1 O Sagrado e o Profano A Mística Denomina-se

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1 O Sagrado e o Profano A Mística Denomina-se
O Sagrado e o Profano
A Mística
Aos Mestres incomparáveis no saber e na conduta...
Denomina-se tropismo à tendência própria de todos os seres vivos de voltar-se para
sua fonte de alimentação. No caso específico da grande família humana, poderia chamar-se
de tropismo metafísico a procura de tudo quanto alimenta a alma, ao “vôo do Uno para o
Único” nas palavras de Plotino1, ao direcionamento da alma na procura da sua fonte vital,
como afirmara Ibn Gebirol2.
Quando se quer descrever os fenômenos registrados pelos sentidos (objetivos e
externos) se convencionam linguagens que permitem comunicar essas experiências. No
entanto, quando os fenômenos são subjetivos e internos, nunca há plena certeza de que os
relatos correspondam exatamente às vivências experimentadas, inexistindo um vocabulário
preciso, um dizer “familiar”, igualmente reconhecido com o mesmo valor por todos.
Criticando essa imprecisão, Nietzsche diz que “as explicações místicas aparentam ser
profundas, mas não são sequer superficiais”, no sentido de que não podiam sequer ser
superficiais, pois não eram explicações. Tendo em vista que os processos místicos são
experiências singulares e internas, as narrativas dessas experiências não são explicações
sobre a mística, pois seria confundir a experiência em si, com a tentativa de postar-la em
palavras.
Para dar credibilidade a esses fenômenos ou momentos da consciência, é mister se
perguntar: experiência de que é a mística?
Falando sobre o fenômeno religioso, Schleirmacher3 o definiu como “o sentimento de
absoluta dependência”, mas tratando-se da experiência mística, esta seria exatamente o
contrário, isto é, o sentimento de absoluta independência, de libertação, da autonomia
total do espírito como tal.
A partir dessa premissa, a mística poderia ser definida como o ponto final da
experiência religiosa, isto é, de sua realização4, devendo ser entendida como um momento
da consciência, um processo que ganha paulatinamente seu significado na medida em que
se aproxima ao objetivo que se pretende alcançar.
A ausência de uma linguagem apropriada para descrever esses estados da consciência, e
a utilização abusiva de termos como “aniquilamento”, “mergulho”, “união amorosa”,
“hierogamia”, “delírio sagrado”, “êxtase”, e muitos outros semelhantes, tentando explicar
ou reduzir esses momentos da consciência a conceitos inteligíveis, contribuem para pôr-los
em descrédito por não se encaixarem em nenhuma lógica conhecida.
A Gênese do Pensar: o Pensamento pré-lógico, Dual, Dialético e Místico
“... conduzir a carroça de tudo pelo caminho do nada”.
Fernando Pessoa
Para os historiadores do pensamento, o ponto de partida no processo de pensar é
denominado “pré-lógico”. Antropólogos e sociólogos, (não somente eles) acreditando na
Filósofo neo-platônico (205-270)
Salomon ibn Gebirol, conhecido como Avencebrol, poeta judeu-hispánico (c.1070)
3 Frederico Daniel Schleirmacher, (1768-1831) pastor protestante, professor e filósofo.
4 Ou de sua superação nas palavras de Nietzsche.
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tese do “progresso ininterrupto”, conseguem ver no passado apenas fatos “primitivos”,
sem levar em conta que eles e suas teorias, na vigência do mesmo critério, receberam o
mesmo tratamento no futuro se essa tese for verdadeira.
Na tentativa de ilustrar esse suposto momento, costuma-se afirmar que nossos
antepassados viviam num estado mental semelhante ao experimentado durante os sonhos,
onde tudo é possível. As situações e os personagens que povoam as imagens oníricas são
totalmente desprovidas da tão apreciada lógica cartesiana. Neles, todas as situações
acontecem sem contradições, sendo e não sendo ao mesmo tempo. Os acontecimentos que
se desenvolvem não obedecem a nenhuma lógica conhecida, nem respondem a alguma
ordem seqüencial. Esta lógica, se é que pode ser chamada assim, carece de princípios e é
indiferente a eles, resolvendo-se na afirmação ingênua, isto é, sem levantar qualquer
suspeita sobre o dado. Durante os sonhos não há oposição entre os diferentes momentos
do tempo e do espaço. Tudo acontece misturando o que já foi e o que é, não havendo
restrições de qualquer tipo.
