência. A outra, ao contrário, exige que a cultura abandone as suas
ambições mais elevadas, mais nobres, mais sublimes, e que se ponha
162
Para essa citação dos fragmentos de Nietzsche fizemos uso da edição em português: NIETZSCHE, F.
Sabedoria para depois de amanhã. Seleção dos fragmentos póstumos por Heinz Friedrich; tradução
Karina Jannini. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 28. (Col. Tópicos).
163
EE, 2004, p. 60.
164
EE, 2004, p. 60.
95
humildemente a serviço não importa de que outra forma de vida, do Estado,
exemplo”. (EE, 2004, p. 61)
Na seqüência do texto, a questão da extensão se resolve ou responde nossas
indagações, que não se comprazia muito com a idéia de restrição. Mas, então, vejamos a
razão do autor. Ora subjaz ao interesse pela extensão os três motivos. Que são:
econômico, religioso ou de Estado. Não é o nobre interesse pelo ato de cultivar-se, mas
aliena-se o que é cultural. Oras! Consideramos que é essa a coisa que mais é humano, o
que se faz, portanto, é deixar de ser humano. O que explica a “barbárie” civilizada.
Acerca de onde surge a necessidade da cultura:
“Em certos países, o temor da opressão religiosa é tão geral e o medo das
conseqüências desta opressão tão marcados, que em todas as classes da
sociedade se encontra um desejo ávido de cultura e se absorve de preferência
os elementos que destroem os instintos religiosos. Em outros lugares, ao
contrário, um Estado [...]”. (EE, 2004, p. 62)
Não se encontra na base necessidade de cultura, mas os motivos são outros. O
que revela a pertinência da crítica de Nietzsche à extensão da cultura. Não se trata de
alguém contrário ao povo, mas aqui de revelar a contradição nesse aparente clamar por
algo que nos faz mais humanos, que é a criação cultural.
Mas é o contrário que soa no grito da massa por cultura:
“Aí portanto, onde o grito de guerra da massa exige uma cultura popular mais
extensa, procuro habitualmente distinguir se este grito foi provocado por uma
tendência exagerada para o ganho e para a posse, ou pelas marcas da
opressão religiosa anterior ou pela clara consciência que um Estado tem do
seu valor.” (EE, 2004, p. 63)
No que toca as ciências também se nota o descompasso. O cientista, o
acadêmico, como já foi aludido anteriormente, também não cumpre papel de promotor
da cultura. Na procura de se tornar um profissional da cultura, ele cai na lógica da
extensão e redução. De que forma: “Se na sua especialidade ele está acima do vulgus,
para tudo mais, quer dizer, para tudo que é importante, não se mostra diferente deste.” 165
E também nesse domínio se vê campear a lógica da redução. “A divisão do trabalho nas
165
EE, 2004, p. 64.
96
ciências visa praticamente ao mesmo objetivo que aquele a que visam conscientemente
aqui e ali as religiões: à redução, ou seja, ao aniquilamento da cultura.” 166
A praga do “jornalista” ao propor resolver o dilema „aprofundar e estender” ele
resolve, porém de modo mentiroso. Pior, é o bordão jornalístico, quer dizer, o que
pretende facilitar as coisas que assume o lugar do gênio.
O ensino de filosofia em estilo jornal é exatamente isso. “O jornalista é de fato a
confluência das duas tendências: ampliação e redução da cultura dão aqui as mãos.” 167 E
Nietzsche não poupa crítica ao jornalista. “O jornalista, o senhor do momento, tomou o
lugar do grande gênio, do guia estabelecido para sempre [...]”.168 O Jornalista é aquele
que reduz, pois tem pressa. Só que com esse movimento não se produz cultura. Como já
observamos, a pressa não é a amiga da cultura, como, também, nos mostrou BRUNI169
quando destaca que a “calma e o devagar” são fundamentais para a cultura. O jornalista,
ao contrário, propõe resumir tudo, adiantar a mensagem. Nesse contexto para que
estudar os gregos, momento cultural de dileção de Nietzsche. “Tudo isso seria inútil,
quando o mesmo estudante, um minuto antes, tenha pego um jornal, um romance da
moda ou um destes livros doutos, cujo estilo já traz consigo os brasões repugnantes da
barbárie cultivada que está em curso hoje em dia.”170
2.3. SITUAÇÃO DO GINÁSIO
Vale registrar certo otimismo, apesar das críticas, no que toca a existência de
estabelecimentos de ensino. Um Nietzsche que vislumbra algo. Apesar de suas
pertinentes e atuais pontuações, que certamente mostra o tamanho monstruoso que é o
estado da educação, dos dilemas em que ela se encontra envolvida, ele, sutilmente injeta
166
EE, 2004, p. 64.
EE, 2004, p. 65.
168
EE, 2004, p. 65.
169
BRUNI, 2002, p. 34.
170
EE, 2004, p. 65.
167
97
no texto ânimo. Isso se revela, por exemplo, no final da primeira conferência. “[...] tu
tens razão em tudo, exceto no teu desânimo.”171 Ou seja, apesar das monstruosidades
não se pode desanimar. E revela seu comprometimento:
“O primeiro que tiver a ousadia de ser totalmente sincero neste domínio
ouviria o eco da sua sinceridade devolvido num milhar de almas corajosas.
Pois, no fundo, existe entre os homens desta época, aqueles cujas disposições
são nobres e calorosos de sentimentos, um acordo tácito: cada um deles sabe
o que precisou sofrer por causa da situação da cultura na escola, cada um
desejará libertar pelo menos seus próprios herdeiros desta opressão, ainda
que ele próprio deva ser sacrificado.” (EE, 2004, p. 67)
O serviço é penoso, mas é possível, pois existem mais pessoas que também
sabem da situação crítica que se encontra o ginásio. Nessa empresa de crítica que
Nietzsche tece sobre o ginásio é preciso, antes, saber o que ele compreende por tal. É
preciso entender em Nietzsche o papel que desenvolveria o ginásio. Segundo Wilson
Antônio Frezzatti Júnior para o Nietzsche das Conferências há dois tipos de escola: “as
profissionalizantes, para a maioria das pessoas, e as clássicas – „superiores‟, „nobres‟ –
adequadas para pessoas escolhidas que estudariam até os 30 anos. Estas últimas seriam
esponsáveis por uma educação independentemente do Estado e por uma renovação da
cultura.”172
Sendo assim, fica mais clara sua afirmação: “todos as outras instituições devem
medir-se pelo objetivo cultural que é visado pelo ginásio [...]. Nem mesmo a
Universidade pode pretender esta importância de centro motriz [...]”.173 Compreendendo
o elevado papel a que reserva ao ginásio Nietzsche procura, agora, tocar em um ponto
que para ele é essencial para avaliar a situação do ginásio. A questão é a língua. “O que
é então, se olharmos com um olho severo, o ensino do alemão no ginásio?” 174 E
continua: “Levem sua língua a sério [...] Se vocês não chegarem a experimentar um
desgosto físico por certas palavras e jargões, aos quais os jornalistas nos habituram
171
EE, 2004, p. 65.
FREZZATTI JR, W. A. Educação e cultura em Nietzsche: o duro caminho para "tornar-se o que se
é". In: AZEREDO, Vânia Dutra de. (Org.). Nietzsche: Filosofia e educação. Ijuí: Unijuí, 2008, p. 41.
173
EE, 2004, p. 68.
174
EE, 2004, p. 68.
172
98
[..]”.175 Para DIAS esse é um ponto fundamental para a concepção e bom
funcionamento do ginásio segundo Nietzsche. “Ele vê na aprendizagem conscienciosa
da língua materna e da arte de escrever uma das tarefas essenciais da escola
secundária.”176
No próprio prazer do uso da língua é que se pode notar o apreço ou não pela
cultura ou arte. Esse pensamento também faz lembrar o artista Lírico apresentado em O
Nascimento da Tragédia, como aquele que exprime nas palavras algo oriundo do cerne
da vida, é do transe, da participação dionisíaca, donde ele tira o conteúdo expresso,
coaduna aqui essa idéia que é já a partir da língua materna que se nota o apreço pela
cultura, e sua autenticidade.
A falta de cuidado com a língua expressa o mau funcionamento do ginásio. A
tarefa do ginásio, “a tarefa de uma escola de alta qualidade deve ser, por isso, „adestrar
lingüisticamente‟ o estudante.”177 A importância da dada nas Conferências à língua
muito bem se justifica quando tomamos a língua como aquela pela qual o estudante faz
a experiência do autêntico, de si, como podermos notar mais adiante na III
Consideração Intempestiva: Schopenhauer Educador, na idéia de que deve fazer a
experiência de si, como processo, parte do itinerário rumo a percepção de que há
princípios superiores a esse próprio eu, a própria natureza a qual deve-se subsumir, em
última instância, o eu.
Porém, Nietzsche nota que há mais um problema grave no ginásio. Não bastasse
o jornalismo, com sua pressa, temos uma outra prática, que revela ser cômodo, um
arranjo porco, para com a língua. A saber:
“[...] encontramos em todo lugar a tendência de lidar com a língua materna
através da erudição histórica: quer dizer, se usa dela como se fosse uma
língua morta [...] a forma da história se tornou a tal ponto comum na nossa
175
EE, 2004, p. 68.
DIAS, 2003, p. 94.
177
DIAS, 2003, p. 94.
176
99
época, que o corpo vivo da língua foi [...] sacrificado a seus estudos
anatômicos [...]”. (EE, 2004, p. 70)
A cultura histórica é algo pernicioso. Não se trata aqui de considerar apenas
aquela disciplina que hoje em dia compõe a grade curricular das escolas de Ensino
Médio. O método histórico é que é a questão; é a forma mais cômoda, pois criar as
condições educacionais para que o fato passado viva novamente é o caminho mais lento,
mais caro, menos rendoso e por aí vai.
“É verdade que o método histórico parece ser para o mestre bem mais fácil e
bem mais cômodo. [...] exigir disposições bem mais reduzidas, e geralmente
um ímpeto menos forte na vontade e na aspiração do mestre. [...] é o mais
fácil e o mais cômodo que se esconde sob o manto de pretensões soberbas e
de títulos pomposos: O que e verdadeiramente da ordem do prático, a
atividade que é a essência da formação, porque no fundo é a mais difícil, só
recolhe os olhares do descrédito e da depreciação [...]”. (EE, 2004, p. 70)
Ensinar, portanto, é o caminho mais difícil, é aquele onde se procura criar as
condições para que o educando possa recriar, participar esteticamente de condições
para, então, se apossar dos inventos de outras épocas. Ao contrário, o conhecimento
histórico tende a pôr acabado o achado histórico e desse modo se torna não só
desmotivados, mas difícil de ser apreendido na sua essência e vigor.
As exigências, portanto, para dar o devido tratamento aos clássicos da cultura
alemã, será a criação de uma atmosfera, daquelas condições que a tragédia grega
gerava; por isso uma atuação da educação sobre as condições estéticas, sem a qual as
tentativas de compreender os clássicos se tornam “barbárie civilizada”.
2.4. A LIBERDADE NA ESCRITA: AINDA NO GINÁSIO
O exercício de falar de si, como Nietzsche nos diz ser prática do ginásio, nos
apresenta uma dupla via de análise. A primeira é como ele questiona a autonomia. Essa
autonomia de que fala não pode ser substituída por uma tirania. Se seguirmos o seu
raciocínio, veremos que não se joga a autonomia na mão do jovem e pronto. Aliás, isso
é nefasto, pois pode criar monstrengos que em poucos dias já irão se sentir superiores ao
100
seu mestre. Outro viés é de ordem cognitiva. Corre-se o risco de traumatizar o
aprendizado. No próprio texto de Nietzsche:
“Esta é sua primeira produção original; as forças que ainda não se
desenvolveram tendem pela primeira vez a uma cristalização; o sentimento
embriagador da autonomia reveste estas produções com um encontro,
primitivo, admirável, que jamais retornará. [...] o jovem tem a percepção de
que está daqui por diante realizado, que é um ser capaz de falar, de conversar,
e mesmo que é convidado a fazê-lo.” (EE, 2004, p. 72)
Para DIAS “Nietzsche não gosta da dissertação e da redação sobre temas
específicos, estabelecidos à revelia do aluno. Sofreu na própria pele a imposição de
escrever quando seu pensamento ainda não estava, para isso, suficientemente
maduro.”178 E para agravar ainda mais o quadro o professor tem uma postura de juiz
diante dessa produção juvenil:
“[...] vejamos agora a maneira habitual de agir do mestre diante dessas
primeiras produções originais: O mestre critica o aspecto verdadeiramente
autônomo que, nestas excitações prematuras, não pode justamente exprimirse senão como inabilidade, como saliências e como traços grotescos.” (EE,
2004, p. 72)
DIAS nos propõe pensar que a postura do professor diante as produções dos
jovens alunos funciona de forma castradora. Segundo a leitora de Nietzsche, o professor
“exige a originalidade, o enfoque pessoal, mas a originalidade, em última instância, fica
reduzida à escolha numa lista de temas”.179 E na seqüência do raciocínio o professor ao
avaliar o aluno o “reprova, sobretudo, a forma exagerada de se expressar e a autonomia
do pensamento”. Particularidades que é próprio do jovem. Prática que acaba por criar
um aluno submisso aos ideais do professor.
Nestes últimos raciocínios foge-se dos extremos, põe-se a coisa: é preciso fazer
o árduo serviço de educar; não se pode jogar a autonomia no colo do educando; não se
pode liquidar a individualidade do jovem. Ao se optar pelo caminho “mais fácil”, vai-se
gerando sucessivas contradições: não se trabalha direito a autonomia, depois faz
acontecer uma pretensa liberdade literária:
178
179
DIAS, 2003, p. 97.
DIAS, 2003, p. 97.
101
“No ginásio, todos são considerados, sem um exame mais rigoroso, como
seres capazes de fazer literatura, com o direito de ter opiniões pessoais sobre
os fatos e os personagens mais sérios, embora uma educação correta devesse
justamente aspirar, com todos os seus esforços, reprimir as ridículas
pretensões de autonomia de julgamento e apenas habituar o jovem a uma
estrita obediência sob a autoridade do gênio”. (EE, 2004, p. 73)
Compreender o que é a figura do gênio e qual é o fascínio que tal ser exerce na
cultura alemã, em geral e em particular em Nietzsche pode dirimir nosso desconforto
com a idéia do excepcional, ou do pouco, questão que trataremos mais adiante, por ora,
nota-se que Nietzsche propõe que para ser livre é preciso antes se formar para essa
liberdade. Essa prática da falsa liberdade nos evidência, tanto no texto de Nietzsche
como no comentário de DIAS, ser geradora de traumas. Aliás, os frutos da composição
que tem esse contexto só poderão produzir um tipo de literatura desagradável. “Desses
veredictos, feitos às pressas, saem os jornalistas e os maus romancistas, os que se
apropriam dos métodos, dos truques e do tom superior de seus professores”.180 E no
próprio texto de Nietzsche temos essa idéia:
“Enquanto os ginásios alemães, cultivando a composição alemã, trabalharem
para preparar este abominável dilúvio da escrita que não tem consciência,
enquanto eles não considerarem como dever sagrado a disciplina prática mais
minuciosa da palavra e da escrita, enquanto tratarem a língua materna como
se ela fosse um mal necessário ou um corpo morto, eu não poderei incluir
estes estabelecimentos de ensino entre as instituições consagradas à
verdadeira cultura”. (EE, 2004, p. 74)
Ao tratarem a língua de modo inadequado permitindo que ora ela se torne
“superficial”, tratada como objeto histórico, morta ou permitindo que em nome de
liberdade de composição, da produção de texto, se intrometa o jogo do poder, no qual o
professor atuando como juiz e acaba por incutir nos alunos vícios, truques para agraciar
o professor, Nietzsche vai ver que isso revela um outro problema no ginásio. O
Objetivo do ginásio parece ser confuso: “cultura clássica, cultura formal, cultura que
180
DIAS, 2003, p. 97.
102
forma a ciência: três coisas gloriosas que infelizmente são contraditórias entre si
[...]”.181
E sua tese, contrapondo à confusão vigente sobre o caráter de exceção na lide da
cultura, contínua:
“Pois uma verdadeira „cultura clássica‟ é algo tão extraordinariamente difícil
e raro e demanda dons tão complexos, que não é permitido, senão por
ingenuidade ou por insolência, apresentá-la como um objetivo acessível ao
ginásio”. (EE, 2004, p. 75)
Já dissemos o como há em Nietzsche a idéia da excepcionalidade. Postura, aliás,
ser com entre homens de letras de seu tempo. Essa idéia se alarga se tomarmos outros
elementos. Como Nietzsche menciona, Friedrich August Wolf foi o precursor de uma
reforma no ensino. Segundo DIAS, ele foi o idealizador da escola humanista, “que tinha
por objetivo formar homens cultos, capazes de exercer plenamente todas as
potencialidades de seu espírito”.182
Quando, então, Nietzsche põe em revista os
objetivos do ginásio é com essa lente. Daí sua quase irritação:
“[...] ao ginásio falta até agora o primeiro objetivo de estudo, o mais simples
com o qual começa uma verdadeira cultura, a língua materna: e por isso
mesmo lhe falta o solo natural e fecundo necessário a todos os esforços
posteriores no sentido da cultura. Pois é somente sobre o fundo de uma
aprendizagem, de um bom uso da língua, estrito, artístico, cuidadoso, que se
afirma o verdadeiro sentimento da grandeza dos nossos clássicos [...]”.(EE,
2004, p. 76)
A questão da língua e dos cuidados no seu cultivo parece ser um tema que tem
estreitas relações, além das atinentes ao que ele compreendia e esperava do ginásio, com
o que notamos em O Nascimento da Tragédia no que toca ao drama perfeito, no qual a
sob êxtase, o poeta consegue expressar na linguagem o conteúdo dionisíaco. Com essa
consideração, certamente nosso olhar sobre a preocupação constante de Nietzsche para
com a língua se justifique.
181
182
EE, 2004, p. 75.
DIAS, 2003, p. 99.
103
Decorre dessa falta de aptidão com a língua: “conseqüências fatais do nosso
ginásio de hoje: na medida em que ele não está em condições de implantar a cultura
verdadeira e autêntica, que é, sobretudo „obediência e hábito.”183
Para se alcançar a cultura clássica “[...] mas para isto, é raro que alguém seja
conduzido do interior, com suas próprias forças, para o segredo da forma, pelo atalho
conveniente; na maioria dos casos, todos têm necessidade destes grandes guias e
mestres e devem entregar-se à sua proteção.”184
As condições de uma cultura clássica, considerando o conteúdo estético de O
Nascimento da Tragédia, não podem ser tidas como “devaneios”, mas podemos evocar
a idéia de autêntico, ou seja, não algo meramente intelectual, que se dê apenas no plano
da abstração. Estamos pensando em algo que não foge da pulsão da vida, a língua a
cultura, para escapar o da “boca para fora” precisa se “encarnar”. Caso contrário
aprender a própria língua será algo aleatório, que sempre produz monstros, algo sem
referência, inventado aleatoriamente ou segundo os princípios do socratismo da cultura
que acaba por negar a pulsão de vida e substituí-la pelo espírito dialético.
O trato não apropriado para com a língua alemã, porém, segundo Nietzsche,
houve um momento em que a cultura era tratada de modo autêntico:
“Aquela era a época dos nossos grandes poetas, quer dizer, daqueles raros
Alemães verdadeiramente cultos, quando o grande Friedrich August Wolf
introduziu nos ginásios o novo espírito clássico que vinha da Grécia e de
Roma, por intermédio destes homens; sua iniciativa ousada teve sucesso em
impor uma nova imagem do ginásio, que não deveria mais ser unicamente
um viveiro para a ciência, mas, sobretudo o lugar consagrado a toda cultura
nobre e superior”. (EE, 2004, p. 79)
Esse constante evocar os gregos, quase uma fixação, certamente constitui um
projeto de vida dito autêntico, remetia a este estilo de vida. A aparente busca pelo gênio,
pela idéia de que a boa educação era para poucos, consiste nisso: autenticidade, cultura
que tem origem no cerne dá existência, na pulsão dionisíaca; o resto, mesmo que tenta
183
184
EE, 2004, p. 77.
EE, 2004, p. 78.
104
imitar os gregos, não da certo, pois o que os move são outros motivos; são os motivos
modernos e com todas as suas características.
O primeiro desastre após as proposições de Wolf foi exatamente a formação dos
professores, “[...]mas justamente a [medida] mais importante foi a que malogrou, a
iniciação dos próprios mestres neste novo espírito; assim portanto, o objetivo do ginásio
ficava novamente muito distante da cultura humanista que Wolf desejava”. 185 E no
mesmo parágrafo Nietzsche insiste nos motivos que levaram a esse fracasso: “estima
absoluta pela erudição e pela cultura acadêmica [...] [que] tomou lugar do princípio de
cultura que ele (Wolf) tinha introduzido.”186
Os motivos desse fracasso na introdução da cultura clássica:
“[...] isso se deveu ao caráter não alemão. [...] à crença de que era possível
eximir-se da base do solo nacional e continuar a ficar de pé, em suma, à
ilusão de que se podia saltar diretamente, sem a utilização de pontes, ao
mundo grego, tendo já negado o espírito alemão e, de uma maneira geral, o
próprio espírito nacional”.(EE, 2004, p. 82)
Talvez os mais apressados, sobretudo os leitores que procuravam e procuram ver
nos escritos de Nietzsche projeções pessoais, podem pensar que a busca do que era
propriamente alemão consiste em qualquer coisa do tipo raça pura. No âmbito desse
texto a busca pelo autêntico passa pelo cultivo daquilo que é originário do próprio
indivíduo. A cultura tem que ser assim para não se tratar de algo alienante, o próprio
indivíduo deve ser sujeito de sua cultura; alienar-se desse processo é não conseguir
retomar os mitos primitivos que cada povo tem. Absorver outras culturas, mesmo que
ela seja a Grega, sem ser pelo processo de construção individual só faz aumentar a
condição de alienado. O que se deve notar é que a cultura nunca pode ser algo
importando, mas sempre algo produzido a partir do próprio indivíduo em sua
comunidade. Segundo DIAS “assim, antes de fazer desfilar aos olhos do estudante toda
a galeria dos gregos, como se ele estivesse diante de um museu, o professor deveria
185
186
EE, 2004, p. 81.
