romance acidental

Transcrição

romance acidental
MARTHA WOODROOF
ROMANCE
ACIDENTAL
TRADUZIDO DO INGLÊS POR
ELSA T. S. VIEIRA
PARTE UM
CAPÍTULO 1
A
li estava ela, tão bem-vinda a esta comunidade insular como ar
fresco num centro comercial, uma mulher que, segundo constava, correra o risco de ser feliz. Tom ouvira falar muito dela através
de Russell Jacobs, seu colega no Departamento de Inglês, e agora
estava a vê-la em pessoa, esta criatura alta, esguia, de cabelo escuro,
estranhamente elegante nas suas calças largas e T-shirt branca.
Estava a seis metros dele, na nova sala de café, a ouvir atentamente um dos docentes reformados que, segundo Russ, se colara à
nova diretora adjunta da Livraria assim que ela pusera os pés no
campus. Para Tom, era um momento precioso. Aqui, neste isolado
templo de aprendizagem sulista, onde toda a gente fazia questão de
parecer muito ocupada, como se isso provasse a sua importância
num mundo mais vasto e significativo, estava uma pessoa que
ousava parecer relaxada, como se tivesse tempo para respirar e ouvir
o que outra pessoa lhe dizia e até para refletir sobre isso por alguns
instantes. Imaginem!
Tom sabia que ela se chamava Rose Callahan e que tinha sido
contratada por Ted Pitts, o diretor da Livraria, para gerir a sala de
café e «estimular a vida mental cocurricular da comunidade através
da programação da livraria da universidade». O que quer que isso
significasse. Nos últimos anos, Ted Pitts tornara-se agradavelmente
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obcecado com aquilo a que chamava «a construção de uma comunidade». Todos aplaudiam os seus esforços exceto a nova vice-diretora financeira da universidade, uma atraente licenciada de Darden
School, com cerca de quarenta anos, a quem o corpo docente se
referia, de forma pouco afetuosa, como «a Harpia».
A nova vice-presidente fora contratada um ano antes, quando
a economia pós-11 de Setembro obrigara a universidade a recorrer
à sua substancial dotação. Desde a chegada, a Harpia manifestara
publicamente o seu receio de que frivolidades como a «construção
de comunidade» do senhor Pitts desgastassem ainda mais os fundos da universidade, que pareciam ser a sua única preocupação.
Quando Ted Pitts contratara Rose Callahan como diretora adjunta
(e construtora-de-comunidade-suprema), tal fora visto por todos
como um gesto declarado de desafio ao controlo feroz que a Harpia exercia sobre a alma da universidade. Para deleite dos docentes,
Ted sempre funcionara de forma quase independente: pagava as
despesas da Livraria com as vendas de manuais, e reinvestia os
lucros do comércio de livros e presentes e do negócio do café nos
seus esforços de «construção de comunidade».
Rose Callahan estava na universidade há já um mês, tempo
que normalmente seria mais do que suficiente para todos os detalhes do passado de uma pessoa serem desenterrados e examinados.
Porém, segundo Russ (que era o coordenador de mexericos do
campus e, portanto, saberia) havia muito pouca roupa suja para
lavar sobre Rose Callahan. Ela tinha trinta e sete anos e era natural
do Texas. Ou nunca casara, ou passara por um divórcio amigável
– Russ não tinha a certeza, sabia apenas que ela parecia viver sozinha e não mostrava inclinação para odiar todos os homens. Estava
previsto que se mudasse para uma das velhas casas junto do celeiro
antigo, assim que as canalizações estivessem arranjadas; até lá,
estava instalada na Estalagem da Universidade. Viera de Charlottesville para aceitar o emprego na Livraria. Em Charlottesville, fora
durante dois anos gerente de uma livraria independente no Centro
Comercial da baixa, onde, segundo constava, tinha conseguido
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salvar a loja da falência com a sua programação inovadora. Russ
dizia que Rose Callahan conseguia conversar de forma inteligente
sobre livros, incluindo a literatura do século xviii, que era o domínio de Russ, e os alunos tinham começado a desabafar com ela os
seus problemas logo no primeiro dia depois das férias de verão, que
fora na véspera. Ela comia na cantina e parecia igualmente à vontade sozinha ou numa mesa rodeada de desconhecidos, e tinha sido
vista a caminhar a quilómetros do campus, depois do trabalho, com
um par de binóculos na mão, o que indicava que era uma espiã ou
que gostava de observar pássaros. Russ calculava que seria provavelmente a última hipótese.
– Não é nada bonita – dissera Russ, inclinado sobre a secretária
de Tom, com aquele tom afetado e confidencial que reservava para
os colegas que participavam regularmente nas suas noites de
póquer. – Quer dizer, tem o nariz torto, partiu-o a jogar basquetebol no liceu, imagina! Ao pé da tua linda mulher, parece a Olívia
Palito.
Russ, que era divorciado há muitos anos e se aproximava da
idade da reforma, ainda gostava de pensar em si próprio como um
jovem galã. Com as sobrancelhas hirsutas erguidas, continuara:
– Ela é extraordinariamente autónoma, não sei se me faço entender. Toda a gente na universidade está intrigada com ela, porque está
aqui sozinha e apesar disso não parece nada carente. E nunca se arma
em boa. Nunca. Na verdade, a Rose Callahan praticamente não
fala sobre si. Não sei se tem namorado... nem se é heterossexual,
sequer. Não quero insinuar que ela tem segredos, ou coisa do género.
Simplesmente parece achar mais interessante conversar sobre a vida
dos outros do que sobre a sua. No entanto, apesar de toda esta reserva
frustrante, Thomas, a Rose Callahan tem qualquer coisa que chama
a atenção de um homem e o faz endireitar-se na cadeira. Sim, professor Putnam, até você.
Tom rira-se, de olhos postos na secretária atafulhada, e pensara
pela milionésima vez que Russ era um velho pateta inofensivo. Até
este momento, na Livraria, Tom teria apostado as suas poupanças
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em como já não havia homem suficiente em Russ para o fazer
levantar o mindinho, quanto mais endireitar as costas na cadeira.
Contudo, aqui estava Rose Callahan e ele estava alerta como um
miúdo que sente o cheiro de bolachas acabadas de fazer.
Nesse momento, Rose ergueu o rosto e sorriu. Tom sentiu algo
dentro de si elevar-se e mudar e pensou, recorrendo ao seu ídolo:
Mal vos vi, meu coração voou para vos servir.
E foi assim que ele, Thomas Marvin Putnam – admirador de
Shakespeare, educado na Universidade de Amherst e na Universidade da Virgínia, preso num casamento disfuncional há vinte anos
– se tornou uma criança alegre e despreocupada, a descer uma colina
às cambalhotas, e se juntou a Alice e caiu, caiu, caiu para onde nunca
pensara ir.
O primeiro impulso de Tom foi fugir, mas Marjory começou a
puxar-lhe a manga do casaco de fazenda, os dedos nervosos enfiados no buraco por baixo do remendo de cabedal que estava a descoser-se outra vez.
