Dossiê CÂMARA MUNICIPAL

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Dossiê CÂMARA MUNICIPAL
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Dossiê CÂMARA MUNICIPAL
2
Revista História – ISSN 1983-0831
Laboratório de Estudos das Diferenças e Desigualdades Sociais.
Endereço: Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ)
Campus Francisco Negrão de Lima - Pavilhão João Lyra Filho Rua São
Francisco Xavier, 524 - 9° andar - Bloco E - Sala 06 - Rio de Janeiro.
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(Litografia de P. Bertichem).
Editores
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Luciano Rocha Pinto
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Conselho Consultivo
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REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014.
3
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Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Paranaguá (FAFIPAR)
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Universidade Federal Fluminense (UFF)
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Dossiê CÂMARA MUNICIPAL
4
Sumário
O discurso historiográfico
6
Sobre os poderes locais no Brasil Colônia/Império
(Apresentando o dossiê, tramando uma discussão)
Luciano Rocha Pinto
Dossiê Câmara Municipal:
Fontes, formação e historiografia do poder local no Brasil Colônia e Império
Poder local e arrecadação de impostos na América portuguesa
19
A administração de contratos pela Câmara Municipal de Olinda (1690-1727)
Breno Almeida Vaz Lisboa
Câmara Municipal de Vila Boa de Goiás
42
Controle sobre a vida e os espaços da cidade
Fernando Lobo Lemes
Correições e provimentos
69
A ação dos ouvidores régios junto às câmaras municipais
(Ouvidoria de Paranaguá – século XVIII)
Jonas Wilson Pegoraro
As câmaras em Minas Gerais no século XVIII
97
Entre enquadramentos administrativos e desventuras tributárias
Pablo Menezes e Oliveira
Câmaras e identidades regionais (século XVIII)
Denise Aparecida Soares de Moura
123
Comércio e câmaras. Regulamentação e vigilância
Thiago Alves Dias
150
A “Leal” Câmara da cidade de Mariana e as atas das sessões
175
A lei de organização municipal e a prática política dos camaristas
Kelly Eleutério Machado Oliveira
O bom governo da municipalidade
Notas sobre a Câmara Municipal do Recife e sua organização
para a administração da cidade (1829-1849)
Williams Andrade de Souza
REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014.
201
5
Contra o municipalismo incoerente e bárbaro
221
As câmaras municipais sob a ótica da legislação liberal oitocentista
Pablo de Oliveira Andrade
Cercado de inimigos
251
elite local e as relações escravistas em Pelotas (1832-1850)
Victor Gomes Monteiro
O triunfo da urna com o bacamarte
269
O conflito de 1852 em São José dos Pinhais
Luiz Adriano Gonçalves Borges
O ordenamento do espaço urbano na corte imperial
285
O caso dos “inconvenientes” quiosques frequentados por “gente grosseira”
(décadas de 1870-1880)
Juliana Teixeira Souza
Artigos
Estudos sobre prostituição
313
Uma revisão da bibliografia sobre o tema e sua inserção
no campo dos estudos de gênero
Amanda Gomes Pereira
História e gênero
334
Um estudo da condição feminina na cidade de Dom Aquino/ MT (1970-1990)
Lidiane Álvares Mendes
Luís Xavier de Jesus, de escravo a retornado
353
O “lugar” social dos africanos na Bahia do século XIX
Elaine Santos Falheiros
O figurino da colônia
377
Uma análise da sociedade colonial brasileira a partir da indumentária
Sara Raquel de Andrade Silva
Dossiê CÂMARA MUNICIPAL
6
O discurso historiográfico
Sobre os poderes locais no Brasil Colônia/Império
(Apresentando o dossiê, tramando uma discussão)
O discurso não tem apenas um sentido
ou uma verdade, mas uma história.
Michel Foucault
A historiografia que se debruça sobre as municipalidades ou que,
de alguma forma, a tangencia, pode ser dividida em três grupos
específicos. Tal divisão não deve ser tomada com rigidez. Não se trata de
um conjunto monolítico de categorizações hermeticamente arquitetadas.
São aproximações a partir da abordagem que os diversos autores
tramaram. No primeiro, formado por autores clássicos, em geral, da
primeira metade do século XX, a Câmara aparece como instituição de
menor importância nos quadros administrativos. Em primeiro plano o
papel das instituições centrais de governo, seguindo um padrão narrativo
de grandes explicações da formação do Brasil a partir de uma história de
longa duração.
O segundo grupo reúne trabalhos onde as câmaras municipais
emergem como objeto central das discussões. São produções que dialogam
com a História Social e que analisam uma documentação produzida no
âmbito local, atenta aos diferentes aspectos do cotidiano da cidade,
principalmente do Rio de Janeiro. Dentre seus interesses pode-se ver a
configuração do poder local, sua estrutura interna, as alianças e conflitos
com outras instâncias, notadamente o governo central e provincial. A
municipalidade aparece como um espaço de demanda e disputa, sujeito a
pressões e ao enfrentamento por parte dos diferentes grupos da cena
política. É uma historiografia que, mesmo compartilhando certas
características com os intérpretes clássicos da história do Brasil – como a
longa duração, enquanto procedimento de análise – distancia-se por eleger
a municipalidade como objeto principal de estudo e por forjar a noção de
autonomia como condição de entendimento do governo local no ultramar
em relação à metrópole.
REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014.
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Por fim, na trilha desta historiografia que se volta ao poder local,
estão trabalhos diversos que se ocupam dos grupos, cargos e funções dos
quadros camarários ou dos grupos específicos que se relacionavam com a
municipalidade. A partir de uma história social, mas, também econômica,
buscam, de modo geral, preencher as lacunas deixadas pelas pesquisas
anteriores. Os atores principais destas cenas discursivas são os indivíduos e
suas ocupações nos quadros administrativos da localidade.
Com forte ênfase na subordinação das municipalidades aos demais
órgãos de governo, hierarquicamente superiores, estão os autores clássicos.
Para Capistrano de Abreu, as câmaras municipais não passam de órgãos
administrativos sem muita relevância. Em Capítulos de História Colonial,
escrito entre 1906 e 1907, critica João Francisco Lisboa, que defendia
posição contrária, de não ter se dado o trabalho de “recorrer às fontes”. 1 A
formação de Capistrano se deu pós 1870, conforme José Carlos Reis, em um
ambiente determinista e cientificista. Dentre suas matrizes teóricas estão
Spencer, Darwin, Buckle, Ranke, Ratzel, Comte e outros, que pensavam a
história como mecanismo submetido a leis, autorregulado, passível de um
conhecimento objetivo.2 Naquele discurso não havia lugar para a
singularidade, para o descontínuo. Se fosse singular e descontínuo não
poderia ser histórico, pois, a história era uma grande continuidade de fatos
movidos por causas e efeitos constantes. Em carta a João Lúcio de Azevedo,
aos 25 de Janeiro de 1917, afirma: “cada vez me convenço mais que João
Francisco Lisboa falseou a história, dando-lhes uma importância que nunca
possuíram as municipalidades”.3
Caminho semelhante segue Raimundo Faoro em Os donos do poder,
de 1958.4 Precursor do uso da abordagem weberiana para entender o Brasil,
arquiteta uma construção “a-histórica” com um enfoque linear, sem levar
em consideração as mudanças temporais da colonização ao Estado Novo,
do Mestre de Avis à Getúlio Vargas. Busca demonstrar como o estamento
burocrático se mantém imutável, com a conservação da estrutura
patrimonial e a transformação do Estado governante, de aristocrático em
1
ABREU, Capistrano de. Capítulos de História Colonial, 1500-1800. 7a ed. Belo Horizonte: Itatiaia;
São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1988, p. 177.
2
REIS, José Carlos. Capistrano de Abreu (1907): O surgimento de um povo novo: o povo
brasileiro. Rev. Hist., São Paulo, n. 138, jul. 1998. Acesso: 4/1/2012.
3
ABREU, Capistrano de. Op. cit., nota no 98.
4
FAORO, Raimundo. Os donos do poder: formação do patronato político brasileiro. 3a ed. Porto
Alegre, Globo, 2001.
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8
burocrático. Os conselhos, por sua vez, aparecem como um “elo” –
conforme expressão do autor 5 – naquela corrente de controle do Estado
luso. Os mais fortes são as Capitanias e o Governo Geral. As atribuições
das câmaras eram amplas, mas sua atuação estaria ligada a casos de menor
importância. Maior poder tiveram no início da colonização.
Em Formação do Brasil Contemporâneo, de 1942,6 atravessado pelo
pensamento dialético marxista, Caio Prado Jr. analisa a história colonial
como chave de compreensão do presente, de suas injustiças e contradições.
Sua perspectiva passa pelo entender o presente na apreensão do passado,
para só então planejar o futuro como partes de um processo de longa
duração.7 A administração colonial, por sua vez, estava marcada pela
“confusão de poderes e atribuições”.8 Em seu capítulo Administração, faz a
distinção entre os diversos cargos e suas atribuições. As câmaras emergem
como departamentos do executivo, mas, com uma singular relevância que
pode ser identificada no trato de matérias que nada tem com os assuntos
locais, como, por exemplo, a nomeação dos fiscais da Intendência do Ouro.
Afirma sua autoridade em seus termos e descreve, inclusive, sua
competência em destituir os governadores. Destaca, ainda, sua participação
decisiva para o sucesso da constitucionalização, independência e fundação
do Império, sendo o único órgão da administração que sobreviveu a
derrocada geral das instituições coloniais. 9
Para Oliveira Viana, a administração colonial seria uma máquina
complexa e que funcionava mal. Influenciado pela escola sociológica de
Pierre Guillaume-Frederic Le Pay, pela antropologia física de G. Vacher de
Lapouge e pelo evolucionismo positivista de Sylvio Romero, arquiteta um
discurso dualista, onde o Brasil legal se opõe ao real. Seguindo aqueles
modelos interpretativos, principalmente a escola de Le Pay, utiliza-se de
um método que se volta às “fontes primárias” – conforme suas palavras no
Addendum à 4ª edição de Populações Meridionais do Brasil –10 das instituições
5
Ibidem, p. 212.
PRADO Jr. Caio. Formação do Brasil Contemporâneo. – 23ª ed. – 7a reimpressão, São Paulo:
Brasiliense, 1942.
7
RICUPERO, Bernardo. Sete loções sobre as interpretações do Brasil. São Paulo: Alameda, 2008, p.
138.
8
PRADO Jr. Caio. Op. cit., p. 313.
9
Ibidem, p. 316-319.
10
VIANA, Oliveira.Populações Meridionais do Brasil. In: Interpretes do Brasil. Rio de Janeiro: Nova
Aguilar, 2a ed. 2002, pp. 1174-1175.
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REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014.
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políticas, apontando para a “força colossal” das municipalidades. 11 Apesar
disso, aproxima-se de Faoro ao considerar que a aristocracia da terra seria
incapaz de promover uma unificação nacional, uma vez que não houve
unanimidade entre os diversos poderes locais – ou entre os caudilhos,
conforme expressão do autor – no processo de emancipação. Escrito entre
1916 e 1918 e publicado em 1920, tem como pano de fundo a crítica à
experiência republicana e a reorientação da vida política do país.
Sérgio Buarque de Holanda, em O Brasil Monárquico: o processo de
emancipação, de 1962, destaca o papel das câmaras municipais como
“cabeças do povo”, no princípio da colonização e de “primeiros governos
do mundo”, conforme expressão que traz de Manuel Guedes Aranha,
procurador do Estado do Maranhão em 1654 e de “representantes da
pessoa de sua Majestade”, segundo a provisão de 18 de junho de 1677. 12 No
entanto, em subtítulo denominado a aniquilação dos corpos municipais,
considera que a reforma liberal, de final dos anos 1820 e primeira metade
de 1830, anulou seu campo de ação subordinando-as ao Presidente da
Província e seu Conselho.13
Na tessitura de uma história político-administrativa mais
preocupada com as instituições centrais, as municipalidades aparecem
muito timidamente uma vez que os autores dedicam pouca atenção às suas
especificidades. Segundo essas matrizes discursivas, estas seriam
instituições de menor relevância, com uma tímida participação decisória no
período imperial. Uma historiografia posterior elegerá as câmaras
municipais como objeto principal de suas investigações. Uma nova
arquitetura se trama em novo modelo historiográfico.
Charles R. Boxer, em O Império colonial português (1415-1825),
publicado em 1969, tem em comum com os clássicos da historiografia
brasileira, a preocupação com as instituições de governo onde o Brasil é
parte de uma lógica maior: a expansão marítima portuguesa. No entanto, é
um dos primeiros a considerar, seguindo Edmundo Zenha, a autonomia
das câmaras municipais. Em seu trabalho, as câmaras do Ultramar surgem,
no projeto colonizador, como uma das instituições mais importantes ao
11
Ibidem, p. 1038.
HOLANDA, Sérgio Buarque (Dir.). História geral da civilização brasileira: 1 – O processo de
emancipação. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1993, pp. 24-25.
13
Ibidem.
12
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lado das Santas Casas de Misericórdia. 14 Estavam espalhadas por todo
império, contribuindo com sua uniformidade, mas, também com sua
manutenção, estabilidade, unidade e continuidade. Eram compostas por
homens da terra e suas atribuições eram amplas. Em seu relato o elemento
policial estaria ancorado à noção de governo. 15 Boxer contribui, não só para
pensar a municipalidade a partir da noção de autonomia, mas, aponta para
uma prática de governo absolutamente singular.
É importante destacar que polícia era um dispositivo político
composto de procedimentos diversos. Chamava-se de polícia uma forma
de associação regida por uma autoridade pública, como também o conjunto
de atos coordenados por uma autoridade instituída, seja para fazer a
autoridade do Estado crescer, seja para manter a boa ordem social. Tratavase, portanto, de uma ação de governo, de um ato de condução dos
indivíduos e da população, de um conjunto de procedimentos associados à
noção de “reger bem” ou estabelecer uma ordem. Policiar, portanto, é uma
noção que se aproxima da de governar. A palavra polícia, conforme estudo
de Robert M. Pechman, possui dois sentidos etimológicos. Do latim, politio,
polir, aperfeiçoar e assear. Do grego, polites (cidadão) e polis (cidade),
aponta para governo e boa administração, segurança, salubridade e
subsistência.16 Seus domínios atravessam a preocupação com a moralidade,
a religião, a saúde, o abastecimento, as estradas, as pontes, os caminhos, a
segurança pública, o comércio, as fábricas, os empregados domésticos, as
pessoas com dificuldades e os pobres. Governar a população e integrar os
indivíduos a uma totalidade normalizada era objetivo das câmaras em seus
termos.
Outro trabalho importante para a compreensão da instituição é A
cidade e o Império, de Maria Fernanda Bicalho. 17 Uma extensa documentação
consultada em arquivos brasileiros, portugueses e franceses ancora sua
analise das relações político-estratégicas entre a cidade do Rio de Janeiro e
a coroa portuguesa no século XIX. Problematiza os acontecimentos do
cotidiano administrativo e ilumina as funções rotineiras da
municipalidade, por vezes, atravessadas pela precariedade dos meios à sua
14
BOXER, Charles R. O Império colonial português (1415-1825). Lisboa: Edições 70, 1981, p. 305.
Ibidem, p. 308.
16
PECHMAN, Robert Moses. Cidades estreitamente vigiadas: o detetive e o urbanista. Rio de Janeiro:
Casa da Palavra, 2002, p. 69.
17
A publicação, de 2003, é o resultado de sua tese de doutorado, defendida na USP em 1997.
15
REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014.
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disposição e pelas tensões sociais entre funcionários, colonos e, até mesmo,
escravos.
Se os intérpretes clássicos abordavam os conselhos como uma parte
menor de um todo mais importante, esses trabalhos adentram a instituição,
apontam para sua capacidade de gestão e adaptação. Para Maria Fernanda
Bicalho,18 mais distantes geograficamente do centro do poder, eram as
câmaras o poder oficial acessível, visível e presente que acolhia as
demandas dos colonos. A distância entre o poder central e as terras que
colonizava aparece como um elemento de fragilidade da Metrópole. Em As
Câmaras Ultramarinas e o Governo do Império,19 arquiteta contornos
característicos de instituições fundamentais na manutenção do Império. O
poder local era, então, a ligação entre dois mundos: o centro metropolitano
e o local colonial. O rei esperava que as câmaras municipais fossem seus
“braços” no projeto colonizador e os colonos a reconheciam como a
autoridade de fato.
Bicalho aponta para algumas honrarias como, por exemplo, o
decreto de 6 de julho de 1647, no qual Dom João IV concede o título de Leal
à cidade do Rio de Janeiro e amplia as prerrogativas da Câmara. Assim,
poderia fazer às vezes de Capitão-Mor, assumindo as funções militares, na
ausência do governador e do Alcaide-Mor.20 Seus respectivos cidadãos
passavam a gozar dos mesmos privilégios e prerrogativas de fidalguia
daquela carta régia concedida aos cidadãos do Porto em 1 o de junho de
1490. Ficavam protegidos de certos constrangimentos, como o
encarceramento sem homenagens, a não obrigatoriedade de servir em
guerras ou o confisco de seus bens. 21 Cidadania, neste cenário, refere-se a
indivíduos com determinado número de bens e outorgados do direito de
18
BICALHO, Maria Fernanda. A cidade e o império: o Rio de Janeiro no século XVIII. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2003.
19
Idem. “As Câmaras ultramarinas e o governo do Império”.In FRAGOSO, João; BICALHO, Maria
Fernanda; GOUVÊA, Maria de Fátima (Orgs.). O Antigo Regime nos Trópicos: a dinâmica imperial
portuguesa (séculos XVI-XVIII).Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.
20
Ibidem, p. 198.
21
Segundo a Carta Régia de 1º de junho de 1490, aqueles cidadãos não poderiam ser “metidos a
tormentos por nenhuns malefícios que tenham feito”; não poderiam “ser presos por nenhum crimes,
somente sobre suas homenagens (...) e que possam trazer e tragam quais e quantas armas lhes prouver
de noite e de dia”; também não deveriam ser “constrangidos para haverem de servir em guerras, nem
outras idas por mar, nem por terra (...) nem lhes tomem suas casas de moradas, adegas, nem cavalariças,
nem suas bestas de sela nem de albarda, nem outra nenhuma cousa do seu contra suas vontades.” AHU,
Rio de Janeiro, Documentos Catalogados por Castro e Almeida, N. 334. In: Ibidem, nota 18.
Dossiê CÂMARA MUNICIPAL
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participação política no governo local, que recebiam privilégios, honras e
mercês do rei de Portugal. Tratava-se de uma sociedade organizada e
hierarquizada nos moldes do Antigo Regime. 22
Outros trabalhos, também da década de 1990, contribuem para
consolidar outra posição das municipalidades nos quadros do Brasil
colonial e, posteriormente, no Império do Brasil. Em 1998 Maria de Fátima
Silva Gouvêa publica Redes de Poder na América Portuguesa: o caso dos homens
bons do Rio de Janeiro (ca. 1790-1822).23 Analisa a dinâmica do poder local e
suas redes no interior da sociedade colonial, na virada do século XVIII para
o XIX. O Rio de Janeiro é, por sua vez, focalizado como espaço privilegiado
da gênese do Brasil independente, processo que se inicia com a chegada da
família real. Neste sentido, Gouvêa discute o processo de representação e
participação política da Câmara, evidenciando a formação de uma elite
fragmentada, mas, com circuitos de solidariedade que se consolidaram ao
longo do processo de emancipação. Dentre suas principais referências estão
Maria de Lourdes Viana Lyra e Evaldo Cabral de Mello. 24 A noção de
“sentimento de pertencimento” cunhada por Mello, como elemento
motivador dos homens de governança do Rio de Janeiro atravessa seu
trabalho e aponta para a participação dos homens da terra no processo de
emancipação.
A tese de doutorado de Gouvêa, apresentada em 1989 na
University College de Londres, e publicada em 2008 com o título de O
império das províncias também contribuiu com a trama daqueles
personagens na cena política, principalmente nos anos que se seguiram à
emancipação. Diferente dos autores clássicos que preconizam a legislação
na década de 1820 como opressiva e limitadora da ação dos municípios, a
autora afirma “um razoável nível de autonomia local”.25 A lei de 1828
aboliu sua capacidade de fazer justiça, mas, reforçou seu caráter policial e
disciplinar.
Idem. “O que significa ser cidadão nos tempos coloniais”. In:ABREE, Marilia; SOIHET, Rachel.
Ensino de História: conceitos, temáticas e metodologia. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, FAPERJ,
2001, p. 139.
23
GOUVÊA, Maria de Fátima Silva. “Redes de poder na América Portuguesa: O caso dos homens bons
do Rio de Janeiro, ca. 1790-1822”. Rev. bras. Hist., 1998, vol.18, no.36, p.297-330. ISSN 0102-0188.
nota 19.
24
LYRA, Maria de Lourdes Viana. A utopia do poderoso império. Portugal e Brasil: bastidores da
política – 1798-1822. Rio de Janeiro: Sette Letras, 1994. MELLO, Evaldo Cabral de. A fronda dos
Mozambos. Nobres contra mascates. Pernambuco (1666-1715). São Paulo: Cia. Das Letras, 1995.
25
GOUVÊA, Maria de Fátima Silva. O Império das Províncias: Rio de Janeiro, 1822-1889. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2008, p. 22.
22
REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014.
13
O trabalho de Iara Lis Carvalho Souza, reforça ainda mais a
condição de autonomia dos poderes locais acentuando sua participação no
processo de independência política. Para a autora, D. Pedro apoiou-se nas
Câmaras para promover a emancipação, em curso desde a chegada da
família real. Seus trabalhos – A adesão das Câmaras e a figura do
Imperador,26em 1998, e Pátria Coroada: o Brasil como corpo político autônomo
(1780-1831),27 publicado no ano seguinte – procuram explicar como o
imperador, baseado naquela antiga relação de apoio mútuo entre os
poderes locais e central, recorreu às câmaras com o objetivo de legitimar
sua soberania. A autoridade tradicional das elites da terra funcionaria,
então, como elemento de estabilidade no novo Império. A antiguidade das
câmaras e seu caráter mediador entre os interesses locais e reais
fortaleceriam a figura do imperador diante da população que sentia o
poder das câmaras muito mais próximo e acessível. Dialoga os diversos
intérpretes do Brasil com uma extensa documentação pesquisada no Brasil
e em Portugal. A aproximação que faz da Câmara carioca à figura de D.
Pedro, tramando uma relação complexa de interesses, reforça o olhar em
direção aos arranjos e adaptações cotidianas. O governo da cidade passava
pela prática administrativa da Câmara Municipal e seu lugar de fala
encontra reconhecimento na população, mas, também, nos demais homens
de governança.
Assim como Maria de Fátima Silva Gouvêa, Iara Lis tangencia a lei
de 1º de outubro de 1828. O Regimento foi analisado pelos autores clássicos
como falência das municipalidades. A historiografia da década de 1990, por
sua vez, considera a Câmara como instituição fundamental para a
administração da cidade e sobre ela deposita parte significativa da vitória
da emancipação e do constitucionalismo. De forma que o Regimento para
as municipalidades imperiais não informa o esgotamento, mas, a
ressignificação de sua estrutura e atribuições. Promulgada por D. Pedro,
faz parte de um cenário reformista liberal que se produziu após a
emancipação política e se estendeu até a década seguinte. O recém-criado
Império do Brasil produziu uma legislação que, além de reforçar sua
autonomia, mitigasse as desordens internas, produzisse a organização
SOUZA, Iara Lis Carvalho. “A adesão das Câmaras e a figura do Imperador”. Rev. Bras. Hist., 1998
vol.18, no.36 pp. 367-394. ISSN 0102-0188.
27
Idem. Pátria Coroada: o Brasil como corpo político autônomo (1780-1831). São Paulo: Fundação
Editora da Unesp, 1999, pp. 143-146.
26
Dossiê CÂMARA MUNICIPAL
14
necessária à sua reiteração temporal e sufocasse os resquícios coloniais. A
base teórica para um novo pensamento político emergiu de um tipo
específico de poder/saber: o liberalismo.
Para compreender essa ruptura e o lugar da Câmara Municipal
naquele cenário, um conjunto de pesquisas lançadas a partir do ano 2000
problematizam as funções camarárias em suas pesquisas. Destaco o estudo
de Arno e Maria José Wehling, de 2004, Direito e Justiça no Brasil Colonial.
Analisam a inserção da justiça na sociedade colonial por meio da atuação
do Tribunal da Relação do Rio de Janeiro e seu desenvolvimento na
transição do Antigo Regime. O trabalho, dedica dois capítulos, na primeira
das cinco partes, à atuação dos juízes não letrados da municipalidade e ao
juiz de fora, problematizando suas práticas e relações institucionais. Neste
sentido, pontua o perfil daqueles homens bons, a hierarquia do judiciário,
seus cargos e atribuições. Dialoga com António Manuel Hespanha e Paolo
Grossi, adota procedimentos metodológicos da história social, da história
do direito e da história política, informada por René Rémond e Pierre
Rossanvallon.
Até as reformas políticas e institucionais liberais, promovidas nas
décadas de 1820 e 30, a justiça podia ser dividida em justiça real diretamente
exercida e justiça concedida.28 A primeira é a mais conhecida e estudada,
compreendendo as áreas criminal e cível, conforme o costume no Antigo
Regime, que incluía tanto os tribunais de primeira, como os de segunda
instância. Hierarquicamente fazia parte da primeira instância os juízes não
letrados da localidade, como os juízes ordinários ou o juiz de fora e, acima
deles, os ouvidores. Os Tribunais da Relação correspondiam à segunda
instância e consistiam em uma corte de apelação. Quem se sentisse
prejudicado, por alguma decisão daqueles juízes, poderia recorrer à
Relação por meio de apelações ou agravos.29 O magistrado do Tribunal da
Relação era o desembargador. O governador da capitania – no caso do Rio
de Janeiro, após 1763, o Vice-rei do Estado do Brasil – presidia o tribunal,
sendo substituído pelo chanceler nas suas ausências. Acima da Relação
encontrava-se a Casa da Suplicação, última instância para os recursos.
WEHLING, Arno e Maria José. Direito e Justiça no Brasil Colonial – O Tribunal da Relação do Rio
de Janeiro (1751-1808). Rio de Janeiro: Renovar, 2004,p. 37.
29
“Desde a Idade Média a apelação tinha o caráter de recurso contra a sentença definitiva dada por um
juiz. Já o agravo consistia em reação ao despacho de juiz contrário ao interesse da parte, mas sem o
caráter de sentença definitiva. Ambos os instrumentos recursais mantém, na tradição jurídica lusobrasileira, estas características até o presente” (Ibidem,p. 83-84).
28
REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014.
15
A justiça concedida, por sua vez, era exercida pelos cidadãos sem
formação jurídica que atuavam, como o próprio nome indica, por meio de
uma concessão. Havia uma delegação para seu exercício e pode ser vista na
justiça municipal exercida pelo juiz de vintena, o juiz almotacé, o juiz dos
órfãos e os juízes ordinários, posteriormente, na década liberal, o juiz de
paz.30 A justiça concedida – aplicada pelas câmaras municipais – foi a mais
constante em todo período colonial. Conforme comentários à atividade
judicial dos camarários que Cândido Mendes de Almeida faz nas
Ordenações Filipinas, “eram juízes independentes da realeza e a legislação
que executavam estava fora do alcance do poder real, e só o costume podia
alterá-la”.31 Essa afirmação é repetida por Oswaldo Rodrigues Cabral,
Aurelino Leal e Rodolfo Garcia.32 Há dois campos de ação da justiça
concedida: o das povoações ou localidades mais afastadas, onde atuava o
juiz de vintena e os termos ou municípios, com os juízes ordinários e juiz
de fora. Acima deles, ainda correspondendo à primeira instância da justiça,
havia os ouvidores, nas comarcas33 e o ouvidor-geral, no Governo-geral.
Há outros autores, ainda, que estudaram grupos específicos que
passaram a ocupar cargos e funções na Câmara Municipal ou que se
relacionavam por dividir atribuições. É o caso, por exemplo, dos negociantes
de Grosso trato, que após a chegada da família real passaram a ocupar os
quadros da vereança. Assim, a tese de doutorado de Jupiracy Affonso Rego
Rossato, Negociantes de Grosso Trato e a Câmara Municipal da Cidade do Rio de
Janeiro: estabelecendo trajetórias de poder (1808-1830)34 identifica a atuação do
grupo dos negociantes ligados ao comercio de africanos. Rossato apresenta
a atuação da Câmara, o modo como foi se apropriando dos espaços, e
legislando, a partir da lei de 1828 – o Regimento das Câmaras Municipais do
30
Antes de Lei de 1828 as atribuições das câmaras estavam definidas nas Ordenações Filipinas, Livro I, título 65.
ALMEIDA, Cândido Mendes. Ordenações Filipinas. Comentadas por Cândico Mendes de almeida
(Volume 1).Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1985, p. XXIX.
32
Cf. CABRAL, Oswaldo Rodrigues. Organização das justiças na colônia e no Império e a história da
comarca de Laguna. Porto Alegre: EGST, 1955, p. 15-16. LEAL, Aurelino. “História Judiciária”.In:
Dicionário do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (Volume 1).Rio de Janeiro: Imprensa
Nacional, 1922, pp. 1107ss. GARCIA, Rodolfo. Ensaio sobre a história política e administrativa do
Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio, 1956, p. 95.
33
No século XVIII cada capitania possuía apenas uma comarca, exceto Minas Gerais e Bahia, com
quatro comarcas, e São Paulo e Pernambuco com três. Cf. PRADO JR., Caio. Op. cit., p. 306.
34
ROSSATO, Jupiacy Affonso Rego. Os Negociantes de Grosso Trato e a Câmara Municipal do Rio de
Janeiro: estabelecendo trajetórias de poder. Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro,
2006 (Tese de doutorado).
31
Dossiê CÂMARA MUNICIPAL
16
Império – inclusive com posturas voltadas à fiscalização por meio de ações
policiais. Acentua o papel da Intendência Geral da Polícia da Corte e do
Império do Brasil a quem cabia fiscalizar as obras, abastecer a cidade,
investigar crimes e vigiar a população, conforme seu alvará de criação de 5
de abril de 1808. Seu objetivo era manter a ordem e defender os interesses
dos comerciantes locais e proprietários de terras – muitos destes
integrantes da vereança – mantendo dentro de limites rígidos a população
negra, escrava ou liberta e os brancos pobres. Para Rossato, a partir de
1825, o novo intendente geral da polícia, Francisco Alberto Teixeira
Aragão, intensificava o controle social na cidade, através de uma série de
regulamentos policiais internos, que incluía repressão violenta e um toque
de recolher a ser seguido por toda a população. 35A autora pondera que as
agitações ocorridas entre “portugueses” e “brasileiros” depois da
independência, e que durou até o início da década de 1830, pode ter
desgastado a imagem da Intendência de Polícia, devido à agressividade de
sua atuação. A partir daí cresce a autoridade policial da Câmara Municipal,
no caso do Rio de Janeiro, que procura restringir as violações de ordem
pública, como bebedeiras, jogos, prostituição, vozerios e desordens
diversas. No Império do Brasil, esta função ficava a cargo dos guardas
municipais e dos fiscais da Câmara.
Outra função que aparece junto à Câmara Municipal ou a seu
serviço é o médico-higienista. No final da década de 1970, em plena
efervescência da História Social e do sucesso historiográfico de E. P.
Thompson, um filósofo e, em seguida, um psiquiatra publicavam dois
trabalhos de história, explorando temas como as políticas de saúde pública,
as instituições médicas e a organização do espaço público a partir de
medidas higienistas. O primeiro foi Danação da norma, de Roberto
Machado, Ângela Loureiro, Rogério Luz, Kátia Muricy; 36 e o outro de
Jurandir Freire Costa, Ordem médica e norma familiar,37 respectivamente,
publicados em 1978 e 1979.
Jurandir Freire Costa analisa o papel da medicina na normatização
e disciplinarização dos corpos no espaço urbano, controlando o
comportamento individual e familiar. Seu olhar sobre o período regencial
permite identificar a atuação da medicina social ou higienista, que se
Ibidem, p. 28-29.
MACHADO, Roberto; LOUREIRO, Ângela; LUZ, Rogério; MURICY, Kátia. Danação da norma: a
medicina social e constituição da psiquiatria no Brasil. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1978.
37
COSTA, Jurandir Freire. Ordem Médica e a norma familiar. Edições Graal, 1979.
35
36
REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014.
17
apossou do espaço urbano. Valendo-se dos altos índices de mortalidade
infantil, das precárias condições de saúde dos adultos, a higiene conseguiu
impor seus preceitos sanitários. Por seu intermédio, buscava-se exterminar
a desordem dos velhos hábitos coloniais.38 Os pobres e os escravos
compunham a “gentalha” e só vinham à cena como exemplo de antinorma.
Em Danação da Norma, Machado considera que a medicina social
aparece aliada às práticas de governo. Torna-se um instrumento de poder
que normatiza as diferentes instituições da sociedade brasileira. No caso
específico do Rio de Janeiro, o médico passa a agir como uma espécie de
agente policial, identificando se as doenças provêm de um comportamento
social inadequado.39 A partir de 1830, a medicina passa a ser tema político
no Brasil que adota medidas semelhantes aos países europeus. Os próprios
médicos, organizados um ano antes na Sociedade de Medicina e Cirurgia do
Rio de Janeiro, começam a se envolver em questões políticas. As câmaras
municipais geriam as questões da saúde pública, o que era objeto de crítica
dos membros da Sociedade de Medicina. Como instrumento de pressão,
argumentavam em favor de leis que possibilitassem o desenvolvimento de
políticas consideradas “civilizatórias”. Os médicos criticavam os
vereadores e suas decisões sobre a salubridade urbana. Não demorou
muito passou a informar à Câmara Municipal práticas de salubridade
urbana.
Os três grupos elencados apontaram caminhos e suscitaram
inquietações. Outros caminhos são possíveis. Neste sentido, a Revista
História coloca à disposição, da comunidade acadêmica e dos amantes da
História, este dossiê que problematiza o poder local e suas práticas de
governo ao longo dos períodos colonial e imperial. Mais que dar
visibilidade àquele espaço administrativo – enquanto lugar de ordem – e a
seus membros – enquanto sujeitos de fala – pretendemos propiciar o
diálogo, revisar o debate historiográfico e aprofundar as reflexões sobre o
governo da cidade. Experimentamos novos significados para as
municipalidades, como instituições dotadas de dinâmica e interesses
específicos, espaços de aprendizado e deliberação política. Tramamos um
espaço onde novos olhares, sobre temporalidades distintas e lugares
específicos – como Recife, Olinda, Goiás, Mariana, Rio de Janeiro,
38
39
Ibidem, p. 12.
MACHADO, Roberto; LOUREIRO, Ângela; LUZ, Rogério; MURICY, Kátia. Op. cit., pp. 106-122.
Dossiê CÂMARA MUNICIPAL
18
Paranaguá, São José dos Pinhais, Pelotas... – permitem repensar as
perspectivas de análise das câmaras municipais e de sua ação cotidiana
tanto no Brasil colônia, quanto no Brasil Império.
Luciano Rocha Pinto
Editor Revista História
LEDDES-UERJ
REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014.
19
Poder local e arrecadação de impostos na América portuguesa
A administração de contratos pela Câmara Municipal de Olinda
(1690-1727)
Breno Almeida Vaz Lisboa 1
1Resumo:
A Câmara Municipal de Olinda era
responsável por arrecadar uma série de impostos em
nome da Coroa portuguesa, utilizando-se para isso do
sistema de arrematação de contratos. Era sobretudo a
partir das arrematações que essa câmara captava
recursos para dar conta dos seus principais
compromissos financeiros que eram bastante
avultados. Ao mesmo tempo também percebemos o
quanto a administração desses recursos trazia para os
membros da câmara a possibilidade de manejar o
dinheiro camarário para fins privados. Percebendo
essa e outras situações a Coroa portuguesa resolve
depois de uma série de ponderações retirar a
administração dos contratos pela câmara em 1727.
Palavras-chave: Câmara de Olinda. Administração de
contratos. Impostos.
Abstract: The Municipality of Olinda was responsible
for raising a number of taxes on behalf of the
Portuguese crown, using this system for auctioning
contracts. Was mainly from arrematações this camera
captured resources to account for its major financial
commitments which were quite substantial. At the
same time we also realize how the management of
these resources brought to the chamber members the
ability to handle money camarário for private
purposes. Realizing this and other situations solves
the Portuguese crown after a series of weights
withdraw the administration of contracts by the
council in 1727.
Keywords: Town of Olinda. Contract administration.
Taxes.
1
Doutorando em História Social pela Universidade Federal Fluminense.
Dossiê CÂMARA MUNICIPAL
20
U
ma das funções das câmaras era gerir o patrimônio da Coroa. Para
isso, arrecadavam impostos para assim utilizar estes recursos nas
suas obrigações financeiras. Variavam bastante os tipos de
impostos geridos pelas câmaras, mas, em geral, os tributos mais
importantes como o Dízimo e a Dízima da Alfândega eram administrados
diretamente pela Fazenda Real através da provedoria. Já as arrecadações
que competiam às câmaras eram arrendadas a particulares, através do
sistema de arrematação de contratos, onde em hasta pública os contratos
eram arrematados ao contratador que desse o maior lance.
Para as câmaras que administravam contratos importantes, as
rendas advindas da arrematação eram parte importante na formação do
seu patrimônio. Uma série de pagamentos era feita a partir de consignações
desses contratos, de modo que a renda era direcionada para um pagamento
específico. Assim, muitas vezes era através da administração dessas rendas
que as câmaras conseguiam dar conta dos seus principais compromissos
financeiros. Para a Câmara de Olinda, a administração de contratos era de
importância vital na formação das rendas do conselho. Apesar de não
dispormos de informações precisas sobre as rendas da câmara, percebe-se a
importância dos contratos pelo fato de as despesas mais volumosas serem
pagas a partir das rendas desses contratos. Some-se a isso o fato de que
quando a câmara queixava-se da falta de recursos justificava-se sempre
pelas baixas nos contratos que administrava.
A administração desses contratos durou até 1727, quando a Coroa
resolve tirar da Câmara de Olinda a prerrogativa de arrecadar impostos,
passando-se a administrá-los e arrematá-los através da provedoria. É
interessante observar que essa perda da administração dos contratos não
ocorreu só em Olinda. Na verdade, a partir da primeira década do século
XVIII várias câmaras da América portuguesa perderam tal prerrogativa,
em geral devido à má gestão dos recursos arrecadados. Apesar do caso da
Câmara de Olinda ser bastante específico e particular, podemos enquadrálo entre as ações gerais da Coroa no sentido de uma maior interferência nos
poderes locais, tentando reduzir a autonomia da instituição. Essas ações
vão desde a criação do cargo de juiz de fora (ofício de nomeação régia e
que atuava como presidente das câmaras) em fins do século XVII até a
questão, que presentemente examinamos, da interferência na gestão dos
recursos administrados pelas câmaras.
Na capitania da Paraíba bem cedo se começou a tirar da câmara a
administração de contratos. Em 1705, o contrato do subsídio do açúcar que
era administrado pela Câmara da cidade da Paraíba desde 1665, passava
REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014.
21
para as mãos da Coroa. Neste caso, bem diferente de outros que veremos a
seguir, a transferência foi feita por solicitação da própria câmara, que
objetivava, segundo Vergeti de Menezes, manter o recebimento do aluguel
da balança que pesava o açúcar e deixar os outros ônus da cobrança do
tributo para a Fazenda Real.2 Já em relação ao contrato do subsídio das
carnes, as coisas se passaram de forma diferente. A Coroa vinha
suspeitando de descaminhos na administração deste contrato, pois o
mesmo aparentava estar subavaliado. Em decorrência disso, resolve-se em
1732 retirar da câmara esta administração, provocando protestos por parte
da instituição que pedia o retorno do contrato às suas mãos, já que era
parte importante de suas rendas. Com a administração do contrato pela
Fazenda Real pareciam-se confirmar as suspeitas da Coroa sobre
descaminhos e má gestão de recursos pelo Conselho, pois no primeiro ano
sob o controle real o valor do contrato chegou a 40% acima do que se
arrematava antes.3
Em Itamaracá a câmara também perdeu a prerrogativa de
administrar os impostos. Os contratos do subsídio do açúcar e do tabaco
passaram para a provedoria da capitania em 1728 em decorrência da má
administração desses contratos pela municipalidade de Goiana. 4 Com o
contrato do subsídio das carnes também houve problemas. O governador
de Pernambuco, Duarte Sodré Pereira, em carta ao rei comentava que as
rendas deste contrato eram má administradas pela câmara, gerando
descaminhos para a Fazenda Real. Nesse sentido, afirmava que “os
vereadores fazem várias despesas sem ordem de Vossa Majestade dando
propinas e recebendo-as a seu arbítrio e outros desmanchos semelhantes”.5
Como resposta às prováveis irregularidades, a Coroa decide passar
também a administração do contrato do subsídio das carnes para a
2MENEZES,
Mozart Vergetti de. Colonialismo em ação:Fiscalismo economia e sociedade na
Paraíba (1647-1755). Tese de Doutorado. São Paulo: USP, 2005, p. 125.
3 Ibidem, pp. 132-138.
4 Carta do governado da capitania de Pernambuco, Duarte Sodré Pereira Tibão, ao rei D. João
V, sobre o contrato do subsídio do açúcar e tabaco que administrava a câmara de Itamaracá e
passou para a Provedoria da Fazenda Real, como fonte de pagamento dos soldos da guarnição
da fortaleza de Santa Cruz e para as obras do forte de Cabedelo, e os contratos que ainda
administra a mesma câmara. 26 de maio de 1726. AHU_ACL_CU_015, Cx. 38. D. 3435;
BARBALHO, Luciana de Carvalho. Capitania de Itamaracá, poder local e conflito: Goiana e Nossa
Senhora da Conceição (1685-1742). Dissertação de Mestrado. João Pessoa: UFPB, 2009, pp. 5152.
5 AHU_ACL_CU_015, Cx. 38. D. 3435. Doc. cit.
Dossiê CÂMARA MUNICIPAL
22
provedoria em 1729.6 Pouco depois a câmara reagiu pedindo a restituição
da administração dos contratos, alegando que sem essas rendas faltava
dinheiro para as despesas com obras públicas, organização das festas,
pagamentos de ordenados diversos, entre outras despesas. 7 Argumentava
também que tal situação impedia que se fizesse o conserto das pontes da
vila, prejudicando assim o bem comum. 8
O problema da má gestão também trouxe problemas para a
Câmara do Rio de Janeiro. A municipalidade administrava os contratos do
subsídio grande dos vinhos, o da aguardente consumida na terra e o da
exportada e o do azeite doce. Preocupada com possíveis descaminhos, a
Coroa aventava a hipótese de retirar esses contratos da câmara. Para isso
solicitou em 1727 do governador Luís Vahia Monteiro uma declaração
sobre a possibilidade de se passarem tais contratos para a administração da
provedoria. O governador, que mantinha relações tensas com a câmara,
considerou que o melhor para a Fazenda Real seria se retirar os contratos
da câmara, para assim se evitarem os descaminhos. Com o parecer do
Conselho Ultramarino em concordância com o do governador, a Coroa
resolve em 1731 incorporar tais contratos diretamente à administração
régia.9 A Câmara do Rio de Janeiro também reagiu à decisão régia, pedindo
ao rei que se restituísse a administração de alguns contratos, alegando a
dificuldade para se dar conta dos seus principais compromissos
financeiros.10
Pretendemos neste trabalho analisar não apenas a forma como a
Câmara de Olinda administrava os contratos de arrecadação de impostos e
os eventuais problemas relacionados a essa administração, mas, sobretudo
entender as questões que levaram a Coroa a retirar a administração desses
contratos da câmara e passá-los ao controle direto da provedoria.
BARBALHO, Luciana de Carvalho. Capitania de Itamaracá, poder local e conflito. Op. cit. p. 52.
Carta dos oficiais da Câmara de Goiana ao rei D. João V, sobre a ordem recebida para passar
os contratos administrados por aquele senado para a Fazenda Real daquela capitania. 30 de
junho de 1729. AHU_ACL_CU_015, Cx. 38, D. 3458; Carta do governador de Pernambuco,
Duarte Sodré Pereira Tibão, ao rei D. João V, sobre a representação dos oficiais da câmara de
Itamaracá, pedindo a restituição da administração dos contratos de açúcar, tabaco e carnes,
que passaram para a Provedoria da Fazenda. 13 de agosto de 1731. AHU_ACL_CU_015,
Cx.41, D. 3729.
8 Carta dos oficias da Câmara de Goiana ao rei D. João V, sobre a construção ou reparação das
pontes de Japomim e Capibaribe e a restituição dos bens do conselho. 30 de julho de 1729.
AHU_ACL_CU_015, Cx. 38, D. 3460.
9 OLIVEIRA JÚNIOR, Paulo Cavalcante de. Negócios de trapaça: caminhos e descaminhos na
América Portuguesa. Tese de Doutorado. São Paulo: USP, 2002, pp. 210-213.
10 Ibidem, pp. 214-215.
6
7
REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014.
23
Em Olinda, os contratos administrados pela câmara eram os
seguintes: o das carnes; o dos vinhos; o do tabaco; o do açúcar; o das
garapas; e o da balança.11 Exceto o do subsídio dos vinhos, o restante dos
contratos foi criado durante ou logo após a Restauração. Inicialmente os
rendimentos destes eram todos direcionados para o pagamento da
infantaria, segundo a Informação Geral. Mais tarde, os contratos do açúcar e
das carnes eram consignados por ordem real para o pagamento dos
soldados, enquanto os outros contratos eram direcionados para outros
pagamentos. O das garapas era usado para o pagamento do soldo dos
governadores12, enquanto o dos vinhos era eventualmente empregado para
a remessa de 10 mil cruzados que se pagava do “Dote de Inglaterra e Paz
de Holanda”.13
Desde os governos de Câmara Coutinho (1689-1690) e do Marquês
de Montebelo (1690-1693) havia sérias desconfianças quanto às rendas
administradas pela Câmara de Olinda. A câmara era habituada a
administrar suas contas de forma praticamente independente, fazendo com
os rendimentos o que bem entendia, o que resultava, por vezes, em
irregularidades e improbidades. Praticamente se desconheciam as
verdadeiras rendas da câmara, pois não se tomavam as contas do senado.
Câmara Coutinho, em 1690, foi o primeiro governador a ordenar a
prestação de contas da Câmara de Olinda, apesar de o capítulo 28 do
Regimento dos Governadores de 1670 ordenar que os governadores
mandassem anualmente uma relação detalhada com todas as despesas da
câmara.14 Para evitar abusos e irregularidades nas arrematações dos
contratos administrados pela câmara, o Marquês de Montebelo
implementou a ordem do seu antecessor (Câmara Coutinho), exigindo que
os editais de arrematação fossem antes apresentados para aprovação do
governador. Alegando usurpação dos seus direitos antigos, a câmara se
Informação Geral da Capitania de Pernambuco (1749). Publicado em 1908 no V. XXVIII dos
Anais da Biblioteca Nacional, pp.167-170.
12 AHU_ACL_CU_015, Cx. 32, D. 2934. Doc. cit.
13Carta dos oficiais da Câmara de Olinda a Vossa Majestade sobre a situação financeira do
senado da mesma cidade. 15 de fevereiro de 1713. Consultas do Conselho Ultramarino.
Pernambuco e outras capitanias (1712-1716). V. 98, pp. 172-174. DHBN.
14Informação Geral da Capitania de Pernambuco (1749). Publicado em 1908 no Vol. XXVIII dos
Anais da Biblioteca Nacional. Pg. 28
11
Dossiê CÂMARA MUNICIPAL
24
negou a cumprir a ordem, fazendo com que Montebelo ordenasse a prisão
de dois oficiais, um vereador e um juiz ordinário. 15
Neste caso a atitude da Coroa foi de complacência com as
irregularidades praticadas pela câmara, pois Montebelo foi censurado pela
Coroa por sua maneira de exigir as prestações de contas da câmara. No
caso da prisão dos dois oficiais recomendava-seque se “advertisse o
governador da ilegalidade que cometia” e que a câmara comunicasse
prontamente a Coroa em caso de ocorrência semelhante. 16 Assim, a Coroa
parecia não levar em conta as palavras de Montebelo que, se referindo aos
camaristas de Olinda, dizia que “sendo a fazenda de Vossa Majestade,
morrem por viver dela”.17 No final das contas, a Câmara de Olinda parecia
sair fortalecida na afirmação desses interesses, pois os usos e abusos na
administração das rendas da câmara permanecem uma constante nas
primeiras décadas do século XVIII. 18
No entanto, em carta régia de 1692 a Coroa tentava melhor
organizar a gestão dos recursos que advindo dos contratos, ordenando que
a câmaradeveria todos os anos mandar à Coroa uma relação da receita e
despesa dos contratos que administrava. Além disso, reafirmava-se a
ordem que obrigava a câmara a declarar as suas receitas e despesas todos
os anos. Ficava assim determinado que nas despesas que excedessem as
permitidas e aprovadas pela Coroa, teria a câmara a obrigação de repor
através dos seus próprios recursos.19
O governador Sebastião de Castro e Caldas, conhecido como
opositor da nobreza de Olinda 20, dizia em 1710 que a câmara fazia as
“despesas que lhe parece com pretextos menos verdadeiros, dispondo das
ditas rendas como se fossem próprias do conselho”. Por isso defendia que,
para o bem da Fazenda Real, se deveria retirar da câmara a administração
15MELLO,
Evaldo Cabral de Mello. A fronda dos mazombos: Nobres contra mascates,
Pernambuco 1666-1715. São Paulo: Editora 34, 2003. p. 82; ANDRADE, Gilberto Osório de.
Montebelo, os Males e os Mascates: contribuição para a história de Pernambuco na segunda
metade do século XVII. Recife: UFPE, 1969.p. 120
16MELLO, Evaldo Cabral de Mello. A fronda dos mazombos. Op. cit. p. 83.
17ANDRADE, Gilberto Osório de. Montebelo, os Males e os Mascates. Op. cit. p. 119.
18Sobre outros problemas nas contas da Câmara de Olinda nas primeiras décadas do século
XVIII: LISBOA, Breno Almeida Vaz. Uma elite em crise: a açucarocracia de Pernambuco e a
Câmara Municipal de Olinda nas primeiras décadas do século XVIII. Recife: UFPE, 2011.
Dissertação de Mestrado.
19Informação Geral da Capitania de Pernambuco (1749). pp. 143-144.
20Sobre a oposição entre a nobreza de Olinda e Castro e Caldas: MELLO, Evaldo Cabral de
Mello. A fronda dos mazombos. Especialmente o capítulo “O desgoverno de Castro e Caldas”,
pp. 217-277.
REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014.
25
dos contratos.21 Em 1712, a Coroa já se mostrava preocupava com possíveis
improbidades na administração dos contratos. Neste ano mandava uma
ordem régia ao governador Félix Machado onde se ordenava que através
do provedor da capitania se deveria averiguar possíveis conluios nas
arrematações de contratos e assim se proceder devassas através do
ouvidor.22
A insistência da câmara em não colocar às claras os seus
rendimentos levou os ministros régios a ações mais enérgicas contra a
instituição. Com a demora da câmara em declarar suas contas, em 1713 o
ouvidor João Marques Bacalhau fez três notificações para que o tesoureiro
da câmara, Feliciano de Melo da Silva, fizesse a prestação de contas do
conselho para os anos de 1710 e 1711. Não atendidas as notificações, o
ouvidor ordenou a prisão do tesoureiro, que acabou encarcerado.23
Comunicado o ocorrido à Coroa, o Conselho Ultramarino manifestava-se
sobre o caso. Alguns conselheiros concordavam, outros não com a prisão
do tesoureiro. Entretanto, o Conselho era unânime em considerar que se
deveria ordenar ao ouvidor que se tomasse as contas das rendas que
administrava a câmara nos dez anos anteriores. 24
Além disso, o Conselho já discutia a possibilidade de se retirar a
administração dos contratos das mãos da câmara. O conselheiro José
Gomes de Azevedo dizia que pelo mau uso que os oficiais da câmara
faziam da renda que administravam, deveria o rei retirar os contratos da
sua administração. Entretanto, alguns conselheiros eram mais cautelosos
com a questão, como Alexandre da Silva Corrêa, que enxergava
lucidamente a situação ainda tensa nesses primeiros anos pós Guerra dos
Mascates. No seu parecer sobre o assunto considerava que “por hora deve
dissimular esta matéria, enquanto os povos de Pernambuco não estiverem
Carta do Conselho a Vossa Majestade sobre se tirar à câmara a administração dos contratos.
12 de maio de 1713. Consultas do Conselho Ultramarino. Pernambuco e outras capitanias.
(1712-1716). V. 98, pp. 194-197. DHBN.
22 Carta (2ª via) do governador da capitania de Pernambuco, Félix José Machado de Mendonça
Eça Castro e Vasconcelos, ao rei D. João V, sobre a ordem para ter cuidado com os conluios já
ocorridos nas arrematações dos contratos daquela praça. 14 de setembro de 1713.
AHU_ACL_CU_015, Cx. 25, D. 2312.
23 Carta o ouvidor de Pernambuco João Marques Bacalhau informando Vossa Majestade que
prendeu o tesoureiro da Câmara de Olinda por não ter dado logo conta do seu rendimento.
Traz a resolução do Conselho sobre o assunto. 1 de fevereiro de 1713. Consultas do Conselho
Ultramarino. Pernambuco e outras capitanias. (1712-1716). V. 98, pp. 159-164. DHBN.
24 Ibidem, p. 162.
21
Dossiê CÂMARA MUNICIPAL
26
em mais sossego do que hoje estão”.25 Ou seja, considerava que passar-se a
administração dos contratos para a provedoria seria o mais acertado,
porém não seria este o melhor momento. Percebia que na tensão ainda
reinante, essa nova perda para a Câmara de Olinda poderia servir de
motivação para novas alterações por parte dos senhores de engenho. 26
Enquanto a questão não era resolvida a Coroa tratava de exercer
cada vez mais controle sobre a arrematação dos contratos pela câmara.
Ainda em 1713 o procurador da fazenda da Coroa dizia que o provedor da
capitania de Pernambuco deveria sempre assistir às arrematações dos
contratos da câmara.27 Já o Conselho Ultramarino recomendava ao rei que
se mandasse observar inviolavelmente a ordem que foi dada ao governo de
Pernambuco em 1693, onde se declarava que os oficiais da Câmara de
Olinda seriam obrigados a dar conta dos lanços que houvesse nos contratos
que administram e das arrematações que deles se fizessem. Também dizia
o Conselho que deveria ser nula toda arrematação que fosse feita sem a
assistência do provedor, para assim se evitar “todo o conluio e dano que
disso resultasse”.28 Essa questão dos possíveis conluios era algo que
preocupava a Coroa. Além de recomendar aos governadores que sempre
estivessem atentos aos conluios nas arrematações, constatava que em
Olinda os valores dos contratos muitas vezes eram baixos justamente por
conta deste problema. Isso era percebido “pelas repetidas notícias que há
de não crescem antes se diminuem (os valores dos contratos) por se
interessarem nela os mesmos oficiais da câmara, por cuja causa se não pode
esperar zelem muito o seu aumento”.29
25Carta
o ouvidor de Pernambuco João Marques Bacalhau informando Vossa Majestade que
prendeu o tesoureiro da Câmara de Olinda por não ter dado logo conta do seu rendimento.
Traz a resolução do Conselho sobre o assunto. 1 de fevereiro de 1713. Consultas do Conselho
Ultramarino. Pernambuco e outras capitanias. (1712-1716). V. 98, p. 163. DHBN.
26 Sobre as tensões em Pernambuco nas décadas após a Guerra dos Mascates: LISBOA. Breno
Almeida Vaz. Uma elite em crise. Op. cit.
27 Carta do governador de Pernambuco Félix José Machado a Vossa Majestade sobre o
contrato do subsídio do açúcar. 13 de fevereiro de 1713. Consultas do Conselho Ultramarino.
Pernambuco e outras capitanias. (1712-1716). V. 98, pp. 169-170. DHBN.
28 Ibidem, p. 170.
29 Carta do provedor da fazenda de Pernambuco, João do Rego Barros, a Vossa Majestade
sobre o pagamento do soldo dos soldados da infantaria. 28 de fevereiro de 1726. Consultas do
Conselho Ultramarino. Pernambuco e outras capitanias (1716-1727). Vol. 99, pg. 231-235.
DHBN. Anos antes, em 1686, a Coroa escrevia à câmara para falar sobre o contrato do
subsídio dos vinhos e comentava sobre “diligências que se fizeram por se averigues se haveria
algum suborno.” Registro de carta de Sua Majestade escrita aos oficiais da câmara sobre a
arrematação do subsídio dos vinhos. 28 de janeiro de 1686. Cartas, Provisões e Ordens régias
de Olinda. APEJE.
REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014.
27
A Coroa também analisava outros pontos relativos à questão dos
contratos. O mesmo procurador da fazenda da Coroa ainda no ano de 1713
percebia o quanto os contratos eram parte fundamental do poder
econômico da câmara e por isso de grande importância para a manutenção
de poder político que exercia a Câmara de Olinda. Retirar os contratos da
sua administração seria então uma maneira de enfraquecê-la, deixá-la com
menos poder para se insurgir contra as ordens da Coroa. Nas palavras do
procurador: “é necessário deixá-la menos rica, e poder atrever-se menos”.30
Portanto, nesses complicados primeiros anos após a Guerra dos Mascates
preocupava à Coroa não só os descaminhos presentes na administração dos
contratos, mas também o poder econômico ainda possuído pela câmara, o
que poderia encorajá-la a resistir às determinações reais ou até mesmo
promover novas alterações.
Outra questão também preocupava a Coroa. Com a lembrança
recente das alterações de 1710-1711 percebia-se que as tropas da capitania
poderiam servir aos interesses das parcialidades em conflito. Sendo assim,
já que as tropas regulares eram pagas pela Câmara de Olinda, seria mais
lógico que elas obedecessem ao seu comando em eventuais disputas.
Assim, tirando-se os contratos da câmara o pagamento das tropas seria
feito não mais por ela e sim pela Fazenda Real. Seria então uma medida
preventiva contra o poder de fogo da nobreza de Olinda representada na
câmara, pois dizia o conselheiro Antônio Rodrigues da Costa que “é
máxima infalível que a milícia é de quem a paga e nas dissensões segue
sempre o partido de quem recebe os soldos”. 31
Uma carta anônima de meados de 1717 complicava ainda mais a
situação dos contratos da câmara, pois trazia informações que pareciam
confirmar as suspeitas de descaminhos. Nesta carta, endereçada ao rei D.
João V, comenta-se sobre “o lastimoso estado do porto de Pernambuco”
por conta dos descaminhos “a respeito da alfândega, almoxarifado, décima
e tudo mais que pertence a fazenda de Vossa Majestade, especialmente
sobre tabacos.” Além disso, o autor anônimo também colocava a Câmara
de Olinda como protagonista de vários desvios. O documento esmiúça as
rendas dos principais contratos da capitania e as despesas com a infantaria.
30Carta
o ouvidor de Pernambuco João Marques Bacalhau informando Vossa Majestade que
prendeu o tesoureiro da Câmara de Olinda por não ter dado logo conta do seu rendimento.
Traz a resolução do Conselho sobre o assunto. 1 de fevereiro de 1713. Consultas do Conselho
Ultramarino. Pernambuco e outras capitanias. (1712-1716). V. 98, p. 196. DHBN.
31 Ibidem, p. 197.
Dossiê CÂMARA MUNICIPAL
28
Numa comparação entre as rendas e as despesas argumenta que só uma
parte do que é arrecadado é gasto com a infantaria, quanto ao resto: “... sem
saber com que as gasta, pois as pontes estão arruinadas, fontes e calçadas
não as há para se repararem”.32
A carta responsabilizava alguns membros da câmara pelas
improbidades: o escrivão Manuel de Miranda de Almeida e tesoureiro
Gaspar da Terra, pois “por insultos e maquinações se dissipam a cada ano
mais de vinte mil cruzados” que eram usurpados pelos dois funcionários.
A carta cita também dois vereadores “que andam sempre nos pelouros”,
Pedro Cavalcanti e José Camelo. Esses dois eram acusados de se
sustentarem do que retiravam dos bens do senado a partir de um conluio
com o escrivão e o tesoureiro. Assim, recomendava a carta que estes
vereadores fossem proibidos de servir na câmara, pois “se Vossa Majestade
não ordenar que nenhum dos dois sirva mais na câmara não haverá no
cofre um vintém.” Defendia também que o único remédio seria a expulsão
da câmara e da cidade dos quatro homens citados por serem “prejudiciais à
república”.33
Transparece na carta a desconfiança que ainda havia em relação à
nobreza de Olinda por conta das alterações recentes. 34 Qualificava-se os
oficiais da câmara de “revoltosos” e “sobretudo demasiadamente
apaixonados contra tudo que é do reino por serem dos cabeças dos motins
que houve nesta terra.” Por fim, o autor anônimo recomendava ao rei uma
seleção mais criteriosa para a escolha dos oficiais da Câmara de Olinda
como uma forma de se evitar a eleição de figuras corruptas e não zelosas
com o real serviço. Nas suas palavras: “sirva-se nesta câmara com pessoas
de melhor condição e costumes; e mande tomar conhecimento e pacto de
tudo; em razão dos descaminhos de sua fazenda que administrada por
estes quatro homens não terá existência”.35
Boa parte das rendas advindas dos contratos administrados pela
câmara era destinada ao pagamento da infantaria. Desde o post
Requerimento ao rei D. João V, pedindo que se observe os descaminhos da Fazenda Real
que vêem acontecendo na Alfândega do Recife nos contratos do açúcar, nas pessoas que a
administram e que pessoas de melhor condição e costume sirvam na câmara de Olinda. Obs.:
documento sem autor. Ant. a 12 de junho de 1717. AHU_ACL_CU_015, Cx. 28, D. 2514.
33 Ibidem.
34 Sobre a Guerra dos Mascates o trabalho já clássico: MELLO, Evaldo Cabral de Mello. A
fronda dos mazombos. Op. cit.
35 Ibid.
32
REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014.
29
bellum36havia dificuldades para se dar conta desta despesa, gerando
reclamações por parte da câmara. No período após a Guerra dos Mascates
essas dificuldades ocasionaram constantes atrasos no pagamento das
tropas, sendo frequente que os terços ficassem meses sem receber soldo.
Os constantes atrasos nos pagamentos traziam problemas para a
defesa da capitania. Em 1713, o governador Félix Machado comunicava ao
rei que teve que se valer do dinheiro da Dízima da Alfândega para o
pagamento dos soldos da infantaria. Tal dinheiro era destinado às
fortificações da capitania, por isso não poderia ser desviado para outros
fins sem ordem real. Por isso o governador se justificava ao rei dizendo que
a câmara não vinha pagando a infantaria com conformidade, atrasando os
pagamentos. Segundo ele“a câmara de Olinda não acha a pagar a gente da
guerra nessa capitania”, daí a necessidade de se utilizar dinheiro da
Fazenda Real, pois “não se podem conservar soldados dilatando-se os
pagamentos”.37 Analisando a questão, o Conselho Ultramarino dava
parecer favorável ao governador, argumentando que “as praças não se
conservam e nem se defendem sem soldados”. 38
Em 1721 era o governador geral Vasco Fernandes César de
Menezes que reclamava contra o atraso no pagamento da infantaria. Em
carta à câmara comentava que estranhava muito o procedimento da
instituição em relação ao atraso dos pagamentos, “de cujo descuido se tem
seguido a deserção de tantos soldados.” Possivelmente já sabendo que os
atrasos eram constantes, falava aos oficiais da câmara de forma enérgica,
num tom quase ameaçador: “e porque me não seja preciso fazer alguma
demonstração severa com esses vereadores espero que se abstenham de me
Termo usado por Evaldo Cabral de Mello para designar a história da capitania de
Pernambuco após a expulsão dos holandeses, ou seja, a grosso modo a segunda metade do
século XVII.
37 Carta (1ª via) do governador da capitania de Pernambuco, Félix José Machado de Mendonça
Eça Castro e Vasconcelos, ao rei D. João V, sobre o pagamento que fez aos soldados através da
dízima e pedindo que, no caso da falta do pagamento dos contratos da câmara, ele possa
suprir os provimentos dos ditos soldados na forma que o fez. 22 de dezembro de 1713.
AHU_ACL_CU_015, Cx. 26, D. 2383.
38 Idem; Carta do governador de Pernambuco Félix José Machado de Mendonça a Vossa
Majestade sobre se pagar aos soldados pela dízima quando falte o pagamento dos contratos
da câmara. 26 de abril de 1714. Consultas do Conselho Ultramarino. Pernambuco e outras
capitanias (1712-1716). Vol. 98, pg. 216-217. DHBN.
36
Dossiê CÂMARA MUNICIPAL
30
dar semelhante motivo”.39 As palavras enérgicas do governador geral
parecem ter surtido efeito imediato, pois poucos meses depois a câmara
enviava carta comunicando ao mesmo que já havia pago a infantaria,
“valendo-se para este efeito de algum dinheiro de empréstimo”.40
O governador da capitania, D. Francisco de Souza, resolveu
promover uma interferência mais incisiva nos contratos administrados pela
câmara. Para evitar que o dinheiro dos contratos não chegasse prontamente
para o pagamento da infantaria, passou portaria ordenando aos
contratadores que não entregassem o dinheiro das arrematações ao
tesoureiro da câmara. Para o governador essa seria uma maneira de fazer
com que o dinheiro dos contratos consignados para o pagamento dos
soldados não deixasse de chegar pontualmente ao seu destino. Segundo o
mesmo a medida era necessária porque as tropas ficavam oito a dez meses
sem pagamento, já que a câmara empregava o dinheiro das consignações
em despesas inúteis. Em vista disso, recomendava ao rei que a
administração dos contratos relacionados diretamente com o pagamento
dos soldados fosse passada à provedoria.41
No entanto, tal procedimento do governador gerou reações por
parte da câmara. Em 1721 os oficiais da câmara pediam ao rei que
suspendesse a portaria baixada pelo governador, pois existia ordem real
para que não houvesse intromissão dos governadores na administração dos
contratos. Já o Conselho Ultramarino afirmava que o governador não tinha
jurisdição para interferir dessa forma nos contratos, mas seu excesso era
desculpável, pois se fez no intuito de evitar os constantes atrasos no
pagamento da infantaria.Além disso, afirmava que se deveria ordenar aos
contratadores que entregassem ao provedor da capitania a lista com os
soldados dos terços todas as vezes que se houver de fazer pagamento. Só
após esse procedimento é que o dinheiro das arrematações seria entregue
ao tesoureiro da câmara. Por fim, defendia o Conselho que se deveria
Vasco Fernandes César de Menezes. Para o Senado da Câmara de Olinda. 18 de julho de
1721. Pernambuco e outras capitanias do norte. Cartas e ordens. (1717-1727) V. 85, p. 66.
DHBN.
40 Vasco Fernandes César de Menezes. Para os oficiais da Câmara de Olinda. 3 de novembro
de 1721. Cartas e ordens. (1717-1727) V. 85, pp. 76-77. DHBN.
41 Consulta do Conselho Ultramarino ao rei D. João V, sobre carta dos oficiais da câmara de
Olinda, informando que o governador da capitania de Pernambuco, D. Francisco de Souza,
proibiu que os contratadores dos contratos da administração daquele senado repassasse
dinheiro algum, nem mesmo ao tesoureiro. 13 de outubro de 1721. AHU_ACL_CU_015, Cx.
29, D. 2640.
39
REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014.
31
ordenar aos oficiais da câmara que não invertesse o dinheiro consignado
para outras despesas.42
Os atrasos no pagamento da infantaria pareciam continuar
frequentes, gerando mais intromissões de governadores na administração
dos contratos. Para garantir o pagamento das tropas o governador D.
Manoel Rolim de Moura resolveu embargar quase todos os contratos da
câmara – o da balança, o do tabaco, o das garapas e o dos vinhos – nas
mãos dos contratadores para que o dinheiro não chegasse às mãos do
tesoureiro. A intenção do governador era utilizar não só os contratos do
açúcar e das carnes, que já eram consignados para o pagamento da
infantaria, mas também os outros contratos direcionando-os para o tal
pagamento. Muito provavelmente o governador também concordava que
as rendas dos contratos não deveriam ser mais administradas pela câmara,
pois possivelmente tinha conhecimento das notícias de que as rendas eram
mal administradas pelos oficiais do conselho. A câmara, em contrapartida,
reagia contra a ação do governador. Reclamava ao rei em 1725 que o
governador, com tal atitude, intrometia-se na jurisdição da câmara, pois,
reiteravam os oficiais, havia ordem real que proibia a intromissão dos
governadores nos contratos administrados pela câmara. Dessa forma, a
câmara pedia que fosse respeitada a ordem real para que nenhum contrato
fosse embargado por nenhum governador. 43
Ao Conselho Ultramarino muito incomodava o atraso no
pagamento dos soldados. Reprovava o fato da Câmara de Olinda desviar o
dinheiro destinado ao pagamento da infantaria para outros fins, afirmando
que a câmara deveria explicar ao governador por escrito os motivos de não
ter aplicado as consignações para o dito pagamento, mostrando onde
gastou esses recursos.44
Outras irregularidades eram constatadas nas arrematações. Com o
contrato do subsídio dos vinhos em 1718 houve a irregularidade da
arrematação ter sido feita por tempo de seis anos, quando as ordens e
regimentos reais mandavam que se fizesse por três anos, não sendo
permitida qualquer alteração sem prévia autorização real. O responsável
por tal denúncia era o provedor João do Rego Barros, que também
Ibidem.
Carta dos oficias da câmara de Olinda ao rei D. João V, sobre os conflitos de jurisdição com
o governador da dita capitania, D. Manoel Rolim de Moura, na administração dos contratos.
22 de agosto de 1725. AHU_ACL_CU_015, Cx. 32, D. 2962.
44 DHBN, V. 99, pp. 231-235. Doc. cit.
42
43
Dossiê CÂMARA MUNICIPAL
32
afirmava que fora tudo feito com aprovação do governador Manoel de
Souza Tavares. Além disso, dizia que o mesmo e os oficiais da câmara
foram lembrados sobre o regimento real acerca do assunto, por isso não
poderiam alegar ignorância. A par das denúncias do provedor, o Conselho
Ultramarino dizia que “na arrematação que se fez desse contrato não só se
contrariou a disposição do regimento da fazenda, mas se faltou a
observância da ordem de Vossa Majestade”. Por isso considerava que a
arrematação deveria ser cancelada. Como Manoel de Souza Tavares fora
conivente com as irregularidades, o Conselho declarava que deveria ser
ordenado que o governador pagasse pela eventual diminuição na próxima
arrematação, além de ser severamente repreendido por ter desobedecido às
ordens reais.45
Antes mesmo das denúncias do provedor chegarem ao Reino, a
câmara já se preocupava em justificar o seu procedimento à Coroa. Em
carta ao rei de junho de 1718 alegavam os oficiaisque a arrematação por
seis anos foi uma solicitação dos arrematantes, pois “por seis anos era mais
dilatado o tempo para os fazerem conduzir e terem algum lucro”. Também
afirmavam que o contrato foi colocado em praça por tempo de três e de seis
anos e que o de seis anos recebeu maior lance. Por isso teriam agido de tal
forma “pelo interesse que nisto recebe a Real Fazenda de Vossa Majestade
a que todos temos obrigação de atender.” Assim, pediam ao rei,
“prostrados aos seus reais pés”, que aprovasse a tal arrematação feita pela
câmara.46
A municipalidade mandava ainda no mesmo ano ao Reino uma
certidão escrita, subscrita e assinada pelo escrivão da câmara Manuel de
Miranda de Almeida onde se certificava o seguinte: que na arrematação do
contrato do subsídio dos vinhos “não houve quem nele lançasse por três
anos coisa alguma, e por seis maior lanço que chegou foram quarenta e
cinco mil e quinhentos cruzados.” O documento também certificava que
com o contrato do subsídio do açúcar ocorrera coisa semelhante, pois “por
três anos não houve quem desse maior lanço que de trinta e nove mil e
quinhentos cruzados. E por seis o maior lanço foi de oitenta mil cento e dez
cruzados”, arrematando-se assim pelo preço oferecido por tempo de seis
anos.47
Nas arrematações dos anos seguintes a câmara parece ter
continuado a enfrentar problemas com os baixos rendimentos dos
AHU_ACL_CU_015, Cx. 28, D. 2556. Doc. cit.
Ibidem.
47 Ibid.
45
46
REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014.
33
contratos. Em dezembro de 1723, os oficiais comunicavam ao rei que o
contrato do subsídio do açúcar estava em praça desde agosto, mas não
havia sido arrematado, pois não deram por ele mais do que quinze mil
cruzados, preço bem abaixo dos anos anteriores. Por conta dissoo contrato
ainda não havia sido arrematado, pois ainda esperavam uma melhora no
valor dos lanços.48
O governador D. Manoel Rolim de Moura também comunicara ao
rei a baixa no mesmo contrato do subsídio do açúcar do ano de 1723.
Enquanto a câmara dizia que se chegou a dar pelo contrato quinze mil
cruzados, o governador relatava que por conta da grande seca não houve
quem quisesse arrematar o dito contrato, “nem pouco nem muito.” Por
conta disso ficava para se arrecadar o subsídio pela Fazenda Real, de que se
esperava muito pouco rendimento. Com o reduzido rendimento do
contrato não haveria dinheiro suficiente para pagar as tropas, assim era
necessário novamente recorrer ao dinheiro da Dízima da Alfândega para o
pagamento da infantaria. Foi o que solicitou o governador ao rei, pedindo
que se pudesse novamente recorrer ao dinheiro da dízima enquanto os
valores dos contratos não subissem. 49
A constante baixa nos rendimentos dos contratos parecia também
estar relacionada a uma questão que fugia ao controle da câmara. Por volta
de 1718 as câmaras de Olinda e do Recife e os negociantes desta praça
reclamavam que os moradores das vilas de Serinhaém, Porto Calvo,
Alagoas e Penedo e suas freguesias mandavam seus açúcares e tabacos
direto para a Bahia, “só afim de não pagarem a Vossa Majestade os seus
direitos.” Isso quer dizer que muito açúcar e tabaco não era taxado,
acarretando baixas nos respectivos contratos. Quanto ao tabaco a situação
era ainda mais complicada, pois os moradores das vilas das Alagoas e “Rio
de São Francisco” (Penedo) haviam conseguido desde as últimas décadas
Carta dos oficiais da câmara de Olinda ao rei D. João V, informando que desde o mês de
agosto o contrato do açúcar foi posto em praça para ser arrematado e até então não chegou
lance maior do que o do ano passado. 16 de dezembro de 1723. AHU_ACL_CU_015, Cx. 30, D.
2704.
49 Carta do governador da capitania de Pernambuco, D. Manoel Rolim de Moura, ao rei D.
João V, sobre a seca que assola a capitania e que o subsídio do contrato das carnes não cobrirá
as despesas do pagamento das Companhias de Infantarias, tendo que ser utilizado o do
açúcar. 17 de dezembro de 1723. AHU_ACL_CU_015, Cx. 30, D. 2705; Carta do governador de
Pernambuco, Dom Manuel Rolim de Moura, a Vossa Majestade sobre o contrato do açúcar. 22
de setembro de 1724. Consultas do Conselho Ultramarino. Pernambuco e outras capitanias
(1716-1727). V. 99, pp. 208-209. DHBN
48
Dossiê CÂMARA MUNICIPAL
34
do século XVII sentença favorável do Tribunal da Relação da Bahia que os
autorizava a embarcar o tabaco diretamente para a Bahia. 50 Para a câmara
tratava-se de um problema muito sério, pois ameaçaria a “saúde”
econômica da capitania: “além desse grande prejuízo da Fazenda Real
segue-se um irreparável dano ao comércio daquela praça e lhe parece que
de todo se extinguirá remetendo aquelas vilas os seus frutos para a Bahia.”
De tal forma que se não fosse dado pronto remédio, a situação pioraria,
pois “a seu exemplo farão o mesmo todas as outras só afim de não pagarem
direitos.” Com uma razoável dose de exagero os oficiais das duas câmaras
argumentavam que a persistência do problema traria a ruína da capitania,
já que “não acharão os navios da frota naquele porto, com que se
carregarem para Portugal, por consequência não irão mais a ela que será a
total extinção do comércio daquela praça e abatimento dos povos”. 51
Com o contrato do subsídio dos vinhos também houve outros
problemas. A câmara reclamava que os negociantes da Bahia e do Rio de
Janeiro traziam vinho e aguardente para comercializar em Pernambuco.
Isso prejudicava o contrato dos vinhos –“patrimônio deste senado” -, pois
os comerciantes não queriam pagar o subsídio ao contratador, alegando
que já haviam pago na Bahia e no Rio. Assim, pedia a câmara que o rei
ordenasse que toda a aguardente e vinho que entrasse na capitania pagasse
subsídio aos contratadores. É interessante notar que a câmara não pede a
extinção desse comércio com o Rio e com a Bahia, solicita apenas que sejam
pagos os impostos devidos, pois isso implicava no valor da arrematação
deste contrato.52
Outro problema com o contrato do subsídio dos vinhos se deu por
conta do consumo de vinho dos conventos da capitania. A Coroa havia
ordenado que a câmara arbitrasse a quantidade de pipas de vinho que os
Registro de carta de Sua Majestade para a câmara no que manda usarem de via ordinária
para cobrar o subsídio do tabaco das Alagoas e Rio de São Francisco. 8 de novembro de 1689.
Cartas, provisões e ordens régias de Olinda. APEJE.
51 Carta do Conselho expondo a Vossa Majestade o requerimento em que as câmaras de
Olinda e vila do Recife, e os homens de negócio daquela praça, pedem para que obrigue a que
as mercadorias paguem taxa na Bahia. 23 de novembro de 1718. Consultas do Conselho
Ultramarino. Pernambuco e outras capitanias (1716-1727). V. 99, pp. 52-56. DHBN; Carta dos
oficiais das câmaras de Olinda e Recife a Vossa Majestade sobre o roubo de umas caixas de
açúcar. 20 de julho de 1719. Consultas do Conselho Ultramarino. Pernambuco e outras
capitanias. (1716-1727). V. 99, pp. 77. DHBN.
52 Carta dos oficiais da câmara de Olinda ao rei D. João V, sobre a entrada de vinhos e
aguardente na praça da capitania de Pernambuco, vindos do Rio de Janeiro e Bahia e os
prejuízos para o contrato do subsídio dos vinhos pertencente a dita câmara. 18 de agosto de
1725. AHU_ACL_CU_015, Cx. 32, D. 2940.
50
REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014.
35
conventos da capitania teriam livres do pagamento do subsídio dos vinhos.
Assim, ficara estabelecido que os conventos poderiam consumir até no
máximo dez pipas de vinho por ano livre do subsídio, com exceção do
Mosteiro de São Bento, que teria direito a quatorze. No entanto, os
religiosos conseguiram uma provisão real que liberava o consumo de
qualquer quantidade de vinho livre do subsídio. O problema é que,
segundo a câmara, era “extraordinário e incrível o gasto de vinho destes
religiosos”, chegando a se consumir oitenta ou noventa pipas em cada
triênio. Como esse alto consumo sem taxação influía no valor do contrato, a
câmara se queixava da situação e pedia ao rei que mandasse taxar o vinho
dos religiosos.53
Tais queixas da câmara surtiram efeito. Num requerimento dos
religiosos da Congregação do Oratório do Recife ao rei, reclama-se que por
conta das queixas da Câmara de Olinda se passou nova provisão em 17 de
agosto de 1727 ordenando que o vinho dos religiosos fosse taxado (caso o
consumo ultrapassasse dez pipas). Os religiosos alegavam que as
informações da câmara não eram verdadeiras, pois os religiosos não
consumiam tanto vinho como afirmavam os oficiais da câmara. Dizia que
em três triênios consecutivos somente em um se consumiu oitenta e duas
pipas e em outro se consumiu apenas vinte e três pipas. Juntando os três
triênios teriam se consumido cento e cinquenta pipas, o que daria dezesseis
por ano. Assim, pediam que a provisão de 1727 fosse revogada e se desse
cumprimento a antecedente.54
A câmara tinha razão em se preocupar com a arrematação do
contrato do subsídio dos vinhos. Em 1712 era o segundo contrato que mais
rendia à câmara (46.010 cruzados), perdendo apenas para o subsídio das
carnes (60.000 cruzados).55 Era tratado pelos oficiais da câmara como
“patrimônio especial deste senado”. Isso se devia ao intenso comércio de
vinhos portugueses que existia não só em Pernambuco, mas também em
Carta dos oficiais da Câmara de Olinda ao rei D. João V, sobre a ordem para se arbitrar as
pipas de vinhos consumidas pelos conventos de religiosos da capitania de Pernambuco. 14 de
setembro de 1726. AHU_ACL_CU_015, Cx. 34, D. 3144.
54 Requerimento do prepósito da Congregação do Oratório do Recife, padre Francisco
Monteiro, ao rei D. João V, pedindo suspensão da ordem que alterou as antigas provisões,
pela qual se estabeleceu o não pagamento do direito dos vinhos necessário para o consumo de
seus conventos. Anterior a 8 de janeiro de 1729. AHU_ACL_CU_015, Cx. 38, D. 3383.
55 Lista das cartas enviadas pela câmara de Olinda ao rei D. João V, referentes ao ano de 1712.
1712. AHU_ACL_CU_015, Cx. 25, D. 2273.
53
Dossiê CÂMARA MUNICIPAL
36
outras áreas da América portuguesa, constituindo um dos negócios mais
importantes do Atlântico português.
Valor dos contratos administrados pela Câmara de Olinda em 1712.56
Subsídio do Renda
da Contrato da Subsídio dos Subsídio do Contrato das
Tabaco
Garapa
Balança
Vinhos
Açúcar
Carnes
4:10$000
9$000
14$250
46$010
36$100
60$000
réis
cruzados
cruzados
cruzados
cruzados
cruzados
No Rio de Janeiro, onde o comércio de vinho era intenso, o contrato
do subsídio dos vinhos também era importante para a câmara da cidade,
que aplicava suas rendas no pagamento das tropas e na defesa da
capitania.57 Outro produto importante para a economia do Rio era a
aguardente de cana. A partir da segunda metade do século XVII a
aguardente era um produto de grande importância para o funcionamento
dos engenhos da região, pois era uma alternativa para resistir aos baixos
preços do açúcar no mercado europeu. Nesse período muitos engenhos se
especializavam na produção da aguardente ou combinavam a produção de
açúcar com a da “geribita”. Com isso, o comércio do produto crescia
rapidamente. Havia um considerável consumo interno, já que a bebida
estava presente desde as mesas dos escravos e pessoas mais humildes até
nas mais opulentas, tornando-se um hábito alimentar enraizado entre as
populações de toda a América portuguesa.58 No entanto, o comércio da
aguardente adquiriu maior vulto por ter sido o produto preferido nas
trocas comerciais com a África, notadamente Angola, utilizando-se como
moeda de troca para a aquisição de escravos. 59
56Idem.
CAETANO. Antonio Felipe Pereira. Entre a sombra e o sol – A revolta da cachaça, a freguesia
de São Gonçalo de Amarante e a crise política fluminense. (Rio de Janeiro, 1640 – 1667)
Dissertação de Mestrado. Rio de Janeiro: UFF, 2003.
58 ALGRANTI, Leila Mezan. “Aguardente de cana e outras aguardentes: por uma história da
produção e do consumo de licores na América Portuguesa”. In: VENÂNCIO, Renato Pinto;
CARNEIRO, Henrique. Álcool e drogas na história do Brasil. São Paulo: Alameda; Belo
Horizonte: PUCMinas, 2005, pp. 85-86.
59FERREIRA, Roquinaldo. “Dinâmica do comércio intra-colonial: geribitas, panos asiáticos e
guerra no tráfico angolano de escravos”. In: FRAGOSO, João; BICALHO, Maria Fernanda
Batista; GOUVÊA, Maria de Fátima (Orgs.). O antigo regime nos trópicos: a dinâmica imperial
portuguesa (séc. XVI-XVIII). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001, pp. 348-349. Segundo
tal autor em fins do século XVII Pernambuco era o segundo maior exportador de cachaça para
Angola, perdendo apenas para a Bahia. Neste mesmo período parece ter havido problemas
com este comércio entre Pernambuco e Angola, já que a Coroa impôs uma ordem para que
57
REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014.
37
Tal expansão no comércio da aguardente prejudicava o mercado
para os vinhos portugueses, que encontraram na geribita uma forte
concorrente. Por conta disso em 1649 a Coroa portuguesa resolve proibir o
a produção e o comércio do produto. Dada a importância do comércio de
aguardente para o Rio, tal determinação trouxe grande insatisfação para
vários setores da população da capitania, fazendo eclodir em 1660 a
chamada “revolta da cachaça”.60
Depois de tantos problemas e irregularidades constatados na
administração dos contratos pela Câmara de Olinda, a Coroa parecia
perceber que tal administração era prejudicial não só para a Fazenda Real
como também para a manutenção da ordem na própria capitania de
Pernambuco. Em 1726, uma sublevação das tropas por falta de pagamento
complicava ainda mais as coisas. Neste ano, por estarem sem receber soldo
há um ano e meio (!) os soldados dos terços do Recife e de Olinda se
sublevaram, marchando juntos, se colocando em acampamento e
abandonando suas praças e fortalezas. Segundo Kalina Vanderlei, como se
não bastassem os baixíssimos soldos pagos aos soldados, eram comuns os
atrasos nos pagamentos das tropas coloniais. Constituía uma característica
do próprio sistema de manutenção das tropas, um “vício público”, onde
“mal, tarde ou nunca” era o lema régio para o pagamento de suas tropas. 61
Nas possessões portuguesas do Oriente se observa uma situação
semelhante, já que segundo Charles Boxer os atrasos também eram
constantes na manutenção das tropas da região.62
Pela gravidade da situação da sublevação das tropas o governador
D. Manuel Rolim de Moura convocou uma junta formada pelo ouvidor,
provedor, juiz de fora e os mestres de campo dos dois terços, resolvendo
não se mandassem aguardentes desta capitania para Angola. A Coroa justificava a ordem
dizendo que seria por conta “dos danos que causa com as mortes na infantaria” em Angola. Já
que o fim desse comércio acarretaria a diminuição no valor do respectivo contrato, a Câmara
de Olinda reclamou contra tal ordem, pedindo que fosse suspensa. Registro de carta de Sua
Majestade aos oficiais da câmara em que manda se observe inviolavelmente a ordem que
mandou passar de não haverem aguardentes para Angola. 5 de outubro de 1690. Cartas,
provisões e ordens régias de Olinda. APEJE.
60 CAETANO. Antonio Felipe Pereira. Entre a sombra e o sol. Op. cit.
61SILVA, Kalina Vanderlei. O Miserável Soldo e a Boa Ordem da Sociedade Colonial. Militarização e
Marginalidade na Capitania de Pernambuco dos Séculos XVII e XVIII. Recife: Fundação de
Cultura Cidade do Recife, 2001.pp. 162-163.
62 BOXER, Charles R. O império marítimo português. 1415-1825. São Paulo: Companhia das Letras,
2002.p. 330.
Dossiê CÂMARA MUNICIPAL
38
por unanimidade pagar os soldados através da Fazenda Real, mais uma
vez através do dinheiro da Dízima da Alfândega como empréstimo. 63
Pouco tempo depois do ocorrido, a notícia chegava à Bahia. O
governador geral, Vasco César de Menezes, em carta ao ouvidor de
Pernambuco demonstrava grande preocupação com o motim,
considerando que “o sucesso acontecido que vossa mercê me dá conta é um
dos mais graves que se pode imaginar.” Considerava justa a pretensão dos
soldados, mas estranhava “o modo por incivil e de perniciosas
conseqüências.” Por isso, defendia severa punição para os responsáveis,
dando como exemplo sua própria experiência numa situação semelhante
passada por ele no Reino: “A mim me lembra muito bem haver enforcado e
arcabuziado muitos soldados por menos culpa sendo general da província
do Alentejo no tempo da guerra, de cuja demonstração não se seguiu dano
algum; mas antes utilidade naquele proveitoso exemplo”.64
Chegando o caso à Coroa, discutia-se no Conselho Ultramarino a
melhor maneira de se proceder quanto ao motim. Preocupava o Conselho o
fato deste motim não ser o primeiro no Brasil, pois já haviam ocorrido
outros na Bahia e no Rio de Janeiro. Temia assim que situações como estas
pudessem se multiplicar pelo Brasil, por isso o motim de Pernambuco não
deveria ser perdoado. Seria preciso assim que neste caso o rei mostrasse “o
seu real desagrado”. No entanto, assumia uma postura ambígua
reconhecendo a “extrema necessidade” dos soldados, sendo por isso
dignos de perdão por parte da Coroa. Apenas alguns oficiais deveriam ser
punidos, pois “casos tão graves, e de tão mau exemplo não devem ficar de
todo impunes e sem alguma demonstração de indignação do príncipe.”65
Apesar das recomendações do governador geral e do Conselho
Ultramarino, durante o governo de D. Manuel Rolim de Moura em
CARTA (1ª via) do governador da capitania de Pernambuco, D. Manoel Rolim de Moura, ao
rei D. João V, sobre a insubordinação dos Terços de Recife e Olinda por falta de pagamento de
soldos de um ano e meio, e as medidas tomadas para pacificar o movimento remunerando os
ditos soldados a fim de retornarem para suas praças e fortalezas. 12 de agosto de 1726.
AHU_ACL_CU_015, Cx. 34, D. 3114.
64 Carta para o provedor da fazenda de Pernambuco. 23 de setembro de 1726. Cartas e ordens.
Pernambuco e outras capitanias do Norte. (1717-1727). Vol. 85, pg. 238-239. DHBN; Carta
para o governador de Pernambuco Dom Manuel Rolim de Moura. 23 de setembro de 1726.
Cartas e ordens. Pernambuco e outras capitanias do Norte. (1717-1727). Vol. 85, 239-240.
DHBN.
65 Carta do governador de Pernambuco, Dom Manuel Rolim de Moura, informando Vossa
Majestade que os dois terços do Recife e Olinda se sublevaram por não terem recebido soldo. 2
de maio de 1727. Consultas do Conselho Ultramarino. Pernambuco e outras capitanias. (17161727). Vol. 99, pp. 254-259. DHBN.
63
REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014.
39
Pernambuco a sublevação das tropas ficou sem punição. Somente com a
chegada de outro governador em 1727, Duarte Sodré Pereira, iniciaram-se
as punições. Segundo Pereira da Costa uma dos primeiros cuidados do
governador logo que tomou posse foi prender e punir os cabeças do
motim, embarcando alguns para a Colônia do Sacramento em uma
expedição militar que partiu em 1728.66
Para o Conselho Ultramarino a principal responsável pela
sublevação das tropas era a Câmara de Olinda. Dizia que “a falta de
dinheiro para o pagamento destes terços de Pernambuco em parte procede
da má administração com que a Câmara de Olinda governa os contratos
que são aplicados ao pagamento da infantaria.” Dessa forma, um ano
depois da sublevação o Conselho parecia chegar a sua decisão final sobre
os contratos administrados pela câmara, afirmando: “será conveniente que
se lhe tire e se incorpore na provedoria da Fazenda Real.” 67
Após tantos problemas e irregularidades na gestão desses
recursos, o referido motim parecia ser o que faltava para a Coroa tomar
uma decisão que vinha sendo amadurecida já há alguns anos. Assim, em
1727, como já dissemos, a câmara perde a prerrogativa de administrar tais
contratos, passando-se estes à provedoria, sob controle da Fazenda Real.
Das tais rendas restaram à câmara 600 mil réis por ano do rendimento do
contrato dos vinhos pagos pela provedoria para o conserto das pontes. 68
Dois anos depois da resolução real, a câmara representava à Coroa
pedido para que os contratos do subsídio dos vinhos e o da balança fossem
restituídos a sua administração. Alegavam os oficiais que as rendas de que
dispunham, provenientes das rendas dos foros, dos aluguéis das casas e
das condenações, respondiam a vários pagamentos, mas não eram
suficientes para o conserto das pontes. 69 Em 1730 a Coroa resolvia a
PEREIRA DA COSTA. F. A. Anais Pernambucanos. V. 5.Edição Coleção Pernambucana,
Recife: Secretaria de Turismo, Cultura e Esportes / FUNDARPE / Diretoria de Assuntos
Culturais, 1983, p. 377; Segundo Kalina Vanderlei uma das formas de punição adotadas em
Pernambuco para soldados que promovessem motins era o chamado “degredo útil”, ou seja, o
soldado era transferido para alguma região distante ou inóspita para servir como soldado
nesses locais. SILVA. Kalina Vanderlei Paiva da.O miserável soldo e a boa ordem da sociedade
colonial. Op. cit.
67 DHBN, vol. 99, pp. 254-259. Doc. cit.
68 CARRARA, Ângelo Alves. Receitas e despesas da Real Fazenda no Brasil: Minas Gerais, Bahia,
Pernambuco. Juiz de Fora: UFJF, 2009, p. 228; Informação Geral da Capitania de Pernambuco
(1749). Publicado em 1908 no V. XXVIII dos Anais da Biblioteca Nacional, p. 170.
69 Provisão do rei D. João V ordenando que se entregue à câmara de Olinda a administração
do contrato da balança. 28 de abril de 1730. AHU_ACL_CU_015, Cx. 40, D. 3634.
66
Dossiê CÂMARA MUNICIPAL
40
questão passando provisão restituindo à câmara apenas a administração do
contrato da balança.70
Referências documentais
Arquivo Histórico Ultramarino – Papéis Avulsos de Pernambuco:
AHU_ACL_CU_015, Cx. 38. D. 3435; AHU_ACL_CU_015, Cx. 38,
AHU_ACL_CU_015, Cx.41, D. 3729; AHU_ACL_CU_015, Cx. 38,
AHU_ACL_CU_015, Cx. 25, D. 2312; AHU_ACL_CU_015, Cx. 28,
AHU_ACL_CU_015, Cx. 26, D. 2383; AHU_ACL_CU_015, Cx. 29,
AHU_ACL_CU_015, Cx. 32, D. 2962; AHU_ACL_CU_015, Cx. 30,
AHU_ACL_CU_015, Cx. 30, D. 2705; AHU_ACL_CU_015, Cx. 32,
AHU_ACL_CU_015, Cx. 34, D. 3144; AHU_ACL_CU_015, Cx. 38,
AHU_ACL_CU_015, Cx. 25, D. 2273; AHU_ACL_CU_015, Cx. 34,
AHU_ACL_CU_015, Cx. 40, D. 3634.
D.
D.
D.
D.
D.
D.
D.
D.
3458;
3460;
2514;
2640;
2704;
2940;
3383;
3114;
Documentos Históricos da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro:
Volumes: 85; 98; 99.
Arquivo Público Estadual Jordão Emerenciano (APEJE) – Cartas, Provisões e Ordens régias de Olinda:
Registro de carta de Sua Majestade escrita aos oficiais da câmara sobre a arrematação do
subsídio dos vinhos. 28 de janeiro de 1686; Registro de carta de Sua Majestade para a câmara
no que manda usarem de via ordinária para cobrar o subsídio do tabaco das Alagoas e Rio de
São Francisco. 8 de novembro de 1689; Registro de carta de Sua Majestade aos oficiais da
câmara em que manda se observe inviolavelmente a ordem que mandou passar de não
haverem aguardentes para Angola. 5 de outubro de 1690.
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FERREIRA, Roquinaldo. “Dinâmica do comércio intra-colonial: geribitas, panos asiáticos e
guerra no tráfico angolano de escravos”. In: FRAGOSO, João; BICALHO, Maria Fernanda
70
Ibidem.
REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014.
41
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Militarização e Marginalidade na Capitania de Pernambuco dos Séculos XVII e XVIII. Recife:
Fundação de Cultura Cidade do Recife, 2001.
Dossiê CÂMARA MUNICIPAL
42
Câmara Municipal de Vila Boa de Goiás
Controle sobre a vida e os espaços da cidade
Fernando Lobo Lemes 1
1Resumo:
O objetivo deste artigo é estudar a projeção
e o alcance dos poderes da Câmara Municipal de Vila
Boa sobre a vida dos habitantes da Capitania de Goiás
no final do século XVIII. Neste contexto, a
organização da cidade – a partir de uma concepção
cenográfica do espaço – através da normatização dos
comportamentos e do controle das relações de
mercado, indica o pleno vigor das atribuições da
Câmara Municipal. Este fenômeno revela uma
consciência específica de cidade: trama em que se
encontram reunidos os aspectos estruturais urbanos e
as relações econômicas que movimentam o mercado
local. Trama que tecia e mantinha, sob o controle dos
oficiais municipais, a vida urbana de Goiás.
Palavras-chave:
Câmara
Municipal.
América
Portuguesa. Vila Boa de Goiás.
Abstract: The purpose of this article is to study the
projection and the scope of the powers of the
Municipal Council of Vila Boa over the life of the
inhabitants of the Captaincy of Goiás in the late 18th
century. In this context, the organization of the city –
from a scenographic conception of space – through
the standardization of behaviors and control of
market relations, indicates the full vitality of the
powers of the Municipal Council. This phenomenon
reveals a specific consciousness about the city: scheme
in which they are gathered the urban structural
aspects and economics relations that move the local
market. Scheme that wove and kept under the control
of the municipal officials the urban life of Goiás.
Key-worlds: Municipal Council. Portuguese America.
Vila Boa de Goiás.
Doutor em História pela Universidade Sorbonne Nouvelle – Paris 3.
Professor convidado da Pontifícia Universidade Católica de Goiás – PUC/GO.
1
REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014.
43
Introdução
C
onhecido por bandeirantes desde o início da colonização da
América, ocupado por exploradores em 1725, quando se fundou o
arraial de Sant‟Ana, e desmembrado da Capitania de São Paulo, em
1749, Goiás entra na história como as Minas dos Goyazes 2. Especializada na
produção do ouro, no interior da hierarquia econômica organizada no
Brasil, as minas e, mais tarde, Capitania de Goiás, funcionavam como uma
espécie de colônia dentro da colônia, onde os alimentos e todos os demais
produtos necessários para a manutenção da vida provinham das capitanias
litorâneas: constituíam assim um território economicamente dependente,
principalmente dos comerciantes vindos da Bahia, Rio de Janeiro e São
Paulo.
De um dinamismo populacional considerável, afluiu para Goiás
uma verdadeira multidão. Dados coligidos por Luiz Palacin indicam que
apenas dez anos após o início da mineração haviam se instalado em Goiás
cerca de 20.000 pessoas, abrindo caminhos, fundando núcleos urbanos e
pontos de mineração, pondo em atividade parte significativa de seu imenso
território3. Em 1750, sua população girava em torno de 40.000 habitantes.
Em 1781, de acordo com informações do então governador Luis da Cunha
Meneses, havia em Goiás 58.829 habitantes e, em 1783, 59.287 pessoas 4.
Dados coligidos por nós, a partir de um mapa elaborado pelo governador
Tristão da Cunha Meneses em 1792, indicam uma população de 60.428
habitantes, apontando para um índice populacional ainda crescente,
embora em ritmo mais lento, mesmo na última década do século XVIII5.
Constituída no centro de uma rede de arraiais, Vila Boa de Goiás
concentrava, em 1792, mais de 22% da população da capitania, com 13.312
habitantes, sendo 8.840 homens e 4.472 mulheres. Espaço institucional,
político e administrativo, a Câmara Municipal, com sede em Vila Boa,
acumulava as atribuições de duas áreas de fundamental importância, da
PALACIN, Luiz. O século de ouro em Goiás 1722 – 1822: Estrutura e conjuntura numa capitania de
minas. Goiânia: UCG, 2001, p. 27.
3 PALACIN, Luiz; MORAES, M. A. História de Goiás (1722-1972). Goiânia: UCG, 2001, p. 30-31.
4 PALACIN, Luiz, O século de ouro em Goiás,op. cit., p. 77.
5 Sobre o tema ver LEMES, F. L. Goiás dans l´empire oceanique portugais. Pouvoir politique et réseau
urbain en Amérique coloniale (1720-1828). Saarbrucken: EUE, 2012.
2
Dossiê CÂMARA MUNICIPAL
44
mesma forma que suas congêneres no reino português. Como confirma
Nuno Gonçalo Monteiro a respeito das Câmaras municipais de Portugal,
“Até ao triunfo da Revolução Liberal”, na primeira metade do século XIX,
“as Câmaras detinham indistintamente competências que, na linguagem
atual, designaríamos de administrativas e judiciais” 6.
É importante lembrar que os vestígios deixados pela atuação dos
vereadores na América portuguesa, contemplam com certa abundância os
registros da atuação administrativa das Câmaras Municipais, sendo menos
comuns os documentos que evidenciam sua atuação enquanto tribunais
judiciais de primeira instância, o que nos leva a conhecer mais
profundamente suas atividades administrativas, em detrimento daquelas
associadas à justiça7.
Entretanto, os documentos dos quais dispomos certamente serão
suficientes para demonstrar uma autonomia significativa exercida pela
Câmara Municipal de Vila Boa de Goiás, no interior dos limites autorizados
pelas esferas de seu poder. Noutras palavras, no interior de um raio de
ação imposto pelas fronteiras da cidade: delimitação espacial para
aplicação das posturas e regras de convivência comunitária, no âmbito das
relações urbanas coloniais.
Criação e imposição de tributos
Para além dos limites de Vila Boa – único núcleo urbano com o
título de “vila” em Goiás ao longo de todo o século XVIII – assistimos a
expansão de uma rede de arraiais onde o poder da Câmara Municipal se
impôs sobre os vários aspectos da vida urbana. Por exemplo, a prática de
sobrecarregar os habitantes com gastos associados a serviços que
atendessem ao bem comum, estabelecendo taxas, donativos ou
contribuições voluntárias, permitia aos oficiais da Câmara de Vila Boa a
ampliação dos limites de sua autonomia sobre os espaços da cidade.
Estudando a Câmara Municipal do Rio de Janeiro, Maria Fernanda
Bicalho demonstrou a existência da prática de impor novos tributos em
MONTEIRO, N. G. Os concelhos e as comunidades. In: HESPANHA, A. M. (Coord.). História
de Portugal – O Antigo Regime (1620-1807). Lisboa: Estampa, v. 4, 1993, p. 306.
7 Na opinião de Nuno Monteiro isso não decorre apenas dos percursos provavelmente
tortuosos pelos quais passou a documentação municipal. Como sabemos parte significativa
das câmaras não contavam com juízes ordinários alfabetizados, e muitos deles, até as décadas
iniciais do século XIX, ainda assinavam “de cruz”, sendo possível que muitas deliberações
nunca tenham chegado a assumir a forma escrita. Cf. MONTEIRO, N. G. Os concelhos e as
comunidades, op. cit., p. 316.
6
REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014.
45
função da defesa de territórios contra invasores, custeando o reparo de
fortalezas, a construção de trincheiras ou o serviço de proteção contra
piratas e corsários. Neste aspecto, as Câmaras das cidades litorâneas, na
América portuguesa, desempenhavam as mesmas funções atribuídas
àquelas do reino português8. Ribeiro da Silva confirma esta função da
municipalidade na cidade do Porto, afirmando que o poder da governança
incluía a organização da defesa militar contra eventuais agressores externos
e que seus vereadores davam enorme importância ao exercício desta
atividade, considerada ao mesmo tempo como um direito e uma
obrigação9. Bicalho também demonstrou que a prática de “lançar tributos
sobre si”, como indica Figueiredo, “abriu um significativo precedente na
política fiscal ao possibilitar às Câmaras um direito apenas dos reis” 10.
Em Goiás, eram freqüentes os conflitos com as populações
autóctones, cujos ataques impunham a necessidade de uma constante
vigília, exigindo dos moradores a manutenção de mecanismos de defesa e
proteção. Neste aspecto, dentre as despesas realizadas pela Câmara de Vila
Boa, incluíam-se gastos com a defesa e organização militar embora fosse,
via de regra, uma responsabilidade pertencente à alçada dos governadores
da capitania.
A leitura de uma carta do escrivão da Junta da Real Fazenda, na
qual cobrava da Câmara Municipal uma dívida equivalente a duzentos mil
réis, faz referência a este tipo de despesa em Goiás. Em resposta, os
vereadores de Vila Boa informaram ao escrivão que “segundo as despesas
que se acham nas linhas dos tesoureiros consta dever a Real Fazenda a esta
Câmara muito maior quantia de assistências, que se fizeram com as canoas
para a expedição [na Ilha] do Bananal, pólvora e chumbo para as
Bandeiras, e outros gêneros”11.
Quanto à criação de novos tributos, a Câmara de Vila Boa de Goiás
também foi pródiga. E tal atribuição não permaneceu confinada às
atividades ligadas à guerra ou à defesa das fronteiras do território.
Manifestou-se no controle do cotidiano da cidade. Por exemplo, quando o
BICALHO, M. F. B. As Câmaras Municipais no Império Português: o exemplo do Rio de
Janeiro. Rev. bras. Hist. [online]. 1998, v. 18, n. 36, p. 251-580. Disponível em:
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S010201881998000200011&lng=pt
&nrm=iso>. Acesso em 10 nov. 2005, p. 252.
9 BICALHO, M. F. B. As Câmaras Municipais no Império Português, op.cit., p. 256.
10 Idem, p. 254.
11 VILA BOA DE GOIÁS. Arquivo Frei Simão Dorvi (AFSD). Livro de Registro do Senado da
Câmara (doravante LRSC), 1793, f. 101.
8
Dossiê CÂMARA MUNICIPAL
46
juiz ordinário do julgado de Santa Cruz informou a necessidade da
realização de uma obra na rua Direita, a Câmara de Vila Boa ordenou a
licitação do serviço ou que se mandasse executar por conta do orçamento
do julgado, até o valor de 50 oitavas de ouro, comunicando “aos ditos
moradores para que concorram com adjutorio possivel, vista a deterioração
e pouca possibilidade do julgado” 12. Noutras palavras, que os moradores
contribuíssem voluntariamente para a solução do problema.
Noutra oportunidade, como as posturas da Câmara proibiam a
passagem de carros pelas pontes que cruzavam o rio Vermelho, destinadas
apenas a pedestres, era necessário encontrar uma solução para a travessia
do rio, já que a ponte de uso costumeiro se encontrava em condições
precárias. Entendendo ser indispensável a construção de outra ligação para
a passagem dos carros, os oficiais da Câmara mandaram que fossem
“avisadas todas as pessoas que tem carro, para ajudarem com a pedra
precisa”13, impondo uma contribuição que na verdade tinha pouco de
voluntária e muito mais de obrigatória.
Exemplo da obrigatoriedade no cumprimento das disposições
emanadas pela Câmara foi o caso do furriel Paulo Antonio da Rocha.
Recebendo ordem para “fazer sem perda de tempo o Cais do Rio Vermelho
[em frente] de suas casas da banda da ponte até o canto de São Francisco de
Paula”, o furriel respondeu que seria preciso conversar a respeito, já que se
tratava de serviço de dimensão considerável. Mas como ao invés de
comparecer à Câmara se ausentou da cidade, mandou-se avisá-lo para que
no prazo de quinze dias iniciasse a obra ou se apresentasse à Câmara, a fim
de explicar suas dificuldades, “com pena de não o fazendo, se proceder a
factura da obra a sua custa, e vê-la fazer da Cadeia”14.
Na verdade, a Câmara se baseava para a cobrança de contribuições
voluntárias nas determinações registradas nas ordenações do reino15. No
Brasil, o direito das Câmaras de lançar fintas ou coletas, apenas foi extinto
com a lei de outubro de 1828. Antes desta data era muito comum em Vila
Boa de Goiás, a prática de impor e criar tributos, donativos e contribuições
para a defesa e realização de serviços comunitários.
LRSC, 1792, f. 71.
LRSC, 1793, f. 92.
14 LRSC, 1793, f. 95.
15 ORDENAÇOES FILIPINAS. Reprodução “fac-símile”, edição Candido Mendes de Almeida,
Rio de Janeiro, 1870. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1990, Livro I, Título LXVI,
Parágrafos 40-43.
12
13
REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014.
47
Mas se o poder de lançar novos tributos acaba por abrir um
precedente sem igual na política fiscal da Coroa, emprestando à Câmara
um direito que apenas o rei de Portugal poderia dispor, outra atribuição da
Câmara Municipal de Vila Boa indica a existência de uma autonomia
considerável: a escolha dos oficiais das ordenanças.
Escolha e nomeação de oficiais das ordenanças
Se o rei detinha o poder exclusivo da justiça e da guerra, as
atribuições sobre a primeira acabaram sendo transferidas, ainda que
parcialmente, para os juízes ordinários que presidiam as Câmaras que
exercitavam a justiça em primeira instância, cujas decisões apenas podiam
ser refeitas nos tribunais superiores de apelação. Contudo, como afirmam
M. H. Cruz Coelho e J. R. Magalhães, no “que diz respeito à parte militar a
sua autoridade efectiva [a autoridade do monarca] vai-se diluir”16. Num
reino onde as ordenanças são efetivamente organizadas em função de uma
intensa militarização, todos os homens válidos estão arrolados como
soldados para guerras eventuais. Mas, segundo estes autores, “e aqui está a
fraqueza [do rei], na prática entrega-se às Câmaras a escolha dos oficiais,
ou seja, capitães-mores, sargentos-mores e capitães”17. Em função desta
situação, são as elites locais, em busca de poder, prestígio e honra, que vão
se instalar nestes cargos via nomeação pela Câmara Municipal.
É exatamente isso que acontece em Vila Boa de Goiás. Na sessão da
Câmara de 15 de junho de 1793, carta do governador Tristão da Cunha
Meneses solicitava aos vereadores providências “para eleição dos oficiais
dos Postos Militares de Ordenanças que se acham vagos”18, revelando
como atribuição da Câmara a escolha dos oficiais militares das Ordenanças.
Além disso, também havia a preocupação em remunerá-los. É o que
demonstra a decisão de 14 de abril de 1794, onde os vereadores
determinaram que os julgados da Capitania ajuntassem recursos que
seriam alocados para o aumento do pagamento dos oficiais militares 19.
CRUZ COELHO, M. H. da; MAGALHÃES, J. R. O poder concelhio: das origens às cortes
constituintes. Coimbra: Centro de Estudos e Formação Autárquica, 1986, p. 31.
17 Idem, p. 32.
18 LRSC, 1793, f. 96.
19 LRSC, 1794, f. 133v. Este fato, por outro lado, talvez ajude a compreender o alto índice de
acesso a títulos militares por parte dos membros das Câmaras em toda a América portuguesa.
Embora sem dispormos de dados concretos a respeito de Vila Boa de Goiás, é perceptível a
presença de membros das ordenanças ocupando cargos na Câmara Municipal. Para o Rio de
16
Dossiê CÂMARA MUNICIPAL
48
Evidentemente, se os poderes conferidos à Câmara se limitavam às
fronteiras definidas pela cidade, a manifestação de tais poderes poderia
assumir contornos de importância considerável: “Menos que uma
delegação na aparência, trata-se de uma verdadeira transferência de uma
parcela de Poder-Mando”. De fato, uma “Parcela substancial”20.
Desde logo, se de acordo com Norbert Elias as sociedades de
Antigo Regime estavam associadas à construção do Estado absolutista,
caracterizado, por sua vez, por um duplo monopólio do soberano 21, ambos
os monopólios encontravam-se partilhados com a Câmara Municipal: o
monopólio fiscal e o monopólio da violência legítima, consubstanciado no
controle do aparato militar.
Neste sentido, um conjunto de atribuições conferia poder de
mando, tornando a Câmara de Vila Boa responsável pelas comunidades
que habitam os núcleos urbanos de Goiás durante o século XVIII: justiça
em primeira instância, possibilidade de lançar novos tributos e nomeação
para as ordenanças.
Em que pese a retomada de privilégios associados às
municipalidades por parte da Coroa nas últimas décadas do Setecentos, as
medidas centralizadoras do governo ilustrado português não alcançaram,
com a força esperada, os espaços de atuação das Câmaras Municipais.
Mantinham-se, portanto, poderes e privilégios locais ampliados pelo uso
de mais uma atividade exercida pelas Câmaras Municipais: o direito de
almotaçaria.
O direito de almotaçaria
Na América portuguesa, o direito de almotaçaria vinculava as
atividades da Câmara aos mais diferentes aspectos da vida dos habitantes
das cidades: a preservação dos espaços públicos e privados, a manutenção
do aspecto sanitário e as relações de mercado. Assim, a prática da
almotaçaria, nos permite detectar com bastante clareza aspectos
importantes a respeito da sociabilidade quotidiana, do pensamento sobre
Janeiro, Gouvêa (1998, p. 310) chega a afirmar que os dados compulsados demonstram que
cerca 72,8% dos oficiais camarários, entre 1790 e 1822, tiveram acesso a títulos militares. Cf.
GOUVÊA, M. de F. S. Redes de poder na América Portuguesa – o caso dos homens bons do
Rio de Janeiro, 1790-1822. Revista Brasileira de História, São Paulo, n. 36, 1998, p. 310.
20 CRUZ COELHO, M. H. da; MAGALHÃES, J. R. O poder concelhio: das origens às cortes
constituintes, op. cit., p. 32.
21 ELIAS, N. A sociedade de corte: investigação sobre a sociologia da realeza e da aristocracia de corte.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.
REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014.
49
as formas possíveis de organização sócio-espacial da cidade e sua
configuração econômica 22.
Embora não seja nosso objetivo retornar às origens da instituição
da almotaçaria, convém identificar alguns aspectos pontuais de sua
genealogia23. De acordo com Magnus Roberto Pereira, na cidade
muçulmana, o almotacé24 era o responsável pela Hisba – em árabe, o titular
da Hisba era denominado Muhtasib –, cujas funções eram a aferição dos
pesos e medidas, o equilíbrio nas transações comerciais, o controle dos
ofícios existentes na cidade, a garantia do abastecimento alimentar, a
higiene e sanidade urbana e a manutenção dos aspectos físicos da cidade.
Por sua vez, as Câmaras Municipais coloniais tratariam logo de
submeter ao seu controle as funções relativas à almotaçaria, provocando
uma atrofia do cargo de almotacé, fazendo dele um oficial menor, de
nomeação dos próprios vereadores25. No caso de Vila Boa de Goiás, suas
atribuições foram parcialmente absorvidas, ocupando posição estratégica
dentre as ações desempenhadas pela Câmara Municipal.
Assim, responsáveis pela fiscalização do mercado, pela
manutenção da higiene pública e controle das demandas relativas à parte
edificada da cidade, os almotacés atuavam como uma espécie de juízes de
pequenas causas, resolvendo as irregularidades encontradas in loco, ou seja,
no próprio local de origem das pendências que feriam as posturas
municipais, promovendo o julgamento e determinando as penas cabíveis.
Neste aspecto, durante séculos o palácio da justiça da almotaçaria teria sido
a própria rua26.
PEREIRA, M. R. M. Almuthasib – Considerações sobre o direito de almotaçaria nas cidades
de Portugal e suas colônias. Revista Brasileira de História, São Paulo, n. 42, 2001, p. 381.
23 Estudando o sentido da palavra almotaçaria, Magnus Roberto Pereira nos informa que ela
foi usada, desde o período medieval, tanto em sentido geral quanto particular, para designar a
instituição ou suas atribuições e as atividades correntes do almotacé e, mais tarde, da câmara
em relação ao abastecimento das cidades. Almotaçar correspondia a fiscalizar o comércio,
garantindo que todos pudessem desfrutar de alimentos encontrados no mercado, racionando
ou tabelando quando necessário. Foi este o sentido que chegou até o século XIX, quando a
almotaçaria era entendia como qualquer espécie ou tipo de tabelamento de preços. Idem, p.
372 e 391.
24 O termo almotacé nos parece bastante incomum, sendo conseqüência de uma adaptação para
a língua portuguesa do nome original em árabe. O nome só teria sido latinizado, no Brasil,
durante o século XIX. Idem, p. 392.
25 Idem, p. 373.
26 PEREIRA, M. R. M. O direito de almotaçaria. In: PEREIRA, M. R. M; NICOLAZZI, N. Frehse
(Orgs.). Audiências e correições dos almotaçés (Curitiba, 1737 a 1828). Curitiba: Aos Quatro
Ventos, 2003, p. 7.
22
Dossiê CÂMARA MUNICIPAL
50
Espaço urbano e ordenamento da cidade
Resultado de uma nova concepção espacial urbana no âmbito da
política expansionista de Portugal, Vila Boa de Goiás constituiu-se numa
das primeiras experiências que marcaram uma nova disposição
arquitetônica na América portuguesa27. Assim, “a concepção cenográfica
do espaço, a valorização das fachadas e a adoção de modelos uniformes aos
quais devem obedecer todas as construções” 28, foram elementos
incorporados à estrutura urbana de Vila Boa, definindo de forma clara a
visibilidade de um espaço urbano colonial planejado.
Em sua carta de fundação, o rei D. João V indicava as inovações
previstas na estrutura urbana que seriam implantadas nas proximidades
do arraial de Santana, abandonando o padrão anterior que norteava a
organização urbana do império português 29.
Contudo, Luis de Assis Mascarenhas, governador de São Paulo e
responsável pela fundação de Vila Boa de Goiás, teria sido negligente em
exigir o cumprimento do padrão reticular no traçado das ruas 30, o que
justificaria novas recomendações de Lisboa, durante a década de 1770, para
que fosse estabelecido um plano diretor para a cidade, a fim de se evitar a
irregularidade e a falta de alinhamento que caracterizava a construção de
seus edifícios.
Em que pese as preocupações urbanísticas do governador José de
Almeida Vasconcelos (1772-1778), responsável por executar importantes
calçadas, pontes e o conhecido Chafariz, o maior reformador urbano de
Vila Boa foi Luis da Cunha Meneses. Em seu mandato, introduziu
propostas de realinhamento do traçado da cidade e um código de posturas
definindo a uniformidade das fachadas para a construção de novos
edifícios31. Esta nova concepção urbana, inspirada na imagem de quadras
BOAVENTURA, D. M. R. Arquitetura religiosa de Vila Boa de Goiás no século XVIII. 2001. 135 f.
Dissertação Mestrado em Arquitetura e Urbanismo/Escola de Engenharia de São Carlos,
Universidade de São Paulo, São Carlos, 2001, p. 42.
28 TEIXEIRA, M. C.; VALLA, M. O urbanismo português. Lisboa: Livros Horizonte, 1999, p. 254.
29 Provisão do rei D. João V, ao governador e capitão-general de São Paulo, conde de Sarzedas,
ordenando-lhe que passe às Minas de Goiás e nelas determine o lugar mais adequado para a
criação de uma vila. Arquivo Histórico Ultramarino (AHU), Conselho Ultramarino (CU), Cx.
1, D. 25. Lisboa, 11 de fevereiro de 1736.
30 DELSON, R. M. Novas vilas para o Brasil-colônia. Brasília: Alva-Ciord, 1997, p. 31.
31 BOAVENTURA, D. M. R. Arquitetura religiosa de Vila Boa de Goiás no século XVIII, op. cit., p.
34.
27
REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014.
51
compactas, ruas uniformes e casas com fachadas alinhadas, se contrapunha
aos modelos baseados em assentamentos introduzidos anteriormente com
suas linhas gerais irregulares, reconhecidos pela historiografia como
configurações espontâneas32. Neste sentido, é Vila Boa de Goiás que
inaugura este novo padrão imposto pelo urbanismo português em todo o
Império. De acordo com Nicolazzi Júnior, esse “procedimento começa com
as ordens régias para as fundações de Vila Boa de Goiás e Icó, no Ceará”,
tendo sido expedida carta régia semelhante, em 1746, para a fundação de
Vila Bela, em Mato Grosso33.
Desfazendo um engano decorrente de interpretações presentes na
historiografia brasileira, que considera o passeio público do Rio de Janeiro
como o primeiro a ser construído na colônia americana, Mello Pereira
demonstra que o primeiro jardim público construído entre nós, embora de
menor porte, foi o de Vila Bela, em Mato Grosso. Em seguida, durante o
governo de Luiz da Cunha Meneses (1778-1783), foi criado em Vila Boa de
Goiás outro passeio público vegetado, aproveitando-se de um logradouro
existente, o Largo do Chafariz, onde se fez plantar uma alameda 34.
Corroborando a proposição de Mello Pereira, Luiz Antônio da Silva e
Souza, que viveu em Goiás na segunda metade do século XVIII, lembra que
Luiz da Cunha Meneses, “Formou uma alameda e passeio público no largo
do Chafariz, e para isto se plantaram por ordem as arvores, que depois
foram cortadas, por se dizer que suas raízes damnavam as águas”35.
Segundo informa Mello Pereira, as árvores ali existentes foram cortadas
durante o governo de João Manoel de Meneses entre os anos 1800 e 180436.
Por esta via, a concepção de cidade presente no imaginário
português acabou por nortear a elaboração de posturas urbanas,
orientando, ao mesmo tempo, a dinâmica cotidiana dos oficiais municipais,
através, sobretudo, do instituto da almotaçaria. Neste sentido, se a Carta
Régia de fundação de Vila Boa demonstrava a preocupação do rei de
Ibid.
NICOLLAZI JÚNIOR., N. F. O almotacé na Curitiba colonial. In: PEREIRA, M. R. M;
NICOLLAZI JÚNIOR., N. F (Orgs.). Audiências e correições dos almotaçés (Curitiba, 1737 a 1828).
Curitiba: Aos Quatro Ventos, 2003, p. 52.
34 PEREIRA, M. R. M. De árvores e cidades. In: SOLLER, M. A.; MATOS, M. I. A cidade em
debate. São Paulo: Olhos d‟Água, 2000, p. 18-19.
35 SILVA E SOUZA, L. A. Memória sobre o descobrimento, governo, população e cousas mais
notáveis da Capitania de Goyaz. In: TELES, J. M. Vida e Obra de Silva e Souza. Goiânia: UFG,
1998, p. 99.
36 PEREIRA, M. R. M. De árvores e cidades, op. cit., p. 19.
32
33
Dossiê CÂMARA MUNICIPAL
52
Portugal quanto a uma estrutura urbana pensada a partir de um plano préestabelecido e se os governadores perseguiam a execução de
procedimentos que formatavam a cidade de acordo com uma nova
concepção urbana, foi a Câmara Municipal que melhor exprimiu a
existência de um imaginário associado a uma ordem urbana em Vila Boa
de Goiás. Pois eram os juízes ordinários, vereadores, procuradores e
almotacés os encarregados pelo controle de uma ocupação urbana que
deveria resultar num conjunto considerado harmonioso37.
Assim, encontramos a Câmara Municipal promovendo uma
intervenção na estrutura urbana de Vila Boa, fundamentada a partir das
definições encontradas num “mapa e prospecto” que parece ser o mesmo
elaborado por Luiz da Cunha Meneses, cuja proposta de alinhamento do
tecido urbano, datado de 1782, foi publicada por Reis Goulart38.
Em fevereiro de 1795, “como tinha caído o muro dos fundos das
casas de Manoel de Siqueira, o qual se devia levantar de novo”, os
vereadores advertiam que o muro fosse reconstruído “na forma do Mapa e
prospecto que se acha determinado para a boa regularidade das ruas”. Para
isso, prescreveram a demolição dos muros de outras residências para que
fosse retificado o traçado da rua de acordo com o prospecto, “cordeando
todas com o canto das casas onde mora Antônio Moreira de Oliveira”.
Noutras palavras, realinhando a partir de novo posicionamento as
fachadas das casas e seus muros39.
Esta política urbana teve seu vértice ancorado nos poderes locais,
mas, sobretudo, na atuação conjunta entre governadores, ouvidores e
representantes da Câmara Municipal. É o que indica uma carta do
governador ao ouvidor-geral de Goiás, contendo as recomendações que
deveriam ser repassadas à Câmara de Vila Boa. Justificando a concepção do
plano de realinhamento para as ruas da cidade, o governador Luiz da
Cunha Meneses, afirmava
não ser menos importante ao bem público e pertencer
igualmente a minha obrigação a boa regularidade de
se construírem seus edifícios, para que debaixo do
preceito de alinhamento formem um agradável
prospecto e consequentemente subam ao maior auge
NICOLLAZI JÚNIOR., N. F. O almotacé na Curitiba colonial, op. cit., p. 52.
GOULART, N. R. Imagens de vilas e cidades do Brasil colonial. São Paulo: EDUSP, 2000.
39 LRSC, 1795, fs. 179-179v.
37
38
REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014.
53
da Polícia e civilidade, de que tanto depende a
conservação da sociedade civil40.
De fato, os conflitos e as execuções envolvendo propriedades
públicas e particulares em Vila Boa eram tão freqüentes, que a Câmara
nomeava oficiais anualmente “para avaliarem os bens móveis e de raízes
em que se fizerem execuções nos juízos desta vila” 41. Da mesma forma,
elegiam arruadores, freqüentemente mestres-de-obras, responsáveis pelas
medições e informações quanto ao andamento das linhas e traçados das
áreas, ruas, lotes e testadas dos edifícios da vila.
Entre o público e o privado: o uso do solo rural e urbano
Se a criação de novos tributos, a indicação de nomes para as
ordenanças militares e o controle das edificações compunham a agenda dos
oficiais da Câmara, outra atividade fundamental terá sido a organização e o
ordenamento do espaço urbano42. Neste aspecto, as parcelas dos espaços
urbanos geridos pela Câmara Municipal, transformavam esta atribuição
num intenso poder de controle sobre a vida dos habitantes da cidade.
Estudando o assunto no reino de Portugal, Nuno Monteiro é
taxativo: “Um domínio decisivo da acção camarária, particularmente na
segunda metade do século XVIII, era o da administração dos baldios e
maninhos”43. Além disso, do ponto de vista da legislação reinol, “a Câmara
passa a aparecer como a instituição que detém o poder de legitimar a
subtracção de bens [...] (ao) usufruto colectivo e a sua redução à posse
individual”44. Noutras palavras, a legislação lusa sinalizava no sentido de
transferir a administração dos logradouros comuns para a competência das
Câmaras, oferecendo-lhes a possibilidade de fazerem aforamentos, apesar
de mantidas sob a tutela das instituições centrais da monarquia 45.
BERTRAN, P. Notícia Geral da Capitania de Goiás em 1783. Goiânia: UGC/UFG; Brasília: Solo
Editores, 1996, p. 59.
41 LRSC, 1795, f. 172v.
42 NICOLLAZI JÚNIOR., N. F. O almotacé na Curitiba colonial, op. cit., p. 71.
43 MONTEIRO, N. G. Os concelhos e as comunidades, op. cit., p. 319.
44 Idem, p. 320
45 Ibid.
40
Dossiê CÂMARA MUNICIPAL
54
Em Goiás não foi diferente. São inúmeros os casos de solicitações e
autorizações para ocupação de áreas foreiras 46, mantidas sob o controle da
Câmara Municipal. Por exemplo, na sessão da Câmara de 22 de agosto de
1792, foi autorizada a transferência de posse de uma área que, ao que tudo
indica, devia tratar-se de uma chácara nas proximidades da cidade.
Durante a reunião, os oficiais da Câmara favoreceram a Amaro Jose da
Rocha com uma propriedade de setecentas e cinqüenta braças, “cujas terras
foram de Pedro Dias da Sylva, filho de Estevão da Cunha, ambos já
falecidos” 47.
Caso parecido está descrito na “carta de aforamento do sitio que foi
de Joaquim Bueno e de Dona Rosa Leite de Mesquita”. O beneficiado foi o
tenente Joze Victoriano que pagou “os foros que se venceram desde o dia
de sua concessão”48. Pouco tempo depois, uma ordem de notificação
emitida pela Câmara Municipal, em junho de 1794, indica a dificuldade de
controle sobre essas áreas, provavelmente devido à enorme quantidade de
terrenos disponíveis, o que, por outro lado, não impedia a cobrança por seu
uso desautorizado. Na oportunidade, os oficiais municipais despacharam
um
requerimento de mandado para serem notificadas
algumas pessoas que estão plantando em terras
foreiras da Câmara, sem título ou pagamento de foro
para no termo de oito dias apresentarem os títulos por
onde as possuam ou pagarem em dobro os foros
respectivos desde o tempo que as estão desfrutando49.
Se o uso de terras nas proximidades do núcleo urbano estava
submetido ao controle da Câmara, a disponibilidade do uso de lotes e a
construção de edifícios no interior da cidade, também dependiam de uma
“provisão de licença”, mecanismo sobre o qual também incidia taxas
pecuniárias. Felix Alves, morador de Vila Boa, teve autorizada, em agosto
de 1792, uma solicitação para construção, quando “se mandou passar
Provisão de Licença para [...] edificar as suas casas na rua Direita adiante
As áreas foreiras, objeto de aforamentos por parte da Câmara Municipal, representavam um
domínio de propriedade pública sobre o qual eram cobrados encargos pelo privilégio do
usufruto cedido temporariamente e controlado pela municipalidade. Nelas, os foreiros
(aqueles que detinham o domínio útil de uma propriedade), pagavam foros ou direitos aos
oficiais da Câmara, correspondentes a uma quantia fixa e periódica (anual).
47 LRSC, 1792, fs. 70-70v.
48 LRSC, 1793, f. 98v.
49 LRSC, 1794, f. 139.
46
REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014.
55
da ponte da Lapa, junto ou defronte das casas do Reverendo José
Dantas”50.
Da mesma forma, Maria dos Prazeres obteve uma licença
autorizando “uma morada de Casas” em Vila Boa51. Manoel do Sacramento
recebeu uma provisão de concessão “de quatro braças de terras para fazer
uma propriedade na Rua Nova de Santa Barbara”52. E, para um
requerimento de autor desconhecido, “se assinou provisão de licença para
construir uma morada de casas na rua nova do Moinho que vai para o Rio
da Prata nos chãos que possui já cercados de muro”53.
O uso do solo urbano e rural, bem como as autorizações para novas
edificações, não eram as únicas formas de controle da expansão territorial
exercida por parte da Câmara. Construídas as suas casas, todo e qualquer
tipo de alteração que porventura os moradores quisessem realizar, também
dependia da anuência dos vereadores. Foi o que aconteceu, por exemplo, a
Joze Pereira Vale quando solicitou autorização para a reforma de sua
residência e os vereadores deliberaram sobre “uma Provisão de Licença
para retificar as suas casas”54.
Neste caso, no horizonte da atuação da Câmara também estavam
em jogo os espaços demarcados pelas fronteiras tênues entre o público e o
privado. Na verdade, os oficiais camarários detinham o poder de legitimar
a subtração de bens que, do ponto de vista legal, pertenciam à comunidade,
submetendo-os ao usufruto coletivo e reduzindo-os à posse individual.
A preocupação com a estética e embelezamento de um espaço
público como a rua, podia conduzir a uma imputação de responsabilidade
de um proprietário no âmbito privado. Partindo deste princípio, a Câmara
Municipal mandou notificar o tenente Francisco Lopes de Miranda para
que, no prazo de oito dias, deslocasse o muro “dos fundos dos quintais das
suas casas”, a fim de que fosse alinhado ao dos seus vizinhos, “para
formosear o prospecto daquela rua”55. Noutra sessão, de 13 de abril de
1793, os vereadores mandaram avisar a Paulo Antonio da Rocha, morador
das margens do rio Vermelho, que fizesse “o cais da testada de suas casas,
e quintal, assim como praticaram os mais moradores da ponte para cima
LRSC, 1792, fs. 70-70v.
LRSC, 1793, f. 88v.
52 LRSC, 1793, f. 104.
53 LRSC, 1794, f. 111.
54 LRSC, 1793, f. 84.
55 LRSC, 1794, f. 139v.
50
51
Dossiê CÂMARA MUNICIPAL
56
ate a Lapa”. Na mesma sessão, também foi notificado Manoel Lamego
“para fazer a parede de seu quintal, pela grande ruína que ameaça as
pessoas que passam pelo cais”56.
Nestes exemplos, podemos perceber que a descontinuidade no
conjunto das construções seguia sendo alvo de freqüentes demandas da
Câmara Municipal, que buscava induzir o respeito à beleza e à
funcionalidade do núcleo urbano, evitando construções fora do padrão
definido no prospecto urbano da cidade.
Por outro lado, parece claro, para além do interesse estético e
meramente funcional, a importância dos muros e cercas no universo mais
amplo de sociabilidade de Vila Boa. Como afirma Nicolazzi Júnior, fazendo
referência à Vila de Curitiba, ao mesmo tempo em que tinham a função de
delimitar os lotes urbanos, também estabeleciam uma nítida separação
entre os universos público e privado, devendo haver a imposição de limites
claros e objetivos entre a rua e a casa, entre a exposição nos espaços
comuns e a intimidade da família e do lar57.
Como vemos, a conservação da estrutura física da cidade era uma
preocupação dos oficiais da Câmara Municipal de Vila Boa. Assim, ao
mesmo tempo em que mantinham os olhos voltados para o interior das
propriedades, contemplando os desgastes decorrentes das edificações
particulares que interferiam diretamente no vai-e-vem dos habitantes, não
podiam deixar de acompanhar aspectos de uma malha urbana sempre
sujeita ao uso permanente e às intempéries da natureza.
Espaços da cidade: conservação de ruas, estradas e edifícios
A abertura e preservação de caminhos, ruas, calçadas, pontes e
edifícios públicos eram indispensáveis para o bom funcionamento da
cidade. A conservação dos caminhos por toda a extensão da enorme
capitania era fundamental para garantir a segurança nas viagens e,
principalmente, as transações comerciais que fluíam pelas vias que
conectavam Goiás aos circuitos mercantis regionais e continentais.
Quando o juiz ordinário do julgado de Santa Cruz solicitou à
Câmara de Vila Boa o conserto da rua que dava acesso ao arraial, por se
encontrar “desde as aguas do ano passado constantemente arruinado”,
esperava contar com o interesse das autoridades municipais para resolver o
56
57
LRSC, 1793, f. 91v.
NICOLLAZI JÚNIOR, N. F. O almotacé na Curitiba colonial, op. cit., p. 55.
REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014.
57
problema, já que o defeito na rua impedia a “passagem dos viandantes que
comerciam da Cidade de São Paulo para esta Capitania”58. Na primeira
sessão do mês de março do mesmo ano, movido pelas reclamações e pela
“queixa geral dos viandantes”, o procurador da Câmara, reconhecendo a
gravidade da situação, solicitou o concerto “da estrada geral desta Vila
[Boa] para o [arraial de] Ouro Fino [...] em que tem havido alguns perigos;
sendo o lugar por onde entram todos os viveres para a sustentação dos
moradores desta Vila”59. Em resposta, o presidente da Câmara mandou
licitar a obra e, pelo menor preço possível, realizá-la imediatamente.
Se os caminhos que ligavam Vila Boa aos arraiais da capitania
demandavam serviços e despesas constantes, as ruas e calçadas de seu
próprio espaço urbano também requeriam a mesma atenção da Câmara
Municipal. Mesmo porque, quando um problema na estrutura urbana da
vila não tinha solução rápida, ia disseminando conseqüências e ampliando
o raio de seus prejuízos. Era este o caso da “rua que vai para o Moinho”,
cujos moradores haviam feito uma petição para a construção de uma
calçada, pois “se não fizer a dita calçada ficam as águas empossadas, feito
Lagoa, arruinando as paredes das casas”. Os vereadores declararam a
intenção de resolver o problema assim que possível, alegando que os
pedreiros estavam “todos ocupados nas mesmas obras públicas tão
necessárias”60.
A concepção da regularidade não era observada apenas nas
fachadas e muros de Vila Boa. As calçadas também requeriam um padrão
mínimo de uniformidade, garantindo conforto e segurança aos usuários.
Por isso, o juiz almotacé Manoel Joze Leite, denunciando que a “calçada
dos fundos das casas de sobrado do Alferes Joze Ribeiro da Costa [...] até a
calçada das casas da Capela de Nossa Senhora do Rosário” estava muito
baixa, causando “dano a serventia publica” (provocando a queda de várias
pessoas), argumentou que era necessário “levantar em termos hábeis”, ou
seja, regularizá-la, tornando-a uniforme, a fim de evitar outros acidentes 61.
O cuidado com os edifícios públicos, também atraía a atenção dos
vereadores, pois constituíam, às vezes, em fonte importante de rendas para
a municipalidade. O açougue público é um exemplo. Local de
comercialização da carne, parece sempre ter sido tratado com certa
LRSC, 1793, f. 87.
LRSC, 1793, f. 88.
60 LRSC, 1792, f. 74v.
61 LRSC, 1793, f. 104v.
58
59
Dossiê CÂMARA MUNICIPAL
58
importância no contexto das atividades da Câmara. Segundo Silva e Souza,
o governador Luiz da Cunha Meneses teria aumentado “o patrimônio da
Câmara, mandando fazer a casa do açougue para seu rendimento”, tendo
levantado recursos para a obra por meio de uma loteria que teria rendido
1000 oitavas de ouro. Curiosamente, o projeto da casa do açougue teria
sido iniciado a partir de “um risco da sua mão” que, posteriormente, teria
sofrido alterações durante a execução da obra62.
Em sessão da Câmara ocorrida em 19 de novembro de 1793,
decidiu-se que seriam licitadas as obras de retelhamento das casas e da
cozinha do mesmo açougue construído por Cunha Meneses, bem como a
reforma do curral63. Entretanto, nove meses depois, foi apresentado pelo
procurador da Câmara “um novo risco para a reedificação do açougue
público que se acha ameaçando grande ruína”64, cujos serviços os
vereadores mandaram arrematar pelo menor preço65. Além da reforma do
curral público, onde se guardavam os animais pertencentes à
municipalidade, a Câmara resolveu cobrar pelo uso de terceiros. Por isso,
determinou “que se avaliasse o valor do uso do curral público para
particulares”66, procedendo à avaliação do custo da obra para se chegar a
um valor ideal. Em seguida, os vereadores decidiram, baseados no valor da
construção do curral público (que teria custado aos cofres da Câmara 86
oitavas de ouro e seis vinténs), cobrar o valor correspondente a 1 vintém
por cabeça aos proprietários que mantivessem seus animais no curral
municipal67. Trinta dias depois, a Câmara mandava aprontar “a postura do
novo curral do concelho” visando “garantir a segurança do gado nele
guardado”68.
Finalmente, o poder e a ordem impostos através da atuação da
Câmara Municipal de Vila Boa de Goiás estavam ancorados na necessidade
de organização dos espaços urbanos: a administração de edifícios públicos,
a preocupação com a estética e a forma, a manutenção de calçadas, ruas,
caminhos e pontes, o aforamento de áreas urbanas e rurais e, como
corolário, a interferência sobre os domínios público e privado. Noutras
palavras, a ação dos oficiais municipais implicava “na estruturação e
SILVA E SOUZA, L. A. Memória sobre o descobrimento, governo, população e cousas mais
notáveis da Capitania de Goyaz, op. cit., p. 98.
63 LRSC, 1793, f. 106.
64 LRSC, 1794, f. 150.
65 LRSC, 1794, fs. 160v, 161, 162, 162v, 163v e 165v.
66 LRSC, 1795, f. 174v.
67 LRSC, 1795, 178v.
68 LRSC, 1795, f. 180.
62
REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014.
59
definição de um sistema de sociabilidade”69, cuja busca pelo bem comum
comporia o alicerce ou as bases da sociedade, centrada numa concepção de
cidade previamente elaborada.
Intervenções no mercado: economia moral e preço justo
Desde logo, outra atividade, garantida pelo direito de almotaçaria,
ampliava a agenda diária dos oficiais da Câmara: o controle das relações de
mercado. Como lembra Fernand Braudel, é a existência do mercado que,
por sua própria especificidade, define os contornos mais claros da cidade.
“Não há cidade sem mercado e não há mercados regionais ou nacionais
sem cidades”70. Se, na definição braudeliana, cidade e mercado estão
entrelaçados, em Vila Boa de Goiás era a Câmara Municipal o elo forte que
os interligava. Baseada nos editais das posturas municipais, publicados a
cada mês de janeiro71, a regulamentação sobre as relações comerciais
submetia ao poder protetor e coercitivo da municipalidade parte essencial
da vida dos moradores de Vila Boa. Como afirma Nuno Monteiro a
respeito das Câmaras do reino de Portugal,
“as posturas e a
regulamentação da actividade econômica local delas decorrente
constituíam uma das dimensões essenciais da esfera de jurisdição própria
das Câmaras, ao mesmo tempo que traduziam exemplarmente o sentido
global da sua actuação72.
De fato, o controle das relações de mercado estava fundamentado
em duas concepções que norteavam a ação dos oficiais da Câmara:
primeiro, o abastecimento de gêneros alimentícios e, em segundo lugar,
uma certa noção de mercado.
Na economia mineradora de Goiás durante o século XVIII, de
característica essencialmente urbana e mercantil, a ausência de gêneros
alimentícios poderia provocar o que Júnia Ferreira Furtado, ao estudar o
caráter da economia de Minas Gerais, indicou como a desorganização do
mundo urbano, que poderia por em risco o equilíbrio e a estabilidade
social, indispensável para o sucesso da atividade da mineração 73.
NICOLLAZI JÚNIOR, N. F. O almotacé na Curitiba colonial, op. cit., p. 68.
BRAUDEL, F. Civilização material, economia e capitalismo – Séculos XV-XVIII. As estruturas do
cotidiano: o possível e o impossível. São Paulo: v. 1, Martins Fontes, 1997, p. 441.
71 LRSC, 1793, f. 83.
72 MONTEIRO, N. G. Os concelhos e as comunidades, op. cit., p. 318.
73 FURTADO, J. F. Homens de Negócios – A interiorização da metrópole e do comércio nas Minas
setecentistas. São Paulo: Hucitec, 1999, p. 205.
69
70
Dossiê CÂMARA MUNICIPAL
60
Neste aspecto, o poder exercido sobre o funcionamento do
mercado complementava as atribuições que conferiam enorme influência
da Câmara Municipal sobre o quotidiano de Vila Boa de Goiás. Era, pois,
necessário – em meio às ameaças onipresentes de crises de
desabastecimento ou de altas generalizadas de preços – garantir um
equilíbrio essencial à vida da cidade regulando o mercado local.
Desta forma, a preocupação com o fornecimento e o acesso aos
alimentos essenciais à população, era objeto de controle permanente por
parte da Câmara de Vila Boa. É neste sentido que o procurador Manoel
Joze Leite, em outubro de 1792, incitava seus pares a promover uma
fiscalização generalizada no comércio da cidade “para se darem as
providências necessárias ao clamor desse povo” que, apesar do
tabelamento de preços imposto pela municipalidade, reclamava dos preços
elevados, “em prejuízo grave do bem publico”74.
Mais que o simples tabelamento de preços existia a preocupação
em evitar a ação de atravessadores que, de acordo com o raciocínio dos
vereadores, eram os principais responsáveis pela alta nos preços. Não é
sem razão que o procurador da Câmara é repetitivo a respeito do assunto.
Ainda no mesmo mês de outubro, por ocasião da escolha dos almotacés
para os meses de novembro e dezembro, Manoel Joze Leite insistia com os
eleitos para que cumprissem o Regimento dos Almotacés, “por ser
constante o clamor do povo pelo excessivo preço por que estão os
Taberneiros vendendo os mantimentos por maior preço das almotaçavias
[...] dando as providencias necessárias não só nesta importante matéria,
como também nos atravessadores dos ditos mantimentos, e outros
gêneros75.
Se a preocupação do procurador evidencia certa dificuldade em
manter os preços dentro dos limites definidos pelos oficiais municipais, o
“constante clamor do povo” parece revelar uma espécie de cobrança da
população com relação ao papel da Câmara no âmbito da economia da
cidade. Isso justificava, certamente, a vigilância direcionada aos
atravessadores, alvos de um sentimento de aversão por parte dos oficiais
da Câmara. Contudo, a simples existência dos atravessadores revela sua
conexão mais profunda com o sistema comercial implantado em Goiás: alí,
a distância dos centros urbanos distribuidores de produtos alimentícios
estimulava seus negócios, o que resultava nos altos preços dos produtos.
74
75
LRSC, 1792, f. 73v.
LRSC, 1792, f. 77.
REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014.
61
Por outro lado, a tímida produção local de alimentos destinados ao
mercado agravava a situação76.
Neste aspecto, no raciocínio de Júnia Furtado aplicado às Minas
Gerais, mas válido para Goiás, este temor aos atravessadores revela,
também, a incapacidade de se perceber a importância e o papel dos
intermediários para a efetivação do comércio numa complexa rede
comercial estabelecida nas minas77. Para ela, o ódio indiscriminado contra
os intermediários resultava da incapacidade em distinguir aqueles
necessários daqueles que atravessavam mantimentos visando apenas o
proveito próprio. Seja como for, a ação dos especuladores foi
constantemente combatida pelas autoridades locais, tanto em Minas Gerais
quanto em Goiás, “em nome do bem-estar dos súditos e da manutenção da
ordem social”78.
Vale, também, ressaltar que toda ação da Câmara de Vila Boa
voltada para o controle das relações comerciais, estava pautada numa
noção específica de mercado. A chave do controle de todas as atividades
comerciais e artesanais apoiava-se no conceito da economia moral de preço
justo79.
Na imagem de uma comunidade corporativa característica das
sociedades de Antigo Regime, cada corpo, além de ter um lugar adequado,
detinha um valor absoluto e outro relativo ou razoável. Assim, nas relações
de mercado, o valor razoável correspondia ao valor moralmente justo. Por
este caminho, o objetivo primordial seria garantir certo equilíbrio nas
relações de produção e consumo, assegurando o bem estar e uma
sociabilidade adequada.
Nas fontes pesquisadas, a referência à atividade agrícola e pecuária em Goiás são muito
freqüentes. Mas, de acordo com Luiz Palacin (2001, p. 141), dois graves obstáculos impediam o
bom andamento da agricultura: o desprezo dos mineiros pela atividade do campo e a
legislação fiscal, que confiscava boa parte da produção local, desestimulando as iniciativas por
parte de eventuais produtores locais. Quando o governador José de Vasconcelos pediu a
opinião da Câmara de Vila Boa sobre as causas do pouco avanço da atividade agrícola na
capitania, a resposta foi direta: os dízimos. Os dízimos estiveram enraizados nas causas do
fracasso de todas as tentativas de vitalizar a agricultura e a pecuária em Goiás Colonial.
PALACIN, L. O século do ouro em Goiás, op. cit., 143.
77 FURTADO, J. F. Homens de Negócios – A interiorização da metrópole e do comércio nas Minas
setecentistas. São Paulo: Hucitec, 1999, p. 211-212.
78 Idem, p. 209.
79 PEREIRA, M. R. M. Almuthasib – Considerações sobre o direito de almotaçaria nas cidades
de Portugal e suas colônias, op. cit., p. 379.
76
Dossiê CÂMARA MUNICIPAL
62
Em Goiás, o primeiro mecanismo utilizado para o estabelecimento
do preço justo foi o tabelamento dos preços. Em Vila Boa a intervenção dos
vereadores parece ter sido bastante contundente na definição dos preços
dos gêneros como a carne e o sal, bem como de outros produtos, tais como
roupas e sapatos. O preço justo (preço imposto a produtos ou serviços por
lei ou postura) definido pela Câmara Municipal devia ser respeitado e
praticado, sendo a desobediência punida severamente com castigos e
multas80.
Assim, o procurador da Câmara de Vila Boa, apoiado nas posturas
municipais e calcado no que prescreviam as Ordenações do reino, pediu o
fechamento de uma taberna, localizada no caminho do arraial do Ferreiro,
por estar comercializando
todos os viveres da terra [...] pelos preços que querem,
sem fazer menção da Almotaçavia, e que como é [a]
Estrada para esta Vila, por onde passam as
Carregações de mantimentos, e que tudo se atravessa
para revender ao povo contra as Posturas desta
Câmara, se deve evitar, pondo-se-lhe as penas da Lei
para sua emenda e exemplo de outros81.
A análise dos conflitos entre oficiais da Câmara, lavradores e
senhores de engenhos em Vila Boa de Goiás, ocorridos entre os anos 1793 e
1794, tendo como ponto de discórdia o tabelamento de preços dos produtos
agrícolas, permite identificar a importância da noção de preço justo nos
procedimentos adotados pela Câmara. Afirmando que os gêneros
alimentícios produzidos pelos agricultores “são sujeitos a almotaçarem e a
venderem pela taxa que lhe puser o Almotacel”, afirmavam os vereadores
que os preços deveriam “sempre [...] regular se atender ao tempo, e ocasião
de abundancia ou carestia dos mantimentos, e viveres, em que a elevação
diminua o que for racionável sem prejuízo do Publico e dos Lavradores”82.
A prática de se determinar previamente os preços dos produtos era
justificada pela ideia do “prejuízo do público”, evidenciando uma
racionalidade nas relações de mercado que visava impedir lucros
exagerados por parte de alguns comerciantes ou agricultores. Não
podemos esquecer, por outro lado, que o desrespeito às determinações da
ORDENAÇOES FILIPINAS. Reprodução “fac-símile”, op. cit., Livro I, Título LXVI,
Parágrafos 32-34.
81 LRSC, 1792, f. 73v.
82 LRSC, 1793, f. 105v.
80
REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014.
63
Câmara, implicava em penalidades. No caso dos lavradores e senhores de
engenhos que insistissem nas transgressões, os vereadores determinaram
“ao almotacel para que faça executar as posturas desta Câmara e observar
os editais que a mesma tem mandado publicar [...] fazendo executar as
penas dela contra os transgressores” 83.
Esta noção moral de mercado, com o intuito de impedir lucros
abusivos e a alta excessiva de preços, bloqueando a ação de intermediários
e atravessadores, prevenindo a formação de monopólios e garantindo o
abastecimento, dependia de outros expedientes que integravam os
mecanismos de controle exercidos sobre a cidade.
Em primeiro lugar, a exigência de inscrição para abrir e manter
qualquer tipo de comércio (venda, loja ou taberna) teria como objetivo o
exercício de um controle mais estreito sobre o abastecimento urbano. Além
do comércio varejista, outras atividades profissionais também estavam na
mira dos almotacés e vereadores de Vila Boa. É o caso, por exemplo, dos
artesãos que exerciam atividades manuais, a exemplo de ferreiros, ourives,
sapateiros e alfaiates. Tratados à época por “oficiais mecânicos”, estes
trabalhadores dependiam de uma Carta de Exame emitida pela Câmara
para desempenharem suas atividades profissionais.
A sessão do dia 15 de novembro de 1792 indica que a
municipalidade se ocupava destas atividades. Após a realização de uma
inspeção periódica e de algumas “averiguações tendentes ao bem publico”,
os vereadores perguntaram ao porteiro da Câmara se ele havia encontrado
alguma irregularidade quanto ao que determinavam as posturas
municipais. Apresentando uma relação de condenações, afirmou “que
[dentre] as pessoas do rol que [se] apresentavam umas não tinham
Licenças, outras não tinham aferido, e por isso requeria fossem
condenadas, como também alguns oficiais de oficio mecânico não tinham
carta de exame”. Como tinham sido notificados e não compareceram à
Câmara, “mandaram se notificassem pessoalmente para na Vereança de
Sábado virem alegar o seu Direito, para se lhes diferir, como parecer justo,
[sob] pena de serem condenadas a sua revelia na forma das Posturas”84.
Em segundo lugar, paralelamente à prática do tabelamento de
preços e o controle das atividades profissionais, uma fiscalização minuciosa
dos mecanismos de pesos e medidas utilizados pelos estabelecimentos
comerciais, reforçava o domínio da Câmara sobre as relações de mercado.
83
84
LRSC, 1794, f. 135v.
LRSC, 1792, f. 78.
Dossiê CÂMARA MUNICIPAL
64
Para que o consumidor não fosse ludibriado no momento da
compra de alimentos, os pesos e as medidas utilizados no comércio eram
periodicamente fiscalizados, coibindo o engano ou a má fé nas transações
que envolviam comerciantes e consumidores. As Ordenações Filipinas
previam o acompanhamento mensal por parte da Câmara, mas durante os
meses de janeiro e julho seus oficiais deveriam emitir aviso público sobre a
necessidade de conservarem seus equipamentos “justos e concordantes
com o padrão” estabelecido pela municipalidade 85. Em Vila Boa, esta
determinação parece ter sido seguida à risca, como podemos inferir através
da leitura da ata da Câmara de 15 de janeiro de 1794, quando foi assinado o
“Edital pelo qual se faz certo ao povo que deve afilar sem perda de
tempo”86.
De fato, com o uso constante e por tempo prolongado, os
equipamentos acabavam se deteriorando, tornando-se imprecisos e
inadequados, o que gerava prejuízo ao consumidor. Mas os oficiais da
Câmara estavam atentos e de olho nos comerciantes desonestos que, ao que
parece, não eram poucos. No dia dois de março de 1793, a Câmara
determinava que se
não consentisse pesos diminutos, aos que achasse com
diminuição fossem aumentados a custa dos donos; e
em nenhuma forma consentisse pesos de pedra,
determinando-se-lhe que os que não quisessem
reformar os pesos, desse [o povo] parte a esta Câmara,
declarando [denunciando] as pessoas para se darem
providencias necessárias87.
Embora a reforma dos pesos e medidas não garantisse precisão
absoluta nas transações comerciais, já que era feita com cera que preenchia
rachaduras ou partes quebradas, demonstrava o interesse do comerciante
em manter seu estabelecimento fora do alcance das denúncias dos
consumidores e das punições impostas pela Câmara. O uso de pedras ou
medidas menores era uma forma de adulterar e falsificar os padrões
oficiais, o que poderia gerar severas penalidades. Por isso, o procurador da
Câmara, em outubro de 1792, também atendendo “ao clamor desse povo”,
solicitava uma fiscalização menos branda, a fim de impedir que nas
ORDENAÇOES FILIPINAS. Reprodução “fac-símile”, op. cit., Livro I, Título LXVIII,
Parágrafos 16-17.
86 LRSC, 1794, f. 116.
87 LRSC, 1793, f. 87.
85
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65
tabernas de Vila Boa se vendessem “com pesos de pedras, e por mais que
está almotaçado [tabelado], tudo [é] mal pesado e mal medido [...] tudo
com prejuízo grave do bem publico”88. Noutra oportunidade, o mesmo
procurador, exortando os almotacés para que exercessem com eficácia suas
atribuições, denunciava os taberneiros por estarem vendendo mantimentos
com “medidas e pesos falsos e diminuídos”89.
Na verdade, se vereadores e almotacés acompanhavam os
procedimentos de fiscalização de pesos e medidas na rede comercial de
Vila Boa, este serviço, cujos lucros integravam as receitas da Câmara, era,
por vezes, arrematado por terceiros e mantido sob o controle da
municipalidade. Entre os anos de 1792 e 1795 (intervalo que corresponde à
documentação utilizada neste estudo) pudemos acompanhar a rotina dos
oficiais da Câmara quanto aos procedimentos que compunham o controle
das rendas provenientes destes serviços terceirizados.
A cada ano, a partir do mês de dezembro, os serviços da Câmara
eram colocados em praça pública para serem arrematados pelo melhor
preço. No dia três de janeiro de 1793, ante a ausência de propostas
correspondentes ao valor mínimo exigido no mês anterior, “andando em
Praça e pregão as Rendas da Affiliação, cabeças e Talhos desta Vila e seu
Termo, o maior lanço que teve foi o que ofereceu João Lopes de Barros, de
oitocentas oitavas de ouro, que por ser diminuto [insuficiente] ficou para a
Vereança seguinte”90. Note-se que os serviços terceirizados implicavam,
basicamente, em duas áreas de atuação. Primeiramente, afilar, ou seja,
aferir, acertar (a balança), conferir (pesos e medidas) com o respectivo
padrão os instrumentos utilizados nos estabelecimentos comerciais. A
segunda atividade terceirizada correspondia às “cabeças e talhos”, ou seja,
a administração dos animais pertencentes ao curral municipal, bem como
do açougue público, envolvendo o corte de carne e sua comercialização.
Nos limites do período citado, apenas duas pessoas apareceram
como interessados pela arrematação das rendas da Câmara, já que para
participar do certame, além da competência requerida, era exigido que dois
fiadores confiáveis garantissem o cumprimento do contrato com a
municipalidade. Se João Lopes de Barros havia oferecido oitocentas oitavas
de ouro, dois dias depois Miguel Alves de Oliveira ofereceria vinte oitavas
a mais, o que não convenceu aos vereadores, que consideraram o valor
LRSC, 1792, f. 73v.
LRSC, 1792, f. 77.
90 LRSC, 1793, f. 82
88
89
Dossiê CÂMARA MUNICIPAL
66
“diminuto”, transferindo o certame para outra sessão91. As rendas da
Câmara, correspondentes a 1793, apenas foram arrematadas no dia 26 de
janeiro, quando o mesmo Miguel Alves de Oliveira bateu o martelo em
novecentas e noventa oitavas de ouro 92.
Apesar da experiência que possuíam, os arrematadores
encontravam dificuldades em receber de seus credores, cujas multas e
penalidades iam se acumulando, o que gerava atrasos nos repasses
trimestrais à Câmara, colocando-os em situação difícil perante os
vereadores. Nestes casos, era comum a Câmara solicitar o sequestro dos
bens do arrematante ou até mesmo mandar prendê-los, como ocorreu com
Miguel Alves de Oliveira, em janeiro de 1794, por ter se dirigido à Câmara
“com palavras menos decorosas e com menos respeito daquele que se deve
a esta corporação, tudo com dolo e malícia [...] mandando-se recolher a
enxovia o dito Miguel Alz. pela falsidade e arrogância”93.
Conclusão: os termos de correição
A estética da cidade e a moralidade do mercado enquanto
exercícios cotidianos da Câmara Municipal eram objetos do olhar
controlador dos vereadores e almotacés de Vila Boa de Goiás.
Procedimentos habituais impediam que forças contrárias impusessem um
desenvolvimento urbano na direção oposta àquela definida pela
municipalidade. Em Goiás, ante a ausência dos livros de registro dos
almotacés, que se perderam ao longo do tempo, restou-nos ainda a
possibilidade de perseguir a ação dos oficiais da Câmara através dos
mecanismos de fiscalização in loco registrados nos Termos de Correições.
Os Termos de Correições, registrados nos livros de atas da Câmara
municipal de Vila Boa, compõem-se de narrativas sobre o processo de
fiscalização realizado anualmente pelas autoridades municipais, referentes
aos aspectos do controle urbano exercido através do direito de almotaçaria.
Desta forma, após se reunirem na sede da Câmara, o presidente, os
vereadores, o procurador e o escrivão, saíam “acompanhados do Alcayde
[...] e o Affiliador; e correndo todas as ruas desta mesma Vila [...] se
mandarão examinar em sua presença, pelo dito Affilador todas as balanças,
LRSC, 1793, f. 83v.
LRSC, 1793, f. 897.
93 LRSC, 1794, f. 115.
91
92
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67
pesos e medidas fazendo-se mais todas as averiguações necessárias
tendentes ao bem público”94.
Alguns dias antes afixavam edital em lugares visíveis da cidade,
para que todos se preparassem para a vistoria e não alegassem
desconhecimento do processo de fiscalização. Chegado o dia, nada
escapava aos olhos das autoridades municipais: conflitos entre vizinhos;
testadas de casas e calçadas irregulares; caminhos e ruas mal conservados;
estabelecimentos comerciais sem a devida licença de funcionamento; pesos
e medidas irregulares; profissionais sem a devida carta de exame; valores
em contradição com o tabelamento preços e atravessadores proibidos pela
vigência de uma economia moral que impunha suas regras ao mercado
local. Todos eram notificados in loco e convocados a comparecerem à sede
da Câmara, sob pena de serem condenados à revelia de acordo com as
posturas municipais.
Após terem percorrido ruas, becos e travessas corrigindo as
irregularidades e normatizando a vida da cidade, os gestores municipais
“por não haver mais cousa alguma que prejudicasse ao Publico”, se
recolhiam, por fim, da dita correição 95. O que revela esta cena pública é o
pleno vigor da instituição da almotaçaria, submetendo às posturas
municipais o movimentado quotidiano urbano de Goiás, revelando a
expressão de uma “consciência específica de cidade: trama em que estão
inextricavelmente reunidos o sanitário, o construtivo e as relações de
mercado”96. Trama que tecia e mantinha, sob o controle da Câmara
Municipal, a vida urbana de Vila Boa de Goiás.
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Editores, 1996.
LRSC, 1793, fs. 104-104v.
LRSC, 1793, f. 104v.
96 PEREIRA, M. R. M. Almuthasib – Considerações sobre o direito de almotaçaria nas cidades
de Portugal e suas colônias, op. cit., p. 389.
94
95
Dossiê CÂMARA MUNICIPAL
68
BICALHO, M. F. As Câmaras Municipais no Império Português: o exemplo do Rio de Janeiro.
Rev. bras. Hist. [online]. 1998, vol.18, no.36, p.251-580. Disponível em:
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Correições e provimentos
REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014.
69
A ação dos ouvidores régios junto às câmaras municipais.
(Ouvidoria de Paranaguá – século XVIII)
Jonas Wilson Pegoraro 1
1
Resumo: Este artigo tem por objetivo propor uma
discussão acerca do exercício do poder régio,
observando as tensões que existiram entre os
ouvidores régios que atuaram em Paranaguá durante
o século XVIII e as elites locais. Além disso, procurouse demonstrar que as ações dos ouvidores se
constituíram no intuito de administrar a justiça régia,
com isso aplicando e afirmando a política de
centralização jurídico-administrativa promovida pelo
Estado português.
Palavras-Chave: Ouvidores régios, Ouvidoria de
Paranaguá, Administração portuguesa.
Abstract: This article aims to propose a discussion on
the exercise of royal power, noting the tensions that
existed between the regal „ouvidores‟ acted in
Paranaguá during the eighteenth century and local
elites. In addition, we sought to demonstrate that the
actions of the „ouvidores‟ were formed in order to
administer regal justice, with this applying and
affirming the centralization policy promoted by the
Portuguese State.
Keywords: royal „ouvidores‟, „Ouvidoria‟ of
Paranaguá, portuguese administration.
U
m dos instrumentos utilizados pela Coroa lusitana para solidificar
e centralizar o poder monárquico foi a constituição e promulgação
das Ordenações do reino (Afonsinas em 1446, Manuelinas em 151213 e Filipinas em 1603). Nestas leis, entre outros temas, foram definidas as
atribuições do ouvidor. Também foram descritas as funções que deveriam
Doutorando em História pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade
Federal do Paraná (PGHIS-UFPR). Bolsista do Conselho Nacional de Desenvolvimento
Científico e Tecnológico (CNPq). Professor de Direito e História do Centro Universitário
Curitiba (UNICURITIBA).
1
Dossiê CÂMARA MUNICIPAL
70
ser desempenhadas pelos corregedores, ofício que o ouvidor régio também
veio a desempenhar na América portuguesa.
Deste modo, as Ordenações e os regimentos transmitidos aos
ouvidores definiram suas prerrogativas, atribuições, jurisdições etc. Nessa
linha, a partir da nomeação dos ouvidores, competia a eles superintender
as ações dos juízes ordinários, bem como os atos praticados pelos
vereadores e demais oficiais das câmaras municipais.
As correições serviam para que o ouvidor da comarca fizesse a
aproximação das normas do direito régio à vida das comunidades, em
audiências públicas. Destas correições, em geral, o ouvidor deixava
recomendações para a manutenção da ordem social; a essas recomendações
dá-se o nome de provimentos.2
Não obstante ao continuo avanço do direito escrito, o juiz
ordinário, por diversas vezes, ainda se valia do direito consuetudinário
(costumes) na resolução dos conflitos entre indivíduos na comunidade.
Com as correições e provimentos, os ouvidores régios foram redefinindo o
costume local, normatizando a justiça em prol da legislação portuguesa.
Nesse sentido, entre 1719 e 1721, a região de Paranaguá recebeu a
visita de um ouvidor régio que realizou as primeiras correições daquela
câmara municipal, deixando ali seus provimentos.
Em 7 de junho de 1720 dey conta á Vossa Magestade
de ter passado em Correyção ás villas do Rio de São
Francisco, Ilha de Santa Catherina, e a de Santo
Antonio da Laguna penúltimas povoações de todo
este Estado; do que nellas tinha achado, e me
parecião. Depois subi á Villa de Curithiba a fazer
correyção, e voltey a fazella tambem nesta de
Pernagua, em que tenho consumido este anno. 3
Tal ouvidor era Rafael Pires Pardinho, que no final do século XVII
fora aprovado no Desembargo do Paço para exercer a magistratura.
Formado bacharel em leis na Universidade de Coimbra, era cavaleiro da
O nome provimento deriva da fórmula utilizada pelo ouvidor para registrar suas
recomendações. Assim, sobre dado assunto indicava-se que o ouvidor “proveu” tais medidas
(fez provisão); ou seja, determinava quais providências haviam de ser adotadas sobre o
assunto em pauta.
3 Carta do ouvidor-geral de São Paulo Rafael Pires Pardinho ao Rei D. João V, 30 de agosto de
1721. Em: SANTOS, Antonio Cesar de Almeida; PEREIRA, Magnus Roberto de Mello. Para o
Bom Regime da República: ouvidores e câmaras municipais no Brasil colonial. Monumenta,
inverno 2000, Curitiba: Aos Quatro Ventos, v. 3, n. 10, 2001, pp. 21-26. p. 21.
2
REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014.
71
ordem de Santiago e recebeu a nomeação para o cargo de ouvidor de São
Paulo em 1717.4 Anteriormente, Pardinho havia sido juiz de fora das vilas
de Santiago de Cacém e Sines, além de juiz criminal no bairro lisboeta da
Mouraria.5
Poucos anos após tomar posse do lugar de ouvidor geral da
capitania de São Paulo, Rafael Pires Pardinho empreendeu uma viagem até
a vila de Laguna, extremo sul da capitania. Seu intuito era o de “fazer
correição nestas quatro vilas, penúltimas povoações do Estado, ou, para
melhor dizer, em as criar, como de novo, no que entendi fazia a Vossa
Magestade o maior serviço, e bem a estes povos, que vivem em tão grande
distância”.6 Nas vilas de Laguna, São Francisco, Curitiba e Paranaguá, o
ouvidor Pardinho realizou audiências públicas para promover a adequação
das justiças naquelas municipalidades. Importante salientar que uma das
incumbências dos ouvidores era a de percorrerem suas jurisdições no
intuito de manter a ordem pública e administrar as justiças.
Rafael Pires Pardinho, na carta de 30 de agosto de 1721, também
informava sobre alguns aspectos das vilas de Curitiba e Paranaguá, as
últimas em que havia feito suas correições. Sobre Curitiba, descrevia sua
localização e as suas construções: “fica a vila de Curitiba nos campos por
detrás da Serra de Pernampiacaba [...], com cazas todas de pao a pique
cubertas de telha, e a Igreja só he pédra, e barro, que os freguezes
radificarão há poucos annos”.7 Pardinho descreve também que o
povoamento da vila de Curitiba havia se iniciado em meados do século
XVII, quando moradores de Paranaguá subiram a serra com “algûas
cabezas de gado vacum, e algûas egoas, que multiplicarão em forma, que
tem hoje sufficiente curraes, e he, o de que comummente vivem aquelles
moradores”.8 Assim, no momento da passagem do ouvidor por Curitiba,
ele observou que a pecuária era a principal atividade de subsistência da
vila, não obstante há informação sobre a existência de zonas auríferas na
região.
Arquivo Nacional da Torre do Tombo (ANTT). Leitura de Bacharéis – Rafael Pires Pardinho.
Ano: 1700. Maço: 02. Número: 27. ANTT. Registro Geral de Mercês. Cota: Dom João V, Livro 8,
folha 501. A ata de posse do ouvidor Rafael Pires Pardinho junto ao Senado da Câmara
Municipal de São Paulo, data de 25 de setembro de 1717. Em: TAUNAY, Afonso E. História da
villa de São Paulo no século XVIII. 1711-1720. Anais do Museu Paulista, Tomo 5, 1931, p. 466.
5 LACERDA, Arthur. As ouvidorias do Brasil colônia. Curitiba: Juruá, 2000. p. 54.
6 Carta do ouvidor-geral de São Paulo... Em: Monumenta, Op. cit. p.26.
7 Carta do ouvidor-geral de São Paulo... Em: Monumenta, Op. cit. p. 21.
8 Carta do ouvidor-geral de São Paulo... Em: Monumenta, Op. cit. p. 21.
4
Dossiê CÂMARA MUNICIPAL
72
Pardinho faz menção também ao número de freguesias: além da de
Nossa Senhora da Luz dos Pinhais de Curitiba existia a de São José e
Senhor Bom Jesus do Perdão. Essas freguesias congregavam cerca de “200
cazaes, e mais de 1400 pessoas de confissão”. Institucionalmente, a
povoação havia sido elevada à condição de vila, em 1693,
por aclamação dos moradores: porque sendo do
Termo desta Villa de Pernagua, ficando-lhe tão
distante,e com tanta difficuldade para lhe lá ir a
Justiza, entre sy se unirão, e fizerão elleyção de
Juizes Ordinarios, e Officiaes da Camara, com
que athe agora se governarão; mas com tantos
abusos, como se pode presumir de húa tão
remota terra, e aonde não chegou Menistro
algum. Nella estive desde o mes de Settembro
athe Fevereiro, que todo este tempo foi
necessario, para atrahir a mi aquelles homens, e
aos bons, que aparecerão, mostrar-lhes os erros,
em que tinhão cahido, e encaminhallos para o
futuro procederem com mais acertos em
utilidade, e bem dos maos.9
As providências tomadas por Rafael Pires Pardinho podem ser
observadas nos 129 provimentos que ele deixou anotados no livro de
registros da câmara de Curitiba, em 1721.
No que diz respeito a vila de Paranaguá, o ouvidor Pardinho,
observou que essa vila era “a mais povoada, e de maior comercio”; no
termo viviam cerca de “360 cazaes, e mais de 2000 pessoas de confissão”.
Ha na entrada desta Villa duas Ilhas, a que chamão do
Mel, e das Pezas, que lhe fazem três barras, duas
baichas, em que arrebenta o mar, e por ellas só entrão
barcos pequenos, e a do meio he a maior, e por ella
entrão embarcações grandes [...]. Dentro faz duas
grandes bahias com algûas Ilhas, e quantidade de
peiches, de que o comum dos homens tratão: e nellas
desaguão vários rios caudelosos, e dizem, que
navegáveis alguns dias, que ainda estão despovoados,
por estes moradores estarem cituados da villa, e a
maior distancia athe 5 ou 6 legoas. 10
9
Carta do ouvidor-geral de São Paulo... Em: Monumenta, Op. cit. p. 23.
Carta do ouvidor-geral de São Paulo... Em: Monumenta, Op. cit. p. 24.
10
REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014.
73
Visto “não ter havido nella correyção de Ouvidor desde o anno de
1682, em que a ella veio o Doutor André da Costa Moreira, 11 Rafael Pires
Pardinho demorou-se ali mais tempo, empenhado em “reparar os erros e
abusos passados”. Nesse sentido, deixou diversos provimentos, dos quais
enviou uma cópia para serem apreciados pelo rei.
Para além de sua atenção com a questão da administração em
geral, o ouvidor Pardinho também exerceu suas prerrogativas de
magistrado: “tenho tirado sette devaças de mortes atroces, que algûas se
não tinhão tirado, quando succederão, e nas que tirarão os Juizes não havia
culpados por malicia destes, e insolência dos Reos, que os amiaçavão, e
atemoriçavão”. 12
Portanto, as atenções e ações do ouvidor estavam em torno de
diferentes temas, deixando em Curitiba e em Paranaguá “largos
provimentos, que respeitão tanto ao governo da Camara, como
administração da Justiza Civil, e Crime, e bens dos Orphãos; de que tomey
conta a alguns tutores, emendey alguns inventários, e fiz outros de novo, e
partilhas, para lhes ficarem por normas”. 13 Tudo isso para, conforme suas
palavras, “o bom regimen desta Republica”. 14
Os oficiais das câmaras por ele visitadas deveriam, a partir de
então, governar-se por instruções que ofereciam “informações sobre alguns
dos traços básicos da administração municipal, suas jurisdições, atribuições
e prerrogativas”. Além do mais, os provimentos procuravam normatizar a
prática jurídico-administrativa, caracterizando “uma mudança de enfoque,
por parte da coroa, em relação à administração colonial”.15 Notadamente, o
texto dos provimentos de Pardinho “explicitava que o rei era a única
autoridade a quem deviam obediência”. 16 Tal observação, tornava-se
necessária visto que a capitania régia de São Paulo havia sido criada
recentemente (1709) e sua população estava acostumada à autoridade dos
procuradores dos donatários; no caso de Curitiba, por exemplo, a eleição
Carta do ouvidor-geral de São Paulo... Em: Monumenta, Op. cit. p. 24.
Carta do ouvidor-geral de São Paulo... Em: Monumenta, Op. cit. p. 25
13 Carta do ouvidor-geral de São Paulo... Em: Monumenta, Op. cit. p. 23.
14 Treslado dos capitulos de correição desta villa de Nossa Senhora do Rosário de Pernagua
este anno de 1721. Em: Monumenta, Op. cit., p. 83.
15 SANTOS, Antonio Cesar de Almeida; PEREIRA, Magnus Roberto de Mello. Para o Bom
Regime da República: ouvidores e câmaras municipais no Brasil colonial. Monumenta, inverno
2000, Curitiba: Aos Quatro Ventos, v. 3, n. 10, 2001, p. 1-19. p. 9.
16 Ibid. p. 12.
11
12
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74
dos oficiais de sua câmara municipal foi presidida por Mateus Leme,
procurador do Marques de Cascais donatário das terras.
O que sem duvida algûa se fará daqui em diante, pois
sendo mais provável, que esta Villa fica no principio
das quarenta léguas da doação que teve o Marquez de
Cascaes para parte do Sul da Ilha de Cananea, que o
Conselho Ultramarino lhe comprou para a Coroa
Real, com a Capitania de S. Vicente, como consta da
scriptura, que elle Ouvidor geral lhes deyxa
registrada no Livro desta Camara; devem seos
moradores
terem
entendido,
que
sam
immediatamente Vassallos de Sua Magestade sem
reconhecerem donatário algum.17
Se, por um lado, o ouvidor afirmava a autoridade régia, por outro,
ele teve o cuidado de “não apenas determinar a maneira pela qual a justiça
ordinária deveria agir; também cuidou em instruir os vereadores na boa
administração dos bens dos Concelhos, de modo que aquelas povoações
fossem bem governadas e que se assegurasse o „bem comum‟ delas”. 18
Como já mencionado, ao ouvidor competia ações de fiscalização
junto às câmaras municipais e a justiça. Nesta última, o ouvidor régio
atuava como instância de recurso às sentenças prolatadas pelos juízes
ordinários, como também dava curso a novas ações judiciais. No que diz
respeito à fiscalização das câmaras municipais, as correições e provimentos
para as vilas foram os instrumentos utilizados pelo ouvidor. Desta forma,
esse oficial promovia a legislação e a justiça régia nas comunidades: “A
principal obrigação minha [rei], he que a meus novos Vacalos do Brazil Se
administre, e faça justiça Com Igualdade”.19
Ainda em relação aos provimentos deixados pelo ouvidor
Pardinho para as vilas de Curitiba e Paranaguá, é importante mencionar
seu esforço em verter para a linguagem vulgar os preceitos contidos nas
Ordenações. De certo modo, Pardinho entendia que os juízes ordinários,
vereadores e demais oficiais municipais não tinham um contato direto com
o texto das Ordenações.
Treslado dos capitulos de correição desta villa de Nossa Senhora do Rosário de Pernagua
este anno de 1721. Em: Monumenta, Op. cit., p. 84. – grifos meus.
18 SANTOS, A. C. de A.; PEREIRA, M. R. de M. Op. cit. p. 12.
19 Regimto. Da Relação do Estado do Brazil. Em: Revista do Arquivo Municipal de São Paulo
(RAMSP). Ano I, vol. X, 1935, pp.89-102. p. 89.
17
REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014.
75
Proveo que os vereadores guardem e observem o seo
regimento, que he no ord. do Lb.º 1.º e tt.º 66, e os
Juises ordin.os o seu, que he o tt.º 65 do mesmo Lb.º E
no fazer das Eleysões dos officiais que ham de servir
no Conc.º Guardem o tt.º 67 do mesmo Lb.º fazendo
Eleyção para 3 annos por Pellouros como elle Dzor
Ouv.or Gl. Lhes deixa feita; e não uzem mais da
Eleysam de hum anno como athe agora se fez; pois
neste povo há pessoas bastantes para a Eleysam
Trienal.20
No que se refere às correições feitas pelos próprios ouvidores da
comarca de Paranaguá, criada em 1723 com a divisão da capitania régia de
São Paulo em duas jurisdições, ressalta-se que o cargo de ouvidor, em
diversos períodos, ficou sob a tutela do juiz ordinário da vila de Paranaguá.
Um dos diversos exemplos desta prática que podemos citar é o caso dos
provimentos feitos para a vila de Curitiba no ano de 1726. Uma vez que o
ouvidor Antonio Álvares Lanhas Peixoto estava acompanhando a comitiva
de Rodrigo César de Meneses as minas dos Goiáses, desde junho de 1726,
quem passou a exercer as funções do ouvidor foi o juiz ordinário e de
órfãos da vila de Paranaguá, Capitão Manoel de Sampaio.
Consequentemente foi esse juiz quem promoveu a correição da vila de
Curitiba no final daquele ano.
Esse tipo de ocorrência, em que o juiz ordinário assumia as funções
de ouvidor régio ou juiz de fora, não era novidade na estrutura jurídicoadministrativa do Antigo Regime português. 21 Aliás, ordens régias
poderiam alargar os poderes dos juízes ordinários, como se pode notar em
despacho de 8 de fevereiro de 1717, do Conselho Ultramarino:
O juiz ordinário da mesma câmara [São Paulo]
Manoel Paes Botelho sobre a grande contenda, que
houvera acerca da substituição do lugar de ouvidor
geral dessa Capitania na ausência do Desembargador
Sebastião Galvão Rasquinho e do juiz de fora da vila
de Santos que tenho resoluto sirva nos seus
impedimentos, por ambos estes dois [...] estarem por
adjuntos da alçada do Rio de Janeiro introduzindo-se
Treslado dos provimentos de correição que nesta villa fes, e deixou para bom Regimen da
Republica e bem comum d‟ella, o D.zor Raphael Pires Pardinho. Este anno de 1721. [vila de
Curitiba] Em: Monumenta, Op. cit., p. 84. – grifos meus. p. 35
21 Três Lado do Regimto. Dos Ouvidores Gerais do Rio de Janeiro &a. RAMSP. vol. VIII, 1935,
pp. 55-60, p. 59.
20
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76
no cargo, Bento Carvalho Maciel, pela nomeação que
nele fizera o governador dessa Capitania, contra as
minhas disposições, não bastando toda a diligência
para o despersuadir, que largasse a dita ocupação,
mostrando-se-lhe, que esta competia ao juiz ordinário
mais velho, conforme o alvará de dois de julho de
1712, que mandei observar como lei neste caso; e
vendo-se ao mesmo tempo, duas pessoas com as varas
deste lugar, e avisando-se ao governador desta
duvida, confirmara o intruso Bento Carvalho Maciel,
seguindo-se disso uma grande perturbação,nesses
povos, e nulidades, em todas estas disposições, contra
a boa ordem da Justa; de que se podia originar
grandes sedições; e que para se evitassem estas, se vos
devia declarar, o que se devia guardar em semelhante
duvida; me pareceu dizer-vos, que na ausência do
ouvidor geral dessa Capitania , há de suceder o juiz
de fora de Santos, e na falta ou ausência deste, o juiz
ordinário mais velho dessa cidade de São Paulo que é
a cabeça da comarca; e que o governador não tem
jurisdição para nomear ouvidor.22
Ou seja, diante de uma necessidade específica, as instituições
administrativas centrais poderiam decretar a “expansão” dos poderes de
um oficial na tentativa de não deixar “lugares vagos” na estrutura jurídicoadministrativa da Coroa portuguesa. Esse caso que estamos destacando,
reveste-se de especial interesse para a ouvidoria de Paranaguá, dado que
ela ficou por um bom período de tempo sob a tutela dos juízes ordinários
da vila de Paranaguá.
Essa situação foi enfrentada em 1766, pelo governador da capitania,
D. Luís Antonio de Souza Botelho Mourão, que informou ao conde de
Oeiras, então secretário de Estado dos negócios do reino:
a Comarca de Paranaguá, em que tão bem sua
Majestade punha Ouvidor e se acha agora vago a dez
anos, e serve de Ouvidor pela lei o Juiz Ordinário
mais velho com as mesmas jurisdições acima ditas, o
qual está conhecendo de tudo que nenhum outro
Ministro se possa intrometer a conhecer do que se
passa na sua Comarca, e além do referido com o
motivo de ficar em maior distância da Relação do Rio
de Janeiro, passa também cartas de seguro de todo o
22
Revista do Arquivo Histórico de São Paulo. Ano 1 – Vol. IX, São Paulo, 1935. p. 101-102.
REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014.
77
crime, o que não pode fazer o Ouvidor Letrado de São
Paulo.23
Embora a historiografia considere o juiz ordinário como um oficial
ignorante da prática jurídica letrada, Joacir Navarro Borges observa:
De fato, em geral os juízes ordinários eram leigos, mas
tratar essa característica como ignorância é cometer o
mesmo erro de imaginar que a prática judiciária das
câmaras era necessariamente corrupta e abusiva. O
que a historiografia clássica [refere-se a Caio Prado
Junior] entendeu por “ignorância”, “corrupção” e
“abuso”, nós podemos entender por rusticidade, ou
seja, a crença na capacidade de julgar da própria
comunidade. O princípio de que os mais próximos e
envolvidos conheciam melhor e, portanto, também
julgariam melhor. Esse princípio estava na base da
autonomia local no antigo Regime.24
Nesse sentido, quando Manuel de Sampaio, “Juiz ordinário da villa
de Pernaguá e nella Ouvidor g.al por Ley e Juiz das Justificações com alçada
no cível e crime”, realizou a correição na vila de Curitiba em 9 de outubro
de 1726, esse oficial, amparando-se nas antigas recomendações do ouvidor
Pardinho, procurou reafirmar o pertencimento daquele território à Coroa
lusitana, além de prover a padronização dos pesos e medidas da vila, o
conserto da ponte sobre o rio Iguaçu, a readequação da construção de casas
na vila e, dentre outros assuntos, ainda procurou adaptar as necessidades
da vila no que diz respeito à comercialização do ouro em pó. Em tudo
procurou atender o “effeito de se faserem os acordos convenientes ao bom
governo della e otilid.e do povo e os provim.tos que fazem p.ª todos os
requerim.tos defferir e determinar o que fosse just.ª e com effeito por
cedeo”,25 mas sempre observando os interesses da monarquia.
Proveo e mandou elle Ouvidor g.al q‟ v.ta a proposta q‟
o Pro.or do Conc.º propoz em nomem do povo o qual
Documentos interessantes para a história e costumes de São Paulo. v. 73, p. 59-60.
BORGES, Joacir Navarro. Das justiças e dos litígios: a ação judiciária da Câmara de Curitiba
no século XVIII (1731-1752). Curitiba, 2009. Tese (Doutorado em História). Universidade
Federal do Paraná.
25 Capitulos de Correição que faz o Capitão Manuel de Sampaio, juiz ordinário e orfãos da
Vila de Paranaguá e nela e sua Comarca Ouvidor Geral pela Lei. Boletim do Arquivo Municipal
de Curitiba (BAMC). vol. VIII, 1924, p. 51.
23
24
Dossiê CÂMARA MUNICIPAL
78
mandou se tresladasse e registasse no Livro de
Registro da Camara que pudesse livremente – correr
ouro em pó nesta villa e seu termo em q.l q.r genero de
negocio por evitarem o grande prejuízo deste Povo e
não menos o dos quintos de Sua Mag.de q‟ D.s g.de com
cuminação de q‟ não o poderão levar desta v.ª p.ª fora
sinão p.ª a Casa dos Quintos de Pern.ª a quitallo p.ª cujo
effeito levarão dos Juizes desta v.ª carta de guia cuya
ficará registrada em o Livro do Registro da Camara e
p.ª mayor segurança darão fiança abonada e não o
fazendo assim e achandosse ou sabendosse que algúa
pessoa de qualq.r qualidade ou estado que seye faz ou
obra o contrario se procedera contra elle com todas as
penas assim crimes como civeis impostas p.la Ley e
declaro q‟ no Registo q‟ se fiser assignara o juiz
presidente daquelle mês com o escrivão e juntam.te o
q‟ leva a carta de guia p.ª a nenhum tempo haver
duvida algúa.26
Ao longo dos diversos provimentos dirigidos para a vila de
Curitiba, existe o constante reforço das recomendações feitas pelo ouvidor
Rafael Pires Pardinho anos antes (1721). Por exemplo, na correição feita
pelo ouvidor Francisco Leandro de Toledo Rondon, em 1786, ele faz
menção ao esquecimento dos provimentos feitos pelo ouvidor Pardinho e
demais ouvidores da comarca de Paranaguá.
Por q.to se estivessem em sua inteira observ.ª o
Capitullos de Provimentos do sempre memorável
Dezemb.or Rafael Pires Pardinho, e os dos mais seus
meretissimos Predecessores nada parece, poderia
ocorrer cuja provid.ª a não esteja nelles feliz e
sabiamente lembrada e determinada. O esquecim.to
porem, e amortecim.to, em que elles se conservão na
lembrança daquelles que sendo occupados na
Governança desta Republica, tinhão, e tem rigorosa
obrigaçam de os fazer observar, este culpável
esquecim.to faz que pelo forçozo ônus de seu cargo lhe
seja necessario dar alguma provid.ª não p.ª estabelecer
novos ditames que seria temeridade intentar a vista
da vasta prevenção de provim.tos de tão iluminados
Jurisconsultos, mas p.ª fazer lembrar o que a
26
Ibid., p. 54. – destaque no original.
REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014.
79
ignorância, ou talvez a malicia tem posto em total
esquecimento.27
A referência que o ouvidor Rondon fez à “malícia”, faz parecer que
a câmara municipal de Curitiba agia de acordo com seus interesses.
Contudo, o ato de correição da vila feito pelo ouvidor Rondon mostra o
esforço desse oficial em reeditar alguns provimentos, para que, em sua
visão, fosse assegurado o “bem comum do povo”, e não apenas daqueles
“occupados da Governança desta Republica”.
Considerando que o exercício do poder régio nas comunidades,
por meio dos ouvidores, tinha por intuito “negociar” e adequar a ordem
pública, os provimentos faziam alusão a diversas matérias voltadas para o
“bem viver” em comunidade. Nesse sentido, um dos mais recorrentes
pontos a que estavam atentos os ouvidores da comarca de Paranaguá era a
construção e conservação de estradas, caminhos e pontes, para facilitar não
só o trânsito de pessoas, mas também o de mercadorias.28 Do mesmo
modo, os ouvidores da comarca de Paranaguá repetiam os cuidados que
Rafael Pires Pardinho havia anunciado acerca da presença de animais no
espaço das vilas.29
Portanto, o espaço da vila requeria, desses ouvidores, grande
atenção. Além da presença dos animais e das práticas construtivas, as
fontes de água também mereciam todo cuidado e provimentos específicos
para sua conservação.
No que diz respeito às relações econômicas, alguns provimentos
procuravam regulamentar o comércio de animais e combater o roubo dos
mesmos.
Proveo em pr.º lugar que todos os criadores uzem de
sua distinctiva marca e própria em todos os animais
da sua criação : Em seg.do que todos os compradores e
negociantes que comprão gados, e outras qualidades
de animais recebão hum escrito do vendedor
Auto de Provimento que mandou fazer o Doutor Francisco Leandro Toledo Rondon –
ouvidor geral e corregedor da comarca de Paranaguá em correição nesta vila de Curitiba.
[1786]. BAMC. vol. VIII, 1924, p. 110.
28 Auto de provimento de Correição que fez o Doutor Manuel dos Santos Lobato. [1735].
BAMC. vol. VIII, 1924, p. 60-61.
29 Autto de provimento que amndou fazer o Doutor Jerônimo Ribeiro de Magalhães Ouvidor
geral Provedor e Corregedor desta Comarca como abaixo se declara em Câmera desta dita
villa. [1756]. BAMC. vol. VIII, 1924, p. 83-84.
27
Dossiê CÂMARA MUNICIPAL
80
declarando os que vende, sua qualidade, cores, e
marcas, que leva, e o comprador os não poderá levar
sem que me .... licença da Cam.ª lhe faça certa com o
escrito do vendedor a sua compra cujos escriptos
serão guardados na arca da mesma Camr.ª para asim
servir no conhecimento dos furtos, que nos d.os
animais se costuma fazer com notável prejuizo de
seus donos maquinado as mais das vezes pello
mesmos vendedores : Em tercr.º lugar que nomeise a
mesma Camr.ª na passagem do Yapó hum homem
capaz p.ª rever pella licença os animais que leva o
comprador, com ordem p.ª que achando alguns
demais sem aprd.º marca, sinal e confrontação della,
não só tomar os animais asim conduzidos, mas
prendelo e remetello a Cad.ª desta Villa donde pagará
a condenação por cada hum dos animais asim
extraviados dous mil reis p.ª as despezas do Conselho,
alem de trinta dias de cad.ª em q‟ condeno a todos o q‟
asim for compreendido, enconrrendo na mesma
penna o vendedor que for sabedor daquelle roubo
[...]30
De modo geral, os provimentos mandados registrar pelos
ouvidores de Paranaguá nos livros das câmaras municipais, evidenciam a
estreita ligação entre esses oficias régios e a administração local, seja aquela
voltada à aplicação da justiça, sejam as ações compreendidas nas vereações.
Essencialmente, os provimentos procuravam ordenar a vida em
comunidade, promovendo, ao mesmo tempo, uma substituição do costume
pelo direito letrado, nas relações entre os indivíduos e entre indivíduos e a
Coroa lusa.
Isto posto, é possível observar, portanto, que os ouvidores eram os
responsáveis pelo estabelecimento de um elo entre as comunidades locais e
o soberano. Esse oficial régio era instrumento de uma política que visava a
centralização do poder, ao mesmo tempo em que respondia aos anseios das
populações em terem mais próximas de si as justiças d´El Rei. Nesse
sentido, as atuações dos ouvidores da comarca de Paranaguá nos ajudam a
compreender, por um lado, o papel desses oficiais como agentes régios na
estrutura jurídico-administrativa portuguesa implantada na América; por
outro, mostra que as câmaras municipais e seus oficiais reconheciam a
Auto de provimento de Correição que mandou fazer o Doutor Ouvidor Geral e corregedor
desta comarca Antonio Barbosa de Mattos Coitinho neste anno de 1776. BAMC. vol. VIII, 1924,
p. 102.
30
REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014.
81
autoridade do rei, contudo, isto não significava que não defenderiam seus
interesses a localidade.
De modo geral, observam-se algumas ações desempenhadas por
aqueles oficiais régios em sua jurisdição, salientando sua posição como
agentes promotores das leis régias nas comunidades. Nesse sentido, fez-se
notar a importante função dos ouvidores como intermediários entre a
Coroa portuguesa e seus súditos. A obrigação de reeditar as
recomendações referentes à conservação de estradas, caminhos e pontes ou
à presença de animais no espaço urbano, demonstram a existência de
conflitos entre disposições régias e práticas locais.
Em torno de uma política de centralização do poder
António Manuel Hespanha aborda de uma forma bem interessante
no livro As vésperas do Leviathan que o poder não poderia ser exercido no
vazio ou mesmo por intermédio da magia, ou seja, “a ação política requer a
disponibilidade de meios. Desde logo, de meios financeiros. Mas também
de meios humanos. Em termos tais que o impacto de um projeto de poder
se pode medir no plano da disponibilidade de estruturas humanas que o
levem a cabo”.31
Desta forma, a Coroa portuguesa criou e desenvolveu um
estrutura jurídico-administrativa que levasse a cabo a política da
monarquia. Desde os altos magistrados dos tribunais de apelação até o
leigo juiz ordinário, todos faziam parte desta estrutura para a
administração da lei; cada um dos oficiais inscritos na estrutura detinha
prerrogativas e atribuições, que estavam consignadas nas Ordenações e
nos diversos e múltiplos regimentos e instruções. Apesar da diversidade
de cargos e da hierarquia existente, entendemos que frente o imaginário
político da época, os oficiais desempenhavam suas funções tendo em vista
a perspectiva de atender a vontade do soberano. Assim, para a monarquia
portuguesa, o controle e a administração da justiça foram imprescindíveis,
tanto foi que a justiça, “desde pelo menos o século XIII, [foi] o mais
importante atributo da realeza”32.
HESPANHA, Antonio Manuel. As vésperas do Leviathan: instituições e poder político –
Portugal, século XVII. Coimbra: Almedina, 1994. p. 299 e p. 160.
32 WEHLING, Arno e WEHLING, Maria José. Direito e Justiça no Brasil Colonial: o Tribunal da
Relação do Rio de Janeiro (1751-1808). Rio de Janeiro: Renovar, 2004. p. 28.
31
Dossiê CÂMARA MUNICIPAL
82
Nesse sentido, entende-se que a competência jurídica da Coroa, ao
ser aceita como legítima, acarreta na renúncia, por parte dos indivíduos, de
eles próprios gerirem os seus conflitos, deixando a cargo de oficiais
nomeados pela Coroa (o soberano) esta função de “gestão”.
No Antigo Regime em Portugal, o oficialato régio especializado e a
estrutura jurídico-administrativa foram, respectivamente, agente e espaço
utilizado pelo soberano para a propagação do seu poder político para as
demais regiões do Império ultramarino. Além disso, essa estrutura era o
espaço da “materialização” desse poder político régio, uma vez que as
diversas instituições organizadas hierarquicamente pela Coroa portuguesa
exerciam o poder que era “emanado” do rei.
Nesta lógica, é congruente afirmar que o poder régio estava
alicerçado no monopólio que o soberano adquiriu sobre o exercício da
justiça e sobre os produtores do direito (os juristas). A concepção dos
juristas sobre o direito possibilitou não apenas a codificação de um sistema
de normas reguladoras, mas também a afirmação e a legitimação do poder
do monarca e da estrutura que se constituiu ao seu redor, procurando
refletir um poder hegemônico e promover a relação entre o soberano e a
ordem social vigente.
De fato, antes de a organizar, o direito imagina a
sociedade. Cria modelos mentais do homem e das
coisas, dos vínculos sociais, das relações políticas e
jurídicas. E, depois, paulatinamente, dá corpo
institucional a este imaginário, criando também, para
isso, os instrumentos conceituais adequados.
Entidades como «pessoas» e «coisas», «homem» e
«mulher», «contrato», «Estado», «soberania», etc., não
existiram antes de os juristas os terem imaginado,
definido conceitualmente e traçado a suas
consequências dogmáticas. Neste sentido, o direito
cria a própria realidade com que opera.33
A Coroa lusitana, por exercer o domínio sobre a competência
jurídica, construiu e reforçou sua legitimação por meio do próprio campo
jurídico. Pode-se dizer, portanto, que o exercício da justiça forneceu os
meios necessários à formação do próprio Estado português. Nesta linha,
observa-se na justiça não “apenas uma das atividades do poder. Ela era –
HESPANHA, Antonio Manuel. Cultura Jurídica Europeia. Síntese de um milénio. 3ª Ed. MiraSintra: Europa-América, 2003. p. 72.
33
REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014.
83
enquanto se manteve pura e sua imagem tradicional – a primeira, se não a
única, atividade do poder”.34
A consolidação do poder absoluto das monarquias da
Europa ocidental teve o controle da justiça pelo
soberano como aspecto fundamental. A criação do
funcionalismo mais ou menos especializado nas
diferentes funções judiciais e a existência de uma
legislação que, gradativamente, aumentava as
atribuições reais em detrimento dos costumes e de
outros direitos locais foram fatores que contribuíram
para definir uma esfera de atuação da monarquia.35
Em Portugal, o processo de centralização monárquica, deflagrado
no século XIII, aliou-se à passagem de um direito consuetudinário para o
escrito. Deste movimento, é representativa a ação em torno da consolidação
de uma legislação unificada, o que vai ser realizado, como vimos, por
intermédio das sucessivas coleções de leis conhecidas como Ordenações.
Subsidiariamente à consolidação do direito escrito em Portugal,
foram gradualmente criadas instituições e cargos que tinham por
finalidade zelar pela observância dessa nova base de leis.
Portanto, ao estabelecer uma estrutura jurídico-administrativa, o
soberano, fundamentado nas Ordenações do reino, buscou promover a
centralização do poder político, administrando e, consequentemente,
controlando os espaços políticos. Nesse sentido, o exercício do poder régio
estava alicerçado na capacidade da Coroa de fazer justiça. Ainda, no intuito
centralizador, salientamos que a Coroa portuguesa necessitou de
indivíduos para consolidar seu poder nos domínios ultramarinos. Para
tanto, para desempenhar a atividade jurídica, utilizou-se de oficiais régios e
de uma estrutura hierarquicamente construída.
No caso da América portuguesa, gradualmente, foi estabelecido
um aparato jurídico-administrativo voltado às tendências centralizadoras
da Coroa lusa. À medida que esse aparato vai sendo constituído pode-se
perceber que diversas práticas autônomas e não-oficiais, respaldadas pelo
direito consuetudinário, coexistiam com a ordem jurídica estatal. Ou seja, o
HESPANHA, A. M. Justiça e administração entre o Antigo Regime e a Revolução. Em: _____
Justiça e litigiosidade: história e prospectiva. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1993, p.
385.
35 WEHLING, A. e WEHLING, M. J. Op. cit. p. 29.
34
Dossiê CÂMARA MUNICIPAL
84
poder político régio enfrentou nas comunidades coloniais uma força
concorrente, que importava subjugá-la ou, ao menos, cooptá-la.
Entretanto, “a monarquia absoluta possuía limitações que
contrabalançavam o poder do rei e de sua burocracia – a sobrevivência de
esferas tradicionais de poder, como os senhorios leigos e eclesiásticos, e os
privilégios urbanos e corporativos”. 36 Assim, além dos poderes locais e
outras formas autônomas de poder, a capacidade dos oficiais régios de se
apropriarem dos poderes que recebiam mediante concessão régia
constituía um movimento centrífugo frente ao esforço centralizador
promovido pela monarquia. Esse movimento perpassa o que António
Manuel Hespanha veio a chamar de “direito pluralista”, que seria a falta de
um direito geral e homogêneo da Coroa lusa, o que possibilitava
incoerências, ou melhor, especificidades no interior do sistema jurídico do
Império ultramarino português.37 Hespanha também ressalta a “ideia de
que na sociedade há, ou deve haver, apenas um centro político teve um
parto longo e difícil no pensamento político ocidental”.38
A partir desse entendimento, Hespanha colocou em xeque o
fortalecimento do poder régio devido à ação dos oficiais da Coroa
portuguesa, considerando que, embora a ação desses agentes promovesse
um enfraquecimento dos poderes locais, não ocorria, concomitantemente, o
fortalecimento do poder régio, visto que tais agentes, no sistema
corporativo de poder, detinham grande autonomia.
Se a centralidade não pode ser real sem um quadro
legal geral, tampouco pode ser efetiva sem uma
hierarquia estrita dos oficiais, por meio do qual o
poder real possa chegar à periferia. Daí que a
eficiência da centralização política derive, por um
lado, da existência de laços de hierarquia funcional
entre os vários níveis do aparelho administrativo e,
por outro, negativamente, do âmbito dos poderes dos
oficiais periféricos ou da sua capacidade para anular,
distorcer ou fazer seus os poderes que recebiam de
cima.39
WEHLING, A. e WEHLING, M. J. Op. cit. p. 29.
Ver: HESPANHA, Antonio Manuel. Op. cit. p. 118.
38 HESPANHA, A. M. Guiando a mão invisível.
Direito, Estado e Lei no Liberalismo
Monárquico Português. Coimbra: Livraria Almedina, 2004. p. 28.
39 HESPANHA, A. M. A constituição do Império português. Revisão de alguns enviesamentos
correntes. Em: FRAGOSO, João; BICALHO, Maria Fernanda; GOUVÊA, Maria de Fátima.
(org.). O Antigo Regime nos trópicos: a dinâmica imperial portuguesa (séculos XVI-XVIII). Rio
36
37
REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014.
85
Em um registro um pouco diferente do de António Manuel
Hespanha, Arno Wehling também considerou a existência de uma força
centrífuga frente ao poder político régio no Império ultramarino português.
Para além da estrutura formal da justiça, seu traço
invariável foi de um esforço centralizador por parte
da autoridade real, caracterizado pela adoção de uma
legislação superveniente como fonte do direito,
aplicada pela magistratura e por um esforço de
ministério público. A este esforço centrípeto na área
da justiça, semelhante a outros ocorridos nas áreas
fazendária, militar e eclesiástica, corresponderam
reações centrífugas, algumas alicerçadas na tradição
jurídica, outras em fatores novos, que dela se
utilizaram ou que se valeram de instrumentos até
então inexistentes. Esse esforço centralizador,
entretanto, não deve ser superestimado, pois o
equilíbrio alcançado pelas monarquias nos séculos
XVI e XVII somente seria rompido a favor do centro
político com o chamado „despotismo esclarecido‟, no
qual efetivamente existe todo um esforço
administrativo e legislativo a favor da centralização.40
Essas considerações podem levar a uma falsa impressão de
“ausência” da monarquia, principalmente para períodos anteriores ao
reinado de Dom José I. Contudo, por mais que pudessem existir indivíduos
que fizessem seus os poderes concedidos pela Coroa lusa, colocando em
dúvida a eficácia da administração metropolitana, deve-se observar que as
instituições que estruturaram a ordem jurídico-administrativa e seus
oficiais régios estavam orientadas por uma concepção corporativa de
sociedade, na qual o poder “era, por natureza, repartido”.
[...] numa sociedade bem governada, esta partilha
natural deveria traduzir-se na autonomia políticojurídica dos corpos sociais, embora esta autonomia
não devesse destruir a sua articulação natural – entre
a cabeça e a mão deve existir o ombro e o braço, entre
o soberano e os oficiais executivos devem existir
de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001. p. 174. Ver, também: HESPANHA, A. M. A
Arqueologia do Poder. Em: _____. As vésperas do Leviathan... p. 174.
40 WEHLING, A. e WEHLING, M. J. Op. cit. p. 37.
Dossiê CÂMARA MUNICIPAL
86
instâncias intermédias. A função da cabeça não é,
pois, a de destruir a autonomia de cada corpo social,
mas a de, por um lado, representar externamente a
unidade do corpo e, por outro, manter a harmonia
entre todos os seus membros, atribuindo a cada um
aquilo que lhe é próprio, garantindo a cada qual o seu
estatuto («foro», «direito», «privilégio»); numa
palavra realizando justiça.41
Para a realização da justiça e da harmonia entre os membros do
corpo social, a Coroa contava com alguns artifícios. Tais mecanismos
procuravam ditar a política da monarquia, bem como manter sob controle
os oficiais régios que, para além de suas funções regulamentadas pelas
Ordenações, eram gerenciados, principalmente, por meio de regimentos e
das residências.
Nesse sentido, a principal estratégia da administração central para
o controle e gestão da colônia americana foi promover uma política para a
inserção de diversos recursos que assegurassem suas prerrogativas. Assim,
foram criadas e estruturadas instituições (câmaras, ouvidorias, tribunais
etc) e deslocados oficiais régios (juízes, desembargadores, ouvidores, etc)
para América portuguesa no intuito de propagar a justiça e as leis régias,
sendo evidente o grande fluxo de agentes régios deslocados para o
ultramar.42
A
coroa
procurou
controlar
política
e
administrativamente a periferia, especialmente nos
setores da justiça e fazenda, através do oficialato
XAVIER, A. B. e HESPANHA, António Manuel. A representação da Sociedade e do Poder.
In: HESPANHA, A. M. (coord.). História de Portugal: o Antigo Regime (1620-1807). Lisboa:
Estampa. 1998. p. 114-115. Ainda, “[...] a realização da justiça – finalidade que os juristas e
politólogos tardomedievais e primomodernos consideram como o primeiro ou até o único fim
do poder político – se acaba por confundir com a manutenção da ordem social e política
objetivamente estabelecida”.
42 Ver: CUNHA, Mafalda Soares da. Governo e governantes do Império português do
Atlântico (século XVII). Em: BICALHO, Maria Fernanda; FERLINI, Vera Lúcia Amaral. (orgs.).
Modos de Governar: idéias e práticas políticas no império português – Séculos XVI-XIX. São
Paulo: Alameda, 2005. pp. 69-92. GOUVÊA, Maria de Fátima. Conexões imperiais: oficiais
régios no Brasil e Angola (c. 1680-1730). Em: BICALHO, Maria Fernanda; FERLINI, Vera Lúcia
Amaral. (orgs.). Modos de Governar: idéias e práticas políticas no império português – Séculos
XVI-XIX. São Paulo: Alameda, 2005. pp. 179-197.; MONTEIRO, Nuno Gonçalo. Governadores
e capitães-mores do Império Atlântico português no século XVIII. Em: BICALHO, Maria
Fernanda; FERLINI, Vera Lúcia Amaral. (Orgs.). Modos de governar: idéias e práticas políticas
no império português – Séculos XVI-XIX. São Paulo: Alameda, 2005. pp. 93-115. SUBTIL, J. Op.
cit., 2002.
41
REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014.
87
régio. As unidades básicas desta estrutura periférica
eram os concelhos [câmaras municipais] e as
comarcas. Os funcionários, os juízes de fora,
corregedores e provedores. Por estes magistrados, que
comunicavam burocraticamente com os concelhos e
tribunais da administração central, a coroa fomentava
a promoção e difusão da justiça oficial e do direito
régio.43
Logo, em relação à América portuguesa, podemos entender que, já
com a instalação do Governo-geral, em 1548, ocorreu um esforço em
promover o centralismo administrativo. Tal movimento, entretanto, é
percebido com maior intensidade a partir da primeira metade do século
XVIII. É certo, porém, que a Coroa lusitana empenhou-se, antes mesmo do
chamado despotismo esclarecido, por um “esforço administrativo e
legislativo a favor da centralização”.44
Em estudo recente, Laura de Mello e Souza fez uma crítica incisiva
às considerações de António Manuel Hespanha, principalmente à
supervalorização dada por esse autor aos textos jurídicos, ao seu apreço
pelo esquema polisinodal e à sua argumentação sobre as distâncias para a
formação de “nichos de poder”; tais pressupostos “funcionam muito bem
no estudo do seiscentos português, mas deixam a desejar quando aplicados
ao contexto do Império setecentista em geral, e das terras brasílicas em
específico”.45
É indiscutível a presença e importância das estruturas da Coroa
portuguesa tanto na colonização como na administração da América
portuguesa. Seus esforços em gerir a colônia americana, como apontamos
acima, data da instalação do Governo-geral. Além disso, a monarquia
promoveu a inserção de diversas instituições (Tribunal da Relação da
Bahia, Tribunal da Relação do Rio de Janeiro, ouvidorias, etc) para o
controle da colônia. Neste prisma, por meio das políticas ditadas pela
administração central, podemos observar uma estrutura articulada na qual
SUBTIL, José. Governo e administração. In: HESPANHA, Antonio Manuel (coord.).
História de Portugal: o Antigo Regime (1620-1807). Lisboa: Estampa. 1998. p. 163.
44 Ver: PEGORARO, J. W. Ouvidores régios e centralização jurídico-administrativa na América
Portuguesa: a comarca de Paranaguá (1723-1812). Dissertação (Mestrado em História).
Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2007.
45 SOUZA, Laura de Mello e. O sol e a sombra: política e administração na América portuguesa
do século XVIII. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. p. 57.
43
Dossiê CÂMARA MUNICIPAL
88
as prerrogativas da Coroa não estavam só presentes, mas também eram
respeitadas.
Nesta perspectiva, para o território abrangido pela ouvidoria de
Paranaguá, tal política em favor do direito régio iniciou-se efetivamente em
1720, quando os municípios de Laguna, São Francisco, Curitiba e
Paranaguá receberam a visita do ouvidor de São Paulo, Rafael Pires
Pardinho. Essa intenção centralizadora foi afirmada cinco anos depois,
quando Antonio Álvares Lanhas Peixoto tomou posse como o primeiro
ouvidor da comarca de Paranaguá com a obrigação de aplicar e
administrar a justiça régia e superintender a boa administração das
“repúblicas” daquele território.
Como mencionado, o ouvidor Lanhas Peixoto ficou pouco tempo à
frente da comarca de Paranaguá, uma vez que foi para as minas de Cuiabá.
No entanto, durante sua estada solicitou à administração central os livros
de registros da comarca e demais papéis no intuito estabelecer a
ouvidoria.46 Além do mais, fez algumas diligências: durante os meses de
fevereiro e março de 1726, esteve na vila de São Francisco, onde promoveu
os autos de residência de suspensão e devassa do capitão-mor daquela
localidade, Agostinho Alves Marinho. 47
O ofício de capitão-mor era desempenhado por um indivíduo, em
geral, pertencente à comunidade local; conforme o Alvará de 18 de outubro
de 1709, o mecanismo de provimento do posto de capitão-mor iniciava com
“a indicação de três nomes escolhidos pelos oficiais da Câmara, juntamente
com o ouvidor ou o provedor da comarca. Estes informariam ao general ou
cabo que governa as armas da província, para proposta ao rei, através do
Conselho de Guerra, do nome julgado mais conveniente”. 48
Como Lanhas Peixoto estava apenas há dois meses no cargo de
ouvidor da comarca de Paranaguá, logicamente não participou da
Arquivo Histórico Ultramarino (AHU). São Paulo, caixa 1, doc. 57. Certidão passada pelo
escrivão da ouvidoria geral da comarca de Paranaguá, Luís Henriques, a respeito do fato do
ouvidor daquela recém-criada comarca, Antônio Álvares Lanhas Peixoto ter enviado carta
solicitando os papéis concernentes à sua jurisdição à comarca de São Paulo e ainda não ter
obtido resposta. Paranaguá, 29 de abril de 1726. Projeto Resgate, documentos Avulsos. ______.
São Paulo, caixa 1, doc. 58. Carta do ouvidor geral da comarca de Paranaguá, Antônio Álvares
Lanhas Peixoto, ao rei Dom João V. Paranaguá, 30 de abril de 1726. Projeto Resgate,
documentos Avulsos.
47 AHU. São Paulo, caixa 1, doc. 56. Carta do ouvidor geral da comarca de Paranaguá, Antônio
Álvares Lenhas Peixoto, ao rei Dom João V. Rio São Francisco, 10 de março de 1726. Projeto
Resgate, documentos Avulsos.
48 SALGADO, Graça (Org.). Fiscais e meirinhos: a administração no Brasil colonial. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 1985. p. 312.
46
REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014.
89
elaboração da lista tríplice; Agostinho Alves Marinho já ocupava o cargo
havia três anos. Porém, como fazia parte das competências do ouvidor
fiscalizar e promover as residências de outros oficiais, Lanhas Peixoto
partiu para a vila de São Francisco neste intuito.
Doutor Ouvidor foy Mandado vir a sua Prezença ao
Capytam-Mor Sindicado Agostinho Alz' Marinho
Sendo aly Prezente perante a nobreza e povo desta
Villa por elle Doutor [ileg. 2 pal.] Leis de Reg. elle o
Sindicara e perguntado SeSenta testemunhas cujos
didos Se achão nestes autos de leis Rezultara Ser elle
Capitam Mor [ileg. 1 pal.] de procedimento na
occupação do dito posto e em Nada faltara a Sua
obrigação com a habilidade [ileg. 1 pal.] para os
subditos e Com muyta Limpeza de mãos [...].49
A fiscalização dos demais oficiais da comarca e suas câmaras
municipais colocavam o ouvidor em uma posição de destaque, já que se
concentrava nele a responsabilidade de garantir a “boa administração da
justiça”. O ouvidor possuía poderes até para nomear oficiais para as
câmaras. Frente a uma necessidade específica, o ouvidor régio possuía
poderes para intervir nos ofícios municipais, mas sempre observando as
normas do direito.
O D.or Manoel Tavares de Siqueira do Dezembg.o de
Sua Mag.de SindiCante, e ouvidor geral Corregedor,
[...] Por Se achar hâ tempos Vaga na V. a de Iguape a
Serventia dos Officioz de Tabalião do publico Judicial
e nottas Camera, Almotaçaria, e Orphãoz por ficar
criminozo em Correição Francisco Xavier Pedrozo que
o Servia e por esta Cauza haver falta na boa
administração da justiSsa achandoSe em total inacção
as cauzas e Requerimenttoz das partes e mais
deLigencias da justiSa dezejando e devendo pella
obrigação que me encube occorrer a prejuizo tao
consideravel e que neSeSita de Remedio prezentace; e
ser enformado que na peçoa de Theodozio Roiz
Comcorre os neSeSarioz Requezittoz para Servir os
dittoz officioz: o nomeo na Serventia delles por tempo
de tres mezes e no entanto ReCorrera ao ILustriSimo e
AHU. São Paulo, caixa 1, doc. 56. Carta do ouvidor geral da comarca de Paranaguá, Antônio
Álvares Lenhas Peixoto, ao rei Dom João V. Rio São Francisco, 10 de março de 1726. Projeto
Resgate, documentos Avulsos.
49
Dossiê CÂMARA MUNICIPAL
90
Ex.o Sr. general a quem taobem darej parte: [...] mando
aos Juizes ordin.os e mais Justicas da Villa de Iguape
deixem Servir ao ditto Theodozio Roiz e lhe dem
posce dando elle primejro fiança aos novos direitoz
que dever e terça parte do Rendimento na forma das
ordens de Sua Mag.de e havera juramento de que tudo
Se farao os termoz neSseSarioz nas coztas deste e no
Livro da chanSelaria e Se reziztara adonde he stillo
dado nesta Villa de Paranagoa Sem este dado de meo
Signal [...] M.el Tavares de Seqr.a 50
As intervenções nas nomeações para cargos das câmaras
municipais abrem brecha para uma reflexão a respeito das “tensões” entre
os ouvidores e as elites locais. Tais tensões estão presentes, por exemplo,
nos provimentos de 1737 que Manoel dos Santos Lobato deixou para a vila
de Curitiba.
Achou elle Doutor Ouvidor geral que os Juizes e mais
officiaes da Camera não davão cabal cumprimento
aos Provimentos assim os que tinham deixado na
ultima correição como em os mais anteçedentes pellos
ministros seus antecessores; pello que
Proveo que daqui em diante se lhe desse em tudo
comprimento penna de pagarem cada hum dos que
tiveçem servido em Camara athe a primeira correição
que se fiser dose mil reis que ho por aplicado para as
despezas da dita Camara em a qual cominação entrarã
tão bem o escrivão da Camara pella prozunção delles
não ler os ditos Provimentos pois se faz crivel que se
os lesse os havião de observar.51
A partir do momento que a ouvidoria de Paranaguá foi inserida no
espaço colonial, ela passou a dividir as ações jurídico-administrativas com
as instituições subordinadas a ela, no caso as câmaras municipais. Assim,
passa a dividir o próprio poder político na localidade. Essa divisão política
dos espaços coloniais formava um instrumento de poder, um aparelho
político,
que serve tanto para a organização e perpetuação do
poder de certos grupos sociais como para a
Arquivo do Estado de São Paulo (AESP). Caixa: 73, Pasta: 01, Documento: 76-1-18. Carta do
ouvidor Manuel Tavares de Siqueira para a ocupação da vaga de tabelião na Vila de Iguape.
Paranaguá de 15 de novembro de 1744.
51 Autto de provimentos de Correição nesta Villa [de Curitiba]. BAMC. vol. VIII, 1924, p. 63.
50
REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014.
91
expropriação de outros grupos. Com efeito, cada
grupo social detém, de acordo com as características
da sua organização, a capacidade de gerir certos
aparelhos, enquanto que outros aparelhos escapam ao
seu poder de direção.52
Nesta linha, reserva-se a determinados grupos a administração da
municipalidade, a chamada elite local, composta por indivíduos eleitos
para os principais cargos das câmaras municipais (juiz ordinário,
vereadores e procurador) e pelos indivíduos que elegiam os que assumiam
tais cargos. Esses indivíduos eram os “homens bons” da localidade.
[...] homem bom era aquele que reunia as condições
para pertencer a um certo estrato social, distinto o
bastante para autorizá-lo a manifestar sua opinião e a
exercer determinados cargos. Na América Portuguesa,
associava-se em particular àqueles que podiam
participar da governança municipal, elegendo e sendo
eleitos para os cargos públicos que estavam reunindos
nas câmaras, principal instância de representação local
da monarquia.53
O processo eleitoral para os ofícios municipais agia, assim, no
sentido de formar a elite camarária local.54 Tal elite era um grupo de
indivíduos que possuía o poder político no interior da municipalidade,
administrando o conjunto de empregos que se encontravam nas câmaras
municipais, angariando, por isso, não só prestígio na comunidade, mas
também espaço de ação e controle sobre demais áreas, como a econômica e
a possibilidade de legislar localmente. Isto quer dizer que o grupo no
domínio do poder local, ao ser eleito para cargos públicos, dispunha de
mecanismos para levar a cabo certos interesses, sendo as posturas
municipais um desses artifícios.
As posturas municipais possuíam força de lei e regiam o convívio
da comunidade, visando a manutenção do “bem-viver” de todos os seus
HESPANHA, Antonio Manuel. As vésperas do Leviathan: instituições e poder político –
Portugal, século XVII. Coimbra: Almedina, 1994. p. 87.
53 NEVES, G. P. das. Mesa da Consciência e Ordens. Em: VAINFAS, R. (org.). VAINFAS, R.
Dicionário do Brasil Colonial. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. p. 285. – itálicos nos
originais.
54 Sobre o processo eleitoral na vila colonial ver: SANTOS, Antonio Cesar de Almeida;
SANTOS, Rosângela Maria F. dos (Orgs.). Eleições da Câmara Municipal de Curitiba (1748 a
1827). Monumenta, Curitiba: Aos Quatro Ventos, 2003, 256 p.
52
Dossiê CÂMARA MUNICIPAL
92
membros. Nesse sentido, são “excelentes indicadores da vida cotidiana” 55
das vilas coloniais. Esses códigos locais, em alguns momentos,
contrapunham-se às leis gerais do Estado português. Entretanto, com as
correições os ouvidores buscavam alinhar as disposições locais às régias.
As posturas, na mesma medida em que acompanhavam as mudanças
sociais, políticas e econômicas dos municípios, também podiam colocar em
xeque a possibilidade de ação da legislação régia sobre as localidades, já
que poderiam conter os mais variados tópicos, sendo alteradas ao sabor da
necessidade específica de seu tempo. Magnus Pereira observa que
As posturas municipais eram um dos principais
instrumentos da ação institucional dos vereadores.
Elas já eram previstas nas Ordenações do Reino, e
continuaram presentes na Constituição Imperial e nas
constituições republicanas. Todavia, no Paraná, as
câmaras municipais do período colonial pouco uso
fizeram
daquele
instrumento.
As
câmaras
periodicamente expediam algumas ordens, sem
contudo demonstrar preocupação em consolidar
códigos municipais. Em lugar destes, tanto em
Curitiba quanto em Paranaguá, vigoravam, de fato, os
provimentos do ouvidor Pardinho editados na década
de 1720. Tais provimentos são a melhor demonstração
do esforço do estado português em se fazer valer na
região.56
Assim, por intermédio dos provimentos, os ouvidores régios
interferiam no funcionamento das municipalidades, sendo que as posturas
municipais deveriam submeter-se às determinações desses oficiais régios.
Além das correições e dos provimentos, outro instrumento de
fiscalização utilizado pelos ouvidores régios de Paranaguá foram as
residências, que estavam voltadas a adequar o desempenho e o exercício de
poder político de determinados oficiais, régios ou não. Essas ações dos
ouvidores possuíam um importante valor simbólico para a adaptação das
comunidades coloniais às leis do reino. No que diz respeito às residências,
quando favoráveis, como no caso do capitão-mor da vila de São Francisco,
enfocado acima, as ações daquele oficial local passavam a ser vistas como
modelo de comportamento para o exercício de ofícios no interior da
comunidade. Por outro lado, quando a residência concluía que o oficial não
PEREIRA, Magnus Roberto de M. Semeando iras rumo ao progresso: ordenamento jurídico e
econômico da sociedade paranaense, 1829-1889. Curitiba: Ed. da UFPR, 1996. p. 14.
56 Ibid., p. 13.
55
REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014.
93
havia cumprido suas obrigações como se esperava que o fizesse, além das
penalidades impostas ao indivíduo, procurava-se ajustar as ações dos que o
sucederiam. Deste modo, tanto de um jeito ou de outro, ao fiscalizar e
corrigir as ações dos oficiais locais, o ouvidor agia em favor das normas da
Coroa portuguesa, procurando normatizar as práticas locais à legislação
geral.
Devemos, ainda, salientar aqui que estamos diante do mesmo
movimento “pendular” identificado por Laura de Mello e Souza para a
administração de Minas Gerais. Ou seja, ora as características da
administração pendiam para uma sujeição à monarquia, ora pendiam para
a autonomia local.57
Ainda em relação às residências que os ouvidores faziam acerca do
desempenho de oficiais locais, é necessário retermos que os “homens-bons”
da localidade detinham um peso considerável quanto a definir se
determinado sujeito seria avaliado positiva ou negativamente, uma vez que
eles e seus dependentes eram inquiridos pelo ouvidor para informarem
sobre as ações do oficial do qual se estava tirando residência. Contudo,
quem definia se o oficial sindicado havia exercido seus deveres como
esperado era o ouvidor régio, que avaliava o exercício do oficial conforme
as obrigações impostas pelo regimento do cargo e pelas Ordenações.
Assim, as residências tiradas dos oficiais não dependiam estritamente da
opinião da população local, embora esta possuísse artifícios para retirar do
cargo um oficial que se excedesse em suas ações, ou contrariasse
abertamente os interesses dos grupos dominantes locais. Tal situação pode
ser observada, por exemplo, nos casos dos ouvidores Jerônimo Ribeiro de
Magalhães e João Batista dos Guimarães Peixoto, sendo os dois acusados
de abusos no exercício de suas funções.58
Nesta linha, as leis e a justiça da monarquia lusa ao serem
impostas/aceitas pelos indivíduos que compunham aquela sociedade
formavam um aparato que alicerçava e promovia a própria sustentação do
monarca, legitimando-o como uma força dominante sobre as demais forças
concorrentes dos espaços coloniais. Desta forma, gradualmente, a justiça, a
fiscalização e sem esquecer da coerção estatal, tornaram-se cada vez mais
presentes, sendo assim progressivamente eram aceitas/impostas como
SOUZA, L. de M. Op. cit., 2004.
LEÃO, Ermelino de. Dicionário Histórico e Geográfico do Paraná. Curitiba: Empresa Ghraphica
Paranaense, 1994. vol. I, p.103 e vol. III, p. 956-957. AESP. Caixa: 76, Pasta: 02, Documento: 762-9.
57
58
Dossiê CÂMARA MUNICIPAL
94
legítimas, ocasionando aos poucos o abandono por parte dos coloniais em
administrarem seus conflitos.
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ouvidor Manuel Tavares de Siqueira para a ocupação da vaga de tabelião na Vila de Iguape.
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Arquivo do Estado de São Paulo (AESP). Caixa: 76, Pasta: 02, Documento: 76-2-9.
Arquivo Histórico Ultramarino (AHU). São Paulo, caixa 1, doc. 56. Carta do ouvidor geral da
comarca de Paranaguá, Antônio Álvares Lenhas Peixoto, ao rei Dom João V. Rio São
Francisco, 10 de março de 1726. Projeto Resgate, documentos Avulsos.
Arquivo Histórico Ultramarino (AHU). São Paulo, caixa 1, doc. 56. Carta do ouvidor geral da
comarca de Paranaguá, Antônio Álvares Lenhas Peixoto, ao rei Dom João V. Rio São
Francisco, 10 de março de 1726. Projeto Resgate, documentos Avulsos.
Arquivo Histórico Ultramarino (AHU). São Paulo, caixa 1, doc. 57. Certidão passada pelo
escrivão da ouvidoria geral da comarca de Paranaguá, Luís Henriques, a respeito do fato do
ouvidor daquela recém-criada comarca, Antônio Álvares Lanhas Peixoto ter enviado carta
solicitando os papéis concernentes à sua jurisdição à comarca de São Paulo e ainda não ter
obtido resposta. Paranaguá, 29 de abril de 1726. Projeto Resgate, documentos Avulsos. ______.
São Paulo, caixa 1, doc. 58. Carta do ouvidor geral da comarca de Paranaguá, Antônio Álvares
Lanhas Peixoto, ao rei Dom João V. Paranaguá, 30 de abril de 1726. Projeto Resgate,
documentos Avulsos.
Arquivo Nacional da Torre do Tombo (ANTT). Leitura de Bacharéis – Rafael Pires Pardinho. Ano:
1700. Maço: 02. Número: 27. ANTT. Registro Geral de Mercês. Cota: Dom João V, Livro 8,
folha 501.
Auto de provimento de Correição que fez o Doutor Manuel dos Santos Lobato. [1735]. BAMC.
vol. VIII, 1924.
Auto de provimento de Correição que mandou fazer o Doutor Ouvidor Geral e corregedor
desta comarca Antonio Barbosa de Mattos Coitinho neste anno de 1776. BAMC. vol. VIII, 1924.
Auto de Provimento que mandou fazer o Doutor Francisco Leandro Toledo Rondon – ouvidor
geral e corregedor da comarca de Paranaguá em correição nesta vila de Curitiba. [1786].
BAMC. vol. VIII, 1924.
Autto de provimento que amndou fazer o Doutor Jerônimo Ribeiro de Magalhães Ouvidor
geral Provedor e Corregedor desta Comarca como abaixo se declara em Câmera desta dita
villa. [1756]. BAMC. vol. VIII, 1924.
Capítulos de Correição que faz o Capitão Manuel de Sampaio, juiz ordinário e órfãos da Vila
de Paranaguá e nela e sua Comarca Ouvidor Geral pela Lei. Boletim do Arquivo Municipal de
Curitiba (BAMC). vol. VIII, 1924.
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1721. Em: SANTOS, Antonio Cesar de Almeida; PEREIRA, Magnus Roberto de Mello. Para o
Bom Regime da República: ouvidores e câmaras municipais no Brasil colonial. Monumenta,
inverno 2000, Curitiba: Aos Quatro Ventos, v. 3, n. 10, 2001.
