Tecnologias Híbridas e as Ciências Sociais

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Tecnologias Híbridas e as Ciências Sociais
Tecnologias Híbridas e as Ciências Sociais: questionando
divisões e fragmentações
Holgonsi Soares Gonçalves Siqueira ¹
Márcio Felipe Salles Medeiros ²
O desenvolvimento da tecnociência na contemporaneidade estabelece novos
padrões de interação entre indivíduos e tecnologias, resultando novos arranjos
sociopolíticos que ressaltam a importância do conceito de “hibridismo”. A problemática
trazida por esses novos arranjos, ao promover um profundo questionamento do estatuto
moderno com suas rígidas oposições binárias, imprime desafios à metodologia clássica
das Ciências Sociais, na medida em emergem no/do contexto atual, novas exigências de
interpretações/entendimentos das relações natureza-cultura, sujeito-objeto, tecnologiasociedade. Neste sentido, nosso trabalho levanta a questão sobre os desafios para a
renovação teórica-metodológica das Ciências Sociais, a partir de uma análise críticoreflexiva sobre o conceito de hibridismo. Dialogando criticamente com a metodologia
tradicional destas ciências, optamos como suportes teóricos principais as perspectivas de
Bruno Latour, Donna Haraway e Boaventura dos Santos.
palavras-chaves: tecnologias híbridas, ciências sociais, interdisciplinaridade
A temática deste artigo pertence ao GT 7 - Debates teóricos y metodológicos en el
estudio social de la ciencia y la tecnologia”
_____________________
¹ - Doutor em Educação. Professor Adjunto/4 do Mestrado e do Curso de Ciências Sociais
da Universidade Federal de Santa Maria – RS – Brasil Fone: +55 (55) 3222 3359. Líder
do Grupo de Pesquisa-CNPq “Globalização e Cidadania em perspectiva interdisciplinar”.
E-mail: [email protected]
² - Graduado em Ciências Sociais bacharelado. Mestrando do programa de pósgraduação em Ciências Sociais da Universidade Federal de Santa Maria – RS – Brasil.
Fone: +55 (55) 3217-8071. Linha de Pesquisa: Globalização, Novas Tecnologias e
implicações socioculturais. Bolsista CAPES. E-mail: [email protected]
Da modernidade à tecnociência
O papel das ciências e das técnicas na constituição humana é inegável, na
medida em que “tudo que espontaneamente adentra o mundo humano, ou para ele é
trazido pelo esforço humano, torna-se parte da condição humana” (ARENDT, 2008, p.17).
Desta forma, refletir sobre a produção tecnocientífica significa compreender uma
importante faceta da sociedade, na medida em que ela tem interagido com a sociedade
produzindo inúmeras transformações sociais.
Porém, para que possamos analisar as questões político-epistemológicas
relacionadas a esta produção tecnocientífica na contemporaneidade, bem como as
possíveis repercussões nas Ciências Sociais e Humanas, primeiramente se faz
necessário uma reflexão sobre a ciência moderna, especificamente no que tange à série
de dualismos e assimetrias consagradas pela mesma.
A constituição moderna, ao tratar questões relativas à emergência da ciência e
das técnicas dentro do contexto social, procura de forma sistemática executar
fragmentações,
estabelecendo
o
conhecimento
científico
através
de
fronteiras
ostensivamente policiadas, como bem elucida Boaventura (1987), entre ciência de um
lado, e humanidades e senso comum de outro.
Estas separações operam com traços próximos a “sacralização religiosa”
(BLOOR, 2009), no qual os sectários das misturas são tratados como hereges e
condenados pelos inquisidores das ciências puras. No entanto, a própria ciência, que
renega a heterogeneidade é heterogênea ao separar, por exemplo, “pura e aplicada,
ciência e tecnologia, teoria e prática, popular e séria, de rotina ou de fundamento.” (Ibid
p.80)
As fragmentações produzidas pela modernidade atuam como um de seus
motores, na medida em que estas fragmentações ecoam na sociedade que as acolhem,
e desta forma produzem agenciamento de “actantes” (LATOUR, 2000) que constroem as
condições de desenvolvimento das tecnologias. A possibilidade de convergências puras
(entre ciências e técnicas), ou convergências profanas (entre ciência e sociedade), é
negada pela visão moderna, o que exclui a possibilidade de se pensar, politicamente, o
desenvolvimento tecnocientífico, pois as relações entre objetos e atores sociais não são
permitidas, não são evidenciadas e/ou são negadas. Como resultado, os mundos social,
econômico, político, científico e técnico são postos distantes, como se cada um deles
pudesse existir isolado um do outro.
