A pesca na cidade de São Paulo, 1890-1940

Transcrição

A pesca na cidade de São Paulo, 1890-1940
A pesca na cidade de São Paulo, 1890-1940
Janes Jorge
Professor de História do Brasil na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, bacharel, mestre e
doutor em História pela Universidade de São Paulo. Contato: [email protected]
Uma passagem divertida ocorrida na várzea do rio Tietê no início do século XX,
permite entrever a importância da pesca na vida dos moradores da cidade de São Paulo
entre 1890 e 1940. Ao invés de usarem vara e anzol, o menino Jacob Penteado e seus
vizinhos preferiam “esgotar lagoas que se formavam depois das enchentes nas várzeas”,
formando uma “espécie de dique em sua volta, e todos, armados de latas e latões”, atiravam
a água para fora até que a lagoa secasse. Então, “era só vasculhar, com um peneira ou com
uma pá, o leito escuro e lamacento e o peixe vinha aos montes”. Em uma dessas pescarias
coletivas realizadas no proletário bairro do Belenzinho, um italiano chamado Clemente
“rejubilou-se todo, ao apanhar uma cobra d’água, bicho inofensivo, muito encontradiço nos
lagos e brejos”:
- Ho trovato un’anguilla! – gritou orgulhoso, julgando haver encontrado uma
enguia.
Quando lhe disseram que era uma cobra d’água, atirou-a para longe. Não
ganhou para o susto, nem falou mais, naquele dia. (PENTEADO, 1962, p. 164)
Como certas cobra d’águas, embora inofensivas, excretam fezes e outras substâncias
quando em perigo, talvez o susto do italiano não se devesse apenas ao desapontamento por
não se tratar de uma enguia. Porém isso é impossível descobrir pelo relato de Jacob, que faz
parte de Belènzinho 1910, livro de memórias publicado pela primeira vez em 1962. Mas, o
importante é notar como Clemente, quem sabe recém-chegado ao Brasil, aprendia a
conhecer comunitariamente as espécies da bacia do Alto Tietê e as maneiras de apanhá-las o que era importantíssimo em uma cidade em que a maioria da população era pobre e
dependia, muitas vezes, da pesca, da caça e da coleta para sobreviver.
Outra forma de pescaria praticada na época das cheias dos rios paulistanos foi
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registrada por um dos fundadores da cidade, o padre José de Anchieta, em meados do
século XVI. Em uma de suas cartas, ele contava que, com as chuvas da primavera e
especialmente do verão, os rios cresciam e inundavam os campos. Por “essa ocasião sai
do leito do rio uma grande multidão de peixes, e se deixam apanhar com muita
facilidade”, fosse em redes ou mesmo com as mãos, quando aprisionados em poças
pouco profundas (Centenário da Descoberta do Brasil, 1900, p. 10). Os que não eram
recolhidos pelos pescadores, mas tampouco conseguiam voltar ao leito dos rios quando as
águas refluíam, ficavam expostos ao sol a secar. Daí a denominação Piratininga - na
língua dos antigos habitantes tupis, “peixe-seco” - ser empregada outrora para designar
São Paulo.
Após vários dias de chuva prolongada na cidade, o naturalista Rodolpho Ihering
presenciou a mesma modalidade de pesca relatada por Anchieta, mas cerca de 350 anos
depois do jesuíta! Na década de 1910, moradores das “várzeas alagadas do rio
Tamanduateí, entre as estações de Ipiranga e São Caetano”, cercavam os peixes que
haviam saído do rio para os campos alagados para desovar. “Esbarrando contra as redes e
tapumes, não podiam as tabaranas voltar ao leito do rio e assim a pescaria rendeu
algumas centenas de quilos de peixe” (IHERING, p.76-7).
Aparentemente a pesca das tabaranas nas várzeas, depois que elas desovavam,
garantia que uma nova geração de peixes repovoasse o rio, substituindo as que fossem
capturadas. Mas como saber se não se apanhavam os peixes antes da desova? As tabaranas
eram os maiores peixes da bacia do Alto Tietê: podiam alcançar 45 cm de comprimento e o
peso de 400 gramas. O Tietê e seus afluentes em São Paulo não eram habitat de peixes
grandes. Estes apareciam no Tietê, mas depois de Salto de Itu, onde se podia pescar o
pintado, o jaú e o dourado, cujo peso podia se contar em quilos.
