Memória literária de um lugar chamado Riacho Doce
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Memória literária de um lugar chamado Riacho Doce
Memória literária de um lugar chamado Riacho Doce Resgatando a memória do lugar e sua importância para a recuperação da interação entre jovens e idosos Rosilene Silva de Oliveira 1. Justificativa Os atores sociais dessa proposta pedagógica serão os alunos do 8º- ano do Ensino Fundamental da Escola Municipal Santo Amaro e os moradores idosos e antigos da comunidade rural de Riacho Doce, no município de Marituba, Pará. Ao iniciar minhas atividades nessa escola, que ainda preserva algumas caracte rísticas da vida rural, percebi que os alunos valorizam muito as histórias contadas pelos mais velhos sobre a fundação da localidade e os modos de vida da comunidade. Aproveitando a prática de letramento local da esfera cotidiana, procurei desenvolver um projeto que os envolvessem nessa experiência. Assim, surgiu o projeto “Memória literária de um lugar chamado Riacho Doce – Resgatando a memória do lugar e sua importância para a recuperação da interação entre jovens e idosos”, que, a partir de uma sequência de atividades cujo início consiste na escuta dos relatos de lembranças dessas pessoas, por meio de depoimentos, oferecerá aos alunos a oportunidade de produzir textos com um embasamento real com o tema “O ontem e o hoje através de olhares experientes”. Os alunos mostraram bastante interesse em desenvolver o projeto, pois eles já têm conhecimento sobre os acontecimentos e histórias contadas a respeito da fundação da localidade, especialmente quando se verifica a participação de moradores antigos da região. 1 Com esse projeto, os alunos poderão conviver e trocar experiências com os mais velhos e assim valorizar a coletividade passada, estreitando os laços e sentimentos de pertencimento que ligam gerações novas e antigas de um lugar. A sociedade contemporânea, infelizmente, não valoriza o saber histórico das pessoas idosas de uma comunidade. Segundo Frochtengarten (2005, p. 370), podemos afirmar: A contemporaneidade entre a formulação do conceito de desenraizamento e as reflexões sobre o decaimento da narração não é casual. As circunstâncias que ameaçam as raízes da participação dos homens na vida comunitária igualmente ferem as modalidades de relacionamento apoiadas sobre a narração. São condições que prejudicam a memória social. Objetivo O objetivo desse projeto é a valorização das experiências vividas por pessoas idosas da comunidade, que por meio da exposição oral oferecem ensinamentos, saberes e culturas e através dessa ação desenvolvem as práticas de oralidade, leitura e escrita, proporcionando interação entre leitor e texto e interesse pela produção textual do gênero Memórias literárias, com a colaboração da Escola Municipal Santo Amaro e o envolvimento da comunidade do Riacho Doce. Objetivos específicos • valorizar a experiência de pessoas idosas; • compreender o gênero textual Memórias literárias; • analisar as marcas linguísticas que articulam esse gênero textual; • identificar o uso de verbos e palavras que remetem ao passado; • produzir textos do referido gênero. 2. Fundamentação teórica A recriação do passado da comunidade de Riacho Doce será realizada por pessoas idosas e trará à luz relatos de memória. Como afirma Bosi (2012, p. 20), “o passado conserva-se e, além de conservar-se, atua no presente, mas não de forma homogênea”. Cada indivíduo irá construir essa memória independentemente, com significações para ressurreições das lembranças de um passado que marcou a história da construção de um lugar. Segundo Parreiras (2009, p. 46), “o trabalho com memória na sala de aula é de extrema importância para o aluno. A memória traz a identidade de cada um, da família, do bairro. Ao lidarmos com relatos do passado, tomamos contato com a nossa própria memória”. 