Estágio no Planeta Terra

Transcrição

Estágio no Planeta Terra
Estágio no Planeta Terra
Aristides Coelho Neto
Arte da capa e ilustrações do Capítulo 8: Eugênio Barboza
Motivos da capa: João Evangelista, de Ceschiatti e Memorial JK, de Oscar Niemeyer
Fotos: Aristides Coelho Neto
Copyright: todos os direitos reservados ao autor
1ª edição impressa: julho de 1998
2ª edição impressa: janeiro de 2000
3ª edição (virtual): novembro de 2004
4ª edição (virtual): março de 2009
ISBN 85-7238-047-7
Ficha catalográfica da 2ª edição
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Coelho Neto, Aristides
Estágio no Planeta Terra/Aristides Coelho Neto. Brasília: Linha Gráfica
Editora Ltda., 2003.
158 p.
Passagem de um extraterrestre pelo cotidiano de uma família terráquea.
1. Vida extraterrestre. 2. Ficção 3. Espiritualismo. 4. Espiritismo. I. Título
CDD: 133.9
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Agradecimentos
a Marcos Bresolin, que só opinou sobre os primeiros capítulos. Lerá
com certeza o restante lá na Espiritualidade. Ou em Zênidon.
a Leda Vigier, Natércia Paiva, Luzita Pedrozo e Telma Sousa, um
último impulso concreto para a edição, nos idos de 1998.
a Elise, Érica, Leandro, Aline e Daniel – esposa e filhos queridos que,
em muitos momentos, protagonizam estas páginas.
A Gilson Freire, que em 2009, brindou-me com uma avaliação
primorosa da parte técnica que ensaiei abordar neste livrinho. E tudo indica
que vou precisar reformular muitos conceitos aqui empregados sobre
Astronomia, Cosmologia etc.
a Deus, Pai Amoroso e Compassivo que, como se não bastasse tudo o
que já me deu, ainda permite essa minha estranha lucidez de misturar humor
e coisa séria, numa mensagem alternativa para a virada do milênio...
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Quarta capa
Rovi, um extraterrestre especialíssimo, teria vindo de Zênidon, planeta muito
evoluído, diferente da Terra, que ainda não conseguiu um equilíbrio harmônico entre
o desenvolvimento científico e o moral.
Sabe-se que o nosso ET passou por aqui e registrou sua presença nos corações de
todos.
E o relato de suas experiências está em Estágio no Planeta Terra, um livro recheado
de humor, entremeado de mensagens sérias sobre nossa inadiável transformação
interior. Seu enredo flutua por fronteiras sutis, entre a realidade e fantasia.
Alguns dizem que de fantasia não tem nada...
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É possível a imaginação resultar, muitas vezes, das nossas próprias experiências
psíquicas. Pois obra de ficção é isso – combina lembrança com intuição. Se verossímil
ou não, depende da impressão que nos causa. A realidade é o que sentimos na alma.
Estágio no Planeta Terra compõe-se de três níveis: (1) o da narrativa em si – tema,
enredo e linguagem –, com bom padrão de estilo e qualidade artística, (2) o da
doutrinação ou tese espiritista-ufológica – de André Luiz a Ramatís – e (3) o do perfil
psicológico, intelectual e cristão do autor e de sua simpática família.
Livro agradável, de leitura fácil e interessante. Autêntico e ousado, em tratar de modo
natural e coerente, sem mistificações, assuntos complicados, de Bergson a Giordano
Bruno.
JARBAS JUNIOR, escritor, poeta, professor de literatura
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Sumário
Cap. 1 - Num ponto distante do universo
Cap. 2 - Rovi: um zenidoniano na Terra
Cap. 3 - Terra: um planeta complicado
Cap. 4 - Aguardando sinal de Zênidon
Cap. 5 - Zênidon atendendo
Cap. 6 - Órion, um comandante muito especial
Cap. 7 - Uma aula diferente
Cap. 8 - Era uma vez, muito longe daqui
Cap. 9 - A hora da decisão
Cap. 10 - Marmelada de terráqueo
Cap. 11 - Reflexões oportunas
Cap. 12 - Programando o tempo
Cap. 13 - Cidadão-cristão
Cap. 14 - Arrumando as malas
Cap. 15 - Uma viagem proveitosa
Cap. 16 - O mês sem Rovi
Cap. 17 - O retorno de Rovi
Cap. 18 - Uma luz no fim do túnel
Cap. 19 - Na hora do adeus
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CAPÍTULO 1
NUM PONTO DISTANTE DO UNIVERSO
Dia especial. Até os sóis pareciam brilhar diferente. Aquela região do planeta Zênidon
sempre fora muito bonita. Mas um sol quase encoberto pelas nuvens e outro como que
espiando no horizonte, produziam um colorido singular e encantador. Do amarelo ao
vermelho, nuances surpreendentes, pinceladas de anil, completavam o espetáculo. A brisa
afagava os cabelos azulados de Rovi, carregando um perfume suave, mescla de todos os
aromas das flores orvalhadas da manhã.
Muitas coisas agradáveis e ansiosamente esperadas faziam com que a sensibilidade de
Rovi estivesse mais aguçada. Afinal, fazer 119 anos, não era todo dia! E justo na véspera,
recebera o comunicado de que seu nome tinha sido selecionado para o estágio interplanetário.
Que se apresentasse no dia seguinte ao Centro de Ambientação. Que levasse junto seu pai ou
sua mãe.
Hamer, o pai de Rovi, dirigia e entreolhava o filho. Compartilhava sereno da alegria do
rapaz. O veículo levitava rápido. Já era possível avistar o Centro...
Eram mais de duzentos jovens como Rovi, de 105 a 126 anos, a obter detalhes daquela
empreitada cobiçada anualmente por milhares de zenidonianos — contatos interplanetários do
terceiro grau.
As leitoras de identidade, ao serem acionadas logo na entrada, permitiam o fluxo
rápido rumo ao auditório da ala lateral, onde todos os estagiários receberiam as instruções.
As paredes dos corredores de acesso fechavam-se em arco na parte superior. Parecendo
contrariar a lei de gravidade do planeta, da junção das paredes, um efeito visual, provocado
por um líquido multicor em suspensão. Sons bizarros emanavam de todos os pontos, o que
fazia Rovi supor que eram de mundos distantes. E eram.
Hamer e Rovi seguiam naturalmente as indicações luminosas. A sessão prometia ser
rápida e objetiva. Numa grande cúpula transparente ao centro do auditório começaram a
surgir imagens tridimensionais. Um mundo fascinante se abria para os espectadores. Nas
laterais, painéis mostravam dezenas de planetas diferentes, propiciando antever a experiência
que cada jovem viveria.
— Pai, e se eu for para outra galáxia? – perguntou Rovi, num tom que deixava
transparecer nitidamente um natural receio.
— Rovi, é bem provável que o planeta destinado a você pertença a outra galáxia. Mas
não há motivos para se preocupar. Você levará o mesmo tempo para deslocar-se para
qualquer ponto do universo. Nós estaremos atentos e protegendo-o, mesmo à distância.
Planeta daqui ou dali, não faz diferença.
Hamer puxou Rovi para junto de si carinhosamente. A apresentação continuava. A
parte superior do auditório mostrava um mapa luminoso onde o cosmo era representado com
perfeição. Música suave ao fundo. Tinha-se a sensação de que todos estavam a bordo de uma
nave interplanetária.
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Em dado momento, apagam-se todos os pontos. Penumbra. Surgem apenas, em várias
cores, os planetas habitados eleitos para o estágio, com o propósito de identificar cada grupo.
O de Rovi seria indicado quando a cor coincidisse com a do cartão que recebera. Sabia-se que
a distribuição era aleatória. Em instantes, cada jovem teve conhecimento do lugar para onde
se deslocaria. Hamer acertara. Rovi iria para outra galáxia. Seu planeta: a Terra.
— Deu tudo certo? – foi a pergunta quase em uníssono de Leinah, a mãe, e Tâmis,
irmã de Rovi, quando ele e Hamer chegaram em casa.
— Vamos para o jardim – disse Rovi. — Mil coisas para passar para vocês.
Rovi enlaçou a cintura de Leinah, puxando Tâmis pela mão, descendo os três para
sentar-se à sombra acolhedora de uma árvore no jardim superior. Hamer colocara o veículo no
reenergizador solar, para em seguida juntar-se aos três.
Num clima de tranquilidade, tudo o que acontecera no Centro de Ambientação foi
repassado à mãe e à irmã por Rovi. Viajaria para o planeta Terra, situado a 3 milhões de anosluz de Zênidon. A viagem dar-se-ia por meio da Câmara de Transferência de Matéria,
indicada para longos percursos. Era o chamado deslocamento horizontal, que permitia
incursões pelo espaço, dentro do presente, ou seja, sem a variável tempo. E não haveria
problemas de assimilação de linguagem. A explicação era muito simples: as construções
mentais precedem as palavras. Rovi tinha, aliás, como todos os zenidonianos, perfeito
controle da transmissão telepática. Em tempo reduzidíssimo ligaria as elaborações do
pensamento às palavras, isso em qualquer idioma, dominando a utilização e compreensão de
todo o vocabulário onde quer que estivesse. E em questão de grau evolutivo, Rovi tinha
ascendência sobre os terráqueos, segundo informaram no Centro de Ambientação. Isso
facilitava as coisas.
Zênidon abrigava uma sociedade singular, que havia alcançado um alto grau de
desenvolvimento científico-tecnológico e moral, ao mesmo tempo. Seus habitantes eram
fraternos. O amor imperava no planeta, impregnando cada coração. Há milênios o mal deixara
de existir.
— E os terráqueos, verão e compreenderão você, Rovi? – indagou Tâmis, curiosa.
— Pouco provável, Tâmis – respondeu Rovi –, mas isso dependerá da frequência em
que eles estiverem emitindo ondas de pensamento. Alguns poderão até ver. Alguns somente.
Rovi poderia, ou não, estabelecer contato com os seres da Terra. Dependeria de um
fator – a sintonia. No entanto, pela densidade diferente de matéria, ele estaria em uma
dimensão invisível. Rovi veria os terráqueos, mas estes não enxergariam Rovi. Foi a vez de
Leinah:
— Será exigido algum relatório, meu filho?
— Claro. Dez relatórios, no mínimo, terão que ser feitos – esclareceu o jovem.
— Não serão apenas descritivos: obrigatoriamente terei que usar de um senso crítico,
dando minha opinião sobre tudo. Mas são relatórios simples e informais, podendo ser
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endereçados a você ou papai, por meio do Transmissor de Impressões. O Controle de Estágio
aproveitará esses mesmos relatos.
— Muito bem, muito bem! Quando você parte, meu filho? – perguntou Leinah,
tentando imprimir naturalidade à conversa.
— Daqui a dois dias – complementou Hamer, que já havia se aproximado.
— Sentirei muito a falta de vocês – acrescentou Rovi, com os olhos úmidos.
Não conseguiu prosseguir, pois as palavras saíam embargadas pela emoção que tomava
conta dele... e de todos.
Encerrava-se a pequena reunião familiar. Preparativos tinham de ser feitos. Além do
mais, alguns amigos certamente viriam abraçar Rovi pelos 119 anos. E o nosso jovem deveria
estar com os presentes à mão. Em Zênidon o aniversariante não recebia e sim dava presentes.
Em todos eles, haveria certamente o toque carinhoso e pessoal de Rovi.
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CAPÍTULO 2
ROVI: UM ZENIDONIANO NA TERRA
Hamer, Leinah e Tâmis acenam do visor situado à esquerda de Rovi. O contêiner em
que ele está deitado é transparente e os três estão sob o seu alcance visual. Os controles já
foram acionados e em instantes o processo de transferência terá início. Rovi ainda tem tempo
de levantar a mão e retribuir o gesto de despedida. Uma vontade de chorar incontrolável. Não
consegue se conter.
Antes que as luzes violetas que inundam o ambiente ofusquem Rovi, ele sente um
impulso como se estivesse sendo projetado para trás e para baixo. Sente ainda que flutua
como se estivesse num grande caleidoscópio, deslocando-se num túnel luminoso de cores
indescritíveis, a uma velocidade vertiginosa. A perda dos sentidos parece iminente. Uma leve
pressão nas têmporas provoca um aparente efeito de redução, como se estivesse se
transformando na menor partícula de matéria que já pôde existir na face de Zênidon. Não se
apavora. Confia. Apesar de diferente, é tudo muito agradável. Desfalece.
...
Rovi abre os olhos. Não há luz no ambiente; apenas a claridade externa. A sensação de
torpor está passando. Está na Terra. Um planeta, aprendera, todo dividido em regiões bem
demarcadas, chamadas países, com pessoas e culturas peculiares. Um planeta heterogêneo,
que prima pelas diferenças sociais, pelos contrastes. Nos meios de se buscar a felicidade, uma
diversidade impressionante. Terra de belezas naturais que emocionam os mais sensíveis, mas
de guerras de interesses que podem levar à destruição. Lugar em que convivem também
pessoas que já descobriram que a sua paz interior está intimamente relacionada à felicidade
do próximo.
O país em que Rovi se encontra, situado no hemisfério sul do globo, chama-se Brasil.
A cidade é Brasília, a capital, centro das decisões político-administrativas do país.
E um ser peludo olha para ele. Parece detectar a sua presença, apesar da escuridão.
Sente medo, apesar do tamanho reduzido daquele ser. Não há dúvidas de que é vivo, que se
locomove e o pior – anda em sua direção. Quando chega perto de Rovi põe-se a abanar o toco
de rabo. Cordial, abaixa-se aos pés de Rovi, apoiando a cabeça sobre as patas dianteiras. Rovi
tem a nítida impressão de estar sendo percebido. E mais que isso: sendo saudado por um
animal dócil e amigo, apesar de estranho.
— Obrigado pelas boas-vindas, amiguinho. Sei que você me entende.
Rovi está numa habitação elevada do solo, formando um conjunto a que se dá o nome
de bloco de apartamentos.
Agora um blim-blom. Em segundos, acende-se uma luz e passa por Rovi um homem
em direção à porta da sala. Abre.
— Olá, Adriano! – exclama Danilo. — Desculpe-me bater a essa hora. Acordei você?
— Só um pouco – responde Adriano, sonolento. Vamos entrar!
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— Não, obrigado, prometo ser rápido. Você pode me emprestar duas garrafas de
refrigerante?
— Claro, espere um pouco. Vazias, não é mesmo? – nota-se que ele brinca com o
amigo.
— Não! Cheias, por favor! Estou com visitas e com preguiça de sair para comprar.
— Hmmm. Só um instante.
— Devolvo amanhã. Obrigado.
— Cheias?
— Vazias, óbvio! Ah! Ah! Ah! Boa noite!
— Sabidinho. Tchau.
Adriano difere razoavelmente de Rovi. Este nota pequena nuance na tonalidade da
pele. Os olhos também. São castanhos e da cor dos cabelos. As orelhas não são afiladas na
parte superior, nem levemente, como as de Rovi. Se fosse um zenidoniano, dir-se-ia que
aparenta uns 250 anos de idade. Adriano fecha a porta e percorre de volta o mesmo caminho
que havia feito. Vai apagando as luzes ao passar. Rovi o segue curioso. Em um primeiro
quarto, dois meninos dormem. Em outro, duas meninas. No último quarto, onde Adriano se
deita, uma mulher, que Rovi supõe ser a companheira dele. A cama é diferente das de
Zênidon.
Em poucos minutos, Adriano está dormindo. Toca o telefone. Adriano estende o braço
por sobre Lis e atende.
— Sim! – a voz de sono é indisfarçável. O dia não tinha sido fácil.
— É da Ótica Fanny? – do outro lado da linha uma voz feminina estridente.
— Não, minha senhora, pode ter certeza que não é da Ótica Fanny. E tem mais: a
senhora sabe que horas são? São duas horas – agora a impaciência de Adriano é também
indisfarçável.
— Sei perfeitamente! Sei também que fecha para almoço e abre às duas. Aliás, que
espécie de funcionário é o senhor que pergunta as horas para o cliente com essa arrogância
toda?
— Minha senhora! Aqui não é ótica, não sou funcionário e são duas horas da manhã,
m-a-n-h-ã. Eu costumo dormir neste horário!
— Puxa! Desculpe! É que quando tenho insônia eu perco um pouco a noção...
— Um pouco?... Essa é ótima! Bem, tome um suco de maracujá, relaxe e espere até o
sono chegar, sim? Boa noite!
— Um momento! Onde vou achar maracujá a estas horas?
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— Sinceramente, não sei. Que situação! Eu ou a senhora estamos precisando rezar
mais. Ou os dois, quem sabe?
— Não sei não... Domingo eu rezei praticamente das oito da manhã até nove e meia.
Foi o suficiente para a semana toda.
— Isso é discutível! Mas não importa agora. Escute. Se a senhora não tiver pressão
alta, que tal um cálice de licor de jenipapo? Vire de uma vez e aguarde.
— O senhor não se enxerga? Devia saber que não bebo álcool!
— Eu me enxergo sim! Tanto é que não estou procurando ótica como a senhora. E às
duas da manhã! Como eu iria saber que não toma álcool?
— Pela voz sóbria, ora bolas!
A essa altura o tom de Adriano começa a se alterar, e bem no ouvido de Lis. Resolve
finalizar:
— Se não pode com álcool, que tal as alternativas gasolina ou diesel? Boa noite, de
verdade.
Rovi percebe tratar-se de dois combustíveis. Acha estranha a recomendação.
E Lis só pegou o final.
— Era da Petrobras, meu bem? – pergunta ela, acendendo o abajur e olhando a hora no
rádio-relógio.
— Não, Lis. Eu falava de indutores do sono para robô. Coisa de maluco. Durma,
durma bem, que amanhã eu conto tudo. Beijo.
E pensa:
— Eu não fumo, mas acho que é nessa hora que o artista de telenovela da Globo
acende um cigarro para desanuviar...
Resolve ir até a cozinha tomar um leite gelado. Rovi estava aliviado. Desejou a todo
instante que aquele diálogo não se deteriorasse mais ainda. Quando Adriano retorna, Lis
também está voltando do quarto das meninas.
— O que foi ?
— Era Liane... doendo a garganta – responde Lis. — Dei-lhe uma pastilha. Perguntei
se doeu a garganta durante o dia. Ela afirmou que doía toda vez que pronunciava palavras
com acento agudo! Às vezes até com acento circunflexo...
Os dois não contêm o riso. Apagam as luzes de novo. Essa fase de Liane, realmente,
era interessantíssima. A alfabetização e sua influência nas amígdalas...
Adriano não consegue dormir. Resolve ler um pouco. Corre o dedo nas lombadas dos
livros da estante, parando no título A Vida nos Mundos Invisíveis, de Anthony Borgia.
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Enquanto pega os óculos de leitura, reflete na sua intolerância. Coitada daquela senhora. E se
fosse uma senhora de idade? Ele também ia ficar velho um dia. Logo pega no sono.
Mais meia hora e dispara uma buzina.
— Adriano, acho que vem da garagem. Parece a do nosso carro – alerta Lis sem abrir
os olhos.
De pijama, calça os chinelos, cambaleando de sono. Lá vai Adriano rumo à garagem.
Rovi não perde a chance e vai junto. Tudo é novidade. A sua experiência promete ser
fantástica. São três e meia. A buzina intermitente faz com que, enquanto anda, Adriano
medite sobre uma velha teoria sua. Tanto carro buzinando de dia, de noite, sem necessidade.
É descuido, é alarme defeituoso. Raramente é ladrão mesmo. Já avião, que precisava ter
buzina, não tem. Aquele caso em que um monomotor desceu em pane, absoluto silêncio, e
atropelou uma mulher... Se tivesse buzina...
Chega na garagem, que fica no subsolo do edifício. Nada! O som havia cessado. Sobe
ao pavimento térreo. Acorda o vigia. Este não sabia de nada, e ainda pergunta:
— O senhor está chegando agora? – como se Adriano andasse passeando à noite, fosse
ao cinema, sei lá, de pijama e de chinelos de dedo!
— ...
Adriano volta ao elevador. A buzina novamente! Toca o botão de emergência, inverte
o curso, volta à garagem. Conseguira dar o flagrante: era o carro do coronel Mesch do andar
de baixo. Volta ao vigia e avisa. Mas o homem está confuso, atendendo a chamados de um
punhado de condôminos que, logicamente, já haviam acordado com o estardalhaço. Não deve
ter prestado atenção no que Adriano dissera.
Ao terceiro disparo da buzina, Adriano decide resolver o caso de uma vez por todas.
Ele mesmo vai ao apartamento do proprietário, toca a campainha e avisa. No ouvido, um
zumbido. Aquele barulho estridente incomodara até Rovi, um espectador de outra dimensão.
Felizmente não há buzina em Zênidon...
Quando entra em casa, Adriano pega a máquina de escrever, uma folha de papel e
começa: "Senhora síndica".
Faz o relato do acontecido, considerando um absurdo que não se possa contar com um
vigia com iniciativa, que resolva sair da guarita e ver o que acontece de anormal no bloco.
Élida, a filha mais velha, surge na sala.
— Pai, respeito muito essa sua mania de escrever. Mas, por que não está no
computador? Não acha que esse plec-plec incomoda a essas horas?
— O computador está com vírus. Você disse “mania”? Não lhe parece meio
patológico? Ma-ni-a?!
— Desculpe, mas estou sem meu dicionário pra procurar o que é patológico. Papai, dá
um tempo, tá? Boa noite.
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— Estou na última frase. Acabo logo.
E Adriano finaliza:
"Senhora síndica, o vigia não sabia de onde vinha a buzina, e nem fazia esforço para
tal. Queria apenas dormir! E eu estava incomodando! Pelo jeito não saberia nem mesmo se
era buzina de carro, de avião ou de navio. Cordialmente, Adriano".
Desabafara. Agora, dormir!
São seis e meia, domingo. Rovi observa, da varanda, o amanhecer. Está admirado! É
maravilhoso! Quase tão fascinante quanto o de Zênidon! Pudera, é o mesmo Criador!... Não
iria discriminar a Terra.
Nosso extraterrestre sabe que depois da carta à síndica, Adriano não mais conseguira
dormir.
O interfone toca e Adriano, novamente em cena, vem atender. É Lucas. Haviam
combinado de ir à chácara.
— Lucas, sinceramente, você faz muita questão que eu vá?
— Claro, Adriano, se não formos nós, quem vai orientar a turma do mutirão? Vamos
lá, deixe de ser preguiçoso, você só pensa em dormir?
— Está bem, está bem, lá vou eu. Não dá nem pra explicar como foi a minha noite.
Adriano desliga, atravessa a sala para fechar a porta da varanda. É nesse exato
momento que pisa no cocô de Sleepy, o pequeno cão. E estava descalço...
"Eles aqui dormem pouco, parece. Fiz duas tentativas frustradas de comunicação com
terráqueo pela transmissão de pensamento. A primeira, quando Adriano foi ríspido com uma
senhora ao telefone. A segunda, quando registrava uma queixa quanto a um funcionário que
presta serviços à sua comunidade. Tentei sugerir ponderação e tolerância, mas não
consegui! Não houve sintonia. Senti alguma receptividade da parte de um animalzinho que
vive na casa em que estou e acabei por concluir que...
Desculpem. Muito cedo para concluir coisas. Nem expliquei o que é telefone. E nem
expliquei quem é quem. Se o relatório ficar confuso, vocês sabem... é o primeiro! Acho
melhor até ignorá-lo. Voltarei a transmitir. Rovi".
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CAPÍTULO 3
TERRA: PLANETA COMPLICADO
Passaram-se três dias desde a chegada de Rovi. Ainda não saiu de casa, da casa em que
está, logicamente. Tem observado atentamente a rotina da família, a personalidade peculiar a
cada um. Tem acompanhado as programações de televisão, analisado os livros e revistas
disponíveis na casa. Consegue ler os livros sem abri-los. Sobre seres extraterrestres, verificou
ser o assunto um prato cheio para os temas de histórias em quadrinhos. Da varanda teve a
sensação de ter visto seres que poderiam ser até mesmo de outros planetas, como ele. Não
pôde confirmar. Se fosse verdade, estariam eles também provisoriamente na Terra? Quem
sabe, em missões semelhantes à sua...
Rovi já assimilou a nova forma de contagem de tempo. Cada sete anos em Zênidon
corresponde a um ano somente na Terra. Seus 119 anos de idade correspondem a dezessete,
aproximadamente, neste planeta ainda um tanto confuso para seu modo de entender.
Foram necessários quase dois dias para aprender a ler em português. Nas horas vagas
resolveu aprender inglês também. Inglês foi mais fácil, graças a alguns livros que achou e
àquele dicionário da estante...
São sete horas de uma manhã fria de Brasília. Léo e Liane estão se encaixando nas
pesadas mochilas, em direção à escola. Élida já se foi: o ônibus passa às 6 e meia. Lis está às
voltas com André, o caçula, que não quer deixar o aconchegante cobertor. Adriano tenta
emendar a resistência do chuveiro que parou de funcionar quando ele já havia se ensaboado.
— Pai, tem cinco minutinhos? – pergunta Léo, já de mochila, entrando no banheiro. —
Mamãe disse que a minha redação sobre os animais está muito fraca. Veja se concorda. E
Adriano põe-se a ler em voz alta:
“OS ANIMAIS.
Você já percebeu que:
Sempre dá zebra quando acontece o que não se esperava?
O cara é cegonha quando tem as pernas compridas?
É baleia ou elefante quando tem peso em excesso?
É gato quando tem medo de água?
Faz gato quando se mete a improvisar?