EE, 2004. p. 82.
105
ajudá-lo a „aprender por si mesmo‟, a „pensar por si mesmo‟, a „estetizar por si mesmo
[...]”. 187
Atendo-se ao texto:
“Certamente, é preciso saber primeiro rastrear este espírito alemão nos seus
esconderijos, sob as suas máscaras da moda ou sob um monte de escombros,
é preciso amá-lo muito para não ter mesmo vergonha de suas formas
mirradas, é preciso sobretudo abster-se de confundi-lo com o que se intitula
agora, com um gesto de orgulho, „a cultura alemã de hoje‟.” (EE, 2004, p. 82)
Notamos o final da citação: “a cultura alemã de hoje”, ou seja, nessa citação
pode-se afirmar a idéia do autêntico como o caminho para se produzir a cultura. E
vejamos: não se trata de uma mera afirmação cultural, pois a tal cultura alemã é uma,
mas é um tipo de postura que não prima por aquele principio de auto-produção da
cultura, mas o que diz se alemão na verdade é fragmentos de culturas diversas
sobrepostas ao que é feito pelo próprio indivíduo. A citação acima corrobora nossa idéia
de que é o autêntico, o que é produzido artesanalmente, o que tem origem na pulsão da
vida de cada povo a base de sua cultura. As cópias, a relação colonial, diríamos aqui no
Brasil, não dá o mesmo efeito. “Certamente, esta cópia não alcançara em lugar nenhum
aquele efeito tão artisticamente comum encontrado na França [...]”.188
No olhar de Nietzsche era exatamente a originalidade que dava brilho a cultura
francesa e a italiana. “Uma seriedade artística, ou pelo menos à correção da língua,
muitas vezes à beleza, em todo lugar como eco de uma cultura social
correspondente.”189
No texto em questão não podemos deixar de registrar sua insistência no que toca
ao esquema de produção da cultura e, o que podemos deduzir, suas implicações na
formação cultural nos “estabelecimentos de ensino”. É desse contexto que se pode
notar, na Alemanha de Nietzsche, o não aprendizado adequado da língua. “Com esta
187
DIAS, 2003 p. 96.
EE, 2004, p. 82.
189
EE, 2004, p. 83.
188
106
cultura pretensamente alemã, mas no fundo [cosmopolita e] despida de qualquer
originalidade, os Alemães não podem esperar vitórias em nenhum setor [...]”. 190 Essa é
a base, os demais intentos que passam pela necessidade de uma boa cultura ficam logo
comprometidos.
Mas Nietzsche almeja um outro cenário no que toca a cultura:
“[...] devemos nos apegar ao espírito alemão que se revelou na Reforma
alemã e na música alemã [...] na ousadia e no rigor extraordinário da filosofia
alemã e, há pouco, na fidelidade comprovada do soldado alemão, [...].
Arrastar para esta luta uma escola voltada para a verdadeira cultura e
inflamar, particularmente no ginásio, a nova geração para o que é
verdadeiramente alemão”. (EE, 2004, p. 83)
Na citação notamos um Nietzsche que deseja não só fazer análise da cena, mas
que deseja mudança, apesar do mau trato da língua e da conseqüente incompreensão dos
reais propósitos do ginásio ele sonha com algo distinto.
É possível uma reforma:
“[...] Uma renovação e uma purificação verdadeiras do ginásio só virão de
uma renovação e de uma purificação do espírito alemão que sejam profundas
e poderosas. Misterioso e difícil de compreender é o laço que une
verdadeiramente o ser profundo da Alemanha e o gênio grego”. (EE, 2004, p.
84)
Movimento de união entre a cultura de seus dias e a cultura trágica como
tratado pelo autor na sua obra O Nascimento da Tragédia e no qual ele vê ressurgir na
arte de Wagner.
2.5. A FALSA NECESSIDADE DE CULTURA
Cultura clássica: “era agora somente um ideal de cultura que flutuante e
inconsistente que não podia se desenvolver no solo dos nossos meios de educação”.191
“[...] a clara visão do fato de que aquilo que se designava agora pelo
eufemismo corrente e incontestável de „cultura clássica” só tinha o valor de
uma ilusão pretensiosa, cujo efeito mais notável era a circunstância de que a
própria expressão “cultura clássica” ainda continuava subsistindo e não
perdera ainda sua sonoridade patética”. (EE, 2004, p. 85)
190
191
EE, 2004, p. 83.
EE, 2004, p. 85.
107
Para sacramentar o descompasso entre vontade de uma cultura clássica e a
realidade:
“[...] a esclarecer que o ponto de partida justo para uma cultura superior,
apoiado sobre os pilares da Antiguidade, até então não tinha sido encontrado:
o abandono do ensino da língua, a introdução de orientações históricas com
viés científico, em vez de uma construção prática e de um hábito, a ligação de
certos exercícios exigidos nos ginásios com o espírito suspeito do nosso
ambiente jornalístico.” (EE, 2004, p. 85)
Após tratar do desprezo para com o ensino da língua alemã Nietzsche
passa a considerar acerca da necessidade de cultura ou a falsa necessidade. Nessa rota, o
professor é um desses que no fundo não tem necessidade de cultura. Acerca desse
profissional, desse domínio que Nietzsche julga ter verdades escabrosas a dizer, “[...]
pois estamos aí num domínio onde há tantas verdade a dizer, tantas verdade terríveis,
penosas, imperdoáveis, que o ódio mais fraco não nos faltará e somente o furor poderá
motivar aqui e ali um riso embaraçado.”192
Mas esses professores, profissionais da educação, nesse olhar especial sobre a
formação da cultura se descobrirem que não estão aptos para tal profissão: “qual seria,
creia, a reação deles, quando pretenderem falar de planos de que estão excluídos, e de
exigências que ultrapassam grandemente suas capacidades medíocres [...]”. 193
Discutir essa idéia da inaptidão de muitos para lidar com a cultura é algo
pertinente e que nos coloca o seguinte: é uma verdade o fato de que necessariamente
nascemos para lidar com o conhecimento teórico. Tese arrolada por Nietzsche já em O
Nascimento da Tragédia, quando surge a idéia de que é a arte nosso impulso mais
verdadeiro; é a criação;194 e que qualquer outra implicação já caminhava para a idéia do
homem socrático, do homem teórico, e soava como antinatural. Por outro lado, nos dias
192
EE, 2004, p. 87.
EE, 2004, p. 88.
194
Essa idéia de que temos mais pendor para a arte, enquanto criação, do que para a ciência, enquanto
crítica, terá um desenvolvimento mais intencional no escrito de Nietzsche : Verdade e Mentira no Sentido
Extramoral. Cf. NIETZSCHE, F. Verdade e Mentira no Sentido Extramoral. Tradução e prefacio de
Noeli Correia de Melo Sobrinho. Comum - Rio de Janeiro - v.6 - nº 17 - p. 05 a 23 - jul./dez. 2001
193
108
de hoje quando a cultura moderna chega no seu apogeu, com toda uma parafernália
tecnológica, pensar alguém inapto para com as letras, para com a educação é o mesmo
que pensar alguém incapaz de ser gente, de ser cidadão. Observa-se nos governos
modernos, sobretudos dos países ricos, o quanto freqüentar uma escola é necessário para
“exercer a cidadania”.
Para compensar essa necessidade moderna de “exercer a cidadania” vemos então
o proliferar de escolas:
“Ocorre então, nestes estabelecimentos um excesso de pessoas que não têm
vocação, mas que pouco a pouco, por causa do seu número esmagador e com
seu instinto do similis simili gaudet195, determina o espírito destes
estabelecimentos. Estas pessoas estão sem dúvida exageradamente
distanciadas das coisas pedagógicas e acham que a riqueza aparente dos
nossos ginásios e de nossos mestres, que só consiste no número, poderia, não
sei por que leis e regras, ser transformado numa verdadeira riqueza [...]”.
(EE, 2004, p. 88)
Mais uma vez: a moda. Não se procura as letras, o seio da produção da cultura
por se estar imbuído por ela. Mas os propósitos são outros.Quando o fim não é a própria
cultura, iremos observar a proliferação daquilo que Nietzsche já observou como ruim
par ao ginásio que é a cultura jornalística. É o resumo, o falar agradável e estimulante da
platéia; isso se tornou padrão, quem não der uma aula assim não é um bom professor.
Resta saber, também, se os professores medíocres apresentados nos parágrafos
anteriores ao serem “arroxados” revelam que não é bem isso que eles querem. Propalam
a necessidade da cultura, mas de modo superficial, aliás, nem sabem mesmo o que quer
dizer cultura; são movidos mais pela necessidade de ter emprego.
Salvo as exceções, “a imensa maioria dos mestres se encontra, nestes
estabelecimentos, no seu ambiente próprio, porque seus dons se encontram numa certa
relação harmônica com o baixo nível e com a mediocridade dos seus alunos.”196 São
195
Em nota do tradutor, Noeli C. de Melo Sobrinho, o termo significa: “o semelhante se alegra com o
semelhante”.
196
EE, 2004, p. 88.
109
esses que pedem mais cultura, ou seja, pedem mais produtos, e nesse jogo de mercado a
possibilidade de ganhar um pouco mais.
E se espalha a cultura de que é necessário cultura. Fato que mais adiante
Nietzsche vai esboçar o que subjaz a essa falsa necessidade:
“[...] vivemos numa época em que estes gritos [...] dão a impressão de que
uma imensa necessidade de cultura quer ser afanosamente satisfeita. Mas é
aqui justamente que é preciso saber ouvir corretamente, é aqui que é preciso
[...] olhar de frente aqueles que falam tão infatigavelmente da necessidade de
cultura de sua época. Então, experimentar-se-ia um estranha decepção [...]
estes arautos [...] se transformaram de repente, logo que os vemos de perto,
em adversários zelosos, ou seja, fanáticos, da verdadeira cultura, quer dizer,
daquela que defende que seu objetivo é emancipar as massas da soberania
dos grandes indivíduos.” (EE, 2004, p. 89)
Retorna novamente um raciocínio espinhoso. Certamente concebemos a massa
como antro dos mais cabeludos adjetivos, mas a sentença que decreta um certo estágio
fixo dessa massa, sem a possibilidade de escapar dessa sina nos deixa incomodados.
Ademais, reconhecer que ela deve servir ao gênio, parece, também, ser estranho. Essa
lide para com o gênio nesses escritos de Nietzsche, que vão sempre exaltar o gênio, para
nossa dissertação tem seus êxitos e, segundo nosso julgamento, algumas
particularidades que são próprias do autor e não são de nosso interesse.
Poderíamos pensar que ao falar de massa pensarmos como uma instância
cultural, como um conjunto de disposição, um campo determinado, no qual, aí sim,
operasse certas disposições e nesse caso essencialmente podemos notar que a massa é
predadora, esperta, que procura julgar os esforços daqueles que a duras penas galgam os
mais elevados píncaros do conhecimento. Essa massa, por ser massa, não produz. Com
isso não se está pensando em políticas públicas, mas fazendo uma dissecação filosófica
do que subjaz, da estrutura formal da massa.
Essa saída nos alivia, pois ela certamente permite denunciar uma dada estrutura,
mas ela não determina o que é um povo, pois diagnosticar um modus operandi,dizer de
seu cerne, não é também anunciar que os seus atuais „atores‟ assim o são e pronto. A
110
denúncia permite que se viva de outro modo. Claro que os „atores‟
podem
estar
acomodados com os seus papéis e se encontra em um dado círculo vicioso que os
aprisionam como se esse papel fosse o único de sua existência.
“Por um caminho direto, por exemplo, por um ensino elementar obrigatório
para todos, com isso não nos aproximamos do que se chama de formação do
povo, senão de uma maneira superficial e grosseira: as regiões autênticas e
mais profundas, nas quais a grande massa pode ter um contato com a cultura,
quer dizer, aquele lugar onde o povo conserva seus instintos religiosos, onde
continua a operar com o sistema poético das suas imagens míticas, onde
continua fiel aos seus costumes, [...] ao solo de sua pátria, à sua língua, todas
essas regiões dificilmente podem ser atingidas por uma via direta [...]”. (EE,
2004, p. 90)
Nietzsche advoga uma inconsciência ou mesmo uma relação mítica para
consolidar a cultura. Sua crítica se dirige à idéia de que a universalização da educação
escolar por si garanta educação de fato para todos. A massa e a necessidade de levar
cultura para toda ela é um fato, mas é possível conceber outra forma de cultura e ela,
como na citação acima, se dá melhor através dos instintos religiosos ou míticos. Será
desse solo que Nietzsche vislumbra o surgimento daquele indivíduo exponencial,
exemplar, raro, mas que se constitui o marco e referencial para o povo. Trata-se do
gênio, como esse indivíduo que serve de referência par todos os outros. O gênio
nasceria daí. Vamos ao texto de Nietzsche:
“Mas que ele venha a aparecer, que ele surja no meio de um povo, que ele
seja por assim dizer a imagem refletida, o jogo completo das cores de todas
as forças particulares deste povo, que ele faça ver o mais alto destino deste
povo no ser matafórico de um indivíduo e numa obra eterna, religando assim
seu povo à eternidade e o libertando da esfera mutante da instantaneidade –
tudo isso o gênio só pode fazer quando se tornar maduro e alimentado no seio
materno da cultura de um povo [...]”. (EE, 2004, p. 91)
Observamos na citação acima que o gênio cumpre um papel entre os seus
compatriotas. Ele é a fonte da qual o povo se alimenta culturalmente. Porém a incultura
da necessidade faz lidar com a cultura de modo bem distinto e propício. Na lide da
singularidade dos gregos, Nietzsche demarca que o uso corriqueiro depõe contra essa
singularidade. A particularidades dos gregos é para poucos:
111
“[...] e muitos consideram um comportamento absurdo e mesmo indigno o
fato de que alguém se relacione com os Gregos, por assim dizer, por razões
profissionais, com o fito de ganhar seu pão, como se tratasse de uma
ferramenta de uso cotidiano, e manipule estes objetos sagrados com mãos de
artesão, sem o menor respeito”.(EE, 2004, p. 92)
No contexto de um Nietzsche que exalta a cultura, que eleva essa dimensão ao
nível quase do sagrado, sua indignação é pertinente no que toca à vulgarização.
Rompendo com o véu ideológico que apregoa a massificação da cultura como discurso
retórico que não tem como meta a própria cultura, mas o mercado, os produtos, pode-se
notar que essa lide tira a aura sagrada necessária para a produção da cultura. A faz
pagar tributos ao não cultural, ao imediato. Postura contrária à idéia de que a cultura
deve estar a serviço do universal, contrário ao que é corriqueiro.
Estamos acompanhando que a pretensa „pedida‟
por cultura não é propriamente
verdadeira. Soma-se a esse movimento a interferência do Estado. Antes, porém, mais
uma vez Nietzsche denúncia que o trato inadequado dado a cultura no âmbito da
universidade, onde professores não lidam com o devido cuidado com os gregos, é
transportado par ao ginásio:
“Os ginásios são exatamente os viveiros para onde é transplantada esta
obesidade acadêmica, quando não degeneram a ponto de se transformarem
em escolas de gladiadores desta elegante barbárie, que agora se pavoneia com
o nome de “cultura alemã atual.” (EE, 2004, p. 96)
Nota-se a relação existente entre a formação do professores e suas imbricação
como o ginásio. E os argumentos, ou falsos argumentos que pedem mais cultura, mais
escolas, vão revelando seus reais fins:
“[...] a exigência deste excesso [escolas e mestres] vem de uma esfera hostil à
cultura e que as conseqüências deste excesso são vantajosas somente à falta
de cultura? Na verdade, não se pode falar de semelhante necessidade
absoluta, senão na medida em que o Estado moderno se intrometa
habitualmente nas conversas sobre estas questões.” (EE, 2004, p. 97)
Ou seja, revela-se o Estado como quem de fato precisa de cultura. Cultura,
então, é uma artimanha do Estado. Essa substituição impõe ao ginásio um dado status:
“Na Prússia, o ginásio é considerado sobretudo como portador de um certo
grau de honra: e quem quer que se sinta empurrado para a esfera do governo
112
deverá seguir a via do ginásio. [...] O Estado aparece como mistagogo da
cultura e, ao mesmo tempo que persegue seus próprios fins, ele obriga a
todos os seus servidores a só se apresentarem diante dele munidos da luz da
cultura universal do Estado: sob esta luz turva, eles devem reconhecer nele o
objetivo supremo, como aquele que recompensa todos os seus esforços na
direção da cultura” (EE, 2004, p. 98)
Se na época de Nietzsche é o Estado quem dita as regras da cultura, nos nossos
dias é o mercado de trabalho. Hoje o Estado, apesar de atuar na educação básica, passa
meio que desapercebido, pois ele é fiel representante do mercado de trabalho. Ao fazer
essa atualização certamente poderemos notar com mais evidência a questão que
Nietzsche coloca sobre a ingerência do Estado na cultura. Nessa mesma senda podemos
ainda, perceber o Estado moderno querendo ser reconhecido como promotor de cultura,
mas qual é seu passado, ou seja, ele não tem demonstrado com sua história que de fato é
promotor de cultura...
“[...] a de uma filosofia lançada em proveito do Estado e visando aos
objetivos do Estado, a tendência da filosofia hegeliana: mais ainda, talvez
não fosse exagerado afirmar que, submetendo todos os esforços da cultura
aos objetivos do Estado, a Prússia se apropriou com sucesso da parte
praticamente válida da herança da filosofia hegeliana: sua apoteose do Estado
atinge sem dúvida seu ápice nesta submissão” (EE, 2004, p. 98)
Se por um lado Nietzsche observa o Estado em seu tempo com pretensões de
encampar a cultura, fundindo-a com a idéia de Estado, ele não deixa de reconhecer o
papel que o Estado tem. Entre os gregos:
“No mais profundo do seu pensamento, os Gregos, justamente por esta razão,
tinham pelo Estado este sentimento poderoso de admiração e de
reconhecimento, quase escandaloso para o homem moderno, porque eles
reconheciam que, sem esta instituição de assistência e proteção, não se
poderia desenvolver um só germe de cultura e que sua cultura absolutamente
inimitável e para sempre única não teria justamente alcançado esta
exuberância, senão sob a guarda atenta e preventiva de suas instituições
políticas de assistência e proteção”. (EE, 2004, p. 99)
O Estado Grego, então, não era o interventor na cultura, mas o protetor, aquele
que dava as condições materiais e sociais para que a cultura pudesse aflorar. Condições
aqui entendidas não como continuação do Estado na cultura, mas referentes às
disposições sociais e materiais necessárias para que a cultura, esse invento singular,
113
próprio do humano, e que, no caso dos gregos, obediência não ao Estado, mas a sim
mesma, como instância humana soberana.
Nas linhas seguintes da citação acima
Nietzsche continua com esse conceito:
“O Estado não era para aquela cultura um guarda de fronteiras, um regulador,
um superintendente, mas o companheiro de viagem, e o companheiro de
andar vagaroso, forte, disposto ao combate, que escoltava através das rudes
realidades o seu amigo mais nobre e, por assim dizer, quase divino, pelo qual
se tinha admiração e do qual ele recebia em troca o reconhecimento.” (EE,
2004, p. 99)
Se por um lado ele questiona o Estado como guia da cultura, como aquele que
faz da cultura uma das formas de se exercer sobre as massas, ou ainda, criticando Hegel,
como sendo o Estado um estágio da própria cultura, Nietzsche denuncia que esse
movimento empobrece o que é de fato da ordem do humano, do cultural. Vislumbra, por
outro lado, que o Estado deva cumprir certos papéis, que no seu modo de entender são
nobres. No final da terceira conferência ele diz: “é difícil a tarefa de dirigir os homens
[...] proteger sem descanso, contra vizinhos ávidos [...]”. 197
Antes, porém, na seqüência do raciocínio da citação anterior, ele contínua a por
em cheque as pretensões do Estado para com a cultura: “Se agora, ao contrário, o
Estado moderno pretende um reconhecimento exaltado deste tipo, não é certamente
porque ele tenha a consciência de ter ajudado, como cavalheiro, a cultura e a arte
alemães mais elevadas [...]”.198 Ele insiste em demonstra isso através de como se
“celebra nas capitais alemães a memória dos nossos grandes poetas [...] artistas [...]”.199
Ou seja, de modo que não valoriza efetivamente de acordo com as prerrogativas do
gênio. O trato que é dado não revela a grandiosidade dos artistas, mas parece preocuparse mais em mostrar o próprio Estado e não os homens excepcionais da nação.
O autor, portanto, destaca que a cultura produzida pelo Estado, os artistas
sustentados por esse, são duvidosas e não podem ser inscritas na esfera do fazer
197
EE, 2004, p. 99.
EE, 2004, p. 99.
199
EE, 2004, p. 99.
198
114
autêntico. Em contrapartida sua indagação é pelo fato do porque se tem receio da
autêntica cultura, produzida a duras penas:
“Porque se odeia a autêntico espírito alemão, porque se tem a natureza
aristocrática da verdadeira cultura, porque se quer incentivar os grandes
indivíduos a buscar um exílio voluntário, propagando e alimentando no
grande número uma pretensão à cultura, porque se busca escapar da elevação
dura e rigorosa pelos grandes mestres, persuadindo a massa de que ela
própria encontrará o caminho guiado pela estrela do Estado.” (EE, 2004, p.
