da dissertação completa

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UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA - UFPB
CENTRO DE EDUCAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO - PPGE
ZILDA MARIA COELHO MONTENEGRO
A ESCOLA TÉCNICA DE SAÚDE DA UNIVERSIDADE FEDERAL
DA PARAÍBA E A FORMAÇÃO DE PROFISSIONAIS DE
ENFERMAGEM PARA OS ASSENTAMENTOS DA REFORMA
AGRÁRIA: Os desafios da relação docente.
JOÃO PESSOA
2007
2
ZILDA MARIA COELHO MONTENEGRO
A ESCOLA TÉCNICA DE SAÚDE DA UNIVERSIDADE
FEDERAL DA PARAÍBA E A FORMAÇÃO DE PROFISSIONAIS DE
ENFERMAGEM PARA OS ASSENTAMENTOS DA REFORMA
AGRÁRIA: os desafios da relação docente.
Dissertação apresentada ao Programa de PósGraduação em Educação da Universidade
Federal da Paraíba, em cumprimento às
exigências para obtenção do grau de mestre
em Educação. Linha de pesquisa: Educação de
Jovens e Adultos.
Orientador: Prof. Dr. Luiz Gonzaga Gonçalves
JOÃO PESSOA
2007
3
M777e
Montenegro, Zilda Maria Coelho.
A escola técnica de saúde da universidade federal da
Paraíba e a formação de profissionais de enfermagem para os
assentamentos da reforma agrária: os desafios da relação
docente./ Zilda Maria Coelho Montenegro. - João Pessoa, 2007.
. . p.
Orientador: Luiz Gonzaga Gonçalves
Dissertação (mestrado) – UFPB/CE
1. Educação de Jovens e Adultos.
2. Ensino Técnico - troca de saberes.
3. PRONERA – Ensino Técnico – Enfermagem.
UFPB/
BC
CDU: 37 – 053.6/.8 (043)
4
ZILDA MARIA COELHO MONTENEGRO
A ESCOLA TÉCNICA DE SAÚDE DA UNIVERSIDADE
FEDERAL DA PARAÍBA E A FORMAÇÃO DE PROFISSIONAIS DE
ENFERMAGEM PARA OS ASSENTAMENTOS DA REFORMA
AGRÁRIA: os desafios da relação docente.
Dissertação apresentada ao Programa de PósGraduação em Educação da Universidade
Federal da Paraíba, em cumprimento às
exigências para obtenção do grau de mestre
em Educação. Linha de pesquisa: Educação de
Jovens e Adultos.
Dissertação aprovada em _______/________/_______
Banca Examinadora:
________________________________________
Prof. Dr. Luiz Gonzaga Gonçalves (UFPB)
Orientador
_________________________________________
Prof.ª Dr.ª Irene Alves de Paiva (UFRN)
________________________________________
Prof.ª Dr.ª Ana Dorziat Barbosa de Melo (UFPB)
5
AGRADECIMENTOS
Ao Deus que vive em cada ser da natureza, por ter me enviado seus anjos, na
figura de pessoas e animais que me animaram a seguir adiante;
Ao meu orientador professor doutor Luiz Gonzaga Gonçalves, por tudo o
que representou nessa minha jornada. Agradeço-lhe pelo grande educador que é. O
exemplo em pessoa da amorosidade freiriana que, com a sabedoria de homem do
campo, me levou a realizar minhas próprias descobertas e a acreditar mais em mim;
À minha mamãe, Maria de Lourdes Vieira Coelho, por me dispor sempre o
seu colo quentinho de carinho. Ao meu pai, Heronides Alves Coelho Filho que
segue vivo dentro de mim, em cada célula, em cada momento;
À Ana Carolina e Marquinho, meus amores, por tudo o que são em minha
vida;
À minhas queridas irmãs Miriam, Gracinha e Susana, Cláudia e Letícia as
responsáveis por eu ser tão mimada, pelas orações e companheirismo;
À Edna Furukawa Pimentel, mais uma irmã-anjo que apareceu na minha
vida, parceira de produções e publicações, companheira sempre presente nos bons
e maus momentos, mesmo à distância, lá na Bahia, com a ajuda do MSN;
À cada uma e a cada um dos meus colegas da 25ª turma do Mestrado em
Educação, pelos afetos e trocas. Agradeço às amigas: Isabel França, Nozângela,
Hélia Braga, e Rosângela pelas pessoas especiais que são;
Um carinho especial à professora doutora Edineide Jezine;
À Mira, Marta, Lae e Nelsina;
6
Às colegas professoras da ETS, em especial Eliete, Nailze, Bernadete e
Jeane e Icléia, pelo apoio;
Às professoras, alunos e alunas do curso técnico em enfermagem e suplência
do ensino médio que tornaram a pesquisa possível, respondendo às entrevistas;
À Mônica Montenegro pela tradução para o inglês do Resumo/Abstract e
Palavras-chave/Keywords.
Por fim, agradeço a Germana, pelos ouvidos, ao menino Glauco e ao jovem
João, por ter-lhes privado de alguns (mas preciosos) momentos a mais na
companhia do pai.
7
RESUMO
Esta pesquisa buscou compreender como se deu o processo de realização do curso
técnico em enfermagem destinado às pessoas jovens e adultas dos assentamentos
da reforma agrária na Paraíba, inserido no Programa Nacional de Educação na
Reforma Agrária - PRONERA. O estudo foi construído como um estudo de caso,
realizado na Escola Técnica de Saúde da Universidade Federal da Paraíba,
envolvendo duas turmas, que iniciaram o curso em 2004. Uma das turmas estava
voltada especificamente para a formação de técnicos de enfermagem, já concluída
no ano em curso. A outra turma necessitava concluir o ensino médio e a formação
de técnicos de enfermagem, com previsão de término em 2008. Optou-se por uma
pesquisa qualitativa, sendo utilizada a técnica da análise de conteúdo. A atenção
esteve concentrada nos caminhos percorridos pela coordenação pedagógica, pelo
corpo docente e discente, em suas tentativas voltadas para superar as muitas
dificuldades e desafios pedagógicos e didáticos apresentados no transcorrer do
curso. Elegemos como categorias de análise: o projeto político pedagógico da ETS,
a pedagogia da alternância, a relação docente e aprendente. Nesse processo de
estudo trouxemos autores como: Edgar Morin (2003), Paulo Freire (2000, 2002,
2005), Rosely Caldart (1997, 2004), Lucília Machado (2002), Gonçalves (2002,
2003), entre outros. Pudemos identificar que a escola técnica, docentes e discentes
foram levados a uma busca constante de superação dos entraves impostos à
realização do curso e da identificação de alternativas capazes de gerar troca de
saberes mais eficazes nas relações docentes.
PALAVRAS-CHAVE: Educação de Jovens e Adultos, Ensino Técnico, troca de
saberes.
8
ABSTRACT
This work searched for understanding how the process of carrying out the technial
course on Nursery, for young and adult people from the settlement land reform in
Paraíba, inserted in the National Program of Education in Agrarian Reform PRONERA. The study was built as a case study, conducted by Escola Técnica de
Saúde da Universidade Federal da Paraíba, involving two groups, which started the
course in 2004. One of the classes was geared speciffically for training of technicians
in Nursing, already completed in the current year class. The other group needed to
complete the high school and the training of technicians in Nursing with estimated
completion in 2008. A qualitative research was chosen and the analysis of content
technique was used. The attention has been concentrated in the pedagogical
coordination, by teachers and students, in its several tries to overcome the
difficulties and challenges presented throughout the educational teaching process
Some categories of analysis were considered: the political pedagogical project of the
Escola Técnica de Saúde da Universidade Federal da Paraíba, the alternation of
pedagogy, the relation between the teacher and student. In this process of study we
have considered some authors as: Edgar Morim (2003), Paulo Freire (200, 2002,
2005), Rosely Caldart (1997, 2004), Lucília Machado (2002), Gonçalves (2002,
2003), among others. We have identified that the technical school, teachers and
students were a search for overcoming obstacles to the achievement of the current
taxes to the identification of alternatives able to generate efficient exchange of
knowledge.
Keywords: young and adult education; technical course, exchange of knowledge.
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LISTA DE SIGLAS E ABREVIATURAS
CNE/CEB – Conselho Nacional de Educação / Câmara de Educação Básica
CCS – Centro de Ciências da Saúde
CNBB - Conferência Nacional dos Bispos do Brasil
COFEN – Conselho Federal de Enfermagem
CONSUNI – Conselho Universitário
COREN – Conselho Regional de Enfermagem
CPT – Comissão Pastoral da Terra
EJA – Educação de Jovens e Adultos
ENERA – Encontro Nacional dos Educadores da Reforma Agrária
ETS – Escola Técnica de Saúde
INCRA – Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária
LDB – Lei de Diretrizes e Bases da Educação
MST – Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra
OFOC – Oficina Organizacional de Capacitação
PROEJA – Programa Nacional de Integração da Educação Profissional com a
Educação Básica na Modalidade de Educação de Jovens e Adultos
PPP – Projeto político-pedagógico
PRONERA – Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária
PSF – Programa de Saúde na Família
SEAMPO – Setor de Estudos e Assessoria a Movimentos Populares
TC – Tempo-Comunidade
TE –Tempo-Escola
UFPB - Universidade Federal da Paraíba
UnB - Universidade de Brasília
UNESCO - Organização das Nações Unidas para a Educação
UNICEF - Fundo das Nações Unidas para a Infância
UTI – Unidade de Terapia Intensiva
USF – Unidade de Saúde na Família
10
SUMÁRIO
1 O CAMINHO PERCORRIDO: DO DESEJO À PESQUISA
11
1.1 Os caminhantes: seres inconclusos na busca de “ser mais”
15
2 O CURSO TÉCNICO DE ENFERMAGEM DA UNIVERSIDADE FEDERAL DA
PARAÍBA
22
2.1 A dicotomia na formação escolar do povo brasileiro: educação geral e
educação profissional
23
2.2 A Escola Técnica de Saúde e o Curso Técnico de Enfermagem
27
2.3. Uma compreensão da techné vinculada à prática de enfermagem
36
3. O CURSO DE FORMAÇÃO DE TÉCNICO DE ENFERMAGEM E
SUPLÊNCIA DO ENSINO MÉDIO – PRONERA
42
3.1 As Diretrizes Operacionais do PRONERA e o Projeto do Curso Técnico
de Enfermagem e Suplência do Ensino Médio
42
3.2 O PRONERA na Escola Técnica de Saúde: Gênesis
51
3.3. Ensinando e aprendendo novas lições: as aprendizagens docentes no
processo de implantação do curso.
59
4. O SABER QUE VEM DO CAMPO.
72
4.1 A pedagogia da Alternância
73
4.1.1 A Escola Técnica de Saúde e a metodologia da alternância
80
4.2 Omnilateralidade: convite para pensar uma formação humana nas suas
diversas dimensões
90
4.3 A versatilidade do povo do campo e a prática da enfermagem
95
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
101
REFERÊNCIAS
104
APÊNDICES
ANEXOS
109
114
11
1 O CAMINHO PERCORRIDO: DO DESEJO À PESQUISA
O desejo de realizar esta pesquisa nasceu em 2004, praticamente junto
com o anúncio de que seriam implantadas duas turmas destinadas à formação
técnica de enfermagem de assentados e assentadas da reforma agrária, na
Escola Técnica de Saúde (ETS) do Centro de Ciências da Saúde (CCS) da
Universidade Federal da Paraíba (UFPB), onde trabalhamos como docente das
disciplinas de Psicologia Aplicada à Saúde e Enfermagem em Saúde Mental.
Tratava-se
do
Programa
Nacional
de
Educação
na
Reforma
Agrária
(PRONERA), cujo objetivo é a escolarização e formação das pessoas jovens e
adultas dos assentamentos, desde a alfabetização à pós-graduação.
As articulações para a execução do projeto iniciaram-se em 2003, por
iniciativa da direção da ETS, que procurou o Setor de Estudos e Assessoria a
Movimentos Populares (SEAMPO) / UFPB, com o objetivo de tornar a ETS mais
uma parceira, através da oferta do Curso Técnico de Enfermagem. Assim, foi
estabelecida uma parceria entre a ETS, o SEAMPO, a Comissão Pastoral da
Terra (CPT) e o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA). O
projeto contou também com a assessoria pedagógica do Centro de Educação da
UFPB.
A perspectiva de aprofundar nosso conhecimento sobre o universo das
assentadas e dos assentados que, no nosso imaginário, teriam um quê de heróis
na luta contra o latifúndio, nos motivou tanto quanto a vontade de mergulharmos
no universo da educação popular.
12
Naquela ocasião, sabíamos pouco acerca dos futuros educandos.
Somente mais tarde, após a leitura dos memoriais produzidos por eles durante a
semana preparatória para o curso, pudemos perceber o quão heterogêneas
eram aquelas duas turmas do PRONERA e que, portanto, nem todos
participaram diretamente do movimento de luta pela posse da terra, como
pensávamos a princípio.
Do desejo à decisão de realizar a pesquisa foi necessário apenas que
participássemos do primeiro encontro pedagógico do projeto, onde estavam as
professoras da ETS e convidados/convidadas para ministrar algumas disciplinas
para as quais as docentes da Escola Técnica de Saúde não estavam habilitadas
ou não tinham disponibilidade de tempo, como era o caso das disciplinas do
curso de suplência do ensino médio. Na ocasião, percebemos que havia entre as
professoras da escola uma expectativa muito grande pelo desconhecimento do
trabalho com educação popular ou pela pouca experiência com pessoas de uma
realidade cultural diferente da dos alunos que a escola atendia regularmente. O
depoimento da professora Alfazema1 confirma o que dizemos:
Eu só acho o seguinte: essa questão do trabalho de educação no
campo tem muita coisa que eu não sei. Também do processo
educacional, eu também não sei. Eu acho que o nosso orientador
pedagógico está dando um duro danado para poder dar todos esses
processos de interferência. Interferência assim, de modificação, de
sugestão.
O desconhecimento revelado pela professora Alfazema era comum a
todas as outras, que apresentavam – algumas mais, outras menos – dúvidas
diversas que iam desde questões curriculares até como superar a provável
1
Nome fictício.
13
fragilidade dos educandos e educandas em relação ao domínio da leitura e da
escrita, resultante da falta de uma política educacional voltada às pessoas que
vivem e trabalham no campo em nosso país. Essas preocupações em vez de
desestimular, provocaram nas professoras certa animação para participar da
atividade. Talvez porque fosse essa a primeira vez que a equipe se reunia para
dialogar sobre questões exclusivamente pedagógicas, tendo a oportunidade de
compartilhar suas dificuldades e descobertas.
Diante desse quadro inicial nos indagamos se estaria - a ETS inaugurando naquele momento uma relação dialógica entre as suas professoras.
A inquietação e a curiosidade provavelmente nos remeteriam – a pesquisadora e
as demais professoras – a um repensar de nossa prática e de nossa postura
profissional. Nesse aspecto, a atuação do assessor pedagógico também foi
fundamental, por fomentar a curiosidade e animar o grupo a buscar suas
respostas.
Nesse processo, sentimo-nos cada vez mais impelidas a realizar uma
investigação que nos levasse a uma melhor compreensão de como as
professoras, os professores, alunas e alunos superariam os desafios que lhes
seriam apresentados na jornada que então se iniciava. Era a primeira e poderia
ser a única experiência da ETS com o PRONERA. Programas de governo
raramente têm longa vida. Em sendo a primeira, a pesquisa poderia contribuir
para identificar tanto os aspectos positivos do trabalho realizado, como os
aspectos negativos, a fim de que se pudesse corrigi-los para que não se
repetissem. Caso se tratasse da única, certamente repercutiria na atuação
docente da ETS, pelas reflexões e aprendizagens que proporcionaria. De uma
forma ou de outra, a contribuição se estenderia aos outros educadores que
14
porventura tivessem interesse nos diálogos aqui travados na tentativa de
descrever e compreender como se deu o processo de implantação do curso
técnico em enfermagem e suplência do ensino médio, desde os seus primeiros
momentos, até a conclusão da primeira turma. Porém salientamos que nossa
principal intenção foi a de contribuir modestamente para o repensar do ensino
técnico em enfermagem destinado ao homem e à mulher do campo, acenando
para a necessidade de os/as docentes valorizarem e estimularem a utilização
das habilidades que educandos e educandas possuem, que foram construídas a
partir das relações de trabalho e vida nas suas comunidades. Podemos afirmar,
no entanto, que essa caminhada repercutiu sobre a atividade docente da
pesquisadora, uma vez que cada momento de reflexão sobre a pesquisa
despertava o repensar sobre a própria atuação e, imediatamente, levava à busca
da assunção de uma postura mais adequada à construção de uma educação
emancipatória.
Assim, a partir do nosso ingresso no Curso de Mestrado em Educação, no
ano de 2005, teve início o processo de pesquisa através da leitura de vasto
material teórico, orientada pelos professores e professoras das diferentes
disciplinas. Dessa forma pudemos adentrar no estudo de temas relacionados à
educação popular, educação de jovens e adultos e metodologia da pesquisa
científica, que muito contribuíram para a definição do referencial teóricometodológico da pesquisa, levando-nos a autores como Morin (2003), Paulo
Freire (1980, 2000, 2002, 2005) Machado (2002), Caldart (2004), Gonçalves
(2003, 2006), Manacorda (1991) entre outros.
Por tratar-se de uma pesquisa qualitativa, de caráter descritivo, este
estudo de caso teve a preocupação de revelar as convicções dos/das
15
entrevistados/entrevistadas acerca do processo por eles/elas vivenciado.
Conforme Minayo,
[...] a pesquisa qualitativa trabalha com o universo de significados,
motivos, aspirações, crenças, valores e atitudes, o que corresponde a
um espaço mais profundo das relações, dos processos e dos
fenômenos que não podem ser reduzidos à operacionalização de
variáveis. (2000, p. 21-22).
Para tanto, elegemos a técnica da análise de conteúdo, com um enfoque
amplo de natureza dialética, que foi desenvolvida obedecendo as seguintes
fases:
1 - A pré-análise (organização do material) que envolveu a leitura e escolha dos
documentos a serem analisados, na qual foram eleitos o Manual de Operações
do PRONERA; o Projeto Político-pedagógico do Curso Técnico de Enfermagem
da Escola Técnica de Saúde da Universidade Federal da Paraíba; o projeto do
Curso de Formação de Técnicos em Enfermagem e Suplência do Ensino Médio;
atividades propostas para o Tempo Comunidade; Memoriais dos alunos e
alunas; Trabalhos de Conclusão de Curso; trabalho sobre versatilidade, realizado
pelos estudantes na disciplina Educação do Campo2. Além dos documentos
citados, procedemos à análise do conteúdo das transcrições das entrevistas
semi-estruturadas respondidas por educadoras e estudantes do Curso de
Formação de Técnicos de Enfermagem e Suplência do Ensino Médio que
concordaram em participar da pesquisa.
2 – A análise do material ou descrição analítica – em que foi feita a
categorização das informações.
3 – O tratamento dos resultados, no qual buscamos dar uma interpretação
qualitativa dos dados acerca das categorias eleitas com base na insistência com
2
Foram utilizados para análise apenas os documentos redigidos pelos alunos participantes da pesquisa.
16
que apareceram nos documentos e entrevistas. (BARDIN, 1988)
Queremos esclarecer que, ao optar pela utilização de entrevistas semiestruturadas buscamos valorizar a exposição espontânea do pensamento dos
sujeitos respondentes, de modo que eles participassem da elaboração do
conteúdo da pesquisa, pois ao expressarem seus pontos de vista em relação aos
diferentes aspectos da experiência do curso estavam fornecendo o material
sobre o qual iríamos construindo nosso estudo. Decidimos por transcrever as
falas sem efetuar nenhuma “correção gramatical”, pois aqui buscamos respeitar
a maneira de cada grupo falar, e porque essa questão também é colocada como
tema por uma das entrevistadas.
Para Bardin, o pesquisador que utiliza a análise de conteúdos trabalha
com vestígios.
Mas os vestígios são a manifestação de estados, de dados e de
fenômenos. Há qualquer coisa para descobrir por e graças a eles. Tal
como a etnografia necessita da etnologia, para interpretar suas
descrições minuciosas, o analista tira partido das mensagens que
manipula, para inferir (deduzir de maneira lógica) conhecimentos sobre
o emissor da mensagem ou sobre o seu meio, por exemplo. Tal como
um detetive, o analista trabalha com índices cuidadosamente postos
em evidência por procedimentos mais ou menos complexos. (BARDIN,
1988, p. 39)
Podemos dizer que nesse aspecto a análise de conteúdo se aproxima do
paradigma indiciário, uma vez que a atenção aos indícios permite que as
pessoas “arrisquem a antecipar mentalmente o desenlace de algum evento, que
ainda não se completou para a compreensão de quem investiga”. (GONÇALVES,
2003, p.30).
Portanto, utilizamo-nos da análise de conteúdo - cuja unidade de registro
teve base não gramatical, tratando-se de uma análise temática - para descrever,
17
da forma mais distanciada possível, a primeira experiência do curso de
Formação de Técnicos em Enfermagem e Suplência do Ensino Médio da Escola
Técnica de Saúde da Universidade Federal da Paraíba, uma vez que esta se
presta tanto ao estudo das motivações, atitudes, valores, crenças, quanto ao
“desvendar das ideologias que podem existir nos dispositivos legais, princípios,
diretrizes, etc., que, à simples vista não se não se apresentam com a devida
clareza”. (TRIVIÑOS, 1987, p.160).
Nessa perspectiva, traçamos um roteiro de entrevistas (APÊNDICES A e
B) de forma que, ao permitir a livre expressão do entrevistado, trouxesse à tona
os aspectos que lhes foram mais significativos no curso para, a partir daí,
podermos identificar os temas mais freqüentes nas falas dos sujeitos e realizar
nosso diálogo com os teóricos sobre esses aspectos assinalados pelas pessoas
entrevistadas.
Os caminhantes: seres inconclusos na busca de “ser mais”.
Consideramos que a situação em que nos encontrávamos,
enquanto pesquisadores, era privilegiada porque trabalhamos na
Escola onde se desenvolveu a pesquisa. Portanto não tivemos
dificuldades em estabelecer com os sujeitos entrevistados um clima
de confiança para que pudessem expor seus pensamentos e
sentimentos acerca da experiência de formação técnica. Ao mesmo
tempo, corríamos sério risco de fazer leituras precipitadas das falas e
18
situações, devido ao nosso envolvimento.
Cientes dessa possibilidade nós procedemos sob inspiração da
atriz de teatro que fomos um dia, quando exercitávamos a análise do
texto
teatral.
Buscando
entender
as
contradições
de
cada
personagem e aceitar a nossa personagem como ela era, com suas
crenças e sua visão de mundo, mesmo que diferente da nossa. Isso
era necessário para que pudéssemos representá-la com “verdade
cênica”3. Dessa forma acabávamos por exercitar-nos, sem saber,
para a prática da pesquisa científica. Ou seja, ali aprendíamos a não
permitir que a nossa subjetividade transformasse a personagem em
alguém com intencionalidades diferentes da pensada pelo autor,
fazendo com que a interpretação fosse fidedigna à “realidade da
ficção”. Desta maneira, nossa intenção na pesquisa foi a de buscar
manter fidelidade às pessoas entrevistadas, respeitando o seu
universo de compreensão.
Para participar da pesquisa os sujeitos foram escolhidos
aleatoriamente4 entre os educandos e também entre os educadores,
pela sua disponibilidade em participar do estudo. Todos e todas
concordaram formalmente em participar da pesquisa, estando
plenamente cientes de que seus nomes seriam preservados e que
poderiam desistir da participação a qualquer momento que
desejassem. Dessa maneira, da turma do Pós-médio, composta por
estudantes que já haviam concluído o ensino médio quando
ingressaram no curso, que contava com 44 alunos cursando
efetivamente, participaram cinco sujeitos, sendo quatro do sexo
masculino e um do sexo feminino. Da turma do curso de Suplência
3
Termo utilizado em teatro para designar uma interpretação realmente convincente ao espectador.
A pesquisadora procurou as duas turmas e informou sobre a pesquisa, perguntando se havia pessoas dispostas a
participar da mesma. Assim sendo, os sujeitos se apresentaram voluntariamente.
4
19
do Ensino Médio, formada por 46 estudantes que ainda não haviam
concluído o ensino médio ao ingressar no Curso Técnico,
participaram da pesquisa também cinco sujeitos, sendo quatro do
sexo feminino e um do sexo masculino5. Portanto, de um universo de
90 estudantes, 10 constituíram a amostra, perfazendo um total de
11,11 %. Entre as educadoras, optamos por entrevistar apenas as
pertencentes ao quadro da Escola Técnica de Saúde (ETS) que
atuaram no PRONERA. Cinco professoras foram entrevistadas, de
um universo de 12 docentes, o que equivale a 41,6% do total.
Para preservar a identidade das pessoas entrevistadas, adotamos nomes
fictícios, de tal forma que às/os estudantes chamamos por nomes de pessoas
que se sobressaíram na luta pela terra, como Pedro (Teixeira), Zé Divino
(Valdivino), Margarida (Maria Alves), Elizabeth (Teixeira) entre outros. Às
educadoras,
demos
os
nomes
de
plantas
medicinais
utilizadas
nos
assentamentos, como Alfazema e Malva, por exemplo.
Com o objetivo de favorecer uma melhor identificação quanto à formação
dos educandos, acrescentamos as letras (p.m.) aos nomes das pessoas da
turma do Técnico de Enfermagem - Pós-médio, e a letra (s), àqueles que cursam
a Suplência do Ensino Médio e Técnico de Enfermagem. Gostaríamos de
salientar que se trata de uma turma bastante heterogênea, tanto pela faixa etária,
tipo de trabalho, vida escolar, estrutura do assentamento, quanto pelo modo de
participação na conquista da terra: alguns eram filhos de pessoas que já viviam
nas terras, empregados dos fazendeiros; outros(as), ainda crianças na ocasião,
presenciaram cenas de violência e a adesão de seus pais à luta dos acampados;
outros já eram possuidores da terra de fato, os quilombolas, desde os seus
ancestrais. Alguns permanecem tentando conquistar seu pedaço de chão. Assim,
temos entre os entrevistados:
Anastácio (p.m.), 39 anos, profissão: Agricultor e Agente Comunitário de
Saúde;
Jósimo (p.m.) 26 anos, considera-se um defensor da cultura afro5
Ao convidarmos os sujeitos para responder a pesquisa, o critério gênero não foi levado em consideração.
Coincidentemente acabamos por contar com cinco pessoas de cada gênero.
20
brasileira, pois vive numa comunidade de quilombolas. Por este motivo, não
houve luta pela posse da terra em sua comunidade. Teve problemas de saúde
na infância, sofrendo várias internações hospitalares. Na sua comunidade não há
Unidade de Saúde na Família (USF), nem médicos. Há agente comunitário de
saúde. A partir dos oito anos trabalhou na roça. Dos dez aos dezoito anos
passou a trabalhar com o gado. Tem participação voluntária na CPT, como
agente mobilizador. Não trabalha na agricultura atualmente;
Chico (p.m.), 32 anos. Considera que sua infância foi muito boa, tendo
brincado bastante com seus primos. Segundo Chico, o seu pai foi o primeiro a
ingressar na luta pela terra na sua localidade, no ano de 1983, enfrentando os
capangas da usina. Atualmente não mais se trata do proprietário de uma usina,
mas de empresários do ramo de criação de camarão. Ingressou na luta pela terra
no ano de 2000, quando conheceu a CPT, através da qual conheceu outras
áreas de onde as pessoas estão sendo expulsas das suas posses. É posseiro.
Tem participação voluntária na CPT acompanhando área de conflito. É agricultor
e sindicalista. “Hoje estou bastande convencindo que so com a partilha da terra e
que podemos acambar com a fome” (CHICO, memorial). Concluiu o ensino
médio no ano de 1998;
Zé Divino (p.m), Não trabalha na agricultura. Não participou da luta pela
posse da terra. Seus pais já moravam na localidade antes de ser feito o
assentamento. O pai era vaqueiro da fazenda;
Margarida (p.m), 25 anos. Milita no MST, é casada e tem uma filha com
um ano e meio de idade. Foi selecionada para o curso devido à sua inserção na
luta. Não acredita em vocação. Ingressou no curso pela necessidade da
comunidade e pela vontade de estudar. Afirma que hoje aprendeu a amar a
enfermagem;
Elizabeth (s), 19 anos, solteira. Órfã de pai. Elizabeth vive com a mãe,
com as quatro irmãs e o irmão. É professora de Educação de Jovens e Adultos
no PRONERA. Não participou da luta pela terra, pois seu pai já morava no local,
trabalhando para a usina. Seu assentamento é uma agrovila, o que faz com que
a casa fique um pouco distante da roça. Nem ela nem os irmãos trabalham na
terra, mas todos estudam;
Dorothy (s) morava no assentamento com os avós, que eram posseiros,
quando começou a luta pela terra;
21
Anunciada (s), 28 anos. A nona filha de uma prole de dez. “Vejo-me como
uma pessoa um pouco fraca nos estudos, principalmente quando estou
preocupada, pois não consigo fazer nada.” (memorial). Tem a religião Católica
como referência de vida. Já participou da CPT, mas não atua mais nem exerce
atividade profissional. Considera-se indecisa, insegura e ainda “muito infantil”.