É gatão quando as meninas suspiram por você?
É cobra quando domina o assunto?
É um leão quando tem fibra?
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É um cachorro quando falta caráter?
É macaco quando só faz o que os outros fazem?
É papagaio quando fala demais?
É um cavalo quando age com brutalidade?
É porco quando não toma banho?
É pato quando o fazem de otário?
É víbora quando despeja veneno em tudo?
É coruja quando fica dando muita atenção?
É um dragão quando exagera na feiura?
Você já percebeu que é burro ou anta quando demora a perceber?
Se não existissem os animais para fazermos comparações, já imaginou os problemas
que íamos ter de comunicação e expressão?!"
— Você deve ter levado bem uns dez minutos para fazer essa formidável redação, não?
– indaga Adriano, colocando o alicate sobre a pia.
— Bem, um pouco mais...
— Caso alguém demore a perceber, ou seja, não entenda a linha de abordagem que
você tomou, aliás muito criativa, vai ser tachado, certamente, de anta. E esse alguém pode se
ofender. Se o alguém for o professor, você está em maus lençóis. E as divisões em espécies?
Você poderia falar sobre isso. E a importância dos animais? E os animais que estão em
extinção pelas ações predatórias daquele outro animal "inteligente" chamado homem? Faltou
pesquisa. Até mitologia você misturou. O último dragão foi fulminado por São Jorge. É pra
hoje essa redação, espertinho?
— Pra depois de amanhã.
— Ainda bem, você vai ter tempo, não é, filhote de Homo Sapiens?
— Tchau, estou indo – despede-se Léo. — Esse seu senso crítico exagerado acaba de
me criar um problema a mais. Vocês, sinceramente, não me compreendem – acrescenta, com
uma expressão enigmática.
Adriano ficou em dúvida se era expressão de desapontamento realmente ou
malandragem premeditada. Talvez a segunda hipótese...
— Adriano, estou indo. Saio com a belina? – pergunta Lis, apressada.
— Você vai andar muito? Se for, é melhor com a belina. Está com quase meio tanque.
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— Deixo André na escola, vou ao hospital Sarah Kubitschek combinar uma
apresentação do Coral, ao Anexo do Buriti fazer uma cobrança, possivelmente ao Pedregal,
atrás de uma empregada. Pode ser frango no almoço?
— Óbvio que sim – responde Adriano.
— Beijo.
— Tchau, já-já estou saindo também.
Parece ser o dia ideal para Rovi efetuar o seu primeiro contato com o exterior. Sairá
com Lis para uma visão de reconhecimento. Tem certeza de que o passeio será agradável,
principalmente porque percebe em torno de todos da casa, inclusive Lis, cores agradáveis,
promissoras. Rovi tem muita facilidade para “ler” as emissões luminosas que envolvem as
pessoas, e que variam de cor e tonalidade, segundo o estado emocional e psíquico de cada um.
Já notou que essa característica sua de percepção não é comum à família terráquea.
Na saída, um pequeno contratempo. Lis não consegue acionar o motor do carro. O
zelador deu uma mão para a máquina ser acionada. E lá se vão os dois: Rovi sentado no banco
da frente, atento à paisagem que desfila através da janela. Lis, imaginando-se sozinha...
Rovi analisa com interesse o tipo de aparelho mecânico que os leva. Motor à explosão,
deslocamento sobre rodas. Estranhíssimo! E todos os veículos expelem uma substância que,
em grandes quantidades, certamente comprometeria o organismo dos habitantes da Terra. E
que barulho fazem!
Lia no pensamento de Lis as identificações por onde passavam. W-3 Norte, Eixo
Rodoviário. Interessante aquele teatro em forma de tronco de pirâmide. A catedral, o jardim
imenso da esplanada, os ministérios alinhados sobriamente, palácios, cúpulas. Rovi adorou as
pombas e os cisnes, estranhos e graciosos animais tão diferentes dos de seu planeta! O jovem
zenidoniano sente uma sensação agradável ao circular por aquela cidade que irradia uma
energia muito grande. Como que visiona Brasília a abrigar no futuro uma civilização
revolucionária em termos humanitários. Sente que isso pode acontecer a médio prazo. Capta
inexplicavelmente uma responsabilidade enorme sob os ombros dos protagonistas do futuro:
os integrantes da nova geração. Rovi, mais uma vez, emociona-se, interessado em cada
detalhe da cidade.
Quando dá por si, Lis passa pela Torre de TV. Está fazendo um caminho
completamente estranho em direção ao hospital. No próximo retorno retoma a direção e
prossegue. Rovi fica até um pouco constrangido por ter sugerido mentalmente aquele roteiro
"turístico" a ela. Mas Lis não se irritara com o fato: sua aura, que continua da mesma cor,
denuncia isso.
Lis estaciona o carro e entra no hospital Sarah, em direção à secretaria. Rovi sobe
junto. Entendeu que era um centro de reabilitação de pessoas com os mais diversos problemas
motores. Crianças, adultos, velhos, sob a orientação de técnicos especializados, exercitavam-
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se para recuperar movimentos e atrofias diversas, ou para adaptar-se a uma nova condição
limitada de locomoção.
O jovem de cabelos azulados deixa Lis por instantes, percorrendo todos os andares do
edifício. Aberrações das mais variadas era o que não faltava. Rovi está perplexo! Em
Zênidon, problemas físicos dessa ordem já haviam sido superados há milhares de anos. Hoje,
os zenidonianos são dotados de uma organização biofísica acima de quaisquer perturbações
em sua compleição. Problemas emocionais são raros, ainda têm, é verdade. Mas orgânicos,
não!
A visão de um garoto que havia perdido as duas pernas em acidente faz com que
lágrimas rolem dos olhos de Rovi. Senta-se na cama do menino, passando-lhe suavemente a
mão sobre a cabeça. Na cama ao lado, um paciente tetraplégico, vítima de uma bala perdida.
Ao reencontrar Lis, Rovi ainda está abalado. Sente a importância de se levar algum
alento àquelas pessoas pela música, como era intenção dela. Tratava-se justamente de agendar
uma data para que um coral cantasse para os pacientes. Nosso jovem entendia que qualquer
tipo de atenção para com os internos era bem aceita. E os zenidonianos, como ninguém,
sabem que a música é uma manifestação da divindade. Ela leva paz e harmonia a quem ouve.
E tem o poder de operar transformações.
Nos olhos de cada um, corações fragilizados pela própria e delicada situação, um misto
de solidão e carência afetiva. Um quê de tristeza, de expectativa, de esperança. Nota uma
coisa altamente positiva: receptividade completamente aflorada, fruto da reflexão que a
imobilidade física, a reclusão e o sofrimento acabam provocando.
No retorno ao carro, novo contratempo. Dois garotos ajudam a empurrar o carro até
que o motor gire novamente, Lis quase perde a paciência.
Trezentos metros depois, o motor apaga bem debaixo de um viaduto. Agora, sem
ninguém para ajudar. Rovi sai rapidamente à procura de alguém que os auxilie. Enquanto isso
Lis se reporta à época em que ela e Adriano tentaram vender o carro. Não que tencionassem
dispor dele. Era necessidade de dinheiro imediato, e a venda era a solução. Duas semanas
anunciando e ninguém sequer vinha ver o veículo, quanto mais aceitar o preço pedido. Já
indignado com o descaso que faziam em relação àquele carro "incrível" – segundo Adriano,
joia rara, ora vejam, da indústria automobilística –, ele pôs aquele anúncio extravagante. Lis
se lembrava perfeitamente do texto, possivelmente dirigido a colecionadores de cacarecos:
"Belina 76. Carro de colecionador. Se você conhece carro, mesmo que não tenha
dinheiro, traga pelo menos a vovó, titia, as crianças para conhecer. Vale a pena! A lataria,
os pneus, o motor... E vai ficar morrendo de vontade de comprar, lamentando-se com seus
botões, mas isso passa... Ela é impecável, 'the best one'. Cor: verde-hortelã do sul da
Finlândia. Tratar com Adriano.".
Não cansava de dizer que Adriano está na profissão errada. Hortelã! Sul da Finlândia.
Ora, vejam só...
— Bom dia, minha senhora!
16
Lis dá um pulo. Era um senhor que, gentilmente, estava se oferecendo para ajudar.
Rovi sorri. Foi até rápido em conseguir alguém sensível aos seus apelos mentais.
Alguns minutos depois:
— Se a senhora tentar, agora o motor vai pegar. A bobina estava superaquecida. Passe
em uma loja de peças e compre outra. Até logo, um bom dia pra vocês.
— Muito, mas muito agradecida mesmo, meu senhor! Deus lhe pague a gentileza.
Arranca com o carro. Já havia perdido muito tempo, pensa. Ainda bem que surgira uma
alma caridosa. Interessante, o homem desejou um bom dia "para vocês"... E ela estava só...
Devia ser muito importante... e valia por duas! Rovi sorri.
Já no edifício Anexo do Buriti, enquanto Lis sobe ao sétimo andar, Rovi aproveita para
dar uma olhada nos jornais expostos na banca de revistas. As notícias internacionais e as
páginas policiais, as colunas políticas, as notas de economia geraram nele um grande malestar. Pessoas muito sensíveis poderiam ficar em pânico ao ler semelhantes matérias.
Vai ao encontro de Lis. Sobe pelo elevador. Cada companheiro de cabine, no rápido
percurso vertical, é analisado pelo nosso extraterrestre. Nota diferenças culturais e sociais
acentuadas. Em cada um, preocupações das mais diversas. Mas o problema maior parece ser a
dificuldade de sobrevivência.
Diálogos curtos, todos falam ao mesmo tempo, no rápido percurso, dando margem a
muita reflexão:
— Pois é, a gasolina subiu de novo. Deu no jornal! – diz o rapaz dos cabelos
compridos.
— Ora, Mário, subiu faz dois dias!
— É que eu só leio jornal velho, por isso! Novo, nem pensar: é o preço de dois litros
de leite!
— E aí, João Carlos, foi buscar o carro novo? – pergunta o senhor de terno e gravata.
— Peguei ontem. Estou instalando o som!
— Viu só o juro daquele agiota que veio aqui outra vez oferecer dinheiro? – comenta a
garota de jeans.
— O pior é que a gente precisa! O salário da gente não dá pra nada! – balança a cabeça
o rapaz mais alto de todos.
— Aquele coitado do Antônio, parece que vai passar uns quarenta dias lá no Sanatório!
Assistência médica, psicológica, espiritual e o que comer! Não pode querer mais nada! –
comenta o homem do bigode grande.
— O pessoal da Ásia resolveu explodir mais uma bomba, você viu? – lembra-se o
ascensorista.
— Nem sei o que é pior, se a guerra nuclear ou a tal da guerra química! Deus nos livre!
17
— Imagine agora como fica o local em que explode um homem-bomba.
— Abriu um bar ótimo na Asa Sul! – entusiasma-se o homem de colete.
— Foi abrir e fechar! O cirurgião falou que não tinha jeito e chamou a família – é o
comentário que se ouve da elegante senhora, dirigindo-se à amiga de cabelos encaracolados,
no fundo do elevador.
Ao descer com Lis, perto do carro, uma senhora com uma criança de aparência
esquálida estende a mão com a palma para cima. Rovi havia visto uma igual na foto dos
jornais, numa reportagem sobre o sofrimento de um país africano. Lis passa para ela uma
maçã e meia dúzia de bananas das que acabara de comprar numa feira das imediações. Rovi
não entende tais contrastes. Pergunta a si mesmo por que o desenvolvimento tecnológico, até
razoável no planeta, não caminha com a consciência social e o espírito fraterno? Por que
tantas diferenças?
Já são dez horas da manhã. Lis hesita em ir ao Pedregal, pelo avançado da hora. Mas
decide por ir. O frango do almoço, poderá comprar por lá mesmo.
Estranhíssimo! Que culpa tem o galináceo? Rovi estranha, em sua leitura mental, que
os terráqueos se alimentem de animais.
Lis procura por um endereço anotado num papel. A rua demonstra carências materiais
muito grandes. A visão das casas naquele local revela uma disparidade enorme com a das
residências que vira em Brasília. Quando Lis localiza a candidata a emprego, já são quase
onze horas. Enquanto conversa com a moça daquele barraco feito com restos de madeira e
papelão, Rovi, sempre curioso, anda pelas redondezas, observando, sempre em análise crítica,
ensaiando suas conclusões.
Ao retornar, Lis está entrando sozinha no carro. Lendo os pensamentos dela, percebe
que não houvera sucesso na negociação. A moça pretendente ao emprego não queria cozinhar,
não gostava de passar roupa e queria sair para o fim de semana às sextas, logo após o almoço.
Dois salários mínimos, não! Recusava-se. E Lis percebera que, pelo jeito, nem almoço
haveria naquele barraco precariíssimo, tamanha a penúria. Se Rovi não estava entendendo
uma série de coisas, Lis, por sua vez, também não concebia determinados raciocínios das
pessoas. Quase sessenta ajudantes domésticas se sucederam nos últimos quinze anos na casa
de Lis. Serviçais domésticas eram coisa de país de terceiro mundo, como o Brasil. Quanto não
tentou fazer por elas! O envolvimento sentimental é inevitável. E somente uma meia dúzia
correspondera realmente. Lembra-se, uma delas saiu de casa no colo de Adriano direto para a
sala de cirurgia. Gravidez tubária rompida! Quase morreu, e eles também, de susto! Quando
tudo já estava bem, nem um obrigado! Bem, aprendera que deveria sempre fazer o bem sem
olhar a quem, independentemente de reconhecimento ou não. Mas é tão bom quando alguém
se mostra sensível... Que saudades da dona Delma, da Ana, da Luzinete, da Joana, da Regina,
que tanto corresponderam1. Quanto lhes devia pelos desvelos, principalmente com os filhos.
Mas Lis estava se exercitando para se conformar com esse tipo de dificuldade, e se
adaptar, sem rancores. Fazer o bem, sem olhar a quem, como dizia a vovó Mariangela.
Esperar reconhecimento era um vício que a gente precisava deixar de lado, já dizia a tia Nezi.
Afinal, nunca houve, pensando bem, caso em que se arrependessem por ter ajudado alguém!
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Ao chegar em casa, conta à mesa as aventuras com a belina. Léo não perde a
oportunidade de referir-se a ela, enquanto dá um gole no suco de laranja.
— Pai, você sabia que não deve deixar o verdão estacionado perto da lixeira, como fez
ontem?
— Por quê? O condomínio proíbe?
— Não, corre-se o risco de os lixeiros levarem de madrugada!
Todos se divertem, menos Adriano:
— Não gostei.
"Decorridos poucos dias do início do presente estágio, já é possível um retrato da
triste realidade do planeta.
Li num jornal que foi feita uma pesquisa reveladora: mais de dois terços dos entrevistados
não acreditam na sinceridade da classe política. As ações dos representantes da sociedade os
têm levado ao descrédito. Interessante que, no que diz respeito à representatividade, não há na
Terra um representante único, um governador do Planeta, ou uma junta, como em Zênidon! As
grandes potências vivem em constantes disputas para assumir o controle da Terra, e de uma
maneira primitiva, pela força, velada ou ostensivamente.
Os povos mais 'desenvolvidos' possuem arsenais que podem reduzir o mundo a um deserto
em minutos.
A conquista do espaço já começou, mas a conquista dos valores morais foi adiada, penso
eu. Regiões inteiras passam fome. Existem crianças que contraem doenças simples, facílimas de
serem curadas, em condições normais. No entanto, o organismo debilitado pela fome não tem
forças para reagir. E elas morrem – acreditem e pasmem – de fome, praticamente!
Apesar dos grandes avanços da engenharia genética, das crescentes possibilidades que
as novas descobertas na área da informática acrescentam, das recentes pesquisas com célulastronco, dos recursos da tomografia, ultra-sonografia, ressonância magnética, cintilografia, a
medicina por vezes tem se revelado impotente, pelo menos a curto prazo, quanto a novos males
que conseguem driblar todos os avanços até hoje conseguidos.
Eu poderia continuar falando muito sobre crise econômica, política, moral, sobre
violência urbana, desesperança, frustração, falta de perspectiva, medo do futuro, mas prefiro
parar.
Gostei das pessoas que conheci. Adriano, Lis, André, Liane, Léo e Élida são ótimos!
Adriano e Lis têm de 250 a 260 anos, dos nossos, de idade. André sei que tem 28, Liane, 49, Léo,
84 e Élida, 105. Senti um carinho por eles como se já os conhecesse há muito tempo. Imperfeitos,
mas procurando acertar.
Que me perdoem se estou sendo precipitado – no primeiro relatório também fui
precipitado, reconheço –, mas estou pensando seriamente em desistir de meu estágio. Não é
ainda a palavra final, mas o planeta Terra não é, nem de longe, o que eu pensava encontrar.
Será que não estou preparado? Rovi".
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CAPÍTULO 4
AGUARDANDO SINAL DE ZÊNIDON
— Papai, compra um elefante pra mim? – pergunta André, entrando no quarto de
Adriano e Lis, de supetão.
— Justo um elefante, André? – rebate Adriano, sentando-se na cama e puxando o
garoto para o seu colo. — Você já não tem o Wanderley e o Luís Felipe? Papagaio, cachorro
e agora um elefante? – complementa, sorrindo, chamando a atenção de Lis para os rumos da
conversa.
André tem quatro anos. Deixa-se convencer com certa facilidade, o que incentiva
Adriano a prolongar o diálogo.
— A essa hora, sete da manhã, é muito difícil conseguir um elefante. E tem mais:
elefante tem dificuldade para entrar no elevador, faz cocô muito grande e não vai dar certo
aqui no apartamento.
— Está bem. – concorda André. — Cocô de elefante é "mais gande" do que eu...
A gargalhada é geral, despertando a curiosidade de Liane e Léo, que chegam logo,
querendo participar.
— Pai, quando você for a Natal de novo, você me traz um broche de elefantinho? –
indaga Liane. — Quero usar com os brincos que você já me deu.
— Pai, – indaga Léo, por sua vez – por que aparece tanto elefante naquele artesanato
de Natal que você trouxe?
— Não sei não. Será que é pelo fato de ser uma região do Brasil das mais próximas da
África? – brinca Adriano. — Mas não vá você concluir que se trata de um animal nativo
simplesmente porque usam muito no artesanato de Natal. Se fosse assim poderíamos até
concluir que maçã é fruta típica do nordeste: tem tanta maçã nos supermercados de lá... Léo
aproveita o bom humor e dá asas à imaginação:
— Já pensou se naqueles morros de que você falou, nos arredores de Natal, tivesse
elefante? O problema maior seria quando eles despencassem das florestas lá de cima. Cada
queda, uma ou duas casas destruídas.
Adriano não perde a chance:
— E colocar o elefante de volta em seu hábitat seria uma das partes mais difíceis
dessa história maluca. "Vocês quatro, empurrem a perna direita. Vocês dez aí, cuidem da
tromba. Agora! Respirem fundo! Cuidado! Os oitenta juntos, força!"
Do banheiro, Lis aproveita a deixa e acrescenta:
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— Para vocês refletirem em quanto Deus é sábio! Nunca melancias em árvores
grandes, para não cair na cabeça das pessoas. Nunca elefantes nas montanhas, para evitar
esses transtornos...
— Paiê, André e eu sonhamos esta noite com um garoto que tinha os cabelos azuis... –
muda de assunto Liane.
— Só me faltava essa! – acrescenta Adriano, enquanto penteia os cabelos. — Que cor
interessante! Você e André tiveram o mesmo sonho?
— Pouca diferença no sonho do André. No dele tinha coelho, piscina, chocolate. No
meu, a gente via um céu lindo, e o mar. Era uma viagem. E eu voava junto com o moço de
cabelos azuis. Ele é muito legal! Mas o rapaz era o mesmo do sonho do André, pelo jeito que
ele descreveu...
— Hmmm! – faz Adriano, dando um beijo de despedida.
Já passa da hora de ir à luta, como costuma dizer. Adriano não dá muita importância ao
que ele julga ser fantasia de Liane.
Rovi, que sempre tem estado por perto, achou interessante a forma pela qual Liane e
André registraram a sua presença. Cada qual assimilou o fato de uma forma diferente e
própria, de acordo com o seu repertório. Aliás, Liane tem sete anos (49, na contagem de
tempo do rapaz zenidoniano), é três mais velha que André, o que influi sobremaneira. E na
recodificação da mensagem, ao passar para outrem o que viu no sonho, esbarra então nas suas
aquisições, nas suas conquistas no campo cultural e evolutivo. São duas dimensões bem
distintas – a que Liane e André estão, e a Alfa-3, em que Rovi está, invisível para a grande
maioria dos habitantes do planeta. Só que quando estão dormindo, desprendidos do corpo, os
terráqueos transitam, praticamente, pelo mesmo mundo etéreo em que Rovi se encontra.
No caso do sonho, se André percebe Rovi em condições agradáveis, o seu cérebro, ao
traduzir a situação depois de desperto, ligará o fato a outra coisa agradável, dentro do seu
mundo de uma criança de quatro anos. E segundo seu estado emocional, suas expectativas, e
de acordo com seu estágio de evolução espiritual. Ao conversar num lugar aprazível, à beira
de um lago, sob um céu multicor, extravasando sensações de afeto, André poderia "filtrar"
esses acontecimentos incluindo piscina, animais graciosos, o que lhe apraz, enfim. Ou um
mundo de fantasia em cenário de tevê. Tudo é muito relativo... Com Liane, a mesma situação
pode tomar uma roupagem completamente diferente. Há de se considerar também que no
sonho as impressões que o espírito recebeu não aconteceram por meio dos órgãos corporais.
Durante o percurso até o trabalho de Adriano, Lis comenta:
— A conversa estava animada... O assunto era elefante, mas você devia ter falado do
tatuzinho que você teve quando criança. Quais são mesmo aquelas suas preferências
estrambólicas em matéria de animal?
— Elefante, golfinho e pinguim. Nada mal, não? – responde incontinenti Adriano. —
Todos passíveis de serem criados em apartamento, apenas com um certo desconforto.
— Mas do Wanderley e Sleepy você gosta também, não?
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— Wanderley e Lu-ís Fe-li-pe – corrige Adriano. Sleepy2 é apenas apelido. Gosto
muito, sim!
— Luís Felipe, você quem inventou o nome – emenda Lis sorrindo.
— Adriano, lembra-se do cachorro da Elisabete? Estava evacuando avermelhado.
Ficaram com medo de parvovirose e levaram ao veterinário. O bichinho já está medicado. Só
que o pai dela retirou todos os preços dos remédios antes de chegar em casa, com vergonha de
que a empregada visse o valor absurdo gasto com o animal. Adriano, você iria ao veterinário?
– pergunta Lis, em teste declarado.
— Em caso de doença iria ao clínico geral, lógico!
— Adriano! Estou falando do papagaio e do cachorro, não de você!
— Bem, Lis, eu relutaria, pra início de conversa. Gastar com animal, com tanta gente
carente... Se tivesse remédio caro na história, eu também tiraria os preços. Igual, igualzinho!
Mas, pensando bem, não seria melhor aproveitar a chance e mandar empalhar o bicho?
— Duvido que você deixasse de atender a um animal indefeso – conclui Lis
categórica. — Logo você... fascinado por animal quando criança! Ou as pessoas mudam a tal
ponto?
— Naquele tempo era tudo mais fácil. Eu morava em uma casa e não em apartamento.
Ter animal não dava trabalho. Hoje é diferente, não acha? E ademais, agora sou adulto, mais
frio e mais desalmado... Gosto de animal, mas com molho branco, limão e tudo o mais.
— Pode parar! Você está impossível hoje! Jogando muita conversa fora.
São seis da tarde. Rovi resolveu passar a tarde com Adriano no trabalho. Está triste, e
numa expectativa muito grande: espera qualquer tipo de comunicação de Zênidon, em virtude
de seu último relatório, que traduzia a sua angústia e a sua decepção com o planeta Terra. E
até agora, nada! Foi pensar e, naquele exato momento, um sinal intermitente no Transmissor
de Impressões chama a atenção de Rovi. Três luzes lilases estão acesas no painel do bracelete
que envolve o seu pulso. Isso significa que o Controle de Estágio fará contato nas próximas
vinte e quatro horas. Seu relatório deve ter sido convincente... Decorre tanto tempo porque 3
milhões de anos-luz não são vencidos diretamente nas transmissões. Os sinais são
realimentados na Base Estelar de Harif, a meio-caminho de Zênidon.
A chance de receber comunicação de Zênidon funciona como uma transfusão
momentânea de ânimo. Toca o telefone. É para Adriano.
— Pai, sou eu, Léo. Problemas! Wanderley voou lá pra baixo e está machucado. Aliás,
está mal. Venha para cá, por favor.
Vem à mente de Adriano a conversa que tivera com Lis ainda naquela manhã...
Adriano chega em quinze minutos. Afinal, era uma emergência. Wanderley está dentro
de uma caixa de sapatos. Assustado, não firma a pata. Mexer nele e o louro grita. Era a
segunda vez que Wanderley tentava um voo do quarto andar. Desta vez havia aterrissado mal,
e sobre a calçada, em vez de sobre a grama, como da primeira tentativa rumo à liberdade.
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Já haviam conseguido até o telefone de uma clínica veterinária, mas aguardavam uma
providência de Adriano.
— Adriano, faça alguma coisa! Olhe como o pobrezinho está! – diz nervosamente Lis.
— Mas por que eu?! – indaga Adriano, sob os olhares de expectativa de todos.
— Tio, esse telefone é o da veterinária que cuidou da minha gata. Ela é legal! –
esclarece Murilo, um dos amigos de Léo, que presenciou o acidente.