A ciência, a partir da fragmentação, postula sobre a supremacia da razão sobre as
práticas sociais, partindo da premissa de que “a ciência nada mais é que a consciência
levada a seu mais alto ponto de clareza.” (DURKHEIM, 1999, P17). Este postulado
encontra dificuldades explicativas, na medida em que pensar o conhecimento como
autônomo, atribuindo a conjugação com a sociedade o erro inerente a sua construção
(BLOOR, 2009), incorre em uma tautologia, visto que esta convicção parte precisamente
de crenças que barram sua análise 1. O conhecimento enquanto autônomo, de forma
fática, é uma crença na medida em que, caso tomarmos o mesmo princípio empirista da
ciência moderna, não teríamos provas materiais de que o conhecimento é efetivamente
autônomo, pois o mesmo não é estudado em seus fundamentos, mas apenas sacralizado
em suas práticas.
A análise do ocidente, pela crença na ciência e na superioridade da razão e da
fragmentação como imperativos do desenvolvimento, impediu por um bom tempo de
voltar-se para a compreensão daquilo que é central, ou seja, a ciência em sua
organização. Assim, voltou-se para compreender as práticas centrais das sociedades não
ocidentais, que por misturarem suas crenças e práticas eram colocadas como inferiores.
Por isso
“Centenas de etnólogos visitaram todas as tribos imagináveis,
penetraram florestas profundas, repertoriam os costumes mais exóticos,
fotografam e documentaram as relações familiares ou os cultos mais
complexos. E, no entanto, nossa indústria, nossa técnica, nossa ciência,
nossa administração permanecem bem pouco estudadas.” (LATOUR,
1997, p.17-18)
Desta forma a modernidade “não apenas envolve uma implacável ruptura com
todas e quaisquer condições históricas precedentes, como é caracterizada por um
interminável processo de rupturas e fragmentações inerentemente internas”.(HARVEY,
1989, p.22). Assim, concordando com Bloor (2009) e Latour (1994), concebemos a
modernidade como fragmentada, sacralizada em seus valores e assimétrica em seu
discurso (LATOUR, 1994).
1 Esta premissa é detalhada por David Bloor (2009), quando este analisa a construção cientifica,
através da perspectiva de Lakatos, que coloca a “história interna” da ciência como sendo pura
e lógica, e a “história externa” como sendo ilógica, e causadora de erros lógicos a construção
cientifica. No entanto, esta definição colocaria o estudo da ciência somente no erro cientifico,
retirando todos os elementos de conflitos políticos, econômicos, pessoais, etc. do contexto de
produção da “ciência que deu certo”.
A assimetria colocada pela modernidade guia, dentro do discurso científico, uma
idéia de ordenamento do mundo, de organização da complexidade da natureza sob a
ótica da organização da matéria, da harmonia do mundo, que não raro torna-se dogma
seguido de forma ascética. 2 Ao mesmo tempo em que a modernidade opera pela
fragmentação, busca a harmonia dos objetos através de leis que fragmentam as
possíveis óticas sobre os objetos constituindo niilismo, reduzindo a complexidade e as
incertezas, centrando no indivíduo racional a capacidade de operar as variáveis e
enxergar através de óculos modernos a harmonia através do caos. Buscamos utilizando
a razão dominar a natureza complexa, no entanto “a Natureza é mais criativa do que nós”
(GLEISER, 2010, p.16).