Recentemente foi instalada uma Unidade de Saúde da Família (USF) na sua
comunidade, que conta com médico, enfermeira, auxiliar de enfermagem,
dentista e seis agentes de saúde. Antes disso, não havia assistência alguma,
com muitos casos de mortes a caminho do hospital;
Inês(s) considera sua infância feliz e ao mesmo tempo infeliz, pelas
necessidades que passou, mas até hoje gosta de brincar. No seu assentamento
não houve conflito nem luta pela terra. Houve inscrição para o assentamento no
sindicato. “Tenho uma tristeza comigo, pois no assentamento não existe escola e
as criança aparti de 4 anos vão em cima de uma camioneta para o sítio vizinho”
(memorial). No assentamento não há USF. “Eu já cobrei da prefeitura e da
câmara dos vereadores um posto de saúde aqui no assentamento”. Participava
das reuniões da CPT. Não vivenciou o processo de luta pela posse da terra, pois
houve acordo com o fazendeiro na sua área. Casada, uma filha. Já tem uma
proposta de emprego para quando terminar o curso.
Quanto às professoras, podemos dizer que apenas uma não tem
formação em enfermagem. Todas são pós-graduadas, sendo uma especialista e
quatro mestras.
Todas essas pessoas protagonizaram a pesquisa, uma vez que ao se
disponibilizarem a participar, o fizeram com satisfação, algumas mais falantes,
outras menos, sabendo que a investigação serviria para promover junto à
comunidade escolar e instituições parceiras do projeto, o repensar de alguns
aspectos do curso visando seu aprimoramento. Ao mesmo tempo, tanto a
pesquisadora quanto professoras e estudantes entrevistadas/os, reconheceramse (implicitamente - nas falas), como seres inconclusos em busca de “ser mais”,
vivendo numa realidade inacabada, posto que histórica. De acordo com Paulo
Freire: “O inacabamento do ser ou sua inconclusão é próprio da experiência vital.
Onde há vida, há incacabamento. Mas só entre mulheres e homens o
inacabamento tornou-se consciente”. (2005, p.50). Para o autor, foi a consciência
de sermos inacabados que nos tornou – aos homens e mulheres - seres
22
responsáveis e éticos.
Aos cinco de fevereiro do ano de 2007, demos início às entrevistas, que
foram gravadas, com estudantes e professores na Escola Técnica de Saúde.
Naquela ocasião, a turma do Pós-médio já estava próxima da conclusão do
curso, podendo expor suas impressões acerca da experiência prática nos
estágios. Já a turma da suplência, cujo curso se prolongaria por mais alguns
meses, não havia tido a vivência dos estágios, portanto, não podendo opinar
sobre o mesmo. Após a transcrição e a realização de uma leitura inicial das
primeiras entrevistas, sentimos necessidade de uma complementação da
mesma, realizando uma segunda “rodada” de entrevistas. Desta vez, devido à
indisponibilidade de tempo dos alunos na Escola – só tínhamos o horário das
refeições – as entrevistas foram realizadas no alojamento, entre uma lavagem de
roupa ou um cochilo e um banho. Nessa segunda rodada, encerrada aos 25 de
maio do mesmo ano, conseguimos completar o número de estudantes
programado para a pesquisa. A ida ao alojamento serviu para nos dar a
dimensão real das condições de estadia dos e das estudantes em João Pessoa,
inclusive de alimentação durante o tempo-escola, bem como as visitas aos
assentamentos6 nos permitiram conhecer um pouco acerca das condições de
vida e estudo dos educandos durante o tempo-comunidade. Isto proporcionou à
pesquisadora uma visão mais ampla do processo que ali se tecia, facilitando
bastante o entendimento das falas das pessoas entrevistadas na pesquisa.
Diante desse quadro, trabalhamos ancoradas em algumas categorias que
foram selecionadas dentre as unidades de registro, tais como o Projeto Políticopedagógico, a relação docente, o ensino técnico em enfermagem e a pedagogia
da alternância, onde entendíamos a atividade pedagógica como uma unidade
dialética, entre a atividade docente e a discente.
Para descrever essa trajetória buscamos, no capítulo 2, iniciar o diálogo
descrevendo o contexto da educação profissional no nosso país, momento em
que abordarmos o dualismo na formação escolar do povo brasileiro, as
implicações da dicotomia entre formação geral e formação técnica, desta feita,
dialogando com Frigotto, Ciavatta e Ramos(2005). Em seguida tentamos
6
Fizemos uma visita (a autora, outra professora da ETS, duas bolsistas e uma professora do Centro de
Educação), antes do início do curso a um assentamento. Durante o curso, fizemos mais algumas visitas a outros
assentamentos, conforme escala da coordenação, para acompanhamento das atividades do tempo-comunidade.
23
apresentar ao leitor alguns dados relevantes sobre a Escola Técnica de Saúde
(ETS), a partir de uma breve viagem pela história do ensino técnico de
enfermagem no Brasil, ancoradas em Bartmann (2007) e da ETS em particular,
através do olhar da atual diretora Icléia Honorato da Silva Carvalho. Tratamos
ainda de apresentar, neste capítulo, alguns aspectos do Projeto Políticopedagógico (PPP), em um diálogo com Machado (2002) e Ramos (2002).
Buscamos introduzir uma discussão sobre a importância do cultivo da
versatilidade, que compreendemos como sendo a capacidade de desempenhar
atividades variadas e diferentes utilizando-se dos recursos disponíveis no meio.
Esta qualidade está implícita no PPP da ETS, mas não parece estar sendo
problematizada conscientemente como uma característica vinculada à atuação
profissional do técnico em enfermagem. Tentamos ainda compreender a
vinculação entre a técnica e a prática de enfermagem, baseadas em autores
como Jaeger (1995), Gonçalves (2003).
No capítulo seguinte buscamos descrever a trajetória do curso técnico de
enfermagem e suplência do ensino médio – PRONERA, enfocando as relações
docentes no que se refere às fragilidades da formação escolar dos educandos e
educandas do curso de formação de técnicos em enfermagem e suplência do
ensino médio – PRONERA. Em seguida tratamos especificamente da
necessidade da compreensão da metodologia da alternância não apenas como
uma forma de organização do tempo, mas como um componente necessário à
promoção das trocas de saberes e construção de conhecimentos indispensáveis
à prática de enfermagem em áreas de assentamento, considerando não só a
escola, mas todos os espaços como locais de aprendizagem. Contamos nesse
capítulo, com os aportes teóricos de Arroyo (2004), Caldart (2004, 2007), Freire
(2000, 2005), Gonçalves (2003), entre outros.
No quarto capítulo convidamos o leitor a um repensar da educação a partir
da (re)descoberta da potencialidade humana para realizar diferentes atividades,
nas diversas áreas do conhecimento, incluindo as artes, a partir dos instrumentos
de que dispõe. Para tanto, partimos do conceito marxista de onilateralidade,
através de Manacorda (1991), para chegarmos à proposta de voltarmos nossos
olhares para a possibilidade da utilização dessa característica humana de ser
versátil, que é tão necessária às profissões da área de saúde e da educação.
Finalizando, apresentamos nossas considerações, que não pretendem ser
24
finais, pois desejamos que os debates que a pesquisa possa suscitar, gerem
inquietações nos levando a empreender novas buscas e ações no sentido da
transformação da nossa realidade onde o respeito, a amorosidade e o tratamento
igualitário sejam as regras e não exceções.
2. O CURSO TÉCNICO EM ENFERMAGEM DA UNIVERSIDADE FEDERAL DA
PARAÍBA.
Quando Freire nos convoca a estabelecer certo distanciamento do
objeto para admirá-lo, convida-nos a pôr de lado nossa posição ingênua, a sair
do nível espontâneo para a assunção de uma posição crítica, tomando a
realidade como “objeto cognoscível e na qual o homem assume uma posição
epistemológica”. (FREIRE, 1980, p.26). Buscaremos olhar o fenômeno, apesar
do envolvimento de trabalho com a escola, com um distanciamento que
também poderíamos chamar de brechtiano. Brecht, conhecido dramaturgo
marxista alemão, propunha a utilização de uma técnica de distanciamento ou
estranhamento teatral7 utilizada para afastar o ator do personagem ou o
espectador da ação, para que este pudesse analisá-la criticamente. Ou, dito
em outras palavras, para conduzir o espectador a uma consciência histórica.
(PEIXOTO, 1981). Através dessa técnica8, Brecht buscava evitar que o
envolvimento emocional - do ator e da platéia -, com os personagens
impedisse ou dificultasse a leitura crítica da história que se passava no palco,
levando espectador e ator a refletirem sobre a realidade na qual estavam
inseridos.
Sabemos que quando a escola se abre para uma investigação científica
dessa natureza, é chamada a uma reflexão sobre sua ação no momento em
que vivencia o distanciamento provocado pelos questionamentos da
pesquisadora, que no nosso caso em particular também é parte da escola.
Assim buscamos sair de um nível espontâneo ou, como preferem outros
autores, sair da cotidianidade, para tentar descrever os desafios da relação
docente no Curso Técnico de Enfermagem e Suplência do Ensino Médio,
7
O distanciamento ou estranhamento é uma técnica milenar do teatro chinês, também encontrada em espetáculos
populares de rua, em circos e até em algumas pinturas.
8
O ator distancia-se da personagem que faz quando, por exemplo, em plena cena ele “sai” da personagem e tece
algum comentário sobre o que está se passando em cena, retornando em seguida à ação na peça. Já para
distanciar o espectador da cena pode ser utilizada, por exemplo, uma música, cuja letra comente o que se passa
na história que está sendo contada.
25
realizado pela Escola Técnica de Saúde (ETS) da Universidade Federal da
Paraíba. E as constatações que aqui fizemos, longe de nos encaminharem à
acomodação, nos movem ainda mais em direção às transformações necessárias,
pois, segundo Paulo Freire (2000, p. 91), “Constato não para simplesmente me
adaptar, mas para mudar ou melhorar as condições objetivas através de minha
intervenção no mundo”.
2.1 A dicotomia na formação escolar do povo brasileiro: educação geral e
educação profissional.
A ETS, desde 1999, oferecia o ensino técnico aos seus educandos e
educandas, sem a preocupação com a formação geral, ou seja, sem necessitar
ofertar disciplinas do currículo do ensino médio, pois os/as estudantes já
deveriam ter concluído aquele nível de ensino para submeter-se ao processo
seletivo para o curso. Desta forma, os alunos e alunas concluintes, poderiam
ingressar no mercado de trabalho imediatamente, ou optar por seguir um curso
universitário. Vale salientar que parte dos alunos e alunas que freqüentam os
bancos escolares da ETS pertence à camada social média, mas busca o curso
técnico principalmente pela valorização salarial que esse seguimento profissional
vem conquistando com as novas políticas públicas de saúde, e pela escassez de
vagas em outras áreas de atuação.
Ao longo da história da educação no nosso país observamos - no que diz
respeito à formação de pessoas jovens e adultas -, certa indefinição sobre que
forma ou que tipo de educação seria o mais adequado à realidade brasileira para
essa parcela específica da população, sempre prevalecendo o que seria de
interesse das classes dominantes. Brandão (2002), citando Franco, informa que
já em 1884 havia, no Arsenal de Guerra do Rio de Janeiro, duzentos jovens
aprendendo diferentes ofícios e, concomitantemente, lhes eram ensinados o
desenho e as primeiras letras. Eram admitidos nesses cursos meninos com
idade entre os oito e doze anos e ao contarem vinte e um anos de idade, ao
receber o certificado de mestre na especialidade para a qual se habilitaram, eram
contratados como operários efetivos, com direito ao soldo. Durante o período de
aprendizagem os alunos, que deveriam ser órfãos indigentes ou filhos de pais
reconhecidamente pobres, eram acompanhados por um pedagogo que contava
26
com o auxílio de um guarda e dois serventes para cada grupo de cinqüenta
alunos.
Em 1909, no governo de Nilo Peçanha, foram criadas escolas de
aprendizes e artífices em todas as capitais brasileiras, destinadas aos filhos das
pessoas mais desfavorecidas economicamente. De acordo com Cunha, citado
por Brandão (2002), a implantação dessas escolas não decorreu das
necessidades de mão-de-obra, uma vez que o desenvolvimento industrial ainda
era muito incipiente na época.
Na década 1930, foram criadas algumas escolas técnicas nas escolas de
engenharia. A partir de 1942, todas as escolas de aprendizes e artífices, com a
Lei Orgânica do Ensino Industrial, passaram a oferecer cursos técnicos, em
equivalência parcial com o sistema regular de ensino, permitindo inclusive o
acesso aos cursos superiores relacionados com os cursos técnicos. A Lei
Orgânica forneceu as bases para a criação do Sistema S, uma vez que criou o
Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (SENAI) em 1942, e o Serviço
Nacional de Aprendizagem Comercial (SENAC), em 1946, para atender as
necessidades das empresas que os custeavam. As propostas curriculares
dessas escolas dificilmente se voltavam para a formação teórica, sendo de
cunho eminentemente prático.
Assim, o ensino no nosso país sempre foi marcado por uma diferenciação
que destinava aos despossuídos uma educação para o trabalho e aos filhos das
classes mais abastadas a educação propedêutica para o ensino superior.
Esse dualismo toma um caráter estrutural especialmente a partir da
década de 1940, quando a educação nacional foi organizada por leis
orgânicas. A Lei Orgânica do Ensino Secundário de 1942, promulgada
durante o Estado Novo, na gestão do Ministro Gustavo Capanema,
acentuava a velha tradição do ensino secundário acadêmico,
propedêutico e aristocrático. Juntamente com esta, havia o conjunto de
leis orgânicas que regulamentaram o ensino profissional nos diversos
ramos da economia, bem como o ensino normal. Se havia
organicidade no âmbito de cada um desses segmentos, a relação entre
eles ainda não existia, mantendo-se duas estruturas educacionais
paralelas e independentes. A equivalência entre os ensinos secundário
e técnico veio a ser estabelecida, primeiro, nos anos de 1950, com as
Leis de Equivalência e, depois, a equivalência plena somente com a
LDB de 1961, podendo os concluintes do colegial técnico se candidatar
a qualquer curso de nível superior. (FRIGOTTO, CIAVATTA, RAMOS,
2005, http://www.uff.br/trabalhonecessario/MMGTN3.htm)
Ainda segundo esses autores, as lutas da sociedade civil em defesa da
27
escola pública, marcaram de maneira significativa os acontecimentos entre as
leis orgânicas do ensino técnico de 1942 e o Decreto n. 2.208/97. Em 1998, a
sociedade civil organizada acompanhou de perto a apresentação do primeiro
projeto da Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) à Câmara dos
Deputados, feita pelo Deputado Federal Otávio Elísio, que propunha para o 2º
grau uma formação politécnica, “necessária à compreensão teórica e prática dos
fundamentos científicos das múltiplas técnicas utilizadas no processo produtivo”.
(BRASIL apud FRIGOTTO, CIAVATTA, RAMOS, 2005). Porém esse projeto não
foi aprovado naqueles termos e ao final, a formação integrada pretendida pelos
educadores foi proibida e a educação profissional foi regulamentada de acordo
com a política de formação do Ministério do Trabalho e Emprego e sob a
alegação das necessidades de mercado, de modo que permitiu-se uma formação
profissional aligeirada e fragmentada, através do decreto n. 2.208/97 e outros
instrumentos legais, como a Portaria n. 646/97. (FRIGOTTO, CIAVATTA,
RAMOS, 2005).
Em 2004, o decreto 5.154 de 23 de julho de 2004 instituiu a articulação
entre a educação profissional técnica de nível médio e o ensino médio, que pode
dar-se na mesma instituição de ensino, contando com matrícula única para cada
aluno; concomitantemente, com matrículas distintas para cada curso e, de forma
subseqüente, para quem já concluiu o ensino médio. (BRASIL, 2004). Ao
referirem-se ao decreto 5.154 de 2004, Frigotto, Ciavatta e Ramos (2005)
afirmaram:
O documento é fruto de um conjunto de disputas e, por isso, mesmo, é
um documento híbrido, com contradições que, para expressar a luta
dos setores progressistas envolvidos, precisa ser compreendido nas
disputas internas na sociedade, nos estados, nas escolas. Sabemos
que a lei não é a realidade, mas a expressão de uma correlação de
forças no plano estrutural e conjuntural da sociedade. Ou
interpretamos o Decreto como um ganho político e, também, como
sinalização de mudanças pelos que não querem se identificar com o
status quo, ou será apropriado pelo conservadorismo, pelos interesses
definidos
pelo
mercado
(http://www.uff.br/trabalhonecessario/MMGTN3.htm).
Segundo esses autores, com os quais concordamos nesse aspecto, o
governo do presidente Lula não está se propondo a conduzir mudanças
estruturais, principalmente em virtude das alianças com grupos conservadores.
Por esse motivo, mesmo com a integração do ensino médio ao ensino técnico,
28
não vislumbramos modificações no sentido da viabilização do ensino politécnico
e unitário.
Parece-nos que a turma de suplência do curso de formação de técnicos
de enfermagem conseguiu se aproximar, em alguns momentos, de uma vivência
do que poderia ser uma formação integrada. Claro que para isso foi necessário o
empenho dos professores da formação geral em conhecer questões básicas da
área de saúde, principalmente de saúde coletiva, para adaptar seus conteúdos
de forma a contemplar também a formação do técnico em enfermagem numa
perspectiva interdisciplinar, na medida do possível. Ao mesmo tempo, aos
professores e professoras das disciplinas técnicas coube reforçar as ligações
com as disciplinas do ensino médio, buscando facilitar a assimilação de alguns
conteúdos. Pois como afirmou Freire (2005b, p132),
Numa perspectiva progressista, a educação popular não pode, por
outro lado, reduzir-se ao puro treinamento técnico de que grupos de
trabalhadores realmente precisam. Esta é a maneira necessariamente
estreita de formar, que à classe dominante interessa, a que reproduz a
classe trabalhadora como tal.
Na perspectiva freiriana, sob o olhar de uma das entrevistadas faltou o
aprofundamento em temas que levassem os educandos e educandas a refletir
sobre sua realidade, problematizando-a. Essa necessidade é apontada pela
educanda Margarida (p.m.):
E outra coisa é que o curso, ele abre um espaço para ter uma
formação política e ideológica para essas pessoas, para que eles não
sejam mais um perdido na capital, não é? Vá para a cidade, deixe seus
lugares de origem e ajudem a crescer o êxodo rural. Vá se embora
procurar emprego na cidade... então...
E a educanda complementa mais adiante:
São filhos de agricultores, de assentados, Então são pessoas da...
da... Da região. De lá dos assentamentos mesmo. Mas que
infelizmente eles têm que ter mais uma formação política e ideológica
que é para que eles se conscientizem do que eles são. Eles
enxerguem não é? Eu sou isso. Eu quero isso para a minha melhoria e
que no campo é bom. Entendeu? Não é que a cidade é melhor. Que
isso não existe. E que você pode ser um bom profissional tanto no
campo quanto na cidade. Não é? Que você pode desenvolver seu
trabalho do mesmo jeito que desenvolve no campo desenvolve na
cidade. E não que aconteça o que sempre aconteceu, o êxodo rural.
As pessoas não têm oportunidade no campo aí joga todo mundo para
a cidade... Ta aí as favelas, não é? Ta aí do jeito que ta e o campo se
acabando. Dando espaço para as grandes indústrias.
29
Como informamos anteriormente, Margarida é uma militante do MST, o
que explica a sua forma de ver e pensar o mundo. Nesse aspecto, concordamos
com a educanda, ou seja, acreditamos que essa questão não teve o destaque
que merecia dentro da sala de aula propriamente dita, embora algumas
educadoras tenham abordado esse tema.
Mas o que realmente podemos fazer para que consigamos abandonar
aquela maneira estreita de formar, baseada no repasse de conteúdos, que vai
favorecer apenas aos interesses da classe dominante? Pensamos que a linha
metodológica da Educação Popular - que vem sendo posta em prática pelos
movimentos sociais do campo através dos seus educadores e educandos-, é um
caminho que se abre para que nos aproximemos de uma formação integral do
ser humano, na medida do que é possível numa sociedade capitalista.
2.2 A Escola Técnica de Saúde e o Curso Técnico de Enfermagem.
Remonta à década de 1890 a criação da primeira escola de enfermagem
no nosso país, quando o marechal Deodoro da Fonseca criou a Escola
Profissional de Enfermeiros e Enfermeiras, no Hospício Nacional de Alienados do
Rio de Janeiro. O próprio decreto de criação da Escola ditava o currículo e os
requisitos mínimos de ingresso no curso: ler e escrever corretamente e conhecer
a aritmética elementar e apresentar atestado de bons costumes. Além dessa
escola, entre 1890 e 1916 aconteceram outras pequenas e isoladas experiências
de “organização da enfermagem e treinamento de pessoal no âmbito hospitalar
em
situações
de
emergência.”
(BARTMANN,
2007,
http://www.senac.br/informativo). De acordo com Bartmann, o surgimento das
endemias e epidemias (febre amarela, varíola, peste bubônica) na década de
1920, atingiu em grande escala os trabalhadores portuários que tinham que
permanecer em quarentena quando atingidos por estas doenças. Foi em
decorrência dessa demanda que surgiu de maneira informal, a profissão de
auxiliar de enfermagem. Isto se constituiu em um problema econômico para o
país, uma vez que o comércio internacional acontecia por via marítima e era um
importante motor de crescimento para o Brasil. Diante dessa situação, as
autoridades governamentais do campo da saúde passaram a voltar suas
30
preocupações para a esfera da saúde pública, “numa clara articulação com os
meios de produção dominante. Assim, os Serviços de Saúde Pública tiveram que
ser reformulados e passaram a exigir um novo tipo de pessoal de enfermagem.”
(BARTMANN, 2007, http://www.senac.br/informativo).
Naquelas circunstâncias, o Departamento Nacional de Saúde Pública,
com o auxílio de enfermeiras norte-americanas que para cá vieram, organizou
um serviço de enfermagem de saúde pública que respondesse aos problemas
que se apresentavam. A necessidade de pessoas para atuar nesses serviços
resultou na criação, em 1926, da Escola de Enfermeiras Dona Ana Néri. No caso
desta escola o pré-requisito de ingresso era o diploma de conclusão da escola
normal ou do curso secundário. O exercício da enfermagem no Brasil foi
regulamentado através do Decreto nº 20.109.12, que estabeleceu as condições
para que as Escolas de Enfermagem se equiparassem à Escola de Enfermeiras
Ana Néri9. Esta foi incorporada, em 1937, à Universidade do Brasil, atual
Universidade Federal do Rio de Janeiro.
A origem da Escola Técnica de Saúde (ETS) remonta a pouco mais de
cinqüenta anos, após a promulgação da Lei 775/49, que previa os cursos de
nível superior (enfermeiro) e médio (auxiliar de enfermagem).
Na década de 1940, de acordo com Bartmann,
A complexidade do Hospital de Clínicas e a influência dos modelos
administrativos preponderantes trouxeram a divisão de trabalho para
dentro do hospital. Essa divisão de trabalho se estendeu também à
enfermagem, conforme afirma Ferraz, devido ao grande número de
leitos e o pequeno número de enfermeiras; as ações administrativas e
de educação ficaram com as enfermeiras, cabendo ao pessoal auxiliar
as ações assistenciais, o cuidado direto do paciente. Para que pudesse
desempenhar melhor sua função, o pessoal auxiliar passou a receber
treinamento específico para a área hospitalar. A divisão de trabalho na
enfermagem brasileira, iniciada naquela época, se mantém até os dias
de hoje. (2007, http://www.senac.br/informativo)
Ainda segundo Bartmann, a partir de 1950, com a ampliação do parque industrial e o crescimento da
população urbana e previdenciária, a saúde pública, entendida como o combate às epidemias e endemias que
prejudicassem o comércio exterior, foi gradativamente perdendo importância, inclusive nos programas oficiais. Por
outro lado, a atenção médica individualizada começou ser valorizada. No que diz respeito à atuação das enfermeiras,
ela afirma que:
9
A profissão Auxiliar de Enfermagem surgiu informalmente no Brasil, segundo Bartmann (2007), em meados
dos anos 1920, quando grandes endemias e epidemias (peste bubônica, varíola, febre amarela) assolavam o país.
Devido à grande carga de trabalho, sentiu-se a necessidade de pessoal para auxiliar as enfermeiras. Assim, as
enfermeiras da Escola Ana Neri – primeira escola de enfermagem do Brasil - eram responsáveis por preparar as
auxiliares para o trabalho.
31
Os hospitais incorporaram a moderna tecnologia médico-científica e
passaram a requerer, cada vez mais, a participação de enfermeiras de
"alto padrão", como também eram chamadas as enfermeiras
diplomadas. Ampliaram-se, portanto, as oportunidades de trabalho
para as enfermeiras e também para os auxiliares, já que o número de
enfermeiras era insuficiente. E a enfermagem científica brasileira, que
nasceu eminentemente preventiva, passou a ocupar a rede hospitalar
majoritariamente privada, empresarial e lucrativa, atendendo aos
interesses capitalistas. Na medida em que se ampliavam as
oportunidades de trabalho, crescia o número de escolas e cursos de
enfermagem e de auxiliares. De 1940 a 1956, foram criados 43 cursos
de Auxiliares de Enfermagem.
Nesse contexto, em 1953 foi criada a Escola de Auxiliares de Enfermagem da Paraíba. Segundo o que nos relatou
em entrevista a atual diretora da ETS, professora Icléia Honorato da Silva Carvalho, a Escola de Auxiliares de
Enfermagem da Paraíba foi criada através da Lei Estadual 875 de 21 de janeiro de 1953, para promover a formação
de pessoal para o serviço de enfermagem. Por meio da Portaria 343, o Ministro de Estado da Educação e Saúde
autorizou o funcionamento do curso, mais precisamente aos 30 de maio de 1953. Naquela ocasião a escola era
mantida pelo estado da Paraíba. Quando houve a federalização da universidade, em 1960, a escola passou a ser
parte da Universidade Federal da Paraíba (UFPB) e do Centro de Ciências da Saúde (CCS), através do
Departamento de Enfermagem do curso de graduação.
E quando isso aconteceu a nossa escola ficou... É... Ela não foi extinta,
a Escola de Auxiliar de Enfermagem da Paraíba, ela não foi extinta,
mas é como se existisse apenas o curso. A visão de escola – ela foi
apagada, ela foi eliminada. Apesar de que oficialmente ela não foi
extinta. Mas com a federalização da universidade, essa imagem de
escola deixou de ser visualizada, uma vez que ela ficou funcionando
dentro do departamento. Era o curso de graduação de enfermagem
que tinha também o curso de auxiliar de enfermagem. Quer dizer: essa
visão de escola, ela deixou de existir. (ICLÉIA HONORATO DA SILVA
CARVALHO)
Assim permaneceu a Escola de Auxiliares de Enfermagem por vários anos
até que, em 1995, a Resolução 1/95, do Conselho Universitário da UFPB criou
no Centro de Ciências da Saúde (CCS), o Departamento de enfermagem de
Nível Médio. Porém, apenas em março de 1999, foi criado o curso de formação
técnica em enfermagem e no mês de junho daquele ano houve a autorização
para o seu funcionamento. De acordo com o que a diretora da ETS informou
durante a entrevista:
Através da resolução 03 de 2003, do CONSUNI, nós conseguimos
modificar a resolução 04 de 1999 que criava o curso de
complementação técnica e criamos, na verdade, o curso de
habilitação de técnico de enfermagem. Porque acompanhando toda
a legislação da educação profissional e principalmente a legislação dos
conselhos responsáveis pela profissão, dos conselhos profissionais, no
nosso caso, CONFEN e COREN, percebemos que existia uma
necessidade urgente de formar o profissional técnico, que é o
profissional melhor qualificado, com acesso a diversas unidades de
tratamento que, muitas vezes o auxiliar, por melhor formação que ele
receba, o acesso é restrito a esse profissional, como nas unidades de
UTI e Centro Cirúrgico. Então, formar o profissional técnico, nós
estamos dando... É uma formação mais completa.
32
Ainda segundo a atual diretora, para que a escola recebesse a atual
denominação, foi necessário percorrer mais algumas etapas:
Na verdade, após a criação do departamento de nível médio, é...
Nessa época eu já estava (trabalhando na escola), mas não fazia parte
da administração. Houve um entendimento da Direção do Centro com
a chefia do Departamento de Nível Médio e parece que fizeram uma
consulta à Procuradoria Jurídica e, nessa consulta, a Procuradoria
percebeu que a escola nunca havia deixado de existir e não lembro
qual foi a resolução, mas houve uma mudança. Uma nova
denominação. De Departamento de Enfermagem de Nível Médio, a
nova denominação passou a ser Escola de Enfermagem de Nível
Médio. E após eu assumir a direção da Escola de Enfermagem de
Nível Médio, junto com o Conselho Escolar, percebemos a
necessidade de modificar mais uma vez essa denominação para
Escola Técnica de Saúde da Universidade Federal da Paraíba. Para
que houvesse uma maior abrangência dos cursos que seriam de
responsabilidade dessa escola oferecer e formar profissionais, não só
na área de enfermagem, mas também contemplar outras áreas da
saúde. Elaboramos um projeto e, através da resolução 5/2000, o
Conselho Universitário aprova dando a nova denominação. E a nossa
escola está sendo chamada de Escola Técnica de Saúde da
Universidade Federal da Paraíba.
Hoje, com instalações físicas próprias, contando com os equipamentos
didáticos, necessários para o seu funcionamento, e um quadro docente formado
por 20 professores, sendo 2 doutores, 13 mestres e 5 especialistas, a ETS
oferece quatro cursos regulares: técnico de enfermagem; técnico em prótese
dentária; técnico de agente comunitário de saúde; e técnico em biodiagnóstico.
Este último iniciado no período 2007.1, conta com professores cedidos pelo
CCS. Além destes, a ETS realiza o Curso Técnico de Enfermagem e suplência
do ensino médio em convênio com o PRONERA.