Tinham vindo para a primeira «Tarde de Ensino de Inglês»
anual da Livraria. Este programa inaugural de Rose tinha o objetivo astuto de reunir o corpo docente do Departamento de Inglês
da universidade e os atuais alunos de especialização, com os professores de Inglês dos liceus locais e os seus melhores estudantes, que
eram potenciais alunos de especialização.
O evento, que fora um grande sucesso para o Departamento
de Matrículas, estava a chegar ao fim. Todos os outros membros do
Departamento de Inglês tinham saído, mas Marjory, que inicialmente não quisera vir, recusava-se agora a ir-se embora.
– Ali está a nova diretora adjunta – murmurou. – Vamos falar
com ela e apresentar-nos.
– Agora não – respondeu Tom num sussurro, com medo de que
o seu coração, que batia descontroladamente, lhe saltasse pela parte
da frente do casaco e caísse na mesa de livros novos à sua frente; com
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medo de perder a força nos joelhos; decidido a ficar onde estava,
provavelmente com o ar do professor de Inglês alto, desinteressante, inofensivo e simpático que era. Mas era tarde de mais. Rose
Callahan pedira licença ao professor reformado e vinha em direção
a eles, de mão estendida para Marjory. A sua voz era calorosa, com
um leve sotaque:
– Chamo-me Rose Callahan, sou nova na Livraria. Acho que
ainda não nos conhecemos.
Tom viu, estupefacto, que o charme de Rose causara em
Marjory uma sanidade temporária. A sua mulher não apertava a
mão a ninguém há já algum tempo. Desde que Tom tivera uma
lamentável aventura extraconjugal com um poeta, a mulher desenvolvera fobias incontroláveis com germes e doenças obscuras. No
entanto, apertou a mão a Rose Callahan e falou com ela com toda
a simpatia.
– Chamo-me Marjory Putnam, e este é o meu marido, Tom.
Ele pertence ao Departamento de Inglês.
– Muito prazer, Marjory – disse Rose, e concentrou-se por um
momento naquela mulher frágil e nervosa, com um vestido inapropriadamente imaturo e florido, abotoado até ao pescoço. Tom
ficou grato por esta pequena cortesia a Marjory, mas ainda mais
grato quando Rose, por fim, se virou para ele. – Rose Callahan –
disse, simplesmente, e estendeu-lhe a mão. – Deve ser colega do
Russell Jacobs.
O seu toque era fresco, a mão com dedos compridos e invulgarmente forte. O aperto de mão transmitia convicção e vigor,
ambas características femininas consideradas suspeitas neste campus onde algumas jovens ainda usavam colares de pérolas verdadeiras com as suas calças de ganga de marca. Tom sentiu um pequeno
choque elétrico quando as palmas das mãos se tocaram. Rose olhou
para as mãos de ambos com uma expressão que ele não conseguiu
decifrar.
– Sim, sou – disse. Queria dizer mais qualquer coisa, fazer
algum comentário espirituoso sobre Russ, mas não lhe saiu nada.
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Depois de uma pausa infinitesimal, Rose disse a Marjory:
– O Russell tem sido muito simpático comigo.
Tom reparou que ela era muito mais alta do que Marjory, que
dava apenas pelo peito do marido. Por um instante, Tom viu a
mulher como a vira pela primeira vez, como uma requintada bonequinha de porcelana, facilmente quebrável. Era, talvez, a leitura
mais correta que poderia ter feito dela.
– Oh – disse Marjory, novamente a lutar contra o nervosismo.
Baixou os olhos e brincou com o fecho da mala. Marjory sentia-se
profundamente incomodada perto de Russ, que era demasiado confiante para o seu gosto.
Rose sorriu, mas a verdade era que a maioria das pessoas sorriam quando pensavam em Russ. Virou-se de novo para Tom.
– O Russell apresentou-me a um número estonteante de pessoas e contou-me tudo sobre elas.
Agora os olhos de ambos encontraram-se. Os de Rose Callahan eram mesmo azuis, azuis como os de Paul Newman, e quando
Tom olhou para eles pareceu-lhe que Rose brilhava, como se gerasse
luz.
O Bardo, sempre presente na mente de Tom e sempre disposto
a pensar nas palavras certas quando ele não conseguia, observou
que anelando mais luz, a luz se engana.
– Sim – conseguiu dizer, por fim. – O Russ considera-se um
prodígio social por estes lados.
Tom ficou satisfeito por ter usado a palavra «prodígio» e depois
imediatamente incomodado por ter ficado satisfeito. Há anos que
não se preocupava com a impressão que causava noutra pessoa.
Sentiu uma comichão insuportável na nuca e o princípio de uma
cãibra no dedo do meio do pé esquerdo. Desejou que se tivesse
lembrado de cortar o cabelo. O seu cabelo castanho tornava-se
uma juba de redemoinhos descontrolados quando adiava demasiado a ida ao barbeiro.
Marjory agitou-se ao seu lado e libertou uma invulgar bolha de
energia.
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– Porque não vem jantar connosco na sexta-feira, Rose? Vamos
celebrar termos sobrevivido à primeira semana de regresso dos
estudantes. Vivemos mesmo aqui no campus e adorávamos recebê-la,
não é, Tom?
Tom parou de olhar para Rose Callahan e virou-se para a
mulher. Marjory não fazia um convite social há dez anos. Estaria
bêbeda às três da tarde? Teria tomado demasiados comprimidos
da felicidade? Há uma década, a sua mulher afundara-se numa
timidez e indecisão patológicas, em especial junto de mulheres
desconhecidas.
– Não é, Tom? – repetiu Marjory, tão calmamente como se
não tivesse dito nada de invulgar.
– Claro que sim. – As palavras saíram um pouco mais alto do
que Tom desejava. Virou-se para Rose Callahan, com uma vaga de
desespero quase adolescente. Ela ia pensar que ele era um idiota,
de certeza. Um daqueles académicos bafientos que não consegue
funcionar realmente noutro mundo além do que existe dentro da
sua cabeça. – Venha, sim – disse, e aquelas duas palavras, aos seus
ouvidos, pareceram-lhe uma súplica.
– Gostava muito – respondeu ela, com um sorriso para Marjory. – Agradeço muito o convite.
Era como se parte da calma de Rose Callahan, parte da sua
sanidade, tivesse passado para Marjory por osmose. Tom não se
recordava de Marjory ter uma interação social tão longa com ninguém há vários anos.
– Ótimo – disse ela. – Por volta das sete? Vivemos mesmo ao
fundo do bairro dos professores... na casa grande, de tijolo, um
bocadinho afastada das outras. A minha mãe vive connosco, estou
certa de que ela vai querer juntar-se a nós.
– Que bom. Será um prazer jantar numa casa a sério com uma
família a sério, para variar – disse Rose, como se a perspetiva de passar uma noite com a mãe de Marjory a enchesse mesmo de entusiasmo. Claro que os rumores corriam nos dois sentidos, e talvez
Rose tivesse ficado intrigada com algumas histórias que ouvira
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sobre a sogra dele. – Até sexta, se não nos virmos antes – disse Rose
a Marjory. Depois virou-se de novo para Tom. – Sabe – disse, quase
timidamente –, decidi voltar a estudar para terminar o meu curso,
e estou inscrita numa das suas aulas... Shakespeare 402, às terças e
quintas à tarde.