100)
Vale registrar uma idéia que o autor destaca. A promoção da cultura de Estado,
que hoje poderíamos chamar também de cultura de massas, serve aos interesses a seus
próprios e de quem ele é representante. Esses promotores certamente terão aversão para
com a cultura de base, cultura produzida sem a intervenção de Estado. Nos dias de hoje
podemos assevera que Nietzsche era um defensor da experiência de base, sem as
importações; e é exatamente isso que incomoda as elites que patrocinam a cultura. No
tempo de Nietsche certamente o Estado ainda fazia muitos papéis de interesse da
burguesia. Ainda não se tinha chegado aos nossos estágios de desenvolvimento das
ideologias Liberais em relação ao Estado como temos hoje, então era o próprio Estado o
garoto de recado e assim é o Estado que Nietzsche observa fazendo esse papel de
promotor de cultura segundo esses ditames. Veja só, na citação acima temos duas coisas
bem demarcadas: “Porque se odeia a autêntico espírito alemão, porque se tem a natureza
aristocrática da verdadeira cultura”. Aqui a idéia de aristocracia não é qualquer coisa
ligada da “raça pura”, mas aristocrático é aquele que toma para si o papel de criar a
cultura, sem as relações mesquinhas de exploração de outros, aristocrático é aquele que
cria, tem por tarefa criar a cultura. Criação aqui entendida como aquilo que ficou
delineado no primeiro capítulo de nossa dissertação no trato do conhecimento trágico. E
podemos notar que aristocrático também é ligado à idéia de “autêntico”, ou seja, não é
algo importando, algo contingenciado a outros fins que não os seus próprios.
115
Podemos, então, encerrar esse tópico no qual Nietzsche nos propõe lançar um
olhar audaz sobre a pretensa necessidade de cultura. O que nos revela outros interesses
por detrás e não pessoas realmente movidas pelos altos ideais de cultura. Aí vemos
professores a procura de emprego e não de cultura. Observamos, com a indução do
Estado, jovens procurando um emprego na burocracia estatal. Observa-se, também, um
Estado querendo dóceis cidadãos, servidores.
2.6. A FORMAÇÃO TÉCNICA E FORMAÇÃO DO JOVEM DE CULTURA
Nesta seção observaremos que Nietzsche não descarta propriamente a
necessidade e estabelecimentos de formação técnica. Sua intenção é questionar o que se
praticava no ginásio de seu tempo. Com essa análise ele pretende esclarecer o que ele
entende por ginásio. A sua crítica pretende dirimir a confusão entre seus
contemporâneos sobre o que é o ginásio e o que são as escolas técnicas. Nesse diálogo,
então, ele assevera a sua crítica. Duas são as posturas: uma é o receio do sentimento
radical de cultura outro é a cultura microscópica das ciências que, como já dissemos no
início desse capítulo, acaba por dissociar ciência e vida. Ou que vale notar é a
insistência de Nietzsche para com a necessidade de estabelecimento de cultura. Mais
uma vez ele reafirma isso:
“Pois tu podes alimentar esperança. De fato, fica cada vez mais claro que não
temos absolutamente estabelecimento de ensino, mas que devemos tê-lo.
Nossos ginásios, predestinados por sua natureza a realizar este sublime
desígnio, ou se transformaram em lugares onde se cultiva uma cultura
duvidosa, que rechaça com ódio profundo a verdadeira cultura, ou seja, a
cultura aristocrática, [...] ou cultivam afincadamente um cultura microscópica
e estéril [...]”. (EE, 2004, p. 102)
Após, na citação acima, relembrar o ódio à cultura aristocrata, entendida como
criação, afirmação, gosto por esse criar cultura e, como seu posto, o trato técnicocientífico que divide o saberá a ponto de fazer com ele perca o vínculo com a vida,
Nietzsche nos propõe pensar o dilema do necessário, das condições materiais em que a
116
produção da cultura se faz presente. Em um movimento de valorização da cultura como
sendo algo ligado à natureza, que a cultura “é uma determinação da natureza”, ao todo,
ao dionisíaco, e que, portanto, foge das necessidades particulares, Nietzsche exalta que é
preciso vencer esse apegar ao imediato. A insistência de Nietzsche por ter que abrir mão
do imediato em vistas culturais nos remete à cena de como se deu a formação cultural
entre os Estados Alemães. Jacques Droz, citado por MARTON, nos diz:
“[...] [a intelligentsia alemã] soube criar essa cultura humanista, de que se
orgulhou a Alemanha do século XVIII. Mas essa cultura desenvolveu-se fora
do Estado territorial, onde ela nada tinha a fazer. E é por isso que se perfez a
disjunção entre cultura e política, que é chave de toda história da Alemanha
moderna. Os espíritos superiores mostraram-se indiferentes à política
nacional, abandonando inteiramente sua direção aos organismos competentes
e consagrando-se à reflexão sobre problemas de ordem universal e
cosmopolita”. (DROZ. In: AZEREDO, 2008, p. 26)
E na seqüência, MARTON diz que se em outros países como Inglaterra, França
os intelectuais estavam no embate de questões que eram de ordem econômica ou
social “na Alemanha eles se interessam pelas questões culturais”. Com essas
considerações é que podemos amplificar nossa percepção e compreender porque
Nietzsche faz insistentes ressalvas no que toca ser necessário desvincular a cultura da
necessidade, do utilitário. E assim podemos compreender que a fonte da cultura não é o
urgente, a utilidade mercadológica. Mas “[...] esta [a cultura] só tem início numa
atmosfera que está muito acima deste mundo das necessidades, da luta pela existência,
da miséria”.200 Outro ponto, que deve ser rompido no trato da produção da cultura, é o
individualismo. Não se pode pensar em cultura, como fica expresso no texto sobre o
futuro dos estabelecimentos de ensino, se apegamos na idéia de indivíduo. Tema que
certamente encontra-se no bojo da cultura moderna e alvo das críticas de Nietzsche. Ao
contrário, ainda que um absurdo para um moderno, Nietzsche propõe:
“Alguns, limitando estoicamente suas necessidades, se elevarão rápida e
facilmente até estas esferas onde pode esquecer e, por assim dizer, rejeitar
sua individualidade, para gozar de uma eterna juventude num sistema solar
de fatos estranhos à época e à sua pessoa” (EE, 2004, p. 103)
200
EE, 2004, p. 103.
117
É preciso negar a sua individualidade para que surja efetivamente uma cultura.
As coisas ligadas ao cotidiano ou corriqueiras devem ser suspensas para que se possa
notar que é a natureza ou a Vontade o que fato existe.
O projeto ou a perspectiva de análise que Nietzsche adota é a da cultura. Seu
comprometimento com esse projeto, esquadrinhado em O Nascimento da Tragédia, é
que o faz indagar e formular problemas ligados à educação de sua época. Sem essa
consciência, e ao entrar nos meandros de suas conferências de Sobre o Futuro de
Nossos Estabelecimentos de Ensino, podemos nos perder e se defrontar com um texto
estranho ou radical no trato da educação. Mas considerando a cultura como engenho do
espírito humano, especialmente o fenômeno da Grécia Antiga e da veneração
dispensada a ela pelo autor, e, depois, retirando de nossos horizontes todas as
proposições modernas e religiosas que se põe como cultura, aí sim iremos notar o
projeto nietzschiano para com a cultura. Ele não desdenha a formação prática, ele não é
um pensador que ignora a cotidiano da vida, propondo um emaranhado lógico que só
seria possível a uma mente débil. Para DIAS, Nietzsche não vê com hostilidade a
implantação e proliferação na Alemanha das escolas técnicas. Pelo contrário: “ali, os
indivíduos aprendem a calcular convenientemente, a dominar a linguagem [...]”.201 Não
é isso, o pensador está a falar é de cultura radicalmente desatrelada das proposições
modernas de utilidade. E ao fazermos esse movimento junto com ele notamos o quanto
é forte esse véu moderno do útil, do empregável no próximo emprego. Os
estabelecimentos de ensino vigentes, que se diziam de finalidade cultural, cumpriam
outro papel. “Trata-se aqui de instituições que se propõem a superar as necessidades da
vida; assim, portanto, podem prometer formar funcionários, comerciantes, oficiais,
201
DIAS, 2003, p. 99.
118
atacadistas, agrônomos, médicos ou técnicos”.202 Nos remetendo ao que DIAS nos
confirma.
O problema vale insistir, não é contra o ensino técnico, mas com a formação do
jovem para a cultura que em sua análise não se efetiva. Aquele que vai
criar
o
próprio espírito de uma época, como Goethe, Schiller, entre oturos “heróis da cultura”.
Pensando nisso e, após ter denotado que é preciso desvenciliar-se da cadeia das
necessidades, Nietzsche sugere o seguinte caminho para formar o jovem:
“[...] abstenham-se de romper a relação ingênua, confiante e, por
assim dizer, a relação pessoal e imediata que ele tem com a natureza:
[...] então, experimentará inconscientemente a unidade metafísica de
todas as coisas na grande metáfora da natureza, e assim se acalmará
com o espetáculo de sua eterna permanência e de sua necessidade.”
(EE, 2004, p. 105)
Postura que é exatamente contrária do homem moderno de subjugar a natureza.
O jovem inteirado com a formação técnica logo se propõe em como dominar a natureza.
Ao contrário dessa, “os outros devem logo aprender uma outra verdade: como se pode
subjugar a natureza”. Uma educação, portanto, que faça aliança com da relação ingênua
com a natureza. Mas nessa rota de dizer como educar o jovem para cultura, aquele que
seria o gênio, Nietzsche faz uma ressalva sobre o ensino técnico:
“[...] eu honro os lugares onde se aprende a calcular adequadamente [...]
Estou também inclinado a concordar de bom grado com o fato de que os
estudantes que se instruem nas melhores escolas técnicas da nossa época
estão perfeitamente autorizados a ter os mesmos direitos que se tem o
costume de atribuir aos alunos do ginásio [...]” (EE, 2004, p. 106)
É nesse aspecto que o ensino técnico, que não visava o acesso ao ensino
universitário, poderia cumprir, também, o papel que era exclusivo do ginásio, ou seja, o
ginásio ia tão mal que o ensino técnico poderia cumprir seu papel. Mas não parece que é
esse é o raciocínio, um pouco antes da citação acima ele diz: “não vão com isso crer,
meus amigos, que eu quero mitigar os elogios às nossas escolas técnicas”.203
202
203
EE, 2004, p. 105.
EE, 2004, p. 106.
119
O problema não é da escola técnica, mas do ginásio que não cumpre seu papel
de formador do gênio da cultura. Aqui precisamos fazer um alinhavamento de idéias.
Para dizer o quanto é preciso ter cuidado nas instituições de formação de cultura
Nietzsche considera que não é preciso por fim à formação técnica. Mas a formação do
gênio, daquele indivíduo de cultura, requer outros princípios e ele não aceita que os
objetivos das escolas técnicas se imponham cá, na do gênio. Sempre recoloca ao longo
do texto que o ginásio não vai bem.
Essa imposição da necessidade de formação técnica ou de utilidade para o
Estado acaba por suspender a necessidade de instituição de formação do gênio. Nesse
contexto de excesso de estabelecimentos chega-se até mesmo a dizer que o gênio
caminha com suas próprias pernas e não precisa de escola. Nesse embate de qual escola
se deve construir na Alemanha o que está em jogo são dois tipos de público. Para
Nietzsche as massas é que precisam das escolas em grande número, mas para os gênios
deve-se pensar nas poucas e excepcionais escolas. “[...] de um lado, a massa no seu sono
estúpido e torpe, que se reproduz por instinto, e de outro, muito distante dela, os grandes
indivíduos contemplativos, capazes de criação eternas.”204
O gênio não precisa de escola, esse pode ser uma conclusão cômoda e na qual
não se põe o difícil trabalho de criar estabelecimentos para tal. Esse orgulho pode se
notar também em nosso meio; tem-se orgulho de escritores e cientistas nacionais, mas
não se pergunta pelas condições com as quais esses mesmos tiveram que lutar para
chegar onde estão. Condições hostis à cultura e que na ora da glorificação do gênio,
quando ele produz algo de esplendido, não se pretende questionar. As dificéis
condições, os péssimos sistemas de educação, são como deixado de lado, como se fosse
assim mesmo. “E porque não lhes custou nada tê-los entre si, vocês deduzem disso a
204
EE, 2004, p. 111.
120
sedutora teoria de que daqui por diante não terão mais de fazer esforços por eles?”205 E
o autor contínua sua crítica a essa idéia de que o gênio consegue, independente dos
esforços do seu povo para que ele brote e cresça, por si, independentemente das
condições, brilhar, ser o que é, ignorando as condições sociais na qual vive, da cultura
de massa.
Para Nietzsche, não se de pode pensar que o gênio consegue propiciar os meus
necessários para a sua formação como correto. Faz-se necessário, mesmo com os mais
tenebrosos desafios, erigir estabelecimentos de cultura, para proteger os gênios da
nação. Para fornecer a eles as condições materiais necessárias para o seu pleno
desenvolvimento e produção cultural. “É a isto que me refiro, quando reivindico
estabelecimentos para a cultura e quando acho lamentável o estado daqueles aos quais
se dá agora este nome.”206 Na seqüência do texto, Nietzsche não admite que se refugia
na lide de fazer acontecer os estabelecimentos de ensino com o conceito “ideal”, por
assim dizer: essas suas exigências são ideais, para serem miradas e pronto. Não devem
ser postas em ação, o que ele retruca com veemência e diz: “Trata-se aqui de realidades
urgentes, presentes, que se impõem e saltam aos olhos [...]”.207
No trato dessa formação dos estabelecimentos há dois caminhos. Um certamente
corriqueiro e no qual o grande público se acotovela, pois é aí que ele acredita se formar;
é aí que se encontra o grande público de professores e pedagogos, diríamos hoje, a dizer
que isso é que é cultura. E para dizer dessa via Nietzsche é até irônico. O chavão que ele
destaca chega a ser hilário: “falam, por exemplo, de desenvolvimento completo da livre
personalidade no marco de sólidas convicções comuns, nacionais e humanamente
morais.”208 Na seqüência desse raciocínio, um pouco menos abstrato e mais
205
EE, 2004, p. 113.
EE, 2004, p. 114.
207
EE, 2004, p. 114.
208
EE, 2004, p. 117.
206
121
representante do ideal de Estado como promotor da cultura, os objetivos dos
estabelecimentos de cultura continuam a fazer eco à primeira leva do que se entende por
estabelecimento de cultura: “ou antes designam como sendo seu objetivo „a fundação de
um Estado popular baseado na razão, na cultura e na justiça.” 209 Mas a esse modelo
Nietzsche põe um outro, mais difícil. “Para o outro grupo, menos numeroso, um
estabelecimento de ensino é uma coisa completamente diferente.” 210
Naquilo que ele acredita uma das características é a negação da vontade pessoal
e a percepção de que há algo ao qual a individualidade deve se render, pois esse é o
movimento mais nobre. “Uma obra que deve ser, por assim dizer, depurada dos traços
da subjetividade e elevada acima do jogo cambiante do tempo, como puro reflexo do ser
eterno e imutável das coisas.”211 Só movido por esse espírito é que se poderá trabalhar
na instituição apropriada para o nascimento do gênio. Essa idéia de que há uma vontade
que se põe no jogo incessante do real, argumento peculiar de O Nascimento da
Tragédia, se repete aqui no que toca aos objetivos e os propósitos pessoais do
estabelecimento de ensino e do indivíduo que aí irá trabalhar para fazer nascer o gênio.
Como MELO SOBRINHO destaca,212 para Nietzsche a natureza é a referência e cabe a
nós indivíduo nos entregarmos nos seus braços. Tese que certamente é estranha em uma
modernidade do primado do indivíduo.
Ainda nesse esteira de um pensamento no qual se serve humildemente a
propósitos elevados, temos um grupo de pessoas que tem por papel trabalhar na
produção do gênio, “[...] seus dons sejam de segunda ou terceira ordem, estão
destinados à semelhante colaboração, e só chegam ao sentimento de viver para seu
209
EE, 2004, p. 117.
EE, 2004, p. 117.
211
EE, 2004, p. 117.
212
Cf. MELO SOBRINHO, Noéli Correia de. A Pedagogia de Nietzsche. In: Noéli Correia de Melo
Sobrinho. (Org.). Friedrich Nietzsche: Escritos sobre Educação. 2ª ed. Rio de Janeiro: Loyola - PUC-RJ,
2004, p. 7-39.
210
122
dever servindo a estas autênticas instituições de cultura”.213 Porém, com as promessas
da modernidade, todos se sentem os próprios gênios e não se propõe tal atituide de
altruísmo. Aliás, esses papéis que Nietzsche irá exaltar são tidos como menospresados
pela cultura moderna. “[...] agora são justamente estes dons quese desviaram do seu
caminho por obra das artes de sedução incontestes desta „cultura‟ da moda” e assim
tornados estranhos a seus instintos.”214
Esses indivíduos de dons secundários são
acossados pela moda a ver com não nobre seu serviço de auxílio e diz “[...] vocês serão
somente os servidores, os auxiliares, os instrumentos, eclipsados pelas naturezas
superiores, jamais felizes com sua singularidade [...]”.215 Certamente essas máximas
seduzem e constituem o cerne do que é ser moderno, objeto sempre de crítica de
Nietzsche. Mas o quadro que Nietzsche constata é de que esse modelo vence:
“Agora, os melhores sucumbem vítimas destas seduções: e, no fundo, não é a
qualidade dos dons que decide aqui se alguém é receptivo ou não a estas
vozes, mas sobretudo o grau e o nível de uma certa elevação moral, o instinto
do heroísmo, do sacrifício – enfim, uma necessidade autêntica de cultura,
conduzida por uma educação adequada e tornada um hábito: cultura que é,
antes de mais nada, com já disse, uma obediência e um habituação à
disciplina que caracteriza o gênio.” (EE, 2004, p.118)
Nessa citação podemos ter a idéia de que é preciso de hábito, de altruísmo para
se formar culturalmente. E que „as instituições agora chamada de „estabelecimentos de
ensino‟ não sabem, por assim dizer, absolutamente nada”216 pois, certamente, se
acompanhamos o raciocínio do texto, elas estão preocupadas em fazer aquilo que
Nietzsche denúncia em O Nascimento da Tragédia: levar para o palco os desejos do
espectador, ou seja, não se intenta o árduo caminho da educação, do hábito, mas procura
pôr como prática educacional os clichês da moda, os interesses do Estado.
Acerca da necessidade de estabelecimentos de promoção da cultura, daquilo eu
Nietzsche entende por cultura, conseguimos notar que eles se fazem necessário, pois
213
EE, 2004, p. 117.
EE, 2004, p. 117.
215
EE, 2004, p. 117.
216
EE, 2004, p. 118.
214
123
cumprem o elevado papel de auxiliar aqueles indivíduos de espírito elevado a produzir
cultura. Essa produção vale precisar, não é à revelia, mas sempre em relação íntima,
ingênua com a natureza, donde brota um sentimento metafísico de unidade com essa.
2.7. O PROBLEMA DA LIBERDADE NA UNIVERSIDADE
Notamos que Nietzsche já questionou a liberdade ou pretensa liberdade no que
toca o exercício de composição de texto lá no ginásio. No seu balanço aquela prática
acaba por produzir um aluno que mais está preocupado em agradar seu professor do que
com a própria produção. Antes de falar da liberdade como um problema na formação do
jovem, prática adotada pela Universidade de então, Nietzsche nos aponta para uma
percepção do cotidiano, ou das questões que brotam do simples e que a educação por
mais que seus objetivos sejam desanimadores deve-se buscar nessa experiência
cotidiana as questões filosóficas:
“[...] que as experiências mais admiráveis, mais instrutivas, as experiências
decisivas, são exatamente as experiências cotidianas, que estas constituem
exatamente as experiências decisivas, são exatamente as experiências
cotidianas, [...] grande enigma que cada um tem sob os olhos, mas que
poucos compreendem como sendo um enigma, e que, para o pequeno número
de verdadeiros filósofos, são justamente estes os problemas que permanecem
ignorados, abandonados no meio do caminho e, [...] pisoteados pela multidão,
antes que eles os recolham cuidadosamente e a partir desse momento
resplandeçam com pedras preciosas do conhecimento”. (EE, 2004, p. 123)
Sempre, apesar das críticas, Nietzsche recoloca a importância do ginásio, no seu
entendimento “os objetivos de cultura a que ele visa deviam dar a medida para todas as
outras instituições, os desvios de sua tendência deviam afetá-las de alguma maneira.”217
Até mesmo a Universidade é vista em perspectiva do ginásio e não “[...] podia aspirar
agora este papel importante de centro motor [...]”,218 mas como seqüência do ginásio.
Mas na Universidade de então, contrário dos rígidos regulamentos do ginásio, apregoa-
217
218
EE, 2004, p. 123.
EE, 2004, p. 123.