— Quem é legal? A gata ou a veterinária? – pergunta Léo.
Adriano não concorda, absolutamente, com aquilo que acha excesso de zelo. Mas não
resiste aos olhares fulminantes. Resolve discar. Pergunta o preço da consulta e também se
vale a pena investir tal quantia num animal. Pura ingenuidade, pois a veterinária não perde a
chance de admoestá-lo educadamente:
— O animal não é do senhor? Ele não vai conseguir se cuidar por si só. O senhor é
responsável! Apararam-lhe a asa? Então deveriam tê-lo deixado preso, a salvo de acidentes.
A voz enfática e acusadora do outro lado da linha ficou ressoando lá dentro de
Adriano. Ele não se sentia bem em ver um animal preso...
Em vinte minutos, Adriano, Léo e Murilo estão sentados na sala de espera. Num canto
da sala, uma gata que, segundo a dona, andava assumindo atitudes estranhas e muitas vezes
agressivas quando estava no cio. No outro sofá, um minúsculo pointer. Caíra da janela do
carro e estava com a perna imobilizada. Viera para uma reavaliação.
Léo, Adriano e Murilo sentados pacientemente. Adriano no meio, com uma caixa de
sapatos sobre os joelhos...
— Quem diria! – pensa Adriano. — Numa clínica veterinária...
— O que houve com ele? – pergunta um rapaz, aproximando-se interessado.
Não faltam explicações de todos, numa perfeita reconstituição do ocorrido. Adriano
fica impressionado com as mãos do rapaz, com vários arranhões e defeitos nas unhas de dois
dedos.
Após o pointer, é a vez de Wanderley. Entra a "comitiva" com a caixa de sapatos.
Parecia clínica de gente... Até um prontuário é preenchido.
— Wanderley com W? – pergunta a médica.
— W no início e Y no final. – responde Léo, orgulhoso do W e do Y.
— O que aconteceu com o nosso rapaz? – continua a médica.
Adriano estranha o "rapaz". Apenas sorri, discretamente, mantendo a seriedade...
Novamente, detalhes incríveis do acontecimento trágico com o louro. Wanderley está
calado, nem parece o mesmo. Após novas anotações, o exame, sobre uma mesa de metal. Para
segurar o papagaio, entra aquele mesmo rapaz das mãos estropiadas. Era ele quem se dava à
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ingrata tarefa de segurar os animais para os exames e tratamento. As mãos, logicamente, eram
as partes do corpo mais maltratadas...
Depois de ser palpado minuciosamente, Wanderley toma uma injeção. Difícil segurar o
"rapaz". Os sons não são mais de papagaio – quem ouve diz que é um cachorro que está sendo
atendido, em meio àquele nervosismo todo. Adriano está firme, pois sabe que tudo que está
sendo feito é necessário para o bem-estar do animal.
Ao final da consulta, Adriano faz um cheque. Antes, ainda pergunta se tinha algum
convênio e se o INSS cobria pelo menos uma parte do valor da consulta.
— Não! O senhor há de convir que se trata de supérfluo na visão de uma entidade de
previdência do governo. Embora eu não pense assim – acrescenta.
Uma medicação é passada. Adriano tentou manter a linha até o momento, levando a
sério aquela consulta em que os animais são tratados como se fossem humanos.
— Wanderley está com um traumatismo na articulação da coxa, e como o senhor sabe,
é difícil imobilizar a perna de um papagaio – diz a veterinária. — Mas não é nada grave.
Wanderley deve tomar esta medicação aqui. Basicamente, o que ele precisa é de repouso.
— Repouso?! – pergunta, admirado, Adriano.
— Sim, repouso!
Silêncio a princípio. Só que nesse momento Adriano perde a compostura e desanda a
rir daquela situação muito particular. A veterinária tenta se conter mas não consegue. Ela,
Adriano, Léo e Murilo3 às gargalhadas. Wanderley4 olha para um e para outro sem entender,
obviamente, o que está acontecendo. Rovi também acha a situação muito engraçada.
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CAPÍTULO 5
ZÊNIDON ATENDENDO
— E você, acredita em disco voador? – indaga Élida, enquanto ajuda Lis com o pacote
do supermercado.
— Élida, minha filha, existe vida em outros planetas. A lógica nos diz que devem
existir civilizações mais atrasadas e outras mais evoluídas que a nossa. É necessário haver,
igualmente, meios avançados de transporte para aqueles seres que visitam mundos que não os
seus. São naves, não necessariamente discos – esclarece Lis.
— Só que você está partindo da hipótese que existe vida em outros planetas... –
acrescenta Élida.
— O próprio Cristo disse: há muitas moradas na casa de meu Pai. Dentre outros
sentidos, podemos concluir que "a casa de meu Pai" a que Ele se referia é o universo. Os
mundos são as diferentes moradas. Cada morada abriga seres, aglomerados em função de seu
grau de adiantamento.
— Ora, mamãe, você quer dizer que nós aqui na Terra estamos todos no mesmo nível
de evolução? São tantos crimes, estupros, roubos...
— Estamos na mesma faixa. Uma cor, por exemplo, o azul, admite infinitas
tonalidades. Do azul bem claro até o mais escuro. Dá para entender? Concorda que quanto
mais escuro o azul, mais ele se parece com o preto? Se fossemos azuis, por exemplo, seríamos
cada um com uma tonalidade de azul.
— Azuis? Ninguém é azul.
— Ora, querida, estou fazendo uma comparação com o nosso grau evolutivo. Nós
todos, dessa faixa, temos um pouquinho de bom e um pouquinho de ruim. Temos que cultivar
a parte boa e conter a parte ruim. Essas pessoas que maltratam ou cometem crimes contra o
semelhante apenas não conseguiram fazer germinar o que têm de bom dentro deles.E não
conseguiram sufocar o que têm de ruim... Bem, mas o Criador, infinitamente sábio, nos
coloca no lugar que merecemos, melhor dizendo, que conseguimos conquistar. Voltando ao
tema vida em outros mundos, supondo que nós estivéssemos sozinhos, isto é, fôssemos os
únicos seres inteligentes neste universo incomensurável, qual a razão de tamanho privilégio
por parte da Criação?
— Você fala com tanta certeza! Eu, hein... Quanto aos discos, dizem que algumas
pessoas conseguem ver e outras não. Como é? – continua Élida.
— Sinceramente, não sei responder. Mas de uma coisa eu tenho certeza: é ingenuidade
nossa esperar que seres de outros mundos sejam feitos do mesmo tipo de matéria que a nossa.
Assim sendo, os objetos deles, tais como as naves, podem ser invisíveis aos nossos olhos,
concorda? Vou mais além: constituídos de outra espécie de matéria, teriam condições de viver
não só em planetas, mas também em estrelas – aventura-se Lis, ciente da afirmação ousada.
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— Se Einstein, ou mesmo o Stephen Hawking, estivessem aqui, com certeza iriam
convidar você pra jantar. Sua teoria, com a deles, "daria samba"...
— Minha querida, do que eu lhe falei, pouca coisa é teoria minha.
Rovi tem vontade de ajudar com os pacotes, mas é impossível. O máximo que pode
fazer é emitir ondas positivas para que ninguém escorregue e se machuque. Os terráqueos são
muito frágeis!
— Olá, meus filhotes queridos! – diz Lis, abaixando-se para abraçar André e Liane,
que já se aperceberam que Élida e Lis chegaram.
Sleepy imediatamente deita-se de barriga para cima, aguardando que alguém o afague.
Wanderley agita-se no poleiro.
— Liane, terminou o dever?
— Tudinho! Estou com André assistindo televisão.
Televisão. Rovi havia meditado muito sobre esse veículo de comunicação, o que
proporcionava elementos para mais um relatório. Rovi se recolhe ao quarto de Léo,
meditando ainda sobre o que Lis havia dito há pouco sobre a vida em outros planetas.
"Não sei qual tipo de comunicação devo receber de Zênidon. O ideal para mim seria
poder conversar com alguém... Tenho sentido falta de dialogar, de expor minhas observações
e ouvir algo sobre elas. No que diz respeito aos animais do planeta tenho pesquisado muito
sobre eles. A família de Lis e Adriano possui uma ave que imita a voz humana. Sua cor é
igual à dos vegetais. Há um outro espécime, chamado cachorro, que é muito expressivo e
amigo. Às vezes tem-se a impressão de que ele está a um passo de ser promovido a racional.
Maneira de dizer, é claro!
É impressionante a quantidade de espécies existentes no planeta! Se em Zênidon temos
pouco mais de 200 espécies, a Terra possui centenas de milhares. A grande diferença: alguns
se alimentam dos outros, o que não acontece em nosso planeta.
Notei que, em vários aspectos – pasmem vocês – alguns animais agem como se
superiores aos seres racionais da Terra. Existem animais mais prestativos que o próprio
homem, neste planeta. Seres irracionais bem inferiores na escala evolutiva nos dão exemplos
de harmonia e organização. E o que é lamentável: certos tipos de homens – ainda bem que
são minoria – sacrificam animais por prazer, como um esporte. Isso não acontece entre os
animais, que se agridem apenas para preservar-se, ou por necessidade real de sobrevivência.
Pelo menos alguns terráqueos percebem a hierarquia natural que existe entre os animais.
Têm constrangimento – acometidos por um salutar bom senso, diga-se de passagem – em
eliminar um mamífero da mesma forma como pisam em uma barata...
Os terráqueos ainda estão se iniciando na transmissão e recepção de imagens. A
chamada televisão, apesar de poderoso avanço tecnológico de transmissão audiovisual – é
descoberta praticamente recente – apresenta apenas imagens bidimensionais. Timidamente
está-se caminhando para as três dimensões, por meio do que chamam holografia, pelo que
andei lendo.
26
O que constatei de mais grave em relação à televisão foi o seu uso distorcido.
Poderoso instrumento de comunicação de massa, tem veiculado futilidades e incentivado a
violência. Em sua grande maioria, os terráqueos ficam inebriados com o mundo de fantasia
ou crueldade que penetra a sua casa, e sucumbem muitas vezes por não saberem selecionar o
que há de disponível para assistir, pois existem coisas interessantes e positivas, embora em
menor número. Vale notar que essa passividade e imobilidade em frente do aparelho (falta de
seletividade) pode até gerar nas crianças uma evolução motora diferente daquelas que, longe
da televisão, acabem se exercitando mais.
No que tange à sintonia, fazendo um paralelo com a televisão, os terráqueos também
possuem, quase regra geral, dificuldades para sintonizar mentalmente com esferas superiores
às suas, na escala evolutiva. Minhas vibrações de pensamento só entram na frequência dos
terráqueos esporadicamente, e há casos em que se deixam influenciar notadamente por seres
menos dignos. Aliás, existe no planeta uma infinidade de visitantes de outros mundos, das
mais variadas procedências. Num dia destes estive rapidamente com um rapaz de Gumak,
nosso planeta vizinho.
Finalizando o assunto televisão, na maioria dos casos senti que a tevê tem
desagregado significativamente as famílias, cujos integrantes têm sido tomados pela
passividade, lendo cada vez menos, conversando cada vez menos também, perdendo
excelentes chances de se conhecerem mais, uns aos outros.
E eu, por falar nisso, repito, estou sentindo necessidade de conversar... Rovi".
— Pai, que foi isso? – pergunta Léo, assustado, sacudindo Adriano que está cochilando
no sofá da sala.
— Isso o quê? – Adriano quase cai, igualmente assustado, mas com a sacudida.
— As luzes todas piscaram! – exclama Léo, com os olhos arregalados.
— Calma, meninos! Deve ser um corte momentâneo de energia... – esclarece Adriano,
sentando-se.
— Hei! Veja! A fita de vídeo que eu estava assistindo apagou; está toda
desmagnetizada! A pilha do meu rádio, que estava em cima da toalha branca da mesa da copa
vazou! E lá vem bronca da mamãe, por falar nisso!
Lis, por sua vez:
— Élida, peça ao seu pai para tirar o Sleepy debaixo da cama. Não quer sair e está aqui
gemendo!
— Não é Sleepy. É Luís Felipe...
— Êta cachorro teimoso! Parece gente! – intervém Liane, entrando em baixo da cama.
— Paiê! Olha o "pontêlo" da "búlossa" da Liane como está rodando! "Palece" um
"pilicópelo"! – observa André.
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— André, sei que "ponteiro, parece e helicóptero" você não consegue falar, mas
bússola, pode ser! Tente outra vez! Vamos lá! – brinca Adriano.
Em meio à confusão generalizada, Rovi correu para a varanda! De um lado para outro,
no poleiro, Wanderley, o papagaio, tem os olhos arregalados! Rovi está petrificado! Luzes
esverdeadas inundam toda a quadra! Uma visão magnífica! A trinta metros de altura, pairando
no ar, bem ali em frente, uma nave de Zênidon!
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CAPÍTULO 6
ÓRION, UM COMANDANTE MUITO ESPECIAL
As luzes da nave penetram o apartamento, impregnando cada objeto, produzindo
efeitos singulares: cada peça existente no ambiente, alcançada pelos fachos parecem adquirir
vida. Ao redor delas um envoltório de energia dinâmica e colorida conferem um toque
indizível ao cenário.
Naves de Zênidon e de planetas vizinhos são familiares a Rovi. As individuais, as de
transporte coletivo, as transcontinentais, todas ele conhecia. E viajado nelas, diga-se de
passagem. Mas aquela era intergaláctica, mais especificamente uma Z-37, anteriormente vista
por Rovi somente a 200 metros de distância, na estação principal de lançamento de Zaley, a
capital de seu planeta.É na varanda que ele está, quando faz essas observações.
— Pena que o pessoal da família não desfrute o momento – observa Rovi, quase que
em êxtase!
Bem, a família não via nada, mas o poderoso campo magnético da nave produzira
alguns efeitos. Quanto ao papagaio e o cão, já sabemos, tinham a visão mais ampliada que os
racionais terráqueos. Todos ali na sala, lamentavelmente, sem captar sensações visuais
belíssimas de uma dimensão paralela.
— Verde com azul não dá vermelho, nem que a vaca tussa – observa Lis, respondendo
a uma pergunta de Liane, que faz o seu dever de casa.
— Azul com amarelo.
— Verde.
— Amarelo com preto.
— Outro tipo de verde.
Os cabelos de Rovi, conforme a posição da cabeça apresenta ora manchas azuis, ora
combinações de cores quentes, amarela, vermelha, lilás. Cada fio de cabelo parece ser um
filamento elétrico pulsante.
Se Liane presenciasse as bizarras misturas produzidas por aquele verde especial, iria
ficar confusa para assimilar os conceitos relativos às cores primárias e secundárias. Os
princípios físicos não eram bem os mesmos...
A Z-37 tem um desenho muito interessante. Duas peças circulares formam o corpo
principal, cada uma com sessenta metros de raio aproximadamente. São ligadas entre si em
três pontos, formando um triângulo equilátero. Um quarto ponto de ligação, equidistante dos
anteriores, coincide com os eixos desses dois grandes módulos, com formato de roda.
A superfície superior é completamente lisa, aparentemente sem emendas de espécie
alguma. A inferior apresenta saliências circulares e concêntricas que giram em sentido
contrário. As bordas laterais dos grandes módulos circulares têm aproximadamente dez
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metros de altura, são inclinadas e apresentam, dentre relevos e reentrâncias, visores que
revelam a luz interior. A nave é totalmente iluminada, exceto nas três colunas que interligam
os dois módulos. Na parte inferior predomina a cor verde, que se espalha produzindo um
facho em tronco de cone, que vai da base da nave até a grama do chão, agora refletindo uma
tonalidade mais clara e fosforescente.
Rovi sente uma mistura de alegria e orgulho com aquela maravilhosa visão, tecnologia
das mais avançadas, obra dos seus irmãos zenidonianos.
De um ponto lilás pulsante do módulo inferior da nave abre-se um compartimento que
deixa projetar uma esteira de luz, que em poucos instantes estabelece uma conexão entre o
enorme objeto voador e a varanda, onde Rovi aguarda empolgado o desenrolar dos
acontecimentos.
Três vultos surgem da abertura, caminhando pela escada luminosa em direção a Rovi.
Na metade do percurso, já se pode perceber detalhes do homem que vem em primeiro,
seguido por um casal. Sem dúvida, posições que indicam uma hierarquia.
Rovi adianta-se e vai ao encontro da comitiva. O homem que vem à frente é o mais
velho dos três. Cabelos lisos grandes e azulados, barba aparada. Porte altivo e no semblante a
serenidade e a sabedoria que somente uma vivência laboriosa proporciona. A túnica alva e
esvoaçante vai até pouco acima dos joelhos. Calças justas e botas brancas complementam o
vestuário que se impõe pela simplicidade. Um toque de respeito e sobriedade é dado pelo
emblema do planeta longínquo: a marca de Zênidon no cinturão, como se emitisse raios,
decompõe a luz, conforme a posição. O casal que assessora aquele que parece ser o
comandante da nave veste-se exatamente da mesma forma. Apenas a tonalidade da vestimenta
é levemente mais escura, embora da mesma cor.
— Olá, Rovi! Que Granon o abençoe! – exclama o homem, sorrindo e abraçando o
rapaz com intimidade fraterna.
— Que bom que vocês vieram! – comenta Rovi, correspondendo efusivamente ao
carinho de seus irmãos de raça. Externa a sua felicidade por estar com eles.
— Vamos até a nave, meu bom rapaz! Temos uma surpresa agradável para você.
Antes de deixarem o apartamento, Rovi manifesta o desejo de apresentar a família
terráquea, no que é atendido pelos companheiros zenidonianos. É claro que a família nada vê.
Após, em poucos minutos, os quatro sobem a esteira em direção à Z-37.
Rovi está acompanhado de Órion, nada mais nada menos que o comandante da nave, e
seus ajudantes diretos, o casal Lói e Thelman. Antes de tudo eles fazem questão de mostrar o
interior da imensa obra da engenharia astronáutica zenidoniana. É um momento mágico para
Rovi. A tripulação acha-se em missão de estudos por dez planetas de sistemas diferentes. O
próximo destino seria Vênus, do Sistema Solar, quando receberam instruções para fazer
escala na Terra, onde Rovi necessitava de ajuda.
Ao entrarem numa sala com cadeiras dispostas em círculo, o velho Órion esclarece:
30
— Rovi, falamos de uma surpresa para você, não? Nossos sensores, com a ordem de
Zênidon para desviar a astronave para a Terra, receberam imagens de sua família, que foram
gravadas e você vai vê-las agora!
— Coisa esquisita! Estou arrepiado até agora! Nem falei nada para não assustar as
crianças. Tenho a nítida impressão que algo diferente está acontecendo hoje nesta casa! –
observa Adriano, apagando a luz do abajur. Você sente isso de vez em quando, Lis?
— Sinto sim, mas não sei definir com precisão – responde Lis. — Às vezes, sensações
agradáveis ou desagradáveis, sem maiores detalhes. Mas à medida que o tempo passa essa
percepção tem melhorado. Hoje estou sentindo que algo gostoso deve estar acontecendo à
nossa volta!
— Só acho que não é coisa ruim, mas não sei explicar.
— Você deu uma olhada nas crianças?
— Todos dormindo, menos o Léo, que está estudando matemática.
— Boa noite!
— Durma bem!
Tâmis, Leinah e Hamer surgem ao centro da pequena sala de projeção. É a gravação,
de aproximadamente cinco minutos, captada pelos receptores da astronave. Os pais de Rovi
estão sentados e Tâmis de pé, entre os dois. A imagem tridimensional tem aproximadamente
um metro de altura. Percebe-se que é uma imagem pela dimensão e pela leve transparência,
ou seja, Rovi vê a imagem dos pais e da irmã, mas também vê através dela a de Órion
posicionado do outro lado do compartimento.
Transmissão em três dimensões através do hiperespaço não é novidade para Rovi.
Novidade são os seus queridos a 3.000 anos-luz dali...
Rovi nunca tinha ficado longe dos seus. Como dói a saudade! Tâmis dá notícia dos
amigos, da experiência difícil que é a ausência do irmão, fala dos animais silvestres, que
nessa época do ano habitam o jardim da casa. Ah! se os terráqueos pudessem presenciar a
forma pela qual os zenidonianos se relacionam com os animais!... Seria difícil para eles
entenderem como passarinhos pousam no seu ombro, comem em sua mão. Mais difícil ainda
seria conceber a inexistência de animais carnívoros no planeta de Rovi.
Hamer e Leinah, por sua vez, falam do trabalho, dos projetos de vida, sempre a quatro,
entremeando na mensagem expressões de carinho, externando sempre o amor que os une. Ao
final, Hamer despede-se por todos, frisando:
— "Rovi, meu filho, não espere viver sem problemas. Dificuldades sempre foram uma
constante na nossa escalada evolutiva. Você, hoje, praticamente não tem problemas. Apenas
está sofrendo o impacto dos sofrimentos de outrem, por falta de costume. Problemas são
componentes da evolução necessários à caminhada de todos. Receba o nosso abraço. Espero
que Órion, com a ajuda do Grande Granon, possa dissipar a tristeza que lhe ensombra o
coração."
31
Ao término da sessão, Órion percebe que Rovi está cabisbaixo. Paternalmente, põe a
mão no seu ombro e diz:
— Meu rapaz, decidimos permanecer apenas mais três horas na Terra. Temos tempo
ainda para que você conheça o restante da nave, se assim o desejar. Acho que a nossa
conversa sobre o seu estágio pode acontecer após. Quando terminarmos, você decidirá se
continua o seu trabalho ou se retorna para Zênidon!
— São muitas sensações ao mesmo tempo, Órion... a saudade, agravada pelas imagens
de minha família, a decepção com o planeta Terra, o constrangimento pela minha, digamos,
deserção – pondera Rovi.
— Esqueçamos isso por enquanto, Rovi. Até a cabine de controle, agora. Vamos levar
a nave a 400 quilômetros de altitude durante a nossa estada aqui. Temos muito material de
arquivo sobre a Terra e o Sistema Solar, se quiser. A visão que você vai ter quando
estivermos posicionados em órbita, com certeza, vai gostar – afirma Órion.
— Você tem material sobre Zênidon, Órion? – pergunta Rovi.
— Muito! – responde Órion.
— Poderíamos levar a família de Adriano conosco para conhecer a nave e ter acesso às
gravações sobre nosso planeta? Eu gostaria que eles conhecessem onde moro.
— Se eles já estiverem dormindo, é possível! Vou pedir a Lói e Thelman que
providenciem a vinda deles. As informações a ser passadas a eles sobre Zênidon serão apenas
as essenciais, para não confundi-los. Os terráqueos deveriam mesmo é saber mais sobre o
lugar onde vivem, saber mais sobre a Terra.
É mais de meia-noite. André, Liane, Élida, Lis e Adriano já se recolheram. Apenas Léo
ainda está acordado, às voltas com a matemática. O lápis escapa da mão e cai embaixo da
cama de André. Léo se abaixa e tenta alcançá-lo. Sente um sono incontrolável. Um torpor
irreprimível toma conta dele. Não resiste e cai em sono profundo!
— Pronto, Thelman – observa Lói. — Já podemos ir!
O casal de zenidonianos vai à frente. Sleepy não para de latir, como que preocupado
pelo fato de ver Adriano, Lis e as crianças subindo atrás de Thelman e Lói, pela esteira
luminosa, em direção à nave. Thelman olha para trás.
— Lói, veja que efeito bonito: o cordão fluídico deles se confundindo com a esteira!
O que observam são as ligações prateadas que unem cada um ao seu corpo físico,
respectivamente, durante o desprendimento do sono.
Em dez minutos a nave está na ionosfera.
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CAPÍTULO 7
UMA AULA DIFERENTE
Os visitantes da Terra estão numa sala especial, conhecendo o misterioso, para eles,
planeta Zênidon. Já Órion e Rovi estão no observatório superior, que permite uma visão de
360 graus para os lados.
— Bonito planeta! – exclama o experiente Órion, referindo-se à Terra, numa expressão
de respeito pela magnanimidade da cena. E continua:
— Um espetáculo grandioso! Observe como brilha, emoldurada pelo fundo negro do
cosmo! Agora olhe para cima. Estamos vendo, mesmo a olho nu, aproximadamente cinco mil
estrelas. Um pequeno telescópio elevaria esse número para mais de dois milhões!
— Órion, – diz Rovi – mesmo diante destes sinais evidentes da existência de Granon,
há na Terra pessoas que não acreditam nEle, você sabia?
— Granon, no país em que você está, Rovi, é chamado Deus. E Deus, aqui na Terra,
pode não estar na fala das pessoas (aliás de mais de duas mil formas diferentes, já que existem
mais de dois mil idiomas falados no planeta), mas está no inconsciente delas, mesmo que elas
neguem! Isso porque os conceitos complexos de infinito e eternidade, as profundezas
inimagináveis do espaço e tempo são enigmas que a ciência só pode conceber caminhando
junto com a crença em algo infinitamente superior. E este universo é extremamente
organizado para ser fruto do acaso! No entanto, existem pessoas que só acreditam naquilo que
veem ou que tocam. Dentro dessa linha de pensamento rudimentar, deveriam concluir que o
ar que respiram não existe, pelo fato de ser invisível...
— Fico sem entender uma coisa, Órion! Tenho lido que há quase 14 mil anos atrás, ou
seja, há quase 2 mil anos terrestres, a Terra foi sacudida em seus princípios morais e
espirituais de até então, pela passagem de um homem maravilhoso chamado Jesus, que deixou
todo um roteiro de vida. Como é possível, decorrido tanto tempo, esse Homem ser ignorado
por tantos? – indaga Rovi.