2 É através da memória que nos colocamos ao longo de nossa existência. O trabalho de memória em sala de aula é muito bem-vindo, pois desencadeará em cada aluno a busca de sua própria identidade, principalmente quando essa memória é trazida pelos relatos dos mais velhos. Dentro deste contexto, aponta Bosi (2012, p. 144), “o idoso também não é um ser inútil, sem participação ativa na sociedade, ele produz conhecimento e reproduz experiências. A linguagem fluida, sem rebuscamento, atinge o imaginário do leitor”. E segundo Parreiras (2009, p. 147), a oralidade deixa marcas nas narrativas que trazem linguagem bastante coloquial, próxima a nossa fala. A ancestralidade, o tempo subjetivo interno dos sentimentos. O tempo como reconstrução do presente. A construção do presente pelas vias do imaginário do passado. São questões pertinentes de serem trabalhadas entre educadores e com alunos. Ao considerarmos a língua no seu aspecto histórico e social, a atividade de oralidade deve ocorrer em momentos reais do uso da fala. O professor deve promover o uso da oralidade de maneira que o educando perceba sua utilidade em diferentes situações. Partindo do pressuposto de que a fala é um dos aspectos do conhecimento relativo às variedades linguísticas e se dá em diferentes construções da língua, é primordial que sejam desenvolvidas em sala de aula atividades que favoreçam as habilidades do falar e do ouvir. Saber escutar com respeito os mais diferentes tipos de interlocutor é fundamental. Se não houver ouvinte, a interação não acontece. Logo, é preciso desenvolver nos alunos a competência de saber escutar o outro, o que favorece, inclusive, a convivência social. (Porto, 2009, p. 23) À medida que damos importância ao uso da oralidade em sala de aula, devemos estendê-la aos narradores. Ainda de acordo com Bosi (2012, p. 85), “a arte da narração não está confinada nos livros, seu veio épico é oral. O narrador tira o que narra da própria experiência e a transforma em experiência dos que o escutam”. Dessas experiências nasce o entrelaçamento do passado com o presente, com elos marcantes de tempos embasados nas recordações de um narrador que envolverá um ouvinte prestes a se desvencilhar de seu presente na busca da reconstrução de um passado histórico. Entre o ouvinte e o narrador nasce uma relação baseada no interesse comum em conservar o narrado que deve poder ser reproduzido. A memória é a faculdade épica por excelência. Não se pode perder nos desertos dos tempos uma só gota da água irisada que, nômades, passamos do côncavo de uma para outra mão. 3 A história deve reproduzir-se de geração a geração, gerar muitas outras, cujos fios se cruzem, prolongando o original, puxados por outros dedos. Quando Scheerazade, contava, cada episódio gerava em sua alma uma história nova, era a memória épica vencendo a morte em mil e uma noites. (Bosi, 2012, p. 90) O reconhecimento da cultura de um lugar terá eixo permanente dentro do espaço escolar, a partir do momento em que a proposta da diversidade baseia-se no respeito e na valorização do ser humano, em que todos têm o direito a uma identidade, à liberdade de expressão e à valorização de crenças e valores, a um modo de vida, a opções e pontos de vista. A escrita entrará como forma de registro de todo o material ouvido ou relatado. As produções da escrita terão função social e serão apreciadas por outras pessoas. Como diz Ângela B. Kleiman (2010, p. 378), “uma perspectiva escolar do ensino da língua escrita pode, no entanto, estar filiada a uma perspectiva sociocultural de letramento. Nesse caso, a abordagem antropológica, com observação etnográfica, própria dos estudos de letramento, é posta a serviço da observação...”