Ali estava outra vez a luz, a emanar de Rose como se alguém
tivesse acendido um foguete atrás da sua cabeça.
– Oh – disse Tom. O seu coração deu mais um salto e o dedo
do meio do pé esquerdo ficou preso como um motor sem óleo. –
Das duas e meia às quatro e quarenta e cinco, amanhã.
– Sim. – Rose Callahan sorriu mais uma vez, ainda timidamente, e acrescentou: – Bom, então nós vemo-nos amanhã à tarde.
Tom olhou de relance para a mulher para ver se ela se importava com isso. Marjory era capaz de começar a carpir como uma
mãe irlandesa se ele olhasse sequer para outra mulher numa festa.
Mas Marjory sorriu, como se fosse tão normal como qualquer
outra pessoa.
›
Rose encostou-se à arcada que separava a sala de café da parte
principal da Livraria e viu o casal Putnam sair. Estava na universidade há três semanas e três dias e já tinha ouvido muita coisa sobre
Marjory Putnam, especialmente através de Russell Jacobs. Toda a
gente dizia que Marjory era muito peculiar, mas ninguém dissera
uma palavra sobre como ela era encantadora. Ou como era simpática. Para dar algum crédito às más-línguas, Marjory era obviamente um pouco ansiosa. Era notável o esforço existente por trás
da sua amabilidade, como se fosse uma característica enferrujada
ou avariada. E os dedos de Marjory tinham saltado como gafanhotos nas pregas do seu vestido ao ouvir o nome de Russell. Mas estas
duas coisas, por si só, não tinham forçosamente de querer dizer que
Marjory fosse peculiar, apenas que era tímida e que pensar no bombástico Russell Jacobs a deixava nervosa.
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Enquanto Rose os observava da arcada, o casal Putnam parou
abruptamente ao lado de uma das muitas estantes de vidro com
bugigangas na sala da frente da Livraria. Os dois ficaram ali parados, a falar em murmúrios; ou melhor, o professor Putnam falou e
Marjory baixou a cabeça, torceu as mãos e ouviu. Depois o professor Putnam pousou a mão no braço da mulher, numa tentativa
óbvia de a fazer recomeçar a andar, mas Marjory abanou a cabeça
como uma criança obstinada, afastou-se um passo dele e virou-se
para encarar Rose. O seu corpo estava agora rígido como uma vara
e o rosto era inexpressivo. Não acenou, mas Rose acenou-lhe e, em
resposta, Marjory levantou a mão e ficou com ela no ar. As duas
olharam uma para a outra e Rose sentiu algo de protetor erguer-se
dentro de si e prender-se à outra mulher. Seria capaz de jurar que
Marjory se apercebera disso, pois acenou uma vez com a cabeça e
sorriu por uma fração de segundo. Depois continuou a olhar. Mas
não era um simples olhar. Era o olhar de uma mulher cega que vê
com todo o seu ser, que sente coisas para além daquilo que os outros
conseguem ver.
Ela é doida há anos, dissera Russell, sem qualquer compunção
em rotular como maluca alguém que Rose nunca conhecera. Pode
perguntar a quem quiser, Rose, minha querida. Toda a gente tem histórias sobre a Marjory. Outro qualquer já teria fugido há anos. Mas o
professor Putnam é o nosso escuteirinho aqui no campus, o nosso bom
rapaz. O único homem que conheço capaz de agir de forma verdadeiramente altruísta. Embora só Deus saiba o que ele realmente sente.
Tenho a certeza de que, às vezes, ele gostaria de assassinar a Marjory só
pela liberdade de passar uma hora sem se preocupar com ela.
Marjory ficou imóvel e rígida durante uns dez segundos,
ostentando a sua fragilidade ansiosa como um cartaz ao pescoço:
Peço desculpa por tudo o que faço. Talvez Marjory Putnam soubesse
exatamente o que as pessoas diziam sobre ela e pensasse que a culpa
era toda sua? Este pensamento fez Rose ter vontade de dar um
murro no nariz da próxima pessoa que lhe contasse uma história
sobre Marjory – que provavelmente seria Russell Jacobs.
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Nesse momento, finalmente, o professor Putnam voltou a pousar gentilmente a mão no braço da mulher e desta vez Marjory deixou-se conduzir. O casal Putnam estava de novo em movimento e
Rose viu, com verdadeiro pesar, que a encantadora Marjory começava a comportar-se mais como fora publicitada, conduzindo o
marido num ziguezague através da Livraria que só indiretamente
levaria à saída. Era como uma criança de dois anos, atraída por todas
as bugigangas coloridas por que passava. Mesmo assim, o professor
Putnam conseguiu sorrir corajosamente a todas as pessoas com
quem se cruzavam, e ainda sorrir e acenar em resposta ao que a
mulher dizia, com uma expressão tão fixa e agradável como a de uma
marioneta.
Rose ficou ali parada, sob a arcada, a olhar para eles, a ver
todos os olhares de comiseração trocados pelos outros membros do
corpo docente, os risinhos disfarçados dos alunos, e percebeu que
deixara de se concentrar na encantadora Marjory e estava agora a
estudar o professor Putnam. Normalmente, Rose não admirava
pessoas que viviam vidas obviamente complicadas, mas havia algo
neste homem, na maneira como não fazia qualquer esforço para se
distanciar do comportamento claramente estranho da mulher, que
lhe tocou no coração bem defendido. Rose, que nunca hesitava em
mudar-se ou passar à frente quando a vida se tornava demasiado
complicada, começou a perguntar-se se este homem teria uma
espécie de bravura admirável. Seria uma daquelas raras pessoas
com coragem para aceitar – sem maldade – as outras pessoas exatamente como eram, mesmo quando isso significava ficar preso a
Marjory para o resto da vida?
Rose cruzou os braços e suspirou. Ela nunca tinha inspirado
uma lealdade como essa em ninguém – exceto na mãe, Mavis,
claro. Nem dedicara tal lealdade a outra pessoa. Rose detestava as
raras ocasiões em que a volatilidade da sua própria vida a deixava
com um vago sentimento de inquietação, em vez de a fazer sentir-se gloriosamente despreocupada. E era precisamente assim que
a forma como o professor Putnam lidava com a sua mulher perturbada a estava a fazer sentir-se.
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Mavis Callahan, que tinha sempre uma teoria para tudo, especialmente quando se tratava da sua filha única, dizia que Rose,
apesar de ser corajosa em todos os outros aspetos, sempre fora uma
cobarde quando se tratava de aceitar qualquer coisa que não conseguisse controlar completamente. Mavis dizia que Rose tinha sempre um pé na porta onde quer que estivesse, pronta para desaparecer
se as coisas se tornassem confusas. A seguir, Mavis dizia que a culpa
não era de Rose, mas da maneira como fora criada. Contudo,
acrescentava Mavis, ela própria conseguira finalmente assentar
num sítio, por isso Rose, se Deus quiser e o rio não transbordar –
uma das expressões que Mavis aplicava a tudo – provavelmente
teria coragem para assentar um dia em qualquer lado, também.