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Revista do Arquivo Histórico de São Paulo. Ano 1 – Vol. IX, São Paulo, 1935.
Três Lado do Regimto. Dos Ouvidores Gerais do Rio de Janeiro &a. Revista do Arquivo
Municipal de São Paulo. vol. VIII, 1935, pp. 55-60.
Treslado dos capítulos de correição desta villa de Nossa Senhora do Rosário de Pernagua este
anno de 1721. Em: SANTOS, Antonio Cesar de Almeida; PEREIRA, Magnus Roberto de Mello.
Para o Bom Regime da República: ouvidores e câmaras municipais no Brasil colonial.
Monumenta, inverno 2000, Curitiba: Aos Quatro Ventos, v. 3, n. 10, 2001.
Treslado dos provimentos de correição que nesta villa fes, e deixou para bom Regimen da
Republica e bem comum d‟ella, o D.zor Raphael Pires Pardinho. Este anno de 1721. [vila de
Curitiba] Em: SANTOS, Antonio Cesar de Almeida; PEREIRA, Magnus Roberto de Mello.
Para o Bom Regime da República: ouvidores e câmaras municipais no Brasil colonial.
Monumenta, inverno 2000, Curitiba: Aos Quatro Ventos, v. 3, n. 10, 2001.
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REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014.
97
As câmaras em Minas Gerais no século XVIII
Entre enquadramentos administrativos e desventuras tributárias
Pablo Menezes e Oliveira 1
1
Resumo: O artigo tem por objetivo analisar as câmaras
de Minas Gerais, observando o processo de
constituição de municipalidades, e os interesses que
estiveram em torno deste ato. As municipalidades,
através de seus oficiais, deram ordem às necessidades
cotidianas da administração, procurando manter a
ordem e salubridade dos locais em que eram
instaladas. No texto que segue, pretendemos mostrar
outra face das câmaras: como elas atuaram junto ao
Rei para que este pudesse atender suas demandas
relacionadas a questões tributárias. Tal proposta de
trabalho vai ser balizada pela reflexão sobre o
processo de instalação de uma administração régia no
território das Minas, e como a análise das instituições
municipais são importantes para revisitar o tema.
Palavras-chave: administração – poder – prática
política
Abstract: The article aims to analyze the chambers of
Minas Gerais, watching the process of constitution of
municipalities, and the interests that have been
around this act. The municipalities, through its
officers, gave the order to the needs of everyday
administration, seeking to maintain the order and
cleanliness of the places in which they were installed.
In the following text, we intend to show the other side
of the cameras: how they acted with the King so that it
could meet their demands related to tax matters. The
proposed work will be buoyed by the reflection on the
process of installing a royal administration in the
territory of Mines, and how the analysis of municipal
institutions is important to revisit the topic.
Key-words: government – power – political practice
1
Pesquisador do grupo JALS – UFOP.
Dossiê CÂMARA MUNICIPAL
98
A
historiografia referente a Minas Gerais do período colonial fez dos
estudos da administração um de seus mais diletos objetos de
análise. Em quase todos os trabalhos a justificativa para tal escolha
estava na forma como ocorreu a instalação de povos de origem europeia e
africana no coração do então chamado Sertão dos Cataguás em fins do século
XVII e ao longo do século seguinte, que se traduziu em uma estrutura
administrativa considerada sem precedentes na história dos domínios
além-mar, motivada pela natureza mineral de sua economia. A busca por
metais preciosos no interior da América, intensificada no decurso do século
XVII, quando o rei prometeu honras e cargos aos descobridores de riquezas
minerais, mostrou que havia ouro nas terras devassadas pelos paulistas,
que rasgaram o território americano em suas expedições.
Com a confirmação da existência de ouro nas Minas a discussão
sobre a melhor forma de administrar foi trazida à ordem do dia, e se
estendeu por muitos anos. Inicialmente a coroa acabou por cumprir aquilo
que havia ajustado com os possíveis descobridores: concedeu cargos na
administração dos distritos recém-descobertos aos paulistas, tidos como
seus descobridores. Assim, estes receberam os cargos de guarda-mor e
escrivão, ficando responsáveis por repartir as lavras minerais e recolher os
tributos que a atividade resultasse. Para além, as expectativas em relação
aos distritos minerais não era clara. Não se sabia o tamanho das lavras, sua
exata localização, e quanto elas podiam resultar, o que acabou por reforçar
o intento do rei de entregar a administração dos distritos minerais aos
particulares. Havia ali, e pelos anos seguintes, um tatear inseguro sobre o
destino dos distritos minerais, e a melhor forma de administrá-los.
Entretanto, à medida que aquele mapa liso e uniforme foi ganhando
rugosidades e contornos mais precisos, a Coroa foi formatando o modo
pelo qual seriam administrados os distritos minerais. Sob esta perspectiva,
vamos observar que a Coroa assentou seus pilares ao mesmo tempo na
acumulação de “experimentações” administrativas, como também em sua
tradição política. Neste sentido, a administração do território das Minas
Gerais derivou de uma experiência governativa, na qual se fundiram ao
mesmo tempo tradições de administração governativa portuguesa,
mesclando-se o pensamento político português, com a realidade e
especificidade das localidades que compunham os domínios portugueses.
Práticas de administração que se alteravam à medida que seus domínios
iam se alargando, tocando regiões que em muitos casos se afastavam das
realidades europeias. Neste sentido, Minas Gerais assimilou uma nova
abordagem à administração do território, mas sem que isso tivesse levado a
REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014.
99
pique as práticas políticas então vigentes em Portugal e seus domínios.
Portanto, se concordamos que Minas significou uma nova forma de pensar
a administração, não significou o fim de uma prática política que a
antecedeu. Não creio, assim, que tenha ocorrido um processo claramente
marcado pela centralização política, que em alguma altura teria cerceado as
ações dos poderes periféricos, como as câmaras, por exemplo. 2
Minas Gerais não tardou chamar a atenção do Rei. Com o avançar
do fim do seiscentos, e o alvorecer do setecentos, algumas questões
atinentes aos recém-descobertos distritos minerais precisavam ser
solucionadas. Descobridores, governadores da Repartição Sul, funcionários
régios de toda sorte notaram que poderiam se beneficiar enormemente com
os achados minerais. Os descobridores poderiam se habilitar à conquista de
honras e mercês junto ao rei. Para os governantes poderia significar a
formação de redes clientelares, a partir de concessão de cargos e postos.
Estes interesses se corporificaram nas escaramuças entre o governadorgeral e o governador da Repartição Sul, para que Minas ficasse sob a
jurisdição de um deles. Afinal, venceu Artur de Sá e Menezes, nomeado
governador e capitão general das Capitanias da Repartição Sul em abril de
1697. Entre 1697 e 1702 Artur de Sá empreendeu três viagens aos distritos
mineradores, em cinco anos conseguiu implantar as bases da estrutura
administrativa nos distritos mineradores. Para obter êxito, procurou ter
boas relações com os paulistas, para que estes manifestassem a descoberta
de minerais nos sertões dos Cataguases. Sua estratégia consistiu em
oferecer aos habitantes do planalto honras e mercês, a mesma empreendida
pelo Rei anos antes.3 Esta estratégia rendeu lucros ao rei, pois permitiu o
aumento dos serviços minerais, e consequentemente o aumento das rendas
advindas dos impostos, especialmente o quinto, que deveria ser cobrado
aos mineradores.
Diante de tal quadro, a administração precisava ser repensada.
Chamo a atenção para o fato da atividade mineral ter acabado por resultar
em uma forma de convivência mais estreita entre os povos. As lavras
concedidas aos mineradores não eram medidas em léguas, mas em braças,
Chamo a atenção para dois estudos em especial, que deixaram de observar estas questões:
Francisco Iglésias, no texto Minas e a imposição do Estado no Brasil (1974), e Maria Verônica
Campos, na tese Governo de Mineiros: de como meter as Minas em uma moenda e beber-lhes o
caldo dourado, 1693-1737 (2002).
3 ROMEIRO, Adriana. Paulistas e emboabas no coração das Minas: idéias, e imaginário político no
século XVIII. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008, p.51.
2
Dossiê CÂMARA MUNICIPAL
100
fazendo com que as atividades auríferas fossem realizadas em grandes
acampamentos de mineradores, depois tornados arraiais e vilas. Esta
convivência demandou a instalação não só de guardas-mores e escrivães,
mas de autoridades que fossem suficientemente capazes de aparar atritos
que pudessem ocorrer entre os moradores locais. Compostos por pessoas
de vontades distintas, estes grupamentos humanos muito depressa
mostraram a necessidade de formação de estruturas que pudessem auxiliar
na administração dos moradores. Havia ainda a questão da atividade
aurífera que cada vez mais demandava atenção, especialmente no que
tocava sua tributação. Ao contrário de outras regiões da América,
relacionadas com a agro-exportação, o ouro tinha uma natureza econômica
distinta. No caso do nordeste açucareiro, por exemplo, embora os senhores
dominassem a propriedade da terra e o trabalho compulsório, não tinham
controle sobre a comercialização dos gêneros que produziam. A mediação
da metrópole na comercialização dos bens que estes produziam acabava
por os deixarem a mercê de uma extrema dependência externa. Como
observei acima, este modelo não era aplicável à realidade das Minas.
Primeiro porque era impossível haver a dominação comercial, em face o
ouro ser antes demais nada equivalente universal. Assim, “a subordinação
externa, engendrada com sucesso para a economia açucareira, não foi
suficiente para submeter a área mineradora”.4
Assim, a sustentação para a construção da administração de Minas
Gerais veio de várias matrizes. Veio da necessidade da administração da
justiça aos povos, afinal uma das funções do monarca, e da ação fiscalista,
como a que acima registramos. Esteve relacionada também com práticas
políticas que foram retraduzidas para o universo daquela sociedade que
começava a ganhar contornos no coração da América. As Teorias
Corporativas de Poder, em voga em Portugal durante o período moderno, se
fizeram sentir na sociedade mineradora. Enquanto parte da construção
política lusitana, foi marcada, grosso modo, por caracterizar o poder como
algo simbolicamente concentrado nas mãos do monarca, mas partilhado e
negociado por este com os demais corpos constitutivos da sociedade.
Assim, mais que se impor, o rei negociou o lugar de seu poder, o qual
sofria limitações – para que não se tornasse um tirano – em conformidade
4ANASTASIA,
Carla Maria Junho. Vassalos rebeldes: violência coletiva nas Minas na primeira
metade do século XVIII. Belo Horizonte: Editora C/Arte, 1998, p.10-11.
REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014.
101
com os interesses da sociedade e/ou dos grupos que a compunham.5
Experiências que foram internalizadas nas Minas, afinal constituídas por
pessoas que partilhavam do universo cultural europeu, sejam os
moradores, sejam aqueles investidos na estrutura da justiça e da
administração. Por fim, chamo a atenção para as experiências de governo,
que como já observei, derivavam das tentativas de formar uma
administração das várias partes de seus domínios, constituídos por
realidades sociais e econômicas difusas, que faziam com que as formas de
administrar fossem com alguma frequência reajustadas. Com tais questões
em mira, a Coroa foi construindo a administração do território das Minas à
medida que as tensões entre os moradores e os problemas na
administração dos tributos se faziam presentes.
Com o passar dos anos, povos de várias partes da América e de
outras partes dos domínios e do Reino de Portugal migraram para Minas.
A esperança de encontrar grandes riquezas, seja tirando o ouro das
entranhas da terra, ou dos bolsos dos mineiros, animou as levas de gentes
que migraram para a região. Tal foi o contingente de pessoas que migraram
para a região que Antonil não pode deixar de registrar em seus relatos
sobre a América portuguesa, produzidos nos primeiros anos de século
XVIII, que a “sede insaciável” de conseguir riqueza havia trazido para
Minas um grande contingente de pessoas, formando uma “mistura” de
“toda condição de pessoas”.6
Tão grandes foram as levas humanas, o foram também a
heterogeneidade e os interesses dos povos. Aos poucos, os grandes
acampamentos minerais passariam a reunir grupos sociais com interesses
distintos. Os paulistas, tidos como descobridores, e então detentores dos
cargos administrativos, passariam a ter seu lugar ameaçado naquela
nascente sociedade, quando os forasteiros passaram a experimentar grande
projeção econômica, passando a almejar cargos na administração das
Minas. A Guerra dos Emboabas teve como pano de fundo os conflitos entre
paulistas e forasteiros. Apesar de descobridores, os paulistas
gradativamente foram deixando de ter preponderância sobre os cargos
exercidos nos distritos minerais. Por volta de 1702, a coroa criou o cargo de
HESPANHA, Antônio M.; XAVIER, Ângela Barreto. A representação da sociedade e do
poder. In: MATTOSO, José (org.). História de Portugal – O Antigo Regime (1620-1807). Lisboa:
Editorial Estampa, 1998, p. 121-155.
6ANTONIL, André João. Cultura e opulência do Brasil por suas drogas e minas. Lisboa:
Comissão Nacional para as comemorações dos descobrimentos portugueses, 2001. p. 243-244.
5
Dossiê CÂMARA MUNICIPAL
102
Superintendente de terras e águas minerais, cargo que deveria ser ocupado por
pessoa formada em leis, nomeada e remunerada pela coroa. 7 Os forasteiros,
por seu turno, conquistaram espaço e importância na região, e isto se
observa na atuação que tinham na economia. As lavras minerais que os
forasteiros detinham eram trabalhadas por grande número de escravos,
usando técnicas de extração que apresentavam bons resultados. Os
forasteiros ainda aliavam mineração, atividades agropastoris e comércio.
Com sua prosperidade econômica, os forasteiros foram aos poucos
tomando parte nos postos de governo.
Neste clima de tensão, o conflito entre paulistas e “emboabas” teve
início a partir de uma disputa pela posse de uma espingarda.
Aparentemente banal, o conflito tomou enormes proporções, chegando os
dois lados a reunirem um grande número de aliados para um combate no
campo de Caeté. O evento levou a que Borba Gato, então superintendente
das minas do Rio das Velhas, lançasse edital expulsando Manuel Nunes
Viana, então um dos mais importantes “emboabas” de Minas. O aumento
das tensões entre paulistas e “forasteiros” aumentou. Os “emboabas”
expulsaram os paulistas de diversos locais onde estavam instalados, sendo
emblemáticos os conflitos que ocorreram em Sabará e Cachoeira do
Campo. Essa situação chegou ao seu ápice quando Manoel Nunes Viana
assumiu o governo de Minas, alegando ter sido “eleito” pelo povo para que
pusesse fim à tirania exercida pelos paulistas. O desfecho do ataque contra
os paulistas deu-se entre fins de janeiro e início de fevereiro de 1709,
quando um grupo de emboabas, chefiados por Bento Amaral Coutinho,
seguiu rumo à região do Rio das Mortes a fim de combater os paulistas. O
resultado dessa expedição foi o episódio conhecido como Capão da Traição,
em que os paulistas, cercados em um capão, mesmo rendidos e
desarmados, foram mortos à queima-roupa.8
Os conflitos entre as partes chegaram a tal monta que acarretaram
prejuízos para a Fazenda Real. O então governador da Repartição Sul, dom
Fernando, tentou entrar nas Minas, com a intenção de apaziguá-la. Os
amotinados, contudo, impossibilitaram a entrada do governador nas
Minas, ameaçando-o de morte. Tão logo as notícias sobre os primeiros
conflitos ocorridos em Minas chegaram à Corte, o Conselho Ultramarino
concluiu que o melhor meio de se chegar ao bom governo da região era
CAMPOS, Maria Verônica. Governo de mineiros: "de como meter as minas numa moenda e
beber-lhes o caldo dourado" 1693-1737. 2002. Tese (doutorado em História) – Faculdade de
Filosofia Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2002, p. 64-71.
8 CAMPOS, Op. cit., p. 85-89; ROMEIRO, Op. cit., p. 169-208.
7
REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014.
103
através da instalação dos governos político, militar e eclesiástico. Antes
mesmo de tomar ciência da gravidade dos ocorridos nos distritos
mineradores, o Conselho se reuniu em 17 de julho do ano de 1709 para
deliberar sobre ações que deveriam ser adotadas para administrar as minas
de maneira eficiente, para “pôr em melhor forma o governo daquelas
terras”.9
Segundo consta das deliberações feitas na reunião referida, a tarefa
de administrar as Minas estaria vinculada a vários pontos que se
relacionavam à defesa da costa do Rio de Janeiro, à administração da
justiça, ao governo político das Minas e à arrecadação dos quintos. Digno
de nota, o Conselho Ultramarino tinha na administração da justiça e do
governo um importante ponto, aos quais se referiam como “o último fim de
todas as repúblicas e a principal obrigação dos príncipes sendo esta a causa
final para que sejam constituídos por Deus e pelos povos”, ponto que
mostra a vigência das Teorias Corporativas do Poder como parte da prática
política da época. O tema revestia-se de grande importância, pois até então
os distritos minerais eram “governad[o]s somente pela insaciável cobiça do
ouro”. Assim, para colocar a região em ordem, deveriam ser remetidos aos
distritos um contingente significativo, capaz de constituir na região um
governo “cristão e político”, para o qual deveriam ser fundadas igrejas,
constituir párocos, fundar vilas e povoações, ordenar milícias, estabelecer a
arrecadação dos quintos e dos dízimos. Para realizar tal tarefa, deveria ser
instalado um governador nos distritos minerais, que deveria ser nomeado
“governador de São Paulo e distrito das minas”. Com um governo
estabelecido nas Minas, os distritos mineradores deveriam ser colocados
em independência dos governos do Rio de Janeiro e da Bahia.10
Além dessa medida, os conselheiros sugeriam para a administração
das Minas que fossem estabelecidas na região “vilas e povoações” para
fazer chegar o governo régio às várias partes dos distritos minerais. As
vilas deveriam ser fundadas em “sítios salutíferos com vizinhança de rios e
boas águas, terrenos férteis e em pouca distância das ribeiras principais de
ouro”. Ao sugerir a criação de vilas na região, os conselheiros pretendiam
instalar nos distritos minerais instituições que tinham comprovada
importância para a administração de várias localidades de Portugal e seus
domínios. Nessas vilas, deveriam ser instaladas casas de câmara, instituições
CONSULTAS do Conselho Ultramarino, 1687-1710. Documentos Históricos. Rio de Janeiro:
Biblioteca Nacional/Divisão de Obras Raras e Publicações, 1951. V. XCIII, p. 219-242.
10 CONSULTAS do Conselho Ultramarino, p. 222.
9
Dossiê CÂMARA MUNICIPAL
104
detentoras de uma vasta gama de atribuições que podiam levar a almejada
ordem aos distritos minerais.
Instituição longeva nos quadros da administração portuguesa, as
câmaras tinham funções variadas, em áreas relacionadas à manutenção da
ordem no Termo que ficava sob sua jurisdição, aplicando leis, realizando
obras, aplicando tributos. Composta em geral por dois a seis vereadores,
Juiz ordinário, procurador, e demais oficiais, como o alcaide, e o almotacé,
em geral escolhidos entre os moradores locais que tivessem melhor
projeção social, os homens bons, cabia aos oficiais ligados à câmara
supervisionar a distribuição e arrendamento das terras municipais e
comunais, lançar e cobrar taxas municipais, fixar os preços de produtos e
provisões, passar licença aos vendedores ambulantes, construir e fazer a
manutenção de estradas, pontes, cadeias e demais bens públicos. Deviam
também regular os feriados e organizar os festejos e procissões. Eram
responsáveis pelo policiamento das localidades sob sua jurisdição, pelo
lançamento de posturas e editais. Atuavam ainda como uma espécie de
tribunal de primeira instância, subjugados ao ouvidor mais próximo ou
mesmo ao Tribunal da Relação. 11Além destas ações, as câmaras se
tornaram um mecanismo através do qual as autoridades e os povos locais
se comunicavam, procurando aparar as arestas na conformação dos
interesses do rei e dos “povos”. Assim, diante de determinações régias,
como aplicações de impostos, por exemplo, era através das câmaras que em
muitas ocasiões os moradores de uma determinada localidade
expressavam seu descontentamento, através da emissão de
correspondência ao rei no sentido de terem atendidas suas reivindicações.
A Capitania de Minas Gerais, ao longo do século XVIII, assistiu à
fundação de quatorze municipalidades, fundadas em períodos distintos,
espalhadas de maneira desigual por várias regiões da Capitania. Entre os
anos de 1711 e 1718, oito vilas foram fundadas em Minas, como reposta a
migração em massa que os descobertos auríferos provocaram para a região,
e os muitos distúrbios e disputas por lavras que ocorreram ali. As vilas
criadas neste período foram: Vila de Nossa Senhora do Carmo, Vila Rica e
Vila Real de Sabará, todas em 1711, Vila de São João d'el Rey em 1712, Vila
do Príncipe e Vila Nova da Rainha em 1714, Vila Nova do Infante em 1715
e Vila de São José d'el Rey em 1718. No ano de 1730 foi fundada a Vila de
Bom Sucesso de Minas Novas. Passados sessenta e nove anos sem que
11ORDENAÇÕES
Filipinas. Livro 1. Título LXVI. Dos Vereadores. Lisboa: Fundação Calouste
Gulbenkian. Edição de Cândido Mendes de Almeida, 1985, p. 145-159.
REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014.
105
novas municipalidades fossem instaladas na região, a coroa instalou mais
cinco municipalidades no território mineiro entre os anos 1789 e 1798.
Neste período foram fundadas as Vilas de São Bento do Tamanduá, em
1789, a Vila de Queluz, em 1790, a Vila de Barbacena, em 1791 e as Vilas de
Campanha da Princesa e de Paracatu do Príncipe, em 1798.12
Fundadas as municipalidades, muitas delas cumpriram aquilo que
delas se esperava. A leitura da documentação produzida pelas câmaras
mostra que as municipalidades procuraram fomentar a construção de
pontes, chafarizes, edifícios para abrigar as autoridades camarárias,
pelourinhos, entre outros.13 Promoveram festividades, nas quais
celebravam a religião e o rei, ações que foram de fundamental importância
para consolidar a presença do rei nas Minas. Além de procurar dar ordem
aos lugares, também foram ativas na intenção de preservar os interesses
dos locais, especialmente em matérias tributárias. Para o presente trabalho,
lanço luz sobre a documentação produzida pela câmara com o objetivo de
apresentar ao rei suas demandas em relação aos tributos que deveriam ser
aplicados aos moradores de Minas, com especial atenção para aqueles que
tocavam a extração de ouro.
Desde os primeiros anos do setecentos, as autoridades camarárias
procuraram remeter suas reivindicações tributárias ao Rei. Uma das
primeiras correspondências encontradas sobre o tema foi remetida pelos
camaristas de Vila do Ribeirão do Carmo em agosto de 1724, pouco mais de
trinta anos depois da instalação de mineradores na região. Os camaristas
deram conta ao Rei de que algumas lavras auríferas começavam a diminuir
seus rendimentos. Com a instalação das Casas de Fundição na região,
poucos anos antes, as dificuldades dos moradores em pagar o quiunto
OLIVEIRA, Pablo M. Cartas, pedras, tintas e coração: As casas de câmara e a prática política
em Minas Gerais (1711-1798). 2013. Tese (doutorado em História) – Faculdade de Filosofia e
Ciências Humanas, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2013.
Especialmente capítulo 1.
13 OLIVEIRA, Op. Cit., TEDESCHI, Denise Maria Ribeiro. Águas urbanas: as formas de
apropriação das águas em Mariana/MG (1745-1798). Dissertação (mestrado em História).
Campinas: Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas,
2011, SILVA, Fabiano Gomes da. Pedra e cal: os construtores de Vila Rica no século XVIII (17301800). Dissertação (mestrado em História Social da Cultura). Belo Horizonte: Faculdade de
Filosofia e Ciências Humanas da UFMG, 2007.. SANTIAGO, Camila Fernandes Guimarães. A
Vila em ricas festas: celebrações promovidas pela câmara de Vila Rica (1711-1744). Belo
Horizonte: C/Arte, FACE/FUMEC, 2003, RUSSEL-WOOD, A.J.R. O governo local na América
Portuguesa: um estudo da convergência cultural. Revista de História. São Paulo, v.55, p.25-81,
1977.
12
Dossiê CÂMARA MUNICIPAL
106
aumentou. Por conta disso, solicitavam que a coroa revisse a forma como
os quintos eram cobrados, pois as minas não rendiam naquela altura como
outrora.14 Para ter seu pleito atendido, os camaristas fizeram menção ao
fato daquele senado ter contribuído com grandes somas para a instalação
da Casa de Fundição anos antes, como haviam prometido ao governador.
De maneira muito frequente, os camaristas procuravam lembrar ao rei seus
esforços para realizar obras de interesse régio, como a construção de
edifícios públicos. Na medida em que ofereciam um préstimo, era a hora
do monarca os retribuir, como previam a “economia do dom”. 15 Assim, o
rei estaria na “obrigação” de retribuir as ações realizadas pelos moradores
o ato que cometeram, o que os camaristas esperavam se corporificar no
atendimento às suas reivindicações. Justificativa que outras tantas câmaras
de Minas irão utilizar na construção de suas petições.
Anos mais tarde, em julho de 1729, os oficiais da Câmara de São
João Del Rei remeteram correspondência ao rei para que este arbitrasse
sobre as execuções por dívidas que eram aplicadas àqueles que viviam da
mineração. Iniciaram a carta informando ao rei que as minas que eram
lavradas naquela Comarca estavam em sua grande maioria esgotadas. Para
dar remédio a essa situação, era necessário que os serviços minerais fossem
feitos em “formações profundas”, em lugares de “muita água”, que
demandavam dispêndio de grandes somas em escravos e materiais. Além
disso, tinham que manter gastos mesmo sem conseguir ter resultados
satisfatórios em suas novas lavras. Por tal motivo, solicitavam que os
mineradores não fossem executados por dívida enquanto estivessem
abrindo novas lavras. Afinal o que solicitavam ao rei era também do
interesse deste, pois não havendo serviços minerais, os rendimentos
diminuiriam, com prejuízo para a Real Fazenda. Além disso, lembravam ao
rei que seus antecessores já haviam arbitrado sobre a matéria em benefício
dos povos que viviam da arte de minerar, questão estaria expressa no
Capítulo 51, do Regimento de 1692. Se este argumento não tivesse êxito,
pois naquela altura o Regimento de 1692 já perdera efeito, os oficiais
lembravam que outras “indústrias” conseguiram não sofrer execução por
14AHU.
Caixa 5, Documento 43.
Segundo Antônio Hespanha e Ângela Xavier a economia do dom, entendida como “a
atividade de dar (a liberdade, a graça) integrava uma tríade de obrigações: dar, receber e
restituir”. Tal questão torna-se importante para o entendimento da vida política, pois
funcionava “como o meio mais eficaz para concretizar não só intenções políticas individuais,
como para estruturar alianças políticas socialmente mais alargadas e com objetivos mais
duráveis”. HESPANHA; XAVIER. As redes clientelares. In: MATTOSO, José (org.). História de
Portugal – O Antigo Regime (1620-1807). Lisboa: Editorial Estampa, 1998, p. 381-393.
15
REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014.
107
dívidas. Era o caso, segundos os sanjoaneneses, daqueles que se ocupavam
da “fábrica do açúcar” na região litorânea. O argumento por eles concedido
mostra como circulavam informações pela América portuguesa, que afinal
podiam ser utilizadas pelos camaristas naquele momento. Assim, era
legítimo que também os mineiros fossem beneficiados por essa resolução,
posto que “engroção tão nobremente os interesses da monarquia”. 16
Além de reclamarem dos impostos, por conta da diminuição da
quantidade de ouro que extraíam, muitas câmaras de Minas Gerais
solicitaram que a forma de cobrança dos tributos fosse alterada. Um
exemplo de tal esforço ocorreu na tentativa de colocar um fim à Capitação.
Com esse sistema, todos aqueles que tivessem escravos na Capitania de
Minas Gerais deveriam pagar o imposto por cada um deles – per capita. O
rei mandou que as câmaras de Minas fossem consultadas, demonstrando
que havia preocupação em ouvir as partes. Tal procedimento de consulta
às câmaras tinha por objetivo obter a aprovação dos povos, segundo a
doutrina aceite. Em julho de 1735, tendo a presença do governador Gomes
Freire de Andrada e os procuradores das câmaras da Vila do Ribeirão do
Carmo, de Vila Rica, da Vila do Príncipe, de São João Del Rei, de São José e
Caeté foi determinada a criação da Capitação. Ficou acertado que cada
escravo deveria pagar quatro oitavas e ¾ anuais, as lojas grandes deveriam
pagar 24 oitavas, e valores menores os estabelecimentos de menor porte.17
Apesar de anuência inicial das câmaras, a Capitação nunca teve
adesão dos povos ao longo dos quinze anos em que esteve vigente. 18
Durante este período, os camaristas fizeram várias representações
procurando mostrar que a Capitação era ruinosa para os povos. As críticas
se relacionavam principalmente ao fato da cobrança incidir sobre
atividades que não se relacionava com a mineração. Isso fica claro em
algumas cartas remetidas pelas câmaras de Minas ao rei. Um conjunto de
cartas remetidas ao rei durante a vigência da Capitação permitem fazer
uma apreciação geral do sentimento dos povos da Capitania em relação à
Capitação.
Os camaristas de Vila Rica apresentaram em 05 de julho de 1741
suas primeiras apreciações sobre a Capitação. Os camaristas não
SUPLICAS dos mineiros de São João Del-Rey, referentes às execuções por dívidas. RAPM,
1897, p. 371.
17 MAGALHÃES, Joaquim Romero, Labirintos brasileiros. São Paulo: Alameda, 2011, p. 138.
18 No de 1736, eclodiu no sertão do São Francisco uma série de motins questionando a
Capitação. A respeito, ANASTASIA, Op. Cit., p. 75-99.
16
Dossiê CÂMARA MUNICIPAL
108
questionavam o pagamento de tributos como o quinto, tido como “tributo
devido”. Segundos os camaristas, os vilariquenhos eram agravados com
dois problemas. O primeiro era com o aumento em um quarto de oitava de
ouro sobre o valor da Capitação, caso houvesse atraso no pagamento. Para
remediar esta situação, sugeriam que se esperasse encerrar todo o prazo –
presumivelmente de um ano – para cobrar a dívida. O segundo se referia a
confiscar os escravos, caso as obrigações com a Fazenda não fossem
quitadas. Solicitavam ao rei que fosse atento à penúria do povo das Minas,
pois segundo eles, há muito não se descobriam lavras minerais na região.
Para dar remédio à situação, solicitavam os camaristas que apenas se
confiscassem tantos escravos fossem o suficiente para suprir as demandas
com a Capitação, e não todos.19 Era uma das possíveis soluções
apresentadas para colocar fim à “penúria” vivida por aqueles povos.
Em 30 de setembro de 1744, foi a vez dos camaristas da Vila de São
José se manifestaram contrariamente à manutenção da Capitação. Para eles,
o principal problema do tributo se referia não só ao alto custo da Capitação,
mas à “manutenção” dos escravos que chegavam às Minas com preços
vultosos, que se somavam aos gastos que mantinham com boticas,
desobrigas, enterros e missas. Assim como outras câmaras, expuseram seus
problemas em relação a ter que pagar a Capitação em duas parcelas, sendo
que o atraso da primeira acarretava em multas, criando problemas para o
pagamento da segunda parte do imposto. 20 Aquela câmara defendia
também as mulheres forras, pardas e negras que, segundo eles, se
prostituíam para satisfazer o pagamento do quinto. Os camaristas ainda
chamavam a atenção para o absurdo que a situação apresentava. Um rei
católico tirava do pecado o sustendo da sua Real Fazenda de práticas
contrárias às leis de Deus.21 O problema do pagamento, somado às custas
para manter os escravos, em um quadro de “penúria” dos povos, acabou
levando muitos escravos a cometerem vários delitos como roubos e
assassinatos, fazendo com que a Capitação afetasse amplamente a
população das Minas. Assim como em outras câmaras, os camaristas de
São José propunham que se restaurassem as Casas de Fundição como
forma de pagamento dos quintos. Era uma forma considerada justa, porque
só seriam tributados aqueles que viviam da mineração, e a partir do que
conseguissem apurar.
IMPOSTOS na Capitania Mineira. Revista do Arquivo Público Mineiro (RAPM), 1897, p.
287-288.
20 IMPOSTOS na Capitania Mineira. RAPM, 1897, p. 293.
21 IMPOSTOS na Capitania Mineira. RAPM, 1897, p. 294.
19
REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014.
109
Em 17 de outubro de 1744, os camaristas da Vila do Ribeirão do
Carmo apresentaram suas considerações sobre a Capitação. Assim como
outras câmaras, apontavam a injustiça do tributo que recaía igualmente
sobre uma população que fazia uso dos cativos de maneira distinta, com
vias de acumular recursos ou não. 22 Além disso, argumentavam que os
serviços minerais não eram igualmente rendosos, pois escravos podiam se
adoentar, por exemplo, e isso não era ponderado no momento de recolha
do tributo. Diante de tal quadro, propunham soluções ao Rei, como
restaurar a Casa de Moeda que, segundo eles, aumentaria os rendimentos
régios e diminuiria os inconvenientes da Capitação. Além disso,
propunham que o rei lançasse um tributo sobre todo gênero de negócio
que circulavam pelas Minas, fosse produzido naquela Capitania ou não. 23
Na mesma altura que os camaristas da Vila do Carmo, os
camaristas da Vila Nova da Rainha apresentarem suas demandas em
relação à Capitação, feita em outubro de 1744. Mesmo concordando com a
cobrança em 1735, com o tempo o esgotamento das lavras deixou o tributo
cada vez mais oneroso. Ainda, o tributo não era justo porque incidia
igualmente sobre o cego pobre, que tem um escravo por guia, e o rico
mineiro, que tinha grande “fábrica paga pello escravo”.24 Assim como
outros camaristas, lembraram que esse mesmo imposto produzia o pecado,
pois muitas foram as negras que buscaram na prostituição meio de pagar a
Capitação. A injustiça persistia no fato de os cativos pagarem igualmente a
Capitação, mesmo que tivessem apenas doze anos, ou trabalhassem nas
lavras minerais. Assim como as demais câmaras, criticavam a forma como
as duas parcelas anuais deveriam ser pagas, pois o atraso levava a uma
dura multa que, em muitos casos, faziam com que os escravos e bens
fossem penhorados. Segundo os camaristas: “deste modo fica o mineiro
perdido de todo e todos os negros rematados quando só rematado hum
bastava p.ª o pagamento q. de todos se devia no q. se verifica grande
damno, q. rezulta da forma da cobrança da capitação”.25 Por fim com a
diminuição dos serviços minerais, as rendas que os negros tiravam das
lavras iam diminuindo. Receosos dos castigos, muitos eram os escravos
que vinham cometendo fugas para os matos. Disto resultava não só
prejuízos com a perda do cativo, mas também com as custas com o capitão
IMPOSTOS na Capitania Mineira. RAPM, 1897, p. 290.
IMPOSTOS na Capitania Mineira. RAPM, 1897, p. 292.
24 IMPOSTOS na Capitania Mineira. RAPM, 1897, p. 304.
25 IMPOSTOS na Capitania Mineira. RAPM, 1897, p. 307.
22
23
Dossiê CÂMARA MUNICIPAL
110
do mato. Situação que se resolveria apenas se a Capitação fosse abolida,
sendo substituído pela cobrança do quinto aos mineradores. Como possível
solução, os camaristas sugeriram que se restabelecessem as Casas de
Fundição na Capitania, tópico que já vinha sendo sugerido por outras
câmaras.
O conjunto de documentos aqui relacionados à Capitação aponta
para uma certa homogeneidade de demandas dos camaristas de minas,
sugerindo uma comunicação entre as câmaras. Consideravam a Capitação
injusta porque incidia impiedosamente sobre todos os povos, independente
de sua condição. Produzia mesmo o “pecado”, quando acabava
estimulando a prostituição como forma de obter recursos para pagar o
Erário. Era injusta porque não via a ocupação do escravo, bem como sua
saúde. A solução mais sugerida era que se restabelecessem as Casas de
Fundição e que novamente os quintos voltassem a incidir apenas sobre a
atividade mineral, questões muitas das vezes embasadas na legislação
vigente, mostrando que nem sempre as câmaras eram ocupadas por
pessoas desprovidas de qualquer conhecimento. Do contrário, muitos
foram os casos em que eles conseguiram construir argumentos sólidos para
vencer as desventuras tributárias das Minas. Assim essa profusão de
discursos muito caros uns aos outros nos anos 1740 sugere algum diálogo
entre as câmaras, mostrando que, em muitos casos, a luta “bem comum”
era cara a todas.
Depois de muitas discussões referentes ao imposto, em fins de 1749
uma junta se reuniu nas Minas para dicutir o fim da Capitação, e sua
substituição. No ano seguinte, o imposto foi encerrado, restabelecendo os
quintos nas Minas. As câmaras tiveram êxito em seu intento, mesmo que
aos olhos da coroa a Capitação fosse a melhor forma de tributar a região de
Minas. Afinal os interesses dos moradores se sobrepuseram aos interesses
tributários, mostrando que mais que a imposição, a negociação foi
constantemente utilizada em Minas.
Apesar do fim da Capitação, substituído pela Lei Novíssima das
Casas de Fundição, implantada em 3 de dezembro de 1750, os camaristas não
deixaram de reclamar da forma como o quinto passou a ser recolhido. Os
mineradores deveriam arcar com um montante de cem arrobas, recolhidos
desigualmente entre as comarcas de Minas Gerais. No ano de 1751, várias
câmaras de Minas Gerais trocaram correspondência com o objetivo de
reajustar a forma de cobrança. A troca de correspondência entre as câmaras
mostra a tentativa de criar um argumento unívoco que pudesse convencer
REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014.
111
o Rei da necessidade de reajustar partes da lei que fossem considerados
prejudiciais aos moradores de Minas Gerais.
A Câmara da Cidade de Mariana remeteu à Câmara de Vila Rica
seus apontamentos sobre as casas de fundição em 21 de abril de 1751.
Apesar de considerarem justo o restabelecimento das fundições, divergiam
da forma como foi proposto o recolhimento do ouro. A Coroa havia
determinado que os quintos recolhidos deveriam chegar a um montante de
cem arrobas. Caso isso não acontecesse, deveria ser aplicada a derrama, uma
sobre tributação que incidiria sobre toda a população com o objetivo de
conseguir realizar o ajuste dos quintos. Mesmo concordando que o
restabelecimento das Fundições era justo, não concordavam com a forma
como poderia ser satisfeita a cota de cem arrobas. Segundo os camaristas, o
Rei deveria se contentar com o que fosse apurado das lavras, pois, ao
cobrar aos povos com a derrama, deixava de ser uma cobrança sobre
atividades minerais.26
Os camaristas de Vila Rica reforçaram os pontos apresentados
pelos camaristas de Vila do Ribeirão do Carmo em uma representação feita
ao Rei em abril de 1751. Possivelmente de posse da informação de outras
câmaras – pois além da Vila do Carmo, outras câmaras circularam
correspondência sobre os quintos entre si naquela altura –, produziram um
documento em que os anseios de todas as câmaras de Minas fosse
atendido. Retomaram discussão sobre a “piíssima e santíssima” intenção
régia em torno do restabelecimento das Casas de Fundição, mas chamaram
a atenção aos prejuízos que a derrama poderia produzir entre os habitantes
de Minas Gerais. Mesmo concordando que as cem arrobas que foram
estipuladas para suprir o quinto tenham sido ideia dos moradores de
Minas, lembraram que tal sugestão havia sido dada no ano de 1734. Ao
resolver adotar esse sistema dezesseis anos após tal solicitação, Minas
Gerais já não extraía a mesma quantia de ouro de outrora. Para resolver os
problemas de diminuição do recolhimento do quinto, a Coroa deveria
permitir que fosse permitido a extração de ouro em algumas partes da
Comarca do Serro Frio, o que naquela altura era proibido por causa da
Demarcação Diamantina.
Mesmo com o fim da Capitação, os moradores de Minas
continuaram a sofrer com os quintos. Mesmo diante dos argumentos dos
CARTA do Senado da Câmara de Mariana sobre a representação contra a Lei Novíssima das
Casas de Fundição. In: CÓDICE Costa Matoso. Coordenação geral de Luciano Raposo de
Almeida e Maria verônica Campos. Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro, 1999, p. 506.
26
Dossiê CÂMARA MUNICIPAL
112
camaristas, a Coroa manteve a derrama na Lei das Casas de Fundição,
chegando a aplicá-la em algumas ocasiões. Os camaristas conseguiriam que
a derrama não fosse aplicada sistematicamente, apesar da quantidade de
ouro ter diminuído consideravelmente a partir da segunda metade do
século XVIII, motivando os camaristas a continuar remetendo cartas ao rei
para que conseguissem aliviar o peso do quinto.
Em 1765, os oficias da câmara de Vila Rica remeteram carta ao rei
para que este ponderasse sobre o pagamento “inteiro” das cem arrobas
referentes ao quinto. Quinze anos após ter revisto a forma como os povos
das Minas eram tributados, os camaristas mencionavam a falta de fôlego
para suprir essa obrigação. Cuidadosamente, escreveram uma petição
estabelecendo um “histórico” de Minas e suas fortunas econômicas. Nos
primeiros tempos as minas eram mais rentáveis, e era comum que cada um
dos escravos recolhesse até uma oitava de ouro das lavras. Mas desde
meados do século, as lavras da Capitania de Minas perdiam fôlego, e isso
começou a se refletir nas demandas que os camaristas remetiam ao rei.
Segundo os peticionários, naquela altura do século, as Minas não rendiam
mais como nos decênios anteriores. É o que se percebe em um trecho da
carta:
A sucessam porem dos annos trouxe inerente
huma grande decadência na conveniência dos
mineyros; porque dezde aquelle tempo athé o
prezente tem diminuído os jornais nas lavras e
faisqueiras, que igualmente falando, não há
mineyro que diariamente tenha jornais de quatro
vintens por dia que he a parte do que no
premittivo tempo se tirava.27
Com tais argumentos em mira, os peticionários solicitavam que o rei
moderasse a aplicação do tributo e, principalmente, a questão que versava
sobre a derrama, uma sobre-tributação que deveria incidir sobre os povos
das Minas caso as cem arrobas não fossem alcançadas, “contentando-se
com o que renderem a V. Magestadeas suas Reaes Cazas de Fundição”.
Para ter sucesso na solicitação, fiavam-se na clemência régia que, segundo
os mesmos, “protegia os vassalos”. A solicitação urgia soluções com a
maior brevidade possível, pois no ano de 1764 os moradores da Capitania
27
AHU, Caixa 86, Documento 14.
REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014.
113
já tiveram que satisfazer as demandas do Alvará de Dezembro de 1750
referente ao quinto. No ano de 1764, os moradores remeteram como
sobretributação um total de treze arrobas, catorze libras, um marco, e três
onças que, com o aumento da situação de penúria daqueles povos, iria
apenas fazer aumentar.28O insucesso da petição feita pela câmara
vilariquenha resultaria em uma situação tributária extremamente danosa
para aqueles que viviam da mineração. Talvez por isso várias câmaras
fizeram coro aos camaristas de Vila Rica.
No mesmo ano de 1765, os moradores de Vila Nova da Rainha
apresentavam suas demandas em relação ao pagamento dos quintos,
especialmente no que tocava à derrama. Como já observamos, no ano de
1764, os moradores daquela vila, e como de resto toda a população da
Capitania, haviam sofrido com a derrama. Naquele ano, os moradores
tentaram, junto ao governador, por meio de uma junta reunida em dois de
abril de 1764, que a derrama fosse suspensa. Não obtiveram êxito por conta
do “inflexível zelo” do governador. Segundo os camaristas, o governador
resolvera aplicar a derrama sem a devida atenção aos povos, e por conta de
não haver então uma forma clara de cobrar esta sobre tributação, havia
praticado injustiças.29 Assim, na construção de seus argumentos, culparam
os ministros régios pelas avultadas cobrança aos povos, mesmo em face à
ruína das Minas. Como meio de remediar a situação, solicitavam que os
impostos asseverados na lei de três de dezembro de 1750 fossem
“relaxados”. Rememorando as grandes tensões que já haviam ocorrido nas
Minas, por conseguinte às questões tributárias, solicitavam que não se
fizesse “gênero algum de extorção a seosvassallos, ou couza que perturbe o
socego publico”.30 Dessa forma, os camaristas apenas demandavam que os
governadores e ministros do rei atentassem para a adequada aplicação da
lei, e era isso que tinham em mira quando tocavam no tópico que se referia
à que nenhuma atitude fosse tomada de modo a não causar problemas ao
sossego público. Tema que estava em consonância com as tensões que
historicamente tiveram lugar nas Minas, muitas vezes derivadas de
questões tributárias. Chama a atenção o fato dos camaristas colocarem a
culpa pelo infortúnio da derrama no governador que não foi atento àquilo
que previa a lei.31 Assim, preserva-se a imagem do rei, culpando o
AHU, Caixa 86, Documento 14.
AHU. Caixa 86, Documento 33.
30 AHU. Caixa 86, Documento 33. Grifos meus.
31 AHU. Caixa 86, Documento 33.
28
29
Dossiê CÂMARA MUNICIPAL
114
governador de cometer exorbitâncias, o que acaba inserindo o episódio na
questão do rei traído.
E as preocupações com a derrama e a aplicação dos quintos
continuaram. Muitos anos mais tarde, em 20 de julho de 1772, os
camaristas de Vila Rica remeteram correspondência ao rei para que a
derrama não fosse lançada sobre os povos. Numa ordem régia de junho de
1772, o rei determinou que a derrama fosse aplicada para conseguir os
valores que eram devidos dos anos de 1769, 1770 e 1771. Como nos anos
anteriores, a justificativa dos camaristas para que não fosse aplicada a
derrama se relacionava com a “penúria” geral dos povos. O ouro estava
exaurido, as roças estavam “cansadas” e por mais esforços que fizessem
para abrir novas lavras – contando com o “zelo” do governador, que não só
obrava nesta tarefa, como também para evitar os descaminhos do ouro,
evitando o declínio das receitas –, não conseguiam aumentar os
rendimentos dos quintos. Para reverter a situação econômica de Minas, os
camaristas sugeriam que a legislação referente ao Distrito Diamantino fosse
alterada, tema já havia sido apresentando em 1751 pelos camaristas da Vila
do Ribeirão do Carmo, permitindo a extração de ouro em regiões em que
não havia diamantes. Os camaristas esperavam que a solução para o
recolhimento dos quintos, sem a necessidade da aplicação da derrama,
portanto longe do Termo daquela vila. Se não conseguissem que sua
proposição fosse implementada, sugeriam, pelo menos, que a divisão por
comarcas para pagamento do quinto fosse revisitada. Por ter as maiores
minas, a Comarca de Vila Rica era a que pagava a maior parte dos quintos.
Segundo os camaristas, naquela altura do século, aquela divisão já não
tinha vantagem alguma para aqueles povos. Segundo eles, o termo de Vila
Rica era muito diminuto e era a comarca que tinha menos lavras e roças.
Acreditavam que a Comarca do Sabará era, naquela altura do século, a
mais rica dentre todas, “pela sua muita extensão”, não ficando muito atrás
da Comarca do Rio das Mortes que, à época, vivia “opulenta com os
próprios efeitos q.e de si lança a comerciar em outras partes”.32 E a Comarca
do Serro Frio, se não tinha a melhor das situações, estava pelo menos em pé
de igualdade com Vila Rica. Caso essa proposição também não tivesse
efeito, esperavam que pelo menos a cota destinada à Comarca de Vila Rica
fosse novamente dividida entre Vila Rica e a Cidade de Mariana que
acreditavam ser mais afortunada que aquela vila. Todos os argumentos
pareciam válidos desde que seu quinhão tributário fosse aliviado.
32
SOBRE a derrama lançada em 1772. RAPM, 1897, p. 368.
REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014.
115
Parte das questões apresentadas pelos camaristas de Vila Rica, no
tocante à impossibilidade dos povos de satisfazer os quintos anualmente,
seria retomada na reunião feita pela Junta da Real Fazenda em 1772. Em
alguma medida, o governador da Capitania, Conde de Valadares, mostrouse sensível aos interesses dos povos, pois lembrava que a derrama, lançada
em 1763, aplicada no ano seguinte, havia sido “gravoza” aos povos. Mais
adiante, porém, lembrou que, pelos termos celebrados pelos povos da
Capitania com o Rei, as cem arrobas deveriam ser pagas “inteiramente”
para suprir o quinto e afinal concordou com a aplicação da derrama na
Capitania, pois os prejuízos da Real Fazenda vinham se avolumando ao
longo dos anos. Entretanto a forma como os povos deveriam ser tributados
deveria ser “suave”, pois, segundo preconizavam as determinações régias,
a derrama deveria “ser inteiramente observada segundo as Reaes ordens
de Sua Magestade, em cujos termos se deverião aliviar os povos de todo e
qualquer vexamem”.33 Assim, apesar das solicitações dos camaristas, a
coroa aplicou o quinto.34 Desse modo, a petição dos camaristas de Vila Rica
acabou por não ter efeito algum sobre as determinações de 1772.
Os camaristas da Vila de São João Del Rei remeteram representação
ao rei, em 23 de setembro de 1772, para que as determinações para a
aplicação da derrama fossem revistas. Essa questão se referia
principalmente ao excesso da cota que fora estabelecida para a Comarca do
Rio das Mortes em relação às demais. Essa havia sido uma das principais
reivindicações dos camaristas de Vila Rica naquele mesmo ano. Os
sanjoanenses diziam ser “notório” que aquela comarca tinha “menos
possibilidades” do que as Comarcas de Sabará e Vila Rica; mais ainda, sua
população já era onerada com as doze pontes que cortava o Rio Grande, o
Rio das Mortes, o Rio Verde e o Elvas, levando os povos a pagarem tributos
de passagem. Seu quinhão no pagamento do quinto podia ser menor, mas
por outro lado os moradores da região eram os mais marcados pelos
tributos de passagem de rio, por isso solicitavam que o tema retornasse à
Junta da Real Fazenda e fossem refeitos os cálculos referentes à divisão da
derrama pelas comarcas da Capitania.35 Desta feita, cada câmara tentava,
TERMO da Real Junta sobre a derrama do Quinto do ouro de 1772. RAPM, 1900. p. 175.
A segunda aplicação da derrama apurou cerca de 160 quilos de ouro. RENGER, Friedrich. O
quinto do ouro no regime tributário nas Minas Gerais. RAPM. v. 42, nº2, p. 91-105, 2006, p.104.
35 REPRESENTAÇÃO do povo de S. João D‟el Rey contra o exagero da quota arbitrada para
derrama. RAPM, 1900, p. 206.
33
34
Dossiê CÂMARA MUNICIPAL
116
pelo menos diminuir o ônus tributário de seus moradores, se a derrama
fosse inevitável.
A preocupação dos camaristas em relação aos quintos e à derrama
voltaria à ordem do dia em outras oportunidades até o encerramento do
século. Apesar do desolador quadro que se apresentava ao mineradores no
apagar do Setecentos, que sentiam o declínios dos serviços minerais,
constantemente se avizinhavam as notícias de uma nova derrama. E elas se
corporificariam, na opinião de muitos, com a chegada de um novo
governador para as Minas, em 1788. De fato, as instruções recebidas pelo
Visconde de Barbacena, que deveria tomar assento nas Minas como seu
governador, previam que a derrama fosse aplicada na região para que a
enorme diferença devida fosse satisfeita. Segundos as determinações de
Martinho de Melo e Castro, então Secretário de Estado da Marinha e do
Ultramar, tão logo chegasse às Minas, deveria convocar a Junta da
Fazenda, da qual era presidente, para lembrar que os povos eram
obrigados a assegurar as cem arrobas para os reais cofres e que, não
chegando a essa soma pelas vias normais, deveria ser aplicada a derrama.
Ao tomar posse do governo da Capitania, o recém-empossado
governador desencadeou ampla investigação na Real Fazenda. Feito isso,
convocou, em 16 de julho de 1788, a Junta da Real Fazenda, transmitindo as
disposições que recebeu referente a esse órgão e insistiu na imposição da
derrama, prevista para fevereiro do ano seguinte, além de anular os
contratos então arrematados na Capitania. 36 Apesar de ter procurado
executar boa parte daquilo que previam as instruções, Barbacena acabou
por reconsiderar alguns pontos, como foi o caso da aplicação da derrama.
Sobre esta, já havia sido inclusive alertado pela Rainha para aplicá-la
apenas se tivesse segurança de que não geraria danos à população da
capitania, por isso não houve a derrama em fevereiro, como estava
previsto. Ele tomou a decisão devido às condições da Capitania, e por
própria iniciativa. A Câmara de Vila Rica foi informada sobre sua resolução
em 14 de março de 1789, e o vice-rei, onze dias depois.37
A questão da derrama que “poderia” ter sido aplicada no governo
de Barbacena veio à luz por carta remetida pelos camaristas da Cidade de
Mariana em junho de 1789. Essa correspondência foi a resposta de uma
carta enviada àquela câmara em 23 de março do mesmo ano, para que
apresentassem as causas dos “destroços, que ha tempos tem soffrido a
36MAXWELL,
Kenneth. A devassa da devassa: a Inconfidência Mineira, Brasil – Portugal, 1750-1808.
São Paulo: Paz e Terra, 1995, p. 132.
37 MAXWELL, Op. Cit., p. 169-170.
REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014.
117
contribuição do Direito Senhorial das cem arrobas de oiro”. 38 No texto,
apresentavam duas questões: uma se referia ao estado de miséria da
capitania, e o outro se referia a apresentar potenciais “remédios” com
alterações em várias áreas na Capitania.Uma das primeiras questões
apresentadas pelos camaristas para a ruína da Capitania era o
decrescimento das atividades minerais. O ouro foi abundante nos
primeiros anos, quando os rios e morros estavam “intactos”. Mas, nesses
mesmo anos, os mineradores cometeram equívocos nas áreas de mineração
que comprometeram a atividade mineral dos anos seguintes, como foi o
caso de lavar ouro nas cabeceiras dos rios. Os depósitos de areias que se
formaram com a atividade arruinou o curso dos rios, dificultando a
atividade mineral. O usos incorreto das águas acarretou também na
dificuldade de extrair ouro nos morros, pois era necessário um curso de
água para “lavar” a terra para obter o precioso metal. Além desse
problema, havia um segundo: a falta de famílias “sólidas” na Capitania.
Segundos os camaristas, a vida errante que muito moradores da região
levavam incidia diretamente sobre a economia, pois os pais não
transmitiam seus “ofícios e massames” aos descendentes. Assim, morrendo
o dono das lavras, morria junto os serviços. Além do problema da ausência
da família, este poderia persistir quando, havendo família, os pais não
permitiam que seus filhos exercessem ofícios “grosseiros” para obter
ganhos para que pudessem ascender à nobreza, através do acesso nas
igrejas, quando se tornavam clérigos, ou membros dos postos militares;
duas nobres atividades que pouco engrandeciam os cofres da Real
Fazenda.39 A vontade da distinção social era portanto um problema para as
rendas da Capitania.
Apresentados os principais problemas das Minas, elencavam suas
potenciais soluções, das quais apresentamos as principais. Sugeriam que os
bens dos moradores das Minas não fossem sequestrados para satisfazer a
derrama, ficnando o quinto satisfeito com aquilo que rendesse. Os libertos
e índios aprisionado deveriam ser postos a trabalhar em lavras ou roças
através de um sistema de “feudo” para que fossem mantidos em trabalho.
Deveriam ser punidos aqueles que não permitissem que seus filhos se
casassem, tendo privilégios os que “aumentassem” sua família.
CAUSAS determinantes da diminuição da contribuição das cem arrobas de ouro,
apresentadas pela Câmara de Mariana. RAPM. 1901, p.143.
39 CAUSAS determinantes da diminuição da contribuição das cem arrobas de ouro,
apresentadas pela Câmara de Mariana. RAPM. 1901, p.146.
38
Dossiê CÂMARA MUNICIPAL
118
Retomavam a sugestão dada em 1751 de que a extração do ouro fosse
permitida na Comarca do Serro Frio, região que sofria restrições por conta
da Demarcação dos Diamantes. A sugestão talvez mais curiosa do
documento se refere a sua sugestão de retomar a Capitação, que segundo
eles poderia acabar com o extravio do ouro, bem como faria prosperar a
mineração e a agricultura. Por incidir sobre escravos e libertos, faria com
que a gente “vadia” tivesse ocupação, para que pudesse pagar o
imposto.40O imposto que cerca de cinquenta anos antes havia motivado
aquela câmara a fazer coro com as demais para que a Coroa o extinguisse
voltava à ordem do dia como solução. Esqueciam que as muitas câmaras
atentavam para os muitos delitos cometidos por escravos e livres, como
roubos e prostituição, para conseguirem pagar os quintos.
E os camaristas da Cidade de Mariana não seriam os únicos a
apresentar uma possível solução para a perda de rendimentos régios na
Capitania. Em 5 de agosto de 1789, os camaristas de Vila Rica enviaram
correspondência ao governador da Capitania de Minas Gerais para render
graças a este pela suspensão da derrama. No documento, além de
agradecimentos, apresentaram a trajetória tributária das Minas, mostrando
que houve uma série de equívocos que levaram os povos a ficarem
constantemente arruinados com os tributos. Se referiam especialmente aos
acertos para acabar com a Capitação que, segundo os camaristas, gerou
“enormíssimos abusos”. A vontade de colocar um fim neste tributo levou
os povos a concordarem com a contribuição de cem arrobas anuais como
forma de pagamento dos quintos. À época, essa proposta parecia possível,
pois figurava-se “aparentemente suave pelo copioso ouro que abundava
em frequentes descubertos, custando a sua extracção pouca ou quasi
nenhuma dezpesa aos mineiros”.41 Mas, segundo eles, o tempo mostrou as
limitações da mineração. Um dos pontos que teriam criado essa situação
era a “inutilização” do Distrito Diamantino, onde era vedada a extração de
ouro, tema que os camaristas já haviam apresentado em outras
oportunidades, aludindo à extração de ouro naquela região a solução dos
problemas relacionados aos quintos muitos anos antes. Com as
dificuldades da mineração, muitos mineradores migraram suas atividades
para a lavoura, “por onde não aspirando a grandes opulencias ao menos se
eximem de perecer à fome”.42
CAUSAS determinantes da diminuição da contribuição das cem arrobas de ouro,
apresentadas pela Câmara de Mariana. RAPM, 1901, p. 147.
41CARTA da Câmara de Vila Rica sobre a derrama. RAPM,1899, p. 787.
42CARTA da Câmara de Vila Rica sobre a derrama. RAPM, 1899, p. 789.
40
REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014.
119
Para remediar a situação, sugeriam alterações drásticas na forma
de administração dos tributos na Capitania. Segundo os camaristas, “logo
nada mais resta do que cortar tudo pela raiz mudando-se inteiramente o
sistema de percepção deste rendimento real, reduzindo o ouro ao seu justo
valor de mil e quinhentos reis nesta Capitania”. Sugeriam que, para o
aumento das rendas régias na Capitania, as Entradas tivessem seus valores
reajustados, incidindo sobre a entrada de escravos, ferro, e artigos de luxo.
Dessa forma, o rei recuperaria parte daquilo que havia perdido com os
quintos. Fazendo uma breve conta da população da Capitania em algo em
torno de trezentas mil pessoas, e o consequente consumo, acreditavam que
a o imposto de Entradas poderia chegar a soma de trezentos e cinquenta
mil cruzados.43 Eram medidas, que segundos os camaristas, poderiam tirar
a região de seu “estado de mizéria e desordem”. Para afastar qualquer
perigo de que a derrama fosse aplicada iam além, sugerindo que várias
ações fossem adotadas para que o Erário não “sentisse” a perda dos
quintos. Era mais uma das cartas que tentavam remediar a situação dos
povos das Minas.
Ao lançar luz sobre a documentação camarária, especialmente a
correspondência por eles remetida ao Rei, observamos como se construiu a
administração das Minas. Longe de terem aceitado tacitamente todas as
imposições régias, as câmaras procuraram, em muitas oportunidades,
oferecer uma alternativa aos valores dos tributos que deveriam ser
ajustados, em muitos casos com êxito. Chamo a atenção especialmente para
a questão da Capitação, afinal revogada em meados do século depois de
persistentes investidas das câmaras de Minas, e da derrama, que mesmo
diante das sucessivas perdas que a Coroa sofria com os quintos, que não
alcançavam as cem arrobas, não aplicou a derrama como havia previsto.
Assim, creio que as câmaras puderam construir seu espaço de negociação a
partir de duas situações. A primeira seria a internalização do pensamento
político corporativista, o qual permitiu que as câmaras remetessem suas
representações à cabeça do reino, o Rei, com o objetivo de manter a
harmonia do corpo social. A segunda estaria na experiência de governo
que se construiu nas Minas. Região marcada por algumas tensões que se
originavam, por exemplo, nas questões tributárias, atender parte das
reivindicações apresentadas pelos camaristas era um meio de evitar tensões
com os moradores.
43CARTA
da câmara de Vila Rica sobre a derrama. RAPM, 1899, p. 790-791.
Dossiê CÂMARA MUNICIPAL
120
Por fim, ao mostrar as ações dos camaristas, especialmente as suas
intervenções nas questões de âmbito tributário, podemos ampliar a
discussão sobre a construção da administração de Minas Gerais,
repensando o lugar ocupado pelos governadores, ouvidores, militares e
camaristas instalados na região, observando questões ligadas
especialmente à imposição e à negociação, situações pendulares que
acompanharam as dinâmicas de constituição da sociedade mineira
setecentista.
Referência documental
Manuscrita
Arquivo Histórico Ultramarino (Minas Gerais): Caixa 5, Documento 43;
Caixa 86, Documento 14; Caixa 86, Documento 33.
Impressa
CARTA da Câmara de Vila Rica sobre a derrama. Revista do Arquivo
Público Mineiro (RAPM), 1899, p. 787-791.
CARTA do Senado da Câmara de Mariana sobre a representação contra a
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Coordenação geral de Luciano Raposo de Almeida e Maria verônica
Campos. Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro, 1999.
CAUSAS determinantes da diminuição da contribuição das cem arrobas de
ouro, apresentadas pela Câmara de Mariana. RAPM, 1901, p. 147
CONSULTAS do Conselho Ultramarino, 1687-1710. Documentos Históricos.
Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional/Divisão de Obras Raras e Publicações,
1951. V. XCIII, p. 219-242.
IMPOSTOS na Capitania Mineira. RAPM, 1897, p. 287- 307.
REPRESENTAÇÃO do povo de S. João D‟el Rey contra o exagero da quota
arbitrada para derrama. RAPM, 1900, p. 206.
SOBRE a derrama lançada em 1772. RAPM, 1897, p. 368.
SUPLICAS dos mineiros de São João Del-Rey, referentes às execuções por
dívidas. RAPM, 1897, p. 371.
TERMO da Real Junta sobre a derrama do Quinto do ouro de 1772. RAPM,
1900. p. 175.
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REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014.
123
Câmaras e identidades regionais (século XVIII)
Denise Aparecida Soares de Moura 1
1
Resumo: este texto discute como a câmara funcionou
como um espaço de formulação da identidade de
cidadão da cidade em um contexto intensificação da
emigração e migração no atlântico português. O
referencial teórico aplicado foi o de identidades
provinciais idealizado pelo historiador norteamericano Jack Greene. A aplicação deste referencial
em um estudo de caso especifico, como o da cidade de
são Paulo entre o final do XVIII e o início do XIX,
revelou a emergência de um tópico de identidade, o
de cidadão da cidade, tensões que esta nova valoração
despertou com os emigrados, especialmente do reino
e como estes procuraram se inserir na câmara, como
estratégia para alcançar histórico de serviços e
reconhecimento locais que lhes garantissem a
condição de cidadãos da cidade. A principal conclusão
deste texto é a de que no contexto de transformações
políticas e econômicas do atlântico, neste período,
novos tópicos de identidade, com matiz local,
ganharam evidência.
Palavras-chave: Câmara Municipal; Identidade;
Independência.
Abstract: This paper discusses how the council
functioned as a space formulation of identity as a
citizen of the city in a context of arising of the
emigration and migration in the Portuguese Atlantic .
The theoretical framework was applied to provincial
identities designed by American historian Jack Greene
. The application of this standard in a specific case
study, as the city of St. Paul between the late 18th and
early 19th centuries, revealed the emergence of a topic
of identity, a citizen of the city, tensions aroused with
this new valuation emigrants , especially the kingdom
and how they sought to enter the council , as a
strategy to achieve service history and local
recognition that guarantee to them the condition of
citizens of the city . The main conclusion of this paper is
1
Professor Assistente Doutor, Universidade Estadual Paulista, São Paulo.
Dossiê CÂMARA MUNICIPAL
124
that in the context of political and economic
transformations of the Atlantic , during this period ,
new topics of identity, with color local reached
evidence.
Key-words:
Municipal
Camara;
Identity;
Independence.
A
s câmaras instaladas no Brasil desde os primórdios da colonização
foram instituições de governo local transferidas de Portugal 2 e que
ao longo de três séculos se multiplicaram por todo o território.
Embora houvesse uniformidade em sua estrutura funcional e obrigações
judiciais-administrativa seu status, perfil de funcionários e dinâmica de
funcionamento foram caracterizados pela diversidade.
Estas instituições de governo local, portanto, não foram uma
réplica das portuguesas e estiveram sob influência direta das mudanças
políticas, demográficas e econômicas do atlântico português 3. Este tópico
da história institucional do Brasil conta com volumosa historiografia
renovada pela abordagem teórico-metodológica do Antigo Regime
português. Através desta abordagem, a formação do Brasil-colônia passou
a ser compreendida como desdobramento de uma lógica de privilégios e
benefícios própria do antigo regime português e este processo teria
ocorrido através das instituições políticas4. De um modo geral estes estudos
Cunha, Mafalda Soares e Teresa Fonseca (org). Os municípios no Portugal Moderno: dos forais
manuelinos às reformas liberais. Évora, Edições Colibri/CIDEHUS/EU, 2005.
3 A história atlântica é uma corrente teórico-metodológica norte americana que desde a sua
formalização acadêmica, através da Revista Atlantic Studies e dos seminários da Harvard
University tem adotado o atlântico com norteador da sua análise histórica. As sociedades
formadas no atlântico, desde o advento de sua travessia pelos ibéricos a partir do século XV
tiveram individualidades nacionais, como defendem alguns autores, mas também estiveram
sob influência de forças históricas comuns que lhe fornecem uma unidade. Tais forças
históricas, conforme vem sendo trabalhado por alguns autores, são o capitalismo, as relações
inter-étnicas como base dos processos de ocupação e colonização, a diáspora negra, os
sistemas monárquicos – católicas ou parlamentar -, os fluxos migratórios europeus
espontâneos, as disputas trans-imperiais pelo acesso às fontes de abastecimento de gêneros
coloniais, o liberalismo, a luta por afirmação de novas identidades, os movimentos de
independência política. Cf: BAYLIN, Bernard. Atlantic history: concept and contours.
Cambridge, Massachussetts, Harvard University Press, 2005 e RUSSELL-WOOD, A. J. R.
Sulcando os mares: um historiador do império português enfrenta a “Atlantic History”.
História (São Paulo). V. 28, n. 1 Franca, 2009: 17-70.
4 Refiro-me a abordagem do antigo regime. Cf. FRAGOSO, João Luís Ribeiro; BICALHO,
Maria Fernanda e GOUVÊA, Fátima. O antigo regime nos trópicos: a dinâmica imperial
portuguesa (séculos XVI-XVIII). RJ, Ed. Civilização Brasileira, 2001, pp. 381-420; GOUVÊA,
Maria de Fátima e BICALHO, Maria Fernanda B. Uma leitura do Brasil colonial: bases da
materialidade e da governabilidade no Império. Penélope, n. 23, 2000, pp. 67-88. Na
2
REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014.
125
aplicaram esta mesma chave interpretativa para todo o século XVIII,
avançando, inclusive, nas duas primeiras décadas do século XIX.
O século XVIII, contudo e especialmente a sua segunda metade,
exigem a colocação de novos tipos de problemas tendo em vista que este é
um período de mudanças políticas e econômicas, com a valorização
comercial do atlântico e a elevação do status politico dos territórios da
América. Estes dois processos tiveram desdobramentos do ponto de vista
do movimento das populações, da expansão das ideias liberais, dos
movimentos de independência e da maneira como os habitantes destas
regiões se auto-definiam.
Neste caso, a divisão cronológica proposta por uma obra pioneira
como a de Edmundo Zenha, para o tratamento desta questão merece ser
retomada e, se associada às novas questões políticas, econômicas e
demográficas do atlântico português na segunda metade do século XVIII
pode fornecer novas hipóteses de trabalho5.
Para este autor há dois períodos na história desta instituição: antes
e depois de 1700. Nos séculos XVI e XVII estas instituições tiveram poder
administrativo-judicial amplo e eram efetivos lugares institucionais de
status, prestígio e afirmação de fidelidades ao rei, ocupando, portanto, uma
posição proeminente na lógica do antigo regime português. Com a
ampliação da estrutura funcional do Estado português na América, a partir
do século XVIII, os cargos da câmara deixaram de ser alvo da cobiça dos
habitantes da colônia, que preferiam posições mais altas na administração
ou preparar seus filhos para tanto. Em virtude disto, para ele, o século
XVIII assinala o início de um processo de definhamento do prestígio, poder
político-administrativo e judicial da câmara.
Do ponto de vista do enfraquecimento do poder políticoadministrativo esta é uma conclusão já derrubada pela historiografia.
Contudo, o século XVIII coloca uma série de questões novas, no âmbito do
historiografia sobre câmaras cf. COMMISSOLI, Adriano. Os “homens bons” e a câmara de Porto
Alegre (1767-1808). Niteró-UFF, Dissertação de Mestrado, 2006; JESUS, Nauk Maria. Na trama
dos conflitos: administração na fronteira oeste da América Portuguesa (1719-1778). Dep. de
História da UFF, Tese de doutorado, 2006;SOUZA, George Félix Cabral de. Elite y ejercicio del
poder en el Brasil colonial: la Cámara municipal de Recife (1710-1822). Salamanca, Tesis
Doctoral, Universidad de Salamanca, 2007; MONTEIRO, Livia Nascimento. Administrando o
bem comum: os “Homens bons” e a câmara de São João del Rey, 1730-1760. Dissertação de
Mestrado, História Social, Departamento de História da Universidade Federal do Rio de
Janeiro, 2010.
5 ZENHA, Edmundo. O município no Brasil, 1532-1700. SP, Instituto Progresso Editorial, 1948.
Dossiê CÂMARA MUNICIPAL
126
atlântico português, no que diz respeito à expansão e diversificação
demográfica das cidades, a valorização do espaço atlântico pelos Impérios
europeus e no caso português, ao território do Brasil, que estimula novas
perguntas e formas de analisar esta instituição.
Este texto discorda da conclusão de Zenha, porque reconhece o
vigor da instituição camarária no século XVIII do ponto de vista
administrativo, com força peticionária e de sugestão na política do Império.
Trabalhos como os de Maria Fernanda Bicalho, que iniciou a valorização do
tópico câmaras no estudo do Império português lançou a importante
questão do poder de interlocução camarária com o Reino.6
Desde a fundação do Conselho Ultramarino em Lisboa (1642), por
exemplo, estas instituições obtiveram o poder de interlocução com as
autoridades estabelecidas no reino e o exerceram intensamente. Câmaras
como as da Bahia (1549), São Paulo (1560) e Rio de Janeiro (1565) tiveram
saltos significativos na sua comunicação. Na conjuntura de 1642-1696 estas
câmaras enviaram para o reino, respetivamente, 20, 0 e 110
correspondências. No período posterior, de 1696 a 1749, estes dados foram
alterados para, respectivamente, 364, 40 e 431 correspondências enviadas 7.
Contudo, acredito que as mudanças sofridas pelo atlântico
português no século XVIII, como a valorização do seu potencial econômico
e de recursos naturais para os Impérios europeus como um todo, e,
portanto não apenas para Portugal e o estímulo que isto trouxe para a
mobilidade demográfica espontânea e forçada para e na América
influenciou a dinâmica das instituições camarárias, que se tornaram um
espaço de ressignificação das identidades em virtude da presença mais
diversificada nos municípios de indivíduos de várias origens regionais.
É esta perspectiva que será desenvolvida neste texto. Ou seja, as
câmaras como formuladoras de identidades locais, cujas posições
funcionais eram ocupadas pelos nascidos no lugar. O controle do poder
camarário pelos nascidos na localidade já era uma tradição no Brasil e foi
interpretada pela historiografia do ponto de vista da constituição do poder
e influência da nobreza da terra, herdeira da geração dos primeiros
BICALHO, Maria Fernanda Baptista. História do Brasil. História Moderna. História
Moderna, História do Poder e das idéias políticas. In: Arruda, J. J. e Fonseca, Luís Adão (org.)
Brasil-Portugal. História. Agenda para o milênio. Bauru, SP: EDSC; São Paulo: FAPESP;
Portugal, PT: ICCTI, pp. 143-166, 2001 e BICALHO, Maria Fernanda Baptista. A cidade e o
império: o Rio de Janeiro no século XVIII. RJ, Ed. Civilização Brasileira, 2003.
7 Dados obtidos a partir do Projeto de Extensão As Câmaras nos documentos do Arquivo
Ultramarino: catalogação digital das cartas camarárias do Projeto Resgate “Barão do Rio Branco”
6
REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014.
127
conquistadores ou da construção de uma identidade de fiéis vassalos do
rei, em virtude de serviços prestados.
Mas na segunda metade do século XVIII esta questão pode ser
analisada na perspectiva do esforço de distinção dos moradores nascidos
em uma dada localidade, em relação às levas de migrantes e imigrados que
passaram a viver nas cidades litorâneas ou de sua hinterland. Em relação
aos provenientes do reino e tendo em vista a valoração da condição de
nascido no lugar, recorrer aos cargos da câmara era uma maneira de
construir um histórico de serviços no local, que pelo menos os alçasse a
condição de cidadãos da localidade. Investigar e analisar o papel das
câmaras como núcleo constituidor de novas identidades pode contribuir
para a compreensão da sua própria participação no processo de
independência e sua força de articulação e legitimação desta movimentação
política por todo o território8.
Para desenvolver esta discussão sobre as câmaras como espaço
institucional de reordenamento das identidades no Império português,
diante das novas problemáticas políticas e demográficas do atlântico, como
a valorização do território do Brasil e a intensificação dos fluxos
migratórios e emigratórios, estou aplicando o conceito de “identidades
provinciais” de Jack Greenne Na perspectiva deste autor este conceito esta
relacionado à maturação de diferentes auto-definições dos habitantes das
colônias através do acúmulo de suas experiências coletivas na colonização
da América e no contato com as populações nativas.
Segundo Greene, na sua reflexão em torno das colônias da Virginia,
Barbados, Jamaica e Carolina do sul “se os colonos compartilhavam de
uma identidade britânica comum, ela existia em toda parte em simbiose
com outra identidade que tinha base regional e social”. A força alcançada
por estas identidades regionais pode ser um dos argumentos explicativos
para os colonos terem desistido de sua identidade britânica. Além disto, os
“líderes da resistência colonial”, conforme suas palavras, já tinham
consolidado a certeza de serem “protestantes nascidos livres e herdeiros
das tradições britânicas do governo consensual e do domínio da lei” 9
SOUZA, Iara Lis C. de. Pátria coroada: o Brasil como corpo político autônomo (1780-1831). São
Paulo, Ed. UNESP, 1999.
9 GREENE, Jack P. Reformulando a identidade inglesa na América Britânica colonial:
adaptação cultural e experiência cultural na construção de identidades corporativas. Almanack
Braziliense, n. 4, novembro de 2006: pp. 16-17.
8
Dossiê CÂMARA MUNICIPAL
128
A aplicação destas ideias no contexto da América portuguesa, leva
à conclusão de que a condição de natural, com histórico de serviços na vila
ou cidade tinha a dimensão de uma identidade regional ou local, mas como
variação de uma identidade macro de pertencimento a uma Monarquia,
cuja figura do rei, serviços prestados e fidelidades também eram invocados.
Certamente, o processo de independência do Brasil tem relação com a
consolidação destas identidades regionais.
Ao mesmo tempo e na medida em que esta independência foi
fortemente caracterizada por fatores de continuidade política em relação à
ordem anterior, especialmente do ponto de vista da manutenção da
Monarquia sob a dinastia de Bragança, pode-se cogitar a hipótese da
segurança destas identidades regionais de não estarem perdendo os
vínculos com o rei e a Monarquia, elemento antigo e central na definição da
identidade de vassalo do rei.
Para desenvolver este argumento de fortalecimento de uma
identidade de nascido e com histórico de serviços no local e a posição da
câmara neste processo dividi este texto em três partes: na primeira mostro
como no tratamento do tema governo local ou câmaras municipais de vilas
e cidades do Brasil ainda não houve a sua valorização como espaço
institucional de formulação e afirmação de identidades locais, diante do
contexto da segunda metade do XVIII de intensificação das migrações e
emigrações para as cidades.
Na segunda parte uso o caso da cidade de São Paulo para mostrar
como inclusive áreas periféricas do ponto de vista político e econômico,
também estiveram sob o impacto destes movimentos humanos,
promoveram a diversificação regional de seu habitantes, algo que
favoreceu a emergência de novos tópicos definidores de identidade, como a
de cidadão nascido na cidade ou cidadão da cidade, para o caso dos
provenientes do reino. Na terceira parte do artigo e ainda prosseguindo
neste caso específico, mostro como os cargos da câmara eram procurados
tanto por nascidos no Brasil como por portugueses como parte da
estratégia para alcançar reconhecimento e construir um histórico de
serviços locais que o elevariam a condição de cidadãos da cidade.
Câmaras municipais e historiografia
A historiografia sobre câmaras no Brasil colonial é bastante eclética.
Há trabalhos que interpretam sua dinâmica de funcionamento norteados
por diferentes correntes teórico-metodológicas, como a do Antigo Regime
REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014.
129
português10, a do patrimonialismo11, do Antigo sistema colonial 12 e da
genealogia do poder e do estado moderno conforme as lições do filósofo
Michel Foucault13.
A característica comum a todas elas, contudo, é a adoção do
modelo monográfico, herdado da tradição historiográfica portuguesa sobre
este assunto em especial14. Todos estes estudos, de modo geral,
contribuíram para a compressão do governo local das câmaras na sua
relação com a vida da cidade colonial, principalmente no que diz respeito à
gestão do uso do espaço público e da economia de abastecimento ou
mesmo de exportação15. Poucos autores apenas ensaiaram um tratamento
do assunto que envolvesse o confronto entre mais de um concelho, como
eram também chamadas as câmaras. Iniciativas de pesquisa como estas
poderiam levar a novas problematizações, como a das relações intercamarárias, que tanto poderiam ser de ajuda mútua, em circunstâncias de
interlocução coletiva com o rei ou com o Conselho Ultramarino para
reclamar ou sugerir mudanças na política régia, como de rivalidades16.
COMISSOLI, Adriano, op. cit, 2006; JESUS, Nauk Maria de, op. cit, 2006; MATHIAS,
Fernanda Fioravante Kelmer. ÀS CUSTAS DO SANGUE, FAZENDA E ESCRAVOS”: formas
de enriquecimento e padrão de ocupação dos ofícios da Câmara de Vila Rica, c. 1711 – c. 1736.
Dissertação de Mestrado, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2008; MONTEIRO, Livia
Nascimento, op. cit, 2010. Borrego, Maria Aparecida de Menezes. A teia mercantil: negócios e
poderes em São Paulo (1711-1765). SP, Ed. Alameda, 2010.
11 RIBEIRO, Fernando V. Aguiar. Poder local e patrimonialismo: a câmara municipal e a
concessão de terras urbanas na vila de São Paulo, (1560-1765). Dissertação de Mestrado,
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, 2010.
12 LUCIANI, Fernanda Trindade. Munícipes e escabinos: poder local e guerra de restauração no
Brasil holandês (1630-1654). São Paulo, Dissertação de Mestrado, FFLCH-USP, 2007.
13 CALBENTE, Leandro. Administração colonial e poder: a governança da cidade de são Paulo
(1765-1802). Dissertação de Mestrado, FFHCH – Universidade de São Paulo, 2008.
14 CUNHA, Mafalda Soares e FONSECA, Teresa (org). Os municípios no Portugal Moderno: dos
forais manuelinos às reformas liberais. Évora, Edições Colibri/CIDEHUS/EU, 2005.
15SOUSA, Avanete Pereira. Poder local, cidade e atividades econômicas (Bahia, século XVIII).
FFLCH/USP, Tese de Doutorado, 2003; Ximendes, Carlos Alberto. Sob a mira da câmara:
viver e trabalhar na cidade d São Luís (1644-1692). Tese de Doutorado, Universidade Federal
Fluminense, 2010. DIAS, Thiago Alves. Dinâmicas mercantis coloniais: capitania do Rio
Grande do Norte (1760-1821). Dissertação de mestrado, Universidade Federal do Rio Grande
do Norte, 2011.
16 JESUS, Nauk Maria, op. cit., MOURA, Denise A Soares de. Comércio de Abastecimento e
conflitos inter-camarários entre Santos e São Paulo (1765-1822). In: Doré, Andréa e Santos,
Antonio César de Almeida. Temas Setecentistas. Governos e populações no Império português.
Curitiba, UFPR/SCHILA-Fundação Araucária, 2009: 517-534; SEVERINO, Caroline Silva. A
dinâmica do poder e da autoridade na comarca de Paranaguá e Curitiba, 1765-1822. Franca, UNESP,
Dissertação de Mestrado, 2009.
10
Dossiê CÂMARA MUNICIPAL
130
Até o momento não surgiu nenhum estudo em perspectiva
comparativa desta instituição, sabendo-se que tanto na América hispânica
como na britânica existiram instituições de governo local também dotadas
de atribuições econômicas, administrativas e judiciais17. Mas já começam a
aparecer novas formas de abordagem do tema, que ao invés de documentar
o perfil geral de oficiais e funcionários da câmara tem optado por investir
na pesquisa de um único tipo de funcionário. 18
No que diz respeito à formulação de identidades no Império
português a partir da inserção no espaço camarário, a historiografia que
adota as diretrizes teórico-metodológicas do antigo regime foi a que mais
trouxe contribuições. De um modo geral os autores associaram esta
problemática à qualificação de cidadão, que na dinâmica do antigo regime
português dizia respeito a uma lógica de privilégios e benefícios 19. Nem
todos tinham o status ou qualificações que lhes permitiam se auto-definir
como cidadãos, embora todos os moradores livres de uma determinada
vila ou cidade e inclusive os índios, pudessem se auto-denominar vassalos
do rei.
A identidade de cidadão era envergada por aqueles que possuíam
algumas condições como agraciamento por mercês e títulos em virtude de
serviços prestados ao rei, exercício de governo ocupando cargo público na
câmara, matrimônio com filhos de cidadãos, ser letrado, neto ou filho de
cidadão. A identidade de cidadão, portanto, esta vinculada à relação com a
ordem régia.
Livia Nascimento, contudo, baseando-se em ensaio de Antonio
Manuel Hespanha levantou uma questão que permite o desenvolvimento
da idéia central deste artigo, ou seja, o da formulação de uma identidade
local, de cidadão da cidade. Nas palavras de Hespanha e que endossam a
reflexão desta autora, cidadão dizia respeito também a estar “radicado,
morar e exercer cargos principalmente nas câmaras municipais”.
Nas palavras da autora, “cidadão apontava para a relação
indivíduo e sociedade local, assim como a pertencimento ou não a Império
português”20. É este tópico de identidade ligada a um histórico de serviços
Sugestão de pesquisa de John Russell-Wood. Cf. O governo local na América Portuguesa:
um estudo de divergência cultural. Revista de História, n. 9, jan/março 1977: pp. 76-79.
18 Schmachtenberg, Ricardo. “A arte de governar”: redes de poder e relações familiares entre os
juízes almotacés na câmara municipal de Rio Pardo/RS, 1811-c.1830. São Leopoldo, Tese
(Doutorado), Programa de Pós-Graduação em História da Universidade do Vale do Rio dos
Sinos – UNISINOS, 2012, 426 p.
19 FIORAVANTE, Fernanda, p. 16; JESUS, Nauk Maria, pp. 267-68.
20 MONTEIRO, Lívia Nacimento, op. cit., 34.
17
REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014.
131
locais que acredito ganhar evidência especialmente em uma conjuntura de
diversificação do espaço das cidades coloniais com a presença de
indivíduos provenientes de várias partes da América portuguesa.
A condição de cidadão da cidade ou de nascido na cidade teria
sido, portanto, uma nova formulação de identidade, mas que a partir da
segunda metade do século deve ser interpretada não mais dentro da chave
do privilégio. Os moradores da colônia já estavam seguros – algo tido por
Jack Geene como psicologicamente importante – da sua condição de fiéis
vassalos do rei, pois era longa a trajetória de serviços prestados por sua
ascendência21. Em um contexto de intensificação dos fluxos e diversidade
demográfico urgia firmar sua identidade nascidos e com histórico de
serviços locais.
Movimentos de população em regiões periféricas da América portuguesa
Mesmo cidades econômica e politicamente periféricas foram
cenário de cruzamento de migrantes e emigrantes de várias naturalidades.
Este movimento pode ser explicado pelo impacto das “forças e motivações
atlânticas” de uma determinada época, tais como o da movimentação das
populações 22. Como hinterland da cidade do Rio de Janeiro e da vila
marítima de Santos, única com capacidade de navegação atlântica na costa
da capitania de mesmo nome e na do Rio Grande 23, a cidade de São Paulo
foi um espaço de atração da diáspora portuguesa, africana e, inclusive, de
população interna à colônia.
Pela sua condição de entreposto comercial, a cidade de São Paulo
foi um espaço de oportunidades econômicas no ramo da prestação de
serviços correlatos á atividade mercantil. O historiador Carville Earle
mostrou em seu estudo o quanto cidades com esta condição de entreposto
MELLO, Evaldo Cabral de. Rubro veio: o imaginário da restauração pernambucana. Rio de
Janeiro, Ed. Nova Fronteira, 1986; Romeiro, Adriana. Paulistas e emboabas no coração das minas:
idéias, práticas e imaginário político no século XVIII. Belo Horizonte, Ed. UFMG, 2008.
22 MILLETT, Nathaniel. Bordelands in the atlantic world. Atlantic Studies, v. 10, n. 2, p. 278,
2013; ADELMAN, Jeremy & ARON, Stephen. From borderlands to borders: Empires, NationStates and the peoples in north America History. The American Historical Review, v. 104, n. 3,
jun 1999, p. 823.
23 BROWN, Larissa. Internal commerce in a colonial economy: Rio de Janeiro and its
hinterland, 1790-1822. University of Virginia, 1986; MOURA, Denise. Entre o atlântico e a
costa: confluência de rotas mercantis num porto periférico da América portuguesa (18081822). Tempo. Rio de Janeiro, volume 17, n. 34, 2013, 95-116.
21
Dossiê CÂMARA MUNICIPAL
132
comercial ou que faziam parte da hinterland de uma cidade marítima
central eram promissoras do ponto de vista das atividades que forneciam
suporte material para o comércio, como a prestação de serviços.
Nos Maços de População da cidade, um tipo de fonte censitária da
época, de fato percebe-se que o número de “Artistas” era superior ao de
negociantes. Em 1794 eles eram, respectivamente 357 e 20624. Segundo o
dicionarista dos Setecentos, Raphael Bluteau, artistas eram os destros em
alguma arte, sendo que a arte também era definida como a arte mecânica,
da qual dependiam todas as outras, como a agricultura, a caça, a guerra,
todos os ofícios fabris, as cirurgias, as artes de tecer e navegar 25.
De fato, a cidade de São Paulo abrigava uma infinidade de artes
mecânicas que podem ser consideras suporte para o comércio, como os
ferreiros, folquejadores de madeira, carregadores de capim, vendedores de
“comida de rua”, ou seja, feita na rua, donos de estalagens, e portanto,
estalajadeiros, aqueles que alugavam pastos para pouso de animais e gente
em trânsito26 O historiador Carville Earle mostrou em seu estudo o quanto
cidades com esta condição de entreposto comercial ou que faziam parte da
hinterland de uma cidade marítima eram promissoras do ponto de vista
destas atividades subsidiárias do comércio. Esta questão justifica o fato da
cidade de São Paulo ter sido uma área de atração de emigrados e migrantes
internos.
Em estudo sobre a presença portuguesa na capitania de São Paulo,
Carlos de Almeida Prado Bacellar mostrou que a cidade de São Paulo
estava em segundo lugar, atrás, portanto, apenas da vila de Santos, na
recepção de emigrados portugueses27. Os dados da tabela abaixo se
restringem à cidade de São Paulo e fornecem uma aproximada e pequena
imagem deste fluxo humano para a região:
Ocupações dos habitantes da paróquia da cidade de São Paulo, 1798. Maços de População.
Arquivo do Estado de São Paulo, disco 1, filme 003, 1794.
25 http://www.brasiliana.usp.br/en/dicionario/1/arte
26 MOURA, Denise A Soares. Sociedade movediça: economia, cultura e relações sociais em São
Paulo (1808-1850). São Paulo, Ed. UNESP, 2006; CARVILLE, Earle & HOFFMAN, Ronald.
Urban development in the Eighteenth-Century South. Perspectives in American History,
Cambridge, v. 10, p. 50-55, 1976.
24
Bacellar, Carlos de Almeida Prado. Os reinóis na população paulista às vésperas da
independência. Oceanos. n. 44, out/dez. de 2000, p.25 .
27
REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014.
133
Lisboa
43
Braga
29
Porto
23
Senhora da Ajuda
10
Viseu
06
Guimarães
03
Traz os Montes
02
Santa
Maria
de 02
Vimiosa
Coimbra
02
Ponte de Lima
02
Mogege
01
Barcelos
01
Badajós
01
Leiria
01
Minho
01
Vila Viçosa
02
Ponte de Lima
01
Santiago
01
São Silvestre
01
São Cristovão
01
Douro
01
Vila Real
01
Amarante
01
Vila de Albuquerque
01
Alenquer
01
Vila Pouca da Beira
01
Penafiel
01
139
Total
Tabela 1: População livre nascida em partes de Portugal e residente na cidade de São Paulo.
Dados coletados em Maços de População., 1ª. 2ª e 3ª Companhia da Capital. APESP, 1803,
disco 1, filme 4.
Mas havia também uma população proveniente das ilhas
portuguesas, conforme evidencia a tabela 2. Estes novos habitantes da
cidade também eram provenientes de várias partes da capitania. Das vilas
próximas, como Parnaíba, eles eram em torno de 117. Das vilas do sul,
como Curitiba e Castro perfaziam 21. Das vilas do litoral sul, como Iguape
e Paranaguá, eram 118. Das partes de Minas formavam um conjunto de 54
individuos e do Rio de Janeiro eram 45. Nesta época o número de pessoas
que declarou ter nascido na cidade foi um total de 2.512 28. Este também é
um dado interessante. Até 1802 os Maços de População não forneciam a
Dados extraídos dos Marços de Maços de População. 1ª. 2ª e 3ª Companhia da Capital.
APESP, 1803, disco 1, filme 4.
28
Dossiê CÂMARA MUNICIPAL
134
naturalidade do indivíduo. A partir do censo de 1803 esta informação passa
a constar do documento, o que sugere uma valoração da especificação da
naturalidade.
Ilha da Madeira
Cabo Verde
Ilha do Faial
Ilhas
Ilha Terceira
Ilha de São Miguel do Bispado de
Angra
Ilha Graciosa
Total
Tabela 2: População livre nascida nas ilhas e residente
coletados em Maços de População., 1ª. 2ª e 3ª Companhia
filme 4.
06
03
02
02
02
01
01
17
na cidade de São Paulo. Dados
da Capital. APESP, 1803, disco 1,
A valoração da condição de nascido na cidade de São Paulo é algo
já enunciado na genealogia de Pedro Taques, escrita entre 1740-177029. Há
indícios na escrita pública da época que a consolidação dessa identidade de
nascido na cidade de São Paulo pode ter levado a certos constrangimentos
em relação aos emigrados, que poderiam ser alvo de epítetos. Este é um
tipo de reação própria das rivalidades étnico-culturais ou regionais. Na
época os provenientes do reino, sem histórico de serviços na cidade,
receberam o apelido de “novatos”. Em 1796, o parecerista da Academia
Real das Ciências que analisou aquela que viria a ser as Memórias para a
História da capitania de São Vicente determinou que “o epytheto novatos que
no §51 dá aos Portuguezes recentemente chegados a terra, se converta em
outro mais próprio ou em uma periphase, que exprima o mesmo
pensamento”.30
No dicionário de Raphael Bluteau, novato significava imperito, que
por sua vez estava relacionado à indouto, ignorante, tosco na arte que
exercia31. Para o português recém-chegado uma das saídas para reelaborar
a sua identidade em um contexto de valoração da condição de nascido na
cidade era construir um histórico de serviços no local e isto poderia ser feito
LEME, Pedro Taques de Almeida Paes. Nobiliarquia paulistana, histórica e genealógica. (17401770)5ª. Ed. Belo Horizonte: São Paulo, Editoria Itatiaia: EDUSP, 1980, 3 volumes.
30 Parecer (1796). Documentos Interessantes para a História e Costumes de São Paulo. São Paulo,
Typografia da Companhia Industrial de São Paulo, 1896, p. 25.
31 http://www.brasiliana.usp.br/en/dicionario/1/novato
29
REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014.
135
através da ocupação de cargos na câmara, algo que pelo menos o alçaria à
condição de cidadão da cidade.
Portugueses na magistratura municipal
A administração pública municipal da cidade de São Paulo contava
a presença de provenientes do reino, como demonstram os Maços de
População. Não foi possível, contudo, traçar o seu perfil socioeconômico
mais geral, porque seus inventários não foram localizados no Arquivo do
Estado, instituição que abriga auto-cíveis produzidos na época colonial. A
documentação paroquial, como os registros de óbito, casamento, batismo
de seus filhos, poderia oferecer dados para traçar este perfil, mas
demandaria muito tempo de pesquisa. Em virtude disto optou em rastrear
a presença destes portugueses na documentação administrativa, tanto
enviada para o Conselho Ultramarino como para as autoridades internas
na colônia. A pouca presença destes camaristas de origem portuguesa neste
tipo de documentação sugere que eles não foram homens de projeção
econômica ou política
Entre 1796-1822 a cidade de São Paulo possuiu 27 juízes ordinários
que exerceram 24 mandatos com duração de um ano – há uma lacuna na
documentação da Câmara entre os anos 1803, 1804, 1805 e 1807 - . Destes 27
foi possível identificar a naturalidade de 11, ou seja, de 40,7%. Destes,
apenas dois eram portugueses: um de Guimarães e outro do Bispado de
Aveiro. Dos nascidos em São Paulo, 2 eram de Cotia, termo da cidade e 7
eram naturais da própria cidade, ou seja, a maioria.
A dita “magistratura da terra”,32 porque eleita pela localidade, era
uma das posições mais prestigiosas e de maior autoridade no âmbito local,
certamente até mais do que a de vereador. Enquanto os vereadores tinham
atribuições administrativas, os juízes ordinários tinham poder judiciário,
lidando com as questões litigiosas do município. Eles tinham o poder de
abrir devassa, mandar prender e verificar as contas do procurador e do
tesoureiro do ano anterior.
Cargos como estes, de juiz de fora, por ser um dos mais
importantes na localidade não foi ocupado, contudo, por tipos com
características de recém-chegados. Os dois portugueses identificados neste
cargo tinham um histórico antigo na cidade e na administração pública
32
ZENHA, Edmundo.op. cit,, p. 60.
Dossiê CÂMARA MUNICIPAL
136
municipal. José Vaz de Carvalho era formado em Coimbra e imigrou de
Portugal em 1774 e no ano seguinte, em 1775, casou-se com uma mulher da
cidade, descendente de negociante que fez fortuna no centro-sul na
primeira metade do século XVIII. 33
Ou seja, quando ele ocupou o cargo de juiz ordinário, em 1798 e
1799 não era propriamente um recém-imigrado. Por outro lado, o seu
segundo mandato, o de 1799 não foi por eleição, mas por decisão do
governador Antonio Manuel de Melo Castro e Mendonça, que ordenou a
permanência dos juízes ordinários eleitos em 1798.34
Assim que chegou à cidade de São Paulo José Vaz deu jeito de
casar-se com mulher da terra, empregando, portanto, a clássica estratégia
de inserção social dos imigrados. João Gomes Guimarães também era
casado.
Ele também era um mercador, certamente com menor projeção
sócio-econômica do que José Vaz, pois pouco aparece na escrita pública no
que diz respeito aos seus negócios, ao contrário deste último. Em 1794 ele
requereu licença para viajar para Lisboa, alegando a necessidade de tratar
moléstias de sua mulher, mas também “por negócios que interessa nesta
Corte”.35 Ele era ainda capitão reformado no Terço de Infantaria Auxiliar
na Marinha de Santos, o que sugere que tinha boas relações com o
governador, que nomeava para esta posição, e a vila de Santos era a
principal praça mercantil da costa da capitania de São Paulo.
Contudo, o que pesava e foi registrado no histórico de João Gomes
Guimarães era uma antiga trajetória na carreira municipal. José Vaz de
Carvalho, embora em menor proporção do que João Gomes, também já
tinha uma herança de atuação municipal. Fora almotacé em duas ocasiões,
entre 1775 e 1786 e juiz em 1798 e 1799.
João Gomes começou como almotacé e ocupou esta função por 6
vezes, em 1783, 1788-1789, 1791 e 1798-99. Em 1800 foi vereador e alcançou
visibilidade na cidade por defender os taverneiros vendedores de sal.
Para a trajetória deste negociante cf. MEDICI, Ana Paula. Administrando conflitos: o exercício
do poder e os interesses mercantis na capitania/província de São Paulo (1765-1822). São
Paulo, FFLCH – USP, 2010, (História, Tese de Doutorado).
34 PROVISÃO (cópia) do príncipe regente D. João, ao governador e capitão general da
capitania de São Paulo, Antônio José da Franca e Horta ordenando que apresente o seu
parecer dobre o libelo crime do coronel de Milícias da cidade de São Paulo, Jerónimo
Martins Fernandes da Franca e Horta. AHU_ACL_CU_023, Cx. 20, D. 978.
35 Requerimento do capitão da Ordenança na cidade de São Paulo, João Gomes Guimarães, à
rainha [D. Maria I], solicitando licença para passar para o Reino com sua mulher.
AHU_ACL_CU_023, Cx. 12, D. 591
33
REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014.
137
Nesse mesmo ano ele foi preso pelo governador Antonio Manoel
de Mello Castro e Mendonça por incitar os membros da câmara a não
obedecerem a portaria deste mesmo governador, que tirava o monopólio
de venda do sal das mãos dos taverneiros e passava para a sua própria. 36
Essa antiguidade de atuação de João Gomes Guimarães em 7
mandatos certamente influenciou o resultado favorável de sua eleição para
ocupar o posto de juiz ordinário em 1806. Ou seja, o topo da sua carreira
como homem público da localidade.
Tal notoriedade e reconhecimento podem ser vislumbrados na sua
capacidade de fazer o governador Antonio José da Franca e Horta receber
uma provisão e repreensão do Príncipe Regente, por sua atitude de
oposição à prisão e abertura de devassa contra o físico-mor Mariano José
do Amaral feita por este mesmo juiz ordinário. 37
Um histórico de atuação pública numa localidade equiparava o
indivíduo a um natural da cidade. Na Nobiliarquia Paulistana, de Pedro
Taques, João Franco Viegas, era natural da vila de Portela, na comarca de
Évora e “cidadão republicano de São Paulo”. 38 O reinol João Gomes
Guimarães alcançou o importante posto de “magistrado da terra”
justamente por ser um “cidadão republicano de São Paulo”.
Outros, mesmo com formação em Leis cívicas não alcançaram este
posto, como Nicolau de Campos Vergueiro, cujos registros indicam que
atuava na cidade desde 1779. Na época existiam na cidade apenas mais
outros dois advogados.39 Manoel Joaquim de Ornellas era um deles e fora
juiz ordinário em 1775. Mas depois disto apenas ocupou dois mandatos de
vereador e no intervalo desta pesquisa não esteve mais na função de juiz.
Ofício para o dito Secretário de Estado sobre a prisão de João Gomes Guimarães (1800).
Documentos Interessantes para a História e Costumes de São Paulo. São Paulo, Typographia do
Diário Oficial, 1899, v. 29, pp. 203-205.
37 Carta de governador e capitão general da capitania de São Paulo, Antonio José da Franca e
Horta, ao Príncipe regente [D. João], solicitando que não tenha efeito a provisão de 27 de
novembro de 1806 que lhe repreendia a forma como foram feitos os exames da devassa
tirada contra o físico-mor desta capitania, Mariano José do Amaral, pelo juiz ordinário, João
Gomes Guimarães, acerca da morte de Jerônimo José de Freitas. Ordenava o registro desta
provisão nos livros da Secretaria do governo do Estado de São Paulo, para que servisse de
exemplo aos futuros governadores. AHU_ACL_CU_023, Cx. 30, D. 1324.
38 TAQUES, Pedro. Op. cit, vol. 1, p. 99.
39 Apud nota 1 In: Rendon, José Arouche de Toledo. Officio que acompanha as reflexões sobre
a agricultura na capitania de São Paulo. Documentos Interessantes para a História da capitania de
São Paulo. Diversos, São Paulo, Typographia Cardozo Filho & Companhia, 1915, p. 214
36
Dossiê CÂMARA MUNICIPAL
138
Ou seja, entre 1795-1822, um dos cargos da administração
municipal de maior prestígio e autoridade local, como o de juiz ordinário
da cidade esteve predominantemente nas mãos de naturais de São Paulo.
Os dois únicos reinóis que o ocuparam possuíam condições muito
especiais: um a prosperidade nos negócios e ambos um histórico de
atuação nos serviços da república.
A almotaçaria: um desvio dos embaraços para os reinóis que pretendiam a vereança.
Em relação aos vereadores foram identificados 49 e a naturalidade
de 34, ou seja, de 69,38%. Destes 10 eram de origem portuguesa e 24 eram
nascidos em partes da capitania de São Paulo, sendo 16 na cidade, dois em
Parnaíba, dois em Santos, um em Jundiaí, um em Mogy e um em
Guaratinguetá.
Dos 10 portugueses, 5 eram nascidos na região do Minho, 3 de
Lisboa e um do Porto. Além disto, 7 deles eram casados, sendo um com
mulher da Ilha da Madeira e outro com uma de Paranaguá. Os outros 3
eram solteiros.
Destes 10 portugueses, 3 repetiram seus mandatos 2 vezes e um
repetiu por 3 vezes. Isto significa que esse era um reduzido e concentrado
universo de reinóis que conseguiu ser eleito para o topo da hierarquia da
câmara, ou seja, para o cargo de vereador.
A almotaçaria, que foi o primeiro degrau para a entrada de
negociantes na câmara, conforme sugeriu Maria de Fátima Gouvêa e
demonstrou Maria Borrego,40 manteve-se como degrau obrigatório para os
nascidos no reino.41
Conforme pode ser percebido na tabela 1, exposta abaixo, dos 10
vereadores nascidos no reino, 6 começaram pela almotaçaria, ou seja, 60%
dos identificados. Na comparação com os nascidos na capitania, na tabela
2, dos 24 apenas 9 começaram por este cargo (o que corresponde a 37,5%
do total). A função de almotacé não era prestigiosa e nem eletiva e mesmo
GOUVÊA, Maria de Fátima da Silva. Poder, autoridade e o Senado da Câmara do Rio de
Janeiro, ca. 1780-1820. Tempo. v. 7, n. 13, 2002: 111-155 e BORREGO, Maria Aparecida. Op. cit..
41 Essa questão é válida para as câmaras mais antigas, sedes de capitanias. Essas câmaras
tinham maior status na hierarquia institucional municipal, tendo inclusive, o staus e
prerrogativas da prestigiosa câmara do Porto. Processo diferente se deu nas câmaras de
formação tardia e em áreas onde existia uma necessidade premente de estimular a ocupação.
Cf. Schmachtenberg, Ricardo. Schmachtenberg, Ricardo. Op. cit.
40
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139
um individuo de baixa inserção social poderia ser indicado para esta
função.
Tabela 1: trajetória dos vereadores nascidos em Portugal na câmara. Dados recolhidos nas
Atas da Câmara entre os anos 1796-1822. Arquivo Histórico Municipal de São Paulo e nas
Listas nominativas de 1802 a 1822. Arquivo do Estado de São Paulo
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Tabela 2: trajetória dos vereadores nascidos na América portuguesa na câmara. Dados
recolhidos nas Atas da Câmara entre os anos 1796-1822. Arquivo Histórico Municipal de São
Paulo e nas Listas nominativas de 1802 a 1822. Arquivo do Estado de São Paulo.
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142
Ou seja, para ser indicado para o cargo de almotacé o indivíduo
não necessitava ser amplamente conhecido na localidade. O exercício da
tarefa era de alta rotatividade, pois este funcionário permanecia apenas 3
meses no cargo e oferecia os seus serviços. A rotatividade era uma maneira
de evitar os desvios da função, tendo em vista que ela era basicamente
fiscalizatória. Mas tornar-se um almotacé era uma maneira de ganhar
visibilidade junto à elite de votantes da cidade. Ou seja, para um reinol,
ainda esta função era uma via inicial de inserção local.
Dos três casos de reinóis que foram apenas vereadores, cumpre
destacar que dois deles tiveram condições diferenciadas em relação aos
outros de mesma naturalidade. Todos eram negociantes, mas Antonio
Cardoso Nogueira era matriculado na Junta de Comércio.
Nicolau de Campos Vergueiro era Bacharel, formado em Coimbra,
o que em certa medida, lhe dava notoriedade, como visto acima. A
formação capacitou-o para a vereança sem necessitar passar pela
almotaçaria, mas não para a “magistratura da terra”. Sua projeção
econômica começaria apenas tardiamente, em 1816, quando se associou a
Luís Antonio de Souza, com o fim de produzir açúcar, criar animais, até
tornar-se senhor do famoso engenho de Ibicaba.42
Ou seja, a formação em leis civis poderia até atenuar os
constrangimentos para os reinóis se inserirem no funcionalismo público
local, mas apenas para alguns cargos e não necessariamente o
hierarquicamente inferior, mas superior em autoridade e prestígio local,
como o de juiz ordinário. Vergueiro ocupou apenas o posto de vereador em
1813. Em 1808 ele requereu à Câmara o cargo de juiz das medições da
Comarca,43 o que não deixa de ser também uma iniciativa para tornar-se
conhecido junto a um órgão legal de poder no qual, futuramente, ocuparia
um cargo por eleição.
Na documentação administrativa da câmara e dos governadores,
todos os reinóis identificados aparecem como negociantes. A natureza da
fonte não permite categorizá-los, mas pode-se concluir que eram
indivíduos que viviam dos seus negócios e não do amanho da terra nas
LEONZO, Nanci. Luis Antonio de Souza era Coronel do Regimento de Infantaria de Milícia
da Vila de Sorocaba. Cf. LEONZO, Nanci. Um empresário nas milícias paulistas: o Brigadeiro
Luis Antonio de Souza. Anais do Museu Paulista. N. 30, 1980/81, p. 247.
43 Para a Câmara desta cidade Documentos Interessantes para a História e Costumes de São Paulo.
Correspondência Oficial do capitão-general Antonio José da Franca e Horta (1806-1810). São
Paulo, Edições do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo, Vol. 57, 1937, p. 311.
42
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143
freguesias da cidade. Certamente a condição de emigrado dificultava-lhes o
acesso imediato a terra.
Apenas um negociante reinol tentou diversificar seus negócios
criando gado. O comércio da carne verde ou fresca era muito importante
nas cidades coloniais e as criações do planalto tinham como destino o corte
no açougue público. Contudo, Manuel Alves Alvim sofria com as
dificuldades de tentar ser um criador sem ser senhor de terras.
Em 1798 ele representou à Câmara sobre a necessidade que tinha
de fazer pastar seu gado e para tanto, ofereceu-se para consertar o aterrado
na vargem de Santana. Em troca teria a pastagem para os seus animais.
Mas um capitão-mor do mesmo bairro representou para a mesma câmara
contra esta sua proposta.44
A patente militar de ordenança também era uma maneira de se
alcançar reconhecimento social local, qualificando-se para os cargos eleitos
da câmara. Dos 10 reinóis, apenas 4 não tiveram patente: dois letrados e os
outros dois não há indicação nas fontes.
A diferença entre nascidos na cidade e reinóis pode ser notada na
distribuição dessas patentes militares de ordenanças, um dos principais
meios de se alcançar identidade de vassalo fiel, honrado e bom prestador
de serviços ao rei, visto que essas patentes deveriam ser assinadas pelo
“régio punho”, mas também reconhecimento local, pois a câmara indicava
o nome do agraciado ao governador, que a concedia e nomeava o indicado.
Como pode ser acompanhado comparando a tabelas 1, acima
exposta, com a de número 2, acima exposta, dos 10 reinóis, apenas 4
tiveram patente, sendo dois capitães, um tenente e um sargento. O restante
ou não há referência alguma, dois eram letrados e um era Guarda-mor na
Parnaíba. Dos 24 vereadores nascidos na cidade, 15 alcançaram o mais alto
posto, o de capitão, dois foram coronéis e 4 tenentes, perfazendo um total
de 21 ordenanças.
Certamente não deve ter sido algo fácil para os reinóis conseguirem
a indicação de seu nome pela câmara para a nomeação ao posto. Dos
quatro reinóis que alcançaram postos nas milícias, três foram fora da
cidade: um em Santos, um em Paranaguá e outro na Parnaíba. Curioso é
Para a câmara desta cidade. Documentos Interessantes para história e Costumes de São Paulo.
Ofícios do capitão-general Antonio Manuel de Melo Castro e Mendonça (governador da
capitania, 1797-1801. São Paulo, Departamento do Arquivo Público do Estado-Secretaria da
Educação, v. 87, 1963, p. 117.
44
Dossiê CÂMARA MUNICIPAL
144
que duas delas eram litorâneas na costa sul, ou seja, porta de entrada para
muitos reinóis no período.
O regimento das ordenanças previa que o nomeado deveria residir
no local de sua nomeação. Mas não era isso o que geralmente ocorria.
Manuel Lopes Guimarães conseguiu o seu posto de sargento-mor de
ordenança na vila de Paranaguá, de onde, inclusive, era nascida sua
mulher. Contudo, ele vivia na cidade de São Paulo.
Ele era um imigrante reinol, certamente mais inserido na vila de
Paranaguá, pois lá se casara, mas tinha poucos contatos na cidade de São
Paulo. Em 1791 ele ocupou seu primeiro cargo na câmara da cidade, como
almotacé. Mas isto não foi suficiente para ser indicado pela instituição para
ocupar o posto de ordenança.
Na câmara de Paranaguá, vila natal de sua mulher, ele conseguiu
esta nomeação, que em 1793 o governador Bernardo José de Lorena pôs em
cheque por ele residir na cidade de São Paulo, o que ia contra a
determinação do regimento.45
Grandes negociantes, como José Vaz de Carvalho e Luis Antonio
de Souza, alcançaram a patente militar em área onde comprovadamente
tinham interesses econômicos.46 Mas para os negociantes de menor
expressão, que não se tornaram arrematadores de contratos públicos e
pouco ou nada aparecem na escrita pública e nem mesmo deixaram
inventários, seguir para outro termo ou vila era uma maneira de começar a
trilhar o caminho cada mais concorrido da notoriedade local.
A procuradoria municipal: uma esfera de poder local dos reinóis
Dentre o funcionalismo municipal, o cargo de procurador foi
aquele que de fato concentrou o maior número de reinóis em condições
opostas aos daqueles que ocuparam os postos de vereador e juiz ordinário.
Dos 20 procuradores do período, 14 eram portugueses. Número, portanto,
expressivo, em relação a estes dois últimos cargos. Destes 14, apenas 5
eram casados. Ou seja, a maioria ainda não tinha alcançado um nível de
Para a Câmara de Paranaguá. Documentos Interessantes para História e Costumes de São
Paulo. Ofícios do general Bernardo José de Lorena aos diversos funcionários da capitania,
1788-1795. São Paulo, Duprat & Companhia, 1924, v. 46, p. 223.
46 Luis Antonio de Souza era Coronel do Regimento de Infantaria de Milícia da Vila de
Sorocaba. Cf. LEONZO, Nanci. Op. cit. José Vaz de Carvalho era Coronel do Primeiro
Regimento de Cavalaria Miliciana de Curitiba. Seus interesses estavam ligados ao comércio de
animais entre o Viamão e Curitiba e contratos públicos em São Pedro e Curitiba sobre este
mesmo negócio. Cf sua exitosa trajetória em Médici, Ana Paula. op. cit.
45
REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014.
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inserção social própria daqueles que se casavam com mulheres da cidade.
Apenas um chegou ao cargo de vereador, após o exercício de três mandatos
na procuradoria.