124
se uma cultura da liberdade que Nietzsche irá, também, tecer suas considerações acerca
dessa prática. Assim está em seu texto:
“No entanto, esta preparação deseja nos tornar autônomos o suficiente, em
harmonia com a condição extraordinariamente livre que é aquela de um
estudante universitário. Portanto, me parece que, em nenhuma outra esfera da
vida atual, é permitido ao indivíduo tomar decisões e dispor sobre tantas
coisas como na esfera da vida estudantil. Ele deve poder se guiar por si
mesmo durante um bom punhado de anos, num terreno vasto, no qual se
permite a ele uma liberdade completa: por isso o ginásio deverá tentar tornálo autônomo.” (EE, 2004, p. 124)
Não se pode concluir que a crítica de Nietzsche no que toca a liberdade uma
conseqüente defesa de uma educação baseada na tirania do mestre. Nietzsche irá pôr
que se trata de uma falsa liberdade, em um primeiro momento, e depois que a liberdade
em hora errada não educa para a própria liberdade. Em parte ele já parece adiantar uma
temática que irá salientar lá no início da III Consideração Intempestiva: Schopenhauer
Educador, quando diz que procurava um mestre a quem se entregar no percurso de sua
formação. Ou seja, a liberdade forçada pode traumatizar, ademais é uma falsa educação,
pois na vida real não se encontra tanta liberdade assim, como a propalada na educação.
Antes, acreditava-se que na prática dessa autonomia formava-se o aluno capaz
de ser aquele pesquisador autônomo. Que “ele pudesse continuar a viver e a aprender
autonomamente, tal como teve de viver e aprender sob o constrangimento do
regulamento do ginásio.”219 Na voz do velho, Nietzsche diz: “[...] é justamente esta
autonomia que me aterroriza tanto [...]”,220 pois, no seu entendimento isso não
acontecia.
Nietzsche irá utilizar-se de uma metáfora ou de uma situação imaginária para
demonstrar o quanto, no seu entendimento era hilário a liberdade cultivada na
Universidade. Segundo ele: “Quando um estrangeiro vem conhecer o sistema das nossas
219
220
EE, 2004, p. 125.
EE, 2004, p. 125.
125
Universidades, ele pergunta primeiro com insistência: „De que modo o estudante está
ligado à Universidade?‟ Nós respondemos: „Pelo ouvido, como ouvinte‟ [...]”. 221
A autonomia não é algo inato. Deve-se construí-la na formação do jovem. Numa
aparente contrariedade, deve-se aí estabelecer duras regras, o mestre deve ser a
referência e por aí vai. A ilusão de uma autonomia ainda em idade muito tenra pode
jogar o jovem que ainda não tem forma, não se formou, em uma situação maléfica para
o resto de sua vida. Aí se cria a pseudoliberdade na qual, nos termos de hoje, o aluno
acaba por atirar no próprio pé, ou seja, de tanta liberdade o educando acaba por
prejudicar a sua própria formação.
No âmbito da Universidade essa liberdade contínua a ser questionado por
Nietzsche, ele acha estranho que o aluno apenas esteja ligado a ela pelo ouvido. Mas
não fica para traz o professor:
“O que ele pensa ou faz está, aliás, separado por um imenso abismo da
percepção dos estudantes. [...] o professor pode dizer praticamente o que quer
e o aluno pode ouvir praticamente o que quer: só que, bem perto e atrás dos
dois grupos, a uma distância conveniente, se põe o Estado, com semblante
atento do vigia, para lembrar de vez em quando que ele é o objetivo, o fim e a
quintessência destes estranhos procedimentos que são o falar e o ouvir”. (EE,
2004, p. 126)
Em tom de ironia e na boca do velho filosofo Nietzsche diz: “Tempos felizes
estes, em que os jovens são sábios e cultos o bastante para se guiarem a si mesmos!” O
que Nietzsche está a dizer com a ironia, que tal proposta não é possível de ser. Será um
fracasso, pois como o educando ainda muito jovem poderá ser guia de si, sem um
mestre. E continua ele registrando que até mesmo no ginásio de então a liberdade já era
uma concessão perniciosa: “Insuperáveis ginásios, que chegam a implantar a autonomia
lá onde, noutras épocas, se acreditava dever implantar a dependência, a disciplina, a
submissão, a obediência, e afastar qualquer presunção de autonomia!” 222 Ou seja, até
mesmo o ginásio que se caracterizava por rígida disciplina não é mais tão assim. Claro,
221
222
EE, 2004, p. 125.
EE, 2004, p. 127.
126
vale registrar, que essa entrega do discípulo ao mestre não quer dizer umas relações
doentias, sádicas. O mestre, como vamos ver na III Consideração Intempestiva:
Schopenhauer Educador, não é um professor moderno, caracterizado por Nietzsche
como um egoísta, que irá impor tarefas ao discípulo fazendo dele um serviçal. Mestre e
discípulo aqui estão imbuídos de elevados princípios culturais e sabem que seu trabalho
para com a cultura de seu país deve servir não a questões individuais, mas a questões
universais.
Em que, então consiste o estudante e porque a liberdade pode lhe ser maléfica:
“pois ele é apenas [...] um aluno do ginásio formado pelas mãos dos seus mestres; e com
tal [...] ele fica privado de toda formação ou de toda direção ulterior que o levaria á
cultura [...]”.223 O que ele quer dizer é que o aluno que procura gozar de liberdade na
Universidade saiu de um dado ginásio, já criticado por ter objetivos confusos e não
cumprir papel de promotor da cultura.
Nossa idéia de que Nietzsche vê com olhos suspeitos a proposta de liberdade do
Ginásio e da Universidade encontra alento, através do velho filósofo, quando diz:
“Livre! Meçam esta liberdade [...] Construída sobre os pés de barro da atual cultura dos
ginásios, que dizer, sobre um fundamento que se esfarela, sua fundação fica torta e
insegura [...]”.224 Dar liberdade ao jovem universitário se ele não teve uma base, se sua
base “assenta-se sobre pés de barro”, só poderá dar frutos contrários à boa cultura.
Essa formação é pouco consistente, mais adiante, ele vai dizer e pontuar que se
essa cultura do jovem livre for posta na balança da filosofia, da arte e de sua relação
com a antiguidade grega e romana os resultados não serão aprazíveis. O que comprova
que falar em liberdade como orgulho é algo contraditório, no qual se é livre para não
saber. Mais adiante no texto Nietzsche sustenta que é necessária a presença do mestre,
nessa fase da juventude. Será pela mão do mestre se pode chegar nos lugares fecundos
223
224
EE, 2004, p. 127.
EE, 2004, p. 127.
127
da produção da cultura, “se é levado a estes corretamente, cairá imediatamente neste
espanto filosófico duradouro, sobre o qual unicamente, como sobre um solo fecundo,
pode crescer uma cultura profunda e nobre.”225
A própria vida do jovem é o canteiro para a senda do conhecimento. Contudo,
como andam as condições para o conhecimento? Para aproveitar a pulsão da juventude
na dieração de uma formação artística, filosófica é preciso da intervenção do mestre:
“Nesta idade, em que vê suas experiências, por assim dizer, envolvidas por
um arco-íris metafísico, o homem tem a necessidade suprema de uma mão
que o guie, porque, de repente e quase instintivamente, ele é persuadido da
ambigüidade da existência e porque perdeu já o solo firme das opiniões
tradicionais às quais estava até então ligado” (EE, 2004, p. 128)
O fundamento da crítica de Nietzsche à autonomia é, portanto, pertinente e não
se trata de um autoritarismo. Essa necessidade de tutelar o aprendiz se faz necessário
para não deixá-lo abandonado à sua própria sorte. Nietzsche valoriza o “estado natural
de extrema indigência” do educando, pois com isso ele faz em si a experiência da
natureza. Sua ingenuidade também se faz necessária nessa relação sem pretensões. Mas
essa postura não combinava com a autonomia propalada, sua postura era o “inimigo
mais encarniçado desta autonomia tão querida, para a qual o jovem culto da nossa
época, me parece, devia ser guiado”. Ou seja, a idéia da cultura como retrato da
natureza, como já advertido por MELO SOBRINHO, 226 se reafirma no próprio texto de
Nietzsche. A relação feita pelo autor entre natureza e educação faz com surja de suas
análises uma proposta de educação singular, causando até mesmo um certo
estranhamento com os demais projetos educacionais vigentes em seu tempo.
O problema da liberdade ou autonomia do jovem acaba por suplantar esse olhar
para si. “Todos os jovens de „hoje‟ que se refugiaram na „evidência‟ se esforçaram
zelosamente para reprimir e paralisar este estado natural, e o meio favorável [...] é a
225
226
EE, 2004, p. 127.
Cf. MELO SOBRINHO, 2004, p. 7-39
128
cultura histórica.”227 Substituindo o conhecer-se por uma erudição que se compraz em
acumular artefatos, achados.
Essa cultura histórica, que oferta ao jovem uma miríade de possibilidades
investigativas e até paralisante. Uma senda que só irá produzir comentários, “agora se
trata de estabelecer o que pensou ou não pensou este ou aquele filósofo, se é possível
com razão atribuir a ele este ou aquele escrito [...]”.228A cultura histórica ataca
fulminante a pulsão do filosofar transformando-o em filosofia, ou uma comentologia.
Mas essa falta de arte, leva o jovem „livre‟ a dilemas. Por um lado esse aluno se
vê fora da realidade, pois gozou de uma tal liberdade que no mundo do trabalho não é
permitida, depois, “ele percebe que não pode dar para si mesmo uma direção, nem
prestar socorro a si mesmo: então [...] ele mergulha no mundo do dia-a-dia e do trabalho
cotidiano [...]”.229 O fato de ter furtado de si, e se imbuído da tal liberdade fez com esse
jovem não se encontrasse consigo mesmo, não educou sem si sua vontade, sua relação
consigo e com a natureza. Tais negligências, no entendimento de Nietzsche, o leva para
uma situação impar o jovem estudante:
“Num estado de vazio inconsolável, dele vê seus planos desaparecerem na
fumaça: sua situação é insuportável e indigna; oscila entre uma atividade
frenética e uma lassidão melancólica. Então, fica cansado, preguiçoso,
assustado com o trabalho, aterrorizado com tudo o que é grande e está cheio
de ódio contra si mesmo. Ele disseca suas faculdade e acredita ver aí abismos
fantásticos e cheios de caos. Em seguida, do alto deste conhecimento de si,
que seu sonho inventou, se precipita novamente num ceticismo irônico. [...]
dúvida, ímpetos, carências da vida, esperanças, desesperos, tudo isso o leva
de um lado para outro, o que significa dizer que acima dele todas as estrelas
estão apagadas, estrelas com as quais ele poderia, no entanto, regular o curso
do seu navio”. (EE, 2004, p. 131)
A liberdade propalada na Universidade, como nos foi possível acompanhar no
texto de Nietzsche, pode até ser um bem almejado pelos torpes da cultura, mas para o
jovem de cultura pode ser uma punição desnecessária, pois poder-se-ia tomar as devidas
227
EE, 2004, p. 128.
EE, 2004, p. 128.
229
EE, 2004, p. 130.
228
129
precauções. O resultado, como expresso na citação acima, é que esses jovens entram no
desespero, ficam sem norte. A falsa liberdade o coloca em uma situação de desespero,
um correr para lá e para cá. Tudo isso por culpa de um modelo de educação que propõe
um ser autônomo, o que para Nietzsche não é possível. “Quem o impeliu à autonomia
numa idade em que, habitualmente, as necessidades principais, que dizer, naturais, são
as de buscar grandes guias e seguir entusiasticamente a via que traça o mestre?” 230
Esse jovem educado na “incultura” produz um produto desprezível, como
conseqüência da sua má formação, é os excessos de livros, comentários. “Tu és um
homem de cultura degenerada! Nasceste para a cultura, mas foste educado pela
incultura!”231 Essa tese é perseguida no texto de Nietzsche de várias formas e matizes,
ele não cansa de bater nela, de dizer de vários modos que se trata de um problema. E já
no final de suas conferências, ele volta a falar desse jovem que inicialmente até levava
jeito para a produção de cultura, mas que sofre devido à falsa educação. “Oh!
Miseráveis inocentes que viraram culpados! De fato, lhes faltava algo que devia vir de
fora, uma verdadeira Instituição de cultura que pudesse lhes fornecer os objetivos, os
mestres, os métodos, os modelos, os companheiros [...]”.232
E seu pensamento acerca da liberdade ou a autonomia na Universidade e sua
relação com a formação cultural encerra por denunciar que a moda acossa as idéias da
verdadeira cultura. Propor submeter-se a um mestre ou à própria natureza é uma
aberração para o indivíduo moderno. Existe nesse indivíduo, assim fica nos evidente nas
demonstrações de Nietzsche, uma total ojeriza por tudo o que não lhe incute a idéia de
que é livre na sua formação. Tese que Nietzsche demonstra ser falsa, pois o Estado está
sempre por perto para assistir tal liberdade e que na vida prática, no mundo do trabalho,
230
EE, 2004, p. 131.
EE, 2004, p. 132.
232
EE, 2004, p. 132.
231
130
não se tem tanta liberdade assim, deve-se, ao contrário, cumprir os propósitos do
Estado, do patrão.
Nietzsche denúncia que esse padrão de vida procura acossar os verdadeiros
arautos da cultura. Falar de submissão é ultrajado, ridicularizado, por essa moda. Essa
idéia de autonomia é na verdade um engodo que seduz as massas e também aqueles
jovens propensos para a cultura com falsas promessas. A cultura, no seu entendimento,
não se faz desse modo, mas “toda cultura começa, ao contrário de tudo o que se elogia
hoje com o nome de liberdade acadêmica, com a obediência, com a disciplina, com a
instrução.”233
O balanço que se pode fazer, no que toca o tema da liberdade tratado na quinta
conferência, é que a liberdade constitui um problema. Ser livre no trato da formação
cultural é uma postura moderna e que causa e provoca a produção de um tipo
desesperado, que oscila entre muitas coisas e ao mesmo tempo coisa alguma. O
caminho da cultura, ao contrário, requer disciplina, abnegação das vontades pessoais.
Postura, aliás, que nos faz lembrar aquele conceito de O Nascimento da Tragédia no
qual o verdadeiro artista é aquele que se despe das necessidades egoístas, e se deixa
participar, envolver, pela Vontade.
Mas essa postura, como denúncia o texto da conferência, está em confronto
aberto com aquilo que ele chamou de „cultura da moda‟ e que vê com escárnio tais
pensamentos no que toca à cultura. E pensa, como é próprio do pensamento moderno,
que é ultrajante negar-se, alienar-se em prol de propósitos outros ao próprio interesse
individual. E Nietzsche insiste em vários momentos que é preciso se submeter a um
mestre; guia, a objetivos pré-estabelecidos.
233
EE 135
131
2.8. III CONSIDERAÇÃO INTEMPESTIVA : SCHOPENHAUER EDUCADOR234
Na apresentação da edicação em portugues das Conferências e da III
Consideração Intempestiva MELO SOBRINHO faz a seguinte obevação do porquê ele
aglutinou esses dois escritos de Nietzsche em uma mesma edição: “O critério que
utilizamos para juntá-las é que ambas abordam, cada uma à sua maneira, o problema da
educação e da cultura”.235 Um outro testemunho também nos parece ser relevante, antes
de adentrarmos ao conteúdo propriamente dito da III Consideração Intempestiva:
Schopenhauer Educador. Para DIAS Nietzsche recorre, para elaborar a III
Consideração Intempestiva, “as anotações que fizera para a sexta e a sétima
conferência, não proferidas, Sobre o Futuro de Nossos Estabelecimentos de Ensino.”236
Constatado essa imbricação, passemos ao texto e já vamos encontrar um
Nietzsche crítico, mas ao mesmo tempo apontando o quão maravilhoso é ser gente. Não
se pode nessa fase de sue escritos duvidar da aposta pela vida autêntica que faz
Nietzsche. Já na abertura ele comenta que o resultado de um viajante, que conheceu
muitas culturas, é a seguinte: “Eles [os seres humanos] se escondem atrás de costumes e
opiniões.” 237 Mas sua aposta não se reduz a essa constatação, pois ele crê que o homem
é de outra natureza e propósito:
“[...] que ele [o homem] é belo e digno de consideração segundo a estrita
coerência da sua unicidade, que ele é novo e incrível como todos as obras da
natureza e de maneira nenhuma tediosa. Quando o grande pensador despreza
os homens, é a preguiça destes que ele despreza [...]”. (III Co. Int., 2004, p.
139)
234
Para as citações da III Consideração Intempestiva: Schopenhauer Educador vamos aqui adotar
abreviatura: III Co. Int. seguida do ano da tradução da edição em português e da página da obra. A obra
que vamos consultar é a traduzida e comentada por MELO SOBRINHO. Optamos por não seguir a
indicação dos Cadernos Nietzsche por uma questão de tradução do título da obra em questão. Naquele
Caderno faz-se a tradução de Unzeitgemässe Betrachutugen. Drittes Stück: Schopenhauer als Erzieher
por Considerações Extemporâneas III: Schopenhauer como Educador. Contudo, na tradução que fizemos
uso, da lavra de MELO SOBRINHO, a tradução teve uma outra conformação: III Consideração
Intempestiva: Schopenhauer Educador.
235
MELO SOBRINHO, 2004. p.7.
236
DIAS, 2006, p. 43.
237
III Co. Int., 2004, p. 138.
132
Na abertura da III Consideração Intempestiva: Schopenhauer Educador
Nietzsche já põe de volta sua questão com a cultura do momento, diríamos hoje, a
cultura de massa. Sua crítica sempre é nessa direção, que o movimento cultural que ele
observa em seu redor é de certo modo inautêntico, mas isso não quer dizer que o
filósofo reduza a humanidade a apenas esse aspecto. Sua denúncia, que muita das vezes
chega até a assustar, logo é recolocada na perspectiva de que o homem é um ser
esplêndido, como fica patente nessa citação acima. Também aposta em pessoas que não
se reduz, se curva à cultura de massa: “O homem que não quer pertencer à massa só
precisa deixar de ser indulgente para consigo mesmo; que ele siga a sua consciência que
lhe grita: “Sê tu mesmo! Tu não és isto que agora fazes, pensas e desejas.” 238 Essa
missiva indica que o homem precisa romper com o comodismo e encarar o papel de se
formar. É uma atividade a alcança de todos, basta sair de trás do hábito, do comodismo.
Na trajetória de pensamento arrolado por Nietzsche nas Conferências Sobre o
futuro de nossos estabelecimentos de ensino, podemos notar aqui seu compromisso com
a elevada nobreza da cultura. Aliás, nas linhas aqui demarcadas para nosso estudo
dissertativo, temos notado que para Nietzsche a cultura é algo nobre, elevado, e que a
modernidade contingenciou a cultura em prol de vários objetivos que não ela própria.
Para esse homem que se imbui da cultura moderna os adjetivos de Nietzsche são vários.
“Não existe na natureza criatura mais sinistra e mais repugnante do que o homem que
foi despojado do seu próprio gênio e que se extravia agora a torto e a direito, em todas
as direções.”239
Esse descaso para com a cultura é sinistro quando passado às épocas. A pergunta
é: o que tal geração legou para o futuro? Como resultado nefasto pode-se ter como
resposta: nada, não legou nada, foi apenas um período sombrio. Seria o fenômeno da
238
239
III Co. Int., 2004, p. 139.
III Co. Int., 2004, p. 139.
133
geração perdida, que não lega nada de positivo. Ao contrário, seu legado deve sempre
ser tratado como estorvo para a humanidade. É esse o fruto do preguiçoso com que
Nietzsche abre a III Consideração Intempestiva: Schopenhauer Educador. Acerca
desses “é preciso apagar este tempo da história da autêntica emancipação da vida”. 240
Retomando o caminho para a produção da cultura, mesmo que não se possa
contar com o legado de gerações perdidas, temos a experiência de nós mesmos como
indicação para tal: “a singularidade da nossa existência neste momento preciso é o que
nos encorajaria mais fortemente a viver segunda a nossa própria lei e conforme a nossa
própria medida”. Essa indicação, sem dúvidas, refere-se à idéia que é presente em
Schopenhauer de que é possível fazer em nós a experiência da coisa-em-si kantiana. O
tema dessa individualidade, como caminho do „conhecer a si mesmo, pode ser
observado sob dois aspectos segundo DIAS. Por um lado esse „eu‟ não é aquele
moderno, egoísta. “O „eu‟ a que Nietzsche se refere é algo que se almeja e se supera, e
não uma substância fixa. Assim, não existe para Nietzsche um “verdadeiro eu”, pois
ninguém pode estar certo de ter-se depojado de todas as suas máscaras.”241
Falando quase que de um mistério que marca a nossa singularidade ele
continua: “quer falar sobre este fato inexplicável de vivermos justamente hoje, quando
dispomos da extensão infinita do tempo de um hoje e quando é preciso mostrar nele, por
que razões e para que fins, aparecemos exatamente agora.”242 Nessa citação podemos
notar o viés romântico que pode ser tomado o „eu‟, o indivíduo. Mas para DIAS trata-se
de “outro contra-senso confundir o individualismo nietzschiano com o individualismo
do Romantismo.”243 A procura do indivíduo por encontrar a si, notar a sua singularidade
em Nietzsche tem outra visada. “De fato, nessa tarefa de „chegar a si mesmo‟, o
240
III Co. Int., 2004, p. 139.
DIAS, 2006, p. 68.
242
III Co. Int., 2004, p. 140.
243
DIAS, 2006, p. 68.
241
134
indivíduo deve distanciar-se da cultura artificial, assim como da massa gregária.” E
contínua DIAS: “Mas Nietzsche de modo nenhum afirma que o homem busca um “eu”
perdido no fundo de seu ser como a um ponto fixo, nem que esse “eu” só pode ser
encontrado sem si mesmo e não em qualquer coisa externa a ele.”244
Será dessa experiência, que o preguiçoso pode se privar, que o homem irá se
lançar na construção de si. “Ninguém pode construir no teu lugar a ponte que te seria
preciso tu mesmo transpor no fluxo da vida – ninguém, exceto tu.”245 Não se compra
esse caminho, cultura é construção, e os caminhos já foram indicados nas reflexões de
Nietzsche sobre o papel do ginásio e naquilo que ele crê como sendo instituições de
cultura, isto é, um árduo caminho no qual o indivíduo deve se entregar a um itinerário
oriundo da natureza.