A sua filha não era nenhuma cobarde, dizia sempre Mavis para
concluir, com um floreado, era apenas limitada no departamento
da aceitação. Tal como ela, Mavis, fora durante os primeiros quarenta e tal anos da sua vida. Antes de ficar cara a cara com o seu
professor e se aperceber de que era melhor arranjar capacidade de
assentar se não queria estragar a sua última oportunidade de ter
uma morada permanente.
O seu professor...
– Vejo que finalmente conheceu os formidáveis Putnam,
marido e mulher – disse uma voz ao lado de Rose.
Rose virou-se e viu Iris Benson parada demasiado perto dela,
como era costume. Rose suspeitava que era uma forma que ela
tinha de lançar cada interação como se fosse uma ofensiva. Segundo
Russ, Iris Benson adorava todo o tipo de confrontos, grandes e
pequenos.
Calmamente, Rose afastou-se da arcada e colocou-se a uma
distância mais confortável.
– Olá, Iris. Como está?
Iris Benson estava vestida da cor da flor com o mesmo nome,
de roxo da cabeça aos pés. Isso também era habitual. Ninguém
diria que Iris era bonita, mas Rose achava-a atraente de uma forma
teatral – o que se adequava, tendo em conta que ela tentara fazer
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carreira como atriz durante uma década de teatro local e teatro de
verão, antes de desistir e voltar aos estudos. Iris tinha cabelo ruivo
revolto, olhos verdes, um nariz forte e maçãs do rosto altas que
estavam sempre coradas. Tudo isto se reunia num rosto delicado,
em forma de coração. Era, pensou Rose, uma boneca a chamar as
tropas para o combate. Rose gostava de falar com Iris, mas era
natural que, sendo filha de Mavis Callahan, se sentisse atraída por
pessoas mais bruscas. Gosto de conversar com pessoas que sejam uma
aventura, ouvira Rose da boca da mãe, inúmeras vezes, de trás do
balcão do bar onde estivesse a trabalhar na altura.
– Como estou? – Iris franziu a testa e lançou um olhar feroz
por cima do ombro esquerdo de Rose. – Não sei bem. Mas imagino que isso não lhe interesse mesmo. – Olhou para Rose com ar
acusador.
– Não tenho tempo para me interessar, neste momento – respondeu Rose calmamente, com um sorriso. – Sou a anfitriã do
evento.
Seria imaginação sua, ou teria Iris Benson corado ligeiramente
por trás da maquilhagem?
– Desculpe – disse Iris, inesperadamente. – Foi rude da minha
parte. E não tenho motivo nenhum para ser rude consigo. Por
enquanto. – Com estas palavras, deu meia-volta e afastou-se.
Era típico de Iris atacar, mas não pedir desculpa. Estaria tudo
bem?, perguntou-se Rose. E, se não estivesse, por que motivo havia
ela, que aqui estava há tão pouco tempo, de ser sugada pela preocupação? Com certeza que Iris tinha amigos a sério, que gostavam
de se preocupar com ela, não? Por outro lado, e Rose soltou mais
um suspiro, talvez não. Não devia ser fácil ser amiga de Iris.
Uma aluna sentada com um grupo numa das mesas atrás de
Rose soltou um gritinho, a que se seguiu um coro de gargalhadas
do grupo. Deviam estar a rir-se de alguém, claro; era o que os estudantes faziam. A compaixão florescia tarde na maioria das pessoas.
Rose virou-lhes costas e permitiu-se uma curta pausa para arrumar
as estantes. Os livros eram a principal razão pela qual trabalhava
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em livrarias, pois por mais caóticos e estranhos que fossem os mundos dentro deles, era sempre um caos finito, no qual uma pessoa
podia mergulhar em segurança sem ficar presa. Era tão diferente do
caos discreto, interminável e constante da vida real.
Empurrou vigorosamente um conjunto de livros de Emerson
que estava suspenso sobre a beira da prateleira. A simples verdade
era agora aquilo que a simples verdade sempre fora: era impossível
escapar à realidade, com todas as complexidades inerentes – por
exemplo, as outras pessoas. Tal como Mavis dizia aos seus clientes
embriagados: «A vida, meu querido, é o único jogo na cidade.»
›
Nessa noite, a sogra de Tom, Agnes Tattle, fez uma das suas
raras visitas ao escritório dele. Tom escapulira-se para cima logo
depois de jantar, anunciando que tinha de fazer umas últimas notas
para a primeira aula de Shakespeare no dia seguinte. A única coisa
que, para Tom, continuava a ser clara como água, era que tinha a
obrigação moral de ensinar da forma mais eficaz possível. Lá porque a sua vida doméstica era complicada, isso não o livrava da responsabilidade de manter as aulas novas e interessantes. Se ele não
se sentisse entusiasmado com o que estava a dizer, como podia
esperar que os alunos se sentissem?
Tom tinha realmente tirado alguns apontamentos sobre a produção da BBC de Sonho de Uma Noite de Verão, com Helen Mirren
no papel de Titânia. (Meu Oberon, que pesadelo horrível! Quis parecer-me que eu estava apaixonada era por um asno.) Contudo, quando
Agnes apareceu, percebeu que já estava há algum tempo a desenhar
rosas.
– Que raio se passa com a Marjory? – inquiriu Agnes com voz
rouca. Fumara Camel sem filtro durante anos e tinha deixado de
fumar de um dia para o outro quando se mudara para casa deles,
pois o genro era alérgico ao fumo.
O escritório de Tom ficava no segundo piso da casa, no que era
na realidade um sótão inacabado. A sala tosca que improvisara para
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si sob as empenas era quente como o inferno no verão e gelada como
um congelador no inverno. A universidade tê-la-ia mandado isolar se
ele pedisse, mas nunca o fizera. Não tinha qualquer desejo de a transformar numa sala confortável onde a mulher e a sogra pudessem
querer visitá-lo mais regularmente. À medida que os anos passavam,
estava a tornar-se cada vez mais uma Greta Garbo: quero estar sozinha. Agnes fitou-o com ar furioso da entrada, limpando o rosto com
um lenço de papel que tirara daquilo a que chamava a sua carteira,
uma espécie de mala de tecido artesanal que trazia sempre consigo.
– Está um calor infernal aqui em cima – disse, mal-humorada.
– Não percebo por que raio não trabalhas no primeiro andar, onde
há ar condicionado.
– O que é que queria saber sobre a Marjory? – Tom ignorou o
comentário sobre o calor. Ela dizia sempre a mesma coisa quando
vinha cá acima. Tom gostava da sogra. Agnes fora moldada no rescaldo dos efeitos da Depressão e da Segunda Guerra Mundial, com
todas as privações e desafios inerentes à época. Estranhamente,
licenciara-se no quadro de honra desta mesma universidade em
meados dos anos 50, em Matemática, imagine-se.