Embora não se possa esperar uma definição clara das funções de
procurador na colônia, Edmundo Zenha nos permite concluir que ele tinha
funções fiscais, como a do almotacé, mas também informativas, mantendo
a câmara informada de tudo o que acontecia, mas também de ouvidoria, ou
seja, recebendo as queixas e reclamações dos habitantes da cidade. Eles
eram também responsáveis pelo livro de contas da câmara, no qual eram
registrados seus orçamentos e despesas. A condição de negociantes poderia
torna-los mais capacitados ou pelo menos mais bem vistos para exercerem
este tipo de função específica na câmara.
Ou seja, diferente do cargo de vereador, que implicava numa
atuação no âmbito da própria câmara, quando aconteciam as vereanças, o
cargo de procurador, assim como o de almotacé, implicava numa atuação
pública, nas ruas da cidade e em contato direto com a população de um
modo geral, fossem negociantes, vendedores de loja aberta, arrematadores
de contratos públicos de abastecimento, população pobre livre ou escrava.
Esse era um tipo de atuação menos prestigioso, mas que implicava em
maior visibilidade, criando condições para um maior reconhecimento e
inserção social local.
Os procuradores, quando foram oficiais de ordenança, alcançaram
baixa patente e eram indivíduos de baixo estrato social, pequenos
negociantes. Na posição de baixa patente, desempenharam tarefas nada
prestigiosas, como a de acompanhar os presos pelas ruas da cidade, em
certo dia da semana, quando saiam acorrentados “a pedir esmola para o
sustento dos mesmos”.47
Como pode ser visto na tabela 3, quase todos os reinóis estiveram
entre uma e outra função: ora almotacé, ora procurador. A fronteira entre
estas duas funções da câmara parecem ter sido bastante tênues, embora o
acesso a uma fosse por eleição, no caso do procurador e a outra, de
almotacé, fosse por indicação dos oficiais principais da edilidade.
Nessas baixas instâncias da administração pública local os reinóis
encontraram menos embaraços para entrar. Eles, inclusive, foram maioria.
Esse dado sugere o quanto, de fato, “os nascidos na cidade” procuraram
Para o juiz de fora, pela lei desta cidade. Documentos Interessantes para a História e Costumes de
São Paulo. Correspondência Official, 1820-1822. São Paulo, Typografia Andrade & Mello, 1902,
v. 37, p. 70.
47
Dossiê CÂMARA MUNICIPAL
146
assegurar sua precedência em funções prestigiosas, em detrimento
daquelas não apenas menos enobrecedoras, como de lida fiscalizatória de
todos os problemas da cidade.
Tabela 3: trajetória dos procuradores nascidos em Portugal na câmara. Dados levantados nas
Atas da Câmara entre os anos 1796-1822. Arquivo Histórico Municipal de São Paulo nas Listas
nominativas de 1802 a 1822. Arquivo do Estado de São Paulo.
REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014.
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Na documentação do Conselho Ultramarino, onde é possível
encontrar evidências de interlocução de habitantes das terras do Brasil com
o rei, não há um único registro destes reinóis que ocuparam o cargo de
procurador na cidade, ao contrário do que ocorre com os de juiz ordinário,
principalmente e os de vereador, que escreveram petições, requerimentos,
moveram libelos crime ou fizeram denúncias abertas contra governadores
da capitania.48
Estes procuradores, nascidos no reino, não tiveram, pelo menos no
período trabalhado, qualificações necessárias para este tipo de ação. Mal
conseguiram inserir-se nas ordenanças. Como pode ser verificado na tabela
3, apenas um alcançou a patente de capitão e dos outros 4 com registros
nesse sentido, 3 foram tenentes e 1 alferes.
José Pinto Tavares, o único provido no posto de capitão, não tinha
patente assinada pelo “régio punho”, o que levou, por ironia do destino,
que um nascido na cidade, Francisco Pereira Mendes, que começou na vida
municipal como vereador em 1786 e tornou-se juiz em 1808, a requerer
confirmação neste posto, em detrimento de Tavares.49
PROVISÃO (cópia) do príncipe regente D. João, ao governador e capitão general da
capitania de São Paulo, Antônio José da Franca e Horta ordenando que apresente o seu
parecer dobre o libelo crime do coronel de Milícias da cidade de São Paulo, Jerónimo
Martins Fernandes da Franca e Horta. AHU-São Paulo-cx.18, doc. 10; CARTA de
governador e capitão general da capitania de São Paulo, Antônio José de Franca e Horta, ao
príncipe regente [D. João], solicitando que não tenha efeito a provisão de 27 de Novembro
de 1806 que lhe repreendia a forma como foram feitos os exames da devassa tirada contra o
físico-mor desta capitania, Mariano José do Amaral, pelo juiz ordinário, João Gomes
Guimarães, acerca da morte de Jerônimo José de Freitas. Ordenava o registro desta provisão
nos livros da Secretaria do governo do Estado de São Paulo, para que servisse de exemplo
aos futuros governadores. Anexo: provisão, 4 atestados (4 cópias), certidão, carta régia
(cópia), bando (cópia), 4 ofícios (cópias), AHU _São Paulo, cx. 28, doc. 28; REQUERIMENTO
de Alexandre Pereira Diniz, como procurador de Salvador Nardi de Vasconcelos, ao
príncipe regente [D. João], solicitando o hábito da Ordem de Cristo, como havia sido
determinado pelo ex-governador e capitão general da capitania de São Paulo, conde de
Sarzedas, Bernardo José e Lorena Silveira. Anexo: certidão de requerimento, lembrete.
AHU-São Paulo, cx. 27, doc. 24. Há muitos outros registros que poderiam ser indicados.
49 Para o Conselho Ultramarino informando a Provisão de 27 de agosto de 1804 sobre o
requerimento de Francisco Pereira Mendes. Documentos Interessantes para a História e Costumes
de São Paulo. Ofícios do general Horta aos vice-reis e ministros, 1802-1807. São Paulo, Editora
UNESP/Secretaria de Estado da Cultura/Arquivo do Estado, 1990, v. 94, p. 74 e Documentos
que acompanharam o ofício n. 3 de 8 de fevereiro de 1805 dirigido ao Conselho Ultramarino.
Documentos Interessantes para a História e Costumes de São Paulo. Ofícios do general Horta aos
48
Dossiê CÂMARA MUNICIPAL
148
Conclusão
O objetivo deste texto foi o de mostrar como as câmaras foram
espaço de formação de identidades e histórico de serviços locais em um
contexto de intensificação dos movimentos humanos e que tornaram os
ambientes urbanos do período mais diversificados do ponto de vista da
coabitação de várias naturalidades. Esta nova realidade demográficourbana da segunda metade do século XVIII fomentou os conflitos
regionais, com destaque para aqueles que ocorreram entre nascidos e com
histórico de serviços no local e portugueses provenientes do reino.
Ambos os grupos aproveitaram os cargos da câmara como um
suporte para a afirmação desta identidade de serviços locais. Embora a
condição de vassalo ainda fosse invocada, ela estava tendo de dividir lugar
com a de cidadão da cidade. A vasta literatura sobre as câmaras ainda não
explorou esta questão, que pode contribuir para o debate sobre o processo
de construção das identidades no Brasil após a independência.
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REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014.
151
Comércio e câmaras
Regulamentação e vigilância1
1
Thiago Alves Dias
Resumo: Nesse artigo pretendemos contribuir para o
debate acerca da atuação das câmaras municipais na
regulamentação e vigilância do comércio e das
práticas mercantis nas vilas e cidades na América
portuguesa, tomando como exemplo as vilas da
Capitania do Rio Grande do Norte, assim como sua
sede de governo, a cidade de Natal, a partir da
segunda metade do século XVIII e primeiras décadas
do século XIX.
Palavras-chave: Câmaras. Comércio. Regulamentação.
Vigilância.
Abstract: In this article we intend to contribute to the
debate about the role of municipalities in the
regulation and surveillance of trade and commercial
practices in the towns and cities in Portuguese
America, taking as an example the towns of the
Province of Rio Grande do Norte, as well as his seat of
government the city of Natal, from the second half of
the eighteenth century and the first decades of the
nineteenth century.
Key words: Council. Trade. Regulations. Surveillance.
J
osé Francisco de Paula Cavalcante, Capitão-Mor da Capitania do Rio
Grande do Norte, enviou ao Príncipe Regente D. João, em 1806, uma
extensa carta contento informações populacionais da Capitania. Consta
na mesma que havia na capitania naquele ano, 177 negociantes, perfazendo
pouco mais que 0,3 % do total da população apresentada na carta2. Poucos
Sou grato a Luís Rezende e Fernando Ribeiro, amigos da pós-graduação, que juntos
ministramos no primeiro semestre de 2013, no âmbito da Universidade de São Paulo, um
curso de extensão, intitulado “Câmaras Municipais no Brasil Colonial: formação,
historiografia e fontes”. Aos alunos do curso sou agradecido pelas inquietações que nos
conduziram aos debates.
2 AHU_ACL_CU_18, CX. 9, D. 623. CARTA do [Capitão-Mor do Rio Grande do Norte], José
Francisco de Paula Cavalcante de Albuquerque, ao príncipe regente [D. João] remetendo um
1
Dossiê CÂMARA MUNICIPAL
152
anos depois, num Mapa Estatístico da Capitania, compilado entre 1811 e
1813, existiam na Capitania 469 negociantes, representando quase 1% da
população total apresentada no documento 3. De um censo populacional
para outro, num intervalo de aproximadamente sete anos, a população
absoluta da Capitania só havia aumentado em 1.238 habitantes, por outro
lado, o número de negociantes praticamente triplicou.
Conscientes das incertezas e flexibilizações com as quais devemos
analisar essa documentação, partimos do pressuposto que esses números
demonstram a atração, sempre crescente, que as práticas mercantis
incitaram as sociedades modernas. Esses negociantes, cujos produtos de
comercialização não foram identificados nos mapas apresentados,
poderiam ser mercadores de grãos, cereais, vinhos, aguardente, panos,
pescados, frutas, candeias, carnes, comerciantes de armarinhos, de drogas
aromáticas ou medicinais; seja qual fosse sua ocupação mercantil ou
produto comercializado, caso a mercadoria não fosse por unidade, tais
mercadores deveriam possuir pesos e medidas específicos, ditados pelo
Código Filipino; regulado e vigiado pela Câmara.
Diante dos vários artigos e disposições do Código acerca da
regulamentação do comércio, os pesos e medidas ganham notoriedade a
partir das Câmaras. Os pesos e medidas deveriam ser regulados de acordo
com os padrões emitidos pelo Reino e devidamente prescrito no Código
Filipino, como um exemplo claro da intervenção do Estado sobre as
práticas mercantis. Conforme o Código, é necessário que “os Oficiais dos
Conselhos saibam quais e quantos padrões, medidas e pesos são obrigados
ter, e isso mesmo as pessoas, que por razão dos seus ofícios são obrigados a
ter pesos e medidas” 4.
Embora haja uma aparente distinção entre aqueles que eram
oficiais de ofícios mecânicos e os negociantes, é possível afirmar que, na
maioria das vezes, aqueles que exerciam determinados tipo de ofício eram
os mesmos que mantinham lojas abertas ou comercializavam em suas casas
mapa da população do Rio Grande do Norte e uma relação dos distritos que necessitam de
novas companhias de ordenanças.
3 BNRJ, I – 32, 10, 5. Mapas estatísticos do Rio Grande do Norte. 1811-1826-1834. Mapa geral
da Importação, Produção, Consumo, Exportação, o que ficou em ser, da População,
Casamentos, Nascimentos e Mortes na Capitania do Rio Grande do Norte calculado o termo
médio dos anos de 1811, 1812 e 1813. Doc. 12.
4 CODIGO Filipino, ou, Ordenacoes e Leis do Reino de Portugal: recompiladas por mandado
d‟el-Rei D. Filipe I. Ed. fac.- similar da 14a ed. de 1821 / por Candido Mendes de Almeida.
Brasilia: Senado Federal, Conselho Editorial, 2004. (Edicoes do Senado Federal, v. 38), tomo I,
tit. XVIII.
REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014.
153
e oficinas. Esse foi o caso, por exemplo, dos ourives e boticários, que além
de produzirem, acabavam também comercializando seus produtos. Para
esses oficiais e negociantes, o Código Filipino exigia que possuíssem, em
seu poder, pesos e medidas específicos.
Esse texto pretende contribuir para o debate acerca da atuação das
câmaras municipais na regulamentação e vigilância do comércio e das
práticas mercantis nas vilas e cidades, tomando como exemplo as vilas da
Capitania do Rio Grande do Norte, assim como a sede do governo, a
cidade de Natal, a partir da segunda metade do século XVIII a c.1827.
Os mecanismos que regulam e vigiam o comércio
As licenças de comércio para abertura de lojas e práticas de ofício,
emitidas pela Câmara, constituíam um dos primeiros dispositivos de
regulamentação mercantil. Isso porque elas deveriam ser requisitadas em
Câmara logo no início do ano. Tal como os proprietários de lojas e tabernas
eram obrigados a possuir licenças para abertura de comércio, os oficiais de
ofícios mecânicos também necessitavam de licenças para o exercício do
ofício e a venda dos produtos produzidos. De ofícios e conhecimento
especializado, os mestres, oficiais ou aprendizes de sapateiro, ourives e
alfaiates, por exemplo, deveriam registrar-se na câmara e tirar sua licença.
Para a vigilância dos oficiais especializados e da qualidade de seus
produtos ofertados, a Câmara passava provisão a um Juiz de Ofício, “para
por eles serem encaminhados todos os oficiais que com lojas abertas
trabalhassem, para que tenham precedente a provação de inteligência e
idoneidade dos dados juízes” 5.
Para melhor exemplificarmos a relação entre as licenças de ofício e
comércio na Capitania do Rio Grande do Norte, partimos do ofício de
sapateiro. Num registro de licença de Juiz de Ofício de Sapateiro da Cidade
de Natal, o “mestre e oficial mais capaz Ignácio de Mello” é registrado
como o Juiz de seu ofício em 1782, sendo que, “no ofício de sapateiro
cotidianamente necessário deviam aplicar-se” a inteligência e idoneidade
de seu julgar e “dele usar os que dissessem [ter] a requisita inteligência e
suficiência” para serem sapateiros, “guardando-se a lei e regimento deste
IHGRN, RCPSCN, cx. 04, lv. 12. Registro de uma provisão de Juiz de Ofício de Sapateiro
passada ao mestre Ignácio de Mello morador nesta cidade. Natal, 06 de novembro de 1782.
5
Dossiê CÂMARA MUNICIPAL
154
Senado” 6. Assim, o Juiz de Ofício de Sapateiro, como qualquer outro juiz
de ofício, constituía mais um dos mecanismos institucionais de
regulamentação do comércio – eles iriam visitar as lojas e casas dos
companheiros de ofício e de lá e de seus produtos, averiguariam sua
capacidade de exercer tão antigo exercício técnico realizado sobre couro,
cordas, agulhas e tesouras. O espaço institucional, portanto, estende seus
braços sobre os ateliers, casas e oficinas diversas.
Ao analisarmos o “Mapa dos oficiais de ofícios mecânicos que
existem na Capitania do Rio Grande do Norte designado os lugares de seus
domicílios”, datado de 1827, e, provavelmente, produzido entre 1817 e
1821, constatamos que havia nesse período 132 sapateiros entre mestres,
oficiais e aprendizes, distribuídos por toda a Capitania 7. Embora o maior
produtor de couro tenha sido o sertão colonial, estabeleceram-se, no litoral,
seus mais significativos beneficiadores, como o sapateiro, por exemplo.
Representando 84% dos oficiais totais desse segmento na
Capitania, esses homens e mulheres manejaram o couro, seja ele de boi,
bode ou veado, cortaram tiras e talões, fizeram chinelos e sapatos diversos.
Nunca será demais lembrar as celebres frases de Capistrano de Abreu 8
acerca da época do couro.
Importante também notar que, de acordo com os mapas de
importação da Capitania, entre os anos de 1811 e 1813, foram adquiridos
259 peças ou pacotes de tesouras e navalhas 9. No ano de 1811, a Vila de
São José recebeu 200 tesouras e Extremoz, 120 facas 10. Pelo menos em 1811,
IHGRN, RCPSCN, cx. 04, lv. 12. Registro de uma provisão de Juiz de Ofício de Sapateiro
passada ao mestre Ignácio de Mello morador nesta cidade. Natal, 06 de novembro de 1782.
7 BNRJ, I - 32, 10, 5. Mapas estatísticos do Rio Grande do Norte. 1811-1826-1834. Mapa dos
oficiais de ofícios mecânicos que existem na Capitania do Rio Grande do Norte designado os
lugares de seus domicílios. Ano de 1827. Doc. 13.
8 “[...] de couro era a porta das cabanas, o rude leito aplicado ao chão duro, e mais tarde a
cama para os partos; de couro todas as cordas, a borracha para carregar água, o mocó ou
alforge para levar comida, a maca para guardar roupa, a mochila para milhar cavalo, a peia
para prendê-lo em viagem, as bainhas de faca, as broacas e surrões, a roupa de entrar no mato,
os banguês para cortume ou para apurar sal; para os açudes, o material de aterro era levado
em couros puxados por juntas de bois que calcavam a terra com seu peso; em couro pisava-se
tabaco para o nariz”. ABREU, Capistrano. Capítulos de História Colonial. Rio de Janeiro:
Fundação Biblioteca Nacional, s/d, p. 71.
9 BNRJ, I – 32, 10, 5. Mapas estatísticos do Rio Grande do Norte. 1811-1826-1834. Mapa geral
da Importação, Produção, Consumo, Exportação, o que ficou em ser, da População,
Casamentos, Nascimentos e Mortes na Capitania do Rio Grande do Norte calculado o termo
médio dos anos de 1811, 1812 e 1813. Doc. 12.
10 LOPES, Fátima Martins. Em nome da liberdade: as vilas de índios do Rio Grande do Norte sob
o diretório Pombalino no século XVIII. 2005. fls 700. Tese ( Doutorado em História) ─
6
REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014.
155
nenhum desses produtos seguiu para as vilas e localidades sertanejas;
ficaram as tesouras e as facas no litoral para, entre outros fins, a confecção
de sapatos e chinelos com o couro vindo do sertão. Depois de tantos
sapatos produzidos e muitos pés calçados na Capitania, outros tantos
seguiam dos portos litorâneos em busca do comércio intracolonial ou alémmar.
Pelas dificuldades de acesso a determinados produtos e pela
intensa procura, Antonil afirmava, em 1711, o quão exorbitantes eram os
preços dos mantimentos na “terra que dá ouro”, que um par de sapatos de
cordovão, couro de bode ou carneiro amaciado, custava cinco oitavas, ou
seja, 6$000 réis em Minas Gerais11. No entanto, na “terra que dá couro”,
preços como esses para os sapatos e chinelos não eram praticados.
De acordo com o Regimento
do Ofício de Sapateiro de 1791,
feito em vereação na Câmara de Natal, “todos os oficiais desse ofício
devem ter” a listagem dos valores dos sapatos, chinelos e botas,
especificados por tipo de material utilizado, tamanho e formato, além de
constar quanto custa o material e quanto custa o trabalho do oficial, “nas
suas tendas a vista do povo como determinaram os senhores oficiais da
câmara” 12. (VER QUADRO 01)
Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2005,
Anexos, Tabela 19: produtos importados pelas vilas do Rio Grande do Norte e seus preços
médios em réis – 1811, p. 185.
11 ANTONIL, Andre Joao. Cultura e opulencia do Brasil. 3. ed. Belo Horizonte : Itatiaia/Edusp,
1982. (Colecao Reconquista do Brasil), p. 71.
12 IHGRN, RCPSCN, cx. 05, lv. 15. Regimento do ofício de sapateiro feito em vereação de 12 de
março de 1791, ouvido os oficiais deste ofício.
Dossiê CÂMARA MUNICIPAL
156
QUADRO 01 – Preços em réis de chinelos, sapatos e botas em 1791,
determinado pela Câmara de Natal
FONTE: IHGRN, RCPSCN, cx. 05, lv. 15. Regimento do ofício de sapateiro feito em vereação
de 12 de março de 1791, ouvido os oficiais deste ofício.
Como podemos observar no Quadro 01, a Câmara regulava não só
o preço dos produtos advindos das oficinas dos sapateiros, como
determinava quanto eles deviam ganhar por cada peça feita e vendida. É
possível também perceber que, embora os tamanhos e formatos dos
produtos tenham valores diferenciados, o material utilizado na confecção
do calçado fazia variar o preço.
Os produtos feitos de cordovão custavam, em média, 10 % mais
caro que os produtos fabricados com couro de veado e 20% mais caro
daqueles de cabra, por exemplo. Outros detalhes, nos calçados, também
faziam diferença de preço, como o talão. Este é a parte que assenta sobre o
calcanhar formando um salto, sendo cosido à peça que faz o formato do pé.
Com cadarços ou sem, rasos ou com talão, furados ou forrados, para
REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014.
157
homens, mulheres ou crianças, qualquer que fosse o modelo ou tamanho, a
Câmara fez questão de arrolar e arregimentar seu preço de venda e o
ganho do sapateiro sobre o produto.
A cobrança dos impostos e taxas sobre a produção e comércio
visava, além de garantir o fluxo corrente das riquezas coloniais para a
Metrópole, regulamentar a prática cotidiana comercial dos vassalos.
Implicava, portanto, que todos aqueles que desejassem realizar práticas
mercantis, deveriam estar cientes de que, para isso, necessitariam arcar
com a tributação real. Sendo assim, a própria existência e as cobranças dos
impostos já implicam na regulamentação desse comércio. Comerciar, além
de representar possibilidade de ascensão social, era também aceitar as
prerrogativas inerentes à prática e, acima de tudo, estar sob a égide da
Coroa e seus mecanismos de regulamentação. Ao observarmos o quadro a
seguir, teremos noção da variedade de tributos e taxas cobrados durante
todo o período colonial. (VER QUADRO 2).
No Quadro 02 constam 18 impostos, dos quais cinco eram tributos
eventuais (Paz da Holanda, Finta da Rainha, Donativo Voluntário,
Benefício do Banco do Brasil e a Taxa Sumptuária) e os demais
permanentes. Dos 18 diferentes impostos cobrados na América portuguesa
e estabelecidos durante quase toda a totalidade do período colonial, 50%
deles foram condicionados a partir das práticas comerciais. Na totalidade
da documentação analisada para esse estudo, encontramos referências,
muitas vezes esparsas, a todos os impostos tributados sobre o comércio e
cobrados aos habitantes da Capitania do Rio Grande do Norte, no entanto,
por uma questão metodológica, escolhemos apenas dois deles, os Direitos
de Entrada e os Direitos de Passagem, que podem exemplificar a discussão
proposta nesse item: impostos enquanto regulamentação do comércio.
Nessa seleção, levamos em consideração a capacidade de mensuração da
relevância dos entroncamentos mercantis da Capitania do Rio Grande do
Norte, a partir da regulamentação que havia sobre a entrada e saída de
pessoas, animais e produtos, assim como o fluxo dessa mercadoria a partir
das passagens sobre estradas e rios.
Dossiê CÂMARA MUNICIPAL
158
QUADRO 02 – Tributação Régia no Brasil
FONTE: ACIOLI, V. L. C.; ASSIS, V. M. A. de; BARBOSA, M. S. F. Fontes repatriadas: anotações
de história colonial, referências para pesquisa, índices do Catálogo da Capitania de
Pernambuco,. Recife: EDUFPE, 2006, p. 51.
REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014.
159
O imposto sobre as entradas foi instituído no intuito de legitimar a
soberania institucional e fronteiriça de cada Capitania, controlar o comércio
intracolonial, angariar recursos para a Fazenda Real, além de controlar os
furtos de gado. Dessa forma, todos que entrassem ou saíssem da Capitania,
com mercadorias ou animais, deveriam pagar os devidos tributos. Para o
não pagamento do imposto, no momento da entrada ou saída da Capitania,
era indispensável ter efetivado o registro e recebido a licença do Senado da
Câmara. Caso contrário, oficial competente, conhecido como Registrador,
procedia com a autuação do indivíduo.
Já o imposto sobre as passagens era cobrado, sobretudo, como uma
espécie de pedágio para a travessia de rios e lagoas por aqueles que não
possuíam embarcações. Comumente, as passagens de rios e lagoas
realizadas, pelas embarcações, eram conferidas em arrematação ou
concessão a terceiros, que acabavam pagando à Câmara o direito de
possuírem a „passagem‟ de determinado rio ou lugar de difícil travessia,
por exemplo.
No caso da Capitania do Rio Grande do Norte, os impostos de
entrada e passagem muitas vezes acabam se imbricando, haja vista que
algumas das principais entradas da Capitania, sejam na Ribeira do Assú ou
do Potengi, localizavam-se no delta dos rios Piranhas e Potengi,
respectivamente, requerendo, muitas vezes, uma entrada em embarcação.
Ainda no século XVII, encontramos os primeiros registros a respeito dos
impostos de entrada e passagem da Capitania.
Identificamos, na leitura e análise dos Termos de Vereação do
Senado da Câmara de Natal, que a passagem da Ribeira de Natal, ou seja,
da travessia do Rio Potengi, foi motivo de preocupação por parte da
Câmara durante todo o período colonial, dada a relevância desse contrato
para as práticas mercantis da Capitania.
Com o passar dos anos, o contrato da passagem da Ribeira deixou
de ser gerido pelo Senado da Câmara de Natal, tornando-se
responsabilidade da Provedoria. Inconformada com essa situação, a
Câmara alegou em 1795 que “em vista das rendas reduzidas da Câmara,
por lhe faltarem os rendimentos do antigo julgado do Açu, hoje erigido
Vila, e visto também a seca que quase extinguiu o gado, quase cessando o
Contrato das Carnes, por onde a Câmara vendia em necessidade”, achou
por bem requerer à Junta da Fazenda Real de Pernambuco a
“administração do pequeno contrato de passagem do rio da Cidade, antes
Dossiê CÂMARA MUNICIPAL
160
da Câmara, depois com a Provedoria” 13. Renda segura, o contrato de
Passagem da Ribeira da Cidade de Natal, foi motivo de disputa do Senado
da Câmara com a Provedoria. Relevantes para o acesso à Capitania e
circulação de pessoas e bens, os contratos de passagem também faziam
parte das rendas das Câmaras, passando a ser gerido pela Provedoria da
Fazenda, no caso da Ribeira da cidade de Natal. De acordo com o
orçamento apresentado pela Fazenda Pública do Rio Grande do Norte no
ano de 1822, a passagem da Ribeira da cidade do Natal rendeu nesse ano
104$033 réis 14.
Soma-se aos mecanismos de regulamentação institucional
camarária mercantil, o imposto sobre os registros de entrada e saída de
bens e produtos da Capitania, assim como a figura responsável por essa
regulamentação cotidiana, o Registrador. Para a legislação metropolitana,
os registros eram “estabelecimentos, verdadeiras alfândegas à beira de vias
fluviais e terrestres que tinham, por objetivo, a arrecadação dos direitos”,
como nos caminhos do trânsito de tropas de gado, por exemplo. “Os
registros eram sujeitos a rigorosos regimentos, a fim de que fosse evitado,
sobretudo por omissão dos seus encarregados, o descaminho de quaisquer
direitos devido ao Erário Real”, já a competência do registro, ficava a cargo
do Provedor do registro que, além de manter-se vigilante, deveria tomar
nota do dia, mês e ano em que o tropeiro registrou a passagem de tantos
animais e a sua qualidade 15.
Um dos caminhos antigos utilizados para sair da Capitania,
direcionado ao sul, era o caminho de Tamatanduba, situado entre as atuais
cidades de Pedro Velho e Canguaretama, usado normalmente pelos
tropeiros e tangerinos para conduzir o gado a Pernambuco. Em 1674, o
Governador de Pernambuco, Matias de Albuquerque, informou à Câmara
de Natal que “o registro das marcas do gado que saía da Capitania não
estava sendo feito, causando prejuízo”, sendo convocado um morador em
Tamatanduba para fazer esse registro e evitar furtos durante a condução do
gado 16.
No ano de 1750, o Senado da Câmara de Natal resolveu nomear
registradores de boiadas para outros lugares, como Assú, Utinga e Cunhaú,
IHGRN, LTVSCN, Termo de Vereação de 11 de julho de 1795, cx. 02, lv. 1784-1803, fl. 50.
AN, Série Interior, cód. fundo: AI, notação IJJ2 433, seção CODES, p. 65.
15 WESTPHALEN, Cecília Maria. Verbete: Registro. In: SILVA, Maria Beatriz Nizza da.
Dicionário da colonização portuguesa no Brasil. Lisboa: Verbo, 1994,p. 691-692.
16 IHGRN, LTVSCN, Termo de Vereação de 24 de setembro de 1674, cx. 03, lv. 1674-1698, fl.
03-03v.
13
14
REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014.
161
os quais deveriam cobrar os impostos dos rebanhos que se destinavam à
praça mercantil de Natal ou a outros lugares. Ocorre que a Câmara decidiu
que esses registradores nomeados, “por serem pessoas fidedignas e com
bom conhecimento das marcas” de ferro utilizadas nos bois e identificando
a que fazenda pertenciam, “pagar por cada registro de boiada $400 réis
para o Registrador e $240 réis para o Escrivão da Câmara pela licença que o
Senado deve dar”. Caso a boiada fosse somente até vinte reses, esse valor
cairia pela metade e não pagaria a propina do escrivão. Levando em
consideração as especificidades geográficas e comerciais das diferentes
localidades da Capitania, determinaram que o Registrador da Ribeira do
Assú registrasse o gado que se “vende nos barcos que vêm à dita ribeira e
os que passarem deve registrar no Registro declarado” 17.
Tal era o controle por parte da Câmara, que o aumento
populacional e as mudanças promulgadas pelo Estado português
pontearam a Capitania do Rio Grande do Norte com registros, vilas e
Câmaras para a vigilância das práticas comerciais, das entradas, das saídas
e das passagens no espaço institucional que se sobrepõem ao espaço
colonial. Por outro lado, tão excessivo era esse controle que os
comerciantes, sempre em busca de mercados mais rentáveis e longe das
taxações e impostos, encontravam formas de lesar a Coroa, buscando
caminhos diferentes longe dos Registradores, feiras em outras Capitanias,
pouso em outras paragens menos institucionalizadas pelo braço gerencial
do poder reinol.
O gado não foi o único produto a ser controlado pelos dispositivos
institucionais coloniais. A relevância econômica que a cotonicultura teve na
Capitania do Rio Grande do Norte, sobretudo, a partir de 1776, quando foi
deflagrada a Guerra de Independência dos Estados Unidos, principal
fornecedor de algodão para os grandes teares industriais que surgiam na
Inglaterra, impulsionaram esse atividade de agricultura mercantil no Rio
Grande do Norte. Os EUA deixaram de fornecer a matéria prima essencial
para as fábricas têxteis inglesas, levando-as a procurarem outros mercados
fornecedores. Embora, nas terras chamadas de Novo Mundo, o algodão
fosse nativo e já utilizado pelos autóctones, ganhou expressão mercantil
durante o processo colonizador, culminando com a Revolução Industrial
Inglesa.
IHGRN, LTVSCN, Termo de Vereação de 25 de setembro de 1750, cx. 01, lv. 1745-1752, fl.
95-96.
17
Dossiê CÂMARA MUNICIPAL
162
A historiadora Denise Monteiro chama atenção para o fato de que
“a economia da Capitania, até então baseada principalmente na pecuária,
diversificou-se: era a primeira vez, desde o início do povoamento europeu,
que um produto era cultivado em larga escala, visando à exportação para o
exterior”18. Exportado para Lisboa, o desenvolvimento da atividade
algodoeira encontrou, nas terras secas da Capitania do Rio Grande do
Norte, forte recepção, além de ter constituído uma alternativa de ocupação
econômica para grande parcela da população, formada por aqueles que
haviam sido excluídos pelo sistema açucareiro implantado na América
portuguesa, tais como homens e mulheres, pobres, livres ou escravos.
Como esperado, diante de uma economia colonial em ascensão na
América portuguesa, levas e levas de escravos africanos desembarcaram
nos portos de Recife e seguiram para as lavouras algodoeiras da Capitania.
De acordo com o “Mapa geral de todas as Vilas e Lugares que se tem
erigido de 20 de maio de 1759, até o ultimo de agosto de 1763”, consta a
existência de 15 escravos de ambos os sexos na Missão de Guajirú, às
vésperas de ser erigida em Vila de Extremoz em 1760 19. Embora esse mapa
de 1760 faça referências a todas as outras vilas fundadas na Capitania do
Rio Grande do Norte em vários aspectos, somente a Missão de Guajirú, que
iria ser transformada na Vila de Extremoz, no momento de sua criação,
possuía escravos. Por outro lado, no “Mapa da Capitania do Rio Grande do
Norte de 1805”, mandado confeccionar pelo Capitão-Mor José Francisco de
Paula Cavalcante, pouco menos de 50 anos depois da fundação das novas
vilas, já havia um contingente de escravos significativos nelas.
QUADRO 03 - População escrava da Capitania do Rio Grande do Norte em 1805.
FONTE: AHU_ACL_CU_018, Cx. 9, D. 623. CARTA do [Capitão-Mor do Rio Grande do
Norte], José Francisco de Paula Cavalcante de Albuquerque, ao príncipe regente [D. João]
remetendo um mapa da população do Rio Grande do Norte e uma relação dos distritos que
necessitam de novas companhias de ordenanças.
MONTEIRO, Denise Mattos. Introdução à História do Rio Grande do Norte, 2 ed. Natal:
EDUFRN, 2002, p. 79.
19 AN, Série Vice-Reinado, cód. fundo: D9, notação: CX. 761, doc. 20, secção CODES.
18
REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014.
163
Depreendemos do Quadro 03 que as cinco novas vilas criadas, a
partir dos antigos aldeamentos indígenas, possuíam escravos e escravas em
quantidades relevantes, considerando que, em 1760, somente a Missão de
Guajirú – futura Vila de Extremoz – fez menção a 15 escravos, nos dados
populacionais do período. Embora as informações populacionais, para
escravos na Vila de Extremoz, estejam atreladas a Cidade do Natal e Arez,
os minguados 15 escravos de 1760 transformaram-se, em 1805, após o surto
algodoeiro de 1776, em um contingente de 2.144 escravos.
Partindo de uma análise mais apurada dos dados, notamos que,
caso somemos a população escrava contida no litoral, teremos 2.314
homens e mulheres, enquanto as duas únicas vilas do sertão, mencionadas
no documento, juntas têm 2.272 escravos. Ao fazermos um cálculo simples
e adicionarmos o número de escravos do litoral e dividirmos pela
quantidade de localidades, teríamos uma média de 462 escravos por vila e
a cidade do Natal. Fazendo esse mesmo exercício com as únicas duas vilas
do sertão mencionadas, teremos nada mais do que 1.136 escravos, ou seja,
quase 700 escravos a mais em cada vila sertaneja aludida. Sendo assim, o
número de escravos e escravas que seguiram para as regiões sertanejas da
Capitania do Rio Grande do Norte ultrapassou em dezenas o número de
escravos que seguiam para a região litorânea 20.
Entende-se que o número elevado de escravos no sertão da
Capitania do Rio Grande do Norte esteja atrelado ao desenvolvimento de
atividades produtivas em fazendas pecuaristas que combinaram o uso da
terra com a produção algodoeira, em alguns casos. Noutros, dado o
atrativo econômico que a cotonicultura representou, as terras foram
destinadas ao algodão e eles trabalharam exclusivamente nos algodoais.
No biênio 1762-1763, o número de escravos contabilizados na Capitania do
Rio Grande do Norte foi de 4.499 homens e mulheres; em 1805, essa cifra
aumentou para 4.586 e praticamente dobrou entre 1811 e 1813, alcançando
a soma de 8.155 homens e mulheres sob condição cativa 21.
“Ao lado desses lavradores e principalmente no litoral, onde a lavoura algodoeira também
se expandiu e onde o trabalho escravo negro era mais significativo, os africanos constituíam
uma mão de obra importante”. MONTEIRO, Denise M. Introdução à história do Rio Grande do
Norte, p. 80.
21 RIBEIRO JÚNIOR, José. Colonização e monopólio no Nordeste brasileiro: a Companhia Geral de
Pernambuco e Paraíba, 1759-1780. São Paulo: HUCITEC, 1976, p. 72; AHU_ACL_CU_018, Cx.
9, D. 623. CARTA do [Capitão-Mor do Rio Grande do Norte], José Francisco de Paula
Cavalcante de Albuquerque, ao príncipe regente [D. João] remetendo um mapa da população
20
Dossiê CÂMARA MUNICIPAL
164
Tão expressiva era a produção algodoeira da Capitania que, em 3
de fevereiro de 1820, D. João VI decretou a criação da Alfândega do
Algodão na cidade do Natal. As motivações para o estabelecimento de tal
instituição estão declaradas no documento: para que não se perca a boa
qualidade do algodão e não se diminua, consequentemente, a sua
extração22.
No afã de controlar a produção algodoeira, que seguia para as
praças mercantis das Capitanias vizinhas, sem realizar o pagamento devido
do dízimo, a Junta da Fazenda Pública resolveu estabelecer nas passagens e
lugares da Capitania do Rio Grande do Norte “registros de Portos Secos
para por eles serem fornecidos as competentes guias aos condutores de
algodão que desta referida Província as transportam aos mercados” de
Ceará, Paraíba e Pernambuco, “para com esta nota serem apresentados
nesta Junta, para na respectiva contadoria se poder proceder competente
escrituração, e com conhecimento das quantias existentes nas diferentes
caixas se possa encontrar o que houver produzido o referido Dízimo” 23.
De acordo com a legislação aduaneira brasileira de 2009, Portos
Secos são recintos alfandegários de uso público, situados em zona
secundária, nos quais são executadas operações de movimentação,
armazenagem e despacho aduaneiro de mercadorias e bagagens. Embora
essa terminologia seja aparentemente de pouco conhecimento, ela já era
usada no léxico alfandegário lusitano desde o século XVI. Bluteau apontava
esse mesmo significado da expressão em seu dicionário do início do
XVIII24.
Francisco Ribeiro da Silva, num estudo sobre o fiscalismo e
funcionamento das alfândegas lusitanas, afirma que as cobranças
regulamentadas e as formas de arrecadação de impostos sobre importação
e exportação de forma sistemática, em Portugal, são criações modernas,
do Rio Grande do Norte e uma relação dos distritos que necessitam de novas companhias de
ordenanças; BNRJ, I – 32, 10, 5. Mapas estatísticos do Rio Grande do Norte. 1811-1826-1834.
Mapa geral da Importação, Produção, Consumo, Exportação, o que ficou em ser, da
População, Casamentos, Nascimentos e Mortes na Capitania do Rio Grande do Norte
calculado o termo médio dos anos de 1811, 1812 e 1813. Doc. 12.
22 AN, Série Interior, Cód. fundo: AI, notação: IJJ2-433, CODES. Decreto de criação da
Alfandega de Inspeção do Algodão de 03 de fev. de 1820.
23 AN, Série Interior, Cód. Fun.: AI, Not.: IJJ2-433, Seç.: CODES.
24 BLUTEAU, Rafhael. Verbete: Portos. In: ______. Vocabulário Portuguez e latino: aulico,
anatomico, architectonico ... Coimbra: Collegio das Artes da Companhia de Jesus, 1712 - 1728.
8 v. p. 636.
REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014.
165
notadamente a partir de 1587 25. Diante das diversas taxas alfandegarias
instituídas e dos pontos estratégicos de escoamento, recebimento e
cobrança de impostos de mercadorias, surgiu em Portugal uma distinção
entre as alfândegas de Portos do Mar ou Molhadas e as de Portos Secos,
especialmente, depois de 1668, com a aprovação do Regimento das
Alfândegas dos Portos Secos, Molhados e Vedados – criado para regular o
comércio com Castela. As alfândegas de Portos do Mar eram aquelas
litorâneas e de comércio volumoso, sobretudo, em Lisboa e Porto; já os
Portos Secos eram alfândegas distribuídas nas imediações fronteiriças com
a Espanha, localizadas em lugares estratégicos, como rotas mercantis
carroçáveis ou mesmo rios volumosos trafegáveis, como o Tejo ou o Douro.
Nas alfândegas de Portos Secos, “fiscalizava-se as entradas dos gêneros
permitidos e cobravam-se os direitos deles ou tomavam-se guias para a
Alfândega de Lisboa, cuja entrada era afiançada por fiadores uma
arrecadação de direitos específicos sobre a exportação de gêneros” 26.
Conforme um ofício de 27 de março de 1822 – redigido pelo
escrivão da Alfândega do Algodão e enviado ao Ouvidor da Comarca da
Paraíba e ministros da Fazenda Pública do Ceará 27 –, foram designados
para a Capitania 21 registradores de portos secos, distribuídos por toda a
extensão da Capitania, sendo que dois portos estavam estabelecidos em
Natal e as guias de passagens eram diretamente emitidas pela Casa da
Fazenda, totalizando assim 23 portos. Esse ofício trás a relação dos
registros de Portos Secos e seus respectivos registradores estabelecidos nas
passagens e lugares “para fornecerem guias aos condutores de Algodão da
mesma Província que os levarem ao mercado das Províncias de
Pernambuco, Paraíba e Ceará” 28.
A partir desse ofício é possível visualizarmos a distribuição
geográfica dos Portos Secos da Capitania e o ponto de vigilância dos
registradores, evidenciando, assim, os principais caminhos e pontos de
escoamento de produção da Capitania. Dos 23 portos apontados no ofício,
só fomos capazes, até o momento, de identificar 18 localidades, tendo em
vista as mudanças toponímicas que essas localidades sofreram com o
SILVA, Francisco Ribeiro da. Alfandegas lusas em finais de setecentos: fiscalidade e
funcionalismo. In: O litoral em perspectiva historica (sec. XVI a XVIII). Anais... Cidade do
Porto, Instituto de Historia Moderna, 2002, p. 205-216., p. 208.
26 SILVA, Francisco Ribeiro da. Idem, p. 210.
27 AN, Série Interior, Cód. Fun.: AI, Not.: IJJ2-433, Seç.: CODES.
28 AN, Série Interior, cód. fundo: AI, notação: IJJ2-433, Secção: CODES, p. 274.
25
Dossiê CÂMARA MUNICIPAL
166
passar dos anos. Com o auxilio bibliográfico de Nomes da Terra de Câmara
Cascudo e Municípios do Rio Grande do Norte de Nestor Lima, localizamos
num mapa atual do Estado do Rio Grande do Norte onde, possivelmente,
se encontravam esses registradores e deviam ser emitidas as guias de
condução do algodão.
FIGURA 01 – Portos Secos da Capitania do Rio Grande do Norte.
FONTE: Elaboração do autor a partir de informações contidas em: AN, Série Interior, cód.
fundo: AI, notação: IJJ2-433, Secção: CODES, p. 274. Mapa baseado em base planimétrica
elaborada a partir do mapa político-rodoviário do Estado do Rio Grande do Norte de escala
1:500.000. Instituto de Desenvolvimento Econômico e Meio Ambiente do Rio Grande do Norte
– IDEMA - Secretaria de Planejamento e Finanças, 1997.
Como podemos visualizar no mapa, os Portos Secos estão
estrategicamente dispostos nas imediações ribeirinhas, como o Rio Apodi,
Piranhas-Assú e Curimataú, ou mesmo nas próprias praias, como Guamaré
e Touros. Esses portos eram os responsáveis pela comunicação econômica
da Capitania do Rio Grande do Norte com o sistema-mundo econômico
colonial. Foram através desses portos, juntamente com os portos de
Genipabú e Ponta Negra, que saíram da Capitania algodão, sal, couro,
farinha, pau-brasil, os quais coloram o Rio Grande do Norte nos circuitos
mercantis modernos. Por outro lado, por meio desses portos, a Coroa
estabeleceu seus administradores e cobrou seus impostos.
Observa-se também que existiam portos em locais de proximidades
fronteiriças, como a Serra de Luis Gomes, Serra das Almas e Patú. Embora
REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014.
167
não haja rios correndo próximo a essas localidades, elas encontram-se nas
imediações fronteiriças da Capitania. Isso atesta que – apesar do desenho
original, representado nos mapas do século XVI, mostrar as Capitanias
como imensos estirões de terra retilíneos e aparentemente uniformes – o
avanço populacional, as guerras, as entradas e a convivência nesses
territórios acabaram configurando situações diversas, espaços coloniais
multiformes e que já se configurava entre os administradores e CapitãesMores da Capitania o desenho territorial (que contribuiu para a
conformação atual).
É interessante notar que a terminologia “Portos Secos” – que em
Portugal diferenciava os portos marítimos dos pontos de escoamento
terrestre de produção – designou, no caso da Capitania do Rio Grande do
Norte, pontos de vigilância mercantil pelas instituições coloniais e seus
dispositivos de controle. Diante da lógica de controle estabelecida e dos
mecanismos empregados pelas instituições coloniais aqui trabalhadas,
embora alguns dos Portos Secos mencionados fossem de fato portos
marítimos – que historicamente receberam embarcações desde o avanço
colonizador português, como o Porto de Água Maré (Guamaré) e Petitinga
–, eles foram considerados pontos de vigilância e conferência de produtos
que saiam da Capitania.
Licenças para aberturas de lojas e colocar em prática ofícios;
impostos sobre comercialização de produtos, passagens, entradas e saída.
Todos esses dispositivos fazem parte do universo regulamentador das
práticas mercantis coloniais. Durante todo o período colonial e depois dele,
em maior ou menor medida, todos os agentes mercantis – homens ou
mulheres, comerciantes permanentes ou ambulantes – estiverem sob a
égide normativa das instituições coloniais. Embora muitas vezes ocorra o
descaminho, ou seja, a prática não permitida por esses agentes, eles
estiveram constantemente sendo pressionados pela regulamentação
institucional.
Esmiuçado alguns dos mecanismos regulamentadores do comércio
colonial, passemos ao exame dos mecanismos de vigilância, evidenciando
os dispositivos utilizados para a fiscalização no cumprimento da norma
esperada, pela Coroa, por seus vassalos.
A excessiva preocupação do poder camarário, sobre produtos e
locais de comercialização, visava a controlar atitudes ilícitas que muitos
comerciantes praticavam à procura de benefício próprio, como
comercializar os gêneros com medidas ou pesos diferentes no intuito de
Dossiê CÂMARA MUNICIPAL
168
burlarem o sistema de cobrança de impostos e, ao mesmo tempo, angariar
maiores recursos.
A Câmara vigilante: funcionários e funções
Para efetivar essa fiscalização, a Câmara dispunha de funcionários
específicos que participavam do cotidiano, deslocando-se aos locais de
venda. Conhecedores das práticas comerciais rotineiras e dos esquemas
usuais de burla dos comerciantes em relação às posturas, esses funcionários
– revestidos do poder que lhes fora conferido ao assumirem um cargo real,
isto é, legítimos representantes do Rei nos domínios ultramarinos – agiam
de forma significativa para o efetivo controle dos colonos na América
portuguesa. Eram os Almotacéis e os Aferidores.
Herdeiro de uma tradição, que remonta o período no qual a
Península Ibérica esteve sob domínio mouro 29, o Almotacé foi instituído na
América Portuguesa em 1532 com a fundação da Vila de São Vicente,
conservando suas aptidões e deveres que lhes foram designados desde o
Código Manuelino de 152130.
A escolha do ocupante desse cargo – normalmente eleito a cada
dois meses – podia ser realizada de duas formas. No primeiro caso, e de
maneira mais constante, escolhia-se em secção da Câmara um indivíduo
que já havia servido no ano anterior, geralmente como juiz ordinário ou
vereador. De outro modo, também em secção ordinária, os vereadores
discutiam qual dos “homens bons” do termo da cidade teria requisitos
fundamentais para o cargo, apesar de não ter servido na Câmara no ano
anterior. Essa prática era emblemática do tipo de ritos institucionais
inerentes à Câmara: durante um ano, o oficial legislava e punia os
transgressores na condição de vereador ou juiz; no ano seguinte, na função
de almotacé, iria colocar em prática aquilo que anteriormente legislou
como vereador.
Eram encarregados de executar tarefas específicas, principalmente,
a respeito das práticas mercantis como: fiscalizar o abastecimento de
víveres; vigiar as trocas comerciais, os produtos, preços e qualidades dos
SILVA, Isis Messias. O municipio na colonia portuguesa na America. II Ciclo Internacional
de Estudos Antigos e Medievais: religiao, religiosidade e politica no Mediterraneo Antigo e
Medieval. In: Anais... Sao Paulo: UNESP, 2006., p. 6.
30 SALGADO, Graca. (Org.). Fiscais e meirinhos: a administracao no Brasil colonial. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira/ Arquivo Nacional, 1985., p. 135.
29
REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014.
169
gêneros comercializados; cuidar para que comércio fosse realizado apenas
no local indicado; manter a ordem entre os vendedores do mercado;
observar se as lojas e tabernas possuíam licença e outras incumbências 31.
Inerente ao espaço institucional camarário, o Almotacé esteve
presente em todas as vilas da Capitania do Rio Grande do Norte. Para
exemplificar sua atuação institucional a partir da documentação camarária,
escolhemos um aspecto de sua atuação enquanto sentinela do comércio
colonial: a vigilância portuária e as denúncias de saída de víveres da
Capitania.
Nas duas últimas décadas do século XVIII, houve intensos
períodos de estiagem na Capitania do Rio Grande do Norte, notadamente,
nos anos de 1780 a 1785 e 1790 a 1795 32. As secas, desde os registros dos
cronistas e viajantes coloniais, são seguidas de grandes distúrbios sociais
provocados pela miséria. No entanto, “medidas governamentais contra os
efeitos da seca só ganharam mais efetividade no decorrer do século XVIII,
quando as zonas mais áridas do [que seria hoje] Nordeste foram
definitivamente ocupadas pelos colonos e a pecuária” 33. Nesse sentido,
pela documentação do Senado da Câmara de Natal, percebemos que a
segunda metade do referido século notabilizou-se por diversas menções e
ações para o convívio com os prolongados períodos de estiagem. Um dos
mecanismos utilizados pela Câmara, para amenizar os efeitos da seca, era
recrudescer a vigilância nos portos de Natal, ora não permitindo a saída de
víveres, ora obrigando as embarcações que entrassem a vender ao povo de
Natal. O Almotacé foi uma figura central no desenrolar dessas atividades.
Na Vereação de 16 de dezembro de 1801, o Almotacé da Câmara de
Natal informa ter cumprido a “Portaria que proibia saída de gêneros de
primeira necessidade”. No entanto, ele estava sendo questionado em
virtude de uma carta do Governador-Geral de Pernambuco, informando
que aos portos de Recife “chegavam gêneros da Capitania do Rio Grande e
por isso a cidade de Natal estava sofrendo, inclusive pelas lavouras que se
degradavam, além dos muitos atravessadores”. O Almotacé defendeu-se
proclamando que havia advertido “os atravessadores em geral e acusou o
SALGADO, Graça. (Org.). Idem, p. 135
Sobre o assunto ver: DIAS, Thiago Alves et al. Secas coloniais. A escassez de alimentos e o
Senado da Câmara de Natal no final do século XVIII. PublICa, vol. 4, 2008.
33 FRANCA, Gileno Camara de. Rio Grande do Norte: origens da industria e discurso da seca.
2004. fls. 109. Monografia (Especializacao em Historia) – Departamento de Historia, UFRN,
Natal, 2004, p. 90.
31
32
Dossiê CÂMARA MUNICIPAL
170
Capitão da Fortaleza [...] de haver atravessado farinhas e comprado
roçados”. Os oficiais, por sua vez, “declararam que o Almotacé sempre
cumprisse com suas obrigações ao útil e ao bem comum” 34.
Essa Vereação atesta a estreita relação comercial entre a Capitania
do Rio Grande do Norte e os portos de Recife a partir do escoamento
portuário. Importante notar a relevância do Almotacé na vigilância dessas
práticas econômicas em momentos de pressão, sendo o mesmo policiado
pela Câmara para o exemplar cumprimento de suas funções.
De acordo com os Termos de Vereação, aportaram em Natal e
foram notificados, tanto na saída como na chegada à Capitania, víveres
como feijão, milho, farinha, arroz e peixe seco durante as últimas décadas
do século XVIII. Analisando o “Mapa geral da Importação, Produção,
Consumo, Exportação, o que ficou em serviço da Capitania do Rio Grande
do Norte de 1811, 1812 e 1813”, podemos averiguar o montante de
importação e exportação desses produtos. (VER GRÁFICO 01)
GRÁFICO 01 – Produção, consumo e exportação em alqueires.
29.521
30.000
Produção
22.518
25.000
Consumo
20.000
6.947
15.000
1.524
1.108
1.766
1.983
4.427
3.263
10.000
5.000
0
Farinha
Exportação
Consumo
Produção
Feijão e
Arroz
Milho
FONTE: BNRJ, I – 32, 10, 5. Mapas estatísticos do Rio Grande do Norte. 1811-1826-1834. Mapa
geral da Importação, Produção, Consumo, Exportação, o que ficou em ser, da População,
Casamentos, Nascimentos e Mortes na Capitania do Rio Grande do Norte calculado o termo
médio dos anos de 1811, 1812 e 1813. Doc. 12.
IHGRN, LTVSCN, Termo de Vereação de 16 de dezembro de 1785, cx. 02, lv. 1784-1803, fl.
04.
34
REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014.
171
Conforme o gráfico acima é possível perceber que (dentre os
víveres de subsistência e comércio) a farinha de mandioca é o produto de
maior relevância econômica em matéria de produção, consumo e
exportação. Numa média anual entre 1811, 1812 e 1813, foram exportados
6.967 alqueires de farinha, representando quase 24% da produção total de
farinha daqueles anos. As vilas litorâneas de Extremoz, Arez, São José e
Vila Flor comumente produziam a farinha exportada; ela também era
fabricada na vila sertaneja de Portalegre, além de outras localidades que
não as vilas aqui trabalhadas 35.
Da mesma forma, o feijão e arroz foram produtos de considerável
exportação da Capitania, já que nos mesmos anos foram exportados 1.524
alqueires, representando quase 35% da produção total. Com tão
considerável produção e exportação, somente períodos de estiagem
explicariam o fato de que, em 1796, o Almotacé foi encarregado de fazer
vistoria no porto de Natal e averiguar um barco que estava de saída
“carregando farinha, feijão e arroz e que fizesse descarregar todo esse
mantimento, deixando só o necessário à tripulação” 36.
Também essencial para a alimentação humana e animal, o milho –
nativo dessas paragens – esteve em alta na pauta de exportação da
Capitania nas primeiras décadas do século XIX, sendo exportados 1.108
alqueires que representavam quase 34% da produção total da Capitania. A
produção desses gêneros era realizada nas mais diversas localidades do Rio
Grande do Norte e acabavam chegando ao porto de Natal através de
carroças ou pequenas embarcações. Isso explicaria o fato de que, em 1785, o
Almotacé havia apreendido feijão e milho no porto de Natal para que
fossem repartidos e distribuídos à população 37. Provavelmente, esses
mantimentos procediam de algum porto do sertão, para ser comercializado
em Natal, ou eles estavam de passagem, esperando a compra de mais
víveres e assim seguir para outros mercados coloniais.
Tal como o Almotacé, o Aferidor constituía um elemento
primordial na vigilância das práticas comerciais. Estando munido dos
pesos e medidas pertencentes à Câmara e regulado pelas Ordenações
Filipinas, o Aferidor deveria cotejar todos os pesos e medidas utilizados
pelos vassalos nos engenhos, lojas, açougues ou tabernas. Sendo assim,
LOPES, Fátima M. Em nome da liberdade, Anexos, Tabela 18, p. 678.
IHGRN, LTVSCN, Termo de Vereação de s/d/m de 1796, cx. 02, lv. 1784-1803, fl. 71-71v.
37 IHGRN, LTVSCN, Termo de Vereação de s/d/m de 1785, cx. 02, lv. 1784-1803, fl. 04.
35
36
Dossiê CÂMARA MUNICIPAL
172
aferidor “é o que coteja pelo padrão das medidas”. A câmara elege o
aferidor e “lhe paga um tanto, porque é renda da própria Câmara e as
partes lhe pagam um vintém, de cada aferição de medida, e duas vezes no
ano, quando os Almotacéis dão correição, senão acham as medidas
aferidas, condenam aos donos” 38.
No Tomo I, Título XVIII, das Ordenações Filipinas, encontramos 28
artigos que discutem pontualmente a questão dos pesos e medidas. É de
obrigação da Câmara possuir todos padrões necessários ao cotejamento dos
padrões utilizados pela população colonial, sendo obrigados a ter número
diferenciados de padrões de acordo com o tamanho populacional das vilas
e cidades. As medidas obrigatórias a todas as vilas e cidades eram: vara,
côvado, alqueire, vinho, almude, canada, quartilho e arrátel. Os pesos
deveriam ser guardados numa arca ou armário do Conselho, sendo que “os
ditos Padrões não saíram fora da dita arca, somente para Casa de Câmara,
quando forem necessários. E não os emprestaram a nenhuma pessoa, nem
para por eles afilarem outros fora da Câmara, nem por eles pesarem”. A
ordem é clara: “pessoa alguma, de qualquer estado e condição que seja, não
tenha outros diferentes pesos, nem por eles venda, compre, receba, nem
entregue coisa alguma” 39.
De acordo com o “Mapa dos oficiais de ofícios mecânicos que
existem na Capitania do Rio Grande do Norte designado os lugares de seus
domicílios do ano de 1827”, havia na Capitania pelo menos dois tipos de
ofícios aos quais as Ordenações impunham o uso de padrões e medidas
específicos: os ourives e os caldeireiros.
Na Cidade do Natal, em 1827, existiam seis mestres ourives; na
Vila de São José, três mestres, quatro oficiais e três aprendizes; na Vila da
Princesa, três mestres; e na Vila do Príncipe, um mestre ourives 40.
Conforme as Ordenações, todos esses oficiais ourives deveriam ter em suas
lojas “uma pilha [chama-se pilha certo número de pesos enconchados uns
aos outros] de quatros marcos, convém a saber, dois marcos de pilha, e dois
nos outros pesos miúdos” 41. Sendo assim, o aferidor necessitaria, pelo
menos uma vez por ano, visitar todos esses mestres, oficiais e aprendizes,
assim como suas respectivas lojas, examinando seus pesos e fazendo
BLUTEAU, Rafhael. Verbete Aferidor. In: ______. Vocabulário Portuguez e latino, p. 148.
CODIGO Filipino, ou, Ordenacoes e Leis do Reino de Portugal, tit. XVIII,§36 a §40.
40 BNRJ, I - 32, 10, 5. Mapas estatísticos do Rio Grande do Norte. 1811-1826-1834. Mapa dos
oficiais de ofícios mecânicos que existem na Capitania do Rio Grande do Norte designado os
lugares de seus domicílios. Ano de 1827. Doc. 13.
41 CÓDIGO Filipino, ou, Ordenações e Leis do Reino de Portugal, tit. XVIII, §42.
38
39
REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014.
173
revista em suas balanças, para só assim passar um selo de aferição
atestando a legitimidade de seus pesos.
Também sobre os caldeireiros incidia a vigilância dos Aferidores,
aqueles, de acordo com a norma institucional reinol, eram obrigados a ter
os pesos equivalentes à “arroba, e meia arroba, e quarto de arroba, e quarto
arráteis, e dois arráteis, e um arrátel, e meio arrátel, e duas quartas” 42. Em
1827, havia em Vila Flor dois oficiais de caldeireiros – um mestre e um
aprendiz 43.
Por outro lado, os comerciantes e oficiais não foram os únicos a
serem repelidos pela Câmara em relação aos aferimentos. Os próprios
aferidores também foram alvo passíveis de censura por parte das Câmaras.
Na Vila de Portalegre, em fevereiro de 1772, Manoel de Souza
Tavares chegou à Câmara – morador da vila, ele possuía empreendimentos
comerciais na sede e no povoado de Martins, também jurisdição da vila –,
relatando aos camaristas sua insatisfação sobre os preços cobrados pelo
Aferidor de $80 réis por cada peso a ser aferido. Os oficiais, por sua vez,
sabendo da futura correição que haveria, mandaram que o aferidor,
embora sabendo da distância entre a sede da Vila e o povoado de Martins,
fosse por obrigação “aferir os pesos de uma e outra parte, sendo lhes
trazido, e quanto à cobrança não incorrerá réu em correição” 44. Ou seja, o
aferidor deveria ir a ambos os lugares, buscar os pesos e trazer para
Câmara para o cotejamento e quanto à cobrança, essa era justa, pois feito o
cotejamento, Manoel de Souza Tavares não pagaria muito mais caro
quando houvesse a correição e ele fosse condenado.
Caso também relevante ocorreu na Correição realizada pela
Câmara de Natal, em 1798, na qual o Aferidor Pedro Frazão foi condenado
em 1$000 réis por aferir sem padrão 45. Ou seja, o próprio oficial camarário
acabou utilizando-se de suas prerrogativas, enquanto servente do rei, para
aferir com seus próprios padrões ou mesmo sem nenhum padrão, do seu
jeito, beneficiando-se diretamente, sem precisar levar os pesos à Câmara ou
mesmo realizando um serviço rápido e mal feito.
CÓDIGO Filipino, ou, Ordenações e Leis do Reino de Portugal, tit. XVIII, §47.
BNRJ, I - 32, 10, 5. Mapas estatísticos do Rio Grande do Norte. 1811-1826-1834. Mapa dos
oficiais de ofícios mecânicos que existem na Capitania do Rio Grande do Norte designado os
lugares de seus domicílios. Ano de 1827. Doc. 13.
44 IHGRN, LTVSCP, Termo de Vereação de 17 de fevereiro de 1772, cx. RCPSCN nº6, lv.
Câmara de Portalegre, 1771 a 1794, p. 14v-15.
45 IHGRN, LTVSCN, Termo de Vereação de s/d/m de 1798, cx. 02, lv. 1784-1803, fl. 107v-108108v-109.
42
43
Dossiê CÂMARA MUNICIPAL
174
A partir da análise desses dispositivos institucionais de vigilância
do comércio colonial, perceber-se que a norma nem sempre ditava a
prática. No entanto, apesar da burla e transgressões realizadas, o comércio
estava ocorrendo. Independente do fato da loja e taverna ter ou não licença,
elas estavam abertas e funcionando, pelo menos, até que os corregedores as
identificassem.
Diante do quadro exposto – mecanismos de regulamentação e
vigilância das práticas mercantis –, compreendemos a centralidade das
Câmaras enquanto normatizadoras do espaço institucional. Verificamos
também que as Câmaras coloniais incorporaram todos os segmentos e
mecanismos institucionais capazes de institucionalizar espaços, como os
dispositivos de regulamentação e vigilância das práticas mercantis.
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Dossiê CÂMARA MUNICIPAL
176
A “Leal” Câmara da cidade de Mariana e as atas das sessões
A lei de organização municipal e a prática política dos camaristas.
Kelly Eleutério Machado Oliveira 1
1
Resumo: O objetivo deste artigo é discutir, a partir das
atas das sessões da Câmara Municipal, como a lei de
1828, somada às reformas liberais da década de 1830,
repercutiu na prática política dos camaristas da cidade
de Mariana, Minas Gerais. Tendo como marcos
cronológicos os anos de 1828-1836, trata-se de refletir se,
de fato, a Câmara da Leal cidade de Mariana perdeu
autonomia e poder político cumprindo, sem mediações,
as determinações do poder provincial. Além disso,
outra questão norteia este texto, a saber: qual foi a
relação que os homens da vereança estabeleceram com o
governo regencial? Continuaram leais ao Imperador D.
Pedro I ou aceitaram a Regência? O posicionamento dos
camaristas indica que as práticas da municipalidade
escapam, muitas vezes, das normalizações e que os
tempos já eram outros.
Palavras-chave: Lei de 1828, Atas das sessões, Câmara
Municipal de Mariana.
Abstract: The purpose of this article is to discuss, from
the minutes of the meetings of the City Council, such as
the law of 1828, plus the liberal reforms of the 1830s,
had repercussions in the councilors' political practice in
the town of Mariana, Minas Gerais. Holding as
chronological marks the years 1828-1836, it tries to
reflect whether in fact the Chamber of the Loyal city of
Mariana lost autonomy and political power by fulfilling,
without mediation, the determinations of the provincial
power. Also, another question guides this text, namely:
what was the relationship that the men of the parish
established with government Regency? Did they remain
loyal to the Emperor Dom Pedro I or accept the
Regency? The positioning of the councilors indicates
that the practice of the municipality often escapes
norms and regulations and that things were already
different.
Keywords: Law of 1828, Minutes of Sessions, City
Council of Mariana.
1
Mestranda em História pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Belo Horizonte.
REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014.
177
N
o dia 1º de outubro de 1828, Sua Majestade Imperial mandou
executar a Carta de Lei sancionada pela Assembléia Geral
Legislativa. Essa Lei regulamentou algumas disposições já
previstas na Constituição de 1824, por isso é chamada de Lei
Regulamentar. É importante dizer que, até 1828, as Câmaras Municipais se
orientavam pelas Ordenações Filipinas, de 1603. A Lei de 1828 estabeleceu
a forma das eleições dos membros das Câmaras das cidades e vilas do
Império, marcando suas funções e dos empregados respectivos. Ao todo,
foram 90 artigos2. Como veremos adiante, apesar do Regimento ter
imposto claros limites à atuação política desta instituição, não impediu que
ela continuasse exercendo competências importantes para o bom
desenvolvimento da cidade e seu termo.
Em relação às eleições, a Lei determinou que as Câmaras da cidade
fossem compostas por nove membros e as das vilas, de sete vereadores e
um secretário. Um aumento bem considerável, tendo em vista a estrutura
antecedente, que determinava um número de três vereadores. O mandato
passou de um para quatro anos. Estariam habilitados a serem vereadores
todos aqueles que pudessem votar nas Assembléias Paroquiais desde que
tivessem dois anos de residência no termo (artigo 4º). Votante não poderia
ser vereador. As eleições eram diretas. Na prática, isso significava que um
número maior de cidadãos estaria apto a escolher seus representantes.
Os vereadores reeleitos poderiam escusar o cargo desde que a
eleição fosse imediata (artigo 18º). Por exemplo, na sessão extraordinária de
1 de maio de 1833, o vereador José Joaquim Campos pediu demissão por já
ter servido nos quatro anos anteriores. Alegou para isso o artigo 18 da Lei
Regulamentar. Moléstia grave ou prolongada e emprego civil, eclesiástico e
militar cujas obrigações fossem incompatíveis de se exercer conjuntamente
com a vereança também poderiam ser motivos para a escusa do cargo
(artigo 19º), desde que comprovados por documentos. Muitos pedidos de
escusa do cargo de vereador foram registrados nas atas da Câmara e, em
muitos deles, os solicitantes alegavam os impedimentos permitidos pela
Lei. Em alguns casos, a Câmara julgou improcedente o pedido. Ainda de
2AHCMM,
Livro para registro da Carta de Lei de 1º/10/1828. Cód. 88. Registro da Carta de Lei de
1º de Outubro de 1828, 1º/04/1829, f. 01f-08v. Disponível também em:
http://www.camara.gov.br/Internet/InfDoc/conteudo/colecoes/Legislacao/LegimpK_20.pdf.
Dossiê CÂMARA MUNICIPAL
178
acordo com a Lei, não poderiam servir como vereadores, no mesmo ano e
na mesma cidade, pais, filhos, irmãos e cunhados (artigo 21).
Como se pode notar, no que diz respeito à forma de eleição das
Câmaras, nenhuma medida foi tomada no sentido de reduzir a autonomia
da instituição. Porém, o título segundo, nomeado “Funções Municipais”,
deixou claro qual seria o novo ordenamento político. O artigo 24
determinou que a Câmara seria uma instituição meramente administrativa.
Com relação às sessões, estabeleceu quatro sessões ordinárias por ano e,
caso necessário, o presidente poderia convocar extraordinariamente outra
sessão. Cada sessão deveria ter no mínimo cinco vereadores para que uma
matéria pudesse ser votada. Na impossibilidade de comparecer às sessões,
cada vereador deveria comunicar os motivos pelos quais isso se dava. Caso
a falta não fosse justificada, pagar-se-ia uma multa no valor de quatro mil
réis. Não foram raras as vezes em que houve falta de vereadores, no
entanto, nas atas não há menção a essa multa.
O artigo 29 também determinou que, no dia marcado para o
princípio de cada uma das sessões ordinárias, os vereadores deveriam se
reunir às nove horas da manhã na Casa da Câmara, com as portas abertas,
havendo assentos para os espectadores que concorressem diariamente e
estando o presidente sentado no topo da mesa, tendo ao seu lado os
vereadores, sem distinção nem precedências. Dava-se início à sessão. Uma
vez aberta, o presidente declarava a matéria da discussão e deveria manter
a ordem dando a palavra ao primeiro que lhe pedisse, fazendo sempre
observar a civilidade entre os vereadores e espectadores. Se algum
vereador não quisesse voltar à ordem, o presidente o mandaria calar-se e,
não lhe obedecendo, o faria sair da sala, consultando primeiramente os
outros vereadores, ou levantaria a sessão, quando a nada se quisesse
sujeitar.
De acordo com a mesma Lei, era função dos vereadores: tratar dos
bens e das obras do município, do governo econômico e policial da terra,
não se permitindo, de maneira alguma, que os proprietários dos prédios
fizessem mudanças nas estradas. Não poderiam aforar, vender ou trocar
imóveis do Conselho sem autorização do Presidente de Província.
Competia também aos vereadores, em cada reunião, nomear uma comissão
de Cidadãos probos, composta por pelo menos cinco membros, à qual se
encarregaria de visitar as prisões civis, militares e eclesiásticas, e de todos
os estabelecimentos públicos de caridade para informarem do seu estado e
dos melhoramentos que precisavam (artigo 56º).
REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014.
179
Funções administrativas amplas foram as determinadas pelo Título
3º, “Posturas Policiais”. Aqui, fica claro que, apesar da perda de
competência para deliberar sobre assuntos de natureza política e judiciária,
as Câmaras assumiram o governo da cidade. Isso significa que eram
responsáveis por tudo que dizia respeito à polícia e à economia:
alinhamento, limpeza, iluminação, conservação e reparo de muralhas para
segurança dos edifícios e prisões públicas, calçadas, pontes, fontes,
aquedutos, chafarizes, poços, tanques, estabelecimento de cemitério fora
dos templos religiosos, observância sobre ajuntamento de pessoas em
horários e locais inapropriados etc.
O artigo 72, porém, deixou a cargo do Conselho Geral de Província
o poder de alterar ou revogar as posturas. Isso gerou um grande debate na
Câmara Municipal. O vereador José Justino Gomes Pereira, por exemplo, se
posicionou contra essa decisão, afirmando que a “Câmara não deve
obediência cega e absoluta ao Conselho, sua subordinação inteira é à
primeira autoridade administrativa da província em Conselho ou fora dele,
artigo 78 da Lei regulamentar das Câmaras”3. A autoridade a que se refere
Gomes Pereira é o Presidente de Província que era escolhido pelo
Imperador. Já o Conselho era eletivo4.
As derradeiras determinações que sujeitaram as Câmaras à tutela
do Conselho Geral de Província estariam no Título 4º da Lei de 1º de
outubro: “Da aplicação das rendas”. Esse título subordinou
economicamente as Câmaras ao Conselho. Não poderiam vender, aforar
bens, realizar obras públicas sem a autorização do mesmo. Os vereadores
da Câmara encontraram algumas saídas para as poucas rendas da
instituição. Não podendo contar com a ajuda financeira do Conselho ou
diante da demora e mesmo inexistência de verbas, os administradores da
cidade concorreram, eles próprios, com subscrições. Isso nos leva à
hipótese de que existiu, dentro da Câmara Municipal, apesar das
mudanças decorridas dos esforços da construção do Estado Nacional
(ainda em seus inícios), um forte componente patrimonial. O componente
AHCMM. 6ª sessão ordinária de 17 de dezembro de 1831. Cód. 214.
Ver: SLEMIAN, Andréa. “Delegados do chefe da Nação”: a função dos presidentes de
província na formação do Império do Brasil (1823-1834). Almanack Brasiliense, nº6, novembro
de 2007, p. 20-38. Disponível em: http://www.almanack.usp.br/PDFS/6/06_artigo-01.pdf
3
4
Dossiê CÂMARA MUNICIPAL
180
patrimonial do Estado brasileiro no século XIX já foi bastante discutido,
dentre outros, por Fernando Uricoechea5.
O último Título (Título 5º) desse Regimento, intitulado “Dos
empregados”, determinou as funções dos outros empregados da Câmara.
O secretário era nomeado pela Câmara e receberia uma gratificação anual
paga pelas rendas do Conselho. O procurador também era nomeado pela
Câmara e por ela ou por outra pessoa idônea seria afiançado para um
mandato de quatro anos e receberia 6% de tudo que arrecadasse. A Câmara
também nomearia um porteiro pago pelas rendas do Conselho, fiscais e
suplentes para servirem por quatro anos.
De maneira geral, as disposições previstas na Lei Regulamentar
foram implementadas na Câmara de Mariana. Esta edilidade contou com
nove vereadores e todos os outros empregados determinados pela Lei.
Procurou-se também seguir a exigência de quatro sessões ordinárias por
ano, conviveu-se com as determinações do Conselho Geral sobre seu
orçamento etc. No entanto, também percebemos dissonâncias entre a Lei e
o funcionamento concreto da instituição. Vejamos, a seguir, alguns
exemplos.
Segundo Iara Lis Schiavinatto, pela Lei de 1828, “a Câmara ligavase de vez ao Governo Provincial e se desligava do monarca”.6 Tal afirmação
nos permite concluir que o interesse dos legisladores era o de restringir o
poder das Câmaras como apoiadoras de D. Pedro I, como se deu na época
da Independência, fazendo-as ficar sob o controle da província. Num
contexto em que o primeiro imperador vinha perdendo prestígio, retirar as
Raimundo Faoro, em Os donos do Poder, também propõe uma análise a partir da concepção
de Estado Patrimonial. Porém, as contribuições dele são menos indicadas aqui, sobretudo
porque o autor não leva o emprego do conceito às últimas consequências, como aponta Laura
de Mello e Sousa, em O Sol e a Sombra. Segundo Laura de Mello e Souza, Faoro super
dimensionou o papel do Estado, afirmando que ele antecedeu à sociedade; “não houve lugar,
em sua análise, para as tensas e complexas relações entre os administradores coloniais e as
oligarquias, tão amiúde documentadas nas fontes coevas” (SOUZA, Laura de Mello e. Política
e administração colonial: problemas e perspectivas. In: O sol e a sombra: política e
administração na América Portuguesa do século XVIII. São Paulo: Companhia das Letras,
2006, p. 33). Além disso, desconsiderou a questão da ruralização, do mando local, o que
acabou por “gerar uma distorção fatal na obra de Faoro, que apela para a onipresença e o peso
excessivo do Estado mas, a cada momento, fornece evidências empíricas que inviabilizam sua
tese, indicando os processos de centrifugação presentes na sociedade” (Ibidem, p. 34). Cf.
URICOECHEA. Fernando. O Minotauro Imperial. Rio de Janeiro: Difel, 1978.
6 SCHIAVINATTO, Iara Lis. “Questões de poder na fundação do Brasil: o governo dos
homens e de si (c.1780-1830)”. In: MALERBA, Jurandir (Org.). A independência brasileira: novas
dimensões. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006, 214.
5
REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014.
181
Câmaras de sua órbita de influência poderia ser uma estratégia das elites
liberais para diminuir o poder do monarca. Mas a questão fundamental,
era diminuir os poderes de uma instituição de Antigo Regime 7. Continua a
autora, referindo-se ainda à Lei de 1828, “era [a Câmara] proibida de
destituir qualquer autoridade, como aconteceu no início da década de 20,
ou de nomeá-la sem o aval do governo provincial”.8 O fato de ser proibido
por Lei não impediu, portanto, que a Câmara da cidade de Mariana o
fizesse.
Na sessão ordinária de 2 de março de 1831, há uma discussão sobre
se o secretário da Câmara de Mariana, Manoel Berardo Acursio Nunan,
diretor do periódico Estrella Marianense, deveria ser demitido do cargo, sob
acusação de ser ele “incendiário e inimigo da Nação”. Nunan teria falado
em “federação no Brasil”. Os vereadores se dividiram quanto à demissão
ou não do secretário. O vereador Gomes Pereira foi enfático: Acursio
Nunan deveria ser demitido porque a Câmara precisava zelar pelo título de
representar a Leal Cidade de Mariana. Alguns vereadores disseram que não
cabia à Câmara decidir a questão, que deveria ser levada ao tribunal do
júri. Nunan foi demitido. E na sessão de 21 de março de 1831 Gomes
Pereira justificou a demissão da seguinte forma:
O secretário é o eixo dos trabalhos da Câmara, é o fiel
do Arquivo, é o guarda dos livros e papéis da
secretaria, e estas funções exigem um homem probo,
de firme caráter, de fé e confiança pública; mas à vista
do expedido poder-se-á dizer que o ex-secretário é
ornado dessas qualidades? São, pois, estes e não
outras, Excelentíssimo Senhor, as causas que teve a
Câmara para lançar fora o referido secretário, que
As Câmaras, no Antigo Regime, se relacionavam diretamente com o rei. De acordo com
Xavier Guerra, “a complexidade corporativa do Antigo Regime, com múltiplos corpos e
estamentos, com diversidade jurídica e a defesa que todos fazem de seus privilégios, é um
obstáculo à existência da pátria e da nação” (GUERRA, 2003: 46). Na construção do Estado
Nacional, era, portanto, imperativo acabar com esses poderes autônomos. Sérgio Buarque de
Holanda, segundo Lucília Siqueira, afirmava que, para os liberais que viviam no século XIX
manter as autonomias locais ou regionais era ser conservador, “enquanto que fortalecer o
poder central significava homogeneizar procedimentos administrativos e extirpar privilégios
próprios do Antigo Regime” (SIQUEIRA, 2006: 97). Ver, respectivamente: GUERRA, FrançoisXavier. A Nação Moderna: nova legitimidade e velhas identidades. In: JANCSÓ, István (Org.).
Brasil: formação do Estado e da Nação. São Paulo: Hucitec, 2003, p. 33-60; e SIQUEIRA,
Lucília. O ponto em que estamos na historiografia sobre o período de rompimento entre Brasil
e Portugal. Almanack brasiliense, nº3, maio de 2006, p.81-104. Disponível em:
http://www.almanack.usp.br/PDFS/3/03_artigos_3.pdf.
8 SCHIAVINATTO, Iara Lis. Questões de poder na fundação do Brasil. Op. cit., p. 214.
7
Dossiê CÂMARA MUNICIPAL
182
falsa e imprudentemente ousa tachar a Câmara de
infratora de Leis, de ser compelida por ódios e
patronatos; mas como a Estrela é um dos Astros
influentes na órbita federativa porque a seu modo
ilumina e orienta, é por isso mesmo que se tem feito
tão ruidosa sua demissão, encarando-a os
apaixonados através do prisma de suas imaginações
para a tratarem de despótica, arbitrária e ilegal.9
Para Schiavinatto, além das questões mencionadas, a Lei de 1828
também afetou “sua [da Câmara] carga simbólica, sua habilidade e
capacidade de mobilizar signos e investi-los com determinados sentidos ou
de celebrar o contrato social com o monarca ou com o Brasil, como fizera
entre 1822 e 1824”.10 Todavia, na sessão extraordinária de 12 de janeiro de
1831, o presidente da Câmara de Mariana expôs que tinha certeza que já se
encontravam nessa cidade o Imperador e sua esposa e que, por isso,
“deveria arrumar as ruas, limpá-las, caiar a frente das casas”. Dizia ainda
que, se “a Lei de 1 de outubro de 1828 proíbe despesas com festas, isso não
impede que cada um possa fazer sua parte para bem receber Suas
Majestades”. E foi nesse sentido que os vereadores da Câmara da Leal
Cidade de Mariana ornaram as ruas, fazendo entender que não era a
determinação de uma Lei que os impediria de bem receber Suas Majestades
Imperiais. Temos aqui, portanto, outro exemplo das dissonâncias entre a
Lei e a prática cotidiana.
Por fim, segundo Iara Lis Schiavinatto, “a lei igualmente
coadunava-se à montagem de um Estado fundado numa Soberania única e
indivisível, que se pautaria pela centralização, diferentemente do Antigo
Regime.11 De fato, a Lei de Organização Municipal deixou claro que era
preciso reduzir os poderes amplos das Câmaras inserindo-as no modelo de
Estado Liberal que se queria criar. Ficaram, pois, subordinadas ao
Conselho Geral de Província, mas não deixaram de atuar na localidade
como “legítimas representantes”, mediando conflitos, zelando pela paz e
sossego públicos e, principalmente, administrando o município.
Continuaram, por esses motivos, exercendo algumas competências típicas
da Ordem anterior, isto é, do Antigo Regime. Queremos dizer com tudo
isso que, se as Câmaras e, no nosso caso específico a Câmara de Mariana,
perderam autonomia, elas não deixaram, por outro lado, de ter importância
AHCMM. Sessão de 21 de março de 1831. Cód. 206.
SCHIAVINATTO, Iara Lis. Questões de poder na fundação do Brasil. Op. cit., p. 214.
11 Ibidem.
9
10
REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014.
183
política, mesmo porque se tornaram a instância mediadora das relações
entre o local e o provincial.
As reformas liberais da década de 30
A década de 30 do século XIX assistiu à implementação das
chamadas Reformas Liberais de caráter descentralizador. Referimos-nos ao
Código de Processo Criminal de 1832 e ao Ato Adicional de 1834. O
primeiro deu mais poderes aos juízes de paz. Já o Ato Adicional atribuiu
mais autonomia às províncias. No que diz respeito às Câmaras, não houve
mudanças sensíveis uma vez que, se antes eram subordinadas ao Conselho
Geral de Província, depois do Ato Adicional, passaram à tutela da
Assembléia Legislativa. Segundo Edneila Chaves, a concessão de
autonomia para as Câmaras poderia pôr em risco a unidade provincial e,
em última análise, a própria unidade do império. É preciso lembrar que os
vereadores tinham projetos políticos que se manifestavam muitas vezes
pelas sedições que encabeçavam12.
Para a administração da justiça, conforme o estabelecido com o
Código do Processo Criminal de 1832, criaram-se alguns cargos e deu-se
maior autonomia para outros, o de juízes de paz, por exemplo. Todos os
cargos previstos para os termos de vila e cidade, bem como de seu distrito,
foram instituídos em Mariana, conforme se verifica nas atas das sessões da
Câmara. Alguns vereadores assumiram os cargos de juiz de paz, juiz
municipal, juiz de direito e promotor público. Apesar de serem cargos da
administração provincial, a Câmara tinha ingerência nos mesmos. Além
disso, também era a Casa de Vereança que passava os títulos e conferia
posse a todos os responsáveis por essa administração. Foi a esse quadro de
administração judiciária que os vereadores da Câmara de Mariana parecem
ter-se adequado.
Há certo consenso em se afirmar que o Ato adicional de 1834
reduziu ainda mais os poderes da municipalidade. De fato, pela Lei, foram
as províncias que ganharam destaque. Elas passaram a concentrar poderes
Como é o caso daqueles que se envolveram na Sedição caramuru de Março de 1833, a
Sedição do Ano da Fumaça. Na ocasião, os sediciosos tomaram a capital da província de
Minas Gerais, Ouro Preto, e depuseram o presidente, Manoel Ignácio de Mello e Souza, e o
vice-presidente, Bernardo Pereira de Vasconcellos. Falaremos mais adiante um pouco mais
sobre isso. Caso também dos vereadores que se envolveriam, anos mais tarde, na Revolução
Liberal de 1842. O então presidente da Câmara Municipal de Mariana, Manoel Francisco
Dasmasceno, foi preso por envolvimento na revolta.
12
Dossiê CÂMARA MUNICIPAL
184
e exigir das Câmaras Municipais obediência. Em todo caso, para a
municipalidade, parece que apenas havia mudado a instância de poder à
qual deveriam se submeter. Obviamente que a Lei repercutia nos assuntos
tratados pela Câmara, tanto que a mesma é referenciada nas sessões, porém
a prática cotidiana dos vereadores não se alterou significativamente. Pelo
menos é isso que os registros das atas evidenciam.
A Câmara de Mariana recebeu com festejos o Ato Adicional. No
dia 7 de setembro de 1834, os vereadores se reuniram em sessão
extraordinária para se informarem sobre a matéria de dois exemplares do
Ato enviados pela vice-presidência da província de Minas Gerais. Tratavase da carta de lei de 12 de agosto de 1834, o Ato Adicional, contendo as
mudanças e adições feitas à Constituição do Império. Junto aos exemplares,
um ofício ordenava à Câmara que se fizessem publicar por editais de
maneira solene. Seguindo as determinações da presidência de Província, os
vereadores convidaram o Bispo arquidiocesano para assistir ao ato e
pediram aos povos para iluminar as casas. Manoel Julio de Miranda propôs
que se convidasse ao desembargador Mello e Souza 13.
Nos meses finais do ano de 1834 e durante todo o ano de 1835, não
foi registrada nas atas uma única indisposição entre a instância de poder
local e a Assembléia Legislativa. Na sessão ordinária de 14 de janeiro de
1835, “o senhor Bhering apresentou um esboço de representação que tem
de ser dirigida à Assembléia provincial desta província felicitando-a no ato
de sua instalação e prometendo-lhe toda coadjuvação desta Câmara”14.
Não custa lembrar que Bhering foi eleito deputado a essa Assembléia.
De fato, como já dito anteriormente, as Câmaras ficaram atreladas à
Assembléia Geral e não mais ao Conselho Geral de província, abolido com
o Ato adicional. Em outras palavras, a descentralização, no âmbito
regional, implicou a centralização em nível local. Segundo Miriam
Dolhnikoff, tanto os liberais quanto os conservadores estavam de acordo
sobre a necessidade de limitar o poder local; “foram os liberais que, no ato
adicional, submeteram as localidades ao governo da província”. 15 As
Câmaras, porém, já haviam sido subordinadas ao governo da província
com a Lei de 1828. A autora afirma ainda que “vale lembrar que, se os
liberais, por meio do Código de Processo Criminal promulgado em 1832,
favoreceram os potentados locais ampliando as funções dos juízes de paz,
AHCMM. Sessão extraordinária de 7 de setembro de 1834. Cód. 221.
AHCMM. 3ª sessão ordinária de 14 de janeiro de 1835. Cód. 221.
15 DOLHNIKOFF, Miriam. O Pacto Imperial: origens do federalismo no Brasil. São Paulo:
Globo, 2005, p. 463.
13
14
REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014.
185
não relutaram, por outro lado, em neutralizar o poder das Câmaras
Municipais”.16
As Câmaras Municipais não tiveram seus poderes neutralizados.
Perderam autonomia, mas não representatividade. Os vereadores da
Câmara assumiram outros cargos na administração local, como o próprio
cargo de juiz de paz, além de cargos no nível provincial, como deputados.
Ademais, os ocupantes dos cargos provinciais, como o de juiz municipal,
de promotor, de juiz de órfãos etc, eram escolhidos pela Câmara Municipal
em lista tríplice.
Não podemos nos esquecer de que era em nível local que se dava
um dos processos mais importantes da vida política do Império: as
eleições. Inclusive, a eleição de eleitor acontecia no prédio da Câmara,
diferentemente da eleição dos votantes, que se dava dentro da igreja
matriz.17 Os responsáveis por eleger os representantes em nível provincial
e, consequentemente, no âmbito geral, eram os membros da elite local, que
estavam, muitas vezes, dentro da Câmara Municipal. Apesar das reformas
da década de 30 do século XIX, a instituição de poder local continuou
sendo, como outrora, a “legítima representante”.
As atas das sessões da Câmara Municipal e a Leal cidade de Mariana
As atas da Câmara são fontes oficiais que acompanhavam o
cotidiano administrativo da cidade e a rotina do poder local. Essas fontes
possibilitam a análise dos diversos momentos políticos pelo qual a Câmara
Municipal passou. Quem redigia a ata era o secretário. Também era ele o
responsável por cuidar do arquivo. As atas têm um cabeçalho em que se
apresentam o dia e hora da sessão, geralmente entre 9 e 10 horas da manhã.
Aberta a sessão pelo presidente da Câmara, a ata da sessão antecedente era
lida, podendo ou não ser aprovada. Iniciava-se, então, a sessão do dia.
Por serem fontes oficiais elas podem reproduzir certas visões da
situação no poder em detrimento da oposição. Em outras palavras, o
pesquisador, em contato com essa documentação, pode ter acesso a apenas
uma visão dos fatos. Não só isso: o secretário pode acrescentar ou suprimir
trechos importantes. Apesar disso, estamos certos que as atas são
apropriadas para pensar a organização e o funcionamento da Câmara
Municipal.
16
17
Ibidem.
CAIXETA, 2012: 149
Dossiê CÂMARA MUNICIPAL
186
Em primeiro lugar, buscamos rastrear os assuntos que eram
levados até a Câmara, ou seja, sobre quais matérias versavam as atas.
Notamos que os temas eram os mais variados possíveis: solicitações de
pagamento de ordenados atrasados, problemas de abastecimento de água,
ruas sujas, cercas quebradas por animais, pedidos de pagamentos dos
expostos, professores solicitando material para suas aulas, bem como
ofícios de juízes de paz, da presidência da Província, do Conselho Geral de
Província. Nenhum assunto, porém, foi mais recorrente, do que a
preocupação dos vereadores com as obras públicas, as estradas e,
principalmente, as pontes. Em quase todas as atas, havia espaço para
queixa do péssimo estado das mesmas. Não é demais dizer que estradas e
pontes são lugares de passagem de cargas, de pessoas e de gêneros
alimentícios. A preocupação com estradas e caminhos também corresponde
à construção de uma infraestrutura essencial à construção da unidade
nacional, à criação do Estado Nação, além de condição de subsistência.
Outra questão a que ficamos atentos na leitura da fonte foi com
relação ao número de vereadores presentes nas sessões. O objetivo era
verificar se a ausência desses camaristas seria um sinal de desinteresse.
Constatamos que, na maioria das vezes, a sessão iniciava-se com número
igual ou superior a sete vereadores (lembrando-se, que para as cidades, a
Lei de 1828 estabeleceu um total de nove vereadores). Nos casos em que o
número não atingiu o mínimo de 5, para que a sessão ocorresse, os
vereadores eram chamados nas suas residências. Foi o que aconteceu na
sessão de 5 de novembro de 1832. Por haver apenas quatro vereadores,
convidou-se o capitão Lucindo Pereira dos Passos para servir na sessão e
chamaram-se os vereadores Gomes Pereira, José Joaquim Campos e Lopes
da Cruz para comparecer à reunião18. Foram poucos os registros que
informaram sobre cancelamento da reunião por falta de vereadores,
aproximadamente três em todo o período estudado.
Num segundo momento, optamos por fazer as leituras das atas
referentes ao ano de 1830, com o propósito de verificar como (e se) a
conjuntura conturbada do ano que antecedeu à abdicação de D. Pedro I
repercutiu na Câmara da Leal cidade de Mariana. Interessou-nos também
toda e qualquer notícia sobre a pessoa do Imperador ou pareceres que nos
permitissem inferir qual era o posicionamento dos camaristas. Sendo a
Câmara Leal, engajada que foi à adesão ao Imperador no contexto da
Independência do Brasil, esperava-se encontrar nas atas das sessões da
18
AHCMM. Sessão extraordinária de 5 de novembro de 1832. Cód. 214.
REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014.
187
Câmara manifestações de apoio à permanência de D. Pedro I em terras
brasílicas. Mas os tempos já eram outros, e a Leal Câmara de Mariana
demonstrou que seu título não se referia apenas ao monarca. Foi leal
também à Regência aceitando sua legalidade.
Antes disso, porém, na 5º sessão ordinária de 17 de dezembro de
1830, leu-se um ofício da Presidência de Província que comunicava “a
prazenteira notícia da vinda de Suas Majestades Imperiais a esta Província
e ensinando que se devem prestar todas as demonstrações de regojizo
próprias do respeito e acatamento”. O presidente da Câmara Municipal
“propôs acusar-se o recebimento deste ofício significando o prazer desde já
que [sic] concebem os Povos deste termo com a esperança de verem as
Augustas Pessoas Imperiais: o que foi aprovado...”.19 Quase um mês
depois, no dia 12 de janeiro de 1831, o presidente da Câmara expôs que
tinha certeza que já se encontravam nessa cidade o Imperador e sua esposa
e que, por isso, dever-se-iam arrumar as ruas, limpá-las, caiar a frente das
casas. A cidade de Mariana preparava-se para receber as Majestades
Imperiais com júbilo.
Se em janeiro o clima era de festa, em março adquirira outra
tonalidade: circulavam rumores sobre as pretensões anticonstitucionais do
Imperador. No dia 2 de março, leu-se um ofício do juiz de paz de Ponte
Nova20 pedindo à Câmara que fizesse extrair cópias da proclamação feita
por D. Pedro I “para que os povos se certifiquem do espírito constitucional
do imperador”.21 Assim, em março foram registradas nas atas da Câmara
questões que revelam a tensão que se fazia sentir naquela conjuntura – se
não podemos afirmar para a cidade, no geral, ao menos para os
administradores dela. Nesse sentido, na sessão extraordinária de 21 de
março de 1831, o camarista Esteves Lima, que servia de vereador suplente,
uma vez que o titular do cargo Manoel José de Carvalho22 havia pedido
AHCMM. 5ª sessão ordinária de 17 de dezembro de 1830. Cód. 206.
Sabemos que o ofício foi enviado pelo juiz de paz de Ponte Nova, mas não identificamos seu
nome. Esse é um dos exemplos da dificuldade de trabalhar com as atas. Nem sempre se
mencionavam os nomes dos titulares do cargo. As Atas de eleição, todavia, podem ajudar
nesse ponto. Elas estão disponíveis no AHCMM.
21 AHCMM. 3ª sessão de 2 de março de 1831. Cód. 206.
22 Os pedidos de licença de Manoel José de Carvalho estavam relacionados às visitas que fazia
à sua fazenda. “O senhor Carvalho pediu licença para se retirar para sua roça e que talvez não
possa vir na sessão ordinária de julho por ser ela na Freguesia do Presídio, e a Câmara
resolveu conceder-lhe, e que atendendo o estado “mortozo” do senhor Coelho, e criminoso o
senhor Esteve Lima, o senhor presidente oficie ao suplente que competir da lista geral para vir
tomar assento na sessão ordinária”. AHCMM. Sessão extraordinária de 12 de maio de 1832. Cód.
19
20
Dossiê CÂMARA MUNICIPAL
188
licença na 5º sessão ordinária, de 4 de março, por fortes dores na mão, fez a
seguinte indicação:
Havendo o Argos [(periódico da época)], número
sessenta e oito, espalhado doutrinas subversivas da
Ordem, propondo emendas à Constituição que
juramos, querendo invadir o poder executivo,
fingindo que sua opinião é da maior parte dos
habitantes desta Província, constando que esta
incendiária folha é escrita por um que habita nesta
cidade aonde sabemos que com muita pequena
exceção todos os seus honrados habitantes e do Termo
que compõem nada mais nem menos querem que a
Constituição jurada e que defenderemos até a última
gota de sangue; espalhando essa infame folha em
descrédito não só da mesma província, como
principalmente do Termo, em que ela se escreve,
exigindo esse escritor um fiel intérprete dos Mineiros,
e Órgão se sua vontade geral para reclamar mudanças
na Constituição, requeiro que esta Câmara faça
declarar ao público, e ao Governo, por ofícios, Editais,
e periódicos, que esta Câmara, em seu nome e de todo
o povo que representa, de tudo abomina as doutrinas
daquele Argos número sessenta e oito, e seus
antecedentes e conseqüentes, que é fiel ao juramento e
sempre será enquanto lhe restarem meios e forças;
que àquele escritor compete declarar perante o
governo quem são os de sua opinião; porque se não
deve comprometer a honra de um povo inteiro só
porque um ou outro, para fazer sua fortuna, quis
acarretar a desgraça sobre ele e sacrificar a pátria, a
honra e a fazenda de todos23.
O número 68 do Novo Argos, ao qual Esteves Lima se refere, versa
sobre várias mudanças na Constituição. Segundo o periódico, uma das
proposições mais obscuras do Art. 83 estava prevista no seu parágrafo 1º:
Não podem propor sobre interesses gerais da Nação. “Este artigo é tão obscuro
que, prevalecendo em qualquer uma das Câmaras o partido Ministerial,
uma só posposta dos Conselhos Gerais não será aprovada”. Diante disso, o
214. Nessa ocasião, Manoel Esteves Lima “estava criminoso”, provavelmente em função dos
motins em Santa Rita do Turvo. Sobre esse assunto, ver GONÇALVES, Andréa Lisly.
Estratificação social e mobilizações políticas no processo de formação do Estado Nacional Brasileiro:
Minas Gerais, 1831-1835. São Paulo: Editora Hucitec, 2008 (ver especialmente o capítulo 4).
23 AHCMM. Sessão extraordinária de 21 de março de 1831. Cód. 206.
REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014.
189
Argos propunha que se substituísse o Art 83 da Constituição pelo seguinte:
São atribuições dos Conselhos Gerais:
1º Promover o bem geral de suas respectivas
provinciais, decretando para esse fim as resoluções
convenientes.
2º Suspender o Presidente da Província, o
Comandante das Armas, o Bispo e os juízes de
Direito e mandar processá-los quando assim o
entendam conveniente e qualquer deles se tenham
constituído criminoso.
3º Fixar o número dos Representantes Provinciais na
Assembleia Geral.
4º Deliberar sobre impostos, precedendo informação
das Câmaras Municipais, tendo em vista o dever de
contribuir para as despesas gerais da Nação em
quota que for decretada pela Assembleia Geral24.
As divergências se estampavam nas páginas dos jornais e
repercutiam na Câmara. Estava claro, portanto, que o interesse era dar mais
autonomia ao poder legislativo, descentralizando as decisões do governo.
Segundo o historiador Marcello Basile, o interesse dos liberais moderados
era promover reformas político-administrativas para reduzir os poderes do
imperador, conceder maiores prerrogativas à Câmara dos Deputados e dar
autonomia ao judiciário. Era contra tudo isso que Esteves Lima daria “até a
última gota de sangue”. Afirma Basile:
Havia, ainda, um terceiro grupo, organizado logo no
início da Regência, os caramurus. Alinhados à vertente
conservadora do liberalismo, tributária de Burke,
eram contrários a qualquer reforma na Constituição
de 1824 e defendiam uma monarquia constitucional
firmemente centralizada, nos moldes do Primeiro
Reinado, chegando, em casos excepcionais, a nutrir
anseios restauradores.25
Sobre as demais reformas propostas pelo Argos, ver: O NOVO ARGOS. 01/03/1831. Nº 68.
Disponível em: Biblioteca da FAFICH/UFMG.
25 O segundo grupo que Basile define é o dos liberais exaltados. O pensamento central deste
grupo se manifestava no seguinte vocabulário político: soberania popular, pregação
revolucionária, cidadania plena, liberdade de imprensa, o fim gradual da escravidão e uma
relativa igualdade social. Ver: BASILE, Marcello. Linguagens, pedagogia política e cidadania:
Rio de Janeiro, cerca de 1830. In: SABINA, Gladys Ribeiro (Org.). Brasileiros e cidadãos:
modernidade política, 1822-1930. São Paulo. Alameda Casa Editorial: 2008, p. 207-224.
24
Dossiê CÂMARA MUNICIPAL
190
É importante ressaltar que as pretensões dos que propunham a
reforma da Constituição sofreram um duro golpe no desbaratamento dos
que conspiraram no Golpe de 30 de julho de 1832. Diante da recusa do
Senado em apoiar as reformas constitucionais requeridas por grande parte
da elite política brasileira, no sentido de maior descentralização
administrativa, e da sua recusa em aprovar a destituição de José Bonifácio
da tutoria de D. Pedro II, os moderados tramaram o golpe. O Senado era
visto como sustentáculo do conservadorismo, e muitas tentativas de
reforma política que lá entravam não saíam. Num momento de crise
generalizada,
agravada
pelo
crescimento
das
atividades
contrarrevolucionárias dos restauradores, cujo epicentro era identificado
em José Bonifácio, tutor do futuro Pedro II, os moderados intentaram o
golpe. A Câmara dos deputados, após a renúncia do ministério e dos
regentes, se declararia em Assembleia Nacional Constituinte e aprovaria
uma nova Constituição (conhecida como Constituição de Pouso Alegre),
que contemplava as reformas requeridas. Tudo foi tramado na Chácara da
Floresta, residência do padre José Custódio Dias. O golpe não foi vitorioso,
embora estivesse próximo de ser. Foi abortado por dissensões entre os
próprios liberais, por intervenção de Honório Hermeto Carneiro Leão.26
A indicação de Esteves Lima permite-nos inferir que o mesmo
comporia esse terceiro grupo, o grupo dos caramurus. Essa inferência é
confirmada pelos acontecimentos que eclodiram na capital mineira em
1833, a Sedição de Março27. Esteves Lima foi, portanto, uma liderança
restauradora. Por esse motivo, a crítica feita ao periódico se transforma em
crítica aos liberais. Antônio José Ribeiro Bhering, um político liberal, foi
redator de O Novo Argos. Nota-se, portanto, que é possível delinear grupos
distintos atuando nas vereanças.
Ver: PASCOAL, Isaías. José Bento Leite Ferreira de Melo, padre e político: o liberalismo
moderado no extremo sul de Minas Gerais. In: Varia História, Belo Horizonte, vol. 23, nº 37.
Jan/Jun 2007, p. 208-222. Disponível em:
http://www.scielo.br/pdf/vh/v23n37/v23n37a12.pdf.
27 Manuel Esteves Lima foi apontado como a principal liderança dos distúrbios em Santa Rita
do Turvo no ano de 1831. Em 1833, ele novamente aparece envolvido na Sedição de Ouro
Preto. A permanência daquelas lideranças envolvidas em 1831 nos acontecimentos do ano
1833 foi um dos elementos que fez com que a historiadora Andréa Lisly Gonçalves afirmasse
que a última foi um desdobramento da primeira. Para o perfil e participação de Esteves Lima
em tais motins, ver: GONÇALVES, Andréa Lisly. Estratificação social e mobilizações políticas no
processo de formação do Estado Nacional Brasileiro: Minas Gerais, 1831-1835. São Paulo: Editora
Hucitec, 2008 (ver especialmente o capítulo 4).
26
REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014.
191
As agitações que tomavam conta da Corte chegavam à cidade de
Mariana. E na sessão de 24 de março de 1831, Gomes Pereira fez uma
“enérgica indicação”, expondo,
o desassossego em que se acha a maior parte dos
habitantes desta cidade com boatos aterradores de
ereções de República, insultos a cidadãos por
Pasquins e algumas maneiras de Proclamações; um
fato de denúncia de haver encomenda de dois
bombons, supondo-se ser para sinal por serem
encomendados em segredo28
A notícia da Abdicação só foi registrada em ata 10 dias após o
evento, no dia 17 de abril. A Câmara de Mariana foi comunicada através de
um ofício do Presidente de Província que o Imperador havia abdicado à
Coroa em nome do seu filho, D. Pedro II, e que, a partir daquele momento,
governava o Brasil uma Regência Provisória em nome do futuro
Imperador. O ofício acrescentava ainda que:
O
Conselho
do
Governo,
verificada
a
Constitucionalidade de todo este procedimento,
resolvera o reconhecimento da dita Regência, e que se
participasse sua resolução a todas as Câmaras da
Província, recomendando-lhes que promovam o
quanto em si couber o esquecimento do passado e a
[?] de todas as forças para a tranquilidade da Pátria.29
Ao ler o ofício da Presidência de Província, o presidente da Câmara
Municipal de Mariana30 concluiu que:
AHCMM. Sessão extraordinária de 24 de março de 1831. Cód. 206. Procuramos saber o que
seriam os bombons consultando as versões dos dicionários de Raphael Bluteau, Morais e Silva e
Luiz Maria da Silva Pinto, todos disponíveis no site http://www.brasiliana.usp.br. No
entanto, não encontramos pistas.
29 AHCMM. Sessão extraordinária de 17 de abril de 1831. Cód. 206.
30 O presidente da Câmara era o vereador mais votado. Na vereança de 1829-1832, foi eleito
presidente o Tenente-coronel Cavaleiro da Ordem de Cristo e Advogado Fortunato Rafael
Arcanjo da Fonseca. CHAVES, Cláudia Maria das Graças; MAGALHÃES, Sônia Maria; PIRES,
Maria do Carmo (orgs). Casa de Vereança de Mariana: 300 anos de História da Câmara
Municipal. Ouro Preto: Editora da UFOP, 2008, p. 227. Na vereança seguinte, 1833-1836, foi
eleito Gonçalo da Silva Lima com 1.335 (mil trezentos e trinta e cinco) votos (VER QUADRO
1). O NOVO ARGOS. 17/11/1832. Nº 157. Ouro Preto-MG. Jornais Diversos. 1823-1833. Cx:
447. Disponível em: Biblioteca da FAFICH/UFMG. Porém, para cada sessão, era nomeado um
28
Dossiê CÂMARA MUNICIPAL
192
Por informação do Secretário, ainda se achavam
muitos ofícios para se enviarem aos juízes de paz e
Ordenanças com as cópias da Proclamação que o
senhor D. Pedro I, quando ainda era Imperador do
Brasil, havia feito no Ouro Preto, e que lhe parecia não
deverem ser mais remetidos vistas as circunstâncias
que têm ocorrido e sua abdicação da Coroa,
constando que este ato fora consequência da violação
da Constituição, querendo o Absolutismo. Foi
resolvido que se não fizessem tais remessas.31
Nenhum dos vereadores presentes na sessão deu parecer sobre o
assunto. Assinaram a ata os senhores Ignácio José Rodrigues Duarte, Rafael
Arcanjo da Fonseca, Manoel Francisco Silva da Costa, Coelho Bernardino
Reis e José Ferreira de Oliveira, todos eles titulares do cargo. A Abdicação,
portanto, não foi discutida na Câmara Municipal de Mariana. As reuniões
seguintes também não trataram dessa matéria e, não fossem as sedições,
como a que se levantou na capital da província de Minas Gerais, Ouro
Preto, em março de 1833, diríamos que a recomendação do Conselho de
Governo, para se promover o esquecimento do passado, tinha logrado
êxito. As sessões da Câmara continuaram registrando assuntos
relacionados à administração da cidade.
Às vezes, aparecia uma notícia ou outra de que a tranquilidade
pública estava ameaçada pelos desejosos de ver D. Pedro I novamente no
trono do Brasil, mas logo o assunto era interrompido porque a cidade
precisava consertar suas pontes e estradas, havia porcos e bêbados pelas
ruas. Esteves Lima e Gomes Pereira, vereadores da Câmara, defensores do
governo de D. Pedro I, não mencionaram uma única palavra sobre os
rumores da restauração do Trono do primeiro imperador. Esses dois
vereadores não estavam na sessão do dia 17 de abril quando a notícia da
Abdicação foi apresentada à Câmara. Em todo caso, eles voltaram às
sessões seguintes, e o silêncio continuou. Silêncio que se fez sentir no
registro das atas, mas que pareceu indicar a preparação da trama que, dois
anos mais tarde, arrebentaria em Ouro Preto, a Sedição Caramuru de 1833.
Esteves Lima e José Justino Gomes Pereira foram identificados como
sediciosos32.
presidente. Ou seja, é difícil dizer se se trata do presidente da Câmara ou o que estava
ocupando o cargo naquela sessão especificamente.
31 AHCMM. Sessão extraordinária de 17 de abril de 1831. Cód. 206.
32 GONÇALVES, Andréa Lisly. op.cit., p. 151-153.
REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014.
193
No dia 10 de junho, houve uma reunião urgente para tratar da
notícia vinda da Corte, apresentada pelo senhor presidente de Província,
Manoel Ignácio de Mello e Souza33, de que “os inimigos de nossa causa
tramam contra nossas vidas e fortunas”. A Câmara ficou de zelar pelo bem
e sossego públicos.34 Em 26 de julho de 1831, a Câmara recebeu uma
Proclamação da Assembleia Geral e da Regência afirmando que a Corte do
Império se achava em estado de perturbação. E que “nosso jovem
imperador, ora guardado pelos dignos representantes da Nação”, estava
em perigo. Apenas notícias. Nenhuma discussão. A Câmara apenas foi
informada dos acontecimentos que ocorriam na Corte. Nas sessões que se
seguiram a esta, não houve nenhuma notícia sobre D. Pedro I. Os
vereadores da Câmara continuaram seus trabalhos de administradores da
cidade, cuidando das estradas, pontes, presos, expostos etc. e, assim,
findou-se o ano de 1831, ano em que se assistiu à Abdicação de D. Pedro,
primeiro Imperador do Brasil.
As atas das sessões e as identidades políticas
No ano de 1832, foram lidos alguns ofícios enviados à Câmara e
registrados nas atas das sessões. Tais documentos nos permitem inferir
qual era o posicionamento político da instituição. Está registrado na ata:
Foi presente um ofício da sociedade promotora do
bem público sobre reformas da Constituição, e a
Câmara, reprovando inteiramente semelhantes
sentimentos, resolveu que o senhor presidente lhe
oficie que a Câmara rejeita clara e decisivamente os
criminosos meios propostos por tal sociedade, pois
que só se devem esperar as Reformas pelos meios
legais que os legisladores do Brasil julgaram
convenientes.35
Segundo Marcilaine Soares Inácio Gomes, a Sociedade Promotora
do Bem Público da Vila do Príncipe (Serro) foi criada pelo liberal exaltado
Teófilo Ottoni, em 2 de fevereiro de 1832, como espaço de mobilização
política em favor das reformas constitucionais descentralizadoras. O jornal
Mello e Souza tomou posse do no cargo de Presidente de Província em 22 de abril de 1831.
AHCMM. Sessão Extraordinária de 31 de maio de 1831. Cód. 206.
34 AHCMM. Sessão extraordinária de 10 de junho de 1831. Cód. 206.
35 AHCMM. Sessão extraordinária de 17 de março de 1832. Cód. 214
33
Dossiê CÂMARA MUNICIPAL
194
A Sentinela do Serro, inclusive, esteve vinculado à mesma Sociedade 36. A
reforma da Constituição era interesse tanto dos liberais exaltados quanto
dos liberais moderados. A diferença estava, porém, nos meios que se
intentavam empregar para tal fim. Nesse sentido, a Câmara de Mariana
condenou o ofício da Promotora do Bem Público por entender que os meios
propostos eram “criminosos”. No jornal O Universal, foi transcrito um
trecho da correspondência que nos oferece uma ideia do que era o centro
da proposta:
Deliberou convidar a todas as municipalidades e
sociedades patrióticas, não só desta como de outras
províncias, para que, no caso de que até o dia da
convocação da futura assembleia legislativa, não
tenha ainda passado ou tenha sido rejeitado no
senado o projeto de reformas Constitucionais, se
esforcem em comum acordo para que, nos respectivos
círculos eleitorais, se dêem poderes constituintes aos
futuros deputados para se reformarem a Constituição
[...] fazendo a reforma independente do senado [...] 37.
Provavelmente, o que a Câmara de Mariana (a proposta de Otonni
foi enviada a várias Sociedades e Câmara Municipais, tendo sido recebida
com críticas) julgou como “criminosos meios” era que se fizessem tais
reformas independentemente da decisão do Senado. O trecho da
correspondência registrada em O Universal nos leva à hipótese de que o
Golpe de 30 de julho de 1832, mencionado acima, pode ter sido preparado
tendo em vista a manobra planejada por Otonni meses antes.
A Câmara Municipal de Mariana, portanto, apresentava-se como
liberal-moderada. A sessão de março de 1832 diz,
Foi presente um ofício do secretário do Comitê
permanente da Sociedade Patriótica Marianense
convidando a esta Câmara para assistir ao Te-Deum
Ver: GOMES, Marcilaine Soares Inácio. Estado, política e educação em Minas Gerais: o caso
das sociedades políticas, patrióticas, literárias e filantrópicas (1831-1840). In: VI Congresso de
Pesquisa e Ensino de História da Educação em Minas Gerais. Belo Horizonte: UFMG, 2007, p. 1-14.
Disponível
em:
http://www.fae.ufmg.br/portalmineiro/conteudo/externos/4cpehemg/eixo2.html
37 O UNIVERSAL, n.669, 1832; OTONNI, 1916: 78. O trecho do documento foi citado por
Marcilaine Soares (GOMES, 2010: 65). A autora estudou o movimento associativo no período
regencial. Ao todo, ela identificou 38 associações entre 1831-1840. Ver: GOMES, Marcilaine
Soares Inácio. Educação e Política em Minas Gerais: o caso das sociedades políticas, literárias e
filantrópicas, 1831-1840. Belo Horizonte: FAE-UFMG, 2010 (Tese de Doutorado em Educação).
36
REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014.