As certezas e harmonia produzida pelas leis, as fragmentações e a crença na
supremacia da razão são características constitutivas da ciência moderna, constituindo o
ethos que orienta seu discurso através de assimetrias discursivas entre as práticas de
constituição e a forma de representação dentro dos espaços públicos.
Entretanto, o processo de constituição da ciência tem sido rediscutido a partir de
outras perspectivas, que não necessariamente operem através da fragmentação. Esta
proposta inclui analisar as múltiplas dimensões que compõem o fazer científico,
desconfiando do discurso dos cientistas (LATOUR, 1997) – fragmentado e canônico –,
procurando compreender as redes que se formam para que o fazer científico exista.
A retórica da ciência para funcionar necessita de muito mais do que a razão
aplicada aos fenômenos e objetos estudados, pois não conseguiria funcionar “sem o
alistamento de muitas outras pessoas, sem as sutis táticas que ajustam simetricamente
recursos humanos e não-humanos” (LATOUR, 2000, p.239). Desta forma, a existência da
ciência envolve extrapolar os muros da ciência e compreender as relações entre
humanos e não-humanos, bem como diferentes instâncias da sociedade, que se
mesclam dentro dos produtos reificados da ciência.
Ainda conforme Latour (2000, p.262), salientamos que a produção tecnocientífica
apresenta como esqueleto que sustenta sua organização, divisões. Sua anatomia, que se
sustenta na divisão interior/exterior é o resultado provisório de uma relação inversa entre
2 Esta questão da dogmatização da ideia de simetria da matéria é profundamente destacada na
obra Criação Imperfeita, de Marcelo Gleiser (2010), na qual o autor apresenta como o
pensamento centrado na perfeição e simetria do universo, ou seja, na redução da
complexidade inerente a constituição do universo é simplificada em visões que não são
reflexivas, mas dogmáticas.
o recrutamento “externo” de interesses – o sociograma – e o recrutamento “interno” de
novos aliados – o tecnograma. A cada passo do caminho, altera-se a constituição daquilo
que é “interno” e daquilo que é “externo”.
A rede, ao mesmo tempo em que constrói uma perspectiva analítica que sustenta
uma visão complexa de uma teia de elementos que compõe o fazer científico, é
autocrítica em seus elementos, pois possibilita questionar o próprio estatuto do
conhecimento. “Desde então, o conhecimento não seria mais passível de redução a uma
única noção, como informação, ou percepção, ou descrição, ou idéia, ou teoria; deve-se
antes concebê-lo com vários modos ou níveis, aos quais corresponde cada um desses
termos.” (MORIN, 2008, p.18)
Desta forma, podemos falar de uma antinomia entre a forma de conhecimento
postos pelos modernos e a perspectiva de análise que emerge da pós-modernidade
sobre este conhecimento, possibilitando perceber o fenômeno de emergência da
tecnociência na sociedade não mais como dogmático e sacralizado, mas de forma
reflexiva e interligada com os fenômenos sociais.
A tecnologia, fenômeno constitutivo da tecnociência, apresenta-se como eidos da
sociedade moderna, atuando como importante imperativo de organização social.
“é dimensão essencial da criação de conjuntos representada por cada
forma de vida social e isso antes de tudo porque ela é, tanto quanto a
linguagem, elemento da constituição do mundo enquanto mundo
humano e em particular da criação, por cada sociedade, do que, para
ela, é real-racional, pelo que entendemos o que ela estabelece como
impondo-se a ela” (CASTORIADIS, 1987, p.306)
Este real-racional estabelece-se como constitutivo da certeza moderna, nas
convicções da sociedade sobre os não-humanos que nos rodeiam. Não dominamos o
conhecimento necessário para compreender os objetos técnicos que interagem conosco,
mas acreditamos no funcionamento dos mesmos e reproduzimos esta confiança, que
atinge o próprio fazer científico. “Em suma, a construção de fatos e máquinas é um
processo coletivo” (LATOUR, 2000, p.53). Este processo coletivo está nos valores, nas
crenças, formas de interação que são simétricas entre a sociedade e a ciência.
Cabe ressaltar que o enfoque dado à produção científica tem sido alterado nas
últimas décadas, e consecutivamente, o enfoque dado pela sociedade também.