Em se tratando especificamente do curso técnico em enfermagem a ETS
vem seguindo uma orientação voltada prioritariamente para o trabalho hospitalar,
uma vez que este ainda é o modelo de atendimento hegemônico em nosso país,
embora passos estejam sendo dados no sentido de um atendimento preventivo,
a exemplo do Programa de Saúde da Família (PSF). Seguindo esses passos, e
também como resultado das aprendizagens realizadas no trabalho com o
PRONERA, que proporcionaram uma reflexão importante acerca de questões
como
interdisciplinaridade,
diálogo,
problematização,
currículo,
a
ETS
desencadeou um processo de reformulação do Projeto Político-pedagógico do
curso técnico de enfermagem, que se encontra em andamento.
O Projeto Político-pedagógico do curso técnico em enfermagem foi
33
elaborado, no ano de 2000, por uma comissão de professoras da ETS que
contou com a colaboração de alunos e funcionários e com uma assessoria
pedagógica do Centro de Educação. Atualizado em 2003, o PPP tem como
objetivos do processo educativo “a formação do aluno centrada nas capacidades
de observação, articulação, reflexão, análise, criação, reconhecimento de
valores, julgamento, comunicação, convívio, cooperação, decisão e ação”. (2003,
p. 3). Ao trabalhar essas capacidades, a escola busca atingir o seu objetivo geral
que é “habilitar Técnicos e qualificar Auxiliares de Enfermagem visando ao
exercício profissional, para atender, de forma eficiente, demandas do mercado
de trabalho e prerrogativas da sociedade de um modo geral”. (UFPB, 2003).
Podemos perceber, com base nestes objetivos, que ao tentar promover a
formação do aluno enfatizando estas capacidades citadas acima, a ETS é
chamada a favorecer o desenvolvimento da versatilidade nos educandos. Esta é
uma exigência do trabalho em saúde, uma vez que os técnicos de enfermagem
precisam observar sinais e sintomas dos pacientes para relatá-los aos demais
profissionais da equipe; manusear instrumentos médico-hospitalares; ministrar os
medicamentos prescritos; lidar com o doente, a família deste e a equipe de
saúde; realizar procedimentos; tomar decisões. Ainda é de sua competência
atuar na educação em saúde, através de orientação individual, palestras e
campanhas diversas. Assim, quando afirmamos que a escola é convidada a
favorecer o desenvolvimento dessa versatilidade, queremos dizer que a profissão
de técnico de enfermagem exige do seu e da sua praticante essa disponibilidade
para lidar com o novo, para a atuação curiosa, e inventiva, que lhes permita
transitar entre os problemas e desafios cotidianos, aperfeiçoando o seu
aprendizado.
No seu texto o projeto determina as competências, as habilidades e as bases tecnológicas necessárias à
formação do auxiliar de enfermagem, apontando o perfil de conclusão esperado:
O auxiliar de enfermagem deve ter competência e habilidades para
cuidar da pessoa saudável ou doente de forma humanizada, no âmbito
das ações básicas de saúde, ou das unidades de internação,
obedecendo aos limites estabelecidos para sua categoria profissional,
olhando a pessoa sob seus cuidados de forma holística, respeitando
seus valores espirituais, éticos e morais. Deve atuar em situações
emergenciais pré-hospitalares e hospitalares utilizando, de forma hábil
e adequada, técnicas e procedimentos indicados para os diferentes
casos. Registrar informações de apoio e suporte ao diagnóstico de
forma clara, com domínio do vocabulário técnico. Para isso, deve
manter-se atualizado, tanto no conhecimento quanto nos
procedimentos técnicos que embasam sua prática, atendendo o
34
princípio legal do aprender a aprender. (UFPB, 2003, p.4)
Já o técnico de enfermagem, ao terminar o curso, segundo o Projeto
político Pedagógico da escola, deve, entre outras coisas:
[...] ter capacidade para analisar os diferentes contextos no âmbito de
sua prática com espírito crítico, e cuidar do indivíduo sob um olhar
holístico, respeitando seus valores espirituais, éticos e morais. Em
outros termos, deve exercer a enfermagem com senso de
responsabilidade, contextualizando o objeto de sua prática de forma
articulada e tratar os problemas de enfermagem com espírito críticoreflexivo. (UFPB, 2003, p.5)
Com a criação de outros cursos (técnico em prótese, agente comunitário
de saúde, técnico em biodiagnóstico, formação de técnicos de enfermagem e
suplência do ensino médio), além da introdução do PROEJA, cada um com suas
especificidades, o corpo docente da ETS sentiu necessidade de atualizar o PPP
do Curso Técnico de Enfermagem, o que está sendo feito, a passos lentos.
Acreditamos que este trabalho é urgente e que deveria ser assumido pela
totalidade do corpo docente, com participação de alunos e funcionários.
Pensamos que a experiência com o grupo do PRONERA também traz grandes
contribuições para o redimensionamento do projeto específico do curso técnico
de enfermagem.
O PPP do curso técnico de enfermagem da ETS aponta para a
necessidade da formação de profissionais crítico-reflexivos, e “visa ao
desenvolvimento de habilidades implícitas na formação para o exercício eficiente
da enfermagem, nos aspectos técnico-científico, ético e legal.”(UFPB, 2003, p.3).
Ele tem como base as Diretrizes Curriculares para o Ensino Técnico na Área de
Saúde, de abril de 1999, que estabelecem uma série de competências a serem
desenvolvidas pelos alunos, voltadas para o atendimento hospitalar e o
domiciliar.
A noção de competência, inserida nos currículos das escolas de formação
profissional, foi introduzida como seu referencial primordial depois da aprovação
da Lei 9394/96, com o Decreto 2.208/97, que reformou a educação profissional
do país, promovendo uma separação estrutural entre o ensino médio e o técnico.
De acordo com Ramos (2002), estas reformas foram resultantes das
pressões dos organismos financiadores internacionais, como o Banco Mundial, o
35
Banco Interamericano de Desenvolvimento e a Organização Internacional do
Trabalho, que consideravam o ensino técnico ineficaz, ineficiente e custoso em
relação aos fins a que se propunha - e que encontraram respaldo no governo
neoliberal de Fernando Henrique Cardoso.
A resolução CEB Nº 4/99, em seu artigo 6°, estabelece que a competência
profissional refere-se à “capacidade de mobilizar, articular e colocar em ação
valores, conhecimentos e habilidades necessários para o desempenho eficiente
e eficaz de atividades requeridas pela natureza do trabalho”. É esta definição de
competência que norteia os PPPs das escolas técnicas.
No que se refere aos usos da noção de competência, aportamo-nos em
Machado, quando afirma que:
O emprego da noção de competência, tendo em vista o
estabelecimento de parâmetros de condições de desenvolvimento da
educação profissional, requer, assim, reconhecer que as
representações construídas sobre o que é competência não são
independentes das finalidades que têm em vista aqueles que a
constroem. (MACHADO, 2002, p. 257)
Ela afirma que os usuários do termo competência são variados, embora o
seu sentido seja relativamente comum a todos: “[...] a capacidade de sujeitos
agirem com eficácia quando se encontram no desenvolvimento de ações que
envolvem o exercício de atividades de trabalho”. (MACHADO, 2002, p. 251).
Acreditamos que, para os alunos e alunas que se propõe a melhorar as
condições de vida e de saúde de sua comunidade, o que vai pesar realmente na
sua atuação é a versatilidade que lhes é inerente, para lidar com as
adversidades do trabalho em saúde nos assentamentos, considerando-se a falta
de infra-estrutura naquelas localidades. Muitas vezes o profissional de saúde terá
que recorrer a soluções improvisadas para salvar uma ou mais vidas. Isto irá
requerer necessariamente o recurso aos saberes técnico-científicos e à
capacidade de mobilizar saberes e conhecimentos adquiridos tanto na escola
como na comunidade. Como a escola poderia promover o aprimoramento da
versatilidade dos educandos é uma questão que merece um estudo mais
aprofundado. As professoras entrevistadas direta ou indiretamente ressaltaram
essa qualidade dos educandos como um aspecto facilitador da sua
aprendizagem.
36
O Projeto Político-pedagógico da ETS, seguindo a orientação das
diretrizes curriculares nacionais, acentua a formação para o atendimento das
demandas do mercado de trabalho e também para a competência no trabalho,
tendo o cuidado de orientar seus educandos ao desenvolvimento de uma visão
holística do ser humano e de valores “espirituais, éticos e morais”. Nele estão
elencadas as competências, habilidades e as bases tecnológicas a serem
desenvolvidas nas subfunções de cada módulo (Básico, Profissional I e
Profissional II). Também estão discriminadas as ementas e os conteúdos
programáticos de cada disciplina.
Esta forma de organização curricular, aliada à formação das professoras,
favoreceu uma prática docente focada nos conteúdos, onde cada disciplina
existe de forma quase que totalmente isolada das outras, pois há algumas
disciplinas que são pré-requisitos de outras havendo certa ligação entre elas.
Pode ser que aqui tenha ocorrido o “emprego naturalizado da noção de
competência”. Machado (2002, p. 254) explica que:
Com a sua naturalização, as competências transformam-se em coisas,
objetos de consumo ou meios de produção, entes sem história, fora
das relações sociais. Não é difícil perceber a forte conotação normativa
e a função ideológica desse processo, por meio do qual se presume a
existência de modelos de comportamentos, caracterizados por
tendências e disposições subjetivas pretensamente manifestáveis
como realidades relativamente independentes dos contextos históricos
e culturais e das relações sociais.
A autora prossegue afirmando que essa maneira de abordar a
competência aparentemente ignora o fato de que o processo de sua
manifestação é uma construção social que não se desvincula do contexto
histórico e cultural e das relações sociais. Assim, para Machado, esta relação de
habilidades e capacidades para o desempenho profissional acaba se revelando
inútil para a atuação dos sujeitos em situações concretas de trabalho. Isto ocorre
porque, segundo Machado (2003, p.257) “[...] não existe uma estrutura geral e
universal de competência, assim como é impossível descrever os traços que
conformariam o ser humano universal”.
O trabalho em saúde é de uma complexidade grande. O fator emocional
está sempre em evidência, uma vez que os sujeitos deparam-se, em todo
momento, com aquilo que qualquer ser humano mais teme: a dor, a morte
37
enquanto possibilidades concretas. O/A profissional técnico/técnica em saúde
geralmente empreende também, na sua atividade um esforço físico considerável
no trato com a pessoa doente. Além disso, há os riscos de contaminação por
vírus e bactérias.
Algumas vezes, situações inesperadas exigem decisões e
ações imediatas e corretas. Portanto, há um horizonte de competências que
pode ser vislumbrado para estes/estas profissionais, mas o estabelecimento e a
persecução de um perfil igual para todos eles não é viável porque eles estarão
vivendo realidades diferenciadas com sujeitos também diferenciados, além de
apresentarem
subjetividades
que
influenciam
sua
atividade
profissional.
Machado evoca alguns fatores objetivos como o sistema social, as condições de
trabalho, o nível de complexidade da atividade; e alguns fatores subjetivos como
as lógicas de construção de saberes, as trajetórias dos indivíduos, suas
habilidades, conhecimentos anteriores, entre outros que justificariam a
inoperância da naturalização das competências.
Assim, é fundamental levar em conta que a competência é uma
construção pessoal e social, que é aprendida quando os sujeitos se
confrontam com uma situação que coloca problemas, exigindo
descobrir, inventar ou adquirir soluções, sintetizar teoria e prática.
(MACHADO, 2002, p. 258, grifo da autora).
Nessa perspectiva, a práxis é o que leva à competência. Ou seja, a
atividade prática - não o praticismo – refletida e transformadora é quem favorece
o desenvolvimento de competências para a atuação profissional.
Quanto à avaliação, o PPP aponta diferentes instrumentos tais como:
[...] provas, estudo dirigido, dramatização, trabalhos em grupo, visitas
domiciliares, projetos, relatórios, pesquisas, ficha individual do aluno,
além da observação constante do desempenho das atividades teóricopráticas, apresentação pessoal e do relacionamento interpessoal [...].
(UFPB, 2003).
Para as docentes do Curso Técnico de Enfermagem, as oportunidades de
avaliação dessas competências ocorrem durante os estágios e as atividades
práticas em enfermagem. Isto porque é no fazer que o sujeito defronta-se com
situações inesperadas onde tem que associar os conhecimentos científicos da
profissão à situação vivenciada, levando em consideração as normas
procedimentais e as atitudes. Na ETS busca-se avaliar tanto os conhecimentos,
38
através da utilização das tradicionais provas ou trabalhos escritos, como o saber
fazer e o ser, na atuação prática. Para a avaliação prática existe uma ficha de
acompanhamento do aluno, onde estão listadas as atitudes esperadas, que vão
desde o seu aspecto físico (indumentária, higienização) e pontualidade, até a
utilização de termos técnicos e a execução dos procedimentos, para as quais a
professora atribui notas.
2.3 Uma compreensão da techné vinculada à prática de enfermagem
O Curso Técnico de Enfermagem da ETS tem - como o próprio nome
explicita - a função de formar pessoas para a utilização de um conjunto de
técnicas específicas na atuação profissional na área de enfermagem, que inclui
também o desenvolvimento de atitudes voltadas para o atendimento humanizado
aos que estão sob seus cuidados. A pessoa egressa desse curso terá que
dominar conhecimentos especializados em função de sua atuação prática. Esses
conhecimentos especializados diferem da teoria concebida por Platão como
ciência pura, pois são acionados em função de uma prática. Portanto a palavra
grega techné é algo que transcende a arte10, e refere-se àquelas profissões
práticas que se fundamentam em um conjunto de conhecimentos especializados.
(JAEGER, 1995). Convém ressaltar a forma que Platão caracterizou a techné
utilizando-nos das palavras de Jaeger (1995, p.656),
As características essenciais do conceito de techné são: primeira, é um
saber baseado no conhecimento da verdadeira natureza do seu objeto;
segunda, é capaz de dar conta das suas atividades sempre que tem
consciência das razões, segundo as quais procede; finalmente, tem
por missão servir a parte melhor do objeto de que se ocupa.
Uma das funções do técnico de enfermagem é a de executar os procedimentos determinados pelos enfermeiros junto
à pessoa que se encontra em tratamento de saúde, observando as reações e a ocorrência de eventos esperados e/ou
inesperados para relatá-los posteriormente à equipe de saúde, através do relatório no prontuário e de comunicação
oral, dependendo da situação. Não tendo prerrogativas para realizar um diagnóstico e determinar a terapêutica, o/a
técnico/técnica pode contribuir com sua realização através do repasse de informações relevantes à equipe de saúde.
Ao lidar com a pessoa doente ele/ela precisa mobilizar conhecimentos e habilidades que se aproximam dos que são
do domínio dos médicos hipocráticos, tais como os descreveu Gonçalves:
10
Arte entendida, segundo o Dicionário Eletrônico Aurélio Séc. XXI, como a capacidade humana de colocar
uma idéia em prática valendo-se da faculdade de dominar a matéria.
39
A atitude fundamental que se espera do médico hipocrático é a de
desenvolver uma atenção para identificar tecnicamente a(s)
alteração(ões) da physis de seus pacientes e saber as opções de
intervenção técnica capazes de auxiliar para a recuperação do estado
de saúde. É, portanto, uma arte, um saber fazer que tem uma base
racional (episteme) e um conhecimento racional voltado para intervir
tecnicamente. O bom médico vai ser reconhecido pela acuidade dos
sentidos, pela sua inteligência e pela habilidade de suas mãos.
(GONÇALVES, 2003, p 49)
Acreditamos que, nos dias atuais, grande parte dessas habilidades se
aplica ao técnico de enfermagem. Sentidos acurados, habilidade manual e
conhecimento racional que levam ao saber fazer são requisitos importantes para
a boa atuação profissional. Segundo o educando Chico (p.m.):
A gente vê assim: “eu vi a professora fazendo, eu também sei”. Mas
quando você pega, você vai sentir a diferença. Você vai ver bem é
quando você pega. Pelo menos lá, a gente fazendo um curativo... Eu.
E um colega ao lado sempre me catucando: _ “pegue de tal jeito”. E na
hora que terminou o meu, chegou a vez dele, noutro paciente. Creia
em mim: errou totalmente. Mas ele tava seguro que tava ensinando o
outro. É, ele estava o tempo todo me catucando. Quando foi no horário
dele foi um geral, por que? Porque é diferente quando você vê e
quando você faz.
O depoimento de Chico (p.m) enfatiza a importância e a necessidade da
prática para uma boa formação do técnico em enfermagem, ressaltando que
nesse caso, o conhecimento racional, por si só, não leva ao saber fazer “dentro
da técnica”, para utilizar as palavras das professoras enfermeiras. O colega de
Chico (p.m.) teoricamente sabia realizar o procedimento, mas ainda não tinha,
assim como Chico (p.m.), desenvolvido a habilidade manual para fazer tal coisa.
Lembremos que Chico é agricultor e os instrumentos que utiliza no seu trabalho
são mais pesados, requerendo a utilização da força física. O trabalho com os
instrumentos de enfermagem utilizados ao se fazer um curativo, por exemplo,
requer firmeza e leveza ao mesmo tempo.
Há alunos e alunas que sentem dificuldades na compreensão da teoria,
fato o que consideramos resultado de uma série de acontecimentos que vão
desde a fragilidade da formação escolar recebida no campo, até a sobrecarga de
horas-aula do curso, que não lhes deixa tempo para elaborar as informações
adquiridas no decorrer do dia, o que acaba se concretizando durante a atividade
prática. Foi o que revelaram os alunos Jósimo (p.m.) e Zé Divino (p.m.):
40
Eu acho o seguinte: a dificuldade é nas aulas teóricas. Porque o tempo
é curto. Agora, a facilidade maior é na parte prática. Quando você
passa a estagiar, você aprende duas vezes mais do que na parte
teórica. (Jósimo)
Durante a teoria a gente acha que tudo é difícil. Quando passa à
prática vem de imediato a lembrança do que a gente viu na sala de
aula, durante a teoria. (Zé Divino)
A professora Arruda pensa de forma semelhante aos educandos e
educandas:
Aprendem com muita facilidade as técnicas. Nas técnicas eles “dão um
banho”. Acho até que nas teóricas eles têm mais dificuldades, mas as
técnicas, tanto as que eles fizeram no hospital fizeram muito bem
feitas, como aprendem aqui as técnicas, não dão trabalho nenhum
para aprender. Como eles aprendem com facilidade, porque eles são
é... aí está o pensamento concreto, não é? Para eles é muito mais
fácil, não é? As questões teóricas para eles são muito mais difíceis.
Mas estão acompanhando, não é?
Vale salientar que a professora baseou sua fala em conversas com
colegas cujas disciplinas ofereciam aulas práticas em enfermagem, o que não
era o seu caso. As professoras Camomila e Malva ministraram uma disciplina na
qual havia o estágio obrigatório. Sobre esse momento, a professora Camomila
afirmou:
Eu tive todas as oportunidades lá junto com os funcionários do
hospital, e me surpreendeu, realmente, a desenvoltura deles e o querer
aprender. Não houve muita técnica, até porque eu fiquei mais na outra
parte e ‘Malva’ foi quem ensinou mais a técnica mesmo. Mas eles
aprendiam com uma facilidade incrível. É a curiosidade deles. Demais,
demais, demais. Achei muito proveitoso, aula prática, muito.
Surpreendente.
Portanto, para podermos construir esse conhecimento da verdadeira
natureza do objeto, não podemos separar a teoria da prática. De acordo com
Gonçalves (2003, p. 50), “A techné corresponde às tarefas práticas e atividades
profissionais que exigem saber empírico, mas também regras gerais e
conhecimentos consolidados”. Portanto, a construção dos conceitos relacionados
aos cuidados de enfermagem poderia ser facilitada, a nosso ver, se a prática ao
invés
de
ser
efetivada
após
os
estudos
teóricos,
fosse
realizada
concomitantemente a eles, na medida do possível. Aqui recorremos a Hannoun
41
que, segundo Pereira (2007), foi buscar em Varela o conceito de enação,
afirmando que para procurar transcender a visão cartesiana, deve-se romper
com a imagem dual de mundo e com os binarismos tais como teoria e prática, de
forma que estes se encaixassem com naturalidade.
A aluna Margarida (p.m.) expôs seu pensamento acerca dessa relação entre teoria e prática da seguinte forma.
E principalmente quando você tem a teoria e a prática, fica melhor
ainda, porque você consegue ligar uma coisa com a outra. Eu acho
que uma coisa não existe sem a outra. Mas a prática é bem mais fácil
para você aprender.
Parece-nos que há um consenso entre os educandos de que a prática é
mais fácil de ser aprendida e que a teoria passa a ser compreendida mais
facilmente quando aplicada à prática.
Eu não sinto dificuldade em nenhuma não, mas acho que você
aprende mais na prática. Porque assim é bom porque você tem a
teoria e a prática. Não é? Teoria e a prática. Não dá tempo de você
esquecer. Então eu acho que os dois são interessantes. Agora que
para a gente, eu acho que para aprender mais, melhor mesmo, é na
prática. (MARGARIDA)
Essa facilidade de aprender na prática é inerente ao ser humano. Se
recorrermos às fases do desenvolvimento humano, tanto ontogenética como
filogeneticamente, nós veremos que as primeiras aprendizagens ocorreram a
partir da prática, do concreto. A criança, por exemplo, para compreender o
mundo adulto com todas as suas relações precisa brincar, realizando o jogo do
faz de conta. Já, no processo de hominização, os seres humanos passaram por
mutações genéticas que, segundo Morin (1973, p.54)
[...] realizam as transformações anatómicas e o aumento do tamanho
do cérebro; uma “seleção” do bipedismo por um meio natural
adequado, que já não é a floresta mas sim a savana; um novo tipo de
vida que, fazendo desse animal simultaneamente presa e predador,
desenvolve numa dialéctica pé-mão-cérebro aptidões cerebrais que até
então não tinham sido sistematicamente exploradas pelo chimpanzé,
acarreta a utilização de armas defensivas e ofensivas e a construção
de abrigos, iniciando, portanto, o desenvolvimento técnico no seio de
uma nova práxis.
Dito em outras palavras, os seres humanos começaram a se diferenciar
dos demais animais a partir do momento que liberaram suas mãos para o
42
trabalho, o que facilitou o desenvolvimento de suas aptidões cerebrais.
Acreditamos que por este motivo nós, seres humanos, ainda aprendemos mais
facilmente se nos for dada a oportunidade de utilizar nosso corpo nesse
processo. Se nos for dada a chance de realizar atividades que nos façam
construir, em interação com outros seres humanos, o conhecimento teórico. Há,
inclusive, um sábio ditado milenar oriental que é citado em muitas produções
sobre educação e que retomamos neste trabalho: “Se escuto, esqueço; se vejo,
relembro; se faço, aprendo”. Poderíamos compreender esse fazer que leva à
aprendizagem como a atividade que surge das necessidades do viver. Como já
afirmaram Marx e Engels (1991, p.37), “Não é a consciência que determina a
vida, mas a vida que determina a consciência”.
Nesse sentido, Maturana segundo um estudo realizado por Vieira (2004),
aponta para a relação entre o conhecer e o viver. Entendendo cada ser vivo
como um sistema fechado, mas ao mesmo tempo existindo em relação com
outros organismos, ele afirma que cada ser vivo organiza seu conhecer a partir
do seu próprio viver em relação com outros seres. Na sua busca para entender
como o ser vivo conhece o mundo, Maturana chegou à conclusão de que o ser
vivo “age e re-age diante das circunstâncias, já que vai organizando seu
conhecer
a
partir
do
próprio
ato
de
viver”.
(VIEIRA,
2004,
http://www.humanitates.ucb.br/2/maturana.htm).
A teoria, derivada do verbo theoréo, que significa “observar, examinar,
contemplar” passou a referir-se aos “que contemplam com os olhos da
inteligência ou do espírito e, portanto, que examinam idéias, conceitos,
essências, com o significado de raciocinar, pensar, demonstrar, julgar, meditar e
refletir.” (CHAUÍ, 2002, p.512) Os educandos teorizam através da contemplação,
do exame das idéias e conceitos ao observar e ao refletir sobre sua própria
prática, relacionando-a de imediato com as teorias que a orientam. E, ao conversar sobre elas, não estão sendo ouvintes passivos de palavras proferidas pelo
professor fadadas ao esquecimento. Estão sim convivendo e, ao mesmo tempo,
sendo os autores do próprio conhecimento.
De acordo com Freire (2002, p.41), a prática “[...] ganha uma significação
nova ao ser iluminada por uma teoria da qual o sujeito que atua se apropria
lucidamente.” Ele alerta para a necessidade de compreendermos que nossa
ação envolve uma teoria, mesmo que não tenhamos conhecimento disso. Por
43
isso orienta-nos a refletir sobre a ação desvelando seus objetivos, seus meios e
sua eficiência. Para tanto, é necessário o estabelecimento de uma relação
dialógica, para que não incorramos na antidialogicidade. Freire afirma que uma
das características da ação antidialógica é a invasão cultural, na qual “[...] o
invasor reduz os homens do espaço invadido a meros objetivos de sua ação”.
(2002, p. 41)
Com estudantes de áreas de assentamentos, corre-se o risco de atuar de
maneira a impor o pensamento docente, principalmente quando este insiste no
ensino conteudista, sem promover a problematização necessária ao ato de
aprender.
Para Freire (1980, p. 81),
A educação problematizadora está fundamentada sobre a criatividade
e estimula uma ação e uma reflexão verdadeiras sobre a realidade,
respondendo assim à vocação dos homens que não são seres
autênticos senão quando se comprometem na procura e na
transformação criadoras. Em resumo: a teoria e a prática bancária,
enquanto forças de imobilização e de fixação, não reconhecem os
homens como seres históricos; a teoria e a prática críticas tomam
como ponto de partida a historicidade do homem.
O diálogo é inseparável da problematização, pois nele reflexão e ação
direcionam-se à transformação e humanização. Portanto, o diálogo representa
uma ação contrária ao repasse de conteúdos pré-estabelecidos que, segundo
Freire (1980) não pode se limitar a uma troca de idéias, nem transformar-se
numa discussão hostil. Para haver diálogo tem que haver amor, fé, esperança e
pensamento crítico que conduzem a ação transformadora do homem sobre si
mesmo – humanização – e sobre a realidade que o cerca.
3. O CURSO DE FORMAÇÃO DE TÉCNICO DE ENFERMAGEM E
SUPLÊNCIA DO ENSINO MÉDIO – PRONERA
Tentaremos, neste capítulo, descrever o processo de implantação do
curso de formação de técnico em enfermagem e suplência do ensino médio na
Escola Técnica de Saúde do Centro de Ciências da Saúde da Universidade
Federal da Paraíba. Por ser, o curso, inserido no Programa Nacional de
Educação na Reforma Agrária (PRONERA), buscaremos tratar de alguns
44
aspectos do programa que julgamos necessários à compreensão do fenômeno
em estudo. Em seguida, tentaremos estabelecer um diálogo, centrado nas
relações docentes e discentes, para trazer à tona algumas dificuldades
enfrentadas por eles na construção desse curso, desde aspectos relacionados à
infra-estrutura como às questões didático-pedagógicas e subjetivas das pessoas
envolvidas.
3.1 As Diretrizes Operacionais do PRONERA e o Projeto do Curso Técnico
de Enfermagem e Suplência do Ensino Médio
Com as construções pedagógicas voltadas para levar em consideração as
experiências culturais existentes na zona rural, vem se consolidando um modelo
de educação do campo tendo, na atualidade, o MST como o seu maior
articulador. Após a promulgação da Constituição, a luta por uma educação de
qualidade que respeitasse a identidade do homem e da mulher do campo, com
suas especificidades culturais de gênero, etnia, idade, continuou. Portanto,
desde os anos 1990, os movimentos sociais do campo vêm buscando, junto às
universidades, condições de acesso e permanência dos trabalhadores rurais
nestas instituições, objetivando uma formação profissional que atenda às suas
especificidades. Naquela época,
[...] a partir das pressões dos movimentos sociais do campo, surgem
iniciativas institucionais para a criação de uma agenda voltada para o
encaminhamento de políticas para a educação no campo, envolvendo
seguimentos da sociedade organizada. (FURTADO, 2006, p. 68)
Nesse contexto, em julho de 1997, o MST realizou o primeiro ENERA,
Encontro Nacional dos Educadores e Educadoras da Reforma Agrária, em
parceria com o Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF),
Organização das Nações Unidas para a Educação (UNESCO), Conferência
Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), e Universidade de Brasília (UnB). Com
resultados bastante proveitosos, decidiu-se pelo desenvolvimento de um projeto
mais amplo, que contemplasse todos os sujeitos do campo e seu contexto. A
realização da I Conferência Nacional por uma Educação do Campo foi resultado
do ENERA. Além das entidades participantes daquele I ENERA, a I Conferência
45
contou com a participação de organizações não governamentais, sindicatos,
universidades, e entidades outras ligadas ao processo de educação no campo. A
valorização das culturas do campo, a luta por políticas públicas pelo direito à
educação básica no campo, e a vinculação das práticas de educação básica do
campo com a construção de um projeto popular de desenvolvimento nacional,
foram alguns dos compromissos definidos naquela Conferência. As conclusões
da I Conferência foram divulgadas e discutidas por todo o país.
De acordo com Caldart (2004, p.13), a I Conferência Nacional por uma
Educação Básica no Campo foi o marco do “novo jeito e lutar e de pensar a
educação para o povo brasileiro que trabalha e vive no e do campo”. Foi o
debate preparatório para essa Conferência que deu origem a Articulação
Nacional Por Uma Eduação do Campo. Para Caldart (2004, p.19)
A educação do Campo se constitui a partir de uma contradição que é a
própria contradição de classe no campo: existe uma incompatibilidade
de origem entre a agricultura capitalista e a Educação do Campo,
exatamente porque a primeira sobrevive da exclusão e morte dos
camponeses, que são os sujeitos principais da segunda. Em nosso
debate isso tem sido referido como a principal oposição com a
educação rural ou para o meio rural, que historicamente tem sido o
nome dado às iniciativas do Estado de pensar a educação da
população trabalhadora do campo, de modo a escamotear esta
contradição e fazê-la de objeto e instrumento executor de políticas e de
modelos de agricultura pensados em outros lugares, e para atender a
outros interesses que não os seus como grupo social, classe e
pessoas.