195
que celebra no dia 7 de abril, e a Câmara aceitou o
convite, prometendo os vereadores de comparecer e
querendo dar provas de prazer com semelhante
festividade, resolveu-se que, à custa de seus membros,
se ilumine a frente dessa Casa na noite do dia seis.38
A Sociedade Patriótica Marianense instalou-se no dia 13 de agosto
de 1831. Para essa Sociedade, qualquer mudança na Constituição deveria
vir pela Lei. Muitos vereadores da Câmara de Mariana foram sócios e
membros da Comissão da Patriótica Marianense. Um de seus objetivos era
“promover com todas as forças a estabilidade da Monarquia Constitucional
Representativa, essa forma de governo, única que pode fazer a felicidade
do Brasil”.39
Na sessão do dia 23 de agosto de 1831, a notícia da instalação da
Sociedade foi comunicada à Câmara nas seguintes palavras:
O senhor presidente fez ver estar instalada nessa
cidade a Sociedade Patriótica Marianense e aprovados
seus estatutos que só tendem ao aumento da instrução
pública e beneficência dos pobres e enfermos e, por
não ter ainda uma casa em que o comitê faça suas
sessões, propunha conceder-se a sala das audiências
interinamente, não complicando seus trabalhos com o
da justiça. 40
A Câmara reconhecia a importância da Sociedade e, por esse
motivo, cedeu sua sala de audiência para as suas reuniões. Dois anos mais
tarde, a Sociedade pediu à Câmara a mesma sala de audiência para instalar
sua biblioteca41, que, vale dizer, não era pública.
A organização na Câmara: o trabalho em comissões
A leitura das atas da Câmara evidenciou que a edilidade se
organizava a partir da divisão de tarefas, por assim dizer. Todos os ofícios
AHCMM. Sessão ordinária de 31 de março de 1832. Cód. 214. A título de nota: Cada Sociedade
possuía o seu periódico. O da Patriótica Marianense era a União Fraternal que, segundo
Marcilaine Soares, foi redigido por Antonio José Ribeiro Bhering. SOARES, Marcilaine, op.cit.
p.148.
39 ESTRELLA MARIANENSE. 20 de agosto de 1831. N. 66.
40 AHCMM. Sessão de 23 de agosto de 1831. Cód. 214
41 AHCMM. Sessão extraordinária de 10 de setembro de 1833. Cód. 221
38
Dossiê CÂMARA MUNICIPAL
196
remetidos à Câmara eram distribuídos a uma Comissão, que os avaliaria e
daria o seu parecer. Os camaristas se organizavam em comissões, como a
de papel e ofícios, de obras, de contas. Tão logo a nova Câmara assumia a
legislatura, os vereadores se dividiam para a realização dos trabalhos. Por
exemplo, Gomes Pereira era membro da comissão de papéis e ofícios, na
vereança de 1829-1832. Quando a nova vereança tomou posse, em 7 de
janeiro de 1833, foram eleitos para membros da Comissão de papéis Ribeiro
Bhering, Manoel Julio de Miranda e João Paulo Barboza, todos eles
padres42. Para a comissão de contas, foi eleito José Justiniano Carneiro 43.
Os vereadores também se juntavam em comissões para resolver
variados assuntos. Na sessão extraordinária de 12 de fevereiro de 1833,
Bhering propôs que se criasse uma comissão para tratar do cemitério da
cidade. Foram eleitos ele próprio, Barbosa e Damasceno 44. A Câmara
também nomeava uma comissão para levar os cumprimentos da edilidade
a todo presidente de Província que tomava posse na capital, Ouro Preto.
Nomeava-se comissão para fazer vistorias e visitas aos prédios públicos.
Também era comum nomear responsáveis por cumprir as demandas de
certos ofícios. Por exemplo, o vereador Gonçalo da Silva Lima foi
encarregado pelos demais vereadores de responder ao ofício da presidência
que indagava à Câmara sobre a existência de bicho-da-seda na cidade e seu
termo. Com essa tarefa, o vereador deveria se informar do assunto e
conseguir o máximo de elementos possíveis para dar seu parecer sobre o
ofício. Diante da determinação vinda da presidência de Província, Silva
Lima apresentou o seguinte parecer:
encarregados de promover a descoberta do bicho-daseda e do modo de os pensar e fazer propagar, apenas
tivemos notícias de que em outros tempos os
houveram (sic) nesta cidade e que infelizmente se
perdeu a criação. Temos promovido a descoberta
recomendando a diversos patriotas fazendo saber o
prêmio prometido e do resultado daremos contas45.
AHCMM. 1ª sessão ordinária de 7 de janeiro de 1833. Cód. 221
AHCMM. 5ª sessão ordinária de 7 de janeiro de 1833. Cód. 221
44 AHCMM. Sessão extraordinária de 12 de fevereiro de 1833. Cód. 221
45 AHCMM. 6ª sessão ordinária de 19 de abril de 1834. Cód. 221. Na sessão de 14 de novembro,
porém, foram enviados à Câmara pelo juiz de paz de Tapera um ofício e “três casulos de
bicho-da-seda retirados dos arbustos de algodão”. E antes disso, no dia 7 de julho, “leu-se um
ofício do diretor da Agência Americana em Nova Yorque oferecendo à Câmara circulares,
desenhos e listas dos preços das melhores manufaturas daquela cidade e suas vizinhanças, o
42
43
REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014.
197
Assim, podemos afirmar que os vereadores se organizavam em
comissões para facilitar o trabalho de administração do município,
dividindo entre si as obrigações, que, como vimos, eram muito amplas.
Porém, é preciso dizer que os ofícios não eram distribuídos entre os
vereadores de maneira aleatória. Constatamos que, toda vez que era
necessário escrever para a presidência de Província ou para o Conselho
Geral de Província, e, depois de 1834, para a Assembléia Legislativa, o
vereador eleito era, na maioria das vezes, Antonio José Ribeiro Bhering. E
isso não se dava por acaso. Bhering era professor e redator de jornal.
Estava, portanto, apto a realizar a tarefa. Obviamente, não se tratava
apenas do mais apto, ou seja, essa era também uma escolha política:
Bhering era um liberal-moderado.
Podemos citar outro caso. Trata-se de Manoel Francisco
Damasceno, carpinteiro e pardo, eleito vereador no ano de 1833. Esse
vereador assumiu a vereança por vários mandatos consecutivos, na maioria
deles foi presidente da Câmara, ou seja, o vereador mais votado 46. Antes de
ser eleito vereador, ele já aparecia nas atas da Câmara como um perito, isto
é, alguém que tinha seu trabalho reconhecido pelos colegas e visibilidade
na cidade. Na sessão extraordinária de 13 de abril de 1832, leu-se o seguinte
ofício:
Foi presente um ofício do secretário do Conselho
Geral do dia 3 deste mês enviando a resolução pela
qual foi aprovada a proposta desta Câmara para fazer
a Ponte do Mainart no lugar da existente, e o senhor
presidente informou a Câmara que se inteligenciará
com o perito Manoel Francisco Damasceno para ir
com seu companheiro [fazer] o necessário exame, e
ficou a Câmara inteirada.47
que, aceitando a Câmara, resolveu fazer público e agradecer a referida oferta”. A Câmara,
portanto, incentivava o desenvolvimento de atividades econômicas.
46 O vereador Damasceno habitava o fogo que tinha por chefe sua mãe, Ana Jacinta da
Encarnação. Sua mãe era tecelã e sua irmã, rendeira. Antonio dos Reis, que também habitava o
fogo, era carpinteiro como Damasceno. Todos foram descritos na lista nominativa de 1831
como pardos. Ver: Banco de dados das listas nominativas da província de Minas Gerais.
CEDEPLAR/UFMG. Org. por Clotilde Paiva.
47 AHCMM. Sessão extraordinária de 13 de abril de 1832. Cód. 214. Na 5ª sessão ordinária de 6 de
julho de 1832, Teotônio de Souza Guerra Araújo Godinho se ofereceu para arrematar a ponte
do Mainart. O fiador da obra foi João Luciano de Souza Guerra. A informação é digna de nota,
uma vez que ambos se envolveram na Sedição de 1833.
Dossiê CÂMARA MUNICIPAL
198
Depois de eleito vereador, ele foi incumbido de cuidar de assuntos
relacionados às obras públicas. Na sessão extraordinária de 12 de
novembro de 1833, consta a informação de que Damasceno foi eleito para a
comissão que iria analisar, a pedido do juiz de direito da comarca, as
condições da cadeia da cidade. Feita a análise, o seu parecer foi de que seria
necessária a realização de obras, que se estenderiam por cerca de 30 dias.
Na prisão, somente se achava em condições de ser ocupado o xadrez, no
qual, segundo o vereador, caberiam entre 17 e 18 pessoas e também a
enxovia, que poderia acomodar 1248.
A formação de comissões contribuiu para a organização dos
trabalhos da Câmara revelando seu funcionamento. As atividades eram
exercidas por aqueles que tinham “autoridade” no assunto. Eram todos
vereadores, porém, cada um exercia uma função específica na edilidade.
Por esse motivo, encontramos Damasceno como o responsável por
vistoriar, analisar, avaliar e dar seu parecer sobre o conserto de pontes e de
obras públicas de maneira geral. Ninguém melhor do que um carpinteiro
experiente para realizar tal serviço. Também encontramos José Justiniano
Carneiro dando parecer sobre a situação das estradas. Justiniano Carneiro
foi juiz de paz de Tapera e Coronel da 2ª Legião de Guardas Nacionais.
Portanto, sua experiência como Coronel tornava-lhe apto a avaliar o estado
das estradas. E dessa maneira cada vereador exercia seu papel,
colaborando para o funcionamento da Câmara na gestão do governo da
cidade.
Por tudo que foi dito, podemos afirmar que a Câmara de Mariana
não perdeu seu prestígio e sua representatividade política. Tampouco foi
esvaziada de poder com o decreto que instituiu a Lei de 1828. Ser vereador
da Leal Câmara era um elemento de distinção e os camaristas souberam
utilizar desse status para se projetarem politicamente a outros níveis de
poder, nomeadamente o provincial e o geral.
A Câmara Municipal da cidade de Mariana apoiou o governo
imperial, sustentando praticamente todas as medidas propostas por ele,
como a Lei de 1828, as reformas liberais da década de 1830 e, por último, o
Ato adicional de 1834. Obviamente que havia aqueles vereadores que não
compartilhavam das mesmas identidades políticas, caso dos que se
envolveram na Sedição de Março de 1833. Mas, de maneira, geral, pode-se
dizer que a Câmara Municipal da primeira cidade de Minas Gerais possuía
48
AHCMM. Sessão extraordinária de 12 de novembro de 1833. Cód. 221
REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014.
199
uma tendência liberal-moderada. A Leal Câmara mostrou sua lealdade. Foi
leal à Regência.
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AHCMM. 6ª sessão ordinária de 17 de dezembro de 1831. Cód. 214.
AHCMM. Sessão de 21 de março de 1831. Cód. 206.
AHCMM. Sessão extraordinária de 7 de setembro de 1834. Cód. 221.
AHCMM. 3ª sessão ordinária de 14 de janeiro de 1835. Cód. 221.
AHCMM. Sessão extraordinária de 5 de novembro de 1832. Cód. 214.
AHCMM. 5ª sessão ordinária de 17 de dezembro de 1830. Cód. 206.
AHCMM. 3ª sessão de 2 de março de 1831. Cód. 206.
AHCMM. Sessão extraordinária de 12 de maio de 1832. Cód. 214.
AHCMM. Sessão extraordinária de 21 de março de 1831. Cód. 206.
AHCMM. Sessão extraordinária de 24 de março de 1831. Cód. 206
AHCMM. Sessão extraordinária de 17 de abril de 1831. Cód. 206.
AHCMM. Sessão Extraordinária de 31 de maio de 1831. Cód. 206.
AHCMM. Sessão extraordinária de 10 de junho de 1831. Cód. 206.
AHCMM. Sessão ordinária de 31 de março de 1832. Cód. 214. A
AHCMM. Sessão de 23 de agosto de 1831. Cód. 214
AHCMM. Sessão extraordinária de 10 de setembro de 1833. Cód. 221
AHCMM. Sessão extraordinária de 17 de março de 1832. Cód. 214
AHCMM. 1ª sessão ordinária de 7 de janeiro de 1833. Cód. 221
AHCMM. 5ª sessão ordinária de 7 de janeiro de 1833. Cód. 221
AHCMM. Sessão extraordinária de 12 de fevereiro de 1833. Cód. 221
AHCMM. 6ª sessão ordinária de 19 de abril de 1834. Cód. 221
AHCMM. Sessão extraordinária de 13 de abril de 1832. Cód. 214.
AHCMM. Sessão extraordinária de 12 de novembro de 1833. Cód. 221
Banco de dados das listas nominativas da província de Minas Gerais. CEDEPLAR/UFMG. Org. por
Clotilde Paiva.
Periódicos:
ESTRELLA MARIANENSE. 20 de agosto de 1831. N. 66.
O NOVO ARGOS. 01/03/1831. Nº 68. Ouro Preto-MG. Jornais Diversos. 1823-1833. Cx: 447.
Disponível em: Biblioteca da FAFICH/UFMG.
O NOVO ARGOS. 17/11/1832. Nº 157. Ouro Preto-MG. Jornais Diversos. 1823-1833. Cx: 447.
Disponível em: Biblioteca da FAFICH/UFMG.
Dossiê CÂMARA MUNICIPAL
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REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014.
201
O bom governo da municipalidade
Notas sobre a Câmara Municipal do Recife
e sua organização para a administração da cidade (1829-1849)
Williams Andrade de Souza
Resumo: Neste artigo discutiremos sobre a
organização interna da câmara municipal do Recife
nos anos de 1829 a 1849 e a ação dos seus agentes para
estabelecer o “bom governo da cidade”. Entrevemos
que a busca por uma administração sob os moldes da
normatização e civilidade, conforme prescreviam as
leis imperiais, eram marcas da ação da
municipalidade favorecendo-lhes influências e
importâncias para além das suas funções
governativas/administrativas, até mesmo políticas e
culturais, conforme conjeturamos.
Palavras-chave: Câmara Municipal do Recife,
organização, administração.
Abstract: In this article we discuss about the
organization of the Recife's House of Representatives
in 1829 and 1849 and its action to establish the socalled "good government of the city." His
administration
favored
them influence
and
importance beyond its governmental functions /
administrative, political and cultural perhaps, as we
conjectured.
Key words: Recife's House of Representatives,
organization, administration.
N
1o
Império Marítimo Português as Câmaras Municipais formavam
um dos pilares da sociedade colonia.1 Na base da estrutura
governativa implantada na América Portuguesa, tornaram-se as
mais híbridas dentre todas as instituições, exercendo funções
administrativas, judiciárias, fiscais, militares e eclesiásticas, assim como
intervindo no cotidiano das cidades e vilas em que atuavam. Assumindo
aspectos divergentes do previsto, chegando a ter um papel de vulto muito
BOXER, Charles Ralph. O Império Colonial Português, 1415-1825. São Paulo: Companhia das
Letras, 2002, pp. 286, 299.
1
Dossiê CÂMARA MUNICIPAL
202
maior que o idealizado pela legislação lusitana, transformaram-se
claramente em veículos dos interesses locais, com “vitalidade, poder de
influência e atuação nos núcleos urbanos que governavam” 2.
No entender de Oliveira Viana, eram elas os centros da agitação
por excelência dos partidos locais, e, em suas atividades administrativas,
sempre demonstravam o caráter partidário inerente ao seu governo 3. Ou
seja, eram instituições com características corporativas que atuavam em
prol dos interesses das elites ali alocadas e buscavam preservar os valores
comuns do grupo, através da proteção, das benesses mútuas, das trocas e
favores entre si. Isso implicava na busca pelo controle das relações de
poder, das atividades econômicas, dos cargos públicos, das disputar
eleitorais na localidade (heranças que não foram apagadas durante o
período imperial). Mas, como bem observou Charles Boxer, “seus poderes
foram drasticamente reduzidos pelas reformas da administração provincial
introduzidas pelo novo governo imperial” 4.
Nas interpretações dos autores Victor Nunes Leal, Caio Prado
Júnior e Raimundo Faoro, no período imperial, ocorreu a derrocada das
instituições coloniais e a lenta estruturação do país enquanto nação,
alargando-se o “poder” provincial, subtraindo-se a autonomia das
municipalidades5 pelas vias da lei, restringindo-se a competência das
SOUZA, George Félix Cabral de. Os homens e os modos de governanças. A Câmara Municipal
do Recife no século XVIII num fragmento de história das instituições municipais do império
colonial português. Recife, Gráfica Flamar, 2003, p. 17, 76, 83-4; cf.: PRADO JR., Caio. Evolução
política do Brasil e outros estudos. 7. Ed. São Paulo: Editora Brasiliense, 1971b, p. 298-340. Cf.:
SOUZA, George Félix Cabral de. O rosto e a máscara: estratégia de oposição da Câmara do
Recife à política pombalina. In: Actas do Congresso Internacional Espaço Atlântico de Antigo
Regime: poderes e sociedades. Lisboa, 2 a 5 de novembro de 2005, FCSH/UNL. Disponível em
www.institutocamoes.com, acessado em 25.01.2008.; e, BICALHO, Maria Fernanda. A cidade e
o império, o Rio de Janeiro no século XVIII – Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003;
WEHLING, Arno. Formação do Brasil colonial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1994, pp. 299-312.
3 VIANA, Oliveira. Populações meridionais do Brasil. Brasília: Senado federal, 2004, p. 217.
Segundo Charles Boxer, as Câmaras Municipais e as Misericórdias ajudaram a manter unidas
as diversas colônias portuguesas além mar, destacando-se de tal forma que quem queria viver
bem, à larga e com liberdade, devia tentar pertencer a uma delas, ou às duas. BOXER, 2002, p.
299.
4 BOXER, 2002, p. 299.
5 Municipalidade, Edilidade, Conselho, Senado, Vereança são termos utilizados para se referir
às câmaras, aos vereadores, ou às reuniões dos componentes daquela instituição.
2
REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014.
203
câmaras à matérias econômicas locais e proibindo-se que os vereadores
deliberassem sobre temas políticos provinciais ou gerais. 6
Esse processo foi instaurado a partir de 25 de março de 1824,
quando passou a vigorar a Primeira Carta Constitucional para o novo país.
Dos 179 artigos nela inscritos apenas três foram dedicados exclusivamente
às Câmaras Municipais. Mas, de acordo com Octaciano Nogueira, ela
“representou um enorme avanço sobre a concepção colonial das funções
das Câmaras que passaram a reger a vida municipal.”7 A partir de então,
ficava desenhada a limitação do poder municipal às questões do governo
econômico8, inclusive sua relação de dependência aos Conselhos (depois,
Assembleias) provinciais9.
A partir daquela década, novos atores e instituições foram sendo
introduzidos no xadrez das relações de poder, obrigando as
municipalidades a aprimorar suas ações de governo da cidade dentro dos
limites legais impostos, e, por meio de um leque cada vez maior de
obrigações e intervenções no cotidiano citadino, (re)montar e/ou preservar
uma teia de relações capaz de garantir velhos privilégios na localidade.
Conforme bem observou Adriana Pereira Campos, no plano
político as leis liberais do Império brasileiro buscaram a continuidade e o
aceleramento do controle sobre os poderes locais. A criação e
regulamentação dos Juizados de Paz em 1827, por exemplo, foi um desses
6ALENCASTRO,
Luiz Felipe de. Vida privada e ordem privado no Império. In:
ALENCASTRO, Luiz Felipe de (Org.). História da vida privada no Brasil. São Paulo: Companhia
das Letras, 1997, p. 17.
7 NOGUEIRA, Octaciano. Constituições Brasileiras: 1824. Brasília: Senado federal e Ministério
da Ciência e tecnologia, Centro de Estudos Estratégicos, 2001, p. 33.
8 Entenda-se “governo econômico” como um tipo de governo que consistia em um grande
número de práticas e ações emanadas da Câmara municipal visando ordenar, disciplinar as
relações sociais desenroladas no espaço urbano cujo fim era “garantir o bem comum da urbe”.
Segundo Leandro Calbente, “econômico se refere ao governo da casa, ao modelo de condução
do governo à moda da condução da casa”, assim, “os assuntos da cidade deveriam ser
conduzidos segundo o modelo do governo doméstico”. CÂMARA, Leandro Calbente.
Administração colonial e poder: a governança da cidade de São Paulo (1765-1802). Dissertação
(Mestrado em
História) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 2008, p. 20, 96, 23, 101, 111 e 162.
9 O artigo 167 propunha a criação de câmaras para todas as vilas e cidades do império,
competindo a elas o governo econômico e municipal nos espaços de sua atuação. No art. 168
confirmou-se a eletividade nas instituições. Já o último, artigo 169, determinou a posterior
elaboração de uma lei regulamentar que normatizaria “o exercício de suas funções municipais,
formação de suas posturas policiais, aplicação de suas rendas, e todas as suas particulares e
úteis atribuições.” Cf. art. 82. NOGUEIRA, 2001, p. 33.
Dossiê CÂMARA MUNICIPAL
204
mecanismos que, além de obliterar o poder de disciplina/político das
municipalidades, ampliou a participação popular no processo de escolha
dos juízes leigos e vereadores, possibilitando, portanto, a integração dos
cidadãos no jogo político sem a intervenção ou dependência direta de
outras figuras ou instituições10.
No ano seguinte foi promulgada a lei regulamentar que ficou
conhecida como o Regimento das Câmaras Municipais. Por meio dela o
governo imperial normatizou e deu novos contornos às municipalidades,
limitando sua autonomia e dando-lhe um caráter puramente
administrativo. Entretanto, o regimento representou um avanço ao definir
claramente as normas para estruturação e o funcionamento dessas
instituições.
Composto por noventa artigos, dispostos em cinco títulos, ele
versava sobre a “forma da eleição das Câmaras”, as “funções municiais”, as
“posturas policiais”, a “aplicação das rendas”, “dos empregados” –
rompendo com os padrões pouco estruturantes do período colonial,
apresentava-se como um modelo de racionalização para a organização e o
governo municipal. Na percepção de Raimundo Faoro, uma normatização
baixada do governo central para que os municípios com seus vereadores e
juízes não se perdessem no exercício de atribuições mal delimitadas. 11
A partir de então se reservava às câmaras as competências
administrativas referentes à “criação de normas urbanísticas e construtivas,
salubridade pública, assistência social e regulamentação das normas de
trabalho urbano.” 12 Cabendo-lhe apenas a elaboração das posturas
policiais, as quais deveriam passar pelo crivo do Presidente da Província.
Nesse processo, as câmaras municipais foram absorvidas pelo poder
provincial, estabelecendo-se uma hierarquização entre o governo da
província e do município13.
CAMPOS, Adriana Pereira. Magistratura leiga no Brasil independente: a participação
política municipal. In: CARVALHO, José Murilo [et al.]. Linguagens e fronteiras do poder. Rio de
Janeiro: Editora FGV, 2011, pp. 257-271.
11 FAORO, Raimundo. Os donos do poder: formação do patronato político brasileiro. 12. ed. Rio
de Janeiro: Globo, 1997, p. 177.
12 ARRAIS, Raimundo. O pântano e o riacho: a formação do espaço público no Recife do século
XIX. – São Paulo: Humanitas /FFLC/USP, 2004, p. 123.
13 SOUZA, Maria Aparecida Silva de. Construindo a “nação brasiliense”: Poderes locais e
identidades políticas na Bahia, (1815-1831). Almanack Braziliense, n. 02, nov. 2005, p. 118.
Disponível em: http://www.almanack.usp.br/PDFS/2/02_ informes_2.pdf, acessado em:
30.11.2010. A “intervenção” provincial nos assuntos municipais já assinalada no Regimento de
1828, foi ratificada em 1834 por meio do Ato Adicional que legitimou um controle maior do
governo provincial sobre as municipalidades no Brasil. Ele estabelecia a criação de
10
REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014.
205
Percebe-se, portanto, que no processo de organização do Estado
brasileiro na primeira metade do XIX houve uma tentativa de cercear as
funções políticas das municipalidades alinhando-as às prerrogativas do
Estado, em contrapartida realizou-se uma ratificação de suas funções
governativas, o que ampliava suas possibilidades de intervenção no
cotidiano das cidades e vilas do Império. Portanto, para determinada elite
local interessada em pertencer aos quadros da municipalidade, era preciso
desenvolver novas táticas, aprimorar as atribuições e potencializar as ações
administrativas camarárias, fazendo-as mais eficientes para se poder
angariar dividendos positivos dentro da conjuntura instaurada. Ou seja, se
os interessados quisessem auferir vantagens nas Câmaras, preservar velhas
regalias ou conquistar outras tantas, deveriam buscá-las dentro do viés
imposto pelas leis imperiais, fazendo-se as devidas apropriações e
adaptações em prol de seus interesses, fossem eles políticos, econômicos,
simbólicos, ou qualquer outro.
Tomando como objeto de pesquisa a Câmara Municipal do Recife
na primeira metade do século XIX, destacamos os trabalhos dos agentes
camarários para organizar a instituição internamente e estabelecer o
chamado “bom governo da cidade”. E, nesse contexto, entrevemos a
rearrumação administrativa impetrada pela municipalidade como um
caminho necessário para a ampliação das influências e importâncias para
além das suas funções governativas/administrativas, quiçá políticas e
culturais, conforme conjeturamos.
Até a aurora do ano de 1829 a Câmara Municipal do Recife era
organizada e funcionava de acordo com as regras e tradições herdadas do
Assembléias legislativas para as províncias, com funções deliberativas e normativas sobre a
polícia e economia municipal e as despesas e empregos municipais, precedendo propostas das
câmaras. A interpretação de alguns dos artigos do Ato Adicional, feita pela Lei número 105,
de 12 de maio de 1840, não mudou muito a situação das municipalidades. Só para citar um
exemplo, em seu primeiro artigo a lei apenas explicava a palavra “municipal” e “polícia”,
ambas se referindo à administração municipal, mas sem retirar o caráter de dependência
dessas instituições às Assembleias Provinciais. Cf.: CAMPOS, Maristela Chicharro de. O
governo da Cidade: elites locais e urbanização em Niterói (1835-1890). Tese (Doutorado em
História), Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2004, pp. 39-44; Cf.: NOGUEIRA, 2001,
pp. 107-116; SLEMIAN, Andrea. Sob o império das leis: Constituição e unidade nacional na
formação do Brasil (1822-1834). Tese (Doutorado em História) – Universidade de São Paulo,
São Paulo, 2006; DOLHNIKOFF, Miriam. O pacto imperial: origens do federalismo no Brasil do
século XIX. São Paulo: Globo, 2005.
Dossiê CÂMARA MUNICIPAL
206
período em que o Brasil era parte do Império Marítimo Português 14,
cumprindo os vereadores os seus afazeres cotidianos sem aparentes
percalços. Mas, aquele ano foi um divisor de águas para aquela instituição
no que se refere à sua organização interna, funcionamento e administração
da cidade. Em 1828 a escolha dos vereadores que assumiriam a legislatura
anual ocorreu sob os mesmos moldes do período colonial: eleição do
pelouro15. No dia marcado para dar posse à nova municipalidade, sete de
janeiro de 1829, foi lido um ofício do mês anterior pelo qual o Presidente da
Província determinava o segundo domingo de fevereiro para se proceder
as eleições dos vereadores e juízes de paz na conformidade da Lei de 1º de
outubro de 1828. Com dúvidas se deveriam prosseguir ou não com o
expediente previsto e dar a dita posse conforme o antigo costume, ou
esperar a realização de novas eleições, os vereadores oficiaram ao dito
presidente para ele declarar o que lhe parecesse sobre aquele negócio16.
A morosidade na comunicação ou desencontro das informações
entre as instituições e autoridades provocara a questão, mas tratava-se de
um problema muito comum no período em tela. No caso, a última sessão
ordinária da Câmara Municipal do Recife ocorreu no dia 20 de dezembro
de 182817 e a comunicação do presidente da província foi enviado
posteriormente, no dia 30 de dezembro, e só foi lida em 7 de janeiro,
exatamente na data em que ocorreria a posse dos novos vereadores à moda
antiga. Ao remeter-lhe o ofício pedindo esclarecimentos, os vereadores
endossaram o documento dizendo não querer agir deliberadamente
segundo o costume, mas “marchar em conformidade com a [nova] lei” 18,
buscando assim revestir de legitimidade as ações camarárias, indicando
14Ou
seja, continuava “presa” às antigas normas. As Ordenações, Leis e Decretos promulgados
pelos Reis de Portugal até 25 de abril de 1821 continuariam válidos durante o Império
enquanto não fossem revogados ou substituídos. Cf.: PORTUGAL. Ordenações Filipinas.
Código Filipino, ou, ordenações e Leis do Reino de Portugal: recopiladas por mandado d‟elRei D. Felipe I. – Ed. fac-similar da 4ª ed., segundo a primeira, de 1603, e a nona, de Coimbra,
de 1821 / por Cândido Mendes de Almeida. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial,
2004, p. LXXV.
15 Modelo de eleição baseado no sorteio anual das listas dos homens aptos para exercerem a
vereança. Cf.: SOUZA, George Félix Cabral de. Elite y ejercicio de poder en el Brasil colonial: la
Cámara Municipal de Recife (1710-1822). Tese (Doutorado em História) – Universidad de
Salamanca, Salamanca, 2007, pp. 196-7.
16 Termo de Vereações de 07.01.1829. Livro de Vereações da Câmara Municipal do Recife, n. 7,
(1829-1833), IAHGP.
17 Termo de vereação de 20.12.1828. Livro de Vereações da Câmara Municipal do Recife, n. 7,
(1829-1833), IAHGP.
18 Ofício de 07.01.1829, Câmaras Municipais – Recife, 1829, APEJE.
REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014.
207
uma ligeira concordância às prerrogativas do Império. A adaptação à lei de
1º de outubro de 1828 foi, a partir de então, uma característica marcante no
discurso dos vereadores, e um importante expediente de apropriação e
barganha para alcançar seus anseios.
O presidente da província orientou a observação do Regimento dos
Corpos Municipais das Ordenações Filipinas até que se instalassem as
novas Câmaras. No dia 10 de janeiro tomaram posse o 1º Vereador,
Thomaz José da Silva, o 2º, Antônio José Pires e o 3º, José Ramos de
Oliveira sob as velhas regras e costumes, ficando eles nos cargos por
poucos dias19. Dirimidas as dúvidas, contudo, os vereadores sabiam que
após as eleições marcadas para o 2º domingo de fevereiro de 1829 na
conformidade da lei e a efetiva posse dos que saíssem eleitos, estariam
diante de um novo desafio: se ajustar às normatizações do novo
Regimento. Aliás, o presidente da província não abriu mão de enfatizar o
“novo” caráter atribuído às Câmaras Municipais. Para ele, elas seriam
“novas” porque pela Lei de 1828 tais instituições se organizariam “na
forma da Constituição do Império” e não mais pelo costume anterior,
devendo elas, portanto, se adequarem às prerrogativas de um Estado que
começara a ensaiar feições de moderno. Claro que o governo provincial via
com bons olhos tal conjuntura, pois que ela teoricamente limitava os
poderes locais, submetendo-os à autoridade provincial.
Na primeira semana de janeiro a Câmara Municipal recebeu do
presidente da província um exemplar da lei de 1º de outubro de 1828 e, no
final do mês, oito exemplares do aditamento às Instruções de 1828 (Decreto
de 1º de dezembro de 1828) para as eleições das Câmaras municipais e
juízes de paz, com a ordem de que os vereadores do Recife enviassem
aqueles exemplares aos colégios eleitorais nas Freguesias dos Distritos para
que por tais regulamentos se realizassem as eleições e se formassem as
novas Câmaras20. Era preciso marcar os limites de atuação das instituições
camarárias, foi isso que se buscou fazer em Pernambuco naqueles idos.
A princípio, conforme podemos notar, o presidente da província
estava preocupado com as eleições daquele ano, mas no decorrer do tempo,
cobrou da Câmara Municipal do Recife o cumprimento das normas do
regimento de 1828. Em seu Art. 2º, a lei dizia que os membros das Câmaras
Termo de Vereações de 10.01.1829. Livro de Vereações da Câmara Municipal do Recife, n. 7,
(1829-1833), IAHGP; Ofício, 08.01.1829. Ofícios da Presidência, 1829, IAHGP
20 Ofício de 05.01.1829, Documentos avulsos, APEJE; Ofício 29.01.1829, Ofícios da Presidência,
1829, IAHGP.
19
Dossiê CÂMARA MUNICIPAL
208
Municipais seriam eleitos de quatro em quatro anos, no dia 7 de setembro
nas paróquias e nos lugares que as Câmaras designassem, sendo o pleito
anunciado quinze dias antes por meio de editais. Completando com o Art.
16, dizia que no dia 1º de dezembro os vereadores eleitos enviariam à
Câmara os seus títulos, conferidos e parecendo legais, o Secretário e o
Escrivão informariam aos mesmos vereadores o dia do juramento e posse;
estes últimos deveriam se apresentar à Câmara no dia 7 de janeiro e
prestarem juramento pela maneira seguinte: “Juro aos Santos Evangelhos
desempenhar as obrigações de vereador da cidade ou vila de tal, de
promover quanto em mim couber, os meios de sustentar a felicidade
pública”. Essas datas não chegaram nem a vigorar no Recife, pois o decreto
de 1º de dezembro de 1828 que deu as instruções para as eleições das
Câmaras Municipais e dos Juízes de Paz e seus Suplentes, em seu Art. 1º
determinou que tais eleições fossem feitas em todas as Províncias do
Império, exceto na do Rio de Janeiro, no dia que os seus Presidentes
designassem. Assim, os procedimentos seriam os mesmos, mas as datas
ficariam sob o encargo do presidente da província, o qual as escolheria
quando lhe parecesse conveniente, ou seja, no momento que lhe fosse mais
favorável para travar os pleitos eleitoreiros da época.
De posse da lei e sob as ordens do presidente da província
procedeu a eleição dos vereadores na conformidade do novo Regimento.
No segundo domingo de fevereiro de 1829, os votantes 21 se reuniram nos
lugares designados pela Câmara, entregaram ao presidente uma cédula
com sua respectiva assinatura contendo o número de nomes de pessoas
elegíveis correspondentes ao dos vereadores que se havia de eleger,
fechando-a com o rótulo: “Vereadores para a Câmara da cidade do
Recife”.22 Após a votação a mesa declarou a quantidade das cédulas e com
ofício as remeteu à respectiva Câmara.
Não demorou e em 7 de fevereiro a edilidade mandou “afixar
editais para constar ao público que no dia nove do corrente se havia de dar
princípio a apuração dos votos para os vereadores da Câmara” 23, conforme
Podiam votar e serem votados nas eleições para vereadores os que tivessem voto na
nomeação dos eleitores de paróquia, ou seja, os que se enquadrassem nos artigos 91 e 92 da
constituição de 1824. Cf. NOGUEIRA, Octaciano. Constituições Brasileiras: 1824. Brasília:
Senado federal e Ministério da Ciência e tecnologia, Centro de Estudos Estratégicos, 2001, p.
91.
22 COLEÇÃO das Leis do Império do Brasil de 1828. Rio de Janeiro: Tipografia Nacional, 1878,
p. 75.
23 Termo de Vereações de 07.02.1829. Livro de Vereações da Câmara Municipal do Recife, n. 7,
(1829-1833), IAHGP.
21
REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014.
209
obrigava a lei. Com atraso, no dia 11 de fevereiro de 1829 deu-se princípio à
apuração dos votos que definiriam os nove vereadores que comporiam a
nova Câmara, tudo isso feito a portas abertas. Daquela apuração os mais
votados seriam os vereadores e o que obtivesse no total maior número de
votos deveria ser o presidente.
Eleitos, informados e regulamentados documentalmente os novos
vereadores deveriam se apresentar à Câmara no dia designado a fim de
prestarem juramento e tomar posse no referido cargo. Foi o que aconteceu
no dia 23 de maio de 1829, quando “compareceram os vereadores eleitos
para servirem nesta Câmara na conformidade da lei do 1º de outubro de
1828”24. Todo esse procedimento era necessário e se repetiria a cada eleição.
Formada a nova Câmara, era preciso se organizar e atuar em
conformidade com o estabelecido na dita lei. A partir de então percebemos
que os novos vereadores e funcionários da Câmara procuraram observar e
organizar a instituição de acordo com as determinações da lei que durante
todo o Império lhes regeria, e, dentro desse processo, parece-nos, buscaram
apropriar-se das brechas legais presente na legislação para tentar preservar
seu “lugar de fala”, barganha e atuação mais racionalizada e eficiente na
localidade, de forma a atender e manter os seus interesses peculiares e
manter a ordem estabelecida. Aquela poderia ser uma boa estratégia para
encontrar novos caminhos e contornar possíveis limitações para se
estabelecer novas relações de força na localidade. Dentro dessa perspectiva,
o veterano vereador Felipe Neri Ferreira argumentou na recém instalada
Câmara que cumpria aos que a compunha o dever de observar ipsis litteris
a nova lei25.
No seu entender, para cumprir com suas novas atribuições era
indispensável à edilidade recifense munir-se primeiro que tudo das
Instruções de 1828, somente assim se habilitariam das qualidades
necessárias “as quais ou de todo nos faltam, ou as temos de tal modo
incompletas que mal nos pode seguir de guia na carreira que vamos
instar”. Se a elite camarária não concordou na íntegra com tudo que a lei
Cf.: COLEÇÃO, 1878, pp. 76-77; Decreto de 1º de dezembro de 1828 – Dá instruções para as
eleições das Câmaras Municipais e dos Juízes de Paz e seus Suplentes. In: Coleção das Leis do
Império
do
Brasil
(1808-1889).
Disponível
em
http://www2.camara.gov.br/atividadelegislativa/legislacao/publicacoes/
do
império.
Acesso em 20 de dezembro de 2010; Termo de vereação e posse aos novos vereadores de
23.05.1829. Livro de Vereações da Câmara Municipal do Recife, n. 7, (1829-1833), IAHGP.
25 Ata da 1ª sessão da Câmara Municipal desta cidade, 25.05.1829. Livro de Vereações da
Câmara Municipal do Recife, n. 7, (1829-1833), IAHGP.
24
Dossiê CÂMARA MUNICIPAL
210
dispunha, ao menos procurou lançar mão dela em seus discursos e ações
inclusive na hora de se opor a alguma norma vinda do PP. Isso,
obviamente porque a lei definia o que era e como deveria ser a gestão da
instituição e os caminhos a serem percorridos para a manutenção das
relações de poder na localidade.
Assim, em termos de funcionamento, a partir daquela data (23 de
maio de 1829) a edilidade recifense deveria realizar por ano “quatro sessões
ordinárias de três em três meses, no tempo que elas marcarem”, durando
os dias que fossem necessários (nunca menos que seis), não excedendo
mais de quatro horas cada reunião. Podendo ser convocada a Câmara
extraordinariamente em caso de negócio urgente. Na prática, os encontros
da Câmara Municipal do Recife eram mensais e o número de vereações era
variável 26.
Nos dias marcados para o princípio de cada uma das sessões, os
vereadores se reuniam às nove horas da manhã na casa da Câmara, de
portas abertas e havendo assentos para os espectadores. O presidente dava
início e fechamento às sessões nas quais os vereadores deliberavam e
votavam sobre questões pertinentes, mantendo-se sempre a decência,
ordem e civilidade e o que melhor conviesse aos interesses do município,
conforme a lei.27 Nesse expediente, registravam as ações, informações,
documentos das eleições, escrituras, acontecimentos, reclames populares,
solicitações, entre outros, em livros, papeis, atas, etc. e guardavam os
documentos nos cofres e armários, que compunham, assim, as partes
necessárias de seu arquivo.
Diante desse desafio a edilidade recifense precisava de início
organizar os empregados municipais, a saber: Secretário, Procurador,
Porteiro, Fiscais, que, segundo os doze artigos do Título V da lei de 1828
seriam nomeados juntamente com seus suplentes. Esses empregados
deveriam receber uma gratificação pelos serviços prestados e deviam
auxiliar a edilidade na administração do município e normatização social e,
na maioria das vezes, o trabalho de um estava diretamente ligado ao bom
desempenho do outro. Os homens de governo apelavam para que tais
empregados fossem pessoas de boa índole, organizadas, obedientes,
zelosas, eficientes, ou seja, carregassem os atributos da polidez e civilidade.
Tabela 1 - Das vereações da Câmara Municipal do Recife (1825-1849). In: SOUZA, Williams
Andrade. Administração, normatização e civilidade: a Câmara Municipal do Recife e o governo da
cidade (1829-1849). Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal Rural de
Pernambuco, 2012.
27 COLEÇÃO, 1878, pp. 78-79.
26
REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014.
211
Comecemos por aquele que deixou registradas as atas de que agora
nos valemos para compormos parte deste trabalho: o Secretário da Câmara.
Esse empregado era o antigo Escrivão. Segundo o Regimento, a seu cargo
estava a escrituração de todo o expediente da Câmara, organização e
guarda de seus livros, assim como, emissão de certidões que lhe fossem
pedidas sem precisão de despacho, recebendo emolumentos por elas, além
da gratificação anual e proporcional ao trabalho realizado e paga pelas
rendas do Conselho. Este devia ser homem de bem, escrever com acerto,
ser zeloso com a escrituração, conservação, guarda, ordem e segurança dos
papéis da Câmara. Uma importante tarefa sua era fazer, por meio do
porteiro e do seu ajudante, a remessa dos ofícios e a afixação dos editais,
posturas etc.28 Ou seja, passava pelas mãos dos secretários, entre outras
informações, as notificações das regras de convívio que seriam publicadas
para a sociedade.
O Procurador deveria se nomeado por quatro anos. A ele competia
a arrecadação e aplicação das rendas e multas destinadas às despesas do
Conselho; demandar perante os Juízes de Paz a execução das posturas e a
imposição das penas aos infratores; defender os direitos da Câmara perante
a Justiça; dar conta da receita e despesas camarárias trimestralmente nas
sessões do órgão. Para isso, receberia 6% de tudo quanto fosse arrecadado,
salvo se este rendimento fosse superior ao trabalho executado, quando a
Câmara convencionaria com ele a gratificação merecida 29. Este era um
empregado muito importante para a edilidade, tendo em vista que a ele
competia uma tarefa que movimentava capital, envolvia bens da Câmara,
dava lucros para a instituição e para o próprio nomeado. Além disso, as
sanções das posturas municipais dependiam de sua atuação, portanto, ele
poderia cumprir um importante papel no processo de normatização da
sociedade impetrado pela municipalidade.
Na execução das atribuições uma verdadeira teia de comunicação e
ação interligava os trabalhos dos empregados da Câmara Municipal do
Recife. Por exemplo, quando ocorria uma infração das posturas policiais, o
fiscal de freguesia anotava o fato, informava ao Porteiro da Câmara ou a
um dos seus ajudantes; estes, por sua vez, notificavam ao Procurador que
deveria comparecer pessoalmente perante o Juiz de Paz para lhe requerer a
punição aos infratores, mas nem sempre ou necessariamente nessa ordem.
Quando o problema fosse da alçada das Justiças Ordinárias, o Procurador
28
29
COLEÇÃO, 1878, p. 86.
COLEÇÃO, 1878, pp. 86-87.
Dossiê CÂMARA MUNICIPAL
212
deveria constituir Advogado e Solicitador, vigiar o bom andamento da
causa e contribuir com as despesas necessárias. Nesse contexto, esse
empregado era um importante interlocutor da Câmara Municipal comas
demais autoridades.
Do Porteiro, no artigo vinte e oito está disposto apenas que ele
também seria nomeado “e sendo necessário, um, ou mais Ajudantes deste,
encarregados da execução de suas ordens, e serviço da casa com uma
gratificação paga pelas rendas do Conselho”, proporcional ao trabalho
prestado. O deputado Diogo Antônio Feijó, que escreveu uma espécie de
cartilha para as Câmaras do Império, deu mais esclarecimentos sobre as
funções do porteiro. Segundo ele esse empregado devia “ser pessoa limpa,
capaz de desempenhar com seriedade e exação serviço de que for
encarregado pela Câmara e Fiscal”. Cumpria organizar a entradas das
pessoas nas sessões para encaminharem seus respectivos requerimentos e
ofícios, atender aos chamados da mesa, ir à casa do fiscal de freguesia nos
dias e horas marcadas, servindo-se de um ou mais ajudantes, também
nomeados, para executar as ordens do fiscal 30.
Dentre os empregados das câmaras municipais, os fiscais de
freguesias e seus suplentes eram os que tinham, ou pelo menos deveriam
ter, uma atuação mais próxima da população. Os ditos fiscais eram
autoridades nomeadas pelas câmaras municipais para servirem por quatro
anos em cada freguesia das cidades ou vilas existentes. A intervenção
camarária no cotidiano das pessoas ocorria principalmente através da
fiscalização destes empregados. A eles cabia vigiar a observância das
posturas policiais, promover “a sua execução pela advertência aos que
forem obrigados a elas, ou particularmente ou por meio de editais.”
Deveriam também acionar o Procurador para o desempenho de seus
deveres; executar as ordens da edilidade e comunicar-lhe o estado de sua
administração servindo-se do Secretário e do Porteiro para o dito
expediente. Seriam ainda responsáveis pelos prejuízos ocasionados por sua
negligência, podendo até serem multados ou demandados pelo Juiz de Paz
em caso de gravidade e continuidade de arbitrariedades prejudiciais à
Câmara. Aos Fiscais de Freguesias das capitais das províncias ficava
COLEÇÃO, 1878, p. 87. FEIJÓ, Diogo Antônio. Guia das câmaras municipais do Brasil no
desempenho de seus deveres por um deputado amigo da instituição. Rio de Janeiro, Typografia
D‟Astréa, 1830, p. 10.
30
REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014.
213
estatuído o recebimento de uma gratificação paga pelas rendas do
Conselho e aprovada pelo Conselho Geral. 31
O Fiscal de Freguesia era um importante empregado da Câmara,
pois comunicava as necessidades observadas na cidade e executavas as
ordens e posturas municipais. Por ele se faria as arrematações, alienações, o
arrendamento dos bens do Conselho; se daria as licenças e se obteria todas
as informações necessárias para as intervenções na cidade32.
Nas atas da Câmara Municipal do Recife notamos que ao longo da
década de 1830 tais empregados se destacaram cada vez mais no processo
de administração da cidade, fiscalizando as obras empreitadas e colocando
administradores subalternos nos trabalhos que fossem feitos à custa da
câmara, assim como vigiando a arrecadação e administração das suas
rendas e a conservação dos seus bens e direitos; vistoriando e fazendo
correições determinadas por posturas ou ordem especial da Câmara,
cuidando para incuti-las na sociedade através de editais, ou
particularmente, acionando o Procurador para punir os contraventores por
meio do Juiz de Paz. Assim, o fiscal figuraria como importante empregado
da Câmara para a administração da cidade.
Nas palavras de Victor Nunes Leal, como a Lei de 1º de outubro de
1828 “não instituiu um órgão executivo municipal, deixando tal
incumbência à própria Câmara e seus agentes”, as atividades executivas da
instituição ficaria a cargo dos funcionários subalternos do município,
notadamente aos Fiscais de Freguesias 33, ou nas mãos das comissões
internas, formadas principalmente pelos vereadores. Assim, para
aprimorar a sua administração, além da nomeação dos fiscais de freguesias
a Câmara Municipal do Recife também instituiria várias comissões
responsáveis por atuar de acordo com suas deliberações, exerceriam
funções executivas.
Buscando fomentar a eficácia de suas atividades “executivas”, na
sessão extraordinária de 12 de agosto de 1841 os vereadores do Recife
criaram um Regulamento Interno para a instituição 34. Com 14 artigos e 16
ROSSATO, Jupiracy Affonso Rego. Os negociantes de grosso trato e a câmara municipal da cidade
do Rio de Janeiro: estabelecendo trajetórias de poder (1808-1830). Tese (Doutorado em História)
- Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2007, p. 47; COLEÇÃO, 1878, p. 88.
32 FEIJÓ, 1830, pp. 11-2.
33 LEAL, Victor Nunes. Coronelismo, enxada e voto: o município e o regime representativo no
Brasil. 3. ed. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1997, p. 138.
34 Sessão extraordinária de 12.08.1841, Livro das Sessões da Câmara Municipal do Recife
(1838-1844), ff. 126, 127 (verso), IAHGP.
31
Dossiê CÂMARA MUNICIPAL
214
parágrafos, este regulamento tinha como objetivo normatizar as atividades
internas da instituição e esclarecer os deveres dos seus empregados. Era
uma espécie de decodificação, esclarecimento e simplificação da lei de 1º de
outubro de 1828. Explicava as funções e obrigações do Porteiro e seus
Ajudantes, do Secretário, dos Fiscais e Advogado da casa, além de enfatizar
a necessidade da existência de livros para os registros das atividades desses
empregados e das deliberações da Câmara Municipal do Recife. Contudo,
mais importante talvez tenha sido o estabelecimento da nomeação
trimestral de quatro Comissões compostas cada uma delas por dois
vereadores. Seriam elas: Saúde Pública, Edificação, Petições e Polícia.
Consideramos, entre outras coisas, que aquele trabalho foi uma
tentativa de se racionalizar o governo econômico e policial da mesma.
Antes da elaboração do dito regimento as deliberações camarárias
funcionavam ao sabor dos acontecimentos que chegavam ao seu
conhecimento, ou seja, não havia uma estrutura previamente organizada
para recepcionar e tratar dos problemas, pedidos, requerimentos que lhes
eram dirigidos. À medida que uma solicitação era feita, os vereadores
instituíam uma comissão formada por dois ou três membros que ficavam
responsáveis por analisar, discutir e dar um parecer a respeito; feito isso, a
proposta ou decisão da respectiva comissão era apresentada em sessão
para ser votada. A partir daquele regulamento essa estrutura não seria
modificada, mas sistematizada e melhor organizada, uma vez que foram
estabelecidas comissões específicas para atenderem às petições que fossem
surgindo e isso dinamizou as respostas aos inúmeros requerimentos que
diariamente eram remetidos à Câmara.
Após a aprovação do regulamento, todos os pedidos dirigidos à
Câmara passariam pela avaliação da Comissão de Petições, a qual faria
uma triagem e, dependendo do assunto, os remeteria a uma das três outras
comissões citadas. Destas, a que apareceu com mais obrigações e
importância foi a de Polícia. De maneira geral, suas atribuições eram:
“observar e fazer executar o presente Regulamento” 35; organizar o arquivo
camarário, sistematizando com clareza e ordem as informações de todos os
negócios da Municipalidade em comum acordo com o Secretário; assinar,
juntamente com o Procurador da Câmara, os documentos de compras e a
folha de pagamento dos Empregados. Mas suas incumbências não
paravam por aí. Os livros da casa também seriam escritos conforme os
Sessão extraordinária de 12.08.1841, Livro das Sessões da Câmara Municipal do Recife
(1838-1844),
ff. 126, 127 (verso), IAHGP.
35
REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014.
215
modelos dados pela dita Comissão; todos os empregados eram obrigados a
cumprir suas determinações, desde que estas não fossem de encontro às
ordens da Câmara ou de suas posturas; e até os que faltassem ao serviço
teriam seus ordenados descontados ou não mediante parecer da referida
comissão. Enfim, era ela a responsável pela organização interna e por
algumas das principais diretrizes de funcionamento da Câmara Municipal
do Recife.
Foucault sintetizou essa preocupação das instituições do Estado
Moderno com a regulação de si mesma como parte de uma
governamentalidade, uma “racionalização do exercício do poder como
prática de governo”. É possível tomarmos os regulamentos, regimentos e
códigos de posturas da Câmara Municipal do Recife como marcas dessa
governamentalidade36. É-nos notória a intencionalidade de organização e
eficiência administrativa desejada e buscada pelos vereadores. Por que eles
se preocupavam com a elaboração de tais mecanismos normatizadores? Ter
mais trabalho é que não era, muito pelo contrário. Encurtar os caminhos da
administração, melhorar o desempenho do governo municipal parece-nos
ter sido os anseios da municipalidade. Os ganhos disso seriam uma maior
racionalidade e eficiência da CMR, logo, maior controle e normatização do
espaço público, ainda que na prática isso não se realizasse plenamente.
Paralelo a essa organização interna, também se elaborou um
conjunto de regras para reger a cidade e as pessoas. Em 1831, a Câmara
Municipal do Recife cuidou logo em promulgar um Código de Posturas,
publicando-o no Diário de Pernambuco. A elaboração desse código foi uma
importante tarefa dessa instituição para “o Governo econômico e municipal
da cidade”, como um conjunto de normas e preceitos que buscava obrigar
os recifenses a cumprirem regras de convívio; determinar os possíveis usos
dos espaços da cidade; adentrar diretamente na vida das pessoas, tentando
Segundo Foucault, a governamentalidade seria o “conjunto constituído pelas instituições,
procedimentos, análises e reflexões, cálculos e táticas que permitem exercer esta forma
bastante específica e complexa de poder, que tem como alvo a população, por forma principal
de saber a economia política e por instrumentos técnicos essenciais os dispositivos de
segurança.” Em outras palavras, ela seria o processo de racionalização do exercício do poder
por parte do Estado como prática do governo, que conduz à gestão da vida dos homens,
controlando suas ações para que seja possível e viável sua máxima potencialidade e utilização.
Nesse sentido, Foucault privilegia o aparelho produtor da disciplina, discorrendo sobre o
mesmo. Esse aspecto de sua análise nos interessa aqui. FOUCAULT, Michel. Microfísica do
poder. 23ª ed. Rio de Janeiro: Graal, 1985, pp. 191-2, 286. Cf. FALCON, Francisco José Calazans.
Despotismo esclarecido. Série princípios. São Paulo: Ed. Ática, 2002.
36
Dossiê CÂMARA MUNICIPAL
216
transformar seus hábitos, incutindo-lhes novos costumes, normatizarem
seus espaços, traçar seus valores; em suma, “civilizá-los” e preservar a
ordem pública. Conforme bem observou Manuela Arruda dos Santos,
havia uma relação direta entre o artigo 66 da lei de 1828 e o Código de
Posturas editado entre os anos de 1831 e 1832 no Recife 37. Assim as
posturas municipais do Recife envolviam “os temas mais abrangentes,
todas no âmbito da polícia (civilidade) e da economia (boa administração)
da cidade” 38. Notadamente, tais códigos tinham como princípio norteador
o discurso higienista, esteticista, profilático, a fim de imprimir novos
hábitos para a sociedade, dando indícios de que o legislador camarário fora
possivelmente influenciado pelos princípios da urbanidade, polícia,
civilidade, pois, conforme apontou Raimundo Arrais, a civilidade estava
associada à remoção de costumes antigos, sólidos, ditos bárbaros, os quais
deviam ser eliminados, ou pelo menos modificados 39.
A partir de então outras posturas foram elaboradas, como as
Adicionais de 1839 e o Código de 1849, assim como vários outros
regulamentos, lançando-se sobre o cotidiano citadino um amplo conjunto
de interditos, normas de condutas, regras de convívios. Além daquele
regulamento que falamos acima, encontramos outro sobre a cobrança de
uma taxa de barreira da ponte do Socorro sobre o Rio Jaboatão
(interligando os arrabaldes da cidade), uma proposta de regulamento sobre
polícia dos mercados públicos, praças e cais do município, e um regimento
de aferição de balanças, pesos e medidas do município, aparatos
regulatórios fundamentais para se aprimorar os mecanismos de mando da
Câmara e melhorar a sua administração, a fiscalização, a arrecadação de
impostos e a execução das suas prerrogativas. Foucault chamou isso de
“limites” que o governo impõe a si mesmo, ou seja, a “regulação interna da
racionalidade governamental”.40
Ao criar regulamentos internos os vereadores davam sinais do
conhecimento das leis, da necessidade de apropriação prática dos preceitos
legais, e da busca pela racionalidade e interesse pela eficiência
administrativa. Não queremos dizer, contudo, que a soma disso redundou
Para uma comparação conferir: SANTOS, Manuela Arruda dos. Recife: entre a sujeira e a
falta de (com)postura, 1831-1845.Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal
Rural de Pernambuco, Recife, 2009., pp. 52-67. Sobre as Posturas no Recife Imperial, conferir:
SOUZA, Angela de Almeida Maria. Posturas do Recife imperial. Tese (Doutorado em História) Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2002.
38 Idem, p. 161.
39 ARRAIS, 2004, p. 288.
40 FOUCAULT, Michel. Nascimento da Biopolítica. São Paulo: Martins Fontes, 2008, pp. 15-7.
37
REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014.
217
numa eficácia do governo da Câmara Municipal do Recife, nem que o
contrário é verdadeiro, mas que tais princípios de racionalidade e eficiência
administrativa parecem permear a atuação deles na cidade do Recife a
partir da década de 1830, dando sinais de que os ares da modernidade
influenciavam os partícipes da instituição 41. Essa regulação interna e
relativa busca pela racionalidade governamental aparentemente intentada
pelos vereadores do Recife de então, sinaliza também que todos os
assuntos que regiam o cotidiano citadino, fossem eles econômicos,
policiais, políticos, entre outros, eram inerentes à dinâmica da organização
e funcionamento da Câmara Municipal, fazendo das ações da vereança
uma peça fundamental para as transformações ou permanências que se
quisessem estabelecer na cidade, na província, quem sabe até no império.
Diante do exposto até aqui é inegável a importância das câmaras
municipais no Brasil como instituições reguladoras do cotidiano citadino.
As leis imperiais aproveitaram bem esse legado dos tempos coloniais, só
que lapidando tais instituições para que elas se atrelassem especificamente
à administração das cidades e vilas imperiais e seus respectivos termos
dentro das perspectivas do Estado em formação. A Câmara Municipal do
Recife em sua nova configuração a partir de 1829 não hesitou em se
adequar às novas normas, aliás, nem o poderia, afinal era o que
determinava a constituição. Esse foi, segundo sugere a documentação, o
início de um processo de apropriação e adaptação da municipalidade
recifense às regras instituídas na dita lei de 1828. Isso que dizer que havia
muito a se fazer. Nas duas décadas seguintes vemos a atuação da
municipalidade recifense no sentido de normatizar o cotidiano citadino,
mas as dificuldades e vicissitude enfrentadas pela instituição foram muitas,
pois a sociedade não se curva de um todo aos caprichos do Estado, antes,
resiste, muitas vezes em pequenas práticas cotidianas.
Fazendo um link com a reflexão da autora Adriana Campos
apresentada no início deste artigo, percebemos que o esforço das elites
camarárias para estabelecer o bom governo da cidade era, entre outras
coisas, político. Entendemos que as elites camarárias viram-se forçadas a
renovar suas estratégias e adaptar seu diálogo com as forças locais, pois
elas além de fazer toda a diferença na hora de movimentar os clientes em
torno da eleição dos eleitores ou candidatos que se queriam, também eram
fundamentais para se consolidar ou alcançar os projetos e interesses locais
41
Cf. SOUZA, 2012.
Dossiê CÂMARA MUNICIPAL
218
que desejavam preservar ou conquistar. Mas agora, a elite camarária não
dispunha dos cargos públicos, das honrarias, do poder de mando que
ostentava no passado colonial, senão, do governo administrativo da cidade,
realidade política que implicava em novos arranjos institucionais. Assim,
nas palavras da autora, no campo eleitoreiro, “suas estratégias precisavam
contar, em alguma medida, com a aceitação e a popularidade de seus
pleitos entre os votantes” 42, o mesmo se aplicava na rotina administrativa e
governo da cidade. Portanto, era preciso, entre outras coisas, agradar aos
páreas, manter sob controle os espaços administrativos legados pelas leis
imperiais, cumprir suas tarefas administrativas de maneira a melhorar o
cotidiano da cidade, portanto, beneficiar de alguma forma as camadas
menos favorecidas da sociedade.
Nesse cenário, entendemos que a força política dos líderes locais na
câmara se estabeleceria, entre outras maneiras, dentro do viés
administrativo imposto pelas leis imperiais. Ampliar o leque de atuações e
intervenções no cotidiano das cidades poderia ser um caminho para as
elites camarárias estabelecer/fortalecer redes de influência e dependência,
que poderiam ser manejadas em seu favor nos momentos oportunos.
Portanto, era preciso uma renovação que promovesse novos modus
operandis, assim como, desse uma ressignificação ao governo econômico
exercido pelas edilidades, contribuindo para o seu fortalecimento e
ampliação, quiçá, de seu poder de barganha na política local.
Garantir a eficiência administrativa não significava apenas a
manutenção de determinados privilégios (influência política, poder de
intervir na cidade, controle das relações de comércio, autorização sobre os
processos construtivos, mando nas liberações de licenças e nos contratos
das arrematações, só para citar alguns exemplos), mas também a
possibilidade de orquestrar um controle maior sobre o cotidiano das classes
menos abastadas e a civilização do homem ordinário, condição sine qua non
para a manutenção da ordem e dos poderes vigentes. Por isso, as leis que
normatizaram as Câmaras explicitaram um modelo de governo econômico
para as municipalidades norteado por princípios de ordem, limpeza,
beleza, enfim, civilidade e urbanidade. Logo, ao que nos parece, não foram
apenas um instrumento cerceador das elites locais, não tinham apenas a
intenção de suprimir as potencialidades políticas das edilidades, eram
também um instrumento de instrução para a civilidade dos costumes.
Normatizados por ela, os vereadores estariam aptos para intervir de forma
42
CAMPOS, 2011, p. 262.
REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014.
219
eficiente no costume da população, perpetuando assim o status quo. Nesse
contexto, era preciso reorganizar-se internamente e, no mínimo, estabelecer
um bom governo para demarcar o espaço de atuação e importância das
elites ali alocadas. É dentro dessa perspectiva que tentamos entrever a
organização e funcionamento da Câmara Municipal do Recife a partir de
finais da década de 1820.
Por fim, não podemos deixar de pensar que o interesse dos
vereadores pela apropriação das normas estatuídas pelo Império, a busca
por um governo da cidade mais eficiente e a adaptação às conjunturas
estabelecidas poderiam ser reflexo do alinhamento político das elites
dentro da Câmara Municipal do Recife, ou pelo menos parte dela, ao
Estado em formação. Sendo verdadeira a assertiva, as câmaras municipais
no Império tiveram um papel significativo no processo de construção da
Nação uma vez que poderiam alinhavar as demandas locais aos interesses
imperiais (vice-versa) e fortalecer os laços da unidade, ou mesmo buscar
submeter o homem ordinário às normas do Estado moderno através de um
expediente administrativo mais eficiente, regulatório e civilizatório 43, entre
outros, e assim fomentar a unidade desejada. Mas, por hora, deixemos esta
conjectura e a busca por sua “verificação” para um exercício em outro
momento.
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43
Dossiê CÂMARA MUNICIPAL
220
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Dossiê CÂMARA MUNICIPAL
222
Contra o municipalismo incoerente e bárbaro
As câmaras municipais sob a ótica da legislação liberal oitocentista
Pablo de Oliveira Andrade 1
1
Resumo: Este artigo é composto de parte do primeiro
capítulo da minha dissertação de mestrado. Nesta
dissertação me propus a analisar a incorporação dos grupos
políticos e espaços de poder locais ao Estado imperial liberal
e a adaptação destes grupos e espaços às transformações
que o constitucionalismo impôs ao arcabouço institucional
do Império brasileiro. Já no presente artigo, procuro,
especificamente, examinar como o liberalismo político
pensava a atuação do Estado e a função dos espaços de
poder locais na nova lógica administrativa proposta por esta
doutrina. Para este exame cotejei as mudanças ocorridas
com a implantação do Estado liberal em Portugal e no Brasil
no início do século XIX, principalmente relacionadas com o
papel que as câmaras municipais deveriam exercer neste
novo Estado.
Palavras-chave: espaço de poder, câmara municipal,
liberalismo.
Résumé2: Cet article est composé d‟une partie du premier
chapitre de ma dissertation de masters. Dans cet
dissertation j‟avais proposé d‟analyser l‟intégration des
groupes politiques et des espaces du pouvoir locaux dans
l‟État impériale et l‟adaptation de ces groupes et des espaces
dans les transformations que le constitutionnalisme a
imposé dans le cadre institutionnel de l‟Empire brésilien.
Au présent article, je cherche spécifiquement, examiner
comment le liberalisme politique pensait l‟engagement de
l„Etat e la fonction des espaces du pouvoir locaux dans la
nouvelle logique administrative proposé par cette doctrine.
Pour faire cet examen, J‟ai comparé les changements
intervenus avec l‟implantation de l‟État libérale au Portugal
et au Brésil au début du XIX siécle, sourtout ayant un
rapport dans le rôle que le chambres municipales devraient
envisager dans cet nouveau Etat.
Mot-clés: espace de pouvoir, chambre municipale,
liberalisme.
Mestre em História pela Universidade Federal de Ouro Preto. Instituição: Prefeitura
Municipal de Lagoa Santa – Minas Gerais.
2 Agradeço a colaboração de Thelma Palha na tradução deste resumo para a língua francesa.
1
REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014.
223
Introdução
E
ste trabalho é composto de parte do primeiro capítulo da minha
dissertação de mestrado, intitulada A "legítima Representante":
câmaras municipais, oligarquias e a institucionalização do Império
liberal brasileiro (Mariana, 1822-1836)3. Nesta dissertação me propus a
analisar a incorporação dos grupos políticos e espaços de poder locais ao
Estado imperial liberal e a adaptação destes grupos e espaços às
transformações que o constitucionalismo impôs ao arcabouço institucional
do Império brasileiro, tomando como exemplo a cidade mineira de
Mariana no período entre 1822 e 1836. Já no presente artigo, procuro,
especificamente, examinar como o liberalismo político pensava a atuação
do Estado e a função dos espaços de poder locais na nova lógica
administrativa proposta por esta doutrina. Para este exame cotejei as
mudanças ocorridas com a implantação do Estado liberal em Portugal e no
Brasil no início do século XIX, principalmente relacionadas com o papel
que as câmaras municipais deveriam exercer neste novo Estado.
Nos primeiros anos após a Independência, o Estado imperial
brasileiro procurou apoio nos espaços de poder locais para a sua
legitimação e o reforço da sua autoridade, especialmente nos atos de
fundação do Império – tais como, o Ato de Aclamação do Imperador em
1822 e a aprovação da Carta Constitucional em 1824. Nestes momentos
ficou claro que para fazer valer a sua autoridade e construir a unidade
nacional, o Estado Nacional precisava do apoio político e burocrático dos
poderes locais e de seus membros. Esta dependência que o Estado tinha
dos poderes periféricos para se legitimar diante das populações dispersas
pelo imenso interior do Império ficou mais evidenciada nas legislações
feitas entre 1827 e 1832 que deram aparato legal para a incorporação dos
espaços de poder locais, nomeadamente das câmaras municipais, ao
arcabouço estatal liberal. Esta legislação foi amplamente apresentada e
discutida neste trabalho tendo como contraponto o exame de alguns
postulados do liberalismo.
ANDRADE, Pablo de Oliveira. A "legítima Representante": câmaras municipais, oligarquias e
a institucionalização do Império liberal brasileiro (Mariana, 1822-1836). Dissertação de
mestrado. Mariana: ICHS/UFOP, 2012. Nesta oportunidade gostaria de agradecer a
orientação da Profa. Dra. Andréa Lisly Gonçalves durante todo o meu mestrado.
3
Dossiê CÂMARA MUNICIPAL
224
O poder local e o liberalismo político em Portugal (c. 1820-1840)
Com a transferência da sede da monarquia para o Brasil em 1808,
Portugal ficou sob a tutela britânica durante o período de lutas contra as
tropas napoleônicas. Neste período foi implantado um Conselho de
Regência que governaria o Reino até a volta da Família Real, mas na prática
quem comandava o país era o marechal-general irlandês William
Beresford. O que evidenciava politicamente o abandono do reino pelo
Príncipe Regente d. João, que após a expulsão dos franceses insistia em
continuar na América. Esta insistência era publicamente demonstrada por
atos como a elevação do Brasil ao status de Reino Unido a Portugal e
Algarves, portanto o Brasil deixava de ser colônia e se tornava um reino
igual a Portugal, e a própria aclamação e coroação de d. João após a morte
de d. Maria I no reino americano.
A situação no reino europeu era humilhante, a Regência teve suas
funções reduzidas a meramente administrativas em 1817, enquanto que
Beresford foi nomeado delegado imediato do soberano, concentrando toda
a autoridade política. O que era agravado pela crise econômica 4 em que se
encontrava Portugal. Uma crise derivada tanto das invasões napoleônicas e
da longa guerra que arrasou a agricultura, quanto da perda do monopólio
sobre o comércio brasileiro que estava aberto às nações amigas desde 1808.
Portugal não estava preparado para competir com os outros países
europeus, nomeadamente a Grã-Bretanha, no mercado brasileiro e sem este
mercado o reino europeu também não tinha muito a oferecer aos outros
países.
Ou seja, era uma crise de difícil solução, que necessitava de uma
ampla reformulação da economia executada por um governo que tivesse
respaldo político para agir, coisa que a Regência ou Beresford não tinham.
Aliás, tanto um quanto o outro agiam para camuflar a crise impedindo que
a precária situação de Portugal se tornasse pública através da imprensa,
muito embora concordassem com os diagnósticos dramáticos da situação.
Entretanto, este quadro se tornou insustentável no final da década
confluindo para que altos burocratas e comerciantes da cidade do Porto
fundassem uma sociedade secreta chamada Sinédrio em 1818. E a partir
Para as informações citadas sobre esta crise, as ações da Regência e a formação do Sinédrio
me baseei em: SOUZA, Iara Lis Franco Schiavinatto Carvalho. Pátria coroada: o Brasil como
corpo político autônomo – 1780-1831. São Paulo: Editora da UNESP, 1999, p. 74-80.
4
REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014.
225
desta sociedade liderassem um vitorioso movimento revolucionário em
1820 conhecido como Revolução do Porto.
Esta revolução procurava recolocar o Reino de Portugal entre as
grandes nações da Europa, espaço que os revolucionários acreditavam já
ter sido ocupado pelo país no passado, regenerando as suas instituições
políticas. Contudo, mais que regenerar, o Vintismo5 intensificou as reformas
modernizadoras ilustradas que estavam sendo sistematicamente propostas
e, muitas vezes, adotadas desde o consulado pombalino. Intensificou
porque procurou se guiar pelas ideias políticas liberais que propunham
reformas muito mais profundas que as tentadas pelos ilustrados, embora as
práticas liberais tivessem muito a dever a alguns postulados do despotismo
esclarecido.
(...) o projecto de centralização do poder nas mãos dos
monarcas absolutos, não apenas antecipou a
centralização do poder nas assembleias absolutas do
liberalismo – uns e outros insusceptíveis de tirania -,
como preparou o reforço do Estado que iria ser
necessário para impor a nova ordem aos estados e
corporações privilegiados e constituir os fundamentos
da nova sociedade burguesa. Para além disso, a
centralização do governo traduziu-se na construção
de uma panóplia de aparelhos administrativos (desde
o sistema de ensino público, instituições bancárias e
de crédito, companhias de fomento, prisões e asilos,
repartições administrativas, etc.) que o liberalismo
iria, paradoxalmente, utilizar para construir a nova
sociedade civil, em todos os seus vectores.
Finalmente, a centralização jusracionalista trouxe
consigo uma nova ética de serviço público, um
espírito de racionalização...6
Como podemos ver, o liberalismo também sustentava uma forte
centralização política, porém não mais nas mãos do soberano absoluto.
Estava na raiz do pensamento liberal o ideal de construção de uma
sociedade civil que tivesse meios legais para se defender do poder absoluto
Outro nome pelo qual ficou conhecido o movimento iniciado em 24 de agosto de 1820 na
cidade do Porto.
6 HESPANHA, António Manuel. Guiando a mão invisível: direitos, Estado e lei no liberalismo
monárquico português. Coimbra: Livraria Almedina, 2004, p. 29.
5
Dossiê CÂMARA MUNICIPAL
226
do rei que o paradigma individualista 7 pregava e que foi implantado por
quase toda a Europa na segunda metade do século XVIII. Portanto, a
doutrina liberal foi uma arma contra o Antigo Regime, o absolutismo.
Contra o absolutismo de d. João VI e da sua Corte instalada no
Brasil foi que os revolucionários do Porto hastearam a bandeira liberal.
Segundo Lúcia Maria Bastos Pereira das Neves, para estes revolucionários
(...) tornava-se essencial assegurar ao indivíduo as
garantias consideradas essenciais – os direitos do
cidadão, a liberdade de expressão, de imprensa, de
reunião e de associação. Nesse sentido, a única forma
de garantir esses direitos e liberdades era através de
uma Constituição, que limitasse os poderes do
soberano e desse voz à sociedade, por meio de uma
representação nacional.8
Foi este caminho que a revolução seguiu. Tomado o poder em
Lisboa a 15 de setembro, imediatamente foi convocada uma reunião das
Cortes a fim de escrever uma Constituição para a monarquia portuguesa
em que estivessem contidos os direitos do cidadão perante o Rei e as bases
para a implantação da nova ordem liberal, sobretudo a existência de
espaços de representação política nacional dos cidadãos.
Residiria nesta representação nacional, no congresso soberano, a
centralização política que antes estava concentrada no Rei. Não estava em
questão a centralização, mas sim a absolutização do poder em Sua
Majestade. Segundo António Manuel Hespanha 9, ao contrário do que se
espera, o liberalismo político implantado no século XIX em Portugal –
como em toda a Europa – nada tinha de Estado mínimo, a governança era a
máxima possível, influindo em todos os ramos da sociedade para construir
a sociedade civil que tivesse meios legais e instrução suficientes para se
opor à absolutização régia. Por isso, em muitos momentos a política liberal
portuguesa se utilizou da estrutura administrativa implantada no final do
Sobre este assunto consultar as obras de António Manuel Hespanha, especialmente o
seguinte artigo: HESPANHA, António Manuel; XAVIER, Ângela Barreto. “A representação da
sociedade e do poder”. In: MATTOSO, José (dir.). História de Portugal. S.l.: Editorial Estampa,
v. 4 – O Antigo Regime – coord. António Manuel Hespanha, 1998, p. 113-140.
8 NEVES, Lúcia Maria Bastos Pereira das. “Liberalismo político no Brasil: idéias,
representações e práticas (1820-1823)”. In: GUIMARÃES, Lúcia Maria Paschoal; PRADO,
Maria Emília (org.). O liberalismo no Brasil Imperial: origens, conceitos e prática. Rio de Janeiro:
Revan / UERJ, 2001, p. 76.
9 HESPANHA, op. cit., 2004.
7
REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014.
227
século XVIII, centralizadora e intervencionista, para fundamentar o Estado
e a governança que lhe interessava. Estrutura que correspondia às
instituições, ao funcionalismo burocrático, apesar deste funcionalismo se
encaixar melhor dentro daquilo que Fernando Uricoechea chamou de
“estrutura burocrático-patrimonialista”10, e aos postulados administrativos
de um governo ativo.
E este governo ativo, centralizador e intervencionista necessitava
de uma base comum de atuação legisladora para executar as tarefas que lhe
cabiam na construção da sociedade civil e na educação desta para a
cidadania. Não podia mais conviver com a multiplicidade de direitos e
privilégios, assim como o despotismo já não mais admitia a concorrência ao
direito pátrio embora mantivesse os privilégios sociais. Para o liberalismo,
a uniformidade era um grande bem, por isso deveria haver um direito
universal a reger a sociedade portuguesa. Universalidade que, por sua vez,
era incompatível com “os privilégios dos grupos sociais e territoriais
fixados por lei”. Segundo Joaquim Romero Magalhães, “o intento de
uniformização legislativa dos liberais acaba com a situação anterior de ser
„cada terra uma nação com a sua lei diferente para se governar‟”11. Neste
sentido, a Constituição aparece como instrumento para uniformizar o
direito e os cidadãos, mesmo que apenas no aspecto civil, e para estabelecer
a Assembleia Nacional – neste momento as Cortes Gerais e Extraordinárias
da Nação Portuguesa – como o centro da atividade legislativa. E era de lá
que deveria emanar a administração da nação.
Devendo ser as Cortes o centro do poder e da governança nacional,
era preciso impor a sua autoridade por todo o Império português. Em
busca deste objetivo, os políticos liberais procuraram se aproveitar de uma
característica marcante do poder no Antigo Regime português. Como bem
afirma Joaquim Romero, até o século XVIII “(...) o poder em Portugal é aregional e anti-regional. Nem os monarcas querem que aconteça de outro
modo, nem as câmaras o desejam ou admitem: são demasiado ciosas dos
seus poderes para os partilharem ou articularem entre si” 12. Portanto, o
poder no Antigo Regime português se caracterizava pela oposição a
URICOECHEA, Fernando. O minotauro imperial: a burocratização do estado patrimonial
brasileiro no século XIX. Rio de Janeiro / São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1978, p. 14-16.
11 As duas citações estão em: MAGALHÃES, Joaquim Romero. “As estruturas sociais de
enquadramento da economia portuguesa de Antigo Regime: os concelhos” [1994]. In:
________. Concelhos e organização municipal na Época Moderna – Miunças 1. Coimbra: Imprensa
da Universidade de Coimbra, 2011, p. 36.
12 Ibidem, p. 30.
10
Dossiê CÂMARA MUNICIPAL
228
qualquer tentativa de implantação de mecanismos de poder que,
funcionando no espaço regional, fossem autônomos do poder central e/ou
dos poderes locais. Assim sendo, os políticos liberais, necessitando se
imporem diante do poder real, utilizaram desta característica do poder no
Antigo Regime.
Desde as invasões napoleônicas foram estabelecidas em Portugal
juntas regionais de governo para combater o mando napoleônico e que
eram relativamente autônomas do poder central, seja da Regência ou da
Corte no Brasil. A estratégia das Cortes para minar a autoridade régia foi
justamente reestruturar e difundir estas juntas por Portugal e pelas
capitanias brasileiras. Elas exerciam o poder executivo nas antigas
capitanias que agora eram denominadas províncias. Ao exercerem este
poder se tornavam autônomas do poder executivo do Rio de Janeiro e das
câmaras municipais existentes nas províncias. E no âmbito legislativo
dependiam das normatizações das Cortes, ou seja, estavam submetidas ao
poder destas em Lisboa. Mas, não eram compostas por pessoas nomeadas
pelas Cortes e sim através de eleições locais, o que aumentava a
legitimidade delas e propiciava a adesão dos grupos hegemônicos locais.
Embora muitas vezes esta adesão não tenha ocorrido de imediato, sendo
muito mais rápida e profunda no Brasil nas capitanias do Norte e
Nordeste.
Estas Juntas de Governo Provisório, como eram chamadas,
promoveram uma revolução na maneira de se conceber o exercício do
poder na monarquia portuguesa acabando com o anti-regionalismo
característico do poder e difundindo os ideais liberais propostos pelas
Cortes nas duas partes mais importantes do Império. Bem como
significaram uma quebra substancial na autoridade da Corte carioca no
Brasil. Segundo Iara Lis Schiavinatto Souza,
As Cortes aproveitaram essa reformulação do poder
provincial no Brasil promovida pelas Juntas, e
transformaram-na em parte do seu projeto de
reorganização
do
poder
político-institucional,
vinculando, assim, as províncias ao governo lisboeta
norteado pelo liberalismo vintista e atenuando os elos
entre as províncias, inaugurando um outro modo de
relacionamento entre elas e o Rio de Janeiro.13
13
SOUZA, op. cit., 1999, p. 117.
REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014.
229
A regionalização do poder feita pelas Cortes Constituintes
funcionou como uma tentativa de estabelecer uma aliança entre elas e os
grupos políticos locais a fim de romper a aliança que existia entre estes e o
Rei, especialmente no Brasil. Portanto, podemos concluir que o poder
regional era algo tão oposto aos modos de exercício do poder no Antigo
Regime que quando ele de fato foi exercido, através de mecanismos
autônomos regionais, foi como instrumento de destruição deste regime.
O que também fica demonstrado ao analisarmos a tentativa
frustrada de d. João VI de criar uma Constituição alheia as ações das
Cortes. Não querendo aderir a elas, mas percebendo que a situação já
estava crítica e que alguma coisa precisava ser feita para deter a revolução,
d. João, ao menos aparentemente, resolveu aceitar a Constituição.
Entretanto, não a Constituição que viesse a ser feita pelas Cortes, e sim uma
que fosse escrita sob o seu beneplácito. Assim sendo, Sua Majestade
resolveu recorrer às antigas formas de exercício do poder na monarquia
portuguesa para promover a feitura de uma Constituição. Em fevereiro de
1821 decretou que se fizesse uma consulta a todas as câmaras do Império
“para delinear uma nova Constituição” que seria escrita por uma comissão
de doutos escolhidos por ele e estabelecida no Rio de Janeiro.
Com tal procedimento, astutamente, o rei recorria às
instituições de consulta e de mando local, à câmara,
usando-a como respaldo e contra-argumento para,
possivelmente, opor-se às Cortes, que, agora,
deliberavam sobre a autoridade real, limitando-a, e
promovendo uma viragem na noção de soberania. À
instauração das Cortes, D. João VI respondeu com o
apelo às câmaras, mobilizando uma outra maneira de
garantir sua legitimidade.14
Ou seja, para garantir a sua legitimidade diante dos novos tempos
ao Rei não interessou os novos corpos regionais e sim recorrer a uma
autoridade de Antigo Regime, as câmaras. Somente a estas instituições o
poder real reconhecia a legitimidade de poder constituinte da monarquia,
afinal no Antigo Regime só existiam duas autoridades políticas: o Rei e as
câmaras15. E assim deveria continuar, mesmo sob um novo regime
As duas citações então em: SOUZA, op. cit., 1999, p. 93.
“Em Portugal havia no Antigo Regime apenas duas autoridades políticas: o rei e as câmaras.
Uma una, a outra fragmentada. [...] Duas forças em presença. Mas forças. Ambas. E nem
sempre a que apresenta maior autoridade – por nacional – será a mais decisiva no viver das
14
15
Dossiê CÂMARA MUNICIPAL
230
constitucional. No entanto, a ação de uma parte da classe política
fluminense impediu que este decreto real fosse colocado em prática. Diante
de uma iminente revolta na Corte no dia 26 de fevereiro e da solução
encontrada pelo Príncipe herdeiro d. Pedro, o Rei se viu obrigado a, junto
com o Príncipe, jurar as Bases Constitucionais escritas pelas Cortes.
Esta situação só fez aumentar a desconfiança dos liberais em
relação às câmaras municipais que já eram mal vistas devido aos
empecilhos que colocavam ao desenvolvimento e à atividade econômicos 16.
Era preciso barrar a autonomia camarária para que as tentativas de
legitimação do absolutismo perdessem um importante apoio institucional.
No entanto, mesmo assim a reforma das câmaras municipais foi de
difícil aprovação nas Cortes, porque, segundo Romero, “os deputados
enredaram-se na escolha de processos alternativos de organização, e não
convém esquecer que muitos deles provinham desse estrato da gente nobre
da governança [local] que via acabar o seu estatuto especial” 17. Não era
fácil para os deputados ferirem de morte a autoridade política que deu a
muitos deles o espaço inicial para as suas carreiras. E procurando uma
solução razoável para este problema, as Cortes preferiram manter as
atribuições tradicionais das câmaras, nomeadamente o governo econômico
das municipalidades e a capacidade de fazer posturas18. Entretanto, criou
ao nível regional em Portugal – haja vista que, por motivos que
analisaremos mais à frente, o Brasil proclamou a independência antes da
aprovação da Constituição Portuguesa de 1822 – órgãos administrativos
distritais chefiados por administradores-gerais nomeados pelo Rei e
auxiliados por juntas administrativas eleitas localmente. A estes
organismos distritais cabia recurso em relação a todas as competências das
câmaras existentes em cada distrito. Portanto, optou-se por uma solução
intermediária que não acabava com as câmaras nem as tutelava totalmente,
mas criava um expediente de recurso às suas decisões.
Entretanto, a Constituição de 1822 teve vida curta em Portugal,
logo em 1823 uma contrarrevolução absolutista liderada pelo Príncipe d.
Miguel fechou as Cortes e suspendeu a validade da Constituição. E, numa
gentes” [MAGALHÃES, Joaquim Romero. “Reflexões sobre a estrutura municipal portuguesa
e a sociedade colonial brasileira” [1985]. In: ________. Concelhos e organização municipal na Época
Moderna – Miunças 1. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2011, p. 124].
16 MAGALHÃES, op. cit., 2011, p. 31-32.
17 Ibidem, p. 37.
18 Para as informações relativas à Constituição Portuguesa de 1822 me baseei amplamente em:
HESPANHA, op. cit., 2004, p. 60-61 e 206-207.
REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014.
231
clara demonstração da íntima relação que existia entre o funcionamento
das câmaras municipais à maneira do Antigo Regime e a legitimidade do
poder absoluto do Rei, imediatamente após o golpe miguelista – mais
conhecido como “Vila-Francada” – foram, em 10 de junho de 1823,
“dissolvidas as câmaras municipais eleitas na vigência constitucional, e
substituídas pelas anteriores à revolução” 19. Nas palavras de Joaquim
Romero, “uma boa contra-revolução não pode esquecer os provados
princípios antigos”20. Mais do que nunca era reforçada esta associação do
poder local com o Antigo Regime. Especialmente de um poder local com
amplas atribuições administrativas e que funcionava como uma
continuação do Rei e fortemente imbricado à mística da realeza21.
E foi contra este poder local sustentáculo do poder real que os
liberais vão lutar até conseguirem submetê-lo ao poder central e
desarticular todo o apoio popular que tivesse. Esta reforma do poder local
promovida pelos liberais portugueses foi levada a cabo somente na década
de 1830 e, devido a muitas reformulações nas normas estabelecidas, só foi
de fato concluída no início da década seguinte. Demorou tanto assim
porque, apesar do pequeno período constitucional existente entre 1826 e
182822, a Carta Constitucional outorgada por d. Pedro, I do Brasil e IV de
Portugal, em 1826 deixava para uma lei ordinária a regulamentação do
espaço de poder local, nomeadamente das câmaras municipais. No entanto,
logo em 1828 d. Miguel, em um novo golpe, assumiu o trono e reimplantou
o absolutismo que perdurou até 1832. Somente a partir deste ano é que o
espaço de poder local passou a ser alvo de importantes reformas.
Estas reformas23, apesar de muitas idas e vindas, resultaram em
uma forte centralização política que redefiniu a divisão territorial
HESPANHA, op. cit., 2004, p. 90.
MAGALHÃES, op. cit., 2011, p. 37.
21 SOUZA, op. cit., 1999, p. 146.
22 Este período resultou da morte de d. João VI em março de 1826 que ocasionou na herança
do trono por d. Pedro I do Brasil, que se tornou d. Pedro IV de Portugal e outorgou ao reino
europeu uma Carta Constitucional nos moldes da Carta brasileira de 1824 em abril daquele
ano, abdicando ao trono logo em seguida em nome de sua filha d. Maria da Glória. Como esta
era ainda criança, a Regência do Reino ficou para a irmã de d. Pedro, d. Isabel Maria, até que
em 1828 foi concluído um acordo entre d. Pedro e seu irmão d. Miguel para que este se casasse
com d. Maria da Glória e assumisse a Regência. Ao assumir a Regência, d. Miguel traiu o
irmão e se proclamou Rei absoluto de Portugal, restaurando o Antigo Regime mais uma vez
[ver: HESPANHA, op. cit., 2004, p. 91-92].
23 Para as informações relativas às reformas liberais concernentes ao poder local em Portugal
me baseei amplamente em: HESPANHA, op. cit., 2004, p. 201-208.
19
20
Dossiê CÂMARA MUNICIPAL
232
concelhia, acabando com quase metade dos concelhos portugueses, e que
fez das câmaras municipais órgãos periféricos do poder central que tinham
importantes funções administrativas locais, mas não tinham poder
legislativo autônomo nem recursos financeiros suficientes para arcar com
as suas funções. A ideia principal por trás destas reformas era utilizar as
câmaras como um instrumento do poder central que desoneraria o centro
de administrar as localidades, mas que não teria forças para se opor a ele. E
esta força foi retirada através da perda das autonomias legislativa, agora a
elaboração das posturas necessitava de aprovação superior, e financeira, às
câmaras foi estabelecido um valor máximo para a arrecadação tributária
direta.
Não bastando tudo isto, as câmaras ainda precisaram arcar com um
funcionalismo cada vez maior e mais oneroso, a que não mais cabia
emolumentos ou funções honorárias mas sim salários. Além de inúmeras
funções administrativas que, se não excediam mais o espaço local e nem
podiam influir para além dele, não paravam de aumentar. E para encerrar
o desmonte da força política das câmaras, os políticos liberais trataram de
sobrecarregá-las com a cobrança da maior parte dos tributos nacionais. De
modo que as câmaras não conseguiam arcar com todas as suas atribuições
e ainda pagavam os custos políticos da tributação, corroendo desta maneira
qualquer apoio popular a uma política municipalista.
E isto só foi possível por que:
A nova organização do poder governativo
encontrava-se muito mais apta, apesar da debilidade
das suas extensões periféricas, a desempenhar as
funções de uma administração activa, pelo progresso
das suas estruturas e organização no sentido de uma
administração deste tipo.24
Assim sendo, o poder central tinha muito mais força para agir
sobre os poderes locais e impor a eles o direito geral que limitava a ação
legislativa deles e impedia que eles legislassem sobre temas regionais ou
nacionais. Se, como de fato ocorria, o centro tinha uma débil estrutura
periférica, não mais precisava delegar poderes às câmaras. Isto porque os
liberais lograram a construção de uma legislação e de uma estrutura
administrativa que conseguia determinar funções aos órgãos municipais e
destes cobrar os resultados sem que estes alcançassem qualquer tipo de
24
HESPANHA, op. cit., 2004, p. 203.
REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014.
233
autonomia ou o mérito de qualquer boa ação governamental. Realizando
desta forma dois importantes postulados do liberalismo político
oitocentista: a centralização política, o poder tinha que ser único, e, mesmo
que parcialmente, a descentralização administrativa, a administração podia
ser cometida às comunidades. Esta era parcial porque existia nas amplas
funções administrativas das câmaras, mas não era realizada plenamente
devido à crônica falta de recursos financeiros que estes órgãos sofriam.
Afinal, como dizia Joaquim Thomaz Lobo d‟Ávila, um importante
político português adepto da descentralização administrativa, o Estado não
podia ter por base os municípios, porém precisava dos órgãos municipais a
seu serviço para de fato ser liberal.
O Estado, que tinha por base os municípios, era um
corpo formado de membros desconexos, a que faltava
a vida de relação, a unidade e a harmonia, que só
podem provir da aplicação de princípios gerais
estribados na justiça e no direito, e inspirados pelo
interesse comum [...]. O municipalismo multiforme,
incoerente, individualista, privilegiado e bárbaro da idade
média não era a descentralização administrativa, era o
fraccionamento do País em circunscrições isoladas e
às vezes hostis [...] era a negação de todos os princípios
gerais de direito político, civil e criminal, a condenação de
toda a economia pública, a supressão de todo o viver
nacional, o menosprezo de todos os interesses gerais, e o
impedimento de todo o progresso e civilização da
sociedade.25
Este foi o caminho seguido pelos liberais portugueses, romper com
um passado municipalista “incoerente”, “privilegiado” e “bárbaro” para
construir o “progresso” e a “civilização” da sociedade, princípios básicos
do Estado liberal. Esta foi a maneira encontrada para que os princípios
liberais fossem de fato implantados em Portugal e que a sombra do
absolutismo fosse dissipada definitivamente. Veremos que muito deste
caminho também foi trilhado pelos políticos liberais brasileiros após a
Independência e principalmente entre a metade da década de 1820 e a
metade da de 1830.
D‟ÁVILA, Joaquim Thomaz Lobo. Estudos de administração. Lisboa: s. n., 1874, p. 19. Apud
HESPANHA, op. cit., 2004, p. 201 [grifo meu].
25
Dossiê CÂMARA MUNICIPAL
234
A constitucionalização do Império brasileiro e a busca da unidade sob a égide do
liberalismo político
Como já apontei, até 1821 as Cortes conseguiram angariar um forte
apoio entre as oligarquias locais brasileiras através da promoção das Juntas
de Governo Provisório nas províncias. Obtiveram também uma importante
ajuda de parte da classe política fluminense para forçar d. João VI a jurar as
Bases Constitucionais em março deste ano. O que resultou na sua volta
para Lisboa em abril deixando o Príncipe d. Pedro como Regente do Reino
do Brasil. Entretanto, entre dezembro de 1821 e janeiro de 1822 acirraramse as tensões entre o Príncipe e as Cortes. Estas promulgaram decretos que
foram interpretados pelos brasileiros como recolonizadores e que exigiam a
volta de d. Pedro a Portugal em setembro de 1821. Este, com o apoio, entre
outros, do vice-presidente da junta provisória de Minas Gerais José
Teixeira da Fonseca Vasconcelos, decidiu, em janeiro de 1822, ficar no
Brasil desrespeitando as decisões das Cortes. E para melhor respaldar essa
sua decisão, organizou, em fevereiro daquele ano, um Conselho de
Procuradores-Gerais das Províncias. O objetivo do Príncipe era legitimar,
com o apoio das províncias brasileiras, a sua Regência, que após o Fico se
tornou ilegítima aos olhos das Cortes. Instaurou-se assim uma duplicidade
no governo do Reino do Brasil, tendo de um lado a regulamentação dada
pelas Cortes lisboetas para este governo e de outro as decisões tomadas
pela Regência de d. Pedro26.
Esta duplicidade no governo brasileiro foi favorecida pelas
mudanças ocorridas na repartição do poder nas províncias que o sistema
de juntas, instaurado pelas Cortes, promoveu. Como disse anteriormente,
as juntas exerciam o poder executivo ao nível regional, no entanto não
concentravam mais o poder militar como ocorria com os antigos capitãesgenerais. Este poder era exercido por um Governador de Armas nomeado
diretamente pelas Cortes para cada província. Segundo Iara Lis 27, esta cisão
da autoridade, aliada à desconfiança que muitas oligarquias locais
passaram a nutrir quanto às verdadeiras intenções das Cortes, instaurou
um conflito institucional em algumas províncias. As juntas destas
províncias eram formadas, geralmente, por homens ligados aos interesses
brasileiros, sobretudo rechaçavam qualquer possibilidade de recolonização,
enquanto que os Governadores de Armas eram homens fiéis à política das
SLEMIAN, Andréa. Sob o império das leis: Constituição e unidade nacional na formação do
Brasil (1822-1834). São Paulo: Editora Hucitec / FAPESP, 2009, p. 74-75.
27 SOUZA, op. cit., 1999, p. 118.
26
REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014.
235
Cortes. O que muitas vezes fazia com as juntas acusassem os governadores
de usarem a força militar para intervir em favor das Cortes nos negócios
públicos locais e nas próprias juntas. Diante desta situação, as câmaras
municipais surgiram como uma segunda via para os políticos locais
manifestarem suas posições políticas.
Foi estabelecido um sistema de correspondências entre muitas
câmaras e o Príncipe Regente em que as oligarquias locais expressavam
suas opiniões políticas. Especialmente as suas adesões à chamada causa do
Brasil, ou seja, à preservação da igualdade entre as duas partes da
monarquia portuguesa, Brasil e Portugal, representada pela permanência
de Sua Alteza Real à frente do governo do Reino do Brasil. Assim sendo,
diante da duplicidade governativa entre as Cortes e o Regente e das
disputas entre juntas e governadores de armas, muitos grupos políticos
apelaram para os tradicionais órgãos da governação local para expressarem
as suas opiniões mesmo em um novo contexto político. De modo que,
A câmara, instituição nascida na colônia, tornou-se
um espaço maleável de atuação e debate políticos,
funcionou enquanto lugar institucional reconhecido
como capaz de manifestar uma vontade legítima para
a edificação da soberania de um novo monarca,
pautado, agora, no liberalismo.28
A autora fala deste reconhecimento das câmaras como um lugar
legítimo para a edificação da soberania de um monarca liberal porque a
partir de março de 1822 a relação entre o governo brasileiro e as Cortes só
tendeu a piorar. As medidas das Cortes eram cada vez mais hostis aos
interesses dos principais grupos políticos brasileiros. De maneira que, em
junho d. Pedro convocou uma Assembleia Constituinte exclusiva para o
Reino do Brasil que teria como missão adaptar o texto da Constituição
Portuguesa à realidade americana. Contudo, as correspondências
camarárias informavam incessantemente que as Cortes queriam
recolonizar o Brasil e apelavam para a ideia da separação entre os dois
reinos. Somente a fundação de um Império brasileiro tendo d. Pedro como
Imperador Constitucional seria a solução para a crise política. Daí a
afirmação da autora de que as câmaras foram um lugar legítimo para a
edificação da soberania de um novo monarca liberal.
28
Ibidem, p. 119.
Dossiê CÂMARA MUNICIPAL
236
Portanto, a Independência ocorreu com um projeto de instalação de
uma Constituinte para o Brasil já iniciado. E foi tendo isto em vista que os
grupos hegemônicos do centro-sul brasileiro apoiaram a emancipação
política com d. Pedro como futuro imperador. Este teve que garantir a
manutenção da convocação da Assembleia.
Foi assim que as câmaras municipais de todo o Brasil foram
conclamadas a aclamar d. Pedro como Imperador do Brasil em 12 de
outubro: Imperador Constitucional do Brasil. Para Ana Rosa Cloclet da Silva, a
adesão das oligarquias mineiras ao novo monarca foi consagrada através
de “um vínculo contratual entre o Príncipe e a sociedade, [em que] os
limites à sua autoridade estavam dados, desde aquele momento, pelo
indissociável binômio „Imperador & Constituição‟” 29. Aceitava-se a
Independência como sendo a única possibilidade para a consecução de
uma Constituição que levasse em consideração as características políticas,
econômicas e sociais do Brasil.
O
interessante
deste
processo
de
independência
e
constitucionalização do Império do Brasil foi que as câmaras municipais,
instâncias de poder relacionadas com o Antigo Regime, tiveram um papel
basilar na sua fundação desde que ele fosse uma monarquia constitucional
e liberal. Evidência de que as instâncias de poder existentes tidas como
constitucionais, as juntas de governo provisório, não eram representativas
dos interesses das oligarquias locais do novo Império. Foi preciso recorrer a
uma instituição de Antigo Regime para fundamentar a legitimidade
necessária ao estabelecimento de um regime constitucional no Brasil.
Segundo Caio Prado Júnior, as câmaras intervieram “decisivamente, nos
sucessos da constitucionalização, independência e fundação do Império”,
sendo “o único órgão da administração que na derrocada geral das
instituições coloniais, sobreviverá com todo seu poder, quiçá até
engrandecido”30.
Contudo, mesmo tendo as câmaras como importante espaço de
atuação, os principais grupos políticos exigiam a instalação da Assembleia
Constituinte. Intentavam assim adquirir maior participação na construção
da nova nação, bem como realizar aquele pressuposto liberal de que a
representação nacional era a maneira, por excelência, dos cidadãos
SILVA, Ana Rosa Cloclet da. Identidades em Construção: o processo de politização das
identidades coletivas em Minas Gerais: 1792-1831. Pós-doutorado. São Paulo: FFLCH / USP,
2007, p. 209.
30 PRADO JÚNIOR, Caio. Formação do Brasil contemporâneo: Colônia. 18 ed. São Paulo:
Brasiliense, 1983, p. 319.
29
REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014.
237
preservarem e fazerem valer os seus direitos essenciais diante do rei. Além
do mais, para o liberalismo a Constituição exercia a importante função de
limitar os poderes do soberano e de uniformizar o direito e os cidadãos,
mesmo que apenas no aspecto civil. Foi neste sentido que em maio de 1823
foi instalada no Rio de Janeiro a Assembleia Geral Legislativa e
Constituinte do Império do Brasil.
A relevância das câmaras sobre as divisões e estruturas provinciais
herdadas da organização do poder regional estabelecida pelas Cortes, neste
momento, era tão grande que, por mais que muitas medidas legislativas
referentes à administração local procurassem dotar de instituições políticoadministrativas os espaços provinciais, na prática os deputados ainda
tinham no horizonte de suas ações projetos localistas de futuro para a
nação que se construía. Mesmo quando eles se dividiam em bancadas
provinciais, estas não tinham uma coesão e muitos deputados de uma
mesma bancada expressavam opiniões completamente opostas sobre os
mesmos assuntos. Repetia-se no Brasil aquilo que ocorrera em Portugal, era
muito difícil para os deputados, ao menos neste momento, promoverem
uma política que favorecesse a construção de mecanismos provinciais de
poder em detrimento das câmaras municipais. Afinal, para o Brasil
também valia a análise de Joaquim Romero de que “não convém esquecer
que muitos deles [dos deputados] provinham desse estrato da gente nobre
da governança [local]”31. Ou como bem afirma Slemian,
Por mais que existissem posições comuns entre os
vários representantes das localidades, o problema era
que a “Província”, como canal de representação e
unidade política de convergência de regiões a
integrarem-na, ainda estava em construção.32
Portanto, a instituição camarária ainda exercia uma forte influência
nas decisões dos deputados constituintes que, como em Portugal, tinham
dificuldades para implantar o ideal liberal das câmaras como sendo órgãos
periféricos do poder central. Neste momento, ainda era muito difícil tornálas apenas órgãos administrativos, isto foi algo que somente o
desenvolvimento da estrutura institucional do poder central e da prática
liberal permitiu realizar. No meu entender, durante a Constituinte a
construção da província como canal de representação perante o governo
31
32
MAGALHÃES, op. cit., 2011, p. 37.
SLEMIAN, op. cit., 2009, p. 86.
Dossiê CÂMARA MUNICIPAL
238
central era tida pelos deputados como um reforço da atuação já
desenvolvida pelas câmaras municipais no exercício consagrado do mando
local. Às câmaras era facultado manter a matriz societária do Antigo
Regime e evitar a anarquia e à província e a sua representação na
Assembleia evitar o despotismo que pudesse vir do Imperador. Isto
porque, segundo Cloclet da Silva33, estes eram os dois maiores inimigos
dos grupos que promoveram a independência brasileira, e o primeiro só
poderia ser extirpado com a reprodução da matriz societária do Antigo
Regime.
Me preocupa que algumas análises feitas sobre este período
anteveem uma preponderância da organização provincial sobre as câmaras
municipais na confecção da Constituição ou mesmo na composição da
Assembleia Constituinte, influindo nas decisões dos deputados. Elas
acabam por sobrevalorizar o papel que as províncias adquiriram na
Constituinte e na Carta Constitucional, minorando o papel e a influência
que a instância municipal de poder ainda possuía 34. As câmaras acabam
sendo excluídas do processo de constitucionalização e provincialização do
Império, tendo a sua atuação destacada apenas quando se opõem a este
processo. Ou seja, mesmo compreendendo que a província ainda estava em
construção nos primeiros anos do Império, estes trabalhos não
contrabalançam a ênfase dada pelos constituintes ao andamento desta
construção com a importância que as câmaras municipais tiveram neste
processo, abordando-as sempre como meras coadjuvantes.
Até 1826, os órgãos camarários ainda exerceram importante papel
como representantes dos grupos locais. Na ausência das instituições
representativas criadas pela Carta de 1824, eles eram as únicas instituições
em funcionamento que tinham este perfil. Isto ocorreu porque no âmbito
das províncias a Assembleia de 1823 extinguiu as Juntas de Governo
Provisório e criou provisoriamente o Presidente de Província nomeado
pelo Imperador e um Conselho eleito que era meramente consultivo 35.
Portanto, até a implantação dos Conselhos Gerais de Província, de que
falarei mais adiante, em 1828, o único órgão representativo provincial
existente não tinha nenhum poder diante do presidente nomeado, aliás até
SILVA, op. cit., 2007, p. 150.
SLEMIAN, op. cit., 2009, sobretudo o primeiro capítulo.
35 Lei de 20/10/1823 que deu nova forma ao governo das províncias e um regimento
provisório para os presidentes provinciais. Apesar de provisório, este regimento teve validade
até 1834. É interessante que uma solução do mesmo tipo tenha sido colocada em prática em
Portugal na Constituição de 1822, porém permanentemente.
33
34
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239
dependia da convocação deste para se reunir. Já em âmbito nacional, em
novembro de 1823 o Imperador dissolveu a Assembleia Constituinte, que
também era legislativa, deixando o Império sem Constituição e sem
instituições representativas nacionais.
O que se tinha então eram apenas as câmaras municipais
funcionando como instâncias legislativas e representativas. Diante desse
quadro, acredito que era improvável existir, já neste momento, uma
oposição daqueles grupos que procuravam se afirmar nacionalmente às
câmaras como espaços legítimos de representação e como instâncias de
poder. Alcir Lenharo afirma, inclusive, que os políticos que, no final da
década de 1820, representaram o importante setor econômico sul-mineiro
enriquecido com o abastecimento da Corte e que contribuíram
fundamentalmente para a derrubada do primeiro Imperador e implantação
definitiva de muitos preceitos liberais, acumularam forças e conhecimentos
políticos, neste período, atuando nas câmaras municipais36.
Neste período imediatamente posterior ao fechamento da
Assembleia Constituinte, d. Pedro criou uma comissão para escrever uma
Constituição para o Brasil. O projeto desta nova Constituição ficou pronto
no início de 1824 e para adquirir legitimidade perante a nação foi
submetido à apreciação dos “povos”. Esta apreciação se deu via câmaras
municipais. Mais uma vez a instância de poder típica do Antigo Regime foi
usada para reforçar o pacto constitucional brasileiro, muito embora este
pacto tivesse origem em um ato despótico do Imperador como o foi a
outorga da Constituição. O que não era proposto pela primeira vez, já que
d. João VI em 1821 também estipulou que se criasse uma Constituição para
o Império português a partir de proposições camarárias.
Mesmo que ele [o ato de submissão do projeto de
Constituição às câmaras municipais] tenha significado
a negação da soberania da Assembleia como nova
instância de representação política, em função da
valorização das municipalidades como formas
tradicionais de Antigo Regime, eram elas que de fato
ainda funcionavam como portadoras de legitimidade
política num momento em que a novidade
LENHARO, Alcir. As tropas da moderação: o abastecimento da Corte na formação política do
Brasil – 1808-1842. 2ª ed. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura, Turismo e Esportes,
1993, p. 24 e 56.
36
Dossiê CÂMARA MUNICIPAL
240
constitucional ainda não sedimentara as próprias
bases.37
Apesar de a Assembleia ser entendida como a instância de
representação liberal por excelência, na sua ausência a maior parte dos
grupos políticos existentes no Brasil, fossem locais ou nacionais, não teve
problema em aprovar a Constituição do Império por meio das câmaras. Se
houve uma oposição à Carta Constitucional por parte da Câmara de Recife
– talvez a única de fato manifestada –, esta não foi derivada da sua
submissão à aprovação das câmaras municipais, mas sim da aversão dos
políticos recifenses ao conteúdo da Carta e ao fechamento da Assembleia
Constituinte38.
Portanto, até esse momento as câmaras ainda eram instâncias de
poder legítimas a partir das quais os grupos locais agiam em favor da
constitucionalização do país. Constitucionalização que para estes grupos
deveria levar à implantação de instâncias que os representassem em nível
nacional e lhes permitissem influir na governança do Império através do
estabelecimento de órgãos administrativos compostos por membros eleitos
nos níveis regional e local.
E esta Carta Constitucional aprovada pelas câmaras tinha o nítido
objetivo de garantir a unidade nacional através do atrelamento das
províncias ao governo do Rio de Janeiro – por meio da criação do cargo de
Presidente de Província nomeado pelo Imperador e do estabelecimento da
Assembleia Geral formada por deputados e senadores eleitos por província
– e das câmaras municipais ao governo das províncias 39. O governo
provincial, que até a aprovação da Carta Constitucional era composto pelo
presidente e pelo Conselho de Governo ou da Presidência, passou a contar
também com um Conselho Geral de Província. Este segundo conselho tinha
funções muito mais amplas que aquele primeiro, que continuava existindo.
Inclusive adquiria uma importância tão grande na organização que a Carta
deu ao governo provincial, que a ele foi atribuído um capítulo inteiro nela,
o Capítulo V do Título 4º40.
Segundo as disposições contidas neste capítulo, todo cidadão tinha
o direito de intervir nos negócios de sua província (artigo 71) através do
SLEMIAN, op. cit., 2009, p. 139-140.
Ibidem, p. 141-142.
39 A propósito deste tema ver: DOLHNIKOFF, Miriam. O pacto imperial: origens do
federalismo no Brasil do século XIX. São Paulo: Editora Globo, 2005.
40 BRASIL. Constituição (1824). Constituição Política do Império do Brasil, 1824. Doravante não
mais referenciada.
37
38
REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014.
241
Conselho Geral de Província, que era eletivo, e das câmaras dos distritos, as
Câmaras Municipais (artigo 72). Ou seja, o direito liberal de intervenção e
de representação de cada cidadão podia ser exercido tanto no conselho
geral quanto na câmara municipal. Os dois órgãos eram entendidos na
Carta como espaços legítimos de representação. Não há uma oposição entre
eles nesse aspecto.
Mais adiante, no artigo 81, a Carta determinava que a principal
função desses conselhos era “propor, discutir, e deliberar sobre os negócios
mais interessantes das suas Províncias; formando projetos peculiares, e
acomodados às suas localidades, e urgências”. Nesse artigo estava o cerne
da administração provincial, aos conselheiros eleitos na província estava
dado o direito de deliberar sobre esta administração, que, como já disse, era
algo fundamental para os liberais que viam em um governo ativo, em que a
administração era peça imprescindível, o ideal de Estado a ser implantado.
No entanto, não estava dado a eles o direito de aprovar as suas medidas,
capacidade que estava reservada à futura Assembleia Geral (artigo 85).
Reproduzindo o preceito liberal de que a centralização política deve residir
na assembleia nacional. Assim, ao mesmo tempo em que facultava às
oligarquias locais a capacidade de intervirem na administração de suas
províncias, a Carta fixava mecanismos que evitavam que as províncias se
tornassem totalmente autônomas do governo central, buscando construir,
dessa maneira, a unidade nacional e a centralização política.
Estabelecida a forma de ligação entre as instâncias regionais e
nacional, restava determinar a ligação entre as instâncias locais e regionais.
Seguindo o mesmo espírito dos artigos 81 e 85, o artigo 82 determinava que
os negócios que tinham origem nas câmaras deveriam ser discutidos e
aprovados nos conselhos gerais. Mas, a que se relacionavam esses negócios
originários nas câmaras? Segundo os artigos 167 e 169, do Capítulo II do
Título 7º, esses negócios estariam relacionados ao governo econômico e
municipal das vilas e cidades, tais como a “formação das suas Posturas
policiais, aplicação das suas rendas, e todas as suas particulares, e úteis
atribuições” (artigo 169).
Ou seja, procurando forjar a unidade nacional, a Carta de 1824
firmava uma forte ligação entre as três esferas de poder existentes. Além de
permitir ao centro, onde deveria residir o poder político na lógica liberal, a
capacidade de controlar as outras instâncias de poder, podendo distribuir a
elas importantes funções administrativas sem correr o risco de elas se
tornarem autônomas dele. E, sem dúvida, este arranjo também procurava
Dossiê CÂMARA MUNICIPAL
242
evitar atritos entre as instâncias hierarquicamente estabelecidas no mesmo
nível administrativo. Pois, ao determinar que o governo provincial
aprovasse as proposições das câmaras municipais, entendia-se que ele teria
um melhor conhecimento das necessidades e peculiaridades de cada
municipalidade evitando que a decisão de uma afetasse o interesse de
outra ou de todo o conjunto provincial. Além de favorecer a uniformização
jurídica necessária para o bom desenvolvimento da economia e do país
como um todo. Afastando da organização do Estado liberal brasileiro
aquele municipalismo “bárbaro” e “incoerente” que Lobo d‟Ávila apontava
como sendo característico do Antigo Regime e que não correspondia a uma
verdadeira descentralização administrativa, mas apenas a um
fracionamento do país em circunscrições isoladas e hostis. O mesmo
ocorrendo na ação da Assembleia Geral sobre as deliberações provinciais.
A Assembleia Geral, por sua vez, não necessitava de um controle
de outra instância representativa justamente por ser constituída por
membros eleitos provincialmente. A existência desta Assembleia eletiva,
especialmente da Câmara dos Deputados, era a garantia para os políticos
liberais da preservação dos direitos essenciais dos cidadãos e da
capacidade das oligarquias locais e, posteriormente, regionais intervirem
na administração central e poderem defender os seus interesses mediante a
negociação com suas congêneres em um espaço legítimo para isso.
A unidade de todo o território da América lusitana
sob a hegemonia do governo do Rio de Janeiro foi
possível [...] graças à implementação de um arranjo
institucional por meio do qual essas elites se
acomodaram, ao contar com autonomia significativa
para administrar suas províncias e, ao mesmo tempo,
obter garantias de participação no governo central
através de suas representações na Câmara dos
Deputados.41
O arranjo político-institucional estabelecido na Carta de 1824 de
nenhum modo determinava a priori a esfera provincial como o principal
espaço de poder local42, criando um conflito institucional entre este espaço
e as tradicionais formas de exercício do poder consubstanciadas nas
câmaras municipais. No meu entender, o que estava explícito nos artigos
analisados da Carta era uma melhor adequação das três esferas de poder
41
42
DOLHNIKOFF, op. cit., 2005, p. 14.
SLEMIAN, op. cit., 2009, p. 135.
REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014.
243
no novo aparato constitucional do Estado, de forma a concretizar a unidade
nacional e o ideal liberal de um governo ativo em que as esferas provincial
e local exerciam importante papel administrativo. E para que isso de fato
ocorresse era necessário que houvesse um sistema de regulação das três
esferas em que cada uma agisse de alguma forma sobre a outra. Inclusive a
esfera local exercia este controle por meio da organização das eleições, que
estava sob a sua responsabilidade43.