. Reitero o que diz Fernando Frochtengarten (2005, p. 368): “Enfatizando o caráter coletivo da memória, diríamos que seu suporte social é doado por grupos pregressos e atuais, especialmente em condições promotoras de uma participação enraizada dos homens no meio coletivo. São circunstâncias em que o passado de um homem pode mais vigorosamente ser vivido como o passado do grupo”. Dessa forma, deve-se apresentar ao aluno a estrutura linguística de um texto escrito com base em elementos gramaticais (pronomes, advérbios, conjunções etc.), de que forma que as partes se tornam coesivas e coerentes. Como aponta Porto (2009, p. 29), “tendo a compreensão de que a língua oral e a língua escrita são duas modalidades, o professor deverá criar situações para que o aluno se aproprie das estruturas da variedade culta sem fazer disso o cerne de seu trabalho”. 3. Pré-projeto de práticas de letramento em sala de aula 3.1. Discussão dos aspectos culturais e sociolinguísticos implicados no projeto A língua é uma das formas de linguagem, ela é produzida dentro de contextos sociais e culturais e aí desenvolvida, pessoas de diferentes grupos sociais empregam-na de modo diferente, em momentos históricos e espaços geográficos diversos. A maioria da população brasileira fala português; nossa língua apresenta alto grau de variedade, ela varia no tempo, no espaço. A proposta da diversidade baseia-se no respeito e na valorização do ser humano, em que todos tenham liberdade de expressão. Com esse pensamento os alunos farão contatos com moradores da localidade, conversarão e recolherão relatos e acontecimentos importantes para o registro dos textos de memórias literárias. 4 A partir dos relatos ouvidos serão abordados com os alunos aspectos pertinentes à fala, e à maneira de pensar, ou seja, como eles se posicionam diante dos fatos. Frisar a importância da escola também é importante, pois muitos idosos não foram à escola e aqueles que tiveram oportunidade de frequentá-la poderão apresentar testemunhos das maneiras e comportamentos da escola de seu tempo. Desse feito poderemos tirar muitas experiências e conclusões em relação ao comportamento, respeito e valorização dos mais velhos em outras épocas. A multiplicidade de cultura permite, hoje, a mescla do erudito com o popular. Para tanto, é preciso ampliar os nossos olhares para fazer acontecer o diálogo. Toda essa prática acenará para a importância do enquadramento dos letramentos críticos, como afirma Roxane Rojo e Eduardo Moura no livro Multiletramento na escola: “Essas práticas buscam interpretar os contextos sociais e culturais de circulação e produção desses enunciados. Essa proposta didática é de grande interesse e condiz com os princípios de pluralidade cultural e de diversidade de linguagens envolvidos no conceito de multiletramento”. 3.2. Estratégias para promover a motivação e a adesão dos alunos ao projeto Num primeiro momento apresentar aos alunos a variedade de textos referentes ao gênero literário: diário, relato histórico, relato de experiência, relato de memória, texto biográfico e autobiográfico. Em seguida, buscar informações através de objetos antigos presentes na comunidade: fotos, roupas, objetos etc.; nesse momento, se realizará uma pequena exposição desses objetos e a história de cada um deles, para que educandos tenham oportunidade de perceber o envolvimento emocional dos donos dos objetos por meio de seus relatos. No segundo momento apresentarei os elementos das narrativas: narrador, personagens, tempo psicológico e cronológico, espaço, enredo, clímax, desfecho etc., bem como a importância dos tempos verbais, em especial o pretérito, na construção do passado e o uso adequado da pontuação, que será observado no decorrer da escrita e reescrita dos alunos. E, no terceiro momento, os alunos convidarão pessoas idosas da comunidade para um bate-papo, no qual conversarão a respeito dos tempos passados e da história da comunidade. Esse momento servirá para a busca de reminiscências afetivas do lugar para a construção do texto de memórias literárias. A roda de conversa será feita por meio de perguntas a respeito de lazer, festas, meios de transporte utilizados, meios de comunicação, modos de vestir, a escola, a origem da comunidade, o morador mais velho, a primeira casa, as primeiras famílias... enfim, aspectos da comunidade. A partir daí os alunos produzirão os textos que serão analisados e preparados para a reescrita. 