A aprovação das Diretrizes Operacionais para a Educação Básica nas
escolas do Campo (Parecer nº 36/2001 e resolução nº 1/2002 do Conselho
Nacional de Educação) foi conquista resultante das lutas dos homens e mulheres
do campo e das pessoas da cidade que abraçaram esta causa. Digna de nota foi
também a instituição, em 2003, do Grupo permanente de Trabalho de Educação
do Campo, com a participação de representantes dos movimentos sociais e
sindicais de trabalhadores e trabalhadoras do campo. Atualmente, na Secretaria
de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade (SECAD) do Ministério da
Educação, há uma Coordenação-Geral de Educação do Campo.
De acordo com a resolução CNE/CEB I, de 3 de abril de 2002, no Artigo
3º, o Poder Público deverá garantir a universalização do acesso da população do
campo à Educação Básica e à Educação Profissional de Nível Técnico. Porém,
46
como consta no Artigo 6º da mesma resolução, o Poder Público atuará em
“regime de colaboração entre a União, os Estados, o Distrito Federal e os
Municípios”, para proporcionar a educação infantil e o ensino fundamental às
comunidades rurais, incluindo os que não o concluíram na idade prevista,
cabendo especialmente aos estados a garantia de acesso ao ensino médio e à
educação profissional de nível técnico. Acreditamos que dificilmente o Estado
possibilitará de forma eficiente o acesso ao ensino médio e profissional de nível
técnico às pessoas do campo, pelo menos a curto e médio prazo, pela própria
história de não prioridade à educação no nosso país.
Arroyo (2004, p.105) enfatiza a importância da responsabilidade do Estado
em se tratando da educação, quando afirma:
Seria ingenuidade política dos movimentos sociais tentar assumir a
tarefa da educação prescindindo do público. A história mostra com
nitidez que a garantia dos direitos sociais somente acontece quando
assumidos como dever do Estado, no campo do público. À sociedade,
às famílias, aos movimentos sociais cabe mostrar a diversidade de
direitos, denunciar até sua negação para os diversos grupos humanos
e pressionar para que o Estado os garanta como direitos universais
iguais para todos, em espaços públicos através de leis, recursos e
políticas públicas. A educação do campo não é responsabilidade única
dos movimentos sociais, mas da sociedade toda, especialmente do
Estado e dos diversos governos.
O PRONERA surgiu como resultado das pressões dos movimentos
sociais, por uma educação adequada às pessoas do campo. No entanto
permanece como um paliativo, que ainda não se efetivou como uma política
pública permanente de EJA. Em que pesem as críticas a este programa, deve-se
destacar a sua importância político-social, na medida em que pauta sua atuação
na participação, mobilização, organização, enfim, num projeto coletivo que
valoriza o outro, abrindo o diálogo, respeitando as diferenças, estabelecendo
parcerias e construindo novas relações de poder.
O Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (PRONERA) foi
criado em 16 de abril de 1988, pelo Ministério Extraordinário de Política fundiária
através da Portaria Nº 10/98, para atender à grande demanda por educação para
as pessoas jovens e adultas das áreas de Reforma Agrária. Trata-se de um
programa amplo que inclui alfabetização, educação básica, formação técnicoprofissional e formação continuada de professores, através de cursos normais de
nível médio, cursos superiores de licenciatura plena ou cursos de pós-
47
graduação.
O PRONERA, que tem o objetivo de contribuir para a promoção do
desenvolvimento sustentável, tem como princípios político-pedagógicos: a
inclusão, que consiste no acesso à educação como um direito social fundamental
na construção da cidadania dos jovens e adultos da reforma agrária; a
participação, que implica na tomada de decisões junto com os parceiros, sobre a
elaboração, execução e acompanhamento dos projetos; a interação, ou seja, a
formação de parcerias entre órgãos governamentais, instituições públicas de
ensino e instituições comunitárias de ensino sem fins lucrativos, movimentos
sociais e sindicais de trabalhadores rurais e as comunidades assentadas; e a
multiplicação, que visa à ampliação do número de educadores e educadoras,
técnicos e técnicas e do número de pessoas alfabetizadas e formadas nos
diferentes níveis nas áreas de reforma agrária (BRASIL, 2004).
Os princípios e pressupostos teórico-metodológicos dos projetos, segundo
o Manual de Operações do PRONERA são os seguintes:
Princípio do diálogo: é preciso garantir uma dinâmica de
aprendizagem-ensino que assegure o respeito à cultura do grupo, à
valorização dos diferentes saberes e produção coletiva do
conhecimento. Princípio da Práxis: é preciso construir um processo
educativo que tenha por base o movimento ação-reflexão-ação e a
perspectiva de transformação da realidade; uma dinâmica de
aprendizagem-ensino que ao mesmo tempo valorize e provoque o
envolvimento dos educandos/educandas em ações sociais concretas,
e ajude na interpretação crítica e no aprofundamento teórico
necessário a uma atuação transformadora. Princípio da
transdisciplinaridade: processo educativo que contribua para a
articulação de todos os conteúdos e saberes locais, regionais e globais
garantindo livre trânsito entre um campo de saber e outro. É importante
que nas práticas educativas os sujeitos identifiquem as suas
necessidades e potencialidades e busquem estabelecer relações que
contemplem a diversidade do campo em todos os seus aspectos:
sociais, culturais, políticos, econômicos, de gênero, geração, etnia.
(BRASIL, 2004, p. 22)
Com inspiração nesses princípios, foi elaborado o Projeto de Formação
Técnico-profissional: Cursos de Habilitação de Técnico de Enfermagem e
Suplência do Ensino Médio, que teve como instituição proponente a
Universidade Federal da Paraíba: Escola Técnica de Saúde, Setor de Estudos e
Assessoria a Movimentos Populares – SEAMPO, Colégio Agrícola Vidal de
Negreiros. O projeto contou, ainda, com assessoria pedagógica do Centro de
Educação da UFPB. Este projeto veio ao encontro dos anseios das comunidades
48
assentadas, não só pela necessidade de escolarização das pessoas, mas
também pelas lacunas ainda existentes no atendimento à Saúde pelo Sistema
Único de Saúde (SUS), principalmente em áreas pouco populosas. Assim, de
acordo com o Relatório Resumido Ano II – 2005, do PRONERA, o Projeto de
formação técnico-profissional: Cursos de Habilitação de Técnico em Enfermagem
e Suplência do Ensino Médio tem como metas finais:
Ao terminar o curso os profissionais com formação em técnico em
enfermagem devem ter competências e habilidades para cuidar da
pessoa saudável ou doente de forma humanizada, quer seja nos
serviços de ações básicas de saúde ou nos diversos setores das
instituições hospitalares. Deve atuar de forma hábil e adequada,
utilizando técnicas e procedimentos indicados para os diferentes
casos. (UFPB, 2005, p. 5)
A necessidade de habilitação de pessoa para o trabalho de saúde nos
assentamentos foi relatada pelos próprios alunos do curso, quando abordaram
os motivos que os levaram a fazer o curso técnico em enfermagem:
Um dos motivos que mais me motivou foi isso também. Quer dizer:
saber o que estou falando e com segurança do que eu falo e poder,
através daí, reivindicar alguma coisa para o benefício da
comunidade. Que antes, pra falar a verdade, isso eu não tinha. Na
verdade, eu não sabia de nada até hoje. Depende de que... Como a
maioria... Hoje não. Já mudou. Hoje ta tendo treinamento, mas no
início... Isso foi em 95, 94. Na área de saúde eu praticamente não
sabia de nada. Eu tiro por mim. Eu passei dois anos. O que eu sabia
era fazer as visitas, era perguntar o que os outros mandavam, mas
fazia apenas isso. Mas fazia porque tava escrito. Vai preencher uma
ficha, eu ia e preenchia. Mas não tinha nenhuma noção. E com esse
curso é diferente. (Chico – p.m.)
O educando Chico (p.m) acompanha uma área de conflito no município de
Rio Tinto. È posseiro. Atua na CPT e reside na comunidade de Areia Branca. É
membro da diretoria do sindicato rural. Participa das reuniões do Conselho de
Saúde do seu município e é também agente comunitário de saúde. Esta vivência
possibilitou o conhecimento das necessidades de saúde das pessoas das
localidades onde atua e isto aliado ao compromisso social que foi construído ao
longo da sua vida o fizeram sentir o desejo de ser um técnico em enfermagem:
poder atuar com propriedade em benefício da comunidade. Chico (p.m.) afirmou
que após cursar algumas disciplinas sentiu-se mais seguro: “Teve reunião em
Rio Tinto, agora, do Conselho de Saúde, do que eu participei. Aí eu já tenho
49
noção do que eu tava falando, do que tava acontecendo na reunião e eu podia
falar com mais segurança.”.
Este desejo de ajudar ao próximo nos remete, mais uma vez, a teoria de
Maturana, quando este trata da amorosidade. Segundo este biólogo, nossas
emoções nos permitem transitar de um percurso explicativo a outro, no curso do
nosso emocionear11. “En fin, nos movemos em um camino explicativo o en el otro
según nuestras emociones”. (2000, www.gritzgestalt.com/artimaturana.htm).
Para Maturana, falar de emoções é falar de classes de condutas relacionais, ou
seja, sentimos qualquer emoção como medo, ternura, amor, ódio, agressão,
porque nos relacionamos. E quando há amor o outro, a outra ou o próprio
individuo surge como o legítimo outro em convivência.
La expresión “legítimo” sólo quiere decir el outro, la outra o uno mismo
no tiene que disculparse por ser. Cada vez que alguien se disculpa por
ser revela que se encuentra em um espacio en el cual no surge em su
legitimidad en relación con los otros. (MATURANA, 2000,
www.gritzgestalt.com/artimaturana.htm)
Poderíamos dizer que amar é aceitar-se e ao outro na convivência sem
anular-se, mas reconhecendo e respeitando as diferenças e o lugar do outro,
buscando com-partilhar. Portanto, a amorosidade é o vínculo que permite aos
educandos mover-se no sentido da superação dos seus próprios limites para
traçar novos percursos no sentido do encontro com a sua comunidade, para que
possam realizar ações transformadoras a partir dos conhecimentos técnicos que
buscaram adquirir no curso.
A educanda Anunciada (s) que atuou durante um ano como agente da
CPT, visitando as áreas e os acampados onde pode ver os problemas de saúde
enfrentados pela população, já desejava dedicar-se ao ofício da medicina antes
mesmo de ser ventilada a possibilidade do curso técnico em enfermagem no seu
assentamento.
O que me motivou... Foi assim, lá na minha comunidade existe
muita necessidade na questão da saúde. Então eu via muita
necessidade. E eu sempre tive vontade de fazer faculdade de
medicina. (ANUNCIADA)
Além disso, outro fator relacionado à solidariedade cristã potencializou esse
11
Maturana entende emocionear diferentemente de emocionar. Segundo o autor Emocionear é o processo
dinâmico do fluir das emoções, como linguagear é o fluir da linguagem.
50
desejo que Anunciada (s) tem de ajudar ao próximo. As freiras, ao longo da
história, têm voltado sua atuação para as áreas da educação e da saúde,
principalmente exercendo a função de professoras e enfermeiras.
É porque eu sempre gostei assim de ajudar o próximo, de estar no
meio do povo, ajudando. Então, eu fui freira e depois eu voltei pra
casa e então eu queria encontrar, assim, um meio de ajudar as
pessoas. Então apareceu essa possibilidade então eu vi que aí,
também, a partir de meu desejo, é... Era uma possibilidade assim de
eu ajudar mais as pessoas.
A aluna Margarida (p.m.), que faz parte do setor de saúde do MST, discute
a questão da vocação que para ela é uma imposição da sociedade. Segundo ela,
a luta por transformações é tão árdua que não há tempo para pensar em
vocação. Acima desta questão está a necessidade do povo.
A sociedade, ela impõe muito a questão da vocação, não é? Ela impõe
assim que você faça um teste vocacional para ver se é isso ou aquilo
que você quer. E eu me vejo muito pelo seguinte: como você tem um
povo que precisa de você, que está ali, na luta, seja no cabo da
enxada, seja numa mobilização, qualquer coisa em busca de um
objetivo,então para a gente estudante pensar, para muitos, pensar o
que seria uma vocação, o que queria, é complicado. Porque eu pensei
muito na necessidade do povo.[...] Hoje eu aprendi a amar a
enfermagem. A amar o que eu estou fazendo. Quero continuar na área
de saúde sempre. Mas não foi aquela coisa assim: será que tenho
vocação, se não tenho... Foi a necessidade que juntou com a
oportunidade. Tinha a necessidade do povo, tinha a minha
necessidade de estudar e foi a oportunidade que eu encontrei.
(MARGARIDA)
Parece-nos que foi por ser uma pessoa versátil que a educanda conseguiu
satisfazer sua necessidade de estudar e a necessidade do povo da sua
comunidade, sem ater-se à questão da vocação. E sua versatilidade lhe permitiu
aprender a amar o que faz, pois esses movimentos a conduzem ao encontro
amoroso com o outro.
Neta de posseiros, vivendo no assentamento Santa Helena, a aluna
Dorothy (s) não milita em nenhum movimento social. Abraçou o curso como a
única oportunidade de prosseguir estudando e afirmou:
Eu quero ajudar a minha comunidade no que eles precisarem,
porque lá eles precisam muito. Por as casas ser dispersas, não ter
hospitais perto, tudo o que eu aprendi foi para eles. (DOROTHY)
A dispersão das casas deve-se a estrutura do assentamento. Alguns estão
51
estruturados sob a forma de agrovilas, onde as casas ficam próximas, formando
ruas. O assentamento a que Dorothy se refere não é uma agrovila. As casas são
distantes umas das outras, por situarem-se próximas ao roçado
. Este modelo de assentamento deixa as famílias mais isoladas, o que
para a aluna é um dos motivos, junto com a falta de uma unidade hospitalar, para
que estude no curso.
Já Inês (s), que freqüentava as reuniões da CPT, justificou sua opção pelo
curso técnico de enfermagem afirmando que no seu assentamento não existe
“posto médico”. Há apenas um na pequena cidade próxima à sua comunidade
para atender a aproximadamente dois mil habitantes. Como sua colega
Anunciada (s), Inês (s) já desejava atuar na área de saúde desde algum tempo,
mas a falta de condições financeiras a impedia.
Bom eu, desde adolescente, eu já pensava de eu tivesse condições
de fazer um curso já na área de saúde. Só que eu nunca tinha
tentado, por falta de recurso. Não tinha condições. Aí como apareceu
essa oportunidade para mim foi uma das melhores coisas que
aconteceu na minha vida. [...] Lá no assentamento não existe posto
médico. A cidade é pequena ainda. Um número dois mil e pouco de
habitantes. Só existe um posto médico (na cidade). Não tem nenhum
hospital na cidade. Ela é muito pequena ainda. Só tem o posto médico
na cidade. Nos sítios agora começou o atendimento uma vez por mês,
é... No sítio que a população for maior. No caso o meu assentamento
não ficou. Ficou no sítio vizinho. Aí uma vez por mês o médico vai para
esse sítio. O pessoal de lá vai. Ou então os que quiserem, precisarem ir
ao médico durante a semana, para... Antes desse dia que o médico
vem, vai com meu esposo (em uma motocicleta). Ele leva duas pessoas
por dia para o médico. (INÊS)
Como se pode perceber por estes depoimentos, o Curso de Formação de
Técnico em Enfermagem e Suplência do ensino médio veio ao encontro das
necessidades dos assentados/assentadas da reforma agrária, para que possam
contribuir com a melhoria da qualidade de vida da população local, ou seja, para
que sejam sujeitos de transformação da realidade das suas localidades e
também para que prossigam os estudos e adquiram uma profissão. Não
importando o grau de inserção nos movimentos sociais, a preocupação com o
seu povo está presente em todos os depoimentos no que se relaciona à
motivação para fazer o curso.
A questão grave que se apresenta aqui é a de como vai ocorrer a inserção
dos alunos e alunas do curso no mercado de trabalho. Parece-nos que não
houve preocupação por parte do PRONERA em garantir a fixação das pessoas
52
formadas no curso técnico em enfermagem e suplência do ensino médio no seu
local de moradia.
Queremos salientar a atuação da coordenação desse curso e da direção
da ETS no sentido de favorecer a permanência dessas pessoas no campo. Sem
medir esforços, a direção da escola visitou cada município do estado onde se
houvesse um assentamento vinculado ao curso para tentar garantir, junto à
secretaria de educação a absorção profissional dos / das estudantes
formados(as) pelo curso. Esta medida emergencial foi uma tentativa da ETS de
fazer cumprir o objetivo do PRONERA em relação à permanência das pessoas
no campo.
E durante todo esse percurso com essa formação, também participei
de visitas às secretarias municipais de saúde, fazendo contato com os
secretários e as secretárias com o objetivo de mostrar a importância da
formação desses alunos que estavam sendo... nas áreas de
assentamento, e o benefício, enquanto profissional, que ele traria para
o município. Então foi muito receptiva, a essas informações, e também
pedi o apoio para que essas secretarias absorvessem eles enquanto
profissionais, após a conclusão do curso. E todos me atenderam muito
bem e se comprometeram a realmente atender a esse pedido. Porque
tinha a secretaria de saúde que necessitava do técnico em
enfermagem e a própria comunidade não tinha esse profissional e ele
estava contratando técnicos das cidades vizinhas, de cidades vizinhas.
Então nesse sentido assim, foi muito gratificante a formação dessa
primeira turma porque ao término, a maioria já estava empregada. Já
estava absorvida pelo mercado de trabalho local. (ICLÈIA HONORATO
DA SILVA CARVALHO)
Esta atitude da direção foi motivada pela tomada de conhecimento acerca
dos resultados práticos de um curso técnico em enfermagem também inserido no
PRONERA do vizinho estado de Pernambuco, onde o percentual de absorção de
concluintes pelo mercado de trabalho local foi, até aquele momento considerado
insatisfatório, segundo depoimento de suas coordenadoras.
Agindo dessa maneira, a direção proporcionou aos educandos e
educandas a possibilidade de refletir e debater sobre essa questão, uma vez que
esta atitude foi comunicada aos mesmos. Isto possibilitou novas aprendizagens,
fora do contexto específico da sala de aulas.
O Projeto de Formação técnico-profissional: cursos de habilitação de
técnico em enfermagem e suplência do ensino médio, inspirado nos princípios e
pressupostos metodológicos do PRONERA, e elaborado de acordo com as
especificações do seu Manual de Operações, tem como objetivo geral
53
Promover a formação profissional de técnicos em enfermagem dentro
dos princípios éticos, para atender de forma eficiente às demandas da
comunidade de assentados e assentadas em áreas de reforma agrária
com a concepção de saúde coletiva. (UFPB, 2003, p.8).
A carga horária do curso é de 3000 horas/aula, sendo que 1.200
horas/aula destinam-se à Suplência do Ensino Médio e 1.800 horas/aula ao
Curso de Habilitação de Técnico em Enfermagem. A carga horária para o
Tempo-Escola da Suplência do Ensino Médio é de 840 horas/aula e de 360
horas/aula para o Tempo-Comunidade. Para o Curso Técnico de Enfermagem a
carga horária é de 1.260 horas/aula para o TE e 540 horas/aulas para o TC.
Como a proposta pedagógica do curso apresenta, como referencial orientador, a pedagogia
problematizadora “cujo objetivo é preparar o aluno, futuro profissional, como ser social, ativo, reflexivo, criativo e
solidário” (UFPB. 2003, p.10), consideramos elevado o número de alunos em cada uma das turmas: o Curso Técnico
de Enfermagem com 44 alunos e o Curso Técnico de Enfermagem e Suplência do Ensino Médio com 46 alunos. Se,
por um lado, esse número proporciona o contato dos e das estudantes com um número maior de diferenças, por outro
lado, limita as possibilidades de um trabalho docente de acompanhamento mais individualizado às/aos discentes.
3.2 O PRONERA na Escola Técnica de Saúde: Gênesis
É possível que a história de conquistas que marca a trajetória da Escola
Técnica de Saúde, desde os anos em que se chamava Escola de Auxiliares de
Enfermagem até os dias atuais, mesmo atuando nos moldes tradicionais (com os
quais tenta romper gradativamente), deva-se ao fato de estar sempre em busca
de novos desafios, superando os próprios limites. Dessa maneira, a realização
da parceria entre a UFPB, através da ETS/CCS e do SEAMPO/CCHLA, a CPT e
o INCRA/PB, com o PRONERA, para a realização do Curso de formação de
técnico em enfermagem e suplência do ensino médio foi mais um entre tantos
desafios, que aconteceu, segundo a diretora da Escola Técnica de Saúde, por
iniciativa da própria escola. No seu relato, ela esclareceu como a escola deu os
primeiros passos para o trabalho junto aos assentados / assentadas da reforma
agrária.
Alguém telefonou para mim e me perguntou se a escola tinha
condições de conseguir um local para hospedar trinta a quarenta
alunos que viessem do interior. Inicialmente foi assim que começou. E
eu não sabia, não conhecia o PRONERA, nada sobre isso. [...] E aquilo
me chamou atenção e eu procurei Lúcia Guerra: “Lúcia Guerra, que
alunos são esses? Que é até um quantitativo alto. Como é que nós
podemos fazer um convênio?” E saí investigando e descobri que ia
54
haver uma reunião no SEAMPO, com o pessoal da Universidade, do
SEAMPO, da CPT, do MST... E fui me apropriando dos assuntos que
eram abordados e a partir daí comecei a fazer parte do grupo e
apresentar o nosso projeto do curso técnico em enfermagem,
colocando à disposição tanto do INCRA quanto do SEAMPO, do MST
e da CPT, a possibilidade da escola fazer essa formação técnica.
A partir daí, começou a tomar corpo o projeto do curso e sua proposta
pedagógica e metodológica, construída pelas instituições parceiras. O projeto
especifica as responsabilidades e atribuições de cada membro da parceria,
cabendo à UFPB, entre outras responsabilidades, a de indicar os professores
para o corpo docente do curso, “de forma a garantir as diretrizes e os princípios
teórico-metodológicos do programa” (UFPB, 2003, p, 4), assim como
acompanhar e avaliar sua atuação e a dos discentes. À CPT coube, além de
outras tarefas comuns a todos os parceiros, a mobilização dos interessados em
participar do processo seletivo entre os assentados; acompanhar as atividades e
o desempenho dos alunos e assegurar a presença no Tempo-escola e nas
atividades previstas no tempo-comunidade. E, ao INCRA, coube divulgar,
articular,
implementar
e
acompanhar
o
PRONERA,
no
âmbito
da
superintendência, além de outras responsabilidades comuns aos parceiros.
O Curso de formação de técnico em enfermagem e suplência do ensino
médio é coordenado por duas professoras da ETS e conta com assessoria
pedagógica
do
profº
Dr.
Luiz
Gonzaga
Gonçalves,
do
Centro
de
Educação/UFPB. O corpo docente é o do curso técnico em enfermagem da ETS,
ao qual se juntaram outros professores convidados para as disciplinas da
suplência – Ensino Médio -, e as disciplinas pensadas especificamente para o
programa, como é o caso de Educação Popular, Educação do Campo, Plantas
Medicinais.
Superada a etapa inicial de elaboração de projeto, seleção dos alunos e
dos docentes, organização do equipamento escolar e de apoio aos alunos
(alojamento, transporte, alimentação), teve início o curso que atendeu a
assentados / assentadas de todas as regiões do estado da Paraíba, além de dois
alunos do vizinho estado de Pernambuco. O mapa abaixo contempla as os
municípios paraibanos atendidos pelo projeto.
LEGENDA:
01 - Alagoa Grande
Areia; 02 - Cajazeir
06 - Jericó;
55
07 - Sossêgo;
08 - Riachão;
10 - Alagoinha,
Araçagi;
11 - Itabaiana,
Mogeiro;
13 - Conde;
14 - Capim, Rio Tinto,
Jacaraú;
15 - Pitimbu, Alhandra,
Caaporã;
18 - Sapé, Cruz do
Espírito Santo, São
Miguel de Taipu; 22 Marizópolis,
Aparecida, São
Domingos, Paulista
FIGURA 1 – Mapa do Estado da Paraíba destacando os 24 municípios de abrangência do Projeto
nas 23 regiões paraibanas.
Fonte: <http//:www.citybrasil.com.br>. Dados de 2004.
Os critérios de seleção dos alunos, segundo o Projeto de formação técnico
profissional: Cursos de habilitação de técnico em enfermagem e suplência do
ensino médio foram os seguintes: “Os candidatos devem ser apresentados pela
CPT; Apresentar comprovante de ensino fundamental (até 8ª série); Residirem
em
áreas
de
assentamento
acompanhadas
pela
CPT;
Disposição
e
disponibilidade de tempo para desenvolver as atividades do Tempo-Escola e
Tempo-Comunidade.” (UFPB, 2003, p. 13). Dessa maneira a ETS recebeu 90
(noventa) estudantes apresentados pela CPT segundo os critérios estabelecidos.
Tratava-se de um grupo bastante heterogêneo quanto à faixa etária (que variava
entre 18 e 40 anos); quanto ao tempo que passou fora da escola; quanto à
inserção nos movimentos sociais (havia pessoas da CPT, do MST, sindicalistas e
pessoas não vinculadas a movimentos sociais nem sindicatos); quanto à história
de luta pela terra (alguns participaram ativamente da luta, outros ainda estão em
luta, e outros não tiveram nenhuma participação) e de trabalho no campo
(agricultores, estudantes, agentes de saúde, professores). Estas diferenças
passaram a ser identificadas pelo corpo docente do projeto após o início das
atividades, através dos grupos focais realizados na semana preparatória. A
informação inicial que chegara à equipe era a de que o grupo, como um todo,
56
seria muito politizado e extremamente questionador, reivindicador, e exigente
quanto às questões pedagógicas e de funcionamento do curso.
E a gente também tava muito, é... tendo muito cuidado com essa
questão porque a gente achava também que os alunos eram mais
politizados. Esperava mais deles. Então a gente preveniu muito os
professores: “São um público diferente, são uns alunos diferenciados,
um pessoal que lutou pela reforma agrária, um pessoal mais
reivindicativo, eles vão se dedicar mais. Vão exigir mais de vocês.
(ARRUDA)
De fato, havia alguns alunos com estas características, mas em número
pequeno. Não sendo a politização ou a capacidade de reivindicar, parece-nos
que o que aproximava a quase todos, independentemente da vinculação ou não
aos movimentos sociais, era a vontade de que seus esforços resultassem em
melhoria das condições de saúde das suas comunidades, como podemos
perceber nas falas abaixo:
Bem, é, esse curso, desde pequeno, pra mim era um sonho. Já tinha
tentado em outras escolas, lá na minha cidade, mas só que o custo,
realmente, desse curso era muito alto. Aí apareceu essa oportunidade
aí me interessou muito. E também em benefício da comunidade que
sempre é o motivo da gente estar aqui. (Jósimo (p.m) - agente
voluntário da CPT)
Até porque eu quis, a vontade é de ajudar as pessoas que precisam
porque é difícil. Eu achava difícil assim... É... Ver uma pessoa
precisando de minha ajuda e eu não saber ajudar. (Elizabeth (s) - não
tem vinculação com movimentos sociais)
E é muito gratificante você saber que você vai se formar como técnico
de saúde. E você vai servir ao povo. Independente de ser sua
família, de ser seus amigos. Porque ali é a família, na verdade, os
assentados. Não é? São pessoas que necessitam. Que você sabe a
vida de cada um. Que confiam no seu trabalho. Que dá a vida assim
mesmo, no cabo da enxada para a gente estar vivo. (Margarida (p.m) –
milita no MST)
Estas palavras nos remetem de imediato a Paulo Freire quando, em
Pedagogia da Indignação (2000) nos lembra que o educando deve se perguntar:
“Em favor de que estudo?” Uma vez que, segundo Freire (2000, p. 80) “Ninguém
pode estar no mundo, com o mundo e com os outros de forma neutra”. E embora
haja estudantes que não têm inserção nos movimentos sociais e que talvez não
saibam que sua “neutralidade” pode servir aos interesses dos seus opressores,
percebe-se que há uma preocupação real com a situação da sua comunidade,
pois de uma forma ou de outra, todos os educandos entrevistados afirmaram que
57
estudam em favor da própria comunidade. Será que a escola está desafiando os
alunos, como propôs Freire (2005, p.80), “para que percebam, em termos
críticos, a violência e a profunda injustiça que caracterizam sua situação
concreta.”?
Como afirmamos anteriormente, esta foi a primeira experiência da escola
com alunos vindos das áreas de assentamentos. Por este motivo, antes da
realização da primeira etapa com os/as estudantes, houve uma semana
preparatória para o corpo docente, quando este entrou em contato com
memoriais de alunos do curso de Magistério do PRONERA, assistiu a vídeos
com depoimentos de camponeses, assistiu a uma palestra sobre educação do
campo e trocou idéias e informações sobre o processo que estava por se iniciar.