Deixamos de utilizar o conhecimento somente para alterar a natureza, mas para a
produção de mais conhecimento, constituindo o “paradigma tecnológico ou da
informação”, e no qual, de acordo com Castells (1999, p.111), o processo de
convergência entre diferentes campos tecnológicos, resulta de sua lógica compartilhada
na geração da informação.
Esta convergência não deve ser entendida apenas sob o viés tecnológico, mas,
destacamos aqui, que a mesma se realiza também entre diferentes elementos sociais, e
entre estes elementos e a tecnologia. Associamos as convergências resultantes deste
novo paradigma tecnológico às dobras deleuzianas, as quais, ao produzirem
rompimentos nos processos lineares e no modelo da simplicidade, gerando desconstruções e novas construções, tornam-se núcleos organizadores da ciência e das
técnicas através de princípios como o não-completo, a instabilidade, as conexões e as
relações.
Neste sentido, as misturas entre diferentes saberes, conhecimentos e técnicas
não são mais encarados como profanos, mas essenciais em uma sociedade-cultura que
se estrutura com base na complexidade. Assim, compreendemos que
“o paradigma da tecnologia da informação não evoluiu para o seu
fechamento como um sistema, mas rumo a abertura como uma rede de
acessos múltiplos. É forte e impositivo em sua materialidade, mas
adaptável e aberto em seu desenvolvimento histórico. Abrangência,
complexidade e disposição em forma de rede são seus principais
atributos.” (CASTELLS, 1999, p.113)
Reafirmamos que a produção da ciência continua sendo parte constitutiva da
condição humana (AREDNT, 2008), no entanto, a forma de organização da mesma
começa a assumir uma lógica aberta, ampliando as redes de agenciamento de humanos
e não-humanos. Sob esta lógica, a maneira de fazer ciência deve ser vista sob a ótica da
complexidade, e com formas de auto-representação distinta em relação à ciência
moderna. No contexto pós-moderno, o princípio da rede de relações produz
convergências entre tudo o que foi separado pela modernidade, repercutindo
questionamentos no âmbito da ciência contemporânea.
Não obstante alguns indicativos de mudança de paradigma na ciência, as
aberturas que se processam nesta área são apenas parciais. As convergências
produzidas pela ciência, além de produzir mobilizações para agenciar humanos e nãohumanos e conseguir se consolidar dentro do fazer científico, opera através da
“autonomização” e “alianças” (LATOUR, 2001). Ao mesmo tempo em que produz
convergências para avançar no desenvolvimento da tecnociência através de alianças,
produz rupturas autonomizando essas convergências dentro de campos do saber.
A autonomização do conhecimento é o que produz, de um lado, o conflito entre
áreas do conhecimento sobre uma verdade, de outro lado, apresenta importância dentro
da constituição moderna na medida em que opera como promotor da verdade (quando
esta área autônoma consegue agenciar o maior número de actantes do que outras sobre
uma verdade), chancelando a visão de certeza produzida pela ciência.
Somente através de um saber consolidado, se consegue atingir um grau de
promoção da verdade, e desta forma, se mobilizar as representações públicas sobre si,
conseguindo captar recursos para que o mesmo seja desenvolvido. Desta forma, o fluxo
sanguíneo da ciência torna-se dinâmico, ágil e diferenciado em seu foco – não mais na
matéria e sim no conhecimento –, no entanto, não se produz uma ruptura profunda na
forma de organização moderna em relação à fragmentação.