Em um segundo estagio da gênese do pensar é descoberta à negação. No estagio prélógico só existia a afirmação, (tudo era possível e sem restrições) mas a partir da bifurcação
produzida pelo momento dual, afirmação e negação (possível e impossível) formam um
par inseparável, simbolizando o nascimento da contradição5. Dito com outras palavras,
afirmar e negar simultaneamente uma mesma coisa é uma impossibilidade para a lógica. A
partir de agora, o pensamento admite oposição, conseqüentemente, o que é contraditório é
impossível e falso6.
Neste momento, despojada de conteúdos sensíveis, esta lógica é a algo assim como um
tratado fantasmagórico composto pelos espectros de sucessivas abstrações7. No dizer de
Nietzsche, foi por esse caminho, que os filósofos criaram “as indigestas pedras de um saber
que não sabe, um amor que não ama e um poder que é pura impotência”.
Em resumo, no primeiro momento só existiria a afirmação, no segundo, afirmação e
negação, sem a admissão de nuances ou termos médios, mas no terceiro estagio, (o da
dialética), o ser e o não-ser são questionados, pois tanto o puro ser, quanto o não-ser, sem
determinação alguma, sem substancia, sem qualidades que os identifiquem, são puro nada,
abstrações sem nenhum conteúdo.
Hegel8 desafiou aos pensadores de sua época para que demonstrassem em que consistia
a diferencia entre o ser e o não-ser, pois sendo ambos absolutamente vazios e
indeterminados, como poderiam ser desiguais? Mas, se não são diferentes, como explicar o
processo do pensar que consiste em verificar e dimensionar as desigualdades dos termos
apresentados como opositivos?
O surgimento desta contradição é o resultado de apresentar como equivalentes os dois
termos tidos como incompatíveis. O que é, é, e o que não é, não é, apresentados
anteriormente como principio de identidade, são postos aqui como contradição.
Tanto o ser, quanto o não-ser, somente subsistem no pensamento enquanto são
admitidos como diferentes. No entanto, sabemos que no devir das coisas, o dia se
transforma em noite e vice-versa, suprimindo a rigidez das distinções9. Conseqüentemente,
superando o estagio “dual” no qual se afirmava o ser e se negava o não ser, o momento
“dialético” inaugura um novo modelo que consiste em afirmar o ser e também nega-lo,
assim como afirmar o não-ser (o nada) e também negá-lo.
Hegel fez alusão em diversas oportunidades aos sistemas que tentam derivar a
realidade concreta do nada, comentando que nesses sistemas, o vazio deveria conter o ser.
Dito ao modo do Parmênides: “o ser é, e o não-ser não é”.
Esta lógica da identidade aparece no AT: “Se frio ou quente, pois morno te cuspirei de minha boca”.
“Comigo ou contra mim” do NT, ou no popular “oito ou oitenta” do maniqueísmo, não reconhecendo os
nuances intermediários que existem entre os pares opositivos.
7 O “Mundo das Idéias” de Platão, isto é, sem o revestimento material.
8 George Wilhelm Friederich Hegel, filósofo alemão (1770-1831).
9 Seguindo o principio de identidade deveríamos considerar o dia e a noite como absolutos, mas neste
momento dialético cada um deles é entendido pelo outro, sem qual perderiam o sentido.
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Ao final, dizer, “no principio era o ser” é o mesmo que dizer, “no principio era o não-ser”.
Ante a impossibilidade lógica de derivar um do outro (o ser do nada, ou o nada do ser)
tanto os budistas, quanto os taoistas deram preferência a fórmula: “no principio não era
nem o ser, nem o não-ser”, mas desde um ponto de vista dialético, em vez de “solucionar”,
duplicaram o problema, ficando claro, que negar ou afirmar qualquer principio (um
independentemente do outro) é insistir no mesmo ponto que se pretende superar. Dito
com outras palavras é possível afirmar e negar o ser e o não-ser, mas não como dois termos
rigidamente enfrentados, e sim, a partir da compreensão de que ambos são idênticos na
suas absolutas indeterminações.
No quarto estagio, o momento “místico” inaugura a teologia negativa, isto é, a lógica
apofática10. Para o pensamento budista que conduz ao misticismo manifesto por
Nagarjuna11, nem a afirmação, nem a negação, permitem uma solução.