Durante o processo de implantação do curso, a coordenadora do mesmo viveu o
que denominou apropriadamente de sessão de sustos. Ao deparar com as
exigências do programa e a realidade escolar, a coordenação descreveu o
seguinte quadro: O curso técnico em enfermagem da ETS era hospitalocêntrico,
conteudista, tradicionalista e no qual o aluno não aparecia como preocupação,
uma vez que o processo seletivo garantia alunos com saberes prévios já
aguardados pelo corpo docente. Além disso, a coordenação considerava o corpo
docente capacitado nos conhecimentos de enfermagem, mas tradicionalista no
ensino, possessivo em relação às disciplinas, mas com um aparente desejo de
mudança. A coordenação caracterizou os alunos do PRONERA como: “fortes na
oralidade; fortes na visualidade; dificuldades na escrita; existência de saberes
práticos”. Este diagnóstico levou a equipe a se perguntar:
Como articular o ensino médio com a educação profissional, atendendo
às especificidades da educação do campo, referenciada pela pedagogia
problematizadora e no sistema de alternância? Como articular o
domínio dos saberes práticos com os saberes sistematizados? Como
levar o aluno a ser protagonista na aprendizagem? Como colocar a
aprendizagem como questão? (Informação Verbal)12
Inspirada na resposta do assessor pedagógico: “não sabemos, vamos construir
juntos...” (Informação Verbal)13, a Coordenação colegiada do projeto iniciou a
fase preparatória com os professores, enfatizando a diferença entre docência
12
Palestra proferida pela professora Eliete Alves da Silva (Coordenadora do curso de Formação de Técnicos de
Enfermagem e suplência do Ensino- Médio/UFPB - PRONERA), em Palestra na Universidade do Rio Grande do
Norte (UFRN), em 15 de dezembro de 2006. Com o tema: Experiências de aprendizagem no PROEJA.
13
Ibidem.
58
com aprendizagem acumulada e uma docência com aprendizagem aberta. A
primeira é aquela na qual o professor acredita que domina de forma satisfatória
o processo educativo de sua disciplina, incluindo os conteúdos, os
procedimentos didáticos, o perfil dos alunos e o tipo de avaliação. A segunda,
que ocorreu com as docentes da ETS no PRONERA, possibilitava novas
aprendizagens às educadoras, uma vez que o perfil dos alunos - que é muitas
vezes quem define a metodologia e a forma de avaliação -, e o trabalho em
alternância, não eram conhecidos pelo corpo docente. (CARVALHO et al, 2007)
A Coordenação procurou sensibilizar os professores para direcionar o
planejamento para as especificidades da educação do campo, referenciada pela
pedagogia problematizadora. Para atingir esse objetivo, a coordenação buscou:
Aprofundar as discussões teórico-metodológicas, no sentido de tornar
sintonizadas as atividades pedagógicas, quanto aos instrumentos de
avaliação das disciplinas, quanto a valorização dos saberes dos
alunos, além do planejamento de estratégias pedagógico-didáticas
adequados para os estudos e investigações dos alunos durante o
Tempo comunidade. (Informação Verbal)14
Foto 1 - Atividade da Semana Preparatória do corpo docente.
Fonte: Arquivo do PRONERA.
A professora Camomila comentou sobre a importância da semana
preparatória:
Quando eu soube que nós íamos ter essa turma realmente eu fiquei
numa expectativa muito grande. Mas graças a Deus me surpreendi
quando eles chegaram, até, desde o início, mesmo antes de dar aula,
eu já percebi o interesse que eles tinham, pelo curso, a disposição. É...
14
Apresentação de Eliete Alves em 15 de dezembro de 2006. Com o tema: Experiências de aprendizagem no
PROEJA, na Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
59
Eles são pessoas assim, inteligentes, centradas, e quando eu fui dar
aula, eu achei uma experiência assim maravilhosa. Talvez até pelo fato
de eu ser filha de agricultores, então a gente trocava assim muita
conversa, muita experiência, sabe? E, achei assim, claro que antes de
nós darmos aula, a coordenação nos reuniu, temos um coordenador
pedagógico muito bom, por sinal, e nós tivemos algumas ilustrações
em termos de metodologia de ensino para aquele grupo que a gente
considera assim um grupo um tanto quanto especial.
De acordo com o projeto do curso, a primeira etapa realizada com os/as
alunos/alunas foi a Semana Preparatória. Esta foi pensada com o objetivo de
“juntar os elementos que possam subsidiar uma reflexão e análise das
experiências acumuladas dos alunos sobre a realidade onde vivem com o
contexto social e global”. (UFPB, 2003, p.12). Assim, na semana preparatória
dos/das educandos/educandas, os alunos participaram de uma série de
atividades que incluiu a realização da mística, prática constante no decorrer do
curso, cujos objetivos estão ligados valorização da identidade cultural, de acordo
com Chico (p.m).
A mística, a gente faz, a gente volta muito para a nossa origem. Vamos
dizer para o campo, para o movimento, para a participação atual que
vem acontecendo. Essas mística ela ajuda muita gente. Agora eu digo
muito isso. Às vezes eu vejo alguma coisa e digo: “gente, não vamos
esquecer a nossa origem”. Acho que nós temos um papel muito forte
aqui. É de mostrar que somos capaz, mas sem perder a nossa origem.
E a gente tem algumas colegas que não gostam das místicas, e a
gente percebe que é porque ta vivendo num outro universo da vida que
ele viveu, e as vezes quer viver essa vida aqui, esquecendo de onde
ele veio e da nossa origem, que é uma origem camponesa. Um povo
do campo, um povo que tem capacidade para defender a nossa
originalidade. Da onde a gente veio.
Para Elizabeth e Anunciada, as místicas são importantes, pois apontam
formas de procedimento das leituras de mundo dos participantes:
Eu acho que toda a mística, como uma dramatização ou uma fala
assim, você quer passar alguma coisa. E a mística é isso. Ela não quer
só dramatizar uma coisa. Ela quer ver qual é a forma que você vê, que
você olha tal situação. (Elizabeth – S)
A mística eu acho muito importante na nossa vida. Porque ela vai nos
ajudar a ver as coisas de uma forma diferente. (Anunciada – S)
Por este motivo as místicas também fazem parte do processo ensinoaprendizagem, oferecendo aos educandos e educandas a possibilidade de
refletir sobre questões relacionadas à sua identidade histórica e cultural, e aos
educadores e educadoras a oportunidade de refletirem também sobre a
60
realidade dos seus alunos e alunas e sua própria ação no mundo.
Foto 2 - Atividade da Semana Preparatória Discente
Fonte: Arquivo do PRONERA
A semana preparatória culminou com a realização de grupos focais, com
o objetivo de que cada aluno/aluna produzisse seu memorial a fim de subsidiar o
trabalho docente. Assim, os alunos foram distribuídos aleatoriamente em
pequenos grupos, onde se apresentaram aos demais participantes do grupo e
relataram oralmente suas memórias e reflexões acerca da sua vida no campo,
enfocando a escola, a família, o trabalho, e os aspectos relativos ao lazer, luta
pela terra, saúde, a organização comunitária. Após a expressão oral, os/as
assentados/assentadas foram estimulados a escrever seus memoriais, a partir
do relato feito à turma. Esse material produzido pelos alunos serviu para a ETS
conhecer os estudantes e ter uma noção preliminar do que poderia ser explorado
em termos de conteúdos. Para Gonçalves et al (2006) que analisaram os
memoriais,
As histórias de vida dos que estão buscando o curso de enfermagem
deixam claro que a vida nos assentamentos e as lutas coletivas
conseguiram criar um ambiente capaz de democratizar o acesso aos
recursos da sociedade e de bens culturais. Oportunidades desiguais
enfrentadas na infância e adolescência não se tornam obstáculo
intransponível para que os assentados possam continuar seus
estudos, superar suas deficiências formativas anteriores.
Buscando superar essas deficiências, que já eram previstas pelas
educadoras, outra atividade realizada nesta primeira fase, que merece menção,
61
foi a sondagem dos conhecimentos em língua portuguesa e matemática das
duas turmas. Esse processo revelou que alguns dos alunos apresentavam
problemas graves nas duas áreas, principalmente - mas não exclusivamente - os
alunos do curso de Suplência. O fragmento de memorial abaixo é de um aluno
do pós-médio.
A minha infancio fio muito Bão lenbro do meis de maio onde Todas as
Tarde eu juntos com outra criacas ira Busca Flor para inFeitar o Alta de
nossa Senho era muito lindo da um que tentalh trazer as flores mais
bonintas da manto eu lmbro muito bem do Flores de canaFistra. (Chico)
Ao analisarmos a história da educação no campo brasileiro facilmente
concluímos que esta situação é resultado do descaso das instâncias do poder
público, responsáveis pela área da educação, uma vez que nunca investiu
seriamente na formação de professores e na infra-estrutura das escolas da zona
rural brasileira. O acesso ao mundo da escrita se dá apenas através da
professora e dos livros didáticos que lá chegam, ou da literatura de cordel, em
alguns lugares. Revistas, jornais e livros fazem parte da cultura urbana, aos
quais eles dificilmente têm acesso. Isto limita ainda mais as possibilidades de
dominar esta forma de comunicação.
3.3 Ensinando e aprendendo novas lições: as aprendizagens docentes no
processo de implantação do curso.
Como descrevemos anteriormente, a ETS era uma escola que atuava nos
moldes tradicionais, com uma visão hospitalocêntrica, e onde o aluno não era o
protagonista junto com as professoras do processo ensino-aprendizagem. Isso
não impedia que os resultados para aquilo a que se propunha – preparar os
alunos para as demandas do mercado de trabalho – fossem bastante positivos.
Talvez um dos fatores para este sucesso esteja no fato de que os alunos
ingressam na ETS através de um processo seletivo bastante concorrido, que
inclui provas de português (interpretação de texto e gramática) e biologia. A
62
seleção possibilita que a escola conte com os alunos mais preparados15.
Parece-nos que essa postura tradicional adotada pela escola é fruto da
formação docente, uma vez que as professoras graduaram-se em enfermagem e
optaram pela licenciatura como uma complementação à sua formação.
Acreditamos que o ranço do positivismo e do tecnicismo ainda pode estar
presente nos cursos da área de saúde. A estudante Margarida (p.m.), referiu-se
à maneira tradicional de alguns professores atuarem:
Eu até que acho pela questão da visão que os professores têm porque,
quer queira ou quer não, a gente é um aluno especial. Não é? Então
eles, os professores às vezes só costumam passar a escola
tradicional, a ensinar os alunos tradicional.
É provável que essa maneira tradicional de trabalhar ocorra porque os
professores da graduação de enfermagem não foram formados para a docência.
É certo que cursaram mestrado e doutorado, mas não foram preparados para o
ensino. Sem formação pedagógica consistente, estes docentes acabaram
influenciando as práticas das professoras da ETS. Estas, só vieram a cursar as
disciplinas específicas de licenciatura no final do curso ou após terem concluído
o curso superior de enfermagem, como um complemento à sua formação, ou
porque queriam dedicar-se ao magistério. Além disso, a compartimentalização
dos saberes e a hiperespecialização na área de saúde são evidentes e
repercutem na atuação dos professores formados nesse contexto. Concordamos,
portanto, com Morin (2003, p.149):
Os setores especializados do saber são compartimentados e fechamse todos em um domínio, muitas vezes delimitado de maneira artificial,
ao passo que deveriam estar unidos em um tronco comum e se
comunicar entre si. Mais profundamente, nosso sistema educacional
ensinou-nos a isolar os objetos, separar os problemas, analisar, mas
não a juntar. Nós devemos pensar o ensino com base na consideração
dos efeitos cada vez mais graves da hiperespecialização dos saberes
e da incapacidade para articulá-los uns com os outros. A
hiperespecialização impede que se veja o global (que ela fragmenta
em parcelas), assim como o essencial (que ela dissolve).
Como o corpo docente, apesar do trabalho tradicional, apresentava na sua
quase totalidade16 uma postura profissional aberta às mudanças, o processo de
15
Na ETS já houve e ainda há alunos e alunas que estão cursando ou que já possuem o nível superior completo
(fonoaudiologia, letras, educação física, pedagogia, fisioterapia, psicologia, entre outros). Houve e há também
pós-graduados, porém em número quase insignificante em relação ao total de alunos e alunas.
63
descobertas e de construção de conhecimentos a partir da experiência com o
PRONERA foi acontecendo gradativamente e sendo compartilhado no percurso.
Essa experiência permitiu que as professoras passassem a olhar mais para o
global e atuassem de acordo com ele.
Este esforço docente encontrou uma resposta bastante positiva entre os
educandos graças ao que consideramos uma característica do povo camponês:
a versatilidade. Como no meio rural as atividades essenciais não são tão
especializadas talvez haja menos fragmentação do saber, os sujeitos acabam
descobrindo na prática, com aguçada sensibilidade para a observação, as
soluções para os seus problemas, o que lhes pode permitir a abertura para
novas experiências escolares. Assim, como relataram algumas professoras, elas
ousaram inovar em sala de aula, e a atuação dos alunos do PRONERA em
alguns aspectos superou o desempenho das turmas regulares da escola:
Se pedir uma música para eles cantarem... Eles não têm essa
dificuldade. Achei eles muito corajosos e destemidos porque saíram do
seu interior e vieram para cá com muito sacrifício. (Camomila)
A professora Camomila reconhece a importância dos saberes práticos e
valoriza as aprendizagens que ela realizou através dos seus alunos e alunas.
Eu aprendi muita coisa com eles, até assim coisas do dia-a-dia, que
são coisas de pessoas de idade mais avançada, coisas que a gente vai
utilizar no nosso dia-a-dia. (Camomila)
Dentre as
questões
que mais preocupavam as
educadoras se
destacavam: a dificuldade de leitura e escrita dos/das alunos/alunas, a
necessidade da utilização da terminologia técnica, o vocabulário restrito dos/das
estudantes naquele domínio de conhecimento.
A formação deles é muito frágil, é muito frágil. Anos interrompidos de
estudos, escolas rurais, escolas que funcionam com professores... A
capacitação desses professores, como esses alunos seguiram...
Muitos fizeram supletivo. Começaram o curso e não tinham nem
supletivo de primeiro grau. Pagaram o supletivo primeiro para entrar no
curso, quer dizer, frágil demais a formação. (Arruda)
Foi o contato direto com os educandos e educandas em sala de aula que
16
Devemos esclarecer que estamos nos referindo à maioria das pessoas do corpo docente. Houve - como
costuma acontecer em todos os processos de mudança - algumas pessoas que resistiram a adaptar-se à proposta
pedagógica do curso.
64
fez com que tais dificuldades se tornassem mais evidentes. As primeiras
atividades escritas indicaram que alguns dos educandos do curso de suplência
não podiam ser considerados plenamente alfabetizados, apesar de haverem
concluído o ensino fundamental. Como a professora Arruda ressaltou, muitos
deles concluíram o ensino fundamental através de cursos supletivos, que por
serem aligeirados em função da necessidade de formar pessoas que
ultrapassaram a faixa etária própria para o ensino regular, não atingiram os
objetivos esperados. Assim, cada professora desenvolveu uma estratégia própria
para buscar favorecer, o máximo possível e dentro das condições de tempo
impostas ao curso, o desenvolvimento das competências e habilidades
necessárias para a atuação profissional dos seus alunos. De acordo com a
professora Malva,
Você tem que saber “mastigar” bastante. Entendeu? No caso de estar
falando uma palavra assim... Numa cirurgia, é... Histerectomia, então é
difícil. Estes termos... Entendeu? Eles têm dificuldade. Têm dificuldade,
agora tem de trabalhar de outras formas. Várias dinâmicas, músicas...
[...] Que a gente tem que realmente trabalhar, “mastigar” bem os
conteúdos porque os que têm idade mais avançada, têm mais
dificuldade.
No dicionário eletrônico Aurélio Século XXI, encontramos o verbete mastigar que,
além do significado de uso mais corrente, significa também “repetir, repisar as palavras”,
e ainda “ponderar, examinar, pesar (um assunto...)”. Assim, a professora Malva buscava
pela repetição e pelo questionamento, fazer com que os alunos e alunas, principalmente
os de idade mais avançada, pudessem aprender. Eis o depoimento de um dos
educandos a respeito dessa professora:
E a metodologia da professora também foi muito boa. E ela aplicava o
assunto, mas sempre quando a gente relatava ou dramatizava ou fazia
qualquer coisa ela sempre perguntava o porquê. O porquê disso, o
porquê daquilo, então isso dificultava um pouco para a gente
responder no momento, sabe? Mas com certeza, quando você... Ao
desenrolar da coisa, você respondia e aprendia muito mais. Aí você
nunca mais esquecia. (Jósimo – p.m.)
Já a professora Marcela acreditava que se fazia necessário buscar
trabalhar
de
acordo
com
o
entendimento
dos
alunos,
sem
cobrar
demasiadamente o aspecto gramatical.
Em termos, assim, de dificuldade na escrita eles também têm. A prova
65
que eu tentava fazer de acordo com o entendimento deles, procurando
aceitar tudo o que eles escreviam, até porque também não podia ser
tão rígida, tão taxativa de querer que eles colocassem as frases
corretas, escrevessem correto. Então, aproveitando o máximo para
poder facilitar o entendimento deles. (Marcela)
Mas a professora Camomila mostra outro aspecto ao afirmar, ainda
durante a entrevista:
Não senti assim muita dificuldade com relação à escrita. Eles têm,
claro. Têm alguns erros de português. Mais, talvez, do que as nossas
turmas regulares. Mas eles têm facilidade de falar. Eu achei-os até um
pouco mais desinibidos do que algumas turmas que a gente já teve.
Eles não têm medo de ir, lá na frente, falar. E assim eles são muito
criativos. Criativos demais. Eles têm uma facilidade de fazer um
repente.
Com o que Alfazema concorda:
O aluno do PRONERA não. Ele tem uma oralidade muito forte. Uma
visualidade muito forte. E ele tem a dificuldade da escrita. Muitas vezes
a gente diz assim: “Olhe: eles sabem do conteúdo. Eles só não sabem,
muitas vezes, colocar no papel, porque ele pensa que não sabe
escrever”. Porque a academia estruturou uma forma de escrita
sistematizada que você tem que escrever bonito. Então, se você
escreve aquilo que você pensa, está feio. E ele tem vergonha de
mostrar. Sabe? Porque ele pensa o que está escrito. Mas ele sabe
oralmente, está certo? E ele pensa que não sabe escrever, só que ele
sabe escrever. Ele pode não saber escrever nos moldes que a
academia exige. Porque é, sinceramente, o que é uma estupidez
nossa, enquanto professor, querer moldar, não é? Ou colocar uma
viseira no nosso educando, de que ele tem que escrever desse jeito,
ele tem que pensar desse jeito. (Alfazema)
Vemos na fala da professora Alfazema uma questão que gostaríamos de
salientar, relacionada às normas da escrita. A professora questiona a
necessidade de se cobrar que os educandos escrevam sob o rigor da norma
culta. Acreditamos que aos homens e mulheres do campo e das classes
populares em geral, deve ser dado o direito, através da educação escolar, de
escreverem o que pensam, dentro da norma culta, para que possam ser por
todos entendidos, e para que possam entender o que outros escrevem com
maior facilidade. É claro que diante das condições nas quais determinados
alunos e alunas chegaram ao curso, é praticamente impossível que superem
todas as limitações que trazem, embora haja um esforço coletivo para isso. A
expectativa da coordenação pedagógica do curso é a de que os alunos
comecem a dedicar atenção ao modo com que escrevem, de maneira que
66
possam, por conta própria, aperfeiçoar sua redação.
É... O que eu achei de mais interessante foi com “Chico (p.m.). Chico
para mim é um exemplo. É... Chico tem uma escrita péssima, mas tem
uma forma de se expressar. É... Dorme muito em sala de aula, mas ele
tem uma forma de se expressar, interesse na prática, que, para mim,
aquilo ali superou. Entendeu? Então eu fiquei desesperada com a
primeira avaliação dele, com a escrita dele que, até então. Que até
então eu não tinha, eu não conhecia a turma. Então quando eu vi a
primeira avaliação, eu sabia que ele sabia. Mas ele não sabia botar no
papel. Ele não sabia botar no papel. Então para mim, isso foi terrível.
Como eu sei que ele sabe? Porque ele respondia coerente. Mas ele
não sabia botar no papel. (Marcela)
O consenso entre as docentes acerca da fragilidade da formação escolar
da maioria dos/das estudantes do PRONERA na escola, as levou a buscar
reforçar, cada uma em sua disciplina a área da língua portuguesa. As soluções
bem sucedidas de umas passavam a ser compartilhadas com outras que
buscavam utilizá-las e às vezes aprimorá-las17. Assim, Malva recorria às
dinâmicas e músicas, como quase todas. E, enquanto uma professora utilizou
um glossário no final de cada texto, outra, a partir dessa idéia, construía
coletivamente o glossário com seus alunos, em uma cartolina afixada na parede
da sala. A leitura, que seria uma atividade extra-classe, passou a ter um tempo
em
sala
de
aula.
Além
disso,
as
produções
escritas
dos/das
educandos/educandas, em diversas disciplinas, chegavam às mãos da
professora de português, para que esta pudesse dar o tratamento adequado à
questão nas aulas de reforço. Tudo o que era produzido e que estivesse ao
alcance da mesma, era motivo de uma aula. Um exemplo que podemos citar:
cartazes produzidos por um grupo de educandos para a aula de psicologia, que
foram afixados nos corredores, foram problematizados na aula de português. A
professora Camomila confirma o esforço de mudança na atuação da equipe:
[...] a gente modificou um pouco a nossa metodologia, as aulas
deveriam ser bem mais dinâmicas, e foi o que nós fizemos, até porque
eles tinham aula de manhã, de tarde e de noite, e com professores
diferentes em disciplinas diferentes. Nós tínhamos que fazer alguma
coisa para despertá-los, não é? Para que eles tivessem interesse em
aprender.
17
Compartilhar vivências, estratégias, pensamentos e experiências era algo que nunca acontecera na ETS, pelo
menos formalmente, até a realização do curso do PRONERA. Possivelmente pela inexistência de uma equipe
técnica (psicopedagógica), que orientasse esse processo.
67
Entre os educandos, por outro lado, havia divergência quanto à
necessidade do domínio da forma de comunicação escrita para o exercício da
profissão de técnico em enfermagem.
Eu mesmo, eu tenho uma facilidade de entender as coisas muito fácil.
Talvez, a dificuldade que a gente tenha é a dificuldade de colocar no
papel. Mas de entender de ter esse... Esse... Compreensão. Acho que
toda a turma está tendo. (Chico -p.m.)
Este mesmo educando afirma que as dificuldades que tem não são
impedimento para o bom exercício da profissão de técnico em enfermagem:
Eu acho que não interfere não. Justamente porque a gente vê a
prática. Muitas vezes, você tira boa nota, mas às vez, na prática, não
consegue. Porque justamente a prática, até eu digo assim: se a gente
pegar uma pessoa, uma leiga, que nunca participou, mas levar ele
para praticar, talvez ele vai fazer aquilo. Com habilidade, muitas
vezes. Um exemplo que a gente demos é lá no município. Lá no meu
posto, onde eu estagiei, tem uma atendente, auxiliar geral de serviço.
Ela é auxiliar geral, de serviços gerais. Mas ela fica lá como atendente.
E ela, muitas vezes, ela quem faz alguns procedimentos. Tem vez que
a técnica não está e ela faz os curativos, e faz muito bem feito. Por
isso que eu digo. E ela não sabe ler nem escrever. Mas ela de tanto
ver aquilo ela vai pegando. Ela vai se habilitando naquilo. (Chico –
p.m.)
Quando Chico (p.m.) diz “ela vai se habilitando naquilo” de tanto ver, está
nos dando pistas de como ele vê a formação do técnico em saúde. Para ele é a
partir da observação e da prática, da repetição, que a pessoa se habilita, tornase apta para o exercício da profissão pela experiência. Mas quando Chico fala
acerca do seu trabalho de conclusão de curso (vide anexo), que requer a
utilização de uma linguagem formal e a organização em determinada estrutura
pré-estabelecida, demonstrou reconhecer a importância do domínio da língua
portuguesa:
Me ajudou, o TCC18. E na minha, na organização do tcc a gente teve
dificuldade. Eu mesmo tive. Até para por conta que a história da
digitação, a história até mesmo do português... A professora disse o
seguinte. Que o trabalho foi bem feito, só faltou organizar, por
exemplo: eu fiz o meu trabalho 3 vezes. Agora mesmo vou precisar dar
um ajustezinho. Tirar palavra, colocar outra, tirar dum canto e colocar
noutro, o trabalho foi feito e está perfeito. Falta só isso: organizar.
Coisas que você fez na introdução que vai para o procedimento
teórico... É dar uma organizada. Me ajudou muito. E também fez com
18
Assim foi provisoriamente denominado o relatório de pesquisa que os alunos realizaram ao final do curso.
68
que a gente estudasse mais.
Jósimo (p.m.) seguiu a mesma linha de raciocínio de Chico (p.m.), quando
perguntado se as dificuldades na área da leitura e da escrita interferem na
prática do profissional técnico em enfermagem:
Não. Eu acho que não. Porque a partir do momento em que você
observa alguém fazendo um procedimento, você também é capaz de
realizar, só é prestar bem atenção.
A estudante Dorothy (s), pensa como os seus colegas:
Não. Eu acredito que não porque apesar deles não ter uma leitura, mas
eles são muito inteligente, apesar de ser analfabeto, mas são muito
inteligentes, muitas vezes, são mais inteligentes do que nós, que temos
estudos.
E complementa:
Eles (os colegas de escola) têm bastante dificuldades. Só que muitos
têm dificuldades na escrita e na leitura, mas na hora de desempenhar
as atividades eles são muito bons. Na maneira de se expressar.
(Dorothy)
Aqui ela apresenta a mesma percepção que as professoras, tanto em
relação à capacidade de expressão oral, quanto ao desempenho prático dos
estudantes do curso de formação de técnico em enfermagem e suplência do
ensino médio.
Inês (s) discorda dos que afirmam que as dificuldades na área da lectoescrita não interferem na atuação prática:
Eu acho que sim. É mais difícil porque ali vai dificultar na leitura.
Aquela pessoa vai ter mais dificuldade em tudo. Eu acho que sim.
A aluna Margarida (p.m.) aponta para o fato de que, ao lidar com a vida
humana, essa questão assume outras proporções:
Na verdade é o seguinte. Infelizmente, as pessoas que são tiradas de
áreas de assentamento, para fazer os cursos são pessoas que têm o
segundo grau, não é? Foram tiradas... Mas como é que foi feito esse
segundo grau? Como é que foi feito esse primeiro grau? Não é? E
como é que essa pessoa, mesmo como pessoa, se interessa. A
questão da leitura, não é? De procurar aprender. Então eu acho que
essas pessoas, que têm dificuldade, têm. Porque a gente tem prova no
nosso curso. Teve muita gente que teve muita dificuldade. E o curso é
uma coisa muito séria porque se você não souber ler uma medicação
69
você pode matar uma pessoa.
Margarida (p.m.) levanta ainda a preocupação com os conhecimentos da
matemática para prática do técnico em enfermagem:
Se você não souber fazer a contagem de quantos ml vai administrar
numa pessoa, você pode matar, não é? Até um bebê lá você vai... Vai
aferir uma pressão, por exemplo. O estetoscópio está quebrado, o
tensiômetro. Se você não tem o conhecimento, você vai dar uma
medicação e... E aí, como é que fica não é? Um bebê: tem tal peso. É
uma gota de remédio por peso. Aí você não soube pesar, não soube
ler direitinho19, você vai matar essa pessoa. Então é uma coisa muito
séria para você colocar qualquer pessoa. A necessidade é grande, é.
De se formar pessoas, de que é uma luta que a gente tem enquanto
movimento social, mas tem que ser pensada. Hoje, o meu pensamento
é esse. Tem várias questões. Então, não que essas pessoas não
possam vir fazer esse curso.
Ela aponta sugestões para a solução dessas dificuldades:
Mas que pelo menos tenham o reforço de português, de matemática,
entendeu? Que seja incluso. Já que as professoras estão avaliando
que... Eu acho que com certeza as professoras avaliaram que certas
pessoas têm dificuldade na leitura, na escrita. Então que peguem
essas pessoas mesmo, sejam realistas, expliquem para elas que vão
lidar com vidas. “Olhe você vai lutar, você vai estudar para trabalhar
com pessoas, com vidas. Certo? Pode ser até sua mãe. Então você
tem que ter. Você tem que ser uma pessoa que seja capacitada para
fazer isso. Pelo seu bem e das pessoas que você vai trabalhar. Você
vai ter que ter um reforço de português, de matemática, do que tem
que ser feito. (Margarida – p.m)
Margarida (p.m) demonstrou uma clara compreensão da importância de o
profissional técnico em enfermagem dominar a língua portuguesa. Além de ter
sido uma questão amplamente discutida pelas professoras da escola e pelos
professores convidados, ela teve a oportunidade de perceber as dificuldades
enfrentadas pelos colegas e as suas próprias. Mas parece-nos que o esforço da
coordenação do curso para proporcionar atividades extras de reforço no domínio
da língua portuguesa, ou não foi percebido ou foi considerado insuficiente pelos
alunos.
O educando Pedro (s) expressa uma posição semelhante à de Margarida
(s) que propõe um reforço escolar na área. Ele acredita na capacidade de
superação dessas dificuldades pelo grupo.
19
Acreditamos que a aluna está se referindo à leitura da prescrição médica.
70
Eu acho que deve ter sido uma experiência para a própria universidade
aqui na Paraíba, não sei se na Escola Técnica, não é? Acho que única,
no momento. Esse projeto de pegar jovens agricultores, também
agricultoras, sem o ensino médio completo e começar a fazer o curso
técnico dentro da Universidade. Assim a gente percebe que existem
algumas dificuldades também. É... A linguagem é muito diferente,
técnica, é coisa que você, no dia-a-dia a gente não menciona essas
palavras técnicas, não é? A gente sabe do popular. Você chega no
popular, a gente consegue. Agora quando se vem para uma área,
palavras científicas, a gente enrola um pouco a língua. Mas isso vem
também para a gente se desenvolver no sentido de ler mais. De pegar
nossas apostilas, nossos livros que a gente tem, e ler mesmo. Não
decorar, mas aprender.