5 O quarto momento será a ocasião de reunir os textos para a construção de um livro de história da comunidade de Riacho Doce, cujo título será o mesmo do projeto. Esse momento será realizado numa tarde de contação de histórias e o lançamento do livro contará com a presença dos autores e realizadores: idosos e alunos da Escola Santo Amaro. Haverá também uma exposição de fotos e objetos antigos, bem como das etapas de construção do livro. 3.3. Exemplos de textos que serão lidos e analisados para ampliação do conhecimento dos gêneros literários • Coletânea de textos do gênero Memórias literárias da coleção da Olimpíada de Língua Portuguesa Escrevendo o Futuro – Se bem me lembro... • Texto de ficção – Manuscrito encontrado numa garrafa, de Edgar Allan Poe. • Texto poético – “Profundamente”, de Manuel Bandeira. • Literatura de cordel – “A realidade da vida”, de Patativa do Assaré. • Estórias da Casa Velha da Ponte – Cora Coralina. 3.4. Processo de produção dos textos de Memórias literárias A produção escrita dos alunos seguirá a sequência didática apresentada em Se bem me lembro... Caderno do Professor – Orientação para produção de textos, da Coleção da Olimpíada de Língua Portuguesa Escrevendo o Futuro. 3.5. Eventos de letramento decorrentes do trabalho dentro e/ou fora do ambiente escolar Para que os alunos possam estabelecer uma relação de comunicação com os idosos da comunidade será necessário a ida dos alunos à casa deles para convidá-los a comparecer à escola e para que haja uma aproximação entre eles, e num segundo momento o contato direto na roda de conversa em sala de aula. Outros eventos ocorrerão durante a produção dos textos dos alunos, que resultará na confecção de um livro para toda a comunidade escolar, que será a culminância. Neste evento todos os alunos apresentarão suas produções. 3.6. Avaliação A avaliação faz parte de um processo contínuo e ocorre durante todo o proce dimento de ensino-aprendizagem, por meio de instrumentos formais e estratégias de observação e interpretação qualitativa. No transcorrer do projeto, serão observados o nível de apropriação do gênero e a sua produção escrita. 6 4. Referências bibliográficas ASSARÉ, P. “A realidade da vida”, in: Ispinho e fulô. Fortaleza: Secretaria de Cultura, Turismo e Desporto/Imprensa Oficial do Ceará, 1988. BANDEIRA, M. “Profundamente”, in: Estrela da vida inteira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1993. BOSI, E. Memória e sociedade: lembranças de velhos. 17ª- ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2012. CENPEC. Se bem me lembro... Caderno do Professor – Orientação para produção de textos. 4ª- ed. São Paulo: Cenpec, 2014. Coleção da Olimpíada de Língua Portuguesa Escrevendo o Futuro. CORALINA, C. Estórias da casa velha da ponte. 13ª- ed. São Paulo: Editora Global, 2006. FROCHTENGARTEN, F. “A memória oral no mundo contemporâneo”, in: Estudos Avançados, v. 19, nº- 55, set./dez., 2005. Disponível em http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S010340142005000300027&script=sci_arttext. KLEIMAN, A. “Trajetórias de acesso ao mundo da escrita: relevância das práticas não escolares de letramento para o letramento escolar”, in: Perspectiva, v. 28, nº- 2, jul./dez., 2010, pp. 375-400. Disponível em <https://periodicos.ufsc.br/index.php/perspectiva/article/view/2175-795X. 2010v28n2p375>. PARREIRAS, N. Confusão de línguas na literatura: o que o adulto escreve, a criança lê. Belo Horizonte: RHJ, 2009. POE, E. A. “Manuscrito encontrado numa garrafa”, in: O escaravelho de ouro e outras histórias. São Paulo: L&PM Pocket, 2011. PORTO, M. Mundo das ideias: um diálogo entre os gêneros textuais. Curitiba: Aymoré, 2009. ROJO, R.; MOURA, E. (orgs.). Multiletramentos na escola. São Paulo: Parábola, 2012. 7