A titulo ilustrativo, utilizando o pensamento de Heráclito12 quando este diz: “o Uno, o
Único Sábio quer, e também não quer, ser chamado de Zeus”, no momento do pensar
místico, o querer e o não querer é substituído por nem quer, nem não quer, ante a
necessidade de introduzir a indiferenciação absoluta. O principio, a origem, o ponto de
partida, ou como se queira chamar, não é passível de afirmação, nem de negação, sendo a
negação de toda afirmação e de toda negação13. O “neti, neti” (não é assim, não é assim)
dos Upanhishads é a resumida resposta ante qualquer afirmação ou negação, condição em
que o pensamento é seduzido pelo paradoxo14.
Esse apostar no que é “inteiramente outra coisa”, ou este modo de negar a lógica
dialética, valeu para a mística o adjetivo de “irracional”, termo criado pela racionalidade
para confessar sua impotência para entender qualquer coisa que não se enquadre em suas
premissas.
Recapitulando mais uma vez: a primeira manifestação do pensamento é associada à
“mentalidade primitiva”, (momento pré-lógico) a algo que subsiste nos sonhos das pessoas
lógicas (?) e que se manifesta como afirmações sem conflito. Em um segundo momento,
(dual, formal ou abstrato) o conflito se manifesta quando a afirmação e a negação,
querendo ser simultâneos, provocam a abstenção do assentimento racional, representando
pela descoberta da contradição. (Ou é, ou não-é, excluindo qualquer outra possibilidade).
Na terceira fase, (momento dialético) descobre-se uma nova contradição: o ser e o nada,
isto é, o não-ser, apresentados em um primeiro momento como diferentes, são
identificados pela razão como equivalentes. Afirmar um deles e negar o outro, é a
descoberta de uma nova contradição lógica. No sendo isto possível para a razão, esta
contradição é negada, gerando uma síntese que, negada mais uma vez, instaura o devir15 das
coisas. Por fim, no momento “místico”, não se afirma nem o ser, nem a nada abstratos.
Hegel reconhecia que na metafísica cristã, a frase “ex nihilo nihil fit” seria um modo
implícito de reconhecer à impossibilidade de um trânsito do nada para o ser, superando a
posição budista em que a realidade é um nada que só é nada, e a posição de Parménides no
seu esforço para fundar uma realidade no ser, que somente é ser.
Para negar a diferencia de o puro ser e do puro nada, Hegel recorre às imagens da pura
luz e da pura escuridão. Na experiência mística, afirmações e negações simbolizadas pela
ascensão à luz e pela descida as trevas, são duas direções insuficientes, mas é unicamente
nesses trânsitos que se descobrem as insuficiências. O refugio deve ser procurado na
“escuridão transluminosa”, na “compreensão” da incompetência das afirmações e negações
racionais nessas questões, assim, a “iluminação” significa descobrir que há uma aspiração
do não-ser para o ser, ou ainda, poderia se afirmar que no puro nada pode ser encontrado o
Do grego apophatikós, proposição negativa.
Ver Cartas a um amigo, Editora Pala Athena, São Paulo, 1994.
12 Heráclito de Éfeso (entre os séculos VI e V a.C.).
13 O teólogo protestante alemão Rudolf Otto, (1869-1937) chamou de “inteiramente outra coisa”.
14 Do grego parádoxon, o que é contrário à opinião comum.
15 Devir no sentido de metamorfose, transformação, mudança, impermanênçia.
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Bem e o Belo, mas, ao mesmo tempo, no Bem e no Belo pode ser visto a vocação do ser
para o nada. Mas, isto não é nada mais que o começo. No final, como momento máximo
da força apofática, o processo todo também deve ser negado, deixando de ser um processo.
Foi nesse sentido que Dioniso o Areopagita16 na sua Teologia Mística, nega todos os
momentos lógicos possíveis dizendo: o “Principio” nem é, nem não-é, nem quer, nem não
quer ser chamado de Deus, nem Único, nem divindade. Não está imóvel, nem em
movimento, nem em repouso. Não é treva nem luz, nem o erro ou a verdade.
Absolutamente independente, excede todas as afirmações e todas as negações, não
admitindo nenhuma afirmação ou negação. Também não admite as negações que devem
ser negadas ou algum juízo que o expresse na tentativa de determiná-lo.
A partir destas argumentações, a mística parece condenada a um inevitável silêncio,
manifestando o sentimento de absoluta independência em relação a qualquer instancia da
razão.
Só Deus conhece a Deus.
Bhagavad Gita
O Sagrado e o Mundo Moderno
Segue teu destino...rega as tuas plantas; ama as tuas rosas. O resto é a sombra de arvores alheias.