Como se conhecer? Certamente o percurso não é simples, pois o homem é um
mistério, e a metáfora utilizada por Nietzsche é a de das sete peles da lebre, a qual o
homem logo supera e ainda encerra mais mistérios. Caberá, então, a seus educadores
propor essa libertação, esse se encontrar. Percurso que faz dois movimentos: um “que a
jovem alma se volte retrospectivamente para sua vida [...] O que vai, depois de um
percurso no qual ele observa um série de objetos venerados, levá-la a outro que não é
propriamente nenhum desses objetos, “pois tua essência verdadeira não está oculta no
fundo de ti, mas colocada infinitamente acima de ti, ou pelo menos daquilo que
tomamos comumente como sendo teu eu”. 246 É nessa dimensão quase mística que se dá
a libertação do indivíduo no caminho de conhecer a si. DIAS
assinala que para
Nietzsche, “a formação autêntica não é uma volta ao „eu‟ verdadeiro, nem o
desmascaramento dos obstáculos fictícios que entravam a cultura do „eu‟. O „eu‟ é uma
244
DIAS, 2006, p. 69.
III Co. Int., 2004, p. 140.
246
III Co. Int., 2004, p. 141.
245
135
construção, um „cultivo de si‟ permanente. Para ousar ser um „si mesmo‟, é preciso
antes de mais nada uma tarefa educativa”,247 de libertação.
O modelo de educação que vai, então, propiciar esse processo de encontro
consigo, que revela que há em nós uma dimensão que vai alem de nós mesmo,
revelando a natureza superior que há em nós, tema que é recorrente nas idéias das obras
aqui demarcada, é “[...] aquela outra educação é somente liberação, extirpação de todas
as ervas daninhas [...] ela é efusão de luz e calor, o murmúrio amistoso da chuva
noturna” ;248 Essa educação, tese coerente nos textos em questão, é também “ imitação e
adoração da natureza no que esta tem de material e misericordioso[...]”. 249 Essa
educação, também, cumpre aquele papel levantando lá em O Nascimento da Tragédia
de criar um véu que dê sentido para nós humanos aos princípios sem sentido da
natureza. A educação como aquela que „cobre‟ com „véu‟ as intenções de „madrasta‟
natureza, o que podemos pensar em termos de conhecimento trágico como uma
educação que também ensina a criar, ou, já que é impossível ensinar a criar, a eduação
como aquela que cria uma “efusão de luz e calor” e com isso faz brotar o conhecimento,
a criação no sentido de arte. Seria o que chamamos no primeiro capítulo de nosso
trabalho, das condições estéticas para aflorar o indivíduo liberto. Condições, vale mais
uma vez advertir, não no sentido lógico de causa e efeito, mas condições aqui, e lá no
primeiro capítulo, é os artefatos, as disposições de suporte ao educando, para que ele
consiga fazer o percurso, junto com seu mestre, de libertação de si.
Feito o convite, assinalado que é na direção de si, na libertação de si, no cultivo
desse si, que se educa. Nietzsche passa a falar de como tem se procedido nesse
cuidado.Como o educador tem procedido para com o “talento” do educando nesse
manejo do “educar a si”. Analisando a prática corrente da educação duas máximas lhe
247
DIAS, 2006, p. 69.
III Co. Int., 2004, p. 142.
249
III Co. Int., 2004, p. 142.
248
136
saltam aos olhos: “uma exige que o educador deva imediatamente reconhecer o ponto
forte dos seus alunos e dirigir então todas as energias, todas as forças e todo o raio de
sol sobre este ponto, a fim de levar à maturidade e à fecundidade esta única virtude.” 250
Postura equivocada, pois “trata-se de uma educação despótica, cujo produto é um ser
distorcido, inepto em todas as outras cosias para as quais não foi preparado e, muitas
das vezes, mesmo naquilo em que foi treinado.”251 A outra opção é a “que o educador
tire partido de todas as forças existentes, as cultive e faça reinar entre elas uma relação
harmoniosa.”252 Postura democrática “cujo produto é o homem burguês, o animal de
rebanho.”253 Esses dois pontos suscitam algumas indagações. Deve-se ter cuidado na
idéia de valorizar o dito talento, ou aquilo que o aluno faz de melhor, pois, na verdade,
existe toda uma relação entre as tais habilidades e as não-habilidades. Ademais, o
próprio talento é uma idéia inventada por uma dada concepção de educação e o
movimento de valorizar esse ou tentar harmonizá-los já revelam que todos estão no
mesmo barco e não faz, no entendimento de Nietzsche, a verdadeira educação. O risco
de tentar potencializar o talento pode ser anacrônico. É preciso, portanto, administrar os
tais talentos com os não talentos.
Seguindo atentamente o pensamento do filósofo até admite o chamado
desenvolvimento harmonioso para o estudante mais comum, medíocres, aquele que não
é o gênio. Porém, aos gênios, como um Celine, ele observa que esse na sua genialiade
acaba por tirar proveito desses desequilíbrios entre talento e não-talento, desse
movimento de tensão entre o que ele tem de melhor e aquilo que não tem, revelando
uma relação produtiva dessa tensão.
Para resolver isso Nietzsche pensa no guia: “Este educador filósofo com quem
eu sonhava poderia, não se duvidar, não somente descobrir a força central, mas também
250
III Co. Int., 2004, p. 143.
DIAS, 2006, p. 70.
252
III Co. Int., 2004, p. 143.
253
DIAS, 2006, p. 70.
251
137
impedir que ela agisse de maneira destrutiva com relação às outras forças [...]”. 254 Nos
escritos das Conferências, Nietzsche, propõe que a educação e a instituição educacional
e cultural deveria ser aquela que propõe os objetivos, os métodos, enfim, guie o
estudante, aqui temos essa idéia, mas agora bem ligada ao mestre, ao papel do mestre
para com o discípulo.
Mas quando se pensa a educação nos termos de um guia, deve-se, também,
pensar as questões morais. O comprometimento dos mestres com a vida, com o que eles
fazem. Não podendo ter dissociação do tipo “pense o que eu penso, mas não faça o que
eu faço”. E aqui Nietzsche aponta já para a dissociação entre ciência e humanidade.
Crítica, aliás, que ele já pontua na em O Nascimento da Tragédia, quando nota que os
professores universitários não davam o devido trato aos Gregos Antigos e que com isso
não conseguiriam fazer ressurgir a tragédia grega. No seu entendimento faltava uma
comprometimento de vida desses profissionais para com a cultura, eles, ao contrário,
dava um jeitinho cômodo e com isso perdiam o sentido do que foi realizado pelos
Gregos Antigos. Aqui, na III Consideração Intempestiva: Schopenhauer Educador, ele
diz dessa dissociação do seguinte modo: “Mesmo a maneira tão admirada com a qual os
eruditos alemães se lançam sobre sua ciência, mostra, sobretudo que, agindo assim, eles
pensam mais na ciência do que na humanidade”.255
Dessa relação dissociada, do “comércio com a ciência, quando não é orientada e
delimitado por uma máxima superior de educação, mas sempre mais desencadeado
segundo o princípio „quanto mais, melhor‟, é certamente tão nocivo aos eruditos
[...]”,256 que a idéia de moralidade na educação desapareceu.
Aqui está a questão da moral na concepção de educação de Nietzsche, o que nos
faz assinalar que esse é um tema que orientará o pensamento de Nietzsche, isto é, a
254
III Co. Int., 2004, p. 143.
III Co. Int., 2004, p. 144.
256
III Co. Int., 2004, p. 144.
255
138
relação entre verdade ou ciência e moral, como nos adverte Roberto Machado em
Nietsche e a Verdade. Ainda segundo MACHADO, temos em O Nascimento da
Tragédia uma relação arte e ciência e que depois essa relação muda para ciência e
moral, pois estaria na base da ciência exatamente questões de ordem moral. Mais
importante do que o próprio conhecimento é a intenção que está por detrás dele que é,
portanto, moral. Aqui, no texto da III Consideração Intempestiva: Schopenhauer
Educador, temos Nietzsche chamando a atenção para o fato de que os mestres não
querem saber de moral. “Foi assim que nossas escolas e nossos mestres chegaram a
fazer simplesmente abstração de qualquer educação moral e a se contentar com um puro
formalismo; e a virtude é uma palavra com a qual professores e alunos não querem mais
pensar nada [...]”.257 É interessante observar que a atitude moral é preterida pelo
conhecimento científico. Questão que nós pensamos ser: conhecimento vinculado com a
realidade é o que inclui a moral, pois não vale só pensar, existe um humano nesse jogo.
Porém, “jamais tivemos tanta necessidade de educadores morais e jamais foi tão pouco
provável encontrá-los.”258
Nesse desamparo o filósofo acredita que seu melhor recurso foi tomar seus
„desejos por realidades, “quando imaginava poder encontrar como educador um
verdadeiro filósofo, capaz de elevar alguém acima da insuficiência da atualidade e de
ensinar novamente a ser simples e honesto no pensamento e na vida, e portanto
intempestivo.”259
E Schopenhauer é dotado, no olhar de Nietzsche de muitas qualidades.
Certamente ele consegue aglutinar qualidades morais e acadêmicas, “pois ele pretendia
dizer o que é profundo simplesmente, o que é comovente sem retórica, o que é
257
III Co. Int., 2004, p. 145.
III Co. Int., 2004, p. 146.
259
III Co. Int., 2004, p. 146.
258
139
estritamente científico sem pedantismos.”260 Ele também é, nesse olhar, alguém sereno,
honesto e constante.
Achar um educador, portanto, é outra tese que liga o presente texto com as
palestras sobre o Futuro dos Estabelecimentos de Ensino. Ora, a liberdade, como já
dissertamos, esconde armadilhas nefastas e acaba por não ser desejada na formação da
pessoa. Essa falsa liberdade criticada por Nietzsche é capaz de agir contrariamente a
formação do indivíduo e o seu contrário é exatamente a tutoria de um mestre.
Anteriormente nas duas ocasiões que Nietzsche questiona a liberdade, no trato da língua
e na autonomia Universitária, ele sempre observou exatamente a ausência de um mestre
como referência.
2.9. O MESTRE E SEU PERCURSO SOLITÁRIO
A liberdade ou autonomia foi duramente críticada por Nietzsche, porém, no que
toca ao metre deve se tê-la como mira. Não se pode conceber o mestre, que é também o
gênio da cultura, sem tal liberdade. Na verdade é preciso aqui fazer um esclarecimento.
A liberdade do mestre, que é para ele uma grande responsabilidade, está no que toca em
seu comprometimento com a criação cultural ou não. Quando um mestre comprometese com alguma instituição sua produção também é contigenciada. Um mestre nesse
aspecto
deve
dar
exemplo
dessa
liberdade
e
consequentemente,
de
seu
comprometimento cultural.
Uma outra perspectiva que a liberdade do mestre é bem quista nos é dado por
MELO SOBRINHO na apresentação dos Escritos Sobre Política de Nietzsche261.
Apresentando o pensamento de Nietzsche sobre o gregarismo, ele nos diz que os
indivíduos são marcados pela utilidade em manter o grupo, o quanto ele é útil para o
260
III Co. Int., 2004, p. 148.
Cf. MELO SOBRINHO, Noéli Correia de . Apresentação. In: Noéli Correia de Melo Sobrinho. (Org.).
Escritos sobre Política. Friedrich Nietzsche. São Paulo: Loyola, 2007, p. 7-59.
261
140
grupo, MELO SOBRINHO nos diz que ser livre é romper com esse fim. Não se sujeitar
aos propósitos do rebanho que anula o indivíduo. Até mesmo o „indivíduo moderno‟
seria, nesse entendimento, um dependente do rebanho e não propriamente livre. “Os
indivíduos pensam de si aquilo que os outros pensam dele e é por isso que eles exigem
direitos iguais.”262 Essa liberdade é necessária pra que o gênio possa criar, colocar suas
verdades. Sendo assim Nietzsche diz: “Estimo tanto mais um filósofo quanto mais ele
está em condições de servir de exemplo.”263 Para ele um Kant se comprometeu com a
Universidade, comprometeu-se a criar, criação que não pode ter peias, obrigações
externas. O contrário de Kant é Wagner: “mostra que ao gênio lhe é permitido não
temer entrar nas mais hostil das contradições, com as formas e os regulamentos
existentes, claro ele queria manifestar claramente a verdade e a ordem superior que
carrega no seu interior.”264
Mas como já avisamos o percurso do mestre e gênio não é fácil. Nietzsche
congrega vários elementos que destacam o duro percurso do gênio, sua solidão, sua
dificuldade de se comunicar com os seus contemporâneos. Inicialmente poder-se-ía
pensar que se isolando o mestre e gênio resolveria seus problemas. Mas na visão de
Nietzsche não é simples. Essse isolamento também é visto com ressalvas e mesmo aí
“execrou-se o filósofo solitário, pois a filosofia oferece ao homem um asilo onde
nenhum tirano pode penetrar [...]”.265 No contexto de ser livre aludido por MELO
SOBRINHO, podemos ampliar ainda mais o fato do ser solitário consistir em um
problema. Pois ser livre é não aceitar a ordem posta. Apesar do movimento de rebanho
existir, sempre “indivíduos rebeldes, indivíduos que transitam de uma categoria social
para outra [...] inconformados, rebeldes, que dizer, homens livres, fragmentados e
262
MELO SOBRINHO, 2007, p. 17.
III Co. Int., 2004, p. 150.
264
III Co. Int., 2004, p. 151.
265
III Co. Int., 2004, p. 154.
263
141
dispersos acometidos pela má-consciência provocada pela vigência de uma gregaridade
imposta também a eles; a eles são lançados todos os tipos de hostilidades, e por isso
muitos deles sucumbem.”266 E contínua sua exposição no âmbito da política, mas que
demarca bem a tensão desse indivíduo livre e a gregaridade. Tensão essa que nos
interessa, pois será aí que Nietzsche vislumbra o percurso do mestre. Será nesse bojo de
hostilidade que o mestre terá de se ver.
Esse isolamento dado ao elevado espírito do mestre, por um lado, e seu contato
íntimo com a verdade, por outro lado, acaba por levar ao desespero esse seres sensíveis
em matéria de cultura. Schopenhauer foi obrigado a viver com isso. Outros filósofos,
como Kleist, citado por Nietzsche,267 entraram em desespero e suicidaram. Ao
contrário, Nietzsche observa na filosofia de Schopenhauer uma solução para tais
situações: “[...] de maneira individual, unicamente pelo indivíduo para consigo mesmo
[...] quer dizer, a abnegação do eu, a submissão a fins mais nobres e sobretudo àqueles
da justiça e da piedade.”268 Revelando aqui o que MELO SOBRINHO nos diz ser um
tipo de individualidade distinta do espírito gregário. É o indivíduo não como aquele
cunhado pelo olhar da massa, mas é aquele que é por ele mesmo, aristocrata, que é viril
em determinar-se.
E para se safar da loucura, como no final da citação acima, é preciso se imiscuir
a princípios mais elevados. E esse processo passa pelo conhecimento de si. “No início,
no primeiro instante, certamente, somente par si: mas através de si, no fim, para
todo.”269 Fórmula que certamente nos lembra o conhecimento trágico que é exatamente
essa superação da dor constituinte do real através da arte.
266
MELO SOBRINHO, 2007, p. 17.
III Co. Int., 2004, p. 156.
268
III Co. Int., 2004, p. 157.
269
III Co. Int., 2004, p. 158.
267
142
Ficou patente que a verdade pode enlouquecer, sobretudo se seu cultor, por
natureza do gênio, se isolar. Dessas características mais externas do gênio, passemos
para um olhar mais aproximado dele.
“Todo homem encontra normalmente em si um limite dos seus dons, assim
como do seu querer moral, e este limite o enche de nostalgia e melancolia. E,
assim também, do fundo do sentimento do seu pecado, ele aspira a santidade,
leva consigo, [...] aspiração profunda pela genialidade. (III Co. Int., 158)
Essa é também uma característica que faz de Schopenhauer alguém simples, e
mestre, pois, no entendimento de Nietzsche, “o vemos então como um ser sofredor e
como um companheiro de sofrimento, e não mais somente imerso na elevação
desdenhosa do gênio.”270 O que resolve em partes a idéia de que o gênio ficaria solitário
incomunicável, e nesse caso Schopenhauer apresenta um „plus‟ que o faz não apenas
gênio, mas mestre, referência.
Um terceiro perigo que corre o gênio, depois do isolamento e do desespero, é
seu endurecimento moral e intelectual, que também atua contra a sua genialidade. Que o
faz, se não for precavido, desistir de seu projeto, de sua empreitada na criação cultural.
“O homem destrói o liame que o prendia a seu ideal ele deixa de ser fecundo, de
procriar e, no que se refere a cultura, ele torna nocivo e inútil.” 271 Ou seja, diante dos
dissabores encontrado no seu meio, da incultura, da falta de compreensão e de
compreensão equivocada pode ocorrer, fruto da descepção com a humanidade, largar
tudo, desistir de criar, pois os dissabores o levam a ver que não compensa.
Para vencer tudo isso Schopenhauer, segundo Nietzsche, passava por uma olhar
de si.
“A nostalgia de uma natureza forte, de uma humanidade simples e são, era
nele uma nostalgia de si mesmo. E já que tinha vencido o tempo em si
próprio, lhe foi preciso também, com um olho admirado, perceber em si o
gênio. O Segredo do seu ser lhe foi daí por diante revelado, e frustrada a
intenção dessa madrasta época que lhe queria dissimular este gênio.” (III Co.
Int., 2004, p. 163)
270
271
III Co. Int., 2004, p. 159.
III Co. Int., 2004, p. 160.
143
A luta do gênio é a vitória contra as marcas do tempo em si. O próprio tempo,
que sempre está ligado a idéia do particular do passageiro, é combatida por Nietzsche
aqui acolá. “[...] explicar como podemos todos, através de Schopenhauer, nos educar
contra o nosso tempo, porque temos, graças a ele, a vantagem de conhecer
verdadeiramente este tempo.”272 O passageiro e, sobretudo, a cultura moderna, que é
criticada por Nietzsche ao longo de toda sua obra, é sempre um perigo a que deve ser
dado o devido trato. Ademais, sua reiterada crítica acerca da insuficiência cultural de
seu tempo. Carência que o mestre, dotado de cultura, supriria ao discípulo ou ao próprio
Nietzsche. Há aqui, também, a idéia de Nietzsche de que não é pela história que essa
insuficiência será resolvida. Aliás, sua observação acerca da história aqui é fulminante:
“Para toda filosofia que acredita que um acontecimento político possa dissipar-se, ou
ainda, resolver-se, o problema da existência é uma brincadeira de filosofia, uma
pseudofilosofia.”273 MELO SOBRINHO amplia ainda mais nosso olhar a esse respeito:
“Assim, o destino da humanidade não pode ser revelado pela história das civilizações,
tal como era apresentado pela doutrina hegeliana, hegemônica da época, mas este
destino a natureza só pode mostrar nos indivíduos superiores, em cujo pensamento ele
estava inscrito e manifesto.”274 Schopenhauer, portanto, era esse que tinha “a nostalgia
de uma natureza forte, de uma humanidade simples e sã.”
Nietzsche sai em defesa do papel do mestre e reprime a idéia de que é o Estado o
promotor da cultura, “[...] que o Estado é o fim supremo da humanidade e que não há
para o homem deveres mais levados do que servir o Estado; reconheço nisso, não uma
recaída no paganismo, mas na estupidez.” 275
272
III Co. Int., 2004, p. 163.
III Co. Int., 2004, p. 165.
274
MELO SOBRINHO, 2004, p. 17.
275
III Co. Int., 2004, p. 165.
273
144
O confronto que Nietzsche faz é o do gênio, do mestre, de homens superiores
como promotores da cultura e o do Estado que se propõe a tal. Mas Nietzsche diz que
devem ser os homens de exceção, os gênios da cultura. Assim ele apresenta sua defesa
do mestre: “Esta é a razão por que eu me ocupo aqui com uma espécie de homens cuja
telologia vai um pouco além do bem do Estado, quer dizer os filósofos; e deles não me
ocupo também senão em consideração a um mundo que é ainda mais independente do
bem do Estado, o mundo da cultura.”276 Revela-se também aquele espírito que na
Alemanha se procurou desassociar a cultura dos Estados nacionais como também contra
a filosofia de Hegel que procurava expressar o Estado como estágio da cultura.
Em confronto com o mestre Nietzsche apresenta dois tipos de homens distintos
ao de Schopenhauer e que eram frutos de sua época. Temos, então, o homem de
Rousseau, outro de Goethe e, o que ele lhe é mais dileto, o de Schopenhauer. O homem
de Goethe não é violento, é contemplativo e restrito a uns poucos. Por outro lado, temos
o de Rousseau, que é mais ligado às massas, devoto da revolução violenta para restaurar
a natureza perdida. Como terceira opção temos o de Schopenhauer:
“O homem de Schopenhauer assume para si o sofrimento voluntário da
veracidade e este sofrimento lhe serve para mortificar sua vontade pessoal e
para preparar a subversão, a total transformação do seu ser, alvo que constitui
o objetivo e o sentido verdadeiro da vida”. (III Co. Int., 2004, p. 171)
Aqui o que mais se destaca é que o modelo Schopenhauer e como ele poderá se
tornar fomento para a educação. Esse homem deve, como nos diz MELO SOBRINHO,
nos auxiliar a transpor as dificuldades da solidão, das contradições da vida. Esse homem
“solitário e ao mesmo tempo o mais ativo, corajoso, intrépido, cujos sofrimentos
conscientemente assumidos o leva à subversão de tudo que nele próprio se encontra: ele
é a negação criadora, a afirmação da vida autêntica que é trágica.”277
276
277
III Co. Int., 165
Cf. MELO SOBRINHO.In: NIETZSCHE, 2004, p. 19.