— Ora, meu filho, tudo a seu tempo! O que significam 2 mil anos diante da
eternidade? Jesus é, por sinal, o governador espiritual deste planeta, sabia? Na esfera
hierárquica, é o maior colaborador de Granon em se tratando da Terra. Quando de sua
passagem pela Terra, já tinha conhecimento das dificuldades que os terráqueos teriam para
assimilar a sua mensagem de amor. Para você ter uma ideia de como o homem está
engatinhando: somente no ano terrestre de 1512 é que um terráqueo chamado Nicolau
Copérnico descobriu e propôs ao meio científico que a Terra não era o centro do universo!
— Até então, em outras palavras, imaginava-se o homem terráqueo como senhor
exclusivo do universo? – questiona Rovi.
— Exatamente! Em vez de aceitar a sua insignificância, opta pela prepotência, fruto da
ignorância, meu rapaz! Quando falo que o homem está dando seus primeiros passos rumo ao
conhecimento, Rovi, quero me referir tanto ao conhecimento científico quanto ao
33
desenvolvimento moral e espiritual. Veja só, apesar de uma distância ínfima entre a Terra e a
Lua de apenas 385 mil quilômetros, o homem só pisou na Lua recentemente, em 1969. Mas
de lá para cá avançou quase que numa progressão geométrica. Existe uma tendência dos
avanços científicos irem além dos valores morais. É o que parece estar acontecendo na Terra
nos últimos tempos. O homem está dando passos cada vez mais largos dentro do
desenvolvimento tecnológico. É evidente que está havendo um descompasso entre essa busca
científica e o desabrochar do sentimento cristão – chamemos "cristão" pois o modelo maior
aqui na Terra é o de Jesus Cristo.
— A sua experiência intergaláctica dever ser fascinante, Órion! Fale mais sobre a
Terra, por favor – pede Rovi. — Zênidon é bem maior que ela, não?
— Zênidon é quase duas vezes maior que a Terra. Você conhece o sistema métrico
terráqueo, não Rovi? O globo terrestre tem aproximadamente 12,7 mil quilômetros de
diâmetro. Em relação ao Sol, seriam necessárias 1,3 milhão de esferas iguais à Terra para
atingirmos o volume do chamado astro-rei. E olhe que o Sol é uma estrela de tamanho
médio!... Existem maiores.
— E a distância entre o Sol e a Terra? – pergunta Rovi, interessado.
— Aqui dá-se o nome de ano-luz à distância que a luz percorre em um ano, ou seja,
mais ou menos 9,5 trilhões de quilômetros. Zênidon está a 3.000 anos-luz da Terra. Mas o
Sol, a apenas oito minutos-luz deste planeta. Isso quer dizer que se o Sol está a cerca de 150
milhões de quilômetros da Terra, a luz que emite gasta pouco mais de oito minutos para
chegar à Terra.
— ...
— Para se ter uma noção da imensidão que é o universo, imagine o Sol como sendo
uma bola de 15 centímetros de diâmetro. A Terra, dessa forma, estaria a 16 metros do Sol. As
estrelas mais próximas da Terra, nesse caso (se o Sol tivesse 15 cm), estariam a mais de
quatro mil quilômetros de distância.
A nave está em órbita, mas os impulsores solares não estão totalmente desligados. O
enorme globo azul lá embaixo desfila majestosamente aos olhos de Rovi e Órion.
— Olhe agora, Rovi, como está nítido o continente sul-americano! Veja o oceano!
Quase três quartos do planeta são cobertos de água. Nossos irmãos zenidonianos iriam ficar
fascinados com esses mares, que Zênidon não tem. Há algumas centenas de milhares de anos
já tivemos mares em nosso planeta, você sabe.
— Como se formaram os mares da Terra, Órion?
— Estudos oceanográficos nos dizem que eles foram se formando à medida que os
continentes se afastavam.
— Esse movimento ainda persiste? – indaga Rovi.
— Sim, diz-se que tem uma velocidade de três centímetros por ano. Assim, quando
Jesus habitou a Terra fisicamente, a América estava sessenta metros aproximadamente mais
34
perto da Europa e da África. Hoje, em Zênidon, cataclismos provocados pela acomodação da
crosta são mais raros, em virtude do campo magnético artificial criado pelos nossos cientistas.
Entretanto, a crosta terrestre altera-se, renova-se constantemente. Esse movimento é
comandado por forças poderosas, às vezes sutis, que fogem aos nossos sentidos. Essas forças
às vezes são violentas e destrutivas. E o homem da Terra está longe de dominá-las. A
exploração da Terra tem-se reduzido à superfície. Conhece-se mais sobre a Lua e outros
corpos celestes que sobre o interior da Terra.
— O pior é que conhecem muito pouco sobre si mesmos! É uma incoerência uns
passarem fome e outros pisarem na Lua. Hei! Veja a Lua aqui à nossa direita, Órion! Pena
que não haja vida lá, não é mesmo? Ela é tão bonita!
— Meu querido, a vida é inevitável! Mas havemos de convir que existem
configurações diversas de vida. O terráqueo vive na esperança de encontrar outras formas de
vida, e possivelmente vida inteligente universo afora. Como ele pode concluir que Mercúrio,
Vênus, Marte, Júpiter, Saturno, Urano, Netuno, Plutão não possuem vida inteligente? A sua
concepção de vida, regra geral, é extremamente limitada! Existem dimensões outras que o
homem da Terra não conhece.
— Enquanto você falava do Sol, minutos atrás, eu me lembrei dos nossos sóis de
Zênidon! – observa Rovi.
— Bem lembrado! Como você sabe, a situação de Zênidon é sui generis. Lá, estamos
no limite de um sistema adjacente a outro. E os sóis de ambos os sistemas, em diferentes
proporções, iluminam o nosso globo, sendo que um só parece ser do tamanho do outro em
determinada época do ano zenidoniano. Todavia, Zênidon está na órbita apenas de um sol,
nesse caso, exatamente como na Terra.
— Tem-se a impressão de que a Lua é maior do que Zurewa, o maior dentre os sete
satélites de Zênidon, não? – pergunta Rovi.
— Certo, Rovi. Zurewa, o maior satélite de Zênidon é bem menor que a Lua. Mas
Zênidon é bem maior que a Terra. Junte cinquenta Luas e terá uma Terra! Junte mais de cem
Luas e terá um Zênidon – responde Órion.
Enquanto isso os nossos terráqueos continuam recebendo informações sobre Zênidon,
que fariam inveja ao mais avançado centro audiovisual na Terra. André e Liane estão
perplexos com o ganodon, uma espécie de gato zenidoniano, materializado em três dimensões
no centro da sala. É uma noite memorável para a família.
— Sente-se aqui, Rovi! – a expressão de Órion agora é mais grave, sem perder a
doçura.
Rovi pressente que chegou a hora mais importante. Percebeu que o que vira até aquele
instante tinha sido um prefácio para o resto! Órion continua:
— Reportando-nos a Lis e Adriano, em algum momento você presenciou os dois
exigindo que Léo pilote avião?
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— Não! – responde Rovi, sem entender o rumo da conversa!
— Já viu exigirem que Liane fale inglês fluentemente, que André resolva equações do
segundo grau, que Élida dê palestras sobre astrofísica?
— Claro que não!
— Eles usam o bom senso – prossegue Órion –, pois sabem que as suas crianças estão
num estágio que não as capacita a acumular e demonstrar tais conhecimentos, o que não será
impossível mais adiante! Na sua caminhada em direção a Deus, – já estou me acostumando a
chamar Granon de Deus! – o ser humano passa por mundos classificados em cinco diferentes
estágios evolutivos. A Terra está saindo do segundo estágio para o terceiro. Ou seja, está
prestes a tornar-se um Mundo de Regeneração. A permanência neste chamado Mundo de
Regeneração será vedada àqueles que insistem na maldade e no erro. Habitarão outros
planetas em que, mesmo na condição de "alunos repetentes", poderão dar a sua contribuição
para melhorar a situação de seus novos companheiros menos evoluídos. Zênidon está na
iminência de passar à quarta classificação. Daí, Rovi, como habitantes de um planeta mais
aperfeiçoado, é nossa obrigação auxiliar sempre, a exemplo do que já fizemos na Terra há
milhares de anos!
— Como assim, Órion?
— Meu querido – continua o bom comandante estelar –, a cooperação entre
civilizações sempre foi uma constante e um impositivo àquelas mais desenvolvidas. Há muito
tempo atrás, aconteceu de habitantes de um sistema estelar chamado Capela estarem na
mesma situação pela qual a Terra vai passar, como disse há pouco. E habitantes expurgados,
vamos assim dizer, de Capela, passavam a viver no Sistema Solar, mais exatamente, na Terra,
em muito contribuindo para o avanço do conhecimento no planeta. Nossos ancestrais, mais ou
menos no mesmo período, aqui estiveram também. Isso foi há alguns milhares de anos.
— A História da civilização terráquea registrou isso, Órion? – indaga Rovi.
— Oficialmente, não. Mas ficaram muitos indícios. Os mundos primitivos registraram
em muitos momentos naves espaciais nas suas pinturas rupestres. Os habitantes de Capela
misturaram-se com os terráqueos, nascendo entre eles, mas nós, de Zênidon, aqui estivemos
com nossas naves. Você sabia que os egípcios já haviam concebido um calendário, que
dividia o ano em doze meses ou 365 dias, há 3 mil anos antes de Cristo? Será que conceberam
isso sozinhos? Mas existem coisas mais surpreendentes. Na América do Sul existiu uma
civilização, a dos maias, que possuía uma cultura elevadíssima. Legaram aos descendentes
um incrível calendário, como também cálculos inconcebíveis para a sua época. Sabiam que o
ano de Vênus tem 584 dias e avaliavam a duração do ano terrestre em 365,2420 dias. O
cálculo exato de hoje é 365,2422!
Num lugar da Terra chamado Egito existe uma pirâmide construída com mais de dois
milhões e meio de blocos, que levariam, com rolos de madeira e tração exclusivamente
humana, mais de 600 anos para terem sido colocados no lugar.
A história humana não tem explicações plausíveis para esses "mistérios". Só que para
nós, zenidonianos, não há mistério algum!
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Você vai achar muito interessante um livro de Däniken5. É o terceiro da direita para a
esquerda, na estante do quarto de Lis e Adriano. Sobre a transmigração de que falei, leia Os
Exilados de Capela6 e A Caminho da Luz7. Estão na gaveta do criado.
Rovi, agora, está muito interessado no encaminhamento que Órion está dando ao
assunto.
— Quando o Controle de Estágio de Zênidon estabelece que seus relatórios devem
conter o seu senso crítico a respeito de tudo na Terra, queremos dizer da sua valiosa e ativa
participação, Rovi, no sentido de instruir e amenizar sofrimentos neste planeta! Você está,
individualmente, exercendo o mesmo papel, de imensurável importância, que nossos
ascendentes – e seres de outras galáxias –, em massa, tiveram em outras épocas. Urge a
fixação da mensagem aqui chamada de cristã nos corações dos homens na Terra, de todas as
formas possíveis e exatamente agora! Os tempos são chegados! Por que a decepção com
"alunos" rebeldes ou relapsos? Façamos a nossa parte! Sempre temos condições de
acrescentar algo aos corações endurecidos! Melhorando o homem, melhorar-se-á a família, a
sociedade, e consequentemente o planeta inteiro! Nós esperamos, com muita ansiedade, que
você coloque todo o seu potencial em ação, Rovi, meu filho!
O jovem de cabelos azulados olha através de Órion, numa atitude clara de uma
reflexão muito profunda. Órion continua, num misto de enérgico e fraterno:
— A ebulição em que vive hoje a Terra é muito natural. Está sendo dada a alguns a
última chance de se credenciarem a continuar aqui ou de, na sua relutância em crescer,
habitarem mundos que não a Terra. O planeta está prestes a viver um novo ciclo. O momento
é decisivo e crucial.
Órion faz uma pausa.
— Existe toda uma literatura de nobre valor que você deve conhecer. Adriano tem
esses elementos todos, muitos livros que você não leu, alguns nem ele, infelizmente!
Trabalhe! Concomitantemente, instrua-se cada vez mais, para melhor servir!
Nesse exato instante, Lói entra na sala, com informações sobre a nave:
— Comandante Órion, temos uma pequena avaria na nave. Uma falha no sistema
provocou uma colisão com um objeto que danificou dois sensores.
— É grave, Lói?
— Necessitamos de três horas para o conserto.
— Tome as providências, por favor, meu bom Lói. Subo em instantes.
Rovi expõe uma dúvida:
— A propósito, Órion, tais objetos não são de outra dimensão? Como foi possível a
colisão?
— Nossa dimensão é a Alfa-3, mas viajamos na chamada, em Zênidon, de Gama-2. É a
dimensão mais livre e, portanto, indicada para evitar-se colisões. Foram detectados pelos
37
nossos radares perto de oito mil artefatos que flutuam presos pela gravidade da Terra. Muitos
deles são fragmentos de foguetes e sondas espaciais. E não estão, realmente – você observou
bem –, na dimensão Gama-2. Assim, podemos transitar sem problemas. No entanto, chocamonos com matéria de uma dimensão parecida com a nossa, o que provocou a avaria.
Possivelmente, artefatos de épocas distantes, como já mencionei. De nossas próprias naves,
quem sabe?
E finalizou solene:
— Meu rapaz, você está provisoriamente num país que os Altos Comandos do
universo designaram para abrigar uma nova civilização, voltada para o Bem. E você, Rovi,
está participando da história do planeta! O acidente com nossa nave vai nos manter mais um
pouco na Terra. Você terá tempo suficiente para meditar sobre a nossa conversa. Granon há
de auxiliá-lo na decisão. Vá, meu filho! Adriano e sua família também estão voltando agora.
São seis e trinta da manhã.
— Adriano, acorde! Léo sumiu! Não está na cama e nem em canto algum! – diz Lis,
assustada.
Poucos minutos depois termina a apreensão. Léo foi localizado dormindo debaixo da
cama de André, exatamente na posição em que ficara quando foi levado por Thelman e Lói.
— Essa é boa, Léo! Que lugar foi arrumar para dormir! – exclama Élida, ajoelhada ao
lado da cama, levantando o lençol que impede a visão insólita.
— Ele pensa que é pinico! – acrescenta Liane.
Todos riem, e mais ainda quando André, com sua ingenuidade, intervém:
— Ele pensa que é gato! E acho bom "complar" o meu gato. "Quelo" um gato de
"outlo" planeta! É muito mais "englaçadinho"!
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CAPÍTULO 8
ERA UMA VEZ, MUITO LONGE DAQUI...
Nota do autor – no original impresso este capítulo tem tamanho de fonte maior, é ilustrado, e
a impressão é feita sobre papel azul.
Era uma vez um garoto chamado Rovi, que morava num planeta
muito distante chamado Planeta Z. No Planeta Z todos eram muito, mas
muito felizes! Todos se respeitavam, se ajudavam e se amavam.
Ninguém conhecia a palavra tristeza, nem a palavra fome, nem outras
como ódio, rancor, solidão. Vocês até poderiam achar que alguns não
conheciam essas palavras pelo fato de ainda serem analfabetos. Só que
no Planeta Z todos sabiam ler e escrever. E, por sinal, escreviam só
coisas bonitas e agradáveis.
Rovi tinha uma nave espacial de dois lugares, toda esportiva, rosachoque, com estrelas prateadas, do tamanho de um fusca. Aqui na
Terra, os pais e as mães quando ficam muito contentes e satisfeitos com
os seus filhos, se tiverem dinheiro, acabam dando presentes a eles no
Natal e em outras datas. Abarrotam os seus filhos de presentes, muitas
vezes, por serem incapazes de dizer um 'eu te amo' ao seu filho querido.
Sabem como é, não? Ficam assim, assim, meio sem jeito... Mas vamos
ao que interessa! Como todos os garotos do Planeta Z eram muito
obedientes e comportados, cada qual ganhava do governo uma nave de
dois lugares, com direito a escolher a cor. Os pais não davam presentes
aos seus filhos porque eles já tinham de tudo. Restava, assim,
demonstrar o seu amor com palavras e gestos de carinho.
Numa manhã de sol, Rovi saiu a passear com sua pequena nave
colorida. Sem perceber, empolgado com os asteróides e os cometas, foi
se afastando mais e mais, e acabou se perdendo. Foi aí que chegou a
um planeta bem pequeno.
Ao pousar com sua nave, ele foi recebido com muita alegria pelos
garotos de lá. Rovi tinha os cabelos azuis e os garotos que foram
abraçá-lo – como se fossem amigos já há muito tempo – tinham sedosos
cabelos verdes e eram todos gorduchinhos. Fisicamente, pelo menos,
era a única diferença.
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Quiseram saber de que planeta era Rovi, como eram as coisas por
lá. Muito educados, foram mostrar satisfeitos seu Planeta Verde.
Foi andando e conversando com seus novos amigos que Rovi
percebeu que a vida deles era muito parecida com a sua. Reinava,
também, naquele planeta a felicidade. Só havia um problema – de vez
em quando eles sentiam como que um nó na garganta e um aperto
dentro do peito e a alegria ia diminuindo, sem que eles soubessem
explicar.
Rovi, antes de se despedir, fez questão de trocar endereços,
mostrando onde morava, no mapa astronômico. Após, disse adeus e
prometeu que voltaria um dia, que desculpassem alguma coisa e que
esperava por eles, nas férias, lá no planeta Z.
Mas parece até que não tinha chegado a hora de achar o caminho
de volta. Tão logo subiu ao céu com sua nave, percebeu que ainda
estava perdido. Resolveu descer num outro planeta, também pequeno,
para tomar informações. Aí é que quase se arrependeu!
Os garotos desse planeta eram magrelinhos, barrigudos, tinham
uma coloração amarela e quanto aos cabelos, cada qual parecia ser de
uma cor diferente! Seria a falta de banho o que mudava a cor dos
cabelos? Estava no planeta Amarelo!
Rovi ficou muito espantado com os modos daquela garotada. A
primeira coisa, aliás, que fizeram, antes mesmo de cumprimentar Rovi,
foi pedir o resto do lanche que Rovi tinha na sua mochila espacial.
Lambuzaram toda a nave de tanto se encostar curiosos. Estragaram até
o farolete traseiro, é claro que sem querer! Ou por querer? Engraçado!...
Houve um que pediu para tomar conta da nave em troca de uma
gorjeta...
Rovi logo percebeu que alguns eram até bons. Mas havia garotos
de todo tipo: uns revoltados e rancorosos, outros malcriados, outros
briguentos, outros tristes, e outros, simplesmente sozinhos, o que é um
problema muito grave! Como no Planeta Z era tudo harmonia, percebeu
num instante que o agir e o pensar deles eram bem diferentes dos seus.
Até palavras feias, que não conhecia, ali ouviu pela primeira vez.
Quiseram também mostrar o seu planetinha. A natureza do planeta
era muito bonita. As florestas, as flores, os rios, os bichos. Só que
quanto às suas casas, os garotos do Planeta Amarelo mostraram, mas
40
com muito constrangimento. Eles tinham vergonha de não ter conforto e
de viverem em condições muito precárias.
Rovi passeou e conversou com todos aqueles meninos e entendeu
que eles não eram ruins. Eram sofridos. E se eram rebeldes é porque
tinham lá os seus motivos. Os pais deles haviam passado pelos mesmos
problemas e privações. Não podia dar em outra! A ignorância corria solta
e alguns até poderiam parecer maus, mas é que a vida deles era muito
dura. E o que eles não tinham era oportunidade de ser bons.
Despediu-se, esquecendo-se até de dar seu endereço.
Felizmente conseguiu achar o caminho de volta. Ainda bem,
porque sua família já estava preocupada!
Não contou a sua aventura para os seus pais, porque achou que
só deveria contar quando tivesse uma solução para aquele segundo
planeta que visitara. Parecia uma obrigação para consigo mesmo!
Decidiu pelo segundo, porque no primeiro planeta o maior problema era
o do nó na garganta e aperto no coração, o que também era sério, mas
nem tanto!
Durante o dia inteiro os seus pais estranharam o comportamento
de Rovi. Ele estava triste e foi um sacrifício entender o que era essa tal
de tristeza, coisa nova no Planeta Z.
Até que, no dia seguinte, acordou com uma euforia danada! É que
todo dia antes de dormir conversava com Deus. Aliás, lá Deus tinha
outro nome, mas posso garantir que era o mesmíssimo que a gente
conhece! Agradecia sempre a vida feliz que levava. Quase não pedia
nada, pois não tinha o que pedir. Mas, na noite anterior, pediu pelos
seus amiguinhos do Planeta Amarelo e pediu, de verdade mesmo, para
que Papai do Céu lhe desse uma ajuda, pequena que fosse. Não que
Deus resolvesse o seu problema – sabia que assim não teria graça
nenhuma –, queria que Deus o auxiliasse a resolver, ele mesmo, Rovi, a
questão complicada. Como ele foi muito sincero no seu pedido, pedido
feito, pedido atendido! Acordou com uma ideia genial!
Convocou dez amigos seus, daqueles do peito, e partiram com
suas naves rumo ao Planeta Amarelo.
Ao chegarem, explicaram com todos os detalhes o seu plano aos
barrigudinhos. Dia sim, dia não, a turma do Planeta Z levaria em suas
naves alguns habitantes do Planeta Amarelo para o Planeta Verde.
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Escolheriam os felizardos no par-ou-ímpar. Quando chegassem ao
destino, os lugares vazios das naves seriam ocupados, então, pela
garotada do Planeta Verde, que por sua vez, iriam visitar o Planeta
Amarelo.
Essa troca de experiências seria a forma de melhorar aquela vida
difícil dos magrelos e dos gorduchinhos. Mas assim seria feito apenas
durante a construção da grande ponte. Aos poucos, como o Planeta
Verde era muito perto do Amarelo, uma ligação seria feita entre os dois,
para facilitar as coisas.
E assim foi feito! A troca de favores e de amparo melhorou em
muito a vida do pessoal do Planeta Amarelo. Se você concluiu que quem
tinha mais para dar eram os garotos gorduchinhos do Planeta Verde,
você está absolutamente certo! E começaram a aparecer sinais de
felicidade por todos os cantos!
Dois anos se passaram. A ponte interplanetária já funcionava
normalmente, permitindo acesso fácil de um para o outro planeta
vizinho. Foi quando Rovi e sua turma foram chamados ao Planeta
Verde. Nem de longe iriam imaginar que uma festa tinha sido
programada pelos garotos dos dois planetas, que ficaram muito
agradecidos por tudo que Rovi fizera por eles. E qual não foi a surpresa
de Rovi, quando soube que os habitantes do Planeta Verde, nesse ir-evir, apesar de terem dividido a sua alegria, ela tinha aumentado mais
ainda e nunca, nunca mais, haviam sentido nem nó na garganta e nem
aperto no peito.
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CAPÍTULO 9
A HORA DA DECISÃO
— Nunca tinha ouvido essa história – comenta Liane.
— Conte de novo, mamãe! – pede André.
São sete e trinta. Enquanto Lis recolhe as xícaras de Liane e André, Adriano comenta:
— Hei! Você amanheceu inspirada! Uma história dessa assim de manhã faz muito
bem!
— Sabe que nem sei como surgiu?! – exclama Lis. — Foi tão natural!
Rovi sabe, em parte. Ouve tudo muito pensativo. É patente que o inconsciente de todos
está marcado pela visita à nave, durante a noite passada. O que lhe chama a atenção é Lis ter
traduzido tudo com tanta propriedade. A história, em sua essência, tem um significado muito
grande. O Planeta Amarelo é a Terra, sem dúvida!
Rovi dirige-se ao outro quarto. Precisa ficar sozinho, voltar-se para dentro de si
mesmo. Não quer errar na decisão.
— Pai, mãe, estou indo – despede-se Léo!
Frações de segundo antes de fechar a porta da sala, complementa:
— Fiquei sem média em Matemática e Ciências. Até mais tarde!
Fecha rapidamente a porta.
Lis e Adriano entreolham-se, sem dizer nada.
— Ele podia usar a famosa psicologia vulgar (não é esse o nome?) e dar a péssima
notícia mais devagar! – observa Adriano, visivelmente chateado. — Pior no jeito de dar
notícia ruim só o ajudante do Villela...
— Como assim?! – pergunta Lis.
— O Villela, lá de Petrolina! Ele conta que estava fazendo um voo do Rio a Recife,
num avião de tamanho médio, quando surge uma pane séria no motor. Não havia saída.
Inevitável o pouso forçado! Villela sabia que havia entre os passageiros um coronel
reformado da Marinha. Pessoa ideal, imagina Villela, para preparar os passageiros. Pede a sua
ajuda, para que, com muito jeito, da melhor forma possível, mantivesse as pessoas sentadas,
com os cintos atados. Que não falasse do pouso forçado, embora o fosse realmente. O homem
sai da cabine, daquelas separadas por uma cortina, e despeja toda a sua "perspicácia":
— Vamos ter que fazer uma aterrissagem que não estava prevista, exatamente agora!
Saca de uma pistola e completa:
— Permaneçam em seus lugares! Quem se mexer leva bala!
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Lis acrescenta, sorrindo:
— Que sutileza! Pelo menos o nosso filho não fez nenhuma ameaça...
Liane percebe que por trás da brincadeira, o pai está aborrecido e tenta amenizar:
— Ora, papai, Léo vai passar de ano. Matemática não é difícil. Difícil mesmo – disse o
seu Manoel Pipoqueiro – é pingar colírio em olho de japonês!