Agnes nunca se queixava das coisas grandes – como a doença
mental crónica da filha ou a sua considerável participação na Enron
– só das pequenas, como a localização do escritório de Tom. Viera
viver com eles quando Marjory piorara ao ponto de precisar de
uma acompanhante. Tom não lhe pedira ajuda. O que lhe poderia
dizer? A sua filha perdeu completamente o juízo, finalmente. A culpa
é minha porque tive uma estúpida aventura extraconjugal de três
semanas, mas apesar disso não consigo lidar com o problema. Nove
anos antes, Agnes simplesmente aparecera com uma mala dizendo
que ia ficar algum tempo. Tom ser-lhe-ia eternamente grato, apesar
de ela ter um lado autoritário que lhe dava mais um motivo para se
refugiar no sótão.
Agnes avançou um ou dois passos na sala de teto baixo e olhou
em volta como se nunca ali tivesse estado e não visse qualquer
motivo para lá voltar, outro ritual destas visitas.
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– Perguntei: «Que raio se passa com a Marjory?» Está na cozinha a fazer macarons.
Tom, apesar de tudo, apreciava uma boa oportunidade de chocar. Recostou-se na cadeira, uniu as pontas dos dedos e compôs
cuidadosamente o rosto na sua expressão mais neutra.
– A sua filha convidou uma pessoa para jantar na sexta-feira.
Os macarons devem ser para a sobremesa. Se bem me lembro, precisam de repousar um dia ou dois para atingirem o seu potencial
máximo.
Agnes ficou satisfatoriamente confusa. Olhou para o genro, de
boca aberta, durante uns bons dez segundos. Depois virou-se e,
muito devagar, retirou um monte de livros da única outra cadeira
da sala e sentou-se.
– Que diabo é que se passa?
Tom encolheu os ombros.
– Não faço ideia – disse, em tom animado. – A Rose Callahan,
a nova diretora adjunta da Livraria, apresentou-se a nós esta tarde
e, quando dei por mim, a Marjory já a tinha convidado para jantar
na sexta-feira.
– Estava bêbeda? – perguntou Agnes, inclinada para a frente,
ainda num murmúrio. – Não vejo como. Estive toda a tarde de
olho nela, até irem para a Livraria. Tanto quanto sei, passou a tarde
sentada à mesa da sala a trabalhar nos malditos álbuns de recortes.
– Os álbuns de recortes de Marjory eram manuais ilustrados da sua
patologia extravagante. Ela comprava e lia montes de revistas femininas e de autoajuda, recortava artigos sobre coisas como «Como
Manter o Seu Parceiro de Sempre Interessado na sua Mente» e
«Dez Passos para Ser Eternamente Jovem» e colava-os numa interminável sucessão de álbuns de fotografias. Agnes tentara fazer com
que a filha desistisse desse disparate há anos, mas o doutor Simms,
o psiquiatra dela, proibira-a de intervir. Os álbuns de recortes atualizados iam com Marjory a Charlottesville para as suas duas consultas semanais com o belo do doutor, as únicas viagens que podia
fazer sozinha, atualmente. Em privado, pensava Tom, o psiquiatra
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da mulher devia morrer de tédio por ter de passar duas horas por
semana com Marjory a reviver a transgressão única, de três semanas de duração, dez anos antes, do marido. Pelo menos, os álbuns
de recortes davam-lhe alguma coisa nova para ver.
Tom abanou a cabeça.
– Pareceu-me perfeitamente sóbria – disse. – Talvez o doutor
Simms lhe tenha alterado a medicação e encontrado alguma coisa
que ajuda mesmo?
– Não – disse Agnes, e encostou-se. – Não temos essa sorte.
Tom encolheu outra vez os ombros.
– Nesse caso – disse –, o ímpeto para fazer o convite e os resultantes macarons permanecerão um mistério.
Agnes fitou-o com os olhos semicerrados. Tom sabia que ela era
a sua parceira dedicada nesta complicação. Tinham estes momentos
de proximidade em que Tom sentia que, de alguma forma distorcida, ele e Agnes eram marido e mulher e Marjory a filha de ambos,
totalmente dependente. Agnes Tattle era a única pessoa que ele
conhecia que era suficientemente forte para encarar a vida de frente
e cuspir. Devia ser a Matemática na sua formação. Este realismo
corajoso não vinha de certeza do estudo da Literatura Inglesa.
– Imagine-se! – Agnes suspirou e levantou-se. À porta, virou-se
e olhou de novo para ele. Não havia realmente mais nada a discutir.
Marjory era uma questão de responsabilidade entre eles, não uma
fonte de conversa agradável. – Vou descer, destrancar o bar e beber
um whisky. Queres que te traga um?
– Não, obrigado – agradeceu Tom. Teria Agnes reparado nas
rosas que desenhara? Estava a fitá-lo com o habitual olhar inescrutável. Se alguém conseguia ler pensamentos era Agnes Tattle.
– Muito bem, professor. Deixo-te com a tua correspondência.
O envelope que Agnes retirou da sua carteira era pequeno, lilás
e embaraçosamente feminino. Estava endereçado com caneta castanha, tinha carimbo de Nova Orleães e no espaço da morada do
remetente constavam apenas as iniciais R. T. Agnes fitou Tom diretamente nos olhos enquanto lho entregava.
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– Isto chegou hoje, por correio registado. Cheguei à porta primeiro do que a Marjory, e provavelmente ainda bem.
E depois, antes que Tom conseguisse sequer pestanejar, saiu.
Não era preciso abrir o pequeno envelope. Tinha toda a noite
para revisitar um dos erros mais estúpidos que cometera na vida.
O caso amoroso de Tom Putnam fora com uma poeta de visita
à universidade, Retesia Turnball; outra mulher delicada e sonhadora, muito parecida com Marjory quando a conhecera, tão desligada do aqui e do agora que mal conseguia fazer compras no
supermercado. Retesia, que era uma poeta bastante boa, escrevera
muito sobre os seus antepassados nórdicos. O que Tom recordava
melhor em relação a ela era a sua palidez.
Retesia estava na universidade há exatamente um mês, a trabalhar corajosamente com alguns alunos demasiado egocêntricos na
transformação de angústia existencial em palavras. Na altura,
enviuvara há pouco tempo e estava a sofrer desesperadamente, e
Tom estava igualmente desesperado – desesperado por vida, por
uma ligação significativa com outro ser humano – e, por isso, ignorou a sua habitual cautela prioritária e teve sexo com Retesia meia
dúzia de vezes, no sofá do gabinete dela. Depois ela partiu sem
voltar a dar notícias – até agora – e Tom sofreu com a perda, não
propriamente de Retesia, mas de tudo o que desejara que ela fosse.
Porque seria, pensou Tom, que nessa altura se sentia tão atraído
por mulheres infelizes? Hoje em dia a infelicidade repelia-o. Estava
farto.