145
E será, como endossa José Thomaz Brum,278 em Schopenhauer que Nietzsche
irá procurar o modelo do mestre que guia o discípulo. Dado o horror que pode ser
acossado o jovem diante da verdade, dado os percalços que a época põe para os gênios.
Como, então, fazer isso? “O mais difícil está por fazer: dizer como se extraí deste ideal
um novo ciclo de deveres e com se pode, com um propósito além do mais
transcendente, colocar-se em contato com uma atividade regular, em suma, mostrar que
este ideal educa”.279 Tomando como referência a apresentação de MELO SOBRINHO
podemos pensar que esse ideal deve cumprir aquela tese de que uma boa educação é
“realizar a natureza em si próprio, aproximando-se do homem superior através do
„amor‟ e afastando-se das leis e das instituições estranhas à cultura autêntica através da
„luta.”280
Temos já o mestre, Schopenhauer, e os propósitos que se pode extrair desse
modelo para uma educação. Mas aqui Nietzsche dá nome a quatro tipos de entrave que
podem atuar contra o mestre e contra os propósitos elevados de cultura.
São os quatro
tipos de egoísmos que certamente enquadra o gênio, impede o jovem de se dedicar à
cultura. O primeiro é “o egoísmo dos negociantes que têm necessidade do auxílio da
cultura e, por gratidão, em troca, a auxiliam também, desejando, bem entendido,
prescrever-lhe, fazendo de si o objetivo e a medida”.281 Essa tendência, vai dizer
Nietzsche, em ultima instância vai fundir conhecimento com capital corrente. O valor
do conhecimento vai ser fundido com o de moeda corrente.
A segunda tendência é o “egoísmo do Estado que deseja também a extensão e
generalização maior da cultura e que tem nas mãos os instrumentos mais eficazes para
278
Cf. BRUM, J. T. Nietzsche e Schopenhauer da admiração à decepção. In: Charles Feitosa ...[et al.].
(Org.). Assim falou Nietzsche III : para uma filosofia do futuro. Rio de Janeiro: Editora Sete Letras, 2001,
p. 79-81.
279
III Co. Int., 2004, p. 175.
280
MELO SOBRINHO, 2004, p. 19.
281
III Co. Int., 2004, p. 185.
146
satisfazer os seus desejos”.282 E aqui o estado assume o papel de libertador cultural,
mas que, no olhar de Nietzsche, não passa de uma diminuição da cultura, alienação de
seu fim mais elevado. Esse egoísmo, também, representa a tese que Nietzsche refuta de
que é o Estado a própria cultura. Em terceiro temos o egoísmo dos decadentes e que se
encontra em total tédio diante da existência e “[...] querem mudá-lo por meio de ma
pertença „bela forma.”283 Certamente fruto da cultura moderna que é entediante, pois na
verdade sempre aliena os fins da cultura, donde pode-se supor o tédio. E por fim, “o
egoísmo da ciência e a essência particular dos seus servidores, os eruditos”. Que estão
mais preocupados com o conhecimento a todo custo, com sua especialidade e que
esquecem da humanidade. Classe, essa dos cientistas, professores universitários, que
não estão preocupados com filosofia, muito menos com a arte.
Em conclusão, dos quatro tipos de egoísmos, como nos adverte tanto MELO
SOBRINHO quanto DIAS284, o que sobressai é a ação da cultura vigente contra um
projeto de cultura autêntico que tem como meta a própria formação humana. Nesses
egoísmos, tema que corrente nos trabalhos aqui em análise, Nietzsche dá nome a mais
uma nuance da sociedade de seu tempo, ao que impede o florescimento da cultura.
Basicamente, todos têm por finalidades outros propósitos e advogam que tais objetivos
são culturais. Confusão dirimida e denunciada por Nietzsche.
282
III Co. Int., 2004, p. 186.
III Co. Int., 2004, p. 187.
284
Cf. DIAS, 2003, p. 81.
283
147
CAPÍTULO III
A EDUCAÇÃO ESTÉTICA DE NIETZSCHE
3.1. A EDUCAÇÃO ARISTOCRÁTICA
O tema da educação em Nietzsche, que não é muito abordado pela crítica
nietzscheana brasileira, ao ser pesquisado desperta muitas temas pertinentes. Por um
lado suas proposta, de início, nos causa certo embaraço. Nos revolta. Nos irrita. E em
uma leitura rápida pode nos parecer apenas um excêntrico literato.
Mas é só a aparência. É claro que o autor não é um marxista. Isso não é mesmo.
Mas ele também não um burguês, um liberal. Ele também não é um
pensador conservador.
Observa-se, assim, o porque ele nos irrita? Pois estamos acostumados com essas
categorias na qual pomos todos os pensadores. E em matéria de educação, não é
diferente, nós logo procuramos enquadrar o pensamento desse ou daquele filósofo em
alguma categoria já conhecida. Aliás, a esse propósito, Olímpio Pimenta nos propõe
algo peculiar. Para ele “se, por um lado, pensar „o que diz‟ Nietzsche é um contra-senso,
pois não há nele doutrina ou convicções”, “pensar com ele”, por outra lado, é sempre
uma estratégia promissora.”285 No artigo de PIMENTA o seu propósito é analisar
implicações entre arte e conhecimento em Nietzsche abordando não apenas a fase dos
textos que aqui demarcamos. Porém, somos levados a também se mover na leitura dos
textos de Nietzsche utilizando dessa mesma proposta. Essa estratégia nos chama atenção
e parece também nos ser produtiva.
Pode-se pensar que em um trabalho dissertativo somos obrigados a compactuar
com tudo que o autor de nossa pesquisa escreve. O que não nos sentimos a vontade,
285
PIMENTA,O. Arte e conhecimento em Nietzsche. In: BARRENECHEA, M.A.; FEITOSA,C.;
PINHEIRO,P.. (Org.). Assim falou Nietzsche: memória, tragédia e cultura. Rio de Janeiro: Relume
Dumará, 2000, p. 77.
148
pois não concordamos com tudo o que Nietzsche pensa nos textos dele em que estamos
trabalhando. Mas logo, abalizado pela observação de PIMENTA, chegamos a um ponto
mais confortável, de que de fato não temos que concordar com todas as linhas. Revelanos, então, ser promissor pensar com Nietzsche. O pensar com ele nos permite fazer
uma operação peculiar. Das suas afirmações, daquilo que ele tinha como horizonte
crítico sobre educação em seu tempo, podemos extrair, sem ter que concordar na
inteireza de sua tese, reflexões inusitadas e atuais acerca das ideologias que rondam a
educação no seu tempo e no nosso. Fazendo uso de uma metáfora, podemos dizer que
do golpe de suas idéias saem faíscas, como se fossem algo secundário do seu objetivo
principal, mas são essas faíscas que nos soa inusitadas. E são essas faíscas que
justificam e incentivam o vigor de nosso trabalho.
Um exemplo desse jogo de faíscas é sua fixação com o “individuo” excepcional,
o homem de cultura, esse ser nobre, aristocrata. Defende, fica preocupado com a
ascensão do populacho, pois teme que isso irá por fim a cultura.286 Mas nesse mesmo
instante ele propõe algo novo. Por exemplo: é claro que nem todo mundo nasceu para
fazer letras, ser um grande escritor. A imbricação necessária imposta nos dias de hoje
em que se deve dominar as letras, através de cursos universitários, técnicos, para se ter
status de existente é uma prática que joga no ostracismo profissões como a de pedreiro,
doméstica, entre várias outras tarefas necessárias ao funcionamento da vida social, sem
necessariamente ter que ser um homem de letras. Logo, é fato que a idéia divulgada nas
escolas dos dias de hoje de que se deve estudar para ser alguém, aliando
necessariamente ter que passar por um estabelecimento educacional para, então, lograr
êxito existencial, é uma balela. Pensamento que certamente se desprende de um
Nietzsche defensor da aristocracia da cultura. De que se faz necessário à existência de
286
Cf. SAFRANSKI, R. Nietzsche, Biografia de uma Tragédia. Trad. Lya Lett Luft. São Paulo: Geração
Editorial, 2001. 363 p.
149
escravos, como na Grécia Clássica, para que as obras de artes possam emergir desse
subssolo trágico; enfim de que a cultura é trágica. Segundo SAFRANSKI ,
“Nietzsche
dirige o problema da ligação entre cultura e justiça social para sua tese de que
precisamos decidir, em relação à cultura, se o sentido da cultura é o bem-estar da
maioria ou a vida bem sucedida em casos isolados”. E em seu fechamento sobre o tema
SAFRANSKI diz que Nietzsche faz a opção pela estética, ou seja, não pelo bem-estar,
mas pelos casos isolados de sucesso.
Como podemos notar a opção de Nietzsche caminha para assumir a cultura para
poucos. E assim, como nos confirma SAFRANSKI, nas linhas seguintes da citação
acima, que existe essa contradição ou essa injustiça social como condição necessária
para que floresça uma grande cultura como a dos Gregos Clássicos.
Nietzsche não se encaixa nas categorias mais comuns em si tratando de teorias –
comunistas, liberais e conservador. Porém, suas idéias, olhadas rapidamente, poderiam
classificá-lo como um Romântico no que toca a educação. Mas como nos adverte DIAS,
“outro contra-senso é confundir o individualismo nietzschiano com o individualismo
Romântico”.287 Para ela se trata de outra coisa, pois Nietzsche não pensa em um
indivíduo ideal ao qual se deve procurar. Mas voltando a Nietzsche, então, ele procura
pensar uma educação capaz de formar um Goethe, um Schiller, um Wagner.
Imaginemos uma escola para forma “Guimarães Rosa”? Seria isso que ele pensa e isso
não é algo simples, massivo; ao contrário é penoso e para poucos; não dá para ter
métodos, fórmulas, pois a cada momento exigem-se condições únicas, pois depende de
cada aluno. Olhado dessa perspectiva, nós modernos que somos, ficamos um pouco
irritados, pois é tão corrente entre nós idéias que massificam os processos pedagógicos.
Chegamos até ficar sem referência quando se rompe com esse procedimento comum.
287
DIAS, 2003. p. 68.
150
Um outro aspecto da concepção aristocrática da educação em Nietzsche, e que
parece esclarecer de vez donde ele se pauta para pensar tais coisas são originárias da
idéia de metafísica da arte e gênio. Para Clademir Luiz Araldi:
“a questão da cultura em Nietzsche torna-se mais complexa devido à
vinculação coma metafísica da arte e com a concepção schopenhaueriana de
gênio. As tendências de restrição e de concentração da cultura, antes de
serem expressão da autonomia humana, seriam “leis necessárias” e
“eternamente iguais” da natureza, cujo fim último estaria no nascimento do
gênio.( ARALDI. 2008, p. 85.)
Podemos, então, considerar que Nietzsche se esquiva das várias classificações
por ter sua referência de educação e estética na natureza. Feita, vale dizer, as ressalvas
de DIAS de que ele não é um Romântico, poderemos notar que suas investidas se
justificam a partir do momento que sua referência é a Vontade. Vontade entendida como
aquilo que é o próprio cerne do real. Vontade que se manifesta enquanto metafísica na
arte. Suas opções em termos de cultura, portanto, estão de olho nessa natureza, que por
si não carrega a balança da justiça humana. Natureza que se faz de modo alheio às essas
condições humanas. Posto desse modo é que podemos então compreender que
Nietzsche não está a talhar um modelo social injusto, mas dentro de suas perspectivas
analíticas ele toma com referência a natureza.
Outra coisa é que ele quase não pensa na educação técnica.288 Em seus escritos
sua preocupação é a formação do homem de cultura, o técnico ele menciona de lado, diz
que ela é importante, pois, no seu tempo, era preciso formar a burocrácia do Estado,
mas não se dedica a falar dela. Então ele pensa a educação humanista? Mais uma vez
está aí sua originalidade, pois o que ele entende por homem de cultura é algo distinto do
humanismo que é uma invenção Liberal, e que se caracteriza, por exemplo, por uma
falsa valorização do trabalho e a crença no progresso das ciências como sinônimo de um
progresso da cultura humana.
288
Cf. FREZZATTI JR, W. A. Educação e cultura em Nietzsche: o duro caminho para "tornar-se o que
se é". In: AZEREDO, Vânia Dutra de. (Org.). Nietzsche: Filosofia e educação. Ijuí: Unijuí, 2008, p. 3966.
151
Com não se trata de uma educação humanista, ele advoga algo pautado, como já
aludimos, na natureza e toda a rigidez que emerge daí. Mas rígido para ele não é aquela
relação narcísea, de uns professores sádicos, próprios do animal de rebanho que faz uso
do outro em benefício próprio. Um exemplo de como não se deve ser essa relação de
mestre discípulo, é quando o professor, na composição de textos como atividade do
ginásio, acaba por ser estabelecer uma relação na qual os alunos na produção de seu
texto estão mais preocupados em agradar o mestre do que propriamente produzir
literatura. Como observamos no capítulo anterior de nossa dissertação. Ademais, como
Nietzsche critica essa produção em idade tenra, que acaba por desviar os verdadeiros
talentos. Prática condenada por Nietzsche, porque nesse exercício, com o jovem em
fase de formação, sem referência, o aluno acabava por agradar ao professor juiz. Então,
sua proposta de mestre discípulo é outra, é algo que poderíamos chamar de autêntica.
MELO SOBRINHO diz que Nietzsche concebia uma classe de mestres que se
educariam mutuamente, e eles viveriam longe da plebe, e desses seres raros é que os
discípulos sorviam o saber produzido por eles. “Quanto à formação dos mestres, uma
nova academia deveria ser criada, e exigiria a existência isolada de um grupo de homens
que viveriam comumente e se educariam uns aos outros, como no modelo platônico”. 289
Então, ele pensa numa relação de mestre e discípulo quase como as escolas
gregas de filosofia. Depois de muito tempo, quando mestre, é que era possível ser livre.
Liberdade que é uma grande responsabilidade, pois cabe ao mestre e gênio a formação
do espírito alemão. Esse espírito não o que os nazistas pensaram. Pensem em uma
escola capaz de criar o jeito mineiro de ser? É a esse desafio que ele pensa para as
escolas de cultura em solo Alemão. Uma escola capaz de criar o espírito de um povo,
que é formado em geral ao longo do tempo, e fruto dos acontecimentos históricos, seria
289
MELO SOBRINHO, 2004, p. 35.
152
em seu modo de pensar, feito em uma escola. É a esse espírito que ele se refere, é a
identidade de um povo sendo talhada em escolas para tal.
Nessa escola estaria um mestre, um gênio a formar a juventude, mas apenas
aqueles propensos a serem gênios. No seu texto ele não pensa como selecionar esses
gênios, mas ele diz que são poucos. Aí também reside um grande problema, pois quem
seleciona o gênio? Certamente o regime nazista se autoproclamou o baluarte na escola
de que seria a raça ariana. Mas isso é outro assunto e não se aplica a Nietzsche. Como já
dissemos, ele tinha outros horizontes, o da natureza.
3.2. A EDUCAÇÃO ESTÉTICA DE NIETZSCHE
Nesse capítulo nos propomos dar atenção exatamente na articulação que possa
existir entre O nascimento da tragédia, as Conferências Sobre o Futuro de nossos
Estabelecimentos de Ensino e da III Consideração Intempestiva: Schopenhauer
Educador. Um primeiro indicativo dessa possibilidade é nos dado por MELO
SOBRINHO ao dizer que:
“O paradigma mais profundo que se oculta no fundo da abordagem
pedagógica de Nietzsche na época destas conferências é aquela que
estabelece a luta e o amálgama das forças dionisíacas e apolíneas nas
realizações humanas, paradigma já presente no Nascimento da Tragédia
publicado em 1872. Portanto, quando se trata de considerar a formação
intelectual dos indivíduos, se deve sempre levar em conta estes impulsos, um
que vem do abismo inexpugnável do inconsciente e do corpo e outro que
forma as imagens do mundo na consciência, pois eles são primordiais e
indestrutíveis”. (MELO SOBRINHO, 2004, p. 34)
Esse indicativo do leitor de Nietzsche nos abaliza, também, a denotar que há
outras implicações da obra O Nascimento da Tragédia e os escritos sobre educação do
filósofo. Por exemplo, quando Nietzsche se preocupa com o ensino da língua no
ginásio, totalmente mal tratado, podemos notar conexão direta com as considerações do
poeta lírico que Nietzsche descreve no início do nascimento da tragédia. Quando ele
pensa na primeira obra que entre Homero e Arquíloco há pontos comuns, pois
153
Arquíloco, como poeta subjetivo; lírico, também se iguala a Homero, escritor épico,
objetivo. E como se dá essa igualdade? Para Nietzsche o poeta subjetivo participa do
ser, através do êxtase dionisíaco, e quando fala, faz não a partir de sua subjetividade, de
sua individualidade, mas fala a partir do núcleo do real, fala a partir de Dionísio. Mas o
que desprende dessa reflexão e sua conexão com as observações do filósofo sobre
educação é que na produção da língua, no ensino da língua, no seu domínio, deve-se
estar atento que essa permita, quando ensinada de modo adequado, ao educando
participar do cerne da vida.
A constatação de Nietzsche no que toca ao ensino da língua materna nos
ginásios de seu tempo foi exatamente o contrário. E ele prescreve que para se ensinar de
fato a língua deve-se atentar para um rigoroso percurso. A língua deve dispertar no
educando sensações fisiológicas, dado a profundidade da língua segundo suas
concepções que certamente tem origem já em O Nascimento da Tragédia. 290
Uma outra referência da educação estética de Nietzsche certamente é Schiller
que tem, inclusive uma celebre obra dedicada ao tema: A Educação Estética do
Homem.291 Segundo MELO SOBRINHO:
“Ele começa, certamente inspirado por Schiller, advogando uma educação
estética, quer dizer, uma educação que manda cultivar a sensibilidade no
sentido da criação de uma humanidade superior, para além da sensibilidade
animal, uma educação que joga com a exemplaridade do educador e com a
disponibilidade do educando, uma educação enfim na qual os filósofos e os
artistas são os verdadeiros educadores.” (MELHO SOBRINHO, 2004, p. 37)
Esse desejo de ver o artista e o filósofo atuando na educação não se concretiza
na cena educacional de seu tempo. Ao contrário, como é explicito nas Conferências de
290
Rosa M. Dias nos fala de “aversão física” por certas palavras, o que nos parece ser algo de ordem
fisiológico. DIAS, R.M. Nietzsche, educador. Scipione: São Paulo.2003. p. 94; Porém, segunda a mesma
leitora de Nietzsche, em um outro trabalho – DIAS, R. M. . Nietzsche e a fisiologia da arte. In: Miguel
Angel de Barrenechea; Charles Feitosa; Paulo Pinheiro. (Org.). Nietzsche e os gregos: Memória, arte e
educação. Rio de Janeiro: DP&A, 2006, v. , p. 195-204 – , a idéia de uma teória sobre a fisiologia da arte
em Nietzsche teria início em outro momento de seus escritos. Precisamente no aforismo 368 de A gaia
ciência; e que no período em que estamos estudando prevalece em Nietzsche à idéia de metafísica da arte.
Usamos, portanto, a idéia de fisiologia por observar que o estado de ânimo que o filósofo deseja do
educando diante do mau uso da língua é tão radical que ele preconiza um incomôdo físico.
291
SHILLER, Friedrich. A educação estética do homem. São Paulo: Ed. Iluminuras. 1990
154
Sobre o Futuro de Nossos Estabelecimentos de Ensino, no diálogo do velho com os
jovens292, o último lugar em que se aprende filosofia é nas universidades. Mas isso não
impede que Nietzsche esmoreça, sua aposta, é nessa via. Um exemplo disso é seu
envolvimento com o projeto de Wagner em torno de Bayreuth, demonstrando seu
engajamento no que toca a sua estética educacional, já que nos estabelecimentos de
ensino de então tal projeto não era viável; como ele constata nas Conferências. A IV
Intempestiva293 não é objeto de nosso trabalho, mas serve apenas para indicar, reforçar
traços de um Nietzsche inconformado com a educação na qual atuava como professor.
Nesse sentido podemos notar que Nietzsche não desiste de sua crítica iniciada nas
conferências de Sobre o Futuro de Nossos Estabelecimentos de Ensino e a IV
Consideração Intempestiva: Wagner em Bayreuth é prova disso.294
Um outro aspecto da educação estética de Nietsche é a valorização da música.
Quando ele fala dos heróis da cultura, tratado por nós no Capítulo I – tópico 1.7. – a sua
crítica a eles se dá por eles não terem usado a música a contento. A nobre empresa deles
talvez não tenha logrado êxito por não terem usado a música, no estilo da tragédia
musical. MACHADO295 nos fala de chave, os heróis não teriam usado a chave da
música para efetivar seu projeto de cultura.
Outras sutilezas permeiam o projeto estético de Nietzsche para a formação. “[...]
a educação está longe de ser totalmente instruir e informar, não é uma aprendizagem no
sentido tradicional do termo, mas é, sobretudo fazer despertar os sentidos para a
292
A passagem a que nos referimos é: “O velho se pôs a rir: „Como? Vocês temem que o filósofo os
impeça de filosofar? Eis que isto pode mesmo ocorrer, e vocês não o experimentaram ainda? Não tiveram
a experiência disso na sua Universidade? Não ouviram, enfim, aulas de filosofia?”. (EE, 2004, p. 57).