A expansão dos cafezais no interior paulista, que se intensificou no final do século
XIX, fez com que São Paulo iniciasse um processo de crescimento econômico e
demográfico ao mesmo tempo surpreendente e atemorizante para os contemporâneos.
Assim, integrou-se ao complexo agro-exportador cafeeiro como centro financeiro,
mercantil e ferroviário, o que desencadeou um intenso processo de urbanização e
crescimento demográfico. A cidade, que em 1872 possuía 31 mil habitantes, passou a
contar 239 mil em 1900. No ano de 1920, quando São Paulo já se consolidara como
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importante pólo industrial do país, eram 579 mil os moradores da capital paulista, número
que em 1940 atingiria a marca de 1.326.261 pessoas. São Paulo se transformou numa das
maiores aglomerações urbanas do mundo e esse processo inexoravelmente afetaria os rios e
córregos da região, sua fauna e flora.
Contudo, nas últimas décadas do século XIX e no início do século XX, o
desenvolvimento da economia citadina era incapaz de propiciar os postos de trabalho
necessários para uma população que crescia em ritmo acelerado, vinda de todas as partes do
Brasil e do mundo. Os trabalhadores com emprego fixo eram minoritários e o nível salarial,
em média, era baixo. O temor de perder o emprego estava sempre à espreita, pois a
demissão podia se dar a qualquer momento e ocorrer em massa diante de certas
conjunturas. Os operários das fábricas, entre eles numerosas mulheres e crianças, recebiam,
em geral, vencimentos baixos, que mal davam para alimentar uma família, em jornadas de
trabalho de 10 horas, seis dias por semana. Havia sazonalidade de muitas atividades
econômicas e a taxa de desemprego era alta. Recorria-se a todo tipo de expedientes para
sobreviver. A repressão sistemática imposta por patrões e pelo governo aos trabalhadores,
às suas associações de ajuda mútua e sindicatos, dificultava a luta por aumentos salariais e
melhores condições de trabalho, o que, somado a um sistema político oligárquico, fechado
à participação dos cidadãos, impedia uma distribuição de renda mais justa, mesmo que a
longo prazo. A economia do país, submetida ao mercado mundial do café e seus agentes
brasileiros, era sacudida por crises que assombravam os moradores, assim como a alta do
custo de vida e a falta de moradias, que elevava o preço do aluguel fortemente (PINTO,
1994, p. 35-8, 50).
Foi nas várzeas e terras baixas, em meio a fábricas e ferrovias, que grande parte das
classes populares de São Paulo foi morar, embora fossem alocados igualmente em
loteamentos distantes; em ambos os casos, em terras de menor valor no mercado
imobiliário, com mínima infra-estrutura (PRADO JR, 1966, p. 41, 130). Assim, havia uma
grande população pobre e crescente, que morava junto a rios e incontáveis córregos,
combinação que ajuda a entender porque se pescava tanto em São Paulo. Na verdade, como
as áreas urbanizadas da cidade se mesclavam não só com rios e córregos, mas também com
lagoas, várzeas, campos, matas, zonas agrícolas e pastoris ou gigantescos terrenos baldios e
barrancos, não só a pesca era comum, como igualmente a caça, a coleta de frutos e de
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plantas alimentares ou medicinais, o corte e a cata de lenha.
A pesca é presença constante nas lembranças dos moradores da São Paulo da
primeira metade do século XX. É claro que nem todos pescavam por necessidade, alguns o
faziam por lazer, mas a maioria por ambos os motivos. Imagem marcante, para os lados do
bairro da Penha, na confluência do Tietê com o córrego Aricanduva, era a de mulheres
negras de saias sungadas, com uma bolsa de pano pendurada e peneira na mão, mariscando
pela vegetação ribeirinha. Na vazante, apanhava-se camarões no Tietê, empurrando-se uma
peneira relva acima, no leito do rio, para depois levantá-la rapidamente. Debaixo de pedras,
sapatos, pedaços de paus e outras tranqueiras abandonadas às margens do rio, capturavamse caranguejos. As traíras eram pegas de preferência nas lagoas que se formavam depois
das enchentes. Mas podiam ser apanhadas com um arpão, na alvorada, em meio à
vegetação ribeirinha.
Muitos pescadores improvisavam suas varas com galhos arrancados à beira do rio e
faziam de alfinetes retorcidos os anzóis. Usavam como isca minhocas ou miolo de pão.