A ciência, ao mesmo tempo em que promove autonomizações de conhecimento,
prolifera híbridos dentro de seu sistema circulatório (Latour, 1994), através do
agenciamento de pares humanos e não-humanos. A proliferação de híbridos ocorre
concomitante com a negação dos híbridos através dos processos de purificação,
constituindo discursos fragmentários que distanciam natureza e cultura, ciência e
sociedade do interior do processo de fazer científico. Desta forma, vemos uma antinomia
entre o discurso cientifico clássico-puro (ordenado e que nega a possibilidade de relação
entre ciência e sociedade), do fazer da “ciência em construção” 3 (Latour, 2000), repleta
de híbridos e contradições
A proliferação dos híbridos
Consolidando a separação total entre humanos e não-humanos, e tendo por base
a questão da separação entre o poder científico e o poder político, destacamos aqui que
a modernidade se organizou sob a influência de três garantias constitucionais (LATOUR,
1994), sendo elas: 1) “ainda que sejamos nós que construímos a natureza, ela funciona
como se não a construíssemos”; 2) “ainda que não sejamos nós que construímos a
sociedade, ela funciona como se nós a construíssemos; e 3) a natureza e a sociedade
devem permanecer absolutamente distintas; o trabalho de purificação deve permanecer
3
Latour trabalha o conceito de ciência em construção em sua obra “Ciência em Ação” (2000), na
qual trabalha de forma detalhada a distância entre o discurso científico se tomado como pronto,
ou seja, tomar a verdade científica por ela mesma, e a ciência em construção, na qual uma
série de contradições e atores sociais faz parte do fazer científico, direcionando os caminhos
que a ciência percorre.
absolutamente distinto do trabalho de mediação.” (p.37).
Através das contraposições entre estas garantias, a modernidade tinha como
objetivo principal tornar invisível e impensável a construção dos híbridos. No entanto, a
mesma
ciência
que
operou
através
das
três
garantias
constitucionais,
e
consecutivamente chancelou a separação entre natureza e cultura, proliferou seus
híbridos na medida em que a própria produção científica é híbrida (LATOUR, 1994, 1997
e 2000). “A ação não é uma propriedade de humanos, mas de uma associação de
atuantes (...)” (LATOUR, 2001, p.210), misturas entre natureza e cultura, humano e nãohumanos, enfim, o rompimento de fronteira entre os binômios é o que permite que o fluxo
sanguíneo da ciência continue pulsante, e não a sua constituição.
A produção científica está repleta de seres híbridos, de ciborgues, que mesclamse às máquinas na produção de suas tecnologias. Estes ciborgues, quimeras modernas,
são fruto da conjugação entre natureza e cultura, no qual “uma não pode ser objeto de
apropriação ou incorporação com a outra” (HARAWAY, 2009, p.39), mas devem ser vistos
de forma relacional. Pensar de forma relacional significa, pensar humanos associado a
seus pares não-humanos, e cada um deles apresenta sentido apenas se visto de forma
conjugada (LATOUR, 2001).
Os ciborgues podem existir de diversas maneiras, seja de forma radical, através
de implantes que potencializam as atividades humanas 4, seja através da associação com
máquinas, as quais estão se tornando tão íntimas que fica difícil definir aonde inicia o
humano e termina a máquina (uso de aparatos tecnológicos). Assim, entendemos o
ciborgue como o resultado de qualquer relação entre humanos e não-humanos no atual
contexto tecnocientífico.
Desta forma, não faz sentido falarmos de humanos ou de não- humanos, mas sim
de híbridos, de ciborgues. Tomamos o ciborgue como figura síntese do discurso e das
práticas tecnocientíficas em geral, e, nesta direção, entendemos que o mesmo se firma
como uma expressiva dimensão do capitalismo tecnocientífico, servindo-nos também,
dentro dos objetivos deste trabalho, como horizonte epistemológico, devido ao potencial
analítico, crítico e construtivo deste conceito. Afirmamos isto porque o ciborgue nos
possibilita produzir denúncia e análise, bem como pensarmos a construção de um novo
estatuto através de uma severa crítica às dicotomias.
4 Como nos projetos de Kewin Warwick, no qual o pesquisador desenvolve formas de interação
direta entre indivíduos e tecnologias, na qual a interação seja profunda e permita tanto
movimentar aparelhos a distância, como receber sensações produzidas pelo objeto. Este
trabalho pode ser visto no sítio <http://www.kevinwarwick.com/index.asp>
A relação híbrida, pensada a partir da perspectiva de Latour (1994), também
significa analisar de forma reflexiva a própria condição dos objetos, dos não-humanos. Os
não-humanos, dentro da era do ciborgue, não são apenas objetos inertes que são
subjugados a vontade humana, mas são seres que possuem existência apenas se
colocados simetricamente frente aos indivíduos e sendo tão agentes quanto seus pares
humanos. Desta forma, a ação dos humanos e dos não-humanos não existe per se, mas
através de interrelação.