Ninguém consegue conter o riso. Aliás, para que conter?
Élida se aproxima e, estendendo a mão, passa um bilhete a Adriano:
— Léo pediu que entregasse depois que ele saísse.
Adriano abre curioso e lê para si:
"Queridos papai e mamãe! Sei que não tenho estudado como devia. Mas, vou tentar
não criar mais problemas..."
— O que é, Adriano?
— Um bilhete de nosso filho para nós, cujo nome técnico é Carta de Intenções. Só que
ele, na cláusula segunda não afirma categoricamente nada: diz que vai tentar!
Lis lê em voz alta, ao que, logo após, Adriano pergunta:
— E você, Élida, gostaria também de contar alguma novidade ou fazer alguma
promessa contemporizadora?
Élida é rápida:
— O Dia dos Pais está próximo. Prometo que no seu dia não vou lhe pedir dinheiro!
Que tal?
Abraça e beija o pai carinhosamente.
Antes que alguém se manifeste, Sleepy passa correndo por eles, toco de rabo entre as
pernas, metendo-se, assustado, por debaixo da cama.
— Que será? – indaga Adriano.
— Meu bem, se você soubesse o mal-estar que senti de repente!... – exclama Lis.
O que Rovi sente, em meio ao seu recolhimento no quarto contíguo, também não é
agradável. Instintivamente, ganha o corredor e prossegue. No meio da sala dois homens da
dimensão Alfa-3, com expressão carregada, o abordam:
— Você é Rovi, não?
O olhar dos dois é frio. As vestes, estranhas. E o tom de voz, quase que ameaçador.
— Sim, sou eu – responde o rapaz de Zênidon, um tanto surpreso.
44
— O comandante não pôde esperá-lo. Recebeu as transmissões de seu pensamento, que
revelaram com exatidão o seu fracasso. Nem que você queira, poderá voltar atrás. Você deve
nos acompanhar imediatamente para ser conduzido ao nosso planeta. Não tente reagir, garoto!
No que Rovi, completamente perplexo, tenta argumentar, um dos homens leva a mão
em direção à arma na cintura.
— Afaste-se, Rovi! – uma voz ressoa firme.
Rovi joga-se para trás, ao mesmo tempo em que presencia a rajada de raios que sai das
mãos de Órion, Lói e Thelman, atingindo no peito os truculentos seres extraterrestres,
projetando-os contra a parede. A expressão dos dois é de quem está vendo estrelas! O que foi
atingido frontalmente tem o pânico estampado na face. Cambaleantes, saem em disparada,
atropelando-se, desesperados com o choque magnético de alto teor que os pegou de surpresa.
— Calma, meu filho.
— Em algum momento acreditou neles, Rovi? – indaga Órion, tranquilo.
— Não consegui raciocinar – responde Rovi. — Quem são?
— Trata-se de nômades do espaço. Malfeitores que ainda têm muito a percorrer no
terreno evolutivo. Queriam atrapalhar os seus planos, pelo simples prazer. A presença da nave
na noite anterior deve lhes ter despertado a atenção, e passaram a seguir seus passos.
Espionavam e traçavam planos condenáveis, para desmantelar ações nobres e dignas que,
perceberam, estavam sendo programadas. O choque que receberam não lhes trará nenhum
mal. A intenção nossa foi de assustá-los. Suas vibrações são tão pesadas, que você deve ter
sentido, ou até mesmo nossos amigos terráqueos.
— Realmente! Lis sentiu diretamente a influencia negativa – confirma Rovi.
Deslocam-se para o quarto. Liane tinha sido acometida de vômito súbito e Lis estava
deitada, pressionando as têmporas como se padecesse fortes dores.
— Vamos usar uma alternativa terapêutica que não é de todo desconhecida pelos
terráqueos – acrescenta Órion.
Thelman e Lói se encarregam de Liane. Órion estende a mão sobre a cabeça de Lis.
— Você pôde observar o poder defensivo de nossas mãos. Agora, o poder curativo. Os
nossos irmãos da Terra ainda não entraram num acordo quanto a esta terapia que o próprio
Jesus usava, impondo as suas mãos. Alguns chamam-na mahikari, outros, jorei, passe
mediúnico, tratamento fluidoterápico. Outros consideram-na apenas magnetismo pessoal e
assim por diante. A denominação não importa. Vamos, Rovi, agora imponha as suas mãos. O
efeito será surpreendente, principalmente porque você ama esta família.
Sem titubear, Rovi atende, contrito, fechando os olhos e elevando o pensamento de
forma sublime para agir em favor do próximo.
— Ó Granon, amoroso e compassivo...
Manifestam-se rapidamente os resultados do tratamento socorrista.
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Liane e Lis, em poucos minutos, não sentem mais nada. E Rovi sente uma satisfação
íntima muito grande.
Nosso comandante interestelar volta-se para Rovi. O olhar bondoso de Órion parece ter
o poder de desvendar todos os mistérios da alma.
— E então, meu rapaz, o que resolveu?
Rovi percebe que a resposta seria dispensável. Órion já sabe. Mas responde mesmo
assim:
— Meu estágio no planeta Terra não será interrompido, Órion. Cumprirei a missão da
melhor forma possível.
— Não lhe faltará auxílio. Na sua empreitada, nunca se esqueça de que a derrota ou a
vitória não podem ser avaliadas imediatamente, pois perda de hoje poderá ser ganho amanhã.
Esmorecer, nunca! Lutar, sempre! E lutar por causas justas é a própria vitória, em muitos
casos.
É um momento envolto em muita emoção! Mas Órion ainda não terminou.
— Conscientize sempre nossos irmãos da Terra que a forma eficaz de se protegerem
dos ataques como o de hoje é a sintonia com as Esferas Maiores da Espiritualidade. O
colóquio constante com Deus, Nosso Pai, por meio da oração e da vigilância é a armadura
segura do homem de bem. Passe sempre a ideia aos nossos irmãos do planeta Terra de que,
como ensina a sabedoria popular terráquea, "a felicidade não é uma estação na jornada
humana. A felicidade é uma maneira de viajar”. Nosso destino, temos condições de alterá-lo.
Nossa felicidade, nós a construímos a todo instante.
Emocionados, os dois se abraçam.
46
CAPÍTULO 10
A MARMELADA DO TERRÁQUEO LÉO
— Alguém anda mexendo nos meus livros!
— Que bom! Sinal de que alguém anda se interessando mais por leitura nesta casa –
retruca Lis.
— Olhe só, ou estão pela casa ou fora de ordem!
— Ótimo! Se algum larápio resolveu agora surrupiar livros, vai ler, sensibilizar-se,
modificar-se e, possivelmente um dia, os trará de volta na calada da noite. Deixará um bilhete
pedindo desculpas e agradecendo – arremata Lis, enquanto Adriano passa os dedos pelas
lombadas na estante.
Rovi sorri. Precisa tomar mais cuidado ao repor os livros na estante. Logo que chegou,
lia os livros sem abri-los. Ultimamente, tem conseguido manusear coisas. Tem lido muito,
tanto em casa como na biblioteca da Universidade. Os acontecimentos recentes revigoraram o
jovem estagiário de Zênidon. Uma nova etapa de sua estada na Terra tem início.
Em paralelo ao seu plano de participar ativamente na construção de um mundo melhor,
Rovi decidiu seguir um dos conselhos de Órion: ler muito!
A tarde de sábado corre tranquila. Élida, Liane e André estão absortos com os
preparativos de um teatrinho em família. Faltam dois meses para o Natal e, em meio à
programação da família para a data, deverá haver apresentações em orfanatos a serem ainda
escolhidos.
— Pai, eles não prestam atenção! – reclama Élida. — Já temos dificuldades com o
script, que não é lá muito interessante. Faltam ideias novas para um programa mais variado! E
os dois ainda ficam conversando fora de hora!
André, nesse exato momento, está fazendo uma pergunta a Liane, que nada tem a ver
com o ensaio:
— Liane, na sua escola só tem menina?
— Êne-a-o-til!
Lis intervém:
— Liane, por favor, responda direito! Se André não sabe ler, muito menos soletrar!...
— Ele entendeu, mamãe. Quer ver? André, você sabe o que quer dizer êne-a-o-til? –
pergunta Liane soletrando a palavra não.
— Sei sim! Quer dizer que tem meninos e meninas!
Adriano cochicha no ouvido de Lis:
— Tenho muito orgulho deles. Humor de alto nível. São todos artistas natos!
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— Onde está o Léo? – pergunta Lis.
— Foi levar o Luís Felipe pra fazer xixi. Deve estar voltando.
— Já estamos atrasados. Estou curiosa para saber o que a diretora quer comigo, seu pai
e Léo, justo hoje, sábado!
Em poucos minutos Léo abre a porta trazendo o cachorro. Está conversando com a
garota vizinha. Ainda se consegue ouvir o resto do diálogo:
— Quando o Sleepy for cruzar, eu quero, ouviu Léo?
— Quer assistir? Indiscreta!
— Quero um cachorrinho, boboca!
— Tudo bem, vou pensar, prometo que vou pensar!
— Léo, nem todo mundo gosta dessas brincadeiras – observa Adriano.
— Calma, pai! Procuro brincar com as pessoas do jeito que elas gostam!
Adriano volta-se para a platéia doméstica:
— Com o que eu ouvi em menos de três minutos, vocês ainda acham que têm
problemas de script?!
Durante o trajeto até o colégio, Lis, Adriano e Léo estão numa conversa animada.
— Pai, você assistiu De Volta Para o Futuro?
— Ainda não.
— Excelente o filme. Viajam para o passado, acho que para 1955, num supercarro que
funciona como a máquina do tempo. Se viajássemos ao passado, a nossa belina seria um
supercarro... Faria sucesso, não é mesmo?
— Agradeço o elogio à nossa máquina maravilhosa. A crítica entra por aqui e sai por
aqui – comenta Adriano, apontando para um e outro ouvido.
— Que família! Que família! – pensa Rovi.
— Então, Lis? Sendo essa criatividade devidamente canalizada, a gente pode produzir
um grande roteiro de um peça que, tenho certeza, vai fazer sucesso com as crianças do
orfanato.
Antes de chegarem ao destino, Lis resolve abastecer o carro.
— Esqueci-me de apanhar o talão de cheques, Lis. Você tem algum dinheiro?
— Só uma mixaria!
O frentista, ao que tudo indica, tinha acordado bem-humorado:
— Só dois litros? Normalmente, isso a gente coloca em isqueiro, doutor! Não leve a
mal a brincadeira. É que nasceu o meu filho hoje e estou muito contente.
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— Ora, ora, parabéns! Que Deus o proteja sempre!
A diretora convida os três a entrar. Entram os quatro, contando com Rovi.
Acomodam-se de frente para a distinta senhora de cabelos grisalhos.
— Nosso colégio, senhor Adriano e dona Lis, tem se empenhado em tentar resgatar
uma prática que, ultimamente, tem sido relegada a plano secundário: a prática da leitura. Com
esse objetivo é que instituímos, no decorrer desta semana, um concurso literário, como
incentivo aos nossos alunos. Nosso slogan: "escreve melhor quem lê mais!" Léo deve ter-lhes
falado sobre isso, não?
— Não ficamos sabendo, diretora. Ele deve ter-se esquecido de comentar conosco –
responde Adriano.
— Léo concorreu dentro da faixa etária de dez a catorze anos. Não disse também que
foi premiado?
— Foi mesmo? Que maravilha! Se não disse deve ter sido por modéstia, não é mesmo
Léo? – comenta Lis.
Léo não se manifesta. Sorri educadamente, mas tem-se a impressão de que gostaria que
aquela conversa acabasse logo.
— Se não sabiam, o meu assunto fica praticamente esvaziado.
— Como assim?
— Bem, na categoria Poesia, todas as premiações foram para a classe de Léo. Na
categoria Prosa, tivemos as modalidades crônica, reportagem, conto, fábula, até carta.
Igualmente, a classe de Léo foi a mais premiada.
Pouco a pouco Adriano começa a perceber que algo está para ser revelado. A diretora
prossegue:
— O que foi produzido pelos alunos não é de qualidade excepcional, mas superou as
nossas expectativas, apresentando um nível por demais elevado para a faixa etária dos alunos
da classe de Léo!
Lis percebe que se insinua o desfecho da história, mas permanece calada.
— Pois bem, como os temas foram dados aos alunos no dia anterior à prova literária,
gostaria de saber de vocês, senhora Lis e seu Adriano, se deram alguma ajuda ao seu filho.
Perdoem-me a objetividade.
Léo está pálido, torcendo para que o pai, além de se manter bem calmo, tenha um lapso
de memória naquele instante.
— Bem – responde Adriano –, houve apenas uma carta...
Nesse momento Léo dá um cutucão no pai, por baixo da mesa. Instintivamente,
Adriano complementa:
49
— Mas não vem ao caso. Carta puramente comercial que escrevi.
— Ainda na classe de Léo houve uma redação até interessante, comentário sobre um
artigo publicado numa revista, que resolvemos não premiar porque gerou muita polêmica
perante a comissão julgadora, e mesmo porque os termos utilizados são uma demonstração
flagrante de que não é obra de um menino de treze anos. Os pais dele afirmam também não
ter tido qualquer participação. Vocês podem levar uma cópia, apesar de a redação não ter sido
divulgada. E aqui estão as poesias premiadas. A entrega dos prêmios será no próximo sábado.
Até lá, Léo!
Rovi observa o olhar matreiro da experimentada senhora por sobre os óculos de leitura.
Despedem-se. No carro, ali mesmo no estacionamento, Lis resolve ler em voz alta o tal
comentário sobre o artigo. Todos atentos. Somente Rovi já sabe de tudo.
— Concordo com a ideia básica retratada no artigo sobre a ação desagregadora da
tevê. Os pais de hoje estão acomodados em relação à ação maléfica da televisão. Não estão
atentando para o proveito que podem tirar dessa conquista tecnológica, que poderia advir,
simplesmente, da racionalização de seu uso.
No entanto, ressalvas devem ser feitas quanto à abordagem. Os argumentos utilizados,
embora em favor de uma causa justa, revelam-se como tendenciosos e, muitas vezes,
exagerados. Por exemplo, referir-se a entrega das almas dos filhos ao próprio demônio,
aludindo à tevê. Pela forma medieval, a frase dá uma conotação de Inquisição, época em que
tudo que contrariava os princípios da ordem vigente instituída pela Igreja era coisa do
demônio!
Adriano está visivelmente impaciente. Léo resolve ir ao banheiro. Lis continua a
leitura:
— Fico preocupado quando se diz que caso o gênero humano não se converta para a
integridade da fé católica, em breve estaria transpondo o limiar das últimas degradações. É
pretensão colocar a fé católica como a tábua de salvação da humanidade. Antes de sermos
católicos, espíritas, evangélicos, ou adeptos de outra religião, faz-se necessário sermos
cristãos. Se não cristãos, pelo menos homens de bem, que amam o próximo, já que existem
até pessoas que não creem em nada, mas que cultivam uma inigualável nobreza de
princípios. Ao falar em Cristianismo, refiro-me à essência do ensino de Jesus, sem as
contradições impostas no correr dos séculos, sem magias, mitos e encenações, que o próprio
Jesus combateu. Cristianismo, na sua pureza primitiva.
— Se não me engano, temos um livro lá em casa que fala sobre isso – comenta Lis. —
Só que é difícil, realmente, acreditar que um garoto de treze anos, esse tal de, deixe-me ver,
Antônio Carlos, escreva como um adulto...
Adriano está com uma expressão misteriosa.
— Outro trecho que me chama a atenção é aquele em que o autor afirma
desconsolado que hoje a tevê é quase sempre colocada na sala principal, em lugar de honra,
outrora reservado a imagens e quadros sacros. Bem, apego a imagens e quadros, queiram
me desculpar, significa transferência de poderes a símbolos. Quando se confere valor
50
excessivo às coisas, incorre-se no risco da asfixia dos valores humanos, segundo o autor
Herculano Pires.
Na menção ao grande sinal que Deus nos dá de que vai punir o mundo de seus crimes
por meio da guerra, da fome, permita-me mais uma observação. Existe uma lei natural
chamada de "causa e efeito", ou "ação e reação", que rege os destinos individuais ou
coletivos do homem. Não é Deus, infinitamente justo e misericordioso, que vai punir alguém.
É uma visão mais mosaica do que cristã. Criar as leis, Ele as cria. Ao não nos submetermos
a elas, acabamos por sofrer as consequências. Experimente-se saltar de um prédio
desafiando a lei da gravidade.
— Adriano, acho que está muito forte, não acha?
— Acho! Prossiga, por favor.
— No momento em que se atribui à tevê uma visão distorcida da Igreja, é importante
tentarmos explicitar por que isso ocorre. A deformação milenar que o Cristianismo sofreu,
nos diz a história, foi em decorrência da visão distorcida, isso sim, da Igreja, em relação ao
Cristianismo. O culto cristão enriqueceu-se com pedrarias, mas o empobrecimento espiritual
decorrente foi registrado pela história – em nome do Cristo foram promovidas mortandades
por meio de inúmeros conflitos e guerras, e nas fogueiras atrozes da Inquisição.
O Papa João XXIII, na sua humildade de camponês, ao assumir a Cátedra de São
Pedro, pediu desculpas ao mundo pelos erros cometidos pela Instituição ao longo de quase
dois mil anos.
— Esse menino prodígio, o Antônio Carlos, se acreditasse na reencarnação deveria ter
cuidado em fazer críticas à época da Inquisição! Quantos de nós, com certeza, estivemos
engrossando as fileiras da intolerância de outrora!...
Feita a observação, Lis continua a ler:
— Voltando ao assunto tevê, se concordo com o fim em si, não quer dizer,
absolutamente, que eu concorde com os argumentos-meio utilizados no artigo em tela. Os
meios, muitas vezes, não justificam os fins. Penso que temos de nos unir, parar de ajuntar
tantos diagnósticos sobre a ação nefasta da tevê na família. E nos conscientizarmos de que
temos de fazer alguma coisa de concreto. Se a família está desagregada, deixar a culpa
somente para a tevê também não é racional, já que os pais estão se deixando envolver,
permitindo que a família se desintegre. E só nos deixamos influenciar, se quisermos.
Considero que o tema veio a calhar. É atual e estou disposto a me engajar numa
campanha para melhorar as relações familiares, abrindo uma ampla discussão – sem
parcialidade – sobre erotismo na tevê, sobre a qualidade dos programas. Vamos conversar
sobre esse veículo fascinante, que traz tudo pronto e inibe a capacidade de se buscar o
conhecimento nos livros. Sobre a exploração da violência e da criminalidade no vídeo. Sobre
algumas correntes que, ao contrário do que prega o artigo em questão, consideram a tevê
como agregação da família, no momento em que une as pessoas para assistir aos programas.
Parabéns à escola. Toquemos a ideia para a frente, mas independentemente de nossos
credos.
51
— Há um erro na assinatura do trabalho, não é, Léo? – pergunta, com ironia, Adriano.
Léo se cala. Lis não entende.
— Na verdade, seria Adriano e não Antônio Carlos, Lis. Léo me pediu terça-feira para
que eu dissesse algo sobre o artigo A Ação Desagregadora da TV. Ensaiei alguns
comentários, não gostei, desisti, coloquei na gaveta. Com certeza, não está mais na gaveta,
tanto é que foi parar na escola e num concurso. É lamentável! Até as vírgulas!
Léo continua calado, visivelmente envergonhado. Lis contemporiza:
— Calma, Adriano! Tenho certeza que Léo não vai fazer mais isso.
— Tomara! Vejamos agora as produções do nosso pequeno poeta para compensar o
vexame!
Léo, que estava pálido, agora sente um calor que sobe pelo pescoço e face. Imagina
que as suas orelhas devem estar vermelhas como pimentão.
Lis lê em voz alta:
MOMENTO MAU
A ausência se impõe quase fatídica
E o momento que eu não quero indiferente vem.
Indiferente vem a noite comparsa, pesada e grave...
Penetra alheia e derrama seu negro.
Numa cadência fúnebre, o negro silêncio...
Tento a prece, não me convenço, e sou vencido.
Tento as palavras, que juntas geram versos prematuros.
Nada tento e vejo-me fraco.
Simulo indiferença e espero.
Sei que o silêncio, a ausência, a derrota não duram,
E a noite perece.
— Leia o nome do autor, por favor, Lis.
— Essa é a poesia do Léo – afirma Lis.
52
— Errado! É de um tal de Adriano, quando tinha dezenove anos, que por sinal tinha
uma namorada chamada Lis. E pensar que a diretora disse que é boa “se considerarmos a
faixa etária do autor”. Grrrrr!
Léo gostaria mesmo é de sair correndo...
— Vejamos esta outra:
Na extrema manhã dos dias iguais,
Antes sem meta, agora diversos dos demais,
Eu te amei cego,
Sem tempo, espaço, sem medo, sem ego.
— Meu filho – exclama Lis – essa é da mesma época. Foi feita para mim, a musa
inspiradora do jovem Adriano. O autor não confere: está escrito "Luís Cláudio"...
— Quando eu digo que só há artistas lá em casa, tenho dúvidas se essa malandragem
pode ser encarada como uma forma de arte. Deixe-me ler a próxima, desse tal de Jefferson:
ÉS MULHER
És mulher
Porque a juventude te envolve inteira
És mulher
Porque a beleza se debate por te ser eterna
És mulher
Porque o amor te umedece os olhos e ilumina a vida
Lis não termina de ler e comenta, olhando para o horizonte, como que voltando no
tempo:
— Também foi para mim, meu filho. Ah! Que saudade daquela época!...
— Bem, poesia de adolescente afoito! Simplista demais. Hoje eu a faria totalmente
diferente – observa Adriano.
Léo toma coragem e faz uma observação:
— Essa foi a que deu confusão!
53
— Como assim?
— Jefferson não se contentou em assinar a poesia. Dedicou à professora de História,
dona Maria Amélia, aquela solteirona. Colocou ainda no final: “És mulher, porque perto de ti
sinto-me um homem.”
Ela não gostou. Achou que era alguma coisa pessoal, considerou falta de respeito...
Quando retornam, Rovi continua operando mental e intensamente. Quer um desfecho
pacífico. Emite a todo instante vibrações de harmonia. Ao observar Lis puxando Adriano
rapidamente para o quarto, coleta flashes de pensamento sobre o que Lis tem em mente.
— Adriano, meu bem! Não fique chateado com Léo! São coisas de criança. E se
pensarmos bem, tudo que a gente faz e fica guardado somente para nós, não serve para nada!
"Só possuímos aquilo que damos". As suas criações devem ter proporcionado momentos
agradáveis a alguém, embora a divulgação haja acontecido de forma esdrúxula!
— Em parte você tem razão, Lis. Só que vou ligar para cada um dos plagiadores
premiados. Vou dizer que sei de tudo, mas que vai ficar entre nós desta vez! Desmantelar o
concurso acho que não é viável. Quanto ao Léo, vou cortar algumas regalias dele nesta
semana.
— Antes que me esqueça! Quanto àquela redação que é, mas não é, do Antônio Carlos,
na parte sobre Cristianismo, Adriano tem um parceiro: o autor que você consultou...
— Mas eu citei, não citei? Revisão do Cristianismo, de Herculano. E não mostraria
para ninguém já que não gostei do meu enfoque
— Você ainda faria uma poesia para mim, como há vinte anos atrás?
— Todas as necessárias para você fixar essa verdade!
— Qual verdade?
— Que eu te amo!
Nesse momento, Léo está no quarto de Élida dando-lhe uma noção rápida do que
acontecera.
— Acho que o papai devia é ficar satisfeito de saber que as poesias e o artigo dele
tiveram boa aceitação!
— Tome jeito, Léo! Nunca mais faça dessas! Muita safadeza por amizade!
— Não foi tanto por amizade, Élida. Olhe lá, hein? Não vá contar aos dois pra não
piorar as coisas! Foram três entradas de cinema, lanche garantido por um mês e a certeza de
que não preciso escrever nenhum trabalho de escola e nem carregar a mochila até o fim do
ano: Jefferson, Luís Cláudio e Antônio Carlos, meus fregueses literários, vão se encarregar
disso!
Rovi balança a cabeça, ao mesmo tempo em que ensaia um sorriso. Expressão
tipicamente terráquea para dizer que condena, mas acha um "delito" engraçado e ingênuo. No
entanto, não conseguiu evitar o castigo que Adriano impôs a Léo.
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CAPÍTULO 11
REFLEXÕES OPORTUNAS
Élida toma sol perto da pequena cascata. Naquele trecho do riacho forma-se uma
pequena represa e o fundo de pedra, nos locais em que a água se estabiliza, permite refletir as
nuvens brancas do céu. Léo tenta com uma peneira improvisada conseguir mais um peixe
para o balde. André e Liane brincam com os seixos rolados, testemunhas de que a vida é
movimento constante.
— Feche os olhos! Quantos sons você distingue? – pergunta Adriano, deitado de
costas na relva aveludada.
Rovi, sentado ao lado, joelhos dobrados em posição iogue, aproveita o ensejo e fecha
os olhos como se se oferecesse à recepção de energia vitalizante.
Lis tenta enumerar:
— À minha direita as cigarras, talvez uns três tipos de canto de passarinhos, o farfalhar
das folhas, a água viva da cascata. Esse “barulho silencioso” libera o pensamento. Estou
viajando solta do corpo. Não existem barreiras nem problemas para mim. O universo é o meu
limite!
Adriano dá uma pausa ao diálogo para não interromper o devaneio de Lis.