Podiam simplesmente utilizar linhadas, que dispensavam o uso de vara, ainda mais se
fossem jogadas a partir de barcos, então numerosos nos rios paulistanos. Apanhava-se
lambaris, guarus, traguiras, piabas, tabaranas, trairões, bagres, mandis e cascudos. Até a
década de 40 não era raro homens vararem a noite às margens do Tietê pescando, de
preferência longe das regiões mais densamente ocupadas.
No rio Pinheiros e seus afluentes também havia fartura de peixe. Algumas pessoas
chegavam à tarde e permaneciam pescando até ao anoitecer, utilizando varas de bambu.
Nos anos 1920, jovens com enxada, a lembrar tamanduás, atacavam os numerosos
cupinzeiros em busca de iscas e procuravam capturar siriris, as fêmeas aladas do cupim,
consideradas ideais para se fisgar lambaris. O córrego do Pirajuçara era tido por um bom
lugar para se pegar bagres.1 No rio Grande, um dos formadores do Pinheiros, a construção
da barragem, iniciada em 1927, não alterou os costumes pesqueiros da população
ribeirinha, já que algumas espécies se adaptaram à represa. Ali, dentre outras técnicas,
utilizava-se a pesca com facão ou fisga, isso nas partes onde a água era rasa. Um antigo
morador da região conta que, em meados dos anos de 1930, pegava-se principalmente
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“Eles juram que pescaram no Pinheiros”. Disponível em <www.jt.com.br>; 20/02/2000.
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traíras e carás Mussolini – assim chamados devido a uma suposta semelhança entre a
fisionomia do peixe e a do ditador fascista italiano.
Nos primeiros anos do século XX, principalmente em pontos ermos no Tietê, a
montante de São Miguel e de “Conceição dos Garulhos” e a jusante da Lapa, praticava-se a
destruidora pesca com dinamite, que, embora proibida pelas autoridades, era difícil de ser
coibida. No período, além da dinamite, era vedada a captura de peixes com raiz de timbó e
outras drogas venenosas, forma de pescar que também remontava aos tempos coloniais.
Sérgio Buarque de Holanda assinala que, já em 1591, a Câmara de São Paulo proibira em
todo o curso do Tamanduateí pescarias com tingui, uma das plantas ictiotóxicas então
usadas. Tal proibição, em 1598, estendeu-se a todos os “ribeiros e rios caudais existentes
dentro da vila”, para evitar a destruição inútil de peixes. Acreditava-se que o acúmulo de
peixes arruinados corrompia a atmosfera e causava epidemias. Na época, boa parte dos
peixes apanhados, após ficarem atordoados pelo despejo das drogas na água, era
abandonada nas margens dos rios - desperdício que os indígenas não cometiam. Isso porque
portugueses e mamelucos não conseguiam consumir todo o pescado no local e comumente
desprezavam os processos de conservação tradicionalmente empregados pelos nativos,
como o moquém e a farinha de peixe ou piracuí. Por outro lado, não podiam adotar os
métodos de conservação utilizados em Portugal, baseados no uso do sal, em razão de sua
escassez na colônia.2
Na primeira metade do século XX, nem todo peixe capturado ia parar no prato do
pescador ou de sua família, mas não só devido ao desperdício. Drauzio Varella conta que
na década de 1940, no bairro do Brás, ele e seus amigos de infância caminhavam até o leito
do Tietê onde, pendurados nos barrancos, apanhavam com peneiras peixinhos que nadavam
próximos à superfície para depois levá-los vivos para casa (VARELLA, 2000). O mesmo
faziam os meninos no rio Pinheiros. Por outro lado, quem tivesse sorte em sua pescaria nos
rios, córregos, lagoas ou represas, podia vender o pequeno excedente conseguido no
movimentado comércio da cidade. Alguns pescavam mesmo com vistas a esse mercado e
possuíam barcos de pesca registrados na prefeitura, mas outros recorriam a ele
eventualmente. No centro de São Paulo era possível encontrar caipiras vendendo bagres,
2
Relatório de 1904 apresentado a Câmara Municipal de São Paulo pelo prefeito Dr. Antonio da Silva Prado.
São Paulo: Typographia. Vanorden & CO., 1905, p. 25.
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Caminhos e Fronteiras. São Paulo: Companhia das Letras, 1994, p. 71.