293
NIETZSCHE, F. Wagner em Bayreuth: quarta consideração extemporânea. Introdução, tradução e
notas Anna Hartmann Cavalcanti. Rio de Janeiro: Jorge Zahar E., 2009 (Estética)
294
No trabalho de Rosa M. Dias, Nietzsche e a Música, na parte II, ela nos auxilia na leitura da quarta
Consideração extemporânea: Richard Wagner em Bayreyth, dando relevo das implicações da música de
Wagner e de seu drama. Concepções que em muito denota o comprometimento de Nietzsche com a
formação cultural, através da tragédia, do povo alemão. Cf. DIAS, R.M. Nietzsche e a música. São
Paulo: Discurso Editorial; Ijuí, RS: Editora UNIJUÍ, 2005. (Sendas e Veredas / coordenadora Scarlett
Marton)
295
MACHADO, 200, p. 11.
155
elevação da cultura, quer dizer, afirmar a vida e o mundo na sua tragicidade.” 296 Essa
perspectiva da educação estética em Nietzsche nos chama a atenção para mais um
conceito importante que é o da transformação e não o da formação. Se acompanharmos
a idéia de Vontade, com sendo o fulcro do real, e como a única existente de fato, não
podemos conceber a idéia de formação, pois teríamos que conceber princípios; uma
forma que se atualizaria como princípio no processo educativo e isso não se aplica ao
puro devir, que é a concepção de Nietzsche. Acerca desse conceito Silvia Pimenta
Velloso Rocha nos auxiliar sorver mais essa nuance da educação estética de Nietzsche:
Para ela “Sem dúvida, a idéia de formação contém em si mesma um certo aspecto de
transformação, uma vez que se trata de permitir a realização de certas capacidades. Mas
isso só é possível porque há algo que não se transforma – o sujeito – que é posto a priori
como idêntico e que funciona como o substrato imutável desse percurso”. 297
Reafirmando a recusa do filósofo daquela idéia socrática da verdade com algo dado.
Essa postura, para ROCHA, se dá pelo fato de que:
“Nietzsche recusa a noção de um Ser subjacente ao devir. Nesse caso, a
noção de transformação ou devir não designa o movimento de um estado de
coisas já constituído nem as mudanças que afetam uma substância em si
mesma imutável, mas um puro devir, ao qual não se pode atribuir qualquer
substrato.” (ROCHA, 2006, p. 269)
Seguindo os argumentos de ROCHA podemos retomar aquela idéia de Nietzsche
que preconiza que a existência só vale enquanto criação estética, que a vida apolínea só
se justifica como criação estética. É dessa mesma lavra que o filósofo afirma que os
gregos eram “superficiais”, ou seja, que aquela cultura encarava essa tarefa da criação
artística a sério, como sendo isso a atividade mais nobre do humano e que a criação
estética não pretendia ser uma investigação dos confins do Ser, mas apenas e tão
somente uma criação, uma invenção. É a essa radical idéia de realidade como criação,
296
MELO SOBRINHO. 2004, p. 37
ROCHA, Silvia P. V. Tornar-se quem se é: educação como formação, educação como transformação.
In: BARRENECHEA, M.; PINHEIRO, P.; FEITOSA, C.. (Org.). Nietzsche e os gregos: arte, memória e
educação. Rio de Janeiro: DP&A, 2006.
297
156
fruto do deus Apolo, que podemos agora entender como ela se reverbera na concepção
de educação em Nietzsche, ou seja, a idéia de que há princípios, a serem atingidos,
atualizados, revela aquele esquema socrático de que há verdades as quais o “homem
teórico” está à procura, o que, nesse momento do pensamento de Nietzsche, isso não
coaduna com sua crítica feroz ao socratismo. Mas o que expressa melhor o pensamento
de Nietzsche nesse caso é a idéia do movimento, do devir, que é a característica da
Vontade, a qual o homem não consegue perscrutar, dominar. Por isso, acerca dessa
Vontade, o melhor é sempre estar disposto a “jogar”, a criar. Esse mesmo argumento
ganha mais força e tonicidade, coadunando forças, nas observações de MELO
SOBRINHO:
“A nova educação defendida por ele exige, do ponto de vista do processo
didático-pedagógico, valorizar as aparências nas suas diferentes intensidades
e perspectivas, ou seja, ela exige antes de mais nada „ser fiel à terra‟, como
única via de superação dos niilismo e de atingimento da grandeza; esta nova
educação pressupõe que a vida somente está justificada como fenômeno
estético, como formação de si, como cultura, como uma empreitada de
destruição/criação que indica novos modos de pensar inusitados até então.”
(MELO SOBRINHO, 2004. p. 37)
Perspectiva que se casa muito bem com a idéia de tragédia apresentada na obra
O Nascimento da Tragédia. Todas as condições estéticas geradas aí permitem
exatamente prosperar a idéia de transformação, a cada participação do indivíduo ao
cerne da vida ele consegue aquele processo de educar a si.
Nietzsche pensa o educando com o ser ativo e não passivo. Pronto para receber
um conteúdo histórico, no sentido de uma peça de antiquário. Como observamos no
Capítulo II, ele pensa que o educando deva ser ativo diante dos processos e não mero
objeto. Sua luta contra os modelos estabelecidos, humanistas e realistas, 298 tem uma
298
Sílvio Gallo faz a oposição humanismo realismo quando analisa a crítica de Stiner, outro pensador
alemão, aos dois modelos de sociedade vigentes na cena “oitocentista” da Alemanha. Para GALLO esse
também é o contexto da crítica de Nietzsche no tocante a educação, ou seja, Nietzsche está procurando se
livrar desses dois modelos de sociedade que contigenciam o indivíduo e o subordina a fins outros que não
ele mesmo. Cf. GALLO, S . Crítica da cultura, educação e superação de si: entre Nietzsche e Stirner. In:
Charles Feitosa; Miguel Angel de Barrenechea; Paulo Pinheiro. (Org.). Nietzsche e os Gregos - arte,
memória e educação. 1 ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2006, p. 329-344.
157
visada: formar alguém que seja „sujeito‟ de si e não mero objeto de manobra. Animal de
rebanho. Caberia bem ao filósofo a idéia de que é mais proveitoso, criativo, ensinar a
filosofar e não filosofia, como algo acabado, estanque. Não que o filósofo seja contra a
história, sua questão é contra a idéia que omite do educando o acesso aos processos de
criação e lhe empurre as idéias sem lhe permitir compreender a cena, o jogo, de criação
das mesmas. Nessa fase do pensamento de Nietzsche nos parece muito pertinente essa
perspectiva, pois ela procura propiciar ao educando condições estéticas na qual ele
possa reviver os processos de criação dos achados históricos.
Ser professor nessa atmosfera é ser como um artesão que produz com as mãos a
própria existência. Porém, como a figura do artesão e substituída pela fábrica em série
na industrialização da sociedade moderna, Nietzsche observa que existem obstáculos
nesse estilo de educar e prevaleceu o „jornalismo‟, estilo literário que parece ser o
representante mais fiel do conhecimento da época industrial e moderna no seu entender.
Nesse processo de educação artesanal emerge um indivíduo que não se sujeita,
mas é livre. Nietzsche ainda não fala de “espírito livre”, tema do seu livro Humano,
demasiado humano299,mas do gênio e mestre que precisa ser liberto, não alienado. Não
é possível ser mestre e ao mesmo tempo subserviente aos egoísmos reinantes. Nessa
rota, segundo Sílvio Gallo: “Nietzsche propõe um trabalho de si sobre si mesmo. Contra
uma educação para formar o cidadão, o profissional, o funcionário do Estado, ou seja, lá
o que for, Nietzsche propõe um processo educativo que possibilite que alguém “tornese o que se é” um educar-se contra seu tempo, contra uma cultura instituída. Uma
educação da singularidade”.300
As idéias de Nietzsche, portanto, não consistem em algo exótico. Em O
Nascimento da Tragédia notamos aí que o renascimento do espírito trágico era um
299
NIETZSCHE, F. Humano, demasiado humano. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Cia. das
Letras, 2000, 349 p.
300
GALLO. In: FEITOSA, 2006, p .330.
158
modelo de educação que envolveria todo o povo. O povo seria convidado ao labor mais
nobre: a existência. Não seria enredado na teia de promessas do iluminismo liberal. E
para salientar a importância do existir ele faz suas duras críticas às ideologias vigentes.
3.3. A EDUCAÇÃO DA VONTADE
Pensar com Nietzsche, como nos sinaliza PIMENTA, sempre é promissor. No
nosso caso, que procuramos implicações entre estética e educação em três obras do
autor, isso nos leva a olhares singulares sobre processos na educação. Como pudemos
acompanhar no nosso primeiro Capítulo, há aí uma valorização pela intuição, pelo
êxtase dionisíaco. Sem aqui adentrarmos sobre o intuitivismo em Nietzsche, é seguro
dizermos que na concepção de tragédia preconizado nessa obra do filósofo a música é
promotora do êxtase, daquela participação não racional do rio “caudaloso do ser”,
sinalizando para o papel das condições estética na produção do saber. Em termos de
educação nos perguntamos, como traduzir essa percepção de Nietzsche de que a música
é essencial para a tragédia em termos pedagógicos?
Esse movimento que vamos fazer, de atualização de uma idéia do autor e como
ela poderia ser implementado na cena educacional de nossos dias, tem como referência
uma observação de MARTON. Segundo a leitora de Nietzsche: “Ao percorrer o texto
das Conferências Sobre o futuro de nossos estabelecimentos de ensino [...] um leitor
desatento poderia supor ter diante dos olhos um livro que acaba de ser escrito. E o
mesmo poderia pensar um leitor atento – com mais razão”.301
Mas esse salto de procurar tomar um conceito da obra de Nietzsche e fazer uma
digressão de análise de nossa cena educacional não é simples e precisamos, antes de
301
MATON. In: DIAS, R. M. Nietzsche educador. 3ª. ed. São Paulo: Scipione, 2003, p. 7.
159
continuar, no deter nele um pouco mais. Como nos adverte José Fernandes Weber, na
sua leitura das Conferências, as observações de Nietzsche se destacam:
“[..] mais pelos males que identifica do que pelos remédios que propõe. Além
disso, possui forte valor relacional, quer dizer, para ser compreendida
adequadamente, deve ser levada em conta aquilo contra o que ele escreve
[...]. Assim, não nos serve como exemplo a ser imitado, pois nossa
destinação, nossa realidade cultural e social é outra. Apesar disso, muitos dos
males que identifica são os nossos”. (WEBER, 2008, p. 529)
Nas observações de WEBER o que nos chama a atenção para uma aplicação do
pensamento de Nietzsche a uma realidade educacional dos dias de hoje é a de que há o
limite de época, mas que isso não impede a extração de críticas pertinentes a nós.
Nietzsche tem à sua frente um contexto educacional dos finais do século XIX. Não
podemos desconsiderar esse fato que lhe põe questões específicas,
mas, segundo
WEBER, Nietzsche tem uma dada crítica que transcende seu tempo. “E descartar a
crítica, simplesmente pela diferença de espaço e tempo, é uma evasiva inaceitável”.302 É
nesse contexto de observar o que se inscreve nos limites do autor e o que extrapola que
nos situamos nesse investida.
Retomando nosso itinerário, já aludimos a essa questão, de modo mais breve, no
primeiro Capítulo I, isto é, falamos da musicalização como um conceito que sem dúvida
encontra larga guarida na idéia de música em Nietzsche. Seria afirmar que uma boa
escola, um bom processo de educação, é aquele que se efetiva quando lança mãos de
teorias e práticas educacionais que levam em conta o corpo, a música. O que colaca os
conceitos tratados em O Nascimento da Tragédia em profícua discussão com a
educação.
Certamente o conceito de música que Nietzsche tem aí é passível de discussão e
o próprio autor fez esse movimento. Mas podemos, então, pegar esses conceitos como
iniciados, sem a pretensão de entendê-los como acabados, e um deles é o de música
302
WEBER, José Fernandes. Autoridade, singularidade e criação: sobre o problema da formação
(Bildung) em Sobre o futuro dos nossos estabelecimentos de ensino, de Nietzsche. Educação e Sociedade,
v. 29, p. 529, 2008.
160
enquanto representante da Vontade. Música que se liga ao conceito de drama, pois é na
tragédia musical que Nietzsche entrelaça e exalta a grandeza desse feito da invenção
humana. Ora, em uma concepção de que o trânsito entre a Vontade e aparência seja
efetivada através da tragédia, por que ela traduzir algo não conceitual em algo formal,
conceitual, podemos ousar pensar que isso pode ter implicações com o conhecimento.
Seria, então, mister dizer que se aprende cantando? Talvez não, pois o conceito de
musicalização é mais abrangente. Ele não se refere apenas à música enquanto uma dada
melodia, mas abrange sons que necessariamente não são considerados músicas. Engloba
também a relação do corpo com a música, a dança e, sobretudo, o teatro. Expressões
que muito bem casam com a idéia de tragédia preconizada por Nietzsche. Ou seja,
quando uma criança é estimulada a expressar-se através do teatro ela é convidada a
conhecer o seu próprio corpo e a relação íntima desse com a línguagem. Todo um
conjunto de afetividades, como segurança de si, conhecimento corpóreo de si, serão
bem elaborados pelo educando o que reverbera em real qualidade de apreensão dos
conteúdos ensinados na escola.
As questões relacionadas a possíveis implicações das concepções estéticas de O
Nascimento da Tragédia com os processos cognitivos são longas e demandariam um
trabalho específico. O que em parte não é nosso objetivo, pois nos propomos em
concentrar em determinadas obras do autor e compreender nelas determinado tema.
Mas, a título de sinalização, temos a questão: Se no Jovem Nietzsche há apenas o jogo
da Vontade, não poderíamos fazer uma aproximação de música e conhecimento escolar
sob a ótica do autor. Afinal, ele não pensa em idéias a serem apreendidas. O que seriam
as matemáticas, a história, a geografia? Idéias no velho modelo platônico. Mas há um
indicativo interessante nos “Escritos sobre Educação”, que tratamos no Capítulo II,
161
quando ele preconiza como intinerário de formação do joven educando do Ginásio uma
dura disciplina dos hábitos. Ou seja, ele não concebe uma educação sem hábito.
Esse hábito, que deveria ir contra a prática de seu tempo em dar uma falsa
liberdade para o educando, educaria a Vontade, o querer do educando. Dessa idéia
poderíamso então pensar que a música na edudação estética serviria não para permitir
ao aluno um acesso facilitado ao mundo conceitual. Um truque que muitas escolas
privadas gostariam de encontrar, pois em um passe de mágica, aqueles enfadonhos
conceitos seriam absorvidos pelos adolescentes de maneira cômoda. Mas aqui a música
educaria a Vontade do educando. Estabeleceria um ritmo, sincronizaria o pensar do
educando com aquilo que o motor do pensar: o querer.
Pensamos que essa é uma contribuição da estética de Nietzsche para a educação.
Considerar a música como uma educadora do querer do educando. O que se traduziria
em mais concentração. Problema, a falta de concentração, que aflige certamente
educandos de todos os segmentos sócio-econômicos de nossos dias. A robustez do
querer do educando, como ele acomoda no seu ser a vontade-querer; como ele
administra esse querer, é que será o fator determinante de sua carreira. E aí,
independente de Nietzsche ter pensado uma relação entre conhecimento trágico e os
demais saberes das ciências, teremos um ganho considerado no desempenho do
educando.
A administração da Vontade na formação do educando consiste em algo sutil,
mas de extrema relevância e que é negligenciado com muita frequência. O conceito de
Vontade em Nietzsche de que tanto falamos em nosso texto, consiste, basicamente, em
um impulso da natureza que faz com todo o real seja. Em termos cósmicos poderíamos
dizer que é toda a energia que faz com que a matéria se condense e assim permaneça.
Essa energia não é algo estável e que se encontra em repouso, tem a característica de
162
está sempre se atualizando. Revelando seu caráter de um constante movimento de
tensão, concentração. Desse conceito cósmico passemos a Vontade enquanto uma
manifestação no humano, que também é parte da natureza. A Vontade que se manifesta
no indivíduo é um reflexo da Vontade universal e cósmica. E no contexto das obras que
demarcamos para fazer nosso trabalho essa Vontade pode ser tomada como propósito,
isto é, a Vontade se revela no educando através de sua capacidade em conhecer a si. Se
empenhar no duro percurso de formação de si. A falta de propósito seria o oposto dessa
manifestação da Vontade. Seria um deixar-se ao léu, sem querer. Certamente esse
conceito da Vontade será a Vontade de Potência, um dos conceitos mais relevantes do
pensamento de Nietzsche. Contudo, nesse momento, vamos nos concentrar apenas na
idéia da Vontade como propósito.
Feito a opção, então, de analisar a Vontade sob a ótica de propósito notamos,
enquanto professor de Escola Pública, que o problema de aprendizado do educando se
concentra exatamente aí. Certamente o que provoca esses problemas será conhecido
pelos especialistas da educação com outros nomes ou em outros aspectos. Dito de outro
modo, para nosso olhar de professor de filosofia a questão se encontra “na má vontade”
do aluno. Registramos seus problemas de cognição exatamente aí. Ele, o educando, não
se concentra, não estuda, não vê motivação, não tem o hábito mental de concentrar-se
em um dado objeto e manter-se nele por tempo suficiente para entendê-lo. Essas
mesmas dimensões podem ser provocadas por vários fatores sociais e são esses os
objetos de atenção dos especialistas em educação. Certamente se descrevermos a família
de um aluno com os quais trabalhamos iremos perceber elementos sociais que afetam o
desempenho do educando. Seus pais, que passam o dia todo fora no trabalho, acabam
por não conviver e educar seus filhos naquilo que compete exclusivamente à família.
Por conseqüência essa criança desde cedo já fica em uma Creche e será criado
163
praticamente por um estabelecimento de educação. Fatores econômicos também são as
causas do não sucesso cognitivo do aluno.
Enfim, todos esses elementos que os especialistas dizem são pertinentes e todos
irão atuar exatamente nesse núcleo fundamental da constituição psicopedagógica do
educando: a sua Vontade. Soma-se ao descambo da Vontade, socialmente expresso nos
problemas da família e outros de ordem social, o advento das tecnologias de
processamento de informação, precisamente, o computador e celulares. Outros vilões
que atuam sem peia na consolidação do não-hábito do educando. As miríades de
possibilidades que uma internet oferece, consolida exatamente a falta de propósito no
espírito do educando. Não se trata de por a culpa no instrumento, a questão é de ordem
humana e precisa ser pensada e resolvida nesse plano.
Pensando com Nietzsche podemos notar que o fenômeno internet, juntamente
com o modelo de cultura em que vivemos, eminentemente fundada no excesso de
imagens, todas rápidas, pois é preciso passar para a próxima; é aquele que não incentiva
o hábito de educar-se. O duro caminho de cultivar a vontade, dar força para ela, se perde
com as miríades de possibilidades. Se bem compreendemos Nietzsche, essa questão das
miríades de possibilidades seria resolvida, também, no âmbito da tragédia. Lá o
expectador das tragédias conseguia entender que o mais importante era o fundo
misterioso da vida. O abismo do não-conceitual, que ele contemplava através do êxtase,
que poderia matar, dissolver, mas que em forma de arte na tragédia isso se resolvia: não
que a tensão desaparecesse, mas a tensão era suportada através da arte trágica. Para esse
espectador trágico o que importava, portanto, era esse fundo e não propriamente a cena
que acontecia à sua frente. Aliás, segundo Nietzsche, a prova desse fato era que os
atores se vestiam apenas com mascaras, meio desajeitadas. Ou seja, eles não estavam
preocupados com a aparência, pois sabiam de sua ocorrência cênica, mas com o cerne
164
da vida, com a Vontade. Nessa perspectiva, então, podemos dizer que é uma boa
repercussão do pensamento de Nietzsche contido em O Nascimento da Tragédia em
questões de educação é essa proposta de vencer a sedução do aparente e concentrar-se
no que seria o essencial para uma boa educação: a vontade e o querer do educando.
Palavras sutis, mas que notamos serem fundamentais na vida de estudos do educando.
Certamente para implementar uma educação que fortifique a vontade do
educando não careceríamos apenas de música e musicalização dos processos
educacionais. A questão também reflete uma plêiade de elementos sociais que devem
ser aí modificadas. Mas considerando as possibilidades formativas da tragédia como
Nietzsche a pensa em sua obra, certamente passaríamos por essa concepção na
educação. Essa nossa consideração, de que há um proveitoso laço de música e educação
da vontade, certamente vai ressoar nas observações do autor no que toca a educação, ao
rígido caminho de adestramento da vontade apresentado nas conferências Sobre o
Futuro de Nossos Estabelecimentos de Ensino e na III Consideração Intempestiva:
Schopenhauer Educador.
3.4. O E GOÍSMO DA UTILIDADE
Nietzsche emprega na III Consideração Intempestiva: Schopenhauer Educador
a palavra egoísmo para tratar de certos aspectos da sociedade de seu tempo que
atrapalhava a formação do gênio e das instituições de ensino capaz de formá-lo. A
expressão egoísmo nos parece muito peculiar, com uma capacidade de expressar um
dado traço da sociedade de seu tempo singular. Essa palavra é uma daquelas que entre
várias outras possíveis é ela que revela a totalidade de algo. Os tipos de egoísmo são: O
egoísmo do Estado, do comerciante, dos entediados e fúteis e, por fim, dos cientistas. A
165
marca de todos: interpor propósitos outros que não os culturais no caminho da formação
da autêntica cultura.