A adequação dos espaços de poder locais ao Estado liberal brasileiro
Como vimos, as câmaras municipais atuaram de maneira decisiva
na constitucionalização, independência e fundação do Império 44 e foram os
únicos órgãos legislativos e representativos a estar em atividade entre o
fechamento da Assembleia Constituinte, em novembro de 1823, e a
abertura dos trabalhos da Assembleia Geral Legislativa, em maio de 1826.
O que demonstra quanta legitimidade elas possuíam no quadro político da
época e perante a sociedade brasileira. No entanto, o excesso de poderes
que elas continham e a forma com que funcionavam eram incompatíveis
com o regime constitucional que se procurava implantar. Por mais que elas
estivessem na dependência dos conselhos gerais de província para a
aprovação de suas propostas, elas, até então, ainda conjugavam atribuições
administrativas, legislativas e judiciárias. O escopo de atuação delas era
muito amplo, correspondendo ao aparato institucional do Antigo Regime
em que elas tinham uma enorme liberdade de ação45. Isto em nada
correspondia a um regime que pretendia se basear na separação de
poderes. Sendo agravado ainda mais pelo postulado liberal da existência
de um único poder residente na representação nacional dos cidadãos,
embora na realidade brasileira este poder fosse repartido entre a
Assembleia Geral e o Imperador.
Esta era a situação em 1826, quando o aparato político-institucional
criado pela Carta Constitucional de 1824 começou a se efetivar. Apesar de a
Carta ter atrelado as câmaras municipais ao governo provincial, elas, até
aquele momento, exerciam funções que não se encaixavam em um quadro
constitucional e liberal. Portanto, a adequação da esfera de poder local ao
A respeito deste tema ver: DOLHNIKOFF, op. cit., 2005, p. 100-118.
PRADO JÚNIOR, op. cit., 1983, p. 319.
45 RUSSEL-WOOD, A. J. R. “O governo local na América portuguesa: um estudo de
convergência cultural”. Revista de História, vol. 55, nº 109, São Paulo, jan./mar. 1977, p. 25-79.
43
44
Dossiê CÂMARA MUNICIPAL
244
regime constitucional passava, sem outra alternativa, por uma redução
drástica dos poderes concentrados nas câmaras. A separação de poderes
em todas as esferas era condição sine qua non para o estabelecimento de um
verdadeiro sistema constitucional de governo. Não havia dúvidas quanto a
isso, a questão era de que forma isto seria feito. Era necessário diminuir os
poderes das câmaras municipais, mas também era preciso garantir o apoio
das oligarquias locais a ação do Estado nas diversas localidades espalhadas
pelo interior do país, uma vez que o poder central não tinha uma estrutura
burocrática capaz de agir em todos os rincões imperiais. Como também era
preciso evitar que se colocasse em risco a unidade nacional com uma
possível exclusão total destas oligarquias do jogo político.
O governo imperial dependia muito das câmaras, especialmente do
oficialato camarário e dos grupos locais que nelas se faziam representar,
em relação ao conhecimento do território e à imposição da sua autoridade
nos recantos mais recônditos do Império. Esta questão era um dos pontoschave do enquadramento das municipalidades no aparato institucional do
Estado. Nem o governo central nem os governos provinciais tinham
pessoal burocrático e recursos materiais e financeiros suficientes para
fazerem valer suas autoridades em todos os lugares. Neste sentido era
urgente enquadrá-las nos ritos do Estado moderno, as câmaras precisavam
deixar de funcionar como no Antigo Regime, se adequando ao Estado
constitucional e aos princípios de organização estatal propostos pelo
liberalismo político.
No entanto, o equilíbrio entre a restrição dos amplos poderes
camarários e a necessidade de conservar o apoio das oligarquias locais à
administração imperial era algo complicado de se alcançar e de se manter.
Ainda mais se lembrarmos de que muitos dos deputados e senadores
empossados em 1826 provinham destas oligarquias e atuaram fortemente
nas câmaras municipais até a instalação da representação nacional,
construindo ali suas carreiras e aprendizados políticos. Ou seja, os políticos
responsáveis por estabelecer a regulamentação do poder local e do poder
provincial estavam intimamente ligados ao poder local. Contudo, muitos
destes políticos também se vinculavam ao pensamento liberal que pregava
a centralização do poder na representação nacional e que via nas
instituições de poder periféricas apenas órgãos do poder central que
exerciam, sob o seu controle, a administração periférica.
E, além de tudo isto, os deputados e senadores liberais que
estiveram presentes nas câmaras até 1826 sabiam da íntima relação que
existia entre elas e d. Pedro I, no sentido de que muitas vezes, como já citei,
REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014.
245
elas legitimaram o poder do Imperador. Entretanto, as relações entre a
Câmara dos Deputados e o Imperador se deterioraram muito neste
período, bem como pairava sobre d. Pedro o epíteto de absolutista devido
às medidas centralizadoras em sua pessoa e arbitrárias que vinha tomando
ao longo da segunda metade da década de 1820. Portanto, para estes
parlamentares, acabar com o poder político das câmaras, mas não dos
espaços de poder locais, poderia vir a ser uma boa medida para
enfraquecer o poder e a legitimidade de Sua Majestade. Este problema era
muito parecido com o enfrentado pelos parlamentares portugueses após a
queda de d. Miguel.
Em busca destes objetivos foi aprovada em 1º de outubro de 1828
na Câmara dos Deputados a Lei de Organização Municipal 46. Aprovada
praticamente sem discussão, portanto da mesma forma que o projeto viera
do Senado. O objetivo da lei era claro e estava muito bem explicitado no
seu artigo 24, tornar as câmaras municipais “corporações meramente
administrativas” sem jurisdição contenciosa alguma. Deixando evidente
que a separação dos poderes concentrados nas câmaras e a transformação
delas em órgãos periféricos da administração central eram os pontos
principais da lei. Cabendo a elas apenas administrar os municípios,
conforme a Carta Constitucional já previra em seu artigo 167: “Em todas as
cidades, e vilas ora existentes, e nas mais, que para o futuro se criarem
haverá câmaras, às quais compete o governo econômico, e municipal das
mesmas cidades, e vilas”.
Assim sendo, as funções judiciárias e legislativas pertencentes às
câmaras desde o período colonial deveriam ser repassadas a outros órgãos
do aparelho estatal. Quanto às primeiras, a lei de 1828 apenas determinava
que não pertencessem mais às câmaras (artigo 24), afinal grande parte delas
já fora transferida para os juízes de paz segundo a lei que os havia
regulamentado em 1827. Quanto às segundas, foram melhor definidas
seguindo um duplo propósito: esvaziar o poder político das câmaras e
atrelá-las à esfera provincial de poder.
A lei de 1828 estabeleceu que aos vereadores coubesse apenas
tratar do governo econômico e policial das municipalidades (artigo 40) e
que tudo o que propusessem a este respeito na confecção das posturas
Todas as citações retiradas desta lei foram transcritas da seguinte fonte – doravante não
mais referenciada –: ARQUIVO HISTÓRICO DA CÂMARA MUNICIPAL DE MARIANA,
“Livro para registro da Carta de Lei de 1º/10/1828”, códice 88, Registro da Carta de Lei de 1º
de Outubro de 1828, 1º/04/1829, f. 01f-08v.
46
Dossiê CÂMARA MUNICIPAL
246
municipais deveria ser aprovado pelo conselho geral da respectiva
província (artigo 39). Sendo que este princípio também estava inscrito na
Carta de 1824 em seu artigo 82, que já analisei mais acima. Ou seja, a Lei de
Organização Municipal procurou reforçar ainda mais a Carta de 1824 e os
seus artigos nos quais os critérios que regeriam a separação de poderes já
estavam delimitados.
Seguindo este princípio e aprofundando a dependência da esfera
local em relação à esfera provincial de poder, que, convém não esquecer,
era presidida por um funcionário nomeado pelo poder central, diversos
artigos da referida lei acabavam com qualquer independência financeira
das câmaras. Elas não poderiam aforar, vender ou trocar bens da
municipalidade sem a autorização do conselho geral de província (artigo
42) e em caso de obra de grande porte feita por empreitada, a mesma
autorização era necessária (artigo 47). Não deveriam pagar dívidas sem a
permissão do conselho, sob pena de nulidade e de pagarem o dobro (artigo
52). E por fim, sempre que precisassem fazer alguma despesa
extraordinária ou quisessem dispor de meios para aumentarem suas rendas
era necessário ter a aprovação do conselho (artigo 77). Sendo que também
enviariam anualmente o balancete de suas rendas e despesas para a devida
aprovação do conselho geral (artigo 46). Ou seja, em matéria financeira em
tudo as câmaras ficaram na dependência dos conselhos gerais de província.
Este era o mesmo espírito das reformas implantadas em Portugal
nas décadas de 1830 e 1840, restringir a atuação das câmaras à área
administrativa, mas retirar delas a maior parte de suas rendas. Esta
manobra impedia que elas lograssem alcançar um mínimo de autonomia
política em relação ao poder central, representado nas províncias pelo
Presidente de Província. Dessa forma, a lei de 1828 criava um mecanismo
eficiente de atrelamento das câmaras municipais ao Estado Nacional.
Retirava delas a capacidade financeira, obrigando-as a dependerem da
esfera provincial para poderem realizar as despesas mais banais, e,
consequentemente, impunha a elas subserviência às instâncias provinciais
em troca da ajuda financeira e das diversas autorizações apontadas acima.
Estas medidas também retiravam das câmaras a capacidade
financeira para prover e organizar as celebrações locais, abatendo desta
maneira “sua carga simbólica, sua habilidade e capacidade de mobilizar
signos e investi-los com determinados sentidos ou de celebrar o contrato
REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014.
247
social com o monarca ou com o Brasil, como fizera entre 1822 e 1824”47.
Desta forma, a lei atingia a competência que as câmaras tinham no Antigo
Regime de participarem da mística da realeza ao celebrarem o Rei e de
funcionarem como uma continuidade dele nas localidades. Esta era uma
forma de enfraquecer a legitimidade do governo cada vez mais absoluto de
d. Pedro I. Além de diminuir muito o apoio institucional que ele tinha.
Segundo Cloclet da Silva, “a Monarquia Constitucional de D. Pedro I
continuava operando como „absoluta‟, mas já então desprovida de uma
legitimidade capaz de ser garantida pelo arcabouço institucional e pelos
princípios normatizadores formalmente vigentes” 48. E na busca de reforçar
esta mudança, o padre Antônio Diogo Feijó, futuro Regente do Império,
chegou a publicar um Guia das Câmaras Municipais49 em que redefinia todo
o cerimonial e simbolismo das câmaras, complementando a lei neste
sentido.
Entretanto, outras medidas foram tomadas para que se mantivesse
o apoio político e estrutural das oligarquias locais para a execução das
determinações centrais. Duas delas estavam na própria Lei de Organização
Municipal. Segundo João Camilo de Oliveira Tôrres,
O artigo 24 da lei de 1º de outubro de 1828 dispunha
que “as Câmaras (municipais) são corporações
meramente administrativas, e não exercerão
jurisdição alguma contenciosa”. Mas essas atribuições
“meramente administrativas” constituíam um
conjunto bem respeitável. Ei-las, nos termos do título
III da referida lei – “posturas policiais” – [...] que
assim classificaríamos: a) urbanismo em geral e obras
públicas; b) saúde pública; c) assistência social; d)
polícia “social”; e) proteção ao trabalho e à
propriedade.50
Portanto, mesmo que as câmaras municipais não tivessem recursos
financeiros suficientes para arcarem com todas estas responsabilidades, o
SCHIAVINATTO, Iara Lis. “Questões de poder na fundação do Brasil: o governo dos
homens e de si (c. 1780-1830)”. In: MALERBA, Jurandir (org.). A Independência brasileira: novas
dimensões. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006, p. 213-214.
48 SILVA, op. cit., 2007, p. 397.
49 FEIJÓ, Diogo Antônio. Guia das Câmaras Municipais do Brasil no desempenho de seus deveres por
um deputado amigo da instituição. Rio de Janeiro: Typographia D‟Astréa, 1830.
50 TÔRRES, João Camilo de Oliveira. História de Minas Gerais. 3 ed. Belo Horizonte / Brasília:
Lemi / INL, vol. 2, 1980, p. 939 e 943.
47
Dossiê CÂMARA MUNICIPAL
248
poder administrativo que a elas competia não era pouca coisa e permitia
um amplo espectro de formas de intervenção na vida e na organização da
comunidade local. Desta maneira, aos membros das câmaras ainda eram
dados meios importantes de fazerem valer a sua autoridade e para
reforçarem o seu prestígio social. Mantendo assim o interesse dos grupos
políticos em comporem os corpos camarários e atuarem através deles na
aplicação das determinações do poder central e na administração local.
Outra medida contida nesta lei era a determinação de que a
organização das eleições ficaria a cargo das oligarquias locais. Era ao juiz
de paz, posteriormente a uma junta composta pelo juiz de paz, o delegado
de polícia e o vigário, que competia qualificar quem estava habilitado a
votar nas eleições. Em 1846 uma lei criou um Conselho Municipal de
Recursos ao qual deveria se recorrer em caso de discordância relativa à
qualificação feita pela junta. Este conselho era constituído pelo presidente
da câmara municipal, pelo eleitor mais votado na paróquia cabeça do
município e pelo juiz municipal. Por fim, no dia da eleição era formada
uma mesa eleitoral em cada seção. A esta mesa cabia conduzir o pleito e
identificar cada votante qualificado, ou seja, somente votaria quem a mesa
determinasse. Eram membros desta mesa o juiz de paz e quatro eleitores da
paróquia escolhidos nas eleições anteriores 51.
De todos estes indivíduos, apenas o delegado de polícia e o juiz
municipal eram de nomeação dos governos central ou provincial e,
portanto, poderiam não estar envolvidos na política local. Mas, este não
envolvimento era apenas suposto já que até a Reforma do Código do
Processo, em 1841, não existia o delegado de polícia e o juiz municipal era
indicado pelo governo provincial a partir de uma lista tríplice elaborada
pelos vereadores. E, após esta Reforma, nenhuma lei impedia os delegados
e os juízes municipais de se imiscuírem no jogo político das localidades em
que exerciam seus cargos ou de os exercerem em suas localidades de
origem. No entanto, mesmo que estes indivíduos não pertencessem aos
grupos políticos de uma dada localidade, estava garantido a estes grupos o
controle do processo eleitoral. Afinal, todos estes órgãos eleitorais eram
colegiados e os membros destes grupos eram maioria em todos eles,
portanto, por maioria de votos, sempre acabava em suas mãos a decisão
final. Consequentemente, mesmo que as câmaras municipais não
estivessem envolvidas diretamente no processo eleitoral, os políticos locais
tinham enorme influência em seu andamento.
51
DOLHNIKOFF, op. cit., 2005, p. 108-109.
REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014.
249
Uma terceira solução encontrada pelos parlamentares residia neste
cargo tantas vezes citado na organização das eleições, o juiz de paz.
Segundo a lei que os regulamentou – lei de 15 de outubro de 1827 –,
deveria haver um juiz e um suplente em cada freguesia e era de sua
responsabilidade: contribuir para a boa administração das câmaras; fazer
auto de corpo de delito, interrogatórios e prisões; proceder contra
criminosos, vadios, mendigos, bêbados, meretrizes e perturbadores da
ordem em geral; obrigar a observância das posturas municipais; agilizar o
julgamento e a resolução de pequenos crimes 52. Ou seja, a maior parte das
atribuições judiciárias das câmaras municipais foi repassada a estes juízes
de paz que eram eleitos localmente. As atribuições judiciárias que
competiam no Antigo Regime ao espaço de poder local continuaram
competindo a ele, o que mudou foi que saíram da responsabilidade das
câmaras. Evidenciando que o objetivo dos liberais era esvaziar o poder
político das câmaras pelos motivos já apontados, mas sem perder o apoio
necessário das classes dominantes locais.
Enfim, impossibilitado de estender a hegemonia do Estado a todo o
território imperial, o poder central se viu forçado a angariar o apoio dos
principais grupos político-econômicos locais estabelecendo compromissos
e pactos com eles. Sem os quais veria minada a sua própria autoridade.
Assim sendo, os parlamentares e governantes imperiais, sobretudo do
período regencial inaugurado com a abdicação de d. Pedro I em 1831, se
viram forçados a implantar no Brasil Imperial uma estrutura burocráticopatrimonialista, conforme a descrição feita por Fernando Uricoechea53.
Eles criaram um aparato burocrático central nos moldes
determinados pelos preceitos liberais e que vinham sendo tentados desde
as reformas ilustradas, mas não tinham forças para fazer chegar este
aparato à periferia. Nesta, apenas lograram romper com a concentração de
poderes nas câmaras municipais, porém continuaram necessitando do
apoio dos notáveis locais e de suas clientelas políticas para fazerem valer
suas determinações e manterem um governo ativo do centro à periferia,
postulado fundamental do credo liberal. Este apoio se dava através de
políticas patrimonialistas, como a implantação da Guarda Nacional e dos
ANDRADE, Francisco Eduardo de. “A reforma do Império e a Câmara da Leal Cidade de
Mariana”. In: CHAVES, Cláudia Maria das Graças; PIRES, Maria do Carmo; MAGALHÃES,
Sônia Maria de (orgs.). Casa de Vereança de Mariana: 300 anos de História da Câmara
Municipal. Ouro Preto: Editora UFOP, 2008, p. 156-157.
53 URICOECHEA, op. cit., 1978, p. 14-16.
52
Dossiê CÂMARA MUNICIPAL
250
juízes de paz eletivos. Instituições que serviam para os notáveis locais
acomodarem seus interesses políticos nas localidades, ao mesmo tempo em
que ajudavam o centro a difundir sua autoridade política através do
exercício gratuito de funções administrativas por parte destes notáveis e de
suas clientelas – um dos pressupostos básicos da estrutura patrimonialista.
A permanência desta estrutura também era evidenciada nesta noção de que
servir à autoridade central era uma maneira de reforçar o prestígio social.
Só assim foi possível ao Estado liberal brasileiro centralizar o poder político
ao mesmo tempo em que mantinha sua capacidade intervencionista.
Portanto, mesmo que o liberalismo implantado no Brasil, como em
Portugal, tivesse um forte cariz regional, ele ainda foi muito dependente
dos espaços locais de poder. Mesmo ferindo as câmaras municipais, não foi
capaz de matar as instituições locais. Transformou-as, mas não as eliminou.
Mesmo com a transferência da atividade legislativa que recaía sobre as
províncias e as municipalidades para as Assembleias Legislativas
Provinciais em 1834, o que, sem dúvida, reforçou o poder regional perante
as instituições locais e centrais, não se mexeu mais nas amplas funções
administrativas das câmaras. Quanto às funções judiciárias dos juízes de
paz, só foram diminuídas com o Regresso em 1841. Entretanto, os tempos já
eram outros e os poderosos locais, sobretudo os grandes latifundiários do
café, começavam a exercer forte influência no governo central, mediando e
aprofundando as relações entre o centro e as periferias através de outros
acordos entre os grupos políticos nacionais e locais.
Referências Bibliográficas
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Carta de Lei de 1º/10/1828”, códice 88, Registro da Carta de Lei de 1º de Outubro de 1828,
1º/04/1829, f. 01f-08v.
ANDRADE, Francisco Eduardo de. “A reforma do Império e a Câmara da Leal Cidade de
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Sônia Maria de (orgs.). Casa de Vereança de Mariana: 300 anos de História da Câmara
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ANDRADE, Pablo de Oliveira. A "legítima Representante": câmaras municipais, oligarquias e a
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Dossiê CÂMARA MUNICIPAL
252
Cercado de inimigos
elite local e as relações escravistas em Pelotas
(1832-1850)
Victor Gomes Monteiro1
1
Resumo: O presente artigo discute os temores
relacionados à figura do escravo que afligiram a elite
dirigente pelotense na primeira metade do séc. XIX
(1832-1850). Mediante pesquisa nas Atas da Câmara
Municipal elenca-se um círculo de inimigos que eram
potencialmente perigosos à hegemonia escravista em
Pelotas. Observa-se essa documentação como um dos
instrumentos de “governamentalidade” que as
autoridades locais se valiam para intervir, direta ou
indiretamente, na vida da localidade, percebendo e
confirmando a busca por uma ordenação regulada
dos espaços e o disciplinamento dos corpos, condutas
e pensamentos. Demonstra-se como este contexto de
preocupação das autoridades locais com os escravos,
possíveis rebeliões, quilombos e os perigos da
fronteira, levou à criação de dispositivos e
mecanismos de controle que visaram normatizar o
cotidiano dos escravos e estruturar os aparelhos de
vigilância.
Palavras-chave: Escravidão; Elite; Medo
Abstract: This paper discusses the fears related to the
figure of the slave that afflicted the ruling élite from
Pelotas in the first half of the nineteenth century
(1832-1850). By researching the Acts of the Intendence
of Pelotas it lists a circle of enemies that were
potentially dangerous to slavery hegemony in Pelotas.
That documentation is observed as an instrument of
"governmentality" which local authorities resorted to
intervene, directly or indirectly, in the life of the town,
realizing and acknowledging the quest for regulated
spaces and the discipline of bodies, behaviors and
thoughts. It demonstrates how this background of
concern by local authorities about the slaves, possible
Bacharel em História, Universidade Federal de Pelotas, Pelotas (RS),
[email protected]
1
REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014.
253
insurrections, quilombos and the dangers of the border,
led to the creation of devices and control mechanisms
that aimed to regulate the daily lives of slaves and
structure the surveillance apparatus.
Keywords: Slavery; Elite; Fear.
I
nvestigar os medos que permearam o imaginário e os discursos da elite
dirigente com relação à figura do escravo, na Pelotas da primeira
metade do séc. XIX, constituiu o principal objetivo de meu trabalho de
conclusão de curso no bacharelado em História da UFPEL (MONTEIRO,
2012). Nesse processo de investigação, cujas fontes foram as “Atas da
Câmara Municipal de Pelotas dos anos de 1832 a 1850”, sobressaíram-se
elementos relacionáveis que constituíram boa parte dos temores e da
atenção das autoridades locais: o contingente de escravos; os estrangeiros
aliciadores; os quilombos da Serra dos Tapes; os revoltosos maleses. Posto
isso, o principal objetivo deste artigo é desenvolver como estes elementos
perigosos a hegemonia escravista desencadearam a criação de dispositivos
de controle e intermediaram as relações de poder entre a população
escravizada e as elites escravocratas que se encontravam a frente das
instituições administrativas/executivas de Pelotas. Estes elementos,
indícios dos temores da elite dirigente, são agora tomados como efeitos das
relações de poder, pois permitem discorrer a respeito do processo de
constituição e institucionalização dos poderes na Pelotas oitocentista.
Pelotas escravista: uma breve introdução à constituição do escravismo em Pelotas
Não há como não relacionar a História da atual cidade de Pelotas,
antiga Vila São Francisco de Paula, ao advento das charqueadas no Rio
Grande do Sul e a conseqüente estruturação do sistema escravista na região
meridional do Brasil. O sistema escravista pelotense esteve diretamente
associado à produção do charque. A cidade de Pelotas se edificou através
das mãos de trabalhadores escravizados e constituiu no decorrer do século
XIX um dos maiores contingentes de escravos da Província do Rio Grande
de São Pedro. Em linhas gerais, o processo de ocupação da localidade se
inicia a partir da segunda metade do séc. XVIII, em meio a disputas
territoriais entre Espanha e Portugal, com as doações das sesmarias de
Pelotas e Monte Bonito ao coronel Tomás Luís Osório. Estas terras foram
posteriormente divididas em diversos lotes e situariam algumas das
Dossiê CÂMARA MUNICIPAL
254
primeiras charqueadas da localidade. Até 1812, quando se estabelece a
Freguesia São Francisco de Paula, a região ainda pertencia e respondia a
comarca de Rio Grande2. O marco para a autonomia administrativa e a
constituição da cidade de Pelotas é a criação da Câmara Municipal, no ano
de 1832. Este processo de emancipação administrativa e o crescimento da
população escravizada foi decisivamente impulsionado pelo advento das
charqueadas, que possibilitou o enriquecimento e a ascensão política dos
indivíduos que conformaram a Câmara Municipal.
Nesse contexto, é oportuno indicar outras questões importantes a
respeito desse processo de constituição da cidade. Um ponto essencial com
relação à formação de Pelotas diz respeito a sua inserção num contexto
mais abrangente de disputas pelos territórios do Prata. Digo isso para
salientar que a constituição da elite charqueadora está intimamente
relacionada à “delimitação” de fronteiras com a região platina. Esta
condição fronteiriça de Pelotas e das cidades vizinhas com a região do
Prata possuía pelo menos duas significações complementares e ambíguas:
sua condição beligerante e conflituosa; e a condição de espaço de circulação
de homens e bens. Esses dois elementos são formadores e constituintes das
elites sul-rio-grandenses3.
Ao mesmo tempo em que os charqueadores pelotenses disputavam
o comércio do gado e charque com a concorrência platina, muitos possuíam
terras e aliados comerciais no Estado Oriental. Gonçalves Chaves, João
Rodrigues Barcellos e Francisco Henrique de Faria são alguns exemplos de
políticos e importantes comerciantes pelotenses que representam de certo
modo essa relação ambígua e múltipla da fronteira do Rio Grande de São
Pedro com os Estados Vizinhos (principalmente com o Uruguai). O início
da década de 1830 assinala por um lado o início de um longo processo de
constituição do Estado Nacional Uruguaio através da promulgação de sua
Constituição, de outro demarca o princípio de uma disputa entre dois
partidos antagônicos (colorados e blancos) pelo controle político do Estado,
que desencadeará numa grande guerra civil no Estado Oriental, a chamada
“Grande Guerra”. Essa conjuntura de tensão e conflitos internos no Estado
GUTIERREZ, Ester J. B. Negros, charqueadas e olarias: um estudo sobre o espaço pelotense.
2.ed. Pelotas: Ed. Universitária/UFPEL, 2001; MAESTRI, Mário. A charqueada e a gênese do
escravismo gaúcho. Porto Alegre: EST, 1984; MAGALHÃES, Mário Osório. Opulência e cultura na
Província de São Pedro do Rio Grande do Sul: um estudo sobre a história de Pelotas (1860-1890).
Pelotas: EDUFPel, 1993; OGNIBENI, Denise. Charqueadas pelotenses no século XIX: cotidiano,
estabilidade e movimento. Tese de Doutorado. Pós-Graduação em História das Sociedades
Ibéricas e Americanas. Porto Alegre: PUC, 2005.
3 KÜHN, Fábio. Breve história do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Leitura XXI, 2011.
2
REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014.
255
Oriental era vista com preocupação pelas autoridades pelotenses, pois esse
ambiente poderia ser uma ameaça aos interesses brasileiros (e sul-riograndenses) na região4.
A nível local o Império brasileiro passava na década de 1830, após
a abdicação de Dom Pedro I, por um processo de reformulação política
através da descentralização do Estado, maior autonomia das Províncias e
fortalecimento dos grupos provinciais atrelados a produção movida pela
mão-de-obra escravizada5. É justamente nesse cenário de constituição
embrionária do Estado Nacional brasileiro, de estruturação de seu aparelho
jurídico e da constituição de suas instituições administrativas/executivas
que se conformou a Câmara Municipal de Pelotas. Esta instituição exercia
uma gama ampla de funções, abarcando atribuições executivas e
legislativas, visto que além de ter autonomia para estipular posturas e
normas locais que ampliavam e complementavam o Código Criminal, a
Câmara demandava para instâncias (instituições) menores a execução das
ações oficiais.
A maior parte dos indícios das ações da Câmara Municipal de
Pelotas está registrada em suas correspondências oficiais, assim como, em
suas atas de sessões. Deste modo cabe destacar mais alguns pontos sobre o
meu entendimento a respeito das características constitutivas (e funcionais)
dessa documentação e de sua instituição produtora. Em primeiro lugar:
entendo a Câmara Municipal (por sua função simultaneamente executiva e
legisladora), e seus aparelhos de ação (atas e correspondências) como
componentes de “governamentalidade” ou “dispositivos de poder” 6, a
partir do momento em que permitiram a um grupo seleto de pessoas o ato
de legislar a respeito da vida social da localidade nos mais diversos
aspectos. Em segundo lugar: uma “ata”, no caso de uma instituição ligada
ao Estado como uma Câmara Municipal, tem o papel de registrar o que foi
ALADRÉN, Gabriel. Escravidão e hierarquias sociais na fronteira sul do Rio Grande de São
Pedro nas primeiras décadas do século XIX: notas iniciais de pesquisa. In: Encontro Escravidão e
Liberdade no Brasil Meridional, 4., Curitiba, maio 2009; KLAFKE, Álvaro. Antecipar essa idade de
paz, esse império do bem. Imprensa periódica e discurso de construção do Estado unificado (São Pedro
do Rio Grande do Sul, 1831-1845). Tese de Doutorado. Programa de Pós-Graduação em História
– Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2011; KÜHN, Fábio. Breve história
do Rio Grande do Sul. Op.cit., p.81-82.
5 PARRON, Tâmis. A política da escravidão no Império do Brasil, 1826-1865. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2011.
6 FOUCAULT, Michel. Segurança, Território, População: curso dado no Collège de France (19771978); SENELLART, Michel; EWALD, François; FONTANA, Alessandro (orgs.). Tradução
Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2008.
4
Dossiê CÂMARA MUNICIPAL
256
objeto de decisão na Câmara, suas deliberações e ordenações legislativas e
executivas. Seguindo essa linha de pensamento, as “atas”, através do que
registram, permitem visualizar para além da projeção e arquitetura de
espaços e paisagens, a própria burocratização do aparelho administrativo e
codificador das relações sociais, que constituiu dispositivos e ferramentas
específicas no intuito de regular, gerir e controlar as pessoas (e
principalmente os escravos) e manter o “estado natural das coisas”.
A hegemonia escravista da nascente localidade de Pelotas, logo nos
primeiros anos de exercício de sua Câmara Municipal, se via envolta por
uma série de ameaças que classifico tipologicamente em duas categorias de
“antagonistas” do status quo local: 1) “inimigos internos” e 2) “inimigos
externos”. A primeira categoria define estes “inimigos” tanto pelo fator
geográfico quanto pela condição social/cultural, uma vez que se refere ao
“contingente” de escravos assenzalados e aos quilombolas localizados na
região de Pelotas. A segunda categoria define-se pelo fator geográfico, mas
também “político” de seus personagens: os estrangeiros aliciadores do
Estado vizinho e o embrião insurgente dos maleses. Cabe destacar que as
categorias aqui expostas são relacionáveis, de modo que se produzirão
durante esta narrativa, correlações entre ambas.
É então segundo essa dupla classificação dos “inimigos” que
fixaram o sinal de alerta nas autoridades locais na primeira metade do séc.
XIX que se pretende abordar as relações escravistas e a criação de
dispositivos de controle que visavam em primeira instância normatizar e
disciplinar os agentes sociais.
Quilombos na Serra e o perigo Malês
O triênio 1834-1836 concebeu um período bastante conturbado para
a elite dirigente pelotense, não somente pela agitação política ocasionada
pela deflagração da Revolução Farroupilha, mas principalmente por
questões que tangem as relações escravistas, visto que se constataram nesse
ínterim: a formação de um quilombo “violento” e organizado na Serra dos
Tapes e a eclosão e reverberação nacional da Revolta dos Malês na Bahia
(1835). Estes eventos que se relacionam contextualmente produziram uma
série de dispositivos cujo propósito era fazer frente a esses “sinais de
perigo” que poderiam atentar contra a hegemonia local. De um lado
“inimigos” internamente rebelados e de outro a possibilidade de outros
elementos revoltosos, provenientes de um movimento insurrecional de
REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014.
257
repercussão nacional, aportarem em Pelotas, promoveram ações imediatas
das autoridades locais como se verá a seguir.
A respeito do registro e estudos sobre a formação de quilombos na
região de Pelotas é possível afirmar que há uma rarefação de pesquisas
nessa área, principalmente no que se refere a trabalhos que abordem essa
temática como objeto principal de análise. Citam-se planejamentos de
insurreições na primeira7 e segunda metade do séc. XIX8. Porém no que
tange a formação de quilombos na localidade de Pelotas não há ainda
registro de outro evento cujo porte e repercussão superem a formação do
quilombo situado na Serra dos Tapes sob a liderança de Manoel Padeiro.
Os poucos estudos que abordam a questão quilombola em Pelotas, dizem
respeito à formação do “Quilombo de Manoel Padeiro” 9.
As primeiras notícias oficiadas nas reuniões da Câmara sobre o
precitado quilombo se remetem ao mês de outubro de 1834 e as últimas ao
ano de 183610. Não foi possível durante a pesquisa delimitar a dimensão do
quilombo em termos de quantidade de integrantes. Nas menções da
Câmara (e correspondências) o número varia de 10 a 23 quilombolas,
incluindo a presença de pelo menos 4 mulheres. Por outro lado o
“Quilombo de Manoel Padeiro” constituiu-se de algumas características
que foram compartilhadas, de certo modo, por diversas formações
MAESTRI, Mário. A charqueada e a gênese do escravismo gaúcho. Op.cit., p.131.
LONER, Beatriz Ana. 1887: A revolta que oficialmente não houve ou de como abolicionistas
se tornaram zeladores da ordem escravocrata. História em Revista (UFPel). Pelotas -RS, v. 3, p.
29-52, 1997; MOREIRA, Paulo R. S. Seduções, boatos e insurreições escravas no Rio Grande do
Sul na segunda metade dos oitocentos. In: Encontro Escravidão e Liberdade no Brasil Meridional,
5., Porto Alegre, maio 2011.
9 AL-ALAM, Caiuá. C. A negra forca da princesa: polícia, pena de morte e correção em Pelotas
(1830-1857). Dissertação de Mestrado. São Leopoldo: UNISINOS, 2007; MAESTRI, Mário. O
quilombo de Manoel Padeiro. In: SEFFNER, Fernando (org.). Presença Negra no Rio Grande do
Sul. Porto Alegre: UE/Porto Alegre, 1995. p.64-72; MARSICO, Dilson. Charqueadas: escravidão
e lutas de classes. Monografia. Pelotas: UFPEL, 1997; MONTEIRO, Victor Gomes. Um
inventário do medo: a Pelotas escravista e a representação do medo através das Atas da Câmara
Municipal de Pelotas (1832-1850). 2012. Trabalho Acadêmico – Curso de História. Instituto de
Ciências Humanas. Universidade Federal de Pelotas. Pelotas, 2012.
10 Não pretendo desenvolver uma abordagem cronológica dos eventos e menções a respeito
do quilombo nas Atas da Câmara, uma vez que já fiz isso em trabalho anterior (MONTEIRO,
2012). Meu objetivo é realizar um apanhado geral das principais características desse
grupamento quilombola e destacar a (re) ação das autoridades locais frente a esse
acontecimento.
7
8
Dossiê CÂMARA MUNICIPAL
258
quilombolas no Brasil11. Uma delas é o fator geográfico incidindo no
processo de aquilombamento. Usualmente os quilombos costumavam se
situar em regiões afastadas da zona urbana e de difícil acesso, como
terrenos montanhosos e de grande concentração de matas. O espaço
favorável era um dos fatores que facilitavam e condicionavam a formação
de quilombos. A Serra dos Tapes, que dá nome ao quilombo que
atemorizou as autoridades locais nos primeiros anos da década de 1830,
parece ter sido local privilegiado de fugas, aquilombamentos e esconderijo
preferido dos escravos, ou de qualquer indivíduo que desejasse sumir do
controle repressivo12. O relevo sinuoso da região dos Tapes, em conjunto
com a grande concentração de matos, o complexo de coxilhas e serras e o
fato de ser cortada por arroios e possuir importante vegetação, dava as
condições ideais para um grupo de escravos fugidos se esconderem e
sobreviverem.
Para além do quesito geografia desenvolverei três categorias que
considero marcantes para a constituição e manutenção do “Quilombo de
Manoel Padeiro”.
1ª) O líder: a questão da liderança de Manoel Padeiro é bastante
ressaltada pelas autoridades locais como elemento formador do Quilombo
da Serra dos Tapes. Padeiro além de líder do grupo era considerado o
governador, ou general. A eleição de líderes não é uma premissa para a
formação de quilombos, mas parece ter sido através de algumas figuras
específicas que organizavam o movimento e incentivavam o
aquilombamento que se desenvolveram os quilombos de maior impacto no
Brasil. Esses líderes assim são considerados por receberem um poder
simbólico e prático dos seus pares quilombolas e por serem reconhecidos
pelos mesmos. A importância de Manoel Padeiro para o movimento
quilombola pode se remeter a uma questão de longo prazo, uma vez que
sua figura além de dar nome a eventos culturais na cidade de Pelotas é
objeto de narrativas míticas a respeito de sua presença na região dos Tapes
até os dias atuais.
GOMES, Flávio dos Santos. Histórias de quilombolas: mocambos e comunidades de senzalas
no Rio de Janeiro – Séc. XIX. Dissertação de Mestrado. Instituto de Filosofia e Ciências
Humanas – Universidade de Campinas, Campinas (SP), 1992.
12 Caiuá Al-Alam (op.cit., 2007), ao citar o caso de José Ramos, jovem de 25 anos que foi preso
por deserção, arrombamento da prisão do quartel e insubordinação, traz um exemplo de como
a Serra dos Tapes não servia apenas de refúgio aos escravos, mas a qualquer indivíduo que
fosse marginalizado pela sociedade. José Ramos, ao fugir da prisão, por padecer de fome, se
refugiou por algum tempo na Serra dos Tapes, até ser recapturado.
11
REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014.
259
2ª) Violência e tática de guerrilha: é possível perceber através da
pesquisa documental (“atas da Câmara” e “revisão bibliográfica”) que o
grupamento de Manoel Padeiro empreendia considerável dose de violência
em suas ações. Munidos de facões, facas e inclusive armas de fogo, os
quilombolas efetuaram diversos saques a fazendas e estabelecimentos
locais, no intuito de se apossar de alimentos e utensílios diversos para a
manutenção do grupo. Feijão, farinha, graxa, estribos, colheres de prata,
roupas, armas estavam entre os itens dos saques. Era prática do grupo
seqüestrar mulheres livres ou escravas (declaradas forras quando
capturadas) e recrutar escravos para se unirem ao grupo, seja de forma
compulsória ou deliberada13. Conforme os relatos das autoridades locais o
grupamento de Manoel Padeiro operava de “modo ousado”. Fala-se da
audácia dos mesmos de chegarem numa noite bem perto da então Vila São
Francisco de Paula, onde teriam roubado uma taberna, atacado uma olaria,
ferido alguns homens e matado outro, isto tudo a poucas “léguas” de
distância da Vila14. A organização do grupo quilombola lhes permitia
investir em saques sobre áreas bem próximas a área central da cidade. Essa
organização se demonstra nas práticas estratégicas de sobrevivência dos
quilombolas e explica de certa forma a dificuldade das autoridades locais
em exterminar com o Quilombo. Um dos fatores que podem explicar a
permanência da atividade dos quilombolas é sua utilização de uma espécie
de “tática de guerrilha”, que os mantinha sempre em movimento, parando
periodicamente em locais onde se abrigavam em pequenos ranchos feitos
de “jiriba”, que facilmente podiam ser abandonados com a aproximação
das partidas repressoras15. É possível perceber a partir dessas informações
que os quilombolas de Manoel Padeiro estavam intimamente adaptados
com a região das matas da Serra e se utilizavam de estratégias diversas
para sobreviverem.
3ª) Ampla rede de relações e contatos: este é um fator estratégico de
sobrevivência e de atuação dos quilombolas. Os quilombolas não viviam
apartados da sociedade escravista, mas sim se encontravam inseridos nela.
Dependiam de redes de comércio (de alimentos e munição), troca de
informações, aliados de diversas origens sociais 16. Uma das características
AL-ALAM, Caiuá. A negra forca da princesa. Op.cit., p.58.
MARSICO, Dilson. Charqueadas. Op.cit., p.39-40. MONTEIRO, Victor Gomes. Um inventário
do medo. Op.cit., p.71.
15 AL-ALAM, Caiuá. A negra forca da princesa. Op.cit., p.60.
16 GOMES, Flávio dos Santos. Histórias de quilombolas. Op.cit., p.26-53
13
14
Dossiê CÂMARA MUNICIPAL
260
do cotidiano da ação quilombola da Serra dos Tapes é a relação que os
mesmos mantinham com parte da escravaria da região, trocando
informações sobre as partidas e diligências. Inclusive, indica-se que
mantinham contato direto com alguns escravos “assenzalados”, que se
encontravam com os quilombolas em seus acampamentos para “dançar e
comer” e, ao amanhecer, voltavam a sua rotina, sem permanecer com o
grupo. Para as autoridades locais (vereadores da Câmara) as falhas de
muitas diligências efetuadas pelos guardas nacionais estariam fadadas ao
fracasso, pois eram organizadas em frente a seus escravos, que certamente
os “atraiçoavam” e logo informavam aos quilombolas a respeito das
partidas17. A rede dos quilombolas era ampla e não se resumia ao universo
da senzala. Manoel Padeiro e seu grupo mantinham contatos comerciais e
trocavam informações com indivíduos livres dos setores populares da
sociedade pelotense. Os produtos dos saques e furtos eram trocados com
pequenos comerciantes locais por gêneros diversos, tais como: aguardente,
fumo, alimentos (pimenta, açúcar, cominho), chumbo e pólvora. Este
último produto foi ponto central para a criação de um dispositivo de
controle, que como demonstrarei a seguir, se remete subjetivamente a essa
rede de contatos e solidariedades empreendida entre quilombolas e outros
setores sociais.
Estas categorias que representam de modo resumido a
multiplicidade dos mecanismos de ação dos quilombolas e que se remetem
diretamente a criação de dispositivos de controle e da própria modificação
nas relações cotidianas dos escravos, foram potencializadas pela conjuntura
criada com o advento da Revolta dos Malês. As notícias do evento que
atemorizou as autoridades baianas tiveram ressonâncias diversas em todo
o Brasil, causando preocupação, inclusive, nos territórios mais afastados
geograficamente do núcleo central da revolta, como é o caso da cidade de
Pelotas. Como já foi dito, o ano de 1835, em Pelotas, iniciara-se com o
conhecimento e a ameaça dos quilombolas que transitavam pelas matas da
Serra dos Tapes, causando prejuízos e disseminando o sentimento de
insegurança e medo nas autoridades locais.
As informações que vinham da Bahia foram recebidas com maior
precaução e receio por parte da elite política local, justamente pelo contexto
de inquietação social e de ameaça em que se encontrava a cidade naquele
momento. Mas não se resumiram a meras notícias as repercussões da
Revolta dos Malês. Os senhores baianos enviaram muitos dos escravos
17
AL-ALAM, Caiuá. A negra forca da princesa. Op.cit., p.63.
REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014.
261
insurgentes para região meridional, principalmente para Rio Grande e
Pelotas. A reação das autoridades locais a chegada desses indivíduos na
localidade de Pelotas salienta um ponto fundamental para as relações
escravistas: a consideração da etnicidade dos cativos como um fator
impulsionador da rebeldia escrava e elemento a ser temido e evitado. É
justamente os fatores associados “etnicidade” e “rebeldia” que são
salientados pelos vereadores da Câmara para justificar ação de “barrar” a
entrada de escravos das etnias “haussas” e “nagôs” provenientes da Bahia.
A entrada desses “inimigos” externos, munidos de uma propensão à
rebeldia, poderia ser desastrosa para hegemonia escravista local,
principalmente se inseridos nas charqueadas. Esse local seria propício para
que se incitasse à revolta, tanto pela proximidade dos estabelecimentos
saladeris, quanto pela mobilidade que os escravos tinham em Pelotas e
ainda mais pelo exemplo local dos acontecimentos na Serra dos Tapes.
Em meio a esse contexto de alerta com relação à rebeldia externa
dos maleses e interna por parte dos quilombolas da Serra dos Tapes,
destacam-se os múltiplos dispositivos formulados pela elite dirigente local
para fazer frente a esse cenário de perigos e para evitar que as resistências
cotidianas dos cativos se tornassem insurreições em massa.
Um desses dispositivos se refere a criação de diversas diligências e
partidas que constituíram grande esforço por parte das autoridades locais
em articular diversos setores da localidade em pro da luta contra o
Quilombo de Manoel Padeiro. Cabe ressaltar que os aparelhos de controle
(Guarda nacional e municipal; polícia; juízes de paz) estavam em fase de
implementação e se encontravam em estado de precariedade e mau
funcionamento conforme os diversos ofícios dos vereadores pelotenses ao
Presidente da Província requisitando um fortalecimento dos aparatos de
controle locais, tanto em material humano quanto em utensílios para este
controle (material bélico e mantimentos);
As recompensas monetárias conformam dispositivos utilizados
pelas autoridades locais para articular e incentivar o extermínio do
grupamento quilombola na Serra dos Tapes. Ofereciam-se quantias em
dinheiro as pessoas que organizassem partidas exitosas em capturar os
quilombolas, com valores especificados para cada indivíduo do grupo,
ficando a maior bonificação pela cabeça do chefe Manoel Padeiro. As
recompensas seriam subsidiadas por alguns dos ex-proprietários dos
quilombolas, assim como pelos envios periódicos de quantias em dinheiro
do Presidente da Província.
Dossiê CÂMARA MUNICIPAL
262
Outra ferramenta que a elite dirigente lançou mão para lidar com o
perigo quilombola e que repercutiu no cotidiano dos cativos, foi a criação
de posturas específicas que visavam tanto normatizar a movimentação dos
cativos no interior da cidade, quanto ao controle do acesso dos escravos (e
principalmente dos quilombolas) a utensílios bélicos, especialmente no que
diz respeito ao comércio da pólvora. A criação de posturas proibitivas que
visam regular a condição dos escravos na cidade reflete o temor manifesto
dos vereadores a respeito de uma generalização do movimento quilombola
e pressupõe uma demanda de problemas ou situações que se intenta
solucionar ou sanar.
Em uma das propostas de posturas requeria-se a demarcação de
um local específico para o comércio de pólvora e a regulamentação de sua
venda a escravos, que só poderiam comprar o produto sob a posse de um
bilhete de seus respectivos senhores. Como já foi visto, os quilombolas
possuíam armas de fogo, que inclusive foram utilizadas contra diversas
diligências. Desse modo fica claro que essa proposição tem o objetivo
específico e direcionado de tolher as possibilidades dos quilombolas se
armarem, mesmo que estes não sejam diretamente citados na informação
trazida pelas atas. Na segunda parte da mesma proposta se solicita a
proibição da venda da pólvora a “pessoas suspeitas”. Esta requisição
reforça a idéia de que a “rede de comunicação” ou de “contatos” que os
quilombolas mantinham com alguns setores da sociedade ultrapassava a
relação quilombo/senzala e se efetuava junto aos indivíduos livres dos
setores populares da sociedade pelotense. Ou seja, a postura indica a
possibilidade de que alguns indivíduos dos setores populares poderiam
auxiliar os quilombolas na compra de pólvora, intermediando o comércio
deste produto.
A outra requisição de postura previa a criação de dois elementos
conjuntos: uma “polícia dos escravos” e a regulamentação da circulação de
escravos tanto nas ruas da cidade quanto nos subúrbios ou distritos do
termo após o toque de recolher, ou seja, no período noturno. 18 Neste
requerimento é possível constatar a formulação de dois dispositivos de
controle que visavam a disciplinarização da circulação dos cativos e uma
vigilância mais apurada. A polícia dos escravos foi idealizada justamente
para ser o aparato repressivo necessário ao “controle das ruas”, que
passavam a ter sua circulação normatizada a partir das posturas recém
“[...] através dos estudos de Bakos, visualizamos que na década de trinta do século XIX,
tanto em Porto Alegre como em outras cidades da Província, o toque de recolher se dava às
nove horas da noite [...]”. AL-ALAM, Caiuá. A negra forca da princesa. Op.cit., p.65.
18
REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014.
263
criadas. A implementação dessas novas posturas ocasionou a necessidade
de se constituir aparato humano para o controle e vigor das novas
determinações legais. As posturas municipais eram normas que estendiam
e complementavam o código criminal e o código de procedimento criminal
e o papel de execução das Posturas era da polícia local. Caiuá Al-Alam19
aborda a dificuldade que se tinha em controlar a circulação de escravos na
cidade, demonstrando que a determinação não foi obedecida da maneira
prevista, pois constatou o aumento no número de prisões efetuadas pelo
desrespeito às normas estabelecidas pela nova postura.
Quanto às normas estabelecidas para a circulação de escravos após
o toque de recolher, deve-se salientar a criação de uma ferramenta
específica de controle: o advento do bilhete ou cédula que deveria
acompanhar os cativos em suas andanças pela cidade. Foram elencados
cinco itens obrigatórios que deveriam constar na descrição da cédula: 1)
Nome do escravo; 2) Naturalidade; 3) Seus mais salientes sinais; 4) Lugar
para onde se encaminha; 5) Tempo ou validade da cédula ou bilhete. O
detalhamento de informações parece ter o objetivo de dificultar a
falsificação dos bilhetes ou cédulas. Perece haver um tipo de ação
padronizada em situações de ameaça quilombola e de rebeldia escrava.
Assim como aconteceu em Pelotas, a regulação da circulação dos escravos
durante a noite também ocorreu na Bahia, nesse mesmo período posterior
ao levante dos malês. A obrigatoriedade que os escravos tinham de andar
com bilhetes (ou passes) assinados por seus senhores para que pudessem
circular a noite, foi ferramenta utilizada em ambos os contextos. As
diferenças dizem mais respeito às informações obrigatórias para cada
bilhete ou passe em cada localidade, além do fato de que as posturas na
Bahia valiam inclusive para os libertos africanos. 20
O advento da Revolução Farroupilha não permitiu pelo menos por
intermédio das Atas da Câmara delimitar o que ocorreu aos quilombolas
da Serra dos Tapes. No entanto é possível afirmar que o perigo do
Quilombo se representava tanto pela questão da sua “influência” sobre a
escravatura, quanto pela violência das ações que perpetravam. A dupla de
inimigos internos e externos, o quilombola Manoel Padeiro e seu grupo, em
conjunto com a possibilidade de entrada de escravos revoltosos
19 Op.cit.,
p.63-64.
MONTEIRO, Victor Gomes. Um inventário do medo. Op.cit., p.88; REIS, João José. Rebelião
escrava no Brasil: a história do levante dos malês em 1835. São Paulo: Companhia das Letras,
2003.
20
Dossiê CÂMARA MUNICIPAL
264
provenientes da Bahia junto à escravaria local, ressaltaram alguns dos
temores da elite dirigente em Pelotas Esta produziu e lançou mão de
diversos dispositivos e mecanismos disciplinares, além de criar ferramentas
específicas para fazer frente aos perigos à hegemonia escravista na
localidade.
Boataria ou audácia estrangeira? Um contingente de problemas.
Na Pelotas da primeira metade do séc. XIX, para além dos
elementos perigos apresentados no item anterior, outra ordem de inimigos,
coadunáveis e relacionais, foi alvo da preocupação e do exercício dos
poderes das autoridades pelotenses. Um deles é mais “abstrato” no sentido
de se referir à “massa de escravos” ou como nos termos dos vereadores
pelotenses: ao contingente de escravos. A outra figura antagônica se refere
ao “estrangeiro”, especificamente aquele, que se encontra no além-fronteira
meridional do Estado Oriental, atual Uruguai. Paulo Roberto Staudt
Moreira21 ciente desse contexto salienta o que considera os medos
fundamentais no imaginário das elites fronteiriças: a escravaria e o
estrangeiro. Ironicamente o principal problema do sistema escravista era a
própria figura que dava “sentido” ao sistema, o escravo.
Nas reuniões da Câmara Municipal de Pelotas (1832-1850) é
manifesta a preocupação dos vereadores pelotenses com o contingente de
escravos, principalmente nesse contexto inicial de estruturação do aparelho
burocrático, administrativo e coativo da localidade. Essa preocupação com
o contingente de escravos vem sempre atrelada à questão dos conflitos
internos do Estado Oriental e da possibilidade de interferência de
emissários estrangeiros na escravaria pelotense. Ambos elementos se
coadunam e potencializam os perigos de uma ação conjunta de escravos e
estrangeiros contra a hegemonia escravista local. Todas as referências
relativas às possíveis “seduções” ou “incitações a rebeldia” por parte dos
estrangeiros junto à escravaria local vem à tona sob a forma de boatos. É
perceptível a amplitude e presença dos boatos nas sociedades baseadas em
regimes escravistas. As notícias de conspirações escravas (em grande
escala), mesmo que na maioria das vezes consistissem apenas em boatos ou
ações não concretizadas de fato, são processos que permeiam tanto Cuba
quanto o Brasil, como no registro da preocupação dos senhores e
MOREIRA, Paulo R. S. Seduções, boatos e insurreições escravas no Rio Grande do Sul na segunda
metade dos oitocentos. Op.cit., p.11.
21
REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014.
265
administradores locais da região de Guamacaro (Cuba), de uma possível
conspiração escrava, que acabou não tomando proporções maiores em
183022 ou nos exemplos das suspeitas de conspirações escravas na
província do Rio Grande de São Pedro no decorrer do séc. XIX 23.
A habitual preocupação com o contingente de escravos, só
aumentou com a boataria que rondava as autoridades locais de que o
Estado Vizinho havia mandado emissários seus para revoltar a escravatura.
Em caso de êxito estrangeiro a possibilidade de acontecer uma revolta
escrava em grande escala era grande e conseqüentemente seria
“desastrosa” para as autoridades locais e para a “ordem pública”, pois a
proximidade das charqueadas fazia com que os mais de 4.000 escravos que
habitavam a região ficassem quase unidos, além de estarem a poucas
léguas do núcleo urbano. O contingente de escravos era temido enquanto
conjunto. Os cativos individualmente também eram motivos para
preocupação, porém sua “força maior”, na perspectiva das autoridades
locais, se encontrava no seu conjunto, na “união” e “contato” dos mais de
4.000 cativos, que caso se rebelassem, causariam grande transtorno à ordem
pública e ameaçariam diretamente a hegemonia escravista.
Esse fato é particularmente sentido pelas autoridades locais na
apelação dos vereadores ao presidente da Província para que não envie os
guardas nacionais para a fronteira, pois estes seriam os únicos meios de
proteção contra qualquer levante escravo. Essa requisição demonstra de
certa maneira a falta de estruturação dos aparatos repressivos e de controle
dos escravos nessa fase inicial de organização administrativa da então Vila
São Francisco de Paula. Essas “deficiências” nos aparatos coercitivos
parecem não ser apenas um problema local. Sugere-se, através do exemplo
da Revolta dos Malês, o quão despreparadas estavam as autoridades para
lidar com revoltas em ampla escala, tanto pela falta de homens, quanto
ARREDONDO ANTÚNEZ, C.; HERNÁNDEZ DE LARA, O.; RODRÍGUEZ TAPANES, B. E.
Esclavos y cimarrones en Cuba: arqueologia histórica en la Cueva El Grillete. Buenos Aires:
Instituto Superior del Profesorado Dr. Joaquín V. González – Centro de Investigaciones
Precolombinas, 2012.
23LONER, Beatriz Ana. 1887: A revolta que oficialmente não houve ou de como abolicionistas
se tornaram zeladores da ordem escravocrata. História em Revista (UFPel). Pelotas -RS, v. 3, p.
29-52, 1997.MAESTRI, Mário. A charqueada e a gênese do escravismo gaúcho. Porto Alegre: EST,
1984; MOREIRA, Paulo R. S. Seduções, boatos e insurreições escravas no Rio Grande do Sul na
segunda metade dos oitocentos. In: Encontro Escravidão e Liberdade no Brasil Meridional, 5., Porto
Alegre, maio 2011.
22
Dossiê CÂMARA MUNICIPAL
266
pelas dificuldades em relação aos armamentos, inclusive alimentação e
vestimenta24.
A presença do inimigo estrangeiro junto a escravaria demonstra a
importância estratégica do escravo não somente para executar o trabalho
que enriquecia seus senhores. Sua função era dupla. Ao se evidenciar o
temor em relação à possível influência de emissários do Estado Vizinho,
salienta-se a questão de que um dos principais meios de atingir a elite
política escravocrata brasileira era incentivar os escravos a sublevarem-se,
ou seja, os escravos se tornariam o alvo das investidas estrangeiras e,
conseqüentemente, seriam uma “arma” poderosa para destruir
“internamente” e desestruturar o Estado brasileiro. Essa visão pode e
certamente foi alimentada pelas autoridades brasileiras que se ocupavam
da fronteira, uma vez que conheciam em detalhes as diversas implicações
da guerra civil que tomava corpo no Estado Vizinho e tinham consciência
de que uma sublevação em grande escala nos territórios sulinos e,
principalmente, em Pelotas, teria resultados desastrosos, devido ao
despreparo da estrutura policial e repressiva que se dispunha naquele
momento.
Os boatos e as notícias da possível interferência estrangeira junto a
escravaria local multiplicaram os pedidos por parte dos vereadores ao
presidente da Província para reforçar a estrutura de controle e assim
realçaram a necessidade de dar maior sustentação ao aparato repressivo
que tanto se fazia necessário para fazer frente a qualquer inimigo. Note-se,
ainda, que os guardas nacionais, durante a década de 1830, não possuíam
armamento suficiente, e muitos dos disponíveis não tinham as mínimas
condições de uso25. Essa afirmação salienta ainda mais o despreparo do
sistema repressivo que dispunham as autoridades locais nesse período em
específico.
A boataria parece ter sido uma constante no Brasil escravista,
gerando ambientes de tensão e medo. Os “rumores” tiveram papel
fundamental para que as autoridades locais e os senhores de escravos
estivessem sempre alertas a qualquer possibilidade de revolta ou
insurreição escrava. Para os fins deste trabalho, não interessou saber se os
emissários do Estado Oriental realmente foram enviados para a Província,
por mais que a confirmação dessa informação seja importante em termos
MONTEIRO, Victor Gomes. Um inventário do medo. Op.cit., p.94; REIS, João José. Rebelião
escrava no Brasil: a história do levante dos malês em 1835. São Paulo: Companhia das Letras,
2003.
25 AL-ALAM, Caiuá. A negra forca da princesa. Op.cit., p.76.
24
REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014.
267
explicativos e contextuais. O que se demonstrou mais esclarecedor foi
constatar a repercussão que a probabilidade desse acontecimento causou
junto às autoridades locais.
Conclusões
Sob um olhar geral de pesquisa nas Atas da Câmara Municipal de
Pelotas é possível afirmar que de certa forma os dispositivos criados pelas
autoridades locais visavam em primeira instância o controle dos escravos
para além do ambiente das senzalas, uma vez que possuíam
intrinsecamente o objetivo (disposição) de regular e em alguns casos tolher
as formas de sociabilidade dos cativos nos espaços “públicos” (ou fora do
âmbito privado das senzalas e casas senhoriais), como no exemplo da
proposta de um vereador da Câmara cujo conteúdo objetivava evitar
“jogos de escravos” junto às cacimbas de beber água; ou da normatização
da circulação dos cativos no interior da cidade sem bilhete de identificação
assinado pelos respectivos senhores ou amos; ou ainda da proposta
(negada, mas aventada) de proibição de tabernas ou estabelecimentos junto
às charqueadas cujo trabalho fosse realizado por escravos.
O arquivamento de documentos, tanto nas ações colonialistas como
nos nascentes “Estados-Nação”, são componentes cruciais de
“governamentalidade”26. Esta afirmação é bastante relevante para os fins
deste trabalho, pois se entende as atas e correspondências da Câmara
Municipal de Pelotas como elementos de governamentalidade e
dispositivos de poder, pois conferem meios para que determinados sujeitos
sociais possam intervir, direta ou indiretamente, na vida da localidade. A
respeito dos dispositivos (discursivos ou institucionais) e tecnologias de
vigilância que têm por finalidade esquadrinhar o tempo e os lugares,
disciplinar os corpos e fazer o ordenamento regulado dos espaços,
condutas e pensamentos, cabe evidenciar que compartilho o raciocínio de
que esses dispositivos repressivos concedem necessariamente um lugar, no
FOUCAULT, Michel. Governmentality. In: The Foucault effect: studies in governmentality.
BURCHELL, G; GORDON, C; MILLER, P (eds.). Chicago: University of Chicago Press, 1991.
p.87-104.
26
Dossiê CÂMARA MUNICIPAL
268
momento em que são recebidos, ao distanciamento, ao desvio, à
reinterpretação, à adaptação e à resistência 27.
Em síntese, nesta pesquisa delineei um contexto de preocupação
das autoridades locais com os escravos e com os perigos da fronteira para a
manutenção do status quo do escravismo pelotense. Mostrei como o medo
da rebelião de escravos levou à criação de novos dispositivos de controle e
de aparatos repressivos do sistema escravista.
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Dossiê CÂMARA MUNICIPAL
270
O triunfo da urna com o bacamarte
O conflito de 1852 em São José dos Pinhais
Luiz Adriano Gonçalves Borges 1
1*
Resumo: Neste artigo analisamos um conflito político
ocorrido em São José dos Pinhais, Paraná, em 1852,
durante as eleições secundárias, para deputado. O
conflito foi fruto da disputa local pelo poder exercido
através das Câmaras e acelerou a emancipação do
Paraná da Província de São Paulo. Para compreensão
do que estava em jogo neste conflito, analisamos a
trajetória política de um integrante da Câmara que
esteve envolvido na confusão e que teve um grande
peso na disputa pelo poder local.
Palavras chaves: Câmaras Municipais, eleições, Brasil
Império.
Abstract: In this article we analyze a political conflict
that occured in São José dos Pinhais, Paraná, in 1852,
during secondary elections, for deputy. The conflict
was caused by a local dispute for power acted
through Councils and speeded up the emancipation
of Paraná from the Province of São Paulo. For full
comprehension about what was at stake in this
conflict, we analyze the political trajectory of a
Council member that took part in the tumult and that
had great weight in the dispute for local power.
Keywords: Municipal Councils, elections, Brasil
Império.
A
s Câmaras Municipais representavam o locus privilegiado do poder
local. Para compreender o jogo político nas localidades partimos
da análise da trajetória política de um indivíduo que ocupou
diversas vezes esse Conselho: Manuel Mendes Leitão. Este português de
Coimbra estava desde o início do século XIX atuando na política local e
havia exercido diversos cargos governativos e administrativos, além de ter
recebido o título de Comendador em 1842. Pretendemos com esse artigo
analisar um conflito político ocorrido em São José dos Pinhais, Paraná, em
1
Doutorando, UFPR, bolsista REUNI.
REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014.
271
1852. Como cenário temos as eleições municipais e a busca pelo poder
através da ocupação de cargos camarários.
A elite local estava interessada em desmembrar-se da província de
São Paulo. Os argumentos da elite paranaense para a emancipação se
centravam em dois aspectos: de um lado, apontavam o papel de fronteira
de Curitiba com o Rio Grande do Sul, Argentina e Paraguai; de outro,
apresentavam as condições econômicas da vila de Curitiba e assinalavam
as relações desta com as regiões mais ao Sul e com a Corte, sendo o porto
de Santos uma pedra no sapato.2
O que determinou a emancipação do Paraná foi a disputa entre
Conservadores e Liberais, que dominava o campo político brasileiro. Com
relação à situação política do período, Ricardo Oliveira diz que “em 1852,
os conflitos entre conservadores e liberais explode na Província de São
Paulo (...). As eleições de 1849 vencidas pelos liberais foram anuladas em
Curitiba. Novas eleições foram realizadas e vencidas pelos conservadores
em 1850, quando os liberais denunciaram violências e fraudes”. 3 Nas
eleições de 1852 em São José dos Pinhais, onde Leitão possuía sua maior
propriedade, ocorreu um tiroteio com vários mortos. Segundo Belato, a
emancipação da Comarca de Curitiba teve como finalidade diminuir a
importância dos liberais paulistas e criar uma nova Província sob domínio
conservador.4
Desta forma, analisaremos o conflito de São José, demonstrando a
insatisfação local e como serviu para acelerar o processo de emancipação.
Notícias deste conflito chegaram a ecoar na Corte e aponta
m para a importância do poder local. Membros da família Mendes
Leitão estavam envolvidos no conflito que originou a disputa por cargos
de vereança na recém elevada vila. Para compreender plenamente a
natureza do conflito devemos transcorrer sobre a política eleitoral e a
municipalidade no Império.
São José dos Pinhais era uma freguesia subordinada à vila de
Curitiba até o ano de 1852, quando se emancipou e teve suas primeiras
eleições locais. Foi exatamente nesse ano, durante as eleições secundárias
OLIVEIRA, Ricardo. O silêncio dos vencedores. Genealogia, classe dominante e Estado no
Paraná. Curitiba: Moinho do Verbo, 2001, p. 145.
3 Idem, p. 146.
4 BELOTO, Divonzir Lopes. A criação da província do Paraná: a emancipação conservadora.
Dissertação de mestrado. Departamento de economia, PUC-SP, 1990, APUD: OLIVEIRA, opus
cit.
2
Dossiê CÂMARA MUNICIPAL
272
para a Câmara de Deputados, que ocorreu o conflito que repercutiu em
diversas regiões e foi tida por muitos como o acelerador do processo de
emancipação do Paraná de São Paulo.
Manuel Mendes Leitão construiu um poder local com seu campo
de atuação na Câmara de Curitiba, o que o permitiu adentrar nos círculos
camarários, inserindo-se na elite dos Campos Gerais, a região que
englobava Curitiba, Guarapuava e Castro e que fazia parte da 5ª. Comarca
da província de São Paulo. Entretanto, sua posição foi construída e
fortalecida tendo como base uma outra localidade; e é ali que ele
participará de um evento fundamental para a política regional.
A disputa de 1852 em São José ocorreu entre representantes do
Partido Conservador e do Partido Liberal servindo como um espelho dos
conflitos que grassavam o Segundo Reinado. O primeiro presidente de
Província do Paraná, Zacarias de Góes e Vasconcelos relatou esse evento:
Um tal fenômeno, se não exprime perfeita harmonia e
conciliação dos partidos em a nova província,
cumpre, ao menos, que fique bem registrado afim de
mostrar que aqueles, que, tomando por termômetro,
para avaliar a civilização deste povo, os tristes
acontecimentos de S. José dos Pinhais em 7 de
novembro de 1852, pensaram que os partidos aqui
medem-se ordinariamente pela força física, e
pleiteiam o triunfo da urna com o bacamarte,
caluniam atrozmente a índole e o caráter dos
habitantes do Paraná.
Haja um pouco de perseverança na encetada carreira
de moderação e tolerância, e creio, que, em breve, até
os nomes – cascudo e farrapo – que hoje um partido
aqui aplica, por escárnio, ao outro, e com que ambos,
sem o pensarem, se desairão aos olhos de estranhos,
serão riscados do vocabulário político.5
Esse conflito foi o fim de um longo processo que marcou a
separação política de São José, a legitimação da classe dominante no poder
local e ajudou à emancipação do Paraná, que ocorreria um ano depois. O
fato é que à muito tempo os moradores de São José requeriam a sua
elevação à categoria de vila. O pedido para a elevação aparece pela
primeira vez nas atas da Câmara de Curitiba em 18326, mas a emancipação
somente aconteceu vinte anos mais tarde.
5
6
RELATORIO DO PRESIDENTE DE PROVINCIA DO PARANA, 1854: P. 3
Atas da Câmara Municipal de Curitiba, BAMC, vol. XLV.
REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014.
273
Com a emancipação, o primeiro passo para a nova vila seria eleger
seus representantes, que atuariam na nova câmara. A responsabilidade de
tomar medidas para a instalação oficial da nova vila coube à Câmara
Municipal de Curitiba que, em sessão extraordinária, realizada no dia 3 de
setembro de 1852, expõe uma carta assinada pelo Vice-Presidente da
Província de São Paulo. Essa carta apontava que o Juiz de Paz mais votado
da Freguesia de São José deveria coordenar a eleição para a escolha dos
sete primeiros vereadores da nova vila. A eleição ocorreria no primeiro
domingo de outubro de 1852.
Os resultados foram apresentados em uma sessão ordinária da
Câmara de Curitiba no dia 22 de outubro. Os candidatos mais votados e
eleitos foram Manoel Alves Pereira, José Lionel da Silva, José Joaquim
Passos de Oliveira, Antonio Joaquim Oliveira Portes, Manoel Mendes
Leitão e Francisco de Paula Prestes Branco. 7 O evento que o presidente de
província do Paraná relata na passagem acima se refere a eleição que
aconteceu na seqüência à de vereadores: as chamadas eleições secundárias,
onde seriam escolhidos novos deputados. Essas eleições foram marcadas
para o dia 7 de novembro de 1852, mas nunca ocorreram. A descrição dos
acontecimentos ficou registrada em um processo que a Câmara de
Curitiba, na época responsável pela Freguesia de São José, ficou
encarregada de enviar ao presidente da província de São Paulo. 8
Infelizmente não tivemos acesso a esse documento, entretanto, no
centenário da emancipação política de São José, em 1953, o deputado
estadual Dario Marchesini discursou sobre aqueles eventos. Seu relato é o
mais completo sobre esses eventos, já que o deputado realizou uma
pesquisa junto ao processo judicial, que pode facilmente ser comparado
com outros relatos da época, como jornais e relatórios oficiais. Mesmo
assim devemos estar cientes de que se trata de um relato de um político de
carreira e não de um historiador. Alguns fatos podem ter sido distorcidos
em função da comemoração cívica. Pelo valor descritivo, citaremos o
discurso, procurando embasar o discurso com outras fontes:
...não
podemos
deixar
de
reparar,
nesta
oportunidade, grande injustiça que se fez à maior
parte destes homens, ao encobrir a verdade dos
acontecimentos lutuosos que aqui se verificaram a
Atas da Câmara Municipal de Curitiba, BAMC, vol. LVIII, Sessão de 22 de outubro de 1852.
É questionável o fato de que a Câmara de Curitiba devesse enviar o processo sobre este
evento para São Paulo.
7
8
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274
sete de novembro de 1852, e de que, direta ou
indiretamente, participaram. Era para se realizar
naquela data as eleições para deputados.
Degladiavam-se os partidos Liberal e Conservador,
ou dos Luzias ou Saquarema. À hora marcada, depois
de rezada a indispensável missa do Divino Espírito
Santo, acorriam os eleitos à Igreja para a votação.
Manoel Alves Pereira, o vereador mais votado, Juiz
de Paz, e que devia assumir a presidência da nova
Câmara, era um dos chefes liberais e, como ele,
maioria dos vereadores. Dirigindo-se com alguns
votantes à Mesa Paroquial, viu Manoel Alves Pereira
interceptada a sua passagem pela força policial e de
linha que estacionava à porta da Igreja, sob o
comando do cadete Benjamim Pereira de Vasconcelos
autoridade local, a mais graduada, não podia Manoel
Alves Pereira concordar com tal arbitrariedade e daí
estabelecer-se ligeira discussão com o sub-delegado
José Olinto Mendes de Sá e seus irmãos, sem que
entrasse em acordo. Retirando-se então com os seus
correligionários, foi Manoel Alves alvejado pelas
costas ali caindo morto. Como era natural, veio o
revide incontinente, travando-se uma luta entre os
que ali se achavam e o grupo armado. Outros
chegaram, e mais outros, e o tiroteio infernal só veio a
cessar depois de tombarem mais de 30 pessoas (...) o
que se vê claro é que sendo os conservadores
politicamente fracos no município, mas contando com
a força do pretexto de manter a ordem, enviar de
Curitiba um destacamento policial de linha, que
postou à frente da Igreja, com o objetivo evidente de
amedrontar e evitar, assim, a votação dos
adversários. Essa conclusão decorre logicamente do
fato de contarem os saqueremas 47 votantes entre os
496 qualificados. É claro, pois, que os luzias não
podiam nutrir outro desejo senão o de votar
livremente, porque certa era a vitória, ante à grande
maioria que mantinham9
Longa passagem, de alto valor descritivo, que aponta os
personagens e o palco político. Segundo o deputado, no processo emergem
morto o cadete Benjamim e feridas mais sete pessoas do lado dos
SÃO JOSÉ DOS PINHAIS, CAMARA MUNICIPAL, 1953, APUD MAROCHI, Maria
Angélica. Câmara Municipal de São José dos Pinhais – 150 anos (1853 – 2003). São José dos
Pinhais: Câmara Municipal, 2003, p.52.
9
REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014.
275
conservadores. Do lado liberal tombou morto Manoel Alves Pereira, e
dezenove pessoas saíram feridas.
O relatório do Ministro da Justiça, José Ildefonso de Souza Ramos,
aponta que Benjamim Pereira de Vasconcelos havia sido enviado para São
José “afim de manter a tranqüilidade pública e de evitar o ingresso de
gente armada na povoação, e especialmente na Igreja, como é tão fácil e
comum naqueles lugares”.10 A interceptação da entrada na igreja descrita
no discurso do deputado de São José se deveu ao fato de que um eleitor,
Francisco Franco, estava “armado de hum par de garruchas que trazia à
vista”. O Juiz de paz, Manoel Alves Pereira queria que Franco entrasse, e
na discussão Benjamim “caiu morto por ser-lhe disparado traiçoeiramente
e a queima-roupa, um tiro de garrucha na boca”. O que se seguiu foi o
conflito, em que morreram 6 pessoas.11
Nestes dois relatos percebemos dois pontos de vista um pouco
diferentes. No primeiro, do deputado de São José, Manoel Alves Pereira é a
principal vítima, no segundo, do Ministro da Justiça, os papéis se invertem
e é Benjamim Pereira de Vasconcelos que assume o lugar de vítima.
De qualquer forma, conflitos como esses ocorreram diversas vezes
em diferentes locais. Eram os conhecidos, porém pouco estudados,
processos de violência eleitoral.12 Vários ministros do Império apontavam
em seus relatórios as agitações nas eleições e a Lei de 4 de maio de 1842,
que procurava dar instruções acerca da maneira de se proceder as eleições,
tentou abrandar os conflitos através de um sistema eleitoral mais claro e
organizado, procurando manter um certo rigor no registro de eleitores.13
Entretanto, não havia um documento que identificasse esse eleitores, e
cabia à mesa conhecer a identidade dos votantes.
Os partidos Liberal e Conservador procuravam disputar o poder
em todos os níveis, desde a vereança local até os deputados que seriam
RELATÓRIO APRESENTADO À ASSEMBLEIA GERAL LEGISLATIVA, 1853
Nos registros de óbito encontramos os seis indivíduos que faleceram “no triste conflito que
teve lugar nesta vila”, como é referido o acontecimento nos registros: Antonio Franco, pardo
liberto; Manoel Alves Pereira; Custodio Teixeira da Cruz; Mathias Pereira do Vale; Matheus
Jose, pardo; o cadete Benjamin Pereira de Vasconcelos. REGISTROS DE OBITO. ARQUIVO
DA CURIA DE SÃO JOSÉ DOS PINHAIS: 1852.
12 DIAS, Maria Odila Leite. Sociabilidades sem história: votantes pobres no Império, 1824-1881.
IN: FREITAS, Marcos Cezar de. (org.) Historiografia brasileira em perspectiva. São Paulo:
Contexto, 2003.
13 FERREIRA, Manoel Rodrigues. A evolução do sistema eleitoral brasileiro. Brasília: Senado
Federal, p.173.
10
11
Dossiê CÂMARA MUNICIPAL
276
enviados a Corte no Rio de Janeiro. Segundo Manoel Rodrigues Ferreira, é
com o surgimento desses partidos na década de 1830 que as lutas políticas
se intensificam:
(...) era nos dias de eleição que os adversários se
enfrentavam e procuravam ou ganha-las ou tirar a
limpo suas questiúnculas (...). No dia das eleições (...)
todo o furor antes reprimido explodia, provocando
entre os partidos, toda a série de desatinos. Tudo se
corrompia nesse dia: mesas eleitorais, autoridades,
eleitores, etc. O objetivo era ganhar de qualquer
maneira.14
A disputa do poder local, porém, pesava para o lado daqueles que
possuíam maior apoio político através de uma rede de alianças, mas
tinham que lutar o mais dentro da esfera da legalidade possível. No
pensamento dos políticos do século XIX havia três impulsos conflitantes,
que se evidenciavam no momento das eleições, como Richard Graham
aponta:
Primeiro, sabiam que a legitimidade do sistema
político estava nos mecanismos que possibilitavam a
todos os membros da elite exercerem alguma
autoridade, ou a certeza de poder fazê-lo se assim o
quisessem. (...) Segundo, sentiam como os alicerces
do edifício social eram precários e tentavam
consolidá-los, impondo tranqüilidade pública e
comportamento ordeiro. Por conseguinte, as eleições
não deveriam disseminar violência, pois as
dissensões poderiam destampar um vulcão. Terceiro,
a liderança numa sociedade hierárquica dependia de
demonstrações públicas de lealdade.15
Desta maneira, as eleições deveriam ser honestas e ordeiras, mas o
partido governante deveria vencer sempre. “No final, a elite política
brasileira resolvia sem problema exercendo um firme controle eleitoral
através do uso do clientelismo.” 16 Talvez o abalo dessa ordem foi o que fez
com que as notícias do conflito em São José ecoassem em outras regiões, e
servissem de exemplo do que não deveria ocorrer em uma eleição.
Ibidem, p.168.
GRAHAM, Richard. Clientelismo e política no Brasil do século XIX. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ,
1997, p 104
16 Ibidem, p. 105.
14
15
REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014.
277
Através da prática do clientelismo, havia uma repartição da
autoridade, com pessoas controlando alguns canais de passagem do poder,
que emanava do imperador até o efetivo ocupante do cargo. Graham
percebeu que muitas vezes desafiar uma liderança municipal exigiu a
formação de um grupo alternativo que levantaria publicamente acusações
de fraude eleitoral ou, de um modo mais imediatamente efetivo, usar
diretamente a força para derrubar o ocupante do cargo. 17
O resultado de uma eleição durante o Império pode ser
compreendido como a conseqüência de uma complicada rede de alianças,
que foram sendo confeccionadas ao longo do tempo em tramas políticas
diversas. Aqueles que contavam com mais apoio venciam. O que ocorria
algumas vezes era que o governo decidia apoiar ou fortalecer uma facção.
Foi o que aconteceu com a escolha para suplentes de delegado em Curitiba
em 1841 visando evitar conflitos políticos.18 Mas talvez a ação mais forte
neste sentido tenha sido a nomeação de certos indivíduos à Comenda da
Ordem de Cristo em 1842.19 A lista de pessoas que foram agraciadas com a
Comenda foi enviada pelo futuro Barão de Antonina, e representava os
principais membros da elite no Paraná.
Um desses novos comendadores foi Manuel Mendes Leitão, que
desde o início do século XIX vinha participando ativamente na vida
política do Paraná. Compreender sua trajetória política nos ajuda a
entender o conflito político de São José.
Os cargos políticos de Manuel Mendes Leitão
Leitão inicia sua vida política em 1808 quando é eleito pela
primeira vez para ocupar o cargo de vereador em Curitiba. Outros cargos
que Leitão assumiu foram o de capitão de ordenanças, juiz de paz,
delegado, juiz de órfãos e sub prefeito de São José. Todos esses cargos são
posições de grande poder local, e seu acúmulo representava um enorme
controle dos destinos políticos da vila. Analisaremos o poder político
presente em cada uma dessas funções.
Ibidem, p. 165.
AESP. Ofícios diversos - Curitiba. Ofício de Francisco Jose Correa, sobre a indicação de
cidadãos para suplente de delegado de Curitiba, pasta 3, caixa 209, ordem 1004, 1843.
19 LEÃO, Ermelino de. Diccionário histórico e geográfico do Paraná, vol. III, Instituto histórico,
geográfico e etnográfico paranaense. Curitiba, 1994 [1926], p. 1229.
17
18
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278
Tabela 1. Cargos desempenhados por Manuel Mendes Leitão
Função
Ano
Vereador
1808, 1829, 1831, 1833,1842
Capitão de Ordenanças
1829
Vice-administrador de São José
1831
Juiz municipal
1833
Juiz de paz em São José
1833
Administrador da estrada do Arraial
1834
Sub-Prefeito em São José
1835
Delegado
1843
Juiz de Órfãos de Curitiba
1842
Fonte: Atas da Câmara de Curitiba, BAMC: 1931.
O cargo de prefeito é pouco estudado na historiografia brasileira, até
porque teve uma duração bem curta. Foi instituído através da Lei
Provincial no. 18, de 11 de abril de 1835.20 Este cargo era de designação do
presidente da província, e estava incumbido de comandar a Guarda
Nacional, de fiscalizar empregados e receber os ofícios que fossem
dirigidos pelos vereadores ao governo; além disso, os prefeitos deviam
assistir às sessões das Câmaras e de propor quaisquer medidas para
melhorias dos serviços. Segundo esta lei, a vila teria um prefeito, e as
freguesias e capelas teriam sub-prefeitos, nomeados pelo presidente de
Província. Claramente esta era uma tentativa do poder central de ter maior
controle sobre as decisões locais. Entretanto, essa lei foi revogada em
março de 1838 pela província de São Paulo. Não possuímos muitas
informações acerca das funções próprias do cargo, mas podemos intuir que
ele também tinha uma grande importância local, já que Leitão pede
demissão do cargo de juiz de paz suplente de São José para entrar no
exercício de sub-prefeito em 1835.21
No que concerne ao cargo de Leitão de capitão, Fernando
Uricoechea assinala que os corpos de ordenança eram compostos de civis
não alistados para as tropas regulares ou as milícias. 22 Essas unidades não
recebiam qualquer pagamento e sua ação se dava a nível municipal. Ao
Lei Provincial, n. 18, de 11 de Abril de 1835. Promulgada pelo presidente da província de
São Paulo, Rafael Tobias de Aguiar. IN:
http://www.al.sp.gov.br/repositorio/legislacao/lei/1835/lei%20n.18,%20de%2011.04.1835.h
tm. Consultada em 06/08/2013.
21 ATAS DA CAMARA MUNICIPAL DE CURITIBA. IN: Boletim do arquivo municipal de
Curitiba (BAMC) . 1931, XLVII.
22 URICOECHEA, Fernando. O minotauro brasileiro. A burocratização do Estado patrimonial
brasileiro no século XIX. Rio de Janeiro, SP; Difel, 1978, p.110.
20
REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014.
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contrário das milícias, que também atuavam no Paraná, as ordenanças
tinham uma organização local e suas funções extravasavam a atividade
militar. Comandadas por um capitão-mor, com subdivisões em
companhias comandas por capitães, as ordenanças abrigavam as elites
locais, onde os mais altos ocupantes da hierarquia social também
ocupavam os postos mais graduados de comando. Quando ocupou pela
primeira vez a vereança em Curitiba, em 1808, Manuel Mendes Leitão era
alferes de Ordenanças e em 183123 ocupava o posto de Capitão, um dos
postos mais altos a nível local. A principal função desses corpos era
auxiliar na administração da ordem, o que lhes conferia muito poder.
A função de juiz de paz que Leitão exerceu em 1833 em São José,
talvez tenha sido uma de suas funções mais importantes em sua trajetória
política. Criado em 1827, o juizado de paz alterou profundamente o
cotidiano da justiça. Com atribuições administrativas, policiais e judiciais,
o juiz de paz acumulava amplos poderes, até então distribuídos por
diferentes autoridades (como juízes ordinários, almotacés, juízes de
vintena). Seu exercício se relacionava à justiça conciliatória, julgamento de
pequenas causas, à manutenção da ordem pública e emprego da força
pública, vigiar o cumprimento das posturas municipais, enfim, funções
que estavam ligadas à administração, jurisdição e policiamento da
freguesia.24
O viajante alemão Carl Seidler, relata em seu livro Dez anos no
Brasil, no qual descreve sua viagem entre os anos de 1833 e 1834, que
Só os juízes de paz, que são eleitos pelo povo e
desempenham
suas
funções
sem
qualquer
remuneração, gozam de estima pública e quase cega
obediência. Seus plenos poderes são amplos, se bem
que não possam decidir dos processos desde que a
causa exceda ao valor de dezesseis talers, a sua
palavra é quase sempre acatada e confirmada pelas
instâncias superiores; uma recomendação deles vale
por uma sentença.” E prossegue: “Em caso de
desordem, todas as forças militares ficam às suas
ordens, assim como dispõem integralmente da
polícia. Seu distintivo é uma faixa verde-amarela,
com a largura da mão, que passa do ombro direito ao
Após 1831, com a criação da Guarda Nacional, as ordenanças foram incorporadas a esta
corporação, mantendo a mesma hierarquia.
24 LEAL, Victor Nunes. Coronelismo, enxada e voto. O município e o regime representativo no
Brasil. São Paulo, Editora Alfa-Omega, 1986, p.193.
23
Dossiê CÂMARA MUNICIPAL
280
quadril esquerdo e atesta sua dignidade judicial.” E
conclui: “Mostrando essa faixa num motim ou no
mais louco ajuntamento popular, instantaneamente se
restabelece a ordem; até o aparecimento de um juiz
de paz, com suas palavras severas, amigáveis, tem
muito mais influência sobre a massa do que toda a
ostentação da força militar.25
Essa citação dá visibilidade ao grau de poder que o juiz de paz
possuía. Além disso, o juiz de paz coordenava as eleições municipais. Um
cargo imbuído de um poder tão grande gerou constantes conflitos pelo seu
acesso. Em Franca, por exemplo, ocorreram distúrbios envolvendo elites
locais. Em 27 de setembro de 1838, Anselmo Ferreira de Barcellos,
acompanhado de um grupo de pessoas armadas, invadiu a casa do juiz de
paz eleito Manuel Rodrigues Pombo, obrigando-o a passar o cargo para o
seu suplente. O juiz destituído provocou uma reação armada na qual
acabaram mortas quatro pessoas, entre elas o próprio Rodrigues Pombo. O
ocorrido, que ficou conhecido como “Anselmada” é exemplar para se
perceber como as disputas por posições de poder nas localidades eram
conduzidas num período de maior autonomia. Diga-se de passagem que o
evento ficou registrado na história da cidade de Franca de uma maneira
bastante visível: até hoje, a bandeira da cidade é representada por um
homem, à direita, vestido de marrom, com um bacamarte, que representa a
figura de Anselmo Ferreira de Barcellos, o líder do levante armado. 26
Na época do conflito de São José, o juiz de paz eleito era Manoel
Alves Pereira e, portanto, o responsável pela organização da chamada
eleições secundárias, onde seriam escolhidos novos deputados. Alves
Pereira foi morto, talvez, porque representava um opositor forte face ao
grupo que queria comandar a política local.
No ano de 1843 Mendes Leitão é um dos eleitos para o cargo de
suplente de delegado em Curitiba. Esta era uma época crítica, em que se
desenrolava a Revolução Farroupilha no Sul e revoltas liberais haviam
ocorrido recentemente em São Paulo (Sorocaba, Itu, Itapetininga). Curitiba,
de certo modo, estava cercada de revoltosos. Segundo ofício de Francisco
José Correa, “os suplentes atuais são quase todos de partido exagerado, e
SEIDLER, Carlos. Dez anos de viagem no Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia: USP, 1980. APUD:
BRAGA, Pedro. Crime, pena e sociedade no Brasil pré-republicano. Revista de Informação
Legislativa. Brasília a. 40 n. 159 jul./set. 2003.
26 LIMA, Marco Antunes de. A cidade e a província de São Paulo às vésperas da Revolução Liberal de
1842. Relatório de bolsa de iniciação científica, USP, 2001.
25
REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014.
281
por isso não convém a sua continuação”.27 O partido exagerado referido é
o Partido Liberal e deveria ser substituído para que não ocorressem
revoltas em Curitiba. Os indicados para o cargo de suplentes de delegado
foram, nesta ordem, Joaquim Gonçalves Guimarães, o Coronel de Legião
Antonio Mauricio da Costa Guimaraens, o major Manoel João da Costa
Bittencourt, o Tenente Coronel Ricardo Lustosa de Andrade, o capitão
Manuel Mendes Leitão, e Manuel d‟Oliveira Franco. 28
Todos ocupavam posições de destaque na vila de Curitiba e, pelos
títulos, percebemos que possuíam prestígio local. Graham aponta que os
delegados de polícia eram eleitos pelo poder central, o que freqüentemente
gerava conflitos em diversas regiões entre os Conservadores (do lado do
poder central) e os Liberais. O mesmo autor ainda diz que “a partir de
1837, quando o café emergiu, dando à nação um novo centro econômico de
gravidade, houve um contínuo afastamento do liberalismo da década
anterior e uma reação no sentido da restauração do poder do governo
central. A instituição, em 1841, dos delegados de polícia nomeados pelo
poder central e com ampla autoridade judicial, foi o auge desse processo e
continuou sendo a pedra de toque das diferenças subseqüentes entre
Liberais e Conservadores”.29 Demonstrando a continuidade do poder da
família, um filho de Leitão ocupará a posição de sub-delegado de polícia
em São José na época do conflito de 1852. Um chefe de polícia para cada
província – em nosso caso São Paulo –, delegados em cada município, e
subdelegados em cada paróquia. Estes eram os principais agentes dos
presidentes provinciais, que faziam cumprir lei e ao mesmo tempo
aglutinavam os interesses políticos.30
O Cargo de Juiz de órfãos, que Leitão exerceu em 1842 em
Curitiba, também era um dos mais importantes, conferindo um alto grau
de poder a quem o possuía. Eram eleitos ou nomeados e não necessitavam
ter formação em direito31. No século XIX seu papel estava ligado aos
OFÍCIOS DE SÃO PAULO. Ofício de Francisco Jose Correa, sobre a indicação de cidadãos
para suplente de delegado de Curitiba, DAESP, 1943.
28 AESP. Ofícios diversos - Curitiba. Ofício de Francisco Jose Correa, sobre a indicação de
cidadãos para suplente de delegado de Curitiba, pasta 3, caixa 209, ordem 1004, 1843.
29 GRAHAM, opus cit, p. 89
30 GRAHAM, opus cit, p. 87
31 “A administração da Justiça ressentia-se de falta de juízes profissionais, o que explica sua
morosidade e irregularidade. Contava a Província, em 1858, com dez municípios, vinte
freguesias, e com três juízes de direito e seis juízes municipais”. HISTÓRIA do Poder
Judiciário no Paraná, 1982: p. 38. Apud: GRAF, Marcia Elisa de Campos, et al. Redescobrindo o
27
Dossiê CÂMARA MUNICIPAL
282
órfãos, assim, cuidava dos diversos processos de partilhas de heranças,
inventários e pedidos de emancipação por parte de menores. Um dos
processos mais importantes e corriqueiros era o de solicitação de tutela.
Isto ocorria quando uma criança se tornava órfã e o juiz de órfãos nomeava
um tutor para cuidar dela, caso não houvesse algum nome indicado em
testamento. O juiz de órfãos se tornava momentaneamente administrador
dos bens do órfão, e mesmo após a escolha de um tutor, ele continuava a
supervisionar a gerência dos seus bens. 32 Com a Lei de Terras, o juiz de
órfãos assume ainda mais funções na segunda metade do século XIX. O
acesso à terra se torna maior, o que acaba gerando uma grande quantidade
de inventários, atribuindo um controle temporário de riquezas às mãos do
juiz.33
Por ter ocupado estes cargos, além de ter recebido o título de
comendador em 1842, Manuel Mendes Leitão se tornou um grande chefe
político local. Seus filhos também ocupavam posições de destaque,
herdando o prestígio do pai. Na época do conflito de 1852, seu filho José
Olinto Mendes de Sá, era sub-delegado e um dos principais envolvidos.
Com a morte de um vereador eleito, outro filho de Leitão assume o cargo,
juntamente com o pai, o que tornava a força política da família Mendes
ainda mais poderosa.
Conclusão
Em 1858, quando Robert Ave-Lallemant viajou pelo Paraná, as
notícias sobre o conflito que ocorrera em São José, seis anos antes, ainda
estavam vivas. O viajante alemão escreve que “as eleições para o Senado e
a Câmara dos Deputados são apaixonadíssimas, têm dado ocasião a
conflitos sangrentos. Em São José, uma simples aldeia, houve há poucos anos
um conflito político, no qual, dentro e perto da igreja, foram assassinadas
poder judiciário paranaense: o acervo do poder judiciário paranaense trabalhado a partir de
oficinas. IN: http://www.pr.gov.br/arquivopublico.
32 AZEVEDO, Gislane Campos. Os juízes de órfãos e a institucionalização do trabalho infantil
no século XIX. IN: Arquivo do Estado de São Paulo:
http://www.historica.arquivoestado.sp.gov.br/materias/anteriores/edicao27/materia01/tex
to01.pdf.
33 LIMA, Carlos A. M. Índios de Palmas expostos em Campo Largo, preação, resgate e os ecos
da lógica do tráfico de escravos (Paraná, décadas de 1830 e 1840). In: Colóquios. Revista do
Colegiado de História da Faculdade de Filosofia – FAFIUV. União da Vitória, v. 1, n. 1,
novembro/2007, pp. 12-29.
REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014.
283
dez pessoas e, ao intervir a força armada legal, foram feridos mais vinte
homens".34
A disputa pelo poder desgastava diversas regiões do Brasil em
meados do século XIX. As Câmaras Municipais representavam o locus
privilegiado do poder local. Eram nelas que se reunia a categoria dos
homens bons e onde eram tomadas decisões que afetavam a vida econômica,
social e política de uma região. Houve constantes redefinições das
atribuições camarárias ao longo do século XIX, mas isso não culminou em
um esvaziamento por parte das elites, que continuaram a disputar as
eleições para o cargo de vereador. Os processos de violência eleitoral são
um exemplo disso, onde grupos opostos utilizavam da força para obter
uma colocação nas Câmaras. Há muitas outras facetas para se analisar em
conflitos como esses, mas optamos por um fio condutor que nos
possibilitasse perceber a formação do poder de maneira mais circunscrita.
A análise da trajetória política de um indivíduo nos ajuda na
compreensão do funcionamento das Câmaras por “dentro”, já que
conseguimos visualizar sua atuação nessas instituições. A escolha pelo
estudo da trajetória de Manuel Mendes Leitão se mostrou profícua no
sentido de que este indivíduo navegou por várias esferas do poder local.
Ocupou diversos cargos e estabeleceu alianças, que o ajudaram na sua
ascensão social. De alferes de ordenanças no início do século, se torna
comendador “sendo a segunda pessoa da lista dos homens bons e bem
estabelecidos da Comarca”35 no ano de 1842.
Através da política, estes “potentados locais” procuravam
defender uma estrutura social baseada no clientelismo e em ações
paternalistas, onde esperavam angariar a maior quantidade de apoio
político que conseguissem. Também fazia parte de suas ações a projeção do
poder adquirido para a geração seguinte. A participação na política por
parte desses indivíduos visava manter uma rede de dependentes e clientes
além de conseguir obter medidas que fossem favoráveis as suas atividades
econômicas.36
AVE-LALLEMANT, Robert. 1858, viagem pelo Paraná. Curitiba: Fundação Cultural, 1995, p
73
35 LEAO, Ermelino. Dicionário histórico e geográfico do Paraná. Curitiba, 1994, p. 1229
36 GRAHAM, Richard. O Brasil em meados do século XIX à guerra do Paraguai. IN: BETHELL,
Leslie (org.). História da América Latina: da Indepedência a 1870, vol III. São Paulo: Editora da
Universidade de São Paulo; Imprensa oficial do Estado; Brasília: Fundação Alexandre de
Gusmão, 2004, p 806.
34
Dossiê CÂMARA MUNICIPAL
284
Manuel Mendes Leitão se esforçará na disputa pelo governo da
Câmara, utilizando-se inclusive de pressão. Não sabemos com certeza qual
seu objetivo ao se envolver no conflito, mas com a morte do candidato
mais votado, Leitão passa a ocupar a posição de presidente da Câmara e
um de seus filhos assume a vereança. Esse seria um dos últimos atos
políticos deste potentado, que estava dando continuidade à permanência
da família Mendes no poder.
Referências documentais
ATAS DA CAMARA MUNICIPAL DE CURITIBA. IN: Boletim do arquivo municipal de
Curitiba (BAMC) . 1931, Vols. LVIII, XLIV, XLV, XLVII.
AVE-LALLEMANT, Robert. 1858, viagem pelo Paraná. Curitiba: Fundação Cultural, 1995.
LEAO, Ermelino. Dicionário histórico e geográfico do Paraná. Curitiba, 1994.
OFÍCIOS DE SÃO PAULO. Ofício de Francisco Jose Correa, sobre a indicação de cidadãos
para suplente de delegado de Curitiba, DAESP, 1943.
RELATORIO APRESENTADO A ASSEMBLEIA GERAL LEGISLATIVA, 1853.
IN:
http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/u1844/000003.html, consultado em 06/08/2013
RELATORIO DO PRESIDENTE DE PROVINCIA DO PARANA, Zacarias de Góes e
Vasconcelos. 15 de julho de 1854. IN: http://brazil.crl.edu, consultado em 06/08/2013.
REGISTROS DE OBITO. ARQUIVO DA CURIA DE SÃO JOSÉ DOS PINHAIS: 1852.
Referências bibliográficas
AZEVEDO, Gislane Campos. Os juízes de órfãos e a institucionalização do trabalho infantil
no século XIX. IN: Arquivo do Estado de São Paulo:
http://www.historica.arquivoestado.sp.gov.br/materias/anteriores/edicao27/materia01/te
xto01.pdf.
BELOTO, Divonzir Lopes. A criação da província do Paraná: a emancipação conservadora.
Dissertação de mestrado. Departamento de economia, USP, 1990
CARNEIRO, David. História da emancipação do Paraná. Curitiba, Instituto de Pesquisas
históricas e arqueológicas, 1954.
DIAS, Maria Odila Leite. Sociabilidades sem história: votantes pobres no Império, 1824-1881. IN:
FREITAS, Marcos Cezar de. (org.) Historiografia brasileira em perspectiva. São Paulo:
Contexto, 2003.
FERREIRA, Manoel Rodrigues. A evolução do sistema eleitoral brasileiro. Brasília: Senado Federal
GRAHAM, Richard. Clientelismo e política no Brasil do século XIX. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ,
1997.
_________________. O Brasil em meados do século XIX à guerra do Paraguai. IN: BETHELL,
Leslie (org.). História da América Latina: da Indepedência a 1870, vol III. São Paulo: Editora da
Universidade de São Paulo; Imprensa oficial do Estado; Brasília: Fundação Alexandre de
Gusmão, 2004.
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Dossiê CÂMARA MUNICIPAL
286
O ordenamento do espaço urbano na corte imperial
O caso dos “inconvenientes” quiosques frequentados por “gente grosseira”
(décadas de 1870-1880)
Juliana Teixeira Souza 1
1
Resumo: O tema principal desse artigo são as polêmicas
sobre os quiosques instalados nas freguesias urbanas do
Rio de Janeiro, entre as décadas de 1870 e 1880. A
proposta é abordar os conflitos entre a câmara
municipal, o governo central, empresas privadas e
pequenos comerciantes sobre os locais de instalação
desses quiosques. O tema também permite discutir
questões relacionadas aos comportamentos dos
trabalhadores pobres nos espaços públicos, objetos de
preocupação, vigilância e controle por parte dos
governantes. O objetivo central é debater as questões
relacionadas ao ordenamento do espaço urbano, de
modo a evidenciar que a Câmara Municipal do Rio de
Janeiro manteve sua vitalidade política, preservando o
poder de tomar decisões sobre variados aspectos da
vida cotidiana da cidade.
Palavras-chave: Câmara Municipal, ordenamento do
espaço urbano, quiosque
Abstract: The main theme of this article is the
discussions on the kiosks installed in urban parishes of
Rio de Janeiro, between the 1870s and 1880s. The
proposal is to approach the conflict between the
municipal chamber, the central government, private
companies and small traders about the locations of
installing these kiosks. The theme also allows discussing
issues related to the conduct of the working poor in
public spaces, objects of concern, surveillance and
control by governments. The central objective is to
discuss issues related to spatial urban, to evidence that
the Municipality of Rio de Janeiro maintained its
political vitality, preserving the power to make
decisions on various aspects of everyday city life.
Keywords: municipal chamber, ordering urban space,
kiosk
Doutora em História Social pela UNICAMP, Professora Adjunta do Departamento de
História da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (Campus Natal – RN).
1
REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014.
287
Introdução2
A administração imperial é um dos temas mais tradicionais da
historiografia brasileira, mas percorrendo as páginas de estudos clássicos e
trabalhos mais recentes dedicados ao tema se percebe que as discussões
relativas às câmaras municipais no período imperial pouco aparecem. E
quando essa instância é mencionada, no geral, os estudiosos se limitam a
reforçar a ideia de que as municipalidades estavam subordinadas a outras
esferas do governo, difundindo a imagem dos governos locais sendo
esvaziados de poder e autoridade. Esse enfoque aparece em Os donos do
poder (1958), em que Raymundo Faoro analisa o Regresso Conservador
enfatizando a anulação das autoridades locais, afirmando que “a liberdade
– isto é, a autonomia das influências locais – estava morta”.3 Em 1962,
Sérgio Buarque de Holanda, escreveu que a “nulificação dos corpos
municipais” inseria-se no quadro mais amplo de desagregação da herança
colonial. 4 E a exclusão das municipalidades do jogo político nacional é
reforçada em estudos mais recentes, como o empreendido por Miriam
Dolhnikoff em O pacto imperial (2005), no qual afirma que a subordinação
das municipalidades ao governo provincial seria mantida até o regime
republicano.5
Há estudos em que a ideia dos governos locais submetidos às
autoridades provinciais ou ligadas ao poder central é questionada, ou
abordada de maneira a não desqualificar os grupos que atuam nessa
instância como sujeitos políticos. Mas quando esses estudos tratam do
município da Corte, a ênfase é na sua subordinação ao Paço. Em Teatro de
sombras, resultado da tese de doutoramento de 1975, José Murilo de
Carvalho considera que a imagem de um Estado centralizador, excessivo e
opressor atribuída ao regime monárquico fosse em parte ilusória, pois a
Este artigo baseia-se em minha tese de doutorado em história, A autoridade municipal na Corte
imperial: enfrentamentos e negociações na regulação do comércio de gêneros (1840-1889), apresentada
à Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) em 2007, e financiada pelo CNPq e
FAPESP.
3 FAORO, Raymundo. Os donos do poder. São Paulo: Globo, 1993, p. 334.
4 HOLANDA, Sergio Buarque de. A herança colonial – sua desagregação. In: HOLANDA, S. B.
O Brasil monárquico. 1. O processo de emancipação. História Geral da Civilização Brasileira. São
Paulo/Rio de Janeiro: Difel, 1976, p. 24-26.
5 DOLHNIKOFF, M. O pacto imperial: origens do federalismo no Brasil. São Paulo: Ed. Globo,
2005, p. 205.
2
Dossiê CÂMARA MUNICIPAL
288
burocracia imperial “não alcançava as municipalidades e mal atingia as
províncias”. Mas a respeito daquilo da Câmara Municipal do Rio de
Janeiro, o cientista político avalia que a burocracia do Estado “agigantavase” na Corte, onde a centralização política do poder se fazia mais efetiva. 6
Nesse sentido, a atuação da Câmara Municipal do Rio de Janeiro poderia
ser deduzida em função de sua localização, na cidade sede do governo
central. Esse aspecto é reforçado por Ilmar de Mattos em O Tempo
Saquarema (1986), ao considerar que nas freguesias urbanas da Corte “se
localizavam as instituições e instalações que tornavam possível a
reprodução dos interesses dominantes: o Paço, o Senado, a câmara dos
Deputados e a Câmara Municipal”. 7 A Câmara Municipal do Rio de
Janeiro perderia, assim, qualquer perspectiva de autonomia, sendo
definida como mera extensão do governo central.
Nos estudos aqui mencionados se verifica que a história política do
Brasil Império foi e continua pautada, sobretudo, na perspectiva dos
dominantes, elegendo o poder central e/ou o governo provincial como
ponto de referência privilegiado para a investigação histórica. Ainda que a
documentação produzida nessas esferas possam trazer pistas sobre o modo
de pensar e as formas de agir dos homens que atuavam nas câmaras, é
preciso confrontar esses dados com outras fontes, especialmente a
documentação produzida na esfera municipal. Então, para acrescentar
novos elementos a esse debate, consideramos necessário alargar o campo
de análise, colocando o governo local e a documentação produzida pela
administração municipal em primeiro plano, para focar na rotina
administrativa da instituição camarária, acompanhando os debates em
torno da delimitação de suas atribuições e capacidade de intervenção
governativa. 8
Considerando especificamente o caso da Câmara Municipal do Rio
de Janeiro durante o Segundo Reinado, pretendemos discutir os conflitos
instaurados entre a vereança, o governo central, empresas privadas e
pequenos comerciantes sobre questões relacionadas ao ordenamento do
espaço urbano. O Regimento das Câmaras publicado em 1828 mostra que
CARVALHO, José Murilo de. A construção da ordem: elite política imperial; Teatro de sombras:
a política imperial. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010, p. 418.
7 MATTOS, Ilmar de. O tempo saquarema: a formação do Estado imperial. Rio de Janeiro:
HUCITEC, 2004, p. 90.
8 A referência para a formulação desse segundo problema foi o artigo de Maria de Fátima
Gouvêa, em que se analisa os conflitos jurisdicionais entre a municipalidade e outras
instituições administrativas. Ver: GOUVÊA, Maria de Fátima. Poder, autoridade e o senado da
câmara do Rio de Janeiro, ca.1780-1820. Tempo, Rio de Janeiro, vol. 7, n. 13, pp. 111-155. 2002.
6
REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014.
289
as competências exercidas pelas municipalidades durante o regime
monárquico se concentravam fundamentalmente em três eixos:
regulamentação da economia local, implantação de políticas de saúde
pública e ordenamento do espaço urbano. Não por acaso, essas três
dimensões correspondem ao que Magnus Roberto de Mello Pereira
(PEREIRA, 2001) identificou como as atribuições tradicionais do direito de
almotaçaria, exercido pelas câmaras municipais portuguesas desde o final
do período medieval, que no seu dizer se definem como o controle do
mercado, do sanitário e do edificatório. De acordo com o Regimento das
Câmaras de 1828, competia às câmaras municipais deliberar sobre “os
meios de promover e manter a tranquilidade, segurança saúde, e
comodidade dos habitantes; o asseio, segurança, elegância, e regularidade
externa dos edifícios, e ruas das povoações, e sobre estes objetos formarão
as suas posturas”. No caso do município da Corte, essa confirmação era
atribuição do Ministério dos Negócios do Império.
No artigo que ora apresentamos, o ordenamento do espaço urbano
será abordado por meio dos conflitos envolvendo a instalação de quiosques
nas freguesias urbanas da Corte. Os quiosques eram pequenos pavilhões
instalados nas principais ruas, praças e largos das freguesias do município,
e que durante décadas fizeram parte da paisagem urbana. Com essas
construções abriu-se uma nova frente de investimento, a baixo custo, para
os pequenos comerciantes que não tinham recursos suficientes para
comprar ou alugar um estabelecimento comercial. Mas os quiosqueiros e
sua clientela foram alvos de muitas críticas, como as que aparecem em O
Rio de Janeiro do meu tempo (1938), do memorialista Luiz Edmundo. Para ele:
“O quiosque, excrescência do passado, de veria desaparecer, de qualquer
forma, bem como todos os processos vexatórios de que lançavam mão
alguns interessados na exploração dos mesmos”. 9 Por disponibilizavam
seus produtos por preços mais baratos, assim como as tavernas e
botequins, os quiosques eram frequentados por trabalhadores pobres que,
antes de ir ao trabalho ou em suas horas de lazer e descanso, gostavam de
beber café ou alguma “bebida espirituosa”, faziam batucadas, falavam e
gargalhavam alto, cantavam modinhas e dançavam lundus. Divertiam-se,
enfim, sem guardar os modos recomendados pela chamada “boa
sociedade”. 10 O problema era que, no meio da rua, expostos aos olhares
EDMUNDO, Luiz. O Rio de Janeiro do meu tempo. Brasília: Senado federal, Conselho Editorial,
2003, p. 318.
10 MATTOS, Ilmar Rohloff de. O tempo saquarema, p. 122-141.
9
Dossiê CÂMARA MUNICIPAL
290
públicos, a clientela dos quiosques atraia a atenção dos passantes, fosse
pela sua maneira de se vestir, pelo barulho das conversas, pelo
comportamento tido como inadequado e ou pelas eventuais confusões que
pudessem protagonizar, gerando conflitos que se arrastaram por décadas.11
Por conta disso, além das questões referentes ao ordenamento do
espaço urbano, relacionadas às decisões sobre onde instalar os quiosques, o
tema também gerava discussões sobre os comportamentos dos
trabalhadores pobres nos espaços públicos e suas formas de ocupar o
tempo ocioso, objetos de preocupação, vigilância e controle por parte dos
governantes. Por meio da abordagem desses conflitos, o objetivo é
evidenciar que a Câmara Municipal do Rio de Janeiro manteve sua
vitalidade política, preservando o poder de tomar decisões sobre variados
aspectos da vida cotidiana da cidade.
Das conveniências e inconveniências dos quiosques
Em maio de 1874, o ministro do Império encomendou à Comissão
de Melhoramentos da Cidade do Rio de Janeiro um “plano geral para o
alargamento e retificação de várias ruas desta capital e para a abertura de
novas praças e ruas, com o fim de melhorar suas condições higiênicas e
facilitar a circulação entre seus diversos pontos, dando ao mesmo tempo
beleza e harmonia às suas construções”. 12 A Comissão era formada por
engenheiros notáveis, mas seu projeto de reforma urbana não foi
executado, como tantos outros surgidos ainda naqueles tempos em que a
cidade ainda guardava muitos traços dos tempos coloniais. De todo modo,
interessa-os notar que um dos membros da Comissão de Melhoramentos
foi o engenheiro Francisco Pereira Passos, figura bastante conhecida da
história do Rio de Janeiro justamente pelo “bota-abaixo” que promoveu na
época em que foi prefeito do Distrito Federal, entre 1902 e 1906. 13 Pouco
tempo depois de participar da Comissão, Pereira Passos foi nomeado
diretor da Estrada de Ferro D. Pedro II, cargo que ocupou entre 1876 e
1880. Durante sua gestão, por mais de uma vez ele entrou em conflito com
CHALHOUB, Sidney. Trabalho, lar e botequim. São Paulo: Brasiliense, 1986, p. 172-175.
Relatório do Ministério dos Negócios do Império Apresentado em Maio de 1875. Primeiro
Relatório da Comissão de Melhoramentos da Cidade do Rio de Janeiro. Documento
disponível na página: http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/u1702/000697.html.
13 BENCHIMOL, Jaime Larry. Pereira Passos: um Haussman tropical. A renovação urbana da cidade
do Rio de Janeiro no início do século XX. Rio de Janeiro: Biblioteca Carioca, 1990; e ROCHA,
Oswaldo Porto. A era das demolições: cidade do Rio de Janeiro. 1870-1920. Rio de Janeiro:
Secretaria Municipal de Cultura, 1995.
11
12
REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014.
291
a vereança, discordando dos critérios utilizados pela instituição camarária
na definição dos locais em que seriam assentados os quiosques. Alguns
pavilhões foram colocados no entorno da ferrovia, contrariando seu ponto
de vista, aliás compartilhado com outros funcionários da Estrada de Ferro,
como o engenheiro James W. Wells, responsável pelas obras que foram
realizadas na Estação Marítima. Em 22 de julho de 1879, Pereira Passos
recebeu um comunicado expedido pelo engenheiro James W. Wells
informando sobre a colocação de novos quiosques na região, que no seu
ver impediam o trânsito livre nas ruas. James W. Wells afirmou: “Está fora
dos limites desta Estação e eu não podia proibir o assentamento do referido
quiosque. [...] peço pois a Vossa Excelência para tomar providências, a fim
de evitar quanto for possível a colocação inconveniente destes quiosques
nas imediações desta Estação”. 14
Além dos quiosques estarem sendo colocados fora dos limites da
Estrada de Ferro, Pereira Passos e James W. Wells não tinham competência
para suspender o assentamento ou ordenar a remoção dos pavilhões. Essas
eram atribuições da Câmara Municipal, também responsável por cuidar do
trânsito das ruas, mantendo-as livre de qualquer embaraço, problema com
os qual eles se mostravam igualmente preocupados, ainda que também
estivesse fora da alçada dos engenheiros. Na verdade, há indícios de que
eles já haviam tentado demover os vereadores de sua decisão de assentar
aqueles quiosques nas proximidades da Estrada de Ferro, mas sem sucesso.
Ao menos foi isso que Pereira Passos deu a entender em ofício
encaminhado ao Ministério dos Negócios da Agricultura, Comércio e
Obras Públicas, a quem apelou na expectativa de angariar algum apoio
mais consistente na queda de braço que vinha travando com a instituição
camarária. Muito embora Francisco Pereira Passos fosse um profissional de
grande prestígio junto ao governo imperial, os vereadores se mostraram
vigorosamente dispostos a não ceder em favor de sua empreitada contra os
quiosques. No ofício encaminhado ao ministro, Pereira Passos afirmou:
Resultando da colocação de tais quiosques muitos e
graves inconvenientes para o serviço desta Estrada,
como por vezes representei com relação aos que,
apesar do compromisso da Ilustríssima Câmara para
removê-los, continuam em frente à Estação Central,
dei ordem para que se procurasse evitar o
assentamento ali dos ditos quiosques, mas a
14
AGCRJ, Quiosques, cód. 45-4-20, 22 de julho de 1879.