Pedro(s) demonstrou uma boa capacidade de análise ao apontar as
dificuldades enfrentadas pela ETS, por ser esta a primeira vez que a escola lidou
com pessoas que não tinham concluído o ensino médio. Ao evocar a diferença
entre a linguagem técnica e a linguagem coloquial como outro fator que gera a
dificuldade traz à tona a necessidade de maior dedicação à leitura fazendo um
contraponto entre a memorização e aprendizagem:
Mas aprender e tem que ser curioso no sentido de... Tem algo ali que
eu não estou conseguindo fazer, não sei fazer: perguntar. E... Não
sei... Dar... Criar um método de aprender parece que Paulo Freire
tem bem desenhado assim a coisa, acho que a gente consegue
superar. Por exemplo, a gente tem tido um desempenho no sentido
prático bom, tem sido bom, eu acho que até hoje não chegou nenhuma
informação assim nesse sentido que foi negativo. (Pedro – s)
Duas questões importantes foram aqui mencionadas por esse aluno. A
primeira diz respeito ao valor que dá à curiosidade e à busca das respostas.
Freire, em vários dos seus trabalhos aponta a curiosidade como elemento que
deve ser exercitado tanto por educadores quanto por educandos. A fala deste
educando aproxima-se do pensamento de Freire no trecho que se segue:
A construção ou a produção do conhecimento do objeto implica o
exercício da curiosidade, de sua capacidade crítica de “tomar
distância” do objeto, de observá-lo, de delimitá-lo, de cindi-lo, de
“cercar” o objeto ou fazer sua aproximação metódica, sua capacidade
de comparar, de perguntar. (FREIRE: 2005 c., p. 85, grifos do autor)
O educando propõe a criação de um “método de aprender”, que ajudaria
os educandos na superação das suas dificuldades, baseado nas propostas
freirianas. E prossegue o aluno:
71
Também no sentido das provas, que tem muito aluno que tem notas
excelentes, assim, dez, nove, oito, atingindo a média dentro da escola,
fica um ou outro em recuperação, é normal, em toda escola acontece
isso. A gente faz uma recuperação, recupera da coisa. Acho que no
momento, até então, ninguém foi reprovado ainda. Está concluindo
agora a primeira turma, não é? O técnico, que é o pessoal do pósmédio, e até o momento ninguém foi reprovado. Foram dois anos de
curso, até os filhos de agricultores está conseguindo a dizer: “Não,
somos camponeses, mas também temos a competência de chegar na
universidade e fazer bonito”. Poder dizer: “Não. Sou do campo, não
esqueci as minhas origens, mas eu sou do campo e eu estou aqui e
posso competir com qualquer um outro”. Agora sabendo que é difícil no
sentido do nosso estudo precário. (Pedro-s)
Pedro(s) apesar de reconhecer as limitações do “estudo precário” dos
alunos do PRONERA, acredita na competência e no potencial do povo
camponês, vítima de um sistema educacional falho, mas que consegue superar
barreiras que outros considerariam impossíveis de ser ultrapassadas.
Tem município mesmo que é o pior desempenho de educação, do
Brasil. Você tem Cruz do Espírito Santo mesmo, não é? Lá é precário
demais o sistema educacional. Então, tem uma menina mesmo de lá
que é nota dez em sala de aula. Nove, oito, sete, dez. E mostra que a
gente passa... Aí também vê muito o eu. A gente tem que ver o eu. É
você olhar para você. Dizer: eu posso, eu quero, eu sou capaz. (Pedros)
Acreditamos que a consciência que o aluno tem sobre os seus limites é
decorrente da sua história de luta construída com perdas e com vitórias e
conquistas. Mas em vez de transformá-lo numa pessoa derrotista, essa
consciência o leva a querer mostrar o seu valor e o valor das pessoas do campo.
Por isso ele enfatiza também o aspecto individual, a necessidade de acreditar no
seu potencial, na sua capacidade de superação. Esta é uma das questões que
requerem um olhar especial por parte do corpo docente e discente da ETS.
Queremos deixar claro que não estamos subestimando a capacidade de
os camponeses iletrados realizarem aprendizagem de certos procedimentos e,
inclusive, do aparato teórico que os embasa. Como na história do aluno Luiz que,
conforme relatou a professora, até dorme em sala, mas quando perguntado
sobre o assunto da aula, responde com correção, se o questionamento for oral.
Ou no exemplo dado por um aluno de que a auxiliar de serviços gerais de
determinada localidade realiza curativos bem feitos sendo ela analfabeta. Ela
pode até saber o porquê da necessidade de limpeza do local, da utilização de
certos instrumentos, ou o porquê de umas lesões requererem o curativo e outras
72
não, conhecer até o percurso realizado pelos cientistas que determinaram a
forma apropriada de realização do procedimento, se este conhecimento tiver sido
a ela transmitido. Mas sua atuação estaria possivelmente limitada a este tipo de
intervenções.
Também observamos, nos depoimentos, que os/as alunos/alunas que têm
um desempenho melhor no trato com as regras gramaticais básicas para a
comunicação escrita têm posição diferente, ou seja, acreditam ser necessário o
domínio da lecto-escrita para a atuação técnica. Freire (2000) afirmou que se
quisermos formar realmente o educando não podemos dicotomizar a capacitação
técnico-científica dos conhecimentos necessários ao exercício da cidadania. A
formação técnica em enfermagem não pode limitar-se ao mero treinamento ou
ao simples repasse de conhecimentos científicos ou informações. Freire
considera que:
Na perspectiva progressista, naturalmente, a formação técnica é
também uma prioridade, mas a seu lado, há outra prioridade que não
pode ser posta à margem. O operário que está aprendendo, por
exemplo, o ofício de torneiro, de mecânico, de pedreiro, de marceneiro,
tem o direito e a necessidade de aprende-lo tão melhor quanto
possível, mas tem, igualmente, o direito de saber a razão de ser do
próprio procedimento técnico. Tem o direito de conhecer as origens
históricas da tecnologia, assim como o de toma-la como objeto de sua
curiosidade e refletir sobre o indiscutível avanço que ela implica mas,
também, sobre o riscos a que nos expõe [...] (FREIRE, 2005. b, p. 132,
grifo do autor)
O projeto do curso tem entre suas metas finais que os alunos tenham
consciência “[...] da necessidade de manter-se atualizados no conhecimento,
bem como na tecnologia que dão sustentáculo a sua prática profissional. Isto
implica assimilação do princípio legal do aprender a aprender”. (UFPB, 2003, p.
9).
Nessa perspectiva, compreendemos que o domínio da leitura se faz
realmente necessário, já que a saúde é uma área em que a ciência avança a
passos largos, e que a atualização, principalmente para as pessoas que vivem
em áreas afastadas dos centros de formação, se dá através de livros e revistas
especializadas ou da rede de computadores.
Constatar a gravidade das dificuldades dos alunos na área da leituraescrita foi um dos momentos mais preocupantes para as educadoras. A escola
teria que se superar para ajudar os educandos nessa área, no curto espaço de
73
tempo disponível para o curso. Tratar a língua portuguesa junto com a saúde da
mulher, da criança, termos cirúrgicos, nomes de instrumentos, técnicas de
primeiros socorros... Por outro lado, os professores do curso de suplência português, matemática, artes, entre outros - buscavam sempre articular seus
conteúdos aos da área de enfermagem. Assim, o professor de matemática, por
exemplo, ao ensinar os alunos a trabalhar com percentagem sugeria o cálculo da
relação peso e idade das crianças para verificar o percentual de crianças com
desnutrição na comunidade, com base na tabela de correspondência entre peso
e idade fornecida pela professora da área.
É um processo de construção que conta inclusive com a participação dos
alunos, que o avaliam periodicamente.
Então eu melhorei a minha escrita. E já melhorei assim, em geral, meu
conhecimento. (Anunciada –s)
E a gente consegue fazer essa sintonia entre técnico aqui, na federal,
na universidade, que a gente sai do nosso interior e vem para a capital,
e depois volta para o campo, e traz também o que a gente tem lá no
campo, de sabedoria popular, para a universidade. Fazendo Essa...
Essa troca. Universidade e o campo. O campo e a universidade. Então
isso tem... Assim me ajudado muito na formação pessoal, também, e
me ajudado na comunidade, fazer palestras e coisas que eu pensava
em fazer e que não tinha a formação adequada. Hoje, não tudo ainda,
que eu estou na fase, em processo de formação ainda, mas que,
diante do que já aprendi nesses assuntos técnicos já... Já passo
alguma coisa para a comunidade. (Pedro –aluno da suplência)
Pedro(s), abordando a troca de saberes, reconhece a diferença e importância do saber popular e do saber produzido
pela universidade e valoriza essa experiência para a sua formação pessoal. Paulo Freire chama a atenção para a
necessidade da realização da pesquisa epistemológica antes ou concomitante com as práticas docentes,
principalmente em áreas camponesas, com a finalidade de explicitar para o camponês o valor do saber produzido na
sua comunidade.
Este vem sendo, hoje, entre nós, no Brasil, um que fazer caro à
etnociência. Saber como os grupos populares rurais, indígenas ou não,
sabem. Como vêm organizando o seu saber, ou sua ciência
agronômica, por exemplo, ou a sua medicina, para o que
desenvolveram uma taxionomia amplamente sistematizada das
plantas, das ervas, dos matos, dos cheiros, das raízes. E é
interessante observar como matizam a exatidão taxionômica com
promessas milagreiras. Raízes cujo chá cura, ao mesmo tempo,
câncer e dores de amor desfeito; ervas que combatem a impotência
masculina. Folhas especiais para o resguardo da parturiente, para a
“espinhela caída”, etc. (FREIRE, 2005 b, p.135)
Mas, segundo Freire, promover as trocas apenas, não é o suficiente. É “imprescindível que se discuta com os
camponeses que as universidades estão comprovando através de outros métodos, a validade de alguns dos seus
saberes. É uma tarefa política de alta importância pedagógica”, diz Freire (2005 b, p.135). Agindo dessa maneira os
educadores e educadoras estarão favorecendo o desenvolvimento da auto-confiança, elemento indispensável à luta
dos homens e mulheres do campo do nosso país.
74
Como vimos no depoimento do educando Pedro(s), o Curso de formação
de técnico em enfermagem e suplência do ensino médio está, na medida do
possível, procurando promover a articulação dos conteúdos e saberes locais,
regionais e globais, buscando estabelecer relações onde esteja contemplada a
diversidade do campo, aproximando-se do princípio da transdisciplinaridade
constante no Manual de Operações do PRONERA, da forma que é ali colocado.
4. O SABER QUE VEM DO CAMPO.
Ao procedermos à leitura das entrevistas realizadas com as professoras
do curso de formação de técnico em enfermagem e suplência do ensino médio PRONERA, identificamos nas suas falas e nas dos educandos e educandas
alguns aspectos que merecem destaque: a versatilidade, a curiosidade, a
criatividade, a motivação para a aprendizagem, a capacidade de superar os
limites. Estas qualidades tão peculiares ao corpo discente do grupo do
PRONERA, pela história de vida e pela cultura camponesa nordestina, nos
remetem ao ideário da formação integral do ser humano. A concomitância do
ensino médio com o ensino técnico, onde pudemos testemunhar a expressão
artística dos/das alunos/alunas nas aulas de Artes, as descobertas sobre a
história do seu país durante as aulas-passeio, as reflexões sobre a sua
comunidade e o sentimento de pertencimento àquela localidade – um dos
motivos da sua dedicação ao estudo -, nos levaram a vislumbrar a possibilidade
da construção, no futuro, de uma educação que realmente busque promover a
formação integral do ser humano.
75
Foto 3 - Aula-passeio de História
Fonte: Arquivo do PRONERA
Mesmo não tendo conquistado o sonho de uma sociedade onde haja
igualdade de direitos e deveres para todos, podemos tentar construir uma
educação, para o tempo presente, como o próprio Marx idealizou na sua época,
que busque restaurar o educando fragmentado pela divisão do trabalho, pela
separação entre a atividade intelectual e a atividade manual, tornando-o um ser
inteiro. Consideramos esta possibilidade, pois acreditamos que a utopia, aqui
entendida como o sonho de vivermos em uma sociedade sem exploradores e
explorados, é que nos faz caminhar na busca de uma educação que proporcione
a formação dos homens e mulheres para que possam buscar esta sociedade
sonhada, que permita ao ser humano o seu desenvolvimento integral. Que
permita às pessoas realizar aprendizagens, expressar o seu pensar e o seu
sentir, rompendo as amarras que lhes têm sido impostas ao longo dos séculos,
desde que se instalou o processo de divisão e exploração de um ser humano
pelo outro.
O diálogo acerca da Pedagogia da Alternância abre o quarto capítulo, por
trazer à baila questões relacionadas às relações de saber, enfocando algumas
possibilidades e limites do ensino técnico em enfermagem para os assentados e
as assentadas da reforma agrária dentro do PRONERA.
76
4.1 A pedagogia da Alternância
Há uma tendência nos meios educacionais a confundir-se a modalidade
da Alternância com o Ensino à Distância. Na verdade, são processos
metodológicos que diferem quanto aos objetivos e pressupostos teóricos.
De acordo com a página20 da internet do Curso Técnico Produção
Agropecuária (2007), a Pedagogia da Alternância surgiu a partir da experiência
da inicialmente chamada “Maison Familiale” ou Escola Família Agrícola, que foi
criada na França pelo padre Granereau, em 1935, com o objetivo de ajudar às
pessoas de sua paróquia a melhorar a qualidade de vida da comunidade. A idéia
ganhou adeptos pela Europa, chegando primeiro à Itália após a II Grande
Guerra, inicialmente num lugar chamado Soligo, situado na região de Treviso. Na
Itália, com o nome de “Scuola della Famiglia Rurale” ou Scuola Famiglia,
funcionava sob a forma de cooperativa de agricultores, sendo estes os gestores
da escola. A metodologia não era a mesma da França. Foi adaptada à realidade
italiana. Assim, os cursos de nível médio eram realizados em um ou dois anos,
com duas áreas de formação: geral e profissional. As escolas para moças eram
separadas das escolas para rapazes. Elas forneciam certificados para que os
jovens prosseguissem os estudos nos Institutos Profissionais do Estado para a
Agricultura, que lhes conferia o título de agrotécnico. Havia ainda outra opção
para o jovem da “Scuola Famiglia” que não desejasse o título de agrotécnico:
estudar mais um ano na “scuola” e se especializar em uma das áreas oferecidas,
podendo escolher entre cultivo de cereais, horticultura, fruticultura, vinicultura ou
zootecnia.
No Brasil, a Pedagogia da Alternância entrou pelas mãos do padre
Humberto Pietrogrande, de origem italiana, no ano de 1969. Assim como o padre
Granereau, Pietrogrande desejava a melhoria das condições de vida das
pessoas do município de Anchieta, no Espírito Santo, que se encontravam
“empobrecidos pela política do intervencionismo econômico estatal que excluía a
agricultura familiar em detrimento da grande empresa agrícola e moderna.”
(BEGNAMI. 2004, p.4, grifo do autor). Pietrogrande expressou assim sua
20
http://www.eterancharia.com.br/agropecuaria.html
77
insatisfação com a escola da localidade em que exercia suas funções
sacerdotais:
Descobri que a escola que havia não prestava (...) compreendi que se
continuasse ensinando naquela escola, estaria perdendo meu tempo,
formando jovens incapazes de contribuir para o desenvolvimento de
sua comunidade. Era uma escola que transmitia conhecimentos, mas
não servia para uma ação transformadora. (PIETROGRANDE apud
SILVA, 2003, p 65)
Nessa época a teorização sobre a prática da alternância era bastante
reduzida.
As
experiências
aconteciam,
portanto,
sem
aportes
teóricos
específicos. As descobertas davam-se no fazer cotidiano.
De acordo com Begnami (2004), as primeiras EFA’s acolhiam somente
homens (atualmente são mistas), jovens rurais filhos de agricultores. Eram
escolas informais, sem autorização legal para funcionamento. Tinham duração
de dois anos, e a alternância era de uma semana na escola e duas com a
família. A finalidade dessas escolas era formar agricultores técnicos. Para
Begnami, um dos resultados positivos dessa primeira fase, foi a permanência da
maioria dos alunos na zona rural, onde passaram a desenvolver atividades
agrícolas ou em outras áreas. Essa fase inicial durou um curto período, entre
1969 e 1972. A segunda fase correspondeu ao período compreendido entre o
início dos anos 1970 e os anos iniciais da década subseqüente, atendendo a
jovens e adultos em regime de educação supletiva. A terceira aconteceu entre o
início dos anos 80 e o dos anos 1990, já com a oferta do ensino regular, inclusive
para crianças a partir dos 9/10 anos. E a última perdura até os dias atuais
abrangendo o ensino médio e profissionalizante.
Segundo Lourdes Helena Silva (2007), que é uma das poucas
pesquisadoras sobre a Pedagogia da Alternância no Brasil, as experiências que
utilizavam essa metodologia multiplicaram-se pela Europa, animando os estudos
e produções acadêmicas, principalmente no início dos anos 80. Os principais
trabalhos europeus sobre a formação na Pedagogia da Alternância enfocam a
problemática das diferenças culturais, inclusive no que se refere à formação e a
produção. Dentre eles se encontram os trabalhos de Gimonet, “[...] que considera
que é justamente porque a alternância cria rupturas entre os lugares, os
momentos e os conteúdos da formação, que ela obriga a existência de relações”
78
(SILVA. 2007, p.4); Charlot e Tanguy (1985, apud SILVA, 2007), cujos trabalhos
põem em evidência as limitações da adequação formação-trabalho.
Na perspectiva pedagógica, Silva aponta Malglaive e Weber (1983), e
Aballea (1991), sendo que os primeiros definem a articulação entre a teoria e a
prática em termos de saberes ou conhecimentos, de maneira que “enquanto a
teoria é reservada aos saberes que portam sobre o conhecimento do real, os
saberes práticos correspondem aos conhecimentos relativos à ação” (SILVA,
2007, p.5). Aballea também discute a relação teoria e prática, considerando que
existe “um vai e vem” necessário ao confronto do saber formalizado com a
prática e à formalização da prática.
Ainda na perspectiva pedagógica, mas voltados para as questões de
aprendizagem, destacam-se, segundo SILVA (2007) os trabalhos de Malglaive
(1992), Bourgeon (1979) e Gimonet (1984), que apontam três abordagens de
alternância: a dedutiva, onde o período fora da escola é compreendido como a
aplicação dos conhecimentos adquiridos na mesma; a indutiva, na qual as
vivências práticas ilustram o curso teórico; e a integrativa, onde os diferentes
atores coordenam o processo permanentemente, conservando sua autonomia e
especificidade, uma vez que cada um dos atores segue a lógica própria do seu
meio.
A dinâmica da Alternância, realizada no caso específico do PRONERA, a
nosso ver, não se trata apenas de uma forma de organização das atividades
entre escola e comunidade. Apesar de não ter havido tempo hábil para as
educadoras aprofundarem-se no estudo da pedagogia da alternância enquanto
uma metodologia com seus referenciais e pressupostos teóricos, e de terem
tratado a questão apenas como um requisito do curso, ou como mera
organização do tempo, foi o tipo de tarefa proposto que fez a diferença e
provocou o que os alunos ora chamaram de troca de saberes, ora de troca de
experiências. Ou seja, não se pode negar a existência de algo mais do que uma
simples execução de tarefa para cumprimento da carga-horária do tempo
comunidade.
Então há uma grande troca de saberes. Excelente troca de saberes. É
total que eles... Eles nos informam aqui, nos deixa bem claro que
quando nós chegamos na comunidade não vamos se sentir por cima
do salto, achando que somos donos da situação. E sim tentar
conciliar o saber daquele pessoal que está ali, que vem há muito
79
tempo fazendo aquilo e mostrar como eles mais ou menos deve
fazer aquela mesma coisa, agora na hora certa e com a coisa certa
para que não venha problema no futuro. (Anastácio – p.m.)
Anastácio (p.m.) afirma que os professores orientam para a necessidade
de conciliar o saber das pessoas da comunidade, aquilo que elas vêm fazendo
há muito tempo, com o conhecimento adquirido na escola, respeitando-o. Com
sua linguagem própria, o educando compreendeu que aquele saber da
comunidade deve ser respeitado e ampliado, na medida do possível, com a sua
colaboração técnica e com os conhecimentos que adquiriu na disciplina
educação em saúde.
A professora Camomila assim falou sobre os conhecimentos trazidos
pelos alunos:
E depois eles também vêm com uma bagagem muito boa de
conhecimentos. Eles não têm esse conhecimento teórico do curso,
mas eles têm os outros conhecimentos que junta aos nossos
conhecimentos. Eu acho que eles têm uma bagagem boa de alguns
conhecimentos sim. Não em termos de enfermagem, não é? Mas de
experiência de vida.
Acreditamos que sob esse aspecto, a ETS tem realizado um trabalho
positivo, uma vez que o saber que mais os educandos se orgulham é o da
utilização das plantas medicinais, que foi desenvolvido pelas pessoas do campo
através das gerações.
Porque a gente... Eles passam a experiência da área técnica, e nós
passamos a experiência dos nossos assentamentos, como é que a
gente trabalha a saúde dentro dos assentamentos e são respeitadas
ambas as partes. Então é interessante porque há, sempre há uma nova
experiência, não é? A questão, por exemplo, de como era que a gente
tratava a saúde do nosso povo, antes de adquirir conhecimento dentro
da universidade, e agora, como é que a gente vai fazer. A mesma coisa
eles querem saber. O que é que a gente está fazendo de interessante,
então há uma troca de experiências. (Margarida –p.m.)
A professora Marcela concorda com as afirmações dos alunos:
Mas, assim, em termos de troca, de aprendizado, foi muito rico. Porque
eles têm, assim, uma experiência de vida, uma vivência. Então quando
você adapta o problema, a situação à experiência de vida deles fica
muito mais fácil, não é? No caso de fazer... É... De falar, no meu caso,
em termos de cirurgia, quando eu falava numa cirurgia, eu associava a
alguma coisa da experiência deles e ficava bem mais fácil de eles
entenderem, não é? Por isso, assim, eu não tive muita dificuldade.
Porque eles já vêm com uma bagagem, não é? No limite do curso. Mas
80
em termos de compreensão, de atenção, de vontade, eles são
riquíssimos. São riquíssimos.
Diante destes depoimentos, pode-se perceber que as atividades
realizadas no tempo-comunidade contribuíram para mudanças de certos hábitos
nos locais de moradia dos educandos, bem como os fez perceber que há
respeito e interesse pelos fazeres e saberes de cada comunidade, pelo menos
por parte da maioria dos educadores envolvidos.
Foto 4 - Professora acompanhando atividades no tempo-comunidade.
Fonte: Arquivo do PRONERA
Quanto às relações entre as instituições participantes do processo de
formação, poucas são as pesquisas voltadas para este tema, destacando-se o
estudo de Landry (1992), que identifica no desenvolvimento das relações
institucionais duas condições que considera serem fundamentais: as estruturais
e as perceptivas, que são relativas às percepções, às atitudes e aos valores dos
atores das instituições. (SILVA, 2007). Também são pouco numerosos os
estudos que tratam das relações entre os atores participantes do processo, mas
SILVA destaca Clénet e Gérard (1994) e Mazalon (1995), que evidenciam o lugar
dos atores na construção da formação em alternância.
No Brasil a alternância passou a ser, segundo Begnami (2004), um
método de ensino e aprendizagem e, ao mesmo tempo, um sistema educativo
que é desenvolvido pelas Escolas Famílias Agrícolas – EFA’s.
Concordamos com Begnami (2004), quando afirma que mesmo tendo
surgido em terras de além mar, a pedagogia da Alternância ao aportar em solo
81
brasileiro, ganhou novas cores, as nossas, aproximando-se da Pedagogia
Libertadora de Paulo Freire. Ao apostar na criatividade, conscientização,
solidariedade,
religiosidade,
sentimento
comunitário,
problematização,
dialogicidade, autonomia, abraçou a causa freiriana de libertação.
Acreditamos que o MST foi um dos responsáveis por esta aquarela
brasileira, pois no desejo de promover uma formação que respondesse às
necessidades e aos desafios da luta por transformações sociais no Brasil,
buscou construir um conjunto articulado de estratégias pedagógicas que
favorecesse a inserção e permanência na escola daqueles que por séculos
foram dela excluídos: os trabalhadores rurais. Assim constituiu-se a OFOC –
Oficina Organizacional de Capacitação, como uma opção metodológica de
formação através do Curso Técnico em Administração de Cooperativas – TAC.
De acordo com Caldart (1997), a OFOC, ao utilizar o modelo da
alternância como um dos seus fundamentos pedagógicos, apenas se inspirou
nas EFA’s, não se identificando com o conjunto das suas propostas políticopedagógicas.
Presente na OFOC encontra-se a idéia de que a fonte e o destino de
qualquer aprendizagem são as práticas sociais, sendo a “necessidade o motor
da aprendizagem”. Portanto, é preciso potencializar a pedagogia do primado da
prática, valorizando a relação prática-teoria-prática. Além disso, uma vez que a
consciência é formada a partir da existência social, “(...) o processo de formação
precisa alterar as relações sociais através das quais serão produzidos os novos
saberes, conhecimentos, valores” (CALDART. 1997, p.116). Considera-se
também na pedagogia da OFOC a relação das pessoas com o trabalho, por ser
este uma das dimensões fundamentais da existência social. Na medida em que
as atividades cotidianas dos sujeitos levam-nos a produzir objetos, e na medida
em que estes objetos lhes trazem outras necessidades, o ser humano, ao buscar
satisfazê-las, realiza novas aprendizagens e constroem novos saberes. Assim,
Ao conduzir o processo de aprendizagem, o objeto, contraditoriamente,
devolve ao sujeito aprendiz o seu lugar central na formação, à medida
que consegue ao mesmo tempo acelerar e respeitar o ritmo de
aprendizagem de cada um, o que a média dos formadores tem muita
dificuldade de fazer. (CALDART, 1997, p. 117)
Caldart compreende o termo ‘objeto’, não como uma coisa, mas como
82
uma atividade a ser perseguida. Ou seja, é a atividade que coloca o aprendiz no
centro do processo formativo, cabendo às educadoras e educadores, nos
processos de capacitação, no caso da OFOC, “ajudar na construção do objeto”,
garantindo o acesso do aluno às teorias que possibilitem dialogar com o objeto
em questão. A capacitação também é impulsionada pelos conflitos intra e
interpessoais, que devem ser trabalhados pedagogicamente pelos educadores.
A possibilidade de utilização dessa metodologia da OFOC em outras
áreas, como o Magistério, por exemplo, foi pensada algum tempo depois da
experiência do TAC. Assim, após uma reflexão mais aprofundada, uma vez que
o curso de Magistério tem suas especificidades, passou-se a adotar esta
metodologia nesse curso também.
A sistematização da experiência do curso de Magistério do MST, feita por
Roseli Caldart, trata de como foi vivenciada a Pedagogia da Alternância por
aquele movimento.
Decorrente da experiência com o curso de magistério, que foi
constantemente avaliada e sistematizada, houve um aprimoramento do
processo. Avaliada como positiva, a pedagogia da Alternância foi incorporada ao
PRONERA.
À exceção do de Caldart, parece-nos que todos os estudos sobre
alternância foram realizados em escolas que formavam para a aquisição de
conhecimentos técnicos ou o seu aprimoramento, para o trabalho na produção
de alimentos ou outros bens de consumo. O caso específico da nossa
investigação apresenta outra característica. A ETS está formando técnicos para
o atendimento em saúde, ou seja: a experiência que ora descrevemos tem o
diferencial de tratar-se de um curso técnico em enfermagem, que se refere
diretamente à preservação da vida humana, sendo principalmente sobre o corpo
humano que os procedimentos técnicos, incluindo as orientações sobre cuidados
de saúde, são realizados.
Nessa perspectiva, durante o processo de planejamento das disciplinas
para o curso de formação de técnico em enfermagem e suplência do ensino
médio, as questões que inicialmente preocupavam as docentes eram: como
estabelecer as atividades para o período em que os educandos teriam que
cumprir na comunidade; como acompanhá-los nessas atividades; como garantir
nesses momentos a aprendizagem necessária para a formação do técnico em
83
enfermagem; como trabalhar os conteúdos nas comunidades - e com as
comunidades? Como promover a articulação entre teoria e prática? Estariam os
monitores da CPT preparados para dar o suporte necessário aos alunos? Para
algumas disciplinas havia maior facilidade nessa interconexão, mas para outras o
processo se tornava mais complicado devido às especificidades da matéria de
estudo.
4.1.1 A Escola Técnica de Saúde e a metodologia da alternância
A pedagogia da Alternância, por partir do pressuposto de que o processo
educativo não se dá exclusivamente na Escola, tem importante valor para as
populações rurais uma vez que lhes possibilita o acesso à educação sem afastar
as pessoas da sua comunidade. Ao invés de provocar esse afastamento, a
pedagogia da alternância, por considerar que as práticas educativas acontecem
na sociedade como um todo, propõe uma inserção ainda maior dos educandos
no seu local de trabalho e moradia, com a realização de trocas conhecimentos e
saberes entre educandos-comunidade-educandos-escola.