Em uma atualização do discurso de Nietzsche sobre essa questão veremos que
pouco mudou. Aliás, MARTON nos diz que a atualidade de Nietzsche nos assusta. A
batalha de Nietzsche nas conferências Sobre o Futuro de Nossos Estabelecimentos de
Ensino como na III Consideração Intempestiva: Schopenhauer Educador é para
denunciar que a formação propriamente humana era sempre contingenciada. Podemos
notar é claro o que é fruto da mentalidade de seu tempo303, mas excetuando isso,
teremos ainda um saldo relevante na análise de Nietzsche. Sua querela era chamar a
atenção para o que em seu tempo já se assinalava: a redução do horizonte humano ao do
mercado, ao da técnica. Como já assinalamos no capítulo segundo, a Alemanha de
Nietzsche tinha uma realidade educacional de universalização da formação da
juventude. Realidade que nos parece desejável nos dias de hoje no Brasil, porém,
quando olhada de perto vamos ver que por detrás dessa universalização não se promove
a pessoa humana. Há é uma falsa cultura, a idéia de escola para todos tem na sua porta a
placa: aqui se vive com mais amor, com mais humanidade, aqui se é mais ser humano.
Contudo, tais dizeres só ficam na porta de entrada, pois lá dentro o que impera são
aqueles egoísmos.
E essa é a operação que precisamos fazer para melhor compreender a crítica de
Nietzsche. No fundo a briga do autor não é contra o bem estar das pessoas. Sua querela
é em denunciar que é falsa a relação que se vende de educação e bem estar social. Quem
promete tudo isso é um mentiroso, pois no ambiente escolar o que se vê é uma falsa
promessa de felicidade que na prática não é possível ser feliz como prometido. A
303
A esse propósito a leitura do artigo de Gallo nos esclareceu. O autor demonstra que entre o
pensamento de Nietzsche e Stiner, seu contemporâneo, se vê que as teses de Nietzsche sobre educação era
também presentes em Stiner. Revelando que o discurso de Nietzsche tinha um lastro intelectual em seu
tempo. Cf. GALLO. In: FEITOSA, 2006, p. 329- 344.
166
cultura jornalística que impera no jeito de escrever, por exemplo, é uma saída cômoda
para o duro caminho a que deveria passar o educando no aprendizado da língua.
Essa é uma vertente que as denúncias de Nietzsche nos alertam. Não se trata de
ser contrário ao bem estar das pessoas, mas de denunciar que as promessas dos
egoísmos são falsas; são na verdade egoísmos, interesses outros e não a própria
formação da juventude.
Nos dias hoje vemos o egoísmo do mercado de trabalho ditando o que a
juventude tem que estudar. A escola fundamental é toda ela voltada para outros fins que
não a própria juventude. Essa fase da formação não procura desenvolver a autêntica
cultura, mas está toda ela voltada para passar no vestibular, no caso das classes mais
ricas, e ingressar no mercado de trabalho, no caso da grande maioria da juventude pobre
e estudante de escola pública. Observamos, então, prevalecer o egoísmo do mercado de
trabalho nos processos educacionais da escola. Os discursos que essas instituições
propagam em seus projetos pedagógicos no fundo sempre escondem essa verdade que é
a sua determinação segundo o mercado.
Pensando um Nietzsche de O Nascimento da Tragédia podemos dar um passo
seguinte. Para uma escola que se vê em vistas do mercado de trabalho devemos pensar
em uma escola que não seja submissa a essa relação. Certamente parece algo absurdo, já
que a força da moda acaba por condicionar o horizonte de nosso olhar. Mas tomemos a
idéia de Nietzsche de que a vida é uma “criação estética” de que a vida só vale a pena
ser vivida enquanto criação estética. De que os gregos tinham exatamente nesse jogada,
a da criação artística, o seu grande legado para a humanidade. Podemos, então, pensar
uma educação fundamental que se felicitaria em propiciar ao jovem educando essa seara
da criação. A formação básica seria vista como o momento mais privilegiado desse
jogo criativo. Não mais imperaria o decorar fórmulas para passar no vestibular, ou
167
ainda, aprender logo uma coisa útil para o mercado. Mas o jovem seria tragado pela
atividade de criação em toda a parte, mesmo que prevalecesse às matérias conceituais,
afinal Apolo não pode ser banido, ele aí exercitaria a criação, descompromissada, como
naquela associação de literatura que Nietzsche fundou ainda no “ginásio”,304 na qual
Nietzsche descreve no início de suas Conferências e exalta a falta de um propósito
mercadológico e a pura entrega ao ato de criação literária.
Claro que para propor uma educação baseada na criação temos ainda que vencer
os egoísmos reinantes. É preciso nomeá-los, delimitá-los, enfim dizer que eles existem,
falar sobre eles. Fazer com todos se dêem conta de que há uma fissura no horizonte, e
que há mais horizontes além do que comumente vemos como sendo uma única
superfície. É preciso, por exemplo, quebrar o olhar de utilidade que se lança na direção
do fazer da educação. Esse olhar condiciona todo o processo educacional, ou seja, o
desejo do pai, do educador moderno é que o educando chegue logo ao momento de
produzir coisas úteis. Assim, toda a educação não é útil, mas é em vistas do mercado de
trabalho, momento desejado, almejado que ela é condicionada. Um desenho infantil é
sempre visto nesse jogo em vistas de uma impressão mecânica, o ápice da técnica.
Como podemos notar é preciso romper com essa relação, com esse egoísmo, pois ele
sempre condiciona o fazer criativo e despretensioso da educação.
Na escola pública em que atuamos como professor esses condicionantes,
egoísmos, contribuem para esvaziar toda a educação. Notamos, em um primeiro
movimento, a dileção por matérias ditas úteis, como matemática e língua portuguesa.
Mas no final das contas é a própria escola que não tem mais sentido, utilidade.
O processo de esvaziamento de sentido operado na escola pode ser também
compreendido em relação ao que Nietzsche denúncia no espírito do homem teórico,
304
O que seria o oitavo e nono ano do Ensino Fundamental II e o Ensino Médio nos nossos dias.
168
conceito de O Nascimento da Tragédia. Segundo essa asserção nietzscheana o espírito
socrático-teórico procura argüir o Ser a partir do logos. Essa postura gera um otimismo,
um conjunto de certezas que Nietzsche chama de serenojovialidade Alexandrina, para
contrapor a uma outra serenojovialiade que é a trágica, construída sob o alicerce do
conhecimento trágico. No caso da escola a idéia do mercado de trabalho ou os egoísmos
a que Nietzsche alude na III Consideração Intempestiva: Schopenhauer Educador é que
se torna juiz dos processos aí desenvolvidos, fazendo o mesmo que o homem teórico fez
lá na decadência da Tragédia Grega. Entre nós temos o espírito de mercado, esse novo
Sócrates, que é o avaliador; no caso da escola pública ele é implacável.Não permite ao
jovem filho da classe operária ver outro horizonte se não o da utilidade. Mas quem se
deixa guiar por esse juiz, pelo espírito teórico; pelo espírito de mercado, paga o preço
que se pagou na Grécia Clássica quando a tragédia, no olhar de Nietzsche, sucumbiu.
Em O Nascimento da Tragédia observamos o fim da tragédia exatamente quando
Eurípides introduz a racionalidade socrática no seio dessa manifestação cultural. Esse
novo olhar euripidiano negava à tragédia sua música dionisíaca. Mas era exatamente
esse êxtase provocado pela música dionisíaca, esse se relacionar com o não-conceitual,
que a tornava proveitosa, espaço de criação estética. Na escola quando se nega seu seio
materno da criação, quando se alija dela o ato de criar em nome de uma racionalidade
produtiva, está se fazendo o mesmo que aconteceu com a tragédia.
Se olharmos a escola pública nos dias de hoje iremos ver que existe um
pensamento oficial semelhante ao otimismo socrático e que, também, é a fonte do
esvaziamento de sentido da escola. Os mandatários públicos entram em estado de êxtase
quando vão a público falar que a salvação da educação é a educação para o mercado.
Nas escolas privadas, também, vamos ver semelhante discurso. Nesse casso é o
vestibular para poder entrar nas melhores universidades que, por sua vez, irá garantir o
169
melhor emprego, o ganhar mais. O que difere as aspirações do educando nos dois
sistemas educacional é apenas na hierarquia do mercado de trabalho. O da escola
pública os cargos que pagam menos; os da privada a elite do funcionalismo das
empresas ou do próprio Estado. Mas o fato de que o jogo criativo é substituído se dá nos
dois sistemas educacionais.
No seio do otimismo socrático uma boa educação é aquela que acossa por
completo o ato de criar. O criar é visto como improdutivo, ineficiente. Por outro lado a
educação socrática propõe a adestração, é preciso que o jovem seja adestrado, seja dócil,
pronto para ser consumido no mercado de trabalho. Criar aqui na verdade só é aceito
quando for reprodução e não criação. Reproduzir é uma espécie de criar o já criado,
coisa que em termos lógicos não é possível. Mas a idéia de reproduzir é mais
confortável para o espírito socrático porque ela vai se apegar ao que já é sucesso. Ou
outro modelo é um jogo arriscado, pois a criação radical não tem compromisso com a
produção, é um criar que pode não gerar nenhum produto e isso é completamente
banido pelo espírito socrático, pois ele quer a certeza; a escola de hoje não pode e não
quer arriscar, criar é então visto como desperdício de tempo e de dinheiro. Então fazem
de conta que estão criando, mas na verdade estão é reproduzindo, decorando.
Esse mesmo expediente da escola que adestra era familiar a Nietzsche. Ele
observou que esse adestramento criava um tipo de literato: o jornalista. E o que isso
quer dizer? O fato do educando ser forçado a adequar-se a outros interesses e não aos
mais altos píncaros da cultura, gerava um profissional superficial, um letrado, mas sem
“alma”. Suas observações a esse respeito, como tratados nas conferências Sobre o
Futuro de Nossos Estabelecimentos de Ensino, referem-se à produção de textos
literários ainda em idade tenra. Esse exercício do modo que era conduzido não permitia
uma real experiência estética de criação; a condução desse trabalho era permeada pelos
170
interesses do professor, o que acarretava em uma prática improdutiva. O aluno acaba
por aprender a agradar o seu professor.
Uma verdadeira educação certamente precisa retomar o criar como processo que
não pode ser subordinado. O criar deve constituir a peça fundamental da educação. Na
escola pública ou privada o educando não pode ser tolhido desse direito; a necessidade
de “arrumar emprego” ou “passar no vestibular”, como fiéis representantes do espírito
socrático, deve ser combatido e expulso do ambiente escolar. Aliás, o senso de utilidade
deve ser combatido nas mentes mesmo, pois certamente esse é seu reduto e constitui a
esfera da cultura enquanto expressão, substrato de um povo.
Qual o caminho a ser tomado? Certamente ele é longo e cabe ao nosso trabalho
apenas esboçar uma pequena contribuição. Dizer que ele existe, que é possível pensar
um princípio para a educação que não seja estribado na criação; que essa dimensão é
fundamental no processo cognoscitivo do educando.
Nossas estratégias certamente acompanham as de Nietzsche quando preconizou
o renascimento do pensamento trágico e da tragédia musical de Wagner. Nesse
movimento, vale lembrar, Nietzsche critica em O Nascimento da Tragédia a ópera.
Destaca seu caráter de entretenimento e seu sentido não trágico, mas socrático. Seu
registro de renascimento do espírito trágico se dá exatamente na demonstração dos
“pontos fracos” dessa manifestação cultural. Nessa crítica ele constrói uma ponte para a
sua esperança de renascimento do trágico.
Acompanhando esse movimento, pensamos que para vencer o espírito socrático
presente no seio da escola precisamos falar da Indústria do Entretenimento ou, nos
termos de Nietzsche, do jeito jornalístico de lidar com o conhecimento. Mas por que
falar do entretenimento e do jeito jornalístico? Ora o valor que tais produtos gozam
entre alunos, professores e familiares é de uma profundidade que irrita qualquer um
171
preocupado com a autêntica cultura. O interessante a notar é que tais fazeres, como o
jogo de futebol, é algo inútil. A notícia do jornal, também, tende, como crítica Nietzsche
nas Conferências, a simplificar e ser, desse modo, superficial e, também, inútil. Mas
por que tais fazeres gozam de posição privilegiadas entre alunos, professores e
familiares? Um espectador quando procura um jogo de futebol no estádio ele sabe que
tal atividade não tem utilidade.
A Indústria do Entretenimento dá lucro e tem um propósito bem demarcado na
sociedade de mercado. Mas o hilário é que a principal característica de seu produto é ser
sem utilidade, ou seja, o público pagante quanto vai ao estádio de futebol vai à procura
de sensações que fogem àquela batuta que se impõe a escola. Eles não visam com o
“entretenimento” um lugar no mercado de trabalho. Citamos o futebol, mas a nossa
sociedade moderna é recheada de entretenimento. Esse espírito é profundamente
arraigado na sociedade e notamos que a idéia do show também se faz presente no
ambiente escolar quando o aluno gostaria de ter uma aula “legal”.
Não pretendemos em nosso trabalho tratar das imbricações da Indústria do
Entretenimento e suas implicações com a educação. O que nos interessa é apenas dizer
que há nesse produto o germe da não-utilidade e que dado a sua intensa presença na
vida das pessoas ele serve para quebrar o império da utilidade que recai sobre a
educação de nosso tempo. Para combater esse “egoísmo” precisamos demonstrar que o
horizonte da utilidade a que são submetidos os processos educacionais tem uma fissura;
Há outros horizontes, é só pensarmos o quanto de coisas inúteis somos levados a fazer
durante o dia.
Para provar que fazemos coisas inúteis e assim quebrar a imposição de utilidade
que recai sobre os processos da educação formal, podemos tomar como dado o fato de
que um aluno passa o mesmo tempo ou mais assistindo televisão ou jogando
172
videogame. Recentemente pesquisas até revelaram uma curiosidade: crianças mais
pobres passam mais tempo na Internet do que as de melhores condições financeiras.
Ao apresentar argumentos de que há vida além da utilidade certamente se pode
pensar em instituições educacionais voltadas efetivamente para a criação. Esse
movimento não é simples, vale dizer novamente, mas as condições teóricas para se
pensar uma ruptura passam por essa via: existe vida nas atividades que não são voltadas
para o mercado de trabalho, o humano, enquanto ser que se cria no jogo estético, deve
ser a atenção.
Para finalizar, certamente uma educação no âmbito dos textos de Nietzsche que
aqui demarcamos passa pela valorização da criação. Uma educando irá apreender com
muito mais vigor quando ele participar do jogo de criar aqueles achados históricos. Se
esses mesmos achados forem impostos, para serem decorados, certamente estamos
falando de uma educação da adestração e que se preocupa unicamente com o mercado
de trabalho e não com o próprio educando. Educar passa nesse contexto por uma rígida
educação, como já dissemos sobre a Vontade, mas essa rigidez só vai ganhar contornos
vivos quando regada de criação.
173
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O nosso trabalho sobre estética e educação em obras específicas de Nietzsche
teve como propósito um exame temático em obras pontuais do autor. O que nos impôs o
exercício de ficar atentos aos conceitos aí trabalhados e deixar de estudar os seus
desenvolvimentos em obras posteriores. Isso poderia soar como limitador, porém,
pensamos que é proveitoso, pois esse exercício nos permitiu um olhar atento às bases do
pensamento do filósofo. Condição necessária para lançarmos com segurança, em outro
momento, na leitura dos conceitos de maturidade do filósofo.
O conteúdo que abordamos nas três obras certamente nos propiciou profícuas
reflexões. A primeira, um desafio pessoal, foi enfrentar o rigor da produção acadêmica.
Sobretudo quando dissertávamos a temática em que Nietzsche tece duras críticas ao
mau uso da língua materna. O que não era fonte de total desânimo, pois o mesmo autor
salienta, em outro momento de sua obra, a idéia de que o mais importante é o empenho
na formação de si. O seu conceito de formação de si ou uma formação autêntica nos
alegra, pois “[...] é uma construção, um „cultivo de si‟ permanente. Para ousar ser um „si
mesmo.”305 Não se trata, portanto, de algo já dado, pré-estabelecido.
A formação é muito mais uma transformação processual e não um adequar-se a
um modelo ideal. Perspectiva conceitual, presente na III Consideração Intempestiva:
Schopenhauer Educador, que se estrelasse com o conceito de que a vida só se justiça
enquanto criação estética, apresentado em O Nascimento da Tragédia. Pois é na criação
estética, propiciada pela tragédia, que os gregos Antigos se formavam. O processo
formativo da tragédia, então, não se baseava em modelos ideais, mas na pura
contradição da vida manifestada pelo pathos trágico.
305
DIAS, 2003, p. 69.
174
Outro avanço na leitura de Nietzsche que pudemos fazer foi no que toca ao
conceito de redução dos estabelecimentos de ensino e elevação da cultura. Se na
atualidade somos levados a pensar que para resolver todos os problemas sociais é
preciso de mais escolas, a leitura das conferências Sobre o Futuro de Nossos
Estabelecimentos de Ensino nos mostrou uma outra perspectiva. Não adiante ter muitas
escolas se nelas prevalecer uma cultura decadente. Uma cultura na qual são os interesses
do mercado que ditam as regras. Uma educação que relega todo o fazer na esfera da
cultura humana em segundo plano, tomando como mais importante exatamente o jogo
do mercado em produzir bens materiais. Nesse ambiente escolar o que irá prevalecer é o
que Nietzsche chama de cultura de jornalista, que procura sempre reduzir a riqueza da
cultura em vistas de um consumo mais rápido.
Essa mesma cultura da moda, do consumismo, certamente é a que impõe um
modelo de liberdade nos
estabelecimentos de ensino. Liberdade questionada por
Nietzsche, que propõe uma nova relação entre educando e mestre. Propõe uma
hierarquia entre mestre e discípulo. Perspectiva que já soava estranha na universidade
que Nietzsche atuava como professor e que continua a ser um absurdo nas escolas de
nossos dias. A imposição da liberdade irrestrita se coaduna com a idéia de extensão
máxima da cultura e com isso sua simplificação. A falsa liberdade, duramente criticada
por Nietzsche, acaba acarretando a preguiça do educando e a evitar os duros caminhos
da formação elevada. Uma cultura simplificada e para todos não precisa de disciplina.
Ao contrário, como propõe Nietzsche, uma cultura elevada, bem elaborada, só pode
existir para pequenos grupos. É para poucos a dura e longa disciplina cultural.
O aprofundamento da cultura e a necessidade de um intenso trabalho para se
produzir algo elevado, requer sempre um trabalho em pequenos grupos. O grande
grupo, como podemos notar na própria experiência de aluno e professor, geralmente não
175
funciona. Se por um lado, como nos adverte MARTON, 306 essa idéia de pequeno grupo
em Nietzsche reflete mesmo um pensamento elitista da cultura, por outro lado, temos a
certeza de que é no pequeno grupo, na comunidade, que a vida e a tarefa de formar-se
pode acontecer de modo mais eficiente. A massa certamente não é o lugar da formação
autêntica.
A formação no pequeno grupo por si não garante, também, uma cultura
autêntica. E aí desprende um conceito promissor da obra O Nascimento da Tragédia
que é a idéia do jogo estético. O método utilizado no pequeno grupo deve se estribar na
criação; revelando que sem a participação estética de cada participante corre-se o risco
de fazer no pequeno grupo o processo se tornar cansativo e sem o rigor que Nietzsche
apregoa na formação do homem de cultura.
Um outro tema de O Nascimento da Tragédia que Nietzsche pensa sobre o
drama wagneriano é o conceito de Vontade. Temática em Nietzsche que certamente é de
influência direta de Schopenhauer. Ao pensar a Vontade como sendo o cerne da vida,
Nietzsche propõe que a música é a manifestação artista mais adequada para expressá-la.
Nossa intenção de trabalho não foi o confronto do conceito de Vontade ente
Schopenhauer e Nietzsche. O que chamou nossa atenção foi a riqueza do conceito de
Vontade e do drama wagneriano. Sua complexa teia estética permite o enriquecimento
na capacidade de expressão do conteúdo trágico. Dessa dimensão estética do drama
pensamos ser possível a relação com os processos educacionais. A musicalização como
forma de expressão da Vontade é um importante instrumento de exercício da Vontade.
O chegar a si de que fala Nietzsche é, sobretudo, um exercitar da Vontade que há em
cada indivíduo.
306
Cf. MARTON. In: AZEREDO, 2008, p. 17-37.
176
Sem que o educando tenha Vontade ou propósito qualquer projeto educacional
estará fadado ao fracasso. A relevância e o papel central da Vontade na educação foi
uma descoberta na leitura que fizemos de Nietzsche. O conceito de Vontade em
Nietzsche terá um desenvolvimento para a idéia de Vontade de Potência, mas como já
avisamos, nos concentramos em O Nascimento da Tragédia, onde o conceito, ainda
muito tributário de Schopenhauer, se apresenta como cerne da vida e do real sem outros
detalhes. O que não impediu com fizéssemos relação com Sobre o Futuro de Nossos
Estabelecimentos de Ensino e III Consideração Intempestiva: Schopenhauer Educador.
Denotando dessa relação que a educação elevada e capaz de transformar a si, só pode
ser através uma estética trágica. Pois essa é participação do cerne da vida e de onde a
realidade emana. Tomar um outro caminho para a transformação de si é correr o risco
de praticar apenas uma retórica, mas sem mudanças.
Enfim, tomar os textos de Nietzsche como fonte de pesquisa pode não ser uma
boa opção se estivermos pensando em uma caixa de chaves conceituais para se
interpretar o presente. Contudo, segundo PIMENTA, “pensar com ele‟, por outra lado,
é sempre uma estratégia promissora.”307 E esse pensar junto com o autor é que nos
revela que Nietzsche “é instrumento de trabalho insubstituível”.308
307
308
PIMENTA. In: BARRENECHEIA, 2000, p. 77.
LEBRUN. Apud: DIAS, 2003, p. 115.
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