Escrevera uma carta a Retesia, apenas uma compilação ligeira
de acontecimentos na universidade, que nunca chegara a enviar
mas que também não deitara fora. Marjory encontrou-a, cerca de
um mês depois. Embora não houvesse nada na carta que desse a
entender que ele e Retesia tinham sido amantes, a descompensação
da mulher, que progredia lentamente há vários anos, acelerou rapidamente.
27
Dois meses depois, ela era oficialmente Louca como um Chapeleiro.
Desde então, Tom não voltara a ter sexo ou uma conversa normal e íntima com outra mulher. O castigo pela sua transgressão era
viver a vida como um eunuco enjaulado. Porque não arranjara, ao
menos, uma mulher que o fizesse rir? Porque escolhera outra alma
perturbada que, como Marjory, gritava por alguém que a salvasse?
Marjory. A sua mulher. Era uma mulher tão triste; provavelmente sempre fora. No entanto, quando casara com ela, Tom tinha
a certeza de que o casamento faria toda a diferença na vida dela.
Era tão bonita e tão perdida, esta rapariga filha da enfática Agnes e
do seu marido aviador, que voara para os céus de Del Rio numa
missão de treino da Força Aérea e nunca mais regressara. Uma falha
no motor, tinham dito à família. Um som sibilante, uma bola de
fogo e adeus.
Evidentemente, Agnes amava apaixonadamente o seu aviador,
pois permanecera convictamente solteira desde então. O aviador
deixara-a – na altura, no princípio da gravidez – com uma boa fatia
do dinheiro da família, uma bonita casa em Charlottesville e uma
vasta família por afinidade de gente dominadora com ideias ridículas
sobre feminilidade. Agnes recusara juntar-se ao clube da jardinagem da sogra e, em vez disso, entrara para a Faculdade de Direito
da Universidade da Virgínia, subira nas fileiras até ao cargo de editora da Law Review e licenciara-se com a terceira melhor nota da
turma. Segundo Agnes, a sogra ficara escandalizada.
Depois de se formar, a advogada Tattle rapidamente se tornou
a defensora das mulheres de meia-idade abandonadas pelos maridos, e deleitava-se em obrigar os filhos da mãe a pagarem couro e
cabelo pela sua deslealdade. Marjory – uma criança fisicamente
frágil – passara os primeiros anos da sua vida a ouvir as histórias da
mãe sobre homens agressivos e infiéis e a ouvi-la incentivar mulheres apagadas a terem coragem e a não aceitarem um não como
resposta. Tom conhecera a sua futura mulher no primeiro ano do
curso na Universidade da Virgínia. Marjory era uma jovem
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encantadora, patologicamente tímida, já a caminho dos trinta, que
ainda vivia com a mãe e não fazia a mínima ideia de como sobreviver sozinha. Tinham sido apresentados num evento qualquer da
Fundação Legal Aid. Tom não conseguia lembrar-se do que estava
lá a fazer, mas lembrava-se de ver Marjory pela primeira vez. Ela
parou à frente dele, timidamente, bonita como a primeira flor da
primavera, com uma gota de ponche a escorrer pela camisa branca
abotoada até acima, enquanto na aparelhagem Fontella Bass cantava «Rescue Me».
A lição mais dolorosa que aprendera no quarto de século
seguinte fora que isso não é possível. Um ser humano, com toda a
boa vontade e as melhores intenções do mundo, não consegue reparar o que há de errado noutra pessoa. Havia ainda em Marjory uma
réstia de si própria, suficiente para Tom se agarrar, mas não para se
relacionar. Pegou na caneta e desenhou distraidamente outra rosa.
O passado estava sempre ali, não era? À espera de ser resolvido e
relacionado com o presente. Ele devia sentir-se terrivelmente sozinho quando conhecera Marjory – a faculdade era tão diferente da
atmosfera descontraída de Amherst, quase de clube de rapazes. Dormira com algumas mulheres na universidade, mas eram todas de
Mount Holyoke e sabiam muito bem cuidar de si próprias. O seu
calcanhar de Aquiles, naquele ano solitário, era um desejo de se
sentir especial, não apenas mais um tipo simpático no meio da multidão. O seu desejo juvenil de ajudar a salvar o mundo distorcera-se,
de alguma forma, num anseio de salvar outra pessoa.
Agnes tentara dizer-lhe antes do casamento que a filha não era
mulher para casar. Sentara-se com ele e – tão direta neste tema
como em todos os outros – contara-lhe que faltava qualquer coisa
a Marjory, e que nem ela nem os médicos tinham conseguido fazer
nada a esse respeito. Contudo, com a sabedoria acumulada dos
seus vinte anos, Tom dissera a Agnes, em tom delicado mas firme,
que pegasse nos seus conselhos e fosse dar uma volta. A verdade era
que – Tom via-o agora claramente, sentado à sua secretária no
sótão quente e escuro – ele próprio estava um pouco perdido
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naquele tempo; era apenas mais um intelectual protegido a tentar
perceber como viver. Assim, construíra a fantasia conveniente de
que duas palhinhas unidas podiam ser uma boa vassoura.
Agnes tinha razão, claro. O casamento fora uma desgraça
desde o princípio. Marjory tinha medo do sexo, medo de estar com
pessoas, medo de estar sozinha e de ser abandonada. Tom franziu a
testa e espetou a ponta da caneta na rosa mais recente. Era tão fácil
ver agora que devia ter fugido durante o primeiro ano, quando
ainda era evidente para todos – e, mais importante ainda, para si
próprio – que o problema de Marjory, fosse ele qual fosse, não era
culpa sua. Mas ela era tão bela e desesperada, e repetia-lhe constantemente o quanto estava a esforçar-se, e ele ficou nesse ano, e no
seguinte, e no seguinte, e depois tornou-se difícil não sentir que
alguns dos problemas eram, de facto, culpa dele.
Tom olhou pela pequena claraboia para o grande céu vazio.
Enfim, pensou. Não adiantava agora enervar-se com a necessidade
de os deuses se rirem às custas da humanidade. Como Van Morrison diria: Não é porquê, porquê, porquê, porquê; é o que é. Se não
fosse Agnes, pensava Tom às vezes – geralmente ao fim da noite,
quando cedia ao seu lado melodramático depois de dois whiskies
– já se teria enforcado no sótão só para fazer qualquer coisa diferente. A verdade era que dera cabo da sua vida e não podia fazer
nada a esse respeito.
O pequeno envelope quadrado lilás que tinha na mão pareceu-lhe quente. Que raio. Uma carta era uma carta. Porque não
lê-la já e despachar o assunto, fosse ele qual fosse?
30
Querido Tom,
Sei que isto será provavelmente uma grande surpresa, mas
espero que não seja uma má surpresa. És pai de um menino de
dez anos chamado Henry. No seu décimo aniversário, que foi
há três semanas, informei também o Henry deste facto. Há
muito que ele queria saber quem era o pai, mas guardei essa
informação para fazer uma espécie de ritual de passagem
quando ele completasse os dez anos.