Segundo Gimonet, a alternância cria um confronto entre campos culturais,
estando o educando no centro dele. Ele aponta três faces desse confronto:
A cultura de um local, de um território de onde vem o alternante, e
onde mora com sua família, com sua maneira de ser, de pensar, de
falar sua linguagem, suas expressões, suas referências; a cultura da
empresa com suas próprias referências, seu registro de língua
especializada, sua cultura profissional; a cultura da escola com suas
palavras, sua finalidade, seu ambiente, suas próprias referências, mais
ou menos longe, das outras culturas, na medida em que está afastada,
até em ruptura com o mundo circunvizinho. (GIMONET, 2004, P.25)
A fala da aluna Dorothy, do curso de suplência, põe em evidência a forma
como percebe esse confronto cultural:
No assentamento nós temos dificuldades de falar a mesma linguagem
dos agricultores porque quando nós chegamos na sociedade temos a
maior dificuldade de falar a mesma língua que a sociedade. Somos
criticados, às vezes. E no assentamento nós temos que falar com
palavras que eles entendam. A nossa linguagem, a nossa cultura. Eu
acho que é muito diferente. Fazendo a comparação da nossa
linguagem, nossa cultura, a nossa linguagem tem muito da nossa
cultura. E já na cidade é muito diferente. A maneira com que as
84
pessoas conversam um com o outro. Nós somos criticados. Por
exemplo, nós temos uma comunidade do quilombo, que era de Caiana
dos Crioulos. E essa comunidade sofre preconceito até mesmo dentro
de nossa sala, às vezes. Porque eles trocam, muito, o “o” pelo “a”. No
caso de “bomba”, eles falam: “bamba”. E são muito criticados pelos
próprios colegas, pelas pessoas da sociedade também.
Colocada no centro do processo de confronto cultural, como afirmou
Gimonet, a educanda entende que precisa adequar sua maneira de falar tanto ao
ambiente escolar como ao assentamento. Compreende e aceita as diferenças
culturais, mas aponta para o fato da existência do preconceito lingüístico entre as
culturas da cidade e do campo bem como entre as diferentes comunidades
camponesas. Talvez tenha faltado à escola uma ênfase maior na discussão
sobre a aceitação das diferenças, tanto individuais quanto culturais. Para Freire
(1996, p. 41),
Uma das tarefas mais importantes da prática educativo-crítica é
propiciar as condições em que os educandos em suas relações uns
com os outros e todos com o professor ou a professora ensaiem a
experiência profunda de assumir-se. Assumir-se como ser social e
histórico como ser pensante, comunicante, transformador, criador,
realizador de sonhos, capaz de ter raiva porque capaz de amar.
Assumir-se como sujeito porque capaz de reconhecer-se como objeto.
A assunção de nós mesmos não significa a exclusão dos outros. É a
“outredade” do “não eu”, ou do tu, que me faz assumir a radicalidade
do meu eu. (grifos do autor)
O educando Chico (p.m.) demonstra certa inquietação sobre se estaria ou
não correspondendo às diferentes expectativas dos sujeitos envolvidos, ao
mesmo tempo em que deseja afirmar a capacidade de aprendizagem do povo do
campo:
O curso, no geral, ele presta uma oportunidade, uma abertura para o
pessoal do campo. Até para mostrar para a universidade, também para
os professores, até para os alunos também da universidade que o
pessoal do campo, que muitas vezes é um pessoal mesmo sem-terra,
são pessoas que têm capacidade. Falta apenas a oportunidade. Eu
acho que não sei se eu estou correspondendo à expectativa do
movimento e da própria universidade e da escola.
A alternância entre períodos vividos pelos alunos na escola, chamados de
Tempo-Escola, e os períodos em que passa na comunidade, denominados
Tempo-Comunidade sem interrupção no seu processo de formação é a marca
dessa pedagogia que, segundo Sousa (2002, p.449),
Consiste em atividades e em uma preparação e uma formação
permanente, pessoal e social em que se procura desenvolver a
85
imaginação, a criatividade, a conscientização, a solidariedade, a
religiosidade e o sentimento comunitário. Por essa pedagogia, o jovem
conserva ou descobre o amor a terra, às plantas e aos animais e, sem
se desenraizar, adquire conhecimentos técnicos e culturais.
Sousa refere-se precisamente ao modelo de alternância que ocorre nas
EFA’s do Espírito Santo e da Bahia. Ela afirma que o processo pedagógico da
alternância é pautado numa dialética, pela indissociabilidade da teoria e prática,
o que leva à “ação X reflexão” e contribui para uma nova concepção de pessoa
no universo, de educação e de escola. Para Sousa (2002, p. 449), “a alternância
é o pressuposto principal da metodologia da EFA, procurando demonstrar que a
vida ensina e educa.”.
A alternância no curso de formação de técnico em enfermagem e
suplência do ensino médio, de acordo com o projeto do curso, funciona de forma
que 70% da carga horária do curso destinem-se ao Tempo-Escola (TE), e os
30% restantes ao Tempo-Comunidade (TC). No entanto, diferentemente do que
ocorre nas EFA’s ou nas experiências do MST, a alternância sofreu um processo
de descontinuidade causado por problemas burocráticos de repasse de verbas,
obrigando aos alunos a ficar até um ano sem atividades no Tempo-Escola (TE)
e, no retorno, a permanecer por um tempo maior na Escola, o que tornou o
processo muito cansativo e estressante.
Hoje eu posso dizer que eu não tenho mais medos, mas, no ano
passado eu tive medo. Tive medo quando passou o ano todo sem ter
nenhuma etapa. Então assim, eu tive muito medo de não terminar o
curso porque passou o ano todinho sem ter nenhuma etapa. Mas esse
ano não. Esse ano eu consegui superar. Eu creio que quando... No final
do ano a gente vai conseguir terminar. (Anunciada – s)
As aulas à noite. Apesar de ter aula principalmente que a gente está
assistindo agora, saúde mental, é uma aula gostosa, mas mesmo assim
é, é muito cansativo. É cansativo até demais, dez horas/aulas
durante o dia. Você passa o percurso todinho, de manhã, à tarde,
aí quando chega as quatro e meia, já vai dando uma canseira, aí
pronto, aí tem que ligar para a noite. Aí é muito difícil, uma
dificuldade enorme... Que aí a gente poderia melhorar. (Jósimo – p.m.)
Essa preocupação do aluno Jósimo (p.m.) é compartilhada por todos os
outros sujeitos (alunos, professores, coordenação e direção) da pesquisa, ou
seja, 100% dos sujeitos pesquisados abordaram o peso da carga horária em sala
de aula para os/as alunos/alunas. Além do cansaço físico e mental, há também o
desgaste emocional, em função da distância dos seus familiares e amigos, da
“terrinha”, dos costumes, mas tudo isso é superado por uma motivação maior
86
que é o retorno do investimento à comunidade.
Para mim é ótimo. É cansativo. É... Teve o ano passado que teve um
imprevisto, que a gente passou um ano parado, mas para mim... É
tanto que eu vim duas etapas grávida, estou aqui com a menina (um
bebê de dois meses a quem amamentava enquanto falava). Para mim,
tirando o que aconteceu o ano passado, é nota dez. (Inês –s)
Eu sou casada, tenho uma filha de um ano e meio. Deixamos em casa
famílias, filhos, tudo, para participar. Nós passamos meses longe da
família. Tem gente que vem de outro Estado, tudo em prol de uma
causa, não é? Eu acho que isso é o que move mais. A gente tem uma
carência assim, afetiva, muito grande, não é? Um beija o outro, abraça.
Bom dia. Boa tarde. Boa noite. Dorme junto... Na verdade é uma
carência que a gente supre um com o outro. Porque não é fácil você
passar um mês estudando de manhã, à tarde e à noite, longe de
seus familiares, filhos... Os filhos adoecem. A gente não está lá...
Tem que deixar os filhos com pessoas estranhas, para nossos filhos
que não é o pai e a mãe, mas por necessidade a gente tem que deixar
lá na... [...] O meu marido ficou em casa. Nós passamos uma barra. Ela
[a sua filha] ficou internada aqui cinco dias. Eu estudava de manhã, à
tarde e à noite, terminava o curso, eu pegava dois ônibus, e ia dormir
no hospital. Dormir, não. Passar a noite. Mas ela graças a Deus ficou
boa. (Margarida – p.m.)
Bem. Como dificuldade, como eu já coloquei foram, justamente, as
etapas. O fato de ter que se deslocar de casa, vir para cá, passar 30
até 40 dias longe de casa. Com comidas diferentes, com costumes
diferentes, horários diferentes... Essas, para mim, foram algumas das
maiores dificuldades. Com relação ao andamento do curso, para mim
foi muito bom, até porque a turma teve um grande envolvimento com o
corpo docente da escola, que facilitaram e também se interessaram
pela causa, sabendo que, nós como alunos de zona rural, tivemos os
professores que se demonstraram interessados e sempre nos deram
força. (Zé Divino – p.m.)
O corpo docente reconhecendo as dificuldades enfrentadas pelos
discentes, e esforçou-se para dinamizar as aulas no sentido de torná-las menos
cansativas.
Agora claro que eu acho assim, que a sobrecarga é muito grande para
eles. Por isso eu os considero vitoriosos. Porque eles assistem aula de
manhã, de tarde e de noite. Até no sábado. No começo era no
sábado o dia inteiro. Eles só tinham livre o domingo. Eles teriam que
assumir o compromisso de todas as disciplinas, os trabalhos que são
passados e o seu dia-a-dia, cuidar da sua roupa, cuidar... Comprar
alguma coisa para eles tudo isso só no domingo que eles faziam. E
eles... É interessante que eles sempre deram conta de tudo. Eles são
pontuais, não são de chegar atrasados, não são de estar pedindo para
sair o tempo todo da sala de aula. Às vezes, é claro, que quando está
sufocante eles vêm para a gente e conversam:”professora, porque eu
não estou agüentando, minha cabeça está doendo...” mas que é
normal, faz parte, não é? (Camomila)
87
Foto 5 - Aula de educação em saúde
Fonte: Arquivo do PRONERA.
O curso de formação de técnico em enfermagem e suplência do ensino
médio, para adequar-se ao tempo previsto para sua conclusão e ao custo da
estadia dos alunos e alunas em João Pessoa, acabou submetendo os mesmos a
uma jornada estressante de aulas: das 7 às 11 horas; das 13 às 17 e das 18 às
20. O almoço e o jantar ocorriam no Restaurante Universitário, dentro do próprio
Campus. Assim, a rotina consistia em acordar por volta das 5 horas, para que
pudessem chegar a tempo hábil na escola após a higiene matinal e o café da
manhã. Chegando ao alojamento às 21 horas aproximadamente, era o momento
de os alunos revisarem algum conteúdo antes de dormir. Esta rotina acontecia
de segunda a sexta-feira. Aos sábados as aulas ocorriam no turno matutino e,
em algumas ocasiões, até no vespertino. O tempo-escola variava de acordo com
a carga-horária das disciplinas de cada um deles, podendo durar vinte e cinco,
trinta ou trinta e cinco dias, por exemplo.
Por exemplo, eu acho que foi assim, corrido demais, eles têm aula de
manhã, de tarde e de noite. A gente depois aí vai fazer uma
avaliação para ver realmente como foi esse aprendizado. Não é?
Porque não é brincadeira, puxa muito por eles. Um dia desses, eu fui
dar aula lá onde eles estão alojados, e a aluna disse: “Professora,
vocês querem cozinhar os miolos da gente”. Eu achei uma graça, mas
aquilo tem significado sim. E eu fiquei calada. Porque naquele dia eu
que estava ficando até com pena dos alunos, mas eu não tinha culpa.
Eu estava lá como professora para dar a minha aula. Aí eles se
queixaram e eu os fiz ver que não era eu, a pessoa de (nome próprio)
que estava lá, mas era a professora que tinha que cumprir com o seu
dever. Não é? Inclusive eles, coitados, tinham que chegar lá às onze
horas, o carro chegou para pegá-los ao meio dia, eles chegaram lá
88
quase uma hora da tarde e eu tinha que encontrar com eles às duas
horas. Não tinha saída. Só tinha aquele momento. Mas eu ainda fui lá.
Fui nos alojamentos, deixei eles cochilarem uns cinco minutinhos, para
depois atendê-los. Mas eles não são assim de muita reclamação não.
Acho que eles são mais de agir. (Camomila)
Essa carga horária extremamente elevada levou algumas educadoras a
proporcionar mais momentos em sala de aulas para leitura e estudo individual e
coletivo, que em situação regular (onde o aluno tem apenas quatro horas-aula
por dia) é feita em horário oposto ao da escola. Isto deixou uma defasagem
ainda maior em relação às atividades propostas para o T.E. do PRONERA. Por
outro lado, certas professoras esmeraram-se no preparo das aulas para o grupo
do PRONERA, apresentando materiais variados e mais ricos em detalhes. Isso
foi percebido pelas alunas e alunos bolsistas do curso regular que atuavam junto
ao PRONERA e que chegaram a indagar as professoras sobre o porquê de elas
não terem utilizado aqueles recursos também com eles. Mesmo assim, sabemos
que isso não diminui o cansaço. Apenas ajuda a esclarecer melhor os conteúdos
facilitando sua assimilação pelos alunos e alunas. Com tudo isso, esses jovens
homens e mulheres assentados conseguiam permanecer firmes na busca do seu
objetivo.
Mas eles têm um bom interesse. Eles têm interesse, força de
vontade... Estudar de manhã, de tarde e de noite?! Eu achei que...
Eu achei... Porque é assim, sabe, a metodologia é qual? Participativa,
metodologia ativa, mas como é que eles podem fazer isso estudando
manhã, tarde e noite. Porque você vê, a metodologia é
problematizadora, então vamos aplicar isso aí. Eu apliquei. Se consegui
aplicar? Eu consegui aplicar, entendeu? Mas chega uma pessoa tão
cansada, que teve que lavar roupa, não sei o que... Como é que pode?
Ela está cansada, não consegue, entendeu? (Malva)
A
problematização
exige
maior
envolvimento
e
participação
de
alunos/alunas, que se torna menos intenso quanto maior o número de pessoas
na sala. Sabe-se que o número de alunos do Curso, por sala de aula não é
apropriado. Acreditamos que 25 alunos, no máximo, seria o ideal.
E dez horas-aula, sem ter tempo para estudar as disciplinas,
passam 35 dias aqui sem ter tempo de rever nenhum dos
conteúdos que viram, então vai ver qual é... Como é que estão
saindo? Por que não dá. É humanamente impossível. Final de semana
eles têm o sábado à tarde para lavar toda a roupa usada durante a
89
semana e o domingo para rever alguma coisa que estudou. (Arruda)
Mais uma vez, nas falas das educadoras, enfatiza-se a capacidade de
superação das dificuldades pelos seus alunos e alunas.
Quando a gente ia pensar que um trabalhador de uma zona que você
tem que passar, atravessar um rio, depois de atravessar o rio pegar
uma moto para chegar num município próximo, depois de um
município, porque não chega carro. No município pegar um carro para
um outro município, desse município pegar um ônibus para vir para
João Pessoa... Uma criatura dessa, um ser humano desse, para mudar
completamente a sua vida. Porque muda completamente a sua vida.
Porque a gente tem alunos aqui que são mães, que são pais, que são
filhos... Tem senhoras aqui que têm que deixar sua vida durante um
mês, vinte dias, vinte e cinco dias para vir para cá estudar. Não é fácil
não, sabe? (Alfazema)
Esse problema do excesso de carga horária no Tempo-escola,
sobrecarregando os alunos, precisa ser considerado quando forem abertas
novas turmas do PRONERA. Apesar de todo esse esforço, quando os desgastes
físicos e emocionais se evidenciam, os alunos e as alunas do PRONERA
seguem com força em busca do objetivo que é retornar ao assentamento como
profissionais técnicos em enfermagem. Além do forte desejo de contribuir com
sua comunidade, a elevação da auto-estima e o reconhecimento social também
são potencializadores desta vontade de concluir o curso.
As professoras ressaltam o interesse e a força de vontade dos educandos
e educandas. Algumas os consideram mais interessados do que os alunos do
curso regular, por suportarem tamanha carga de atividades no tempo-escola e o
afastamento dos seus locais de moradia.
Observei que os alunos do curso regular não têm aquela vontade que
eles têm de aprender. (Malva)
[...] foi, assim, uma experiência maravilhosa, eles ficavam encantados,
e a gente podia observar o interesse que eles tinham. A boa
vontade em querer aprender. Claro que tinha alguns que
cochilavam... Mas aí eu brincava e dizia algumas coisas e contava
assim tipo uma piada, as minhas experiências de vida, eles sorriam
muito, mas só que eles tinham pique. Inclusive eles assistiam aula
de manhã, de tarde e à noite, e eram pessoas que a gente percebe
que querem mesmo aprender. Vieram com muita disposição, com
muita garra. (Camomila)
E complementa em outro momento da entrevista:
Achei eles muito corajosos e destemidos porque saíram do seu
interior e vieram para cá com muito sacrifício. Mas eles querem, a
gente percebe que eles querem realmente concluir. [...] eu acho que é
90
a questão do querer. Eles querem acima de tudo, eles valorizam
demais esse curso. Eu acho que eles se acham importantes para a
comunidade. E depois eles também vêm com uma bagagem muito boa
de conhecimentos. (Camomila)
Alfazema sugere uma redução da carga horária para pelo menos oito
horas diárias, mas justifica o horário por razões financeiras.
Pelas questões financeiras que se tem, do projeto. Se tem que cumprir
uma carga horária muito extensa, que no lugar de se cumprir uma carga
horária de dez horas, se cumprisse, pelo menos, uma carga horária de
oito horas, daria tempo a um descanso mental, um descanso físico. A
se pensar, não é? Pelo menos isso. Tem um processo de se relaxar,
não é? Era bem mais diferente. Mas eles são muito bons. (Alfazema)
A professora Marcela considera que o fato de educandos e educandas
suportarem tão grande jornada é a prova de que o seu interesse pelo curso é maior do
que o dos e das estudantes do ensino regular.
Dessa turma do PRONERA, o interesse é muito maior. Por que?
Pelo esforço deles, pela carga horária gigantesca que eram
praticamente dez horas de aula, no estágio e na teórica. Eram dez
horas por dia. E a gente via que por mais cansados que eles
estivessem, eles estavam lá em pé ainda, se arrastando, e a gente
vê que se fosse o aluno regular ele não teria aquele desempenho. Ele
não teria aquele desempenho. Então o que me fez tirar... Eu disse
“vocês são uns vencedores realmente porque vocês, encarando uma
jornada dessa, e estarem assim ainda aptos. E muitos dizem:
“Professora eu quero.”- “Deixe, eu quero”. - “Eu vou fazer” – “Como é
que faz isso?” – “Como é que faz aquilo”, demonstrando,realmente,
interesse. (Marcela)
Anastácio, aluno do pós-médio chega a comentar as reclamações de seus
companheiros e companheiras de curso em relação a carga horária:
Tem alguns alunos que reclamam. “Não, a carga horária é muito
grande”. Mas não tem outra saída. A gente tem um tempo
determinado. Se a gente tivesse um tempo mais prolongado então
tinha como abranger mais.
Mesmo parecendo estar conformado com a carga horária, a última frase
do educando Anastácio revela o que realmente pensa sobre isto. Ou seja, para
ele o tempo limitado reduz a abrangência do curso.
Este esforço quase “sobre-humano”, atingido com uma forte dose de “boa vontade” e “coragem”, a nosso ver, deve-se
a fatores tais como: 1 – A falta de oportunidade de estudo nos assentamentos; 2 – O fato de ser um curso realizado
21
pela universidade federal, que para os educandos e educandas tem uma importância muito grande ; 3 – A
necessidade de corresponder às expectativas da comunidade que os e as indicou para o curso: 4 – O status que uma
formação na área de saúde ainda detém na zona rural, principalmente pela escassez desses profissionais na área.
21
Em vários momentos da entrevistas, alguns alunos reportaram-se orgulhosamente ao fato de estarem
estudando em uma universidade federal.
91
É certo que essa sobrecarga horária trata-se de uma questão decorrente da inadequação da verba destinada a cada
aluno para as despesas de hospedagem e alimentação. Segundo Relatório Resumido Ano II, 2005, o valor
determinado pelo INCRA é de R$ 3.000,00 (três mil reais) por aluno ao ano, para os cursos da área de saúde. Este
valor que deve cobrir todas as despesas dos educandos/educandas, incluindo desde as vestes brancas, os calçados
e as batas, até alojamento, alimentação e transporte tanto dos assentamentos até a escola, quanto na cidade de João
Pessoa, é considerado baixo pela coordenação.
Outro aspecto bastante relevante a considerar foi a interrupção do curso
por aproximadamente um ano, pelo não repasse das verbas pelo INCRA nas
datas previstas, que levou professores e alunos a acreditarem, em determinado
momento, na possibilidade da não conclusão do curso.
Para a aluna Margarida (p.m), integrante do MST, o motivo da suspensão
do repasse de verbas, que interrompeu o curso por um ano, foi de ordem política:
Então é interessante até para uma discussão, para você ter elementos
para discutir até em relação a isso: a um projeto pensado pela gente
que está dando certo e que para a sociedade é um tapa na cara,
entendeu? Dar um projeto que foi feito por agricultores está dando
certo. Nós estamos tendo acesso à universidade com muita luta. Está
certo que ficamos um ano sem estudar, porque foi político, não é?
Porque não é interessante para a sociedade, quanto mais eles
arquivarem, melhor. Então o que eu acho muito interessante e que
com foice, com facão, com enxada, com nossos instrumentos de
trabalho a gente ocupa o INCRA, ocupa o que tiver que ocupar, vai
para as ruas, fala, reivindica para conseguir ficar dentro da
universidade. E que continuamos... E que nós possamos continuar,
lutando, é mesmo agora, uma turma vai se formar agora em maio,
outra em dezembro, não é? (Margarida)
Para Pedro (s), liderança comunitária que já foi ligado à CPT, foram
questões burocráticas que provocaram a interrupção do repasse, e considera
este como o aspecto negativo do curso:
Assim... O que eu acho de negativo é... No sentido muitas vezes de
repasse de recursos. Eu acho que isso é uma das coisas que... Por
exemplo: o nosso curso. A gente ia terminar em 3 anos, está indo em
quase 4 anos. Então, o recurso atrasa, a burocracia é muito grande.
Em que pesem essas questões financeiras, que devem ser solucionadas o
mais rapidamente possível para permitir que o processo da alternância não seja
um empecilho para a aprendizagem dos estudantes e professores, a experiência
com a alternância em algumas disciplinas superou a dimensão da simples
organização do tempo para a viabilização do curso para pessoas dos
assentamentos do estado da Paraíba.
Desde as disciplinas de língua portuguesa e matemática até as
específicas do curso de enfermagem pudemos encontrar atividades para o TC
com a intenção de levar os educandos a aprofundar o conhecimento da realidade
92
sócio-cultural e de saúde da sua comunidade (VIDE ANEXOS A, B, C e D). A
execução das atividades possibilitaria aos educandos e educadores a realização
de uma diagnose das comunidades envolvidas. Porém os resultados desses
trabalhos não foram divulgados aos demais professores, que poderiam ter
utilizado estes dados para planejar suas atividades com os alunos tanto no TE
como no TC, de forma a aprofundar o estudo e a intervenção nos aspectos
considerados mais
necessários pelos
e pelas
estudantes-comunidades-
professores.
Mesmo sendo a Alternância desconhecida dos professores enquanto uma Metodologia de Ensino que considera
todos os espaços – sejam da escola ou da comunidade - como locais onde ocorre a aprendizagem, estes acabaram
por buscar aliar a prática à construção teórica junto com os alunos, ainda que sem conhecimento sobre os estudos já
produzidos acerca do assunto. Assim, acreditamos que a utilização da metodologia da alternância deve ser pensada
não apenas para fins de organização do tempo para viabilização de cursos para a população do campo, mas como
um recurso metodológico importante que possibilita o diálogo entre as diversas pessoas envolvidas nos mais variados
espaços, o encontro de muitos saberes, a investigação, a pesquisa e a ação transformadora.
4.2 Omnilateralidade: convite para pensar uma formação humana nas suas
diversas dimensões
Foi por sua capacidade de aprender e de compartilhar com os outros o
saber que construíram através da ação e da reflexão, que os seres humanos
chegaram a esta sociedade cujas inovações, no campo da ciência e da
tecnologia, seriam inimagináveis ou apenas ficção científica para quem viveu, por
exemplo, na primeira metade do século passado. No princípio – assim
descrevem os que contam a história da humanidade -, os homens e mulheres
eram coletores / coletoras e pescavam com as próprias mãos, depois passaram
a desenvolver instrumentos que possibilitaram a caça/pesca e defesa do grupo.
Na sua arte venatória desenvolveram muitas habilidades que eram repassadas
aos demais no processo do fazer: a capacidade de observação, de leitura de
sinais que utilizava todos os órgãos da sensibilidade corporal, como olfato, tato, e
até paladar, além da visão e da audição.
Quando aprenderam a técnica do plantio e da criação de animais,
93
aprenderam também a guardar provisões para os tempos de escassez.
Aprenderam que poderiam acumular bens e instituíram a propriedade privada e a
subjugação da mulher ao espaço doméstico. Se antes eram grandes pela sua
versatilidade, pela capacidade de solucionar problemas nas diversas dimensões
da vida, compartilhando as descobertas com os semelhantes, e sem a dicotomia
entre a atividade intelectual e a manual, com o acúmulo de bens, passaram
também a sonegar o saber que lhe interessava para garantir a sobrevivência
própria e do grupo. De acordo com Freire (ano, p. 79 – a importância do ato de
ler),
Os homens e as mulheres trabalham, quer dizer atuam e pensam. (...)
Trabalham porque se tornaram capazes de prever, de programar, de
dar finalidades ao próprio trabalho. No trabalho o ser humano usa o
corpo inteiro. Usa as suas mãos e a sua capacidade de pensar. O
corpo humano é um corpo consciente. Por isso está errado separar o
que se chama trabalho manual do que se chama trabalho intelectual.
Manacorda, reportando-se a Marx, afirma que “a divisão do trabalho ou a
propriedade privada, tornou-nos obtusos e unilaterais”. (1991, p. 68). Esta divisão
introduziu a especialização, e o domínio individualizado de determinados
conhecimentos e/ou de determinados saberes, que, segundo Marx citado por
Manacorda (1991), aprisiona os operários a um determinado ramo da indústria,
impedindo sua mobilidade. De acordo com Machado (1999), as pessoas que
trabalham na fábrica, sempre resultam insatisfeitas com o trabalho por ser
desinteressante, cansativo e opressor. Há uma divisão hierárquica que tem por
função o controle do pessoal, para que produza segundo os critérios dos que
planejam a produção. Ou seja,
Com esta divisão, vem junto a própria deformação e mutilação do
trabalhador, que é levado a desenvolver apenas uma parte da sua
potencialidade, ao executar uma atividade específica durante todo o
tempo, reprimindo o desenvolvimento de todas as outras aptidões de
que é portador. Neste sentido, esta deformação atinge,
indiscriminadamente, qualquer trabalhador parcial, desde aquele que
executa, mas não concebe, até o outro que concebe, mas não executa.
A divisão do trabalho do período manufatureiro traz consigo, portanto,
a divisão entre mão e cérebro, entre o pensar e o fazer. Assim, não só
o trabalho se divide, mas ao se separar, cinde o próprio homem.
(MACHADO, 1989, p.21)
No campo, apesar de a organização do trabalho ocorrer de forma
diferente, pois o agricultor continua participando de todo o processo da produção
94
agrícola, do plantio à colheita e/ou à comercialização do produto, em alguns
casos como o dos assentados do PRONERA, o trabalhador rural também é
vítima da exploração do grande capital, que compra sua força de trabalho22 a
baixo custo.
O educando Anastácio (p.m) nos trouxe mais próximos a essa reflexão,
quando falou:
Então a gente vê uma realidade onde nós, agricultores, desde
pequenos produtores... Porque o agricultor – quando muitas vezes se
fala: agricultor -, trabalhador rural, sempre se dirige ao grande. Ao...
Grande proprietário. Então o pequeno produtor é aquele que a
gente chama o humilhado agricultor. Que é o sabido, que é quem
faz a coisa. Que sabe fazer. E os ricos pagam para o pequeno fazer. E
é que muito pequeno ainda não viu isso. Acha que o rico, o proprietário
é quem sabe. Mas quem sabe é os pequenos. É quem ta lá plantando,
é quem ta lá cavando, é quem ta lá colhendo.
Estas palavras do educando Anastácio (p.m) refletem bem a divisão entre
o trabalho intelectual, do rico, e o trabalho manual – do “humilhado agricultor”.
Ele tem consciência da exploração de que são vítimas os agricultores, os
“pequenos produtores”. Segundo ele, são estes últimos que detêm o saber fazer,
que é explorado pelo grande. Sua fala demonstra que ele reflete sobre a situação
de exploração de que é vítima, o mesmo não acontecendo, segundo ele, com
outros camponeses.
Se essa fala de Anastácio tivesse ocorrido na sala de aula e não na
entrevista,
seria
possível
que
as
discussões
caminhassem
para
a
intencionalidade existente no tratamento de “pequeno produtor” dado a eles.
Novamente recorrendo ao Dicionário Eletrônico Aurélio Séc. XXI, o verbete
‘pequeno’ significa, entre outras coisas, pouco apreciável, de pouco valor; e
também pode significar modesto. Qual a verdadeira intencionalidade desse
adjetivo dado ao homem e a mulher do campo que lavram a terra, que plantam
para a própria subsistência? Acreditamos que a intenção por trás desse
tratamento é diminuir ou mesmo anular a sua auto-estima. “E muito pequeno
ainda não viu isso”, disse Anastácio (p.m). A escola também não viu a
necessidade de abrir-se a esta discussão. Qual seria o papel da Escola diante
dessa e de outras questões que sobressaem nas falas dos alunos?
Ao descrever o homem unilateral que surgiu com a divisão do trabalho,
22
É o caso dos cortadores de cana e trabalhadores da agro-indústria de maneira geral, que são contratados por
temporada, às vezes só para o plantio, ou só para a colheita.
95
Marx viu na educação uma maneira de se tentar reconquistar a onilateralidade
perdida. Assim propôs os princípios básicos para uma educação que
proporcionaria a formação multilateral das pessoas mediante o ensino
politécnico.