Dossiê CÂMARA MUNICIPAL
292
Ilustríssima
Câmara
tem
autorizado
esse
assentamento, impondo-o até por meio dos seus
agentes.
Venho, portanto, rogar a Vossa Excelência se digne
providenciar para que se não continue a colocar
quiosques junto às estações da Estrada, e sejam
removidos os que já existem, os quais, além de
oferecerem muitos outros inconvenientes, dificultam
o trânsito de veículos e pessoas a pé, que é sempre
muito grande em certas horas do dia nas
proximidades das estações. 15
Parece evidente que, para os engenheiros Pereira Passos e James W.
Wells, a instalação de quiosques não convinha ao bom o ordenamento do
espaço público, como parece claro que essa opinião não era compartilhada
pelos engenheiros da Diretoria das Obras Municipais, encarregada de
determinar os locais onde os quiosques seriam colocados. Cada qual se
mostrava comprometido com os interesses da instituição à qual estava
vinculado, mas naquela disputa a situação estava mais favorável aos
agentes da municipalidade, que ao fim das contas tinham a prerrogativa de
decidir sobre o ordenamento do espaço público e à regulação das
atividades econômicas locais. Em 1879, quando a queixa de Pereira Passos
foi feita, havia três quiosques assentados nas imediações da Estrada de
Ferro D. Pedro II. Quando ele deixou o cargo, os quiosques ainda estavam
no mesmo lugar, 16 atestando a autoridade da Câmara.
Mas é importante destacar que mesmo contando com algum apoio
da Câmara e da companhia responsável pela construção dos quiosques, a
posição dos locatários não era das mais confortáveis. Além de enfrentar os
ataques de seus concorrentes e a desaprovação dos agentes de outras
instâncias do poder, os locatários ainda tinham que driblar as reclamações
da vizinhança, muitas vezes incomodada com as cenas que se passavam no
entorno dos pavilhões. Como o diretor da Estrada de Ferro D. Pedro II,
havia muita gente insatisfeita em ter um quiosque próximo a sua moradia
ou local de trabalho, fosse pela intensificação da concorrência local ou pelos
transtornos causados pela clientela atendida nos balcões dos pavilhões.
A concorrência era composta por donos de “frege-moscas”,
tavernas e botequins também frequentados por trabalhadores pobres, cujo
AGCRJ, Quiosques, cód. 45-4-20, 24 de julho de 1879.
ALMANAK administrativo, mercantil e industrial da Corte e província do Rio de Janeiro
inclusive a cidade de Santos, da província de São Paulo para o ano de 1882. Rio de Janeiro:
Eduardo & Henrique Laemmert, 1880, p. 908-910.
15
16
REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014.
293
comportamento não primava pela moderação. Mas a clientela dos
quiosques estava mais exposta aos olhares e à censura dos passantes e das
autoridades do governo, responsáveis por fazer os diversos setores da
sociedade guardarem os bons modos recomendados pela “boa sociedade”.
Era uma tarefa difícil de ser executada, pois quando a freguesia dos
quiosques incomodava a vizinhança, as reclamações costumavam se referir
ao alarido das conversas, pelo vocabulário por demais espontâneo, pelas
perturbações causadas pelos ébrios e pela falta de pudor em sua conduta,
conforme observamos neste requerimento enviado para o presidente da
Câmara Municipal em 23 de abril de 1881.
Diz D. Felicia Isabel do Amaral Cardoso,
inventariante dos bens do seu casal por falecimento
do seu marido Francisco Gomes Cardoso que
achando-se um quiosque no Largo do Depósito, em
frente ao seu prédio na Rua Senador Pompeu n. 80
que faz esquina, com o dito Largo, e tendo sido o
quiosque colocado tão junto à calçada e tão em frente
a uma das portas, a ponto de muitas vezes o
ajuntamento impedir a entrada, para o armazém, e as
cenas imorais que praticam seus frequentadores,
proíbem as famílias que ocupam os sobrados a chegarem
às janelas, o que faz, com que o dito sobrado esteja
sempre desalugado. 17
A referência a “ajuntamento” de pessoas protagonizando “cenas
imorais” era frequente nas acusações dirigidas contra os clientes dos
quiosques. Em muitos dos pedidos remetidos à instituição camarária, a
moral e os bons costumes foram invocados com o propósito de reforçar a
legitimidade e a procedência dos requerimentos, até porque a Câmara
procurava assegurar a aprovação dos munícipes ao seu governo evocando
esses valores. Mas na medida em que a colocação dos quiosques na cidade
fora uma iniciativa da Câmara, os vereadores não poderiam endossar esse
discurso sem comprometer seu próprio governo. E como desimpedir a
entrada do armazém de D. Felicia Isabel do Amaral Cardoso não constava
entre as preocupações prioritárias da Câmara, o quiosque do Largo do
Depósito também permaneceu onde estava. 18
AGCRJ, Quiosques, cód. 45-4-20, 23 de abril de 1881.
ALMANAK administrativo, mercantil e industrial da Corte e província do Rio de Janeiro e
do município de Santos, da província de São Paulo para o ano de 1882. Rio de Janeiro: H.
Laemmert & C., 1882, p. 400.
17
18
Dossiê CÂMARA MUNICIPAL
294
Por outro lado, em decisões como esta também pesavam interesses
financeiros O estabelecimento dos quiosques gerou uma nova fonte de
rendimentos para a câmara, que autorizou seu assentamento nos pontos
mais concorridos da cidade, sem que o governo local precisasse assumir
despesa com esse empreendimento, encargo que ficou sob
responsabilidade de uma companhia privada. A Câmara atribuiu a uma
empresa privada o direito de executar e explorar comercialmente uma
construção que posteriormente deveria ser entregue à administração
municipal, estando de acordo que a realização dessa operação exigiria a
utilização do espaço público, num contrato que não trazia nenhum risco de
perda para os cofres municipais.
É importante destacar que a despeito das queixas serem
apresentadas pelo diretor da Estrada de Ferro D. Pedro II ou por uma
viúva de comerciante, a vereança não prescindiu da manutenção dos
quiosques, que representavam uma fonte segura de receita para a
instituição. Ademais, os vereadores poderiam alegar que vinham
prestando um relevante serviço à população, proporcionando
oportunidade de trabalho aos pequenos comerciantes e oferecendo gêneros
a preços acessíveis para os trabalhadores. No entanto, não havia dúvidas
de que os maiores lucros auferidos por essa operação ficassem com a
Freitas Guimarães & Cia., posteriormente substituída pela Companhia
Industrial Fluminense, responsáveis pela construção e exploração dos
quiosques, e à Câmara Municipal, que somente recebia o aluguel pago pela
companhia e os impostos devidos pelos locatários.
Como tantos outros, o pavilhão localizado em frente à Câmara do
Senado, próximo ao portão do jardim do Campo da Aclamação, também
gerou protestos. Em 30 de março de 1882, eles recorreram à Câmara
solicitando sua remoção, alegando que seu entorno se tornara “foco de
vagabundos e desordeiros quer de dia, quer de noite proferindo-se as
palavras mais obscenas que pudera haver a ponto das famílias não
poderem chegar as suas janelas [...] como melhor poderá informar o
Comandante da Estação do 1o Distrito da Freguesia de Santana, e o
Administrador do Jardim”. 19 Como se vê, o repertório de acusações era o
mesmo, recorrendo-se sempre aos valores da moral e dos bons costumes,
que ganhavam maior ênfase na medida em que a má conduta da clientela
atendida pelo quiosque era atestada e condenada por dois distintos
funcionários públicos, que assinaram a petição junto com outros sete
19
AGCRJ, Quiosques, cód. 45-4-21, 30 de março de 1882.
REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014.
295
moradores daquela vizinhança.
O peso que os comerciantes conferiram ao testemunho desses
funcionários, que no seu ver representavam o olhar do poder, também
evidencia que entre a população se estendia uma rede de vigilância e
disciplina, visando tanto o exame cuidadoso do espaço quanto a
normatização e o controle do conjunto social, o que demonstra que não
eram apenas os agentes repressores do governo, como a polícia e os fiscais
da municipalidade, que procuravam impor normas aos hábitos e costumes
da população. 20 Entretanto, como a opinião daqueles funcionários públicos
não tinha o mesmo valor que os pareceres emitidos pelas autoridades
efetivamente encarregadas de vigiar a população e corrigir sua conduta,
antes de deliberar sobre o assunto, a Comissão de Praças pediu
informações sobre o caso ao fiscal Thomaz Joaquim Francisco, que relatou:
Em virtude do respeitável despacho exarado pela
Excelentíssima Comissão de Praças relativamente ao
quiosque que se acha em frente a Câmara do Senado
cumpre-me informar a Vossas Excelências que
passando amiudadas vezes por este lugar, nunca
observei grupos de vagabundos e desordeiros
reunidos junto a este quiosque, que muito menos
proferindo palavras obscenas, e informando-me do
guarda municipal do distrito a respeito tive deste a
mesma resposta, mandando o mesmo guarda ao
Porteiro da Câmara dos Senadores a fim de informarme do que soubesse a respeito, obtive em resposta ser
verdade que junto a este quiosque tem havido
algumas vezes aglomeração de pessoas, porém são
estas os cocheiros dos carros dos Senadores, que aí
vão fazer algumas despesas, e que destes mesmos
nunca ouvia proferir palavras obscenas.
A vista pois do que passo a estender e achando-se este
quiosque colocado em lugar marcado e licenciado
pela Ilustríssima Câmara em nada embaraçando aos
transeuntes, me parece que nenhuma vantagem trará
a sua remoção porem a Ilustríssima Câmara em sua
alta sabedoria resolverá como melhor entender. 21
Então, aqueles indivíduos que os comerciantes chamavam de
Sobre o olhar vigilante do poder, ver: FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da
prisão. Petrópolis: Vozes, 1977; e FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro:
Graal, 1985, p. 209-227.
21 AGCRJ, Quiosques, cód. 45-4-21, 30 de Março de 1882.
20
Dossiê CÂMARA MUNICIPAL
296
vagabundos, de acordo com a averiguação feita pelo fiscal, eram
trabalhadores a serviço de alguns dos mais destacados políticos do
Império. Logo, se aqueles homens se reuniam em torno do quiosque, não
era para provocar desordem, mas sim para passar o tempo, beber alguma
coisa ou comprar um cigarro, enquanto os senadores prosseguissem em
suas sessões. Sob essa perspectiva, o locatário do quiosque e seu
estabelecimento não traziam prejuízo algum à ordem pública, nem
tampouco à moral e aos bons costumes. Corroborando a opinião emitida
pelo fiscal, junto aos papéis relativos ao caso havia um documento
informando: “Nós abaixo assinados atestamos que o Senhor Gonçalo
Barreiro Marques, dono do quiosque da Rua do Areal esquina do Campo
de Santana tem merecido nossa estima como bom vizinho e negociante
capaz”. Então se seguiam quatorze assinaturas de pessoas que moravam
próximo ao quiosque e que, possivelmente, deveriam fazer parte da
clientela atendida pelo locatário Gonçalo Barreiro Marques.
Evidentemente, nem toda cidade estava empenhada na cruzada
lançada pelos donos dos estabelecimentos comerciais da cidade contra os
quiosques. Sua clientela poderia não dispor de muitos recursos, mas era fiel
e numerosa, assegurando algum apoio aos locatários nas ocasiões em que
se dispusessem contra a vizinhança ou a concorrência local, assim como o
retorno financeiro de seu modesto investimento. Garantido também era o
lucro da Companhia Industrial Fluminense, que numa cidade dividida em
lotes exploráveis, pareceu decidida a arrendar todos os espaços ainda
disponíveis do perímetro urbano. Para tanto contavam com a colaboração
da Câmara e seus funcionários, empenhados em salvaguardar essa
importante fonte de receita para os cofres municipais. Mas para isso era
preciso resistir à pressão imposta pelo corpo de comerciantes e pela
vizinhança, que não se conformavam com os prejuízos e o incômodo
causados pelos quiosques e sua animada freguesia.
Os pareceres técnicos como fator de governabilidade
Nas ocasiões em que as críticas à instalação dos quiosques foram
mais intensas e as pressões para a retirada dos pavilhões dividiram os
vereadores, eles procuraram resolver suas diferenças recorrendo aos
pareceres emitidos pelos bacharéis de Engenharia, que ocupavam os cargos
técnicos na administração municipal. Havia casos de, num primeiro
momento, nem todos os homens de governo se conformarem com as
decisões propostas por esses profissionais. Mas em geral prevaleceu o
REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014.
297
consenso de que objetar as críticas dirigidas à instituição camarária, assim
como persuadir a opinião pública da validade dos seus juízos, exigiria
menor esforço se a vereança assegurasse que as resoluções sobre os locais
de assentamento dos quiosques eram tomadas a partir de critérios técnicocientíficos. Desta forma, os vereadores procuravam conferir um caráter
neutro às suas deliberações, legitimando seu governo de maneira mais
adequada às exigências da nova ordem econômica que se instaurara
naquele mercado.
Mas as reiteradas negativas aos pedidos de remoção de quiosque
não impediam que outros queixosos recorressem aos antigos valores
morais para justificar suas solicitações. Em 15 de novembro de 1881, o
presidente e mais vereadores da cidade receberam um pedido assinado por
oito proprietários de estabelecimentos comerciais localizados no início da
Rua da Misericórdia, onde estes exigiam da municipalidade uma ação mais
dura contra os frequentadores dos quiosques, que eles classificavam como
bêbados e desocupados. Aqui também é interessante perceber que, desde
que lhes parecessem convenientes e se restringissem aos seus adversários,
os comerciantes não viam qualquer inconveniente em requisitar o olhar
vigilante e a intervenção repressiva das autoridades governamentais na
regulação das atividades do setor varejista. Confirmando essa disposição, o
requerimento dizia:
Os abaixo assinados, proprietários, negociantes, e
moradores da Rua da Misericórdia, entre a Rua da
Assembléia, e o Arco do Paço Imperial, vêm com o
devido respeito representar a Vossas Senhorias contra
a colocação que hoje se está procedendo de um
quiosque para esse lugar.
Os Suplicantes chamam a atenção de Vossas
Senhorias para as contínuas e repetidas cenas que
constantemente se reproduzem nos quiosques
colocados em outros pontos, que quase sempre tornase necessária a intervenção policial, pela aglomeração
de ébrios e vagabundos que nesses pontos fazem
reuniões, deixando-se ouvir os vocabulários dignos
deles, e indecente para as pessoas que se considera, e
muito mais para serem ouvidas pelas famílias. Sendo
esse lugar junto ao Paço Imperial e quase em frente da
entrada da parte que hoje é ocupada pelo Ministério
da Agricultura, um dos pontos mais concorridos pela
alta sociedade, não só nos dias de cortejos no Paço
Imperial, como nas reuniões do Instituto Histórico,
Dossiê CÂMARA MUNICIPAL
298
que por ali é sua entrada. Pedem respeitosamente os
Suplicantes com suas famílias nesse lugar, vêm-se na
difícil posição de obrigá-las a não gozarem das janelas
de suas casas, pela colocação que se está efetuando do
dito quiosque debaixo das mesmas. Confiando os
Suplicantes nos nobres procedimentos de Vossas
Senhorias e nas qualidades que os caracterizam,
esperam o melhor êxito desta representação, fazendo
assim inteira justiça. 22
Para descrever as cenas que se passavam nos quiosques, os
comerciantes recorriam a um repertório de acusações que há muito era
empregado pela polícia para justificar suas incursões em lugares ditos
suspeitos, como lupanares, casas de jogos, estabelecimentos que vendiam
bebidas alcoólicas e outros locais de divertimento e socialização, onde os
trabalhadores pobres se reuniam em seu tempo de folga. Os balcões dos
quiosques espalhados pela cidade também serviam como ponto de
encontro das pessoas que desejavam beber um trago antes de ir para casa,
jogar conversa com algum estranho ou pessoa de seu convívio, sem se
preocupar com a conveniência de seus modos ou suas palavras. Por isso, o
discurso em defesa da moral e dos bons costumes encontrava na freguesia
dos quiosques um dos seus alvos preferenciais.
De acordo com o requerimento, os comerciantes da Rua da
Misericórdia não desejavam que as janelas de suas residências dessem
vistas às reuniões dessas pessoas, que a seu ver mantinham um
comportamento absolutamente reprovável. Não se pode descartar a
possibilidade desses homens estarem genuinamente preocupados em
resguardar suas casas e suas famílias da desordem das ruas, mas é
importante observarmos que, ao fim das contas, eles não pedem qualquer
reforço da ação policial naquele local. Isso significa que eles não desejavam
que aquelas pessoas fossem corrigidas, que fossem trazidas à ordem e
obrigadas a se comportarem decentemente. Eles queriam que o quiosque
fosse sumariamente retirado do local, quer por considerar que aquelas
pessoas eram incorrigíveis, quer por considerar essa medida mais
conveniente ao bom andamento dos seus negócios. Isto no caso da
permanência do quiosque no local também estar desvalorizando seu ponto
de venda.
Por outro lado, é interessante notar o cuidado que os comerciantes
tiveram em chamar a atenção dos vereadores para a inconveniência das
22
AGCRJ, Quiosques, cód. 45-4-21, 15 de novembro de 1881.
REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014.
299
cenas passadas nos quiosques se repetirem num espaço em que a “boa
sociedade” e o poder constituído se faziam tão presentes. De fato, o
Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro era frequentado por políticos e
letrados intimamente comprometidos com a consolidação do poder do
Estado, destacando-se pelo apoio ao regime e pela fidelidade ao Imperador,
seu principal mecenas. O Ministério dos Negócios da Agricultura,
Comércio e Obras Públicas cuidava das principais atividades econômicas
do país, de vital interesse para a elite dirigente nacional. Já o Paço Imperial
era a principal sede administrativa do governo, o centro do poder, muito
embora o imperador tivesse transferido para a Real Quinta da Boa Vista as
audiências públicas e outras cerimônias oficiais.
Tendo isso em conta, era mesmo de se esperar que os governantes
demonstrassem maior empenho na execução de políticas públicas de
controle social naquele trecho da cidade, onde circulavam figuras
eminentes da alta sociedade fluminense. Como Ilmar de Mattos afirmou:
“onde o Governo do Estado se apresentava com o máximo de sua força, a
desordem não podia ser representada”, 23 o que significava, que nas
freguesias mais concorridas da cidade sede do poder central era imperativo
manter uma vigilância cerrada sobre os vadios e os desordeiros, a fim de
evitar qualquer possibilidade de insurreição da malta urbana. E era
precisamente neste ponto que os comerciantes da Rua da Misericórdia
fundavam a expectativa de ter seu requerimento deferido. Como afirmou
E. P. Thompson, se o Estado sempre tenta impor valores ao conjunto social,
seu êxito depende de certa congruência entre as regras e visão-de-mundo
impostas pelos governantes e as necessidades materiais dos indivíduos
sobre os quais incide. 24
O pedido dos comerciantes foi enviado para a Diretoria de Obras
“com urgência”, conforme assinalado em nota marginal ao documento. 25
Em princípio, parece que os vereadores estiveram inclinados a deferir o
requerimento, pois antes mesmo da Diretoria de Obras se pronunciar a
respeito, a Secretaria da Câmara já havia emitido um despacho solicitando
que fossem tomadas as devidas providências para que o quiosque fosse
transferido para outro local. No entanto, essa decisão não foi executada
pelo Engenheiro do 3º Distrito, Tito Barreto Galvão, cujo parecer sobre o
MATTOS, Ilmar Rohloff de. O tempo saquarema, p. 217.
THOMPSON, E. P. A miséria da teoria ou um planetário de erros. Rio de Janeiro: Zahar, 1981, p.
194.
25 AGCRJ, Quiosques, cód. 45-4-21, 17 de novembro de 1881.
23
24
Dossiê CÂMARA MUNICIPAL
300
problema foi apresentado numa outra sessão da Câmara Municipal,
realizada alguns meses depois, em 17 de fevereiro de 1882. Ele justificou
sua decisão da seguinte forma:
Parece-me que não é atendível a reclamação junta
contra a existência de um quiosque da Rua da
Misericórdia, por diversas circunstâncias.
Em primeiro lugar o quiosque de que se trata é um
dos que estão mais bem colocados, não só porque não
embaraça de modo algum o trânsito público, como
também porque acha-se situado entre o arvoredo aí
plantado de modo a não prejudicar como os outros
quiosques, justamente pela sua colocação, a beleza da
cidade.
Em segundo lugar se a posição em que se acha o
quiosque, em frente a casas de negócio, não é própria
para a existência deles, ainda menos outro qualquer
local em frente a moradias de famílias.
Quanto ao mau procedimento de pessoas que
freqüentam o mesmo quiosque, julgo que o recurso
mais natural a que deveriam ter recorrido os
reclamantes era a policia.
Faço estas considerações porque, tendo a
representação um despacho do Secretário mandando
que se providenciasse sobre a mudança do quiosque
citado, não encontrei, a vista do que disse acima,
melhor posição do que aquela em que atualmente se
acha, todavia aguardo a decisão da Ilustríssima
Câmara como a mais acertada. 26
As considerações feitas pelo engenheiro Tito Barreto Galvão não se
harmonizavam com os valores evocados pelos comerciantes no
requerimento enviado à Câmara Municipal. A preocupação do engenheiro
era de que os quiosques fossem assentados em locais onde houvesse
grande concorrência de pessoas e também pudessem ornar a via pública,
mas de forma a não prejudicar o fluxo das pessoas e nem o tráfego de
carroças, seges, tílburis e bondes. Sendo assim, na visão do engenheiro, as
únicas questões a serem levadas em consideração eram, no dizer da época,
o melhoramento e o embelezamento da cidade. Quanto ao mau
procedimento dos frequentadores dos quiosques, como o engenheiro fez
questão de assinalar, o procedimento mais adequado seria encaminhar o
caso à polícia, instituição responsável pela manutenção da ordem pública.
26
AGCRJ, Quiosques, cód. 45-4-21, 17 de fevereiro de 1882.
REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014.
301
Ao fim das contas, o que ele desejava era convencer os vereadores que sua
decisão fora a mais acertada, precisamente por ser ele o profissional
habilitado a emitir juízos sobre o ordenamento do espaço público.
O decreto n. 3001 de 9 de outubro de 1880 determinou que os
cargos técnicos na administração pública só poderiam ser preenchidos por
profissionais que apresentassem título acadêmico, ainda que há muito esse
critério já fosse utilizado em várias repartições públicas. A Câmara
Municipal do Rio de Janeiro, vinte anos antes já vinha privilegiando a
contratação de bacharéis de engenharia na Diretoria das Obras Municipais,
sendo esses os funcionários encarregados pela emissão dos pareceres
referentes ao assentamento dos pavilhões. Tendo em vista seu lugar de fala,
para o engenheiro Tito Barreto Galvão os comerciantes não seriam capazes
de avaliar melhor do que ele quais os locais mais apropriados para a
colocação dos quiosques, pois os leigos não tinham acesso aos saberes que
lhe capacitavam a emitir tais juízos.
Apesar de inicialmente ter tomado outra resolução, a instituição
camarária aprovou a proposta engenheiro Tito Barreto Galvão, 27 mantendo
o quiosque que incomodava os negociantes da Rua da Misericórdia. Vale
esclarecer que os engenheiros da Diretoria de Obras atuavam apenas como
um corpo consultor, cabendo exclusivamente aos vereadores decidir sobre
a conveniência de conservar ou remover os quiosques que se tornavam
objetos de discórdia. Concorrendo com as opiniões dos engenheiros da
municipalidade, nas decisões da vereança pesavam ainda os interesses de
outros grupos de agentes e a pressão de outras instâncias normativas, como
a exercida pela clientela e vizinhança dos quiosques, os munícipes que a
câmara deveria representar. No entanto, justamente nas ocasiões em que
era mais difícil preservar a autoridade da Câmara e conciliar os interesses
em jogo, os pareceres técnicos se consagravam como um importante fator
de governabilidade, orientando o ordenamento do espaço público.
Mais importante que garantir o apoio dos grupos insatisfeitos com
o assentamento dos pavilhões nas proximidades de suas propriedades, era
resguardar as atribuições da municipalidade, defendendo a todo custo seu
direito de decidir, ordenar e se fazer obedecer na regulação das atividades
econômicas locais e no ordenamento do espaço urbano. Era preciso ter
cuidado para que o encaminhamento dado aos pedidos de remoção dos
quiosques não comprometesse a autoridade e a capacidade de intervenção
27
AGCRJ, Quiosques, cód. 45-4-21, 2 de março de 1882.
Dossiê CÂMARA MUNICIPAL
302
governativa da Câmara Municipal, não obstante também fosse preciso
certificar-se que os pedidos indeferidos não prejudicassem certos grupos de
interesse, com os quais a vereança mantinha laços mais estreitos. Com
tantos elementos a serem tomados em consideração, a situação poderia
ficar ainda mais complicada quando os próprios vereadores encontravam
dificuldades para chegar a um consenso sobre qual a maneira mais
apropriada de encaminhar os requerimentos analisados em suas sessões.
Verificamos isso num caso que teve início em 15 de dezembro de
1884, quando o presidente e mais vereadores receberam um requerimento
da firma Vianna & Cia., localizada no Largo da Sé, solicitando a remoção
do quiosque que fora instalado em frente ao seu estabelecimento dias antes.
Eles alegaram que a medida “muito lhes prejudica”, já que os quiosques
eram publicamente conhecidos como ponto de reunião de “indivíduos nem
sempre bem intencionados, que afugenta a freguesia, e intercepta
completamente a vista do estabelecimento”. 28 No mesmo dia os vereadores
receberam um outro requerimento, desta vez assinado por doze
comerciantes, pedindo a retirada do mesmo quiosque que importunava
Vianna & Cia. As razões enumeradas pelos donos destas casas comerciais
foram as seguintes:
1a. O quiosque está de tal forma colocado tão próximo
aos trilhos da Companhia de São Cristóvão e aos da
Carris Urbanos, que é de prever a facilidade de
desastres para os transeuntes.
2a. É sabido que as pessoas que se reúnem em volta de
quase todos os quiosques, são na maior parte gente
grosseira, que usando uma linguagem na altura de
sua educação, obsta as famílias de chegarem a janela,
sendo também notório que muitas pessoas se afastam
de tais grupos, isto é, do lugar onde se ajuntam esses
grupos, com o receio muito natural de ser por eles
ofendidos, e esse afastamento muito prejudica os
interesses comerciais dos abaixo assinados.
3a. Esse quiosque foi colocado tão rapidamente e tão
cedo, que é uma prova de que não tinha licença para
colocar em tal lugar, como ficou provado com a
intimação que o Senhor Fiscal da Freguesia do
Santíssimo Sacramento fez ao locatário do referido
quiosque, mas, este indivíduo desrespeitando a
Autoridade, faz garbo do seu procedimento. 29
28
29
AGCRJ, Quiosques, cód. 45-4-21, 15 de dezembro de 1884.
AGCRJ, Quiosques, cód. 45-4-21, 15 de dezembro de 1884.
REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014.
303
Chama atenção a tática utilizada pelos comerciantes, que optaram
por indicar a proximidade do quiosque com os trilhos da Companhia de
São Cristóvão e da Companhia Carris Urbanos como a primeira de suas
justificativas para a retirada do quiosque. Possivelmente, na opinião dos
comerciantes, eles teriam mais chances de ter seu pedido atendido caso
conseguissem convencer a instituição camarária que de alguma forma
aquela remoção também beneficiaria as concessionárias. Isso evidencia que,
ao menos para a população, não havia dúvidas de que os interesses dessas
empresas fossem tomados em consideração pela vereança, exercendo
grande influência na definição da sua política de regulação das atividades
econômicas locais e ordenamento do espaço urbano. Por outro lado, ao
mencionarem os riscos causados pela proximidade entre o quiosque e os
trilhos dos bondes, os comerciantes procuravam sugerir que a retirada do
pavilhão também contribuiria para o bem-estar de toda comunidade e que,
portanto, aquela ação não fora movida apenas por interesses financeiros.
Seus interesses particulares aparecem no segundo item do
requerimento, que repete o argumento que já havia sido apresentado por
Viana & Cia. sobre os prejuízos acumulados em consequência da conduta
dos frequentadores dos quiosques, que espantaria sua freguesia. Numa
referência marcada por atributos pejorativos, não é difícil perceber a
origem social daquelas pessoas, nem tampouco os motivos que levaram os
comerciantes a considerar que sua clientela procuraria manter distância
dos locais de convívio daquela “gente grosseira”. Como há muito o
discurso produzido pelas elites dirigentes vinha sendo objeto de grande
difusão e consumo, a lógica que orientou a avaliação feita por eles parece
ter sido a mesma que induzia as autoridades governamentais a identificar
as “classes pobres” como “classes perigosas”, 30 como se estas fossem
invariavelmente sujeitas a todo tipo de vício, o que as tornava temidas e
indesejadas.
Para reforçar a legitimidade do seu pedido, os comerciantes
informaram à vereança que o quiosque não possuía a competente licença
para funcionar naquele local. E isso, diziam eles, era asseverado pelo fiscal
daquela freguesia. Se esse dado fosse confirmado, o pedido de remoção do
pavilhão estaria amparado pelo direito legal, reforçando a expectativa que
tinham de ver a administração da justiça sendo-lhes favorável. Em sua
A adoção desses conceitos no Brasil foi analisada em: CHALHOUB, Sidney. Cidade febril:
cortiços e epidemias na Corte imperial. São Paulo: Companhia das Letras, 1996, p. 20-29.
30
Dossiê CÂMARA MUNICIPAL
304
opinião, era dever dos governantes se postar ao lado daqueles que
cumpriam com suas obrigações perante o Estado e a justiça, mantendo seu
negócio funcionando mediante a concessão das respectivas licenças e
pagando os tributos exigidos pelos governantes. Como cumpridores de
seus deveres, eles esperavam contar com a proteção da Câmara Municipal,
que não deveria permitir que a porta de seus estabelecimentos fosse
embaraçada pelo funcionamento de um comércio irregular.
O pedido foi analisado pela Comissão de Saúde e Praças, cujas
ponderações em princípio giraram em torno da primeira razão apontada
pelos comerciantes, relativa à proximidade do quiosque com os trilhos dos
bondes. O Dr. João Pereira Lopes, afirmou:
O quiosque estabelecido no Largo da Sé esquina da
dos Andradas torna-se ali impossível, visto como
colocado ser o canto de uma rua estreita e de muito
trânsito a toda a hora do dia e da noite, e onde
cruzam-se duas linhas de bonde – a da Companhia de
São Cristóvão e a de Carris Urbanos –, embaraça o
trânsito público, além de que pode dar lugar a
constantes e reiterados desastres, pelo povo que se
ajunta e aglomera sempre em volta dos quiosques,
que deve por todas as formas evitar-se.
Acresce ainda mais que removido do lugar onde se
achava e que muitos menos transtornos e
inconvenientes causava, não pode nem deve por
fortes razões ficar no lugar em que hoje se acha, tanto
mais porque se acha no Largo da Sé lugar mais
apropriado e onde o proprietário do quiosque pode
como aqui auferir grandes vantagens.
Assim pensando somos de opinião que esse quiosque
deve ser quanto antes mudado para o Largo da Sé,
entre as ruas de Uruguaiana e Andrada no ponto que
o fiscal acha e julga mais apropriado. Sala das Sessões
da Câmara Municipal em 17 de Dezembro de 1884. 31
Das razões expostas pelos comerciantes, a única explicitamente
tomada em consideração foi a primeira, que habilmente jogava com os
interesses das concessionárias dos serviços de transportes urbanos, a quem
interessava impedir aglomerações perto dos trilhos. Isso não significa que o
Dr. João Pereira Lopes não estivesse genuinamente preocupado com a
possibilidade de ocorrerem desastres naquele local, mas confirma a
importância conferida pela municipalidade aos interesses dessas empresas
31
AGCRJ, Quiosques, cód. 45-4-21, 17 de dezembro de 1884.
REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014.
305
nas decisões sobre o ordenamento do espaço urbano, e evidencia o quão foi
acertada a estratégia escolhida pelos comerciantes. Entretanto, ao propor o
deferimento do pedido, o Dr. João Pereira Lopes abriu margem para outro
problema, que era definir um novo local para a instalação do quiosque.
Sobre isso, ele recomendou apenas que fosse ouvida a sugestão do fiscal da
freguesia.
Mas antes de verificar a sugestão do fiscal, vejamos o segundo
parecer assinado pelo Dr. João Pereira Lopes, desta vez em parceria com o
Dr. Alexandrino Freire do Amaral, outro membro da Comissão de Saúde e
Praças. Este também foi proferido no dia 17 de dezembro de 1884, referente
ao requerimento impetrado por Vianna & Cia. Na opinião desses
vereadores
Já havendo dado nosso parecer em uma outra petição
sobre o mesmo assunto, o que bastaria para
dispensar-nos de o fazer nesta, contudo devemos
dizer que deve ser deferida esta por ser de inteira
justiça: o quiosque em questão não pode nem deve
continuar no lugar em que se acha visto como impede
o trânsito público, embaraça a vista e o negócio dos
Suplicantes, que onerados de impostos devem ter
toda ou mais garantia que o proprietário do quiosque,
e finalmente porque a Câmara não poderá ter dado
licença para colocar-se aquele quiosque na esquina de
uma rua estreita, como a dos Andradas. Assim, pois,
somos de parecer que esse quiosque deve ser mudado
para outro lugar dessa Praça, onde menor incômodo
cause ao público. 32
Neste ofício os vereadores endossam uma ideia difundida entre os
comerciantes, que julgavam mais merecedores da proteção da Câmara
aqueles que pagavam maiores tributos, o que lhes garantiria grande
vantagem em caso de litígio com seus concorrentes diretos mais frágeis.
Portanto, a instituição camarária reconhecia que os comerciantes tinham
todo direito de reclamar da desvalorização de seu pondo de venda e dos
prejuízos acumulados pela instalação irregular de um quiosque nas
imediações de seus negócios, e se prontificava a atender sua solicitação.
Tomada essa decisão, restava decidir onde colocar o pavilhão.
Não haveria qualquer dúvida em se conferir esta tarefa aos fiscais
32
AGCRJ, Quiosques, cód. 45-4-21, 17 de dezembro de 1884.
Dossiê CÂMARA MUNICIPAL
306
da municipalidade, como sugeriu o Dr. João Pereira Lopes, desde que a
proposta tivesse sido apresentada algumas décadas antes, quando eles
eram os principais encarregados de informar à vereança sobre a vida
cotidiana da cidade, sugerindo soluções para os diversos problemas
enfrentados pela administração municipal. No entanto, muita coisa mudou
ao longo da segunda metade do século XIX, principalmente na organização
e funcionamento do governo municipal. Para dimensionarmos melhor esta
mudança, vale informarmos que em 1845 a Câmara Municipal era
composta por 9 vereadores, dos quais 6 possuíam título nobiliário e 3 eram
médicos. Além dos fiscais de freguesia, havia cerca de 35 funcionários,
distribuídos entre a Contadoria, Comissão de Obras, Comissão de Marinas,
Instituição Vacínica, Secretaria e Tesouraria. Em 1884, ocasião em que o Dr.
João Pereira Lopes emitiu seu parecer, a Câmara era composta por 21
vereadores, que atuavam nas Comissões de Fazenda, Justiça, Obras, Saúde
e Praças, Instrução, Matadouro e Redação. Dentre eles apenas três
possuíam título nobiliário, enquanto 13 eram médicos. Nesse tempo, a
municipalidade contava com mais de 60 funcionários, que trabalhavam na
Aferição, Conservação de Jardins e Praças, Contadoria, Diretoria de Obras
Municipais, Necrotério, Secretaria, Tesouraria e Tombamento. E isto sem
contar com os fiscais de freguesia, os médicos do partido, e os funcionários
da agência de gado e do matadouro de Santa Cruz. 33
O pessoal dobrou, a máquina burocrática se tornou mais complexa
e surgiram novas funções que passaram a responder às mais recentes
necessidades da administração municipal. Isto pode ser observado pelo
número significativo de médicos e engenheiros ocupando cargos técnicos,
para serem consultados pela vereança antes da tomada de qualquer decisão
em matérias específicas, particularmente no que dizia respeito à saúde
pública e ao ordenamento do espaço urbano. Por conta disso, os outros
membros da Comissão de Saúde e Praça, Dr. Alexandrino Freire do Amaral
e Dr. Joaquim José da Silva Pinto, fizeram uma ressalva ao parecer
expedido pelo Dr. João Pereira Lopes, afirmando que “compete à Diretoria
de Obras indicar o local mais conveniente onde deve ficar colocado o
quiosque”. Ou seja, na opinião deles, competia aos engenheiros da
municipalidade decidir sobre essa questão, e não ao fiscal, pois este não
dispunha dos conhecimentos técnico-científicos exigidos para resolver o impasse.
Almanak Administrativo, Mercantil e Industrial do Rio de Janeiro [Almanak Laemmert],
anos de 1845 e 1884. Material digitalizado por Brazilian Government Document Digitization
Project do Center for Research Libraries. Disponível em:
http://www.crl.edu/content.asp?l1=5&l2=24&l3=45.
33
REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014.
307
Tendo sido consultado, o Engenheiro do 4º Distrito sugeriu “que o
melhor ponto para colocar o quiosque é no Largo da Sé, entre a Rua
Uruguaiana e o Beco do Rosário, próximo à Igreja [Nossa Senhora do
Rosário]”. 34 Mas diferentemente de seus colegas da Comissão da Saúde e
Praças, o Dr. Joaquim José da Silva Pinto não concordou com essa proposta,
alegando que “a Irmandade do Rosário representou ou vai representar
contra a conservação de quiosques junto à Igreja”. 35 Com isso ele trouxe à
baila, ainda que indiretamente, a segunda razão apontada pelos
comerciantes da Rua dos Andradas para justificar a retirada do pavilhão da
proximidade de seus estabelecimentos, que até então não havia sido
discutida pelos vereadores: as denúncias de ofensas à moral e aos bons
costumes praticadas pelos frequentadores dos quiosques.
Para que a decisão da instituição camarária não significasse
simplesmente mudar o problema de endereço, o engenheiro do 4º Distrito
foi novamente consultado sobre o caso. No entanto, a despeito da ressalva
feita pelo Dr. Joaquim José da Silva Pinto, ele manteve sua opinião, se
limitando a informar o seguinte: “sou de parecer que pode o quiosque ser
removido para o lado oposto da Igreja, em ponto correspondente ao já
designado anteriormente”. 36 Diferentemente dos vereadores, que
procuravam pesar os interesses dos diversos grupos de agentes que
tomavam ou poderiam tomar parte na disputa, o engenheiro da
municipalidade examinou apenas as questões estritamente peculiares ao
seu conhecimento como perito, não considerando os outros elementos em
jogo. Sua decisão chegou a ser aprovada pelos vereadores, mas antes de ser
executada, conforme previsto pelo Dr. Joaquim José da Silva Pinto, a
Irmandade do Rosário requereu junto à Câmara Municipal a retirada dos
quiosques instalados na proximidade da Igreja. O documento, emitido em
30 de Abril de 1885, dizia:
Os abaixo assinados Irmãos de cargo da Venerável
Irmandade de Nossa Senhora do Rosário e São
Benedito, da Corte, tendo reorganizado o frontispício
da sua Igreja vêm respeitosamente, de novo pedir a
Vossas Excelências para que se dignem mandar retirar
da frente da Igreja, os quiosques, que ali existem,
porquanto no ponto em que se acham colocados,
AGCRJ, Quiosques, cód. 45-4-21, 2 de fevereiro de 1885.
AGCRJ, Quiosques, cód. 45-4-21, 31 de março de 1885.
36 AGCRJ, Quiosques, cód. 45-4-21, 9 de abril de 1885.
34
35
Dossiê CÂMARA MUNICIPAL
308
dificultam a entrada dos devotos, e é origem de
reunião de pessoas cujos vocabulários são pouco
decentes à moral. 37
Ora, assim como os comerciantes zelavam pelo acesso de sua
clientela aos seus estabelecimentos, a Irmandade cuidava para que os
devotos não tivessem qualquer embaraço no caminho às dependências da
igreja. E se o corpo de comerciantes da cidade se incomodava com o
vocabulário dos indivíduos atendidos pelos pavilhões, o incômodo dos
beatos em seu lugar de devoção não poderia ser menor. Para persuadir os
vereadores a atenderem sua solicitação, os irmãos do Rosário tiveram o
cuidado de formular seu discurso utilizando os pressupostos paternalistas,
como se a remoção do quiosque não atendesse a uma exigência, mas
resultasse da concessão de um favor, proporcionado pela generosidade dos
vereadores.
Na margem do documento remetido pela Irmandade havia dois
pareceres. Um deles foi emitido em 19 de maio de 1885 pelo Dr. Manoel
Luiz de Moura, que ponderou: “Sendo justo o que requerem os Irmãos da
Venerável Irmandade de N. S. do Rosário, queira o Dr. Engenheiro
designar o lugar para onde devem ser mudados os quiosques”. Portanto,
ele concordava com as razões expostas pelos irmãos do Rosário. O outro
parecer foi do Dr. Alfredo Piragibe em 22 de maio de 1885, e afirmava:
“Penso do mesmo modo que sobre a petição de Vianna & Cia e outros
juntos a esta”. Ele se expressou mais claramente num outro documento, em
que dizia:
Respeitando, como a minha própria, a probidade
administrativa dos colegas que [sic] que me basta para
ter a certeza de que o fizeram com ciência e
consciência, penso, contudo, que as reclamações do
gênero desta devem sempre ir a informar o Fiscal da
Freguesia e a Autoridade Policial, como os que mais
de perto e constantemente velam sobre o serviço a que
ela se refere, e que, se, como é muito provável, os
despachos supra forem dados depois de ouvidos
aqueles funcionários, mais sabida base, entretanto,
terá qualquer deliberação da Câmara a esse respeito,
tendo-se sobretudo em vista futuras recriminações, se
as informações dos referidos funcionários fossem
dadas por escrito para ficarem arquivadas. 38
37
38
AGCRJ, Quiosques, cód. 45-4-21, 30 de abril de 1885.
AGCRJ, Quiosques, cód. 45-4-21, 22 de maio de 1885.
REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014.
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A despeito do belo intróito em que faz larga deferência aos seus
colegas, o Dr. Alfredo Piragibe não hesitou em discordar dos mesmos. Na
sua opinião, deveria ser posto em execução um dos procedimentos mais
antigos da rotina administrativa municipal, qual fosse, o de consultar os
fiscais de freguesia. Ainda que tivessem deixado de exercer muitas de suas
antigas atribuições, para o Dr. Piragibe, os fiscais dispunham de um capital
que não poderia ser tão facilmente descartado. Este capital fora acumulado
pelo fato de serem eles, junto com os policiais, as autoridades que durante
décadas vinham se responsabilizando diretamente pela vigilância e
regulação da vida dos trabalhadores. No exercício cotidiano de suas
funções, eles se tornaram os agentes do governo municipal mais bem
informados sobre o que se passava nas ruas da cidade, conhecendo como
poucos os seus habitantes e o que se passava nos locais de encontro e
convívio do contingente crescente de homens pobres que ocupava as
freguesias urbanas da Corte.
Na sessão seguinte da Câmara Municipal, o pedido de Vianna &
Cia e dos outros comerciantes que haviam solicitado a remoção do
quiosque localizado na Rua dos Andradas foi declarado “prejudicado por
reclamação do Dr. Piragibe”. 39 Quase um mês depois, o fiscal da freguesia
do Sacramento foi comunicado pela Secretaria da Câmara que em sua
última sessão a vereança “conformou-se com a localidade designada pelo
respectivo Engenheiro de Distrito para ter assento o quiosque que deve ser
transferido do canto da Rua dos Andradas cuja localidade é no „Largo da
Sé‟, entre a Rua Uruguaiana e dos Andradas em frente à Igreja e do lado
oposto”. 40 Em outras palavras, os vereadores atenderam o pedido dos
comerciantes e ignoraram o pedido da Irmandade do Rosário, que teria que
assistir à colocação de mais um quiosque nas imediações de sua Igreja.
Prevaleceu, portanto, a avaliação do perito, que retirando os quiosques de
perto dos trilhos dos bondes comprovou a proximidade dos interesses da
instituição camarária e das concessionárias de transportes urbanos.
A decisão levou ainda alguns meses para ser implementada, e
nesse intervalo de tempo os integrantes da Irmandade desistiram de
recorrer à Câmara Municipal, e resolveram apelar para a intervenção do
governo central, mais precisamente ao Ministério dos Negócios do Império,
ao qual a instituição camarária estava subordinada. Eles escreveram ao
39
40
AGCRJ, Quiosques, cód. 45-4-21, 20 de junho de 1885.
AGCRJ, Quiosques, cód. 45-4-21, 16 de Julho de 1885.
Dossiê CÂMARA MUNICIPAL
310
Barão de Mamoré:
Tendo esta Irmandade de reabrir o seu Templo por
todo este mês, e existindo na frente do referido templo
diversos quiosques onde se reúnem indivíduos cuja
linguagem indecorosa, repudia e afugenta os irmãos e
devotos, que, dirigindo-se ao templo, tem
forçosamente de suportá-la, rogamos, por isso a Vossa
Excelência, se digne de mandar dar as necessárias
providências a fim de que sejam removidos daquele
local os aludidos quiosques, que tanto prejuízo tem
causado a esta Irmandade.
Excelentíssimo Senhor esta Irmandade tendo
recorrido à Ilustríssima Câmara Municipal por três
vezes e até o presente não tendo tido solução alguma,
por isso é que, firmados no caráter justiceiro de Vossa
Excelência, como todos o sabem, ousamos acreditar
que Vossa Excelência nos atenderá e satisfará nesse
pedido, que temos a súbita honra de merecer de
Vossa Excelência, a quem Deus Guarde.41
A intenção da Irmandade era estimular a disputa entre o governo
central e a municipalidade, com o fim de tirar algum proveito desse
embate. O Barão de Mamoré atendeu ao apelo e, poucos dias depois, em 28
de outubro de 1885, os vereadores recebem um ofício do ministro,
informando que “Sua Majestade o Imperador manda remeter à Ilustríssima
Câmara Municipal, para tomar na consideração que merecer a inclusa
representação da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito
”. 42 No entanto, se o objetivo da Irmandade era angariar um aliado mais
forte para sua causa, a iniciativa tomada pelo ministro não serviu
exatamente aos seus propósitos, já que seu ofício se limitara a recomendar
aos vereadores que não ignorassem os reiterados pedidos da Irmandade,
sem indicar explicitamente se era favorável ou contrário ao seu
deferimento. A decisão, portanto, retornava às mãos dos vereadores.
A Comissão de Saúde e Praças voltou a se manifestar sobre o caso,
afirmando que já havia despachado favoravelmente à representação da
Irmandade de Nossa Senhora do Rosário, mas que “o parecer, porém,
ainda não foi aprovado pela Ilustríssima Câmara, o que certamente se fará
em breve”, 43 dando a entender que tudo se encaminharia em favor dos
AGCRJ, Quiosques, cód. 45-4-21, 24 de outubro de 1885.
AGCRJ, Quiosques, cód. 45-4-21, 28 de outubro de 1885.
43 AGCRJ, Quiosques, cód. 45-4-21, 4 de novembro de 1885.
41
42
REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014.
311
requerentes. No entanto, em 5 de dezembro de 1885, a instituição camarária
acrescentou uma nota marginal ao ofício remetido pelo ministério,
informando apenas que fora “Prejudicado” o pedido de remoção dos
quiosques localizados nas imediações da Igreja do Rosário. Portanto, ainda
que alguns vereadores tenham concordado que o comportamento da
clientela atendida pelos pavilhões não se adequava às práticas religiosas
realizadas no Largo da Sé, causando constrangimento e embaraço aos
membros da Irmandade, prevaleceu a decisão do engenheiro do distrito,
que havia apontado aquela localidade como o lugar mais apropriado para a
colocação dos quiosques.
Considerações finais
Apesar das reclamações apresentadas pelos comerciantes
prejudicados com o aumento da concorrência no setor varejista, apesar das
queixas apresentadas por outras instâncias do poder quanto aos embaraços
causados pela instalação daquelas construções nos pontos mais
movimentados das freguesias urbanas, e apesar do descontentamento da
vizinhança com o comportamento da clientela atendida pelos locatários, os
quiosques continuaram integrando a paisagem urbana. Além de garantir
postos de trabalho aos homens livres e atender as necessidades diárias dos
trabalhadores pobres da cidade, pesou o interesse da Câmara Municipal
em manter essa fonte segura de rendimentos, proporcionada pelo aluguel
anual dos pavilhões, pago pela Companhia Industrial Fluminense, e pelas
licenças cobradas aos locatários, sem nenhum ônus para a municipalidade.
Face às dificuldades enfrentadas para conciliar as demandas dos
diversos grupos de agentes envolvidos na regulação do comércio varejista,
procurando sempre evitar o antagonismo aberto com qualquer segmento
do conjunto social ou outros setores do governo, a introdução de bacharéis
de engenharia no quadro de funcionários da Câmara Municipal
proporcionou novas saídas para antigos dilemas. A cada requerimento
atendido ou indeferido com base nos pareceres enunciados por esses
profissionais, mais do que reconhecer a competência dos engenheiros, a
vereança lutava para garantir a preservação dos interesses da instituição
camarária. Associando-se a firmas particulares e pautando suas decisões
em pareceres técnico-científicos, a Câmara Municipal preservou sua força
política e agregou novos elementos ao exercício de sua autoridade,
mostrando determinação em continuar emitindo a última palavra sobre a
Dossiê CÂMARA MUNICIPAL
312
organização das atividades econômicas locais.
Referências Bibliográficas
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REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014.
313
Estudos sobre prostituição
Uma revisão da bibliografia sobre o tema e
sua inserção no campo dos estudos de gênero
Amanda Gomes Pereira1
1
Resumo: Este artigo tem por objetivo traçar um breve
percurso histórico dos estudos de prostituição a partir
da análise de alguns trabalhos relevantes e que são
referências da produção sobre o tema em diferentes
épocas. Desse modo, se objetiva apresentar como os
estudos de gênero influenciaram os estudos de
prostituição e como os pesquisadores dessa temática
empreenderam diálogos profícuos a partir da
incorporação das críticas das categorias analíticas de
gênero. Assim, refletindo sobre as questões que
perpassaram as reflexões sobre as relações generadas
em diversas sociedades, pretende-se demonstrar as
intersecções existentes entre ambos os estudos, que
historicamente passaram a compartilhar questões
comuns com o surgimento dos estudos sobre
sexualidade. Além disso, pretende-se delinear as
transformações históricas de perspectivas sobre a
temática da prostituição ocorridas nesses estudos –
que se iniciaram com um discurso sanitarista sobre a
prática e atualmente concentram-se em análises sobre
os agenciamentos da profissão pelos profissionais do
sexo.
Palavras-chave: Prostituição. Gênero. Sexualidade.
Agenciamento.
Abstract: This article aims at tracing a brief historical
background of studies of prostitution from the
analysis of some relevant and that are references in
production on the subject at different times. Thus, it
aims to present as gender studies influenced the
studies of prostitution and how researchers
undertook this theme fruitful dialogues from the
incorporation of critical analytical categories of
gender. Therefore, reflecting on the issues that
Doutoranda em Ciências Sociais no Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais/ PPCIS
pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro/ UERJ.
1
Dossiê CÂMARA MUNICIPAL
314
permeated the debates on the gendered relations in
diverse societies, it is intended to demonstrate the
existing intersections between both studies, which
historically have come to share common issues with
the emergence of studies on sexuality. Furthermore, it
is intended to outline the historical transformations of
perspectives on the issue of prostitution occurred in
these studies - which began with a discourse on the
practice sanitarian and currently focus on analyzes of
the assemblages of the profession by sex workers.
Keywords: Prostitution. Gender. Sexuality. Agency.
D
esde os estudos “foucaultianos”, se tornou central nas Ciências
Sociais a discussão sobre o caráter histórico, contextual e
construtivista
das
relações
sociais,
fomentada
pelos
questionamentos vinculados às relações de gênero, tanto no meio científico
– social e médico – como nas discussões de senso comum. Os diversos
valores que transcorrem as relações humanas não são naturais e nem
possuem uma essência, mas se definem historicamente em diferentes
contextos sociais. Dessa maneira, as noções sobre sexualidade são
multifacetadas dentro de uma mesma cultura quando inserimos variáveis
de análise como classe social, faixa etária, etc. Isso sem falarmos da gama
de particularidades encontradas quando comparamos culturas diferentes.
Os estudos feministas influenciaram fortemente os estudos sobre
sexualidade. Mesmo quando no desenvolvimento de ambos havia um
descompasso conclusivo das análises, eles empreendiam um diálogo
profícuo dentro das Ciências Humanas. Historicamente, os estudos
feministas iniciaram-se com os woman’s studies. Esses estudos2 se
esforçaram em destacar a presença da mulher na história do Ocidente. Com
um forte propósito de contar a história do subordinado, eles se propuseram
também a descobrir a origem da dominação masculina e da subordinação
feminina. Os estudiosos acreditavam que ao conhecerem as origens e as
causas do processo de dominação poderiam quebrá-lo e, dessa forma, por
fim a desigualdade que perdurava há milênios.
A coletânea de textos presentes no livro “A mulher, a cultura e a
sociedade” é um exemplar dessas primeiras análises. Nela, as autoras
partem do pressuposto de que em todas as sociedades humanas conhecidas
a mulher é subordinada ao homem. O argumento é que, mesmo quando os
estudos etnográficos descrevem sociedades em que há uma relação mais
Conforme SCOTT, Joan. “Gênero: uma categoria útil de análise histórica”, In. Educação e
Realidade, v. 20, jul./dez. 1995, Porto Alegre.
2
REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014.
315
igualitária entre homens e mulheres, em nenhuma delas a mulher possui
poder publicamente reconhecido e autoridade superior a do homem3. Desse modo,
neste livro, as autoras buscam a origem histórica da subordinação feminina
e os pressupostos que a fazem compreensível e factual. A conclusão que as
autoras chegam, cada uma a seu modo, é que:
[...] enquanto a mulher for definida universalmente em termos
de um papel amplamente maternal e doméstico, seremos
responsáveis por sua subordinação universal. Elaborações de
suas funções reprodutoras configuram seu papel social e sua
psicologia: elas colorem sua definição cultural e nos permitem
compreender a perpetuação do status feminino sem olhar sua
subordinação como inteiramente determinada por sua
tendência biológica ou sua herança evolutiva4.
Entretanto, a despeito das contribuições incontestes desses estudos,
ainda possuíam uma “essencialização” do ser mulher e homem, arraigada
nos pressupostos biológicos e na universalização da dicotomia público/
privado, cara ao Ocidente. As categorias que constituem as sociedades
ocidentais são disseminadas como padrões de análise dos mais diversos
povos e sociedades. Não há um apelo à contextualização histórica, social e
cultural e nem uma compreensão crítica dos próprios conceitos ocidentais.
A separação entre público e privado de abstrata se torna concreta,
naturalizada por esses estudos. Dicotomias como natureza e cultura,
família e sociedade também são naturalizadas por essas autoras. Assim, a
mulher é subordinada ao homem por estar mais próxima da natureza uma
vez que gera as crianças, amamentando-as e cuidando-as por um período
longo de suas vidas, ausentando-se das esferas publicamente reconhecidas
de poder.
A categoria gênero foi introduzida buscando tanto um
aprofundamento teórico-metodológico de temas e objetos sobre a história e
as relações entre homens e mulheres – que até então era narrada dentro da
história magistralmente masculina dos grandes eventos –, quanto para
indicar o caráter social das relações de gênero, até então essencialmente
atreladas à biologia. Desse modo, a troca do termo “mulher” por “gênero”
demonstra a intenção de minimizar o termo político para o uso de uma
ROSALDO, Michelle & LAMPHERE, Louise. A mulher, a cultura, a sociedade. Rio de Janeiro,
Paz e Terra, 1979, p. 190.
4 ROSALDO, Michelle & LAMPHERE, Louise. Op. cit., p. 25.
3
Dossiê CÂMARA MUNICIPAL
316
categoria analítica e conceitual, ao demarcar o caráter socialmente
construído das relações entre homem e mulher, desvinculando as análises
de termos biológicos. O surgimento da categoria permitiu o refinamento
metodológico, capaz de evidenciar novas formas de existência para além
do binário homem/ mulher.
As feministas norte-americanas foram as primeiras a utilizarem o
termo para enfatizar o caráter fundamentalmente social das distinções baseadas
no sexo5. A categoria gênero traz consigo aspectos relevantes comparados
ao termo “mulher”: a perspectiva relacional entre as histórias dos homens e
das mulheres, visto que pensar a história de maneira generificada é
dimensionar as ações de ambos no transcurso histórico e, por isso, estudálos em separado perpetua o mito de que uma esfera, a experiência de um sexo,
tenha muito pouco ou nada a ver com o outro sexo 6. Assim, as relações entre os
sexos deixam de estar necessariamente vinculadas aos aspectos biológicos.
A partir das reflexões das pesquisadoras norte-americanas, surge uma
nova conceituação do termo gênero – que será amplamente utilizada por
pesquisadores em diversas partes do mundo – e o define como uma
categoria social imposta sobre um corpo sexuado 7. Os estudos sobre sexo e
sexualidade utilizam a categoria para desvencilhar a prática sexual dos papéis
sexuais atribuídos às mulheres e aos homens8.
Os estudos históricos, a partir da utilização desse conceito,
seguiram algumas correntes. Os estudos influenciados pelas teorias
marxistas que, assim como Engels, relacionavam os meios de produção aos
meios de reprodução nas sociedades capitalistas, cuja suposta
interdependência entre estes dois sistemas era forjada a partir das
explicações sobre as formas produção e reprodução das desigualdades
sociais. As relações de produção estariam intimamente ligadas às formas
de reprodução da espécie humana no interior das famílias. Dessa maneira,
a mulher era subordinada ao homem, da mesma forma que o trabalhador
ao capital. Além disso, a diferenciação dos papéis sexuais era colocada na
própria origem da sociedade humana. Para as feministas marxistas: família,
lares e sexualidades são, no fim das contas, todos, produtos cambiantes das relações
de produção9.
SCOTT, Joan. “Gênero: uma categoria útil de análise histórica”, In. Educação e Realidade, v. 20,
jul./dez. 1995, Porto Alegre, p. 72.
6 SCOTT, Joan. . Op. cit., p. 75.
7 SCOTT, Joan. . Op. cit., p. 75.
8 SCOTT, Joan. Op. cit., p. 75.
9 SCOTT, Joan. Op. cit., p. 78.
5
REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014.
317
A teoria psicanalítica também influenciou fortemente vertentes dos
estudos feministas. A escola anglo-americana das relações e as pósestruturalistas francesas se empenharam em compreender os processos pelo
qual a identidade do sujeito é criada, e centram suas análises nas primeiras etapas
do desenvolvimento da criança10. Cada escola, a seu modo, procurava
encontrar, no universo infantil, os rastros em que se formavam a
identidade de gênero. Enquanto a escola anglo-americana compreendia o
processo a partir das experiências concretas das crianças e as relações que
elas estabeleciam com seus pais, os pós-estruturalistas enfatizavam a
importância da linguagem na construção da representação do gênero. Para
a teoria lacaniana, com quem as feministas pós-estruturalistas dialogam, a
identidade generificada se constitui através da linguagem.
Se o gênero enquanto categoria analítica representou um grande
amadurecimento da produção feminista, foram as diversas vertentes de
estudos que se seguiram, inspirados nessa categoria, que, por discutirem
questões referentes à sexualidade, abriram caminhos tanto para a discussão
política de identidades plurais de gênero, como inseriram uma pauta
pouco amadurecida: a discussão sobre prazer. Assim, enquanto que os
estudos sobre mulher e gênero alargaram espaços de reconhecimento
temáticos, políticos e de direitos humanos, são os estudos sobre os grupos
GLBTs que mais diretamente hoje discutem sexualidade e prazer.
Os diálogos entre os estudos feministas e os estudos de
sexualidade se interceptam a partir da influência da teoria psicanalítica,
presente em ambos os estudos. A militância das minorias que não se
sentiam reconhecidas nas discussões anteriores traz para o debate novas
abordagens e discussões acerca do corpo, da sexualidade e do próprio
conceito de gênero. Esse conceito – visto pela teoria lacaniana como uma
construção ficcional ancorada na linguagem e nos processos de constante
construção simbólica do sujeito – é apropriado pelos discursos das
minorias como modo de compreensão sistemática do desejo consciente e
inconsciente.
Os estudos recentes sobre sexualidade nas Ciências Sociais, em
particular nas Ciências Sociais no Brasil, têm buscado olhares sobre a
temática que extrapolam os discursos biológicos e que dimensionam nas
práticas as perspectivas “empoderadas” do prazer e como esse está ligado
10
SCOTT, Joan. . Op. cit., p. 81.
Dossiê CÂMARA MUNICIPAL
318
aos diversos aspectos da vida humana. Todavia, para se afirmar isso, é
preciso um:
[...] esforço de aproximação e compreensão teórica das
diferentes possibilidades de construção (e por vezes também
de reificação) das trajetórias sexuais, individuais ou
partilhadas por determinados grupos de pares que nos
conduz a distintos cenários culturais. Estes são permeados por
formas de afeto (em suas variantes, incluindo o ideal de amor
romântico), pela violência, por diferentes redes de
sociabilidade, pelo lugar que a reprodução e a família ocupam
no imaginário social e, fundamentalmente, pelo potencial de
valorização ou censura que o mundo social exerce sobre cada
sujeito11.
Por acreditar nesse esforço como válido e fundamental para a
compreensão da forma como diferentes pessoas, em diferentes contextos,
agenciam sua sexualidade, usam de seus corpos, seduzem, constroem suas
fantasias e seus desejos, praticam sexo e estabelecem relações conjugais,
que acredito ser necessária a realização de pesquisas sobre o universo da
prostituição. Se a escolha do objeto parece óbvia, as relações que essas
pessoas estabelecem não são.
Como lembra Loyola, na sociedade humana, o sexo constitui, ainda, um
instrumento poderoso de criação de vínculos sociais 12. Em um ambiente de
prostituição, essa afirmação é amplamente atestada. Contudo, longe de
serem similares aos outros vínculos criados pelo sexo em outras esferas da
sociedade, em um ambiente de prostituição, múltiplas são as formas de
vínculo criadas através e por essa prática. A mesma prática, o ato sexual,
cria vínculos diferentes entre garotas de programa e clientes, entre garotas
de programas e seus respectivos namorados/ as, cônjuges. O lucro que se
obtém a partir dela também não é o mesmo e, dentro de um local de
prostituição, se estabelece uma economia da sedução em que as principais
moedas de troca são sexo, afeto e dinheiro13.
HEILBORN & BRANDÃO, Maria Luiza e Elaine Reis. “Introdução: Ciências Sociais e
sexualidade.” In. Sexualidade: o olhar das ciências sociais / organizadora Maria Luiza Heilborn. –
Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1999, p. 11.
12 LOYOLA, Maria Andréa. “A sexualidade como objeto de estudos das ciências humanas.” In.
Sexualidade: o olhar das ciências sociais / organizadora Maria Luiza Heilborn. – Rio de Janeiro:
Jorge Zahar: 1999. p. 34.
13 PEREIRA, Amanda Gomes. “Um bonde chamado afeto”: descrevendo as conexões numa casa de
prostituição feminina. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) – Programa de PósGraduação em Ciências Sociais da Universidade Federal de Juiz de Fora, Juiz de Fora, 2010.
11
REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014.
319
Nos estudos de sexualidade, um forte pressuposto é de que o
prazer está intimamente ligado à história de vida das pessoas como um
todo e que, em diversos casos, representa um meio de aquisição de poder.
Por isso, acredito ser extremamente válido narrar a forma como os sujeitos
agem para consegui-lo e como descrevem as diversas formas de obtenção
dele em suas vidas. Negligenciar essa dimensão da vida das pessoas é
silenciar uma parte essencial da experiência humana, fonte de alegria e prazer,
assim como de sofrimento e dor14.
Os estudos de prostituição, produzidos até hoje, são de
fundamental importância para atermo-nos aos discursos sobre sexo
presentes no cotidiano das pessoas. A perspectiva que tenho é que esses
têm apontado, mesmo que não diretamente, para as dimensões da
afetividade. Elisiane Pasini15, ao demonstrar que as garotas de programa da
Rua Augusta – localizada na cidade de São Paulo, estado de São Paulo –
vinculam ao uso do preservativo masculino um demarcador diferencial
entre seus relacionamentos afetivos e com os clientes, constatou uma tônica
que aparece também em estudos sobre o comportamento sexual de outros
grupos sociais: a de que o preservativo representa um “valor” e como tal
qualifica as inúmeras relações sociais que as pessoas estabelecem16. Assim,
não usando preservativos, elas manifestam uma diferença de sentimentos, em que
formam uma hierarquia dos seus afetos (entre os clientes e os não clientes) e, ainda,
estabelecem uma prova da sua fidelidade17.
______________. Relações afetivas e laborais em uma casa de prostituição de mulheres. RBSE –
Revista Brasileira de Sociologia da Emoção. v. 12, n. 35, pp. 566-592, Agosto de 2013.
14 CORNWALL & JOLLY. Andrea e Susie. “Introdução: A sexualidade é importante”. In.
Questões de Sexualidade: ensaios transculturais / organizadoras, Andréa Cornwall e Susie Jolly. –
Rio de Janeiro: ABIA, 2008, p.30.
15 PASINI, Elisiane. “Corpos em Evidência”, pontos em ruas, mundos em pontos: a prostituição na
região da Rua Augusta em São Paulo. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) - Programa
de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Estadual de Campinas,
Campinas, 2000.
16 Ver PASINI, 2000; HEILBORN, 1999. Maria Luiz Heilborn (1999) realizou uma pesquisa que
teve como principal recurso metodológico entrevistas ao estilo “histórias de vida”. Segundo a
autora, foram realizadas oitenta entrevistas no decorrer de três anos “entre sujeitos de diferentes
inserções sociais, buscando analisar qual é o lugar da sexualidade na construção da pessoa em distintos
contextos culturais de uma sociedade complexa e heterogênea.” (HEILBORN, 1999: 40). Comum a
todas as mulheres que ela teve contato durante o período da pesquisa foi o paradoxo de que
ao mesmo tempo em que elas se mostraram conscientes com relação a Aids, elas também
afirmavam não usarem preservativos com seus parceiros íntimos.
17 PASINI, Elisiane. “Corpos em Evidência”, pontos em ruas, mundos em pontos: a prostituição na
região da Rua Augusta em São Paulo. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) - Programa
Dossiê CÂMARA MUNICIPAL
320
O texto de Elizabeth Bernstein, sobre o significado da compra, trata
sobre o comércio sexual pela ótica dos clientes, colocando em evidência
questões interessantes sobre a vivência contemporânea da sexualidade por
homens das classes média/ média alta residentes nos Estados Unidos. Em
seu texto, a autora, a partir dos conceitos de Laumann de sexualidades
recreativa e relacional, apresenta estudos sobre as transformações históricas
da intimidade. Ao descrever as condutas dos clientes no mercado sexual –
tanto frequentadores de casa de entretenimento, como os consumidores de
pornografia online –, Bernstein18 classifica essas práticas como definidoras
da sexualidade recreativa. Desse modo, seus estudos extrapolam a lógica do
consumo sexual e das percepções vinculadas a esse mercado, englobandoos nas análises sobre as mudanças atuais da esfera privada.
As transformações demográficas durante esse período, como
o declínio das taxas de matrimônio, a duplicação da taxa de
divórcio e um aumento de 60% no número de núcleos
domésticos unipessoais, vêm gerando um novo conjunto de
disposições eróticas, as quais o mercado está bem preparado
para satisfazer19.
Outro aspecto interessante do texto da autora é a forma como ela
descreve os clientes. Eles não representam os otários que devem ser
explorados, nem tarados que não conseguem controlar os próprios
impulsos sexuais, mas homens com características físicas e sociais
“padrões” – profissionais liberais bem-sucedidos, brancos ou amarelos –
que estão a procura de entretenimento nos mercados sexuais. A relação
entre eles e as profissionais do sexo aparece como um agenciamento de
ambas as partes, em que os interesses são negociados, com ambos obtendo
ganhos e proveitos. No entanto, ao demonstrar esse aspecto, a autora não
descarta a dimensão do poder nessas relações, só não hipervaloriza esse
aspecto, que antes de ser qualidade da prostituição perpassa todas as
relações sociais.
No Brasil, os estudos sobre prostituição podem ser divididos em
três eixos de análises: os estudos higienistas ou sanitaristas – produzidos
por saberes fora das Ciências Sociais –, os estudos dos anos 80
de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Estadual de Campinas,
Campinas, 2000, p.140.
18 BERNSTEIN, Elizabeth. “O significado da compra: desejo, demanda e comércio”. In.
Cadernos Pagu, n° 31: Campinas, 2008.
19 BERNSTEIN, Elizabeth. Op. cit., p. 334 e 335.
REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014.
321
influenciados pela Escola de Chicago e seus conceitos sobre desvio,
divergência, estigma, e os estudos atuais que preconizam a descrição das
práticas e agenciamento delas por parte das garotas de programa. Abaixo
traço um percurso histórico sobre os temas trabalhados e a discussão
empreendida em cada um desses três eixos. Sobre os estudos sanitaristas
há uma profícua produção sobre eles – significativamente produzida pelos
historiadores –, bem como uma crítica, da qual me utilizo neste trabalho.
Os estudos sobre prostituição no final do século XIX (a partir dos
anos de 1840) e no início do século XX (até 1930) são impregnados pelo
discurso de médicos sanitaristas que viam na prática um grande mal a ser
extirpado do seio social20. Com suas análises moralizantes, esses estudos
relatavam os perigos concernentes a essa atividade que colocava em risco
valores caros a organização social, como a família e, em particular, o
modelo de mãe e esposa. Pela inapetência das autoridades em combatê-la,
a prática era vista como um mal necessário. A despeito dos estudos que
descrevem a prática como uma profissão – em que mulheres e clientes
agenciam seus anseios, desejos, construindo relações de sociabilidade –, as
políticas públicas atuais continuam impregnadas dessa visão de “mal
necessário”. A própria legislação brasileira sobre prostituição contribui
para essa visão da atividade.
Nos primeiros estudos etnográficos sobre prostituição, a prostituta
era narrada como vítima, mulheres desafortunadas que escolhem a
profissão à miséria. Sem recursos para se sustentarem, essas mulheres,
após desistirem de um casamento mal-sucedido, encaram a prostituição
como o único meio de provê o sustento de seus filhos.
Há um discurso padrão que reforça o papel delas enquanto vítimas
que elas utilizam em determinadas situações para sensibilizarem os
clientes, principalmente nos primeiros contatos. Entretanto, negligenciar as
dificuldades por elas vivenciadas é incorrer nos mesmos erros cometidos
por outros pesquisadores que aceitaram, sem críticas, seus discursos de
vítimas. Claudia Fonseca, ao estudar mulheres de cerca de quarenta anos
que se prostituíam em uma praça de Porto Alegre, relata que para elas a
vergonha, não era na idade, nem na atividade profissional, mas da pobreza em que,
Estudos como os de Soares, 1986, Engel 1989, Rago 1991 conforme apresentados por
MAZZARIOL, Regina. Mal necessário: ensaio sobre o confinamento da prostituição na cidade de
Campinas. Dissertação de Mestrado, Universidade Estadual de Campinas, 1976.
20
Dossiê CÂMARA MUNICIPAL
322
por causa da idade e situação de classe, eram obrigadas a viver 21. No caso dessas
mulheres, a pobreza atesta que elas não souberam administrar sua renda de
forma a garantir um descanso na “velhice”22.
Em uma sociedade profundamente desigual como a brasileira, em
que há inúmeras desigualdades de gênero quanto ao acesso a postos de
trabalho, bem como aos valores pagos pelo mesmo serviço, a prostituição
pode representar uma das poucas opções de se obter dinheiro de maneira
imediata, utilizada para o auxílio em momentos difíceis, como no caso do
adoecimento de familiares ou na falta de recursos para o pagamento de
contas.
Segundo Adriana Piscitelli, existem quatro modelos de estatutos
legais: proibicionista, abolicionista, regulamentarista e um modelo que ora é
denominado trabalhista, laboral, “des-penalização”23. Segundo essa autora, o
Brasil adota o modelo abolicionista 24.
A adoção desse modelo pelo Brasil é extremamente paradoxal visto
que, no país, o exercício da prostituição na rua, de todas as modalidades, é
a que elas agenciam de modo mais livre, sem “exploradores diretos”, como
os donos de casas de “shows”. Ironicamente, é a prática mais combatida.
Diversas cidades brasileiras, na década de 40 sobretudo, foram alvos de
legislações que, por medida sanitarista, retiravam as prostitutas das ruas
centrais da cidade, obrigando-as a se destinarem a prostituição praticada
em cabarés, casas de shows, boites25.
Regina Mazzariol demonstrou em sua pesquisa a retirada de
prostitutas em Campinas, estado de São Paulo, do local onde trabalhavam
e o posterior confinamento delas em bairros afastados da cidade. A autora
mesclou a etnografia detalhada à pesquisa com fontes históricas sobre o
caso. O objetivo do trabalho era demonstrar a constatação do fenômeno como
FONSECA, Claudia. “A Dupla Carreira da Mulher Prostituta”. In: Revista Estudos Feministas,
Rio de Janeiro, IFCS / UFRJ – PPCIS / UFRJ, vol. 4, nº 1, 1996, p. 32.
22 FONSECA, Claudia. Op. cit., p. 30.
23 PISCITELLI, Adriana. “Prostituição e Trabalho.” In. Transformando as relações trabalho e
cidadania: produção, reprodução e sexualidade / organizadoras Maria Ednalva Bezerra de Lima,
Ana Alice Alcântara Costa, Albertina Costa, Maria Bethânia Ávila e Vera Lúcia Soares. – São
Paulo: CUT/ BR, 2007, p. 184.
24 Para mais informações sobre o modelo abolicionista, adotado pelo Brasil, ver PISCITELLI,
Adriana. “Prostituição e Trabalho.” In. Transformando as relações trabalho e cidadania: produção,
reprodução e sexualidade / organizadoras Maria Ednalva Bezerra de Lima, Ana Alice Alcântara
Costa, Albertina Costa, Maria Bethânia Ávila e Vera Lúcia Soares. – São Paulo: CUT/ BR,
2007.
25 São vários os nomes dados aos prostíbulos: casa de “striper”, casa de “shows”, casa de
massagens, etc.
21
REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014.
323
forma de comportamento e os limites impostos pela sociedade para a continuidade
de sua existência26. Assim, segundo a autora, alijadas em um determinado
bairro, o fator geográfico serviu para reforçar o “papel social” que elas
desempenhavam, delimitando as práticas por elas estabelecidas a um
espaço. A expectativa que clientes e frequentadores têm ao caminharem
por esse bairro é de estabelecer intercursos sexuais.
De uma forma ou de outra, se os estudos de prostituição se atêm ao
local em que a prática ocorre é porque nos centros urbanos brasileiros a
prática é demarcada e delimitada espacialmente. 27 Isso é comum tanto aos
estudos de prostituição feminina como de prostituição masculina.28 Tanto
que, em algumas cidades, pontos antigos de prostituição feminina foram
ocupados por “travestis” que batalham, é o caso da Lapa no Rio de Janeiro,
estado do Rio de Janeiro29. Há um confinamento da prática a determinados
locais até os dias atuais que reproduz o discurso sanitarista de que tal
prática é suja e contamina as relações sociais das outras pessoas tidas como
“comuns”. Desse modo, uma das primeiras definições dos trabalhos sobre
prostituição no Brasil – na maioria das vezes demarcado no próprio título
dos trabalhos –, é onde o trabalho de campo e/ ou estudo da prática ocorre.
Nesses trabalhos, as regiões estudadas se caracterizam como desde muitos
anos ligadas a essa prática, interligando em suas histórias suas
transformações e as mudanças pelas quais passou a prática dessa profissão
nesses locais. Assim, como lembra Pasini:
As políticas públicas no Brasil, ainda hoje, entendem a
prostituição como um “mal necessário” em que o
confinamento das mulheres é a principal meta. Ao observar
diferentes projetos de leis que transitam no Congresso
Nacional sobre esse tema é possível perceber que, apesar das
diversidades, a linha mantenedora permanece sendo o
entendimento da profissão como um “mal necessário”. Por
exemplo, um projeto de lei de um deputado federal (1997)
MAZZARIOL, Regina. Mal necessário: ensaio sobre o confinamento da prostituição na cidade de
Campinas. Dissertação de Mestrado, Universidade Estadual de Campinas, 1976, p. 3.
27 A Rua Augusta, em São Paulo, estado de São Paulo, a Vila Mimosa na cidade do Rio de
Janeiro, estado do Rio de Janeiro, a rua da Bahia em Belo Horizonte, estado de Minas Gerais, a
Lapa dos travestis na cidade do Rio de Janeiro, estado do Rio de Janeiro, o bairro Maciel na
cidade de Salvador, estado da Bahia, dentre outros.
28 Nestor Perlonger em sua pesquisa sobre michês demonstra o quanto essa prática é
demarcada espacialmente na cidade de São Paulo, situando-se no centro da cidade.
29 SILVA, Hélio R. S. Travesti, a Invenção do Feminino. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, ISER,
1993.
26
Dossiê CÂMARA MUNICIPAL
324
propunha, o livre exercício da profissão (proibindo a profissão
aos menores de 18 anos), uma inscrição desses profissionais
na Previdência Social, na qualidade de autônomos. Mas foi o
3º artigo que gerou maior debate entre as entidades ligadas a
temática da prostituição, pois o deputado propôs o
cadastramento dos profissionais do sexo em unidades de
saúde em que o resultado de exames mensais para a
prevenção de DST (Doenças Sexualmente Transmissíveis) –
Aids estariam grafados em um cartão de saúde. Ainda o
artigo 4° ressalta que seria condenado o incentivo ou a
exploração da prostituição (ter uma casa de prostituição
permanecerá sendo entendido como crime). A justificação que
esse político utilizou para a aprovação do projeto esteve
centrada em dois pontos: o primeiro punindo claramente os
chamados “exploradores” da prostituição e o segundo na
busca de higienização, através do controle e da
obrigatoriedade de exames de DST/ Aids para os
profissionais do sexo30.
Renan Freitas ao estudar diversos ambientes de prostituição
demonstrou o quanto a prostituta de rua sofre represálias dos policiais e
estão a mercê do uso abusivo do poder desses. As prostitutas de rua, por
lidarem diretamente com os clientes e não possuírem vínculos e nem
estarem submetidas ao controle do contexto de bordel – como a supervisão
estabelecida pelas cafetinas e a segregação espacial – estão mais expostas à
inspeção policial e, consequentemente, a “mal-entendidos”31.
Freitas demonstra ainda a relação quase harmoniosa entre donos de
bordéis, e outros estabelecimentos de prostituição, com a polícia. Justo o
agente que, segundo a lei brasileira, deveria ser reprimido – as pessoas que
exploram e lucram com a prática da prostituição de outrem, os donos das
casas de show, etc. – são os que realizam seus trabalhos livremente.
O paradoxo entre o sistema legal brasileiro e práticas vivenciadas
pela população no cotidiano já foi amplamente discutido pelos cientistas
sociais brasileiros. São essas contradições que propiciaram a influência da
Escola de Chicago na produção acadêmica sobre prostituição na década de
80. A partir dos estudos sobre desvio, divergência e estigma, os estudiosos
caudatários dessa escola demonstraram que determinada prática, como a
PASINI, Elisiane. “Corpos em Evidência”, pontos em ruas, mundos em pontos: a prostituição na
região da Rua Augusta em São Paulo. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) - Programa
de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Estadual de Campinas,
Campinas, 2000, p. 7.
31 FREITAS, Renan S. Bordel, Bordéis: negociando identidades. Petrópolis, Vozes, 1985.
30
REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014.
325
prostituição, depende de vários fatores para ser vista como “desviante”.
Segundo Becker32:
O desvio é criado pela sociedade, uma vez que os grupos
sociais criam o desvio ao fazer as regras cuja infração constitui
o desvio e ao aplicar essas regras a pessoas particulares e
rotulá-las como marginais e desviantes. Deste ponto de vista,
o desvio não é uma qualidade do ato que a pessoa comete,
mas uma consequência da aplicação por outras pessoas de
regras e sanções a um “transgressor”.
Marisa Altomare Ariente relata-nos em seu trabalho a complexa
relação entre as profissionais do sexo e os policiais. Ao entrar em contato
com os profissionais do sexo dentro de delegacias da cidade de São Paulo,
estado de São Paulo, a autora contrasta a realidade dessas mulheres em
dois locais: a região do 4° DP (região da “Boca do Luxo) e da 3º DP (região
da “Boca do Lixo”). Enquanto os policiais do 4° DP possuem formação
superior e possuem outros empregos nos períodos livres, os policiais do 3°
DP quase não possuem especialização para os cargos inferiores. A
estrutura da corporação reproduz a estrutura desigual da sociedade.
Pudemos verificar que o 4° DP (região da “Boca do Luxo”) é
valorizado pelos investigadores e delegados enquanto local
para se trabalhar. Os motivos se devem ao fato de que nos
bairros que pertencem à essa área residem indivíduos de
classe média (Consolação, Jardim América, Higienópolis, etc.),
e problemas que surgem são considerados mais amenos
(roubos de carro, de rádio e toca-fitas, prostituição de luxo e
travestis, formam 80% das queixas recebidas). As prostitutas e
os travestis da região são considerados de “mais nível”, o que
significa que as pessoas são menos violentas por estarem
numa situação de vida não tão ruim quanto aquelas das
regiões mais pobres da cidade. São também, as que ganham
mais para sua manutenção, são mais jovens, mais bonitas que
as outras partes da cidade e, justamente por isso, seus preços
são os mais caros e seu trabalho melhor recompensado. Seus
clientes, consequentemente, são mais educados e nunca
querem chamar a atenção33.
BECKER, Howard. Uma teoria da ação coletiva. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1977, p.60.
ARIENTE, Marisa A. O Cotidiano da Prostituta em São Paulo: estigma e contradição. Dissertação
de Mestrado em Antropologia Social, PUC-São Paulo, 1989, p. 102.
32
33
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326
Na região do 4º DP, as profissionais do sexo não sofrem tanto com
as represálias dos policiais, sendo baixo o número das prisões. Segundo a
autora, há entre algumas garotas e policias dessa região relações de
camaradagem e amizade. Isso faz parte da percepção que a maioria dos
policiais compartilha de que a prostituição é uma atividade necessária, com
uma funcionalidade na nossa sociedade e que se praticada com dignidade,
discrição e respeito na relação cliente/ prostituta pode ocorrer livremente.
Contudo, as mulheres que trabalham próximo ao 3º DP são alvos de
perseguições por parte dos policiais porque, segundo esses, não sabem se
comportar, são escandalosas, atrapalham a vida dos moradores que
residem próximo aos locais onde elas trabalham, além de se envolverem
em delitos e crimes maiores do que simples roubos e furtos. Dessa maneira,
são vistas como mais “sujas” que as profissionais do sexo que trabalham na
região do 4° DP: o contato dos indivíduos com a “sujeira” tem uma carga
simbólica, isto é, na verdade, lembra um contato entre partes da sociedade que não
estão no mesmo plano34. A lógica que opera essa divisão dos dois distritos
policiais assemelha-se a lógica disseminada pelos discursos sanitaristas.
Fatores como horário em que ocorre a atividade, o local, dentre
outros, apontam para a importância do contexto e dos atores presentes em
uma dada interação social para que dado ator seja qualificado como
desviante ou não.
Freitas demonstra em seu trabalho como uma prática, ocorrida no
mesmo local, pode, em dado contexto, ser percebida como desviante ou
como “normal”. Em seu estudo, o autor demonstra como os discursos e as
percepções que perpassam diferentes contextos de prostituição – rua,
rendez-vous, bordel – permitem as prostitutas construírem uma identidade a
partir de critérios morais que transitam entre os status de “moralmente
excluída” e “moralmente integrada” em que elas se veem como “menos
expostas” através de uma relação especular que estabelecem com
prostitutas que atuam em locais diferentes aos que elas trabalham.
Aparecida de Moraes nos seus estudos sobre mulheres que exercem a
prática da prostituição na Vila Mimosa na cidade do Rio de Janeiro, estado
do Rio de Janeiro, relata-nos em sua pesquisa que a prática dessa atividade
na “zona” – termo êmico utilizado para definir uma área que concentra um
grande número de casas de prostituição, boites, como a Vila Mimosa – é
preferível. Segundo elas, as mulheres ao serem indagadas pelas
34
ARIENTE, Marisa A. Op. cit.,, p. 110.
REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014.
327
experiências que vivenciaram como profissionais do sexo antes de
trabalharem na Vila Mimosa, a maioria delas relata que estavam mais
expostas aos perigos que rodeiam a prática, vendo nessas outras
modalidades da profissão grandes desvantagens:
Na Vila Mimosa encontrei um número significativo de
mulheres que já havia trabalhado em outros lugares definidos
como locais de “prostituição de alto nível”. Perguntava por
que teriam ido para a “zona”, considerada “baixo meretrício”.
Na tentativa desta compreensão, fui descobrindo que os
valores que são normalmente colocados para definir um tipo
de prostituição mais requintada – valores como o nível sócioeconômico da clientela e da localidade, refinamento do
ambiente, entre outros – não eram lembrados como elementos
fundamentais à satisfação no trabalho. Por outro lado, em
resposta à mudança, prevalecia uma perspectiva de busca de
melhores condições profissionais, condições estas que teriam
ido buscar na Vila Mimosa. Os valores destacados nesse
sentido relacionavam-se: à necessidade de uma maior
liberdade, à possibilidade de maiores ganhos sem tanta
pressão dos gerentes, à ausência ou redução da exploração
por parte de agentes internos, ao menor nível de competição,
às maiores garantias para a exigência do uso do preservativo,
entre outros. Realmente a Vila, mesmo mantendo alguns
atributos de zona confinada, já atingiu um status de
renovação e modernização da atividade que nos obriga a
tratar a sua configuração com certa especialidade. É um
exemplo de como um tipo de organização que, de forma
superficial, seria classificada de decadente e arcaica, pode
revelar componentes mais avançados e compensadores na
lógica interna35.
O livro “Mulheres da Vila: prostituição, identidade social e movimento
associativo” de Aparecida Fonseca Moraes dialoga com duas perspectivas
do estudo sobre prostituição. Por se situar historicamente na passagem
entre de duas vertentes principais desses estudos, Mulheres da Vila contém
análises de ambos os períodos e traz conclusões bastante atuais sobre o
universo da prostituição feminina. A investigação pano de fundo do livro é
sobre como se constitui a identidade das mulheres que trabalham na
prostituição a partir das narrativas das histórias de vida contadas por essas
MORAES, Aparecida F. Mulheres da Vila: prostituição, identidade social e movimento associativo.
Petrópolis, Vozes, 1996, p. 27.
35
Dossiê CÂMARA MUNICIPAL
328
mulheres e, nesse ponto, esse estudo se aproxima dos estudos dos anos 80 e
os diálogos que eles estabeleceram com os conceitos da Escola de Chicago.
A partir do conceito de estigma 36, a autora analisa os discursos e as práticas
das mulheres com as quais teve contato no período de sua pesquisa de
campo. A sua entrada na Vila Mimosa se deu de uma forma muito
peculiar, guiando-a em todo período em que esteve ali. A pesquisadora foi
apresentada aos frequentadores dessa região como membro da equipe de
Gabriela Leite – uma conhecida liderança do movimento de prostitutas que
fundou um Programa de Prostituição e Direitos Civis no Instituto de Estudos da
Religião (ISER), uma organização não governamental 37. Junto com o trabalho de
campo, Aparecida prestava serviço em uma ONG que tinha por objetivo
principal a politização das profissionais do sexo e o estímulo à organização,
visando a regulamentação profissional, bem como melhores condições de
trabalho. Por desenvolver esse trabalho, Moraes esteve durante muito
tempo em contato com as “mulheres da vila”, mas também com vários
atores que trabalham nesse local. O material que ele coletou é extenso e
enriquecedor, contendo várias facetas dessa realidade tão plural.
As conclusões desse trabalho sobre a construção da identidade da
profissão é a de que as mulheres ora se pautavam nas imagens e signos
estigmatizantes que cercam a atividade que desenvolvem – se valendo
deles para obtenção de lucros na profissão – ora contrariavam esse estigma,
com posturas que tinham por princípio a desconstrução desses signos e
imagens: Quanto a esta complexidade, GOFFMAN (1988) demonstra que os
estereótipos não são apenas manipulados por parte daqueles considerados normais,
mas também pelos indivíduos (ou grupos) estigmatizados38. Mais adiante a
autora complementa:
[...] como afirma BHABHA (1991, 193), é preciso compreender que o
estereótipo não é uma simplificação por ser uma representação falsa
de uma realidade específica, mas uma simplificação porque é uma
forma de representação fixa e interrompida que, ao negar o jogo da
diferença (que a negação através do outro permite), cria um problema
para a representação do sujeito em acepções das relações psíquicas e
sociais39.
Aparecida de Moraes utiliza-se da definição de dois autores sobre o conceito de estigma:
Goffman (1988) e Bhabha (1991).
37 MORAES, Aparecida F. Mulheres da Vila: prostituição, identidade social e movimento associativo.
Petrópolis, Vozes, 1996, p. 11.
38 MORAES, Aparecida F. Op. cit., p. 34.
39 MORAES, Aparecida F. Op. cit., p. 38.
36
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329
Desse modo, para Moraes, a politização do campo da prostituição –
com suas reivindicações e agendas – convive com a manutenção por parte
das mulheres de certos signos e códigos da profissão que contribuem para
a percepção estigmatizante delas, mas que, ao mesmo tempo, constrói a
identidade e a singularidade dessas representantes de uma determinada
ordem sexual. Em uma margem tênue, segundo a autora, essas mulheres
constituem um grupo diverso que recria suas representações em constante
atrito com as representações dominantes sobre a profissão que exercem.
Desses estudos40, muitos se perguntaram sobre quem eram as
prostitutas, com quem elas se relacionavam, sobre suas famílias, seus
anseios, gostos e sonhos, com o intuito de compará-las a pessoas que se
inserem diferentemente nos meios de produção da sociedade para afirmar
o quanto aquelas possuem gostos, valores e anseios muito parecidos com
os dessas outras pessoas – presentes na cadeia produtiva empregada em
outras profissões. Por mais diferentes que sejam as perspectivas, em geral
esses estudos avaliam essa prática como uma profissão, sendo que muitos
afirmam que as mulheres entram nesse comércio a partir de um cálculo
racional, ao analisarem suas condições a partir de uma perspectiva realista,
optando por essa profissão ao avaliar as opções de trabalho oferecidas a
elas – em muitos casos, empregadas domésticas, vendedoras, ou outro tipo
de emprego assalariado.
Há também o estudo pioneiro de Maria Dulce Gaspar, cujo perfil das
garotas que praticavam a prostituição era de classe média, de escolaridade
média ou superior, classificadas posteriormente por estudiosos – e pelas
próprias garotas – como universitárias. Em diversos trabalhos, os
pesquisadores relatam a lucratividade dos programas e os ganhos obtidos
com essa atividade, como a aquisição de eletrodomésticos, da casa própria,
de um carro ou, no caso de Gaspar, financiamento de estudos e
acessibilidade a bens culturais através do próprio trabalho 41.
O preço é um dos conceitos classificatórios dessa prática. É ele que,
nas diversas modalidades, cria uma hierarquia no interior da atividade. Da
rua ao bordel e do bordel ao apartamento e salas de massagens, os preços
são variados. Dentro de uma mesma modalidade, a prostituição de bordel,
o preço define os locais e o público deles.
Ariente, Marisa, 1989; Bacelar, Jeferson, 1982; Freitas, Renan, 1985; Gaspar, Maria Dulce,
1984; Mazzariol, Regina, 1976; Moraes, Aparecida, 1996.
41 Bacelar, Jeferson, 1982; Freitas, Renan, 1985; Gaspar, Maria Dulce, 1984; Mazzariol, Regina,
1976; Moraes, Aparecida, 1996; Pasini, Elisiane, 2000.
40
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330
Freitas ao analisar42 diversos locais de prostituição na cidade de Belo
Horizonte, na década de 80, demonstrou as diferenças nos preços e nos
ganhos obtidos em cada um deles. Assim, segundo o autor, a rua que é
onde se cobra menos por um programa e onde se lucra mais, visto que os
programas são curtos, não passam de 20 minutos, e a procura pelos
serviços é maior.
Os estudos recentes sobre prostituição dialogam com alguns aspectos
da produção bibliográfica anterior, todavia, há uma maior centralidade nas
ações das mulheres que trabalham nessa profissão. O cotidiano dos
profissionais do sexo é narrado para além das ações diretamente ligadas a
prática da prostituição. Um dos nomes mais fortes dessa vertente é Elisiane
Pasini que afirma em seus trabalhos a necessidade de um entendimento mais
amplo dos sujeitos que realizam a atividade da prostituição tendo em vista suas
outras experiências de vida43.
Elisiane Pasini em sua pesquisa com garotas de programa que
“batalham” na Rua Augusta, relatou-nos que há uma inconstância delas
nas ruas. Algumas não trabalham aos sábados e muitas só aparecem
quando precisam de um dinheiro imediato para o pagamento de contas,
para a aquisição de bens – como roupas, sapatos, brinquedos para os filhos
– ou quando o marido/ esposa, companheiro/a está desempregado ou foi
detido. Tanto que há vários casos em que as garotas afirmam que a prática
da prostituição não é a principal fonte de renda.
Outro elemento comum aos estudos sobre prostituição é a forma
como as garotas narram as diferenças que estabelecem entre suas relações
com os clientes e com os não clientes. Pasini, nesse trabalho sobre a Rua
Augusta, descreve como as garotas definem, por códigos, o que é
permitido em uma relação com um e com o outro. A diferenciação é
utilizada por elas com o intuito de valorizar os vínculos que elas
estabelecem com os não clientes, ou seja, seus maridos, cônjuges,
companheiros/ as, namorados/ as, esposas. Ao destacar a diferença, elas
realçam quanto são fiéis, caseiras, boas donas de casa, boas mães,
valorizando e reforçando valores tradicionais familiares e demonstrando a
presença deles em suas relações cotidianas. Por outro lado, a relação com o
cliente é caracterizada como efêmera, resumindo-se ao período do
FREITAS, Renan S. Bordel, Bordéis: negociando identidades. Petrópolis, Vozes, 1985.
PASINI, Elisiane. “Corpos em Evidência”, pontos em ruas, mundos em pontos: a prostituição na
região da Rua Augusta em São Paulo. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) - Programa
de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Estadual de Campinas,
Campinas, 2000, p.15.
42
43
REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014.
331
programa. Com os clientes não há beijo, afeto, carinho e algumas práticas
não devem ocorrer como sexo anal – até porque como o tempo de
programa na rua é menor, não haveria nem como acontecer algumas dessas
práticas. Essas mesmas diferenciações aparecem no trabalho de Renan
Freitas. Contudo, o autor demonstra que algumas dessas regras podem ser
negligenciadas pelas garotas dependendo do local em que elas trabalham.
Pelo tempo do programa dos clientes com prostitutas de rua ser muito
curto, como já destacamos anteriormente, a execução de algumas práticas
se tornam inviáveis.
As relações afetivas das profissionais do sexo com parceiros
amorosos e com seus familiares são descritas em diversos trabalhos 44. A
relação que elas estabelecem com a família de origem tem por base os
vínculos econômicos, as necessidades, as formas de auxílio 45. Como a maioria das
garotas trabalha distante dos locais onde residem suas famílias, nas visitas
elas sempre levam presentes, além do auxílio que elas dão todos os meses.
Quando elas possuem filhos, na maior parte dos casos, eles moram
com os pais da garota, com o marido – ou pai das crianças – ou com a sogra
e/ou as irmãs do esposo da garota. Segundo Marisa Ariente, quando os
filhos moram com elas, as mulheres se desdobram em carinhos e afetos,
assumem o papel de excelentes donas de casa e constroem uma rede com
outras colegas de profissão no cuidado dos seus filhos. Como lembra
Bacelar: De maneira geral, as famílias que se desviam do modelo normativo
vigente como é o caso da prostituição, mantém o mesmo sistema terminológico de
parentesco e de percepção de valores na sociedade global46. Em seu estudo,
Moraes destaca que é bastante reduzido o número de prostitutas que não têm
filhos, destacando-se a atenção constante e as referências que fazem a estes nas
conversas entre elas47. Claudia Fonseca enfatiza que entre as mulheres de
meia idade com as quais teve contato em uma praça de Porto Alegre, os
filhos e netos eram temas recorrentes das conversas – fosse para queixar-se de
um ou gabar-se de um bem-sucedido48. Assim, segundo a autora: [...] neste
Ariente, Marisa, 1989; Bacelar, Renan, 1982; Fonseca, Claudia, 1996; Moraes, Aparecida,
1996; Pasini, Elisiane, 2000 e 2005.
45 ARIENTE, Marisa A. O Cotidiano da Prostituta em São Paulo: estigma e contradição. Dissertação
de Mestrado em Antropologia Social, PUC-São Paulo, 1989, p. 49.
46 BACELAR, Jeferson A. A Família da Prostituta. São Paulo: Ática, 1982, p. 29.
47 MORAES, Aparecida F. Mulheres da Vila: prostituição, identidade social e movimento associativo.
Petrópolis, Vozes, 1996, p.65.
48 FONSECA, Claudia. “A Dupla Carreira da Mulher Prostituta”. In: Revista Estudos Feministas,
Rio de Janeiro, IFCS / UFRJ – PPCIS / UFRJ, vol. 4, nº 1, 1996, p.17.
44
Dossiê CÂMARA MUNICIPAL
332
grupo, apresentar os filhos parece ser um dos ritos de pertencimento49. As relações
que elas estabelecem com os familiares são de ajuda e cooperação mútua,
de apoio no cuidado e na educação dos filhos por parte deles e de ajuda
financeira por parte delas. Segundo Pasini:
As garotas de programa afirmam destinarem a renda
proveniente de seus trabalhos ao sustento da casa, dos filhos e
das despesas econômicas. Ao que tudo indica, a renda
feminina vinda da prostituição é aceita pela família e, ao
mesmo tempo, indispensável para o sustento da mesma50.
As relações amorosas e conjugais estão entrelaçadas no cotidiano das
profissionais do sexo e aparecem em diversos estudos. Moraes salienta que
conseguia perceber que algum tipo de arranjo conjugal estava sempre presente 51.
Como este foi o tema da minha dissertação e de outros trabalhos, não
pretendo aqui tecer maiores detalhes. Entretanto, ressalto que, segundo
diversos estudos sobre prostituição52, as relações conjugais estabelecidas
por garotas de programa e seus cônjuges, parceiros/as, pautam-se em uma
relação de colaboração mútua em que os companheiros/as oferecem
auxílios vinculados à profissão e elas retribuem com sexo e com a divisão
das despesas financeiras do casal. E é a junção nessas relações de dinheiro e
afetos que as complexificam53.
Conclusão
Desse modo, ao delinearmos as transformações históricas pelas
quais passaram os estudos sobre prostituição, destacamos como esses
FONSECA, Claudia. Op. cit., p. 17.
PASINI, Elisiane. “Corpos em Evidência”, pontos em ruas, mundos em pontos: a prostituição na
região da Rua Augusta em São Paulo. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) - Programa
de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Estadual de Campinas,
Campinas, 2000, p. 106 e 107.
51MORAES, Aparecida F. Mulheres da Vila: prostituição, identidade social e movimento associativo.
Petrópolis, Vozes, 1996, p. 65.
52 Ariente, Marisa, 1989; Fonseca, Claudia, 1996; Moraes, Aparecida, 1996; Pasini, Elisiane,
2000.
53 PEREIRA, Amanda Gomes. “Um bonde chamado afeto”: descrevendo as conexões numa casa de
prostituição feminina. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) – Programa de PósGraduação em Ciências Sociais da Universidade Federal de Juiz de Fora, Juiz de Fora, 2010.
______________. Relações afetivas e laborais em uma casa de prostituição de mulheres. RBSE –
Revista Brasileira de Sociologia da Emoção. v. 12, n. 35, pp. 566-592, Agosto de 2013.
49
50
REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014.
333
olharam para a prática da prostituição de maneiras diferentes, iniciados
por um olhar medicalizante, sanitarista e denunciativo da prática –
partindo do pressuposto que ela deveria ser banida das relações sociais –
para um discurso de legitimação da profissão – a partir da perspectiva do
agenciamento da atividade pelos profissionais do sexo, introduzindo
elementos como a escolha pela profissão e a percepção desses agentes como
seres reflexivos e racionais.
No texto, buscamos demonstrar ainda como a introdução da
temática da sexualidade no estudo de gênero – principalmente a partir da
emergência dos discursos sobre as identidades GLBT‟s –, possibilitou a
transformação da ótica da prática da prostituição, uma vez que as práticas
sexuais dos seres humanos passaram a ser vistas como pertencentes a uma
dimensão importante de suas vidas, ligadas a ao bem-estar e saúde deles,
muito mais do que ao adoecimento desses. Por isso, a relevância desses
estudos na compreensão das redes e relações que constroem as esferas
vinculadas ao campo da sexualidade e, desse modo, ilumina um campo
fundamental da experiência humana: o do prazer e da intimidade.
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REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014.
335
História e gênero
Um estudo da condição feminina na cidade de Dom Aquino/ MT
(1970-1990)
Lidiane Álvares Mendes1
1
Resumo: Este artigo tem como objetivo analisar a
condição feminina no município de Dom Aquino,
Mato Grosso, a generalidade, transformações e
mutações ocorridas ao longo do tempo estudado. Essa
temática aborda as concepções e subjeções de uma
cidade interiorana à partir da busca feminina, suas
relações com o social, cultural e religioso, e em
contrapartida suas “obrigações” com a família, os
filhos e o marido. São observações pontuadas e
problematizadas na questão do gênero, suas
limitações e condições perante esta sociedade
interiorana.
Palavras – chave: Gênero, transformações, Dom
Aquino/MT.
Abstract: This article aims to analyze the condition of
women in the city of Dom Aquino, State of Mato
Grosso, the generality, the transformations and
mutations occurred throughout the studied period.
This theme addresses the concepts and subjectivities
of a provincial town from the female search, the
women‟s relations with the social, cultural and
religious aspects, counteracting their "obligations"
with family, children and husband. This study shows
observations concerned specifically in the issue of
gender, its limitations and conditions before this
countryside society.
Key - words: Gender, transformations, Dom Aquino /
MT.
Lidiane Álvares Mendes, licenciada em História e especialista em Formação Histórica das
Políticas Públicas e Sociais no Brasil, atualmente é professora substituta do Instituto Federal
de Educação e Tecnologia do Amazonas – IFAM- Manaus Campus Zona Leste.
1
Dossiê CÂMARA MUNICIPAL
336
O
presente estudo da condição feminina na cidade de Dom AquinoMT, tem como objetivo dar visibilidade as formas subjetivas dessas
figuras femininas: os seus sonhos, ilusões, paixões e amores. Tal
temática só foi possível à partir das mutações e transformações políticas,
sociais e culturais, provocado pelo feminismo neste período proposto.
Em uma análise qualitativa, basearemos este artigo nas condições
femininas dentro daquela sociedade, utilizaremos os recursos teóricos metodológicos, bem como as concepções de autores prós – estruturalistas.
O mundo feminino do período em questão não se trata somente de
um conhecimento prosaico das cousas do dia-a-dia, pois devemos analisar
suas angústias, a discriminação em relação a sua condição formatada
muitas vezes na própria família com a herança patriarcal, criada e
consolidada durante um tempo no qual, não tinham voz. E nem vez!
A imposição familiar muitas vezes fez com que elas assumissem
casamentos que não desejavam filhos que não queriam, profissões que não
puderam exercer, opções sexuais não definidas, maternidade não
requerida, religião imposta, enfim uma gama de obrigações exercidas com
a cruz da subjeção social interiorana, que muitas vezes fez-se destas
mulheres atrizes imparciais de suas próprias histórias.
A autora Valéria Fernanda da Silva, 2 em seu artigo História
Feminista, uma história possível, mostra-nos com clareza:
que a história que não fala das mulheres, que ignora
sua participação nos “grandes” e “pequenos”
acontecimentos, não é neutra, mas serve para
perpetuar papéis de gênero e representações sociais a
respeito das relações entre sexos, negando-se a
discutir as resistências, a ação criativa das mulheres e
como as estruturas patriarcais de poder com suas
exclusões e hierarquias foram constituídas.
São arranjos sociais forçados, que mostra claramente a face
masculina em prol de suas próprias determinações e afirmações do seu
cotidiano viril, embora, essa relação fora colocada muitas vezes a força
numa demonstração de masculinidade e /ou poder.
O papel feminino na sociedade brasileira, sempre foi determinado
por essa relação patriarcal, marital, de posse, entocadas em seus profundos
sentimentos de ingratidão e muitas vezes de ódio, caracterizados por uma
2
SILVA, Valéria Fernandes da. História Feminista, uma história do possível. 2008.p.04
REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014.
337
subordinação, trancafiados em seu mundo de sonhos e pressupondo que
pudessem ter efetiva participativa na sociedade em que viviam.
Neste âmbito não podemos deixar de esclarecer que esse universo
feminino, servia para todas as mulheres, solteiras, casadas, mães-solteira,
negras, brancas, prostitutas ou freiras, velhas ou feias, bonitas, ou magras.
Essa condição era simplesmente imposta à elas e que assim o fosse! O ter
sua visão de mundo não lhes dava o direito de opinar, de interagir, tão
pouco de ocupar seu espaço nas esferas sociais.
Sob a contextualização da autora Cristiane Manique Barreto: 3
Quando falo em gênero, estou falando de relações.
Não de mulheres, nem de homens, mas de como
historicamente e socialmente foram construídas as
relações entre homens e mulheres. Portanto, a
categoria de análise – gênero – remete à cultura e não
ao biológico.
Apesar de todos esses preceitos dessa relação de gêneros, e
principalmente da história escrita somente com o olhar do historiador
(macho), ocultando a visão feminina mesmo que panorâmica e o poder
central exercido pelas mulheres, que muitas vezes fora explicitado somente
no leito (ou de seus maridos ou de seus amantes), deve ser pesquisado,
analisado, esmiuçado, para que a compreensão da história destas mulheres
“sociais” dom-aquinenses, seja entendida dentro de um contexto neutro e
que a destruição da barreira criada sob o âmbito dessas sociedades possa
perpetuar em estudos das condições de gênero.
Segundo Margareth Rago,4 em se considerando os:
“estudos da mulher” esta não deveria ser pensada
como essência biológica pré-determinada, anterior a
História, mas como uma identidade construída social
e culturalmente no jogo das relações sociais e sexuais,
pelas práticas disciplinares e pelos discursos/saberes
intituintes.
BARRETTO, Cristiane Manique. História e Relações de Gênero. In MORGA, Antônio Emílio
(org). Gênero, e Sociabilidade Afetiva. Itajaí: Casa Aberta, 2009.p.146.
4RAGO, Luzia Margareth. Do Cabaré ao Lar: a Utopia da Cidade Disciplinas – Brasil 1890-1930. 2º
ed. Coleção Estudos Brasileiros v.90. Rio de Janeiro: Paz e Terra: 1985.p.37
3
Dossiê CÂMARA MUNICIPAL
338
A contextualização da divisão homem/mulher, quem oprime e
quem é oprimido, instituído e definido, por homens, cujo papel feminino
tinha unicamente a constituição da formação da prole, da elaboração dos
trabalhos domésticos, da educação e conservação desta família, que embora
não se entendessem haveriam de estar bem perante a sociedade, na qual
cobrava-se da mulher dentro das instituições sociais sua obediência ao
mando de seu pai/tutor/irmão/marido.
Sobretudo ao levantarmos as condições femininas no espaço em
questão devemos nos orientar nas afirmações de Maria Izilda Matos, 5 que:
Os estudos de gêneros, porém não representa opção
para o pesquisador preocupado com um método que
pressuponha equilíbrio, estabilidade e funcionalidade.
Tal temática é extremamente abrangente e impõe
dificuldades para definições precisas. São muitos os
obstáculos para os pesquisadores que se atrevem a
enveredar pelos estudos de gênero- campo minado de
incertezas, repleto de controvérsias e de ambigüidade,
caminho inóspito para quem procura métodos
teóricos fixos e muito definidos.
Seguindo a afirmação de Matos, de um universo de controvérsias e
ambíguo, analisar uma sociedade interiorana com discursos de moralidade
arraigados, se faz necessário em um período que procuramos construir e
desconstruir as afirmações existentes sobre a mulher e seus “ofícios” 6,
fomentando discussões sobre a identidade feminina brasileira.
Rago,7 esclarece que:
Para escrever a história, são necessárias fontes,
documentos, vestígios. E isso é uma dificuldade
quando se trata da história das mulheres. Sua
presença é frequentemente apagada, seus vestígios,
desfeitos, seus arquivos, destruídos. Há um déficit,
uma falta de vestígios.
MATOS, Maria Izilda S. de. Outras Histórias: as mulheres e estudos de gêneros – percursos e
possibilidades. In SAMARA, Eni de Mesquita, SOIHET, Rachel e MATOS, Maria Izilda S.
Gênero em debate trajetória e perspectivas na historiografia contemporânea. São Paulo: educ,
1997. p. 144.
6 Aqui ofícios vêm caracterizar a mulher como dona de casa, beata, “da vida”.
7 RAGO, Luzia Margareth. Do Cabaré ao Lar: a Utopia da Cidade Disciplinas – Brasil 1890-1930. 2º
ed. Coleção Estudos Brasileiros v.90. Rio de Janeiro: Paz e Terra: 1985. p.21
5
REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014.
339
Sob este olhar lançado ao passado buscaremos reconstruir detalhes
da identidade dessas mulheres, que logo buscaram em seus direitos
oportunidades de serem independentes em sua forma de pensar,
desconsiderando as opiniões masculinas, e demonstrando que são tão, ou
mais, capazes que eles.
Nesta teia que envolve seus valores, posições, cultura, religião,
enfim toda a sociedade ou a imposição da sociedade, que vão trazendo à
tona “seus arquivos”, agora para serem relembrados e reescritos.
A origem das famílias dom aquinenses e sua relação de poder sobre as mulheres
A proposta deste trabalho, portanto, vem salientar a necessidade
da desmistificação dessa relação de gêneros, em uma cidade estruturada
primeiramente na migração de famílias oriundas de lugares específicos do
território brasileiro, como Minas Gerais, Bahia, Ceará, Sergipe e
Pernambuco, que em busca de vidas melhores e do sonho do Eldorado 8,
vieram em lombo de burros, marchando às vezes seis meses, passando por
diversas formas de precariedades, buscando dias melhores.
Contudo, os chefes dessas viagens eram geralmente os homens,
eles comandavam e administravam tudo: o tempo de duração da viagem, o
alimento, as condições de seguir ou parar - parar um período ou estação até que juntassem mantimentos em hortas organizadas nas margens da
estrada, ou até que uma parturiente ganhasse nenê e se restabelecesse para
continuarem a viagem.
E assim, muitos filhos (as) nasciam nessas estradas, muitas filhas
casavam nessas paradas, muitas mães morriam nessa travessia, e partindo
deste ponto que construiremos as bases dessa sociedade masculina, da
imposição subjetiva composta por mulheres que simplesmente cumpriam
suas obrigações.
O período aqui estudado tem como particularidade ser passado em
uma cidade interiorana, esquecida, apagada no cenário cultural, intelectual,
que antes da única televisão instalada na praça central, na década de 80,
eram nas calçadas que as pessoas sentavam-se para comunicar casamentos,
mortes, notícias dos parentes de longe, compra e venda de bens, falências,
enriquecimentos, vindas e idas de conhecidos e forasteiros e, claro
Sonho do Eldorado: termo utilizado para aqueles que deixavam suas terras de origem, para
buscar em outras regiões o “sonho” do enriquecimento rápido, ora em busca do ouro, do
diamante, ora em busca de látex, e/ou outros.
8
Dossiê CÂMARA MUNICIPAL
340
“peculiaridades” da vida alheia, era em frente a essas calçadas que as
crianças brincavam, adolescentes enamoravam, valores eram repassados, e
tudo o mais acontecia.
Com o advento televisivo na praça central a vida social passa a ter
um novo contexto, sendo que pouquíssimas famílias tinham televisão ou
rádio em casa, as rodas de familiares e amigos agora não se firmavam nas
calçadas das residências e sim em frente da Televisão na praça central, ali
reuniam-se pessoas de todas as classes sociais, onde seus habitantes viviam
sob o cotidiano medíocre, agarrados a tabus, valores e sentenças enraizados
em comportamentos um tanto quanto retrógrados.
Não era um lugar que vivia sob um turbilhão de acontecimentos
como nos grandes centros: televisão, cinema, rádio, pílulas
anticoncepcionais, camisinha, início e fim da ditadura militar, jovens com
caras pintadas pedindo eleições diretas, juros, inflação, topless,
homossexuais saindo literalmente do armário, o divórcio sendo encarados
de forma normal, nas artes o tom de protesto é geral, a população agora
tinha liberdade para expressar-se e, dentre, tantas outras coisas que
aconteciam, e que faziam o Brasil fervilhar.