A minha vida mudou completamente nos últimos anos, e é
agora muito mais satisfatória e empolgante. A mudança foi
desencadeada pelo facto de eu ter compreendido que a poesia é
para fracassados. Comecei a escrever romances e tenho sido extremamente bem-sucedida. Escrevo com um pseudónimo (que é
também agora o meu nome legal) que não precisas de saber
qual é.
Seja como for, o meu agente e a editora estão a preparar
uma digressão de «palestras» e, em vez de vir comigo, o Henry
decidiu ir viver contigo.
Ambos achámos que seria melhor fazer-te uma surpresa,
por isso vou colocar o teu filho num comboio que sai de Nova
Orleães e chegará a Charlottesville às 7h09, na segunda-feira
dia 5 de setembro.
Não tentes procurar-me. Segui em frente com a minha vida.
Voltarei a contactar-te no fim da digressão ou pouco depois.
Cumprimentos à Marjory.
Com afeto,
Retesia
Tom apertou o papel e olhou para a mão. Não fixara nada
depois da segunda frase, aquela onde se anunciava que ele tinha
um filho chamado Henry. Só com grande esforço conseguiu desbloquear a mente o suficiente para pensar em alguma coisa, que,
naturalmente, foram duas linhas reconfortantes de Shakespeare.
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Uma feliz paródia da própria vida. É preciso que a natureza acate
as ordens dadas pela necessidade.
Poderia Retesia estar a inventar tudo isto? Haveria algum
motivo para duvidar desta bomba?
Não, na verdade não havia. Para uma poeta, Retesia revelara
uma estranha falta de imaginação. Se Retesia dizia que ele tinha
um filho, era porque ele tinha um filho.
Sábio é o pai que conhece o seu próprio filho.
Um filho! O seu filho!
Algo oculto nas profundezas de Tom começou a abrir caminho
à força em direção ao primeiro plano da sua consciência apinhada,
e esse algo parecia ser, inesperadamente, entusiasmo.
Concentrou-se de novo na carta. O que não parecia de todo
coisa de Retesia era a tinta castanha e o papel lilás. Se bem se lembrava, ela adorava Emily Post que, no que dizia respeito às regras de
etiqueta, fazia com que a coluna da senhora Manners parecesse
descontraída. Mas quer o papel e a tinta fossem ou não habituais
para Retesia, a carta tinha de ser dela, porque Tom, Retesia, Marjory e Russell (a quem, impulsivamente, confidenciara os seus problemas depois de Marjory ter encontrado aquela carta ridícula)
eram as únicas pessoas no mundo que sabiam que ele e ela tinham
feito aquilo que é necessário para gerar uma criança.
Vinha alguém a subir as escadas. Tom enfiou imediatamente a
carta debaixo da almofada da cadeira e esperou. Não era Agnes; os
passos eram demasiado hesitantes. Pelo som, parecia ser Marjory,
mas Tom não se lembrava da última vez que ela estivera ali em
cima. Marjory referia-se sempre ao «escritório» de Tom entre aspas,
como se o verdadeiro objetivo da divisão na vida do marido fosse
bem conhecido mas não se pudesse falar nele. Oh, porquê, porquê,
pensou Tom, submetendo-se a uma vaga derrotista. Por que motivo
tinha Marjory de ser tão implacavelmente instável? Quem sabia o
que faria ela quando Henry aparecesse?
Sem pensar, Tom pegou no bloco onde estivera a desenhar as
rosas e virou-o ao contrário. As suas fantasias dessa tarde tinham
tido lugar noutra vida.
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– Tom?
Anjos do Céu, correi em nosso auxílio! Era mesmo Marjory. Tom
levantou-se num instante.
– Entra! – disse, em tom demasiado animado. – Que boa surpresa.
Marjory tinha a capacidade das pessoas diferentes para interpretar as reações dos outros e encolheu-se sob a força da receção.
Com uma das mãos, começou a beliscar a pele da outra.
– Sei que venho interromper – disse.
– Claro que não – respondeu Tom, contendo os últimos vestígios de animação. Fez um esforço para se aproximar com passo
lento e cuidadoso da mulher, como se ela fosse um pássaro a tremer
sobre a relva. Quando chegou junto dela, levantou o braço e tocou
na mão que beliscava a outra. – Entra e senta-te. Por favor.
Puxou-a para a cadeira. Marjory não tirou os olhos do chão,
seguindo os movimentos dos seus próprios pés. Sentou-se na beira
da cadeira. Mesmo sob a luz fraca, Tom viu que ela retocara cuidadosamente a maquilhagem para esta visita. Quando lhe largou
a mão, esta começou imediatamente a dançar entre as pregas da
saia.
Tom sentou-se na cadeira da secretária e rodou lentamente
para se virar para ela. Não havia qualquer sentido em tentar fazer
conversa de circunstância. A mulher não teria vindo cá acima se
não tivesse um motivo sério. O esforço era demasiado.
– Sim? – disse, no seu tom mais amável. – Precisas de alguma
coisa, minha querida?
Marjory ergueu o rosto até os seus olhos encontrarem os dele,
e falou apressadamente:
– Só queria dizer que gosto muito da Rose Callahan e que acho
que ela será uma boa amiga para nós os dois. Acho que ela também
precisa de amigos. – As palavras pareciam ensaiadas, como se as
tivesse escrito e decorado depois de pôr os macarons no forno.
– Como? – Tom estava aturdido. Para Marjory, as outras mulheres eram ameaças, não boas amigas.
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Obedientemente, Marjory repetiu:
– Queria dizer que gosto muito da Rose Callahan. Acho que
ela será uma boa amiga para nós os dois. Acho que ela também
precisa de amigos. – Depois, maravilha das maravilhas, sorriu, sorriu genuinamente, e acrescentou: – Estou contente por ela vir cá
jantar. Acho que vou fazer esparguete.
Este discurso efusivo era, talvez, a maior e mais agradável
bomba que Marjory lançara nesta última e longa década de vida
em comum. Tom tinha a certeza de que a mulher estava a tentar
dizer-lhe algo tremendamente importante; muito mais importante
do que anunciar que ia fazer esparguete. Mas o que quereria dizer
com a parte de Rose Callahan precisar de amigos? Isso, pensou
Tom, era ridículo. Rose Callahan era, obviamente, uma pessoa
muito autossuficiente. Além do mais, toda a gente na universidade
parecia ter engraçado de imediato com ela.
Marjory continuava a olhar para ele, com os olhos invulgarmente focados.
Que foi agora?, pensou Tom.
– Sim, minha querida?
– Ainda bem que gostas dela – disse. – E quero que saibas que
compreendo perfeitamente... – Marjory hesitou e baixou os olhos
até parecer que estava a falar com o terceiro botão da camisa de
Tom. – Aquela outra coisa. – As últimas palavras foram um murmúrio quase ininteligível.
Tom não fazia ideia do que ela estava a falar. Ter-lhe-ia finalmente perdoado a aventura com Retesia?
– O que disseste, querida? Acho que não compreendi.