— Se dependesse de você o abastecimento de energia de milhares de pessoas e a única
saída fosse uma hidrelétrica justamente neste local, você aprovaria?
— Faça uma pergunta mais fácil, caso contrário só na presença do meu advogado!
Rovi é pego de surpresa com a pergunta. São tantas as situações em que a resposta não
pode ser simplesmente sim ou não!...
— Quantos veículos você pode mentalizar de olhos fechados aqui perto de nós?
— Hmmm! Nosso automóvel, o barco de André...
— E o veículo mais perfeito? – insiste Adriano, sorrindo, enquanto atira uma pedra
bem no meio do pequeno lago cristalino.
— Deixe-me pensar...
— A água, Lis, a água em movimento, que limpa, purifica, cura, renova, que absorve
os meus males, refresca a minha mente, afasta os meus medos!
— Já está exagerando! Responda rápido: você é feliz ou está feliz?
— Deixe-me dar um mergulho antes de responder.
Adriano atira-se ruidosamente na água fresca. Quando emerge, grita:
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— Sou feliz! E descobri nesse mergulho que sou mais inteligente que os peixes com
quem conversei, sou imortal e tudo posso! Sou um pouco de Deus! Você é fada!
— E nós? – pergunta Léo.
— Vocês são os duendes! Ha! Ha! Ha!
— Ai, ai, ai! Eu bem que devia ter trazido a tevê pra tornar o passeio mais interessante!
– exclama Élida, que levou um verdadeiro banho, pela quantidade de água que Adriano
espalhou ao seu redor. — Resolveram praticar terapia florestal!
— Adriano, do que você tem medo?
— Tinha! De ir para a guerra!
— Do que mais?
— Do fim do mundo. Devia ter uns 12 anos de idade. Acho que um filme que vi
contribuiu muito para isso. Aparecia ao final uma bola de fogo, o Sol se aproximando mais e
mais...
— E da morte?
Adriano fixa o olhar num ponto no infinito, como se tentasse coordenar as ideias.
— Por falar em medo de morte, alguém disse que deveríamos agir com as pessoas
sempre tendo em mente que elas vão morrer amanhã. Excelente artifício! Imagine a nossa
relação fraterna com uma pessoa que, sabemos, vai deixar o planeta.
Lis ouve atenta a teoria de Adriano. Rovi, que agora estava lendo, interrompe a sua
leitura e presta atenção também.
— Acho que não devemos ter medo da morte, mas sim de ela nos pegar desprevenidos,
com poucas realizações no campo íntimo e perante a sociedade. Se assim for, a transição
desta para outra é difícil. Deveríamos nos questionar toda noite: posso morrer agora?
Lis provoca:
— Você pode morrer agora?
— Se eu morresse hoje, com certeza, estaria despreparado para a jornada. Aí, você,
Lis, ficaria encarregada de confeccionar um cartão dizendo, como se eu dissesse:
"Mudei de endereço. Plantei uma árvore, que deu pouquíssimos e mirrados frutos. Fiz
quatro filhos – atualmente órfãos de pai, ou já eram antes? Não escrevi nenhum livro, por
achar que livro não se escreve nos intervalos e por nada ter de bom a acrescentar. Espero
poder recebê-los quando chegar a hora em meu novo domicílio. Que vocês apareçam por
aqui mais realizados do que eu. Favor não perder tempo!"
— Razoável o texto.
— Obrigado! Tem uma moeda?
— Sim. Aposto que vai fazer um pedido.
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— Não, uma homenagem!
Adriano atira a moeda no pequeno lago.
— Albert Sabin, Deus o abençoe pela vacina contra a paralisia infantil! Seu objetivo,
Lis! Responda rápido!
— Crescer! – ela responde.
— Sozinha?
— Ninguém cresce sozinho! O crescimento está na razão direta da nossa capacidade de
doação. O ato de doar envolve sempre dois, no mínimo: um que doa e um que recebe...
— Gostei. Agora, vou fazer o tal pedido.
— Vá em frente. Mas um só – Lis deita a cabeça na perna de Adriano.
— Anistia.
— Anistia para quê?
— Bem, para meus pecados.
— Ora, Adriano, ninguém vai anistiar seus erros. Até Deus, infinitamente
misericordioso, só vai perdoar você se enxergar a sua sinceridade de não incorrer em erro de
novo.
A tranquilidade e a paz do local escolhido para o fim de semana fazem com que Rovi
faça uma retrospectiva de sua estada na Terra. Primeiro, o choque diante da pobreza moral...
Depois, a apreensão. A angústia, ampliada pela saudade. O chamamento de Órion. A reflexão.
A exata compreensão do alcance do seu papel. Sua missão. E a divisão. Estava dividido.
Amava aquela família, quase tanto como a sua, tão distante, no querido planeta Zênidon, mas
sempre perto, em seu coração.
Já conhecia a tal ponto os anseios e a personalidade de cada um, que penetrava seus
pensamentos com muita facilidade. Ajudava-os no cotidiano, pois eles estavam, a cada dia,
oferecendo mais campo para isso. Até quanto a pedidos que eram feitos nas preces deles,
Rovi, analisando profundamente o teor da rogativa, tudo fazia para conseguir o melhor para
aqueles seis personagens terráqueos que passaram a tão caros e preciosos para si.
Era impressionante o fato de todos, indiretamente, perceberem a sua presença das mais
variadas formas...
Rovi volta-se para o Transmissor de Impressões na cintura. Estava misteriosamente
ligado, sem que tivesse percebido. Transmitira para Zênidon toda a sua retrospectiva e suas
reflexões. Se poderia valer como mais um relatório... pensando bem, claro que sim!
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CAPÍTULO 12
PROGRAMANDO O TEMPO
Léo atende o telefone:
— Alô.
— O Dorivan está? – é a voz que se ouve do outro lado.
— Comprimido ou xarope? – pergunta Léo.
— ... !
— Quem era? – indaga Élida?
— Foi engano – responde Léo. — Queriam saber de um tal de Dorivan. Não parece
remédio pra dor?
— Mamãe não ia gostar das suas irreverências ao telefone.
Nesse momento entra Liane, com ar professoral:
— Atenção, vocês! Qual o cachorro mais procurado atualmente?
— ... ?
— O cachorro que fugiu...
Os irmãos se unem numa gargalhada gostosa. Rovi abre um sorriso largo. Afaga os
cabelos de Liane. Não poderá jamais se esquecer dessas manifestações de bom humor. Tem
de relatá-las com detalhes na volta ao lar em Zênidon. O pior desses intercâmbios é a
separação. Faltava pouco tempo, dois meses exatamente. Rovi ausentar-se-ia de Brasília, indo
possivelmente ao Egito, México, Peru. Voltando ao Brasil, preparar-se-ia então para seu
retorno.
— Esse aluno do José Pedro, de contrabaixo, aí do andar de cima, está tocando abaixo
ao invés de baixo, sabia Élida? – considera Léo, enquanto estica o pescoço para fora da
janela.
— Como assim?
— Toca abaixo da crítica...
— Almoço na mesa, pessoal – anuncia Lis.
— Ibelabubi – grita André.
— Que dialeto estranho para dizer "espera por mim" – observa Adriano.
— Papai, deixe meu amigo do cabelo azul sentar perto de mim – lembra Liane.
— Até você, Liane? – pergunta Lis. — Esse rapaz de cabelos azuis acho que já entrou
para a família definitivamente.
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Realmente entrara. Haviam transcorrido oito meses desde a chegada de Rovi. Quanto
aprendizado... E quanta ternura sentia por aquela família tão especial aos seus sentimentos.
Era incrível o fato de insinuar-se pelo pensamento em tantos momentos. Quando a família
dormia, conseguia estabelecer com todos conversações amigáveis, altamente proveitosas.
Rovi tinha conhecimento do maior grau de evolução dos habitantes de Zênidon em relação à
Terra, mas de uma coisa tinha certeza: a troca de experiências não era unilateral. Era troca
real.
Como era importante uma família estável e equilibrada na formação do ser humano,
pensava ele. Guardadas as devidas proporções, sua família de Zênidon era coesa no amor, e a
de Adriano também.
Havia lido recentemente numa revista chamada Veja um texto muito interessante
sobre o comportamento agressivo que vêm demonstrando elefantes da África do Sul que
cresceram sem pais. Dizia a reportagem que adolescentes, aparentemente rebeldes sem causa
– que podem chegar a pesar cinco toneladas –, têm cruelmente matado rinocerontes em vários
parques nacionais africanos, promovendo um festival de sangue nas savanas.
Por necessidade de controle populacional e de equilíbrio ecológico em algumas
regiões em que vivem os paquidermes, lamentavelmente, os pais têm sido sacrificados pelas
autoridades ambientais, sendo seus filhotes transladados para outras reservas que necessitam
dos animais.
Os matadores gigantes, portanto, procedem de "lares desfeitos" e crescem sem
orientação e controle por parte de adultos com mais vivência. Ressalta a reportagem que
existe uma fase na vida desses animais em que o hormônio testosterona torna os machos mais
agressivos. Mas, numa comunidade de elefantes, os mais velhos fazem o papel de educadores,
contendo ímpetos assassinos dos mais novos, mantendo-os "na linha".
A orfandade premeditada, então, apresenta consequências desastrosas. Eis o fator
ausência de pais implicando danos irreparáveis até entre os quase sempre pacatos elefantes.
Após ler o artigo, Rovi havia meditado muito sobre os humanos terráqueos.
Criança abandonada, pais ausentes, inexistentes. "A Lei de Causa e Efeito explica",
diriam alguns. "Merecimento... que se há de fazer..." – poderiam até dizer outros, voltando as
costas. Na visão do nosso jovem zenidoniano, esta seria uma forma descaridosa e rude de
interpretar a terrível questão do abandono. Apesar de aprender desde cedo em Zênidon sobre
a pluralidade das existências, Rovi considerava que a lógica reencarnacionista, despida de
amor, cristalizava os corações. Sempre achou que, ao julgarmos o merecimento dos outros,
não deveríamos nos esquecer que estamos num determinado planeta porque as nossas
conquistas morais só permitiram isso até o momento.
No caso de órfãos de pais ausentes – vivos, ou mortos, ou vivos-ausentes –, há de se
guardar para depois o raciocínio cartesiano quanto ao que se fez em outras existências para
merecer esse tipo de miséria. Existem momentos em que a caridade e o amor fraterno têm de
ser usados de imediato, sem perguntas, sem especulações. Basta o fato em si.
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Afinal, se na condição de crianças tivéssemos pais ausentes, como gostaríamos que a
sociedade procedesse conosco? Em primeiro lugar, explicando-nos a razão provável da nossa
desdita? Ou, antes de mais nada, estendendo-nos a mão?
Nessa viagem pelo mundo da meditação e da reflexão, Rovi volta ao cerne do seu
problema – o momento adequado para dizer aos seus queridos terráqueos de Brasília da sua
programação de viagem, antes do retorno definitivo a Zênidon.
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CAPÍTULO 13
CIDADÃO-CRISTÃO
Era domingo, fim de tarde. A família passara o dia em casa, uns arrumando armários,
outros absorvidos nos deveres escolares. Liane está cantando em seu quarto, a ponto de Élida
transferir seu material de estudos para a sala.
— Mãe, eu até gosto de música, mas Liane está promovendo um verdadeiro concerto
lá no quarto. Ela não para.
Rovi chegara há pouco de uma intensa atividade que desenvolvera em asilos e
orfanatos. Onde houvesse o desalento, lá estava Rovi incluindo mais um nome em sua
programação. Usava fartamente da prece e da imposição das mãos nessas visitas fraternas,
para consolar, para aliviar.
Na varanda, penetravam os últimos raios de sol de um dia agradável e tranquilo.
Adriano interrompe a desmontagem do liquidificador.
— Lis, quer me emprestar os ouvidos?
— Diga lá.
Rovi pressente que Adriano ou quer uma opinião, ou quer desabafar. Coloca-se ao lado
de Lis, a que mais percebe a sua presença. Está a postos para auxiliar. Aproveitando a
sensibilidade de Lis, Rovi induzia sempre a observações objetivas, cheias de sabedoria. Nessa
situação de sintonia, as palavras de Lis, quando não consolavam, funcionavam como dardos
bem atirados que, com a rapidez do raio, iam certeiros ao alvo. Esclareciam de uma forma
didática e contundente. Adriano pôs a mão no queixo. Olhava para o teto, como a organizar as
ideias.
— Não sei se você já teve dúvidas quanto a como agir em determinadas situações. Sei
que você tem absoluta confiança na "receita" de Jesus... Eu, ultimamente, tenho estado entre a
cruz e a espada. Muitas vezes, acho que a pessoa tem que optar entre ser cristão e ser
cidadão... As duas coisas não combinam.
— Será mesmo? – indagou Lis, acomodando-se na cadeira. — Dê algum exemplo.
Rovi espalmava as mãos por sobre a cabeça de Lis, envolvendo-a inteira um poderoso
campo magnético.
— Tenho três para lhe dar. São casos que ficam martelando em minha consciência.
— Certa vez, no tempo em que eu era síndico – lembra-se? –, recebi um telefonema
mal-humorado de um condômino. Dizia que a criançada, lá no térreo, fazia muito barulho e
que atrapalhava o seu trabalho. Que eu tomasse as devidas providências. Acrescentava ainda
que ele era um assessor de Senador e tinha muito o que fazer com importantes trabalhos que
levara para casa. Bem, eu era adepto do diálogo entre os moradores, você sabe. Quando se
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esgotassem as possibilidades, que viessem a mim. Afinal, estava eu como síndico, porque
ninguém queria sê-lo.
— Como procedeu você? – perguntou Lis, atenciosa.
— Disse exatamente isso, mas ele estava muito irritado. Escrevi então um comunicado
e afixei em todas as entradas do prédio. Dizia, além do que já externara diretamente àquele
senhor, que os moradores evitassem usar de suas prerrogativas, ou predicados profissionais
equivocados, para convencer o síndico de qualquer coisa que fosse. Que fomentassem a
conversa fraterna entre si. E que assessor de Senador para mim era um agravante e não um
atenuante, diante da crise de credibilidade por que passava o Congresso Nacional...
Rovi agora anda pela sala. Não tira os olhos de Lis.
— Acho que me lembro dessa situação. Não sabia do comunicado. Mas, entenda,
Adriano querido – prosseguiu ela num tom quase maternal –, você está certo quando exalta o
caráter positivo das relações fraternas entre as pessoas. Notou uma fraqueza do homem que
nitidamente orgulhava-se de ser um alto funcionário. E expôs essa fraqueza para todos. Foi
mordaz. Nesse momento, não foi cristão. Tente consertar isso um dia. Se você tem
conhecimento cristão, tem obrigação de ser superior, quando se tratar de entender as
deficiências alheias.
— Sabe, Lis, a regra do "fazer aos outros somente aquilo que desejamos que nos
façam" eu tenho tentado aplicar. Acho que fiz o que gostaria que me fizessem, ou seja, que
alguém me chamasse a atenção sobre a minha falta de humildade, proclamando ser uma
pessoa especial, pelo cargo que ocupava.
— É louvável você nortear sua conduta pelo nobre preceito de Jesus. Essa regra do
"fazer aos outros o que gostaríamos que nos fizessem" é tão lógica, tão sábia, que até Buda,
500 anos antes de Cristo, já a formulara. Da mesma forma, Lao-Tsé e Confúcio, você sabe
disso. Mas, tenho certeza de que você não gostaria de ser admoestado daquela forma. Pense
bem. Vamos ao segundo caso.
Adriano estava pensativo. Mas, como se despertasse de uma profunda reflexão, voltou
a falar.
— Ando pensando muito... As pessoas têm estado muito apáticas, no exercer de seus
direitos. E dos seus deveres, principalmente. Não sabem aplicar conceitos básicos de
cidadania, e no momento de agir, se omitem. Como eu tento exercer essa tal cidadania, muitas
vezes sou criticado. Eu fazia parte de uma comissão de recebimento de uma construção de um
posto de atendimento. Durante a vistoria, notei que os seus ocupantes haviam transferido – do
lado de fora para o lado de dentro – um telefone público para seu uso interno, exclusivo. Não
era de minha alçada, mas tomei as providências na concessionária de telefonia, denunciando o
fato. Era, para mim, a apropriação indébita de um bem público.
Rovi emitia ondas mentais estabelecendo um campo propício para a inspiração de Lis e
ela não parou para pensar. Foi dizendo:
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— Existem situações em que não adianta você se expor, tentando apontar um erro
diretamente para os envolvidos. Os infratores já sabiam muito bem que estavam errados.
Você percebeu isso intuitivamente, e tomou a providência correta. Telefone público é de
todos, já diz o nome. Foi cristão em pensar no usufruto da maioria.
Adriano respirou aliviado.
— Falta o terceiro e último caso que o aflige. Relate, Adriano.
— Era uma obra que eu supervisionava numa escola da periferia de Brasília. A
Diretora revelava ser muito religiosa. Três vezes por dia ela e o corpo docente rezavam,
rogando o amparo de Jesus para aquela comunidade escolar. Notei que as canaletas que
captavam as águas servidas estavam sujas e obstruídas, podendo trazer problemas de saúde.
— E o que fez?
— Eu perguntei a ela, com polidez, é claro: "Diretora, pede a Jesus para afastar a
dengue, também?". Ao que ela respondeu: "Claro! Todos os dias". Então, eu disse: "Senhora
Diretora, é muito trabalho imposto a Jesus. São coisas da nossa competência. Mande limpar
regularmente as calhas, que Jesus ficará muito contente e mais livre para tratar de outros
assuntos".
— Ela zangou-se?
— Não. Agradeceu a lembrança.
— Realmente, Adriano, você está correto. E ao que tudo indica, aquela senhora parecia
ser uma cristã praticante. Sendo sincera, então não se chatearia com você. Era um alerta bemvindo. Mas, outra pessoa qualquer poderia ter-se aborrecido com a sua forma de colocar o
problema. Conteúdo correto. Forma errada de comunicar.
Adriano estava um pouco envergonhado. Em três questões que envolviam conciliar
cidadania e atitude cristã, acertara plenamente só em uma. De zero a dez, obtivera nota abaixo
de cinco. Mas Lis era muito hábil e, diante da expressão de desapontamento de Adriano,
rematou:
— Veja bem, é fácil eu lhe dar conselhos. Eu também tenho dificuldades diante de
situações que apresentem várias alternativas para agir como cidadã-cristã. Você já tem a
receita para os casos de dúvida. Citou o mandamento que se aplica. Se, apesar disto, ainda
persistir a dúvida quanto a como proceder, lembre-se de que nessas horas nossos mentores
espirituais, os prepostos de Deus, nos sopram a solução ao ouvido. O grande problema é que
nem sempre estamos sintonizados com o Mais Alto. Ou seja, eles sopram e a gente não
registra. Faz-se necessário, então, orar e vigiar sempre. Não é simples?
Adriano não resistiu. Deu um abraço apertado em Lis.
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CAPÍTULO 14
ARRUMANDO AS MALAS
Rovi não conseguiu reunir todos para dizer da sua decisão de se ausentar por um mês.
Cada um dos seis fora se recolher em horário diferente. O contato durante o sono foi quase
que individual, à exceção de André e Liane. Ela contava uma história para André e
adormeceram juntos. Rovi os aguardava na outra dimensão. Tomou os dois pelas mãos e
foram até uma praça muito bem iluminada, repleta de crianças que, como elas, encontravamse em processo de desdobramento pelo sono. Cantavam de mãos dadas uma cantiga de roda,
daquelas que só algumas pessoas se lembram.
A iluminação intensa assemelhava-se à luz do sol. Sentaram-se num banco. André
acomodou-se no colo de Rovi. Liane recostou a cabeça no ombro do jovem de cabelos
azulados. Este iniciou a difícil conversa de preparo para a partida. Falou da necessidade do
retorno a Zênidon. Que ele também tinha uma família, tão bonita quanto a deles. Os meninos
não disseram uma só palavra. Ouviram, atentos, parecendo conformados diante dos
argumentos de Rovi.
Voltaram, então. Novamente em casa, Rovi pensou em Élida.
Ela estava longe. Como fazer para encontrá-la? Aproximou-se do cordão fluídico que
era visível aos olhos de Rovi, saindo do seu corpo. Ao penetrar o campo magnético do
cordão, repentinamente transportou-se como que num passe de mágica até a França. Lá estava
ela. Conversaram num local aprazível à beira do rio Sena. Frequentemente, Élida se
transportava a Paris, durante o sono, satisfazendo o desejo constante – quase uma ideia fixa –
de visitar a cidade luz em estado de vigília. Foi uma conversa mais adulta, porém
descontraída. Élida tinha uma noção exata do papel que Rovi desempenhara na harmonização
da sua família, contribuindo sobremaneira para o crescimento de cada um. Tiveram a
oportunidade de visitar as áreas mais encantadoras do Louvre, enquanto dialogavam. Mas
Rovi tinha o seu tempo contado. Ainda faltavam Léo, Adriano e Lis.
Rovi descobrira que, aproximando-se do cordão fluídico, poderia voltar a transportarse ao quarto da garota. Assim fez. Em frações de segundo retornava. Passou ao quarto de Léo.
Procedendo da mesma forma, localizou Léo numa praia da Bahia. Caminharam
descalços na areia enquanto conversavam. Seria uma breve viagem a locais que abrigaram
intrigantes civilizações. Ao retornar, então, consideraria sua missão cumprida. Aguardaria
sinal de Zênidon quanto à forma de voltar ao seu planeta. Se pelo mesmo processo utilizado
para sua chegada à Terra, se a bordo de alguma nave, que a exemplo da Z-37, estivesse em
missão por perto.
Léo fez uma pergunta curiosa. Se poderia, em estado de desdobramento, visitar
Zênidon. Rovi prometeu verificar cuidadosamente para depois responder com precisão. Mas,
já sabia de antemão dos limites relacionados a diferentes graus de evolução. No entanto, não
era de todo impossível.
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Perto do amanhecer, o nosso extraterrestre encontrou Lis e Adriano. Dormindo, ainda
em processo de desdobramento portanto, estavam num grande centro de atividades múltiplas
da dimensão Alfa-3 nas proximidades de Brasília. Participavam os dois de cursos diferentes,
com títulos muito sugestivos: Ação e Reação, caso de Lis e Energias Curativas, caso de
Adriano. Ao terminarem as aulas, o instrutor que ministrava o curso a Lis procurou Rovi. De
forma fraternal, agradeceu a ajuda que estava prestando à família. Lis, nos últimos meses,
despontara como uma das alunas mais dedicadas e brilhantes, num desabrochar invejável para
as verdades do Eterno. Adriano apresentava um novo vigor e dedicação. Rovi, ao ser tratado
com muito respeito, revelava a sua hierarquia, diante de instrutores voltados ao crescimento
espiritual daqueles que haviam despertado para essa necessidade.
Rovi sabia que a grande maioria dos terráqueos entendia o sono físico como
reequilíbrio de forças, fundamental para a saúde orgânica.
Adriano quando tinha as crises de insônia – diante dos problemas próprios do cotidiano
–, em não descansando o suficiente, ficava bem mais vulnerável às doenças. Interessante, em
Zênidon, que possuía um ciclo diferente da Terra, seus habitantes dormiam bem menos...
Muitos terráqueos sequer imaginavam o intenso leque de atividades disponíveis
durante o desdobramento que ocorria em função do sono.
Observador que era, Rovi já aprendera também que o estado psíquico em que a pessoa
estava ao dormir condicionava as suas atividades no plano espiritual, na dimensão Alfa-3.
Dirigir-se a trabalhos nobres, como os que presenciara no centro de atividades múltiplas no
plano astral, exigia preparo. As crianças de Lis e Adriano, quando se esqueciam de fazer as
suas preces ao deitar, muitas vezes se dirigiam a lugares indesejáveis. Compreendera que
quanto maior a conturbação ao dormir, maiores também as possibilidades de pesadelos.
Lis e Adriano ultimamente estavam se conduzindo de forma sábia para reciclagens
importantíssimas. E a educação dos meninos tinha a solidez da espiritualização. Quão
importante ele considerava a união da família e o esteio que representavam os pais!
Os primeiros raios de sol começavam a dourar a noite. Rovi julgou que se
desincumbira da difícil tarefa que prefaciava a sua ausência. Estivera conversando com todos.
Além do mais, a noite fora rica em meditações.
E Rovi parte.
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CAPÍTULO 15
UMA VIAGEM PROVEITOSA
Depois da edificante palestra a bordo da Z-37, Órion deixara uma relação de lugares
interessantes, envoltos em mistério e que poderiam ser visitados por Rovi. Uma viagem de
cunho cultural a tais lugares não só enriqueceria os conhecimentos do Rovi, mas poderia
trazer muitos subsídios aos departamentos de História do Universo existentes em Zênidon. Os
zenidonianos tinham máximo interesse em tudo que se relacionasse com a troca
interplanetária de influências.
Rovi guardava o hábito de visitar bibliotecas. Muito havia lido sobre a Atlântida.
Começara pela fonte direta, nos relatos de Platão em um de seus Diálogos, sobre o continente
perdido, destruído por um cataclismo vulcânico. O fenômeno da destruição da Atlântida é
imaginado pelos cientistas como provocada por uma força destruidora equivalente a mais de
quinhentas bombas atômicas.
Dentre os locais cogitados para a localização da Atlântida, Rovi descartou Santorino e
Creta, no mar Mediterrâneo, e também as Bahamas, preferindo as ilhas portuguesas do
Atlântico. E viajou para a cratera das Sete Cidades, na ilha de São Miguel, nos Açores.