Neste cenário interiorano o que vigorava ainda para as mulheres
era o mesmo ritmo de vida cantada na voz de Ataulfo Alves 9 [...] Ai que
saudades da Amélia/ Amélia não tinha a menor vaidade/Amélia é que era
mulher de verdade. Numa alusão a mulher que tudo aceita e que tudo se
sucumbe.
Alguns moradores na cidade de Dom Aquino assistiam a tudo
estupefatos, outros ignoravam, alguns poucos liberais gostavam das
transformações que estavam acontecendo, da evolução na sociedade
brasileira e esperava que isso logo fosse aceito no interior do país.
Portanto, é de se admirar que com o mundo em constante ebulição,
ainda ocorria à falta de informação sobre sexo, menstruação, escolhas
profissionais e sentimentais, política feminista. Ali mulheres ainda se
casavam com homens que seu pai escolhia, não terminavam sequer o
ensino fundamental, por que “do lar”, não precisava saber ler, escrever,
isso faria com que essas mulheres tivessem informações, formariam suas
opiniões, deveriam tão somente cuidar de seus lares e serem subordinadas
aos seus maridos.
Essas relações entre mulheres e conversas que eram consideradas
tabus deixam de existir somente nos meados da década de 1980, antes
9
Ataulfo Alves escreveu a letra e música.
REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014.
341
disso, eram assuntos extremamente proibidos, o homem da casa, o
provedor, proibira muitas vezes que esse tipo de instrução fosse passada,
uma vez que, ao saber que suas filhas ou enteadas menstruara o risco de
uma gravidez indesejada aumentava, sabia que a partir daquele momento
o corpo feminino daria sinais de desejo - a descoberta - o novo - portanto
proibiam, e o novo sempre vem acompanhando de perguntas, argumentos,
críticas e crises de gerações.
Partindo das reflexões e leitura da epistemologia feminista percebese que com o passar do tempo pesquisas e fontes orais das mulheres que
vivenciaram em determinado período fatores que podemos pontuar e
conceituar a formação da sociedade em questão, e que agora longe das
amarras que as calavam, essas mulheres ajudam a história não só das
mulheres dom aquinenses a ser contada, mas também a história de
gêneros.
Percebemos que com o passar do tempo, elas deixam de ser
“silêncio das fontes”, como nos coloca Perrot10, para mostrarem seus pontos
de vistas, suas opiniões sobre a forma na qual foram educadas, seu lugar na
vida pública e/ou privada, seu espaço no cotidiano daquela sociedade.
Nesta busca, fez-se necessário a compreensão da formação dessa
nova identidade, dessa nova mulher que resolve falar, quebrando o silêncio
que as colocavam em inferioridade, agora podemos ouvi-las diretamente,
abertamente ou ainda falarem e simplesmente falarem...
O lazer: para os homens o gozo. Para as mulheres a reza.
As instituições sociais família, igreja, escola, criadas por uma
sociedade de controle que busca intervir nas relações interpessoais dos
indivíduos,
analisando-os
criticando-os,
e
subordinando-os
a
comportamentos tido certo, a valores conservadores, a condições de vida
pré-determinadas, diante de uma sociedade pouco evoluída em seus
conceitos de modernização do ser, como nos relata Navarro-Swain,11
“levantar questões e pesquisar incansavelmente a diversidade, para
escapar à tirania do unívoco.”
PERROT, Michelle. Minha História das Mulheres. Trad. Angêla M.S. Corrêa. São Paulo:
Contexto,2007. p.17.
10
NAVARRO-SWAIN, Tânia. 1993/94 De deusa a bruxa: uma história de silêncio. Revista
Humanidades, UnB/EdunB, 2006, vol.9, n.1/.31. (web)
11
Dossiê CÂMARA MUNICIPAL
342
Dentro do conceito citado acima é que não poderíamos deixar de
citar aqui, o lazer, tão importante, principalmente em cidades do interior
onde geralmente não era fornecido com grande frequência, os bailes, circos,
parques, atrações culturais, eventos esportivos eram esporádicos, no
entanto, a igreja, e a zona de baixo meretrício, principalmente a segunda
funcionava a semana inteira inclusive dia santo.
Vejamos o papel da Igreja, pois convenhamos que é lá, que as
pessoas das mais humildes as mais abastadas estão. Tiram em dias de
missa, suas melhores roupas e sapatos, arrumam sua prole, e partem, casais
entrelaçam-se os braços e lá se vão a família feliz, perfeita aos olhos de toda
a sociedade. E é justamente na família, aqui intitulada feliz, que será nosso
ponto de partida, pois enquanto o padre fala seu sermão, o marido está a
olhar por cima de sua esposa, a procura do desejo, de uma escapadela, de
uma viúva, ou quem sabe uma por assim dizer “biscate” 12 para satisfazê-lo
nas coisas da cama.
Esse é o típico papel do macho que subordina sua esposa, suas
filhas, ou qualquer mulher que esteja sobre sua guarda, é esse que a deixa
submissa, não a deixa estudar, ter contato com mundo lá fora, somente nos
afazeres domésticos, esta mulher que vive sob o domínio desse homem, no
qual a história foi escrita sob a luz de seus olhos.
Nas missas, folia de santo rei, procissões, velórios, casamentos,
aniversários as famílias ou estavam lá completas, ou sendo sempre
representadas pela figura masculina, as mulheres da casa, quando não
estavam presentes, ficavam redimidas a seus lares, cuidando da casa, dos
filhos ou de algum enfermo, idosos, era esse o papel estabelecido a elas, e
isso lhe foi passado pela sua mãe/madrasta, submissão ao seu homem. Era
ele quem determinava se poderia sair, ir as compras, visitar um ente
querido, receber visitas, dentre outras coisas.
Assim, corriam-se os dias, passavam-se os anos, e essa educação
patriarcal era repassada as suas filhas, claro que algumas dessas mulheres,
soltaram suas amarras valorais ultrapassados e educaram suas filhas de
outra forma, mesmo que as escondidas. Contudo, muitas das mulheres
desse período transferiram a cruz que carregava a suas meninas/mulheres.
Como toda cidade, seja ela do interior, ou não, há sempre um
determinado lugar, uma rua, uma casa, onde somente era permitida a
entrada de homens, casados ou não, maiores de idade ou não. Ali se podia
Biscate: aqui referem-se a mulheres de vida fácil, prostituta, ou aquela que sai com todo
mundo.
12
REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014.
343
beber, cuspir no chão, falar palavrão, ali sim era o recanto masculino, a
prova de sua virilidade e poder. Ali se iniciava os adolescentes, a provação
que os pais esperavam que seu filho fosse macho. Dentre muitas outras
denominações usadas era o prostíbulo, a zona de baixo meretrício, a casa
da luz vermelha, a rua de baixo, ou simplesmente “lá”.
Até a década de 1990, ainda existia em Dom Aquino a rua em
formato de “U”, onde dos dois lados havia casas de mulheres “fáceis”, que
vendiam seus corpos como forma de sobrevivência, onde os
frequentadores deleitavam-se a vontade, onde podiam realizar as suas
fantasias, suas necessidades sexuais, como queriam, pois, além de estarem
pagando para isso, eles não sentiam suas consciências pesarem, afinal, suas
esposas/noivas/irmãs/filhas estavam em casa, resguardadas em seu lar,
protegidas daquele mundo infame.
Em relatos reais, uma das entrevistadas nos conta que “depois que
o noivo, fazia a sala”, ou seja, passava uma ou duas horas em sua casa,
ladeado por toda sua família, despedia-se e ela da calçada, ficava a olhar
ele se dirigindo a zona.
Percebe-se através desse depoimento, a submissão imposta e aceita
pelas mulheres, pois ao noivar com toda a família reunida, a noiva ainda
via seu noivo ir se deleitar nos braços de outra.
No imaginário de todas as mulheres, e na contemporaneidade
ainda existe, e habita a mistificação desse ambiente peculiar, que faz com
que seus homens saiam de casa e vão amanhecer em lugares considerados
promíscuos, vulgares, com mulheres transfiguradas pela bebida, pelo
fumo, e nos tempos atuais pelas drogas, seus corpos muitas vezes nu ou
seminu sendo oferecido com palavras de cunho sexuais.
Os cabarés, zona de baixo meretrícios, e tantas outras designações
usadas para colocar as mulheres de qualquer tempo em lados opostos,
sempre mexeu com o imaginário masculino, caracterizadas por mulheres
para casar, e mulheres para transar, esses lugares sempre se esconderam da
sociedade, sabiam todos onde ficavam, mas que ficassem lá, mudas.
Mary Del Priore,13 em seu livro, Histórias Íntimas: sexualidade e
erotismo na história do Brasil pontua que:
DEL PRIORE, Mary. Histórias Íntimas: sexualidade e erotismo na história do Brasil. São
Paulo: Planeta, 2011.p.87
13
Dossiê CÂMARA MUNICIPAL
344
A prostituição ameaçava as mulheres “de famílias
puras”, trabalhadoras e preocupadas com a saúde dos
filhos e dos maridos. Tal ameaça à rainha do lar era
feita de duas maneiras – todo desvio de ação,
pensamento ou movimento poderia aproximar e
confundir o espaço privado da casa com o espaço
público da rua. (...) a outra ameaça, tão séria quanto a
anterior, era a de ser substituída pela mulher pública
e não desempenhar a contento as tarefas e funções
impostas. Existindo como o negativo atraente e
ameaçador da família, as mulheres públicas foram
descritas com todos os vícios, pecados e excessos que
se atribui a uma profissão exercida e até explorada
por algumas chefes de famílias.
Por ser considerada a profissão mais antiga do mundo, a
prostituição, não colocava as mulheres em pé de igualdade, uma vez que
as tidas para casar, na maioria das vezes não trabalhavam fora e as
prostitutas, além de venderem o corpo, muitas delas, eram as donas do
bordel, ou seja, mantedoras da casa, da família.
Os homens casados, e solteiros como já descrevemos aqui,
frequentadores dos bordéis, muitas das vezes o faziam, para saciar seus
desejos mais íntimos aqueles que não podiam ser realizados com a mãe de
seus filhos, pois o sexo era restrito à procriação.
Enfim, o sexo, palavra estritamente proibida durante um vasto
período, a sexualidade, o gozo, os prazeres da carne, são neste período
prioridade masculina a eles
era dado o direito de sentir as luxúrias da cama, mesmo que essa cama seja
de outra, prostituta ou teúda e manteúda.14
É sob esse contexto cultural que as mulheres foram criadas, ao
homem enfim o gozo, a mulher a reza, é para elas que voltaremos o nosso
olhar, para as liturgias cristãs, os terços, as promessas, as rezas infindáveis
que muitas vezes foram não a paz de espírito, mais sim a diversão.
Percebemos o poder da religião perante as mulheres, citada
inúmeras vezes na Bíblia, ora como pecadoras, ora como conciliadoras,
muitas vezes julgadas, outras aclamadas, esta relação da mulher no mundo
cristão esta clara em diversas passagens, principalmente no que se refere às
mulheres do lar, em Provérbios 14.1 que diz: toda mulher sábia edifica a sua
Teúda e manteúda, termo usado para caracterizar amantes de homens casados aquelas nas
quais eram sustentadas por eles, não moravam em bordeis, cabarés e afins, habitavam em
residências bancadas por esses homens e eram elas de “uso” exclusivo.
14
REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014.
345
casa, mas a tola derruba com as suas próprias mãos. Ao lermos essa citação
bíblica, nota-se claramente como a mulher é além de ser submissa ainda
tem que sustentar os pilares domésticos.
Era nas Igrejas que elas estabeleciam algum poder, o de rezar, ou
de organizar festas. As casadas observavam através dos atos litúrgicos, as
outras famílias e seus comportamentos, as solteiras, escapavam em
piscadelas em busca de um marido. Ali organizavam-se as quermesses, as
procissões, folias de Santo Reis, casamentos, batizados e velórios.
A religião e o seu poder sobre o indivíduo provêm da cultura de
cada sociedade, algumas vezes sobre pretextos autoritários, espalhando-se
pelo mundo como verdades universais. Outras como a única forma de
pedir pelas mazelas da alma, do carma, da vida. Dentro da complexidade
das religiões ela oferecia um abrigo às misérias das mulheres, pregando
sobretudo, a submissão.
Perrot,15 sobre as mulheres e a alma, diz que:
De tudo isso, as mulheres fizeram a base de um
contra-poder e de uma sociabilidade. A piedade, a
devoção, era para elas, um dever, mas também
compensação e prazer. Elas podiam ser encontradas
nas igrejas paroquiais, na suavidade dos reposteiros e
do canto coral, sentir. [...]
Sobre as mulheres e a religião, podemos verificar que se para o
homem o lazer era bem mais “divertido”, em lugares de música alta,
danças sensuais, bebidas e fumaça de cigarro, para as mulheres o que
restava era vestir-se com suas “roupas de ver Deus”16, e aclamar a Deus e a
seus Santos de devoção.
As relações entre homens e mulheres sempre foram ambíguas, e
continua sendo em algumas regiões do país, no que rege as regras de
cidades interioranas, não tão severamente como antes, nos dias atuais, mais
brandos, devido às conquistas femininas, mas essa relação ainda se faz
presente, intrínseca nos valores morais.
Ao homem tudo pode, a mulher...
PERROT, Michelle. Minha História das Mulheres. Trad. Angêla M.S. Corrêa. São Paulo:
Contexto,2007. p.84.
16 Ditado popular: “Fulano passou aqui com roupa de ver Deus”, ou seja, roupa nova que
nuca é usada a não ser para ir a Igreja.
15
Dossiê CÂMARA MUNICIPAL
346
Enquanto isso nos grandes centros urbanos...
Recuarmos na história brasileira, se faz necessário para
entendermos as transformações ocorridas, essas mudanças sociais,
políticas, culturais que influenciaram diretamente na concepção feminina.
Tais mudanças atuaram diretamente no comportamento tanto das
mulheres quanto dos homens, o que antes era objeto de desejo, como luvas,
espartilhos, pés cobertos com sapatos finos, e cabelos encobertos por
chapéus, agora com as transformações sócio-culturais, isso cai por terra. Os
homens não desejam mais esse tipo de mulher, e as mulheres por sua vez
não se vêem mais assim.
No início do século XX multiplicam-se as escolas, a medicina
evolui, inicia-se o culto ao corpo, as ginásticas, os esportes, as cidades,
sofrem uma ebulição ágil e anônima.
Nas afirmações de Del Priore 17 “o esporte, o cinema, e a dança,
foram primordiais no nascimento da sociedade do espetáculo, diretamente
articuladas com o imaginário da modernidade por estarem plenamente
adequadas aos significados de um novo modus vivendi”.
Neste novo espaço cultural e social não cabe mais antigos modelos
de vida, de valores, de vestimentas, e quando falamos sobre as mulheres,
não podemos deixar de pontuar que ela sempre foi podada, por ter sido
considerada o símbolo do diabo, a que vira a cabeça dos homens, muitas
fazem-nos cair em desgraça, a mulher deveria sempre andar coberta para
não aflorar desejos libidinosos, sexuais, e seu corpo serve somente para
procriar, de preferência filhos belos e sadios.
Nos grandes centros urbanos as condições femininas estavam em
constantes transformações influenciadas pelo comportamento europeu,
nascem nesse período novos conceitos sobre todos os aspectos: na
medicina, nos direitos femininos, na sexualidade, no comportamento
feminino x masculino, as artes cênicas que contribuem para quedas de
alguns tabus, o sagrado e o profano se misturam, o afrouxamento das
condições femininas as faz repensar suas condições na sociedade.
Não foi uma luta de gêneros fácil de ser aceita, se neste período
ainda existisse a Inquisição, muitas queimariam na fogueira por terem
quebrado regras e padrões sociais estabelecidos há tempos.
DEL PRIORE, Mary. Histórias Íntimas: sexualidade e erotismo na história do Brasil. São
Paulo: Planeta, 2011.p.105
17
REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014.
347
Surgia uma nova era feminina, sobe o cumprimento das saias,
abaixo a “dona do lar”, entra-se na época do rock and roll, dos filmes norteamericanos, dos galãs de cinema, das modas afrancesadas, da lingerie,
despem-se os corpos, aumenta o interesse da mulher por diversos
segmentos sociais, além de irem a Igreja, as mulheres agora também
defendem bandeiras políticas, lutam por igualdade social e profissional, e
em contrapartida decidem se querem ou não formar famílias ou terem
filhos.
Percebemos enfim, que no início do século passado as coisas
começam a mudar, as lutas femininas ganham força, ganham voz, Michelle
Perrot, 18 em Minha História das Mulheres, descreve bem essas mudanças:
A história das mulheres mudou. Em seus objetos, em
seus pontos de vista. Partiu de uma história do corpo
e dos papéis desempenhados na vida privada para
chegar a uma história das mulheres no espaço público
da cidade, do trabalho, da política, da guerra, da
criação. Partiu de uma história das mulheres vítimas
para chegar a uma história das mulheres ativas, nas
múltiplas interações que provocam a mudança. Partiu
de uma história das mulheres para tornar-se mais
especificamente uma história de gênero, que insiste
nas relações entre os sexos e integra a masculinidade.
Alargou suas perspectivas espaciais, religiosas e
culturais.
Ecoam por todo mundo as novas perspectivas em relação à mulher,
deixam de serem pensadas como “minoria”. Sob o argumento de Rago,19
podemos perceber que:
[...] se considerarmos que as mulheres trazem uma
experiência histórica e cultural diferenciada da
masculina, ao menos até o presente, uma experiência
que várias já classificaram como das margens, da
classificação miúda, da gestão do detalhe, que se
PERROT, Michelle. Minha História das Mulheres. Trad. Angêla M.S. Corrêa. São Paulo:
Contexto,2007.p.15
19 RAGO, Luzia Margareth. Do Cabaré ao Lar: a Utopia da Cidade Disciplinas – Brasil 1890-1930. 2º
ed. Coleção Estudos Brasileiros v.90. Rio de Janeiro: Paz e Terra: 1985.p 40.
18
Dossiê CÂMARA MUNICIPAL
348
expressa na busca da nova linguagem, ou na
produção de um contradiscurso.
Essa nova linguagem, verificada em um primeiro momento nos
grandes centros urbanos, não foi escancarada, afinal, estamos falando das
mulheres, que por séculos foram consideradas, volúveis, frágeis,
submissas, delicadas. Não seria assim tão fácil quebrarem as algemas e
saírem por ai ditando regras. Essas mudanças foram ocorrendo
paulatinamente, confrontando-se ali, argumentando acolá, e assim
construindo suas identidades.
O desenvolvimento tecnológico tem muito haver com a libertação
feminina, tanto dos afazeres domésticos (novos utensílios que facilitaram a
vida das mulheres), a imprensa escrita agora acessível, as novas formas de
se vestir, o lazer, tudo isso vem com as novas tecnologias, rádio, cinema,
teatro, livros, fornecendo informações de todos os tipos, métodos
modernos de interação e libertação neste caso de ambos os sexos, claro que
as novas tecnologias principalmente as de uso domésticos, facilitam a vida
dessas mulheres, deixando-as com tempo livre para deliberarem sobre
outros assuntos.
Devemos perceber que não foram mudanças rápidas, o
comodismo, o medo de enfrentar padrões estabelecidos, ainda fez e faz
com que muitas mulheres vivam sob as garras de valores patriarcais
antigos, e ultrapassados.
Dentro disso o século XX, foi com certeza o século das grandes
transformações mundiais, em todos os aspectos. Tudo contribuiu para o
avanço da liberdade de gêneros, desde as Guerras que colocaram as
mulheres no mercado de trabalho, passando pela era das informações,
onde elas conseguem o direito de irem a escolas, detém agora a leitura, que
instiga a opinar e questionar, influenciadas por todas essas transformações
as mulheres buscam na revolução sexual o direito do prazer. Agora, elas
podem votar! Profissionalizam-se, levantam-se em passeatas por
melhores condições salariais, argumentam como vão criar seus filhos,
divergem sobre questões sociais, ocupam cargos políticos, de associações,
sindicatos. Não mais precisam espernear para serem ouvidas. São
conscientes de suas condições, mas não são mais consideradas o sexo frágil,
são ainda perseguidas, mas não se deixam calar.
No amor, sensualizam, desmistificam, produzem, são mulheres,
amantes, são polêmicas – homoafetivas – são discretas, indiretas, objetivas.
REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014.
349
As mudanças no comportamento feminino refletem no interior do país
Com todas as novas perspectivas no mundo feminino nos grandes
centros urbanos, não tardaria e elas chegariam ao interior do país, a
televisão, o rádio, o acesso a educação, as informações através das leituras
de jornais, revistas e livros, enfim uma gama de transformações,
econômicas, sociais, culturais, religiosas, tecnológicas, que as tiram do
ambiente doméstico, e as colocam em “pé de igualdade” com o universo
masculino.
Os saberes femininos neste período ultrapassam os portões de suas
casas, vão para as ruas, para as escolas e chegam às esferas administrativas
e política finalmente, elas passam a ocupar seus lugares perante a
sociedade, as grandes inovações tecnológicas, as mudanças ocorridas ao
longo do século XX, ajudaram gradativamente a consolidar a mulher não
mais como dona de casa, a rainha do lar, mas sim como empreendedora –
dona de seus desejos, de seus sonhos e buscando seus ideais.
Neste contexto, Valéria Fernandes da Silva, (2008, p.16) afirma que
“o diálogo com outros saberes proporciona meios de reflexão e estimula
uma ação que possibilite romper com as amarras que inferiorizam e
limitam as escolhas das mulheres, que possibilitam um controle sobre
nossos corpos e escolhas.”
Olharemos agora para as mulheres em Dom Aquino, em seu
espaço e há seu tempo, aqui esboçado nos anos 1970, na época que jovens
gritavam pelo mundo “paz e amor” o milagre econômico brasileiro, trazia
um crescimento surpreendente ao país, o futebol nacional erguia no México
a Taça de Campeão do Mundo no Futebol, a censura através da Ditadura
Militar, cortava tudo o que achava impróprio. Mesmo, assim grandes
espetáculos e músicas de protestos foram gravadas e vinculadas nas
mídias.
Neste mesmo período de Ditadura Militar, faculdades são lacradas,
impedindo que tanto homens quanto mulheres produzissem, e opinassem
contra a forma de governo. Muitas pessoas pediram asilo político em
outros países, eram considerados subversivos e precisavam fugir dos
porões da ditadura.
Na moda as blusas tomara que caia, sandálias plataformas, mini
saias, e colares extravagantes seguiam a onda hippie e faziam o delírio das
mulheres. Na televisão, as famílias brasileiras assistiam a programas
estipulados pela Censura: Chico City, Vila Sésamo, Sítio do Pica-PauDossiê CÂMARA MUNICIPAL
350
Amarelo, A Grande Família, e novelas como O Cafona, O homem que deve
morrer, Irmãos Coragem, Gabriela, Dancin Days faziam o deleite das
pessoas, e em contrapartida abriam a visão delas para um mundo novo.
Em Dom Aquino, por toda a década de 70, as transformações
foram lentas, imperceptíveis, tanto que, o que temos notícia em relação às
mulheres e suas condições são somente as freiras da Escola Estadual São
Lourenço, que ocupavam a direção da mesma, o restante estavam ainda
acostumadas a vida pacata e a submissão.
Entraremos nos anos 1980, com outro olhar, é neste período que as
informações chegam com maior freqüência nas residências, surgia nos país
uma consciência mais ampla sobre a discriminação e a importância do
papel das mulheres na sociedade. Em todos os cantos, surgem
organizações de mulheres que se identificam como mulheres e que buscam
ampliar os horizontes de sua participação social. Nos grandes centros, onde
a atuação do movimento feminista era maior, as organizações de mulheres
desenvolvem-se com mais facilidade e se expressam em discussões sobre a
sexualidade: denunciam e combatem a violência contra a mulher,
enfrentam de forma mais aberta as contradições de seu papel familiar,
evidenciam a sua capacidade intelectual e formalizam as suas
competências em diversas profissões, discutem a reação trabalho, mulher,
família e demais segmentos sociais. Essas organizações refletem no interior
onde as mulheres organizam-se lançando-se candidatas a cargos políticos,
enfrentando as condições impostas pela família e estudando,
transformando suas vidas, pois agora não mais ocupam somente o papel
de mães e dona de casa, buscam outros ramos profissionais, buscam a
realização pessoal.
As reorganizações familiares da década de 1990, a contribuição
feminina tanto social quanto econômico, a reavaliação de seu papel perante
a sociedade, e as condições de igualdade que nesta década colocam as
mulheres em pé de igualdade com homens, embora saibamos que no
cotidiano essa igualdade ainda não é recebida de bom grado, mulheres de
classes sociais distintas buscam sua inserção nas áreas que antes eram
restritas ao mundo masculino.
Dentro dessas novas perspectivas da condição feminina quem
assume a Prefeitura Municipal de Dom Aquino uma professora, Maria José
Borges, seguindo seus passos, mulheres candidatam-se a cargos de
vereadora, e são eleitas. Ainda neste contexto, elas ocupam cargos de
diretoras e coordenadoras de escola, secretárias municipais, e
profissionalizam-se nas mais diversas áreas. No comércio elas abrem as
REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014.
351
portas de seus negócios, e na economia informal são elas as vendedoras de
utensílios domésticos e produtos de beleza, paralelo a isso, estão ligadas
emocionalmente ao andamento da casa e a educação dos filhos, ou seja, a
mulher passa agora a ter jornada dupla de trabalho.
Apesar da evolução da mulher dentro de atividades que era antes
exclusivamente masculina, e apesar de ter adquirido mais instrução, os
salários não acompanharam este crescimento. As mulheres ganham cerca
de 30% a menos que os homens exercendo a mesma função. Conforme o
salário cresce, cai a participação feminina. Entre aqueles que recebem mais
de vinte salários, apenas 19,3% são mulheres.
O período estudado encerra-se tendo sido positivo para a condição
da mulher, oriundas de valores tradicionais, e que diante das
transformações ocorridas conseguiram estabelecer a importância do
trabalho, da qualificação e das possibilidades que surgem com o
desenvolvimento tanto intelectual quanto emocional, conseguiram diante
da quebra de paradigmas, constituir suas profissões, seu lugar na
sociedade e sobretudo sua posição diante da família, dos estigmas
religiosos. Diante da vida.
Finalizando...
A reflexão constituída neste trabalho é a incorporação da mulher
no debate historiográfico, a construção do papel atribuído a ela ao longo do
tempo, e as transformações ocorridas.
Neste contexto a afirmação de Martín Paradelo Núñez,20 , nos
mostra que:
Simplesmente a incorporação da crítica desde o
feminino a qualquer processo gerador de
conhecimento e a integração de toda a prática desde a
mulher como objeto de estudo. [...]. Trata-se em
último termo de avançar para uma história que seja
capaz de perceber a complexidade dos processos
sociais desde uma ótica que tenha em conta a
diversidade de sujeitos que participem deles. É
evidente
que
o
esquecimento,
abandono,
NUÑEZ, Martín Paradelo. Mulher, trabalho e anarquismo. In RAGO, Luzia Margareth.
Compostela: CNT, 2012.Gênero e História. PERROT, Michelle. As Mulheres e os Silêncios da
História. Bauru: EDUSC, 2007.p.15.
20
Dossiê CÂMARA MUNICIPAL
352
dissimulação, ou como queiramos dizer, da mulher
como sujeito ativo em tão grande parte da
historiografia não contribuiu de nenhuma maneira a
proporcionar uma escrita histórica satisfatória, senão
que ao contrário contribuiu a assentar a história como
discurso ideológico das classes dominantes.
A contextualização acima nos remete a indagações referentes ao
esquecimento na escrita da história sob o olhar feminino, suas condições,
verdades e mentiras, sentimentos, problematizações do cotidiano, seus
questionamentos mais obscuros, e suas vontades mais impróprias, para um
tempo singular, característico – masculino.
Acerca do debate na introdução do papel da mulher na história,
suas concepções e contradições do que já foi escrito são fatores de
relevância no diálogo historiográfico onde o micro torna-se parte do macro.
Silva 21 pondera em sua afirmação que o:
Exercício e o diálogo com outros saberes proporciona
meios de reflexão e estimula uma ação que possibilite
romper com as amarras que inferiorizam e limitam as
escolhas das mulheres, que possibilitam um controle
sobre nossos corpos e escolhas.
A partir destes diálogos que então, escreve-se a história das
mulheres de Dom Aquino, numa teia que envolve seus saberes, saberes
aqui colocado de forma generalizada, pois são delas o “poder” de soltar as
amarras estabelecidas num tempo de antigamente, e que através das
mudanças sociais ocorridas ao longo do tempo, elas puderam enfim se
estabelecer e ascender social, profissional e pessoalmente.
Os fragmentos narrados nas concepções históricas sob a pele e o
olhar daquelas que foram sujeitos históricos cabem nas palavras de Bloch22
que a história para ser escrita deve ser estritamente nuançadas.
SILVA, Valéria Fernandes da. História Feminista, uma história do possível. 2008. p.16
BLOCH, Marc Leopold Benjamin. Apologia da História ou o ofício de historiador. Trad. André
Telles. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.p 07
21
22
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353
Referências bibliográficas
BLOCH, Marc Leopold Benjamin. Apologia da História ou o ofício de historiador. Trad. André
Telles. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.
DEL PRIORE, Mary. Histórias Íntimas: sexualidade e erotismo na história do Brasil. São
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MATOS, Maria Izilda S. de. Outras Histórias: as mulheres e estudos de gêneros – percursos e
possibilidades. In SAMARA, Eni de Mesquita, SOIHET, Rachel e MATOS, Maria Izilda S.
Genero em debate trajetória e perspectivas na historiografia contemporânea. São Paulo: educ,
1997.p 99-100.
BARRETTO, Cristiane Manique. História e e Relações de Gênero. In MORGA, Antônio Emílio
(org). Gênero, e Sociabilidade Afetiva. Itajaí: Casa Aberta, 2009.
NAVARRO-SWAIN, Tânia. 1993/94 De deusa a bruxa: uma história de silêncio. Revista
Humanidades, UnB/EdunB, vol.9, n.1/.31.
NUÑEZ, Martín Paradelo. Mulher, trabalho e anarquismo. In RAGO, Luzia Margareth.
Compostela: CNT, 2012.Gênero e História. PERROT, Michelle. As Mulheres e os Silêncios da
História. Bauru: EDUSC, 2007
PERROT, Michelle. Minha História das Mulheres. Trad. Angêla M.S. Corrêa. São Paulo:
Contexto,2007.
RAGO, Luzia Margareth. Do Cabaré ao Lar: a Utopia da Cidade Disciplinas – Brasil 1890-1930. 2º
ed. Coleção Estudos Brasileiros v.90. Rio de Janeiro: Paz e Terra: 1985
SILVA, Valéria Fernandes da. História Feminista, uma história do possível. 2008.
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354
Luís Xavier de Jesus, de escravo a retornado
O “lugar” social dos africanos na Bahia do século XIX
Elaine Santos Falheiros1
1
Resumo: O presente trabalho tenta retratar parte da
história de vida do africano Luís Xavier de Jesus que
viveu e trabalhou na Bahia na primeira metade do
século XIX até ter sido preso e deportado para a Costa
da África, por supostamente ter se envolvido no
levante escravo de 1835.2 Tentou regressar à Bahia a
fim de liquidar seus bens e prometia voltar para a
costa africana assim que o fizesse, mas por diversos
motivos, seu regresso à província não foi autorizado.
Palavras-chave: Cidadania; Africanos; Deportação.
Abstract: This work tries to portray part of the life
history of the African Luís Xavier de Jesus that lived
and worked in Bahia in the first half of 19th century
until he had been arrested and deported to Africa
Coast, for supposing have been involved in the
slavery insurrection of 1835. He tries to return to
Bahia in order to liquidate his escheats and promised
to go back to African coast as soon as he had done it,
but because of various reasons, his regress to the state
was not authorized.
Keywords: Citizenship; Africans; Deportation.
L
uís Xavier de Jesus foi identificado na Bahia, em 1835, como sendo de
nação jeje. Segundo Luis Nicolau Parés, os povos desta nação “tem
sido usualmente identificados, ao menos a partir do século XIX [...],
como daomeanos, isto é, grupos provenientes do antigo reino do Daomé.
Segundo o autor, haveria na historiografia contemporânea, especulações
Mestranda em História Social pelo PPGH-UFBA. Bolsista do Conselho Nacional de
Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPQ). Contato: [email protected].
2 Sobre o levante escravo na Bahia, suas consequências e repercussões, ver REIS, João José,
Rebelião escrava no Brasil, São Paulo: Cia das Letras, 2003, pp. 485-491. Outros autores também
trazem algumas informações sobre a personagem deste projeto: OLIVEIRA, Maria Inês Côrtes
de. O liberto: seu mundo e os outros. Salvador: Corrupio, 1988, p. 39; VERGER, Pierre. Os libertos:
sete caminhos na liberdade de escravos da Bahia no século XIX. Salvador: Corrupio, 1992, pp. 55-65
e BRITO, Luciana da Cruz, Sob o rigor da lei: africanos e africanas na legislação baiana (1830-1841),
dissertação de mestrado, Unicamp, 2009, pp. 127-133.
1
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355
acerca da formação deste reino, relacionadas às constantes ondas
migratória “realizadas pelos grupos proto-iorubás que, chegados do leste,
se estabeleceram no Golfo do Benim a partir do século XVII”. Na primeira
metade do século XVII, um grupo dos agassuvi, saindo do reino de Allada
– que havia sido conquistada por eles no século XVI -, foram em direção ao
norte da costa ocidental da África, subjugando as populações locais, “como
os guedevis e os fons”, assim fundando o reino do Daomé, e
“estabelecendo Abomey (Agbomé) como sua capital” e ficaram conhecidos
“pela denominação étnica „fon‟”.
Na primeira metade do século XVIII, os “fons ou daomeanos”
conquistaram o reino de Allada, e a família real deste fugiu para a parte
leste, vindo a fundar “o reino de Adjaché ou Adjasé, conhecido entre os
europeus como Porto Novo”. Ainda segundo Parés, inicialmente Allada
devia tributos ao reino do Benim, entretanto o poderio na região era
exercido pelo reino de Oyo. No final do século XVII, Oyo invadiu Allada
“em consequência do massacre dos mensageiros do rei de Oyo enviados
para Allada”. No século XVIII essas invasões continuaram, e por isso o
reino do Daomé manteve-se subjugado pelo de Oyo por aproximadamente
um século, quando no início do século XIX, “o rei Glele conseguiu libertar o
seu povo desse domínio”. 3
Nesse sentido, pode-se inferir que Luís Xavier tenha sido
capturado nesse contexto de submissão do reino de Daomé ao de Oyo,
tendo ele sido capturado no final do século XVIII, e sua chegada à Bahia
ocorrida entre o final deste e o início do século XIX. Em 1810, o africano
comprou a sua liberdade por 200 mil réis, tendo demorado mais ou menos
10 anos para levantar a quantia, visto ser este o tempo que um escravo de
ganho, caso ele fosse um, levava para conseguir comprar sua carta de
liberdade na Bahia daquela época. 4
Acredita-se, entretanto, que era muito difícil para um escravo ainda
jovem, imaturo no trato do comércio na Praça da Bahia, dominado por
ricos e importantes negociantes, muitos deles ligados ao tráfico de escravos
da África, conseguir juntar a quantia necessária para a compra de uma
PARÉS, Luís Nicolau. A formação do Candomblé: história e ritual da nação jeje na Bahia. São
Paulo: Editora da Unicamp, 2007, pp. 30-42.
4 O tempo para adquirir a alforria era estimado em 10 anos, segundo o viajante Henry Koster,
citado por Manuela Carneiro da Cunha: CUNHA, Manuela Carneiro da. Negros estrangeiros.
Os escravos libertos e sua volta à África. Brasiliense, 1985, p. 34. Inventário de Luís Xavier de
Jesus: APEBA, Judiciária, Inventários, 09/3814/10.
3
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356
carta de liberdade. É possível que ele tenha obtido contribuição para a
aquisição da mesma, ou que tenha, de acordo com certos padrões vigentes
à época, se beneficiado de uma relação paternalista com seu ex-senhor, o
que pode ter favorecido na forma como trabalhou e conquistou a alforria.
Durante o tempo da escravidão, as relações paternalistas entre
senhores e escravos eram uma chave para mecanismos para a conquista da
carta de alforria e quiçá de ascensão social para alguns libertos. Segundo
Luís Xavier ele havia sido escravo de Francisco Xavier de Jesus, de quem
afirmou ter adotado o nome de família. Apesar de não ter conseguido
reunir documentos capazes de atestar quem de fato havia sido o exproprietário do africano, foi possível localizar alguns que vale a pena expor
na tentativa de compreender um pouco mais do universo desse africano.
Em novembro de 1813, um Francisco Xavier de Jesus, proprietário
de um estanque de tabaco, estava “doente de cama” e à beira da morte
quando resolveu ditar seu testamento a Jorge Marques. Francisco disse ser
católico romano, membro da “Irmandade de Nossa Senhora de Guadalupe
e Santíssimo Coração de Jesus colocado na capela de Guadalupe”, sendo
nela remido, e das irmandades do Senhor da Redenção, na capela do Corpo
Santo, na freguesia da Conceição da Praia, e de São Benedito, no convento
de São Francisco e a de Guadalupe, todas irmandades tradicionais dos
“homens de cor”, sendo esta última, de homens pardos. 5
Morador na Rua da Poeira, freguesia de Santana do Sacramento,
Francisco Xavier era natural da vila de Camamu, localizada ao sul da
província da Bahia, e filho legítimo de Micaela Rodrigues, uma crioula
forra. Membro de irmandade de homens de cor e filho de uma mulher que
“que nunca havia sido casada”, Francisco Xavier havia sido escravo
(“pardo forro”), e em 1798, quando era “oficial de sapateiro”, quando tinha
29 anos, casou-se com a filha de uma mulher parda (Ana Arcângela),
Maria, também parda e forra, que tinha na época 19 anos. 6
No que se refere a suas posses, Francisco Xavier declarou possuir
poucos bens, apenas alguns escravos – os quais ele não listou - e objetos de
ouro e prata, além de um “estanque de tabaco na cidade de baixo, com
pedra pilar, e duas mãos de ferro, e folhas usadas e tabaco que se achar no
mesmo estanque”; isso pode sugerir algum envolvimento dele, ou de sua
OLIVEIRA, O liberto, pp. 79-86. REIS, João José. A morte é uma festa: ritos fúnebres e revolta
popular no Brasil do século XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 1991, p. 54.
6 Testamento de Francisco Xavier de Jesus, 29/09/1813: APEBA, Judiciária, Livro de Registro
de Testamentos nº 4 (Capital), fl. 46. ACMS, Casamentos, Conceição da Praia, 1776-1806.
Agradeço a Lisa Castillo pela indicação deste registro de casamento.
5
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357
mercadoria, no tráfico de escravos, uma vez que o tabaco, como é sabido,
era um produto extremamente valorizado na Costa ocidental da África,
sendo a principal moeda de troca por escravos daquela parte do continente
africano. 7
Francisco Xavier faleceu pouco tempo depois e seu testamento foi
aberto em 22 de janeiro de 1814, com o aceite de sua mulher, Maria Duo,
para ser sua testamenteira. Se esse Francisco não era o senhor de Luís
Xavier de Jesus, pode-se pressupor outro homônimo, sobre o qual
encontrei apenas um registro de batismo de março de 1814. Neste,
Francisca, jeje, adulta, escrava de Francisco Xavier de Jesus, “preto e
solteiro”, foi batizada por Raimundo Maciel de Souza, também preto e
solteiro. É possível que o vigário da igreja de Nossa Senhora da Conceição
da Praia, Antônio Carlos de Alvarenga, tenha, por um deslize, anotado
erroneamente o nome do proprietário de Francisca (talvez numa confusão
com o nome da escrava). Isso porque na mesma folha, no próximo registro
de batismo posterior ao de Francisca, Luís Xavier de Jesus apareceu como
senhor de Maria, também jeje e adulta, a qual foi batizada por Simião
Pinheiro, homem pardo e solteiro. 8
Em março de 1814, Luís Xavier de Jesus batizou a crioulinha Joana,
com apenas 1 mês de nascida, filha do casal de libertos jeje, José Marques
de Oliveira e Joaquina Maria da Conceição. José Marques de Oliveira e
Joaquina Maria da Conceição eram africanos libertos que, assim como Luís
Xavier de Jesus conseguiram adquirir bens em Salvador, e por isso também
se destacam no universo social dos libertos africanos da cidade na primeira
metade do século XIX. Em 1827, por exemplo, José Marques e Joaquina
Maria compraram por 60 mil réis um terreno com “uma casa de adobes”,
localizado no Rio Vermelho. 9
Em 1828, o casal compadre de Luís Xavier de Jesus vendeu a Maria
Joaquina do Sacramento uma casa pequena na Rua de Santo Antônio da
Mouraria, foreira ao Mosteiro de São Bento por 300 mil réis. Em 1830,
compraram de Felisberto Caldeira e sua mulher, Augusta Caldeira, uma
casa na Rua de baixo de São Bento por 2 contos de réis e em 1835, José
PARÉS, A formação do candomblé..., pp. 46 e 206. VERGER, Pierre. Fluxo e refluxo do tráfico de
escravos entre o Golfo de Benin e a Bahia de Todos os Santos dos séculos XVII ao XIX. 4ª ed. rev.
Salvador: Corrupio, 1987, pp. 44-45.
8 ACMS, Batismos, Paróquia da Nossa Senhora da Conceição da Praia, 1809-1815, fl. 364 v.
9 Ibidem. APEBA, Judiciária, LNT 220, fl. 181 v.
7
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358
Marques e Joaquina venderam a Joana Maria da Conceição uma casa sita
na “Rua direita do Rosário de João Pereira” por 800 mil réis. 10
Assim como seus compadres e parentes de nação, Luís Xavier de
Jesus também adquiriu bens e ascendeu socialmente durante a primeira
metade do século XIX na Bahia. Em 1810, o liberto já havia conquistado sua
liberdade, pela qual pagou 200 mil réis, como já disse. Capítulo à parte, um
ano depois, Luís Xavier disse ter recebido da Coroa de Portugal - a patente
de “capitão-de-entradas e assaltos”, pessoa responsável por capturar
escravos fugidos e aquilombados. A lógica de ocupação deste tipo de cargo
por libertos decerto levava em conta o conhecimento das estratégias de
fuga empreendidas pelos cativos, bem como dos lugares onde se acoitavam
os negros fugidos. 11
Figura 1: Capitão-do-mato. Gravura de Johann Moritz Rugendas, publicada em 1835. Fonte:
FBN, Iconografia ARM. 23, 3, 12. 12
APEBA, Judiciária, LNT 223, fl. 118 v. APEBA, Judiciária, LNT 231, fl. 45. APEBA, Judiciária,
LNT 257, fl. 35 v.
11APEBA, Legislativa, Abaixo-Assinados, 1836; NISHIDA, Mieko. “As alforrias e o Papel da
Etnia na Escravidão Urbana: Salvador, Brasil, 1808-1888”. In: Revista de Estudos Econômicos. São
Paulo. V.23, nº. 2, pp. 227-265, Maio- Agosto - 1993. MOTT, Luiz. “Santo Antônio, o divino
capitão-do-mato”. In: GOMES, Flávio dos Santos; REIS, João José (orgs.). In: Liberdade por um
fio: história dos quilombos no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1996, pp. 110-138. REIS,
João José; GOMES, Flávio dos Santos. “Uma história da liberdade”. In: Liberdade por um fio:
história dos quilombos no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1996, pp. 15-17.
12 Disponível em http://consorcio.bn.br/slave_trade/iconografia/icon92944d2i11.jpg.
10
REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014.
359
É possível que a partir da década de 1810, Luís Xavier já estivesse
de posse de alguns bens, principalmente escravos. Haveria um “padrão”
de aquisição de bens por parte dos africanos libertos que viviam em
Salvador, a começar com a compra de escravos, e o posterior investimento
dos lucros auferidos com a exploração da mão de obra desses cativos em
bens imóveis. 13 Destaque-se, ainda, nesse sentido, a importância da
freguesia da Conceição da Praia, localizada nas proximidades do porto de
Salvador. Naquela época, Luís Xavier era morador na paróquia o que
certamente o ajudou a vivenciar o dia-a-dia do comércio de negros na
região, pois era lá que se localizava o mercado de escravos, além
certamente ter facilitado um relativo fluxo de informações e trocas
comerciais com os portos da África, o que justificaria já naquela época a
aquisição de escravos. Segundo Anna Amélia Nascimento, “a presença
obrigatória dos negros [na Conceição da Praia] foi objeto de observação de
vários viajantes estrangeiros”:
Sabemos que os africanos, escravos ou libertos,
mantinham um contato permanente com a África
através dos navios que constantemente atracavam na
Bahia. É evidente que os ganhadores que atuavam na
região portuária da Cidade Baixa em geral eram os
que mais possibilidades tinham de fazer os contatos e
transmitir as notícias aos demais. 14
Na análise da documentação, observou-se primeiramente a
aquisição de imóveis por parte de Luís Xavier de Jesus, o que não impede
que o liberto tenha antes disso a posse de escravos. Em agosto de 1824, o
“Capitão Luís” comprou uma casa térrea na “Rua direita de Nossa Senhora
da Saúde, com quintal cercado e o fundo murado”, a ele vendida pelo
Capitão Francisco Durões Sampaio pela quantia de 400 mil réis, valor
equivalente a, pelo menos, dois escravos adultos na época, quando o preço
REIS, João José. Domingos Sodré, um sacerdote africano: escravidão, liberdade e candomblé na Bahia
do século XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. CASTILLO, Lisa Earl; PARÉS, Luis
Nicolau. “Marcelina da Silva e seu mundo: Novos dados para uma historiografia do
Candomblé Ketu”. Revista Afro-Ásia, nº 36 (2007), pp. 111-50.
14 OLIVEIRA, O liberto, p. 19 e 32. Lisa Castillo e Nicolau Parés, “Marcelina da Silva e seu
mundo”. NASCIMENTO, Anna Amélia Vieira. Dez freguesias da Cidade do Salvador; Aspectos
Sociais e Urbanos do Século XIX. Salvador, FCEBa. /EGBa., 1986, p. 76.
13
Dossiê CÂMARA MUNICIPAL
360
médio de um cativo adulto, gozando de bom estado de saúde, girava em
torno de 150 mil réis. 15
Quase três meses depois, em novembro de 1824, Luís Xavier de
Jesus comprou de Joaquim Santana de Almeida e seu irmão, Alexandre de
Almeida, outra propriedade, talvez uma casa mais modesta, situada na
“Rua direita do Alvo para a Igreja da Saúde” por 150 mil réis. Menos de
um ano depois, em setembro de 1825, o liberto comprou de Manoel Luís do
Sacramento, “uma morada de casa térrea”, feita de taipa e madeira, sita à
Rua da Poeira, pela quantia de 200 mil réis. Em um ano, o liberto Jesus
adquiriu três imóveis, algo incomum para a época, quando viviam com
antigos senhores ou em quartos e casas alugadas com outros libertos. O
próprio Luís Xavier tinha inquilinos pretos egressos da escravidão. 16
Figura 2: “Sinal” de Luís Xavier de Jesus, 1824.
Mas a ascensão social de Luís Xavier não se dava apenas com a
compra de propriedades. Por exemplo, em março de 1826, Francisca do
Sacramento tomou emprestada à ele a quantia de 64 mil réis, momento em
que registrou uma escritura de débito e obrigação do pagamento. Em julho
de 1827, Francisca tomou mais dinheiro emprestado a Luís Xavier e deveria
pagar no total, 120 mil réis num prazo de dois anos. Como garantia para o
pagamento da dívida, Francisca hipotecou uma casa térrea na Rua Direita
da Saúde. Como não sabia escrever, o documento foi assinado a seu rogo
por Militão Joaquim Urtiga, o que pode ser um indício de ter sido ela
africana. Se assim o fosse, Luís Xavier de Jesus, além de investir em
imóveis, deveria realizar empréstimos a juros para membros da
comunidade africana de Salvador. Menos de um mês depois, em agosto de
15APEBA,
Judiciária, LNT 213, fl. 81. João Reis, Rebelião escrava, p. 486.
Judiciária, LNT 219, folha 119. APEBA, Judiciária, LNT 215, folha 32. APEBA,
Judiciária, Inventários, 09/3814/10. FREYRE, Gilberto. Casa Grande e Senzala: formação da família
brasileira sob o regime da economia patriarcal. São Paulo: Global, 2006. CHALHOUB, Sidney.
Machado de Assis: Historiador. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.
16APEBA,
REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014.
361
1827, o liberto comprou de Pedro Lopes dos Santos outra “morada de casa
térrea” na Rua do Jenipapeiro, por 300 mil réis. Agora são quatro casas. 17
Após pelo menos 40 anos de residência na Bahia, Luís Xavier de
Jesus desfrutava dos bens e rendimentos que acumulara, quando explodiu
a Revolta dos Malês, em janeiro de 1835, em Salvador. As ocorrências
daquele mês foram decisivas e diretamente relacionadas com o que o
liberto viria a enfrentar futuramente. Luís Xavier foi acusado, segundo ele,
injustamente, de ter participado da revolta escrava.
De fato, Luís Xavier não foi acusado formalmente. Seu nome não
contava dos autos da devassa, e nenhum inquérito policial foi instaurado
para a apuração de seu envolvimento no levante. Apesar de não ter sido
denunciado formalmente, ele acabou sendo deportado para a Costa da
África, sem que as autoridades da Bahia lhe dessem tempo, como pediu,
para encerrar seus negócios na província antes de partir. Ele foi
enquadrado na Lei nº 9 de 13 de maio de 1835.
A lei nº 9 de 13 de maio de 1835 autorizava o governo provincial a
expulsar do Brasil quaisquer africanos forros de qualquer sexo, suspeitos,
mas sem provas cabais de promover a revolta de escravos. Além disso,
regulamentava o projeto de deportação dos africanos libertos residentes na
Bahia, e estabelecia que eles, “suspeitos ou não, deveriam deixar o país,
assim que o governo negociasse um lugar na África para recebê-los”. Além
disso, estabelecia o pagamento de um “imposto anual de 10 mil réis”, com
algumas exceções. Também foram proibidos aos africanos a aquisição de
novos bens, apesar de poderem continuar na posse daqueles já existentes.
Além disso, foram proibidos os aluguéis de “quartos e lojas a escravos”. 18
Ainda em 1835, o nome de Luís Xavier de Jesus liberto apareceu
numa lista de africanos presos que aguardavam a deportação para a Costa
da África, vindos da Quinta dos Lázaros, do Arsenal de Guerra e do
Arsenal da Marinha– locais que não eram propriamente prisões, o que
sugere que eram africanos livres, resgatados do tráfico ilegal, os quais
também estavam prestes a ser deportados. 19
17APEBA,
Judiciária, LNT 220, fls. 118-118-v. APEBA, Judiciária, LNT 219, fls. 193-194.
REIS, Rebelião escrava, p. 498-503. Brito, “Sob o rigor da lei”, pp. 36-48.
19 Ibidem, p. 597. APEBA, Chefes de polícia, maço 2949 (1835- 1841). Inventário de Luís Xavier
de Jesus: APEBA, Judiciária, Inventários, 09/3814/10.
18
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362
Figura 3: Nome de Luís Xavier de Jesus numa lista de escravos que aguardavam deportação
para a Costa da África, em 1835. Fonte: APEBA, Colonial, Chefes de polícia, maço 2949, 1835.
A deportação de Luís Xavier de Jesus, ocorreu em 8 de novembro
de 1835, quando o governo brasileiro fretou o patacho Maria Damiana, de
propriedade de Manoel Roberto Pereira, por 8 contos de réis, para que de
150 a 200 africanos fossem desembarcados no porto de Ajudá (ou Uidá),
porto negreiro do Golfo do Benim. Para comprovar o desembarque dos
africanos, Manoel Pereira comprometeu-se a levar de volta para a Bahia
algum documento assinado por Francisco Félix de Souza (o Xaxá de Uidá)
e do comandante da fortaleza de Uidá ou o de qualquer outra autoridade
competente de qualquer outro porto, a fim de comprovar o desembarque
de todos os africanos deportados naquela ocasião. 20
Francisco Félix de Souza foi um dos mais ricos e opulentos
comerciantes de escravos de toda a Costa da África durante a primeira
APEBA, Colonial, Governo da província, Correspondências expedidas para o governo
imperial, maço 682 (1835-1836). Ver também Reis, Rebelião escrava, pp. 479-485. Segundo Lisa
Castillo, o Maria Damiana deixou Salvador em 12 de Novembro de 1835, levando 148
passageiros a bordo, Castillo, “The exodus”, p 11.
20
REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014.
363
metade do século XIX, até 1849, ano em que morreu. Existe uma tradição
oral segundo a qual os africanos deportados depois da rebelião escrava em
Salvador, quando chegaram em Uidá, receberam do Xaxá “pedaços de
terra numa área da cidade que é ainda associada aos retornados”. Lá
estabelecidos, passaram a desenvolver atividades relacionadas com as
oportunidades de negócio existentes na região. 21
A partir de 1830, Uidá transformou-se no principal porto da costa
do reino do Daomé, tendo se tornado o centro do tráfico ilegal na região,
sendo este período “marcado pelo crescimento de uma comunidade
brasileira residente em Uidá”, com origens ligadas ao traficante brasileiro
Francisco Félix de Souza. Robin Law fala de um bairro “brasileiro” em
Uidá, reforçado pelo estabelecimento de libertos de origem africana que
retornaram do Brasil e fixaram-se em Uidá a partir de 1835. Esta
comunidade “brasileira” estava assim “definida pelo uso da língua
portuguesa e pela fidelidade a Igreja Católica Romana”. De Uidá, Luís
Xavier enviava escravos para correspondentes estabelecidos na Bahia, o
que demonstra o grau de complexidade do tráfico de escravos, como já
salientado por Jaime Rodrigues, que compreendia uma gama de sujeitos e
interesses, os quais obstavam o término de fato da atividade, já considerada
ilegal desde a década de 1830. 22
Além do Xaxá, Domingos José Martins é exemplo de importante
comerciante brasileiro de escravos que operou em Ajudá, Cotonou e PortoNovo. Segundo Luiz Henrique Dias Tavares, este negociante conseguiu
manter-se no comércio até 1860, fazendo o “duplo jogo de produtorexportador de azeite de palma em Porto-Novo e fornecedor de escravos
para o Brasil e Cuba, além de ter sido líder em Ajudá e Porto-Novo de exescravos, vindos do Brasil”. 23
Pierre Verger também discorre sobre a vida de Domingos José
Martins e suas ligações comerciais na costa africana, tratos com
importantes negociantes de escravos e suas relações com o rei do Daomé.
Entretanto, quem faz um relato mais completo de Domingos José Martins é
David Ross, em artigo publicado na década de 1960. Segundo este autor,
Castillo, “The exodus”, p 12.
LAW, Robin. “A comunidade brasileira de Uidá e os últimos anos do tráfico atlântico de
escravos, 1850-66”. Afro-Ásia, nº 27 (2002), pp. 41-42.ROSS, David. “The career of Domingo
Martinez in the Bight of Benin, 1832-1864”.The Journal of African History, vol.6, nº1, 1965, p.7990. RODRIGUES, Jaime. De Costa a Costa: escravos, marinheiros e intermediários do tráfico negreiro
de Angola para o Rio de Janeiro (1780-1860). São Paulo: Cia. das Letras, 2005, p. 96 e 114.
23 TAVARES, Luís H. Dias. Comércio proibido de escravos. São Paulo: Ática/CNPq. 1988, p. 62.
21
22
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364
Domingos teve importante participação no desenvolvimento do comércio
de escravos na costa africana, tendo chegado à Baía do Benin em 1830,
como tripulante do navio consignado a Francisco Félix de Souza, o famoso
Xaxá. Para Ross, Domingos José Martins tornou-se o mais importante
comerciante da costa Africana, após o declínio da fortuna da família de
Francisco Félix de Souza, com a morte deste, como dito, em 1849.
Domingos fez fortuna e fama nos portos da região de Lagos, tendo sido
“líder de uma sociedade de ex-escravos brasileiros os quais obtiveram a
liberdade e retornaram à baía para se transformar em negociantes de
escravos”. Em Lagos conseguiu trabalho com um escravo chamado “Dos
Amigos”, a partir do qual estabeleceu contatos com os importadores
brasileiros. Após o falecimento de Francisco Félix de Souza, Domingos José
Martins tornou-se um “mensageiro de todos os assuntos relacionados ao
comércio com os europeus, base econômica do reino daomeano”. 24
É provável que Luís Xavier de Jesus tenha circulado por esses
locais antes de estabelecer-se definitivamente em Uidá. Não obstante o seu
envolvimento com a comunidade de retornados na baía do Benim, e o
envio de escravos da África para o Brasil, o liberto tentou por diversas
ocasiões obter licença do governo brasileiro para retornar à Bahia para
tratar de seus negócios (decerto liquidá-los) e voltar para a costa africana.
Em 1836, Luís Xavier escreveu uma petição à Assembleia Legislativa da
Província da Bahia, quando solicitou permissão para regressar ao Brasil e
condenou a forma como fora “violentamente impelido a embarcar para os
Portos da África, como aventureiro suspeito e como perigoso”. 25
O liberto afirmou que de africano só possuía o nascimento, pois a
“educação, as relações, os bens, a honra, tudo enfim eram baianos”. Ele
tentou convencer os deputados provinciais de que, apesar de nascido na
África, já estava bem adaptado aos valores e costumes apreciados pela elite
baiana. Luís disse ter “sentido vivamente que um precipitado juízo levou o
magistrado [que ordenara sua deportação] a dar ouvidos” a algum
“ambicioso” de olho nos seus bens. Por isso, depois da sentença foram
lançados sobre ele a “dor, o desterro, a miséria e o opróbrio”, e por fim,
questionou: “Quais foram os motivos de tanta suspeita?”.
VERGER, Fluxo e refluxo, pp. 496-503. LAW, Robin; MANN, Kristin. “West Africa in the
Atlantic Community: The case of the Slave Coast”. The William and Mary Quarterly, 3rd Ser.,
vol. 56, nº 2, African and American Atlantic Worlds. (Apr., 1999), p. 324. Ross, “The Career of
Domingo Martinez in the Bight of Benin”, p. 79.
25ANRJ, GIFI, Cx. 5 B 207. Petição de Luís Xavier de Jesus: APEBA, Legislativa, Abaixoassinados, maço 979 (1835-1836).
24
REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014.
365
Indignado, Luís Xavier expôs que o executor de sua sentença nada
lhe deixou de seus muitos bens e tentou em vão convencer os deputados
provinciais de que, sendo senhor de uma considerável fortuna, preferia, em
vez da África, viver em um país “civilizado”, que “amava a indústria” e os
industriosos, como o Brasil. Na época, Luís Xavier disse ser detentor de
uma fortuna avaliada em mais de 60 contos de réis, certamente um
exagero, artifício para convencer os parlamentares, uma justificativa para
embasar o argumento de que qualquer país civilizado se apressaria em
acolhê-lo. Por fim, o liberto solicitou que fosse “restituído à sua casa, seus
amores e relações, aos seus bens e à sua indústria”, e disse ser capaz de
apresentar “cidadãos abastados” para atestar sua probidade. 26
Esse pedido de Luís Xavier feito à Assembleia provincial da Bahia
foi enviado à Comissão de Justiça Civil e Criminal e a da Polícia, em
fevereiro de 1836, e poucos dias depois encaminhado ao presidente da
província. Não foi encontrado nenhum parecer a esse pedido, apenas um
ofício de Antônio Simões da Silva, juiz de direito e chefe de polícia na
época da Revolta dos Malês, datado de novembro de 1836, portanto 9
meses após aquela petição, dirigida ao presidente da província e demais
membros da Assembleia provincial.
Segundo o parecer assinado por Simões, pouco antes da
insurreição de janeiro de 1835, ele foi “comunicado por pessoas sérias e de
conceito” que afirmaram que o liberto era “suspeito de saber” e de ser
conivente com a revolta dos escravos, além de permitir em sua casa
reuniões de africanos. O chefe de polícia apresentou também “outras
razões” para a deportação do africano, como a “má conduta deste em
algumas pequenas revoluções aparecidas anteriormente” em Salvador,
referindo-se, provavelmente, às revoltas escravas ocorridas na província
desde pelo menos 1807, mas nada provou, inclusive nenhum documento,
ao que parece, foi anexado ao parecer. Segundo Simões, essas razões foram
suficientes para enquadrar Luís Xavier no artigo 1º da lei nº 9, e serviram
para demonstrar o ódio que, segundo ele, o liberto nutria “a certas classes
de pessoas deste país”. Mas o que parecia era o contrário, que certas classes
de pessoas do Brasil é que pareciam odiar o africano. Enfim, o pedido de
retorno de Luís Xavier foi negado, e conforme será visto, esta decisão seria
26
REIS, Rebelião escrava, p. 486.
Dossiê CÂMARA MUNICIPAL
366
constantemente reiterada nas respostas aos sucessivos pedidos que foram
feitos a partir de 1835 pelo liberto exilado. 27
Antônio Simões da Silva empreendia todos os esforços para ver
deportados da Bahia tantos africanos quanto fosse possível após a rebelião
de 1835. Em Junho de 1835, ordenou ao administrador da “Mesa das
Diversas Rendas” para lhe avisar assim que alguma embarcação começasse
a carregar gêneros para a Costa da África, “a fim de serem transportados
para ali os africanos suspeitos”. Em Novembro de 1836, Antônio Simões
informou ao presidente da província a deportação de 11 africanos libertos,
a bordo de dois navios, Aníbal e Triunfo, “em conformidade com a lei
provincial”, que existia, mas que só era invocada em determinados
momentos. Há registros de embarcações com esses nomes que faziam o
tráfico clandestino de escravos. 28
Essa é uma questão importante. Como foram muitos os africanos
enquadrados na lei nº 9, o governo da província não dispunha de
embarcações próprias que pudessem ser destinadas ao transporte deles de
volta à África. Por isso, essas viagens de retorno se transformaram num
rentável negócio, realizado por negociantes ligados ao tráfico de escravos
clandestino, proibido desde 1831. João da Costa Júnior, um rico traficante
de escravos, em 1838, levou 5 africanos a bordo do seu navio, a embarcação
Heroína, para a costa africana. 29
A deportação de Luís Xavier de Jesus fazia parte de um projeto de
exclusão da população africana da cidade de Salvador, colocado em prática
pelas autoridades da província, após a revolta escrava de janeiro de 1835, e
que logicamente não atingiu somente a ele. Na documentação do ano de
1835, disponível no Arquivo Público do Estado da Bahia, pipocam relatos
de autoridades baianas que informavam sobre a prisão de africanos que
seriam deportados depois de janeiro daquele ano. Um exemplo foi o ofício
Ibidem, pp. 68-121; Brito, “Sob o rigor da lei...”, pp. 131-132. VIANA, Padre A. da Rocha.
Compilação em índice alfabético de todas as leis provinciais da Bahia, regulamentos e atos do governo
para execução das mesmas. Bahia: Typ. e livraria de E. Pedrosa, 1858, p. 136. Disponível em: <
http://books.google.com.br/books?id=ioswAAAAIAAJ&printsec=frontcover&hl=ptBR&source=gbs_ge_summary_r&cad=0#v=onepage&q&f=false >. Acessado em: 18/04/2013.
28 No sítio www.slavevoyages.org.consta 17 viagens de embarcações com o nome Aníbal e 15
com o Triunfo.
29 REIS, Rebelião escrava, pp. 481-482. BETHELL, Leslie. A abolição do comércio brasileiro de
escravos: A Grã-Bretanha, o Brasil e a questão do comércio de escravos, 1807-1869. Brasília: Senado
Federal, Conselho Editorial, 2002, pp. 85-111. “Presidentes e vice-presidentes que
administraram a província da Bahia durante o período imperial”. Disponível em
http://www.histedbr.fae.unicamp.br/navegando/fontes_escritas/2_Pombalino/presidentes
_provincia_bahia_periodo_imperial.htm. Acessado em 19/11/2012.
27
REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014.
367
enviado por Antônio Simões da Silva para o vice-presidente da província,
Visconde do Rio Vermelho:
Informando a V. Exa. sobre o requerimento incluso,
cumpre-me dizer, que os suplicantes foram presos em
consequência da busca dada pelo juiz municipal por
suspeitas de serem coniventes na insurreição da noite
do dia 24 para 25 de Janeiro do corrente ano, tendo se
formado um processo pelo juízo de paz do respectivo
distrito; e porque em conformidade das ordens a tal
respeito devem ser deportados para fora do Império,
por isso ainda se conservam na prisão da Cadeia do
Aljube. À vista, pois do que tenho expendido V. Exa.
deliberará como julgar conveniente. Deus guarde a
V.Exa. Bahia, 2 de Setembro de 1835.30
Como bem salientou Lisa Castillo, a proibição de permanecer no
Brasil não se aplicava somente aos africanos tidos como suspeitos de
participação na revolta escrava. Tal negação era estendida aos libertos que
viajavam voluntariamente para a Costa da África depois de 1835. Por
exemplo, em março de 1837, o africano, Filipe Francisco Serra enviou à
Assembleia Legislativa da província um pedido de entrada na Bahia.
Mesmo demonstrando que já tinha uma vida pacificamente constituída,
com família e trabalho na província, lhe obstaram o retorno. Para as
autoridades da província, não deveria haver exceção. Filipe era de nação
jeje, maior de 50 anos e havia ido para a Costa da África em Fevereiro de
1835, para se “encarregar da feitoria” do negociante Joaquim José Duarte.
Em sua petição, alegou que era barbeiro e que morava na Bahia havia 40
anos, mas estava “ausente de sua casa e filhos, sem poder dar cumprimento
às suas obrigações como chefe de família”, em função da publicação da lei
nº 9, de 13 de Maio de 1835. Esta, dentre outras coisas, preconizava que os
africanos forros que estivessem fora do país e que tentassem retornar à
Bahia, “mesmo não tendo sido expulsos, [...] seriam levados a julgamento
por crime de insurreição e, se absolvidos, [deveriam ser] expulsos do
país”.31
Vê-se, portanto, a dificuldade que tinha um africano para regressar
à Bahia. É muito provável que Filipe não tenha conseguido retornar à
APEBA, Colonial, Chefes de polícia, maço 2949 (1835- 1841).
REIS, Rebelião escrava, p. 498. ALBUQUERQUE, Wlamyra R. de. O jogo da dissimulação:
abolição e cidadania negra no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2009, pp. 48-9.
30
31
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368
Bahia, a contar com a demora e o jogo de empurra que as autoridades
faziam quando precisavam decidir sobre os pedidos de retorno elaborados
pelos africanos. No caso de Filipe, mais de um ano depois, sua solicitação
foi descartada, em abril de 1838, “por pertencer às Autoridades Executoras
das Leis”. Ou seja, quem deveria julgar se o africano regressaria ou não
para a província seriam as autoridades policiais, e não os legisladores. 32
Esses pedidos de retorno podem ser considerados como fontes
preciosas para o entendimento de “diferentes meios sociais e grupos
etários”, além de serem importantes para a compreensão das atitudes
diante das autoridades locais e imperiais dos sujeitos envolvidos. Através
da análise dessas fontes, pode-se perceber também as normas sociais e
culturais vigentes na época. No caso desses africanos – tanto Luís quanto
Filipe – percebe-se que das experiências de vida de cada um em particular,
foram selecionados os fatos considerados por eles como mais importantes e
elucidativos, razões que embasaram seus discursos e que fizeram com que
ganhassem coerência. Sendo iletrados – no sentido de não alfabetizados -,
obviamente ambos tiveram de lançar mão de procuradores que podem ter
sido atraídos pela história em si desses sujeitos e não apenas pelo problema
legal que enfrentavam. Os africanos, eles próprios, eram os primeiros
autores de suas histórias, e de certa forma, eram dotados nesse sentido.
Escrevendo sobre as cartas de remissão na França do século XVI, Natalie
Davis conclui: “[...] Contudo, mesmo sendo produto de uma colaboração, a
carta de remissão ainda pode ser analisada nos termos da vida e dos
valores da pessoa que quer salvar a própria vida por meio de uma
história”. 33
Voltando ao caso de Luís Xavier de Jesus, em agosto de 1837, ele
enviou mais um pedido de retorno à Assembleia Legislativa da Bahia. No
documento, o liberto retomou o argumento de que fora “violentamente
preso e mandado para a Costa da África”, afirmando ter requerido do
governo provincial a licença para “poder regressar a cidade a fim de
pessoalmente tratar de dispor de seus bens, ajustar suas contas no
Comércio e mudar de domicílio para qualquer outra província do Império
e mesmo para fora do Brasil”, se comprometendo a arcar com todos os
custos de sua viagem. 34
Nascimento, Dez freguesias, p. 196. Reis, Rebelião escrava, pp. 498-503. Petição de Filipe
Francisco Serra. APEBA, Assembleia Legislativa Provincial, Petições (1837).
33 DAVIS, Natalie Zemon. Histórias de perdão e seus narradores na França do século XVI. São
Paulo: Companhia das Letras, 2001, pp. 23-61.
34 Petição de Luís Xavier de Jesus: APEBA, Assembleia Legislativa provincial, Petições (1837).
32
REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014.
369
Segundo Luís, essas autoridades consideraram inadequadamente
quaisquer africanos forros, como “suspeitos de promover de algum modo a
insurreição de escravos.” E, finalmente, concluiu que a Lei de 13 de maio
de 1835 autorizava somente a expulsão do suspeito da província, sendo
que ele fora “levado para fora do Império à força e diretamente para a
Costa da África”, mesmo tendo se oferecido para sair da Bahia às suas
próprias custas, fretando até uma embarcação, se fosse necessário, “dando
fiança do seu procedimento até que brevemente saísse, e de sair com efeito
no prazo que lhe fosse prescrito”. 35
Foi-lhe também negado esse pedido de retorno feito em 1837, pois
mais tarde o liberto solicitaria outros. Não obstante o liberto lançava mão
de solidariedades com autoridades locais, como o chefe de polícia na Bahia,
André Pereira Lima, que em ofício dirigido ao presidente da província, em
7 de julho de 1841, esforçou-se para transmitir uma opinião favorável de
Luís Xavier:
Quando se promulgou a Lei Provincial nº 9,
ocasionada pela insurreição de janeiro de 1835, o
então chefe de polícia Antônio Simões da Silva
mandou deportar a todos os africanos libertos que
estavam presos e contra os quais não se tinha formado
processo. Nesse número creio que iria o suplicante
Luís Xavier de Jesus, a respeito do qual nenhum
termo, assunto ou parte oficial existe quer nesta
Secretaria de polícia, quer no cartório do Escrivão das
Execuções. Daqui se vê que quando mesmo o dito
Luís voltasse a esta cidade independente de concessão
que ora requer, difícil seria impor-lhe pena pela falta
de documento que provasse a deportação. E por isso
acho deferível o requerimento, tanto mais por que de
alguma maneira já foi punido, e certo no resultado, se
por ventura concorrer para insurreições, ele disso se
absterá. É o que se me aferi informar a V. Exa. 36
Conhecendo a história de Luís Xavier, o chefe de polícia tratou de
dizer que o africano já havia sido punido pelo fato de já estar a dois anos
distante de seus bens, negócios e relações sociais que constituiu na Bahia.
Entretanto, seu parecer não contribuiu para que outras autoridades
Ibidem. Grifos originais.
Ofício de André P. Lima ao presidente da província em 7 de Julho de 1841. APEBA, Colonial,
Chefes de Polícia, maço 2949 (1835-1841). Também publicado por Verger, Os libertos, p. 137.
35
36
Dossiê CÂMARA MUNICIPAL
370
provinciais modificassem suas opiniões e decisões. Elas não permitiram o
retorno de Luís Xavier à província. Entretanto, André Lima, uma
autoridade legal, se esforçava para ajudar os africanos que,
injustificadamente, eram deportados para a Costa da África. É o que se
depreende também da história de Anastácio Pereira Galo.
Em 1841, Anastácio estava preso sem motivo aparente e seria
deportado, enquadrado no artigo 1º da lei provincial nº 9. Segundo André
Lima, o africano estava preso havia seis meses por ordem de seu
antecessor, em função de uma “trama urdida por um devedor poderoso,
para se ver livre do miserável credor”. Ao tomar conhecimento do real
motivo da prisão de Anastácio, André Lima imediatamente mandou
relaxar sua prisão, mas acabou surpreendido por uma decisão do juiz de
paz da freguesia da Sé, José Joaquim dos Santos, “amigo íntimo do
interessado na deportação” de Anastácio. De fato, é possível que pedidos
de retorno tenham sido negados e que algumas deportações tenham sido
declaradas em razão de querelas que pudessem envolver africanos e
brasileiros, como no caso de Anastácio. Conforme veremos, uma demanda
como esta também permeou a história de Luís Xavier de Jesus.
De todo modo, André Lima solicitou ao juiz que, em duas horas,
esclarecesse os reais motivos para se opor à liberdade de Anastácio,
fundamentando suas razões no Código de Processo Crime do Império, que
determinava Habeas Corpus para “todo o cidadão que entender que, ele ou
outrem sofreu uma prisão ou constrangimento ilegal, em sua liberdade”. 37
Em resposta, José Joaquim dos Santos acusou o recebimento do
“despropositado ofício” do chefe de polícia às “6 horas da tarde”, sendo
que lhe parecia absurdo o fato de receber um documento àquela hora,
provavelmente final de expediente. Segundo ele, haveria prazo legal para
fundamentar a prisão de Anastácio, e avisou ao chefe de polícia que, se
mandasse soltar o africano ele seria obrigado a levar ao conhecimento das
autoridades competentes que André Lima “inutilizava as medidas que ele
empregava para descobrir os introdutores de moedas-papel falsas que
existiam em circulação”. Por fim, em tom de ameaça, lembrou ao chefe de
polícia que a pena aplicada a quem “tirasse o que estivesse legalmente
preso, da mão e do poder do oficial de justiça”, era de prisão com trabalho
por um período entre dois e oito anos. 38
37APEBA,
Colonial, Chefes de Polícia, maço 2949 (1835-1841).
Código de Processo Criminal de primeira instância. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/LIM/LIM-29-11-1832.htm. Acessado em
16/10/2012.
38
REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014.
371
Não foi possível descobrir qual o desfecho dessa história,
entretanto, ficou a suspeita de que os reais motivos que levaram ao pedido
de deportação de Anastácio seriam os mais escusos e contraditórios
possíveis. Ao que parece, no caso de Anastácio, ele ficaria preso em razão
do cometimento de um suposto crime 39 – introdução de moeda-papel falsa
-, mas fica evidente que a razão da prisão era outra, um credor que não
desejava pagar a dívida que tinha com o africano. No caso de Luís Xavier
ele teria sido deportado por causa de denúncia infundada de participação
na Rebelião Malê, feita por alguém interessado em sua fortuna, segundo
alegou.
Em julho de 1841, André Lima informou ao presidente da
província mais uma deportação:
Em cumprimento do despacho de V. Exa. exarado na
petição que devolvo, tenho a informar que é verdade
ter sido deportado para a Costa da África no iate
Xisto, o africano liberto João, nação Moçambique, e é
costume pagar-se de frete 30$000. Deus guarde a V.
Exa. André Pereira Lima. 40
Se alguns africanos podiam contar com uma relativa simpatia do
chefe de polícia o mesmo não se pode afirmar com relação à conduta de
outras autoridades locais, como o juiz Antônio Simões da Silva, que
também foi chefe de polícia, e que fazia questão de mandar deportar
africanos libertos que residissem na Bahia. Em 1839, após quatro anos da
Revolta Malê, o medo da rebelião ainda atemorizava os dirigentes e era
pretexto utilizado para incriminar africanos libertos, que eram suspeitos de
estar sempre conspirando.
Em outro pedido de retorno, sem data, escrito por um procurador,
José Joaquim de Magalhães, Luís Xavier dizia estar “reduzido ao mais triste
estado de miséria nos últimos dias de sua vida, sem poder lançar mão
daquilo que adquirira com seu trabalho e indústria”. Por isso, rogava que,
“por caridade se concedesse licença para que pudesse regressar ao
Império”, pelo prazo de um ano, quando ficaria sob as “vistas das
Código Criminal do Império do Brasil. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/LIM/LIM-16-12-1830.htm. Acessado em
16/10/2012.
40 Ofício de André P. Lima ao presidente da província em 12 de Julho de 1841. APEBA,
Colonial, Chefes de Polícia, maço 2949 (1835-1841).
39
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372
autoridades policiais”, se assim fosse julgado necessário, até que concluísse
seus negócios e por fim prometia regressar à Costa da África. 41
Em ofício de agosto de 1843, o chefe de polícia, que não foi possível
identificar, encaminhou o pedido ao presidente da província, Joaquim José
Pinheiro de Vasconcelos, e logo o informou que, em 1835, tinham sido
colhidas “informações exatas” sobre a conduta de Luís Xavier pelo então
chefe de polícia, Antônio Simões da Silva, que constatara serem
“frequentes as reuniões de africanos” na casa dele, e por isso fora
deportado em 8 de novembro de 1835. João Reis sugere que não se tratava
de reuniões conspiratórias. Segundo ele, o fato do liberto possuir 17
escravos tornava as “reuniões” entre eles inevitáveis, “e, quando festivas,
deviam enquadrar-se na cultura de ostentação de poder, riqueza e prestígio
demonstrados através da distribuição de comida e divertimento a
dependentes e amigos, algo comum entre africanos afluentes de ambos os
lados do Atlântico”. Por isso, alegando “justos receios de nova
insurreição”, Antônio Simões negou o pedido de licença para retornar, e
em seu parecer alertou para o mau exemplo que Luís Xavier poderia dar
aos outros africanos que residiam na Bahia, em razão de certo “predomínio
que tinha sobre os africanos, o que dentre eles mais abastado [é]”. 42
Fica explícito, portanto, que não era apena a conduta
“conspiratória” de Luís Xavier – que “reunia africanos em sua residência” o que motivava as decisões das autoridades locais sobre os seus pedidos
para regressar à Bahia. A ascensão social experimentada pelo africano
incomodava os servidores do Estado, muitos dos quais não tinham sequer,
metade da quantidade de escravos que Luís tinha. Como exemplo, pode-se
citar o curador geral dos órfãos, Domingos José Cardoso que, em 1849,
tinha apenas 3 escravos. A prosperidade do liberto numa conjuntura
marcada pela quase total exclusão da população negra/ mestiça da posse
de bens do país incomodava. 43
Em 1846, o pedido de Luís Xavier foi feito ao Imperador, que
através do ministro da justiça enviou ofício ao presidente da província da
Bahia, Francisco José de Souza Soares d‟Andrea. Este solicitou informações
ao chefe de polícia – que não identifiquei -. Segundo este, a polícia não
tinha obtido qualquer informação acerca da decisão sobre os pedidos de
retorno de Luís Xavier à Bahia. E aproveitou para reforçar junto ao
41ANRJ,
GIFI, Cx. 5 B 207.
GIFI, Cx. 5 B 207. Reis, Rebelião escrava, p. 488.
43 “Relação dos escravos existentes na freguesia de Santana”: APEBA, Colonial, Escravos, maço
2898 (1830-1889).
42ANRJ,
REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014.
373
presidente da província que o juízo que ele tinha acerca do liberto era o
mesmo em 1846. No outro dia, 6 de novembro, este parecer foi anexado
pelo presidente da província, em resposta ao ministro da justiça, limitandose a “oferecer como própria a informação que a tal respeito [havia exigido]
do chefe de polícia”, a fim de que o ministro, diante dela, deliberasse como
entendesse. 44
Da análise desse documento fica evidente que em setembro de 1842
e fevereiro de 1844 foram expedidos “avisos” que deveriam permitir o
retorno de Luís Xavier à Bahia. Entretanto, ou esses avisos não foram
cumpridos, ou o liberto tomou conhecimento deles tardiamente, e por isso
não tinha ainda conseguido regressar. Por fim, como resposta ao ofício do
ministro da justiça, escreveu o presidente da província, em novembro de
1846:
Restituo a V. Exa. o incluso requerimento, em que
Luis Xavier de Jesus, africano liberto, residente em
Ajudá na Costa da África, pede se declarem em vigor
os Avisos expedidos a esta presidência em 28 de
Setembro de 1842 e 8 de Fevereiro de 1844, pelos
quais lhe foi permitido vir a esta cidade, e nela residir
por espaço de oito meses, sob a vigilância da polícia, a
fim de poder dispor dos bens que aqui possue; e
cumprindo quanto S.M.O.I. [Sua Majestade o
Imperador] exige no aviso de V. Exa. de 20 de
Outubro último, que acompanhou o requerimento do
suplicante, ofereço como própria a informação que a
tal respeito exigi do chefe de polícia, e vai junta, para
que o mesmo Augusto Senhor, à vista dela delibere
como houver por bem[...]. 45
Parece que Luís Xavier passou a adotar outra estratégia. Agora os
pedidos eram dirigidos ao Imperador, pois certamente ele já havia
percebido através de sua própria experiência que as autoridades baianas
não lhe permitiriam o regresso à província. Destaque-se, nesse sentido a
importância da figura do rei como referência para um parecer mais
“imparcial” nessa história, e o papel dela para o reforço da soberania real.
Entretanto, esses pedidos agora dirigidos às autoridades imperiais
“Fala dirigida a Assembleia Legislativa Provincial da Bahia, na abertura da sessão ordinária
do ano de 1846, pelo presidente da província, Francisco José de Souza Soares d‟Andrea”.
Disponível em: http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/109/. Acessado em 21/11/2012.
45 Ofício do presidente da província ao ministro da Justiça (06/11/1846): ANRJ, GIFI, Cx. 5 B
207.
44
Dossiê CÂMARA MUNICIPAL
374
continuariam a ser negados, haja vista que, uma vez recebidos, eram
encaminhados às autoridades baianas, a fim de que fossem repassadas
informações precisas recolhidas pelas autoridades locais acerca do
peticionário. Ao serem submetidos ao crivo das autoridades baianas, esses
pedidos dirigidos ao Imperador, seriam reiteradamente negados. 46
Em julho de 1847, outro procurador nomeado por Luís Xavier,
Manoel Francisco de Castro, redigiu para ele uma petição dirigida
novamente ao Imperador. Nela, o africano pedia “licença para poder
voltar” à Bahia, onde havia deixado bens, e alegou que nenhum crime
havia cometido, “antes vivia pacificamente tratando de seus negócios,
tendo sido injustamente qualificado como criminoso”. Alegando ser adepto
aos valores da sociedade escravista brasileira, Luís Xavier disse que não era
de crer que tendo “bens, vivendo do seu negócio, e com relações comerciais
com diversos negociantes”, tanto na Bahia como em outras Praças, “se
quisesse envolver em um partido selvagem, de gente com quem jamais
pôde o suplicante fazer união”. 47
A petição repetia aquela feita dez anos antes. Luís Xavier de Jesus
tentou convencer as autoridades imperiais de que, ao contrário dos malês,
ele era “civilizado”, bem adaptado aos valores de uma sociedade mercantil
que desejava ser civilizada, mas não logrou êxito. A sociedade baiana da
época, hierarquicamente racializada não consentiria a presença de um
africano rico circulando pelas ruas da cidade de Salvador, após a Rebelião
Malê, quando ficou comprovado, segundo suas próprias versões do fato, a
“incivilidade e a barbaridade” dos povos oriundos da África. Um africano
liberto rico residindo em Salvador após 1835 seria uma afronta, “jogar-lhesia na cara” uma ascensão social proporcionada a poucos nacionais. Era
preciso que Luís Xavier soubesse qual era “o seu lugar”. 48 A ideia de
ascender da posição de escravo pobre à condição de rico liberto não era
bem recepcionada na Bahia daqueles tempos. E foi contraditoriamente,
através do sistema escravista brasileiro que Luís Xavier enriqueceu,
acumulou bens, apesar de (e pelo) tráfico transatlântico de escravos,
inclusive durante o período de ilegalidade do comércio. Resta investigar
futuramente sua parcela de contribuição para a continuidade das
atividades negreiras, operadas entre a Bahia e a Costa da África após 1831.
DAVIS, Histórias de perdão, p. 19.
GIFI, Cx. 5 B 207.
48 ALBUQUERQUE, O jogo da dissimulação, p. 33. CHALHOUB, Sidney. A força da escravidão:
ilegalidade e costume no Brasil oitocentista. São Paulo: Companhia das Letras, 2012, pp. 45-108.
Rodrigues, De Costa a Costa, pp. 76-104.
46
47ANRJ,
REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014.
375
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Testamento de Francisco Xavier de Jesus, 29/09/1813: APEBA, Judiciária, Livro de Registro de
Testamentos nº 4 (Capital), fl. 46.
APEBA, Chefes de polícia, maço 2949 (1835-1841).
APEBA, Colonial, Escravos, maço 2898 (1830-1889).
APEBA, Colonial, Governo da província, Correspondências expedidas para o governo imperial, maço
682 (1835 -1836).
APEBA, Judiciária, LNT 213, fl. 81.
APEBA, Judiciária, LNT 215, folha 32.
APEBA, Judiciária, LNT 219, folha 119.
APEBA, Judiciária, LNT 219, fls. 193-194.
APEBA, Judiciária, LNT 220, fls. 118-118-v; fl. 181-v.
APEBA, Judiciária, LNT 223, fl. 118 v.
APEBA, Judiciária, LNT 231, fl. 45.
APEBA, Judiciária, LNT 257, fl. 35 v.
ANRJ, GIFI, Cx. 5 B 207.
Petição de Luís Xavier de Jesus: APEBA, Legislativa, Abaixo-assinados, maço 979 (1835-1836).
APEBA, Assembleia Legislativa Provincial, Petições (1837).
APEBA, Legislativa, Abaixo-Assinados, 1836.
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O figurino da colônia
Uma análise da sociedade colonial brasileira
a partir da indumentária
Sara Raquel de Andrade Silva
Resumo: O presente artigo tem como objetivo um
aprofundamento no conhecimento do modelo social
vigente no período histórico colonial brasileiro
analisando-se a indumentária utilizada na época.
Tenta-se, por meio deste, traduzir, a partir do
vestuário, o modo de vida no Brasil-colônia, bem
como intenta a criação de um retrato dessa sociedade
baseando-se em suas regras e costumes relativos ao
modo de se vestir.
Palavras-chave: Indumentária, sociedade colonial,
moda.
Abstract: This article aims at a deeper understanding
of the current social model in the historical period
Brazilian colonial analyzing the clothing used at the
time. Attempts is through this, translate, from the
clothing, the way of life in colonial Brazil, as well as
attempts to create a portrait of this society based on
their rules and customs relating to mode of dress.
Keywords: Outfit, colonial society, fashion.
Antes, porém, de nos determos à explanação do vestuário, se faz necessária
uma breve contextualização sobre o período historicamente conhecido
como Brasil colonial, período este que tem seu início em 1530, quando,
devido à ameaça francesa, a colônia passará a ser povoada, e se estende até
sua elevação a reino unido de Portugal, que se dá com emancipação
política do território brasileiro em 1815.
O período colonial brasileiro está economicamente alicerçado no
tripé monocultura, latifúndio e mão de obra escrava, introduzido por
Portugal, visando proteger a nova colônia da invasão francesa na forma de
capitanias hereditárias, faixas de terra doadas a donatários, que ficariam
responsáveis pela proteção, povoamento e por estabelecer o cultivo de cana
de açúcar.
É nesse cenário que a sociedade colonial brasileira começa a dar os
primeiros passos. Primeiramente, a ocupação portuguesa se deu por
degredados, os indesejáveis que Portugal exilava na colônia. A fixação de
REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014.
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famílias portuguesas no Brasil se torna significativa apenas na segunda
metade do século XVI. São esses primeiros grupos familiares que começam
a introduzir na colônia costumes e hábitos europeus, pautados e limitados
pela moral católica.
O modo de vestir europeu chega à colônia como sinal de status e
poder. Apesar do clima tropical, o vestuário colonial ainda é diretamente
influenciado pela moda da metrópole, exibida pelas cortes e nobreza
europeia. Artigos de vestuário se faziam caros e escassos, e eram tratados
como bens hereditários. Seda, brocados, tafetá e veludo fazem parte da
indumentária, indicativos de poder econômico. Os menos abastados
exibiam, quando muito, saias e casacos de chita, raxa de algodão, baeta
negra ou camisas de cassa grossa, à exceção das escravas de senhoras ricas,
que, por ostentação, vestiam-nas com grande opulência.
Não só as roupas, como também penteados e acessórios
extravagantes são utilizados pela classe nobre brasileira como forma de
distinção e distanciamento de outras classes sociais. No relato do padre
Nuno Marques Pereira, conta como aparentavam tais adornos, incômodos
e extravagantes.
quando era ainda "bem rapaz" (ele nasceu em 1652), a
moda "pata" impunha o cabelo armado com arames;
segundo ele, essas armações foram crescendo tanto,
“que para poder entrar uma mulher com este enfeite
nas igreja necessário que estivessem as portas
desimpedidas de gente"1.
1
O clima quente da colônia se faz impor e, alguns acessórios,
anteriormente tidos como indispensáveis, como espartilhos e corsets, são
negligenciados. O calor e a distância da metrópole faz necessária a adoção
de peças menos elaboradas no cotidiano, frente a inexistência de uma
indústria têxtil no Brasil.
Com o desenvolvimento da colônia e a criação de um conceito que
define a sociedade colonial, alguns dos hábitos de se vestir europeus são
abandonados enquanto outros são reforçados, principalmente no curto
período que compreende a chegada da Família Real Portuguesa e o início
do Brasil Império.
1
(História das Mulheres no Brasil; pg. 54)
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O destoante figurino europeu na colônia
Se se considerar a influencia da corte portuguesa na maneira de
vestir europeia, faltarão exemplos a se apresentar. Ao contrário, estava
Portugal sujeito a influencias francesas e inglesas no que diz respeito à
indumentária. Assim, o vestuário na colônia é antes o espelho das cortes da
França e Inglaterra em detrimento de uma influencia totalmente
portuguesa.
A segunda metade de século XVI apresenta na indumentária vigente
influencias da Inglaterra, então reinava a Rainha Elizabeth; empregando
tecidos pesados, os trajes femininos apresentavam saias volumosas,
geralmente precedidas pela anágua (saia usada por baixo do vestido) com
pregas largas e generosas e o corpete justo com decote quadrado ou
circular. A roupa masculina era composta por casaco, podendo ser longo,
até o joelho, ou bem curto, gibão, uma espécie de colete, becas, calções até
os joelhos, chapéus achatados e largos, sapatos de couro de sola baixa, e
por vezes capas curtas presas ao ombro.
As roupas infantis eram, por vezes, cópias das adultas, quando não
consistiam em batas, aventais ou pinafores, geralmente brancos, adequados
à idade.
Se nas ruas o contraste entre classes sociais era notável, dentro de
casa, diminuía a distância entre a roupa dos senhores e servos. Desleixo e
desmazelo se faziam presente entre as senhoras de famílias ricas no interior
de suas moradias.
Muitas vezes descalças, ou de chinelos, trajando camisas de finíssima
cambraia, por vezes transparente, com as golas tão largas que chegavam a
resvalar pelos ombros, deixando, frequentemente o busto à mostra.
Esse desleixo era constantemente visto com maus olhos por viajantes
e exemplo s da comunidade europeia. A escritora Mary Graham, em
passagem pelo Brasil, deixa claro sua desaprovação, quando, ao chegar às
casas, se deparava com suas senhoras vestidas de tal maneira.
Dificilmente, poder-se-ia acreditar que a maioria delas
eram senhoras da sociedade. Como não usam nem
coletes, nem espartilhos, o corpo torna-se quase
indecentemente desalinhado logo após a primeira
juventude; isto é tanto mais repugnante quando elas
se vestem de modo muito ligeiro, não usam lenços ao
pescoço e raramente os vestidos têm qualquer
manga. Depois, neste clima quente, é desagradável
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ver escuros algodões e outros tecidos, sem roupa
branca, diretamente sobre a pele, o cabelo preto mal
penteado
e
desgrenhado,
amarrado
inconvenientemente, ou, ainda pior, em papelotes e a
pessoa toda com aparência de não ter tomado banho.2
Assim também se vestiam os homens dentro de casa, trajando
camisolas longas, de tecido leve e, por vezes as ceroulas. Andavam
frequentemente descalços, calçando-se apenas para os afazeres que exigiam
sua saída às ruas.
Apesar do aparente desleixo desses relatos, a sociedade colonial
brasileira não estava livre da moral puritana tão intrinsecamente arraigada
na sociedade portuguesa pela Igreja Católica; era, ao contrário muito rígida
com as normas de vestimenta, principalmente no que atenta a moral das
moças de „boa família‟.
Sendo a pressão da Igreja nos hábitos de vestir, um mecanismo para
assegurar a manutenção do sistema de casamento, que envolvia, a um só
tempo, aliança política e econômica, o que tornava a virgindade feminina
um elemento fundamental. Funcionando como um dispositivo que
manteria o status da noiva, a indumentária feminina deveria ser casta, sem
muitos adornos e sem deixar a pele muito à mostra, seguindo um dos
escritos de São Paulo, muito difundidos pela Igreja no Brasil colonial
“Quanto às mulheres, que elas tenham roupas decentes, se enfeitem com
pudor e modéstia; nem tranças, nem objetos de ouro, pérolas ou vestuário
suntuoso; [...]” (História das mulheres no Brasil; pg. 46). As senhoras e
filhas saiam às ruas muito raramente, cobrindo os belos vestidos sempre
por uma mantilha pesada de tecido negro, que remetem às burcas árabes,
não somente em aparência com também, e principalmente na função de
guardar, proteger e esconder quem as vestia.
Assim, a rotina de reclusão feminina variava apenas quando o
calendário religioso exigia sua companhia ao marido ou pai às missas. Se,
quando em casa, o vestuário caracterizava-se por desídia ou negligência,
para sair às ruas, o figurino antes confortável era coberto pela vestimenta
régia e austera da pesada mantilha. Assim cobertas e protegidas do olhar
alheio, vislumbravam as cores e vivacidade das ruas, território, por
excelência, das escravas negras.
2
A História das mulheres no Brasil, 2006, pg. 56.
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Uma das imagens da Expedição Langsdorff, apesar de realizada no
período do Primeiro Reinado, retrata bem a moda das mantilhas adotada
pelas mulheres do período colonial.
Figura 1: "Vestimentas de São Paulo"3
O exagero na vigilância das moças era tamanho, que no ano de 1751,
o arcebispo de Salvador queixava-se das proibições paternas.
Conseguir que os pais e parentes consintam que suas
filhas e mais obrigações saiam de casa à missa nem a
outra função, o que se pratica não só com as donzelas
brancas, mas ainda com as pardas e pretas chamadas
crioulas, e quaisquer outras que se confessam de
portas adentro.4
Livres das regras morais da igreja, os homens estavam limitados às
normas da indumentária apenas no que diz respeito à distinção social. Não
muito diferente das mulheres, no entanto, quando relacionamos os tecidos
à falta de adaptação das roupas ao clima quente da colônia.
3 Figura 1 - CCBB – Expedição Langsdorff. Adrien Aimée Taunay (1825 – São Paulo)
Vestimentas de São Paulo aquarela e nanquim. Arquivo da Academia de Ciências – São
Petersburgo, 2010.
4 História das mulheres no Brasil, 2006, pg. 49.
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Um casaco comprido, usado sobre o colete e uma camisa, o gibão era
uma das peças mais comuns do vestuário masculino. Sob a roupa, o
chemise, uma camisa fina de linho, era usada diretamente sobre a pele. O
banho não fazia parte do cotidiano europeu, assim, o chemise, trocado
constantemente, indicava higiene.
Ao redor do pescoço, o rufo, uma espécie de gola, de tecido
engomado e plissado, inicialmente grandes, foram gradativamente
diminuindo até cederem lugar ao jabô, um babado de renda ou lenço, mais
confortável e flexível.
A bengala surge com um acessório importante no vestuário
masculino, usado também como forma de distinção social. Inicialmente
apenas hastes de madeira, as bengalas desenvolveram aspectos distintos,
apresentando pontas envolvidas por metal, marfim, pedras preciosas ou
qualquer outro tipo de material luxuoso e durável.
Vestuário de escravos e trabalhadores livres na colônia
A ostentação entre senhores da sociedade não consistia apenas no
hábito de vestir-se luxuosamente; muitas famílias tinham o costume de
apresentar-se socialmente com um cortejo de escravos ricamente vestidos
como forma de competição do poder econômico.
Nem todos os escravos partilhavam dessa posição; os mais belos
negros (sob a ótica europeia) eram escolhidos, e estes, serviriam junto à
família, dentro de casa. Eram amas-de-leite, cozinheiras, pajens e alguns
escravos que prestavam serviços ao senhor nas zonas urbanas, como a
venda de alimentos e bens produzidos na fazenda.
Dessa forma, não são de todo incomuns as representações de
escravos bem vestidos ao lado de seus senhores, como a cenas retratadas
por Debret.
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Figura 2: "Viagem Pitoresca ao Brasil"5
Algumas escravas, usadas por senhores para prostituição, se vestiam
de tal forma, que o fato chegou a preocupar o próprio rei, que, sabendo da
“soltura com que as escravas costumavam viver e trajar nas conquistas
ultramarinas, andando de noite e incitando com trajes lascivos aos
homens” proibiu de todo o uso de sedas, ouro e outros trajes finos para que
assim parem de “incitar para os pecados com os adornos custosos de que se
vestem”.
A opulência das escravas era tanto, que, no século XVII, o Frei
Manuel Calado pregava que a perda de Pernambuco para os holandeses
era castigo divino pela dissolução dos costumes e um dos sinais mais
evidentes disso, era que “as mulheres andavam tão louçãs e tão custosas
que não se contentavam com os tafetás, chamalotes, veludos e outras
sedas, senão que arrojavam as finas telas e ricos brocados”.
Castigo de Deus ou, não o fato é que o luxo aumentou tanto entre as
senhoras quanto entre as escravas. De acordo com Luís dos Santos
Vilhena, as mulheres exibiam-se
Com as suas mulatas e pretas vestidas com ricas saias
de cetim, becas de lemiste finíssimo e camisas de
Figura 2 - Debret, J. B. – Viagem Pitoresca ao Brasil (Milliet S. trad. 2ed.). São Paulo: Martins
Fontes (Biblioteca Histórica
Brasileira 4-3 vol em 2 tomos. Prancha 2/5)
5
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cambraia ou cassa, bordadas de forma tal que vale o
lavor três ou quatro vezes mais que a peça; e tanto é o
ouro que cada uma leva em fivelas, pulseiras, colares
ou braceletes e bentinhos que, se hipérbole, basta para
comprar duas ou três negras ou mulatas como a que a
leva;6
Apesar do luxo que exibiam em seu vestuário, os escravos num
geral, eram proibidos de usar sapatos. Proibido por leis suntuárias, o
costume de usar sapatos era uma forma de distinção de classe na
sociedade colonial brasileira. Porém, não raro era deparar-se com
descumpridores dessa norma; mucamas e acompanhantes das senhoras,
comumente saiam às ruas usando chinelinhas e sapatos com ou sem
fivela.
Muito diferente dos escravos domésticos, os escravos comuns
usavam a mesma roupa, geralmente, até apodrecer. Tamanho descaso dos
senhores com o vestuário de seus servos, que alguns padres da época
chegaram a basear seus sermões no assunto.
Poucas são as fontes de relatos ou registros escritos de escravos
comuns em relação aos bens que possuíam e vestuário. Entre essas fontes,
estão alguns relatos e testemunhos, como o do padre jesuíta André João
Antonil:
"Se o negar esmola a quem com grave necessidade a
pede, é negá-la a Cristo Senhor nosso como ele diz no
Evangelho, que será negar o sustento e o vestido ao
seu escravo? E que razão dará de si quem dá serafina
e seda e outras galas às que são ocasião da sua
perdição, e depois nega quatro ou cinco varas de
algodão e outras poucas de pano da Serra a quem se
derrete em suor para o servir, e apenas tem tempo
para buscar uma raiz e um caranguejo para comer?" 7
Deste trecho, podemos extrair algumas informações, como o tipo de
tecido, algodão ou „pano da Serra‟ e a quantidade fornecida. Neste mesmo
trecho, podemos identificar um cenário colonial, no qual os senhores de
engenho “mantém as aparências” com os escravos que são apresentados a
sociedade e, tratando desdenhosamente aqueles encarregados do serviço
braçal. Interessados em menos gastos possíveis, as roupas fornecidas aos
6
7
A História das Mulheres no Brasil, 2006, pg. 58.
Cultura e Opulência do Brasil por Suas Drogas e Minas, 1711, pg.. 26 e 27.
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escravos por seus senhores tinham a finalidade cristã de, apenas “cobrir as
vergonhas”. Nesse caso, a roupa tem a finalidade de introduzir os povos
americanos e aqueles trazidos como escravos num universo cristão e
europeu, e ainda, tornar claro a esses indivíduos seu lugar nesse universo.
A roupa menos elaborada é explicada também pelo tipo de serviço
realizado pelos escravos. Trabalhos esses como extração mineral e
agricultura, o contato com o sol, suor e grande movimentação
deterioravam rapidamente as vestes; ainda assim, os senhores julgavam
que dois anos seriam intervalo suficiente para adquirir novas tecidos para
as vestes, conforme documentos do século XVII, tanto para os homens
quanto para as mulheres.
Na região das minas, podemos avaliar que as vestes eram poucas e
insuficientes pelas palavras de D. Lourenço de Almeida, que em carta ao
rei, afirma que os senhores trazem seus escravos nus e os sustentam mal,
mas que os negros procuram por si só o que comer e vestir.
Ainda na região das minas, não estranho era o hábito dos senhores
ofereceram roupas como prêmio a escravos que encontravam algum ouro
ou um bom veio para exploração. Entre os prêmios estavam geralmente as
véstias, casacos e jaquetas curtas de chita ou baeta, camisas de linho,
calções e coletes também de linho, camisas e calções de cetim, e por vezes,
fala-se na oferta de roupas de gala.
Negros, livres ou cativos, procuravam exibir esse tipo de vestimenta
como forma de distinção social, sempre que fosse possível. A utilização de
trajes considerados nobres por negros, porém, provocou reações adversas
em nobres, que se queixavam continuamente às autoridades em busca de
alguma proibição ou limitação no traje a escravos e negros libertos, que até
então, poderiam indicar símbolos de distinta posição social. Qualquer peça
de roupa que se caracteriza tal distinção era encarado como proibido a
determinados grupos e, ao mesmo tempo imensamente desejado por esses
grupos.
A contínua reiteração de leis proibitivas, porém evidencia que, apesar
dos castigos e proibições prometidos no caso de desobediência dessas leis,
elas não eram postas em prática.
A chegada da Família Real e sua influencia na indumentária colonial
A chegada da Família Real no Rio de Janeiro foi, possivelmente, o
maior evento presenciado pela sociedade carioca da época. O desembarque
do rei e das damas da corte representava um luxo inacessível, não só em
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termos de poder aquisitivo, como também pelo fato de não existirem
fabricações têxteis na colônia e pelos rígidos códigos sociais que impediam
o uso de certas peças de roupas por pessoas comuns, como os brocados de
ouro e prata e também tecidos de seda.
O desembarque das mulheres da realeza causou estranheza e, logo
em seguida assimilação: Por causa de uma infestação de piolhos nos
navios, D. Carlota Joaquina e suas filhas usavam turbantes que escondiam
os cabelos cortados curtos.
Apesar da situação delicada entre França e Portugal, a França,
consolidada como potência da moda no reinado de Luís XV (1638 – 1715),
continua a influenciar a indumentária de toda Europa, Portugal, inclusive.
No período de governo de Napoleão (1799 – 1815), se instaura um
orientalismo, consequência das incursões napoleônicas ao Egito. Turbantes
e xales são incorporados as estilo conhecido como Império.
Assim, seguindo a moda francesa, os vestidos perdem a forte
estruturação dos espartilhos e armações de metal das saias, apresentando
certa simplicidade quando comparadas à moda extravagante do Antigo
Regime. Inspirados pelas túnicas gregas e romanas, os vestidos
apresentavam fluidez e leveza. Tinham a cintura alta, marcada abaixo dos
seios (posteriormente denominada “cintura Império”), exibiam pequenas
magas bufantes, decotes quadrados, caimento leve e, comumente cores
claras e tons pastéis (a exceção eram as peças que compunham o vestuário
de D. Carlota, na maior parte das vezes vestida em tons escuros de carmim
e bordô). O cabelo também perdeu volume; dispensadas as armações e
penteados extravagantes, tinha comprimento mediano, alguns cachos e
aparência natural.
Nas vestes masculinas, a inspiração militar, também em
concordância com a moda francesa, pintavam grandes chapéus achatados,
ao estilo napoleônico, com plumas e bordados. Casacos e jaquetas, que
aparentavam fardas militares de elevada patente em tons escuros de
vermelho, azul ou verde, com bordados em ouro ou prata, com grandes
botões, apresentavam faixas, mantas, medalhas e insígnias das ordens
militares (Ordem de Cristo, de São Bento de Aviz e de Santiago) e das
ordens criadas por D. João VI, como a Ordem de Torre e Espada e a de
Nossa Senhora da Conceição de Vila Viçosa; os calções, curtos e justos, à
altura dos joelhos, apresentavam tons claros, terminavam nas botas ou
meias de seda, comumente coloridas em tons de azul, vermelho ou branco.
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388
Um dos mais importantes fatores que influenciou na diversificação
e popularização de trajes luxuosos foi a abertura dos portos brasileiros para
comércio com as nações amigas. Por ter idealizado e auxiliado na fuga da
Família Real, a Inglaterra recebeu tarifas reduzidas na exportação de seus
produtos para o Brasil, inundando o comércio brasileiro com peças do
vestuário inglês como chapéus, plumas, xales, relógios de bolso, luvas,
vestidos e calçados.
Praticamente inexistente antes do desembarque da Família Real, a
vida social, antes limitada a idas à igreja, começa a esboçar-se sutilmente.
Não de maneira radical, mas a partir de tomada de políticas públicas, como
a abertura dos portos e criação da imprensa nacional, que permitiu que as
informações circulassem mais rapidamente. A presença da corte gera a
demanda por eventos sociais e espaços públicos destinados aos
divertimentos.
A compleição da realeza e a abolição de normas de restrição no
vestuário encorajam as colonas a abandonarem os hábitos relativos às
restrições femininas, como o uso das mantilhas negras. A presença da corte
gerou diversas alterações na cidade e hábitos brasileiros, transformações
essas pautadas nas solenidades oferecidas à nobreza fluminense pela
Coroa.
As festividades eram, num geral, calcadas no calendário cristão, e
tinham a finalidade simbólica de criar laços, no imaginário do povo, entre o
rei e o divino. Serviam de afirmação do poder do soberano, bem como
reforçar um caráter paternalista e admiração exercida por ele para o povo.
Comemorações e formalidades da corte passaram a figurar entre os
eventos mais importantes da vida social da colônia. Esse foi um fator que
influenciou diretamente na indumentária, servindo como estimulante para
que as pessoas se vestissem de maneira mais luxuosa e exuberante, como
fica evidente no relato do viajante alemão Theodor von Leithold (1777 –
1826).
Jamais encontrei reunidas tantas pedras preciosas e
pérolas de extraordinária beleza quanto nos beijamãos de gala e no teatro (...). Seguem o gosto francês,
ousadamente decotadas. Os vestidos são bordados a
ouro e prata. Sobre a cabeça colocam quatro ou cinco
plumas francesas, de dois pés de comprimento (...) e
sobre a fronte, como em torno do pescoço e nos
braços, diademas incrustados de brilhantes e pérolas
de excepcional valor.
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As mudanças na lei que restringia o vestuário e abertura dos portos a
produtos estrangeiros permitiu maior liberdade no ato de vestir-se e
ocasionou uma maior velocidade nas mudanças nas maneiras de se vestir.
Com a enorme quantidade de produtos que passou a circular dentro
do território nacional, podemos observar a instalação de um modismo
oriental, com especial atenção a tecidos provindos da Índia, trazidos por
navios ingleses e posteriormente, nas naus indianas.
Analisando inventários, guardados no Arquivo Nacional, pode-se
observar um crescente consumo de produtos de origem chinesa e indiana,
como é, por exemplo, o inventário do comendador Elias Antonio Lopes (? –
1815), que lista entre outros, roupas feitas com tecidos de sedas chinesas,
tafetás e finos linhos indianos, baixelas de prata e porcelana da China.
Entre seus pertences, encontra-se uma exótica bengala de abada, como é
chamado o chifre de rinoceronte indiano e castão de ouro esmaltado.
Poucos são os indivíduos moradores da colônia que podem exibir bengalas
tão luxuosas quanto essa.
Obras, como as do artista Debret, já aqui citado e Henry
Chamberlain, representam esse período de invasão cultural do Oriente,
mostrando as influencias nas janelas com treliças, também conhecidas por
muxarabiês, e na indumentária feminina, que emprega finas sedas orientais
quase transparentes e bordados com motivos indianos.
Além das roupas, também os móveis e louças orientais ganharam
status de produtos nobres, e possuí-los era forma de mostrar
reconhecimento social. Na falta de títulos, exibiam, ao menos, influencias
na vida econômica.
Assim, torna-se desejado possuir móveis lacados e com embutidos
de marfim Índico, como as mesinhas com formato de meia-lua, cômodas e
bancas de cabeceira. As louças passam a conviver com novos artigos
europeus, que copiavam os motivos orientais e padrões decorativos.
Com a fundação da impressa no Brasil, não raro encontram-se
anúncios que indicam lojas e armazéns especializados no comércio de
produtos asiáticos. O chá entre em voga, junto com outras plantas exóticas
do Oriente que foram introduzidas no, atualmente Jardim Botânico, Real
Horto.
Nesse cenário, testemunhamos uma oposição entre o ocidental, aqui
representado por costumes e produtos europeus, e orientais, tão presentes
nesse curioso período pelo qual passou o Brasil antes de ceder totalmente
ao lado Ocidental.
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Conclusão
A partir do estudo da indumentária no período colonial brasileiro,
pode-se concluir que, inicialmente mantido, o costume europeu onde as
roupas distinguem e impõe barreiras sociais permanece na colônia sem
qualquer alteração dos trajes. Interessante notar que, apesar do clima
tropical, esses mecanismos de distinção associados ao vestuário não
adquirem as mudanças necessárias, permanecendo os padrões já
aclamados na metrópole, indiferente ao desconforto e inadaptação
climática.
Ao passo que a indumentária permanece pautada na nobreza e
restrição religiosa, surge e desenvolve-se, paralelamente, uma nova
maneira de vestir-se dentro do ambiente doméstico; diametralmente
contrária à primeira, esta, por sua vez adaptada à região segue a contramão
da moral religiosa e europeia, sendo amplamente criticada aqueles que,
inseridos temporariamente no contexto colonial a Europa regressavam.
Este fenômeno pode ser observado principalmente nas vestes
femininas, onde a exigência era a ocultação do corpo, tido como fonte
infindável de desvios à moral cristã. Importante ressaltar que, a ocultação
não se fazia necessária no ambiente domiciliar, local este que era permitido
a falta de vestuário exageradamente encobridor, e tido como indecente se
considerarmos o modelo social português da época.
Seguindo a oposição do modelo ideal de indumentária europeia, o
vestuário de escravos é pautado apenas no que diz respeito a não ferir
totalmente a noção cristã de decência. Interessados apenas em cobrir „as
vergonhas‟ de seus negros, senhores gastavam somente o quanto fosse
necessário para não deixa-los nus.
Diferente dos escravos que trabalhavam nas minas e lavouras, os
escravos que serviam juntamente a casa senhorial eram utilizados como
forma de competição do poder econômico. Ricamente vestidos, seguiam
suas senhoras em verdadeiros cortejos nas idas à igreja ou quando a serviço
de seus senhores vendendo produtos ou prostituindo-se. Nota-se aqui,
porém, a proibição do uso de calçados por escravos, e posteriormente a
restrição no vestuário destes, leis estas frequentemente descumpridas.
Com a chegada da Família Real, o vestuário tinha agora um modelo
próximo a ser seguido. A indumentária utilizada pela coroa era
rapidamente associada e adotada pela população abastada. Isso incentivou
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no abandono de certos hábitos, como o uso de mantilhas negras que
mantinham as senhoras de boa família „escondidas‟ da sociedade.
A abertura dos portos aumentou o fluxo de produtos e ocasionou
uma queda nos preços do vestuário disponível na colônia. A diversidade
transformou a maneira colonial de vestir-se acarretando ainda, uma
liberdade maior e velocidade nas mudanças da moda.
A sociedade colonial brasileira foi indubitavelmente influenciada
pela metrópole portuguesa na maior parte de sua existência, tendo apenas
ao final, alguma influencia de outros países que traziam produtos diversos
para o comércio.
Continua e amplamente influenciada na moral cristã e apresentando
como modelo a nobreza europeia, a indumentária no Brasil só tardiamente
rendeu-se ao clima tropical, sofrendo apenas uma pequena influencia por
produtos de origem indiana. O modo de vestir brasileiro manteve o
modelo europeu e, até hoje apresenta influencias francesa e inglesa.
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TINHORÃO, José Ramos; “As Festas no Brasil Colonial” 1ª Edição. São Paulo: Editora 34,
2000.
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