Manacorda garimpou, nos escritos de Marx, fragmentos que indicassem o
que ele compreendia por onilateralidade. Marx levantava a hipótese de que numa
sociedade comunista, onde inexistiria a divisão de classe, e a sociedade
regularia a produção geral, seria possível que os seres humanos se
aperfeiçoassem no ramo de atividade que quisessem, possibilitando que
prazerosamente realizasse diversas atividades nos horários que mais lhes
aprouvessem. Marx até exemplifica dizendo que uma pessoa poderia “fazer hoje
esta coisa, amanhã aquela, de manhã ir à caça, à tarde pescar, ao anoitecer
tratar do gado, depois do jantar exercer a crítica, como bem lhe apeteça, sem
tornar-se um caçador, pescador, pastor ou crítico”. (MARX apud MANACORDA
1991, p. 832)
Essa era a idéia de onilateralidade pensada por Marx, só possível numa
sociedade sem exploradores e explorados. Porém há aqueles grupos que
buscam a promoção de uma formação que chegue o mais perto possível da
educação sonhada por Marx.
Caldart, referindo-se ao curso “Pedagogia da Terra da Via Campesina”,
ocorrido também dentro do PRONERA, entre os anos de 2002 e 2005, pensa a
onilateralidade como uma perspectiva que deve ser intencionalmente buscada no
trabalho de formação docente, tentando a realização de uma formação o máximo
possível integral. Ela aponta como facilitador da materialização dessa
intencionalidade o formato do curso que descreve, ressaltando as “etapas,
alternância, constituição de turmas [...]” (2007, p.33). Caldart ressalta ainda a
convivência em tempo integral com os alunos e alunas, no tempo-escola, que
traz para o seu interior a “vida real” com sua multidimensionalidade,
intencionalmente ou não. Para ela:
A questão que se coloca neste caso é se vamos tomá-la como parte
(que é todo) do processo formativo do curso, ou não; se vamos apenas
admitir que esta vida está pulsando entre nós e deixa-la “acontecer” ou
se vamos buscar intencionalizá-la em uma mesma totalidade
formadora, e desde um mesmo projeto de ser humano.
(CALDART,2007, p.33)
96
Ao entrarmos em contato com a experiência relatada pela professora
Roseli Caldart, nos damos conta que no caso em estudo, não houve a
preocupação com esta questão. Os passos em direção a esse caminho, no
princípio, foram dados sem a intencionalidade que houve na experiência relatada
pela professora Caldart e pelos alunos e alunas formados naquele curso.
Provavelmente por ser tudo tão novo para as professoras da ETS23, que ainda
não tinham conhecimento da educação do campo enquanto uma proposta de
educação alternativa à que se observa na maioria das escolas do meio rural.
Mesmo assim, parte pela intuição, parte pela experiência, pelos conhecimentos,
pelos diálogos, parte pela orientação pedagógica recebida, estão construindo o
seu caminho e o seu aprender nesse processo. Porém, mesmo com algumas
limitações nessa construção, os caminhos trilhados estão apresentando
resultados satisfatórios tanto em relação ao crescimento dos educandos,
educandas, professores e professoras, quanto no seio de cada assentamento.
De acordo com Carvalho et al (2007):
Podemos dizer que no decorrer do curso, o processo educativo ganha
visibilidade nos assentamentos. Os alunos trazem para a sala de aula,
conforme relato dos docentes, informações que comprovam sua
atenção mais detalhada aos problemas de saúde nos seus
assentamentos. Isso diz respeito ao cuidado e ações mais efetivas de
atenção ao meio ambiente, principalmente no que diz respeito à
melhoria da qualidade da água utilizada e ao destino do lixo e dejetos,
além da discussão acerca do uso nem sempre criterioso dos
agrotóxicos. Além disso, os alunos relatam que as experiências
adquiridas durante o curso têm influenciado efetivamente no seu
desempenho quanto às organizações locais e aos outros serviços de
alcance social.
Além dos relatos dos docentes, constatamos essa visibilidade da
importância do curso através das entrevistas, onde os educandos e educandas
relataram as modificações que vêm ocorrendo.
Inês (s) relatou-nos o seguinte:
Bom, lá no meu assentamento é... Na etapa passada, eu já levei o
aparelho de verificar pressão. Não precisou nem eu sair para as casas.
Eles iam me procurar. E falavam que seria muito bom isso aí, no caso
tem muitas pessoas hiper-tensas lá e precisa.
23
Sempre lembrando que quando nos remetemos ao corpo docente da ETS, a pesquisadora se encontra incluída.
97
Já Pedro (s), concentrou suas ações na melhoria da infra-estrutura da
comunidade, que atingiram diretamente a saúde da população.
A gente reuniu a comunidade, não tinha coleta de lixo, então através
desse curso a gente já conseguiu coleta de lixo, tanto para a
comunidade de Barra de Antas quanto para o assentamento que não
tinha.
Ele afirma que o conhecimento adquirido no curso foi o responsável para
garantir atendimento médico à sua comunidade.
Atendimento médico: o médico está vindo mensalmente, a gente teve
um abaixo assinado junto com a comunidade, incentivando, pra
reivindicar. Tem... agora recente foi feito um posto âncora na
comunidade Barra de Antas, que é pegado com o acampamento – é...
O acampamento pertence a essa comunidade –. Então a gente
conseguiu agora um posto âncora, que não tinha. O atendimento era
feito num salão, no memorial João Pedro Teixeira, que é uma área
onde a gente faz... Resgata um pouco essa história das Ligas. E é um
salão, e lá a gente montou, por iniciativa também até minha mesmo.
Assim, juntei, falei com o padre responsável, ele cedeu, e o médico
vinha e atendia o pessoal na cozinha do salão, a gente arrumava e
deixava tudo pronto, com ventilador, pia, tudo direitinho, então era o
postinho onde funcionava. Mas a gente nunca deixou de cobrar da
prefeitura que fizesse um local específico para o atendimento. Hoje
tem. Uma salinha pequena, mas tem uma areazinha coberta, tem uma
sala para fazer as fichas, gabinete médico... Que antes não tinha nada
era...complicado. A gente pegava, reunia numa sala e fazia o
atendimento. Hoje a gente já conseguiu. E foi através do, através
desse esclarecimento, dessa formação que eu estou recebendo
aqui na universidade, diante de saber, é... O conhecimento maior
no sentido dos direitos, da questão da saúde. Que antes era mais
da terra, a legislação, essa coisa toda. E hoje não. Hoje é saúde
também. É uma discussão constante. Porque a gente não pode ser só
a terra. A gente tem direito à terra, à saúde, à educação de qualidade,
a... a tudo. (Pedro – s)
Houve, no início da luta pela reforma agrária, aqueles que acreditavam
que bastava a posse legalizada da terra para que todos os problemas dos povos
camponeses estivessem solucionados. E isso foi um engano. Como afirmou
Pedro (s), os agricultores e agricultoras necessitam de terra, mas também de
saúde, educação de qualidade, entre outras coisas.
Mas, nessa fala, queremos chamar a atenção do (a) leitor(a) para uma
frase em especial: “A gente não pode ser só a terra.” Aqui o autor pode ter
utilizado o verbo ser como sinônimo de saber. Porém se admirarmos essa frase
sob outro ângulo podemos considerar que o educando está tão envolvido com as
coisas da terra, que se sente mesmo parte dela, por ser sua fonte principal de
98
vida e motivo da sua luta.
4.3 A versatilidade do povo do campo e a prática da enfermagem
“Não existe atividade humana da qual se possa excluir toda intervenção
intelectual, não se pode separar o homo faber do homo sapiens”, professou
Gramsci. (1968, p.7, grifos do autor). Ocorre que na sociedade alguns exercem a
função de intelectuais e outros não, dependendo do peso que a elaboração
mental ou o esforço físico tenham no seu processo de trabalho. No caso dos
homens e mulheres trabalhadores rurais que lidam diretamente com o plantio, o
esforço “muscular-nervoso” prevalece, fazendo com que seu trabalho não seja
considerado intelectual. “Todos os homens são intelectuais, poder-se-ia dizer
então; mas nem todos os homens desempenham na sociedade a função de
intelectuais”. (GRAMSCI, 1968, p.7). De acordo com Gramsci, os camponeses
sonham com a elevação do nível social da família, através do exercício de uma
atividade intelectual, por um de seus filhos. Lembrando que, no campo, quem
exerce até hoje a função de intelectuais são os padres e outros líderes religiosos,
professores, médicos, enfermeiros, advogados. Gramsci propôs a criação de um
novo tipo de intelectual, que se contraporia ao intelectual tradicional, mediante a
modificação da relação entre atividade intelectual e o esforço muscular-nervoso,
de forma a se obter um equilíbrio. Isto seria alcançado com a educação técnica,
onde o aluno aprenderia não só para realizar uma técnica, mas para transformar
a sociedade.
Embora a realidade camponesa tratada por Gramsci seja a européia,
especificamente italiana da primeira metade do século XX, ele dedica dois
parágrafos do livro “Os intelectuais e a organização da cultura”, à análise da
questão dos intelectuais na América do Sul e na América Central, afirmando que
àquela época a maior parte dos intelectuais era de tipo rural, ligada ao clero e
aos grandes proprietários. (GRAMSCI, 1968)
Passado quase um século desde que Gramsci realizou seu estudo, temos
um contexto diferente, provocado pelo êxodo rural, o aumento do número das
grandes indústrias, o processo de globalização, enfim, sofremos, neste período,
99
modificações sócio-político-econômicas, tecnológicas que fizeram os intelectuais
tradicionais concentrarem-se principalmente na zona urbana, havendo escassez
desse pessoal na zona rural. Em se tratando dos intelectuais orgânicos, aqueles
que pensam e formam opinião em defesa dos interesses de uma classe
específica, continuam presentes no campo os ligados ao poder hegemônico.
Porém uma ação contra-hegemônica a partir dos oprimidos com seus próprios
intelectuais (aos quais se somam os que não são camponeses, mas que
abraçaram a sua causa), vem se consolidando ao longo dos anos do século
passado, da qual as Ligas Camponesas e o MST (surgido a partir da CPT) e a
própria CPT são exemplo.
Dentre esses intelectuais, um grupo dedicou seus esforços para pensar
uma educação para o trabalhador rural que atendesse suas aspirações e as
necessidades daquele grupo de excluídos. Desse esforço um dos resultados foi
o PRONERA. É certo que ainda nos encontramos longe do ideal, mas pelo
menos a educação das pessoas jovens e adultas do campo brasileiro está
acontecendo, mesmo que com os graves problemas que descrevemos
anteriormente e sem o alcance desejado em termos quantitativos.
Na experiência que ora ocorre na ETS / CCS/ UFPB, certos traços
culturais da comunidade rural têm chamado a atenção de alguns educadores.
Principalmente porque, como afirmou Morin (2000, p. 56), “(...) cada cultura é
singular.” Mas nesse tópico enfocaremos um traço que acreditamos poder ser
mais um subsídio à reflexão acerca do ensino técnico em enfermagem: a
versatilidade humana.
Provavelmente, pelo contato mais próximo da natureza, que faz com que
o ser humano tenha uma sensação de pertencimento ao ecossistema, os povos
do campo têm maior possibilidade de utilizar sua versatilidade para lidar com os
fatos do cotidiano. A falta de especialistas também contribui para que nas
localidades distantes dos centros urbanos, as pessoas produzam soluções
alternativas, a partir do material de que dispõem no seu entorno.
Enquanto isso, a população das cidades, que foi atingida mais
diretamente pela lógica do pensamento moderno, o qual costuma provocar uma
fragmentação das atividades cotidianas, levando as pessoas a limitarem-se a
especializações que restringem suas potencialidades criativas. Isso aborta no ser
humano sua disponibilidade vital, a de pensar e agir de maneira versátil.
100
Também é possível que a dinâmica da vida urbana não lhe permita o tempo
necessário para tal. A escola, na sua forma de conduzir o ensino, foi uma das
maiores responsáveis por essa limitação imposta às pessoas. Isto não significa
que estas sejam menos versáteis. Apenas que não lhes foi permitido descobrir
que possuem essa característica também.
Em relação aos educandos e educandas do PRONERA, a versatilidade
chega a ser percebida facilmente pelas educadoras e educadores:
Sabe, eles são muito assim... são versáteis, não é? Isso ajuda muito,
entendeu? Eles sempre chegam com idéias novas, sabe? Eu senti
isso. Eles têm aquela sede de buscar, não são todos, mas uma boa
parte. Uma sede de buscar, de conhecimento. (Malva)
Nesta fala, Malva associa a versatilidade à inventividade, à curiosidade e à
busca de conhecimentos, que são, a nosso ver, características essenciais para
quem está construindo conhecimentos. Reconhecer essas características pode
ser o passo inicial para o desvelamento da maneira como os educandos e as
educandas conhecem. Isto possibilitaria, em verdade, a ampliação das
possibilidades de construção de novos saberes e novos conhecimentos.
De acordo com Paulo Freire:
O exercício da curiosidade convoca a imaginação, a intuição, as
emoções, a capacidade de conjecturar, de comparar, na busca da
perfilização do objeto ou do achado da sua razão de ser. Um ruído, por
exemplo, pode provocar minha curiosidade. Observo o espaço onde
parece que se está verificando. Aguço o ouvido. Procuro comparar
com outro ruído cuja razão de ser já conheço. Investigo melhor o
espaço. Admito hipóteses várias em torno da possível origem do ruído.
Elimino algumas até que chego a sua explicação. Satisfeita a
curiosidade, a capacidade de inquietar-me e buscar continua em pé.
Não haveria existência humana sem a abertura de nosso ser ao
mundo, sem a transitividade de nossa consciência. Quanto mais faço
essas operações com rigor metódico tanto mais me aproximo dos
achados de minha curiosidade (2005c, p.88).
Para garantir a vida, o ser humano, desde os tempos imemoriais, precisou
desenvolver e aguçar cada vez mais a curiosidade e capacidade de observação,
pois isso lhe permitiu solucionar os problemas que se colocavam no seu
caminho. Os avanços tecnológicos e científicos da humanidade não atingiram tão
diretamente aos camponeses e as camponesas quanto aos moradores da
cidade. Desta maneira os trabalhadores e trabalhadoras do campo continuam
101
tendo que transitar pela vida com mais dificuldades do que a maioria das
pessoas da zona urbana, pelo isolamento provocado pela distância dos centros
urbanos e carência de meios de transporte e comunicação mais eficientes. Por
outro lado, contam com uma maior disponibilidade de tempo e com o constante
contato com a natureza. Isto, no nosso entender, exige capacidade de
improvisação para superar as dificuldades do dia-a-dia. E esta só é acionada
através da curiosidade que se articula à imaginação, intuição, emoções e demais
capacidades que proporcionam o ato da criação.
Na disciplina Educação do Campo, ministrada à turma de suplência, o
professor buscou comprovar, junto aos seus alunos, a sua hipótese de que as
pessoas do campo possuem e utilizam-se dessa característica vital para garantir
sua sobrevivência. Assim, solicitou aos alunos que inicialmente descrevessem o
perfil de uma pessoa que eles julgavam versátil, para em seguida relatarem
como se viam em relação à versatilidade.
A aluna Elizabeth (s) assim descreveu a pessoa da comunidade:
Descrevo aqui o perfil de uma pessoa cuja considero versátil. [...]
casado, tem três filhos, com a 1ª fase do ensino fundamental
incompleta e atualmente trabalha mais, na pequena agricultura. Suas
atividades identificadas são: carpinteiro, agricultura, arquitetura,
barbeiro, pedreiro, caçador, pescador, prever os fenômenos
atmosféricos terrestres, como chuva, estrela cadente. [...] antes de
morar no assentamento ele viveu uma temporada no Rio de Janeiro e
em João Pessoa, cujo afirmou que construiu e estudo, escalou
edifícios e casas. Não deu para seguir mesmo a função por causa do
grau da escolaridade que era muito baixa.
Pessoas como a descrita acima são exemplos do que entendemos como
sendo alguém versátil. Constroem saberes que lhes permitem alcançar
condições menos árduas de vida. Mesmo não tendo a escolarização completa,
sabem transitar por vários campos do conhecimento. Embora com as limitações
próprias de quem não teve possibilidade de escolarização, a pessoa citada pela
aluna pode planejar e construir sua moradia, sua mobília, plantar seu alimento na
época apropriada, pois prevê a chuva ou sua ausência. Também pode prover
sua família da carne da caça e da pesca, se assim necessitar.
Ao seu próprio respeito, Elizabeth escreveu:
Eu, considero-me uma pessoa versátil diante das atividades que
pratiquei, pratico e tenho habilidade para tal ou acredito que sou capaz
102
de exercer com habilidade. Um fato marcante é que, achava que como
professora não seria capaz de passar com transparência
conhecimentos e me enganei, me comprometi a ensinar justamente
pelo PRONERA no programa do EJA e tenho convicção de que já
aprendi muito e minha turma também evoluiu bastante, foi uma
experiência marcante na minha vida. Mas além disso, tenho
experiência com: Literatura, filosofia, costuro, Desenho, consinho, faço
plantação, colheita, manicure, cabeleireira, artesanato, carpintaria,
decoração, bijuteria.
É essa versatilidade que permite a Elizabeth mover-se no mundo e com o
mundo. Apenas o fato de reconhecer-se versátil, de pensar sobre as próprias
potencialidades, possibilita a elevação da auto-estima, o que consideramos um
elemento essencial para lhe propiciar mais segurança.
Os educandos conseguem identificar facilmente pessoas assim. Vejamos
outro exemplo, apresentado pelo aluno Pedro (s)
[...] é uma pessoa que desempenha várias atividades na nossa
comunidade. Ela faz parte da diretoria do assentamento, trabalha no
roçado, estuda, cuida do gado, faz parte de um grupo de feirantes que
cultiva verduras sem agrotóxico e comercializa na feira na cidade de
Sobrado. Ela ainda é coordenadora da comunidade, é educadora da
turma de EJA e é voluntária da pastoral da criança. Veja bem! Tudo
isso que ela faz, inclusive participa de congressos e faz bolos, tortas,
salgados de... em casa para vender e ajudar o marido dela nas
dispesas de casa.
Anunciada (s) descreve a pessoa que considera versátil desta forma:
Ele é carpinteiro, pedreiro, encanador e trabalha na agricultura. Eu o
considero uma pessoa super inteligente, pois o mesmo faz de tudo um
pouco, eu o admiro muito; Mas que pena ele não sabe explorar essa
inteligência que o Senhor o Criador lhe concedeu. Ele gosta muito de
beber e quando bebe não faz nada.
Estes saberes apontados acima, pelos educandos, foram construídos
provavelmente fora da escola, no momento da execução da atividade em si, sob
a orientação de alguém mais experiente ou não.
De acordo com Carvalho et al (2007),
O arrogante pensamento domesticado, moderno, científico que se
consolidou a partir do século XV, cercado de certezas, leis,
determinismos, causalidades, teleologias, deixou de lado a
preocupação com a totalidade, com a intuição, com o imaginário,
passando a se concentrar no entendimento do fragmento, da parte,
supondo que, assim, seria possível atingir uma objetividade sem
parêntesis. Com isto virou as costas para o sujeito, para a incerteza e
para a complementaridade, privatizou terras e mares, considerou
103
magias e mitos como algo irracional, produto descartável criado pela
mente obscura de selvagens, ou por alucinações de civilizados
saudosos de um suposto estado de natureza no qual os homens
seriam mais felizes e íntegros.
A principal conseqüência dessa visão de mundo, no plano da
educação, acabou por consagrar, em décadas posteriores, a figura do
especialista, esse humano fechado em si mesmo, egoísta, que
descarta e desconsidera tudo aquilo que ocorre para além dos
contornos infinitamente pequenos de sua existência e de seu objeto de
pesquisa. (2002, p. 4-5)
Em educação a versatilidade tem um papel essencial, pois permite
diferentes possibilidades de construção do aprender. Quantas são as relações
que Elizabeth pode fazer entre os seus saberes culinários, de carpintaria,
cabeleireira, manicure, com a enfermagem? Acreditamos que muitas relações.
Os aprendizados que construiu numa área podem servir para que ela os utilize e
até os aprimore em outra. Cabe às professoras e aos professores descobrir
mecanismos que facilitem o estabelecimento dessas relações.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Sempre tivemos uma sensação de prazer no aprender. O prazer da
realização de descobertas. Um prazer que nos toma o corpo todo que, por
inteiro, participa desse processo. A aprendência como um amálgama de todas as
dimensões que compõem o nosso ser, repercute no corpo tanto pelas dores de
cabeça, das costas, pelas cólicas que sentimos - um desprazer -, quanto pelas
sensações maravilhosas que ocorrem no gozo do insight, onde o coração
acelera com as descobertas. Assmann (2004, p.171) busca explicar esse prazer
quando propõe resgatar a dimensão de prazerosidade “intrinsecamente ligada à
intencionalidade ou dinâmica operante dos seres vivos no sentido da sua
autopreservação
e
de
seu
auto-incremento,
individual
e
socialmente
cooperativo.” Ele afirma que o prazer é uma força que dinamiza a aprendizagem.
Assim vivi entre dores e prazeres os pouco mais de dois anos de duração
deste curso de mestrado. Como os exploradores a desbravar os novos mundos,
eu percorria, nessa pesquisa exploratória, caminhos inusitados. Traçava rotas
que, algumas vezes, conduziam a lugar nenhum. Outras vezes, esses percursos
levavam-me a confirmar as tristes constatações de tantos estudiosos da
104
educação brasileira e também a momentos de esperança na educação do
presente e do futuro, principalmente pelas características do nosso povo.
Nesse trajeto, o diálogo com meu orientador me fez ver o quanto é
necessário valorizar o jeito de ser, de fazer e a produção teórica da nossa gente
latino-americana. Isso não quer dizer que os grandes teóricos d’além mar devam
ser esquecidos. Não se trata disso. Mas somos diferentes e temos que trabalhar
considerando estas diferenças culturais, sociais, econômicas, geográficas, que
imprimem o nosso jeito de ser gente.
A escola em que trabalhávamos passou a ser nosso universo de estudo, e
conseqüentemente, para estudar o fenômeno que ali ocorria, dela acabamos nos
distanciando. Precisávamos afastar-nos, distanciarmo-nos do objeto, para tentar
conhecê-lo na sua complexidade. Sabendo que pelo dinamismo com que a vida
acontece, não é possível conhecermos tudo sobre alguma coisa, mas podemos
buscar entender como o fenômeno está ocorrendo com aquele grupo específico
e naquela situação específica.
Com essa compreensão, acreditamos que o estudo por nós desenvolvido
evidenciou aspectos importantes do processo de construção do Curso de
formação de técnicos de enfermagem e suplência do ensino médio, dentro das
categorias que nós elegemos, atentas aos caminhos desenhados pela
coordenação pedagógica, pelo corpo docente e discente nas tentativas de
superação das dificuldades e dos desafios pedagógicos e didáticos que se lhes
apresentaram no transcurso da experiência. Assim, tentamos apontar algumas
possibilidades e alguns limites que podem ser alargados de acordo com o desejo
das pessoas envolvidas no projeto, no sentido de buscar garantir o objetivo do
Programa de “Fortalecer o mundo rural como território de vida em todas as suas
dimensões: econômicas, sociais, ambientais, políticas, culturais e éticas” (2004,
mimeo). Além disso, atentamos para as aprendizagens docentes, que deverão
ter repercussão na sua atuação junto às turmas do curso regular. A docência
necessariamente exige das professoras uma versatilidade que lhes possibilite
atuar de forma a atender todas as dimensões do processo pedagógico. Embora
isso nem sempre seja destacado nos meios acadêmicos, pensamos que essa
característica vital foi importante na adaptação das educadoras às exigências do
PRONERA. Consideramos que as contribuições que a ETS tem dado ao debate
sobre o Programa Nacional da Reforma Agrária, também foram valiosas para a
105
consolidação do mesmo.
A partir do levantamento e tratamento dos dados, o estudo demonstrou
que há certa influência da experiência com o PRONERA no processo de
reformulação do PPP que se instalou na ETS, principalmente no que diz respeito
à concretização de um trabalho mais interdisciplinar. Outra questão relevante é o
fato de que a problematização tornou-se um objetivo a ser perseguido pelas
educadoras, quando constataram que de fato não estavam favorecendo a
problematização dos conteúdos de forma a conduzir os estudantes a um pensar
crítico. A procura, por parte das educadoras, por cursos de atualização na área
de metodologia problematizadora é um exemplo disto. Ainda em relação ao PPP,
observamos a necessidade de atentarmos para a explicitação da versatilidade
dos educandos e educandas, sejam estes do campo ou da cidade, pois o Projeto
Político-pedagógico considera que a formação do aluno e da aluna deve centrarse nas capacidades de observação, articulação, reflexão, análise, criação,
reconhecimento de valores, julgamento, comunicação, convívio, cooperação,
decisão e ação, o que exige uma atuação versátil. Assim, acreditamos que a
partir do momento em que a ETS concluir esse processo de transição, com a
atualização do seu PPP dando o lugar devido à problematização tenderá a tratar
o tema da versatilidade dos educandos e educandas com a devida atenção.
Diante do que foi visto, acreditamos ser interessante aprofundarmos os
conhecimentos acerca dos reflexos do Curso de formação de técnicos de
enfermagem e suplência do ensino médio nas comunidades e na Escola Técnica
de Saúde, para identificarmos até que ponto a experiência com o PRONERA
proporcionou o desejo de transformação das práticas pedagógicas baseadas no
modelo hospitalocêntrico e conteudista que prevalece na escola, em práticas
voltadas para uma visão mais coletiva e preventiva, acolhendo os alunos e
alunas enquanto autores de saberes e de conhecimentos.
106
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Humanidade. Universidade Católica de Brasília. Vol. I, n. 2, nov. 2004. Disponível
em: <http://www.humanitates.ucb.br/2/maturana.htm> Acesso em: 15 de out.
2007.
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APÊNDICES
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APÊNDICE A – Roteiro de Entrevista Semi-estruturada
(alunos)
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ROTEIRO PARA ENTREVISTA SEMI-ESTRUTURADA (ALUNOS)
OBJETIVO: Compreender o processo de implantação do curso técnico de
enfermagem e suplência do Ensino Médio/ PRONERA, na Escola Técnica de
Saúde, com foco nas relações docentes e discentes.
TEMÁTICAS: 01- Relação com a terra; 02 - Motivação para o curso; 03 – Troca
de saberes; 04 -Teoria e prática de enfermagem; 05 – Dificuldades na lectoescrita.
O1. RELAÇÃO COM A TERRA:
01.1 – Que tipo de trabalho exerce?
01.2 – Como se deu o processo de assentamento das pessoas da sua
comunidade?
01.3 –Você ou seus familiares participaram diretamente da luta pela posse da
terra?
01.4 – Você já morava no local antes da organização do assentamento?
02. MOTIVAÇÃO PARA O CURSO:
02.1 - Como tomou conhecimento do curso?
02.2 – Quais os motivos que te fizeram matricular no curso?
02.3 – Qual o principal motivo para você querer ser técnico(a) de enfermagem?
02.4 – Pretende permanecer trabalhando na comunidade, ou tentará emprego
em outras localidades? O que pretende fazer ao concluir o curso?
03. TROCA DE SABERES:
03.1 – Como você vê a troca de saberes na escola?
03.2 – Qual o perfil ideal de professor(a) para você?
03.3 – Que tipo de atividades você considera que facilitam mais sua
aprendizagem?
04. TEORIA E PRÁTICA DE ENFERMAGEM:
04.1 – Você já teve a oportunidade de estagiar?
04.2 – Como você se sentiu ao manusear e utilizar instrumentos de
enfermagem?
04.3 – Quando você estava realizando um procedimento, conseguia relacionar
com a teoria?
05 – DIFICULDADES NA LECTO-ESCRITA:
05.1 – Como você vê a relação entre a dificuldade na leitura e na escrita com a
aprendizagem dos conteúdos de enfermagem?
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APÊNDICE B – Roteiro para entrevista semiestruturada (professores)
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ROTEIRO PARA ENTREVISTA SEMI-ESTRUTURADA (professores)
OBJETIVO: Compreender o processo de implantação do curso técnico de
enfermagem e suplência do Ensino Médio/ PRONERA, na Escola Técnica de
Saúde, com foco nas relações docentes e discentes.
TEMÁTICAS: 01. Diferenças Culturais; Pedagogia da Alternância; Troca de
Saberes.
01 – DIFERENÇAS CULTURAIS:
01.1 – Você percebe alguma diferença entre os alunos do curso regular da
escola técnica e os alunos e alunas do PRONERA?
01.2 – O que mais lhe chama atenção no grupo do PRONERA?
01.3 – Como você vê o desempenho dos alunos do PRONERA nas atividades
práticas e nas aulas teóricas?
02 – PEDAGOGIA DA ALTERNÂNCIA:
02.1 – Como você viu o trabalho em alternância?
02.2 – Sentiu alguma dificuldade ao estabelecer atividades para o tempocomunidade?
02.3 – Você acredita que um bom aproveitamento do tempo-comunidade?
03 – TROCA DE SABERES:
03.1 – Como você vê os saberes e conhecimentos trazidos pelos educandos e
educandas do PRONERA?
03.2 – Você acredita na possibilidade de haver uma troca de saberes entre você
e eles?
03.3 – O que mais lhe chama atenção nesses alunos e alunas?
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ANEXOS
118
ANEXO A – Atividade do tempo-comunidade - Matemática
119
ANEXO B - Atividade do tempo-comunidade – Língua
Portuguesa
120
ANEXO C – Atividade do tempo-comunidade – Fundamentos
de Enfermagem I
121
ANEXO D – Atividade do tempo-comunidade – Enfermagem
em Doenças Infecto-Contagiosas

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