Assim, podemos pensar a produção científica como híbrida já que sua produção
passa necessariamente pela associação dos indivíduos com a tecnociência, constituindo
as tecnologias que serão apropriadas pela sociedade. Desta forma, o hibridismo ocorre
simetricamente nos laboratórios e na sociedade, na medida em que aquilo que é
desenvolvido pela ciência é fruto de hibridismo, e em um segundo momento, é apropriado
de forma híbrida pela sociedade. Seria difícil concebermos humanos desprovidos de
tecnologias,
sobretudo quando esta se complexifica, constituindo aglomerados
tecnológicos em um único aparelho, como é o caso dos computadores e seus softwares,
que tornam uma série de tarefas impossíveis sem a sua utilização.
Portanto, podemos verificar uma simetria entre a produção tecnocientífica dentro
dos laboratórios e a sociedade, no qual ciência e sociedade apresentam conexões
simétricas. Ao mesmo tempo em que concebemos a ciência como social (LATOUR,
1994, 2000, 2001), executamos uma verificação inversa na qual a sociedade também é
científica, articulando uma relação simétrica entre sociedade e ciência, sendo estas
promotoras da constituição de indivíduos híbridos, de ciborgues que mapeiam a realidade
social.
A técnica, dentro da sociedade da informação (CASTELLS, 1999), está ligada a
produção de conhecimento, de técnicas e artefatos científicos. Estes vínculos, elementos
constitutivos da tecnociência, permitem que estes se voltem para a natureza
ressignificando-a do ponto de vista científico (SANTOS, 1992), por um lado, e mesclandose aos indivíduos, de outro lado, constituindo híbridos que se ligam a uma diversidade de
elementos.
Dentro da era do ciborgue, natureza e cultura assumem uma nova dimensão, na
qual as linhas que definem os binômios são obscurecidas, formando misturas na qual
tanto a ciência quanto a natureza mesclam-se e são ressignificadas dentro de um
contexto hibrido, no qual o indivíduo enquanto agente e promotor de ações no mundo
(cidadão), acaba sofrendo uma série de consequências.
Desta foram, podemos verificar o “enorme impacto da tecnologia
contemporânea sobre o homem concreto (ao mesmo tempo como
produtor e como consumidor), sobre a natureza (efeitos ecológicos
alarmantes), sobre a sociedade e sua organização (ideologia
tecnocrática, pesadelo ou sonho paradisíaco de uma sociedade
cibernatizada) (…). (CASTORIADIS, 1987, p.294)
Assim, ressaltamos a figura do ciborgue como representativa da transição do
capitalismo, em um momento em que a tecnologia assume uma grande proeminência,
potencializando novas formas de relacionamento entre indivíduo e tecnologia, as quais se
orientam positivando mesclas entre indivíduos e máquinas.
O desenvolvimento da tecnociência, na busca de desenvolver novas tecnologias,
tem constituído campos do saber que trabalham através da ruptura de barreiras,
promovendo convergência entre tecnologias a fim de desenvolver novas tecnologias
(ECHEVERRIA, 2009). Estas tecnologias produzem um fenômeno de hibridismo em
relação ao conhecimento, visto que a própria questão da interdisciplinaridade acaba
sendo re-significada.
A interdisciplinaridade, marcada pela conjugação dos saberes dentro do contexto
de produção da tecnociência, e, sobretudo através de uma análise ampliada dos saberes
que aborde outros elementos frente à convergência das tecnologias, produz um
fenômeno no qual a mesma se amplia, pois foge do domínio dos saberes e encontra
outros elementos, constituindo uma “interdisciplinaridade ampliada”. Neste contexto,
Echeverria (2009), evoca a necessidade de se pensar a convergência entre as
tecnologias também de forma ampliada, olhando para a questão da produção de
conhecimentos com um olhar que ultrapasse a própria construção do conhecimento, e
seja hibrida de outros elementos fora dos laboratórios, como por exemplo os elementos
econômicos, políticos, sociais e culturais.