Fernando Pessoa
Para os teólogos, a manifestação do sagrado é a revelação de uma realidade absoluta que se
opõe a não-realidade, e isto se dá pela instituição do sagrado, isto é, de um ponto fixo
primordial, de um Centro que permite a orientação e que serve de guia no Caos.
O espaço profano, homogêneo, sem pontos fixos, mutante em seus conteúdos,
aparecendo e desaparecendo conforme as necessidades, sem solidez nem concretitude, não
condizem com o sagrado.
Em vista das exigências da modernidade, deixou de existir um Centro para o homem
se orientar, mas uma infinidade de lugares nos quais ele se move, entontecido e inseguro,
produzindo comportamentos amorfos. Contrariamente, e a partir do entendimento de que
não há orientação sem um ponto fixo, entende-se porque o homem religioso é aquele que
consegue
ter a certeza do rumo correto no torvelinho tempestuoso do viver cotidiano.
Esse modo de caminhar pela vida com espírito religioso é criar um Cosmos no Caos. Mais
do que isso, é reiniciar a vida limpo e puro. Viver no sagrado é fazer parte de algo alinhado
aos preceitos “exigidos” pela divindade, ao mesmo tempo, é partilhar do sentimento de
segurança, sentimentos este que podem ser adquiridos pela sintonia com o meio sagrado,
pela disposição de hauri-los, ou através da devida disciplina para obtê-los.
O Sagrado no Meio da Explosão das Tecnologias
Antes de os relógios existirem, todos tinham tempo. Hoje, todos têm relógios.
Eno Teodoro Wanke
“Deus está morto. Nós o matamos. Deus permanece morto. E fomos nós que o
matamos. Como nos consolar? (...) Aquilo que o mundo possuía até agora de mais sagrado
e de mais poderoso perdeu seu sangue sob nossos punhais. Quem limpará esse sangue de
nossas mãos? Que água lustral poderá jamais nos purificar? Que solenidades expiatórias,
que cerimônias sacras precisaremos inventar?” (...). É assim que Nietzsche descreve no
terceiro capítulo da A Gaia Ciência, a condição da modernidade, e continua: “Quem quer
que nasça depois de nós pertencerá, em virtude dessa mesma ação, a uma história superior
a tudo o que foi história até agora!”. Mas, o que é possível observar na modernidade é que
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Dioniso o Pseudo Areopagita, filósofo neo-platônico. (Fins do século IV e começo do V).
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o conceito de sagrado como fundamento do mundo religioso foi perdendo legitimidade, e
novas demandas exigem mais coerência entre os discursos e os fatos. O fenômeno da
secularização, isto é, o tempo prevalecendo sobre a eternidade, não aceita combinar
pacificamente religião e progresso mundano.
Libertado do medo com que fora infantilizado, o mundo moderno manifesta suas
dificuldades crescentes para se identificar com as estruturas tradicionais, inibindo a
manutenção de compromissos com os espaços antes ocupados pela fenomenologia
religiosa. Com plena consciência do perigo que representam os pensamentos reducionistas,
poderia se afirmar que plaina no ar a desagradável sensação de que as estruturas religiosas
atuais são incapazes de atender a todos, principalmente por suas ineficiências em
responder as demandas de espiritualidade que continua permanecendo como marca
identificadora da espécie humana.
O exílio do sagrado identifica o “moderno”, e é provável que o século XX seja
lembrado pelo rompimento do monopólio cristão na cultura ocidental. Por outro lado, o
século XXI, por não ser religioso não sentido tradicional, quiçá possa ser o berço de modos
religiosos, que saindo das sombras a que foram relegados, terão seu espaço de legitimidade.
O que esteve abafado pelo sistema dominante, surge renovado como pluralismo
religioso. As novas tendências revelam o crescimento das “religiões particulares”, algo
assim como um tipo de “bricolagem” religiosa, onde cada um se serve segundo suas
necessidades, misturando sabores.
Acompanhando o alargamento das fronteiras do que se entendia por religioso, o debate
científico, o esoterismo, as questões filosóficas, as fantasias, etc., irrompem nos espaços
antes ocupados pela “versão oficial”. A mixagem se apresenta confusa pelo fato de que o
religioso é entendido como Psicologia, Terapia, Medicina, hábitos alimentares, Filosofia,
Ecologia, etc., preenchendo os vazios deixados pelo “anterior ocupante”.
O novo se apresenta ao mundo com práticas ritos e crenças que desafiam o que foi
tradicional, sobretudo, valorizando o emocional novamente. Mais uma vez, o pólo sensorial
volta a ser mais importante que o pólo teológico.
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