Marjory escondeu de novo as mãos nas pregas da saia e olhou
para elas.
– Nada. As coisas importantes que queria dizer eram sobre esta
tarde e sobre o esparguete.
Tom pensou que algo verdadeiramente significativo devia ter
tido lugar entre a sua mulher e Rose Callahan, nessa tarde. Só
podia ter sido quando Marjory parara e, obstinadamente, insistira
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em virar-se para trás. Na altura, Tom ficara bastante irritado. Queria que Rose Callahan pensasse – mesmo que por pouco tempo –
que eles eram um casal normal, com uma vida normal.
– Esparguete parece-me boa ideia – disse, decidindo concentrar-se em questões menos perturbadoras.
Marjory levantou-se. Ou dissera tudo o que tinha a dizer, ou
faltava-lhe a coragem para dizer mais.
– Sendo assim, vou andando – disse, novamente num murmúrio. – Sei que tens muito trabalho a fazer.
E, com estas palavras, saiu apressadamente e desapareceu. Tom
ouviu-a descer os degraus e fechar a porta ao fundo da escada do
sótão. A casa ficou de novo tão silenciosa como se estivesse desabitada. Rompendo o silêncio, ouviu o som leve de uma ária a entrar
pela pequena janela aberta. Amor perdido, ao som de música.
Vinha da casa dos vizinhos, um casal simpático, sem filhos, ambos
do Departamento de Música, que estavam a viver a agonia dos
tratamentos de fertilidade.
Tom ficou sentado por algum tempo, a olhar para a porta. Tentou, sem sucesso, aceitar que era pai de um menino de dez anos.
Tentou, sem sucesso, pensar se a mulher se teria apercebido disto, de
alguma forma. A sua mente permaneceu resolutamente vazia – um
estado que era familiar a Tom, e bastante confortável. Ocorria quando
ele precisava de uma pausa da estupefação e não tinha nada de tranquilizador em que pensar. Era sinal de que devia deixar de tentar
resolver as coisas, pelo menos durante algum tempo. O que havia
para resolver, de qualquer maneira? Não podia, por mais que isso o
afetasse a ele ou a Marjory, dizer a um rapaz de dez anos que o pai
não queria ter nada que ver com ele. Embora a carta de Retesia não
lhe fizesse lembrar em nada a poeta delicada que conhecera, Henry
vinha a caminho. Amanhã, ele, Tom, acordaria, iria para as aulas
como se a vida fosse, entre aspas, «normal», e depois voltaria para casa
e despejaria esta complicação nas mãos capazes de Agnes.
Também não valia a pena tentar perceber a visita de Marjory.
Seria para sempre uma fonte de espanto indecifrável. Contudo,
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Tom não pôde deixar de pensar na extraordinária afirmação de
Marjory, sobre a necessidade de amigos de Rose Callahan. Lembrava-se de uma afirmação igualmente estranha que ela fizera uma
vez sobre Russ. Do nada, Marjory erguera os olhos dos seus álbuns
de recortes, uma noite, e dissera:
– O Russell tem segredos, sabes? É por isso que ele é assim.
E depois continuara calmamente a recortar um artigo da revista
Glamour. De longe a longe, Marjory fazia este tipo de declarações
extremas sobre outras pessoas, também, e todas exceto a que se referia a Russ – por enquanto – se tinham revelado extraordinariamente
exatas. Era como se a mente das outras pessoas emanasse um cheiro
que só Marjory conseguia sentir.
A ária distante mudou para um dueto distante com um tom
muito mais alegre. Talvez o amor perdido tivesse sido reencontrado? Tom parou de olhar para a porta e virou-se para a janela
quadrada e vazia. Uma gota de suor deslizou-lhe pelo queixo e caiu
em cima do bloco virado. O leve som sobressaltou-o e arrancou-o
ao seu estado de suspensão. Virou o bloco e olhou para as rosas que
desenhara. Eram antiquadas, como as que se poderiam encontrar
no jardim do palácio de Monticello, caules curvos e graciosos e
flores simples. Cheirariam a maçãs e a ar puro e a romance.
Rose. Rose Callahan. Russ tinha razão, ela não era bonita. Era
um quadro de Modigliani; o rosto demasiado comprido; o nariz
demasiado torto; o cabelo – para usar a sua palavra preferida, retirada dos romances de Patrick O’Brian – todo desgrenhado. Mas
não havia nada contraído, cruel ou mesquinho naquele rosto nada
bonito. Ela tinha uma vivacidade, uma presença, que sacudira e
despertara uma parte dele que estava adormecida há décadas. Com
um mero encontro casual, a excêntrica Rose Callahan transportara-se para o centro do coração de Tom.
O seu rosto sorridente dançou sobre o bloco de notas de Tom,
a olhar de baixo da nuvem de cabelo, não para ele, mas para Marjory. Há anos que ninguém se dava ao trabalho de ser verdadeiramente simpático com Marjory. Não valia a pena. Marjory conseguia
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pegar no que qualquer pessoa lhe dissesse e transformá-lo num
embaraço. Contudo, Marjory reagira à simpatia de Rose com
um convite devidamente formulado. Duraria o decoro de Marjory
um jantar inteiro? Provavelmente não. Mas talvez todos devessem a
Marjory o direito de tentar mais uma vez. Parte dele continuava a ser
ferozmente protetora em relação à mulher, contra tudo e todos,
menos o seu próprio desespero. E, por algum motivo, independentemente das balas errantes que Marjory pudesse disparar, Tom
tinha a certeza de que Rose Callahan não seria menos simpática
com ela do que fora na Livraria.
Pegou na caneta e desenhou cuidadosamente outra flor. Vi bem
o ponto em que caiu a flecha do travesso Cupido...
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CAPÍTULO 2
R
ose virou-se para cima na cama e olhou para o estuque do
teto. O dia de hoje parecia estar a começar da mesma forma
que o dia de ontem tinha acabado, na companhia de Marjory Putnam. Assim que o despertador tocou, ali estava ela outra vez, com
o seu vestido florido de mangas em balão e gola abotoada, a virar-se
a dez passos de distância para a fitar com aquele olhar; o olhar que
deixava perfeitamente claro a Rose que esta mulher sabia algo sobre
si que ela própria desconhecia.
Mavis sempre dissera que as pessoas que passavam muito
tempo em bares desperdiçavam imensa energia a evitar a verdade
sobre si próprias. Uma vez que não era preciso a sabedoria de Salomão para ver que Mavis era ela própria uma mulher sábia, Rose
jurara bem cedo nunca desperdiçar um único segundo a iludir-se a
si própria. Então o que raio lhe teria passado despercebido sobre si
que Marjory Putnam vira?
O relógio na mesa de cabeceira avançou implacavelmente. Se
queria fazer a sua corrida matinal, tinha mesmo de se levantar.
Rose afastou as cobertas, saiu da cama e dirigiu-se à casa de banho
com passos abafados pela carpete. Quando lá chegou, acendeu o
candeeiro ornamentado por cima do lavatório e olhou para o seu
reflexo no espelho.
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