Tomamos estas convergências de saberes como impulsionadoras da tecnociência
contemporânea, pois produzem tecnologias híbridas de saberes antes separados, na
busca de superar as limitações colocadas pela fragmentação moderna. Neste contexto,
surgem as tecnologias que se associam com os indivíduos, mescla de info-nano-biocogno-tecnologia, as quais trazem consigo inúmeras potencialidades para o corpo
humano, que limitado através do isolamento com a técnica, vê sua constituição alterada e
ampliada através da conjugação com as tecnologias. “A tecnociência contemporânea
almeja ultrapassar todas as limitações biológicas ligadas à materialidade do corpo
humano, rude obstáculos orgânicos que restringem as potencialidades e obstáculos dos
homens.” (SIBILIA, 2002, p.49)
Através da convergência entre saberes constituindo hibridismo de saberes
acadêmicos com saberes sociais, em conjunto com a constituição de indivíduos híbridos,
podemos verificar uma série de misturas que acabam alterando a construção da
subjetividade. A tecnociência permite que nossa subjetividade abra-se “aos objetos
comuns que tecem num mesmo gesto simétrico a inteligência individual e a inteligência
coletiva” (LEVY, 1996, p.133), com influências que indo além do corpo físico, repercutem
nas maneiras de pensar, sentir e imaginar.
Desta forma, a tecnociência, ao construir os corpos, possibilita a conectividade
entre o mundo exterior e interior, possibilita que o corpo, enquanto “mistura imprecisa de
corpo e alma” 5 (SERRES, 2001, p20), misture-se as tecnologia produzindo consciência
de mundo ampliada. Nesta nova maneira de viver torna-se cada vez mais necessário
considerarmos a vida como resultado de circuitos tecnocientíficos, institucionais e
econômicos.
Em suma, o hibridismo produzido pela tecnociência traz alterações tanto na
produção científica, como na sociedade e na própria forma com a qual o indivíduo se
projeta no mundo, sendo um fenômeno multidimensional, e por isso, necessitando de
uma compreensão, orientada por estes novos conceitos e novas categorias, que de conta
de sua complexidade.
Conclusão
A partir de nossa análise sobre a construção da ciência e da produção de híbridos,
compreendemos que pensar o contexto de hibridismo tendo por base a figura/conceito do
ciborgue, evoca uma compreensão ampliada tanto das condições de produção e
apropriação pela sociedade das tecnologias, como também uma compreensão ampliada
dos indivíduos, híbridos em seus relacionamentos e suas ações.
5 Michel Serres, em sua obra Os Cinco Sentidos trabalha a questão do hibridismo de sentidos na
constituição da subjetividade, e desta forma, coloca como a alma a tomada de consciência
evocada pelo sentido, no qual o corpo se dobra sobre um ponto produzindo subjetividade. No
sentido do hibridismo, esta dobra pode ocorrer no corpo humano ou não-humano, na medida
em que nossos sentidos podem estar direcionados a um objeto imaterial, canalizando a nossa
subjetividade e produzindo convergências de sentidos humanos e não humanos, constituindo
uma subjetividade ampliada.
A produção tecnológica, ao ser pensada enquanto híbrida, necessita do
mapeamento de redes de actantes, na qual estejam presente atores humanos e nãohumanos que fazem parte do fazer científico. Salientamos que nesta rede, se realiza uma
mistura de saberes, informações, conhecimentos, interesses e poderes. Entendemos que
através desta imagem, ultrapassamos a visão moderna no que tange às limitações e
barreiras que foram sacralizadas pela mesma, e sob as quais torna-se também
impossível questionar o conhecimento científico.
A simetria proposta por Latour (1994, 2000, 2001) entre ciência e sociedade para
compreender a produção científica, torna-se necessária para compreender do outro lado
o próprio ator social, visto que este se encontra imerso às tecnologias que moldam seu
corpo físico, seus hábitos, sentimentos e práticas, interferindo diretamente na totalidade
da vida.