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enfiados pela guelra num cipó. A culinária paulistana sabia aproveitar bem o que podia ser
apanhado em rios, córregos e lagoas. Em meados do século XIX, quitutes como empanadas
de farinha de milho com piquiras ou cuscuz de bagre e camarão de água doce eram
vendidos por mulheres negras e brancas nas ruas ou em pequenos estabelecimentos
comerciais (MARINS, 1999, p. 211-2).
Ao mesmo tempo em que a urbanização ampliava o número de pescadores em São
Paulo, contribuía para a extinção da pesca. Havia a captura excessiva, praticada por uma
população crescente e o emprego de métodos destruidores como a dinamite. Além disso,
grandes transformações ambientais na bacia do Alto Tietê, provocadas pelo avanço da
urbanização predatória, devastavam a ictiofauna. A implantação do sistema hidrelétrico, o
corte das matas ciliares e a ocupação das várzeas afetavam a alimentação, o deslocamento e
a reprodução de muitas espécies. O esgoto doméstico e industrial contaminava as águas e
consumia seu oxigênio. A partir dos anos 1940, era evidente que os peixes desapareciam
dos rios da cidade. Na verdade, nos mananciais destinados ao abastecimento público, as
grandes represas, ainda hoje se realizam pescarias, mas sem a fartura e diversidade de
antes. Mas como esses mananciais se encontram em processo de degradação, não é possível
saber se as pescarias paulistanas, que atravessaram séculos, terão futuro nesse nosso século
XXI, para além do caricatural “pesque e pague”.
Bibliografia
“Eles juram que pescaram no Pinheiros”. Disponível em <www.jt.com.br>. Acesso em: 20
fev. 2000.
Centenário da Descoberta do Brasil. “Carta fazendo a descripção das inúmeras coisas
naturaes, que se encontram na provincia de São Vicente hoje São Paulo seguida de outras
cartas inéditas escritas da Bahia pelo venerável Padre José de Anchieta. Copiadas do
Arquivo da Companhia de Jesus”. Traduzidas do Latim pelo professor João Vieria de
Almeida com um prefácio de pelo Dr. Augusto Cesar de Miranda Azevedo. São Paulo:
Casa Eclectica, 1900.
DEAN, Warren. A industrialização de São Paulo (1880-1945). São Paulo: Bertrand, 1991.
6
DIAS, Maria Odila Leite da Silva. Quotidiano e poder em S. Paulo no século XIX,
Brasiliense, 1984.
DICK, Maria Vicentina P. A. A dinâmica dos nomes na cidade de São Paulo 1554-1897.
São Paulo: AnnaBlume, 1996.
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Caminhos e Fronteiras. São Paulo: Companhia das
Letras, 1994.
IHERING, Rodolpho Von. Da vida dos Peixes. Ensaios e Scenas da Pescaria. São Paulo:
Melhoramentos de São Paulo, s/d.
MARINS, Paulo César Garcez. “Através da Rótula Sociedade e Arquitetura Urbana no
Brasil Secs. XVII-XX”. São Paulo: Tese de Doutorado, Depto. de História, FFLCH-USP,
1999.
PENTEADO, Jacob. Belènzinho 1910 (Retrato de uma época). São Paulo: Martins Fontes,
1962.
PINTO, Mario Inez Machado Borges. Cotidiano e Sobrevivência. A vida do trabalhador
pobre na cidade de São Paulo (1890-1914). São Paulo: Edusp, 1994.
ROLNIK, Raquel. A cidade e a Lei: Legislação, Política Urbana e Territórios na Cidade de
São Paulo. São Paulo: Studio Nobel/FAPESP, 1997.
PRADO JR, Caio. Evolução Política do Brasil e Outros Estudos. São Paulo: Brasiliense,
1966.
Relatório de 1904 apresentado a Câmara Municipal de São Paulo pelo prefeito Dr.
Antonio da Silva Prado. São Paulo: Typographia. Vanorden & CO., 1905.
SMITH, Welber Senteio. Os peixes do rio Sorocaba. Sorocaba: TCM-Comunicação, 2003.
VARELLA, Drauzio. Nas ruas do Brás. São Paulo: Cia das Letrinhas, 2000.
7
Represa do Ipiranga. (APESP/ICO – SRAE 001.P.08.02)
Passagem de canos sobre o rio Tietê. (APESP/ICO – SRAE 001.P.10.06)
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Planta cadastral planimétrica da Companhia Cantareira de Águas e Esgotos no ano de
1881. (APESP/ICO - Mapoteca 06.01.09)
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