Muitos investigadores da Atlântida julgaram que a capital do continente desaparecido, a
cidade de Posidópolis, jaz sob as cinzas e o lodo do fundo do mar exatamente ali. Os Açores,
as ilhas de Cabo Verde, as Canárias e a Ilha da Madeira seriam os cumes das montanhas da
Atlântida.
O nosso extraterrestre respeitava muito as teorias de um dos primeiros atlantólogos,
Ignatius Donnelly, americano que publicara em 1882 o livro Atlântida, o Mundo
Antediluviano. A teoria de Donnely continha muitos exageros, mas fascinava Rovi a tese de
que as semelhanças entre as culturas pré-colombianas da América e a antiga cultura egípcia
tinham um cerne comum – a Atlântida. Dentre as semelhanças, a construção de pirâmides, a
técnica de embalsamar, o calendário de 365 dias, a tradição do Dilúvio.
Do ponto mais alto da região, o olhar perdido de Rovi, extasiado com o azul-verde do
mar, imaginando como deveriam ser belos os mares que Zênidon tivera há tanto tempo atrás...
Satisfeita a sua curiosidade estudiosa, Rovi partiu para o Egito. Os locais que Rovi
visitava, de inconcebível valor cultural, geravam interesse nas várias dimensões da vida. Em
sua dimensão Alfa-3, podia-se encontrar centenas de visitantes extraterrestres, em pequenos
grupos ou grandes excursões organizadas, além dos visitantes terráqueos.
Em Gisé, estava Rovi diante da pirâmide de Quéops. Parara junto a um dos vértices da
base monumental. À esquerda e à direita, divisava as arestas horizontais. À frente, seu olhar
percorria a linha que levava ao ápice. Mais de dois milhões de blocos de pedras, numa obra
que era testemunho do progresso que os egípcios haviam alcançado já na quarta dinastia. Rovi
sentia um agradável arrepio. Ao tempo em que se emocionava, percebia que a energia do
local penetrava em seu corpo. Sabia também que naves intergalácticas pequenas evitavam
sobrevoar as pirâmides para prevenir avarias nos aparelhos eletrônicos.
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Depositados ali dentro, vestígios de uma ciência tão avançada quanto misteriosa para a
época de sua construção. Sua altura multiplicada por um bilhão era exatamente a distância da
Terra ao Sol. Tal conhecimento, exibido pelos egípcios há 2.900 anos antes de Cristo, levara
mais de dois séculos para ser definido pelos astrônomos, num período desde Aristarco até
seus colegas de cem anos atrás. Blocos de até 12 mil quilos extraídos das pedreiras,
transportados, içados, encaixados com precisão milimétrica...
Só mesmo a grandeza de Granon supera, não é mesmo? – soou uma voz delicada às
costas de Rovi.
— Como é bom ouvir a nossa língua! – disse Rovi, voltando-se, desperto
abruptamente das divagações, deparando-se com uma bela jovem de cabelos negros.
— Meu nome é Rovi e o seu? – disse ele, estendendo satisfeito a mão.
— Nebai. Seus cabelos azuis denunciam que você é de Zênidon.
— E o seu rosto me diz que você é nossa vizinha. Cabelos negros... dos nossos irmãos
de Ashanir, a meio-caminho de Zênidon e Gumak. Acertei?
Não, Rovi não se prendera só aos cabelos negros de Nebai. Era visível a harmonia das
linhas de seu rosto. Os olhos brilhantes, da cor do âmbar, possuíam um magnetismo
indescritível.
— Sim, acertou. Eu observava você, absorto com a pirâmide. Emocionei-me tanto
quanto você, ao visitar a Colunata de Amenófis II, no Templo de Âmon, em Lúxor. Fiquei
embevecida também diante do mais antigo exemplo de inscrição em pirâmide, em Sacará, na
Pirâmide do Rei Unas. O que faz na Terra?
— Um estágio. Numa família comum. Já estou prestes a retornar a Zênidon. E você,
Nebai?
— Estou de passagem pelo Egito. Trabalho na Junta Universal de Combate às Drogas.
Seguiremos amanhã para a América, especificamente uma viagem de trabalho a alguns países
da América do Sul. Fale um pouco do seu estágio. Acho muito interessante os vínculos de
família que ainda permanecem entre vocês zenidonianos. E essa preocupação com a família
se manifesta até nos estágios.
Rovi senta-se num banco rústico, induzindo a jovem a sentar-se ao seu lado.
— Você tem razão, Nebai. A família, como todas as instituições, sofre transformações,
à medida que o tempo passa. Em Zênidon, apesar de conquistarmos o espaço, apesar da
tecnologia, apesar dos avanços morais, curiosamente, o conceito de família permanece como
há milhares e milhares de anos. Prova de que a evolução não acontece de igual forma nas
civilizações.
— Ashanir tem um desenvolvimento parecido com Zênidon, mas o conceito de família
é totalmente diferente. A família é mais ampla... talvez em função do prejuízo biológico que
tivemos em decorrência da hecatombe nuclear que assolou o planeta há muito tempo. Como
você sabe, a procriação, hoje em meu planeta, só se dá por meio da inseminação artificial,
67
além da gestação só acontecer nos laboratórios. Vivemos até os setenta anos – dez anos dos
terráqueos – nos centros vivenciais, momento em que podemos decidir se escolhemos nossos
pais ou não. Imagine de que tamanho não é a nossa “família” de até então...
— Pois é, Nebai, quantos não são os caminhos desse universo maravilhoso para se
chegar a Granon...
Rovi e Nebai percorriam o interior das pirâmides como dois amigos que se
conhecessem de longa data. Estabelecia-se entre eles um clima de amizade pura e verdadeira.
Uma satisfação íntima tomava conta dos dois, pela afinidade que se apresentava
surpreendente e repentinamente.
— Rovi, responda-me. Como pode o convívio com uma família da Terra ser
importante a ponto de merecer um estágio de um zenidoniano? Num estágio, não é
fundamental que se aprenda alguma coisa?
— Já me fiz essa mesma pergunta, Nebai. A família com a qual convivo tem um
relativo equilíbrio. Não que tenha sido sempre assim desde a sua constituição. Hoje, Lis e
Adriano ainda têm “seus altos e baixos”. Mas a busca das coisas espirituais, o cultivo da
religiosidade, operou transformações substanciais no núcleo familiar. Veja bem: nem sei qual
a religião que abraçaram. Muitos já entendem que rótulos não são importantes e que só o
conhecimento liberta. Adriano e Lis são pessoas falíveis e imperfeitas, querendo corrigir seus
rumos segundo um código de procedimentos em vigência aqui no planeta: o de Jesus, o
modelo máximo.
— Você chegou aonde eu queria, Rovi. Você, por pertencer a uma classe superior em
todos os sentidos, não recebe ensinamentos, só os dá.
— Querida Nebai. Aí é que você se engana. Tenho ganho muito com a família.
Qualquer pessoa, de qualquer grau evolutivo, sempre pode nos ensinar algo, se tivermos a
humildade de enxergar o aprendizado em todas as coisas da vida. Você sabe que existem
civilizações que cresceram vertiginosamente em alguns sentidos, permanecendo em níveis
rastejantes no campo moral. Nós, em Zênidon, vocês em Ashanir, não temos nada mais que
aprender? Estamos completos?
— Tem razão, Rovi. Na minha área de trabalho, tenho contato com o tráfico de drogas
em nível interplanetário, comandado por seres que, à despeito de deterem a mais alta
tecnologia, menosprezaram os princípios morais que devem reger o universo. São muitos os
caminhos da evolução. E você disse bem: a vida é constante aprendizado.
— Voltando ao assunto da família em que estagio. Tive a felicidade de estar numa
família como a que descrevi. Eles percebem a minha presença na dimensão Alfa-3 e temos
conseguido razoáveis comunicações. Mas, existem seres na Terra que têm uma caminhada
árdua ainda pela frente. A fixação tão-somente nas coisas materiais obnubila a sua mente para
a nossa presença. Mas, veja bem, não permaneci somente restrito ao círculo da família, e nem
deveria. Tudo me é motivo de estudo. Conheci muitos locais e muitas outras pessoas
diferentes.
— Veja Rovi, que lindo aquele relevo em calcário: o cotidiano de uma família egípcia.
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Rovi e Nebai conversaram sobre a história da Terra registrada nos arquivos do
universo, diferente da história oficial, que nunca mencionara o contato com civilizações
superiores, que ficara legado apenas às lendas e ao folclore dos povos. Rovi mencionou a
Nebai o folclore esquimó, em que comparecem relatos de tribos transportadas da Ásia
Central, do Ceilão e da Mongólia, para a Groelândia, há milhares de anos, por meio de
“gigantescos pássaros metálicos”.
Nebai, por sua vez, estudiosa que era, falou das lentes ópticas, datadas de tempos
imemoriais, encontradas no Iraque e na Austrália. Como entender um tratamento de lentes
com processos que utilizam o óxido de cério, ou outros mais modernos? E as vitrificações do
solo que haviam sido encontradas no deserto de Gobi, semelhantes àquelas produzidas por
explosões atômicas?
Rovi falou ainda da literatura a que tivera acesso na sua breve passagem pela Terra.
— Sabe, Nebai, existem produções literárias terráqueas que apenas resvalam na
verdade, mas são marginalizadas, relegadas ao terreno da ficção e das conjecturas. Um
casamento dessas obras com a ciência tradicional parece ainda uma utopia. São muitos os
investigadores que têm um verdadeiro preconceito quanto a possibilidade de que a Terra
tenha abrigado civilizações mais desenvolvidas que as de hoje. Parece-lhes um contra-senso.
Ah! se autores como Pauwels e Bergier, de um livro que li chamado O Despertar dos
Mágicos, tivessem acesso aos nossos departamentos de história universal... Ficariam
exultantes ao obter detalhes sobre as inscrições que citaram em sua obra, encontradas nas
cavernas do Boistã. Acompanhadas de mapas astronômicos, representando as estrelas na
posição que ocupavam há treze mil anos terrenos, linhas muito significativas interligando
Vênus à Terra...
E assim transcorreu o dia de Rovi e Nebai. Percorreram juntos as relíquias históricas
que tanto tocavam a acurada sensibilidade de ambos. O seu alto senso crítico, e a sua mente
aberta analisaram as manifestações da evolução de uma civilização, cujas intempéries eram
semelhantes, na marcha ascensional, em mundos que, não importava, podiam estar a mil
anos-luz de distância entre si.
Os dois extraterrestres, tão exuberantes na sua juventude, fizeram planos de se
reencontrar. Consultaram suas agendas, examinaram a possibilidade de estarem juntos, quem
sabe, no Peru. Nisso, eram muito semelhantes a tantos imperfeitos terráqueos, nos seus
anseios de dividir e usufruir do sentimento inexplicável que tomava conta dos dois.
E chegou, por fim, a hora da despedida. Rovi tinha seus compromissos. Nebai, os
dela. Trocaram olhares cujo significado só os dois compreenderiam.
Prosseguiria então Rovi em sua viagem. Seu destino também era a América, a começar
por Honduras, Guatemala, pela península de Yucatan, pela cidade do México. Antes porém,
Rovi passou um dia inteiro em uma biblioteca do Cairo. Civilizações desaparecidas
misteriosamente ou massacradas cruelmente pelos “colonizadores”, aviltadas na sua
integridade, na sua cultura, eram agora o objetivo dos estudos do nosso extraterrestre. E Rovi
mergulhou na história registrada oficialmente dos astecas, de seus antecessores toltecas, dos
mais ainda desenvolvidos maias.
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A ciência dos maias, em muitos aspectos, segundo Raymond Cartier, ultrapassara a dos
gregos e a dos romanos. A todo momento, analogias artísticas às vezes com o Egito e em
outros aspectos com os etruscos, ou seja expressões comuns à Europa, Ásia, indicando uma
origem única.
Aprofundou-se Rovi na história dos incas, civilização com que se deparou o espanhol
Pizarro, em 1532. Suas tradições falavam de uma raça de grandes senhores, já então
desaparecida, que teria vindo do espaço.
Chamou a sua atenção os achados interessantíssimos do explorador Daniel Ruzo
quanto ao planalto desértico de Marcauasi, a 3.800 m de altitude, a oeste da Cordilheira dos
Andes. Ruzo seria levado a concluir, pelas estátuas e rostos esculpidos na rocha, que ali
poderia ter sido o nascedouro da civilização mais antiga do mundo. Numa fotografia de um
trabalho esculpido do rosto de um velho, o negativo da fotografia apresentaria um rosto de um
jovem...
Os relatos de Cynthia Fain fazem com que Rovi fique a imaginar as razões de certas
lendas bolivianas, que datavam de mais de cinco mil anos, dizendo de civilizações que teriam
desaparecido após conflitos com uma raça não-humana, cujo sangue não era vermelho...
Quanto material precioso! E Rovi empreende a sua viagem a tais locais, num contato
agora concreto com aquelas preciosidades históricas de valor inestimável. Relatórios
riquíssimos foram enviados por Rovi ao Controle de Estágio, em Zênidon, com vistas aos
departamentos de História.
Recordava-se às vezes dos seus queridos tão distantes, em Zênidon. Por vezes se
lembrava da família de Lis e Adriano, que aprendera a amar. Por onde andaria agora Nebai,
na sua missão tão nobre de conter o avanço de deploráveis viciações e do tráfico maldito, de
proporções tão avassaladoras?
Já no México, Rovi examinava a Pirâmide do Sol e meditava. No terreno da
arqueologia, era provavelmente tão importante quanto o túmulo de Quéops. Quantas
semelhanças! Na cidade do México, Rovi não se conformava, fraterno como era, que
estivesse pisando sobre uma cidade erigida justamente sobre uma outra cidade asteca
aniquilada e soterrada pelos espanhóis, numa demonstração de crueldade e de equivocado
poder.
O destino de Rovi era agora o Peru, depois, a Ilha de Páscoa, a 3 mil quilômetros do
Chile. Retornaria então ao Brasil.
Vinte dias haviam decorrido desde o seu encontro com Nebai, quando chegou a Cuzco,
a antiga capital do império inca. Descia pelas ruas estreitas da cidade, observando as igrejas e
construções do período colonial. Dirigia-se à estação onde pegaria o trem para Machu Picchu,
seguindo o famoso caminho dos incas. Observava os grupos de terráqueos, visivelmente
cansados pela altitude singular. A alegria das roupas coloridas dos nativos contrastava com a
própria expressão que, muitas vezes, denotava terem passado por dias difíceis na vida.
— Onde vai, meu rapaz?
70
Rovi emerge da sua contemplação. A voz era de um homem da dimensão Alfa-3 que
lhe segurava o braço.
— Você vai gostar do que tenho para lhe oferecer.
Rovi custa a acreditar no que vê. Um extraterrestre lhe oferecia droga. A que ponto
chegara a organização criminosa. Lembra-se das palavras de Nebai.
— Não uso, meu amigo. O senhor não tem filhos? – pergunta Rovi.
— Não venha com esse tipo de conversa, rapazinho azulado. Faço o meu trabalho.
Mal lhe volta as costas e o traficante intergaláctico é abordado por dois homens
armados, também da dimensão Alfa-3 que o subjugam.
— Você virá conosco.
Ante o olhar atônito de Rovi, uma voz soa do outro lado da rua.
— Não se assuste, Rovi. Não iremos fazer-lhe nenhum mal.
Era Nebai, em plena atividade nas ruas de Cuzco. Rovi preferiria vê-la em outras
circunstâncias.
— Que bom vê-la de novo, Nebai. O que irão fazer com ele?
— Os guardas irão levá-lo até a nossa nave. Permanecerá lá por quatro horas.
Nenhuma violência será praticada contra ele. Mas terá de se submeter a uma sessão educativa.
Imagens ser-lhe-ão projetadas sobre os desastres da droga. E terá uma conversa com os
nossos psicólogos, ao tempo em que lhe serão ministradas sessões de terapia com cristais,
objetivando o realinhamento de seus chakras, visivelmente descompassados. Ser-lhe-ão
oferecidas novas oportunidades. Caberá a ele optar. Mas nosso trabalho não é só o de
remediar. Temos um trabalho muito sério e disciplinado no terreno da prevenção.
— Gostaria de conhecer mais do seu trabalho, Nebai. É muito valioso.
— Acompanhe-nos até a nave, então.
Rovi caminha com Nebai pelas ruas estreitas de Cuzco. Ele reassume a postura de
tranquilidade tão característica sua. E retomam a conversação iniciada nas terras misteriosas
dos faraós.
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CAPÍTULO 16
O MÊS SEM ROVI
Memorável aquele mês. Sleepy, ao passear sem coleira com Adriano, como sempre
fazia, atravessa a rua de supetão e é atropelado. Felizmente uma fratura pequena.
Lis baixa ao hospital por duas vezes acometida de infecção renal. Numa das crises em
que se precisou do seu próprio médico, de madrugada, este recomenda que ela procure um
pronto-socorro e não a ele que estava com muita dor de cabeça. Quando tudo passa, Adriano
não perde a oportunidade de escrever um artigo relacionando Hipócrita com Hipócrates.
Frequentemente, quando atendia aos seus primeiros e impensados impulsos, escrevia cartas de
protesto terríveis, despejando o fel da sua insatisfação.
Como se não bastasse, Adriano bate o carro, trazendo despesas que pesaram no
orçamento doméstico. A lataria pesada da belina verde escangalhara muito o outro carro mais
novo. André, brincando com o martelo, erra a pontaria e quase esmaga o dedo indicador,
produzindo um enorme hematoma. Élida vai mal em Português e História. Um estado
emocional inexplicável lhe provocou tonturas durante os testes. Liane apresenta um
comportamento mais agressivo. Pouco cantou no banheiro por aqueles dias. Pouco se
interessou por coisas de que sempre gostou. Léo é pego em flagrante pelo seu Halim, do
empório sírio, pichando com spray na lateral do prédio dizeres tão românticos quanto
denunciadores: "Gabi. Estou vidrado em você. Léo".
— Caramba, esse mês não acaba mais! – observa Adriano, enquanto Lis prega um
botão na blusa. — Parece que o mundo resolveu desabar. Coisa estranha...
— Não vejo assim, Adriano. São coisas que acontecem a qualquer um. Não queira
atribuir os fatos a nenhuma causa mística. A maioria das coisas que nos acontecem provêm da
nossa imprevidência ou da nossa insensatez.
— Pode ser. Mas às vezes sinto como se alguém que nos dava suporte nos tivesse
abandonado.
Lis não faz mais comentários. Ela também sente um vazio.
Entra Liane, segurando o pequeno vaso que enfeitava sua janela.
— Papai, as minhas violetas murcharam, veja. Não foi por falta de água.
— Bem, pode ser por falta de carinho, Liane.
— Ué, como assim?
— Posso explicar? Então, sente-se aqui pertinho.
Élida está pintando uma capa de trabalho escolar. Léo tenta jogar xadrez sozinho.
Ouvidos atentos para o desenrolar do assunto. Adriano respira fundo como que a concatenar
as ideias.
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— Lembram-se do abacateiro da Wilma? Eram abacates grandões. Ah! Que delícia!
Mas o pé era todo inclinado e cada colosso daqueles que despencava, era prejuízo na certa.
Telhas quebradas, uma atrás da outra. O abacateiro era, então, um problema sério. Em
respeito aos muitos anos de serviço no bem, produzindo abacates agigantados sem cessar,
reúne-se a família certo dia para tratar do assunto delicado. Mudar a casa de lugar,
impossível. Mudar o abacateiro, também não. Já havia passado da idade. Comunica-se, então,
ao abacateiro que ele teria que ser sacrificado. Sabiam do prazer que havia lhes
proporcionado desde as batidas com leite ou com água e limão, até as saladas, à moda dos
mexicanos. Só que não foi necessário cumprir com a sentença – a partir daquele dia, o
frondoso pé de abacate não mais floriu e nem produziu um fruto sequer...
— E as violetas? – pergunta Léo.
— Não perdi o fio da meada, não – completa Adriano. — Estou falando da
sensibilidade dos vegetais. Existe um livro chamado A Vida Secreta das Plantas, de
Tompkins e Bird, se não me engano, que Marcos me emprestou. Dentre os relatos citados
nesse livro, é muito interessante o experimento em que são colocados dois filodendros –
aquela planta enorme do jardim da sua avó, das folhas grandes – em uma sala, um deles
devidamente acoplado a sensores que monitorariam suas reações, diante de fatos anormais.
Vários colaboradores recebem, a partir daí, ordens expressas de não divulgarem a ninguém as
tarefas de que seriam incumbidos, tudo por meio de sorteio. Uma das tarefas que um único
colaborador recebeu foi a de destruir o filodendro não monitorado, em determinada hora,
sozinho, sem contar nada aos companheiros. Feito isso, nem os cientistas sabiam quem teria
sido o autor do "assassinato". Cada um dos participantes da experiência volta, então,
separadamente ao "local do crime". Eis que os organizadores, muito atentos, conseguem
identificar, pelas reações monitoradas do filodendro sobrevivente – e testemunha, por sinal –,
o autor do trucidamento do pobre vegetal. Os inocentes não despertavam quaisquer oscilações
nos aparelhos ligados à planta, enquanto que a reação à presença do "assassino" foi visível e
reveladora.
— Isso quer dizer que vegetal pensa? – indaga Élida.
— Nem tanto. Mas tem sensibilidade. Nesses e outros relatos que existem no livro, os
autores colocam as plantas num patamar respeitável em termos de percepção. Isso reforça a
teoria sobre a escalada evolutiva dos seres vivos em direção à conquista da racionalidade. Se
os rudimentos de inteligência são visíveis no reino vegetal, o que não dizer no animal...
— O Sleepy é mais evoluído do que um pé de alface – observa Léo, matreiro.
— Não há dúvida, Léo. Hermínio de Miranda, no seu livro Nossos Filhos São
Espíritos, é brilhante quando trata dessa matéria. Ele nos dá uma visão clara nesse campo
quando nos fala da percepção dos bebês, que é muito expandida. Os bebês chegam a captar
uma reação de aversão ou de aceitação de alguém em relação a ele mesmo nos primeiros
momentos de vida. À medida que crescemos essa percepção vai diminuindo. O embotamento
dessa faculdade varia em grau, de pessoa para pessoa. Nos que possuem uma maior
sensibilidade, é evidente que ela não só permanece, mas se amplia.
Lis quer que Adriano conclua.
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— Vai daí que estamos rodeados por uma infinidade de seres que captam sutilmente as
nossas reações mais secretas, desde as plantas, como os animais e o que não dizer dos
companheiros da dimensão espiritual. E não restam dúvidas que essas influenciações são
bilaterais. Intercambiando energias, tanto recebemos, quanto emitimos sensações, emoções,
mesmo sem a materialização do pensamento pela palavra falada.
— Não fale difícil, Adriano. André e Liane estão atentos e querem entender.
— Concluindo, temos que meditar profundamente sobre o nosso mundo íntimo, tão
devassável. Isso exige uma nova postura de todos nós, partícipes da Criação, desse
ecossistema cósmico. A harmonia com o universo é um imperativo. O Criador coloca à nossa
volta seres que interagem em quantidade e qualidade tal que dificilmente conseguimos
imaginar. Isso, com certeza, na expectativa de um equilíbrio geral pelo qual somos
responsáveis, na qualidade de seres que já recebemos o chamado selo da inteligência, não
podendo mais alegar ignorância e tirar o corpo fora...
Lis pega André no colo.
— Você entendeu tudo, fôfo? Papai vai se empolgando, empolgando...
André emenda, com expressão tristonha, fazendo beicinho:
— Meu amigo de cabelo azul foi "embola".
74
CAPÍTULO 17
O RETORNO DE ROVI
Querido Rovi. Os dados sobre as influências de extraterrestres na formação das
civilizações egípcia, asteca, inca e maia foram importantíssimos para nossos laboratórios de
pesquisas históricas. Parabéns! Sabedores de que você tenciona ainda ir à Ilha de Páscoa,
tomamos a liberdade de solicitar que altere seus planos e volte a Brasília imediatamente. Sua
ausência provocou desarmonia no lar de Adriano e Lis. Faz-se necessário um trabalho de
conscientização para que o seu retorno, em breve, para Zênidon não seja a causa de mais
distúrbios na família. Que Granon esteja com você!
Rovi desligou o Transmissor de Impressões. Estava preocupado. Tinha de retornar
depressa.
— Nebai, tenho que resolver alguns problemas em Brasília. Após, devo seguir para
meu planeta.
— Vá, Rovi. O dever em primeiro lugar. Que você resolva tudo a contento. E, com
certeza, vamos nos reencontrar. Obrigado pela companhia. Que Granon esteja com você.
Era o início de uma amizade sem fronteiras. Rovi abraça Nebai e diz:
— Costumam dizer aqui na Terra: “esse mundo é pequeno”. Digo eu então: “esse
universo é pequeno...”
Quatro da tarde. Estava em Cuzco, no Peru. Difícil achar uma pessoa de Brasília que
estivesse dormindo a essa hora, e que coincidentemente estivesse passeando, em sonho, por
aquela cidade dos Andes peruanos. Teve que entrar em um avião de carreira até Lima. De
Lima foi a São Paulo. Lá pôde localizar um rapaz de Brasília que passeava durante o sono por
aquela capital. Então foi fácil utilizar o mesmo método que usara com Léo e Élida para o seu
deslocamento até Brasília.
Eram três da manhã do dia seguinte quando entrou no apartamento. Adriano, insone,
lia no sofá da sala.