Desta forma compreender o ser humano torna-se uma tarefa complexa,
ultrapassando a unilateralidade promovida pelas fragmentações da ciência. A ciência que
fragmenta e mantém a visão moderna, é a mesma que impossibilita que tenhamos uma
visão ampliada sobre o homem. Embasando-nos em Edgar Morin, afirmamos que a falta
desta visão ampliada, coloca-nos uma idéia miserável de homem, podendo-se, como
conseqüência última, até mesmo eliminá-la.
Reafirmamos então, a necessidade de uma revisão profunda nas maneiras de
pensar, compreender e fazer ciência hoje, em um mundo marcado por novas
experiências e sensações provenientes do intenso grau de desenvolvimento das
tecnociências. Questionar divisões e fragmentações significa não cairmos em
reducionismos, ou seja, não descartarmos humanos e não-humanos, assim como não
tomá-los isolados, mas na dialética de suas profundas relações.
Pensarmos na própria constituição humana através do hibridismo e do conceito de
ciborgue, significa refletirmos, de um lado, sobre as novas possibilidades colocadas pelo
cenário tecnocientífico (potencializações produtivas das ações humanas), e de outro lado,
sobre as problemáticas socioculturais e sócio-políticas que resultam da “parte” humana,
ou seja, de corpos que se apresentam inertes frente ao avanço das novas tecnologias.
Porém salientamos que a compreensão desta dialética contemporânea passa por
uma revisão sobre a constituição da ciência, tornando-se a mesma reflexiva tanto em
seus valores como em suas conseqüências, na produção de compreensões ampliadas
que ao invés de reduzir o homem a uma mera parte, veja este enquanto ser complexo e
interligado as suas teias sociotécnicas.
É com base nestas idéias, que compreendemos a contradição-produtiva das
tecnologias híbridas para as ciências sociais, ou seja, estamos nos referindo aos desafios
epistemológicos
proporcionados
por
estas
tecnologias
para
uma
profunda
revisão/renovação das ciências sociais e humanas em um contexto pós-tradicional. Uma
revisão/renovação que valorize e se fundamente em práticas interdisciplinares,
efetivando-se através destas práticas uma visão ampliada das relações entre ciênciatecnologia-sociedade-cultura, e, portanto, uma visão ampliada da relação entre humanos
e não-humanos.
Somente através de uma visão ampliada, podemos reverter quadros de inércia
dos corpos, e desta forma, constituir indivíduos ativos, capazes de agir no mundo,
tornando-se o hibridismo não uma condição de associação na qual a
“parte
maquínica/não-humana”, domina a “parte humana”, mas uma condição na qual o homem
desenvolve suas competências em todas as dimensões a partir das potencialidades
tecnocientíficas.
Questionar divisões e fragmentações a partir das tecnologias híbridas significa
questionar o binômio natureza-cultura, que, se foi fundamental às ciências sociais e
humanas sob o estatuto da modernidade, torna-se insuficiente agora em um contexto
cuja compreensão e possibilidades dependem de olhares e práticas inter-relacionais,
complexas e indisciplinadas.
Colocamos nosso enfoque como um profundo desafio, pois sabemos que esta
empreitada não é simples. A ciência continua marcada por dogmas, colocando a
supremacia da razão frente aos objetos de estudo, o que inclui pensar o próprio ser
humano de forma racional e fria, dentro de uma cultura que baliza a apreensão através
de limites muito bem demarcados.
Neste sentido pensamos que romper com a ultra-especialização e com o
isolamento entre as ciências, re-significar o entendimento do senso comum, des-construir
a supremacia da ciência frente à sociedade, permitir-se ligações simétricas entre a
produção científica e o fazer cotidiano, tornam-se questões fundamentais para a
construção de conhecimentos e práticas reflexivas e efetivamente críticas, capazes de
pensar e dar conta dos limites, das possibilidades, e da complexidade do novo “humanonão humano”.
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