Nosso amigo extraterrestre caminhou devagar, posicionando-se por trás de Adriano,
colocando as mãos de leve em seu ombro. Este sentiu um estremecimento agradável e o livro
que tinha nas mãos pendeu para o lado. E Adriano fechou os olhos, num cochilo que durou
alguns segundos. Tempo suficiente para, na transição da vigília para o sono, captar a presença
afável de Rovi.
O barulho do livro ao tocar o chão despertou novamente Adriano. Recolheu-se ao
quarto, seguido por Rovi que foi observar Lis, Élida, Liane, Léo e André em suas camas.
Estendeu as mãos sobre cada um, mais demoradamente sobre a testa, em movimentos ora
circulares, ora longitudinais ao longo do corpo.
Desse momento até ao amanhecer, permaneceu pensativo, velando o sono de todos.
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Meditava sobre os rumos que havia tomado o seu estágio. Jamais supôs que passaria
por situações tão particulares e inusitadas. Muito se fala do aprendizado zenidoniano nessa
viagem. Sabia agora que inevitavelmente há uma constante troca de sentimentos.
Tinha uma teoria sobre o que se passava com a família de Adriano e Lis. No momento
em que ingressou no cotidiano deles, estes passaram a depender da presença dele para que a
harmonia física e espiritual se fizesse naquela casa. De atuantes, passaram a dependentes. Isso
ficava provado quando de sua ausência para a breve viagem.
Pensou imediatamente em solicitar instruções ao Controle de Estágio. Não, não era
correto. Por que não resolver sozinho a delicada questão? Falaria com Zênidon só em último
caso.
Os empecilhos residiam na inabilidade dos terráqueos de transitar mais assiduamente
pela dimensão Alfa-3. Nas passagens por essa dimensão sutil quando nos desprendimentos do
corpo durante o sono, a retenção na mente de tudo o que presenciavam dependia de tanta
coisa! Dependia da idade de cada um, dos conhecimentos, da evolução espiritual, dos
condicionamentos. Quantas e quantas vezes havia conversado com todos... Nem dez por cento
de assuntos importantíssimos, às vezes, ficava retido.
Seria muito diferente se pudesse romper essas barreiras de comunicação e dar o seu
recado objetiva e diretamente. O contato subjetivo não satisfaz plenamente.
Na sua pesquisa envolvendo as religiões da Terra havia percebido um ponto comum
entre elas. Na busca da transformação interior, seja em qualquer religião que abrace
seriamente, o homem tem de estabelecer constantemente, pelas vias meditação e da prece, a
ponte com o Pai Criador. Muitas vezes constatou o estado psíquico que os terráqueos
alcançam quando em estado de prece, colocando-os próximos da dimensão Alfa-3. Tornou-se,
ele próprio, visível muitas vezes a muitas pessoas em templos diversos por onde andou, na
busca do conhecimento.
O homem da Terra desconhece os benefícios que advêm da maior permanência nessa
dimensão Alfa-3. Havia lido que a ressonância magnética tem permitido analisar as variações
da atividade cerebral durante as preces. Rovi constatara que existia um percentual de cura de
doenças físicas, e até de depressão, muito maior entre pacientes religiosos, do que entre
aqueles que não manifestam interesse pelas coisas espirituais.
Rovi andava, pensativo, dos quartos para a sala, da sala para a varanda. Felizmente, a
família de Lis e Adriano, que era um pouco sua também, tinha essa inclinação para as coisas
do espírito. Como os terráqueos eram estranhos! Tinham a fonte cristalina dos ensinamentos,
mas não bebiam dela a todo instante, como seria desejável.
A Terra possuía os livros necessários e suficientes para dar o suporte para a chamada
renovação interna. Se houvesse uma assimilação sincera, uma vivência efetiva daquelas
verdadeiras receitas de vida... Era uma pena!
Mas aquela família estava no caminho certo. Isso sim. O que Rovi estranhava era a
morosidade que se imprimia às mudanças que deveriam operar-se em todos. Enfim...
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O leitor já percebeu que Rovi gostaria de mostrar-se por inteiro, e também preparar a
família para a sua despedida e retorno ao lar. Não teria paz se soubesse que a sua ausência
definitiva causaria males talvez maiores que aqueles que aconteceram após a sua breve
ausência, em viagem de estudos. Elevou uma prece sincera a Granon, pedindo que o ajudasse
nessa difícil empreitada. E continuou meditando até o dia amanhecer. Sua prece havia rasgado
o espaço.
77
CAPÍTULO 18
UMA LUZ NO FIM DO TÚNEL
— &Ú Toró-toró-toró Ú &Œ Vamos levantar, todos. O dia já raiou. Raiou às seis, mas
já são oito e meia. Hoje é feriado. Tomar café todos juntos, soldados – foi o toque de
despertar de Adriano.
— Hmm! Temos café pronto? – pergunta Lis.
— Com pão de queijo, feito por mim — responde Adriano abrindo a cortina.
Não houve quem ficasse na cama. O sol invadiu o ambiente, como que a completar a
tarefa de aquecer os corações. A alegria voltava ao lar, tão tumultuado nos últimos dias.
— E esse cheiro de queimado?
— Só pode ser o tal do pão de queijo do Recruta Zero – observa Léo a Élida.
— Ôba, acho que nós vamos passear hoje, Liane – completa André.
— Eu queria dormir mais – choraminga Liane, fazendo beicinho, numa encenação de
magoada. — Bem na hora em que eu estava voando com o meu amigo anjo, do cabelo azul.
Adriano senta-se na cama de Liane e diz:
— Bem, já que você estava voando, vou-lhe contar mais uma história do Villela, que
também gostava de voar.
— Aquele de Petrolina.
— Sim, que agora mora em Mirassol8. Ele era oficial-instrutor de voo, da Academia de
Aeronáutica. Estava dando aula para um aluno muito chato. Num avião de dois lugares. Tudo
que ele ensinava para o aluno, este dizia que já sabia. Se corrigia uma manobra, o aluno
contestava. Era um sabichão.
— O que é sabichão, papai?
— Quem pensa que sabe tudo e não sabe nada. Quem não tem humildade de aprender.
Pois bem, Villela percebeu, tinha que dar uma lição ao aluno. Vocês sabem, Villela era muito
exagerado nas coisas. Insistiu em corrigir um dos procedimentos do aluno. Não adiantou, o
aluno "sabia de tudo, sabia voar", afirmava. Só que o aluno nunca havia feito um solo. Fazer
solo é voar sozinho, sem ninguém para ajudar. O sabichão estava no manche, no comando.
Sabem o que Villela fez?
— Deu um beliscão no bobão? – perguntou André.
— Muito pior. Villela saltou de paraquedas. Quando chegou ao chão, enrolou o
equipamento e ficou sentado observando. Pouco depois o aluno desceu com o avião assim:
tóin, tóin, tóin.
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— Quicando – completou Liane, fazendo um gesto de sobe-desce com a mão.
— Isso – confirmou Adriano. — Mas o avião parou ao final da pista e lá ficou. Villela
foi até o avião para saber por que o aluno não o trazia até o hangar. Quando subiu na asa,
descobriu que seu aluno, branco como cera, além de estar todo molhado, não conseguia fazer
as pernas pararem de tremer.
— Era xixi, aposto!!! Bem feito! – gritou Liane.
Todos deram gostosas gargalhadas. Rovi só sorriu. Assemelhava-se à condição de
aprendiz por estar fazendo um estágio no planeta Terra. E à condição de instrutor algumas
vezes. Aquela família, felizmente nada presunçosa como o tal aluno, precisava aprender a
voar sozinha. Ele, Rovi, jamais saltaria de paraquedas nessa hora...
— Léo, passe a margarina, por favor.
— Pai, por que você não escreve um romance com as histórias do Villela? – pergunta
Élida.
Antes que Adriano responda, Lis fala por ele.
— Seu pai, acho, prefere a crônica ao romance.
— Pois escreva um romance crônico – diz Léo.
— Credo! Parece doença – comenta Élida.
Todos estão muito alegres. O clima mudou na casa. A misteriosa tristeza, que havia
tomado conta de todos, desaparecera.
— O pai do meu colega – conta Liane – parou num bar para comprar cigarro. Quando
voltou, o carro não estava mais. Um ladrão levou, em pleno dia.
— Que absurdo! – diz Adriano.
— Levarem o carro de dia? – indaga Léo.
— Absurdo parar para comprar cigarro. Cigarro faz tanto mal – completa Lis.
Todos aprovam a saída criativa de Lis.
Rovi olha carinhosamente para aquela cena. Demonstrações de alegria como que a
saudá-lo na sua volta à casa. Sabe da importância do bom humor para a preservação do
equilíbrio orgânico. Mas o humor daquela família era singular para ele. Uns, mais que outros,
mas todos conseguindo extrair o lado engraçado dos acontecimentos mais comuns do
cotidiano. Os zenidonianos haviam se esquecido desse tipo de coisa que funcionava como
uma terapia. Lá o bom humor era mais sóbrio, ponderado. Deixa-os na copa e dirige-se ao
escritório.
Adriano faz uma expressão mais séria e diz:
— Bem, já que estamos tão bem nesta manhã, vamos iniciar o dia com uma prece de
agradecimento. Que tal você, Liane?
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Imediatamente, todos fecham os olhos, como Adriano e Lis haviam ensinado. Sempre
frisaram que essa postura não era imprescindível. Mas, fechar os olhos, facilitava a
concentração. Assim, não olhando as coisas à sua volta era mais fácil estabelecer a ligação
sutil e tão necessária com o Pai Criador e as Esferas Maiores da Espiritualidade.
Para orgulho de Lis e Adriano, Liane não vacila e a seu modo profere a prece:
— Queridos Papai do Céu e Jesus, que é seu maior ajudante na Terra. Queremos
agradecer pela nossa vida, pelo alimento, pelo iogurte. Obrigado pelo chocolate que muitas
crianças não podem comer porque não têm. Ajudem, Senhor Deus e Senhor Jesus, todos os
que sofrem. Protejam o Sleepy e o Wanderley. Obrigado também pelo anjo azul. Que assim
seja.
Ao enclausurar-se no escritório, Rovi perde essa parte tão interessante.
Rovi havia consultado vários livros que poderiam auxiliá-lo. A ideia fixa era aparecer a
todos. Ostensivamente. Queria apresentar-se antes de partir. Separou vários textos sobre
materialização. Aprendeu sobre o ectoplasma, uma substância que as pessoas têm em maior
ou menor quantidade, matéria-prima fundamental para as materializações. Difícil localizar
pessoas que pudessem fornecer esse elemento em quantidade suficiente para a materialização
que pretendia. E se conseguisse chegar a esses terráqueos especiais e a experiência não
funcionasse para ele? O que os livros sobre o assunto diziam é que funcionava com pessoas
desencarnadas. Não era o caso de Rovi. Que maçada!
Não encontrava uma saída. Assim, resolveu passar a questão para seus instrutores de
Zênidon. Impossível pensar no avanço da ciência de seu planeta e não haver solução para esse
tipo de problema. Era simples! Queria ser visto! Só isso! Quem sabe a produção artificial de
ectoplasma próprio para a dimensão Alfa-3!
Liga o Transmissor. Mais que depressa passa a mensagem para Zênidon. Indaga
quanto à data provável para sua partida. E informa o motivo principal da consulta: a
viabilidade ou não da utilização de um ectoplasma artificial ou equivalente. Queria passar, no
momento de sua despedida, uma mensagem à família terráquea ao vivo e em cores. O apelo
era enfático.
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CAPÍTULO 19
NA HORA DO ADEUS
Decorreram sete dias desde a mensagem de Rovi. A vida segue normalmente na
família. Final de tarde. Rovi encontra-se à beira do lago Paranoá. O local permite uma visão
ampla da cidade. Estamos num período de seca, quando o crepúsculo, ostentando misturas
belíssimas de cores quentes, transforma o céu de Brasília num espetáculo imperdível. Os
últimos raios de sol deitam uma esteira de luz por sobre as águas mansas do lago.
Rovi está sentado numa pedra, olhar perdido na imensidão.
Uma voz ressoa às suas costas:
— Salve, meu querido Rovi.
Rovi volta-se, despertando do estado de profunda meditação. É Órion, o bondoso
comandante que, sorridente, estende-lhe os braços.
Há uma explosão de alegria por parte do rapaz, correspondida pelo sábio navegante do
cosmo, na sua forma ponderada de ser.
— Ninguém avisou nada!
— Não era necessário, meu rapaz. Você nos esperava e aqui estamos.
— Órion, estou curioso. Conseguiram o que eu queria? – pergunta Rovi.
— Sim, meu querido, você será visto pela família terráquea. Dar-lhe-ei as instruções
enquanto nos dirigimos à casa de Lis e Adriano.
O sorriso aberto do jovem extraterrestre deixa transparecer uma felicidade imensa.
— Hei, este veículo é igual ao de papai. Onde está a Z-37, Órion?
— Deixamo-la mais distante desta vez. Não queremos provocar avarias em aparelhos
eletrônicos. O campo magnético da nave é demasiado intenso. Partamos.
Durante o trajeto, Órion mostra um aparelho semelhante a óculos.
— Veja, Rovi, este aparelho é um psicoscópio MH-4. Destina-se a auscultar a alma
humana. Você tem conseguido perceber a aura dos terráqueos, cuja cor tem relação com o
estado de espírito deles, funcionando como um espelho a refletir a parte emocional de cada
um. Mas a sua visão é restrita e exige concentração acurada, como você sabe. O MH-4
permite ampliar esses poderes que você já possui, devassando quase que totalmente o mundo
íntimo das criaturas. Permite expor todos os valores da individualidade humana. 9
— Fantástico, Órion, mas o que eu quero não é bem isso. Quero ser visto!
— Ainda não expliquei tudo. O botão violeta do psicoscópio MH-4, desenvolvido
recentemente, ao ser acionado, permite aos terráqueos adentrarem nossa dimensão enquanto
estiverem com o aparelho adaptado aos olhos. Você vai usá-lo primeiro como estudo e
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constatar o seu funcionamento. Após, acionará o comando violeta e colocará o MH-4 em cada
um dos nossos amigos. Observará que um mundo novo vislumbrar-se-á para eles. Você dará o
seu recado. Quando julgar finda a empreitada, partiremos. Nesta caixa temos seis aparelhos.
Segure-os, que já estamos estacionando.
— Você não estará lá para me ajudar?
— Minha presença não será necessária. E faz parte da programação. É o arremate final
da sua estada no planeta. Você conseguirá, meu jovem. Confie e mãos à obra.
Rovi desce do veículo com a caixa na mão. Sobe ao apartamento 403. Lis está só.
Adriano saíra com as crianças. Ela está na rede, lendo um livro, que abaixa sobre o colo,
como que a pressentir a presença do amigo zenidoniano.
Rovi abre a caixa, retira um aparelho e adapta-o aos olhos. Órion tinha razão. Os sete
centros vitais de Lis se mostram de forma belíssima. Capta todas as suas vibrações. A aura se
apresenta diferentemente de quando a observa a olho nu. Até as correntes mentais tanto
positivas e negativas que impregnam o ambiente não escapam à sua acuidade ampliada pelo
MH-4.
Se acionasse o botão violeta e colocasse o incrível aparelho em Lis, apresentando-se tal
como era, poderia assustá-la. Resolve acionar o dispositivo, colocando os poderosos óculos
nela. Sai de mansinho, pé ante pé. Resolve descer ao térreo e colocar um aparelho também no
porteiro.
— Boa noite! Gostaria de subir ao apartamento 403, por favor. Preciso falar com a
senhora Lis. Meu nome é Rovi.
O porteiro olha de soslaio para o rapaz. Cabelos azuis. E que orelhas estranhas! Roupa
prateada, parecia até um ET...
Enquanto o homem interfona para o 403, Rovi retira o aparelho.
— Dona Lis, vai subir um moço. O nome dele é Saci. Ué, tava aqui e já sumiu! Dona
Lis, deve ser amigo do Léo. Vai ter baile à fantasia hoje, não vai? O moço vai abafar...
Lis abre a porta naturalmente.
Caminhando para ela, um rapagão de porte atlético, mais alto que ela, aparentando uns
dezessete anos. Orelhas levemente afiladas, cabelos lisos azuis, compridos até o ombro. Tez
muito clara. Olhos brilhantes, espelho da alma bonita de Rovi. Roupa de um tecido prateado,
ajustada perfeitamente ao corpo. Rovi estende a destra. Lis leva as duas mãos envolvendo a
dele. Não tira os olhos dos olhos do rapaz. Instintivamente, beija-o no rosto. Está
maravilhada.
— Eu o tenho como um filho muito especial, Rovi! Entre. É sua casa.
Rovi sente uma emoção que lhe embarga a voz Tem consciência de que tudo que era
subliminar para Lis, passou a concreto. Sabe que todas as informações que eram subjetivas
para ela se encaixam agora como na resolução de um quebra-cabeças.
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— Vocês são parte da minha família também, Lis.
Durante cerca de meia hora, Rovi fala de seu planeta Zênidon, de Hamer, de Leinah,
de Tâmis. Lis, com a espontaneidade que lhe é própria repassa todas as situações antes
nebulosas para ela quanto à presença invisível de Rovi. Lembra-se da história que contara
certa vez para as crianças, aquela do Planeta Amarelo...
— Aquela vez em que tivemos o problema no carro e um gentil senhor nos socorreu,
você quem o trouxe, não?
A conversa flui como se se conhecessem de longa data. Muitas situações ensejam
gostosas risadas de Lis e Rovi.
Após essas preliminares, Rovi acrescenta:
— Lis, estou de partida.
Lis mobiliza então a sua atenção para a parte que supõe ser a mais séria e que, percebe,
aflige o rapaz zenidoniano.
— Tenho ensaiado meu discurso de despedida, enfurnado no escritório de vocês,
consultando livros das mais variadas correntes do pensamento. Sempre almejei proferir
palavras a vocês que não tivessem sido ainda expressas por ninguém. Imaginava que neste
planeta Terra, tão heterogêneo, palco de tantas injustiças, de tanto sofrimento, faltasse alguma
coisa que eu pudesse acrescentar. Descobri, Lis, que vocês têm catalogado, no que concerne à
receita de vida, o necessário para uma existência plena, voltada ao Bem. Têm tudo para serem
felizes. Falta a vivência da teoria farta e altamente espiritualizada, que pode levá-los aos
patamares mais altos na escalada ascensional em direção ao Pai Criador.
"O Evangelho de Jesus – que sei, vocês consideram como a regra máxima de conduta –
, muitos ainda não o compreendem. Nos meus estudos acabei por reconhecer a importância
capital dessa obra de amor. Mas existe uma infinidade de livros que traduzem a Boa Nova de
todas as formas possíveis, atendendo a todas as culturas, graus de evolução e níveis de
interesse.
"Não tenho nada, absolutamente, de novo a dizer a vocês. Seria pretensão minha fazêlo. Isso me incomoda. Queria marcar a minha partida, confesso."
— Os atos e pensamentos dizem mais que as palavras, Rovi. Eu o compreendo
perfeitamente. O homem tem tudo a seu alcance e menospreza as oportunidades de
crescimento – afirma Lis, num tom grave. — Você foi vencedor em seu estágio e seus amigos
reconhecerão o quanto foi brilhante e o quanto contribuiu para a nossa felicidade.
— O seu coração bondoso é quem diz, Lis. Adriano e as crianças devem chegar logo.
Gostaria que você fizesse um prefácio quanto à minha aparição a eles. Após, colocaremos os
psicoscópios MH-4 devidamente comutados para o controle violeta, no momento em que
estiverem de olhos fechados. Todos então abrirão os olhos de uma só vez.
— Será inesquecível para todos, Rovi.
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— Mais uma coisa, Lis. Considero você como o esteio deste lar. Nomeio-a minha
substituta. E não se esqueça de que existe muita gente aguardando os recursos que você já
acumula. Nunca guarde esses recursos só para você.
"Minha ausência por poucas semanas causou algum desequilíbrio na família. Isso não
pode, nem deve acontecer mais. Faz-se necessário acender a luz própria de cada um, aquela
que deverá guiá-los na jornada. Sem depender de alguém que segure a lanterna na escuridão e
acabe se afastando, deixando-os perdidos nas trevas.
"Não perca tempo, Lis. Os dias voltam a cada ciclo, mas 'os minutos são outros'.
Estaremos ligados pelo pensamento sempre, até um novo encontro, quando Granon permitir."
A maçaneta gira e repentinamente chega o restante da família.
— Mamãe, onde está a visita? Ou será que você falava sozinha?
— Não, Élida, eu falava com alguém muito especial. Sentem-se todos, por favor.
Todos estão sem entender o que se passa. Obedecem mecanicamente. Lis faz uma
retrospectiva do que tem sido a vida de todos. Um jovem de outro planeta havia-se juntado à
família. Fala do seu papel. Da forma pela qual cada um havia registrado a presença de Rovi. E
menciona o psicoscópio MH-4. Quando termina, esclarece:
— Quero que fechem os olhos para colocarmos os aparelhos em vocês.
Ninguém se amedronta. Quem está no sofá recosta a cabeça. Lis e Rovi adaptam os
MH-4. André senta-se no colo de Lis, apertando os olhos e os lábios, contendo o sorriso
iminente.
— Podem abrir.
Ninguém fala. Ninguém pisca. Os olhos de todos se prendem a cada detalhe do jovem
de Zênidon. Um extraterrestre em carne e osso. Cada qual, a seu modo, desfaz todo o
emaranhado das conjecturas. Voltam no tempo, diante de cada situação mal explicada por que
passaram. Rovi existia e estava ali de pé, visível, real, irradiando a sua bondade.
André rompe o silêncio e vai até o rapaz:
— Meu amigão!
Rovi o estreita num abraço demorado, explosão de sentimentos de amizade fraterna.
Instintivamente, quase se forma uma fila com Adriano, Léo, Élida e Liane, impacientes para
abraçá-lo também. Nosso imponente e elegante ET não consegue disfarçar – os olhos da cor
do céu agora brilham mais ainda pelas lágrimas que fluem incontroláveis.
Toca o interfone. O porteiro pergunta a Lis:
— Dona Lis, se chegar mais alguém fantasiado de ET, posso deixar subir?
Lis relata o que o porteiro havia dito. Todos riem muito. A conversa seguiu animada
por mais de duas horas.
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Quase meia-noite, acendem-se as luzes do Transmissor de Impressões. Qualquer
transmissão, estando-se na Terra, era imediata.
— Eu, Lói e Thelman aguardamo-lo perto do estacionamento. A nave deve partir em
trinta minutos. Conclua, por favor, Rovi – sugere o comandante Órion.
Todos se calam. Sentem que chegou a hora. Rovi se dirige à caixa em que trouxera os
psicoscópios MH-4. Retira meia dúzia de flores azuladas. Jamais alguém havia visto flores de
tamanha beleza. Rovi as entrega a cada um. Feito isso, diz:
— Estas flores de Zênidon nunca morrem em nosso planeta. A seiva que as alimenta
em nada se assemelha à da Terra. Sempre que cultivarem esperança, serenidade, paciência,
tolerância, humildade, enfim, quaisquer desses sentimentos bons, elas tornar-se-ão mais belas
e viverão para sempre aqui neste planeta também, desdobrando-se em muitas outras.
— E amor, pode? – indaga Liane.
— Sim, minha querida, amor desinteressado, aquele que devemos ter para com todos
os irmãos de humanidade, também as alimenta e as robustece. Essas qualidades sei que todos
aqui as têm. Não as guardem somente para si. Ampliem-nas e distribuam-nas.
Rovi10 dá um beijo na testa de cada um. A cada beijo, retira o aparelho. E parte.
— Rovi se foi. Mamãe, papai, as flores sumiram!
— Não, crianças, as flores estão conosco embora não as vejamos. Nunca se esqueçam
que as coisas mais importantes de nossa vida são invisíveis aos olhos.
Todos se dirigem à varanda. O céu estrelado tem um novo significado para eles. Na
imensidão, no imenso painel deslumbrante do universo, lá onde estão reluzindo as estrelas,
mora mais um amigo dileto, de quem não se esquecerão jamais.
FIM
1
Delma Lúcia Ribeiro Almeida (irmã de José Maria), do Maranhão; Ana, de São Miguel de Goiás;
Luzinete; Joana Rosa da Silva, do Piauí; Regina Cláudia Lago da Silva, da Bahia. A essa relação vale
acrescentar Neuza Maria da Silva.
2
Sleepy viveu catorze anos. Morreu em 2002. Uma catarata o deixou cego aos cinco anos. Mas se
locomovia bem para todos os cantos da casa.
3
Trata-se de Murilo Fracari Roberto. O episódio Wanderley, o papagaio, na clínica veterinária não é
fictício.
4
Wanderley, realmente, foi um papagaio que viveu com a família do autor até desaparecer num voo
arrojado.
5
Eram os Deuses Astronautas? de Erich von Däniken.
6
Os Exilados de Capela, de Edgard Armond.
7
A Caminho da Luz, de Emmanuel. Editora: FEB.
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8
João Villela de Albuquerque, engenheiro, casado com Nilza. O casal não mais vive em Mirassol, SP,
mas sim na verdadeira pátria, a espiritual. Sua filha do coração, Ana Cláudia da Silva Barros (hoje de
sobrenome Pappanoni) vive em Sertãozinho, SP (2003).
9
O psicoscópio a que se refere o texto simula um aparelho mencionado no cap. 2 de Nos Domínios da
Mediunidade, de André Luiz. Ed. FEB.
10
O nome do personagem foi inspirado em Rovi Bergemann de Aguiar – rio-pretense, arquiteto, formado
na UnB – por ser um nome incomum.
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